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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

DÉBORA MATOS MAIA

EDUCAÇÃO E IDENTIDADE:
A RECONSTRUÇÃO CULTURAL DA FESTA DE ITAPUÃ

Salvador
2012


DÉBORA MATOS MAIA

EDUCAÇÃO E IDENTIDADE:
A RECONSTRUÇÃO CULTURAL DA FESTA DE ITAPUÃ

Dissertação apresentada à Coordenação do


Programa de Pesquisa e Pós–Graduação em
Educação, Faculdade de Educação, Universidade
Federal da Bahia, linha temática Educação, Cultura
Corporal e Lazer, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestra em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Rodolpho Jungers


Abib.

Salvador
2012


SIBI/UFBA/Faculdade de Educação – Biblioteca Anísio Teixeira

Maia, Débora Matos.


Educação e identidade : a reconstrução cultural da Festa de Itapuã / Débora
Matos Maia. – 2012.
189 f. : il. + 1 DVD

Orientador: Prof. Dr. Pedro Rodolpho Jungers Abib.


Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de
Educação, Salvador, 2012.

1. Cultura popular – Itapuã (Salvador, BA). 2. Festas religiosas - Itapuã


(Salvador, BA). 3. Educação. 4. Identidade social. I. Abib, Pedro Rodolpho
Jungers. II. Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Educação. III. Título.

CDD 306 – 22. ed.



DÉBORA MATOS MAIA

EDUCAÇÃO E IDENTIDADE:
A RECONSTRUÇÃO CULTURAL DA FESTA DE ITAPUÃ

Dissertação apresentada à Coordenação do


Programa de Pesquisa e Pós–Graduação em
Educação, Faculdade de Educação, Universidade
Federal da Bahia, linha temática Educação, Cultura
Corporal e Lazer, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestra em Educação e
aprovada pela seguinte Banca Examinadora:

________________________________________
José Márcio Pinto de Moura Barros
Doutor em Comunicação e Cultura, UFRJ.
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

________________________________________
Luís Vitor Castro Júnior
Doutor em História, PUC/SP.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

________________________________________
Pedro Rodolpho Jungers Abib (Orientador)
Pós-Doutor em Ciências Sociais, UL, Lisboa, Portugal.
Universidade de Lisboa.

Salvador, 16 de Março de 2012.



Dedico este trabalho às pessoas mais importantes na minha vida:

Aos meus pais, Haydê e Paulo.


Ao meu irmão, Otto.



AGRADECIMENTOS

Foram tantas as contribuições diretas e indiretas para a concretização desse trabalho


que fica difícil saber por onde começar. Mas vamos lá. Inicialmente gostaria de agradecer aos
meus familiares e amigos pelo apoio e encaminhamentos na vida.
Agradeço ao Grupo MEL e principalmente aos atuais professores coordenadores,
doutores César Leiro e Romilson Augusto dos Santos pelo incentivo e contribuições.
Agradeço ao meu pai, Doutor Paulo Maia, pelas inúmeras revisões na proposta do
projeto.
Ao anjo Ângelo Amorim, porque sem a intervenção iluminada no momento certo
eu não teria ingressado no Programa de Pós-graduação.
Especialmente ao meu orientador, o Professor Doutor Pedro Rodolpho Jungers
Abib pela confiança depositada, por ter me dado autonomia e liberdade suficiente para que eu
pudesse encontrar os caminhos no próprio caminhar do processo. Agradeço ainda suas
orientações e sugestões acertadas na construção da dissertação.
Muitas foram as pessoas da comunidade de Itapuã que contribuíram com o presente
trabalho e como foram tantas, deixo de forma ampla o agradecimento por cada momento. No
entanto, quero fazer um agradecimento especial àqueles que me receberam inicialmente no
contato com o cotidiano do bairro de Itapuã, como Leonardo França, família de Ana Lú,
moradores de Nova Brasília, pessoal da Casa da Música, frequentadores dos sambas do grupo
Botequim.
Agradeço também a receptividade, acolhimento e confiança depositada pelos atores
sociais entrevistados. Muito obrigada Seu Menezes, Cuca, Ives, Amadeu, Seu Régis, Josélio,
Celso, Eurico, Biriba, Ulisses, Sidney, Rose e Bujão por terem dedicado tempo a prestar os
depoimentos maravilhosos e cheios de conteúdo.
Gostaria também de agradecer a todos os participantes da Escola de Samba Unidos
de Itapuã, especialmente aos coordenadores Cuca, Raul Pitanga, Nailton, Neo, Binho e à ala
de tamborim pelos ensinamentos e vivências compartilhadas. Parabéns pelo belo trabalho
desenvolvido com tanta dedicação!
Não posso deixar de agradecer a parceria de Chico Argueiro, Xenon e Júlia Tazzi
no fazer acontecer o filme que traz as questões mais centrais dessa dissertação em imagens.
Obrigada pelas conversas, noites de criação, debates, discussões e aprendizados.



Meus agradecimentos aos professores doutores José Márcio Barros e Vitor Castro
por aceitarem o convite em participar da banca, pela leitura atenta e sensível na qualificação.
Obrigada pelas contribuições, foram de muito valor.
Gostaria de agradecer à Universidade Federal da Bahia - UFBA, Faculdade de
Educação, especialmente, ao Programa de Pós-graduação em Educação e às funcionárias
Gracinha, Kátia, Priscila e Márcia.
Agradeço ainda a todos os colegas e professores que estiveram ao meu lado, deram
força e atenção durante o processo de escrita, especialmente aos amigos Sara Abreu, Elton
Nascimento e Daiane Santil pela paciente escuta e contribuições frente aos meus devaneios
epistemológicos.
Agradeço o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia –
Fapesb.
Fiz a tentativa de não cometer equívocos e acabar esquecendo-me de alguém que,
de alguma maneira, fez parte da construção desta obra. Agradeço então àqueles que
contribuíram com a presente dissertação, mas que não se sentiram contemplados aqui nessas
primeiras páginas. Quero que saibam que os momentos vividos continuarão sempre vivos em
nossos corações.
Só resta então agradecer a Deus por iluminar meus caminhos proporcionando
encontros e desencontros que foram fundamentais para que eu chegasse onde estou.
Muitíssimo obrigada!



Nutrindo-se de mudanças, o tempo de trânsito é mais do que simples mudança. Ele implica realmente
nesta marcha acelerada que faz a sociedade à procura de novos temas e de novas tarefas. E se todo
Trânsito é mudança, nem toda mudança é Trânsito. As mudanças se processam numa mesma unidade
de tempo histórico qualitativamente invariável, sem afetá-la profundamente. É que elas se verificam
pelo jogo normal de alterações sociais resultantes da própria busca de plenitude que o homem tende a
dar aos temas. Quando, porém, estes temas iniciam o seu esvaziamento e começam a perder
significação e novos temas emergem, é sinal de que a sociedade começa a passagem para outra época.
Nestas fases, repita-se, mais do que nunca, se faz indispensável a integração do homem. Sua
capacidade de aprender o mistério das mudanças, sem o que será delas um simples joguete.

Paulo Freire (2009, p.54).



RESUMO

A dissertação apresenta discussões sobre o processo de reconstrução de práticas culturais e


seus efeitos sobre as identidades coletivas, estabelecendo diálogos com os processos
informais de educação, a economia local e a construção de identidades, conformando o
exercício da cidadania por meio da análise do espaço urbano e da festa religiosa. A partir das
transformações e atualizações que o bairro de Itapuã passou, tomamos como base os
processos educativos que permeiam a Festa da Lavagem, identificando-a como parte da
cultura da cidade em que esta torna-se um meio de comunicar os cidadãos diversos,
provocando o desenvolvimento humano das pessoas através das interações destes com o meio
cultural do lugar onde vivem. O objetivo foi compreender os sentidos e significados da festa
para a comunidade de Itapuã do ponto de vista da educação e da identidade, focando a relação
da Lavagem com os processos formativos no contexto organizativo e das manifestações
culturais. Buscou-se a partir da convivência em campo de pesquisa compreender, sentir, olhar,
escutar as pessoas do bairro/comunidades, utilizando estratégias etnográficas.

Palavras chave: Educação. Cultura Popular. Identidade. Festa Religiosa.



RESUMEN

La tesis presenta los debates sobre la reconstrucción de las prácticas culturales y sus efectos
sobre las identidades colectivas, establecer un diálogo con los procesos informales de la
educación, la economía local y la construcción de identidades, la formación del ejercicio de la
ciudadanía a través del análisis del espacio urbano y la fiesta religiosa. A partir de los cambios
y actualizaciones que el distrito de Itapuã ahora, que se basan en los procesos educativos que
subyacen en la Fiesta de la colada, que lo identifica como parte de la cultura de la
ciudad donde se convierte en un medio de comunicación de muchos ciudadanos, lo que el
desarrollo humano de las personas a través de estas interacciones con el entorno cultural en
que viven. El objetivo fue comprender los significados de la fiesta para la comunidad de
Itapuã el punto de vista de la educación e identidad, centrándose en la relación con los
procesos formativos en seco en el contexto delos eventos organizacionales y culturales. Se
solicitó a la convivencia en el campo de la investigación para comprender, sentir, mirar,
escuchar a la gente del barrio / comunidad, el uso de estrategias etnográficas.

Palabras llave: Educación. Cultura Popular. Identidad. Fiesta.



LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Itapuã: Mapa Mental 66

Figura 2 – Itapuã: Localização 67

Figura 3 – Fotografias da Av. Dorival Caymmi em Itapuã 68

Figura 4 – Antiga feira de Itapuã e Mercado Municipal 69

Figura 5 – Proximidades da Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Itapuã em 1950 71

Figura 6 – Proximidades da Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Itapuã 71


no presente urbanizado

Figura 7 – Dona Francisquinha e Seu Menezes num evento festivo em Itapuã 74

Figura 8 – Seu Menezes 84

Figura 9 – Amadeu Alves 84

Figura 10 – Ulysses 85

Figura 11 – Cuca 85

Figura 12 – Seu Régis 86

Figura 13 – Ives 87

Figura 14 – Eurico 87

Figura 15 – Josélio 88

Figura 16 – Celso 89

Figura 17 – Rose 89

Figura 18 – Bujão 90

Figura 19 – Biriba 90

Figura 20 – Sidney 91

Figura 21– Dona Cabocla no samba em sua casa 96

Figura 22 – Invenção de Seu Menezes “Foguete” 124

Figura 23 – Bando Anunciador voltando para a casa de Dona Nini 149

Figura 24 – Escola de Samba na Lavagem de Itapuã 157



Figura 25 –Ensaio da Escola de Samba no Abaeté 160

Figura 26 – Jovens interagindo no ensaio da Escola de Samba no Abaeté 164

Figura 27 – Jovens da Escola de Samba indo ensaiar passando por muro grafitado 165

Figura 28 – Desfile do Korin Nagô no sábado 169

Figura 29 – Imagem de Iemanjá no dia do presente da segunda-feira gorda 169

Figura 30 – Comunidade assistindo à entrega do presente na segunda-feira gorda 170



LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABECC - Associação Bem Estar e Cultura Corporal

Afa - Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afroameríndia

AMI - Associação de Moradores de Itapuã

BA - Bahia

CIA - Centro Industrial de Aratú

CDCN - Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra

Chabisc - Comunidade Habitacional Sociocultural

CMCN - Conselho Municipal da Comunidade Negra

EBA-UFBA - Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia

Funceb - Fundação Cultural do Estado da Bahia

GAM - Grupo de Artes Manuais (do Grupo Étnico Cultural da Bahia)

Grita - Grupo de Revitalização de Itapuã

ONG - Organização Não Governamental

PM - Polícia Militar

Senai - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

Sudic- Superintendência de Desenvolvimento Industrial e Comercial

TCGA - Taxa de Crescimento Geométrico Anual

UFBA - Universidade Federal da Bahia

Uneb - Universidade do Estado da Bahia

Unibahia - Unidade Baiana de Ensino Pesquisa e Extensão



SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 14

2 CIDADE, CULTURA E EDUCAÇÃO 
 
 
 
 
 

19


2.1 COMUNIDADE 27
2.2 CULTURA 30
2.3 EDUCAÇÃO 41

3 ITAPUÃ, FORMAÇÃO, TRAJETÓRIA E COTIDIANO 54

4 A FESTA DA LAVAGEM COMO PROCESSO, EXPERIÊNCIA 109


E IDENTIDADE
4.1 A FESTA DE ITAPUÃ 116
4.2 DAS REUNIÕES DE ORGANIZAÇÃO 129
4.3 O DIA DA LAVAGEM NATIVA ATIVA 152
4.4 VISÕES PERANTE OS GRUPOS CULTURAIS 166
4.5 O FIM DO DIA NÃO É O FIM DA FESTA!
4.6 APRENDIZADOS, CONTRIBUIÇÕES E MUDANÇAS DOS ATORES 170
SOCIAIS NA RELAÇÃO COM A LAVAGEM

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 177

REFERÊNCIAS 182

APÊNDICES 186
APÊNDICE A - ROTEIRO DE ENTREVISTA 186
APÊNDICE B – TERMO DE CESSÃO DE IMAGEM 189


  14
 

1 INTRODUÇÃO

Desafio. Essa é a palavra que acompanha, desde o início, a presente pesquisa. Isso
porque estudar academicamente a cultura popular não é tarefa fácil, levando-se em
consideração que esta se insere numa outra lógica e que se expressa de maneira diversificada
através de gestos, olhares, sensações, percepções, vibrações, que perpassam o corpo, a arte,
estética, ações, manifestações e eventos. Muda, transforma-se, esconde e desvela segredos
que somente a convivência cotidiana pode trazer à tona.
O interesse pelo tema nasce com a vivência enquanto moradora do bairro, onde
criada pude absorver grande conhecimento ao me envolver com tradições e manifestações
culturais. A própria cidade de Salvador foi um arcabouço formativo, na qual em cada canto,
festejo e espaço as trocas de ensino-aprendizagem davam-se de maneira natural, enriquecendo
e trazendo uma compreensão ainda mais ampla de tudo que me foi ensinado na família, na
rua, na escola e universidade com a convivência nos espaços. Assim, a cultura da mesma
acabou contribuindo com a formação pessoal e tal envolvimento trouxe aprendizados, que
foram aos poucos constituindo a pesquisadora, professora, mulher, aluna e apreciadora das
manifestações culturais sem nem mesmo ter me implicado com todas as tradições de Itapuã,
apenas algumas.
Dessa forma, a educação estará presente nesse trabalho ao considerar não apenas as
instituições de educação formal, mas entendendo que a cultura popular é um meio para que a
formação dos seres humanos aconteça, valorizando os saberes que surgem durante as
vivências cotidianas, compondo uma trajetória que engloba as relações humanas de
aprendizados transmitidos de um indivíduo para o outro, de geração em geração,
ressignificados e que também se constituem em aprendizados socioculturais, resultado da
expressão e história de formação do povo brasileiro.
Assim, um recorte na cidade de Salvador foi feito, ao escolher um bairro com
representação importante na formação desta em que tivesse presente uma forte cultura e
interação dos moradores. Itapuã foi então o bairro escolhido, não apenas por preencher todos
esses requisitos, mas também pelo interesse em contribuir com o lugar que tanto contribuiu e
ainda contribui com a minha formação.
Inicialmente, Itapuã era terra habitada por índios, depois passou a ser uma fazenda
e posteriormente uma vila de pescadores que tinha a pesca da baleia e peixes diversos como
sua principal fonte de sobrevivência. Tornou-se um recanto bucólico de veraneio, sendo
cantado por artistas famosos como Dorival Caymmi e Vinicius de Moraes, fato que criou

 
  15
 

imaginários diversos. Sofreu e vem sofrendo um crescimento urbanístico acelerado e, em


decorrência disso, a paisagem, o espaço, o lugar, as relações sociais e as manifestações
culturais que constituem a identidade local têm mudado.
A partir do estudo da trajetória histórica do bairro, inquietações a respeito das
transformações espaciais, do cotidiano e também da cultura local foram surgindo. O número
de condomínios, grandes empresas e invasões vêm aumentando ao mesmo tempo em que a
paisagem natural tem sido degradada. A violência crescendo e antigos hábitos como os de
socialização da vizinhança no espaço da rua foram sendo modificados.
Propor a investigação de um evento que tem relação com todo um processo
educativo, endoculturativo, ou seja, de formação a partir da convivência com cultura de um
lugar, no caso, o bairro de Itapuã, fez com que fosse ampliado o campo de visão para a
totalidade tanto da cidade de Salvador, como também dos movimentos globais com intuito de
compreender o que vinha acontecendo com o local. Desse modo, a presente pesquisa busca
desvelar o processo educativo de reconstrução cultural da comunidade de Itapuã, a qual
investiga as dinâmicas culturais do bairro, tomando como recorte do campo investigativo a
principal festa do lugar denominada Lavagem de Itapuã.
Este trabalho valoriza a singularidade da cultura local, o que há de simbólico
expresso pelas tradições, como também o intangível, o valor imaterial, aquilo que não se pode
mensurar e que está nas relações de ajuda mútua na qual cada ser humano se predispõe a
utilizar o seu capital intelectual e força de trabalho para colaborar com o coletivo, mesmo com
toda a transformação que o lugar passou.
Milton Santos (2009) diz que há um movimento vertical e homogeneizador
conduzido por um mercado cego que impõe elementos da cultura de massa. No entanto, esse
processo não chega a se completar, pois encontra resistência da cultura local. Em Itapuã, esse
movimento de resistência tem mexido com a comunidade do bairro, que vem discutindo e se
articulando diante desse movimento tão veloz, com a intenção de observar e compreender
para agir corretamente na tentativa de preservar o que existe de positivo e importante para
todos os habitantes do local.
Os processos identitários contribuem para resistir a todo esse movimento
homogeneizador e têm na educação enquanto cultura a convergência de práticas tão
importantes para o conhecimento da história e dos valores sociais. Assim, através da cultura é
possível pensar em uma educação que leva em consideração o ser humano que vive no
cotidiano com as dificuldades, necessidades e solidariedades de um coletivo resultantes da
formação cultural interna e local que influencia nas identidades dos sujeitos envolvidos.

 
  16
 

A sociedade contemporânea cada vez mais contribui para a transformação dos


ambientes público, social e cultural. Desse modo, as manifestações e eventos proporcionam
um desenvolvimento humano que se constituem em uma forma de conscientização e de
mobilização, que não possuem ou não deveriam possuir um controle externo, principalmente
quando estão ligados a eventos da cultura popular e são fundamentais para a valorização da
cultura de um lugar, dos espaços onde elas se realizam e de como elas acontecem.
A partir de toda a problemática aqui apresentada, surgem as seguintes questões:
Como uma identidade territorial se transforma em uma identidade de reconhecimento? Como
a festa se configura enquanto espaço e tempo singular no jogo das identidades? De que forma
a educação perpassa a Lavagem de Itapuã? De que maneira as expressões e vibrações
culturais festivas da Lavagem têm contribuído do ponto de vista formativo?
Estudos que venham mostrar a importância dos espaços de socialização e das
manifestações culturais populares se fazem necessários para alertar a população e instituições
da necessidade de se valorizar a cultura local e compreendê-la como uma festa oriunda da
própria população e para todos, possibilitando desta forma espaços capazes de unir e articular
a comunidade e suas identidades. Nesse contexto, como a pesquisa poder vir a contribuir com
o lugar estudado?
O contato com a comunidade proporcionou essa contribuição dada durante o
processo, nas trocas de aprendizados. Além disso, a própria escrita e ainda a elaboração de um
documentário que resume os principais temas abordados são meios de retorno. Estão previstas
mostras de vídeo para a comunidade em diversos espaços públicos da localidade, como
também em espaços virtuais para divulgar os resultados da pesquisa a um maior número de
pessoas. Um dos locais de exposição e acesso ao filme é a Casa da Música, um dos principais
pontos culturais do bairro de Itapuã. Acredito que a comunidade ao se ver representada de
maneira realista poderá avaliar o comportamento dos atores sociais e mudanças do lugar a
partir das falas e cenas do filme, o que pode vir a estimular reflexões e ações comprometidas
com as pessoas do bairro que habitam, viabilizando autoconhecimento, desenvolvendo o
sentimento de orgulho por sua cultura, fortalecendo a voz popular ativa e responsável pelas
relações dos processos identitários entre as diferentes gerações presentes na comunidade.
Através de um olhar interno e externo, foi possível ao mesmo tempo captar o que se
passava no cotidiano local, reconhecer os conflitos e ainda exercitar a visão ampliada das
relações formativas, tecendo conexões entre a literatura e as percepções do campo através de
estratégias etnográficas a serem apresentadas no capítulo que aborda Itapuã e a trajetórias
junto ao cotiadiano.

 
  17
 

O objetivo geral é compreender os sentidos e significados das festas para a


comunidade de Itapuã do ponto de vista da educação e da identidade, focando a relação da
Lavagem com os processos formativos no contexto organizativo e das manifestações culturais
no bairro. Para isso, inicialmente foi preciso responder aos objetivos específicos: perceber a
identidade itapuanzeira1 a partir das características, saberes, história, valores e costumes do
lugar; fez-se necessário interpretar, a partir dos sentidos veiculados pelos atores sociais
pesquisados, as tensões entre as expressões culturais e os ideários formativos vividos por eles;
buscou-se verificar as práticas educativas ligadas à festa que perpassam pelo envolvimento
da comunidade com a cultura local, para que fosse possível pesquisar as ações dos moradores
do bairro envolvidos com a festa da lavagem referentes ao fortalecimento e reconstrução da
cultura local.
A organização desta escrita está pautada em quatro capítulos, afora a introdução,
sendo o primeiro pautado numa revisão e pesquisa bibliográfica acerca da cidade, cultura e
educação, partindo do alerta de Paulo Freire (2008, p. 161) sobre o cuidado que deve existir
em trazer a totalidade ligada à localidade. O segundo capítulo aborda o caminho das ações
itinerantes, trazendo implicações pessoais e o percurso metodológico traçado. No terceiro
capítulo, a contextualização do lócus enquanto parte da história da cidade de Salvador
evidencia as mudanças sociais, econômicas e espaciais, que influenciaram direta e
indiretamente a transformação do bairro de Itapuã.
O quarto capítulo é referente à descrição densa do campo, apresentando o conteúdo
das entrevistas e interpretações feitas a partir de uma cuidadosa análise das narrativas.
Portanto, a partir da exposição circunstanciada do bairro e do espaço da festa é possível
compreender valores, modos de pensar e agir da comunidade e como vem passando por
transformações que acabam por refletir na maneira da comunidade se relacionar política,
econômica e socialmente tanto em relação aos eventos culturais, como também no próprio
cotidiano. Por fim, as considerações finais suscitam críticas e trazem proposições às
comunidades relacionando-as aos conceitos empregados durante todo o trabalho.

                                                                                                                       
1
Termo valorizado na maioria das falas dos atores sociais, sendo repleto de sentidos e significados que
serão aprofundados durante o texto e que é atribuído ora aos nascidos em Itapuã e ora às pessoas
que possuem sentimento de pertencer ao lugar.  
 
ARTIGOS
  19
 

2 CIDADE, CULTURA E EDUCAÇÃO

As cidades se constituem a partir da tensão entre as “forças” estruturais dadas pela


economia, pela história, pelo poder e também pelas forças “microssociológicas” impelidas
pela sociabilidade, pelos modos de vida, pelo cotidiano. Na cidade, construímos nossa
identidade, nos educamos e nos formamos enquanto cidadãos. E ser cidadão pressupõe ter
consciência dos direitos e deveres da pessoa humana, como também diz respeito à
participação democrática direta ou indiretamente, de forma mais ativa ou não, nas decisões
políticas.
Segundo o geógrafo Tuan (1983), o espaço é mais abstrato que o lugar e diz
respeito à liberdade, enquanto que o lugar tem relação com segurança. O espaço adquire
característica de lugar com a presença do homem e sua experiência a partir das suas
atividades. Para o autor, o significado de espaço se funde com o de lugar constantemente, pois
não se pode entender um sem o outro. “O que começa como espaço indiferenciado
transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor.” (TUAN,
1983, p. 6). No entanto, essa é apenas uma visão, pois outros autores trabalham o lugar, o
espaço e o território com conceituações que se confundem umas com as outras. Como
exemplo, pode-se perceber o conceito de território do geógrafo brasileiro Milton Santos
(2009, p.96), que é semelhante ao de lugar de Tuan, quando o autor diz: “o território é o chão
e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da
vida, sobre os quais ele influi.” (SANTOS, 2009, p.96).
Cabe ainda trazer o que Tuan (1983, p.198) diz sobre a relação do tempo com o
lugar a partir de três abordagens: afeição a um lugar em função do tempo vivido nele; o lugar
como pausa na corrente temporal de movimento para descanso, procriação e defesa; e o lugar
como tempo visível, percebido pela lembrança do tempo passado, ligado à memória. Esses
conceitos estão intimamente ligados ao que o bairro de Itapuã, enquanto lugar que se
modificou com o passar do tempo, mas que também manteve sua memória viva através das
gerações, criando vínculos identitários, passou e continua a passar e que serão mais
explorados logo à frente. Assim, o termo lugar será utilizado como um espaço em que se tem
um sentimento de pertencimento seja com as pessoas, o espaço, ou ambos, enquanto que o
termo território será usado quando houver disputas que têm como referência o espaço,
podendo o indivíduo possuir ou não esse sentimento de pertencimento.

 
  20
 

Para o antropólogo José Márcio Barros (2005, p.35), “a cidade é tanto o lugar onde
a vida acontece, lugar da ação, contexto, como superfície onde sentidos são dispostos e
oferecidos, não na sua materialidade, mas através dela”. Nesse sentido, concordando com o
pedagogo e filósofo Moacir Gadotti (2004, p.1), “a vivência na cidade se constitui num
espaço cultural de aprendizagem permanente por si só”. Ou seja, é o lugar onde as gerações se
encontram, trocam experiências, conhecimentos e saberes necessários para se viver em
sociedade, observam umas às outras e apreendem o padrão social de vida local que se
modifica e também se repete ao longo dos anos.
Cada período histórico guarda suas características, seus modos de vida, possui seu
tempo e uma organização do espaço, que por sua vez são interpretados e internalizados
através dos nossos sentidos e que influenciam de diferentes maneiras o hoje. A cidade como
um todo guarda épocas possuidoras de suas marcas, podendo ser vistas materializadas em
fotografias antigas e atuais, na mistura de estilos arquitetônicos, nos símbolos espalhados
pelos espaços, nos nomes das ruas que guardam histórias passadas, nas composições
musicais, etc. A visão do sociólogo Zigmunt Bauman (1999, p.48) traz a cidade como um
palimpsesto, “construída com camadas de acidentes históricos sucessivos”, ou seja, que se
formou e continua se formando a partir da “seletiva assimilação de tradições divergentes” e
também da “absorção igualmente seletiva de inovações culturais.” As camadas que compõem
a cidade entram em tensão e acabam por revelar paradoxos e contradições do presente que
possuem relação com o passado.
Portanto, “a cidade é um fenômeno vivo e rico de sentidos e significados.”
(BARROS, 2005, p.35) É uma realidade social, política, econômica e cultural atrelada a uma
história, em que existe um acordo entre pessoas para uma vida em grupo, com relações
pessoais e institucionais que se expressam em regras. Para o sociólogo e filósofo Henri
Lefebvre (2008, p. 82), a cidade é como uma obra de arte, modelada por grupos e seguindo
suas exigências, sua ética, estética e ideologia. Com a industrialização, adquire características
indefinidas de habitat, mudar-se passa a ser uma ação comum para o homem da cidade
moderna e isso contribui para o enfraquecimento do sentimento de pertencimento em escala
local.
Existe toda uma relação dessa situação com o sistema capitalista vigente, que,
quando somado aos efeitos da globalização, busca o aumento da produção e
consequentemente do lucro através da diminuição da participação do homem enquanto mão
de obra em função do uso da máquina e novidades tecnológicas, potencializando-se o
aumento da produção agrícola, de matéria prima e de produtos manufaturados. Essa produção

 
  21
 

exagerada necessita da ampliação dos mercados consumidores para que possa ser aproveitada
e isso é feito nos países e também além das fronteiras. O consumismo é disseminado,
estratégias de marketing instituem o que deve ser comprado em que o “velho e ultrapassado”
deve ser substituído pelo “novo e moderno”. Enquanto isso, o contraste da maioria das
pessoas não possuir sequer condições humanas dignas convivendo ao lado de uma minoria
que usufrui das evoluções tecnológicas. Segundo Milton Santos,

Hoje, com a difusão dos valores distorcidos da modernidade, valores que são
freqüentemente dados como se fossem valores urbanos, a teia de relações
outrora instalada nas cidades praticamente se estende a toda parte, com a
industrialização da agricultura e a modernização do campo. Os
constrangimentos que se opõem a uma plena realização do indivíduo e da
vida social estão em toda parte. (SANTOS, 1998, p.30).

As migrações do campo para as cidades contribuem para o aumento do desemprego


e das desigualdades. Com a urbanização dos espaços, inúmeras pessoas foram e continuam
sendo atraídas pelos melhoramentos estruturais, resultando na formação de invasões, que se
estabelecem à margem de espaços com pouca ou nenhuma infraestrutura. A concentração de
conexões e redes internas e externas nas cidades também é um dos fatores de atração
populacional. A cidade e seus lugares já não são mais os mesmos. Os espaços voltados para o
convívio social foram diminuídos. Os locais de encontro eram onde se criavam as normas,
que, por sua vez, distribuídos horizontalmente por interlocutores, constituíam uma
comunidade. “Por isso um território despojado de espaço público dá pouca chance para que as
normas sejam debatidas, para que os valores sejam confrontados e negociados.” (BAUMAN,
1999, p.33)
O excesso de atividades e ainda o “bombardeio” de informações e notícias
recebidas diariamente através da mídia e das tecnologias que emitem notícias em tempo real
do que acontece no país e no mundo colaboram para transformar o espaço fixo e o tempo bem
delimitados em indefinidos e fluídos. No que tange às argumentações de Milton Santos (2009,
p.40), as notícias não são os fatos em si, pois contemplam uma interpretação das mídias que
possuem interesses, visões e preconceitos, produzindo fábulas e mitos ao mesmo tempo. Ou
seja, tudo que é veiculado pelos meios de comunicação possui uma ideologia por trás. Nesse
sentido, para o autor, as fabulações se referem a ideias repetidas que nos fazem acreditar, por
exemplo, que o planeta se tornou uma aldeia global, no entanto, na realidade o que acontece é
uma comunicação através de uma intermediação interesseira e interessada pela mídia.
Concomitantemente, o mito se refere a um fato que não é realidade para todos, a exemplo do

 
  22
 

tempo e espaço contraídos na dependência da velocidade, sendo que essa não é uma realidade
para grande parte da população brasileira.
Com o surgimento de novas tecnologias, as anteriores não deixam de existir, mas o
acesso às diferentes técnicas se dá de maneira desigual. A unicidade da técnica se refere a um
grupo de técnicas que têm relação com o momento histórico em que todo o globo é capaz de
experimentar a mesma técnica, no entanto, serve aos grupos hegemônicos que se espalham
por toda a parte do mundo. (SANTOS, 2009, p.26) A convergência dos momentos diz
respeito a uma solidariedade e interdependência do acontecer, que se realiza em tempo real
em lugares diferentes. No entanto, a informação instantânea e globalizada não se apresenta
generalizada e veraz. A história escrita em tempo real pelos “donos da velocidade e os autores
do discurso ideológico”, demonstra mais uma vez a maneira desigual com que tudo acontece.
(SANTOS, 2009, p.28).
O motor único se refere a uma mais valia que é universal, não sendo mais presa aos
territórios e guiada de diferentes formas. Isso se tornou possível, “com uma verdadeira
mundialização do produto, do dinheiro, do crédito, da dívida, do consumo, da informação”. A
partir daí, é possível imaginar uma homogeneização, no entanto, “em nenhum lugar, em
nenhum país, houve completa internacionalização. O que existe é uma vocação às mais
diversas combinações de vetores e formas de mundialização.” (SANTOS, 2009, p.30). A
cognoscibilidade do planeta se refere ao conhecimento do mundo a partir do progresso da
ciência e da técnica. Esse fato possibilitou difundir as particularidades dos lugares que
incluem as condições físicas, naturais ou artificiais e políticas, sendo mais um fator a favor
das empresas e de qualquer indivíduo que queira conhecer um determinado espaço sem que
necessariamente possua a experiência de se fazer presente no lugar. (SANTOS, 2009, p.31).
Nesse sentido, a globalização além de ser um conjunto de técnicas presidido pela
técnica da informação, é o resultado das ações que asseguram a emergência de um mercado
dito global em que o uso político poderia agir de forma diferente em relação à unicidade da
técnica, convergência dos momentos, cognoscibilidade do planeta e a existência de um motor
único na história, representado pela mais valia globalizada. (SANTOS, 2009, p.24).
Esses fundamentos têm relação com a nova configuração com que pode ser escrita
a história. Uma “enorme mistura de povos, raças, culturas, gostos”, ideias, formas de pensar,
filosofias, amontoados em pequenos espaços, misturando-se, permite um dinamismo entre as
diferenças numa sociodiversidade. (SANTOS, 2009, p.21) Isso pode ser uma forma de
produzir novos discursos, no entanto, há de se levar em consideração que toda essa
diversidade concentrada no mesmo espaço é tanto um ponto favorável ao surgimento de novas

 
  23
 

ideias que visam a humanização como propícia a intrigas e desavenças. “O fenômeno da


globalização identifica um processo que mostra a intensificação dos fluxos (informação,
mercadorias, capital, pessoas) portadores, no espaço e no tempo, de novas formas de pensar,
de produzir, de se vincular ou de se relacionar.” (BRARDA; RÍOS, 2004, p. 17).
A acessibilidade à tecnologia por parte da população pode oportunizar às grandes
massas promover a sua própria informação, divulgação, comunicação, colocando a serviço do
homem as técnicas. As novas tecnologias da comunicação permitiram a integração da
economia, juntamente com a desterritorialização de atividades, que ficou fragmentada em
países diversos dependendo apenas das condições de custo-benefício. “A existência de uma
economia e de uma ‘cultura mundo’, a homogeneização de costumes, de espaços e formas,
não implica a negação de culturas locais.” (BRARDA; RÍOS, 2004, p.22). A aglomeração das
populações “constitui uma base de reconstrução e de sobrevivência das relações locais.”
(SANTOS, 2009, p.21). Todavia,

É irônico recordar que o progresso técnico aparecia, desde os séculos


anteriores, como uma condição para realizar essa sonhada globalização com
a mais completa humanização da vida no planeta. Finalmente, quando esse
progresso técnico alcança um nível superior, a globalização se realiza, mas
não a serviço da humanidade. (SANTOS, 2009, p.64-65).

O mesmo autor (2009) afirma que a ciência e a técnica passaram a servir ao


mercado em lugar da humanidade. A globalização a produzir a materialidade necessária à
produção econômica dos transportes e das comunicações ao tempo em que há também a
produção de novas relações sociais entre países, classes e pessoas. O Estado passa a se omitir
perante os interesses das populações enquanto que parece favorecer a economia dominante e
para que essa globalização perversa aconteça é preciso um Estado flexível aos interesses
hegemônicos. (SANTOS, 2009, p.66). Mas até quando as populações irão suportar as
desigualdades?
A globalização ao ampliar a comunicação a nível mundial facilitou a difusão das
diversas culturas. Como afirma Barros (2005, p.63), “a TV, o rádio, os jornais e os circuitos
informáticos, organizados por empresas transnacionais, distribuem repertórios
desterritorializados que não expressam imaginários nacionais.” Assim, o contato e a
comunicação com diferentes espaços, pessoas e atividades têm estimulado afinidades diversas
e muitas delas até aparentemente contraditórias, com misturas de culturas em seus estilos,
ideias e formas de agir. Nesse cenário, ao tempo em que se ampliam os contextos culturais

 
  24
 

através da diversidade e das possibilidades de comunicação, novos mercados consumidores


surgem inspirados no comportamento dos indivíduos.

Nesse mundo globalizado, a competitividade, o consumo, a confusão dos


espíritos constituem baluartes do presente estado de coisas. A
competitividade comanda nossas formas de ação. O consumo comanda
nossas formas de inação e a confusão dos espíritos impede o nosso
entendimento do mundo, do país, do lugar, da sociedade e de cada um de nós
mesmos. (SANTOS, 2009, p.46).

No que concerne às argumentações de Milton Santos (2009, p.48), a ideologia da


lógica do valor, fruto da competitividade, acaba por perder de vista a solidariedade entre os
seres humanos. Como consequência disso há problemas e fragmentações em todas as esferas,
desde saúde, educação, entre outros, até as formas de sociabilidade. As pessoas não apenas
mantêm suas relações de interação social no contexto local, mas também têm possibilidade de
transitar por outros “espaços”, ter contato com pessoas de outros lugares, mesmo sem sair da
cidade, do bairro e da sua moradia. Uma situação influencia e potencializa a outra, pois com a
diminuição de espaços públicos e ainda a falta de segurança que existe, a saída para isso tem
sido “navegar” pela rede virtual. O tempo parece passar rapidamente devido aos excessos de
atividades e informações. O relógio passa a marcar o tempo da natureza humana que gira seus
ponteiros no “tic-tac” dos compromissos. As pessoas parecem não se importar com o outro,
não olham mais nos olhos, não percebem e sentem o outro, vivem rotineiramente atrasadas
para completar a extensa agenda de tarefas que “precisam” ser cumpridas.
Cabe ressaltar que Milton Santos (2009, p.18) trata o mundo como sendo dividido
por três ao mesmo tempo. O primeiro, o de fabulações, é “o mundo tal como nos fazem crer”.
Este se apoia em um discurso único que se fundamenta na informação e no império criado por
ela, “a serviço do império do dinheiro”, que está fundado “na economização e na
monetarização da vida social e da vida pessoal.” O segundo é o mundo como ele se apresenta,
que para o autor (2009, p.18) é o da globalização como perversidade, na qual se tem a
pobreza, o desemprego, a perda da qualidade de vida, os baixos salários, a fome,
enfermidades, mortalidade infantil, precariedade da educação e o aprofundamento dos males
“espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção.” (SANTOS, 2009, p.20).
E o terceiro é o mundo como pode vir a ser, com uma globalização mais humana e com outros
fundamentos sociais e políticos possam ser empregados às bases materiais (unicidade da
técnica, convergência dos momentos e conhecimento do planeta) do período atual em que o
grande capital se apóia.

 
  25
 

A perversidade sistêmica que está na raiz dessa evolução negativa da


humanidade tem relação com a adesão desenfreada aos comportamentos
competitivos que atualmente caracterizam as ações hegemônicas. Todas
essas mazelas são direta ou indiretamente imputáveis ao presente processo
de globalização. (SANTOS, 2009, p.20).

As cidades cresceram a tal ponto que não existe mais um ponto de encontro apenas.
Cada bairro passou a ter uma característica dentro da mesma cidade, e por consequência a
população passou a percebê-la de forma fragmentada com uma vaga experiência do conjunto.
A constante mobilidade das pessoas passou a ser uma realidade na cidade, levando “a uma
mutabilidade dos valores formais e significativos do entorno construído”, tendo como
consequência a perda de significados para o indivíduo e mais tarde para todo um coletivo,
caso não haja uma atualização por parte daqueles que visualizam a importância de se
alimentar o sentimento de pertencimento com o lugar habitado, respeitando costumes, a
diversidade e modos de vida que tanto variam nos tempos atuais. “Cada grupo de pessoas
percorre apenas pequenos setores das cidades quando realiza suas tarefas habituais. Talvez
por isso, se perca a experiência do urbano, enfraquecendo os laços de solidariedade e a idéia
de pertencimento.” (BRARDA; RÍOS, 2004, p. 21)
A cidade não produz a violência, esta acontece na cidade devido à densidade
demográfica, a poucas oportunidades de trabalho que a mesma oferece, pela descrença no
poder político instituído, nas tradições sociais e culturais, que estampam os espaços públicos e
privados da cidade, como também devido às inúmeras rivalidades, que se constituem com a
convivência de grupos de seres humanos em desacordo. “Em suma, a violência urbana tem
raízes econômicas, políticas e sociais.” (FREITAG, 2002, p. 194).
Ao mencionar os crescentes índices de violência em forma de homicídios, Freitag
(2002, p.196) não culpa a urbanização do país, mas a estrutura desigual, injusta e com
concentração de renda nas mãos de elites rurais e urbanas, gerando desta forma uma cultura
da pobreza no campo e nas periferias das cidades, terreno fértil a violências de todos os tipos,
pois a própria condição de vida já é uma violência ao próprio ser humano que se machuca na
“labuta” diária de sua realidade.
Apesar da influência da globalização aparentemente nos fazer imaginar um mundo
sem fronteiras, o que se percebe é a tendência do não desaparecimento destas, mas um
fortalecimento que têm se dado a partir de pequenas resistências, que habitam a cidade que
educa. Esta cidade tem acolhido aqueles sujeitos que se identificam e desenvolvem o

 
  26
 

sentimento de pertencimento por um lugar e, portanto, acabam percebendo a necessidade de


ação.
Ao mesmo tempo, a cidade pode ser interpretada como possuidora de territórios,
onde disputas por espaço acontecem a todo o momento. A própria configuração que as
cidades dos países subdesenvolvidos vêm tomando, cada vez mais urbanizadas e detentoras de
índices elevados de desigualdade social e econômica, têm contribuído para a constituição de
favelas, degradação ambiental, decadência do centro urbano, crescimento da especulação
imobiliária, deslocamento de pessoas entre espaços diferentes e um consequente aumento da
transitoriedade delas tanto entre cidades, como também dentro destas, entre os bairros, seja
para fins de moradia ou apenas com intuito de lazer, trabalho, dentre outros. Portanto, “as
cidades resultam de necessidades de trocas entre diferentes grupos sociais, que fundam uma
realidade contextual marcada pela produção, circulação e consumo de bens, mercadorias,
serviços, informações, representações e sentidos.” (BARROS, 2005, p.27).
Bauman (1999, p.55) diz que “os modos contemporâneos, os ‘medos urbanos’
típicos, ao contrário daqueles que outrora levaram à construção de cidades, concentraram-se
no ‘inimigo interior’, ou seja, no próprio habitante da cidade e pressupõem que a preocupação
seja com a segurança individual, do ‘lar dentro da cidade’”. “Em vez de união, o evitamento e
a separação tornaram-se as principais estratégias de sobrevivência nas megalópoles
contemporâneas.” (BAUMAN, 1999, p.56). As megacidades ou megalópoles são aquelas em
que se tem acima de 10 milhões de habitantes, que possuem extremo de pobreza e riqueza,
rivalizando os habitantes em uma série de categorias de grupos diferentes e com ideias
divergentes. (FREITAG, 2002, p.217).
Segundo Freitag (2002, p. 109), o conceito de megalópole se refere tanto a uma
dimensão quantitativa da vida urbana como também a uma dimensão qualitativa. Assim, faz
parte dessa conceituação alguns pontos como o crescimento urbano vertiginoso nos anos
1970, 1980 e 1990; a explosão demográfica decorrente principalmente da confluência de
migrações de pessoas com diferentes origens, resultando numa civilização multicultural
composta por “subculturas” homogêneas e divergentes entre si, que têm como critério de
distinção a nacionalidade, a classe social, a etnia, as convicções religiosas, os grupos etários,
questões de gênero, hábitos sexuais, dentre outros. Nessas megacidades, a comunidade
precisou acompanhar as transformações.

 
  27
 

2.1 COMUNIDADE

Por um bom tempo, o conceito de comunidade esteve atrelado à ideia de grupos


fechados em si como caracóis, no entanto, com a configuração atual da sociedade essa
compreensão tornou-se distante da realidade em que se tem difundida a tecnologia da
informação. Mesmo assim, o termo guarda em si um sentido de ser comum a todos, de união e
de cumplicidade entre os seus participantes. No entanto, esses valores se misturam com outros
na contemporaneidade caminhando entre a “racionalidade de umbigo”, individualista, egoísta,
desigual, excludente e a cooperação, a solidariedade, a humanização, tudo ao mesmo tempo.

Enquanto a modernidade opera com o paradigma de que as trocas culturais


se realizam como um mosaico – cujas partes mantêm individualidade e
fronteiras – na contemporaneidade o processo é caleidoscópio: a natureza de
cada coisa se dá pela mistura, dificultando a definição de lugares e sentidos
fixos. (BARROS, 2005, p.58).

Para Bauman (2003, p.7), as palavras têm significado e algumas delas guardam
sensações, como é o caso da palavra “comunidade”. Para ele a comunidade é um lugar
confortável e aconchegante, na qual nos sentimos seguros e protegidos. Isso acontece, pois o
viver em comunidade pressupõe alguns gestos e atitudes, como de compreensão e cooperação.
Segundo o autor (2003, p.16), “as lealdades humanas, oferecidas e normalmente esperadas
dentro do ‘círculo aconchegante’, não derivam de uma lógica social externa ou de qualquer
análise econômica de custo-benefício.” É possível contar com a boa vontade das pessoas
sempre, por que um dever inerente a seus membros é o de ajudar.
A comunidade é uma coletividade que se preocupa com seus membros e faz ações
pela e para a mesma. No entanto, segundo Bauman (2003, p.10), por se viver em comunidade
há um preço a ser pago em forma de liberdade, autonomia, direito à autoafirmação e à
identidade, ou seja, o nível de liberdade é diminuído em relação inversamente proporcional à
segurança, e não pertencer a uma comunidade significa não ter proteção e nem sentir-se
seguro.
As pessoas que participam dessas coletividades são conhecidas e sempre têm
referência de algum membro, formando uma teia de relacionamentos que se conectam uns
com os outros. Participar desta é saber protegê-la e passar os seus conhecimentos, socializar,
fazer o bem. É também saber o que não precisa ser dito, ou seja, é o entendimento a nível
comunitário que já está presente sem precisar perguntar, são ações, conhecimentos, valores,

 
  28
 

atitudes, que vinculam os seus membros e que aos poucos são internalizadas, pois se aprende
sem nem mesmo perceber a partir da convivência. (BAUMAN, 2003, p.15). Como é o
exemplo das “regras” não ditas oralmente do que pode ou o que não pode ser feito e dito, mas
que existem nas entrelinhas das vivências no cotidiano.
A comunidade é distinta, ou seja, diferente de outros grupos, possui
particularidades. É pequena, à medida que de alguma forma as pessoas se conhecem, mesmo
que de vista, mas todo mundo sabe, nem que seja um pouco da vida do outro. Ela é
autossuficiente, pois proporciona tudo, ou quase tudo, o que a comunidade necessita,
fechando-se cada vez mais em um mundo próprio. Isso contribui, segundo Bauman (2003,
p.18), para que não haja motivação para a reflexão, a crítica e a experimentação venham
surgir. No entanto, essa observação do autor é pertinente em comunidades que conseguem
realmente se isolar, o que não se aplica no mundo globalizado atual no qual estamos todos
conectados uns com os outros e cercados com as notícias globais, que acabam de alguma
forma influenciando nossa vida, seja através dos preços nos supermercados, seja nas leis
constitucionais, novos produtos, tecnologias, etc. Mesmo assim, a comunidade não pode se
afastar demais de duas características das três apontadas pelo autor: ser distinta e
autossuficiente para não perder a sua ligação e característica comunitária.
A terceira característica apontada precisa ser relativizada no que se refere a ser
pequena, pois não podemos esquecer as comunidades virtuais que têm mobilizado milhões de
pessoas em detrimento de objetivos comuns como o que ocorreu no Oriente Médio, na qual a
população expressou sua revolta contra os seus dirigentes utilizando-se de tecnologias para
organizar ações desestabilizadoras de seus governos e com isso ampliar a divulgação do
movimento.2 Essas tecnologias também têm contribuído para a divulgação dos eventos e
reuniões que acontecem nos bairros, na qual blogs, sites, comunidades virtuais etc. têm sido
utilizadas para informar e mobilizar tanto seus moradores, como também pessoas de outros
lugares interessadas em participar.
Na contemporaneidade, as comunidades precisam estar sempre em constante
atualização e com isso a reconstrução cultural acontece a todo o momento, em meio a
interesses diversos. Para Milton Santos, “a cidade, pronta a enfrentar seu tempo a partir do seu
espaço, cria e recria uma cultura com a cara do seu tempo e do seu espaço e de acordo ou em

                                                                                                                       
2
Esse fato sucedeu no início do ano de 2011 na qual redes sociais como Twitter e Facebook foram
utilizadas para mobilização da população oprimida pela ditadura nos países do Egito, Líbia e
Tunísia.  
 
  29
 

oposição aos ‘donos do tempo’, que são também os donos do espaço.” (SANTOS, 2009, p.
132).
Com isso, táticas e estratégias são criadas para que as tradições sejam mantidas ao
tempo em que também podem ser renovadas para não deixar de existir. Toda essa mobilização
comunitária traz consigo uma forte atuação de valores, que são na verdade a base para uma
educação voltada para a humanização e desenvolvimento humano.
Portanto, a cultura é utilizada enquanto estratégia das minorias destituídas, com
caráter político ligado à luta de classes, à desigualdade social, ao poder e ao sofrimento que
estas vêm passando ao longo da história, sendo uma forma de opinar e se auto afirmar
enquanto povo possuidor de voz e pulso. (ABIB, 2005, p. 44-45). “Saber que eles nos
pertencem é assumir a tarefa de resolver ou encaminhar as demandas próprias do bairro e de
suas articulações com o resto da cidade.” (BRARDA; RÍOS, 2004, p.32).
Estas demandas fazem parte de um contexto em que a diversidade cultural vem se
acentuando e ao invés da cultura pender para o lado da homogeneização como se imaginava
com o advento da globalização, esta passa a ser um lócus significativo para “se pensar,
analisar, vivenciar, experimentar, imaginar, compreender e mesmo definir as sociedades
contemporâneas”. (ABIB, 2005, p.45).

Tanto o liberalismo quanto o marxismo previam a substituição do apego ao


local pela emergência de valores e identidades universalistas. Os valores
seriam dissolvidos pela força da modernidade. A contemporaneidade, no
entanto, não está produzindo o triunfo do global nem persistência do local,
mas deslocamentos variados e contraditórios. (BARROS, 2005, p.68).

Barros (2005) faz uma observação interessante ao dizer que autores de diferentes
referências teóricas e políticas - como Marx, Weber, Durkheim, Peter Berger, Habermas,
Horkheimer - “afirmam que a modernidade, ao estabelecer rupturas com as velhas formas de
produção e organização social, deteriora a vida e as relações.” (BARROS, 2005, p.42). Assim,
a velocidade, a facilidade, a praticidade, a lucratividade, a novidade, a interconexão da
comunicação, das técnicas e da vida passam a fazer parte da modernidade. O ser humano
precisa com isso modificar-se para se adaptar.
Na ordem contemporânea, segundo Barros (2005, p.60), surge outro capitalismo, o
“das empresas financeiras, do marketing, e não mais da fábrica e da produção”, acarretando
em mudanças conceituais sobre cultura.

 
  30
 

2.2. CULTURA

Esta palavra tem proximidade com o verbo latino colere, relacionado com o cultivo
e cuidado da terra. Segundo Hanna Arendt (apud CHAUÍ, 1989, p.11), a cultura era o cuidado
com a terra para que esta fosse habitável e agradável aos homens, como também “o cuidado
com os deuses, os ancestrais e seus monumentos, ligando-se à memória e, por ser cuidado
com a educação, referia-se ao cultivo do espírito”, demonstrando a ligação que esta tem com o
desenvolvimento humano e também o seu contato com a natureza.
Com o decorrer da história do Ocidente, esse sentido foi se perdendo e no século
XVIII torna-se sinônimo de civilização, sendo que, com o Iluminismo, passa a simbolizar o
grau de evolução e civilização de uma sociedade. Segundo Chauí (2007, p.21), “no conceito
de cultura introduz-se a idéia de tempo, mas de um tempo muito preciso, isto é, contínuo,
linear e evolutivo, de tal modo que, pouco a pouco, cultura torna-se sinônimo de progresso.”
No século seguinte, quando surge a antropologia, o conceito iluminista de evolução e
progresso passa a ser utilizado pelos antropólogos, que tomam a noção de cultura a partir de
três elementos presentes na cultura ocidental e capitalista, o Estado, o mercado e a escrita,
sendo que a ausência destes demonstraria a “falta de cultura ou de uma cultura pouco
evoluída.” (CHAUÍ, 2007, p.21).
Essa visão era necessária na época para justificar e ao mesmo tempo legitimar a
colonização e a expansão imperialista, pois as culturas ditas primitivas, que não se
encaixavam nesse modelo pré-estabelecido, deveriam “desenvolver-se” e evidente, acabou
sendo de uma maneira inorgânica, cruel e externa às suas origens, desrespeitando a história do
lugar e das pessoas envolvidas, como descreve muito bem o caso do Brasil o antropólogo
Darcy Ribeiro no livro O povo brasileiro. A hierarquização foi um forte argumento para a
eliminação de muitas culturas em detrimento de outra mais “evoluída”, utilizando-se a
desculpa do progresso estar sendo levado às populações ditas primitivas e nativas. Essa
conceituação continuou sofrendo mudanças e segundo Chauí (2007, p.22) “é elaborada como
a diferença entre natureza e história” ao pensar na dimensão humana, considerando o homem
enquanto agente histórico. Assim:
O termo cultura passa a ter uma abrangência que não possuía antes, sendo
agora entendido como produção e criação da linguagem, da religião, da
sexualidade, dos instrumentos e das formas do trabalho, dos modos da
habitação, do vestuário e da culinária, das expressões de lazer, da música, da
dança, dos sistemas de relações sociais- particularmente os sistemas de
parentesco ou a estrutura da família- das relações de poder, da guerra e da
paz, da noção de vida e morte. (CHAUÍ, 2007, p.24).

