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Jesus veio à luz num mundo pacificado. Era a paz romana, garantida
pelos zelosos legionários de Roma, cuja presença bastava, por si só, para
desencorajar qualquer tentação revolucionária nos mais longínquos cantos
do império. Na maioria dos casos, a paz gerou prosperidade e até mesmo
luxo e bem-estar, que se difundiram também nas províncias mais distantes.
Mas não foi esse o caso da Palestina, uma pequena região de cerca de
20.000 km2, situada nos limites orientais dos extensos domínios romanos.
A população local, formada por cerca de um milhão de judeus,
submetidos a Roma desde que as legiões de Pompeu conquistaram
Jerusalém no ano 63 a.C., representava apenas um reduzido número de
contribuintes num dos mais extensos e complexos sistemas tributários da
História, capaz de coletar impostos dos povos conquistados em todo o
império. As grandes obras públicas realizadas pelo governo de Roma –
estradas e aquedutos majestosos, prédios de mármore e amplas praças –
eram financiadas, em parte, pela receita fiscal, que pesava mais sobre as
classes menos favorecidas. Roma se comportava em matéria tributária,
assim como em tantos outros setores, como um patrão inflexível e sem
piedade. Os governadores das várias províncias tinham de convocar
periodicamente um censo com o objetivo de atualizar os cadastros fiscais
da metrópole. Foi um edito dessa natureza que obrigou José e Maria a fazer
uma viagem de 145 quilômetros para chegar a Belém.
O Evangelho de Lucas informa-nos que o imperador romano César
Augusto determinara que toda a população da Palestina retornasse às suas
cidades de origem para se submeter ao recenseamento; além disso, Lucas
também informa que, à época, o governador da Síria era Quirino. Os
estudiosos, porém, não encontraram referências históricas mais precisas
com relação ao recenseamento mencionado por Lucas. A documentação
disponível revela que houve ao menos um recenseamento durante a
administração do cônsul romano Públio Sulpício Quirino nas províncias da
Síria e da Palestina, mas a data remonta ao ano 6 d.C., uma década após a
morte do rei Herodes, o Grande. Entretanto Mateus e Lucas situam o
nascimento de Jesus justamente durante o reinado de Herodes.
Devemos supor, portanto, que Lucas e talvez outros autores do Novo
Testamento tenham confundido os acontecimentos ligados à vida de Jesus?
Os Evangelhos só foram escritos cerca de 70 anos ou talvez até mesmo um
século depois do nascimento de Jesus. Os episódios mais amados pelos
primeiros seguidores de Jesus, repetidos infinitas vezes ao longo daqueles
anos, devem ter sofrido certamente alterações e retoques.
Será que se trata de uma licença poética? A viagem até Belém
representa um dos episódios mais queridos da tradição cristã. Isso se deve,
em parte, à comoção suscitada pela narração da jovem grávida, obrigada a
enfrentar o cansaço da longa viagem: cinco dias a pé, da pequena aldeia de
Nazaré, na Baixa Galileia, até a cidade de Belém, berço dos antepassados de
José, na borda do deserto de Judeia ou Judá.
Pode ser ainda que o recenseamento tenha acontecido de fato, mas,
por se tratar de um detalhe insignificante, foi menosprezado pelos
historiadores do Império Romano, um domínio imenso, composto por 30
províncias e distribuído numa superfície de mais de 5 milhões de km2.
Afinal, a Palestina ficava muito distante de Roma, sede do poder político e
militar.
Falta de precisão, licença poética ou lacunas nos documentos
históricos? Encontraremos frequentemente esse mesmo tipo de
ambiguidade ao longo da nossa reconstrução da vida de Jesus. Para a
maioria dos leitores, essas imprecisões não comprometem a
verossimilhança da história: elas são bem compreensíveis, se
considerarmos as circunstâncias em que foram redigidos os textos do Novo
Testamento. A transcrição dos acontecimentos históricos preocupada com
a exatidão dos detalhes representa uma concepção bem recente. Naquela
época, a precisão cronológica dos fatos narrados era muito menos
importante do que a mensagem espiritual que emanava do testemunho
pessoal dos discípulos que ainda se lembravam de Jesus vivo.
Somente Lucas e Mateus narraram a história do nascimento de Jesus,
nos dois capítulos iniciais dos seus evangelhos. Embora os dois
evangelistas relatem os mesmos eventos com detalhes que às vezes até
parecem contraditórios, o seu objetivo é evidente: demonstrar que Jesus foi
o verdadeiro Messias anunciado pelas profecias. Por exemplo, ambos os
escritores afirmam que Jesus nasceu em Belém, mas a partir de dois pontos
de vista distintos. Segundo Mateus, o nascimento em Belém cumpre uma
profecia do Antigo Testamento que encontramos em Miqueias 5,2, mas ele
nada fala sobre os motivos que levaram Maria e José até aquela cidade.
Lucas, por sua vez, narrando como o recenseamento imperial obrigou José
e Maria a se deslocarem para Belém, mostra que Deus se serviu dos
máximos poderes terrenos para fazer com que Jesus nascesse justamente
naquela cidade, assim como havia sido anunciado pelas Sagradas
Escrituras.
Sobre os argumentos centrais, ou seja, os de maior relevância, Mateus
e Lucas estão de acordo. Ambos confirmam a intervenção dos anúncios e
das promessas divinas e ilustram a origem humilde de Jesus. Lucas
comenta, por exemplo, que Maria só se distinguia das outras jovens da sua
aldeia pela pureza da sua alma, e Mateus demonstra que foi a fé, e não a
posição social de José, que fez dele o alvo da escolha divina para a sua difícil
tarefa. Dessa maneira, os dois escritores, a propósito da escolha dos pais de
Jesus, pretendem enfatizar que a mensagem espiritual do Novo Testamento
se baseia mais na verdade interior do que nas aparências exteriores.
Duas anunciações
Lucas começa o seu relato do nascimento de Jesus pouco mais de um ano
antes da viagem para Belém, com a concepção e o nascimento de João, que
mais tarde receberia o cognome “Batista”. Zacarias e Isabel [Elisabete], um
casal idoso de devotos que vivia nas montanhas da Judeia, não tinham
filhos, embora fossem “justos diante de Deus e seguissem todos os
mandamentos e observâncias do Senhor de maneira irrepreensível”. Lucas
se demora nesse ponto porque, na tradição hebraica, a esterilidade da
mulher era interpretada como sinal de reprovação de Deus. Isabel era
obrigada a conviver, dia após dia, com a confirmação manifesta do
descontentamento divino, pois já perdera todas as esperanças de ter um
filho.
Zacarias, que era sacerdote, encontrava-se, um dia, no Templo,
ocupado com um rito de oferenda de incenso ao Senhor. De repente,
apareceu um anjo ao lado do altar para anunciar que Isabel conceberia e
daria à luz um filho “repleto do Espírito Santo”. Esse filho, a que chamariam
João, era destinado a receber as dádivas espirituais do profeta Elias. João
cresceria e levaria muitos judeus a se reencontrar com Deus, preparando
assim o povo para os planos divinos.
Embora fosse um homem profundamente devoto, a primeira reação de
Zacarias foi a incredulidade, pois o bom senso lhe dizia que sua esposa
tinha uma idade adiantada demais para ter um filho. Somente um milagre a
deixaria grávida. E era essa, obviamente, a essência do anúncio. O anjo, que
revelou chamar-se Gabriel, disse que, como sinal divino e punição pela sua
pouca fé, Zacarias ficaria mudo, incapaz de pronunciar uma única palavra
até o nascimento do filho. Quando Isabel descobriu que estava grávida,
sentiu grande alegria pela benevolência de Deus.
No sexto mês de gravidez de Isabel, Gabriel vai a Nazaré. Num
momento carregado de emoção, que inspiraria muitíssimos artistas de
todos os séculos seguintes, o anjo aparece para Maria. A jovem virgem, que
havia sido prometida em casamento a José, fica atônita ao receber a
saudação do anjo: “Alegra-te, ó tu que tens o favor de Deus, o Senhor está
contigo.” E tais palavras, que procedem da versão em latim da Bíblia,
iniciam a oração Ave-maria; e são repetidas numa infinidade de hinos
sagrados.
O anúncio do mensageiro celeste, conhecido como a Anunciação, dizia
que Maria conceberia um filho chamado Jesus, que este seria destinado a
ser “filho do Altíssimo”, a reinar no trono de Davi e que “o seu reino não
terá fim”. A reação de Maria foi bastante prática. Se não tinha marido, como
podia gerar um filho? Gabriel lhe explicou: “O Espírito Santo virá sobre ti e
o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.” O anjo, além disso,
informou Maria de que a sua parenta Isabel tinha concebido um filho na
velhice, concluindo com uma frase que se tornaria proverbial para os
cristãos, sobretudo nos momentos de confusão e aflição: “nada é impossível
a Deus”. Maria prestou fé imediatamente às palavras do anjo e se submeteu
à vontade divina, declarando-se serva do Senhor.