 
  31
 

Para Barros (2010, p. 28), “este sentido amplo e inclusivo da cultura só se


consolidou entre nós ao final do século XIX, quando as diferenças de costumes e modelos
culturais, deixaram de ser explicados pela ciência como consequência de atrasos evolutivos”.
Num sentido amplo e antropológico, o termo se refere a tudo aquilo que diz respeito a uma
população humana. Segundo Michel de Certeau:

Desde que a cientificidade se atribuiu lugares próprios e apropriáveis por


projetos racionais capazes de colocar zombeteiramente os seus modos de
proceder, os seus objetos formais e as condições de sua falsificação, desde
que ela se fundou como uma pluralidade de campos limitados e distintos, em
suma, desde que não é mais do tipo teológico, a ciência constituiu o todo
como o seu resto, e este resto se tornou o que agora denominamos a cultura.
(CERTEAU, 1994, p. 65).

Assim, os caminhos a serem percorridos são diversos e cada sociedade a partir de


suas interações foi traçando-os a sua maneira, levando-se em consideração que a cultura de
cada lugar tem papel fundamental para a forma de se tomar decisões coletivas.
Com isso, “cada cultura é o resultado de uma história particular, e isso inclui
também suas relações com outras culturas, as quais podem ter características bem diferentes.”
(SANTOS, 1986, p.12). Mais do que isso, Barros (2010, p. 28) argumenta ser a expressão da
capacidade humana, a maneira pela qual os seres humanos respondem aos estímulos,
problemas, situações, produzindo variadas diferenças culturais. Para Barros (2010, p.29), “não
é possível pensar o ser humano fora da cultura”, pois isso colocaria em risco a “própria
condição humana”, sem mencionar as suas manifestações culturais. Através dessas
manifestações, que se referem a grupos, ações, eventos e práticas recorrentes que identificam,
caracterizam e representam a cultura de um lugar pela liberdade de expressão das pessoas
envolvidas é que elementos importantes das classes subalternas são representados e
divulgados, utilizando-se da poesia, da arte e da cultura para discutir e explicitar seus
pensamentos, dificuldades, necessidades, sonhos, desejos e realidade.
Desta forma, outra concepção de cultura é trazida por Barros (2010, p.30), que
combina uma tríplice e simultânea dimensão. A primeira se refere “aos modos de fazer,
pensar e agir, portanto revela nossas identidades”, que é denominada simbólica; a segunda
enquanto um campo propício para o exercício da cidadania, a cidadã; e a terceira “como
geradora de riquezas”, denominada econômica. Essas dimensões quando combinadas
favorecem construções e organizações dos indivíduos em volta de sua cultura,

 
  32
 

proporcionando aprendizados e a valorização da mesma, o que não impede que o respeito à


diversidade e a coexistência de culturas habitem os nossos seres.
A sociedade brasileira dividida em classes, grupos sociais, territórios, formas de
vida é, “antes de qualquer coisa”, o reflexo da forma como surgiu enquanto Estado nação a
partir das fusões entre a cultura europeia, mais especificamente a portuguesa, a indígena e a
africana. Esse encontro de culturas se deu concomitantemente ao processo de construção de
um país soberano, o Brasil, mesmo pautado na hierarquização, na qual o conflito esteve
presente em todo o país, resultando numa mistura de culturas que é a cultura brasileira.
Dessa maneira, não se pode deixar de mencionar a responsabilidade do Estado
perante a sociedade e suas comunidades no que se refere às políticas públicas de cultura, pois
é este quem vai fomentar, apoiar e mediar a diversidade cultural. Portanto, tais políticas
precisam valorizar a pluralidade artístico-cultural que habita o solo brasileiro, proporcionando
dessa maneira a que todos tenham acesso a divulgar sua expressão como também conhecer
outras.
Para Chauí (2007, p.24) essa ampliação da noção de cultura, diversa e plural,
esbarra justamente no fato de ser uma sociedade ao invés de uma comunidade. Segundo a
autora,
A marca da comunidade é a indivisão interna e a idéia de bem comum; seus
membros estão sempre numa relação face a face (sem mediações
institucionais), possuem o sentimento de uma unidade de destino, ou de um
destino comum, e afirmam a encarnação do espírito da comunidade em
alguns de seus membros, em certas circunstâncias. Ora, o mundo moderno
desconhece a comunidade: o modo de produção capitalista dá origem à
sociedade, cuja marca primeira é a existência de indivíduos separados uns
dos outros por seus interesses e desejos. Sociedade significa isolamento,
fragmentação ou atomização de seus membros, forçando o pensamento
moderno a indagar como os indivíduos isolados podem relacionar-se, tornar-
se sócios. (CHAUÍ, 2007, p.26).

Enquanto uma pressupõe união e proximidade dos seus membros, a outra pressupõe
divisão e distanciamento dos indivíduos, o que dificulta a criação de vínculos afetivos e
efetivos, que a meu ver são fundamentais para que as pessoas sejam capazes de se organizar
em detrimento de um coletivo, ao invés de apenas pensarem em seu próprio benefício,
respeitarem para que sejam respeitadas.
Assim, o termo comunidade tem encontrado dificuldade para ser empregado, pois
ao mesmo tempo em que apresenta laços próximos, também se percebe uma divisão em
grupos e o que vai definir o agrupamento de pessoas como uma comunidade, ou não, é a
percepção pela convivência e identificação com o lugar. Desta forma, o termo comunidade,

 
  33
 

apesar de ter suas características fundamentais necessárias, pode ser esticado e moldado a
partir de cada grupo/comunidade diferente culturalmente e está, portanto, atrelado ao conceito
de identidade.
É a partir dos conflitos e tensões travados na vida sócio-histórica, sejam numa
mesma cultura ou culturas outras, que os grupos vão modificando-se, sendo que o
entendimento de seus processos históricos é de fundamental importância para que possam ser
compreendidos ao invés de hierarquizados e ainda venham a contribuir para um
fortalecimento da identidade cultural de seus membros. Mas mesmo sabendo disso não há
como fugir do modo desigual com que as culturas e sociedades se relacionam, seria então
necessário reconhecê-las e buscar superação.
As classes subalternas necessitam compreender a importância dos seus costumes e
tradições para que possam superar discriminações e preservar a sua cultura, espelhando-se nas
histórias antigas de resistência dos ancestrais para continuar lutando por condições de vida
mais justas no tempo atual, pois não há como querer materializar o passado no presente, mas
existe como inspirar-se nas estratégias e força de vontade em fazer acontecer de épocas
passadas e muitas que ainda perduram.
Chauí (1989, p.14) diz que “a divergência entre Romantismo e Ilustração quanto ao
conceito de cultura reaparece na definição do popular”, em que para os ilustrados o povo era
sinônimo da burguesia, sendo excluídos os pobres e negros. Em contrapartida, para os
românticos o povo era designado como “sensível, simples, iletrado, comunitário, instintivo,
emotivo, irracional, puro, natural, enraizado na tradição.” (CHAUÍ, 1989, p.19). Com o
Romantismo, a cultura popular passa a ser relacionada com o passado, repleta de tradições
que poderiam ser perdidas sem o povo, caracterizada por Chauí (1989) como primitivismo,
sendo também designada como comunitarismo, em que a sua criação nunca é individual, mas
anônima, do povo e ainda pura, referenciando-se a um povo que não se contaminou “pelos
hábitos da vida urbana” (CHAUÍ, 1989, p.20). Assim, é travada uma divergência de
conceitos, nos quais os sentimentos dos românticos se opunham ao racionalismo ilustrado.
O termo utilizado para essa cultura a qual estamos falando, segundo Chauí (1989),
não provém das classes populares, sendo uma designação feita por outras classes sociais para
caracterizar as manifestações culturais das classes ditas “subalternas”. Desta forma, a autora
passa a investigar o que seria popular a partir de contradições entre as preferências musicais e
a produção das músicas, chegando à conclusão de que “do ponto de vista oficial ou estatal,
‘popular’ costuma designar o regional, o tradicional e o folclore.” (CHAUÍ, 1989, p.10).

 
  34
 

Para contrastar o fato de que a razão tinha o intuito de educar a “sensibilidade


tosca” enquanto que o sentimento buscava humanizar a elite, o conceito de hegemonia
abordado por Gramsci (apud CHAUÍ, 1989, p.21) é utilizado, pois inclui o conceito de cultura
como processo social global, que constitui a “visão de mundo” de uma sociedade e de uma
época, enquanto que a ideologia se refere ao sistema de representações, normas e valores da
classe dominante. Assim, a hegemonia ultrapassa o conceito de cultura e ideologia, pois
indaga sobre as relações de poder e porque envolve práticas sociais que são dominantes e
determinadas, como uma “cultura numa sociedade de classes”, podendo “controlar e produzir
mudanças sociais”. Ou seja, é uma práxis e um processo, pois muda sempre que as condições
históricas se transformam, mudança esta também indispensável para que a dominação seja
mantida.
Magnani (2003, p.27) critica a visão puramente ligada à dominação do capital e à
influência da ideologia dominante, pois segundo ele existem “uma série de mediações que
escapam a essa simplificação reducionista”. E completa dizendo que é necessário renovar a
análise e começar a estudar os fatores culturais, que aparentemente não possuem relevância
política, mas que são desde a formação de um Brasil soberano formas de organização que têm
relação com a condição de vida das classes subalternas.
Assim, essa hegemonia constantemente sofre resistência, é desafiada e recebe
pressões alheias, que são chamadas por Chauí de contra-hegemonia e hegemonia alternativa.
Dessa maneira, torna-se, segundo Chauí (1989, p.23), “impossível manter tanto a perspectiva
Romântica quanto a Ilustrada”, pois há o conformismo e a resistência atuando lado a lado no
mesmo processo.
A cultura popular apesar de referenciada conceitualmente enquanto folclore, como
resíduo da cultura erudita e ainda como resistência à dominação (BARROS, 2010, p. 32),
mesmo possuindo esses elementos, não pode ser restrita a apenas uma conceituação, e muito
menos presa ao passado. Com isso, defendo que a cultura popular possui sim uma ligação
com o passado, com as tradições, no entanto esta não é imóvel e imutável, podendo ser uma
criação ou recriação a partir da iniciativa dos sujeitos implicados com elas. Defendo ainda que
esta não é pura, possui contradições, e também está envolvida com os valores da sociedade
moderna, apresentando-se muitas vezes individualista e competitiva entre suas manifestações
e organizadores.
Assim, esta mesma cultura se encontra envolvida com a lógica da sociedade
moderna, seja através do envolvimento pessoal de seus participantes e entre os membros de
sua comunidade ou até mesmo dos eventos promovidos. Para Chauí (1989, p.24), o mais

 
  35
 

importante é que as diferenças culturais existem a partir do movimento histórico-social de


uma sociedade de classes, que é desigual e está em constante transformação. Desta forma,
corroborando com a autora, busco aproximação com um conceito de cultura popular que traga
a expressão das classes subalternas, resgatando as formas pelas quais a cultura dominante é
aceita, interiorizada, reproduzida e transformada, tanto quanto as formas pelas quais é
recusada, negada e afastada, implícita ou explicitamente pelos dominados. Uma cultura
popular que é educativa, política e consequentemente pode vir a apontar para uma
transformação social que ainda não foi sistematizada, mas que tem seus caminhos sendo
trilhados na prática.
Esta se realiza no interior de uma mesma sociedade, igual para todos, mas dotada
de sentidos e finalidades diferentes para cada uma das classes sociais. Com isso, os processos
em que as diferentes classes sociais se constituem devem-se pela elaboração “prática e
teórica, explícita ou implícita, de suas divergências, de seus antagonismos e de suas
contradições.” (CHAUÍ, 1989, p.24); e que, segundo Barros (2010, p. 36), “não se trata mais
das maneiras como as elites se reportam e se apropriam do popular, mas das diversas
maneiras como este popular se localiza simbólica e politicamente”.
A partir da articulação da população organizada ou organizando-se, a cultura
popular surge e segundo Santos (1986, p.54) a preocupação é a “de classificar as formas de
pensamento e ação das populações mais pobres de uma sociedade, buscando o que há de
específico nelas, procurando entender a sua lógica interna, sua dinâmica e principalmente as
implicações políticas que passam a ter”. O popular na cultura pode vir a contribuir com o
fortalecimento das classes subalternas.
Dessa maneira, abordaremos a cultura popular como algo que se relaciona com a
cultura dominante, dialogando, ora resistindo, ora se “conformando”, em que o processo de
construção de seus eventos e manifestações demonstra os aprendizados obtidos a partir da
experiência cultural, traduzindo-se em respostas concretas explicitadas nos eventos realizados
e organizados pela própria população local.
Ao mesmo tempo, esta é representada na cena pública, sendo com isso capaz de se
organizar para reivindicar direitos tácitos e “preparar-se para penetrar no universo dos direitos
políticos e culturais explícitos. (CHAUÍ, 1989, p.25). Concordando com a autora, a cultura
popular será aqui abordada “como um conjunto disperso de práticas, representações e formas
de consciência” (CHAUÍ, 1989, p.25), que possuem a sua lógica, um jogo de conformismo,
inconformismo e resistência, oposta à lógica moderna. Esta última se refere à racionalidade
científica do tempo linear, que emprega a realidade nas relações de causa e efeito, do decifrar

 
  36
 

e desvendar, o que acaba por caracterizar tudo o que não se enquadra nessa lógica como
inexistente.
A cultura popular, mesmo contraditória em diversos momentos, vem nos mostrando
caminhos para uma transformação social, permitindo que a criação, a realização da
imaginação e a sensibilidade sejam exprimidas, que o ser humano coloque para a sociedade a
sua percepção de mundo em possíveis ações artísticas e culturais.
Vive-se um tempo comprimido, reduzido e volátil, com inexistência de fronteiras,
em que a velocidade das ações e relações faz com que o passado, o presente e o futuro acabem
por apresentar pouca profundidade. Segundo Barros (2005, p.69), “se na modernidade o
cidadão é espectador, contempla a possibilidade de imbricação do velho e o novo, a
supermodernidade reduz o passado a um espetáculo. Os fatos, acontecimentos e marcas da
história se transformam em curiosidades passageiras no tempo de um percurso.”
A superficialidade invade o cotidiano das pessoas causando a impressão que muito
se fez, mas que muito pouco se produziu substancialmente e que venha a contribuir para o
desenvolvimento dos seres humanos. Para Chauí,

A ambiguidade da cultura popular e a dimensão trágica da consciência que


nela se exprime poderiam sugerir uma outra lógica, uma racionalidade que
navega contra a corrente cria seu curso, diz não e recusa que a única história
possível seja aquela concebida pelos dominantes, românticos ou ilustrados.
(CHAUÍ, 1989, p. 179).

Torna-se então necessário atentar para essa outra lógica em que a cultura popular
se enquadra, que, para Abib (2005), está pautada na memória, oralidade, ritualidade,
temporalidade e ancestralidade, mas que não são presas estritamente ao passado e levam em
consideração o tempo de forma circular.
As formas de transmissão dessas manifestações da cultura popular têm como
pilares principais a memória, onde estão guardadas as histórias, que são fragmentadas e
moram em cada sujeito que vivenciou o passado; a oralidade, que é a forma como é passada
essa memória, normalmente os mestres são as figuras que melhor cumprem esse papel; e por
último a ritualidade, que diz respeito a um jeito especial de se realizar as manifestações
culturais para que elas possam cumprir a sua função, que é a de relembrar em conjunto.
(ABIB, 2005, p. 101).
A temporalidade corresponde a um tempo não linear, mas numa perspectiva
circular, em que o passado pode ser pensado como uma possibilidade para o futuro por
apresentar-se em tensão com o presente, estando, portanto, vivo. (ABIB, 2005, p. 105). Para

 
  37
 

percebê-la, é preciso sentir, entender o que a música, a arte, os mestres, as manifestações


culturais e a vida estão querendo dizer. Podem ser as mesmas mensagens, mas que vão
certamente ser interpretadas a partir da vivência e necessidade de cada ser humano. Os tempos
podem ser outros, pertencentes à lógica moderna, à outra lógica da cultura popular,
misturados, entrelaçados, globalizados, mas o conteúdo desses dizeres são os mesmos, resistir
e dizer o que querem que seja feito.
Indivíduos do próprio presente ou do passado podem servir de inspiração para a
população, como é o exemplo dos mestres da cultura popular, que o historiador Michel de
Certeau (1994, p. 90) relaciona com os tantos mestres que de alguma forma ainda "habitam
nosso ser", mas que têm sido constantemente esquecidos na sociedade moderna.

Essas esperanças se perderam, com as crenças que, há tanto tempo, não


habitam mais nossas cidades. Não aparecem mais fantasmas para lembrar
aos vivos a reciprocidade. Mas na ordem organizada pelo poder do saber (o
nosso), como também na ordem das zonas agrícolas ou das indústrias, é
sempre possível uma prática desviacionista. (CERTEAU, 1994, p. 90).

Desta forma, a ancestralidade se encontra presente nas letras musicais, na própria


memória das pessoas, nos monumentos, nas ruas, nas fotografias, nos jornais e também nas
manifestações culturais. As pessoas se renovam e o exemplo do passado traz para o presente a
inspiração necessária para a construção de um futuro como acontece em Itapuã, em que existe
um evento de homenagem a uma senhora muito importante para o bairro, que é o dia primeiro
de Abril, aniversário de Dona Francisquinha; uma escola é quem acolhe e ajuda a organizar
este evento onde são lembrados feitos desta senhora e é um espaço de socialização em que
uma série de grupos do lugar se apresentam.
Assim, as manifestações culturais, quando possuem uma continuidade, acabam por
criar e manter um ritual, muitas delas guardando uma religiosidade por detrás do rito e em
outros com sequência de ações, ou seguidas delas, no entanto, a sua forma de organização se
renova, cada época tem a sua, até por que as pessoas e os artifícios se modificam.

Em meio às manifestações da cultura popular, fatos e situações passadas são


revividos com o vigor do presente. Os antepassados e suas histórias
reencarnam nos sujeitos protagonistas dessas manifestações, tornando-se
entes reais, que falam, cantam e dançam no momento da celebração. (ABIB,
2005, p. 108).

Mircea Eliade (1992), historiador das religiões, mitólogo, filósofo e romancista


romeno, argumenta que na tentativa de dar forma e tornar real a transformação do caos em

 
  38
 

cosmo, que os rituais eram utilizados nas sociedades antigas e a depender das crenças das
sociedades, estas interpretavam o tempo enquanto cíclico finito (com o fim do mundo este
seria reconstruído novamente) ou cíclico infinito (em que após o termino de cada ano, o ritual
de passagem se encarregava da sua renovação).
Para as sociedades modernas, com o tempo linear, o homem é consciente e
voluntariamente cria a sua história, passando esta a ter grande importância por tratar-se das
escolhas feitas pelos próprios homens em determinados contextos. No entanto, o passado, o
presente e o futuro não se mostram enquanto uma sequência interligada, o que dificulta a
análise crítica dos problemas da época anterior e afasta a “pista” para o encontro da solução
dos problemas futuros e atuais de uma sociedade.
A fé é então utilizada para dar o suporte aos homens para agir e escolher os seus
caminhos, ou seja, “a fé, neste contexto, assim como em muitos outros, significa a
emancipação absoluta de qualquer tipo de ‘lei’ natural, e, portanto, a mais elevada liberdade
que o homem pode imaginar: a liberdade de poder intervir até mesmo na constituição
ontológica do Universo” (ELIADE, 1992, p.153).
No entanto, o autor adverte que essa liberdade é ilusória, pois apesar de parecer que
o homem pode agir, “quanto mais moderno ele se torna — isto é, sem defesas contra o terror
da história — menos chance tem de fazer história ele próprio.” (ELIADE, 1992, p.149).
Segundo o autor, existem apenas duas saídas, a primeira que se refere a “opor-se à história
que está sendo feita por uma pequena minoria (e, neste caso, ele tem liberdade para escolher
entre o suicídio e a deportação)” - o que não concordo, pois diversas têm sido as tentativas de
resistência ao longo da história em mudar a realidade posta - e o segundo que se refere a
“buscar refúgio numa existência subumana ou na fuga”, o que já vem acontecendo sem que
haja a necessidade dessa escolha. (ELIADE, 1992, p.150).
Desse modo, com poucas opções, o homem que vive a modernidade tem buscado se
utilizar de variados artifícios, como a fé, os arquétipos (modelos exemplares) das inúmeras
religiões, o profano, o sagrado, os rituais e os eventos culturais. Estes últimos como uma
forma de se organizar, mas também valorizar o tempo cíclico, ligando passado, presente e
futuro, apresentando-se enquanto um processo que se repete de formas diferentes, para quem
sabe encontrar um caminho que se mostre mais humano e menos desigual.
Dessa maneira, para haver possibilidade de transformação social e emancipação é
preciso reinventar o passado e Abib (2005), apoiando-se em Benjamin, nos diz que o passado
está atrelado à memória, pois nos momentos de perigo recorremos a esta, podendo ainda agir
de forma inesperada. Com isso, percebendo o passado como acontecimentos vivos e que

 
  39
 

possuem relação com o presente, abrimos possibilidades para que o futuro seja diferente.
Portanto, o tempo circular demonstra uma ligação contínua entre três tempos, passado,
presente e futuro. (ABIB, 2005, p. 105).
Os participantes das manifestações culturais se inspiram nos antepassados locais
para prosseguirem com a tradição. No entanto, com a modernidade, a ideologia hegemônica
tem tirado o foco dos rituais, fazendo com que as comunidades que ainda resistem a isso
criassem as novas manifestações culturais que têm o seu surgimento distinto das antigas
manifestações que se pautavam na religiosidade apenas, sendo que, mesmo assim, estas outras
não deixam de ter também o lado religioso presente. A exemplo do que acontece na festa de
Itapuã com o café Nativo que surgiu da iniciativa principal, de Dona Nissú, senhora
importante para o bairro que esteve ativamente na reconstrução cultural do local, buscando
retomar o sentido da lavagem inicial, que acontecia com a presença da Igreja; essa discussão
será melhor desenvolvida no capítulo que trata sobre a festa.
Segundo Abib (2005), a racionalidade moderna não consegue explicar a partir de
suas categorias teóricas os sentidos e significados da lógica diferenciada da cultura popular.
Esta leva em consideração outra forma de ensinar e aprender, na qual o cotidiano passado e
presente são fundamentais para a construção de um futuro. Ou seja, os tempos se comunicam,
os aprendizados são baseados em contos e histórias, existem possibilidades de interpretação e
de diálogo. O opinar e o compreender são exercitados. Os indivíduos se utilizam da oralidade,
que inclui palavras, mas também ao mesmo tempo gestos, olhares e expressões. A
proximidade, interatividade e afinidade entre os envolvidos são fundamentais para que as
trocas e socializações aconteçam.
As classes dominantes parecem ditar a partir de diferentes estratégias um modelo a
ser seguido, na qual a hierarquização da sociedade, o valor do indivíduo, é baseado na questão
econômica, dividindo-a em classes, em que o aumento da desigualdade social e econômica faz
parte de uma política de manutenção do que está posto. O sujeito é desrespeitado enquanto ser
individual, humano, diferente e possuidor de necessidades básicas para se viver dignamente.
Assim, é preciso aguçar a audição para as falas, as músicas e os sons; ampliar a
visão para os diferentes olhares, a escrita nos muros, as faixas penduradas nos postes, os
símbolos, as cartolinas e miniquadros espalhados pela cidade; preparar o olfato para sentir o
lugar, o cheiro de peixe, feijão, maresia e alfazema em dia de presente; compreender as
manifestações e criações artísticas, os gestos, as astúcias e as expressões da população, as
formas de organização, pois estas são as maneiras encontradas pelas classes subalternas em
dizer qual o caminho que pretendem seguir.

 
  40
 

É no cotidiano que a vida se pronuncia. É no cotidiano que as teorias devem


tragar a energia do real vivido, como inspiração para constituírem-se
enquanto narrativas de um mundo “encarnado”, que se revela e se oculta,
cheio de ambiguidades e contradições, inconformismos e acomodações.
Mundo feito de gentes que, no desespero da luta pela sobrevivência, ou pelo
puro prazer de burlar e transgredir, são capazes de encontrar brechas,
atalhos, fendas, com talento e criatividade [...] (ABIB, 2005, p. 114).

Por não existir uma teoria geral a respeito dessa outra lógica, cada autor propõe
alternativas de “racionalizá-la” de forma alargada. Santos (apud ABIB, 2005, p. 120) propõe o
trabalho-tradução entre os saberes e práticas, para criar inteligibilidades recíprocas entre os
saberes hegemônicos e não hegemônicos. A partir disso, o autor propõe a “hermenêutica
diatrópica” (SANTOS apud ABIB, 2005, p. 120), que, ao admitir a incompletude das culturas,
aceita o diálogo entre estas, abrindo possibilidade para a comunicação e cumplicidade. Ou
seja, o autor defende que o diálogo entre culturas, saberes, práticas pode proporcionar
aprendizados importantes através do convívio com a diversidade cultural, possibilitando dessa
maneira o diálogo intercultural. No entanto, para haver essa comunicação, seria necessário as
culturas admitirem a sua incompletude, buscarem mais saberes, sendo ainda uma utopia para
muitos lugares.
Para Abib (2005), a proposta acima abre a possibilidade de ação implicada num
conteúdo político essencial a qualquer transformação social na qual a utopia é fundamental.
Segundo este autor, esta possibilita pensar a sociedade de outra forma, mais igual, justa e
humana, criando em seu processo novos espaços de diálogo e negociação, com maior
capacidade dos sujeitos se organizarem e se mobilizarem para exigirem os seus direitos,
atuando enquanto cidadãos.
O meio urbano possui em si uma série de iniciativas educadoras de “origem,
intencionalidade e responsabilidade diversas”, que Alicia Cabezudo (2004, p. 11) traz como
“cidade educadora”. Esta é uma nova dimensão complementar e até alternativa dos sistemas
educativos formalizados e pouco flexíveis na qual a cidade cumpre o papel de favorecer a
aprendizagem constante de novas linguagens, e oferecer o conhecimento do mundo a partir de
oportunidades, possibilitando espaço para que os indivíduos possam ter enriquecimento
individual, como também possam propor ações solidárias, que influenciem no bem estar de
coletivos.

 
  41
 

2.3 EDUCAÇÃO

A cidade educadora estabelece uma ligação com a história do território no qual se


localiza, mas não se isola, ela busca relação com outros núcleos urbanos, que tenham a ver
com a sua forma de vida, resultando em novas aprendizagens, intercâmbio e solidariedade.
(CABEZUDO, 2004, p.12). Esse conceito implica considerar que a educação dos cidadãos
em geral, sejam idosos, crianças, jovens não é somente responsabilidade das instituições
tradicionais (estado, família, escola), mas deve ser assumida pelos municípios e todas as
instâncias da sociedade.

A cidade educadora é um complexo em constante evolução e pode ter


expressões diversas, mas sempre considerará como uma de suas prioridades
o investimento cultural e a formação permanente de sua população. Desta
maneira, além de suas funções tradicionais (econômica, social, política e de
prestação de serviços), assume a intencionalidade e a responsabilidade na
formação, promoção e desenvolvimento de todos os seus habitantes:
crianças, jovens, adolescentes, adultos e idosos. (CABEZUDO, 2004, p.12).

Uma cidade educadora acaba por estimular a autonomia dos seus habitantes, que
quando envolvidos em ações que visam ao desenvolvimento social, moral e cultural do lugar
em que vivem, passam a se preocupar e se ocupar com questões públicas, que afetam a todos,
pois estas também dizem respeito ao ser individual. Assim, a cidade possui espaços diferentes
e com características próprias, que a partir da vivência in loco pode vir a se apresentar
enquanto lugar de pertencimento e relações.

Uma cidade educadora deve promover o respeito à diversidade e facilitar a


afirmação da própria identidade cultural, uma identidade coletiva que se
apóia na adesão ao passado, na memória, nos símbolos e festas, mas também
na construção de um futuro coletivo nesse território comum que a cidade
lhes oferece. (CABEZUDO, 2004, p.13).

A carta das cidades educadoras composta em Barcelona no ano de 1990 traz os


princípios básicos para a construção de uma cidade em que todas as instâncias sejam
responsáveis pela educação da população, baseando-se na participação cidadã de seus
habitantes. Para tanto, traz como ideias fundamentais o respeito à diversidade, o direito da
igualdade de oportunidades, a não exclusão por motivos de raça, sexo, cultura, idade,
incapacidade, condições econômicas e outras formas de discriminação, a comunicação e
valorização de todas as modalidades de educação, incluindo-se as manifestações culturais

 
  42
 

como sendo uma “fonte de informações e via de descobertas da realidade que se produzem na
cidade”; o encontro das gerações, reconhecendo-se a necessidade de se criar espaços que
possam acolher diferentes faixas etárias em interação; a importância de espaços de lazer e
ainda o equilíbrio entre a paisagem urbana e o meio natural; dentre outras. É uma utopia, mas
é preciso pensar nela e buscar concretizar meios que aos poucos transforme em realidade
pontos que fazem parte desse ideal sonhador. A cidade em si é educativa, mas para que venha
a se tornar educadora depende de decisão política, da participação cidadã e de uma construção
estratégica coletiva. (BRARDA; RÍOS, 2004, p. 24-29).
Assim como a carta outros documentos também tentam regulamentar as ações das
cidades, como é o caso do Estatuto da cidade, lei sancionada em 2001, que regulamenta os
artigos 182 e 183, preocupa-se com o desenvolvimento das funções sociais das cidades e
pretende garantir cidades sustentáveis, na qual o direito à moradia, à terra, ao saneamento
ambiental, ao transporte, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer estão incluídos. Para
fazer acontecer essa nova política urbana, uma série de instrumentos é apresentada, como:
planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento
econômico e social, planos diretores, tombamento de imóveis, usucapião, referendo popular,
plebiscito, dentre outros. (FREITAG, 2002, p. 187). No entanto, para Freitag (2002), o
estatuto é uma “utopia” que não se materializa em “lugar nenhum” no Brasil e dificilmente
será concretizado. Ainda assim, a mesma autora aponta o documento como uma utopia
necessária à esperança, que pode servir de conscientização, de reflexão para a população e
seus representantes.
A prática dos direitos humanos das cidades predispõe que acontece a cidadania por
parte dos cidadãos, enquanto moradores da cidade. No entanto, para a autora, até isso ocorrer,
“um longo percurso de educação e convívio urbano terá de ser percorrido.” (FREITAG, 2002,
p.223). O grande desafio do século XXI, para Cabezudo (2004), é “’investir’ na educação, no
desenvolvimento de cada pessoa, de modo que esta seja capaz de expressar, afirmar e
potencializar suas capacidades e de sentir, ao mesmo tempo, membro de uma sociedade capaz
de diálogo, de fazer frente à injustiça e de ser solidária.” (CABEZUDO, 2004, p.12).
Cabezudo (2004, p.13) defende que as ações educativas numa cidade educadora
devem estar integradas ao lugar, levando-se em consideração suas características, vantagens,
problemas e soluções. Para isso, é fundamental que os sujeitos conheçam a cidade, o lugar
que habitam, para que a partir deste conhecimento possam vir a criar hábitos cívicos na qual
os aprendizados se dão na prática diária dentro da cidade, através de novos caminhos, que são
na verdade respostas alternativas para fazer acontecer o que é necessário para as decisões do

 
  43
 

coletivo. Portanto, esta ligação parte de uma vivência e identificação com o lugar, com a
cidade, favorecendo ações participativas e transformadoras. “Convertendo a cidade onde
vivemos em cidade educadora, poderíamos nos apropriar dela, identificarmo-nos com seu
passado, melhorar seu presente, projetar seu futuro em uma tarefa de construção cotidiana na
qual todos, incluídas as autoridades locais, são responsáveis.” (CABEZUDO, 2004, p.14).

A possibilidade de poder nos conhecer historicamente em nosso próprio


entorno físico e social cria um caráter ativo da identidade cultural.” No
entanto, além de recuperar a história da cidade e visualizá-la como espaço
público, devido ao seu crescimento, surge também a necessidade de se fazer
o mesmo com os bairros pensando formas de articulá-los dentro da cidade
educadora. “Devemos pensar, então, a cidade como totalidade complexa, que
é necessário recuperar como espaço público de discussão e realização,
fortalecendo assim o desenvolvimento de experiências culturais através do
exercício da cidadania. (BRARDA; RÍOS, 2004, p. 24-25).

A filósofa Marilena Chauí (1989) nos lembra três pontos simultâneos e diferentes
que contribuem para a conquista da cidadania, sendo o primeiro referente ao direito de
representação política, podendo ser representado e ser representante; o segundo ligado às
garantias e direito à oposição; e o terceiro relacionado à temática da desigualdade social, em
que se estabelece um modelo econômico destinado à redistribuição de renda. (CHAUÍ, 1989,
p.61). A partir disso, é preciso direcionar o olhar para as práticas que são ações individuais ou
coletivas que indiretamente ou diretamente estão ligadas a essa busca pelo exercício da
cidadania.

Podemos falar em cidade educadora quando ela busca instaurar, com todas
as suas energias, a cidadania plena, quando ela mesma estabelece canais
permanentes de participação, incentiva a organização das comunidades para
que elas tomem em suas mãos, de forma organizada, o controle social da
cidade. (GADOTTI; PADILHA, 2004, p. 130).

Daí, a partir da organização dos próprios habitantes e ainda destes encontrarem


espaço para externarem suas críticas ao lugar com autonomia, mesmo em uma cidade
marcada por conflitos de ordem pessoal e social, que se colocam em confronto as culturas
ditas “tradicionais” e as contemporâneas, as identidades individuais e coletivas, que requerem
debates e discussões dos indivíduos com eles mesmos e com o poder público instituído. Para
Gadotti e Padilha (2004, p.133), a educação nessa cidade educadora confunde-se com o
processo de humanização e necessita de uma busca constante de sentido.
“A educação é um processo de crescimento individual e coletivo que permite
transformar e transformar-se.” (CABEZUDO et al., 2004, p. 114). Faz parte das relações
 
  44
 

sociais e do cotidiano da população junto aos aprendizados internalizados pelos participantes


de um grupo. Diz respeito às regras de convivência, que acabam por pertencer à vida diária de
cada lugar. Acontece onde existem seres humanos em interação com eles mesmos e com o
meio em que vivem.
A palavra educação é capaz de ser tão abrangente e multifacetada que pensar nela
nos faz respirar mais profundamente para começarmos a esmiuçar o seu significado. Ela tem
relação com as descobertas, os aprendizados, os modos de vida, os espaços. Para que haja
educação, é preciso que um “impulso” seja dado e pode vir a partir dos ensinamentos dos
acúmulos sociais, orais ou escritos, através da experiência, interação com objetos, situações,
fatos históricos, ações humanas. A educação acrescenta um brilho interno ao ser humano, que
ocorre aos poucos com a compressão daquilo que se passa ao seu redor.

Uma cidade educadora deve ser construída a partir das múltiplas


possibilidades que lhe oferece a complexificação do mundo urbano, mas
também a partir de seus atores, portadores de uma história, de uma herança e
do novo e, fundamentalmente, transmissores de uma maneira de existir nesse
espaço. (BRARDA; RÍOS, 2004, p.37).

A cidade é um espaço no qual a educação acontece de várias maneiras, onde são


evidenciadas diferentes culturas e vividas muitas identidades. Segundo Carlos Rodrigues
Brandão (1995), a educação acontece em qualquer lugar, não existindo apenas uma educação,
mas várias educações. A escola não é o único espaço onde ela acontece, para ele “a educação
é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre
tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade.” Ele segue a linha de pensamento
que a educação é essencialmente a relação de ensinar e aprender, na qual conhecimentos
fundamentais são passados entre as gerações para se viver em sociedade, o que não estou
totalmente de acordo, pois acredito ser muito mais que isso. Ela tem haver com o sentir, o
viver, a prática, a experimentação e principalmente com o modo de vida.
Isso é transmitido, evidenciado, possibilitado por sujeitos históricos, portadores de
uma herança cultural, não apenas por professor/aluno, adulto/jovem. Na contemporaneidade, -
ou para alguns na pós-modernidade - esta tem sido mediada por outros meios e sujeitos na
qual os processos educativos que perpassam a cidade e seu cotidiano fazem parte também do
circuito de transmissão cultural e se constituem em verdadeiras redes de educação. Para o
educador e filósofo Paulo Freire (2005, p. 141):

 
  45
 

Se os homens são seres do quefazer é exatamente porque seu fazer é ação e


reflexão. É práxis. É transformação do mundo. E, na razão mesma em que o
quefazer é práxis, todo fazer do quefazer tem de ter uma teoria que
necessariamente o ilumine. O quefazer é teoria e prática. É reflexão e ação.

Nesse sentido, com a participação nos processos organizativos coletivos, cria-se


lentamente uma consciência crítica e social, na qual as pessoas que daqueles participam
acabam percebendo detalhes que são fundamentais para a compreensão crítica da realidade,
como também têm a possibilidade de influenciar nas decisões quando o processo é
democrático, englobando esferas de poder que têm relação com o lugar. “A consciência crítica
é força propulsora às transformações sociais; portanto, é na práxis, na ação-reflexão, e numa
permanente busca de superação dessa capacidade reflexiva, que se pode sonhar, arquitetar,
vislumbrar e construir novas – menos injustas e individualistas – relações sociais.” (SOUZA;
VILAR, 2004, p. 50).
Os processos de educar são caracterizados pelos estudiosos em processos sociais de
aprendizagem e desenvolvimento fora da escola ou sistematizados dentro da escola. O
filósofo e estudioso da área da educação, José Carlos Libâneo (2005), concorda com os
estudos de Brandão e diz que as mudanças contemporâneas têm contribuído para esse
entendimento acerca da educação de forma mais ampla, que ocorre “em muitos lugares,
institucionalizado ou não, sob várias modalidades”. A educação é o conjunto de ações,
processos, influências, estruturas, que intervém no desenvolvimento humano de indivíduos e
grupos na sua relação ativa com o meio natural e social, num determinado contexto de
relações entre grupos e classes sociais. (LIBÂNEO, 2005, p. 30).
Portanto, o processo educativo pressupõe a existência de sujeitos em interação com
o meio em que vivem. Os indivíduos não são apenas um ponto de chegada de conhecimentos,
mas também um ponto de partida frente às suas experiências e que proporciona trocas
importantes para uma vida mais humana e solidária. Para Paulo Freire (2000, p.9), “pensar
sempre a prática” é muito importante, pois é nesta que os conceitos teóricos estão inseridos de
maneira concreta. Assim, situações podem levar a aprendizados de teorias na prática.
Ao falar de educação é preciso ampliar esse conceito para além dos muros escolares
e reconhecer que o processo educativo de modificação dos sujeitos também ocorre no
contexto cultural. As potencialidades humanas são afloradas a partir dos constantes desafios,
obstáculos e dificuldades, sejam vindos do envolvimento com os eventos culturais, a família,
as relações sociais, os momentos de lazer, enfim, o cotidiano.

 
  46
 

É no convívio com o outro, com a natureza e com espaços de socialização que


vamos incorporando ao nosso dia a dia algumas ações. As pessoas se tornam mais humanas e
solidárias, passam a perceber o outro e a elas mesmas, se articulam politicamente, aprendem
com os mais experientes através da história pessoal de cada um. Nesse sentido, a socióloga
Maria da Glória Gohn (2008), ao abordar a educação como um conceito amplo e também
associado ao de cultura, entende que a educação como ensino/aprendizagem é adquirida no
decorrer da vida. E, na visão da autora, o conceito de cultura é concebido como sendo
“modos, formas e processos de atuação dos homens na história, onde ela se constrói” e que
muda constantemente “influenciada por valores que se sedimentam em tradições e são
transmitidos de uma geração para outra” (GOHN, 2008, p. 98).
Nesse sentido, a participação na vida social do lugar em que se vive contribui para
uma formação que considera a cultura como meio de impulsionar transformações sociais a
partir da própria realidade vivida. Desta forma, colabora para que os indivíduos tenham mais
autonomia e possam buscar o melhor para os lugares, consolidando o ideal de cidadania.
O diálogo e a exposição de críticas se fazem necessários em uma comunidade em
que os seus moradores se organizam para fazer ações em conjunto, no entanto, esse é um
processo marcado por conflitos de ordem pessoal, social e política, que requerem debates e
discussões dos participantes entre si e até mesmo com o poder público, principalmente porque
a cidade coloca em confronto culturas ditas “tradicionais” e contemporâneas, identidades
individuais e coletivas, requisitando com isso que o desenvolvimento humano dos envolvidos
seja trabalhado através de todo o processo das ideias e das ações juntos.
As influências do meio natural e social sobre o indivíduo e que interfere na relação
deste com o meio social são consideradas, segundo Libâneo (1998), educação não intencional
ou informal. São atos não institucionais, não planejados, assistemáticos, que envolvem o
cotidiano social, como o ambiente e as relações socioculturais, refletindo na formação das
pessoas. Esta educação ocorre em qualquer espaço e depende de interações que possibilitem
aprendizados.
A educação informal acontece em diversos espaços como praças, ruas, casas,
eventos, através das atividades desinteressadas, manifestações culturais, jogos em grupos,
etc., onde são feitas as trocas tão ricas da nossa cultura, que a cada dia vai sendo modificada.
Resumidamente, são espaços de constantes aprendizados desinteressados e que carregam os
sentidos e significados para uma vida em comunidade. Na perspectiva de Gohn (2006, p. 29),
a educação informal socializa os indivíduos, desenvolve hábitos, atitudes, comportamentos,
modos de pensar e de se expressar no uso da linguagem, segundo valores e crenças de grupos

 
  47
 

que se frequentam ou a que se pertence por herança, desde o nascimento. Trata-se do processo
de socialização dos indivíduos. Na antropologia, essa educação é compreendida como
endoculturação, que é um processo permanente de aprendizagem útil a uma vida em
sociedade numa determinada cultura.
A educação não formal é caracterizada como intencional por Libâneo (2008), com
categorias de espaço determinados e tempo adaptáveis que a difere da educação formal que
acontece na escola, pois inclui atividades realizadas em outros espaços que não são os
escolares. Complementando a contribuição deste autor, Gohn (2008, p. 101), destaca que
esses espaços diversos podem ser: o bairro/associação, as organizações que estruturam e
coordenam os movimentos sociais, as igrejas, os sindicatos e os partidos políticos, as
organizações não governamentais, os espaços culturais, e as próprias escolas, nos espaços
interativos dessas com a comunidade etc.
A participação nas atividades de educação não formal pressupõe interesse pessoal
em desenvolver-se ou desenvolver alguma esfera da sociedade. Caracteriza-se por
desenvolver “ações e práticas coletivas organizadas em movimentos, organizações e
associações sociais” (GOHN, 2008, p.100). Dessa maneira, percebe-se que a educação não
formal e a informal estão bem próximas quanto ao seu caráter cultural e político, mas têm
diferenças em relação, principalmente, à existência de um propósito social e necessidade de
uma localização espacial.
Todos esses espaços de educação podem existir separadamente, mas o ideal seria
que eles entrassem em sintonia em determinados momentos com a comunidade local, agindo
em conjunto para que esta pudesse se tornar uma comunidade educativa, mais bem articulada
e informada. É extremamente importante frisar que, apesar das denominações serem
diferenciadas, estas fazem parte de um mesmo processo, de desenvolvimento humano, e que
devem buscar uma ligação entre si, fazer intercâmbios, para que os indivíduos possam vir a
perceber os nexos contextuais sociais, políticos e econômicos, que giram em torno dessa
separação da educação informal, não formal e formal. “Devemos deixar de considerar as
diferentes formas de educação e aprendizagem como independentes umas das outras, e
considerar a complementaridade dos âmbitos e momentos da educação.” (BRARDA; RÍOS,
2004, p. 30).
Assim, a educação tem relação com os aprendizados internalizados pelos
participantes de um grupo. Diz respeito às regras de convivência que acabam por fazer parte
da vida diária de cada lugar. É a humanização dos sujeitos, o exercício da solidariedade e do
convívio democrático e justo em coletivo. Acontece onde existem seres humanos em

 
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interação com eles mesmos e com o meio em que vivem. É também o processo de
aprendizado que perpassa o contato dos indivíduos com a cultura de sua cidade e bairro,
entendendo-os enquanto espaços pertinentes à diversidade e ao mesmo tempo às
identificações. Ou seja, ultrapassa os muros da escola e se estende aos espaços diversos.
Assim, a educação como processo que influencia a reconstrução cultural de um
lugar não pode ser estudada por apenas um modo, deve apresentar todo um arcabouço de
educações para mostrar como uma comunidade lida com as transformações no tempo e no
espaço habitado pela diversidade das cidades modernas. Em relação a essa diversidade
Bauman (2005, p.48) faz a seguinte pergunta: “como alcançar a unidade na (apesar da?)
diferença e como preservar a diferença na (apesar da?) unidade?”.
No livro Cidade educadora: princípios e experiências são apresentadas propostas e
descritos exemplos de cidades que caminham no sentido de se tornarem educadoras; assim, o
que se passa em Montevidéu, no Uruguai, chamou a atenção para a existência de uma série de
programas, apoiados pela prefeitura municipal, que privilegiam o morador do bairro como
protagonista do produzir cultural, permitindo que a diversidade seja contemplada num
processo de reconstrução cultural. Para isso,

[…] em todos eles procura-se promover o resgate das identidades e do


circuito histórico-territorial, apostando na memória e nos testemunhos que
estão aí para ser resgatados e vivenciados novamente. Não se trata de rejeitar
como ruim tudo aquilo que nos chega através das máquinas culturais a que
hoje nos referimos como transmissão maciça, mas de possibilitar que as
identidades se formem e se renovem em contato com as tradições locais.
(PIZARRO, 2004, p. 73)

Uma das propostas envolve músicos populares dos bairros em parceria com
programas coordenados por distintos âmbitos municipais que buscaram “ser um instrumento
de luta contra a marginalização social e cultural, num tempo em que as limitações econômicas
tendem a aprofundar as brechas sociais.” (PIZARRO, 2004, p. 75). Assim, partindo do que o
grupo, a comunidade sabe, faz, vive e sente uma proposta educativa foi se consolidando,
ganhando corpo, através da música popular do e no lugar.

[…] trata-se de empreender e construir caminhos que permitem a


comunicação entre os cidadãos e promovem o protagonismo cultural,
caminhos que nos conduzem ao resgate da diversidade de sensibilidades,
conhecimentos e forma de nos inter-relacionar, porque é nessa
heterogeneidade que vamos aprendendo. (PIZARRO, 2004, p. 85).

 
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Concordando com Certeau (1994, p. 43) sobre estudos da cultura popular,


avaliamos que esses dão origem a uma "pesquisa complexa porque essas práticas volta e meia
exacerbam e desencaminham as nossas lógicas". Por mais que nossas investigações pareçam
mostrar os caminhos da resistência, estes são traçados em ziguezague e muitas vezes precisam
sair da trilha e talvez essa seja a estratégia, não tê-la tão definida, intercalar e se utilizar da
música, poesia e arte para parecer algo sem significado, mas que nas entrelinhas se mostra
bem pensado e articulado.
Destarte, a estratégia será aqui abordada como sendo utilizada para a obtenção de
propósitos maiores, de longo prazo, que é composta de táticas. Entendemos que estas são
utilizadas enquanto um conjunto de medidas pensadas previamente, que se refere a ações
pontuais e que compõe o processo estratégico. Certeau (1994, p. 99), faz distinção entre
estratégia e tática:
Chamo de estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que
se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder
(uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser
isolado. A estratégia postula um lugar susceptível de ser circunscrito como
algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma
exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os
inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa,
etc.).

Assim, a estratégia permite que um entendimento prévio sobre o espaço seja feito,
desenvolvendo desse modo nos indivíduos a criticidade, ao apontar caminhos para se atingir
objetivos maiores. Enquanto que a tática para o autor se aproveita das possibilidades
oferecidas, as falhas da conjuntura dominante, as "ocasiões" para agir e se recolher a espera
de outro momento propício a uma nova tática. Desta forma, Certeau (1994, p. 100) a define
como sendo:
Ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então
nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática
não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que
lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha. Não tem
meios para se manter em si mesma, à distância, numa posição recuada, de
previsão e de convocação própria: a tática é movimento "dentro do campo de
visão do inimigo", como dizia von Büllow, e no espaço por ele controlado.

Certeau (1994, p. 100) nos diz que "a tática é a arte do fraco", e realmente, no
sentido de que não se pode medir forças com um elemento muito mais poderoso, pois sabe-se
que a derrota será certeira, mas é possível dentro de uma estratégia se utilizar de táticas para ir
abrindo caminhos diversos, que um dia podem vir a se juntar para atingir um objetivo maior.
Nesse sentido, a estratégia também pode ser utilizada pelos fracos, mas estes precisam estar

 
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organizados a tal ponto para poderem jogar o jogo de poder com astúcia, estando nos lugares
e agindo de forma inesperada para aproveitar os espaços e momentos. Assim, as estratégias
apontam para uma resistência, que se apoia no tempo e "as táticas apontam para uma hábil
utilização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas
fundações de um poder.”. (CERTEAU, 1994, p. 102).
Desse modo, as desigualdades sociais podem ser enfrentadas através dos sujeitos
com suas "artes de fazer". Certeau (1994, p. 42) explica que a cultura popular se apresenta de
diferentes formas, mas essencialmente em "artes de fazer", ou seja, maneira de pensar
traduzida em uma maneira de agir, na qual mistura combinações e utilizações diversas.

A cultura articula conflitos e volta e meia legitima, desloca ou controla a


razão do mais forte. Ela se desenvolve no elemento de tensões, e muitas
vezes de violências, a quem fornece equilíbrios simbólicos, contratos de
compatibilidade e compromissos mais ou menos temporários. As táticas do
consumo, engenhosidades do fraco para tirar partido do forte, vão
desembocar então em uma politização das práticas cotidianas (CERTEAU,
1994, p. 45).

Dessa maneira, trazendo para o nosso campo de estudo, os indivíduos no seu


cotidiano se utilizam de táticas diversas, como é o exemplo do que vai ser mais bem
desenvolvido no capítulo na qual a Festa de Itapuã, que durante anos esteve voltada para o
turismo, para a exploração midiática, com pouca preocupação com as tradições é retomada
pela comunidade local. Este e outros fatos fazem parte na verdade de uma mesma estratégia, a
de reconstruir a identidade cultural local. Essa última está ligada a outra lógica, na qual nos
referimos na presente pesquisa, estando o objetivo dessa estratégia ligada à transformação da
sociedade atual no sentido de ser mais humana e solidária.
Portanto, na cultura popular manifestam-se tanto táticas, como estratégias, partindo-
se das iniciativas dos indivíduos, ao combinar diversas práticas do cotidiano na busca de
contemplar as falas dos sujeitos, de diminuir as desigualdades sociais, que assombram as
sociedades atuais, e consequentemente as comunidades. Segundo Magnani (2003, p. 33):

Sem dúvida alguma a dominação existe, as condições de vida são precárias,


os rendimentos, insuficientes e os meios de comunicação de massas,
poderosos: as formas de lazer e cultura popular não estão a salvo e ao abrigo
desses fatores. Em alguns casos podem vir a desaparecer, simplesmente; em
outros – para desespero dos saudosistas – transformaram-se, “modernizaram-
se”, incorporando elementos pouco ortodoxos. O que é visto, porém, como
descaracterização, muitas vezes não é senão a única ou mais adequada
resposta possível diante de determinado contexto.