A missão de José
Mateus nos ensina que José ficou perturbado quando descobriu que sua
noiva estava grávida. Mas, como homem “justo” que era, “não queria
difamá-la” publicamente: decidiu então repeli-la em segredo. Para tanto,
era suficiente que colocasse por escrito as suas intenções de se divorciar de
Maria, num libelo ou documento assinado por duas testemunhas, que
podiam até ser os pais de Maria, sem precisar prestar conta de nada, nem
às autoridades nem a ninguém.
O noivado, em geral, durava um ano, e nesse período a infidelidade por
parte de um dos noivos era considerada adultério. Por isso José estava no
seu direito de pôr fim ao noivado com o divórcio. Apesar dos seus
sentimentos em relação a Maria, tudo indicava que a moça lhe havia sido
infiel.
Antes mesmo de pôr em prática suas resoluções, José teve um sonho,
no qual um anjo se dirigia a ele como “José, filho de Davi” e lhe explicava
que o filho concebido por Maria era obra do Espírito Santo. O anjo também
disse que essa criança se chamaria Jesus.
O nome Jesus vem de Iesous, versão grega do nome hebraico Yeshua,
por sua vez contração de Yeho shua (que provavelmente significa “O
Senhor salva”). Em português, Josué. Embora naquele tempo esse nome
fosse bastante comum, neste caso se revestia de um significado bem
especial, pois Jesus de fato salvou “o seu povo dos seus pecados”. O
nascimento a partir de uma virgem, como explicou o anjo, cumpria uma
profecia acerca da vinda do Messias. José então não teve mais dúvida e se
casou com Maria. O matrimônio, contudo, nunca foi consumado.
José descendia do rei Davi, como nos lembram tanto a saudação do
anjo quanto a genealogia levantada por Mateus, e, portanto, graças ao
matrimônio de Maria, Jesus nasceu na linhagem de Davi.
Davi é, sem dúvida, o mais amado entre todos os heróis do povo
hebraico. Nascido em Belém cerca de mil anos antes de Jesus, Davi, quando
moço guardava os rebanhos que pastavam nas colinas da região. Poeta e
músico talentoso, é provavelmente o autor de pelo menos uma parte dos
Salmos que lhe são atribuídos. Além disso, Davi foi um guerreiro corajoso e
habilidoso. A Bíblia narra que a sua carreira militar se iniciou quando,
ainda adolescente, armado somente com uma funda, matou o gigante Golias
durante o conflito entre a nação hebraica e os filisteus. A partir desse
episódio Davi se tornou um comandante destemido, vencedor de inúmeras
batalhas. Quando Saul (o primeiro rei de Israel) morreu, Davi foi coroado
seu sucessor. Com Davi teve início uma era de independência, expansão e
prosperidade para o reino de Israel. O ato mais importante para as
esperanças futuras do povo hebraico foi a aliança, relatada no Livro II
Samuel, que Deus estabeleceu com Davi e seus descendentes. Deus
prometeu que a casa e o reino de Davi seriam “estáveis” para sempre. Até
mesmo nos séculos que se seguiram, quando já nenhum descendente da
linhagem de Davi ocupava o trono, ainda havia muitas pessoas que
esperavam a vinda de um herdeiro davídico. Tanto Mateus quanto Lucas
asseveram que o nascimento de Jesus na descendência davídica representa
o cumprimento final daquelas esperanças e da promessa de Deus.
A visita a Isabel
Antes do nascimento de Jesus, Maria fez uma viagem, em decorrência de
uma notícia que recebera de Gabriel: a gravidez da sua “parenta” Isabel. Ao
narrar o episódio, Lucas não explica qual seria esse grau de parentesco,
embora a tradição as considere primas. De qualquer maneira, Maria e
Isabel se comportam como amigas muito próximas – Maria se põe a
caminho para visitar Isabel, que, mesmo em idade tão adiantada, havia
recebido essa extraordinária bênção divina. Não se sabe ao certo em que
cidade da Judeia moravam Zacarias e Isabel, mas acredita-se que ficava 140
quilômetros ao sul de Nazaré. Seria, portanto, uma viagem de pelo menos
cinco dias.