 
  51
 

Ao abordar a questão das estratégias globais e táticas locais, Certeau (1994, p. 50-
52) nos diz que o problema não é apenas referente aos processos de produção, mas está
relacionado ao indivíduo que, coagido, acaba sendo envolvido por estes amplos
enquadramentos restando-lhe “dar golpes”, encontrar na megalópole eletrotecnicizada e
informatizada a “arte” dos caçadores ou dos rurícolas antigos. Portanto, existe a necessidade
de se buscar outras maneiras de enfrentar o que está posto.
Os indivíduos têm buscado saídas a partir das "maneiras de se reapropriar do
sistema produzido". (CERTEAU, 1994, p. 52). São pequenos detalhes que pareciam estar
sendo substituídos, mas que estão sendo aos poucos retomados como é o exemplo das
pequenas feiras que têm surgido em alguns passeios públicos das cidades, a retomada da
direção das festas de largo pelos moradores locais, confraternizações e eventos comunitários
de bairros pelo querer da própria população dos lugares, o ressurgimento dos ofícios, tudo
isso se utilizando das “brechas” ou criando-as dentro do sistema no qual se vive.
São essas subversões que o povo cria e recria a todo instante para tentar sobreviver
ao tempo em que se transmitem modos de vida particulares de cada lugar, convivendo
também com o modo de vida de outros lugares. É a diversidade cultural tomando conta dos
locais em que a cultura popular habita ao longo dos anos de geração em geração.
Corroborando Certeau (1994, p. 87), "não é possível prender no passado, nas zonas
rurais ou nos primitivos os modelos operatórios de uma cultura popular. Eles existem no
coração das praças-fortes da economia contemporânea." Assim, as classes subalternas acabam
por terem que se utilizar da criatividade para compor a sua livre "arte de fazer" em prol de
uma solidariedade e cumplicidade entre iguais pertencentes ao seu "mundo", mas que buscam
se instrumentalizar atualizando-se, como é o exemplo do grupo cultural chamado Escola de
Samba Unidos de Itapuã, que, através das redes sociais, passou a divulgar suas ações e
aparições na mídia, sendo uma maneira de mostrar para um bom número de pessoas o
trabalho desenvolvido e as conquistas adquiridas pelo grupo.
Para Certeau (1994, p. 88), a cultura popular possui uma ordem representada por
uma arte, na qual os sujeitos através de táticas buscam agir para fins próprios. Estes se
utilizam da consciência coletiva, que é um processo longo e que necessita da colaboração de
cada geração, através de trocas sociais, para que haja a criação de uma resistência moral em
detrimento do discurso ideológico dominante. Para isso, as solidariedades e generosidades são
exercitadas em seu cotidiano como forma de "amarrar" um sujeito ao outro numa "teia da
irmandade", em que a sua tenacidade estabelece diferentes formas de resistir e negar a ordem

 
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estabelecida. Milton Santos (2007, p. 61), em entrevista, ao falar sobre as condições de vida
dos pobres na cidade diz que:

[...] deveria ser criado também um centro de estudos sobre a solidariedade


entre os pobres. É evidente que isso não dá manchete, mas poderíamos
compreender melhor as diferentes formas de ajuda mútua, assim como saber
de que modo repercute a produção de um discurso que escapa à indústria
cultural, mas que é cultura.

Michel de Certeau (1994, p. 89), ao fazer um paralelo do potlatch com a política do


"dom", nos diz que esta é uma prática na qual a prestação voluntária de ajuda leva em conta a
reciprocidade que se desenvolve nas periferias e se podem incluir também os bairros
populares e suas invasões, que convivem em torno de uma rede social que se baseia na relação
do doar-se.
Uma população sujeita a oscilações do mercado de trabalho e a condições
precárias de existência é mais dependente da rede formada por laços de
vizinhança, parentesco e origem. Essa malha de relações assegura aquele
mínimo vital e cultural que assegura a sobrevivência, e é no espaço regido
por tais relações que se desenvolve a vida associativa, desfruta-se o lazer,
trocam-se informações, pratica-se a devoção. Onde se tece, enfim, a trama
do cotidiano. (MAGNANI apud CHAUÍ, 1989, p.69).

Dessa forma, essas práticas se encaixam numa outra lógica, sendo mais uma tática
de desvio do caminho que a sociedade atual, desigual e com forte presença de valores como a
individualidade e a competitividade, tem seguido. Assim, estes sujeitos que resolvem fazer
parte dessa "teia da irmandade", o fazem, segundo Certeau (1994, p. 90), "sem lucro (o lucro
fica do lado do trabalho executado para a indústria), muitas vezes levando prejuízo, tiram
alguma coisa à ordem do saber para ali gravar ‘sucessos’ artísticos e ali inserir os graffitis de
suas dívidas de honra."

Assim, junto à busca da sobrevivência, vemos produzir-se, na base da


sociedade, um pragmatismo mesclado com a emoção, a partir dos
lugares e das pessoas juntos. Esse é, também, um modo de insurreição
em relação à globalização, com a descoberta de que, a despeito de
sermos o que somos, podemos também desejar ser outra coisa. Nisso,
o papel do lugar é determinante. Ele não é apenas um quadro de vida,
mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que
permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação
sobre o presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um
papel revelador sobre o mundo. (SANTOS, 2009, p. 114).

 
  53
 

Portanto, o espaço tem relação com a herança dos povos que habitaram cada
cidade, na qual a sua base é representada principalmente por uma população de origem negra
e indígena, que tinha em sua bagagem cultural um sentido de “tribo” muito forte, na qual se
reconheciam, se ajudavam e se protegiam. No entanto, essa bagagem também trazia consigo
as divergências com outras “tribos”, dificultando a formação de uma unidade entre elas. Esse
fato parece refletir de outra maneira na atualidade, em que grupos agem separadamente, e o
que poderia ser feito em conjunto de forma mais ampla passa a ser ações pontuais.
Daí a importância de se conhecer a trajetória histórica do lugar de nascimento, dos
antepassados familiares, dos ancestrais que habitavam o lugar de sua moradia, das histórias
contadas pela família, amigos e vizinhos. Pois é a partir desse conhecimento que se pode
compreender que o povo brasileiro, mais especificamente no caso desta pesquisa, baiano,
soteropolitano e Itapuanzeiro foi constituído por encontros de etnias. Cada etnia possuindo a
sua cultura, que foi aos poucos se fundido, se transformando e se ressignificando umas em
contato com as outras, através das socializações no cotidiano de cada época.
Nessa mistura de saberes, modos de pensar e agir é que no presente renovações e
atualizações acontecem influenciadas pelos rituais e tradições do passado, no qual a cultura
popular se molda e amplia as possibilidades, através da diversidade, de um futuro que ainda
está por vir. Assim, buscando perceber esse movimento de reconstrução cultural é que um
caminho simultâneo e itinerante foi trilhado.
Em Itapuã, muitos costumes permaneceram ao longo dos anos a partir do respeito
aos rituais, através da propagação da memória materializada na vivência das festas populares,
que carregam consigo a importância das tradições para o lugar. Tradições estas que chegavam
a mobilizar toda a comunidade, estimulando valores de união e solidariedade a partir de ações
em coletivo, que com as transformações no local precisaram experimentar o respeito às
diferenças.
 

 
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3 ITAPUÃ, TRANSFORMAÇÕES, COTIDIANO E TRAJETÓRIA

O contexto histórico no qual o Brasil e o mundo passaram tem tudo a ver com a
formação da cidade de Salvador e consequentemente com o bairro de Itapuã, sendo que esta
abordagem se pauta no cuidado que se deve ter com a ênfase da visão localista dos problemas
em detrimento da visão destes como parte de uma totalidade.

Quanto mais se pulveriza a totalidade de uma área em “comunidades locais”,


nos trabalhos de “desenvolvimento de comunidade”, sem que estas
comunidades sejam estudadas como totalidades em si, que são parcialidades
de outra totalidade (área, região, etc.) que, por sua vez, é parcialmente de
uma totalidade maior (o país, como parcialidade da totalidade continental),
tanto mais se intensifica a alienação. E quanto mais alienados, mais fácil
dividi-los e mantê-los divididos. (FREIRE, 2005, p. 161).

Antes da colonização do Brasil, Itapuã era terra habitada por índios tupinambás,
guardando uma paisagem natural de extrema beleza. O nome “Itapuã” vem do tupi-guarani e
há controvérsias a respeito de seu significado, sendo divulgado de diversas formas. Significa
pedra de ponta para alguns, pois na praia próxima ao famoso Farol de Itapuã, apelidada pelos
moradores como “canal”, está presente uma grande pedra soerguida. Esta pedra, por sua
localização e formato, por emitir sons fortes quando o bairro ainda nem era considerado como
parte da cidade, apresenta-se também com o significado de pedra que ronca. Narcimária Luz
(2008) diz que

[…] na língua tupi-guarani ita significa pedra e puã significa choro, gemido:
Itapuã. Há também outra interpretação que diz ser Itapuã em tupi, um
rochedo que se ergue, a pedra que ergue a cabeça redonda acima das águas
na margem do oceano. A pedra possuía uma grande cavidade no seu interior
que acumulava ar e, quando a maré “vazava”, produzia um barulho
estrondoso, parecia um “ronco”, levando os tupinambás a chamarem-na de
Itapuã. (LUZ, 2008, p.110).

Com a ocupação do território brasileiro pelos Europeus, em inícios da segunda


metade do Século XVI, o espaço fazia parte da fazenda de Garcia d’Ávila, que ocupava desde
Itapuã, “nos chamados campos de Itapuã”, até próximo a Tatuapara; “gado bovino, cavalos,
éguas, porcos e cabras circulavam” por lá. (RISÉRIO, 2004, p. 98). Segundo Risério (2004), a
fúria dos tupinambás em colocar barreiras à ocupação dos europeus na região representava-se
na época de diversas formas, como: através da queima de plantações de cana de açúcar por
fogueiras indígenas; ataques de flechaços a donatários; e pela resistência cultural dos seus

 
  55
 

povos. “A implantação da fazenda dos Garcia d’Ávila acabou por pacificar e domesticar as
aldeias tupinambás daqueles campos, transformando Itapuã numa pequena povoação com a
sede e a capela de São Francisco próximas aos currais de gado”. (OLIVEIRA, 2009, p.56).
Aos poucos,

Itapuã foi se transformando numa vila de pescadores, reunindo escravos


africanos, índios remanescentes e seus descendentes crioulos e mestiços, que
aí construíram, por volta de 1625, uma capela de palha dedicada a Nossa
Senhora da Conceição de Itapuã, que em 1646 é erguida em alvenaria,
tomando a forma que possui hoje. (OLIVEIRA, 2009, p.57).

Por volta de 1768, o bairro de Itapuã servia ao refino do óleo de baleia, que era
empregado na iluminação da cidade. (RISÉRIO, 2004, p. 294). Um conjunto de edificações
utilizadas para as atividades da pesca e aproveitamento da baleia era chamado de armação ou
contrato, na qual ficava alojada a mão de obra escrava, livre e a administração do negócio.
Para Oliveira (2009, p.56), a convivência forçada dos índios e dos negros africanos,
vítimas à margem do sistema colonial pode ter favorecido a identificação com a causa do
sistema escravista, no entanto, os índios também se encontravam do lado oposto, perseguindo
negros fugitivos e na guerra contra os quilombos, demonstrando uma conflituosa relação entre
índios e negros. No entanto, mesmo com essas relações políticas em conflito, no campo
sociocultural, as interações foram tantas, que até mesmo os cultos religiosos incorporaram
elementos da cultura indígena e africana, como é o exemplo da figura do caboclo nas religiões
de matrizes africanas.
Entre 1807 e 1835 Salvador possuía “uma espécie de cinturão móvel de terreiros e
quilombos” (RISÉRIO, 2004, p. 332), que ameaçavam se rebelar por todo o recôncavo
baiano. Um quilombo que perdurou 20 anos e que se formou nas redondezas de Itapuã,
chamava-se “Buraco do Tatú”, destruído em 1763 por uma expedição militar portuguesa, que
era integrada a ordenanças indígenas vindas da Vila de Jaguaripe. (OLIVEIRA, 2009, p.58
apud SCHWARTZ, 2003).
A insatisfação dos quilombos era contra a escravidão e a imposição da religião
católica, resultando numa série de pequenas revoltas em toda a Bahia, como é o exemplo da
que ocorreu em Itapuã, em fevereiro de 1814, “que deixa um saldo de mais de 70 mortos em
combate, rebeldes enforcados, punidos com açoite, “suicidados”, mortos nas prisões e mesmo
deportados para colônias penais portuguesas na África.” (RISÉRIO, 2004, p. 333). Em 1816,
no mesmo local, ocorre outra insurreição, que deixa engenhos incendiados, brancos mortos e
casas saqueadas. Os negros e mulatos que se rebelaram eram chamados de malês, termo
 
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africano, que em ioruba significa “o muçulmano”. Em 1835, aparece o resultado das pequenas
rebeliões que vai dar origem à famosa revolta dos malês, que conseguiu reunir um grupo de
cerca de 1500 negros. (RISÉRIO, 2004).
Somente a partir da segunda metade do século XIX, o bairro de Itapuã começa a
sofrer modificações mais expressivas, pois a cidade de Salvador encontrava o seu
delineamento urbano sendo estabelecido e necessitava de apoio para o seu crescimento. Após
a abolição da escravatura, em 1888, Itapuã passou a abrigar muitos ex-escravos e seus
descendentes, que foram aos poucos dando origem à singular comunidade de pescadores.
As ganhadeiras faziam parte da vida cotidiana de Itapuã da época. Eram mulheres
negras que tinham uma forte participação no comércio de peixe e outros gêneros alimentícios.
(OLIVEIRA, 2009, p.63). Ainda hoje, a atividade pesqueira permanece como um dos
principais meios de sobrevivência para alguns poucos moradores. Na pequena vila pesqueira,
todos se conheciam e as pessoas de fora eram facilmente detectadas.
Dentre os moradores de Itapuã estavam os nascidos e criados na região,
descendentes de antigas famílias locais, autodenominados de “Itapuanzeiros(as)”. Esse termo
está em processo de ressignificação atualmente na comunidade, destinado inicialmente aos
nativos, mas com o tempo foi tendo seu conceito modificado e outros valores foram
agregados. Nomenclatura esta que passou a integrar um questionamento constante da pesquisa
em busca dos sentidos e significados da denominação.
O lugar era até então abastecido por saveiros de carga, que transportavam
alimentos, carne, sal, café, açúcar, farinha e produtos como tecidos, querosene, dentre outros.
Quando as mercadorias não eram trazidas pelo mar, eram transportadas no lombo dos animais
pela atual estrada velha do Aeroporto, passando pelo Cabula, até chegar à feira de São
Joaquim, onde acontecia o comércio da cidade. As casas, quase todas cobertas com palha e
feitas de taipa, eram habitadas por homens, mulheres e crianças simples que viviam do mar.
Era o mar que alimentava a antiga comunidade de pescadores, que o tempo foi “engolindo”.
(RIBEIRO, 1999).
O período de produção da cana de açúcar e atividades mineradoras acaba por
contribuir para que no Brasil viesse a crescer sua população. Milton Santos (1993, p. 20)
explica que
[…] a expansão da agricultura comercial e a exploração mineral foram a
base de um povoamento e uma criação de riquezas redundando na ampliação
da vida de relações e no surgimento de cidades no litoral e no interior. A
mecanização da produção (no caso da cana-de-açúcar) e do território (não
apenas no caso da cana) vêm trazer novo impulso e nova lógica ao processo.

 
  57
 

Com essa expansão, no fim do período colonial, Salvador possuía um relevante


crescimento em números de habitantes, que, segundo Santos (1993, p.20), já reunia 100.000
moradores na passagem do século XVII para o século XVIII. No fim do século XVIII e
durante o século XIX, inicia-se a mecanização dos espaços no Brasil, em que o meio técnico
começa a substituir o meio natural. (SANTOS, 1993, p. 35). Este processo tem influências da
industrialização, que já estava acontecendo no mundo. Segundo Lefebvre (1991, p. 3),

[…] se distinguirmos o indutor e o induzido, pode-se dizer que o processo de


industrialização é indutor e que se pode contar entre os induzidos os
problemas relativos ao crescimento e à planificação, as questões referentes à
cidade e ao desenvolvimento da realidade urbana, sem omitir a crescente
importância dos lazeres e das questões relativas à “cultura”.

Ou seja, a partir do século XVIII, a mecanização da produção e a nova conjuntura


econômica, que estava se formando no mundo, incidia diretamente na realidade social das
populações de diversos países, incluindo-se ai o Brasil. O lazer e a cultura passaram a ser
mais discutidos e a possuírem maior relevância por proporcionarem momentos de descanso,
reflexão e socialização num período em que a carga horária de trabalho nas fábricas era
exagerada, somadas aos baixos salários, que incitavam reivindicações através de mobilizações
dos trabalhadores. As cidades do mundo passaram a crescer muito rapidamente. Nascia o
capitalismo concorrencial com a burguesia, no qual o mercado deveria ser regido pela livre
concorrência, baseado na lei da oferta e procura. Com isso, as cidades acumularam riquezas
oriundas do crescente sobreproduto da agricultura, como também conhecimentos, técnicas e
obras de arte. (LEFEBVRE, 1991, p. 4).
Segundo Lefebvre (1991, p. 9), a industrialização e a urbanização constituem-se em
dois aspectos inseparáveis dentro de um mesmo processo conflituoso, pois existe um choque
entre a realidade urbana e a realidade industrial. A maioria das cidades da Europa cresceu a
partir da sua vizinhança com a indústria e concomitantemente urbanizaram-se, mas no caso da
América do Sul e da África, as cidades ampliaram-se e houve uma urbanização sem que
necessariamente a indústria estivesse presente de forma decisiva para que isso acontecesse.
(LEFEBVRE, 1991, p. 10).
Isso é explicado pela dissolução das estruturas agrárias, em que “camponeses sem
posses ou arruinados afluem para as cidades a fim de nelas encontrarem trabalho e
subsistência.” (LEFEBVRE, 1991, p. 10). Como exemplo, pode-se citar a cidade de Salvador,
que no censo de 1940 apresentou 290.443 habitantes e teve no censo de 1950 o seu número
acrescido para 417.235 habitantes, sendo que a porcentagem do aumento natural de habitantes

 
  58
 

era de 29,28% e o aumento devido às migrações de 70,72 %. (DURHAN, 1978, p. 8). No


entanto, esse processo também está ligado à industrialização, mesmo que indiretamente, pois
essas migrações do campo para a cidade estão atreladas à economia capitalista concorrencial a
nível mundial, que tem ligação com os pólos industriais, dependendo assim da
industrialização. (LEFEBVRE, 1991, p. 10). Segundo Milton Santos (1993, p. 27):

O termo industrialização não pode ser tomado, aqui, em seu sentido estrito,
isto é, como criação de atividades industriais nos lugares, mas em sua mais
ampla significação, como processo social complexo, que tanto inclui a
formação de um mercado nacional, quanto os esforços de equipamento do
território para torná-lo integrado, como a expansão do consumo em formas
diversas, o que impulsiona a vida de relações (leia-se terciarização) e ativa o
próprio processo de urbanização.

Até a década de 1920, Itapuã ainda não era considerada como parte da cidade de
Salvador, sendo citada apenas como uma praia que se destacava pela procura dos veranistas,
local que estava crescendo e urbanizando-se, ganhando comércios, vivendas e novas
construções. Era uma praia ligada por uma rodovia, que atravessava desnecessário trecho do
interior para se chegar à capital e os seus moradores e veranistas reivindicavam a construção
de uma estrada pela praia, que encurtaria o percurso até a "cidade".
Em 1925, é fundado o Aeroporto Santo Amaro de Ipitanga, tendo sido reconstruído
completamente em 1941 e mudado pela primeira vez de nome em 1955 para Aeroporto Dois
de Julho, e em 1998 pela segunda vez, para chamar-se até hoje Aeroporto Internacional
Deputado Luís Eduardo Magalhães. Esta construção contribuiu para atrair imigrantes
interessados em trabalhar nas obras de construção das instalações militares, que não se
referem apenas à região do aeroporto, mas também às vilas militares espalhadas por Itapuã.
No Século XX, os primeiros indícios estruturais começam a chegar à Itapuã e, para
Risério (2004, p. 455), este século na Bahia

[…] parece partido ao meio. Até a década de 1950, a Cidade da Bahia e o


seu Recôncavo permanecem compondo um espaço coeso, essencialmente
tradicional. Ainda é a Bahia do saveiro, do terno branco, da vegetação
exuberante, das ruas que se espreguiçam sob o sol. Tempos do chamado
“enigma baiano”. Mas, a partir da década de 1960, tudo muda. Surgem
estradas e distritos industriais. Avenidas, trevos e túneis. A Cidade da Bahia
explode para todos os lados, experimentando problemas e tensões até então
inéditos.

Entre os anos de 1940-1950 uma nova lógica econômica e territorial é instalada, na


qual novas condições políticas e organizacionais impulsionam a industrialização e contribuem

 
  59
 

para o crescimento dos mercados internos. (SANTOS, 1993, p.27). Até a década de 1950 a
cidade de Salvador não havia se modernizado ao ponto de perder o seu “ar bucólico”, sendo
que as transformações e modernizações no entorno da cidade, dentro desta e nos bairros, a
partir da década de 1960, foram aos poucos dinamizando o espaço e o cotidiano dos
moradores.
Um exemplo dessas mudanças é construção da Avenida Otávio Mangabeira em 1948,
estrada que facilitou a chegada à Itapuã, a outros pontos da cidade e ao centro. Itapuã foi aos
poucos se transformando num recanto bucólico de “fuga” do centro da cidade movimentado e
construído, fazendo com que pessoas de outras localidades fossem em busca de moradia
tranquila ou para veranear e passar finais de semana, considerando que o local possui
inúmeras belezas naturais como dunas e praias e estava sendo cantado por artistas famosos,
como Dorival Caymmi e Vinícius de Moraes. Os aproximados 21 km que separam o bairro do
Centro da cidade deixam então de ser o maior problema, pois a construção dessa estrada que
liga a cidade pela orla facilita o acesso, fazendo com que este se urbanizasse rapidamente e
viesse a ser um rico espaço para a especulação imobiliária.
Esse processo de reestruturação espacial intensifica-se após os anos 1950, com a
constituição da República, na qual a cidade passa a adotar um modelo de urbanização
Europeia, que privilegiava a construção de estradas e infraestrutura de locais propícios à
comercialização dos produtos industrializados, deixando ao esquecimento os espaços que não
se mostravam favoráveis. Neste período, Itapuã não se constituía mais enquanto uma mera
praia bonita, mas como um bairro importante na cidade e com relações dos seus moradores
com o espaço. A matéria de 22 de julho de 1967, do Jornal A Tarde (p.9) diz que,

[…] nos últimos vinte e cinco anos, de todos os bairros e subúrbios de


Salvador foi Itapuã que mais recebeu benefícios do poder público.
Beneficiado pela Natureza, também o foi pelos governos Federal, Estadual e
Municipal, os quais ali construíram dezenas de residências que constituem a
vila dos sargentos da Aeronáutica, rede de energia elétrica, e agora a
iluminação à mercúrio, do Centro da Cidade até aquela localidade, além de
um ginásio, mercado, posto de saúde, agências dos correios, estádios para
futebol e até um balneário. O grave problema de abastecimento d’água está
em vias de solução. E o que é bastante significativo, com todos esses
melhoramentos Itapuã não perdeu o seu encanto, a sua poesia.

Esse encanto e poesia de Itapuã, ao qual se refere a matéria supracitada, diz respeito
às belezas naturais que possuía, possui e também das emoções propiciadas com as vivências
no lugar, ao dizer que “Itapuã é uma festa, festa para os olhos e também para o coração”

 
  60
 

(JORNAL A TARDE, 1967, p.9). No entanto, não menciona as mudanças na vida cotidiana
dos moradores, que passaram a conviver com o crescimento do bairro.
Em Itapuã os espaços começam a ser parcelados e comercializados, a partir de um
movimento de incorporação via desapropriação, doação direta da municipalidade, dos
militares ou então através de negociações arranjadas por corretores imobiliários junto aos
proprietários das antigas fazendas. Neste período, surgem também os primeiros focos de
ocupações próximas das lagoas e dunas do Abaeté.
O número de casas residenciais e comerciais aumenta, os moradores começam a
dispor de água encanada, esgotamento, luz elétrica, posto médico, escolas e outros serviços
essenciais ofertados pelo poder público. O bairro passa a cumprir os requisitos exigidos para
pertencer à zona urbana e a urbanização começa a influenciar na vida cotidiana da
comunidade local. A vinda de novos moradores, fruto de migração do campo para a cidade,
propicia a união de conhecimentos e culturas diversas. Nova comunidade vai se formando
“por cima” da antiga. Novos moradores vão adentrando na comunidade, alguns se envolvem
mais, outros menos.
[…] com efeito, os deslocamentos de população para os grandes centros não
envolvem apenas questões de ordem econômica, demográfica ou urbanística;
para o próprio migrante, a mudança não se esgota no problema de uma maior
ou menor capacidade de adaptação às exigências do trabalho urbano, mas
significa alterações profundas em seu modo de vida, na forma de satisfação
de suas necessidades e no aparecimento de novas necessidades. Implica, em
suma, um reordenamento de todo o seu estoque simbólico. (MAGNANI,
2003, p.25).

Desta forma, essas migrações criam a necessidade de um processo de adaptação, de


aprendizado e de reconstrução de seu modo de vida. Este por sua vez, deve estar de acordo e
se adaptar ao novo lugar. Concomitantemente, a comunidade receptora também precisa se
adaptar à diversidade que passa a habitar o espaço do seu cotidiano.

Nessas condições, não se pode esperar que seu universo simbólico seja um
todo coerente e unitário. Pelo contrário, apresenta-se como um conjunto
fragmentado de normas e valores onde coexistem tradições de origem rural,
crenças religiosas, conhecimentos empíricos, valores próprios da sociedade
industrial. (MAGNANI, 2003, p.30).

A partir de 1964, mesmo com um Estado autoritário, outra ordem econômica


começa a ser instalada com mais força, a mundial. Os transportes e as comunicações são
integrados e modernizados, favorecendo assim as atividades capitalistas. O número de

 
  61
 

grandes empresas cresce consideravelmente, e estas passam a eliminar empresas menores


concorrentes.
Risério (2004) contextualiza esse período ao falar da criação do Centro Industrial
de Aratú (CIA). Nesse momento, surgiram ideias de que o desenvolvimento industrial na
Bahia deveria estar assentado na indústria siderúrgica e petroquímica, sendo criado em
Camaçari um pólo petroquímico. Surge então a Região Metropolitana de Salvador, pois esta
cidade já não se encontrava economicamente desvencilhada das regiões próximas e
industriais, afetando também bairros mais distantes do centro de Salvador, e ao mesmo tempo
mais próximos dos complexos industriais, nos quais a oferta de empregos foi decisiva para
interferir na constituição de localidades como Itapuã.
Na década de 1970, a localização do bairro de Itapuã facilita a vinda de migrantes
frente às novas oportunidades de emprego oferecidas pela implantação do Centro Industrial de
Aratu, criado em 1967, do primeiro pólo petroquímico do país no município de Camaçari e
também do novo Centro Administrativo moderno para órgãos públicos estaduais e federais da
Bahia (SUDIC).
Em matéria do Diário de Notícias de 03 de abril de 1973, Itapuã é criticado pela
falta de atenção do poder público, com o título “Todo progresso de Itapuã ficou nos versos de
Caymmi”, em que o exagero de atenção anterior a 1967 passa a surtir efeito contrário nos
anos seguintes.
Quando se fala em progresso, não quer dizer descaracterização. Se Itapuã é
um bairro típico da Bahia, é necessário que se conserve as suas
características, para que a sua imagem continue sendo cantada pelo mundo
afora. Mas isso não quer dizer que muitas de suas ruas continuem sem
calçamento, enquanto toda Cidade já sentiu o asfalto. Nem que a iluminação
continue precária, água escassa, telefone sem ruído, meio de transporte
desorganizado, falta de policiamento. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1973).

Assim, percebe-se que a preocupação não era com a descaracterização da


comunidade, sua cultura e seus valores, mas a imagem que o bairro passaria mundo afora,
demonstrando desta maneira a conexão da cidade de Salvador e o bairro de Itapuã
globalmente e sua importância para o turismo. Segundo a mesma matéria, o bairro possuía
“duas farmácias, duas padarias, um hotel, quatro restaurantes, uma foto, cinco bares, três
armarinhos, uma livraria”. E a matéria segue dizendo que em relação à diversão não existem
muitos equipamentos e cita a inexistência de um cinema, demonstrando que o local estava
“muito longe da civilização. [...] Enfim, o bairro está longe de ter condições próprias de vida.
Muito se conserva ainda da sua tradição de inicio.” (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1973). Ou seja,
este bairro demorou a se adequar aos modelos urbanizados da época, mas por que?
 
  62
 

No final da década de 1980, as multinacionais já estavam ocupando uma fatia do


mercado industrial brasileiro. Para Florestan Fernandes (1973 apud SANTOS, 1993, p. 102),
acontecia um padrão de dominação externa, no qual empresas ampliavam cada vez mais seu
raio de ação através de um novo estilo de organização, de produção e de marketing, com
propaganda de massa, planejamento e controle interno das economias dependentes dos
interesses externos. Para Fernandes (1973 apud SANTOS, 1993, p. 102), essas empresas
representam o capitalismo corporativo ou monopolista, pois se apoderam dos mercados
através de mecanismos financeiros e ocupam o lugar antes ocupado por empresas nativas. Isso
faz com que a economia seja concentrada nas mãos de poucas instituições. São formadas as
empresas oligopolistas, que cada vez mais ocupam espaço no mercado, no entanto, é preciso
que a cidade se prepare para essa ampliação.

[…] o capital monopolista supõe, dentro e fora da cidade, a utilização de


recursos maciços. De um lado, é preciso dotar as cidades de infra-estruturas
custosas, indispensáveis ao processo produtivo e à circulação interna dos
agentes e dos produtos. De outro, para atingir o mercado nacional, é exigida
uma rede de transportes que assegure a circulação externa. Esse processo é
concomitante ao de centralização dos recursos públicos em mãos do governo
federal que os utiliza em função de suas próprias opções. (SANTOS, 1993,
p. 102).

Ou seja, não é apenas pressão do sistema socioeconômico, mas são também


“modelos produzidos e efetivados pelo aparelho de Estado”. (SANTOS, 1993, p. 108). Assim,
a urbanização passa a acontecer de forma desigual, em que se percebem espaços na cidade
super urbanizados e outros que nem parecem pertencer à zona urbana de tão esquecidos pelo
poder público que são.
Nesse período, a duplicação da Avenida Otávio Mangabeira e a modernização da
orla de Salvador somados aos investimentos no setor de habitação com a construção de
imóveis maiores e com novo estilo arquitetônico, típicos da nova classe média contribui para
a chegada de novos moradores e ainda aumenta a oferta de empregos na região, devido à
expansão da cidade na direção nordeste. Isso fez com que crescesse o número de pessoas que
findavam suas moradias na periferia, pois o aumento do valor das terras urbanas com a
valorização do bairro dificultou o acesso ao solo para a maioria da população, obrigando a
ocupação pela necessidade habitacional em áreas inapropriadas e/ou com infraestrutura
debilitada.
A partir de todo esse processo, a cidade de Salvador foi crescendo, urbanizando-se
e se preparando para atender às demandas do sistema de produção capitalista. Através das

 
  63
 

relações do seu povo com o capital, o mercado, o comércio e o trabalho, atuando como um
ímã, atraindo pessoas de diversos lugares à procura de emprego e moradia, que, na tentativa
de estarem próximas aos centros e também ao seu local de trabalho, passam a ocupar em
massa os espaços que ficam às margens da cidade.

O próprio mundo se instala nos lugares, sobretudo as grandes cidades, pela


presença maciça de uma humanidade misturada, vinda de todos os
quadrantes e trazendo consigo interpretações variadas e múltiplas, que ao
mesmo tempo se chocam e colaboram na produção renovada do
entendimento e da crítica da existência. Assim, o cotidiano de cada um se
enriquece, pela experiência própria e pela do vizinho, tanto pelas realizações
atuais como pelas perspectivas de futuro. As dialéticas da vida nos lugares,
agora mais enriquecidas, são paralelamente o caldo de cultura necessário à
proposição e ao exercício de uma nova política. (SANTOS, 2009, p. 173).

Os bairros vão crescendo de forma “desordenada”, muitas vezes em locais não


apropriados e sem autorização do poder público, constituindo as favelas, ou de forma
“ordenada” com autorização do poder público em terrenos propícios para a construção e/ou
valorizados. Segundo Magnani (2003, p.29), “as populações dos bairros da periferia dos
grandes centros urbanos são em sua maioria constituídos por trabalhadores de baixa renda, de
origem rural recente ou remota, inseridos de diferentes maneiras no aparelho produtivo
capitalista.” Assim, estes fazem parte de uma complexa rede social, que possui conflitos
diversos.
A cidade de Salvador, segundo dados do Censo 2000/IBGE, apresentou Taxa de
Crescimento Geométrico Anual (TGCA) de 1,85%, enquanto a de Itapuã foi 5,17%. De 1991
até 2000, Salvador passou de 2.077.264 para 2.445.107 habitantes, apresentando um
crescimento absoluto de 367.843 habitantes, e no mesmo período o subdistrito de Itapuã passa
de 88.003 para 137.962 habitantes com um crescimento absoluto de 49.959 habitantes.
A especulação imobiliária acaba obrigando os poucos antigos moradores residentes
em locais mais “valorizados” a venderem suas casas para os detentores do capital, seja pela
influência dos serviços prestados no lugar, acesso, infraestrutura, localização, ou pela
proximidade com a praia e a natureza, sendo estes moradores levados a procurar habitação em
outras localidades, normalmente onde já existem aglomerados populacionais. Outro fator que
motiva a negociação é o interesse dos moradores locais em encontrar lugar mais tranquilo,
semelhante ao que um dia o local já foi, a exemplo do que aconteceu em Itapuã, contribuindo
para que essas especulações acontecessem.

 
  64
 

Mesmo assim, a questão é a forma com que a cidade vem se constituindo. Houve o
aumento do número de pessoas que residem nas favelas e nos bairros de baixa renda, bairros
que não tiveram um planejamento prévio e que carecem de infraestrutura de todo o tipo.
Percebe-se então a urbanização como privilégio de alguns espaços e o esquecimento por parte
do poder público de outros, que muitas vezes não chegam nem a atender às exigências
mínimas para serem considerados pertencentes à zona urbana. Com isso,

[…] um primeiro momento do processo especulativo vem com a extensão da


cidade e a implantação diferencial dos serviços coletivos. O capitalismo
monopolista agrava a diferenciação quanto à dotação de recursos, uma vez
que parcelas cada vez maiores da receita pública se dirigem à cidade
econômica em detrimento da cidade social. (SANTOS, 1993, p. 96).

Em Salvador, esse processo não é diferente, em que se tem o centro e as áreas


nobres da cidade extremamente urbanizadas. No caso, o centro da cidade fica localizado no
sítio que caracteriza o seu marco, a Praça da Sé, onde concentra um conjunto de processos,
funções e conteúdos, nos quais as relações sociais, religiosas, financeiras e políticas se
encontravam e muitas ainda permanecem. Tem-se uma aglomeração de comércios, lojas,
bancos, igrejas, praças, escritórios, etc., numa mesma região, próximos uns dos outros. Com o
tempo, esses locais foram saturando por não darem conta da demanda da população que
cresce a cada dia.
Assim, além dos centros, pode-se perceber a constituição de novas centralidades
que são produzidas pela lógica da sociedade moderna. Elas são na verdade descentralizações
e, apesar de possuírem algumas ou todas as funções do centro, não conseguem reunir pessoas
de toda a cidade. Desta forma, as centralidades podem migrar, reproduzir-se, desenvolver-se e
expandir-se, no entanto elas nunca serão um novo centro, pois este sempre permanecerá o
mesmo. Os centros possuem características próprias. Durante o dia, em horários comerciais,
são regiões super movimentadas com pessoas transitando pelas ruas, no entanto, durante a
noite e fins de semana tornam-se tão vazias que chegam até a assustar pelo abandono.
Bairros em que a população transita durante todo o dia, trabalha próximo, mora e
passa os finais de semana são locais que têm vitalidade, pois conseguem entreter seus
moradores em atividades de trabalho, educação, comércio e lazer neles mesmos. Isso faz com
que esses bairros estejam “distantes” e ao mesmo tempo conectados com a cidade e o mundo.
Esse rápido crescimento da cidade vem ampliando a oferta de serviços e
infraestrutura nos bairros para atender a demanda de seus habitantes. Desta forma, pequenas
centralidades têm surgido e se desenvolvido nos bairros mais populosos, diminuindo cada vez
 
  65
 

mais o deslocamento dos seus habitantes ao centro da cidade. Cria-se um cotidiano particular
no bairro, mas que sofre constantemente influências da economia vigente.
Dessa maneira, a urbanização pode ser entendida como um processo de
modernização da vida e dos espaços a partir da tecnologia, mecanização, inserção de
infraestrutura, equipamentos e serviços. Atrai pessoas que buscam uma melhor qualidade de
vida, no entanto, este processo tem-se mostrado essencialmente desigual e excludente, pois
não serve ao social, mas sim ao sistema capitalista a nível global. Segundo Santos (1993),

[…] a cidade, onde tantas necessidades emergentes não podem ter resposta,
está desse modo fadada a ser tanto o teatro de conflitos crescentes como o
lugar geográfico e político da possibilidade de soluções. Estas, para se
tornarem efetivas, supõem atenção a uma problemática mais ampla, pois o
fato urbano, seu testemunho eloqüente, é apenas um aspecto. Daí a
necessidade de circunscrever o fenômeno, identificar sua especificidade,
mensurar sua problemática, mas sobretudo buscar uma interpretação
abrangente. [...] O nível da urbanização, o desenho urbano, as manifestações
das carências da população são realidade a ser analisada à luz dos
subprocessos econômicos, políticos e socioculturais. (SANTOS, 1993, p.
11).

Assim, cada bairro da cidade guarda uma história particular e que possui um papel
importante nas relações atuais dos seus moradores e, consequentemente, na sua luta por
igualdade e melhores condições de vida. Localizado atualmente no limite do município de
Salvador, a nordeste deste e ao norte de sua orla, Itapuã pertence atualmente à Região
Administrativa X, que recebeu o nome de Itapuã e que além da presença deste bairro tem
também os seguintes: Jardim das Margaridas, Aeroporto, Stella Maris, Alto do Coqueirinho,
Bairro da Paz, Piatã, Mussurunga e São Cristóvão. Sendo que dentro destes “interbairros”,
como serão aqui chamados, “intrabairros” também podem ser identificados. Estes são como
pequenos bairros que possuem espaço delimitado pela população local, dentro de um bairro,
que no caso é Itapuã, a exemplo da Baixa da Soronha, Baixa do Dendê, Baixa da Égua, Baixa
da Gia, Bairro da Paz, Nova Brasília, Alto do Coqueirinho, Alto da Bela Vista, Penedo, Piatã,
Placaford, Jenipapeiro, entre outros que são também conhecidos pelos moradores.
Dentre os espaços em que há encontro de todas essas pessoas advindas dos diversos
intra e interbairros está a centralidade de Itapuã, em todo o percurso da Avenida Dorival
Caymmi, os supermercados, feiras (antigo e novo mercado), largo de Cira do acarajé, praias,
dentre outros. Desta forma, existe uma evidente integração desigual, socioeconômica e
cultural, ao se tratar da espacialidade na região e que contribui para essa dificuldade de
caracterizar os espaços que são ou não pertencentes à Itapuã.

 
  66
 

Há controvérsias em relação à divisão territorial de Itapuã e dados oficiais atuais


não coincidem com o cotidiano da população, que vive o lugar enquanto espaço habitado.
Leonardo D. Afonso (2007), em sua monografia de graduação intitulada As diferentes
imagens de Itapuã, explicita o entendimento que os moradores têm através do mapa mental de
pessoas entrevistadas e chega à conclusão de que não existe um consenso.

Figura 1 – Itapuã: mapa mental

Fonte: Leonardo D. Afonso. In: Relatório final da pesquisa “Perfil socioeconômico e cultural do
Bairro de Itapuã em Salvador-BA” (2007)

Na atualidade, a discussão é feita pelos moradores no sentido de que desde Piatã até
Stella Maris e incluindo-se essa extensão até a rótula do aeroporto sempre foi considerado
Itapuã. Os mesmos explicam que alguns espaços de Itapuã foram loteados pelo governo de
Salvador, sendo que acabaram separados do bairro. É importante frisar que as falas dos
moradores sempre estão presas à memória local para argumentar que toda essa extensão
expressa no mapa mental era vivenciada pelos antigos moradores. No entanto, a realidade
desses lugares tomou rumos completamente diferentes e que estão relacionados
principalmente a convivência entre as pessoas. As manifestações e eventos culturais de Itapuã
acontecem principalmente dentro da faixa amarela pintada na figura abaixo e essa
centralização nesse local contribui para o fortalecimento cultural e identitário na região, como
também a falta de manifestações culturais e áreas comuns de lazer contribuem para o
enfraquecimento de uma identidade coletiva nas regiões que não possuem:

 
  67
 

Figura 2 – Itapuã: localização

Fonte: Google

Com as constantes melhorias provenientes de investimentos do poder público,


empresas, comércios e instituições diversas passaram a se instalar no bairro. A inserção de
grandes empresas em um lugar pressupõe adequação às suas regulamentações, mudanças de
comportamento e de relacionamento. Ou seja, alteram as relações sociais dentro da
comunidade, a estrutura do emprego no local e mudam também as relações econômicas,
culturais e morais. Além disso, com a desculpa de contribuir com o lugar, disponibilizam um
bom número de empregos e aportes modernos, fincam raízes no território e extraem a força de
trabalho e a lucratividade do espaço, ameaçando inclusive, a depender do tipo de negociações
que se têm com o poder público, até retirar suas raízes (empresas) deixando a “terra” com
sérios problemas para o Estado. (SANTOS, 2009, p.68).
Em Itapuã, aos poucos e com o decorrer dos anos surgem as grandes empresas na
Avenida Dorival Caymmi, espaço que foi se valorizando a cada dia com as modernizações. A
fotografia abaixo evidencia a intensificação dos fluxos e concentração de lojas, que
comercializam os mesmos produtos, demonstrando a disputa concorrencial das grandes
empresas.

 
  68
 

Figura 3 – Fotografias da Av. Dorival Caymmi em Itapuã

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2010)

Atualmente, a centralidade do bairro é visivelmente localizada nesta avenida, com


uma concentração de comércios, bancos, lojas, posto de saúde, hotéis, hipermercado, etc. Esta
localidade não possui todas as funções do centro da cidade, mas é a centralidade da Região
Administrativa X.
É assim que também se alteram as relações sociais dentro de cada
comunidade. Muda a estrutura do emprego, assim como as outras relações
econômicas, sociais, culturais e morais dentro de cada lugar, afetando
igualmente o orçamento público, tanto na rubrica da receita como no
capítulo da despesa. Um pequeno número de grandes empresas que se instala
acarreta para a sociedade como um todo um pesado processo de
desequilíbrio. (SANTOS, 2009, p.68).

Um exemplo dessa inserção de infraestrutura está materializado na própria feira do


bairro, que antes acontecia de forma espontânea e/ou “desordenada” nas ruas próximas ao
antigo mercado e hoje se encontra localizada na Avenida Dorival Caymmi por ter sido
transferida e organizada pela prefeitura de Salvador. A feira é o local onde se compram
alimentos de diversos produtores, onde é proporcionada uma aproximação com o sujeito que
planta e/ou o seu intermediário, possibilitando negociações, encontros, conversas, trocas.
Paralelo a essa realidade, tem-se ainda no lugar supermercados, que expõem seus produtos
“friamente” numa prateleira e tratam o indivíduo como mero consumidor, fato este que
também pode acontecer na feira, mas de outra forma pela aproximação e reuniões de funções
num mesmo indivíduo ao contrário das fragmentações que acontecem na grande empresa.

 
  69
 

Figura 4 – Antiga feira de Itapuã e Mercado Municipal na década de 1960

Fonte: Arquivo Casa da Música

As empresas fixam-se no território, agem sobre ele, no entanto, a sua preocupação


não é com o entorno, mas com suas próprias metas, que obedecem a interesses globais ao
invés de locais. Desta forma, com a competitividade, as solidariedades antigas, normalmente
horizontais acabam por serem substituídas pelas verticais, em que a empresa hegemônica é o
epicentro. (SANTOS, 2009, p.85).
Assim, “os lugares são, pois, o mundo, que eles reproduzem de modos específicos,
individuais, diversos. São singulares, mas são também globais, manifestações da totalidade –
mundo, da qual são formas particulares.” (SANTOS, 2009, p.112) Nesse sentido, o bairro de
Itapuã precisou ser urbanizado e isso se deu tanto pelo interesse do poder público, como
também, dos próprios moradores.
Na atmosfera cotidiana existe tanto o contato direto com a poluição sonora, excesso
de carros, ônibus, pouca presença da natureza, como também ambientes tranquilos, com
crianças brincando nas ruas, cavalos soltos, chão de barro, árvores e sons de passarinhos.
Hoje, embora seja um polo de atração turística, tem-se consolidado principalmente como
bairro de residência, em que a sua paisagem está mesclada com as belezas naturais, praias,
dunas e lagoas, com prédios, casas de pescadores antigas, casas com arquiteturas modernas,
condomínios e favelas.
Os quilombos de outrora significavam atos de autonomia e rebelião (resistência)
que aconteciam nas proximidades da cidade de Salvador do século XVIII, a exemplo do
quilombo do “buraco do tatu” já mencionado anteriormente. Narcimária Luz (2008) diz que
esse quilombo se manteve inspirado pelo modo de vida africano, expandindo-se em áreas
importantes estrategicamente em Itapuã, a exemplo das dunas envolvendo a lagoa do Abaeté e

 
  70
 

toda a sua extensão, hoje conhecida como Praia do Flamengo, sendo uma referência
importante nas lutas contra a escravidão na Bahia por desestabilizar o sistema escravista da
época.
Isso continua a acontecer a partir de diferentes “artes de fazer”3, num tempo em que
o chicote ainda estala no cotidiano de homens e mulheres aguerridos. A luta permanece de
outra forma e se constitui através das astuciosas ações no dia a dia e ainda pela manutenção e
reconstrução das tradições.
Os quilombos de outrora, constantemente atrelados a uma imagem de grupos
isolados, distantes dos centros comerciais, industriais e urbanos, com um modo de vida rural,
podem assim ser também encontrados dentro da “cidade de pedras”. Desse modo, são nas
favelas e bairros de baixa renda que negros, mulatos e descendentes dos primeiros quilombos
continuam a lutar por melhores condições de vida. Nessa perspectiva, Itapuã ainda é um
quilombo, com a maioria de sua população negra, pobre, discriminada e que vem buscando
meios para se libertar das amarras do sistema imposto pela sociedade em que se vive.
A vida nas baixas se assemelha a das favelas, na qual os espaços são restritos, as
ruas são utilizadas como extensões das casas, a população é pobre, em sua maioria negra, e a
infraestrutura dos espaços é precária. A origem dos moradores é diversificada, sendo em sua
maioria advindos do interior da Bahia, interessados na oferta de empregos na cidade de
Salvador, capital baiana. Eles têm em comum a mesma condição financeira e/ou a cor da pele,
herança dos povos indígenas e africanos. Locomovem-se constantemente a pé, de bicicleta ou
de transporte coletivo; mantêm vínculos de solidariedade fortes devido às semelhantes
dificuldades a qual a maioria está sujeita.

Assim, junto à busca da sobrevivência, vemos produzir-se, na base da


sociedade, um pragmatismo mesclado com a emoção, a partir dos lugares e
das pessoas juntos. Esse é, também, um modo de insurreição em relação à
globalização, com a descoberta de que, a despeito de sermos o que somos,
podemos também desejar ser outra coisa. Nisso, o papel do lugar é
determinante. Ele não é apenas um quadro de vida, mas um espaço vivido,
isto é, de experiência sempre renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a
reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro. A
existência naquele espaço exerce um papel revelador sobre o mundo.
(SANTOS, 2009, p. 114).

                                                                                                                       
3
Termo utilizado por Michel de Certeau no livro A invenção do cotidiano.  
 
  71
 

Figura 5 – Proximidades da Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Itapuã em 1950

 
Fonte: Arquivo Casa da Música

Figura 6 – Proximidades da Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Itapuã no presente urbanizado

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2010)

Ao mesmo tempo, existem ruas, intrabairros, interbairros de classe média, como


Piatã, constituídos por uma grande quantidade de condomínios, na qual os moradores não têm

 
  72
 

contato próximo com a efervescência cultural que o bairro de Itapuã dispõe e muito menos
com a realidade que estes intrabairros das baixas, das classes subalternas possuem. São em
sua maioria complexos de novos condomínios de casas e pequenos prédios que oferecem
“área de lazer” e toda uma infraestrutura necessária ou até mais do que necessária para uma
vida digna ao ser humano.
Os moradores desses intrabairros de classe média têm outra cultura e outras
referências de formação étnica. Em sua maioria, possuem meios de locomoção próprios e
mantêm seus vínculos sociais dentro do bairro, só que mais voltados para os próprios
condomínios e principalmente se relacionam com pessoas espalhadas por toda a cidade, a
depender das instituições e locais que frequentam, dificultando dessa maneira a criação de um
vínculo identitário com o lugar. A maioria desses moradores não imagina a quantidade de
eventos e manifestações culturais que existe em Itapuã.
Milton Santos (2009, p. 136) traz a classe média como a grande beneficiária do
crescimento econômico, do modelo político e dos projetos urbanísticos adotados. Esse fato
alimenta um sentimento de inclusão no sistema político e econômico, proporciona o
sentimento de segurança e forma-se nesse contexto uma classe média “mais apegada ao
consumo que à cidadania.” No mesmo sentido Bauman (1999, p. 26-29) fala sobre uma elite
que possui sua liberdade corporificada no ciberespaço, a qual se isola no espaço físico das
localidades na busca por segurança.
Os espaços públicos onde os encontros entre pessoas deveriam acontecer são
diminuídos em “número e tamanho”. Os locais de encontro eram onde se criavam as normas,
que, por sua vez, distribuídos horizontalmente por interlocutores, constituíam uma
comunidade. “Por isso um território despojado de espaço público dá pouca chance para que as
normas sejam debatidas, para que os valores sejam confrontados e negociados.” (BAUMAN,
1999, p.33).

As tentativas de “homogeneizar” o espaço urbano, de torná-lo “lógico”,


“funcional”, ou “legível” redundaram na desintegração das redes protetoras
tecidas pelos laços humanos, na experiência fisicamente devastadora do
abandono e da solidão – combinada com a de um vazio interior, um horror a
desafios que a vida pode colocar e o expediente da ignorância ante opções
autônomas e responsáveis. (BAUMAN, 1999, p.53).

Com isso, a antiga organização social local foi modificando-se, recebendo pessoas
de todas as classes socioeconômicas, transformando-se em um dos maiores bairros da cidade,

 
  73
 

que ainda conta com uma comunidade que tem fortes identificações com o lugar e procura
discutir e se organizar em função do fomento de uma identidade itapuanzeira.
Desde o início dessa urbanização e inserção de infraestrutura, percebe-se que os
atores sociais procuraram manter seus vínculos comunitários. O que vem contribuindo, dentre
outros fatores, para que os moradores de Itapuã mantenham sua identidade com a
espacialidade são os vínculos sociais entre os habitantes e também o envolvimento destes em
ações, eventos e manifestações culturais, que acabam por colaborar e contribuir para o
fortalecimento identitário com o lugar. Esse contato próximo dos indivíduos estimula e
fortalece o sentimento de pertencimento nos sujeitos, que passam a se implicar, interessar e
discutir questões que envolvem todo o bairro, estimulando dessa forma o exercício da
cidadania.
O bairro de Itapuã, ao passar por transformações e influências externas, acabou por
despertar inquietudes em alguns de seus membros, que, preocupados com tantas mudanças,
passaram a agir de forma a não deixar morrer o espírito identitário, que vai desde a percepção
da necessidade do fortalecimento das suas manifestações culturais locais, criação de grupos e
eventos culturais, revitalização de espaços, até a própria valorização das atividades
comerciais, que fluem de dentro da comunidade como é o exemplo das feirinhas de comidas
típicas, que têm sido realizadas aos domingos na chamada Praça da Coelba ou Praça do
Geraldão, e também os diversos bazares espalhados pelo bairro.
Para Milton Santos (2009, p.115), a contraordem pressupõe uma racionalidade
oposta ao pensamento dominante, que o autor chama de “irracionalidades”, mantidas e
produzidas pelos que estão “embaixo”. A partir destas que a consciência pode ser ampliada,
na qual uma visão crítica pode vir a fazer parte da maneira de interpretar e ver o mundo ao
qual pertencem.
Nisso, o papel do lugar é determinante. Ele não é apenas um quadro de vida,
mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que
permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação sobre o
presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um papel revelador
sobre o mundo. (SANTOS, 2009, p.114).

Diante desse contexto, descontentes com a distância que a população local vinha
demonstrando perante as festividades tradicionais, algumas lideranças comunitárias passaram
a realizar ações no sentido de fortalecer a cultura no bairro. É criado então o grupo “Mantendo
a Tradição”, do qual Dona Francisquinha, hoje falecida e com um evento em sua homenagem
foi uma das fundadoras.

 
  74
 

Figura 7 – Dona Francisquinha e Seu Menezes num carnaval em Itapuã, 1987

Fonte: Arquivo pessoal de Seu Menezes

Este grupo é quem deu o primeiro passo para que se iniciasse a reconstrução
cultural em Itapuã de maneira mais lúcida. Alguns fatores foram decisivos para a dispersão de
algumas tradições e irracionalidades no bairro, que têm ligação com o que se passava no país
e no mundo principalmente na década de 1980. Nesse período, os meios de comunicação
evidenciavam e valorizavam - em suas novelas, comerciais, programas - as culturas de fora do
país com intuito de espalhar o interesse da nação por produtos estrangeiros. Isso acabou de
certa forma desviando o olhar das pessoas para seu lugar de moradia, despertando o interesse
por novidades advindas do mundo inteiro.
Acontece que nem todas as pessoas se deixaram levar pela onda da indústria
cultural, que trazia a valorização de outras culturas em detrimento da própria cultura nativa
das pessoas e estas começaram então a agir, a fomentar as irracionalidades e acabaram
influenciando mais pessoas a fazerem o mesmo. Em 1997, é criado o Grupo de Revitalização
de Itapuã (Grita), buscando, através das pessoas que mantinham ligação com a história do
bairro, como as senhoras, senhores, lavadeiras, pescadores e contadores de história, ir ao
encontro dessas tradições.
Essa mobilização toda estava se dando no bairro de Itapuã em oposição a uma
tendência global de homogeneização, em que uma pequena resistência estava disposta a fazer

 
  75
 

a história acontecer inspirando-se nas tradições locais. Homi Bhabha (2005, p.44), ao falar
sobre o valor e importância de uma política de produção cultural, nos diz que “as formas de
rebelião e mobilização popular são frequentemente mais subversivas e transgressivas quando
criadas através de práticas culturais oposicionais”.

[…] é nesse caldo de cultura que numerosas frações da sociedade passam da


situação anterior de conformidade associada ao conformismo a uma etapa
superior da produção da consciência, isto é, a conformidade sem o
conformismo. Produz-se dessa maneira a redescoberta pelos homens da
verdadeira razão e não é espantoso que tal descobrimento se dê exatamente
nos espaços sociais, econômicos e geográficos também “não conformes” à
racionalidade dominante. (SANTOS, 2009, p.120).

É muito comum, nas ruas internas, ver passeios públicos, praças e as portas das
casas ornamentadas com plantas, cultivadas pelos moradores do entorno. Inclusive, a praça
que se localiza próxima à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, que tem o nome de uma
moradora antiga, em respeito à ancestralidade, da mesma família do Sr. Geraldo; esta é hoje
conhecida por sua comunidade como Praça do Geraldão, pois foi ele quem plantou e cultivou
todo o local. Magnani (2003, p.21) conta que só aos poucos ele foi percebendo a importância
dos acontecimentos corriqueiros e que mobilizavam uma rede de relações, assim como o que
começou a acontecer nessa relação de pesquisa com o bairro de Itapuã. Ou seja, “a “cultura”
expressa uma resposta à agressão natural, simbólica, de conquistar o espaço, organizando-o
em torno dos homens.” (DUVIGNAUD, 1983, p. 37).
Para Milton Santos (2009, p.143), a cultura popular reage à homogeneização
conduzida por um mercado cego e que não considera as heranças e realidades dos lugares e
sociedades. A revanche se dá quando a cultura popular se utiliza dos instrumentos que na
origem são próprios da cultura de massas para exercer uma “qualidade de discurso dos “de
baixo”, pondo em relevo o cotidiano dos pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da
exaltação da vida de todos os dias”. Portanto, se os instrumentos podem ser reutilizados, a
base se encontra no território e na cultura local herdada. (SANTOS, 2009, p.144).
A nova organização espacial de Itapuã (intra e interbairros) tem influenciado tanto
no cotidiano, como nas tradições culturais de sua comunidade, em que, com a chegada de uma
grande quantidade de pessoas advindas de outros lugares, sem aproximação com os(as)
itapuanzeiros(as) ou ainda com a história e cultura local, o bairro se vê em processo de
crescimento sem que houvesse uma preparação para receber os “forasteiros”.
Esse processo de crescimento foi tão rápido que a comunidade mais antiga, que é
também ligada às tradições do lugar, não soube como agir, não se preocupou em agir ou não
 
  76
 

quis agir. Ou talvez até tenham agido, mas não em união, ou não tinham força suficiente para
fazer a mobilização necessária no momento. Ou ainda, aqueles que chegaram não se
entrosaram, ou não foram integrados pelos que já habitavam a terra. Pode ainda ter acontecido
um pouco de cada coisa junto a outros fatores. O que mais chama a atenção é a questão da
forte identidade do(a) itapuanzeiro(a) nato. Se, por um lado, isso demonstra um sentimento de
pertencer e impulsiona ações no sentido de cuidar do lugar, por outro lado, para aqueles que
chegam, isso pode representar espinhos que machucam a identificação que está sendo
construída pelos novos moradores perante o lugar, podendo levar a um afastamento e
recolhimento ao invés da aproximação.
Outra questão são os interesses dos novos moradores, que podem ser diversos e até
opostos ao modo de vida e valores dos itapuanzeiros que já estavam na terra. Muitos
migrantes ocuparam áreas inapropriadas para moradia e ali permaneceram sem assistência
básica de sobrevivência, sem políticas públicas de todos os tipos junto às regiões mais pobres
e o Bairro da Paz se encontrava nessa realidade. Ficaram esquecidos pela sociedade tentando
sobreviver.
Estes migrantes, alguns numa busca por elevar a autoestima, criaram novas culturas
recriando o que tinham acesso, como também outros passaram a consumir o que a indústria
cultural estava a oferecer. Nesse momento, de outro ponto de vista, a especulação imobiliária
facilitava a chegada de mais pessoas com um maior poder aquisitivo. São mundos diferentes e
com particularidades diversas.
Para Barros (2005, p. 68), “com as novas diásporas, aparecem sujeitos que,
dispersados de sua terra natal, não assimilam completamente a cultura das sociedades para
onde migraram, nem abandonam os laços com suas culturas de origem.” Os indivíduos
precisam então, a partir da experiência cultural, substituir o domínio da tradição pelo da
tradução, tentando compreender e ou se deixar “levar” pelos novos e, ao mesmo tempo,
velhos costumes.
Com isso, a comunidade de Itapuã passa a reagir, buscando reconstruir, revitalizar
como é chamado pelos moradores os eventos e manifestações culturais locais a partir de um
esforço das suas “lideranças” em organizar, apoiar e desenvolver eventos mobilizadores de
sujeitos através de táticas diversas com intuito estratégico de fortalecer as raízes identitárias e
comunitárias se utilizando da cultura.

 
  77
 

Mais relevante que lamentar a perda de uma suposta autenticidade, no


entanto, é tentar analisar as crenças, costumes, festas, valores e formas de
entretenimento na forma em que se apresentam hoje, pois a cultura, mais que
uma soma de produtos, é o processo de sua constante recriação, num espaço
socialmente determinado. (MAGNANI, 2003, p.26).

E sem a intenção de criar padrões conceituais, mas na tentativa de compreender os


eventos culturais em Itapuã arrisco apontar algumas características dos eventos. Aqueles mais
focados na memória com repetição de rituais mais antigos ou que relembram fatos históricos
locais através de manifestação cultural, como o dia de São Tomé em Itapuã, o Terno de Reis,
os ranchos, o momento do Bando Anunciador da Lavagem, entre outros; aqueles voltados
para a celebração ou homenagem a símbolos religiosos ou pessoas importantes para o lugar,
em que o ritual e a ancestralidade estão fortemente presentes, como o dia de homenagem à
Dona Francisquinha em Itapuã, também o São Tomé; aqueles que estimulam a comunicação
entre os seus participantes, ou seja, a socialização, podem ser apenas membros do lugar ou
também de lugares diversos. Este último se refere a eventos que têm surgido mais
recentemente. As Caminhadas pelas Dunas, Caminhada ao Bonfim, Caminhada até
Arembepe, entre outros. É importante frisar que a maioria das manifestações possui todas
essas características podendo ainda apresentar outras não citadas acima.
Algumas pessoas vêm se utilizando da liberdade da “arte de fazer” para agir e tentar
mudar o que está posto. Inúmeras são as iniciativas que articulam a “fé” na mudança da
realidade com a própria iniciativa humana em diminuir as distâncias entre as classes sociais,
que a sociedade brasileira, baiana e mais especificamente de Itapuã vem passando. Tomando a
visão de Paulo Freire (2005, p. 127-130), a comunidade de Itapuã faz os seus “círculos de
investigação temática” em seus encontros e desencontros pelo bairro, nos quais a ação
educativa se prolonga enquanto ação cultural libertadora nos eventos e manifestações da
cultura popular.
Dessa forma, o bairro de Itapuã demonstra-se atento aos acontecimentos e
mudanças, ora utilizando-se de astúcia para agir, ora "conformando-se", e assim os indivíduos
têm problematizado e se conscientizado sobre questões que afetam tanto a si mesmos como
aos outros e a todo o espaço no qual habitam. O exercício de aproximação com a memória
possibilita exercitar a imaginação dos sujeitos, e exemplos de situações e ações de indivíduos
atuantes num tempo passado envolvidos com táticas cotidianas servem de inspiração para o
tempo presente e futuro.
Portanto, a diversidade toma conta de Itapuã e interessante seria se a comunidade
aprendesse a se comunicar, a se respeitar para, quando fosse necessário estar no mesmo
 
  78
 

espaço, haver maturidade suficiente no sentido de encontrar pontos convergentes. Enquanto


essa tentativa é feita por uns poucos, muitos assistem tudo acontecer de fora, não tomam
partido e a história que estava sendo escrita na base da luta e da resistência das tradições pelos
ancestrais toma rumos que só o futuro pode responder com o presente de ações.
A partir da leitura de Barros (2005), é possível trazer o olhar do autor perante as
avenidas de contorno de Belo Horizonte e La Plata na Argentina para Itapuã, em que no
espaço temporal de um século o bairro foi reapropriado e ressignificado diversas vezes por
múltiplos sujeitos, que em seu cotidiano fizeram e refizeram as suas redes de sociabilidade. O
lugar foi transfigurado, restando apenas a memória documentada e dos que viveram o tempo
passado. O momento presente mostra identidades convergentes e contrastantes na disposição
de realidades diversas na cidade. O bairro é então atualizado pela cultura, pelos processos
educativos e comunicacionais.
E foi em meio à teoria sobre educação, cultura e cidade, paralelo às histórias,
transformações e ao cotidiano do bairro de Itapuã que a pesquisa realizou-se. Foram dois
caminhos simultâneos, que dialogaram entre si constantemente, pois ao mesmo tempo em que
o levantamento documental e bibliográfico acontecia, a aproximação e presença em campo de
pesquisa eram vivenciadas. Desta forma, a pesquisa tomou um rumo itinerante requisitado
pela própria dinâmica, sendo semelhante à descida de um riacho pelas montanhas, que cria
seu próprio caminho com o passar das águas na terra, contornando os obstáculos e fazendo
trocas com o seu entorno, nutrindo e sendo nutrido até desaguar, formando um caldo de
conteúdo, que reúne um pouco de todo o percurso percorrido.
Buscou-se conciliar as pressões internas do programa de pós-graduação da
necessidade de publicação, como também do campo de pesquisa em Itapuã em dar um retorno
ao lugar e ainda às pressões pessoais frente ao compromisso assumido. Um desafio foi
produzir conteúdo articulado com diferentes áreas do conhecimento, atual, ligado à realidade
social e que pudesse responder aos questionamentos e objetivos da pesquisa, provocando
reflexões e transformações.
A formação enquanto pesquisadora mistura-se ao cotidiano traçado durante toda
vida. A curiosidade por conhecer mais sempre foi um estímulo guia para a investigação, no
entanto, ainda não havia despertado para compreender melhor o bairro em que nasci, cresci e
tive grande parte da formação. Dissociar a investigação da história de vida e não levar o
contexto pessoal em consideração seria negar todo o aporte teórico no qual me baseio e
principalmente os pensamentos, ações e sonhos que se criaram desde o primeiro momento de

 
  79
 

escrita do projeto e que têm relação com a existência da


pessoa/moradora/autora/pesquisadora.
Nasci na década de 1980 na cidade de Salvador. Meus pais haviam, na época,
construído uma casa no bairro de Itapuã, que no período era considerado um lugar distante do
centro, pequeno e preferido pelos veranistas. Meu avô por parte de pai - que nunca frequentou
escola e aprendeu a ler durante suas idas e vindas do interior da Bahia para a capital - tornara-
se morador do centro da cidade e não aprovava a decisão do filho de morar tão distante,
preocupado com a educação de seus netos, pois, eu, e posteriormente um irmão, seríamos
criados em um lugar que não nos proporcionaria contato com pessoas que possuíam “cultura”
e consequentemente não faríamos boas amizades, influenciando decisivamente na nossa
formação. Não houve jeito, meus pais, ambos advindos do interior, de Vitória da Conquista e
Itapetinga, como eram comuns no período as migrações para as capitais em todo o Brasil,
pretendiam dar a oportunidade aos seus filhos de terem a mesma infância tranquila que
tiveram.
Criada numa casa cercada pela natureza, numa rua de barro, tive a oportunidade de
vivenciar jogos, brincadeiras e manifestações da cultura popular. Baleado, amarelinha, corrida
de tampinha, gude, esconde-esconde, pega-pega, golzinho, roubar manga no vizinho, andar de
bicicleta, escutar histórias na beira da fogueira em noites de São João e ainda visitar todas as
casas da vizinhança para degustar as comidas típicas. Milho verde, amendoim, bolo, pipoca,
paçoca. Contato com a praia, areia, ondas do mar.
Tive aproximação diária com a rua e afirmo que ela teve uma grande importância
no meu desenvolvimento humano. Muito traquina, sempre estava subindo ou descendo dos
muros e árvores para arrancar frutas. Com personalidade forte, questionadora e curiosa, me
interessava por assuntos diversos, o que ficava evidente quando em meio a qualquer conversa,
normalmente surgia, de forma natural, muitos “por quês” na ponta da língua.
Aos sábados, ajudava meu pai a fazer feira, que na época possuía barracas
espalhadas na calçada próximo ao mercado municipal de Itapuã. Aprendi a negociar tanto
com os feirantes como também com meu próprio “velho”, pois era preciso ter jogo de cintura
e malandragem para convencê-lo a comprar supérfluos que qualquer criança se interessa.
Minha formação tem muito a ver com quem sou e com minha(s) identidade(s).
Então, além da rua, eu sou também a escola, a universidade, os amigos, os colegas, os
professores. Eu sou mais ainda meus pais, que me criaram com liberdade para escolher os
caminhos do coração. Eu sou de Itapuã. Mas houve quem dissesse que não. Talvez estivesse
certo. Talvez não. Mais à frente saberemos.

 
  80
 

As festas da cidade de Salvador, as famosas lavagens, normalmente coincidiam


com o fim das férias e meu pai fazia questão de nos levar em algumas, eu e meu irmão,
principalmente à lavagem de Itapuã. No entanto, apenas assistíamos o cortejo das baianas,
blocos e grupos culturais locais passarem, sendo que nunca soubemos ao certo quem eram
aquelas pessoas envolvidas com a manifestação cultural ou o porquê daquilo tudo existir. E
durante um bom tempo, não me preocupei em saber nada disso, pois me encontrava envolvida
com colegas da escola e da rua, que não tinham envolvimento com essa cultura popular. Hoje,
percebo que a escola me negou a existência de muitos desses conhecimentos provenientes da
cultura da nossa cidade, tendo eu o mínimo envolvimento a partir da educação familiar que
meus pais vinham se esforçando para me dar.
Ao concluir a graduação em Educação Física, inicio junto a uma colega de turma
um projeto intitulado “Programa de bem estar e cultura corporal do movimento humano”, que
se propôs a trabalhar o movimento do ser humano no seu sentido mais amplo, relacionando o
cotidiano dos participantes com a cultura corporal, enfatizando a união de grupo, valores e
sentimentos com uma metodologia participativa na construção das aulas. O trabalho tem
início no bairro da Vasco da Gama e através de convites e necessidades de pessoas em outros
lugares novas turmas são abertas, inclusive uma delas em Itapuã, na Casa da Música. O
projeto se transforma na Associação Bem Estar e Cultura Corporal - ABECC, sem apoio
financeiro e tem sido mantido pela força de vontade de todos os envolvidos.
Ingresso no mestrado em Educação na linha Educação, Cultura Corporal e Lazer,
ao estudar os processos educativos que perpassam os movimentos culturais da comunidade de
Itapuã, mais especificamente a festa da lavagem. Esse estudo foi motivado no íntimo pessoal
pela vontade de conhecer melhor o bairro de Itapuã e de obter uma aproximação com sua
riqueza cultural, o que passou a acontecer concomitantemente com o período da pesquisa e
das aulas ministradas na comunidade. A ida a campo colocou-me em contato com outras
pessoas interessadas na investigação, surgindo a possibilidade de constituir em coletivo um
documentário audiovisual a respeito da presente dissertação.
Para o caminhar estratégias etnográficas como a observação participante,
entrevistas, gravações em audiovisual e diário de campo foram utilizadas como meio de
responder aos questionamentos feitos. Como nos diz Dumazedier (2008, p. 21), “antes de
filosofar, precisamos observar e situar”, nesse sentido, o olhar apresentou-se como um
importante meio de aproximação com o campo empírico, buscando trazer à tona tudo aquilo
que tantos anos de moradia no local não havia ainda despertado. Esse olhar mais apurado pela
cultura de um bairro tão relevante na cidade, no Brasil e no mundo.

 
  81
 

A observação participante é muito utilizada na etnografia e segundo Angrosino


(2009, p. 32), “os membros da comunidade estudada concordam com a presença do
pesquisador entre eles como um vizinho e um amigo que também é, casualmente, um
pesquisador”. Para Macedo (2004, p.154), é como uma busca pelo conhecimento, onde este é
gerado pela interação com a prática participativa. O pesquisador passa a observar de dentro do
processo, envolve-se e percebe com mais facilidade o seu cotidiano. É uma técnica que possui
como desvantagem o risco da não aceitação do pesquisador por parte do grupo. No entanto, o
fato de residir no bairro desde que nasci contribuiu de forma positiva nessa aceitação e ainda
para que a convivência com o grupo fosse mais espontânea.
Alguns momentos bem particulares do lugar são descritos como forma de conduzir
o leitor por dentro do cotidiano do bairro, das comunidades até chegar à temática das festas.
Dentro das produções culturais que antecedem o momento da Lavagem de Itapuã, existem
encontros, reuniões e rituais que têm relação com a cultura ancestral do lugar e que procurei
descrever e trazer a fala de moradores.
Existe uma dinâmica nas festas populares que necessita de toda uma articulação e
construção ao longo do ano, sendo na verdade onde os processos educativos de reconstrução
cultural mais acontecem e chegam a influenciar diretamente na questão identitária. Ou seja,
não é apenas no dia propriamente dito que o trabalho se pauta, mas nos bastidores, no dia a
dia, nos espaços de socialização, nos encontros da comunidade, nas reuniões, nas
manifestações, nos ensaios dos grupos culturais, entre outros. Por isso também a utilização do
termo processo, pois esta palavra traz a compreensão de que a sequência dos fatos apresentam
relações e caminham para compor um corpo só a partir da elucidação do movimento cultural
do conjunto que constrói ao tempo que reconstrói.
A participação na comunidade procurou trazer o olhar crítico, questionador e
reflexivo, buscando dialogar as percepções do campo com a literatura. Mesmo nascendo e
crescendo no bairro, nunca fui muito ligada às manifestações culturais locais e esse fato
contribuiu para que eu não desenvolvesse um forte sentimento de pertencimento, que
impulsionasse a participação nos processos políticos, culturais e sociais ligados ao bairro,
sendo que a participação e convivência, fruto da imersão no cotidiano local, ajudou a
despertar essa preocupação com o lugar onde moro, pois acredito que devemos começar a
transformação internamente, para depois contagiar o entorno.
A investigação parte então primeiramente do conhecer pelos sentidos, sendo que o
fato de ser moradora do lugar apenas aumentou a responsabilidade enquanto pesquisadora em
buscar os verdadeiros fatores que têm relação com as mudanças dos espaços de socialização,

 
  82
 

costumes e valores, principalmente porque se sabe que esse processo de reconstrução cultural
pelo qual a comunidade de Itapuã vem passando não é uma particularidade desta, e sim um
movimento que tem ocorrido e que já ocorreu, de outras maneiras, em muitas outras
comunidades imersas na totalidade.
O diário de campo foi uma forma de registrar o que era observado, as falas, os
eventos e as próprias vivências na comunidade. É um recurso importante na etnografia para o
pesquisador, pois ao mesmo tempo em que este descreve o momento, intercala suas
observações com reflexões pessoais. Portanto, é imprescindível que esse diário faça parte da
bagagem de mão do pesquisador e o acompanhe nos momentos da pesquisa empírica.
Assim, para perceber o significado das ações dos envolvidos mais a fundo, fez-se
necessário ouvir com atenção os agentes, o que aos poucos deu uma ideia geral das principais
discussões, problemáticas e ações da comunidade. E para que houvesse um aprofundamento
das percepções, outras técnicas de coleta de dados entraram em cena, como a entrevista.
Estas serviram para possibilitar que o próprio ator social dissesse o que pensa e
sabe, descrevesse o que viveu, o que vive e o que ouviu, respondendo questões que buscaram
abordar as temáticas relativas ao bairro, à identidade, à cultura, à educação e principalmente à
lavagem de Itapuã correlatas a todos esses conceitos. Paulo Freire (2000, p.12) diz ser
fundamental que os indivíduos envolvidos direta ou indiretamente com a prática sejam
ouvidos, pois as massas populares necessitam de afeto, atenção, tanto quanto de uma vida
mais digna.
Dessa maneira, foram entrevistadas treze pessoas que durante a fase de observação
demonstraram possuir ligações com a temática da pesquisa, sendo que entre estes estiveram
presentes sujeitos da comissão organizadora da lavagem de 2011, sujeitos de grupos e
manifestações que saíram na lavagem, antigos organizadores da festa e ativistas culturais do
bairro, ou seja, o critério foi baseado na ligação das pessoas com a cultura local, identificados
junto a comunidade a partir do seu prestígio enquanto possível representante ou liderança e
que também tivesse envolvimento com a festa da Lavagem. Assim, “os que são considerados
em nível de liderança nas comunidades, para que assim sejam tomados, necessariamente,
refletem e expressam as aspirações dos indivíduos da sua comunidade.” (FREIRE, 2005, p.
141).
É importante frisar ainda que todos os entrevistados preencheram formulário, que
consta nos anexos, autorizando a sua participação na pesquisa e divulgação dos conteúdos das
falas e imagens.

 
  83
 

A descrição dos atores sociais se deu através das percepções construídas nas
vivências em campo, mas principalmente se baseou na apresentação que os próprios fizeram
no dia da entrevista. Os detalhes pessoais são de fundamental importância para que o leitor
possa saber um pouco sobre o entrevistado e a partir daí imaginar o perfil de cada um.
Juntamente com as descrições da pesquisadora, o leitor pode compreender um
pouco sobre Itapuã, suas tradições culturais, sua festa de largo e a questão da educação em
meio a isso tudo. “Deve realmente ser excitante um trabalho assim. Sentir que a pessoa, ao
contar pedaços de sua história, percebe que, no fundo, sua história pessoal não teria sentido
fora da história social.” (BETTO; FREIRE, 2000, p.84).
Algumas pessoas vestiram a camisa de seus blocos, de seus grupos, outras
colocaram camisa de santo, outros não se preocuparam com isso, mas fizeram questão de
mostrar algo mais, como fotografias, como seus materiais artísticos, suas criações, outros
fizeram café, me deram lanche, me receberam na maioria das entrevistas em suas casas e
foram muito receptivos.
O primeiro a ser entrevistado foi Seu Menezes4. Ele é formado em eletrônica,
serviu à Aeronáutica, trabalhou vinte anos em Itapuã consertando televisores e outros
eletroeletrônicos. Organizou durante dez anos tanto a lavagem de Itapuã como também os
carnavais do lugar. Além disso, é considerado um mestre, um inventor, mesmo não admitindo
ser, pois cria e recria uma série de coisas das mais diversas sem ter tido mais que o primeiro
grau em estudos formais. Durante a visita, mostrou algumas de suas invenções, a exemplo do
“Foguete”, “arma de soltar pétalas”, “caixa de som em forma de quadro embutido na parede”,
dentre outros. Aos 80 anos e morador de Itapuã desde 1964, conta que quando chegou ao
bairro a maioria das pessoas eram negros, sendo que quem não era, estava veraneando ou
tinha resolvido morar no local, como foi o caso dele. Em sua fala, através de suas histórias,
Seu Menezes faz questão de salientar que as pessoas que viviam em Itapuã tinham uma
cultura e modo de se relacionar bem particulares e principalmente ligados à cultura africana.

                                                                                                                       
4
Entrevista concedida no dia 19 de outubro de 2011.  
 
  84
 

Figura 8 - Seu Menezes

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

Amadeu Alves5, morador do bairro desde que nasceu, em 1967, é músico,


compositor, gestor cultural e atual coordenador da Casa da Música. Além disso, participa do
grupo As Ganhadeiras de Itapuã, e é aluno da UFBA no curso de Humanidades.
Figura 9 - Amadeu Alves

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

Ulysses6, morador nativo de Itapuã desde 1941, hoje aos 70 anos, além de ter sido
pescador, pedreiro e ser atualmente músico, é fundador de uma série de grupos, a exemplo do

                                                                                                                       
5
Entrevista concedida no dia 31 de outubro de 2011.  
6
Entrevista concedida no dia 02 de novembro de 2011.  
 
  85
 

Ilê Aiyê e do Filhos de Gandhy. Nunca teve tempo de estudar, pois desde os 12 anos de
idade, quando seu avô falece, começa a trabalhar para sustentar a avó e posteriormente a
família que constitui. Funda o Korin Nagô, grupo de afoxé em que é o presidente, revivendo,
após 38 anos o nome do grupo de dança que era liderado por seu irmão, falecido na França.

Figura 10 - Ulysses

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

Cuca7 é morador do bairro de Itapuã desde que nasceu, há 36 anos, músico


percussionista, compositor, é uma das pessoas que está à frente da Escola de Samba Unidos
de Itapuã, que será abordada mais adiante.
Figura 11 - Cuca

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

                                                                                                                       
7
Entrevista concedida no dia 28 de outubro de 2011.  
 
  86
 

Seu Reginaldo8, morador de Itapuã há 38 anos, mais conhecido como Seu Regis, é
compositor, cantor e atua junto ao grupo As Ganhadeiras de Itapuã. Atuante na comunidade
em organizar eventos culturais, também administra o Bar Rumo do Vento, que segundo ele
nem é mais um comércio, pois se tornou um ponto de encontro de suas amizades, onde
acontecem vários sambas no bairro.
Figura 12 - Seu Régis

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2010)

Ives Quaglia9, morador de Itapuã desde que nasceu, é licenciado em desenho e


plástica pela EBA-UFBA, professor efetivo do Estado da Bahia há quase 20 anos, artista
plástico, militante da comunidade, pois sempre participou dos processos políticos de Itapuã,
atualmente é coordenador da comissão de Educação da Associação de Moradores de Itapuã -
AMI, fundador do Grupo Cultural Galera do Mar, no qual insere-se a “baleia”, mais
conhecida como “festa da baleia” e o “bando de papel”.

                                                                                                                       
8
Entrevista concedida no dia 12 de novembro de 2011.  
9
Entrevista concedida no dia 28 de outubro de 2011.  
 
  87
 

Figura 13 - Ives

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

Eurico10, 52 anos, morador do bairro há 34 anos, é líder religioso, denominado Tata


de Inquice, hoje responsável pelo terreiro Aloyá, aposentado pelo Estado da Bahia onde
trabalhou durante 30 anos na Polícia Militar-PM. Fundador e atual coordenador do Núcleo de
Religiões de Matrizes Africanas da PM, é irmão professor da Irmandade dos Homens Pretos
da Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Carmo, e membro do Conselho de
Desenvolvimento da Comunidade Negra – CDCN e do Conselho Municipal da Comunidade
Negra- CMCN.
Figura 14 - Eurico

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

                                                                                                                       
10
Entrevista concedida no dia 15 de novembro de 2011.  
 
  88
 

Josélio11 é morador de Itapuã há 44 anos e todos os seus filhos nasceram no lugar.


Técnico em eletricidade pelo Senai, funcionário público estadual atuando na parte de
iluminação do Parque de Exposições, graduado em comunicação pela Unibahia e matriculado
como aluno especial no mestrado em Memória e História na Universidade do Estado da Bahia
– Uneb. É um dos representantes do Malê Debalê, da cultura negra na Bahia e do movimento
negro.

Figura 15- Josélio

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

Celso12 é músico e se diz também um faz tudo, porque para ele não existe dizer que
não sabe e sempre diz “vou tentar”, morador do bairro de Itapuã desde que se entende como
gente, ou seja, desde que nasceu, teve a família revezando a moradia entre o centro da cidade
durante a semana e nos fins de semana em Itapuã para que todos os irmãos pudessem estudar
devido à dificuldade do transporte na época. Filho de Dona Nissú, é conhecido também por
algumas pessoas como “Swing”, que segundo ele é um apelido de “herança da lavagem de
Itapuã”.

                                                                                                                       
11
Entrevista concedida no dia 01 de novembro de 2011.  
12
Entrevista concedida no dia 19 de Outubro de 2011.  
 
  89
 

Figura 16 - Celso

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

Rosenilda13 mora no bairro de Itapuã desde que nasceu e enfatiza isso dizendo que
seu umbigo foi jogado na pedra de Itapuã. É neta de Dona Cabocla e na comunidade é mais
conhecida como Rose. É graduada em Arquitetura e Urbanismo e fez o trabalho de conclusão
do curso sobre as três principais praças de Itapuã, propondo mudanças que atendessem à
comunidade. Fez parte da comissão organizadora da lavagem no ano de 2011, saindo junto ao
cortejo das baianas.
Figura 17 - Rose

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

                                                                                                                       
13
Entrevista concedida no dia 13 de novembro de 2011.  
 
  90
 

Bujão14, 53 anos, é morador do bairro de Itapuã desde que nasceu, filósofo, faz
parte da AMI e compôs a comissão de organização da lavagem, sempre muito ligado aos
processos políticos do lugar.
Figura 18 - Bujão

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

Biriba15, 33 anos, de nome André Luiz, é morador do bairro de Itapuã desde que
nasceu, praticante de capoeira há 23 anos, aluno do mestre Coentro, faz um trabalho com a
capoeira de cunho social junto ao grupo fundado por ele mesmo chamado de “Vadiação
capoeira”.
Figura 19 - Biriba

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

                                                                                                                       
14
Entrevista concedida no dia 11 de dezembro de 2011.  
15
Entrevista concedida no dia 09 de novembro de 2011.  
 
  91
 

Sidney Argolo16, 33 anos, morador do Bairro da Paz, músico, é um líder


comunitário que procura aliar a arte e a cultura à preservação do meio ambiente através do
grupo Étnico Cultural da Bahia, que desfila na lavagem de Itapuã e presta serviço social
durante o ano todo através de aulas de dança, oficinas de reciclagem com o Grupo de Artes
Manuais (GAM), no qual são elaboradas roupas para os jovens se apresentarem pelas próprias
mães, que, ao levarem as crianças para as atividades, ficam no mesmo espaço para ajudar nos
trabalhos. Existe também um grupo de coral, de teatro, de instrumentos musicais, tendo como
objetivo preservar a identidade de matrizes africanas, mas também fortalecer a sociedade e a
comunidade do Bairro da Paz. Sidney diz que resolveu colocar seu grupo na rua, ou melhor,
na lavagem, porque sempre percebeu que esta era uma vitrine para manifestar a força do povo
e a cultura. Os atores,

[…] na proporção que discutem o mundo da cultura, vão explicitando seu


nível de consciência da realidade, no qual estão implicitados vários temas.
Vão referindo-se a outros aspectos da realidade, que começa a ser descoberta
em uma visão crescentemente crítica. Aspectos que envolvem também
outros tantos temas. (FREIRE, 2005, p. 138).

Figura 20 - Sidney

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

                                                                                                                       
16
Entrevista concedida no dia 08 de novembro de 2011.  
 
  92
 

Interessante relatar que durante as entrevistas foi possível refletir questões que
normalmente não seriam pensadas e nem discutidas e há a certeza de que as entrevistas
serviram para reforçar pensamentos, como também para elucidar outros, sendo também uma
forma de despertar os sujeitos envolvidos, inclusive a pesquisadora.
O trabalho acadêmico foi um meio dos entrevistados passarem adiante histórias,
problemas, discussões, como também de poder fazer suas críticas, denúncias e desabafos.
Estes abriram seus corações junto com seus pensamentos e idéias, confiando na postura e
responsabilidade da pesquisadora em repassar e interpretar o que estava sendo dito. E foi
justamente o que se buscou fazer, escutar com atenção, filtrando cada palavra com o que já
havia sido vivido, sentido, observado, ouvido pelas andanças no bairro. A interpretação se deu
na tentativa de alcançar o que há por trás das falas dos atores sociais, buscando o sentido e o
significado do discurso e do conteúdo explicitado, imersos numa construção social de
interações.
Durante o texto, podem aparecer junto às citações relatos do caderno de campo ou
trechos das entrevistas, contendo exatamente a falas dos moradores. Isso foi uma escolha
proposital justificando-se pelo fato de que o objetivo era aproximar a sistematização dos
dados recolhidos na bibliografia e em campo, confrontando e complementando ambos os
lados.
Seguindo os ensinamentos de Macedo (2004, p. 215), houve a constante
preocupação com a problemática e os questionamentos da pesquisa para que fosse produzido
um texto claro, acessível, coerente e organizado. Eisner (1981 apud MACEDO, 2004, p. 215)
recomenda a utilização do “eu” para uma produção bem pessoal e que demonstre como a
participação do pesquisador foi significativa. Essa forma de escrever não enfatiza a
neutralidade e objetividade, mas as aproximações com o modo etnográfico de escrita
permitem que seja acentuada a subjetividade e o protagonismo do autor na construção do
conhecimento.
Nesse sentido, procurei fazer referência do campo à fundamentação teórica e me
incluo na primeira pessoa não apenas por ter feito parte do processo, mas principalmente
porque sou um exemplo do que é retratado na pesquisa. As mudanças no bairro refletiram na
minha história de vida e a partir dessa experiência de aproximação proposital passei por
transformações que mudaram formas de ver e viver em Itapuã e junto à cultura popular.
“Quanto mais investigo o pensar do povo com ele, tanto mais nos educamos juntos. Quanto
mais nos educamos, tanto mais continuamos investigando.” (FREIRE, 2005, p.118).

 
  93
 

Acredito assim como as obras de Paulo Freire e Frei Betto junto a tantos outros
autores aqui utilizados, que fazem a ligação de seus escritos com sua própria vida, com as
suas experiências do cotidiano, pois para mim é prejudicial e pouco verdadeiro fazer
separação desses aspectos, da vida pessoal, da prática e da teoria. Por isso, diversas vezes
neste trabalho o leitor irá se deparar com descrições que foram vividas e sentidas no campo.
Não quero com isso me comparar com esses autores, apenas demonstro admiração para com
essa forma de escrita traduzida do que se pensa, vê, sente, percebe e ouve.
Esse percurso de pesquisa me fez compreender tanto a comunidade de Itapuã e o
bairro como a mim mesma. Portanto, faço parte deste processo educativo aqui dissertado.
Busquei fazer isso de forma crítica para que o material final possa contribuir com o lugar em
estudo, com o leitor, ao mexer com questões que tem relação com sua vida pessoal, com
outros pesquisadores, para que seja mais um instrumento que possa servir de exemplo de
como o desenvolvimento humano tem sido vivido na cultura popular.
Milton Santos (2009, p.156-157) ao falar do Brasil disserta sobre a existência de
duas nações, uma passiva e uma ativa e até brinca com as nomenclaturas. Segundo ele,
ironicamente, a ativa, ou seja, aquela que obedece à globalização perversa, onde prevalece o
sistema ideológico que vê a prosperidade como riqueza, tem relação com os que aceitam,
pregam e conduzem as modernizações em função do dinheiro. A passiva tem relação com a
defesa dos interesses de uma maioria, “mantém relações cotidianas, que criam,
espontaneamente e à contracorrente, uma cultura própria, endógena, resistente, que também
constitui um alicerce, uma base sólida para a produção de uma política”.

Aqui, o papel dos intelectuais será, talvez, muito mais que promover um
simples combate às formas de ser da “nação ativa” -, devendo empenhar-se
por mostrar, analiticamente, dentro do todo nacional, a vida sistêmica da
nação passiva e suas manifestações de resistência a uma conquista
indiscriminada e totalitária do espaço social pela chamada nação ativa.
(SANTOS, 2009, p.158).

E é justamente esse papel que procurei representar ao mostrar as artes de fazer, as


resistências, o modo de vida da nação passiva. Aqui o olhar estará focado no processo
educativo que a comunidade de Itapuã vem passando nos eventos culturais, tendo como foco
principal a sua festa, a lavagem de Itapuã. Perpassam esse processo aprendizados diversos a
exemplo dos grupos musicais, que ensaiam durante o ano para se apresentar na lavagem;
aprendizados referentes à mobilização comunitária, levando-se em consideração que as
reuniões são abertas ao público e que a comissão de organização é eleita pelos próprios

 
  94
 

moradores; aprendizados com a própria vivência no dia da festa e que tem relação direta com
a formação da identidade no lugar, além da humanização que acontece nos momentos de
lazer, ligados às interações dos participantes uns com os outros, proporcionando, portanto,
uma série de processos formativos e que comunicam a educação e as identidades.
Por isso, para colocar o olhar na lavagem, o bairro e seu modo de vida são
apresentados para que seja possível o entendimento acerca das discussões trazidas por
entrevistados e pesquisadora. Assim, para falar da festa da lavagem é preciso que o leitor
perceba como o significado de conceitos como cultura, educação, festa, identidade e
comunidade, que se encontram ligados ao espaço, são compreendidos na literatura e
posteriormente pelos atores sociais. Nesse sentido, a cidade torna-se um importante cenário
junto às novas transformações globais, que vai influenciar nas particularidades dos bairros,
demonstrando uma ligação em cadeia desses conceitos, que se encontram entrelaçados,
unidos, na qual uma coisa afeta a outra repetidamente a partir de combinações diferentes.
Magnani (2003, p.26) argumenta que “aquelas festas, rituais, tradições populares e
formas de entretenimento constituem um espaço fecundo para a análise desse processo de
mudança”. Para o autor, as transformações fazem parte da cultura, e ao invés das lamentações
pela suposta perda de autenticidade, esta deve ser observada como um constante processo de
recriação e que vem acompanhando a história da convivência entre as pessoas.
Assim, compreender a cultura de um lugar é fundamental para que seja possível
uma interação pacífica, mesmo que venha a ser conflituosa, mas respeitosa entre os seus
indivíduos e possibilite comunicação e até organização no seu meio e fora dele, ainda que
nesse lugar culturas diferentes também estejam presentes. Esse respeito em relação à
diversidade cultural é fundamental para que seja possível uma união de forças em função de
objetivos comuns e do interesse de uma maioria. Para isso, foi e é preciso contornar tensões a
partir de táticas que não se referem ao enfrentamento, ou a execução de ações individuais,
mas a um diálogo respeitoso, que permite a compreensão do que os sujeitos têm a dizer, seus
argumentos, ideias e ações, criando dessa maneira um ambiente favorável ao acolhimento das
contribuições.
As mudanças fazem parte da realidade das sociedades atuais e têm trazido como
consequência, entre tantas, as confusões identitárias, pois os indivíduos não mais se veem
como seres sólidos e fixos, mas fragmentados e dispersos a depender de cada momento e
ambiente. Essa convivência com a pluralidade cultural contribui para que identificações com
outras culturas aconteçam, no entanto esse fato tem resultado no que Hall (2006) chama de
“crise de identidade”, que todos que fazem parte dessa globalização estão predispostos a

 
  95
 

passar. Para tentar compreender essa crise, o autor parte de três concepções de identidade a
partir dos sujeitos do Iluminismo, sociológico e pós-moderno, compondo suas evoluções ao
longo dos períodos históricos.
O primeiro parte da ideia de que o indivíduo é um ser pronto, dotado de razão e
consciência, no qual “o centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa”. (HALL, 2006,
p.11). O segundo parte do pressuposto que o indivíduo não é formado sozinho, mas também
pela interação com outros, que considere importante e que mediam os valores, sentidos e
símbolos. Ou seja, “o sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas
este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as
identidades que esses mundos oferecem”. (HALL, 2006, p.11). O terceiro, ao levar em
consideração as mudanças da sociedade moderna, é um sujeito fragmentado por várias
identidades, sendo algumas dessas fragmentações até contraditórias, como já dissemos
anteriormente. “A globalização influencia os processos de identificação das pessoas porque
põe diante delas ‘novos outros’ que atuam como modelos para igualar-se ou diferenciar-se.”
(BRARDA; RÍOS, 2004, p.23).
Essa coexistência do global e do local de uma multiplicidade de manifestações
acaba por produzir uma necessária redefinição das características culturais. A questão,
portanto, não é entender as especificidades da cultura urbana, mas perceber como acontece a
multicultura nesse espaço que ainda é chamado de cidade. (BRARDA; RÍOS, 2004, p. 24,
grifo do autor). Assim, com tantas identificações acontecendo por diversos cantos e o
deslocamento identitário confundindo os sujeitos “em ser ou não ser” que é possível também
identificar-se com as narrativas produzidas no próprio bairro de residência. E isso se dá
através de uma ligação com o lugar, que vai sendo construída com as vivências no cotidiano
local, a comunicação entre os moradores e a criação de vínculos. Desta forma, mesmo que o
indivíduo não pertença à história do lugar, seja um novo morador, mas que se identifica com
este a partir da aproximação com sua narrativa, pode-se ter então um deslocamento que
possibilite articulação com suas diversas outras identidades. Segundo Hall (2006, p.76), estas
são “vínculos a lugares, eventos, símbolos, histórias particulares. Representam o que algumas
vezes é chamado de uma forma particularista de vínculo ou pertencimento”.
Da mesma forma que os indivíduos apresentam respostas a toda essa crise interna,
com seus deslocamentos identitários, as comunidades locais também têm produzido reações,
homogeneizando-se ou fortalecendo-se, dando lugar a novos modos de articulação. Talvez
essa “crise de identidade” nunca cesse, pois o conflito faz parte das relações humanas e do
próprio ser humano, mas quem sabe não seja compreendida para ser mais bem aceita?! Talvez

 
  96
 

esses deslocamentos sejam um caminho para a busca do desenvolvimento humano, que pode
se dar numa direção apenas, focando em uma identidade de cada vez, como também em várias
outras ao mesmo tempo, permitindo contínuos deslocamentos identitários em um curto espaço
de tempo. Desta forma, a identidade apresenta uma constante luta contra a dissolução e a
fragmentação, sendo um “conceito altamente contestado”. Sempre que se ouvir essa palavra,
pode-se estar certo de que está havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar natural da
identidade.” (BAUMAN, 2005, p. 83).
Nesse sentido, é no cotidiano dos lugares que a identidade se constrói e reconstrói a
todo momento. Hall (2006, p. 50) nos mostra que existe todo um contexto que influencia e
organiza as ações dos sujeitos. Este é formado a partir das histórias e memórias que
“conectam seu presente e imagens que dela são construídas”.
Recorrendo ao diário de pesquisa, aqui apresentado como texto, percebe-se que
essa questão do bairro e da comunidade é muito presente nesse universo. É interessante a forte
presença do termo nativo e itapuanzeiro na comunidade de Itapuã. Perdi a conta de quantas
vezes me perguntaram se eu era nativa, ou as tantas afirmações de que eu não era
itapuanzeira, se me enquadrava no conceito ou não.

Figura 21 – Dona Cabocla no samba em sua casa

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2010)

Certa vez, em um dia de samba na casa de Dona Cabocla, logo nos primeiros dias
de aproximação com a comunidade, ao chegar e cumprimentar alguns presentes, um rapaz
veio me perguntar se eu morava mesmo em Itapuã, argumentando que nunca havia me visto
pelo bairro. Neste momento, tive dificuldade de respondê-lo, pois não moro no coração de
Itapuã, mas em um dos seus intrabairros. Expliquei também que não tinha o costume de viver

 
  97
 

Itapuã como um todo, tudo que o lugar oferece, mas apenas alguns locais que se faziam
necessários a partir da minha rede social, que não se encontrava, até então, articulada com a
comunidade ligada às tradições do lugar. Disse: “sou nativa porque nasci e me criei aqui, em
um pedaço do bairro, vivi uma parte, não ele por completo”. Em outras ocasiões a mesma
pergunta surgia: “Você é nativa mesmo?”. E de tanto me perguntarem, passei a perceber o
quanto a questão identitária se fazia presente, era relevante para o lugar e ainda o quanto isso
passou a me afetar. Pois apesar de ser “nativa”, estava ligada a tantos outros lugares além de
Itapuã, além de Salvador, que me vi em uma crise de identidade. Eu era ou não era
itapuanzeira? Afinal de contas, o que significa esse termo? E por que ser ou não ser
itapuanzeira fazia tanta diferença?
E por falar em diferença, além de não ser reconhecida pelas pessoas do lugar, tenho
uma aparência que praticamente denunciava que eu não era daquele local, a cor da pele e dos
cabelos claros. Por ser diferente da grande maioria que ali reside, me destaquei rapidamente
em meio à população, que passou também a me fazer a pergunta “quem é você?”. E vou dizer,
que pergunta difícil! São tantas as respostas, muitas delas já respondidas acima quando traço a
trajetória pessoal, de que sou um emaranhado de coisas, possuímos experiências diversas e
que vão aos poucos formando e constituindo esse quem somos nós.
A ideia dessa mudança no conceito de “identidade nasceu da crise do
pertencimento”. (BAUMAN, 2005, p. 26). Anteriormente à sociedade moderna havia surgido
a necessidade de se ter uma identidade fixa, gerando conflitos na época. Hoje, com a
modernidade líquida, os problemas que causam conflitos são outros e têm relação com o
abandono ou pouco empenho e ineficácia do pertencimento estar ligado a uma série de
definições. Com isso, a identidade fixa perde as âncoras sociais e surge por consequência uma
busca por esse sentimento de pertencimento, que seja capaz de construir uma identidade, no
entanto, essa busca só faz crescer o sentimento de insegurança nos indivíduos, sendo que “o
anseio por identidade vem do desejo de segurança, ele próprio um sentimento ambíguo.”
(BAUMAN, 2005, p.35)

Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm


a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante
negociáveis e renegociáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo
toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de
se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o
“pertencimento” quanto para a “identidade”. (BAUMAN, 2005, p.17).

 
  98
 

Segundo Bauman (2005, p.19), todos os indivíduos estão expostos a uma infinidade
de “comunidades de ideias e princípios” e também possuem dificuldade com relação à
coerência do que os distingue como pessoas. Sobrecarregados de identidades, os indivíduos
passaram a estar total ou parcialmente “deslocados” em toda parte, a não estarem totalmente
em lugar algum. A identidade “fixa” que muitos indivíduos dizem possuir é às vezes uma
forma de sentirem-se seguros, assim como a comunidade pode proporcionar esse mesmo
sentimento. O problema da identidade é, para Bauman (2005, p.22), um dilema sociológico
intrigante tanto para os intelectuais como para a consciência das pessoas em geral, estando,
portanto, no centro das discussões.
Passados seis meses de convivência no lugar, procurando adentrar nos espaços
culturais conhecidos e indicados pelos “locais”, nativos e itapuanzeiros, comecei a me
implicar cada vez mais com o bairro e aos poucos sentindo mudanças nos tratamentos devido
à confiança adquirida. Eu não era mais uma estranha e cada vez mais pessoas sabiam dar
referencias sobre a minha pessoa. O diário de pesquisa revela algumas anotações que
expressam a importância do sentido e significado da palavra itapuanzeira sentida na pele.

Tenho percebido que a comunidade me vê como itapuanzeira, mas ao


mesmo tempo tem me cobrado constantemente participação em todos os
seus eventos e reuniões. Percebo que para ser itapuanzeira é preciso aprender
a ser e isso se dá nesses espaços políticos e culturais do bairro. Para entrar
nesse circuito é necessário ajudar, mostrar que está ali para contribuir. Às
vezes convites são quase que testes colocados ao pesquisador, ou melhor, ao
novo membro da comunidade, pois é assim que me sinto e que me tratam.
Passei a assumir algumas responsabilidades. Despretensiosamente,
aproveitei o lugar para implantar o trabalho que eu já fazia em outros bairros
com a cultura corporal, já que sou graduada em Educação Física e percebi
que isso foi um ponto positivo perante a comunidade que passou a me olhar
com outros olhos. Não apenas como quem só quer “sugar”, mas como quem
tem muito a contribuir de diversas maneiras. Com o tempo, as pessoas que
mais tinham contato comigo, já sabendo da pesquisa, faziam questão de
contar histórias, de ensinar os caminhos que só os nativos passam, os “picos”
que só quem é da “área” conhece. (Diário de pesquisa, 2010).

Da mesma forma que os indivíduos apresentam respostas a toda essa crise interna,
com seus deslocamentos identitários, as comunidades locais também têm produzido reações,
homogeneizando-se ou fortalecendo-se, dando lugar a novos modos de articulação. Talvez
essa “crise de identidade” nunca cesse, pois o conflito faz parte das relações humanas e do
próprio ser humano, mas quem sabe não seja compreendida para ser mais bem aceita?! Talvez
esses deslocamentos sejam um caminho para a busca do desenvolvimento humano, que pode
se dar numa direção apenas, focando em uma identidade de cada vez, como também em várias

 
  99
 

outras ao mesmo tempo, permitindo contínuos deslocamentos identitários em um curto espaço


de tempo. Desta forma, a identidade apresenta uma constante luta contra a dissolução e a
fragmentação, sendo um “conceito altamente contestado”. Sempre que se ouvir essa palavra,
pode-se estar certo de que está havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar natural da
identidade.” (BAUMAN, 2005, p. 83).
Nesse sentido, é no cotidiano que a identidade se constrói e reconstrói a todo
momento. Hall (2006, p. 50) nos mostra que existe todo um contexto que influencia e
organiza as ações dos sujeitos. Este é formado a partir das histórias e memórias que
“conectam seu presente e imagens que dela são construídas”. E nesse movimento de
identificações, aos poucos fui internalizando aprendizados que nem mesmo percebia que
estava adquirindo. Meus sentidos ajudavam a entender cada vez mais a palavra itapuanzeiro
que tinha uma relação com o tempo e o espaço vividos por gerações. Assim,

Toda leitura da palavra pressupõe uma leitura anterior do mundo, e toda


leitura anterior da palavra implica a volta sobre a leitura do mundo, de tal
maneira que “ler mundo” e “ler palavra” se constituam um movimento em
que não há ruptura, em que você vai e volta. E “ler mundo” e “ler palavra”,
no fundo, para mim, implicam “reescrever” o mundo. Reescrever com aspas
quer dizer transformá-lo. A leitura da palavra deve ser inserida na
compreensão da transformação do mundo. (FREIRE, 2000, p.15).

Com isso, qual a relação que a palavra itapuanzeiro tem com a transformação do
mundo e do lugar? Primeiramente, é preciso compreender esse termo cheio de significados e
valores confusos, ligado ao sentimento de pertencer, que inicialmente era designado às
pessoas que nasciam no lugar e que tem sofrido ressignificação de seu conceito com as
atualizações por que o bairro, a cidade e o mundo passaram e continuam passando.
Nessa trajetória, é possível identificar alguns tipos de Itapuanzeiros. Os que
nasceram e têm sua raiz genealógica ligada à história de Itapuã; que nasceram em Itapuã, mas
possuem sua história familiar construída em outros lugares da cidade, do interior da Bahia ou
fora destes perímetros; que não chegaram a nascer em Itapuã, mas escolheram fixar sua
residência no lugar e até aqueles que se mudaram para tentar a vida em outro lugar. Alguns
termos são adicionados e utilizados para fazer a diferenciação como nato, transplantado e
agregado, podendo ser percebidos nas falas de Josélio e Biriba, em que este descreve o
itapuanzeiro nato como um ser que se desenvolveu durante toda a vida de convívio com a
cultura local.

 
 100
 

Então o itapuanzeiro ele é nato e assim ele representa realmente o bairro.


Se você vê um itapuanzeiro você sente logo, aquele ali é nativo. Pelo seu
jeito de ser, jeito de lidar com as pessoas, com as coisas, então o
itapuanzeiro ele é uma marca do seu próprio bairro. (Biriba).

Quando Biriba é questionado sobre o significado do que é ser itapuanzeiro,


responde de forma mais ampla, deixando uma brecha para aqueles que se identificaram com o
lugar, que foram transplantados, que são agregados, poderem se encaixar.

Ser Itapuanzeiro é você respirar esse mar na beira da praia, comer um


peixe, ter essa malandragem que o bairro oferece, essa maresia e ao mesmo
tempo os caras são guerreiro, está sempre driblando as dificuldades. Você
vê que hoje os órgãos competentes virou as costas pro bairro, mas não é por
isso que o bairro deixou de caminhar com todas as dificuldades. (Biriba).

Vale chamar a atenção para dois termos presentes na fala acima: “maresia”, que
pode significar odor proveniente do mar, salitre que promove oxidação, movimento das marés
ou até jeito “preguiçoso” de levar a vida; e o conceito de malandragem, que pode ser
característico de artimanhas, engenhosidades que exigem destreza, percepção aguçada,
carisma e lábia dos indivíduos. No caso descrito, os termos são empregados para falar do jeito
tranquilo, calmo e repleto de esperteza dos itapuanzeiros, sempre atentos às boas
oportunidades, mas que sabem desfrutar do que há de bom nessa vida, as coisas mais simples.
Nessa mesma fala Biriba mostra que a transformação acontece com a força de vontade das
pessoas que vivem o lugar e dão continuidade à cultura. A palavra para alguns não deveria ter
relação com o nascimento, como afirma Seu Regis:

Aqui o pessoal chama itapuanzeiro quem nasce em Itapuã. Eu gostaria que


itapuanzeiro fossem as pessoas que zelam por Itapuã, que divulga o nome de
Itapuã para o bem. Essas pessoas eu acho que deveriam ser chamadas de
itapuanzeiras, que gosta e que zela pelo bairro. Porque tem muitos
itapuanzeiros que não zelam por Itapuã, não têm nenhum cuidado, então
não deviam ser chamados de itapuanzeiros. Itapuanzeiro deveria ser
realmente as pessoas que se dedicam, que divulga o nome do bairro na
cultura, na educação, em qualquer parte, no esporte, qualquer coisa e até
na conservação também, esse eu acho itapuanzeiro, na minha opinião. Mas
aqui se entende itapuanzeiro quem nasce em Itapuã. (Seu Regis).