Quando entrou na casa de Zacarias, Maria saudou Isabel. Assim que
esta ouviu as palavras de Maria, João estremeceu no ventre da mãe, e
Isabel, “repleta do Espírito Santo”, disse: “Tu és bendita mais do que todas
as mulheres; bendito é também o fruto do teu ventre!” Maria respondeu à
prima com um hino de júbilo, o Magnificat, que se inicia com as palavras:
“Minha alma exalta o Senhor.” Dessa forma, Maria não apenas louva ou
engrandece a misericórdia, o poder e a generosidade de Deus, mas também
celebra a maneira como Deus intervém nos acontecimentos humanos,
fazendo cair os soberbos e os poderosos e exaltando os humildes e os
pobres: “doravante todas as gerações me proclamarão bem-aventurada”.
Maria permaneceu na casa da prima por cerca de três meses. Embora
Lucas não mencione os acontecimentos desse período, é lógico supor que
Maria tenha auxiliado Isabel nas tarefas do lar. Todos os dias era necessário
buscar água no poço da aldeia, amassar e assar o pão, coalhar o leite de
cabra para fazer o queijo. Nos dias de feira abastecia-se a casa, e o tecido
para as roupas era confeccionado em casa, fiando e tecendo.
O nascimento de João, o Batista
Pouco depois da volta de Maria a Nazaré nasceu o filho de Isabel, para a
alegria dos parentes e amigos que amavam e respeitavam essa mulher boa
e devota. De acordo com a lei hebraica, a criança foi circuncidada no oitavo
dia após o nascimento, e provavelmente depois dessa cerimônia houve
também uma festa.
Em geral, durante o ritual da circuncisão, também se anunciava o
nome que se queria dar à criança. Não foi pequeno o alvoroço quando
Isabel declarou que o recém-nascido se chamaria João. A escolha pareceu
incomum, pois, contrariamente aos costumes, esse era um nome estranho à
família de Zacarias. Nesse momento, porém, o velho genitor, ainda mudo,
fez um sinal para que lhe dessem uma tabuinha e nela escreveu, com
firmeza: “João é o seu nome.” Todos ficaram em alvoroço, e a confusão
ainda aumentou quando, após tanto tempo em silêncio, Zacarias, de
repente, abriu a boca e começou a louvar o Senhor. A sua oração, que
lembra a longa história da ligação divina com o povo hebraico e prediz a
missão de João como “profeta do Altíssimo”, constitui o hino conhecido
como Benedictus.
Com a história de Isabel e Zacarias, Lucas constrói o admirável
arcabouço para os prodígios, mais surpreendentes ainda, que
acompanhariam o nascimento de Jesus. Escritor habilidoso, Lucas sabe
como convencer o leitor, colocando lado a lado as qualidades humanas de
seus personagens e o poder imperscrutável do Senhor.
Na hospedaria não havia lugar para eles
Lucas inicia o relato do nascimento de Jesus com o recenseamento e a
viagem de Nazaré até Belém, mas não fornece nenhum detalhe sobre esse
deslocamento. É provável que o casal viajasse de noite e de madrugada,
buscando abrigo nas aldeias que encontrava pelo caminho. À época,
oferecer hospitalidade aos peregrinos era um dever sagrado.
Belém surge numa vertente baixa, mas bastante íngreme, entre as
colinas áridas e pedregosas logo ao sul de Jerusalém. A pequena cidade é
cercada por campos de relva e por olivais exuberantes, mas, ao leste, abre-
se o amplo deserto que leva até o mar Morto. Desde a época de Davi, havia
nos arredores de Belém um caravançará, ou seja, uma hospedaria. Com
efeito, a cidade era atravessada pela principal rota de caravanas entre
Jerusalém e o Egito.
Chegando a Belém, Maria e José não encontraram vaga na estalagem e,
por isso, foram procurar abrigo em alguma casa particular. Lucas não
explica por que ninguém os hospedou. De qualquer maneira, José e Maria
acabaram encontrando um abrigo de emergência, em Belém ou nos
arredores, mas não conhecemos o nome da localidade nem a natureza
desse refúgio.