Assim, mesmo o indivíduo não sendo necessariamente nascido e criado em Itapuã,


este poderia, na visão de Seu Regis, ser caracterizado como itapuanzeiro desde que existisse
uma forte implicação com o lugar. Para Celso, o termo não deveria ser esse, mas sim
itapuoense.

 
 101
 

Ser itapuanzeiro é o seguinte, é você saber viver a cultura do bairro. Uma


pessoa que vem de fora não pode chegar e abrir a boca e dizer que é
itapuanzeiro, não pode. Porque o itapuanzeiro ele chega ali na praia, ele
tira uma pinaúna, ele come a pinaúna ali mesmo, ele vai no mercado, toma
uma e não deixa de cumprir a sua responsabilidade com a sua família. [...]
hoje não dá mais pra ser itapuanzeiro assim 100 % não porque o negócio
está meio diferente. (Celso).

Nesse momento, mais uma vez as mudanças são trazidas para explicar atualização
identitária dos moradores locais. Amadeu fala sobre a mudança do estilo de vida e
exemplifica com a questão da facilidade, disponibilidade e oportunidade dos jovens
ingressarem em outras profissões, que não tem relação com as profissões mais comuns no
bairro, como ser pescador, o que também acabou influenciando nesse jeito de ser itapuanzeiro
ir se diluindo com o passar do tempo. O mesmo conclui falando que é importante se manter
esse termo para que as pessoas saibam que existe essa identidade cultural e que esse traço
identitário, que envolve um jeito de ser, ainda está vivo. No entanto, com toda a complexidade
e emaranhado da diversidade, alerta que ao mesmo tempo é preciso tomar cuidado para não
segregar.

Itapuanzeiro basicamente a gente vê assim, aquele nativo do bairro, uma


pessoa realmente que nasceu aqui no bairro. E é também uma forma de
definição que a gente deve tomar cuidado também pra não segregar. Ai
algumas pessoas se acharem Itapuanzeiros e até se sentirem com algum
direito a mais do que os outros num lugar que hoje realmente é uma
multiplicidade tão grande e que existem pessoas que se agregaram a ele e às
vezes dão contribuição bem maiores às vezes do que alguns outros que se
acomodaram e perderam. (Amadeu).

Pensando nessa fala de Amadeu, será que essa ideia de ser ou não ser itapuanzeiro
também foi um fator que dificultou a aproximação dos recém-chegados moradores? Será que
houve uma recepção das pessoas que foram chegando? Choque de culturas, de costumes, de
jeitos de pensar e agir. Estes podem ter contribuído para que muitas pessoas que passaram a
habitar o espaço não se envolvessem verdadeiramente com o lugar. Sempre muito
desconfiados, talvez por serem “gatos escaldados” de outras épocas, os itapuanzeiros
demoram de aceitar forasteiros e até mesmo aqueles moradores que não fazem parte da
pequena teia comunitária ligada às tradições. Para Ulysses e Seu Menezes, a questão é a
pessoa se dar bem na terra que escolheu para morar.

 
 102
 

Pra mim o ser itapuanzeiro não é tão vantajoso não, porque itapuanzeiro
todos nós somos menina, quando a gente chega num local, que a gente se dá
bem, a pessoa já é dali. Porque esse problema, como eu vejo muitos amigos
meus dizer assim “ah, você veio de fora e tá mandando.”. Muitas vezes a
pessoa veio de fora, mas tem uma atenção por aquela cidadezinha que está
morando, mais do que quem nasceu ali. Cuida mais da cidade do que quem
nasceu. Então eu não creio em dono da terra. Eu creio na pessoa que está
pisando na terra. Porque eu nasci em Itapuã, eu sou dono de Itapuã? Não.
Sou mais um componente de Itapuã. Agora eu por ser mais um componente
eu preciso me respeitar, pra respeitar os demais pra eu ser respeitado. Não
é porque eu nasci aqui, você não nasceu, eu vou começar a pisar você,
“quem é você, você não é daqui de Itapuã!”. Isso pra mim é uma grande
bobagem que falam. Itapuã pra mim, a terra é o lugar que a gente se dá
bem. Eu me dou bem ali, eu sou filho dali. Eu nasci aqui, me criei mais no
Alto do Gantuá. (Ulysses).

Seu Menezes, mesmo não tendo nascido no bairro, diz sentir-se um itapuanzeiro, o
que para ele é entender a linguagem, é estar no meio deles. Eu sou itapuanzeiro porque vivo e
moro aqui e meus filhos foram criados aqui. Se você passar uma hora aqui vai perceber que
toda hora eu tô assim... (faz um gesto de cumprimento acenando com a mão com um sorriso
no rosto). Para Bujão, Eurico e Ives é preciso desenvolver o sentimento dentro de si.

[…] é um sentimento muito particular. Eu acho que ser itapuanzeiro é


primeiro ter a compreensão identitária do significado do que é ter nascido
em Itapuã. Geralmente a gente trata como itapuanzeiro quem nasce em
Itapuã, porém, para além disso, não é só nascer, porque tem pessoas que
nasce e que não se identifica, outros se mudam. Mas o itapuanzeiro é
quando ele teve o privilégio de ter nascido no bairro e viver o bairro. Na
verdade ter uma afinidade identitária, tem uma ligação até ancestral com o
bairro. Esse é o itapuanzeiro. Tem muitas pessoas que vem morar aqui, que
gostam daqui, ainda moram e ficam por aqui, mas eles ainda não têm esse
sentimento, esse pertencimento de pertencer a essa comunidade. (Bujão).

Pra ser um itapuanzeiro, eu que não sou filho de Itapuã, posso dizer que
muitos que aqui nasceram e que residem não basta só nascer em Itapuã, tem
que amar Itapuã, tem que amar o local onde você mora, amar a sua
comunidade. Eu não posso simplesmente chegar aqui e colher os frutos,
colher, passar a tarde em Itapuã, nem tão pouco com o velho calção de
banho, eu tenho que vestir esse calção, eu tenho que lutar por esse bairro,
pela comunidade [...] (Eurico).

[...] Então eu acho que essa questão de como esse lugar, que ai não tem
como a gente talvez mensurar ou dimensionar dentro de uma perspectiva tão
racional, o emotivo, que traz esse sentimento de identidade, de como esse
lugar foi importante para sua experiência de vida. Eu acho que é esse valor
que a gente agrega quando a gente fala do itapuanzeiro. Porque tem o
itapuanzeiro e tem o nativo, que é outro termo que a gente usa muito. (Ives).

 
 103
 

Para Rose, não existe diferença em ser nativo ou itapuanzeiro, que é na verdade ter
esse sentimento de pertencimento pelo bairro, gostar de andar descalço na praia, de ir na lagoa
do Abaeté, de ver uma lua cheia, ficar chateado de ver sujeira nas praias e ruas, de ver que as
festas que antes existiam hoje já não existem mais e procurar resgatar isso. Ou seja,

São essas pessoas que gostam daqui que cuidam, que respeitam e que se
respeitam mutuamente. Eu acho que é você estar na batalha diariamente
ligado com as coisas que está acontecendo e aquela coisa do cuidado
mesmo. Porque eu acho que isso é inerente. Isso você traz consigo, o
sentimento de você gostar ou não, de você querer cuidar ou não. Não é uma
coisa que você cria. (Rose).

A partir da visão de Rose nessa fala, a pessoa tem duas opções, se envolver ou não.
Só que isso depende na verdade de cada um, de cada ser individualmente resolver se doar para
modificar-se e também poder modificar. Depende do despertar, que não chega para todos da
mesma maneira, porque as experiências e vivências são diversas e às vezes algumas pessoas
só estão precisando de algo que impulsione isso. Ela opina também sobre a questão dos
indivíduos que chegam ao bairro de fora e que não querem se integrar e, portanto, deveriam ir
morar em Stella Maris; onde moram os burgueses de Itapuã (Rose).
O local mencionado já fez parte da Itapuã antiga, como apelidaram a extensão
geográfica anterior às divisões atuais, que é hoje um interbairro, estando ligado à Itapuã, mas
que não possui as teias das pessoas da comunidade ligadas à tradição, sendo também um
bairro que abriga uma elite, em sua maioria de classe média. E é sobre a forma de se
relacionar que Rose enfatiza a sua fala, ao se referir principalmente ao distanciamento das
pessoas para com os vizinhos, devendo-se observar e levar em consideração a maneira como
foi sendo ocupado o espaço e com que mentalidade estas pessoas chegaram ao lugar.
Todavia, essa é uma questão complexa e que tem ligação com a própria
constituição da cidade, cercada por grades e muros, amedrontada pelo terror da insegurança
intrínseca a todos os lugares, que cada vez mais afasta os indivíduos, afasta as pessoas do
espaço público e força-as a ocupar espaços privados, “seguros”, em que o global está de
diferentes formas presente, mas principalmente através das tecnologias. Para Bauman (2005,
p.100), “as forças da globalização” transformam os lugares que nos davam segurança,
“realocam as pessoas e destroem as suas identidades sociais.”
Nesse sentido, o bairro de Itapuã precisa encontrar meios e espaços de promover o
contato dos diferentes intra e interbairros para que laços humanos sejam construídos.

 
 104
 

Qualquer pessoa que vem “praqui”, que começa a conviver com essa
comunidade aqui, não tem pra onde correr, ele se torna itapuanzeiro,
mesmo que ele não queira. Porque os costumes, os lazeres, então, termina
que se você não gosta de surfar, mas daqui a pouco você está pescando,
você está jogando bola, você está indo pro Abaeté pra tocar... você termina
se envolvendo, se envolve com a arte, com a cultura como um todo. E você,
mesmo que você trabalhe com qualquer outra coisa, você termina se
envolvendo. (Cuca).

Ou seja, basta conviver, mas no tempo atual essa convivência está sendo
dificultada, afastada, pelas próprias pessoas em função de motivos diversos, a exemplo da
violência, desinteresse pelo lugar que mora, valorização do que vem de fora, o que é global, o
que está na mídia, a própria internet, entre outros tantos motivos que a socióloga Bárbara
Freitag (2002) evidencia como sendo o resultado da complexidade da própria cidade.
Então, a relação hoje ela é menos visível de você ver quem é o itapuanzeiro,
de você ver quem é o que chama de agregado, de transplantado. E tem
pessoas aqui hoje que têm uma participação na vida cultural da comunidade
que são pessoas que vieram de outros estados, você encontra pessoas aqui
que contribuem significativamente para as relações culturais do bairro e
que não são nem daqui e ai vai dizer o que, qual o lugar dessa pessoa nesse
contexto? Enquanto tem pessoas que nasceram aqui, que são filhos de
itapuanzeiros, de pescadores, de lavadeiras e que por essas pessoas, ou por
carência de um certo desenvolvimento, ou por qualquer outro motivo não
contribuem tanto. (Amadeu).

A questão da identificação com o lugar é o ponto principal, junto com o respeito ao


que já existe, com a natureza, a cultura do lugar, no qual as pessoas podem se identificar com
algumas características e outras não. Mesmo assim, um fato que não pode ser esquecido é a
ligação que essas manifestações culturais têm com a formação do povo brasileiro, oriundas do
encontro de culturas e que se mantêm vivas devido à contribuição fundida e mantida através
das tradições constantemente atualizadas.
Pra contar a história cultural do bairro, que passa pela festa de Itapuã, que
passa por essas manifestações artísticas e culturais populares e tudo mais,
não dá pra contar sem falar das diversas contribuições, seja do
afrodescendente daquela raiz mais, sem misturar, seja do caboclo, seja do
mameluco, do branco, do mulato, quer dizer, essas contribuições
aconteceram bem efetivamente e dentro da área da festa de Itapuã sem
dúvida nenhuma a festa continua viva por conta dessas contribuições. São
relações de identidade mesmo, algumas pessoas se identificam mais com
uma ou com outras e ai a gente tem que compreender isso. (Amadeu).

O ideal era que essas pessoas que cheguem de fora, que elas tentassem
compreender um pouco do que é isso aqui em Itapuã. E não chegar só por
chegar. Mas assim, compreender um pouco os costumes, a forma do
itapuanzeiro ser, e se elas entendessem um pouco mais disso ai a relação
seria outra né, a relação com o bairro, com a comunidade como um todo
seria outra. A visão seria outra. (Cuca).

 
 105
 

Desta forma, para possuir o sentimento de pertencimento e ser reconhecido por sua
comunidade como tal leva tempo de convivência, ações e observações mútuas e as tradições
aparecem como uma forma de agregar e unir a população. Portanto, as falas mostram que o
termo itapuanzeiro tem passado por um processo de ressignificação no sentido de tentar
abraçar e valorizar não apenas os que nasceram no bairro, mas também aqueles que
desenvolveram um sentimento de pertencimento pelo lugar. Esse sentimento de ligação
demonstrou ser tão forte com a terra no bairro de Itapuã que a maioria dos entrevistados,
nascidos ou não, em algum momento evidenciou a satisfação de morar, viver e procriar, como
também a vontade de querer ser enterrado no lugar.
Com isso, o termo itapuanzeiro e seu conceito confundem-se de diferentes maneiras
dentro do bairro. Algumas respostas foram dadas para referendá-lo como um indivíduo que
vive em e contribui com Itapuã no seu cotidiano, ou que pode ser o chamado nativo, nascido e
criado. No entanto, nem sempre aquele que nasceu possui um sentimento de pertencer, como
também nem sempre aquele que vem de fora fica “por fora” do contexto. E como cultivar o
sentimento de pertencer, ter identidade com o bairro, em meio a tantas mudanças?
Segundo Ulysses, […] muita gente cultiva esse sentimento de dizer sou de Itapuã
por pessoas que chegou em Itapuã só pra explorar o itapuanzeiro. As pessoas vivem de
beleza e de ilusão. Para ele, algumas pessoas possuem esse sentimento devido a todo brilho
que o lugar adquiriu perante o mundo com a disseminação das canções e poesias de Dorival
Caymmi e Vinicius de Moraes. Para Ives, o sentimento de pertencer tem ligação com o
imaginário que foi criado através da divulgação na mídia de músicas, poesias e arte, que
ficaram famosas em todo mundo. No entanto, afirma ser muito além disso. É viver o lugar ao
invés de apenas morar nele sem ao menos desfrutar o que compõe o bairro, como dizem as
falas abaixo.

Eu acho que a receita é primeiro as pessoas viver mais em Itapuã, as


pessoas se preocupar com o bairro como se fosse da casa deles. Desse
sentimento que eu parto. Eu olho Itapuã como se fosse a minha casa, então
o meu bairro é uma coisa que me pertence, então o bem estar dele depende
da minha responsabilidade com ele e é isso que eu acho que algumas
pessoas guardam essa preocupação. (Bujão).

Essa pertence eu lhe digo que ela é natural. Itapuã é bonito, mas é preciso
se gostar, é preciso conhecer, se educar, é preciso conviver. Não basta viver
em Itapuã, tem que conviver. Tem que ter a convivência. (Eurico).

 
 106
 

É deixar ser envolvido e envolver, são as trocas do cotidiano às quais Eurico se


refere, o cuidado com o lugar que Bujão retrata, pois os grupos, as pessoas e os lugares ainda
preservam o jeito de ser itapuanzeiro e portanto isso contribui para cultivar o sentimento de
pertencimento.

Antigamente, a gente podia andar de sunga, sem camisa, descalço por


Itapuã, hoje com o progresso fica um pouco mais difícil. Mas assim, ainda
tem locais que você ainda se sente itapuanzeiro. Quando você chega nas
dunas do Abaeté, quando você chega no farol de Itapuã, na sereia pra pegar
o baba, então tem ainda algumas coisas que resistiram ao progresso e que
faz com que você se sinta em Itapuã. Principalmente a cultura do bairro.
Você vê que ainda não se perdeu, tem ainda São Tomé, tem festa de São
Pedro, Lavagem de Itapuã, você vê que tem As Ganhadeiras, tem a
Capoeira, então tipo assim, apesar de todo o progresso a gente não perdeu
as raízes, a gente procura resgatar de alguma forma. (Biriba).

Celso argumenta que não há como cultivar o sentimento de pertencer se as pessoas


que deveriam ter esse sentimento não o têm e, pior ainda, estão indo embora do lugar, levando
histórias, deixando desfalcado o território, pessoas que estão a mais tempo acostumadas com a
cultura local e que podem passar adiante o que já viveram estão se mudando e abandonando
toda uma história sem lutar, sem tentar mudar o que está posto, sem resistir. Essas outras
pessoas que estão chegando, de uma maneira ou de outra, vão atualizar o bairro, mas de que
forma? Como essa atualização vai se dar? De que forma os itapuanzeiros querem essa
atualização? Mantendo as tradições? Criando novas tradições? Atualizando as tradições?
Esquecendo delas? Abraçando novas práticas culturais em sua cultura e modo de viver?

Nisso, o papel do lugar é determinante. Ele não é apenas um quadro de vida,


mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que
permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação sobre o
presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um papel revelador
sobre o mundo. (SANTOS, 2009, p.114).

Portanto, o passado, as lembranças, as histórias, as pessoas antigas no lugar, que


tiveram contato com a ancestralidade são também uma maneira de fortalecer e cultivar esse
sentimento. A cultura popular se baseia na natureza e se utiliza de metáforas para explicar
fatos e acontecimentos diversos, Amadeu aborda aspectos comunitários, educativos,
históricos e da cultura popular como a memória e a ancestralidade para explicar como cultivar
esse sentimento.

 
 107
 

O que é que vai buscar a nutrição numa árvore, por exemplo, são as raízes,
então a árvore vai buscar na terra os nutrientes e a água onde vai lá se
aprofundando e a gente não vê. Esse trabalho da raiz a gente não vê, fica ali
invisível. Mas é o que leva todo esse nutriente, a seiva pelo tronco da
árvore, pelos galhos, até chegar nas folhas. A folha recebe também a luz do
sol. Então, é um processo que ao mesmo tempo em que você tem que olhar
pra frente, você também tem que olhar pra trás. Você tem que ir buscar nas
pessoas mais antigas do bairro, valorizar isso, porque essas pessoas na
sociedade de hoje elas são muito colocados num plano em que por elas não
estarem mais num estado de produtividade, digamos assim, força de
trabalho, são as vezes relegadas a um lugar que pra um sociedade
inteligente e pra alguém que quer realmente cultivar isso, ela vai olhar essas
pessoas com uma referência muito valiosa, porque são os tesouros, guarda a
memória. Então, essa memória que as pessoas têm elas podem ser passadas
para os outros. E como hoje a gente vive num mundo tão diferente de
comunicação, de relações sociais e tudo mais, precisa-se ter inteligência pra
estar ligando isso à incentivar a questão educacional, estar levando as
pessoas a pensar isso não como um bairrismo, mas como uma necessidade
de buscar as raízes, para as raízes irem buscar os nutrientes para fortalecer
a planta, a árvore, e cada um de nós pode se considerar uma árvore e
também a árvore comunitária pra que ela floresça e dê frutos. Então, eu
acho que assim...é uma decisão pessoal, íntima de cada um, porque tem
pessoas que às vezes não está nem ai pra esse ser itapuanzeiro ou ser essa
coisa mais de preservar as raízes, a tradição, tudo isso. Mas eu posso dizer
por experiência própria que isso é de fundamental importância de você
começar isso dentro de casa, na família, pra poder buscar suas próprias
raízes. É a comunicação e a atitude e o gesto de estar presente e também
não só sugar, mas tem que também estar contribuindo, oferecendo.
(Amadeu).

Ou seja, o cultivar requer vivência, manutenção, cuidado e preparo individual e de


outras pessoas para que novos frutos venham a crescer e se multiplicar. Nesse caso, a festa
serve de instrumento, um meio de colocar em convivência os seres humanos, independente de
onde estes vieram ou onde nasceram, como também ajuda a desenvolver um sentimento de
pertencimento pelo lugar que é lembrado e referencia durante todo o ano, pois não é um
evento pontual, a mobilização acontece antes, durante e depois do dia festivo.
Segundo Ulysses, inicialmente, o que fez o bairro crescer foram as festas que
atraíam moradores para o lugar, além é claro das belezas naturais, da tranquilidade e do jeito
particular com que os nativos levavam a vida.

 
 108
 

Foi essas festas que fez Itapuã crescer. Seus pais moravam no caso assim, lá
no Cabula e eu tinha meu pai que trabalhava nas docas e na estiva, seu pai
também trabalhava nas docas ou na estiva, era amigo do meu pai lá. Meu
pai vinha pra uma festa dessa, seu pai vinha pra uma festa dessa quando
meu pai convidava e do lado da minha casa tinha terreno a vontade,
“fulano, faça uma casa aqui, pra veranear, pra seus menino vim praqui”, ai
meu pai já trouxe um. Seu pai já fez a casa de junto, era vizinho. O seu pai
já tinha outro amigo, que tinha mais terreno ai de junto, seu pai trazia. No
outro ano, “rapaz, vou lá em Itapuã, lá é bom, o peixe é tudo à vontade, só
tem carne de boi duas vezes na semana, entendeu, mas é tudo mil maravilha,
é coco a vontade, a gente planta um pé de tomate nasce, melancia nasce”, ai
seu pai já trazia outro. Do meu outro lado, meu pai já tinha chamado outro
amigo, já tinha dado outro pedaço e ai foi Itapuã crescendo, expandindo,
isso é que a festa popular fez, fez o crescimento de Itapuã. Dai foi chegando
os veranistas, ai já tinha uma casa, fazia mais uma, chegava você, alugava
minha casa por três meses de verão. Alugou esse ano, para o ano já
comprava um terreno na mão de outra pessoa. Que a pessoa não tinha nem
pra vender, mas vendia, se não desse, vendia. Ai você já fazia sua casinha
ali do outro lado. Ai casava, engravidava, os filho nascia, ‘ah, vou fazer
mais uma casa aqui pra fulano, e ai o crescimento. Foi pra isso que serviu
as festas populares de Itapuã. (Ulysses).

O bairro de Itapuã tem uma forte ligação com a mistura de rituais e datas
comemorativas de origem portuguesa, africana e indígena, que acabaram dando origem a
alguns folguedos na região. Com o passar dos anos, essas festas populares foram se
transformando, se misturando e se atualizando. Algumas delas deixaram de existir, outras
enfraqueceram, enquanto que outras “modernizaram-se” com elementos da cultura de massa.
Todos esses acontecimentos passaram a ser sentidos e percebidos a cada ano pelos
itapuanzeiros que acompanhavam e reagiam a tais mudanças nos folguedos.

[…] eu acho que a gente pode transformar, porque a minha vontade é essa,
junto com o povo transformar. Mas que bom que a gente tem um grupo aqui
que entende isso, essa questão da transformação, que a gente tem esse poder
da transformação e eu quero assim, empoderar essa comunidade de Itapuã,
como outras, delas saberem disso. Que a gente pode transformar e que a
gente deve transformar, que a gente mora aqui, que a gente vive aqui.
(Rose).

Assim, todo esse processo de mobilização comunitária e de produção cultural torna-


se um espaço educativo, pois exercita a cidadania, põe os sujeitos envolvidos em discussão,
sendo estes estimulados a buscar meios para fazer acontecer seus projetos, ações, eventos, e
manifestações. Portanto, a convivência nas manifestações, festas e eventos culturais ensina,
socializa conhecimentos, hábitos, costumes, ideias, sendo a festa da lavagem no próximo
capítulo abordada mais detalhadamente.

 
 109
 

4 A FESTA DA LAVAGEM COMO PROCESSO, EXPERIÊNCIA E IDENTIDADE

As festas populares têm motivações diversas, que vão desde fazer pedidos para
santos, entidades em agradecimento à comemorações e em expressão de alegria. Na
atualidade, esses festejos não têm sido devidamente valorizados e isso é preocupante, pois têm
ligação com a história do lugar em que foram criados, sendo de fundamental importância para
a formação do ser humano, para a constituição de uma identidade pessoal aliada a uma
coletiva.
As festas populares podem guardar sentidos, significados e conhecimentos
ancestrais, passados por gerações, através de rituais guardados na memória em que são
transmitidos valores fundamentais à socialização das pessoas nos lugares. Quando
questionado sobre a importância das festas, Celso faz todo um apanhado histórico-cultural a
partir de sua vivência em muitos folguedos.

Um povo que não conhece a sua história não se conhece, é um povo que não
existe. As festas elas são importantes pra cultura local porque você tem que
preservar os seus antepassados. Agora, pra você fazer a festa você precisa
saber o porque e é isso que as pessoas as vezes não sabem. Que as festas
elas não são simplesmente feitas “ah vamos fazer uma festa pra gente tomar
cachaça”, não é isso. Porque que essas festas acontecem? As festas
acontecem porque o povo sofrido dos nossos antepassados era um povo
muito pobre, pessoas que são oriundas de famílias afrodescendentes, então
trabalhava com trabalho de dia a dia, de sol a sol, pra buscar o seu
sustento, buscar seu alimento, ou era indo pescar, se arriscando, ou era
cultivando uma lavoura, fazendo qualquer coisa, mas era trabalho de sol a
sol. Então durante um determinado dia no ano, ou alguns dias no ano tinha
que se fazer uma festa, pra que? Pra comemorar um bom ano de pescaria,
pra comemorar uma boa lavoura, pra fazer qualquer coisa. Então fazia o
que, durante a festa do padroeiro da Igreja ou qualquer outra coisa se fazia
uma festa. Por isso que tem a festa, várias festas. Todas as festas são
oriundas disso ai, de uma comemoração por alguma coisa. [...] Então a
gente tem que saber o que, porque aquela festa? Aquela festa é por causa
disso e tem que preservar a festa e continuar fazendo a festa, dando
sequência a uma coisa que foi começada sabe-se lá Deus quando. (Celso).

A questão é que a disseminação de culturas estrangeiras pela mídia atrelado ao


crescimento da indústria cultural e a outros fatores acabou acarretando mudanças no modo de
vida da sociedade brasileira, refletindo inclusive nessas festas. Algumas têm sido

 
 110
 

ressignificadas, enquanto que outras deixaram de existir na prática, estando vivas apenas na
memória de algumas pessoas, que puderam viver e conhecer tais manifestações populares.
As festas populares são festas iniciadas em um determinado período por algum
motivo particular de comemoração ou agradecimento. São acolhidas por um coletivo que
oralmente passa de geração em geração as informações pertinentes àquele festejo, sendo,
portanto, uma maneira de se afirmar a identidade de um povo. Devido a seu caráter coletivo, é
também um espaço para que as pessoas de determinado lugar possam se unir, se reencontrar e
se reconhecer. Para um dos entrevistados,

Festa popular é a festa onde o povo pode se adentrar, é onde o povo está
dentro, está incluído, sem precisar convite e nem pagar nada para poder
entrar. Isso é festa popular. (Sidney).

As festas de largo surgem “com uma tradição Européia, a qual também frutificou
em outros pontos da América Latina. No continente americano, ela frequentemente sofreu
modificações, em contato com outros sistemas rituais de diferentes culturas.” (SERRA, 1999,
p.55).
Para o antropólogo Ordep Serra (1999, p.71), o ritual da lavagem não é oriundo do
povo dos terreiros, mas uma tradição ibérica, ressignificada pelas matrizes religiosas
afrodescendentes. A lavagem acontecia dentro das igrejas europeias, no entanto, ao tomar
rumos não religiosos, as autoridades eclesiásticas se viram obrigadas a reagir proibindo-a no
espaço sagrado, limitando a festividade às escadarias. Essa proibição acabou abrindo margem
para que o rito das religiões afrodescendentes se aproximasse e se apoderasse da brecha de
sacramento deixada pela Igreja católica.
O termo profano muitas vezes é usado como equivalente a “não religioso”, no
entanto, “a idéia de profano só tem sentido numa perspectiva religiosa, ou seja, no domínio
fenomenológico em que se opõe à noção do sagrado.” (SERRA, 1999, p.53). A religião e as
crenças que fazem essa divisão, sendo que isso é relativo, pois o que é considerado sacro varia
de cultura para cultura e assim o profano também acaba por variar. (SERRA, 1999, p.54).
“O que a mente moderna fez, contudo, foi tornar Deus irrelevante para os assuntos
humanos na terra.” (BAUMAN, 2005, p. 79). Isso se deve principalmente pela influencia da
ciência na vida com o pensamento puramente linear, na qual o lado holístico perdeu espaço. O
conceito de sagrado atrelado ao de crença às forças espirituais leva em consideração a
sensibilidade como um ponto fundamental para as formas de os seres humanos se
relacionarem, fazendo a ponte entre o universo e o homem na terra. “O sagrado é o que

 
 111
 

transcende os nossos poderes de compreensão, comunicação e ação.” (BAUMAN, 2005,


pp.78-79). Ou seja, a fé é importante para que haja reflexão e sensibilização da forma de
pensar linearmente, levando-se em consideração a natureza e os seres humanos enquanto uma
só história.
Segundo a estudiosa da área de antropologia da festa, Eufrázia Santos (2006, p.2),
os adeptos do candomblé se utilizam da festa como “um meio de expressão para exibir temas
e valores como poder, realeza, sexo, maternidade, riqueza, luxo, beleza, entre outros.” Ou
seja, afirmam-se nos espaços da festa por serem estes lugares onde têm possibilidade de se
apresentar da forma que lhes convém.

A festa de largo baiana não pode ser entendida sem que se interrogue o seu
background tradicional. Tipologicamente, ela corresponde ao modelo de
velhas celebrações católicas populares européias, realizadas em dias santos,
em centros urbanos, com grande concentração de povo, intensa
movimentação comercial e lúdica. (SERRA, 1999, p.79).

Portanto, uma festa de largo possui um rito ou um conjunto de ritos sacros,


sincréticos, que têm a referência de um templo. Sejam eles no interior de uma igreja ou
voltados para ela. Segundo Serra (1999, p.57), “a expressão ”festa de largo” já dirige a
atenção para o que ocorre no espaço fronteiro à igreja, mas o que então se dá no largo tem sua
oportunidade determinada pelo que acontece no templo.” Com isso, o sagrado confere sentido
ao profano e é imprescindível que haja uma celebração de algum santo ou orixá para ser
considerada uma festa de largo. A própria simbologia e significado das palavras festa/lavagem
utilizadas como sinônimo demonstra o que Serra (1999) discute em seu livro a respeito do
sagrado e do profano estarem juntos nas festas culturais e explica:

Ainda que uma folia se dê no tipo de praça mais especificamente chamada


largo – com uma igreja como edificação dominante –, não tendo a
complementá-la algum tipo de rito sacro, ela não será “festa de largo”, mas
apenas “de rua”. Por outro lado, claro está que uma celebração encerrada nos
limites do templo, sem o complemento de folguedo, não pode ser
caracterizada como “festa de largo”. (SERRA, 1999, p.62).

Para Eufrázia Santos (2006, p.6), as festas de largo na Bahia são compostas por
ritos sacros e que têm como foco um templo, no entanto, diz a autora, suas cerimônias
sagradas não constituem a totalidade da festa, pois “associam comércio com diversão
pública”. Suas ações não se demarcam apenas utilizando-se de elementos da organização

 
 112
 

urbana permanente do lugar. (SERRA, 1999, p.56). Barracas são montadas especialmente
para a festividade e normalmente estabelecem o delineamento do espaço festivo. O tempo de
duração não é definido e a depender de cada localidade isso pode variar, como é o exemplo de
Itapuã, que prorroga sua festa de quinta-feira até a segunda-feira “gorda” onde é entregue o
presente de Iemanjá.

[…] o tempo de duração da festa de largo é variável, e o principal marcador


que define essa duração vem a ser o rito sagrado. Este pode limitar-se a um
episódio que define o centro festivo de uma data consagrada, mas também
pode estender-se por um período maior. (SERRA, 1999, p.57).

Na cidade de Salvador, segundo Eufrázia Santos (2006, p.5-6), o verão é a estação


do ano em que há uma “efervescência coletiva, com alegria, dispêndio, licenciosidades, dança
e música alegres.” É uma época em que a densidade populacional da cidade se altera em
função do grande número de turistas e “a busca do lazer como expressão que se contrapõe ao
trabalho (nos moldes capitalistas) sofre um processo de teatralização”. (SANTOS, 2006, p.5-
6).
Com isso, as festas passam também a ter valor de troca, no qual são divulgados
pelo poder público e instituições ligadas ao turismo como um atrativo turístico e, portanto,
reafirmam o formato do espetáculo e da festa enquanto produto.
Ordep Serra (1999), ao contextualizar o carnaval da Bahia, faz menção a alguns
pontos que mostram ligações entre este e as festas de largo. O primeiro ponto se refere a
sucessão das várias estações de folguedo em espaço aberto, que acabaram preparando o
triunfo decisivo da folia das avenidas sobre os clubes” e segue dizendo que “pode-se dizer que
os largos ampliaram o laboratório da secular cultura de festa, que nutriu o carnaval de
Salvador”. (SERRA, 1999, p.18). Dessa maneira, na Bahia, as festas de largo apresentam uma
ligação indireta com o carnaval, pois servem como um atrativo turístico do ponto de vista
cultural para o Estado, aquecendo toda uma rede hoteleira e de serviços.
O segundo ponto refere-se ao surgimento do trio elétrico, criação de Dodô e Osmar,
que tinha intenção de fazer a alegria dos “pipocas”, do “povo”, no entanto, estes acabaram
sendo utilizados pelos blocos de trio que comercializam e direcionam o seu público a partir de
fatores socioeconômicos e culturais. E o terceiro aspecto em relação a essa folia é a cenologia
produzida, em que o trio arrasta consigo os diferentes públicos, criando um espetáculo que é
desfile, baile e show ao mesmo tempo. (SERRA, 1999, p.21). “Os trios invadiram as festas de
largo, que em grande medida se desestruturam” (SERRA, 1999, p.21).

 
 113
 

Isso se deve ao fato de que trio elétrico distancia os brincantes dos grupos culturais
menores, pouco conhecidos na mídia e muitas vezes até não são estes que se apresentam nos
“trios”, mas bandas conhecidas e que não têm identidade com o lugar. Para Serra (1999,
p.22), “no largo a passagem eletrizante cria núcleos móveis e trajetórias estocásticas que
distraem do lugar festivo [...] e esta anarquia simbólica parece ser uma vocação de trio.” O
trio elétrico para Serra (1999, p.28) significa uma máquina móvel de música e segundo ele
mobiliza hábeis empresários, criativos dirigentes dos “blocos de trio” e os capitães da nova
indústria carnavalesca. A ideia é ultrapassar os limites da circunstância festiva que foi seu
ponto de partida e transpor o quadro de programas ajustáveis.
Para tanto, não se sabe ao certo porque os trios elétricos mexem de diferentes
formas com o lugar da festa, mas esse é um fato que não se pode negar. Colocar um trio nas
ruas pressupõe um gasto grande com despesas e equipamentos e é preciso ter pessoas que se
interessem em arcar com tal despesa. Dessa maneira, o trio elétrico precisa mobilizar
empresas grandes, bandas “famosas”, que estão na mídia, inserir propagandas em seu
percurso, destacando-se no visual. Como as festas de largo passaram a fazer parte desse “ciclo
festivo carnavalesco”, os trios elétricos também começaram a adentrar no percurso de seu
desfile em alguns lugares em que foi permitida a sua entrada.
Com as transformações nas festas de largo, segundo Serra (1999, p.79), os
acontecimentos do largo tendem a ter independência total, de modo que a oposição da Igreja e
do largo faz-se progressivamente menos complementar. O autor defende que estas festas têm-
se tornado essencialmente pré-carnavalescas, no entanto, é difícil fazer tal afirmação enquanto
existirem pessoas que se preocupam e buscam a tradição e o ritual. O inconformismo da
população pode vir a quebrar essa ligação, mas enquanto houver grupos e comunidades que
resistem a tais mudanças, as festas de largo, talvez não sejam todas, continuarão possuindo
uma magia que vem das mãos da população em fazer acontecer um conjunto de festividades
que é do povo e para ele mesmo.
Serra (1999, p.79) diz que essa mudança está atrelada à massificação do fenômeno,
fugindo de um contexto comunitário e “o espaço que correspondia a um circuito tradicional
agora comporta a superposição de distintos canais de difusão de mensagens variadas. A
própria tradição torna-se um bem de consumo, levado ao mercado pelas agencias de turismo.”
Para Eufrázia Santos (2006, p.20), “se de um lado os órgãos de turismo sabem
utilizar a riqueza e densidade dessas manifestações para fins turísticos, por outro, esses grupos
conseguem valer-se desse espaço festivo para encenação de suas identidades.” Desta forma, a
festa proporciona uma liberdade que foge às regras pré-estabelecidas no cotidiano. É palco de

 
 114
 

performances de pessoas anônimas e invisíveis. Estes por sua vez, utilizam a festa como um
dia de fama, de reconhecimento, mesmo que em seu cotidiano sejam esquecidos pela
sociedade. A festa é também “palanque de politicagem”, que tem por detrás todo um interesse
de políticos em se utilizarem para que em um futuro próximo, nas eleições, venham a ter
apoio das lideranças do lugar. Além disso, é também ponto de encontro da comunidade local e
espaço propício ao intercâmbio de culturas.
A festa consegue reunir uma diversidade cultural no mesmo espaço. São muitas as
identidades que se utilizam dos gestos, música, dança, performances, batuques, sons,
instrumentos, etc. Os deslocamentos identitários fazem parte do festejo em que é possível se
identificar com apenas alguns momentos, grupos ou com todos eles. A liberdade de escolha
permite que o indivíduo possa aproveitar a festividade como lhe convém.
Nesse contexto, o espaço da festa reproduz aspectos da cidade e dos bairros de sua
redondeza. Existe todo tipo de pessoas, vindas de lugares adversos, cada um com um
propósito. Há aquelas que não perdem uma festa de largo sequer. Aquelas que vão participar
dos atos religiosos, simbólicos e tradicionais. Aquelas que nunca participaram e querem
conhecer a festa. Aquelas que aproveitam a aglomeração de pessoas para aumentar a renda
familiar, seja catando latinhas, montando barraca, vendendo bebidas, alimentos, balas, etc.
A criatividade faz parte das festas populares e, para Eufrázia Santos (2006), novas
tradições podem surgir ou reinterpretações de antigas práticas culturais acontecerem a partir
do comportamento restaurado, que segundo a autora é o “comportamento repetido e sempre
sujeito a revisões e mudanças”.
Durante a festa, muitas “regras” da vida diária são quebradas e, para Duvignaud
(1983, p. 67), não é possível associar “a festa à vida social normal porque ela é a própria
coordenação da destruição”. Ou seja, durante os festejos, as regras são desconstruídas e apesar
de reconhecer que certas regras do cotidiano são quebradas, defendo que a festa possui em
diversos momentos, principalmente durante a sua organização, associação com a vida social,
na qual podem ser percebidos conflitos e fraquezas da comunidade, como também é possível
ver um reflexo, mesmo que distorcido, do seu contexto cultural diário. Para Duvignaud (1983,
p. 223), “quando dizemos que a festa é uma forma de ‘transgressão’ das normas estabelecidas,
referimo-nos ao mecanismo que, com efeito, abala estas normas e, muitas vezes, desagrega-
as”, como é o caso do que acontece com as tradições.
Enquanto a tradição tenta se manter imutável, algumas transformações decorrentes
da modernidade podem influenciá-la de diferentes maneiras, pois há o aproveitamento do
espaço festivo para a transgressão; todavia, é importante levar em consideração que para o

 
 115
 

folguedo acontecer é preciso toda uma organização de um grupo de pessoas envolvidas com a
festividade.
Assim, a festa transforma e pode transformar o lugar. É capaz de mobilizar as
pessoas de determinada comunidade em prol do evento cultural a partir da rede de relações
sociais, que são estabelecidas durante o cotidiano, ou, que se estabelecem durante o período
festivo. As pessoas, por diversos interesses, se mobilizam para fazer acontecer a festividade e
se utilizam de muitas táticas para que tudo saia como imaginado.
O reflexo da comunidade se dá durante esse período, no qual esta se encontra
envolvida através da sua forma de organização, das crenças, das relações sociais
estabelecidas, das disputas, das diferenças, das mudanças e dos acontecimentos. Busca-se
dessa maneira conviver com a diversidade para que a partir daí sejam encontrados meios de
cumprir a tradição, ao mesmo tempo em que se abre espaço para que o novo seja
contemplado.

E é exatamente a comunhão que envolve o pequeno grupo, rica de ardor, que


se opõe a tal diversidade. Faz-se necessário a existência de uma distinção
entre as condições para que o ator imponha-se às categorias diversificadas.
Na intimidade das comunidades, não existem representações falsas, as
pessoas se olham e vêm a si próprios no reflexo dos outros. (DUVIGNAUD,
1983, p. 153).

O período festivo intensifica as relações pessoais. Os indivíduos ligados ao evento,


passam a fazer ações voltadas para o festejo e consequentemente se desenvolvem, aprendem
em contato com o outro, ensinam e a partir disso podem vir a mudar comportamentos. Estas
pessoas acabam precisando refletir sobre os problemas que surgem no percurso para buscar
encontrar uma forma de resolvê-los. A experiência participativa mostra que uns precisam da
colaboração dos outros e os valores humanos passam a ser a base sustentadora de todo o
processo. Portanto, “a festa é um período peculiar, apesar de inteiramente integrado à
sociedade, período no qual a vida coletiva é extremamente intensa.” (DUVIGNAUD, 1983, p.
71).
Neste cenário, será que é possível imaginar a Bahia sem suas festas de largo? Mas
então por que cada dia que passa essas manifestações têm sido esvaziadas de sentidos e
significados da cultura popular para dar lugar à lógica moderna? Qual o papel das pessoas e
do Estado? Quais as providências que podem ser tomadas? Esses são alguns questionamentos
que tem surgido durante a escrita e no próprio campo de pesquisa levando-se em consideração
que esses espaços culturais possuem particularidades que vem a fortalecer a identidade com a

 
 116
 

cidade, com os bairros, experimentada através das práticas culturais locais, na qual se aprende
e se ensina com a participação nos folguedos e no cotidiano diário. Nesse sentido, os espaços
festivos da comunidade de Itapuã serão abordados.

4.1 A FESTA DE ITAPUÃ

A lavagem de Itapuã foi escolhida como foco principal por ser o maior evento
cultural do bairro, que consegue mobilizar quase todos os grupos e pessoas envolvidas com a
arte e cultura local.
A importância da festa está ligada a aspectos formativos e culturais, onde são
aprendidos valores, conhecimentos, questões históricas e postos em socialização um grande
número de indivíduos. A festa é um ato de celebração, que tem motivos variados para a sua
realização, normalmente ligados à fé, com momentos que vão desde o “sagrado” ao “profano”
juntos no mesmo espaço.

[...]o momento da festa, da manifestação da alegria através do movimento,


do som, da música, do samba, da dança, então é nesse momento que as
pessoas se encontram, elas se reconhecem e nesse reconhecimento elas
constroem relações [...]E na comunidade, por existir esse calendário que as
pessoas já sabem que naquele dia vai ter aquela festa e tudo mais elas já são
referencias dentro de universo que se elas não tivessem talvez seria muito
doloroso viver à deriva assim... (Amadeu).

Nesse sentido, as festas são espaços de socialização, que proporcionam o contato


das pessoas entre si e destas com a cultura local. Para os entrevistados, são necessárias à vida
do ser humano, agregam as pessoas que estão inseridas naquele momento como parte
integrante e atuante, como, também, têm a sua importância na tradição, devendo ser pautadas
na representação da história pelos grupos a partir de temáticas que rememorem o passado.

[…] a cultura é que agrega, a cultura é que dá a eles (indivíduos) o mínimo


de prazer em estar vivo. Então essa coisa de achar que a festa é algo
supérfluo na vida das pessoas é um equívoco. O acesso a cultura, o lazer, se
ver na cultura como parte itinerante daquela manifestação, é você manter
vivo, é como parte do seu corpo, não é apenas de alimentação, como pão,
água, carne, farinha, feijão, não, a cultura também é um alimento
necessário ao corpo e ao espírito do Itapuanzeiro, das pessoas em geral,
sobretudo do Itapuanzeiro. (Bujão).

 
 117
 

Na verdade ali se juntam, a gente vê tantos movimentos nessas festas que


são movimentos importantes na preservação da continuação da nossa
cultura. (Sidney).

A importância é a tradição de festa ... (Seu Menezes).

A importância é muito grande, é manter as tradições. A gente vai


segurando, mantendo essas festas e vai passando para os nossos sucessores,
podendo apresentar para os nossos sucessores como era as festas aqui, as
diversões daqui como eram no passado e vai mantendo até agora. Então é
muito importante isso. (Seu Regis).

Eu acho que é uma forma de você poder cada vez mais agregar as pessoas.
A comunidade, quem está chegando de novo, com quem já está mais velho,
ir aprendendo com isso, dando continuidade. [...] E ai fica todo mundo mais
próximo. (Rose).

Eu acho que as festas também é uma forma de resgatar a cultura [...] é uma
forma de você manter vivo o local, mostrar para as pessoas que vem de fora
o que é ser um nativo, o que é ser Itapuã, então acho que é muito importante
todo lugar manter suas tradições. Isso mostra fortalecimento cultural de um
povo. (Biriba).

Além disso, são espaços onde aprendizados, ensinamentos, conhecimentos, valores,


modos de vida, características e histórias são trazidos à tona através de representações, que se
utilizam da criatividade para dar brilho ao evento.
Amadeu diz que as festas passaram a ser transformadas quando pessoas de fora da
comunidade passaram a se entrosar, trazendo novos valores e formas de organizar e fazer
acontecer suas manifestações culturais. Para Magnani (2003, p.57), “convém recordar, a
propósito, o modo de operação das pesquisas etnográficas, que em busca dos padrões culturais
mais abrangentes, que dão sentido a ritos, costumes, mitos, etc., trabalham tanto com a
observação direta destes fatos como também com as explicações dos membros da comunidade
sobre sua prática.” Buscou-se contar a festa da lavagem pelo que foi ouvido, lido, vivido e
decifrado. (MAGNANI, 2003, p.69)

Na verdade a lavagem de Itapuã, incluída nos ciclos de festas da cidade de


Salvador, ela tem uma característica muito particular. Primeiro que é um
conflito histórico, na verdade a festa de Itapuã, ao que se faz hoje no dia 2 de
fevereiro era a festa de Itapuã, então a gente a partir de uma reformulação do
calendário das festas dentro de uma concepção comercial, a festa de Itapuã
perdeu o 2 de fevereiro, que era a festa de Itapuã. Os nativos ainda vivos falam
que a festa de Itapuã é na realidade no dia 2 de fevereiro. Depois com esse ciclo
de festas foram fazendo várias festas e Itapuã passou a ser a última do
calendário, ou seja, é a festa que antecede o carnaval, é uma quinta feira antes.
(Bujão).

 
 118
 

A lavagem existe desde 1906 e, após mudar de data para não chocar com outras
festas da cidade, acontece atualmente na quinta-feira anterior ao carnaval, em louvor a Nossa
Senhora da Conceição, padroeira do bairro, sendo a última festa de largo do calendário de
festas populares.

[…] a comunidade respirava essa festa praticamente em três meses de


celebração. E ai a lavagem era um ponto de culminância desse período.
Com o tempo, isso foi se transformando. Ainda nesse período, a presença
dos organizadores daquela época, Dr. Nelson, Seu Menezes, tantos outros ai
que participavam e a vitalidade da comunidade. Mas ai foi mudando, com o
tempo as influências diversas, de política, de estrutura, a lavagem foi
também e todo esse período passou a se resumir a outras expectativas [...]
(Amadeu).

Algumas dessas pessoas de fora se inseriram na cultura local, como foi o caso de
Seu Menezes, e deram a sua contribuição pensando na comunidade, mas isso não foi
suficiente para que a lógica das festas tomasse um rumo oposto ao da cooperação e entrasse
na ceara da competição, da obtenção de benefícios e no serviço ao global.

Mas como era a lavagem de Itapuã? Era a lavagem da Igreja, era realmente
a lavagem da Igreja. A Igreja ficava aberta, lavava-se a Igreja por dentro e
por fora, depois que acabava de lavar a Igreja, fazia um samba na frente da
Igreja pra comemorar o êxito da lavagem. Era isso que era feito, lavar
realmente a Igreja. Durante os anos, a festa foi tomando outras proporções,
a coisa tornou-se profana, saiu do controle da Igreja Católica e o que
fizeram eles? Fecharam as portas. No que eles fecharam as portas, as
pessoas para não perder a tradição da lavagem começaram a simplesmente
lavar o adro e a escadaria das Igrejas. Compreende? Isso que foi feito. E
quando a minha mãe teve a idéia de fazer a lavagem nativa era realmente
lavar, mas a Igreja ficava fechada, lavava a escadaria da Igreja, colocava
areia e colocava pitanga, como era antigamente, pra preparar a Igreja e
deixar bonita para festa. Mas hoje é interessante porque o padre abre a
Igreja e deixa a gente lavar um pouquinho, não lava toda a Igreja, mas lava
assim na entrada. (Celso).

Em relação à diferença da lavagem propriamente dita para a lavagem nativa, Celso


explica que a lavagem continua existindo, que é o cortejo das baianas com água de cheiro na
cabeça que sai de Piatã dez horas da manhã e segue até a Praça Dorival Caymmi, enquanto
que a nativa passou a ser logo após o bando anunciador, às 5 horas da manhã.

Ai quando chega na porta da Igreja, ao invés de fazer a lavagem da Igreja,


faz a lavagem das pessoas, porque aquela água de cheiro, aquelas coisas
que elas trazem elas usam mais para dar banho nos outros do que para
lavar a Igreja. Não é? Mas é interessante também. (Celso).

 
 119
 

Assim, a relação da tradição com a fé, com o místico, com as forças que podem até
mesmo invadir sonhos e ser tão reais que se tornam inspiração para cumprir uma obrigação,
uma responsabilidade, uma devoção se torna relevante para toda a comunidade no que diz
respeito a buscar um fio condutor do folguedo. Isso acontece com Dona Nissú, mãe de Celso
e Neinha.

Minha mãe enquanto esteve viva ai ela idealizou a lavagem nativa e pegou
um grupo de amigas dela que ela tinha, o grupo “Mantendo a Tradição”,
umas amigas que faziam umas coisas muito interessantes pelo bairro e
resolveu fazer essa lavagem nativa ai que hoje é uma realidade. As pessoas
não sabem exatamente porque que acontece, talvez seja até por isso que eu
esteja falando agora, isso aconteceu porque minha mãe teve um sonho, onde
Nossa Senhora da Conceição falava pra ela que a festa não era mais
interessante e que deveria ser como era e o teor do sonho exatamente ela
nunca disse a ninguém o que foi, mas ela ai criou essa festa ai. (Celso).

A festa é um encontro de várias pessoas e suas crenças, que aprendem umas com as
outras observando, refletindo, conversando e vivendo os momentos. Eurico tenta explicar a
falta de interesse dos poderes públicos e da própria comunidade ao dizer que esse é o preço
que se paga por não haver mais respeito às religiões.

Porque quando se pensa em lavagem se diz, ‘não, isso é coisa do mundo’.


Poxa, é uma forma que criamos, até mesmo para que as Igrejas Católica
abrisse suas portas para nos receber, era uma forma de agradar a gregos e
troianos e o povo poder manifestar a sua cultura, a sua fé. É totalmente
diferente de uma situação do terreiro. Não tem nada haver com a
religiosidade dentro do terreiro. É ainda uma forma de expressão cultural e
que infelizmente só é valorizada pelos estrangeiros, as autoridades nossa
perderam ou não tem essa sensibilidade, esse olhar para o nosso povo.
(Eurico).

Amadeu já traz a questão da perda de significado ritualístico e religioso do termo


lavagem, que passou a ser utilizado comercialmente. Crê que se perde muito em não valorizar
essas questões, que nada mais são que momento para a reflexão dentro da festa e que podem
vir a ser o que está faltando para trazer mais pessoas para aderir ao movimento e fortalecê-lo,
que podem ser tanto os recém-chegados ao bairro como aqueles que moram, mas ainda não
possuem uma ligação com as tradições e não percebem uma importância nisso.

 
 120
 

[...] ai começou essa coisa das lavagens, o termo passou a ser totalmente
vulgarizado, o que passou a significar lavagem de várias situações e vários
lugares e tal, mas a coisa da lavagem ligada ao ritual, ao lado religioso e
como consequência, na sequência desse ato, a celebração festiva, o que
chamam de profano, o sagrado e o profano, passou a mudar muito isso ai. O
profano praticamente ficou sendo só um lado da coisa. Eu acho que o outro
é um lado reflexivo, é um momento mágico da coisa. É um momento onde as
pessoas param um pouco, silenciam um pouco e captam algo e depois reflete
na alegria, na folia, na curtição. (Amadeu).

Um exemplo dessa reflexão se deu ao escutar o discurso da irmã de Celso, filha de


Dona Nissú, Neinha, que antes de começar a lavar as escadarias na lavagem nativa faz uma
fala voltada à conscientização e sensibilização dos presentes no sentido de que é preciso
colaborar mais com a comunidade e que todos precisam ajudar, nem que seja levando a sua
própria vassoura ou emprestando-a para que outro participante possa também varrer. Outra
fala de Neinha é feita antes da distribuição do café da manhã, em que ela diz que não sabe se
o café da manhã vai dar para todos e pede para quem não colaborou nesse ano, que no ano
seguinte apareça antecipadamente para ajudar, seja doando uma fruta, outros materiais ou até
mesmo a força de trabalho.
Aqui o olhar se volta para o ponto de vista da educação, relacionando essa categoria
com outras que a comunidade de Itapuã vem passando junto a sua festa de largo e que
perpassa por todo um processo educativo, que compreende o que é ligado diretamente à festa,
a exemplo dos grupos culturais, que se preparam durante o ano para se apresentarem na
lavagem; o que se refere à mobilização comunitária, levando-se em consideração que as
reuniões são abertas ao público, nas quais se tem uma comissão de organização eleita pelos
próprios moradores; as que são condizentes com os aprendizados e com a própria vivência no
dia da festa com a história e a tradição, relacionando-se diretamente com a constituição da
identidade.
Tudo, tudo é aprendizagem. Todos os atos que acontecem na rua, até
normalmente assim você caminhando é aprendizagem né. Quanto mais na
lavagem, que tem várias faixas, às vezes faixas de protesto, fantasias com
certas criatividades, tudo isso é sabedoria, é aprendizado que a gente vai
despertando, ajuda a despertar a gente. Desde as músicas, às fantasias, às
danças, à tudo, à alegoria dos carros, tudo é aprendizado, tudo é
importante. (Seu Regis).

Dessa maneira, a festa de Itapuã é um evento de caráter histórico, social,


econômico, político, cultural e educativo para sua comunidade. Muitos estudiosos apenas
voltam o seu olhar para a religiosidade e tradição da festa, esquecendo-se de mencionar todos
os campos que estão ligados ao evento cultural. Assim, a festa será interpretada a partir de

 
 121
 

diferentes olhares e momentos, antes, durante e depois do dia “D”, a partir de perspectivas de
áreas diversas, tentando compreender em sua complexidade as dimensões desse festejo
popular, que é na verdade um processo educativo que possui muitas vertentes.
Segundo Magnani (2003, p.33), “antes de concluir, portanto, pelo caráter
conservador ou contestatório das manifestações de cultura e entretenimento populares, é
preciso estar atento para os significados de que estão investidos”. Assim, a festa da lavagem
de Itapuã possui um significado que tem relação com a tradição familiar, com a tradição do
lugar e ainda com o costume da participação no evento cultural, no qual qualquer pessoa pode
vir a se inserir e dar a sua contribuição.
No entanto, a inserção de uma visão mais comercial das lavagens aliada a uma nova
forma das pessoas se divertirem influencia diretamente na constituição da festa de Itapuã, que
passa a sentir o enfraquecimento das suas tradições em função de uma nova lógica atuante e
também da atualização da mesma.
Assim, durante um período, a lavagem de Itapuã sofreu algumas mudanças em sua
estrutura e forma de organização, o que resultou na inserção de trios elétricos e grupos
midiáticos, participando de uma manifestação que sempre se pautou na tradição dos seus
antepassados e nas manifestações culturais locais. Para Milton Santos, as novas condições
técnicas deveriam fortalecer as sociedades ao tempo em que deveriam ampliar o
conhecimento do planeta, no entanto, elas são utilizadas por poucos atores em função de seus
objetivos particulares. (SANTOS, 2009, p. 38-39).

chegou num ponto da lavagem se transformar num palco de trios elétricos e


blocos, onde o comércio passou a prevalecer porque estava dando
realmente um resultado pra quem tinha blocos de trios, só que isso em
detrimento de toda uma tradição que cada vez perdia mais espaço
(Amadeu).

Ao falar sobre a época dos trios elétricos, Amadeu descreve como a festa foi
descaracterizada, na qual as pessoas que passaram a se envolver com a festividade não tinham
comprometimento com a tradição e nem o lugar, gerando conflitos diversos. Para ele, não há
problema em ter trio, contanto que seja para “o compartilhar com o intuito do reconhecimento
de um olhar para o outro.” Ou seja, no sentido de integrar as pessoas que moram no lugar, já
que uma reclamação comum tem sido a questão da relação da população nativa com os novos
moradores do bairro.
Nesse momento, enquanto alguns moradores antigos se recolhiam, se mudavam, se
afastavam, outros passaram a se mobilizar, a resistir no sentido de não deixar a festa,

 
 122
 

mergulhasse profundamente nessa lógica e tal movimento começou a mexer com o


sentimento de pertencimento e a aproximar novamente as pessoas pela solidariedade de estar
lutando pelo mesmo objetivo, que era e ainda é não deixar que as tradições do lugar percam
seu sentido, pois estas são os pilares principais da cultura local itapuanzeira, como traz Ives
em seu depoimento.

A festa é algo que, é essa coisa que é bem itapuanzeira, também eu acho que
de outros bairros da cidade, mas eu acho que Itapuã tem isso com muita
visceralidade. Que eu acho que incorpora muito esse lado da comunidade.
Então foi isso que de certa forma nos uniu, por que a gente sabe da
importância que isso tem. A gente conseguiu talvez estabelecer com muita
clareza esse sentimento de pertencimento e da importância que isso tinha e
tem para a comunidade. Então a questão da lavagem, a gente ouviu muitas
famílias tradicionais dizendo, “mas a festa sempre foi nós que fizemos, a
festa é nossa, é da nossa comunidade, não é pra turista. Se vai ter 50
baianas ou 200 baianas não interessa, o que interessa é que estejam as 50
baianas que sejam nossas, isso não é pra turista ver, isso é que precisa ficar
estabelecido. Porque essa foi a política, infelizmente que fizeram, parece
que a festa ela está somente vinculada pra quem vem consumir, que é algo
que precisa ser dimensionado. Consumir o quê? Se não, a festa perde o
cerne, que é o que tem de simbólico e o que tem de significado. (Ives).

A lavagem passa a ser noticiada como uma das mais violentas, na qual muitas
mortes e confusões aconteciam e Celso explica isso relembrando que Itapuã sempre foi uma
comunidade que gostava de uma briga.
O que acontece é o seguinte, a comunidade de Itapuã sempre foi chegada a
uma “quizumba”, o pessoal sempre gostou de uma porrada. Itapuã tem
brigas históricas. [...] Itapuã, quem morava no porto de baixo não vinha no
porto de cima que se viesse brigava, quando se encontrava na lavagem,
brigava. Então, historicamente eles sempre foram assim. (Celso).

Ulysses explica que em Itapuã sempre existiram essas intrigas porque houve vários
reinados. Em uma de suas densas e interessantíssimas histórias diz que Itapuã só tinha três
ruas, porto de baixo, porto do meio e porto de cima, sendo que “quem era do porto de baixo
não podia vir no porto de cima, quem era do porto de cima não podia ir ao porto de baixo.” A
justificativa dada para tanta rivalidade foi a de que os moradores do porto de cima achavam,
como diz o próprio Ulysses, que “tinham mais” do que os do porto de baixo e até a Igreja com
suas três portas recebia os estilhaços dessa desavença, na qual cada entrada destinava-se a
uma rua. A porta da esquerda para moradores do porto de baixo, a porta principal destinava-se
para quem ali morava, ou seja, quem era do porto do meio e a da direita para os do porto de
cima.

 
 123
 

Essas coisas vem terminando da minha data de nascimento, de 41 para cá,


porque começou alguns rapazes do porto de baixo namorar com uma
menina do porto de cima e alguns do porto de cima namorar com meninas
do porto de baixo. Os profissionais daquela época: tinha Manoel Trea que
era um bom mestre de obra no porto de baixo; tinha Seu Aniseto que era um
bom mestre de obra do porto de cima. Então se você vinha veranear em
Itapuã e conseguia fazer uma casa em Itapuã, era no porto de cima, era Seu
Aniseto que fazia, se era no porto de baixo quem fazia era Manoel Trea.
Mas chegou uma época que ficou dividindo, operário bom tem no porto de
baixo e operário bom tem no porto de cima, vamos ajuntar as forças. Ai
fizeram amizade os operários. Dos operários fizeram amizade os
pescadores. (Ulysses).

Assim, a convivência e aproximação das pessoas foi aos poucos transformando o


lugar dividido num só lugar, mas que não deixou de ser cheio de conflitos. Algumas pessoas
da comunidade, descontentes com a forma que a festa estava sendo realizada, pois além de
descaracterizar a lavagem, vinha apresentando crescentes e altos índices de violência, vão
buscar meios que pudessem retirar o trio elétrico da festa, fato que provocou uma série de
discussões, inclusive porque muitas pessoas lucravam com isso.  

Dizem ai que existiu uma pesquisa popular pra escolher se a comunidade


queria que tivesse trio elétrico ou não ou não sei o quê. Eu, não fui
procurado por ninguém pra votar em lugar nenhum e não vi ninguém
fazendo essa pesquisa. Não estou dizendo que não teve. Eu estou dizendo
que eu não fui procurado e eu não vi. Pelo menos na minha porta ninguém
bateu pra fazer pesquisa nenhuma. E eu acho que essa questão de abrir a
boca assim e dizer ‘ah, tira o trio elétrico, faz isso, faz aquilo outro.’ Eu
acho meio que hipócrita, porque se o trio elétrico ele é o causador da
tragédia na festa de Itapuã, o grande vilão da festa, o que é que esse trio
elétrico representa pro carnaval de Salvador?! Haja vista que na lavagem
não se usava nem 5% da quantidade de trio elétrico que usa no carnaval de
Salvador. Entendeu?! Então se você for medir as devidas proporções, se é
inviável o trio elétrico na festa de Itapuã, ele é totalmente inviável no
carnaval de Salvador. E eu ficaria muito contente se dissesse, ‘vamo tirar o
trio de Itapuã’. Vamos! Já tirou não é?! Agora vamos tirar o trio do
carnaval. Eu gostaria muito de ver Ivete Sangalo e Bel do Chiclete com
Banana cantando de mega fone com a batucada atrás, seria legal. Se aqui
não pode, lá também não pode. Entende? Minha linha de raciocínio é essa.
(Celso).

Celso faz uma comparação da festa de Itapuã com o carnaval de Salvador, festas
totalmente diferentes em seus contextos históricos de surgimento. A primeira possui um
templo como destino, toda uma religiosidade por detrás e a outra é uma folia em si. No
entanto, ele tem razão quando traz a mudança na forma das pessoas se divertirem.

 
 124
 

As coisas vão evoluindo e não dá pra fazer a lavagem de Itapuã como se


fazia a 100 anos atrás, porque tudo evoluiu, inclusive a festa. O interesse
das pessoas já não são mais os mesmos. Antigamente você chegava, fazia
uma lavagem de Itapuã com um camarada tocando um berimbau, outro
tocando um pandeiro, batendo na palma da mão com uns atabaques, pronto,
tava tudo lindo. Hoje, a forma de se divertir não é mais essa, então não dá
pra fazer como fazia antes. (Celso).

Todavia, a discussão que se dá não é apenas voltada para a presença dos trios, mas
também para o tipo de atração que está em cima destes, e mais uma vez o carnaval serve de
exemplo, sendo que a realidade desta festa é outra, pois possui toda uma estrutura e
preparação logística profissional para acontecer.

[…] a discussão não era o trio elétrico, era o tipo de atração que estava em
cima do trio-elétrico, porque se você pensar bem, então assim não haveria
carnaval na Bahia. A questão era o que é que está ali enquanto
manifestação artística dentro do trio elétrico. (Ives).

Ao fazer referencia aos trios elétricos, Seu Menezes, que é técnico de som e um
exímio inventor, conta que não percebia a mesma empolgação das pessoas na festa, sendo que
a quantidade de watts do trio elétrico é muito grande e desnecessária, sem contar que a sua
presença descaracterizou a tradição. Traz como exemplo o trio paralítico, que conseguia fazer
o pessoal brincar com apenas 200 watts, tendo duas caixas de som e cinco cornetas e que o
trio elétrico pode chegar a até 50.000 watts, não havendo essa necessidade. Atualmente, tem
se dedicado a sua mais nova invenção, o “foguete”, montado numa estrutura em cima de uma
bicicleta adaptada, sendo uma possível solução para os grupos que se apresentam nas festas de
largo.
Figura 22 – Invenção de Seu Menezes “Foguete”

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

 
 125
 

Depois de muitas discussões, os trios elétricos são retirados da lavagem de Itapuã e


com eles todo o dinheiro que era injetado na festividade. Na opinião de Celso, o poder público
precisa dar o aporte necessário para que a comunidade diga como quer fazer a sua lavagem.

Eu acho assim, a gente tem que fazer a festa do jeito que a gente quiser fazer
e o poder público tem que dar condição de fazer a festa. Eu penso dessa
forma. Tudo bem que não se tem estrutura pra botar 10, 20 trios elétricos
em Itapuã, que bote 1, bote 2, bote 3. Que não bote nenhum, mas que bote
um palco aqui (perto da Igreja), bote outro palco em Piatã, que garanta a
animação da festa. Isso os caras não fizeram. (Celso).

Uma discussão que prevaleceu é do tipo de veículo sonoro que deveria ser
utilizado.
[…] porque isso ainda não está muito claro, das dimensões, porque abre um
precedente com relação ao Malê, que é um bloco com mais de 30 anos, mas
que vem com um carro que excede um pouco essa questão de ter trio ou não
ter trio, ou mini-trio. (Ives).

Isso (participação do trio elétrico) foi uma decisão do coletivo e que foi
ruim porque a gente deixou na mão de determinadas representações
políticas que terminaram não se responsabilizando em assumir uma
captação de recursos para bancar essas manifestações culturais, o que
terminou não se efetivando e isso criou um conflito sério, que no ano de
2010 a lavagem quase não ia acontecer pela falta de diálogo e
comprometimento do ano anterior e que a gente foi retomar em 2011, com a
festa com a nossa cara, com a comunidade se articulando, que foi a festa
com o nome Itapuã Nativa Ativa. (Ives).

Ou seja, as lideranças da lavagem de Itapuã estavam naquele momento buscando


conciliar o lado do solidário de fazer a festa com a lógica comercial que esta tinha passado a
ter. Assim, a comunidade nativa participante desse processo de educação política, ao decidir o
que deseja o coletivo atuante no bairro pode encaminhar a sua própria formação, aprendendo
a desvendar na realidade o melhor para maioria.
A lavagem de 2011 é intitulada como Nativa Ativa e homenageia duas pessoas de
fora do bairro, mas que se integraram ao modo de vida dos itapuanzeiros.
Eu acho que uma coisa muito positiva foi a gente homenagear
personalidades do bairro, agregado a figura de Dona Cabocla, com uma
história linda e ímpar e o próprio Juvená, que é uma figura que representa
as manifestações populares da cidade como uma todo e que estava ai
passando uma situação muito delicada e que a partir dessa homenagem
acho que a gente conseguiu ampliar a sua auto-estima e sua qualidade de
vida até dentro desse contexto das manifestações culturais populares. (Ives).

 
 126
 

Foi bom a gente homenagear Dona Cabocla? Foi. Foi bom a gente
homenagear Juvená? Foi. Não é porque ele não é daqui de Itapuã que não
vai fazer uma homenagem. Tem que se fazer. Pra mim o itapuanzeiro nato
não é aquele que nasceu aqui não, é aquele que convive aqui e respeita o
nome Itapuã. Esse pra mim é itapuanzeiro. Porque Cabocla não nasceu em
Itapuã, não é filha de Itapuã. Mas eu quando me entendi Caboclinha já
estava aqui sendo esposa de Arlindo, pra mim ela era nativa. Se você
chegou aqui ha dez anos atrás e hoje está aqui levantando um trabalho
sobre Itapuã, você é mais nativa que certos nativos, você está indo buscar o
crescimento da terra. Você está mostrando a realidade de Itapuã. Não é o
próprio itapuanzeiro nato que chegou assim, encostou num canto e cruzou
os braços e ai ficou parado no tempo, nunca fez nada, nunca disse nada,
nunca sabe de nada, então não fede nem cheira é um ítapuanzeiro morto.
Pra mim itapuanzeiro é aquele que fala, que diz o que sente, É aquele que
vai a luta pra poder trazer as coisas boas. Eu estou lutando pra ver se
consigo me ajuntar com outras pessoas que quer fazer alguma coisa pra
Itapuã. (Ulysses).

Se tirou os trios elétricos e ai os nativos tiveram que assumir a festa, “agora


a festa é nossa”, e ai todo mundo retornou com seus arrastões, suas
apresentações, começou levar realmente o que Itapuã tem para a lavagem.
O que Itapuã tem de melhor na sua cultura, começou a levar para a
lavagem, que tinha se perdido. A lavagem estava começando uma hora da
tarde com a saída dos trios e agora não. A principal atração na lavagem é o
cortejo que estava um pouco esquecido, e agora não, a principal atração
voltou a ser o cortejo. Então eu observei que as baianas vieram com a auto
estima elevada, mais arrumadas. Você vê o Malê Debalê se apresentou
melhor, os Alabês de mamãe, que é o pessoal da percussão, teve a Escola de
Samba, teve a capoeira...pra você ver, todo mundo que estava um pouco
afastado voltou para fazer a festa, então os filhos da casa fizeram a festa
dentro de casa, então por isso que foi considerada a festa dos nativos.
(Biriba).

O significado do nome Nativa Ativa é uma forma de levantar a bandeira de que o


povo retoma a direção da festa independentemente de promessas de contribuições alheias,
relembrando como tudo surgiu inicialmente, quando a festividade acontecia a partir de
doações da própria comunidade unida em torna da tradição.
Acho que o nome já está dizendo tudo, porque primeiro foi a lavagem de
nós, da comunidade nativa e que está na Ativa, que não deixou ai a coisa se
acabar e alias, está se tomando isso com muita propriedade, o nome foi de
uma pertinência maravilhosa no que diz respeito a esses elementos de nossa
identidade, da nossa forma de organização, foi muito interessante. (Ives).

Então o nativo e o ativo foi muito bom. O nativo se esforçou pra provar que
tinha competência de fazer. O esforço só foi esse do nativo. (Ulysses).

Eu gosto até do nome, eu gosto mais do que Itapuanzeiro. Nativa ativa quer
dizer o seguinte, é um povo nato, um povo antigo, um povo que tem história
naquele espaço sendo ativo, sendo protagonista, mudando uma realidade,
trazendo a força do que existe. (Sidney).

 
 127
 

O Nativa Ativa foi essa questão de movimentar o povo nativo de Itapuã pra
entrar mesmo na ativa de correr atrás, de arregaçar as mangas e trabalhar.
Agora como eu digo assim, a lavagem foi o ponta pé inicial, mas tem muita
coisa. Muita coisa pra melhorar, muita coisa que a comunidade pode
abraçar e modificar e fazer as coisas acontecerem aqui independente do
órgão público e da gente ficar esperando que venha. Vamos buscar, tanto
coisa que a gente pode fazer pelo bairro e é difícil a gente botar isso na
cabeça das pessoas. (Rose).

Nesse momento a comunidade nativa aproveita a sua principal festa para discutir
questões fundamentais para o bairro. Começa a ter novamente inspiração para continuar
resistindo com suas tradições e percebe a necessidade de contagiar as pessoas com um
sentimento de pertencimento, que as humanize para o cuidado com o lugar, com o espaço e as
pessoas.
[…] essa questão da hierarquia, da preservação de valores. Não precisa
nem eu dizer que sou itapuanzeiro que já disseram Nativa Ativa. Então eles
estão dizendo que eles estão ativos. Ai isso ai cada um interpreta de uma
maneira que acha... (Josélio).

Com isso, cada participante interpretou esse título da sua maneira, a partir do
empoderamento da comunidade, que mostrou que o povo quando quer é capaz de resistir e
buscar meios para legitimar a sua luta que sempre existiu em torno da preservação da sua
cultura.
Eu acho que é uma retomada assim, uma repensada na cultura, mas ainda
falta muito a consciência pra esse “Ativa”. Pode ser muito mais e pode ser
muito mais de coração. Eu acho que Itapuã é um bairro que não depende de
ninguém, de nenhum outro bairro, não depende de prefeitura, não depende
de nada, sempre fez suas coisas, suas manifestações sem depender de nada.
E as vezes eu fico chateado quando vem assim a história de político. Os
políticos tem que estar envolvidos? Tem. Mas da seguinte forma, tem que ser
o que a gente quer e não o que eles querem. (Cuca).

A comunidade então - através de uma comissão organizadora formada por vários


segmentos representativos, grupos culturais, entidades e moradores - acaba por se reunir
antecipadamente para discutir uma proposta de organização, programação e realização da
lavagem de 2011, que teve como inspiração a ideia de divulgar a história, fortalecer a
identidade e permitir a expressão da diversidade cultural que habita o bairro.

Eu espero realmente que essa afirmação agora da festa seja nesse sentido,
da beleza cultural, da expressão dos valores artísticos do bairro que passa
pela educação, passa por esse trabalho que os grupos fazem o ano todo,
passa pelas pesquisas, pelas idéias, pela execução das idéias. (Amadeu).

 
 128
 

Assim, a festa de caráter popular se inicia muito antes do dia do evento. Desde os
primeiros momentos de organização e mobilização da comunidade de Itapuã, a festa começa a
ser vivenciada, sendo o seu dia apenas a materialização do que foi planejado. Desta forma, em
que se transformou a festa de Itapuã? Espaço de tradição, mas que permite a convivência da
diversidade? Espaço de conflitos? Espaço de identificações? Ou tudo isso a depender do foco
que se dá em determinados momentos?

Os homens, pelo contrário, ao terem consciência de sua atividade e do


mundo em que estão, ao atuarem em função de finalidades que propõem e se
propõem, ao terem o ponto de decisão de sua busca em si e em suas relações
com mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua presença
criadora através da transformação que realizam nele, na medida em que dele
podem separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, ao contrário do
animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica.
(FREIRE, 2005, p. 103-104).

Assim, é preciso que os indivíduos conscientizados continuem criando meios de


tocar mais pessoas das maneiras mais diversas para essa conscientização aliada a uma
curiosidade e vontade de mudar a realidade. Todavia, os sujeitos precisam ter a oportunidade
e liberdade para buscar conhecimento, seja bebendo na fonte da cultura popular, da internet
e/ou da academia. Segundo Milton Santos (2009, p.55), “nossa grande tarefa, hoje, é a
elaboração de um novo discurso, capaz de desmistificar a competitividade e o consumo e de
atenuar, senão desmanchar, a confusão dos espíritos.” Para isso, é preciso conscientizar. Frei
Betto (2000, p.29) explica que “conscientizar é passar da consciência ingênua para a
consciência crítica”. Com esta última o indivíduo tem a possibilidade de refletir sobre a sua
vida, que por sua vez se insere num contexto mais amplo, pensar sobre ele e perceber que
consequentemente este contexto reflete de formas diferentes na vida de cada um.
Os níveis de conscientização vão desde aqueles que percebem a importância da
cultura àqueles que parecem não viver no mesmo contexto que os vizinhos. Existem aqueles
que participam, mas não ajudam dos processos organizativos. Aqueles que criam grupos e
passam a discutir dentro da sua redoma algumas questões e fazem seus movimentos. Aqueles
que apenas participam olhando. Aqueles que se envolvem em tudo que podem. E por ai vai...
Assim,

 
 129
 

[…] o território não é um dado neutro nem um ator passivo. Produz-se uma
verdadeira esquizofrenia, já que os lugares escolhidos acolhem e beneficiam
os vetores da racionalidade dominante, mas também permitem a emergência
de outras formas de vida. Essa esquizofrenia do território e do lugar tem um
papel ativo na formação da consciência. O espaço geográfico não apenas
revela o transcurso da história como indica a seus atores o modo de nela
intervir de maneira consciente. (SANTOS, 2009, p.80).

Então, torna-se necessário atentar os olhares para o todo, pensar na festa, na cultura,
num sentimento de pertencer voltado para a humanização dos seres humanos, numa educação
que vá além da informação e que seja de responsabilidade de toda a sociedade e não apenas de
uma instituição, a escola. Os lugares existem com suas necessidades, suas particularidades,
mas estão inseridos numa escala maior e podem mudar a realidade e proporcionar uma
transformação social, seja de dentro da comunidade para fora ou de fora para dentro, ou ainda
uma construção de baixo para cima como nos diz Milton Santos (2009, p.113).

4.2 DAS REUNIÕES DE ORGANIZAÇÃO

A festa quando organizada e dirigida pela população local democraticamente tende


a ser um espaço de mobilização e conscientização social. Não existem pessoas melhores do
que a própria comunidade para fazerem acontecer uma festividade em um determinado lugar.
Ela começa bem antes do seu dia em si, a última quinta-feira que precede o carnaval. É na
imaginação de muitos moradores, logo após a última festividade, que se inicia. Há toda uma
reflexão dos pontos negativos e positivos, é um aprendizado através da práxis, na qual se
garante a tradição ao mesmo tempo em que se permite a criação ou recriação.

A festa tem uma contribuição de alimento, de prazer, de luta, de identidade,


de construção, é um processo muito bonito. [...] a cultura de Itapuã e das
festas de Itapuã está baseada no prazer, na alegria, na força que emana do
povo, isso que é a festa de Itapuã. É a contribuição do povo. Tanto que são
entidades dali mesmo que tomam a direção da própria festa, você vê que a
posse disso é muito importante. (Sidney).

No ano de 2011, mesmo sem a confirmação de contribuição financeira por parte do


poder público, a comunidade se reúne e busca seus meios de fazer a festa acontecer. A
festividade para essas pessoas tem um significado particular e ao mesmo tempo coletivo e
diverso. Seja porque é a memória de antepassados, que por anos mantiveram a tradição;
porque alimenta a identidade com o lugar; por ser espaço propício para autopromoção; ou
lugar que divulga grupos e manifestações culturais; seja espaço onde as regras são

 
 130
 

modificadas e a ludicidade é experimentada; ou sirva de fonte extra de renda; como também


por ser espaço de socialização entre moradores e destes com pessoas de fora do bairro. Entre
tantas outras motivações...
A ligação das pessoas com os símbolos/grupos diferentes mostra a “sua origem”,
por exemplo, se é do grupo As Ganhadeiras, do Chabisc, da Escola de Samba, etc. A
comunidade observa a filosofia, o comportamento e o compromisso dos indivíduos a partir
dos grupos aos quais se pertence; a temática de um velho ditado popular cabe certinho ao
lugar, “diga com quem tu andas que direi quem tu és”.
Nesse sentido, a lavagem também é uma disputa de interesses, de poder. E se
assemelha com o passado, quando negros oriundos de vários lugares da África foram
colocados juntos e por não conseguirem se entender, se comunicar, além das intrigas que cada
tribo já trazia de sua terra, tinham dificuldade em se unir para tentar mudar a realidade a qual
passavam. Hoje, isso parece perdurar de outra forma a partir dos valores da modernidade
como a individualidade e uma percepção da vivência em campo mostrou que os grupos na
comunidade de Itapuã podem se socializar mais ao buscarem pontos convergentes, sendo
interessante para o lugar que as pessoas, grupos e instituições busquem ações integradas,
parcerias, colaborações, porque se um grupo cresce dentro do lugar, a tendência é que todos
também colham os frutos desse crescimento.
Para Milton Santos (2009, p. 46), com globalização da maneira como está sendo
pautada, a competitividade tem tomado o lugar da competição e a ideia de acabar com a
concorrência para ocupar espaço não ficou apenas nas disputas de mercado financeiro, mas
parece às vezes invadir as relações das pessoas e dos grupos. “Consumismo e competitividade
levam ao emagrecimento moral e intelectual da pessoa, à redução da personalidade e da visão
do mundo, convidando, também, a esquecer a oposição fundamental entre a figura do
consumidor e a figura do cidadão.” (SANTOS, 2009, p.49). Justamente a superação dessa
mentalidade é que Amadeu diz ser o desafio.

Agora o desafio é justamente superar as questões todas de competição, de


concorrência, porque o grande lance que é a cooperação que a gente vê a
grande festa marcada pelas diversas expressões culturais, às vezes as
pessoas internamente desejam e até fazem alguma coisa pra que a expressão
não brilhe tanto quanto a dele. Claro que tem a coisa saudável, do cara
competir pra ser, pra estar bem, mas não em detrimento do outro. Acho que
o grande lance é a gente conseguir superar essas questões que são de ordem
de orgulho, da inveja do outro, da coisa de você só querer olhar pro
umbigo, pra ver a festa de Itapuã se transformar num grande desfile da
riqueza cultural do bairro. (Amadeu).

 
 131
 

Essas disputas de poder se dão, pois o espaço da festa é um momento propício para
divulgação. Ela é o palco público dos grupos que habitam Itapuã e também daqueles que
querem obter algum proveito no local. É possível fazer um paralelo da festa da lavagem de
Itapuã com o espetáculo do circo estudado por Magnani (2003, p.57) no qual o autor diz que
não é suficiente observar as reações dos espectadores - no caso, os participantes da festa no
decorrer do evento, mas no seu cotidiano.
Jean Duvignaud (1983, p. 66) afirma que “toda a extensão de poderio aciona seu
centro dinâmico de prestígio e irradiação e só viabiliza esta ação atacando o meio onde ela se
inscreve.” Trazendo para o campo de investigação da festa, principalmente numa comunidade
em que a rede de relações é dispersa, mas ao mesmo tempo contém ligações próximas e
amarradas, de alguma forma, a festa se torna um espaço para que seja demonstrado o poder e
algumas pessoas e grupos ganhem prestígio. A visibilidade que o evento oferece é um meio
propício para que os grupos possam obter visibilidade perante a comunidade e pessoas vindas
de fora do lugar. No entanto, o mesmo autor ao falar sobre a festa defende que:

As extensões da festa não se confundem com tais tipos de extensão, embora


umas possam servir de apoio às outras. A finalidade do lar, do mercado, da
ingestão de alimentos ou do poderio é imanente à atividade que envolve
estas ações. A festa, em si, ao contrário, não implica qualquer outra
finalidade senão ela mesma. E mais ainda, a criatividade que faz supor não é
criativa senão no âmbito das formas que reveste no curso da sua
manifestação. Nesta ocasião ela sai do domínio da percepção, não obstante a
sua amplitude por intermédio do reconhecimento das “dimensões ocultas”
para penetrar a esfera do imaginário. (DUVIGNAUD, 1983, p. 66).

O mesmo autor (1983, p. 67) diz que as festas coletivas podem vir a se confundir
com ilustrações de poderio ou de prestígio quando são abaladas por mudanças ou
transformações causadas pelo contato intercultural, podendo vir a resultar numa “modificação
interna, destruidora da cultura estabelecida.” E isso tem relação direta com a maneira que a
comunicação, o diálogo se dá.
Observou-se que em Itapuã falta a experiência de discussão democrática durante as
reuniões de organizações, pois muitas discussões saíam da temática da lavagem, alguns
participantes pediam a fala para fazer discursos, se promovendo, outros aproveitavam para
retratar problemas do bairro, alguns discursavam querendo a sua parte do dinheiro a ser
enviado pela prefeitura, entre outras tantas falas que demonstravam muito mais uma
preocupação individualista do que com o coletivo.

 
 132
 

Isso faz parte desse contexto da “globalização perversa” em que a dupla tirania, do
dinheiro e da informação, intimamente ligadas, são “as bases do sistema ideológico que
legitima as ações mais características da época e, ao mesmo tempo, buscam conformar
segundo um novo ethos as relações sociais e interpessoais, influenciando o caráter das
pessoas.” (SANTOS, 2009, p.37).
[…] eu acho que a partir do momento a gente precisa aprender a se
organizar coletivamente. Eu acho que a comunidade é muito passiva, é
muito mais fácil outras pessoas reclamarem do que estarem contribuindo
evidentemente com o seu papel de cidadão. Estar nos lugares construindo
coletivamente. (Ives).

O Sidney pensa nisso, que antes de reclamar a gente tem que fazer
acontecer e não ficar reclamando, ‘ah, tem isso aqui ta ruim, essa
segurança,... não. Vamos construir? Como a gente pode trazer uma
segurança melhor? É educando nosso povo? É fazendo com que o povo
entenda qual é o processo? (Sidney).

E em meio a tantos discursos vazios e sem perspectiva de contribuição, muitos


valorizando e reivindicando a questão do dinheiro, algumas pessoas tinham momentos de
lucidez para alertar da importância daquela reunião:

Bem, essas reuniões aqui pra quem não conseguiu ainda entender já vem
acontecendo há dois meses e meio, bem antes de eu ser convidada pela AMI
para participar da comissão de cultura. Obviamente que existe aquele
bichinho que fica mexendo na ferida, que deve ter um erro na comunicação
dizendo que ta rolando esse diabo desse dinheiro, não é?! Porque aqui a
gente está de graça mesmo com a cara e a coragem, tentando realmente
resgatar essa tradição de cultura oral, essa tradição que começou aqui, com
os nativos de Itapuã, que é uma coisa belíssima de você resgatar os povos,
resgatar o Terno de Reis, você saber o que é isso e do próprio sentido dessa
cultura popular, inclusive para as crianças do bairro. Essa questão toda de
infra-estrutura do bairro foi discutida anteriormente, mas é bom lembrar
que a pauta de hoje não é pra discutir essas coisas se não a gente se perde.
É só uma questão de organização [...] Podem ter ruídos na comunicação,
vai ter mesmo essa questão, estamos lidando com gente, com pessoas, essas
pessoas vai divergir, agora o sentido da coisa é esse mesmo, o diálogo, não
pode faltar diálogo. Não é isso?! Então essa questão do diálogo, do
respeito, são pressupostos que a gente aprende na nossa família. Respeito,
solidariedade e honestidade. Então quando se diz que está tendo dinheiro e
eu estou aqui pra dinheiro é porque vem buscar, porque ta rolando e alguém
está ficando com o dinheiro. [...] Então essa questão do comunitarismo é
muito bom porque isso é o resgate do povo, é dos nossos ancestrais,
entendeu?! Esse negócio do comunitarismo, vamos ajudar realmente um ao
outro, isso é coisa que é da cultura negra, isso é coisa que vem dos nossos
ancestrais. É bom falar que os valores a gente aprende com o papai e com a
mamãe, ta?! Muito obrigada. (Fala de Mel da comissão de cultura da AMI
gravada na reunião do dia 08 de fevereiro de 2011).

 
 133
 

Essa foi uma das chamadas que eram dadas para que as pessoas nas reuniões que
estavam mal intencionados e divergindo nos objetivos percebessem que estavam tentando
mudar a forma como vinha sendo organizada a festa. Outro exemplo disso foi a resposta dada
por Rose em um momento da reunião a uma pessoa que reivindicava verba para colocar a sua
manifestação na rua:
Não temos recursos, nós temos que nos doar, toda essa organização foi
construída assim. Estamos em equipes de mobilização, se cada um fizer sua
parte, sua doação, vamos batalhar para que a tradição não morra,
independente de dinheiro, contando com a participação de cada grupo. A
capoeira, os ciclistas, as baianas, etc. Se tem o feijão e falta a carne, um
traz a calabresa e outro a carne de sertão e faremos a brincadeira
(feijoada). A temática da lavagem é a união dos nativos para fazer a própria
festa, vamos limpar a imagem de que a festa é violenta quando na verdade
isso vem de fora da comunidade. (Fala de Rose registrada na reunião do dia
08 de fevereiro de 2011).

Assim, a própria organização proporciona aprendizados, que vão de encontro com a


formação do ser humano para além da festa.

O ato de organização da própria festa requer um ato também educativo, às


vezes uma liderança ou outra que tem a capacidade de naquele movimento
que às vezes é tenso e competitivo na busca de recursos, de um às vezes
querer ofender o outro, agredir. Se tem alguém também que tem a
capacidade de educar, de pô, é um processo democrático, mas vamos fazer a
coisa de uma maneira saudável e tal, é também um reflexo desse lado
educativo.(Amadeu).

Amadeu durante a entrevista relembra a forma como eram organizadas as


festividades, na base de doações, trazendo à tona como os grupos se mantinham e diz que isso
tem sido uma busca da comunidade nativa, retomar essa arte de fazer coletiva.

Então, botar uma expressão cultural na rua hoje é bem diferente do que era
antes, porque antes as coisas eram compartilhadas. Se precisava fazer um
feijão pra galera todos participavam de alguma maneira, uns mais, outros
menos. Se precisava construir roupas, era tudo feito na base do mutirão.
Esse sentimento de mutirão, de participação, hoje, ao longo do tempo,
passou a ser sempre esperado algo de fora, algum recurso de patrocinador,
do governo, disso e daquilo que é natural também se ter, mas acho que a
gente tem buscado também isso, resgatar esse sentimento de mutirão pra
que a gente não fique à mercê. (Amadeu).

Desta forma, falta a conscientização da maioria dos participantes, que ainda não
compreenderam o sentido e significado que a lavagem de Itapuã tem para o bairro, mas
também não conseguem fazer um paralelo da festa com a globalização perversa. Um ponto

 
 134
 

muito debatido pelos entrevistados são as pessoas que normalmente estão à frente dos
movimentos culturais, os líderes, que não podem agir de maneira autoritária e individualista.

Quando acontece de ter o recurso, as pessoas se engalfinham, se digladiam


por conta de querer cada um ter mais do que o outro. Então, passa pela
sabedoria e principalmente por quem está à frente, quem tem condição de
dar algum exemplo, quem tem condição de mostrar que é possível fazer de
maneira compartilhada, cooperativa. (Amadeu).

Paulo Freire (2005, p. 61) defende a ideia de que o convencimento dos oprimidos
de que é preciso lutar não pode ser doado ou imposto por uma liderança revolucionária. Deve
se dar com a inserção lúcida na realidade, na situação histórica.

O caminho, por isto mesmo, para um trabalho de libertação a ser realizado


pela liderança revolucionária, não é a “propaganda libertadora”. Não está no
mero ato de “depositar” a crença da liberdade nos oprimidos, pensando em
conquistar a sua confiança, mas no dialogar com eles. (FREIRE, 2005, p.61).

Ou seja, o caminho que o autor acima se refere é o da pedagogia humanizadora, na


qual a liderança revolucionária ao invés de se sobrepor aos oprimidos e continuar mantendo-
os como quase “coisas”, seres que não pensam, passa a estabelecer uma relação de diálogo
permanente, fomentando o debate, pensando com as massas ao invés de em torno delas, para
mostrar a “situação limite” em que se vive e tentar mudar esse estado de coisas
desumanizante. Paulo Freire (2005, p.147) defende a ideia de que essa transformação não
pode ser feita por aqueles que vivem no poder, mas pelos oprimidos com uma liderança
lúcida.

Que seja esta, pois, uma afirmação radicalmente conseqüente, isto é, que se
torne existenciada pela liderança na sua comunhão com o povo. Comunhão
em que crescerão juntos e em que a liderança, em lugar de simplesmente
autonomear-se, se instaura ou se autentica na sua práxis com a do povo,
nunca no desencontro ou no dirigismo. (FREIRE, 2005, p. 147).

“Os heróis são exatamente os que ontem buscavam a união para a libertação e não
os que, com o seu poder, pretendiam dividir para reinar.” (FREIRE, 2005, p. 167). Nesse
sentido, Eurico e Ulysses falam a respeito do significado da palavra líder, aquele que sabe
congregar, que se preocupa com as pessoas da comunidade, que sabe repartir e compartilhar
em igualdade.

 
 135
 

[…] o que é preciso é sair do autoritarismo, que isso não pertence a


ninguém. Só se é líder quando se tem um povo, quando se tem uma
comunidade. Líder sem comunidade não é. Líder que não tem proposta,
líder que não tem força para movimentar, para trazer algo, não é ser líder.
Líder é quem busca, quem luta, é quem traz. (Eurico).

A pessoa pra ser líder ele tem que ter a humildade de andar com o pé no
chão. Ele tem que saber dividir as coisas. O líder não pode pensar que tem
que comer filé e você ter que comer costela. Ele tem que pensar que você
tem que comer filé também com ele. E a maioria das lideranças que a gente
tem aqui não pensa nisso. Pensa assim, filé pra mim, farinha seca pra
fulano. Isso é que é a discussão. (Ulysses).

Bujão traz a necessidade de se ter lideranças ao invés de um líder, justificando que


dessa maneira que o movimento fica fortalecido. Diz também que não se sente um líder
porque não tem liderados e fala que os líderes não gostam de ser líderes, pois quando se quer
acabar com um movimento os primeiros a serem eliminados são estes, por isso há a
necessidade de se conscientizar para que haja o empoderamento da comunidade.

Na verdade eu acho que essa coisa de ser líder é o que tem pautado alguns
pequenos grupos. As pessoas acham que são líder. Eu acho que liderança não é
algo que se impõe, você conquista. Você só pode ser líder se você tiver
liderados e para você ter liderados você tem que interagir. Eu não me sinto um
líder, eu me sinto um ativista, um ativista com alguma capacidade, com algum
poder de intervenção, eu tenho histórico político, eu tenho uma tradição de
militância na sociedade e isso de alguma maneira me coloca numa posição
talvez até privilegiada, mas a liderança, o líder que é líder ele prefere não ser
líder, porque do ponto de vista da história, as comunidades onde tiveram
sempre a relação de um líder, quando ele incomoda a sociedade, quando corta
a cabeça desse líder você desmonta toda a estrutura da comunidade, então, eu
faço sempre o coro de que nós devemos ter sempre lideranças, não um líder ou
a líder, porque isso é relativo. Eu gosto muito do coletivo e ai no coletivo,
aqueles que tiverem habilidade para isso ou para aquilo, tem gente que tem
habilidade para falar, ou para escrever, outros tem o carisma de agregar
pessoas e eu acho que se você junta tudo isso num coletivo isso dá um caldo
legal até interessante. Eu não me enche nenhuma sensação desse poderio, eu me
sinto um ativista. (Bujão).

Nesse sentido, algumas acusações foram feitas durante as entrevistas de forma


ampla, retratando-se a vivências de um tempo passado, no qual a lógica da festa parecia ser
proporcionar benefícios e lucros aos envolvidos, sendo que aqueles que participaram do
momento não podem negar a sua parcela de responsabilidade, pois de certa forma estavam em
comunhão com o ocorrido enquanto outros estavam no conformismo. Por isso, em momentos,
a entrevista acabava voltando à mesma temática, a questão do dinheiro.
Milton Santos (2009, p.31) chama atenção para a mudança do mundo da
competição para o da competitividade. Isso se deve pelo fato de que as disputas pela mais
valia acontecem a todo o momento, de maneira instável. Com isso, a própria crise, que antes
 
 136
 

se instalava entre os períodos históricos mostra-se permanente, global e estrutural. Essa crise é
a financeira, sendo que não há preocupação com o aprofundamento da crise real que afeta a
econômia, mas também o social, a política e a moral.

A competitividade, sugerida pela produção e pelo consumo, é a fonte de


novos totalitarismos, mais facilmente aceitos graças à confusão dos espíritos
que se instala. Tem as mesmas origens a produção, na base mesma da vida
social, de uma violência estrutural, facilmente visível nas formas de agir dos
Estados, das empresas e dos indivíduos. (SANTOS, 2009, p.37).

Os comportamentos dos indivíduos são modificados e passam a seguir essa lógica


perversa, que possui o encolhimento das funções sociais e políticas do Estado, abrindo espaço
para que o papel político das empresas se amplie e influencie na regulação da vida social.
Como consequência disso, tem-se um retrocesso na noção de bem público e solidariedade,
que passa a dar lugar a um individualismo competitivo entre os seres humanos. (SANTOS,
2009, p.38).

Acho que precisa melhorar a conscientização, porque todos nós estamos


lutando por um ideal que é Itapuã e o que eu vejo aqui é muita guerra de
poder, todo mundo quer ser o pai da criança, só que no momento Itapuã não
precisa de pai da criança, o pai da criança é Itapuã, nós somos filhos, então
a gente tem que lutar para socorrer nosso pai. E ai eu vejo A, B, C, “porque
eu sou importante”, “porque eu não sei o que” e ai “eu” vou buscar esse
recurso, quando o recurso vem as pessoas não são transparente, não bota lá
uma prestação de custos pra você se sentir representado, pra você sentir,
não, realmente a coisa está clara. (Biriba).

No ano de 2011, a não garantia dos recursos financeiros provenientes da prefeitura


obrigou a comunidade a descobrir uma maneira de fazer acontecer a festa. Conta Rose que a
sua presença nessa comissão se deu ao saber de rumores no bairro que diziam que a lavagem
não iria acontecer ou não aconteceria de forma satisfatória devido à questão da Bahiatursa não
se dispor a pagar as baianas que iriam sair no cortejo, achando isso um desaforo, a lavagem de
Itapuã ter mais de 100 anos e a participação das baianas ser apenas mantida por um valor
simbólico.

E ai eu conversando com Gracinha do Acarajé, eu disse, “ah Gracinha, isso


é um absurdo, não vai ter a lavagem, o cortejo vai ser pior do que o ano
passado, porque vão vir poucas baianas, porque disse que a Bahiatursa não
quer pagar, não tem recurso e como é que pode isso?” Ai eu com meu bocão
falei, “Até eu Gracinha me visto de baiana, quem é aqui em Itapuã que não
pode pegar a sua vassoura, fazer uma roupa de baiana e lavar a Igreja de
Nossa Senhora da Conceição? Isso é um absurdo!” (Rose).

 
 137
 

Nesse momento, Bujão ao sair de uma das reuniões de organização da lavagem, dá


a notícia de que foi decido pelo coletivo presente que Dona Cabocla (avó de Rose) seria
homenageada junto com Juvená; Rose aproveita para dizer que a comunidade deveria ser
convocada para participar, fazer a festa acontecer, já que a lavagem é do bairro e que a
participação deveria ser por amor. Desse dia em diante, Rose frequentou as reuniões e
assumiu a responsabilidade de mobilizar as mulheres de Itapuã, estando junto a Eurico na
comissão responsável pelo cortejo.

[…] foi uma batalha, porque essa questão do dinheiro aqui é muito forte. E
o povo, “ah, você vai entrar nisso ai, porque não sei o quê, o povo vai
chamar você disso, daquilo”, e eu não, uma coisa é falar, outra coisa é
provar. E logo quando a gente começou as reuniões, os blocos, alguns
vieram, “porque eu quero o meu dinheiro, porque eu quero a minha parte”,
batia no peito assim (faz o gesto) na frente de todo mundo, até na frente de
representantes de secretarias municipais. [...] E ao mesmo tempo eu até
achava engraçado, porque eu achava tão ridículo. E eu sei que no final, esse
pessoal que ficava batendo no peito pedindo dinheiro até fez doação pra
feijoada, não sei quantos quilos de farinha e descansou, no que eu vi, até
onde eu acompanhei, nessa questão do dinheiro. E assim a gente conseguiu
fazer um trabalho legal e provar que a gente pode fazer as coisas sem essa
busca do recurso pra si. (Rose).

No caso da festa da lavagem, esta passou com o tempo a ser vista como um espaço
comercial, na qual muitos dos envolvidos diretamente com a organização almejavam
conseguir benefícios, que vão desde financeiros a prestígio político.
Essa questão das baianas trazida aqui por Ives é apenas um exemplo em tantos
outros, pois, não eram pessoas voluntárias e da comunidade local que se apresentavam
enquanto personagens principais da sua festa, eram baianas contratadas as atrizes principais.
Ou seja, ao invés de fortalecer o movimento cultural na comunidade, o pagamento das
pessoas gerou desentendimentos e muitas brigas.

Se educar é modificar, estamos presenciando iniciativas que buscam novas


atitudes diante do entorno, gerando e desenvolvendo capacidades coletivas.
Então, é tarefa permanente desta comunidade e de todos nós a formação de
sua população, à disposição para a aprendizagem permanente de “novas
linguagens” e oferecer oportunidades para a análise da vida cotidiana, o
resgate de histórias que, sendo individuais, familiares ou do bairro, são
também reflexo de nossos lugares e tempos. (PIZARRO, 2004, pp. 86-87).

Sobre o interesse dos grupos em receber a sua “fatia do bolo”, como muitos
entrevistados referiram, Bujão explica que ficaram decididos prioridades básicas, pois a

 
 138
 

lavagem de Itapuã não é como o carnaval, que pode apoiar as entidades que desfilam na festa
através do programa chamado “Ouro Negro”, que financia entidades culturais de matrizes
africanas a desfilarem. Essa é até uma proposta interessante para o poder público, criar um
programa de apoio aos grupos culturais, que desfilam nas festas populares de Salvador. Isso
seria interessante, pois iria retirar da pessoalidade das relações comunitárias dos bairros, dar
igual oportunidade aos grupos e valorizar aqueles que tivessem interesse em pleitear o apoio.
Outra discussão gira em torno da arte de fazer acontecer a festa na comunidade,
pois durante um bom tempo se resumiu à espera do dinheiro que o poder público especulava
dar ou ainda das doações de políticos, que frequentavam as reuniões de organização fazendo
suas plataformas políticas.

[…] é um trabalho árduo, agora a gente tem muito que arregaçar as


mangas e não ficar na dependência de político, porque político só quer estar
bem na fita, porque no bairro ele quer é voto, como esses que participam
das reuniões que a gente faz, só quer aparecer, mas na hora do vamos ver,
sai de baixo, todo mundo sai. (Rose).

Ulysses demonstra se preocupar com a transparência dos atos ao pedir que tudo
fosse feito de maneira aberta a todos, propondo que as reuniões acontecessem numa praça -
lugar público e que tem como proposta a função de congregar, das pessoas poderem se reunir.
Além disso, sugeriu que tudo fosse filmado, pois segundo ele seria um meio de guardar a
memória mais próxima de como aconteceu e fazer uma avaliação posterior do que tinha se
passado no calor das discussões. Suas propostas não foram todas acolhidas, como a da praça,
mas ele relatou se mobilizar junto a outras pessoas para garantir que a filmagem fosse feita.
Um dos problemas descobertos por ele é a questão da inserção dos políticos nas
reuniões de organização, sendo que percebe tal fato assistindo a vídeos das reuniões e que
agora está atento à isso. Relata que em cada reunião ia um vereador diferente para ficar dando
opiniões e fazendo promessas.
Paulo Freire (2005, p.58-61) chama isso de “sloganizacão”, aqueles que se pautam
no discurso, na reflexão sem ação, como também pode existir o contrário, o “ativismo”, que é
a ação sem a reflexão. Então, é preciso ter certo nível de conscientização para criar as táticas
necessárias, que possam se pautar na práxis, ação e reflexão simultâneas, que Freire (2005)
diz ser a base para a libertação dos oprimidos.

 
 139
 

E eu pedi a eles, vamos reunir numa praça, ao céu aberto, com a luz do dia,
com várias pessoas ouvindo, vamos gravar tudo das reuniões. E não foi uma
pessoa só filmando não, tinham várias. Então veio se descobrir aonde estava
o meio da cobiça, os vereadores estava fazendo o lobby deles. [...] Um dizia,
vai dar isso, o outro dizia, não, vai dar aquilo. Que era pra nunca cair no
fator principal e eu consegui cercar eles tudo. [...] Porque é melhor a gente
fazer sem o dinheiro, que vai sair mais gostoso, mais bonito, do que fazer
com o dinheiro que é a ganância. E a gente não deixar o vereador entrar no
trabalho que é pra ele não fazer a plataforma política dele, que ele entrando
ele faz a plataforma política. É melhor a gente ficar sem o político e fazer a
festa. (Ulysses).

Para que haja a ação libertadora, conceitos como os de organização, mobilização e


luta precisam ser compreendidos e colocados em prática. Todavia, o que interessa ao poder
opressor é enfraquecer os oprimidos cada vez mais, criando e aprofundando cisões entre os
sujeitos, através de métodos e processos variados que vão desde “os métodos repressivos da
burocratização estatal, à sua disposição, até as formas de ação cultural por meio das quais
manejam as massas populares, dando-lhes a impressão de que as ajudam.” (FREIRE, 2005, p.
161).
Esses espaços da tradição contêm ensinamentos e formas de fazer passados de
geração em geração que são, portanto, espaços não conformes a essa racionalidade opressora.
Por isso, Ulysses diz que a comunidade vem mantendo as suas tradições porque a gente é
persistente. A gente não deixa tomarem tudo, a gente tem uma guerra, uma luta, pra sempre
manter aquilo. Ele revela como vem tentando fazer isso, ensinando, mostrando aos seus
familiares como e porque tudo acontece, contando as histórias que ele sabe para que um dia
sejam recontadas para a geração seguinte.

Eu vou fazer a idade que vou fazer e eu venho dizendo a meu filho, olhe,
tome cuidado, que se amanhã eu for-me embora, a hora que o homem me
chamar, que eu vou ter que ir, você aprender a defender isso. Outros
sobrinhos, outros filhos, tenho netos e eu venho dizendo, olhe, é assim. Tem
que aprender a defender isso. Você é daqui, não deixe nego dar o golpe, não
deixe acabar. Que é a única coisa que quando a gente morrer, se existe
espírito mesmo, se o espírito leva saudade é dessas coisas. Que se existe
reencarnação, eu acho que eu vou voltar fazendo tudo isso que eu já fiz.
Lutando por tudo isso, pra não deixar acabar. Se morrer o homem, some o
sangue, mas fica a lembrança pra manter essa lembrança pra meu povo.
(Ulysses).