Como único indício, Lucas menciona que naquele lugar havia uma
manjedoura, mas não esclarece se ela estava num pátio ou numa gruta. Ao
longo dos séculos, a tradição estabeleceu que o nascimento teria acontecido
numa gruta que servia de estábulo para o gado. Essa gente humilde não
deve ter estranhado nem achado repugnante passar a madrugada ao abrigo
de uma gruta, onde eram frequentemente guardados os animais. Quase
todas as moradias eram construídas de forma a permitir que as pessoas
ocupassem locais um pouco elevados do chão, ou a elas era reservado um
segundo andar, enquanto os animais eram confinados nos quintais ou
ficavam amarrados no andar térreo.
José e Maria saíram de Nazaré, na Galileia, para chegar a Belém através da Samaria.
Jesus nasceu
Lucas é o único evangelista a fornecer um relato daquela noite
extraordinária em que Jesus nasceu, dizendo que Maria “deu à luz o seu
filho primogênito, envolveu-o em faixas e o deitou em uma manjedoura” (2,
7).
Naquele tempo havia o costume de chamar uma parteira para ajudar a
parturiente. A parteira cortava o cordão umbilical do recém-nascido, que
em seguida era lavado com água para prevenir infecções e massageado com
uma pitada de sal. Os Evangelhos nada dizem a respeito. Só podemos
imaginar que José, desvelado e amoroso, tenha prestado todo o auxílio
possível a Maria. Talvez até tenha forrado a manjedoura com palha fresca.
Mas, antes de deitá-lo nesse berço funcional, Maria envolveu o menino com
faixas.
As faixas não serviam apenas para envolver o recém-nascido e mantê-
lo aquecido; eram também uma forma de refrear os movimentos do bebê e
garantir, assim, que os braços e as pernas crescessem retos e fortes. Uma
vez ao dia, as faixas eram desatadas e o menino lavado e massageado com
azeite de oliva, ou envolvido com pó de folhas de murta e, depois, de novo
enfaixado.
O anúncio aos pastores
Enquanto Jesus dormia na manjedoura, nos arredores de Belém alguns
pastores passavam a madrugada ao relento com os seus rebanhos de
ovelhas. Foram esses pastores os primeiros a tomar conhecimento de que
naquela noite havia ocorrido um evento portentoso.
Os pastores desempenham papel significativo na história de Jesus. Não
apenas porque nos lembram de que Jesus é descendente de Davi, o
pastorzinho de Belém, mas também porque simbolizam esse afetuoso
cuidado com os homens que inspiraria o ministério e as obras de Jesus. Ele
mesmo, quando adulto, se definiu como “bom pastor”, consciente de que
todos na Palestina compreenderiam a ligação de afeto e de confiança
recíproca que se estabelece entre o pastor e suas ovelhas, como escreveu o
salmista: “O Senhor é o meu pastor e nada me faltará!”
Era costume dos pastores da Palestina guiar seus rebanhos, em vez de
incitá-los por trás, como se faz no Ocidente. Mesmo nos dias atuais, nas
colinas da Judeia, não é raro ouvir pastores que chamam as ovelhas se
dirigindo a elas numa estranha linguagem – e os animais se apressam em
segui-los. A relação do pastor com suas ovelhas era tão íntima que o
guardador de um pequeno rebanho conhecia seus animais um por um, e
estes, por sua vez, reconheciam sua voz.
A data da Natividade
Durante os meses do inverno (geralmente de novembro até a Páscoa),
quando os pastos minguavam e a chuva e o frio se tornavam ameaças
graves, as ovelhas não mais podiam permanecer ao relento e eram
reunidas num abrigo. Mas Lucas menciona os pastores “que viviam nos
campos e montavam guarda durante a noite junto a seu rebanho”;
consequentemente, é muito provável que a data tradicional do Natal esteja
errada.
Só se começou a comemorar o Natal em 25 de dezembro a partir do
século IV. Essa data foi escolhida por razões práticas e simbólicas. No
mundo pagão do Império Romano, esse dia assinalava o início das festas
mais importantes do ano, as Saturnais, durante as quais a população se
permitia todo tipo de excesso. Era também uma data significativa do ponto
de vista astronômico: coincidia, na prática, com o solstício de inverno,
quando o sol retomava o seu movimento rumo ao zênite, nos meses de
verão. Era o dia em que todos podiam conferir a retomada do ciclo das
estações e ter a certeza de uma nova vida, destinada a desabrochar depois
da morte simbólica e real do inverno. O nascimento de Jesus indicava,
portanto, num plano diferente, a renovação da vida interior e deixava
pressentir a esperança de um renascimento espiritual para toda a
humanidade.
Segundo Mateus, Jesus nasceu durante o reinado de Herodes, o
Grande. Mas como este monarca morreu no ano 4 a.C., a data de nascimento
de Jesus deveria recuar alguns anos. Muitos estudiosos modernos admitem
o ano 6 ou talvez 7 a.C. No século VI foram feitos os cálculos para instituir a
era cristã do nosso calendário, a fim de lhe atribuir um início que
coincidisse com o ano de nascimento de Jesus. Em razão da escassez de
dados históricos disponíveis à época, Dinis, “o Pequeno”, o monge a quem
foi confiada essa tarefa, enganou-se ao fixar o ano de nascimento. E esse
erro se perpetua ainda hoje no nosso calendário.
O aparecimento dos anjos
Qualquer que fosse a data verdadeira daquele primeiro Natal, Lucas nos diz
que naquela noite um anjo do Senhor apareceu a um grupo de pastores de
Belém, inundando-os de uma luz fulgurante. “Não tenhais medo”, disse para
tranquilizá-los, e anunciou-lhes que havia acabado de nascer um “Salvador,
que é o Cristo Senhor”, a pouca distância dali. O anjo lhes explicou como o
achariam, dizendo que se tratava de “um recém-nascido envolto em faixas e
deitado numa manjedoura”. E logo apareceu uma multidão de anjos, a
cantar aqueles versos que estão tão intimamente ligados à celebração
natalina: “Glória a Deus no mais alto dos céus e sobre a terra paz para os
seus bem-amados”.
Assim que os anjos desapareceram no céu, os pastores não perderam
tempo e se apressaram a voltar a Belém e procurar o Menino Jesus. A visão
de Maria e José e da criança na manjedoura confirmou o seu espanto.
Convencidos de que o Altíssimo operara um milagre, eles espalharam a
notícia – segundo Lucas –, suscitando grande maravilha em todos os que os
escutavam. Para Jesus, ainda não havia chegado a hora de se revelar ao
mundo.
A adoração dos pastores foi mais uma prova para Maria daquilo que
ela já sabia, e ela “retinha todos esses acontecimentos, procurando-lhes o
sentido”. O glorioso acontecimento, contudo, não passou despercebido aos
olhos do mundo. Subjugados ao domínio romano, havia na Palestina muitos
judeus desiludidos e descontentes que esperavam a libertação pela mão do
Messias prometido. Lucas afirma que o Redentor havia chegado, mas
poucos sabiam disso ainda; além do mais, as autoridades hebraicas não
prestariam atenção àquelas pessoas simples envolvidas.
O cumprimento da Lei
Oito dias após o nascimento, também Jesus – assim como aconteceu com
João antes dele – foi circuncidado, de acordo com a lei hebraica. Mas, como
nos lembra Lucas, também havia outros rituais associados ao nascimento.
Maria, de acordo com as prescrições, tinha de se abster de todas as
celebrações religiosas por quarenta dias, e nos primeiros sete dias era
considerada impura. Se desse à luz uma menina, o período de impureza e
de abstenção dos ritos religiosos dobraria.
Terminado esse período, a pequena família percorreu os oito
quilômetros rumo ao norte que a separavam de Jerusalém, para cumprir os
rituais de purificação e oferecer um sacrifício no Templo. Nesse admirável
local de culto, Jesus, sendo o primogênito, foi apresentado a Deus de acordo
com a Lei que obrigava os judeus a oferecerem o primogênito do sexo
masculino para comemorar a intervenção divina que poupara os filhos dos
israelitas na chacina dos primogênitos egípcios, à época do Êxodo. Além
disso, a Lei exigia que Maria sacrificasse um casal de pombos, aves que José
provavelmente adquiriu no pátio do Templo. Se fosse mais rico, José talvez
oferecesse uma ovelha; mas, como era apenas um carpinteiro, as pombas,
mais os cinco siclos que teve de depositar no Templo como resgate
simbólico do primogênito, já pesaram demais no seu minguado orçamento.
O Templo representava o centro da vida religiosa dos judeus. Quando
Jesus foi levado para lá, o sagrado edifício fervilhava com centenas de
sacerdotes, sacrificadores, músicos, tesoureiros e uma infinidade de
pessoas remuneradas, dedicadas às mais variadas funções.