No mesmo sentido da fala de Ulysses baseada nas vivências está a discussão trazida
por Milton Santos (2009) quando diz que os individualismos, e ai incluem-se os dos políticos,
dos falsos líderes, dos moradores do bairro, justificam a falta de respeito às pessoas, sendo na
realidade um dos problemas junto à concessão de privilégios ao invés de direitos à

 
 140
 

sustentação da ordem dominante da sociedade brasileira, que levam “ao empobrecimento do


debate de idéias e à própria morte da política. (SANTOS, 2009, p.54).

Ora, é isso também que justifica os individualismos arrebatadores e


possessivos: individualismos na vida econômica (a maneira como as
empresas batalham umas com as outras); individualismos na ordem da
política (a maneira como os partidos frequentemente abandonam a idéia de
política para se tornarem simplesmente eleitoreiros); individualismos na
ordem do território (as cidades brigando umas com as outras, as regiões
reclamando soluções particularistas). Também na ordem social e individual
são individualismos arrebatadores e possessivos, que acabam por constituir o
outro como coisa. Comportamentos que justificam todo desrespeito às
pessoas são, afinal uma das bases da sociedade atual. (SANTOS, 2009,
p.47).

Ao mesmo tempo é preciso levar em consideração as travas que o próprio Estado se


permitiu ter pela economia global. Bauman (2005, pp.34-35), ao citar a tríade de direito de
Thomas Marshall, nos diz que os direitos econômicos estão fora do controle do Estado, que os
direitos políticos oferecidos por estes são limitados e dependentes do livre mercado neoliberal
completamente desregulado à medida que “os direitos sociais são substituídos um a um pelo
dever individual do cuidado consigo mesmo e de garantir a si mesmo vantagem sobre os
demais.”
As forças globais descontroladas e destrutivas se nutrem da fragmentação do
palco político e da cisão de uma política potencialmente global num
conjunto de egoísmos locais numa disputa sem fim, barganhando por uma
fatia maior das migalhas que caem da mesa festiva dos barões assaltantes
globais. Qualquer um que defenda “identidades locais” como um antídoto
contra os malefícios dos globalizadores está jogando o jogo deles – e está
nas mãos deles. (BAUMAN, 2005, p. 95).

Isso porque não é suficiente a defesa das identidades locais, é preciso mudar esse
pensamento egoísta em todos os níveis, a começar pela política, que para Milton Santos
(2009, p.67) deve ter uma visão ampla, levando tudo e todos em consideração, ou seja, “tem
de cuidar do conjunto de realidades e do conjunto de relações”. Não deve agir de forma a
conceder e obter privilégios, precisa ser justa. Para Paulo Freire (2005, p. 60), “a ação política
junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, “ação cultural” para a liberdade, por isto mesmo,
ação com eles”, dialógica, pois não se deve aproveitar da visão inautêntica e da dependência
emocional decorrente da dominação dos sujeitos, sendo que o aproveitamento por parte de
qualquer ser humano é condizente com a carapuça do opressor, que se serve da dependência
para reproduzir mais dependência. “O antidialógico se impõe ao opressor, na situação objetiva
de opressão, para, pela conquista, oprimir mais, não só economicamente, mas culturalmente,
 
 141
 

roubando ao oprimido conquistado sua palavra também, sua expressividade, sua cultura”.
(FREIRE, 2005, p. 157). A fala de Cuca mostra como essas relações tem se pautado durante a
época da lavagem.

Eu fui um dia numa reunião e tinha um político lá, vereador e um amigo


meu falou assim, “Cuca tem um projeto bacana aqui com os meninos, e tal e
tal”, ai ele nem conversou muito, virou pra mim e disse, “ah, você tem um
projeto com os meninos, tal, e tal, você já tem as camisas para os meninos?
Eu disse, já estou fazendo, mas minhas camisas já estavam feitas. Ai ele
falou assim, “passe no meu gabinete e me procure, vá lá que vou te dar 50
camisas já com meu nome no fundo, você leva a sua marca.” Ai eu fiquei
pensando assim, que relação é essa? Que relação é essa que eu vou lá... eu
não dependo de camisa. A gente sai sem camisa! Eu não dependo da camisa
dele pra nada. Quem depende de mim, quem depende da gente são eles. A
gente não depende deles pra nada. Se a gente não tiver camisa a gente sai
sem camisa. Cada um vai vestir sua camisa branca, vai vestir sua camisa
amarela, vai vestir o que tem, porque graças a Deus na minha casa e nem
na casa de muitos nunca faltou comida e não vai ser hoje, nem amanhã por
causa de um político desses, de um vereador, ou o que quer que seja, que vai
faltar pra gente estar na mão deles. [...] Então se o Nativo Ativo, se ele tiver
consciência, se ele tiver um pouco mais de consciência, dentro de tudo que
está sendo feito, ele vai ver que essas pessoas tem que vir aqui, as grandes
empresas tem que vir praqui pra promover a gente aqui. Elas vão ter que
chegar aqui e bancar o carnaval todo, mas bancar cultura, não é bancar o
que eles querem, chegar aqui e fazer o que eles querem de mudar não. Eles
tem que chegar aqui pra bancar cultura e a gente se impor, porque a gente
não depende disso. O bairro não depende disso. Porque isso é migalha, você
vai beber hoje, você vai comer hoje mas amanhã você não tem. Então é
melhor passar fome mesmo, segurar a onda e ter uma postura do que ficar
se submetendo a muitas coisas ai. (Cuca).

Infelizmente, muitas pessoas continuam seduzidas pelo dinheiro ou benefícios que


podem vir a ser obtidos com a participação nesse meio junto às “oportunidades de negócios”,
que podem surgir. Não pretendo aqui entrar em detalhes, fazer julgamentos, a questão é que
ninguém está protegido dessa sedução e é justamente a paixão mencionada por Eurico, por
Frei Betto (2000, p. 36) e também por tantos outros autores e entrevistados que pode vir a
fazer um contrapeso para que nesse mundo do dinheiro seja aberto espaço para se pensar nos
indivíduos de uma forma mais humana, prezando os direitos sociais e numa sustentabilidade
da festa.
A violência estrutural abre espaço para diferentes formas de violência no cotidiano
da sociedade e nisso também se inclui as suas festas. Fruto da necessidade e busca do dinheiro
em estado puro, esta violência conduz a uma competitividade entre os seres humanos, mexe
com a ética e os valores morais destes, de modo que a regra maior é a conquista de uma
melhor posição, independente do que venha a acontecer com o outro e com o seu modo de

 
 142
 

vida. Milton Santos (2009, p.58) diz que “o abandono da idéia de solidariedade está por trás
desse entendimento da economia e conduz ao desamparo em que vivemos hoje”. As
condições mínimas para a sobrevivência são arrancadas dos indivíduos e vistas pela sociedade
como algo natural e é a partir da necessidade da existência e da convivência com o outro que
a política dos “de baixo” é constituída, baseada no cotidiano vivido por todos. (SANTOS,
2009, p.132).

Gente junta cria cultura e, paralelamente, cria uma economia territorializada,


uma cultura territorializada, um discurso territorializado, uma política
territorializada. Essa cultura da vizinhança valoriza, ao mesmo tempo, a
experiência da escassez e a experiência da convivência e da solidariedade. É
desse modo que, gerada de dentro, essa cultura endógena impõe-se como um
alimento da política dos pobres, que se dá independentemente e acima dos
partidos e organizações. (SANTOS, 2009, p.144).

Assim, esse processo de mobilização comunitária e de produção cultural nada mais


é que um processo de humanização da comunidade e demais envolvidos. É um espaço de
educação política e até mesmo econômica de como gerir e lidar com recursos financeiros
destinados à cultura, pois exercita a cidadania, põe os sujeitos em discussão para decidir o
melhor para todos ou para a maioria, sendo estes estimulados a buscar meios para fazer
acontecer seus projetos, ações, eventos, e manifestações, sejam estes com apoio do governo,
outras instituições, exclusivamente dos próprios moradores locais ou de uma parceria de todos
os mencionados.

Quando nós temos pessoas pra zelar e pra cuidar dessa planta maravilhosa
que cresce que é o nosso desenvolvimento cultural, ai a gente consegue se
manter não por força política, mas por força na verdade da união do povo.
É isso que se diz comunidade, é isso que se diz sociedade. É isso que se diz
cidadania, esse poder de participação coletiva que o povo tem de construir
sua cultura mesmo com tanta deficiência política. (Sidney).

 
 143
 

O que não se pode esquecer é que os interesses na festa são diversos e que artes de
fazer baseadas na mobilização coletiva podem continuar existindo guiadas pela criatividade
utilizando-se da solidariedade. Nesse sentido, as pessoas de Itapuã começam a agir, fazer
coligações com outras entidades como a Associação Brasileira de Preservação da Cultura
Afroameríndia (Afa), que foi fundamental para aumentar o número de baianas, fato que faz
Rose se emocionar ao relembrar as quase duzentas que fizeram parte do cortejo sem receber
ajuda financeira.

Esse ano nós tivemos uma participação importantíssima das baianas de


Itapuã, porque ao contrário do que se falavam, que a lavagem de Itapuã não
tinha baiana, e nós descobrimos um fenômeno, na verdade o que afastou as
baianas, as pessoas de Itapuã que se vestiam de baiana na lavagem era a
mercantilização da festa. Essa idéia de que as baianas só podiam vim se
fossem pagas, as que vinham de fora para serem pagas, isso quando
começou a ter problema por parte de quem organizava as anteriores foi
afastando a comunidade e esse ano as mulheres de Itapuã resolveram se
juntar e elas fizeram uma campanha para resgatar a participação das
baianas de Itapuã, sem que a participação delas se desse no plano do
pagamento de cachês ou de ajuda de custos. Isso foi um sucesso absoluto.
Nós tivemos pela primeira vez em Itapuã uma lavagem com quase ou mais
que 200 baianas e isso foi pra nós uma grande vitória. (Bujão).

Rose diz que muita gente criticou a mistura dos brincantes, dos participantes da
festa com as baianas no cortejo, mas segundo ela era isso mesmo que a comunidade queria,
trazer a população para se aproximar da manifestação. E muita gente criticou que o povo
invadiu, mas era isso mesmo que a gente queria. Se essas pessoas tivessem participado da
reunião, saberiam que era isso mesmo que a gente queria, agregar o povo. (Rose).
Quando questionado sobre como é decidido com o que deve ser gasto o dinheiro
que vem do governo, Bujão responde que esse pagamento tem sido um problema porque os
recursos nunca chegam na época certa e isso acaba prejudicando a organização do festejo, que
fica sem a quantia mínima para fazer acontecer a lavagem; relata que no ano de 2011 foram
elencadas nas reuniões níveis de prioridade e que o dinheiro recebido seria gasto apenas com
o que fosse necessário, com o que fosse tradicional e o resto, como os grupos, deveriam por
conta própria, da sua maneira, se organizar para conseguir os recursos.

 
 144
 

Esse é um problema muito sério porque primeiro que os recursos quando


chegam aqui, nunca chegam na data por parte da prefeitura. Esse ano nós
tivemos uma comissão representativa, mas, por exemplo, a festa aconteceu
em fevereiro e o recurso só saiu em maio, então como é que você consegue
fazer uma festa dessa maneira? Algumas pessoas acabam se endividando,
algumas empresas, alguns parceiros. [...] também teve campanhas de
doações de materiais, como feijão, carne, foi toda uma campanha e isso
ajudou muito. Quer dizer, quando o recurso chegou atrasado, tivemos que
pagar as pessoas que se envolveram, alguns grupos e isso está tudo em
relatório que nós estávamos inclusive entregando a prefeitura. (Bujão).

E isso tem relação com o que Ulysses alerta à comunidade, a época que são
iniciados os preparativos da lavagem, que segundo ele quando uma acaba já se começa a
outra. Seguindo aprendizados que teve, observando tios, que organizam outras manifestações,
Ulysses diz que os preparativos devem ser feitos durante todo o ano e faz uma crítica à forma
como tem sido conduzido tanto o prazo de início de planejamento, como também de prestação
de conta.

Isso há muitos anos (estala os dedos), eu aprendi isso, eu tenho mais de 50


anos que aprendi isso. Porque quando meus tios fazia negócio de terno, o
outro fazia batucada, quando terminava um carnaval, eles ai armava
sábado de aleluia, a feijoada pra gente prestar conta do carnaval, sábado
de aleluia a gente já começava a planejar o outro carnaval. Eu aprendi isso.
Então eu não posso sair de 2011, e pra sair 2012, deixar pra começar meu
planejamento no meio de 2011. (Ulysses).

[...] Então agora eu já brigo, rapaz, vamos acertar isso. Vamos ver como é
que a gente bola isso? Tem gente que diz, ah rapaz, está muito cedo. O cedo
se torna tarde. (Ulysses).

Sobre o critério de seleção para fazer parte da comissão, Bujão relatou que isso se
deu levando-se em consideração a vinculação a alguma entidade atuante dentro do bairro,
sendo necessária a disponibilidade de horários para se dedicar às reuniões, como também
possuir a capacidade de contribuir com a organização. No entanto, percebe-se que essa talvez
não seja a melhor maneira de eleger os membros da comissão. Além dos momentos
tradicionais, como o café da manhã de Dona Nissú, o Bando Anunciador, o Presente de
Iemanjá da segunda feira gorda, que poderiam continuar sendo passados de mão em mão
pelos membros da comunidade, uma eleição poderia ser feita para que aquelas pessoas que só
fazem reclamar pudessem ter a oportunidade de ocupar cargos e mostrar que são capazes de
assumir algumas responsabilidades perante um coletivo, participar mais ativamente, isso iria
legitimar a comissão, que demonstraria estar construindo um processo democrático. Em

 
 145
 

relação a isso, Eurico traz a questão da avaliação do processo, da prestação de contas e


também da organização da festa do ano de 2012.

O importante dessa festa é a cultura e os poderes públicos, mesmo com toda


demora fizeram o repasse de uma verba e que eu espero até hoje é que essa
comissão, essas pessoas que estiveram à frente de tudo isso reúna essa
comissão e convide a comunidade, convide o poder público que contribuiu
para que a gente possa fazer uma prestação de conta, que a gente possa
dizer o que mudou, dizer o que queremos para 2012, se foi bom se foi ruim,
o que precisamos mudar. É nessa contribuição, nessas vias de mão dupla é
que a gente se entende, é quando a gente pode ouvir as críticas e fazer dessa
crítica o combustível para a mudança, mostrar a sinceridade, a legalidade,
mostrar a lisura de tudo, porque é uma tradição e tradição não se tem lucro,
o lucro é respeito, o lucro é algo que a gente não consegue pegar, ele não é
palpável, mas a gente sente a demonstração de carinho, de amor, os
parabéns, os abraços, os beijos e ter a certeza que a gente trilhou um
caminho digno, de respeito, estamos com as nossas consciências tranquilas
que não houve em momento nenhum atos que possa de alguma forma abalar
a nossa imagem. E eu tenho certeza que essa comissão no momento certo,
apesar de que já estou achando tardio de fazer um demonstrativo de todo o
financeiro de 2011. E já estamos atrasados para os preparativos da festa de
2012. Mas com financeiro ou sem financeiro eu sempre participei. [...]
Porque a lavagem de Itapuã ela é do povo, é uma força que emana do povo.
Ótimo que estejamos organizados, que estejamos liderados, que sejamos
liderados, precisamos disso. (Eurico).

Em relação ao retorno da prestação de contas para a comunidade, Bujão diz que


esse feedback é dado através dos grupos e organizações. Segundo ele, a entidade chamada
“Frente comunitária parlamentar mista em defesa de Itapuã” foi constituída a partir da união
proveniente da lavagem de 2011, e é quem deve convocar as reuniões de organização da
lavagem para que o relatório à prefeitura seja apresentado. No entanto, isso talvez legitime a
presença dos políticos, que parece ter sido um dos entraves das lavagens anteriores.

Então as entidades todas terão acesso. Porque a coisa não pode e não deve
ser para alguns, ela tem que estar acessível para qualquer pessoa que
queira, que mora em Itapuã e que esteja interessado em saber o que foi feito
com o recurso que chegou da prefeitura. (Bujão).

Outro ponto bastante batido nas falas dos entrevistados é que a lavagem está
precisando de apoio dos órgãos públicos, dos comerciantes locais, das pessoas, que podem dar
uma contribuição ao invés de ficarem com “os braços cruzados criticando”. Abaixo, Biriba
fala sobre isso e pede que as pessoas se envolvam mais para fortalecer o movimento.

 
 146
 

A gente sabe que existe um custo e quem banca isso? As entidades culturais
pra participar de um evento desse têm seus gastos, têm que comprar flores,
pote de barro, vassoura para as baianas, os músicos têm que ter um cachê,
têm que ter o lanche do pessoal, têm que ter uma água mineral e assim,
entidades que podem também participar para que o movimento fique mais
forte às vezes se omite como (quem diz) “ah, eu não tô ganhando nada com
isso”. Mas eu acredito que se essa festa crescer, Itapuã cresce e todo mundo
cresce junto com o bairro, com a festa. [...] É uma forma de crescimento
para a cultura local. Mas a gente precisa de apoio. (Biriba).

Essas atualizações acabaram modificando valores e o brilho maior deixou de ser a


criatividade, o popular, a socialização, a fé e passou a se voltar para um mundo em que o
centro da questão deixou de ser a maneira compartilhada de organização para se pautar na
dependência do governo.
Como tornar públicas as ações? Essa é uma questão fundamental, pois apesar da
comunidade ter em si a característica de ser pequena, das pessoas se conhecerem, ao mesmo
tempo, muitos indivíduos que moram no bairro e que por diversos motivos não se
emaranharam na comunidade precisam ser informados sobre as reuniões, debates e eventos do
lugar. Uma maneira de socializar os recursos recolhidos, os gastos e demais eventos seria um
mural público que pudesse divulgar a planilha de custos, colocada em um espaço
movimentado e de fácil acesso como a praça Dorival Caymmi.
A divulgação da festa se dá tanto através da mídia, como pelo “correio nagô”,
expressão utilizada por Bujão que significa de boca em boca. No entanto, devem ser buscadas
outras maneiras de divulgar a festividade e principalmente alertar as pessoas para os sentidos
e significados da lavagem de Itapuã para o lugar.

Eu acho que todo processo coletivo ele é um aprendizado. Nós tivemos


reuniões com mais de 100 pessoas, quer dizer, você estabelecer uma
intervenção em um universo com mais de 100 pessoas não tem como não ser
um aprendizado. (Bujão).

Então você vê que essa relação de aprendizado e de coisas que adentram a


festa de Itapuã é pra fortalecer, pra educar... (Sidney).

As festas culturais eu acho que a importância delas é educar. Eu acho


assim, é educar e mostrar o outro lado da arte. (Cuca).

Portanto, a festa de Itapuã imersa em uma série de processos educativos é uma


representação simbólica e real das relações sociais, da história, das disputas, da diversidade,
das transformações, do cotidiano do bairro e da comunidade itapuanzeira, que é formada e
reformada no movimento circular dos tempos.

 
 147
 

Ainda há uma participação dos moradores antigos, dos itapuanzeiros, porque


na verdade eles é que são a mola mestra dessa festa, mas há uma contribuição
muito grande daqueles que chegam, com a sua tecnologia, com a sua inovação,
só não podemos permitir que mude, o que é tradição não se muda, mas pode-se
melhorar com o que chega, com os novos conhecimentos. Isso nós precisamos.
Nós não podemos é descaracterizar a festa de Itapuã, que isso é amor, é paixão.
E amor e paixão não se explica, acontece. (Eurico).

A efervescência cultural, que precede a lavagem nos finais de semana, é animadora.


Diversos grupos promovem uma série de eventos e feijoadas para arrecadar fundos para as
despesas do desfile. Esse último é esperado por muitas entidades, pois além de mostrarem o
seu trabalho, participam da festa de forma lúdica e comemorativa. Organização e execução de
táticas diversas são fundamentais para que os moradores possam ver a festa acontecer. Os
envolvidos se movimentam para deixar tudo nos conformes. Algumas disputas e obstáculos
aparecem no meio do caminho, mas nada impede a celebração.

4.3 O DIA DA LAVAGEM NATIVA ATIVA

O dia da festa é atípico para a comunidade local. As casas recebem parentes e


amigos vindos de outros lugares. Muitos moradores recebem folga do trabalho devido à
dificuldade para chegar e sair do bairro. Algumas ruas se organizam para preparar a sua
própria programação para depois do cortejo e desfile dos grupos. Uma nova organização toma
conta do lugar. O comércio, instituições, escolas, bancos ficam fechados no dia do evento e
estruturas de barracas, postos de serviços já se encontram montados desde o início da semana
pelos órgãos competentes do poder público.
É chegado finalmente o dia planejado. Na madrugada silenciosa é possível ver
algumas pessoas caminhando em direção à Praça do Geraldão. O primeiro grupo a sair nas
ruas é “O Bando Anunciador”, fanfarra composta por músicos do próprio bairro que sai em
direção às ruas de Itapuã, acordando a comunidade, anunciando a lavagem e convidando a
todos para se juntarem ao coletivo até retornar ao ponto inicial para comer a famosa feijoada
na casa de Dona Nini.

 
 148
 

Durante a madrugada é quando esse bando sai de ruas em ruas, de porta em


porta, crescendo a cada segundo, a cada minuto, vai se avolumando,
avolumando e você começa com 50, quando você pensa que não, que você
olha pra trás, você já não consegue mais contar quantos tem. E ai você vai
pra uma segunda etapa e quando já encerrando essa caminhada do bando
anunciador, tem o café da manhã, o tradicional café de Nissú, que ainda se
mantém, sua filha mantém. É uma coisa que só o amor, só paixão por isso.
Porque não é uma obrigação, mas é uma devoção. [...] Só tendo paixão
mesmo pra ela comprar do seu bolso, fazer o mingau de tapioca, preparar o
mingau e outros chegam com uma melancia, outros chegam com um pão,
com um beiju e com uma coisa e outra e esse café termina dando pra todos.
E o que faz isso? (Eurico).

Para responder a essa pergunta Eurico cita o sábio caboclo e canta dizendo E o que
faz isso? É a boa união, e o que faz isso? É a boa união. Segundo Celso, o Bando anunciador
saía num domingo anterior à lavagem para avisar os moradores e esse dado histórico já foi
passado para ele por sua mãe.

E o bando anunciador que fazem, na realidade, contava a minha mãe, que o


bando anunciador era feito antes da festa de Itapuã, até porque, por uma
questão de lógica, você ia lavar a igreja antes, acho que era num domingo
antes da lavagem, você saia com o bando anunciador pra avisar as pessoas
que na quinta feira a igreja seria lavada. Hoje, resgataram a questão do
bando anunciador, mas faz o bando anunciador na quarta-feira, o que é
interessante, muito bom. (Celso).

Desta forma, logo na madrugada sai o aviso de que a lavagem nativa vai começar.
O dia começa a mostrar filetes de luz enquanto os que ficaram até o retorno ao ponto de saída
podem desfrutar de uma feijoada na casa de Dona Nini. Pouco dá para respirar, já é hora de
seguir até a casa da saudosa Dona Nissú17, onde todo o café já está pronto. No local, são feitas
rezas para Nossa Senhora da Conceição, as mulheres do bairro saem em procissão,
acompanhadas de um jegue todo enfeitado puxando uma carraço com água, sabão e flores
para lavar as escadarias da Igreja, que já se encontra de portas abertas para receber as ofertas à
santa. Os fogos da alvorada são ouvidos de longe e aquelas pessoas que ainda não acordaram
têm a oportunidade de se levantar para alcançar a festividade.

                                                                                                                       
17
Antiga Moradora que resolveu incluir a lavagem das escadarias na festa e que também organizava e
distribuía um café da manhã em sua casa. Prática essa que seus filhos, Celso e Neinha continuam
mantendo.  
 
 149
 

Figura 23 – Bando Anunciador voltando para a casa de Dona Nini

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2010)

Mobilizando católicos, adeptos dos cultos afrobrasileiros e pessoas de crenças


diversas essa é a chamada “Lavagem Nativa”, a primeira lavagem que acontece com o raiar
do dia, às 5 horas da manhã. Em Itapuã, a Igreja mudou a data da festividade religiosa e no
dia da festa de largo do bairro abre as portas apenas no momento da primeira lavagem das
escadarias para receber as flores da comunidade para Nossa Senhora da Conceição. Com isso,
a questão da religiosidade acabou ficando a cargo dos moradores que estão à frente das ações,
como também dos membros das religiões afrobrasileiras que montam mesinhas na frente da
Igreja e que contém símbolos de sua cultura como água, folhas, cinzas, etc.
Nas escadarias da Igreja, a lavagem se inicia e representa um ritual de passagem,
em que se utiliza a água limpa para renovar, purificar e promover o renascimento, pois
praticamente após a lavagem que a comunidade de Itapuã recomeça o ano. As vassouras são
passadas de mão em mão por todas aquelas pessoas, em sua grande maioria mulheres, que se
interessam em lavar as escadarias, seja para pedir bênçãos ou fazer agradecimentos. Inúmeras
histórias são contadas nos discursos ou durante a pequena andada até as escadarias sobre o
passado de Itapuã. Segundo uma moradora antiga, “naquele tempo todo mundo se conhecia e

 
 150
 

as pessoas se uniam mais para fazer a festa”, na qual anteriormente era até “passado o
chapéu” para ajudar nas despesas e a água que lavava as escadarias tinha que ser pega em
bicas ou no chafariz localizado na orla.
Toda a lavagem era e é até hoje acompanhada por canções. As componentes do
grupo As Ganhadeiras de Itapuã praticamente guiam todo o processo juntamente com antigas
ou novas moradoras, que têm o costume de participar do ritual. Lavada a escadaria e
terminado o rito com o discurso e pedido de benção e paz para a festa e para todo o bairro,
momento de reflexão destinado a pensamentos positivos para o lugar, o samba começa a tocar
na porta da Igreja e contagia a todos os presentes numa grande roda. Uma por uma, as
mulheres se encaminham para o centro do circulo e mostram samba no pé, nos quadris e em
todo o corpo, esbanjando sorrisos e formas particulares de movimentá-lo. Vez ou outra,
homens se arriscam a entrar na roda e um bonito duelo cheio de charme sedutor se inicia. A
percussão é composta por músicos locais, que se organizam no momento da lavagem e
decidem quem vai tocar o quê.
Ao som de muito samba, o grupo volta à casa de Dona Nissú para saborear o
famoso café da manhã, que atualmente tem sido oferecido por seus filhos e família, dando
continuidade ao que foi iniciado no passado através do chamado grupo Mantendo a Tradição,
que tinha à frente Dona Francisquinha, Dona Áurea, Detinha, Badú e Dona Nissú, guardiãs da
cultura local. O grupo se mobiliza “correndo o chapéu” para conseguir arrecadar dinheiro para
realizar o café da manhã e conta com o apoio da própria comunidade.
Esses eventos possuem uma ritualidade e levam em consideração o tempo circular,
estabelecendo ligação entre o presente, o passado e o futuro, com características da
ancestralidade, na qual tradições são prosseguidas por membros da comunidade em que a
memória e os ensinamentos são trazidos à tona através da oralidade. Valores também são
postos em prática, ensinados, aprendidos e cobrados durante a festividade, como o respeito.
Neste ano de 2011, uma discussão presente na reunião de avaliação da lavagem foi
a falta de respeito dos barraqueiros, que estavam com o som muito alto no momento de
chegada do cortejo. Para a comissão organizadora isso não pode acontecer mais e deve ser
uma das preocupações para o ano seguinte.
Na sequência, logo depois do café da manhã, uma roda de capoeira é formada bem
em frente à igreja. Enquanto isso, as baianas e os grupos culturais se encaminham para Piatã,
antiga praia de São Tomé, para iniciar o desfile, que vai até a Igreja de Nossa Senhora da
Conceição.

 
 151
 

Segundo Eufrázia Santos (2006, p.28), “as festas de largo, assim como todas as
festas que se dão ao ar livre, são espetáculos de um tipo particular, no qual todos se mostram a
todos.” É um dia lúdico, uma “manhã de fama” e de livre escolha de participação. Muitas
atividades acontecem ao mesmo tempo. É o momento de mostrar de onde é e com que grupo
se está mais ligado. Como também é um mar de diferentes grupos que convivem no “mesmo
espaço” com tantas diferenças.
O primeiro grupo a sair é o cortejo das baianas, junto aos Alabês de Mamãe
fazendo a percussão. Em dois carros abertos e enfeitados vêm os homenageados, Dona
Cabocla18 e Juvená19. Durante o percurso muitas pessoas invadem o cortejo para falar com
parentes, amigos ou familiares, que estão desfilando como também muitos curiosos em sentir
a força do grupo. A festa acolhe as expressões e manifestações tanto de instituições públicas e
entidades sem fins lucrativos como também das mais diversas pessoas e que são também parte
de um processo educativo em que está presente o conhecimento popular. Sidney traz como
exemplo as barraquinhas de folhas, na qual a baiana no momento de passar as folhas explica o
porquê do ritual, sendo que nesse momento tocas de informações que acontecem.

[…] isso é educação, é poder trocar conhecimento sem ferir a sua cultura,
sem ferir a sua identidade e ao mesmo tempo contribuindo e de uma forma
acolhedora, é onde todos podem participar, onde você não faz distinção de
cores, então a igualdade prevalece dentro disso. (Sidney).

Tudo acontece com muita intensidade ao mesmo tempo. É possível ver figuras
ímpares, crianças, pessoas fantasiadas, protestos, famílias inteiras, rezadeiras, pescadores e
uma infinidade de representações. Na festa, qualquer pessoa pode ser artista, criar, aparecer,
mostrar e divulgar suas criações, arte, música, dança, grupo, etc. “Todos se sentem parte de
um espetáculo a que também assistem.” (SERRA, 1999, p.60). Na verdade, todos buscam
atenção e são nos momentos da festa que as pessoas encontram espaço para ter um dia de
“artista”, pelo menos naquele momento, já que a maioria dessas pessoas em seu cotidiano são
“invisíveis” perante a sociedade.

                                                                                                                       
18
Antiga Moradora com quase cem anos, pois não se sabe ao certo a sua idade, sendo um segredo que
a mesma faz questão de esconder. Avó da entrevistada Rose, organiza muitos sambas que
acontecem nos dias de sexta-feira em sua casa que tenta manter a arquitetura antiga.  
19
Antigo Barraqueiro conhecido nas festas de largo da cidade de Salvador e principalmente no bairro
de Itapuã, onde escolheu findar a sua moradia. Com a derrubada das barracas no ano de 2010 o
mesmo perde o ponto comercial na praia ficando muito entristecido com o ocorrido, sendo a
homenagem uma forma de levantar a sua auto-estima.  
 
 152
 

Palco público e de todos, a festa é aberta à participação tanto da comunidade local,


como de pessoas e grupos de fora, e devido à quantidade de apresentações é difícil
acompanhar todas as exibições culturais, que se espalham pelos espaços do bairro através da
espontaneidade do evento. Portanto, a lavagem de Itapuã é um palco aberto para qualquer
interessado em mostrar o seu trabalho artístico. Diversos personagens compõem o cenário
com seus figurinos criativos, é o lúdico na festa, os sorrisos, a dança, as brincadeiras, o faz de
conta. Dentre os grupos culturais que desfilaram no ano de 2011 estão a Escola de Samba
Unidos de Itapuã, o Lindroamor, o Chabisc, o Malê Debalê, e o Kori Nagô, entre outros
tantos.

4.4 VISÕES PERANTE OS GRUPOS CULTURAIS

Foram levantados aspectos variados em relação a como os entrevistados percebiam


a contribuição dos grupos e expressões culturais, que desfilam na lavagem e que estão
relacionados a como estão articulados esses grupos e que foram muito bem definidos como
grupos que se formam no período da lavagem, para pontualmente se expressarem na festa,
como é o caso bem especificado nessa fala de Josélio.

Aqui também tem grupos irreverentes, que saem falando da paz, da


prosperidade, falando da segurança pública, falando de dias melhores para
o itapuanzeiro, falando de saúde, falando de segurança, então, há todos os
tipos de música, de representação e todos os tipos de movimentos durante a
lavagem de Itapuã. (Josélio).

Outros grupos representam um momento tradicional da festa, como o Bando


Anunciador, que passa informações através da música, das falas das pessoas que estão à
frente, ou seja, influencia pessoas que passam por um processo educativo inerente ao próprio
ato de participar e presenciar a riqueza cultural do momento. Existem as interseções de
membros de grupos que se formam a todo o momento na festa. E principalmente aqueles
grupos que têm atividades durante todo o ano, onde são ensinados e aprendidos valores e
conhecimentos.

Parte desses grupos que estão na lavagem eles dispersam na lavagem, mas
eles têm uma vida diária, os grupos de capoeira, os mestres, que não só
ensina a disciplina da capoeira, ensina a disciplina de ser cidadão, com os
jovens. As comunidades, as Associações de moradores, os grupos, eles tem
na verdade uma tradição no seu pedaço e apenas trazem isso no dia da
lavagem porque? Porque a lavagem é a grande vitrine de Itapuã, não é o

 
 153
 

carnaval. Então as pessoas trazem os seus grupos, várias organizações


trazem seus grupos para a lavagem. Eles querem ali manifestar, dizer que
está presente, que existe em Itapuã. E isso nesse sentido é uma contribuição
super importante. (Bujão).

Nesse sentido, a lavagem é uma forma que os grupos de cada inter e intrabairro
encontraram para mostrar os trabalhos, que vem sendo desenvolvidos durante o ano nas
diversas áreas, seja de esporte, arte, dança, música.

Você sabe que a cultura ela é uma forma de educar. Existe a hierarquia
dentro da própria cultura, dos mais velhos para os mais novos, então, tem
todo um aprendizado, todo um legado que é deixado, todo um estudo e que o
produto final se torna uma ferramenta educativa de fundamental
importância na vida de qualquer criança, porque é onde ela aprende de
onde ela vem, é uma forma dela conhecer a história dela, então esse é o
papel da cultura. Porque não adianta o cara nascer em Itapuã e não saber
que isso aqui é uma comunidade de pescador. O cara nasceu em Itapuã e
não sabe o que é o presente de Iemanjá, então acho que é para isso que
serve essas manifestações culturais, pra autoafirmar mesmo quem você é, de
onde você vem, pra depois você ver pra onde você vai. Eu mesmo hoje me
sinto realizado com a capoeira, não tenho do que reclamar, ela me
proporcionou momentos que dinheiro nenhum no mundo paga, conheci
lugares, pessoas, tive oportunidade de trocar informações de culturas,
consegui transformar pessoas, então esse é o papel da cultura. Então essa é
a importância que a cultura tem pra qualquer povo. (Biriba).

A fala de Biriba mostra como a cultura popular se pauta no aprendizado a partir


principalmente da experiência, passada dos mais velhos para os mais novos, de maneira oral,
com um fio condutor ancestral e pautado na memória e problematiza que isso não é
valorizado no nosso país ao dizer que muitas vezes os meios burocráticos do sistema
favorecem para uns e dificultam para outros, que são na maioria dos casos quem mais precisa.
Ele fala sobre a capoeira, que nasce na Bahia, mas que não é valorizada e como exemplo disso
lembra a realidade dos mestres de capoeira, esquecidos, sem assistência, sem apoio algum e
pergunta: como é que sobrevive da cultura? Para ele, esses mestres deveriam estar recebendo
uma ajuda, ter um salão no bairro onde moram para fazer um movimento cultural e servir
como uma referencia para as crianças. Então não adianta o cara ter tanta experiência. Pode
contribuir, mas não tem a máquina pra fazer isso funcionar. Percebe uma série de projetos
sendo contemplados, na maioria são propostos ou apoiados por empresários e as pessoas que
realmente precisam do apoio, que estão nos guetos, não conseguem financiamento.

 
 154
 

O governo fala “ah, tem políticas públicas para a capoeira, para projetos
educacionais e tal”, mas será que esses projetos contemplam realmente a
gente? Porque por exemplo, pra você fazer um projeto hoje para concorrer
pra ser contemplado lá nos programas do governo do Estado você tem que
ter um projetista, um contador, um jurídico e tudo isso requer custo. Você
tem que ter uma contrapartida, que é o mais difícil, o que seria essa contra
partida? Você ter um espaço próprio...você acha que hoje o cara que
trabalha com capoeira, com a comunidade, vai ter condições de ter um
espaço próprio? Vai ter condições de ter uma sala dessas? Não tem
contrapartida. Será que é pra gente mesmo? Será que eu tenho condições de
pagar um projetista? Então é difícil na verdade. E ai a gente fica triste,
porque a gente não pode dar continuidade ao processo. (Biriba).

Tem “n” grupos aqui em Itapuã e que na realidade traz uma cultura, traz
uma beleza cênica e que estruturalmente eles não tem nenhuma condição,
nem condições financeiras de estar fazendo esses grupos, mas eles vão,
tocam num barzinho hoje, toca num barzinho amanhã, ai um paga pelo
show, não da forma como deveria ser paga, eles continuam sobrevivendo,
distribuindo cultura e distribuindo pensamentos positivos através da música.
(Josélio).

Essa questão do apoio aos grupos é um dos pontos que tem dificultado o
surgimento e a continuação dos trabalhos culturais. Os que existem se devem à força de
vontade de alguns moradores, que desenvolveram um sentimento de pertencimento pelo lugar
e que pode ser expressado nas falas abaixo. Eu dou aula aqui há 11 anos de graça pra
comunidade. Por que? Porque eu acredito que é uma forma de eu contribuir pra amenizar a
situação do bairro e também poder ajudar aqueles que estão sem luz, sem caminho. (Biriba).

Essa lavagem de 2011, eu e Raul, Neo e Nailton, Wagner, Binho, a gente


correu atrás de amigos, de pessoas que pudessem nos ajudar com o projeto
da Escola de Samba, várias pessoas ajudaram. Fizemos a nossa camisa
independente de político, independente de prefeitura, independente de
dinheiro do governo, independente de qualquer coisa. (Cuca).

Frei Betto (2000, p.36) afirma que “as pessoas realmente se envolvem nas coisas
por paixão”, sendo que após assumir uma posição em determinado lugar pelo compromisso
pautado na paixão segue-se um processo de “apreensão racional da experiência”, o que passa
a mexer com o indivíduo comprometido, aflorando ideias, pensamento crítico e ainda
incitando novas ações que possam vir a contribuir.
Assim, mesmo sem apoio do governo, a resistência das lideranças e seus grupos
procuram sobreviver, através de suas artes de fazer e para isso táticas diversas precisam a todo
momento ser inventadas para poder tornar realidade um sonho construído no e para o coletivo.
 
 155
 

Dentro desse quadro, a cultura é um meio de educar, de passar conhecimentos


pertinentes ao modo de vida do lugar e é preciso que todas as esferas do governo comecem a
perceber isso e a valorizar mais esses trabalhos, que são muito mais feitos com o coração do
que com apoio do governo. Para completar, Biriba diz que em uma viagem para o exterior,
refletiu sobre o valor que a capoeira e outras pessoas ligadas à arte e cultura possuem fora do
Brasil e desabafa:
[...] na minha terra eu sou um nada e porque é que aqui as pessoas me
tratam com tanto respeito? Eu queria isso na minha terra pra eu não ter que
sair daqui. [...] Em Salvador o capoeirista é um artista como outro
qualquer, mas ele é visto como um capoeirista, “ah...a capoeira?!” não tem
respeito, “ah..., você é musico?!”, não deveria ser assim. Tem que entender
que aquele cara também é um educador (Biriba).

Uma questão muito forte na manutenção das tradições, no desenvolvimento de um


sentimento de pertencimento passa pela ancestralidade, de transmitir conhecimentos de uma
geração para outra para dar continuidade ao que uma geração anterior um dia criou e manteve
nesse mesmo propósito de agregar as pessoas em torno do fazer a festa acontecer,
alimentando a questão identitária como num ciclo, que, mesmo que se renove, busca a partir
das representações contar uma história, que preserva as principais características e valores da
comunidade. Para Seu Menezes, a contribuição dos grupos é simbolizar Itapuã no desfile,
utilizando-se de criatividade para transformar a festa num resumo de riqueza cultural que o
bairro possui. E os grupos tem esse papel de, a partir da vivência, agregar valores, como nos
mostra Amadeu.

Mas assim, eu acho que os grupos têm o lado de passar o conhecimento,


passar um símbolo, o jeito de ser, de uma forma também que desenvolve
uma tarefa realmente educativa a partir do momento em que passa para as
crianças o sentimento de pertencimento, mas isso é uma forma muito
subjetiva. Agora dentro disso tudo, hoje a gente pode ver que o fato das
expressões existirem, da festa existir, da tradição existir, ela move muitas
pessoas. [...] Então, é um entrelaçamento de coisas que a festa alimenta, que
recebe. A festa é produzida, é realizada com esse produto do que as pessoas
conseguem desenvolver e passa pela questão da transmissão de
conhecimento. (Amadeu).

Os grupos possuem o sentimento de que é possível uma transformação social e os


pensam que se cada pessoa contribuir com o seu bairro, com o lugar de moradia, o mundo
pode ser muito melhor. É a fé de que a realidade das comunidades pode ser pautada num
caminho em que todos juntos unidos podem se dispor a ajudar o próximo.

 
 156
 

E eu acho que o interesse na verdade, pelo tamanho do bairro, e pelo potencial


que as pessoas tem, eu acho que poderia ser muito mais amplo, porque cada um
tem o seu trabalho, eu trabalho com música, e na Escola de Samba quem está
na frente sou eu e Raul Pitanga, e o projeto na verdade não é um projeto pra
gente ganhar dinheiro com os meninos, não é para isso. O projeto na verdade é
ajudar. A gente tem interesse em manter a tradição, por isso que quando eu
falei que coloquei a música de Vinícius e toquinho, tarde em Itapuã na internet
é pra ver até onde isso desperta neles em saber o que já foi, o que é e o que
pode ser o bairro entendeu?! Que não se limite ao que está acontecendo agora.
[...] A gente tem que sair disso ai. Precisa sair porque a garrafa tá cheia, já
transbordou e ai, o pior de tudo é assim, é o que vejo em Itapuã, encheu de uma
forma que transbordou e nessa de transbordar existem pessoas que querem
fazer coisas legais e tem muitas pessoas que não querem fazer coisas legais.
Então o que é que a gente tem que fazer, a gente não pode deixar transbordar,
ou se transbordar, tem que transbordar de coisas boas, tem que ser assim. Tem
que transbordar de coisas boas, que as pessoas que estejam aqui, que todo
mundo se puder fazer e seu Reginaldo até falou uma coisa bacana numa
entrevista da gente no Abaeté, é assim, se todo mundo fizer um pouco, eu acho
que tem como a gente conseguir mudar, a gente tem que mudar. (Cuca).

Desta forma, é um espaço passível de uma transformação social que venha a


acompanhar as necessidades de seu tempo.

Nós fizemos nossas camisas, todo mundo que saiu, amigos nossos que tocam na
Orquestra Sinfônica... essa é a relação de quando você falou das pessoas que
moram aqui e com o nativo. E tem pessoa que não mora aqui, mas tem relação
de amizade com o nativo muito forte e foi o que aconteceu na lavagem.
Trouxemos amigos nossos que tocam na Orquestra Sinfônica pra tocar com o
menino que aprendeu a tocar comigo e com Raul. Então se você for parar pra
analisar assim, é uma distancia muito grande. Você fala, pô, uma pessoa que se
formou pela UFBA, uma pessoa que toca hoje na Orquestra Sinfônica e ai ele ta
tocando no mesmo lugar com o menino que não se formou por lugar nenhum,
ele ta começando a aprender o que é um instrumento, o que é uma baqueta, ou o
que é ser cidadão. Então ele tá começando a aprender tudo isso. E ai ele está
com essa pessoa no mesmo lugar, sendo a mesma pessoa, sendo tratado da
mesma maneira. Então essa consciência na verdade é que eu acho que precisa
ter essa relação com o bairro. Isso precisa ter. Que deixe bem claro, o dinheiro
faz parte da nossa vida, mas não é tudo. (Cuca).

Cuca mostra em sua fala que a inclusão social pode ser vivida na lavagem de
Itapuã, na qual preconceitos são quebrados, onde as pessoas estão no mesmo nível, de igual
para igual e que mais importante do que o dinheiro é o tratamento humano. Assim, as
diferenças passam a ser aceitas em detrimento de valores morais e de respeito ao próximo
construídas nas vivências cotidianas e também nos encontros que a festa proporciona. Para
Sidney não é uma coisa fácil, mas quando se acredita na mudança pela cultura e educação e

 
 157
 

quando se tem sentimento envolvido pelas pessoas e principalmente por aquelas que estão no
seu dia a dia, isso passa a ser ou a ter que ser viável mesmo que não pareça.

Figura 24 – Escola de Samba na Lavagem de Itapuã

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2010)

É uma força que esse povo tem, sabe, de vencer o choro com um sorriso. É
um negócio muito sério porque fazer arte em periferia não é fácil. Quem faz
arte sabe o que eu estou falando, as pessoas são discriminadas a todo
tempo, não é só pelas pessoas que não entendem nada não, que estão de
fora, as pessoas de dentro, às vezes até as próprias pessoas que você está
fazendo o trabalho, são as próprias pessoas que não entendem o que você
está fazendo. [...] Quando você faz uma coisa coletiva, que você queira
compartilhar, que você quer distribuir, que você quer levar educação a
todos os parâmetro, que você quer tirar a criança da rua, que você quer
tirar idoso do ostracismo, enfim, dar uma nova oportunidade às pessoas que
precisam de oportunidades, de infra estrutura, ...quando você pensa nesse
parâmetro fica difícil em se manter cultura. Mas é muito fácil quando a
gente tem dentro da gente um desejo e uma missão de continuar
preservando a nossa cultura. Ai se torna fácil quando você se torna um
guerreiro, quando você diz assim, a partir desse momento não vou deixar
que nada de ruim atrapalhe o desenvolvimento dessa criança. Ai você passa
a ter o olhar sobre ela e é isso que é a cultura hoje aos nossos olhos
periféricos. (Sidney).

A responsabilidade que os líderes desses grupos possuem é muito grande. Estes


precisam dialogar sobre a importância do grupo a todo instante, pois a própria sociedade não
valoriza esses movimentos culturais e até mesmo os próprios participantes não percebem o
valor dessas ações. É preciso dar mais autonomia aos participantes dos grupos, pois estes
precisam aprender o valor que aquilo tem na vida deles e assumir o compromisso junto ao

 
 158
 

coletivo. Essa autonomia quando acontece na práxis contribui para o desenvolvimento de uma
consciência crítica pautada na reflexão dos seus atos e dos outros, criando e fortalecendo
parâmetros, valores, aprendizados, ações que repercutiriam em um ciclo de mais reflexões
voltadas a ações para uma vida em sociedade mais humana e harmoniosa.

A ação libertadora, pelo contrario, reconhecendo esta dependência dos


oprimidos como ponto vulnerável, deve tentar, através da reflexão e da ação,
transformá-la em independência. Esta por mais bem-intencionada que seja,
lhes faça. Não podemos esquecer que a libertação dos oprimidos é libertação
de homens e não de “coisas”. Por isso, se não é autolibertação - ninguém se
liberta sozinho -, também não é libertação de uns feita por outros. (FREIRE,
2005, p. 60).

Portanto, as comunidades devem se unir mais e dialogar para que esses grupos
proporcionem práxis ao invés de ativismos, que já é de certa forma estar no caminho da
conscientização, sendo uma forma de integrar também as pessoas, que ainda não
desenvolveram uma consciência critica e libertária da sua condição de vida no mundo.

O processo da Escola de Samba na verdade, o que eu posso falar assim, é


um processo muito particular, eu posso citar a Escola de Samba, sendo que
tem outros grupos que fazem trabalhos belíssimos aqui e isso é uma forma
também de educar. Então, o que a gente faz com a percussão não é só tocar,
a gente conversa com eles, mostra os caminhos. A gente não pode pegar
ninguém pelo braço e dizer assim, “você vai ter que seguir isso”, o que a
gente faz é mostrar, mostramos para eles os caminhos que tem, os caminhos
que são. Na verdade a vida são dois caminhos, pra tudo, o do sim e o do
não, o do bom e o do ruim. E na Escola de Samba a gente está fazendo isso
de uma forma bem rigorosa. Até da escola a gente pergunta, e ai?! Cobra,
pergunta aos pais, e ai, como é que está sendo, como é que não está sendo.
Às vezes eu me sinto com a responsabilidade que eu na verdade eu não sei
nem se eu tenho tanta assim né? Que nem sei como lidar. [...] a gente não é
pai deles, mas a gente tem uma responsabilidade na vida dessas pessoas,
porque muitos desses meninos vêm a gente como referência e ai quando
você tem algo como referência você sempre quer o melhor, você quer ver o
melhor, você se espelha naquilo ali. E você ser uma referência de algumas
pessoas e não ter uma boa conduta é complicado. Então eu vejo que os pais
deles têm um respeito muito grande pela gente, pelo fato da gente ter boa
conduta. Então os pais e às vezes chega irmão, e eu fico assim, rapaz, será
que eu tenho habilidade pra essa responsabilidade assim? Eu fico sem
saber. Fico numa situação meio que sem saber como lidar. (Cuca).

Outra questão revelada nas falas é que os entrevistados percebem a questão da


educação voltada muito mais para as crianças e jovens, esquecendo-se de que durante toda a
vida os indivíduos passam por processos educativos e que os transformam a todo o tempo. Por
isso, a preocupação não deve ser só com o futuro, mas também com o presente, pois os

 
 159
 

adultos e idosos de hoje são fundamentais para contar sobre o passado e tentar mudar o
presente.
O Malê Debalê segundo Josélio foi fundado em 1979, sendo que nem todos
fundadores são nativos de Itapuã. A sua primeira atividade carnavalesca e de divulgação
aconteceu no Abaeté e hoje funciona uma escola considerada de médio porte, contando com
mais de 300 alunos, com pré-escola, primeira, segunda e terceira série junto à educação
infantil. Josélio destaca que a educação é diferenciada, pois tem banda, canto, dança, aborda a
questão da cidadania que fazem com que haja uma transferência de conhecimentos além do
que tem proposto a educação formal tradicional. Para Ives, interessante seria se a educação
formal se articulasse mais à cultura popular. Eu acho que a partir do momento quando a
gente consegue fazer uma interlocução com o espaço tradicional de educação, eu acho que ai
a gente agrega valor, eu digo isso até enquanto educador. (Ives).
Ives traz exemplos que presenciou no bairro na posição de professor, como o
Museu dentro do Colégio Estadual Governador Lomanto Júnior, onde se conseguiu fazer uma
interlocução dos alunos, que envolveu o participar, o pesquisar, o registrar, o documentar e o
expor dentro do espaço educativo, levando entendimento a respeito do patrimônio cultural
local, que tem, portanto, ligação com o carnaval, a lavagem, a festa da baleia e múltiplas
outras manifestações. Cita também um trabalho que fez junto ao Malê Debalê enquanto artista
da estampa e do carro alegórico, no qual em 1998 o tema foi “Itapuã: um mundo encantado”,
que foram também feitas algumas ações educativas, falando sobre mitos e lendas da lagoa do
Abaeté nas escolas e o trabalho com instrumentos de papel, que é estar dentro de uma
instituição cultural trabalhando com o educativo dentro da comunidade. (Ives).
Nesse sentido, envolver as escolas de forma mais ativa e participativa nas
manifestações e eventos culturais do lugar, incluindo-se representações estudantis que possam
participar tanto com apresentações nos dias festivos, como também das comissões
organizadoras das festividades permitiria desenvolver a visão crítica em relação a toda
problemática das festas, das manifestações culturais, da memória local, dos antepassados, dos
rituais e da oralidade, tornando-os mais próximos da história do lugar em que moram e da sua
própria história. Além disso, uma conscientização cidadã em relação aos problemas locais
estaria sendo estimulada. Outras ideias podem ser dadas, mas é preciso que a comunidade
tome para si a proposta e se empenhe em concretizá-la com táticas e estratégias
mobilizadoras.

 
 160
 

O que eu desejo pra comunidade de Itapuã é que tenham um pouco mais de


consciência, um pouco mais de respeito com o próximo, eu acho que isso vai
fortalecer muito o nosso bairro e que essas pessoas despertem, quem tem um
talento pra arte, pra teatro, pra música, pra pintura, pra o que seja, que a
gente não fique dentro de casa, que a gente chegue e coloque isso na rua,
vamos colocar na rua, vamos colocar as crianças pra pintarem, pra
tocarem, sem interesse financeiro, vamos fazer isso. Se não tem grana,
vamos juntar e vamos fazer. O que eu gostaria que acontecesse no bairro
era isso, que voltasse a ter movimentos culturais mesmo, movimentos de
arte, que voltassem a acontecer as oficinas de pintura, de teatro, mas isso na
rua. Não adianta ter em tal lugar, dentro de tal lugar, dentro da casa da
música, dentro de não sei aonde. Não! Vamos colocar isso na rua.[...]
Porque dentro de casa ninguém vai ver. Dentro de sede de projeto ninguém
vai ver. A gente precisa colocar as coisas na rua e mobilizar. [...] Porque o
menino que mora no Jenipapeiro, ele não sai do Jenipapeiro, ele mora na
Brasília (Nova Brasília), ele não sai pra ir numa sede que seja aqui
embaixo. Então, a gente tem que botar isso na rua e sair tocando, sair
fazendo peça de teatro, os movimentos têm que acontecer assim, na rua.
(Cuca).