Mais surpreendentes ainda, porém, deviam parecer os encontros
mencionados por Lucas. Um ancião chamado Simeão – que havia sido
avisado pelo Espírito Santo de que não morreria antes de ver com os
próprios olhos o Redentor prometido – aproximou-se nessa hora dos pais
de Jesus e tomou a criança em seus braços. Louvando a Deus, Simeão disse:
“Agora despedes o teu servo, Soberano, em paz, conforme tua palavra.” Ele
compreendera que havia visto “a luz para a revelação aos pagãos e glória
de Israel, teu povo”. Da mesma forma, uma viúva de 84 anos chamada Ana,
uma profetisa que passava todos os dias no Templo jejuando e orando,
aproximou-se e louvou ao Senhor, falando sobre o menino a todos os que
aguardavam a redenção de Jerusalém.
A essa altura, Lucas deixa de narrar os primeiros anos de vida de Jesus,
limitando-se a nos informar que, após ter oferecido o sacrifício no Templo,
a família voltou a Nazaré. Nada mais ficamos sabendo sobre Jesus até ele
completar 12 anos de idade.
A estrela do Oriente
Pelo texto de Mateus, porém, temos a impressão de que Jesus talvez tivesse
passado os dois primeiros anos de vida em Belém. Quando relata o
nascimento do Messias, ele diz: “Eis que magos vindos do Oriente chegaram
a Jerusalém e perguntaram: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de
nascer? Vimos o seu astro no Oriente e viemos prestar-lhe homenagem.’”
Mateus não descreve em detalhes esse astro que os Magos seguiram,
mas menciona apenas esse fenômeno prodigioso: trata-se de um astro que
precede os três sábios e vai pousar sobre a casa onde morava Jesus. Apesar
dos esforços para se acharem referências históricas a esse evento, não se
encontrou explicação razoável. Não parece que algum cometa grande tenha
aparecido à época do nascimento de Jesus: houve, sim, cálculos que
atestaram que o cometa Halley se tornou visível por volta do ano 12 a.C.
Outros dois fenômenos bastante raros no céu noturno são as novas e
as supernovas, ou seja, o aumento temporário da luminosidade de algumas
estrelas após uma explosão. Esses fenômenos costumam deixar um rastro
na história. Ainda assim, não há referência ao episódio em questão nos
anais de Roma, embora a astrologia estivesse muito em voga à época. Uma
terceira possibilidade natural remete à conjunção de dois planetas, evento
também de grande relevância para os astrólogos. Calcula-se que no ano 7
a.C. Júpiter e Saturno tenham três vezes descrito órbitas insolitamente
próximas. Tal conjunção, que também se observa de tempos em tempos na
era moderna, cria uma forte luminosidade.
Independentemente da natureza do fenômeno celeste, quando os
magos que o detectaram chegaram a Jerusalém e se informaram para
localizar o “rei dos judeus que acaba de nascer” suas buscas suscitaram
grande alvoroço. Perturbaram especialmente Herodes, o Grande, o rei dos
judeus – um posto que ele havia garantido graças ao apoio dos poderosos
romanos.
No tempo do rei Herodes
O nascimento de um novo rei dos judeus representava uma evidente
ameaça a Herodes. Mais de uma vez o reino desse tirano se expusera ao
perigo de uma repentina e trágica queda por causa das conjurações
palacianas e dos atentados tramados contra sua vida. Para conservar o
poder, ele era obrigado a lançar mão de uma refinada diplomacia para com
seus superiores, os poderosos políticos de Roma, e ao mesmo tempo
manter uma constante vigilância sobre seus domínios, até mesmo no seio
da própria família.
Herodes estava acostumado a esmagar os inimigos potenciais; para
alcançar seus objetivos, não pararia diante de nada. Embora envelhecido e
doente, e talvez com a mente afetada pelo sofrimento e pelas enfermidades,
Herodes não hesitaria em utilizar quaisquer meios para descobrir o que
queria saber.
Antes de tudo, dirigiu-se aos sumos sacerdotes e aos escribas (os
sábios) de Jerusalém para obter informações. Perguntou-lhes onde deveria
nascer esse Messias. Ouviu que as profecias afirmavam que o Cristo
nasceria em Belém: Deus prometera que naquela aldeia surgiria “o chefe
que apascentará Israel, meu povo”. Com certeza, Herodes preferiria outra
resposta. Ele nascera na província da Idumeia, no sul da Judeia, e seus
antepassados haviam sido obrigados a se converter ao judaísmo. Não
podia, assim, nem de longe, argumentar que a profecia legitimava o seu
governo.