Cuca mostra que a própria rua é um espaço educativo por si só e com a


apresentação de grupos culturais, estes podem vir a chamar a atenção dos moradores de
lugares diversos para a relevância desse tipo de trabalho, que pode humanizar e sensibilizar o
coração das pessoas do lugar.

Figura 25 – Ensaio da Escola de Samba no Abaeté

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

 
 161
 

Você vê que a comunidade ela tá ligada, ela parece que não, mas tá todo
mundo antenado no que está acontecendo. Quando sai na rua tocando,
parece que ninguém está observando, mas na verdade tudo está
acontecendo, as pessoas estão olhando, muitas não estão ali no movimento,
mas estão participando... saímos um dia tocando por dentro de Itapuã e o
bacana é que depois de um dia, três dias, inúmeras pessoas fizeram música,
Seu Reginaldo fez uma, Ana Maria (esposa de Ulysses e membro das
Ganhadeiras) fez uma, Dona Lucinha fez uma - irmã de Ana Maria, Dona
Raquel... E não estavam com a gente participando, mas viram, assistiram,
gostaram, ficaram agradecidas pelo que estava acontecendo. (Cuca).

Você vê as mensagens que o Malê leva, não só na comunidade, mas que leva
através de seus temas para o carnaval: “Quilombos urbanos”, “Do popular
ao acadêmico”, quando a gente levou “Lendas e magias do Abaeté”,
Quando a gente levou “Itapuã: pedra que ronca”, quando a gente levou,
“Itapuã: cultura de um povo brasileiro”, “Herança e lembrança da Bahia”.
Essa escola aqui que a gente tem, as mensagens que a gente escolhe para o
festival, a escolha do rei e da rainha, a comunidade negra também pode ter
reis, também pode ter rainhas. (Josélio).

Aquelas músicas é de inclusão social que desperta a questão da


ancestralidade cultural, o que representa o negro e o que representou na
Bahia. (Josélio).

A música serve como uma forma de expressar sentimentos, falar de fatos passados,
mostrar a realidade como também de responder a situações e provocações de pessoas que ao
invés de contribuir ficam apenas criticando.

Acho que é isso que a gente tem que ter essa inteligência, a gente não deve
brigar, a gente não deve desejar o mal para o outro. A gente deve fazer uma
coisa que crie alegria e depois a gente diga, fulano, quem me inspirou nisso
foi você, por isso, isso, isso e isso. (Ulysses).

Conta Ulysses que ele compôs uma música para seu grupo Korin Nagô em resposta
às discussões que teve na comunidade, mostrando que existem outras saídas, mais criativas,
para os desentendimentos comuns no local. Como é o exemplo da música inspirada em
pessoas de Itapuã, que disseram que seu grupo não iria para “lugar nenhum” e para não
discutir com a pessoa e não ser inimigo, deu a resposta:
Quizeram atrapalhar os meus caminhos,
Fecharam as portas, mas não conseguiram,
A chave quem me deu foi o Korin Nagô,
Xangô de Oyó me abençoou,
Tempo de lá, tempo de cá,
Tempo zará, tempo mô, tempo Korin Nagô.
(Música composta por Ulysses para o Korin Nagô).

 
 162
 

Interessante que Ulysses, para participar da entrevista, veste a camisa do Korin


Nagô e faz menção a uma série de pessoas que influenciaram e foram importantes para a
criação do grupo, fazendo homenagem a todos, tanto mortos como vivos. Faz esse registro
com medo de morrer e ninguém passar adiante o nome de quem fez parte da história,
demonstrando o quanto a ancestralidade é importante para a cultura popular, e que um grupo
dificilmente é constituído e influenciado por uma pessoa só. A união faz a força. E foi nesse
sentido que Cuca disse que a Escola de Samba foi criada.
O nome da Escola de Samba Unidos de Itapuã na verdade é uma
provocação pra gente se unir mesmo, acho que é interessante que haja essa
união pra um futuro é melhor. Pra um futuro melhor, só união e respeito e o
nome da Escola de Samba Unidos de Itapuã é, justamente por causa disso,
pra que haja uma união e respeito com esse bairro, com essa comunidade,
com essa natureza aqui. (Cuca).

A Escola de Samba foi o grupo que mais me aproximei, chegando a tocar e


experimentar aprender junto aos jovens aspirantes a percussionistas. Em meio a tantos grupos
que existem no bairro, inclusive alguns que são tradicionais no lugar como o Malê Debalê, o
estilo musical e a forma como estava sendo construído o trabalho me chamaram a atenção.
Nas décadas de 1960 e 1970, o carnaval da Bahia era animado com Escolas de
Samba como a Juventude do Garcia, Diplomatas de Amaralina, Filhos do Tororó, entre tantos
outros. Assim, numa relação com um passado próximo da cidade de Salvador, em que
diversas escolas de samba deixaram de existir por completo, vê-se em Itapuã quase que um
ressurgimento.
A Escola de Samba Unidos de Itapuã, primeira na história do bairro surgiu,
segundo Cuca, a partir de uma brincadeira no carro feito e construído por “Seu Neca” com
rodas de carrinho de mão que alguns percussionistas do bairro fizeram de “palco”
improvisado. Esse grupo foi então se fortalecendo e Cuca – percussionista e itapuanzeiro do
Gravatá - resolve criar uma Escola de Samba, não como são as do Rio de Janeiro, mas uma
escola que ensinasse todas as vertentes do Samba. E foi assim que esse projeto educativo que
tinha como público alvo inicial os próprios garotos ao entorno da casa de alguns dos
coordenadores começou a acontecer, sendo que hoje já possuí jovens e adultos de todo o
bairro.
No mesmo período, Raul Pitanga, percussionista e graduado em Música juntamente
com mais três amigos da Universidade Federal da Bahia do referido curso aprovam um

 
 163
 

projeto na Funceb intitulado “Toque cidadão”, que teve como parceiros a casa da música e o
Centro Esportivo e Cultural de Itapuã localizado na rua da Ilha.
Cuca viaja. Os aprendizes a percussão se matriculam no curso, se desenvolvem,
aprendem a ler partitura e a reconhecer os outros ritmos musicais. De volta a Salvador, Cuca
constata o crescimento na qual os garotos haviam passado, já estavam lendo partitura,
discutindo ritmos musicais e sabendo explicar alguns conceitos. Resolve então dividir suas
responsabilidades com mais três amigos, Raul Pitanga, que já estava em contato com os
garotos, Nailton e Neo, ambos itapuanzeiros e percussionistas. O projeto “Toque cidadão”
termina o ciclo previsto, mas deixa plantada sementes diversas e que dentre elas algumas têm
germinado na Escola de Samba.
Os ensaios passam a ser mais frequentes, a meta a ser atingida é a lavagem de
Itapuã, pois a idéia do grupo era dar visibilidade ao que vinha sendo feito e nada melhor do
que o maior evento local, inclusive que a mídia está presente. Essa meta também serviu de
estímulo para que os aprendizes se dedicassem mais à música. São nos ensaios que diversos
aprendizados acontecem, e o mais interessante, não existe a figura única do “professor”, pois
ensina quem quer, porque já aprendeu, mesmo existindo pessoas responsáveis. Desta forma,
todos podem e devem socializar o que já sabem, tanto nos momentos determinados para os
ensaios, como em outros que acontecem espontaneamente no cotidiano. Nesses momentos de
preparação, ensaios e de lazer, que mais se aprende e se desenvolve a partir das interações,
sejam elas com olhares, sorrisos, diálogos e brincadeiras.
Cuca reclama com os meninos, eles tocam quando não é para tocar, têm
curiosidade em escutar e fazer falar os instrumentos, mas quando é hora de
repetir o que se está ensaiando reclamam de estarem cansados. Querem
mesmo é aprender novos toques, no entanto, segundo Cuca, é preciso
“pegar a base” para receber novos ensinamentos. Ele orienta o grupo a ter
paciência, respeito, saber onde, quando e o que tocar. O acerto do outro é
comemorado por todos, demonstrando o sentimento de comunhão é
construído no dia a dia nesses grupos. (Diário de pesquisa, 07/11/2010).

Em um dos ensaios disse um dos organizadores, Raul Pitanga, que anos atrás Itapuã
era cheio de grupos percussivos desse tipo e que viviam fazendo arrastões pelo bairro, mas
segundo ele isso foi acabando. Pelo jeito, não saíram da memória as brincadeiras e hoje
voltaram de outra forma a puxar a comunidade. Essas práticas estão na memória dos
moradores mais antigos ligados à musicalidade, na qual a reconstrução e ressignificação
fazem parte do processo de resistência. A cultura popular vem ensinando de outra maneira, a
partir de outra lógica, trabalhando o desenvolvimento do ser humano, partindo da memória e
ancestralidade, utilizando-se da oralidade e ritualidade através da temporalidade.

 
 164
 

[…] a educação popular deve propiciar um aprendizado manual-intelectual,


lidando com os símbolos do real e com suas representações, através de
dramatizações e de outros recursos que envolvam, no processo educativo,
todo o ser educando: o corpo, a voz, os sentidos, os movimentos, a música, a
visão, etc. É desvelando a realidade a partir do que eles fazem que chegam a
perceber o rumo, o sentido histórico de sua prática. (BETTO; FREIRE,
2000, p. 78).

Figura 26 – Jovens interagindo no ensaio da Escola de Samba no Abaeté

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

O grupo começa então a tomar corpo. Os amigos e moradores a apoiar a iniciativa.


Um escudo (logo marca) é criado, camisas e instrumentos são pleiteados pelos organizadores
junto a apoiadores, em sua maioria amigos e conhecidos. Compositores e músicos
reconhecidos na comunidade e fora dela confirmam presença no desfile da lavagem. Assim, a
Unidos de Itapuã desfila pela primeira vez na festa no ano de 2011 no percurso que vai desde
Piatã até a Igreja de Nossa Senhora, vindo logo atrás do cortejo das baianas, vestidos de
camisa branca com listras da cor azul e amarelo, escudo no peito, ao som de itapuanzeiros(as)
e convidados vindos de diversas partes da cidade, todos eternos aprendizes jovens e músicos
profissionais, movidos pelas batidas dos instrumentos, que se mantinham no ritmo pela
vontade de fazer acontecer de todos os envolvidos. Os jovens ao tocar estavam preocupados
em manter o ritmo, seguir os “maestros” e também aproveitar o momento. Queriam mostrar o
que ensaiaram e aprenderam.
No primeiro ano os coordenadores mantiveram o foco, ensinar os jovens a tocar os
instrumentos e a acompanhar os cantores nas músicas. No ano seguinte o enredo que possui
em sua letra aspectos culturais e históricos de Itapuã já se encontrava pronto, como também
uma série de músicas que foram fruto de toda essa movimentação durante o ano no bairro

 
 165
 

junto às atualizações que o lugar passou a exigir perante toda a diversidade que passou a
habitá-lo.
Figura 27 – Jovens da Escola de Samba indo ensaiar passando por muro escolar grafitado

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

Uma questão que deve ser levada em consideração é a necessidade que esses
grupos têm de aprender internamente, dentro do bairro, a se comunicar, trocar experiências
com os grupos existentes, deixar a “competitividade” de ter que tomar o espaço do outro para
respeitar e até aprender com as possíveis interações.
Assim, além de grupos nativos, dessa lavagem participaram grupos de outros
lugares. Ives relatou também que uma preocupação discutida, não apenas em Itapuã, mas nas
conferencias de política pública na área da cultura, a qual chegou a ser delegado, é a questão
do intercambio entre manifestações culturais, como foi o caso da participação do Lindroamor
na festa de largo do bairro.
Então é a gente intercambiar isso, foi o que nós tentamos fazer esse ano,
chamar o Lindroamor, o pessoal de São Francisco do Conde. Então, quer
dizer, nós temos um espaço de cultura popular que a gente não potencializa,
que ai eu acho que o poder público do município ou do Estado tem um papel
preponderante, de que forma a gente pode articular isso, de certa forma nós
podemos ir para lá, fazer o processo inverso e eles também. Eu acho que o
quanto de cultura popular que esse país tem e precisa estar colocando a
disposição do público enquanto direito, e as três coisas estão
intrinsecamente ligadas, esse imaginário, a questão da cultura e direito da
gente, fazer essa interlocução entre os grupos e os lugares. Itapuã poder
participar do Bonfim, Bonfim poder participar aqui ou outros bairros
periféricos, seja Cajazeira, Pau da Lima, Castelo Branco, Subúrbio
Ferroviário, Lauro de Freitas,.... onde a gente poderia estar potencializando
muito esses espaços. (Ives).

 
 166
 

Com isso, os grupos podem trocar experiências, observar a organização do outro,


dar sua contribuição e poder receber uma reciprocidade. A partir dessa idéia, o Lindroamor
desfilou, cantou, dançou e mostrou a sua tradição secular, mas que também sofreu um
processo de reestruturação a partir do ano de 1993, sendo um exemplo vivo que é possível um
coletivo reconstruir sua manifestação cultural ao tempo que se alimenta o sentimento
identitário. A presença de outros grupos tradicionais de outros lugares fortalece as festas
populares que passam a ter mais atrações e a ter a oportunidade de intercambiar experiências.

Toda união dos oprimidos entre si, que já sendo ação, aponta outras ações,
implica cedo ou tarde, que percebendo eles o seu estado de
despersonalização, descubram que, divididos, serão sempre presas fáceis do
dirigismo e da dominação. Unificados e organizados porém, farão de sua
debilidade força transformadora, com que poderão recriar o mundo,
tornando-o mais humano. (FREIRE, 2005, p. 165).

Esse intercambio é um exemplo das artes de fazer, é uma tática percebida e


adotada, ou seja, a reflexão atrelada à ação enquanto práxis aos poucos conscientiza os atores
sociais da necessidade que se tem de unir forças com manifestações de outros lugares para
fortalecer o movimento cultural local.

4.5 O FIM DO DIA NÃO É O FIM DA FESTA!

O dia acaba, a programação em Itapuã continua. O palco montado em 2011 traz


apresentações do Terno de Reis, “arrastões” de poucos grupos pelo bairro, como o Korin
Nagô, no sábado.

[...] no calendário ela (festa de Itapuã) ia da quarta-feira na madrugada até


a segunda feira da semana que vem. E essas reformas que foram
acontecendo em Salvador, dos bairros, como Rio Vermelho, Bonfim, passou
a ter apenas um dia e nós estamos brigando pra resgatar a idéia de Itapuã
ter exatamente um calendário que vá das duas horas da manhã de quarta
feira com a saída do bando anunciador até a segunda feira com o presente
de Gildete e o encerramento das atividades da lavagem de Itapuã.[...]
(Bujão).

A festividade se completa com a segunda-feira gorda, na qual há uma


confraternização regada a uma das especialidades do bairro, a peixada nativa e a moqueca de

 
 167
 

Folha. Logo em seguida, próximo ao fim da tarde do mesmo dia, é entregue o presente de
Iemanjá, tradição de mais de 20 anos, que já foi aqui discutida.
A lavagem de Itapuã é portanto a ser um dos principais espaços de afirmação
identitária devido ao seu poder de mobilização.
E é importante porque ela agrega, as pessoas se mobilizam, as pessoas
esperam. [...] é a manifestação que mais agrega, nós tivemos em 2011 a feliz
percepção de que as reuniões, foram umas 5 ou 6, ela teve uma participação
média de 80 pessoas, representando grupos e manifestações, isso significa
um poder de mobilização. Então, a festa de Itapuã é seu grande referencial
cultural para o bairro. (Bujão).

Para Biriba, é um momento de autoafirmação, pois é onde os grupos da


comunidade comparecem para fazer uma homenagem ao bairro e mostrar os trabalhos que são
desenvolvidos. Para Eurico, o pertencimento vem daí, da gente se sentir... E o que é de
pertencimento a gente sente, a gente não explica, a gente não tem uma explicação para isso
porque é paixão.
Para Cuca, a lavagem tem elevado a autoestima da comunidade ligada às tradições,
que percebeu que pode lutar para que suas manifestações culturais continuem a existir, sendo,
portanto, uma forma de manter viva a cultura ancestral e movimentar o lugar na atualidade.
Eu acho que a contribuição da lavagem está sendo na verdade o resgate de
várias manifestações que aconteciam e que não acontecem mais e coisas
assim que estão sendo bacanas que estão chegando, como manifestação que
estão começando agora, mas que está sendo muito legal. Então eu acho que
a lavagem seria o momento de encontro dessas pessoas e das manifestações.
(Cuca).

Celso e Rose acham que a lavagem ainda precisa sensibilizar muita gente do bairro,
sendo apenas um pontapé inicial, pois a questão não gira mais em torno de um nascimento na
terra, mas de uma identificação com o lugar das pessoas que fincaram suas residências,
devendo estas entenderem a sua forma de vida, aprenderem a interagir, para que a
comunidade local também possa compreender e interagir com as práticas culturais que
passaram a habitar o bairro. Para Seu Menezes, a festa é o aniversário de uma tradição, é
momento de alegria e deveria divulgar a cultura do povoado, contando através de grupos
simbólicos a história do lugar. Para Sidney, é muito mais importante pelo que representa hoje
do ponto de vista formativo e educativo do que para o que um dia representou do ponto de
vista do sagrado.

 
 168
 

É uma coisa que está dentro da essência, não é uma alegria vã e a gente
percebe que todo o povo pode fazer parte disso. [...] isso tudo é fruto da
preservação da identidade, isso tudo é força dessa preservação. E a festa de
Itapuã ela contribui muito mais pra formação do ser humano do que para a
formação religiosa. (Sidney).

Dessa maneira, a contribuição da festa de Itapuã tem relação com a formação do ser
humano, na qual se baseia no sentir, no observar, no viver, no conviver das pessoas e destas
com o lugar, no simbolizar o cotidiano e a cultura local.
A questão da permanência da lavagem foi bastante trazida nas falas dos moradores,
que percebem o descaso e desinteresse das próprias pessoas em levar à frente e do Estado em
criar projetos que forneçam apoio para tais manifestações. Dessa maneira, em muitos lugares
as festas populares já não existem mais. Por isso que a população precisa continuar buscando
objetivos comuns, pensando em táticas e meios de resistir ao movimento homogeinezador,
seja no bairro de Itapuã ou em qualquer outro lugar para não deixar que as culturas populares
fiquem no passado, mas para que elas possam estar vivas no presente, se atualizando e
preparando o nosso povo para o futuro.

Eu tenho fé, sou muito positiva. [...] Eu acho assim, Itapuã chegou no limite que
não dá mais, chegou no fundo do poço, agora a mola propulsora está lá pra
jogar para cima. E a gente mudar. Você é bem mais nova do que eu e já está
assim totalmente envolvida e assim virão outros, assim como os que eram mais
velhos do que eu se foram, eu fiquei e sei como foi que aconteceu isso, eu fiquei,
você vai ficar e outros também. [...] Mas a gente ainda tem que mexer ainda
muito aqui dentro (bate no peito, no coração) pra conseguir pegar, tirar das
pessoas essa sensibilidade, porque muita coisa aqui dentro vai rolar assim com
amor mesmo. É o amor pelo bairro, o cuidado, é por ai que vem. Não é por uma
intervenção da prefeitura. Vem daqui (bate novamente no peito), vem com uma
aproximação nossa de você querer chegar numa pracinha e que você não
consegue mais. Já chegou pra mim, já chegou pra você, já chegou para muitos,
mas ainda falta muita gente se conscientizar disso. Mas é parar pra sentar e ver
de que forma a gente pode fazer isso. De que forma a gente vai poder
modificar? De que forma a gente vai poder transformar essa realidade? Ainda
precisa mexer muito no coração das pessoas para tirar a poeira, tirar o carvão,
para poder acender a chama de muitos que ainda estão adormecidos. (Rose).

Rose em sua fala demonstra perceber as mudanças de muitas pessoas, como ela,
como eu, que sentiram a necessidade e perceberam a importância de agir. Ou seja, é criando
vínculos com o lugar, convivendo, conhecendo, que a identidade, o sentimento de pertencer a
um local é desenvolvido.

 
 169
 

Figura 28 – Desfile do Korin Nagô no Sábado

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

Figura 29 – Imagem de Iemanjá no dia do presente da segunda-feira gorda.

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

 
 170
 

Figura 30 – Comunidade assistindo à entrega do presente na segunda-feira gorda.

Fonte: A autora (pesquisa de campo, 2011)

4.6 APRENDIZADOS, CONTRIBUIÇÕES E MUDANÇAS DOS ATORES SOCIAIS NA


RELAÇÃO COM A LAVAGEM

A lavagem, portanto, é um espaço educativo, que consegue agregar famílias


inteiras, perpassa a relação dos grupos e entidades de educação não formal, engloba os
aprendizados da educação informal, que acontecem na rua e outros espaços, promovendo
mudanças internas e pessoais, que são levadas por toda a vida.
Nesse sentido, respondendo a um questionamento do texto, acho que me tornei a
itapuanzeira descrita pela maioria dos entrevistados a partir do momento que passei a me
interessar em saber mais sobre o lugar, a cultura local, a festa, como também ao conviver e
participar da(s) história(s), construções e reconstruções. Não busquei esse reconhecimento,
mas um entendimento a respeito de toda essa questão identitária, que com a construção da
pesquisa não anulou as inúmeras identidades que me constituem, pois foram agregados
valores a todas elas. Acabei me inserindo dentro da realidade do bairro que sempre morei,
tendo a oportunidade de participar mais de perto de todo o contexto e consequentemente me
desenvolver enquanto ser humano com as interações.
Aprendi a tocar alguns instrumentos, conheci lugares, pessoas, troquei experiências,
dialoguei, discuti, ouvi, fui escutada, me inspirei em estudar conceitos teóricos para entender

 
 171
 

o cotidiano do lugar e assim como Seu Menezes me integrei e vivenciei a vida de união,
mesmo em meio a desarmonias, intrigas e falta de comunicação das pessoas. Ao mesmo
tempo, refleti sobre uma série de estratégias populares de articulações e mobilizações que
podem ser e são feitas em torno da festividade, percebendo que uma infinidade de pessoas,
com visões diferentes se encontram no mesmo espaço e decidem conjuntamente, as artes de
criar condições favoráveis para a execução dos eventos.

Eu aprendi a vida de união, de me integrar com o pessoal. Na lavagem


passada eu estava ali na igreja com dois amigos e uma baiana saiu do
cortejo e veio me abraçar, me abraçou e.... (pausa por sentir-se
emocionado) e disse, esse senhor aqui deixou saudade na gente. E meus
colegas me abusaram dizendo que só eu que recebi abraço. Isso porque eu
me integrava, eu ajudava, eu fazia a apresentação delas na lavagem. (Seu
Menezes).

Ela me deu visibilidade pública, não só a lavagem de Itapuã, mas também a


instituição que eu milito que é o Malê Debalê. E através disso eu vi a
necessidade de eu voltar a estudar. Essa foi a contribuição. (Josélio).

Para Josélio, a lavagem deu visibilidade ao trabalho que vinha desenvolvendo junto
ao Malê e isso desencadeou nele a necessidade de estar mais preparado para atuar junto ao seu
grupo, buscando se aprimorar na formação acadêmica, sendo que não tira o mérito de toda a
formação que a vida proporciona aos indivíduos. Para outros, foi uma maneira de colocar em
prática o que já traziam consigo e tentar aprimorar a maneira de lidar com o outro sem utilizar
de agressividade, sendo mais paciente, tentando compreender e dialogar com a diversidade
que habita a festa, como foi o caso de Celso e Rose.

Eu aprendi muito, o quanto é difícil você conviver em grupo, comecei a


compreender as pessoas melhor porque eu fui obrigado a conviver com
pessoas das mais variadas espécies, pessoas que são muito amigas, pessoas
que são cordiais, pessoas que são muito interessantes, mas também fui
obrigado a conviver com pessoas que são inescrupulosas, que são maldosas,
que são falsas, mentirosas e eu fui obrigado a conviver com todo tipo de
gente. (Celso).

Eu acho assim, foi um desafio, de você ultrapassar mesmo fronteiras e isso


eu já trago comigo mesma, na labuta, na raça mesmo, eu tenho que
conseguir, eu tenho que ir à busca, mas você não pode quebrar, tem que ser
que nem coqueiro, coqueiro é assim, enverga mas não quebra. E eu trago
isso comigo da lavagem, essa questão da forma como conduzir certas
situações, porque assim, eu tenho um temperamento meio esquentado, tenho,
admito, porque eu não sou muito de aguentar desaforo. E certas coisas a
gente tem que aguentar e eu fiquei muito mais ligada ao bairro, muito mais
comprometida de ver realmente que a gente está nessa e não é por acaso, a
gente tem que levantar e seguir adiante mesmo com essa bandeira. (Rose).

 
 172
 

Para Biriba, foi uma oportunidade de eu conhecer mais a história do meu bairro, as
referencias do meu bairro, foi dentro da lavagem. E assim, a lavagem é o momento que você
pode reencontrar seu amigos, relatando que por diversos motivos, muitas pessoas também
migram para outros lugares, outras estão distantes da convivência diária, mas que na época da
lavagem essas pessoas retornam, se fazem presente, fazem uma vista ao bairro, promovendo
uma série de reencontros que são também relatados por Celso. Para Biriba, a lavagem é um
espelho das coisas que têm no bairro, sendo possível estar em contato com a identidade
itapuanzeira e também se atualizar com as novidades que surgiram no lugar, enfim, é na
lavagem onde se percebe o reflexo do lugar e da participação da comunidade.
Eu acho que a lavagem contribuiu muito para que a gente pudesse sentir o
que é o nosso bairro, sentir o que é ser itapuanzeiro e não é à toa que a
gente está sempre procurando participar, não só com a capoeira, como
também a gente faz outras atividades durante a lavagem, a gente sai com a
galera do Chapéu de Lupa, onde a gente sai de sunga, chapéu de palha,
sandália havaiana, onde a gente se sente mesmo itapuanzeiro e nisso tem até
pessoas que não são de Itapuã, mas acha legal e abraça o movimento e cada
ano está crescendo. (Biriba).

Rose traz ainda a questão do trabalho em equipe, quando um grupo se reúne para
conseguir construir algo, em que com um pouquinho de contribuição de cada envolvido é
possível chegar onde se desejava e todos aprendem uns com os outros, a ter paciência, a
compreender o outro, a olhar a situação com os olhos da outra pessoa. Para ela, é muito mais
que apenas aprender a história do bairro, são aprendizados que ficam para toda a vida.
É um trabalho em equipe, e todo trabalho em equipe que a gente faz a gente
acaba que se molda. Cada trabalho é um trabalho, então assim, a forma de
você se comportar diante das situações que aparecem, as vezes muitos
difíceis, como eu estou lhe falando, não é só a questão educativa formal,
mas eu falo assim a forma como você se comportar com as pessoas, pela
forma de você se portar diante das situações, tudo isso você aprende. Não é
só a história do bairro, a história da lavagem, disso, e daquilo outro. Isso
tudo você aprende e isso depois você leva. (Rose).
A questão do cara chegar assim batendo no peito “eu quero meu dinheiro”
e depois no final do processo você vê aquela pessoa que batia no peito em
dizer que queria o dinheiro, a parte dele também estar lá fazendo doação,
pra você ver né?! (Rose).

Um dos aprendizados de Seu Regis foi ver os filhos de Dona Nissú continuarem
mantendo a tradição que a mãe iniciou. Além disso, todos os aprendizados com os momentos
da festa para ele a cada ano enriqueceram mais a sua vida. E ele diz,

 
 173
 

Às vezes a gente vai como expectador e depois a gente vai como participante
também, um componente da lavagem, faz parte ali. Porque a gente acha
bonito, aprende e no ano seguinte vai fazendo parte já da lavagem. (Seu
Regis).

Para Eurico, o aprendizado obtido junto ao processo de reestruturação da lavagem


está relacionado com a experiência de mobilização e união das pessoas, como também
perpassa a questão de assumir a liderança e ter a responsabilidade de corresponder à
expectativa de indivíduos diversos.
Eu pude ver que a gente pôde congregar e não é fácil congregar pessoas.
Não é fácil liderar pessoas, cada cabeça é um mundo. E quando a gente
consegue de uma forma manter uma união, atender a expectativa de pessoas
e que vinham desacreditadas e desacreditados, poxa, isso é muito prazeroso,
é recompensador. Essa é a recompensa que tem, de ver que deu tudo certo,
que podemos congregar e estar com todo mundo numa só harmonia, numa
só voz e isso foi muito bom. Tivemos poucos políticos, não deixamos que a
política atrapalhasse a harmonia, o “meu”, o “eu”, esse pessoal que cada
um vem buscar seu grupo, sua fatia e que dividem. E essa divisão nos
enfraquece, o que não enfraquece é sermos uns, um corpo, uma liderança,
um respeito, um amor, uma tradição na lavagem de Itapuã. É disso que nós
precisamos e a gente conseguiu em 2011. E eu espero que esse corpo
continue em 2012 e que venham, participem, que venham pessoas novas, que
cheguem idéias novas para que essa tradição fique mais forte. (Eurico).

Ives também comenta a respeito dessa responsabilidade que sente ter, mas também
enfatiza a questão da ligação da sua pessoa intimamente com a lavagem, na qual desenvolveu
um sentimento de pertencer muito forte em função da sua atuação com a organização e com
as manifestações culturais.

[…] eu acho que a gente tem muito mais responsabilidades e compromisso


com essa comunidade a partir do momento que você tem um papel
preponderante nesse aspecto. Então, você vê a quantidade de queixas que eu
tenho que ouvir agora porque que esse ano nós não tivemos a festa da
baleia, como se a responsabilidade fosse só minha, que não deixa de ser
também. Mas que isso de certa forma, não vamos dizer que eu não tenha
uma parcela de culpa e orgulho de saber de como minha história de vida,
essa minha visceralidade, ela está intrinsecamente ligada também a essas
manifestações culturais do bairro. Que hoje eu já reflito, como é que vai dar
continuidade a isso? Então, quem?... como é que se percebe? Pra não ficar
uma coisa também muito em cima da personalidade. (Ives).

Bujão fala sobre as sensações que teve participando dos movimentos em função do
bairro de Itapuã, incluindo-se a lavagem, os processos de organização, que por ter se
desenvolvido politicamente, aprendeu a se articular, a lidar com o coletivo através das

 
 174
 

experiências. Relata que esse acúmulo contribuiu na maneira como vem intervindo e que
algumas pessoas levaram para o lado pessoal divergências do plano das ideias.

Bom, assim, teve várias sensações. [...] quando você participa do coletivo,
uma parte lhe admira, uma parte sustenta politicamente suas idéias e outras
partes inveja. É natural do ser humano. Porque eu na verdade acho
extremamente salutar as divergências, porque eu acho que a gente tem que
ter respeito. Não é discordar e desrespeitar, você pode discordar das idéias,
mas você tem que respeitar as pessoas. E eu acredito que só será ou é
possível respeitar se você se respeita, se você tem a compreensão de
cidadania e você se respeita, porque você só pode respeitar o outro se você
se respeita e é isso que nós temos que fazer mais. (Bujão).

Paulo Freire (2000) defende que a educação está imbricada com a política, sendo a
prática onde acontece essa educação, que revela a sua natureza política, educando e
reeducando com a convivência entre os seres humanos e destes com o meio em que vivem
através de suas interpretações do mundo. Para fazê-las não é preciso ser um intelectual, mas
apenas estar no mundo e com o mundo. Bujão diz que essa forma de agir, de lidar com as
pessoas com falta de respeito está ligada a uma falta de politização, a uma falta de cultura
política e argumenta que na verdade política é o cotidiano das relações pessoais.

Mas quem se predispôs, quem está na terra com a missão de contribuir,


quem tem o compromisso com o seu habitat, com o outro, com a sociedade
como um todo, vai conviver com isso sempre, porque a humanidade, e
sobretudo o caminho é muito mais, sobretudo com todos os avanços
tecnológicos da ciência, da cibernética, a gente continua pouco
desenvolvido na condição humana e eu acho que a sociedade itapuanzeira
precisa trabalhar mais essa tradição. (Bujão).

O mesmo explica que Itapuã perdeu muito a questão do que é ser uma comunidade
e dá exemplo de que o lugar era uma vila de pescadores, na qual as pessoas faziam bastante o
escambo, trocavam coisas, mercadorias, alimentos e essa troca só existia porque havia
interação. Milton Santos traz essa questão ao dizer que “o dinheiro é uma invenção da vida de
relações e aparece como decorrência de uma atividade econômica para cujo intercambio o
simples escambo já não basta.” (SANTOS, 2009, p.97). Para Bujão, isso porque a população
foi estimulada a não gostar de política mesmo fazendo diariamente e o grande desafio é essa
educação política.

 
 175
 

Eu tenho a sensação muito grande que as pessoas poderiam ser diferentes,


as pessoas poderiam fazer uma opção pelo bem estar, pelo respeito, pela
solidariedade, mas realmente existem pessoas que são muito egoístas, nós
fomos educados, a sociedade brasileira, essa sociedade ocidental ela gera
nas pessoas um sentimento muito individualizado. E isso é um problema
para uma comunidade. Você perde muito a relação de respeito com o outro,
o carinho com o outro, da solidariedade com o outro e isso é algo que o
tempo inteiro eu fico refletindo sobre isso, porque se eu tiver uma atitude
egoísta eu posso até ter, às vezes você age, mas eu imediatamente revejo a
minha atitude, porque o egoísmo destrói muito, ele é nocivo à vida
comunitária. (Bujão).

A partir da visão de Frei Betto (2000, p.61), “uma pessoa politizada é aquela que
passou da percepção da vida como mero processo biológico para a percepção da vida como
processo biográfico, histórico e coletivo.” É a pessoa fazer relações entre temas, como
também fazer uma leitura crítica da realidade e ser capaz de confrontá-la com conceitos
teóricos, temáticas de áreas diversas e perceber que tudo está ligado de alguma forma. Para
Freire (2000, p.62) é “ganhar a claridade na leitura do mundo” e ir juntando cada flash de
claridade como um quebra cabeça, fazendo as ligações.
E cada um dos entrevistados relatou contribuir da sua maneira, seja participando,
discutindo, se misturando, convivendo, aprendendo e inventando artes de fazer a festa
acontecer. Desejaram que as pessoas se conscientizassem e se politizassem mais para buscar
uma união que permita uma construção coletiva de luta por um lugar melhor para todos
viverem e que só será possível com a humanização dos seres humanos a partir da convivência
e participação nos movimentos culturais. Assim, as mudanças no espaço, nas comunidades e
na cultura têm afetado não apenas Itapuã, mas todos os lugares.
Para Milton Santos (2009, p.161), são inúmeros os possíveis futuros. Estes
dependem das possibilidades e da vontade em fazer acontecer das pessoas, a partir de uma
clareza do projeto a ser feito.

A primazia do homem supõe que ele está colocado no centro das preocupações
do mundo, como um dado filosófico e como inspiração para as ações. Desta
forma, estarão assegurados o império da compaixão nas relações interpessoais e
o estímulo à solidariedade social, a ser exercida entre indivíduos, entre o
indivíduo e a sociedade e vice-versa e entre a sociedade e o Estado, reduzindo as
fraturas sociais, impondo uma nova ética, e, destarte, assentando bases sólidas
para uma nova sociedade, uma nova economia, um novo espaço geográfico. O
ponto de partida para pensar alternativas seria, então, a prática da vida e a
existência de todos. (SANTOS, 2009, p. 148).

 
 176
 

Dessa forma, é preciso que haja o envolvimento para que a educação a partir da
cultura possa contribuir com uma formação mais humana dos indivíduos. Nesse sentido, e
concordando com as palavras de Eurico:

Tudo isso que eu já disse com certeza é uma mensagem e sei que vai
incomodar muita gente, mas tenho certeza que o que incomoda é pra
melhor, incomoda pra pensar, refletir. É preciso que todo dia que se desça
com um jarro, que se quebre e se faça remodelar e se construir um jarro
novo. Todo dia é preciso entregar o mutuê (cabeça) ao Olodumare (Deus
criador) com todas as ações que fizemos durante o dia pedindo a ele força e
sabedoria para o dia seguinte. Então precisamos em Itapuã do dia seguinte,
de um dia melhor e que tenhamos um Itapuã melhor pra todos. [...] E que
tenhamos um dia melhor em Itapuã, na Bahia, no Brasil, no mundo, Axé.
(Eurico).

Por fim, nos tempos atuais, os inúmeros processos identitários no cotidiano de


convivência comunitária dos lugares produzem uma diversidade que precisa exercitar o
diálogo através do respeito às diferenças para que as reconstruções culturais possam acontecer
de maneira respeitosa e mais humana, no sentido de uma educação que preza pelo
desenvolvimento humano e reconhece a formação pela cultura.
O que alimentou a construção dessa pesquisa foi a possibilidade de que o futuro
seja formado pelo presente, pelo cotidiano. Itapuã não pode voltar a ser o que não é mais, o
passado, pois o presente se impõe e o desafio é a partir da participação, das novas e velhas
artes de fazer, do diálogo em função do que é melhor para todos, olhar para o hoje, pensando
numa perspectiva do futuro das pessoas.

 
 177
 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante a pesquisa, foram discutidas temáticas presentes na totalidade das cidades,


nas quais os conceitos de cultura, educação, comunidade e identidade se atualizam
constantemente da teoria pela prática e ainda da prática pela teoria. Estes são, portanto,
ressignificados em função do espaço e tempo das relações sociais, econômicas políticas e
culturais.
Os processos de reconstrução cultural acontecem desde o descobrimento da terra
brasileira, inicialmente ligados à mistura das matrizes étnicas, fazendo surgir um novo povo,
constituído principalmente pelos índios, africanos e portugueses, originando os brasileiros.
Imersa nessas culturas, a identidade itapuanzeira demonstrou possuir ligação com tais
ancestralidades, pautando-se nas lendas, histórias e memórias de pessoas que viveram e que
vivem no lugar. Com o passar do tempo, as transformações diversas no espaço, afetadas por
acontecimentos globais, trouxeram como consequência a rápida chegada de novos moradores
ao bairro, influenciando principalmente em mudanças nas relações sociais. Com isso, o termo
que designava o nativo, o local, chamado de Itapuanzeiro começa a ganhar um novo
significado para tentar abraçar aquelas pessoas passíveis de desenvolverem um sentimento de
pertencimento.
Assim, as pessoas ao buscarem novas identificações não anulam o “quem somos
nós”, mas agrega valores aos indivíduos que a cada dia se descobrem, se desenvolvem e
começam a perceber que as pessoas são diferentes, têm opiniões e atitudes também diferentes,
pois os interesses e identificações são diversos. Em coletivo é preciso compreender essa
diversidade e encontrar pontos de convergência no que é melhor para todos ou para a maioria,
com ética e transparência das ações para que não haja dúvida de como foram feitas as
decisões. Estas por sua vez, precisam de espaço para que todos participem e deem sua
opinião. Portanto, o principal é buscar soluções para novos e velhos problemas dos processos
organizacionais que envolvem a interseção da educação com a cultura e destas com a
economia, estando estas intimamente ligadas.
O impacto da festa estabelece conexões diversas, provocando mudanças sociais,
políticas, educacionais, organizacionais e econômicas. A Festa de Itapuã é uma prática social
de gerações e tem sido realizada mediante a utilização da própria força de trabalho e a
mobilização dos recursos disponíveis tanto na comunidade como provindas do poder público.
O que se percebe é que a mudança na forma de organizar a Lavagem influenciou nas relações
sociais que sofreram com o reflexo do lado econômico, na qual inicialmente a maneira de

 
 178
 

fazer o evento acontecer era de forma compartilhada entre os membros da comunidade e com
o passar do tempo, com a inserção de mais colaboradores como o Estado, com a quantia em
dinheiro, acabou necessitando de uma nova estruturação e amadurecimento da comunidade
para lidar com isso, que vem sendo buscado no cotidiano compartilhado, nos entretempos que
renovam o sentido do que é comum a todos para dar continuidade às tradições e eventos.
Os grupos culturais são como chaves de mobilização e por isso é preciso
conscientizar politicamente as pessoas que estão à frente destes para que a partir do trabalho
que desenvolvem as pessoas ligadas a eles comecem a também perceber a realidade de forma
mais crítica e venham a se interessar em mudar o que está posto, como numa corrente, que a
cada conquista cresce em tamanho e força. Essa realidade, discutida nas músicas, nos ensaios,
nos diálogos, nas trocas, passam mensagens que são difundidas ao tempo que o cotidiano é
repensado. A constituição de redes, ligações, parcerias é fundamental para que haja uma
comunicação e sejam potencializados os diversos movimentos sociais, entrelaçando seus
fazeres educativos no sentido do desenvolvimento humano. Para isso, é preciso boa vontade,
coragem, perseverança, esperança para continuar a criar alternativas solidárias e de
resistência.
Percebe-se que os grupos detêm a responsabilidade de agregar mais pessoas, como
também de fortalecer os próprios movimentos culturais que acontecem nos lugares, além de
proporcionarem espaços educativos para que os participantes aprendam coisas novas e
percebam os caminhos existentes. Caminhos estes que podem estar ligados à lógica moderna
de valorização do dinheiro ou a outra lógica presente na cultura popular, que coloca o ser
humano na centralidade aprendendo a administrar as situações em função do coletivo. A
educação política e econômica são trabalhadas nos espaços de discussão dos grupos na qual
aos poucos as pessoas começam a compreender e a criar as suas táticas e estratégias de
manutenção e preservação da cultura.
As alternativas verificam-se nas ações de solidariedade no âmbito das
comunidades, entre familiares, amigos, vizinhos e até pessoas “desconhecidas” objetivando a
melhoria da qualidade de vida naquele meio e contam com o apoio das redes relacionais e de
convivência para acontecerem. Assim, a criatividade e a autonomia são fundamentais para
mobilizar as pessoas a usarem seus conhecimentos em função da sociedade.
As festas populares na cidade de Salvador são meios de reunir os bairros e suas
comunidades ao mesmo tempo em que são espaços que fortalecem o sentimento de
pertencimento através dos aprendizados gerados pela convivência das pessoas com a história,
grupos e símbolos, que representam a cultura local, mas precisam ter sentidos e significados

 
 179
 

para que os seus participantes as frequentem em função de uma conscientização sobre a


realidade de maneira crítica e humana através das interações sociais. Elas são uma maneira de
aprender sobre a história, bebendo na fonte da ancestralidade e da memória sobrevivente da
cultura popular do lugar. São momentos que também proporcionam a autoafirmação
identitária. São espaços de confraternização comemorativa e lúdica. São espaços de educação
política e econômica. Ou seja, são momentos vividos em sua complexidade na qual
aprendizados acontecem e os sujeitos nem percebem que estão aprendendo.
As festas são, por sua vez, um meio potencial de acolhimento para que recém
chegados moradores possam desenvolver um sentimento de pertencimento através da
interação e convivência, criando novos significados pessoais a partir dos significados
coletivos, traduzindo o que existe de tradição numa concepção particular. No entanto, para
que isso venha a acontecer, é preciso que as comunidades estejam abertas à diversidade, que
pode aparecer em meio às suas tradições.
Os eventos culturais tem relação com a satisfação de necessidades de formação das
pessoas; de preservação, promoção e difusão da cultura, que envolvem tanto recursos
materiais como imateriais. É um processo de educação e tem relação com a economia quanto
a forma criativa das pessoas produzirem, divulgarem e discutirem. Portanto, é educação
política, econômica e cultural pois transcende a obtenção de ganhos monetários, está
vinculada a uma outra lógica distinta da lógica mercantil, tendo como princípio a política da
ajuda mútua, levando-se em consideração os modos de vida do lugar.
O envolvimento comunitário fortalece diálogos locais e estimula que o capital
humano mobilize os lugares. Ao mesmo tempo, as comunidades precisam entender e aprender
sobre as políticas destinadas à cultura e ainda encontrar meios de repassar esses
conhecimentos para o maior número de pessoas do lugar para informar e conscientizar, sendo
que ainda há uma deficiência muito grande na maneira das comunidades dialogarem
internamente e também com o poder público. Dessa forma, faltam políticas culturais mais
eficazes no sentido de preparar os sujeitos para lidar com os recursos tanto materiais como
imateriais das cidades, de maneira ampla, mas também dos próprios bairros, de maneira
localizada.
O processo antes, durante e depois das festas que perpassam o ano todo humaniza e
faz florescer vínculos, que formam e dão continuidade às comunidades. Isso é importante
porque a existência desses vínculos e da fé numa possível mudança da realidade contribuem
na manutenção e atualização dos espaços de interação das pessoas do lugar, na qual a

 
 180
 

convivência educa e forma quando pautada no respeito pelo diferente, ao estabelecer relações
humanas de trocas.
Esse movimento de reconstrução cultural aguça a consciência crítica das pessoas
envolvidas sobre a realidade vivida da sociedade de maneira mais ampla, que passam a ter
maior esperança de que é possível mudar a realidade das drogas, violência, tráfico,
prostituição, disputas envolvendo dinheiro, dentre outros problemas que afetam o social. O
sujeito envolvido com a cultura local e/ou popular, que preza pela valorização do ser humano,
sabe que existe a necessidade e a possibilidade de conscientizar, sensibilizar a partir da
cultura, mesmo com a diversidade e dificuldades estabelecidas nos tempos atuais.
A mudança da realidade deve pautar-se no respeito ao próximo, a si mesmo e ao
coletivo, na ação e reflexão do cotidiano na busca por mais meios de contribuir com ideias e
conhecimentos para melhorar o que está posto, dentro das possibilidades de cada um, mesmo
que este lugar esteja sendo influenciado pela diversidade e ainda por uma lógica que leva à
“confusão dos espíritos”, a que Milton Santos tanto se refere. Isso ocorre através de uma
relação dialógica, complexa, entre os ambientes sociais, os grupos de pertencimento que os
indivíduos frequentam, na qual estes passam a ter afinidades, identificações e outras
qualificações que emergem das interações. Dessa maneira, uma identidade territorial mantida
no imaginário e no cotidiano das relações sociais pode vir a se transformar em uma identidade
de reconhecimento com a convivência.
Isso pode refletir no desenvolvimento do sentimento de pertencer, que independe
do lugar onde o sujeito nasceu, mas se refere principalmente onde este se identificou
culturalmente, sendo, portanto, imprescindível a interação, o conhecimento e o respeito para
com o modo de vida do lugar. Portanto, a festa e outros eventos culturais são de extrema
importância para a aproximação das pessoas, lugar para criar e fortalecer o espírito identitário,
espaço para o exercício da cidadania, lócus de aprendizados diversos, espaço que incentiva e
divulga associações civis, artísticas e culturais, local em que as regras diárias podem e são
modificadas a partir das vivências com o contexto global, o cotidiano local e pressões de
ambas as partes.
O acesso dos sujeitos à cultura, aos saberes populares de maneira mais
participativa contribui para que as pessoas possam se ver na história enquanto um reflexo da
formação do quem somos nós, que continua a ser construído e reconstruído a todo instante.
Esse movimento tende a somar na formação das pessoas envolvidas, desenvolvendo a sua
consciência crítica de maneira libertária, criativa, autônoma e mais humana.

 
 181
 

Espero que esse trabalho sirva de reflexão para aqueles que tiverem acesso ao
mesmo e que as atuais e futuras intervenções possam se inspirar no conteúdo aqui explicitado.
Escrever esta dissertação foi apenas um dos desafios, pois o maior deles ainda está para ser
vencido, que é o de promover a comunicação e a relação entre moradores sem que as
diferenças sejam anuladas, mas, pelo contrário, sejam aproveitadas em função dos seres
humanos e do seu desenvolvimento. A festa passa a ser então uma metáfora da vida na qual
forças colaborativas, mas também disjuntivas, separativas, conscientes, inconscientes,
resultam numa complexidade em que o real se relaciona com o abstrato misturados em meio
aos indivíduos.
 

 
 182
 

REFERÊNCIAS

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APÊNDICES

APÊNDICE A - ROTEIRO DE ENTREVISTA

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Data: ____/____/____
 
Entrevistador:______________________

Local da entrevista ______________________

Olá, meu nome é Débora Maia e estou fazendo uma pesquisa sobre a comunidade de Itapuã
em que o tema é EDUCAÇÃO E IDENTIDADE: A RECONSTRUÇÃO CULTURAL DA
FESTA DE ITAPUÃ

Gostaria de entrevistá-lo(a) sobre a temática, você poderia colaborar respondendo a uma


entrevista que vai lhe tomar alguns minutos?

I- DADOS DE IDENTIFICAÇÃO

1-Nome do entrevistado:__________________________________
2- Como prefere ser chamado(a) na escrita:____________________
3- Idade:
1. ( )12 a 14 anos
2. ( )14 a 16 anos
3. ( )16 a 18 anos
4. ( )19 a 24 anos
5. ( )25 a 34 anos
6. ( )35 a 44 anos
7. ( )45 a 54 anos
8. ( )55 a 64 anos
9. ( ) > 65 anos

4-Sexo:
Masculino 1 ( ) Feminino 2 ( )

 
 187
 

5- Nível de escolaridade:
1.( ) Até 1º grau completo
2.( ) 2º grau completo
3.( ) 2º grau incompleto
4.( ) Superior completo
5.( ) Superior incompleto
6.( ) Pós-graduação

6- Profissão:
( ) estudante ( )funcionário público ( ) autônomo ( ) do lar ( ) aposentado por tempo de
serviço ( ) aposentado por invalidez ( ) outro. Qual?_____________________
A - O que você costuma fazer no seu tempo livre?
B - Há quanto tempo você mora no bairro de Itapuã?
C - Qual a primeira lembrança de convivência com a comunidade de Itapuã?

II- QUESTÕES NORTEADORAS

1-O que é o Bairro de Itapuã? E o que significa a comunidade de Itapuã para você? Quais as
semelhanças, diferenças?
2-O que você pensa a respeito do termo “itapuanzeiro”? Qual o seu significado? O que é
preciso para ser um itapuanzeiro?
3- Diante das transformações que ocorreram e das diversidades que passaram a habitar Itapuã,
como cultivar o sentimento de pertencimento com o lugar?
4- Como a comunidade de Itapuã tem mantido suas tradições em meio a tantas mudanças?
5- Qual a importância das festas para a cultura local?
6- Quais festas você pode citar que tem relação com as tradições de Itapuã?
7- Qual a contribuição que a lavagem tem dado em relação à afirmação de identidade? Você
pode citar exemplos?
8-Como os grupos e expressões culturais contribuem com o processo educativo das pessoas
no bairro?
9-Como você percebe a relação dos moradores antigos e os novos moradores com a festa?
10- Durante a lavagem, você percebe a inclusão de novas culturas, grupos e pessoas? Pode
exemplificar?

 
 188
 

11-Por que no ano de 2011 a lavagem foi intitulada como “Nativa Ativa”? O que se quis com
isso?
12- Qual a compreensão que você tem de educação?
13-De que maneira a educação perpassa pela lavagem? Você consegue identificar se durante a
construção da lavagem algum processo educativo acontece para além da festa?
14- Quais contribuições, aprendizados e mudanças a lavagem de Itapuã proporcionou à sua
vida pessoal?
15- O que você deseja para o futuro da comunidade?
16- Como você contribui para que isso aconteça?

 
 189
 

APÊNDICE B – TERMO DE CESSÃO DE IMAGEM

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Termo de cessão de Imagem de gravações feitas na lavagem de Itapuã 2011, respectivas


reuniões de organização e entrevistas cedidas para a pesquisa EDUCAÇÃO E
IDENTIDADE: A RECONSTRUÇÃO CULTURAL DA FESTA DE ITAPUÃ

Pelo presente __________________________________________________________,


doravante denominado como CONCEDENTE cede o direito de uso de sua imagem pessoal e
profissional, sem que incida qualquer ônus sobre esta concessão de direitos devido o uso ser
meramente para veiculação do conhecimento acadêmico e da cultura popular. Desta forma,
CE depara divulgação o conteúdo das falas, gestos, fotos e vídeos de sua participação na
lavagem de Itapuã, no ano de 2011, respectivas reuniões de organização e entrevistas
concedidas para a pesquisadora Débora Matos Maia, RG 11136130-33, CPF 018406095-83.
Tais imagens devem compor um documentário que versa sobre os processos educativos que
perpassam a lavagem de Itapuã, sendo que a sua divulgação se dará no dia de sua defesa, em
eventos da comunidade de Itapuã e ou em qualquer mídia, por quaisquer meios de
comunicação, no território nacional ou fora dele, além da Internet, com a finalidade de tornar
público e acessível os resultados de sua pesquisa que estará disponível na biblioteca da
Universidade Federal da Bahia em modo impresso no ano de 2012. Assim, por estarem justos
e acordados CONCEDENTE E CONCESSIONÁRIO assinam o presente instrumento.

Salvador, ______ de _______________ de 2011.

CONCEDENTE

CONCESSIONARIO - Pesquisador

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