Secretamente, Herodes convocou os Reis Magos para interrogá-los.
Ficou sabendo, assim, que o insólito “astro” havia aparecido pela primeira
vez uns dois anos antes. Num ato de hipocrisia, Herodes exortou os Magos a
se informar “com exatidão acerca do menino”, de maneira que ele também
pudesse ir homenagear o novo herdeiro do trono de Israel.
Herodes chamou os Reis Magos, que estavam à procura do recém-nascido “Rei dos Judeus”, e os inquiriu
sobre o paradeiro da criança.
A adoração dos magos
Continuando seu caminho, os Magos foram conduzidos pela estrela até
Belém. Mas quem eram eles, e de que distantes países provinham? Ao longo
dos séculos, surgiram diversas lendas em torno desses personagens, tão
misteriosos e cativantes. De acordo com as diferentes versões, o seu
número varia de três a doze. Nas tradições sucessivas, são descritos como
“Reis”. Na Idade Média, receberam até mesmo nomes: Gaspar, Melquior e
Baltazar. Os estudiosos modernos supõem que vinham da Pérsia ou da
Babilônia; outros lançaram a hipótese de que fossem originários das
regiões desérticas da Arábia ou até dos territórios governados antigamente
pela rainha de Sabá.
Mateus chama-os simplesmente de “magos”, ou seja, “homens sábios”.
Como está descrito em outros textos da época, os Magos eram estudiosos
de astrologia e de magia. Consideravam-se discípulos de Zoroastro, ou
Zaratustra, o ilustre reformador religioso persa cuja doutrina afirmava a
existência de um só Deus. Na época de Jesus, entretanto, os seguidores de
Zaratustra haviam adotado o dualismo, ou seja, acreditavam na existência
de divindades opostas, o bem e o mal, e haviam incorporado práticas
astrológicas aos ritos do culto religioso.
Como sacerdotes herdeiros da religião de Zaratustra, os Magos tinham
de estar atentos a fenômenos celestes insólitos. Os sacerdotes de
Zaratustra costumavam observar a abóbada celeste em busca de sinais e
mensagens para a humanidade. Era natural, aos seus olhos, que um
acontecimento de enorme alcance fosse anunciado por um fenômeno
celeste raro e surpreendente.
Mateus, porém, no seu relato, concentra-se na própria visitação. Quem
quer que eles fossem, qualquer que fosse o sinal que lhes indicara o
caminho, os Magos finalmente acharam Jesus e sua mãe, Maria.
Ajoelharam-se e adoraram o menino, oferecendo presentes que, sem
dúvida, devem ter deixado perplexa a modesta família de Belém, presentes
a que foram frequentemente atribuídos significados simbólicos: o ouro,
como marca de soberania terrena; o incenso, ou olíbano, símbolo de
divindade; a mirra perfumada, que simbolizava a mortalidade do homem.
A matança dos inocentes
Os Magos tomaram o caminho de volta evitando satisfazer o traiçoeiro
pedido de Herodes, mas, assim, acabaram provocando, indireta e
inconscientemente, o desumano evento da matança dos inocentes. Depois
que um sonho os alertara a não voltar a se encontrar com Herodes, os três
sábios regressaram à sua terra sem informá-lo sobre a identidade da
criança e sobre o lugar em que vivia. Da mesma forma, num sonho, um anjo
ordenou a José que fugisse com a mulher e o filho para o Egito, porque
Herodes tentaria eliminar o menino, mesmo sem possuir as informações
que os Magos haviam deixado de lhe transmitir.
Naquela mesma noite, a família ameaçada se afastou de Belém sem
que ninguém percebesse e tomou o caminho para o sul. Mateus interpreta a
fuga como o cumprimento da profecia: “do Egito eu chamei o meu filho”.
Aqui Mateus cita Oseias (11, 1), embora a profecia se referisse, obviamente,
ao povo de Israel.
Furioso com a afronta recebida, o rei Herodes ordenou que fossem
assassinados todos os meninos de até 2 anos de Belém, ou seja, todos os
meninos nascidos ali depois do “aparecimento” do “astro”. A julgar pelas
estimativas da população residente em Belém e da taxa de natalidade
durante o século I d.C., é razoável acreditar que foram mortos cerca de 25
meninos. A História não menciona esse massacre em particular. Talvez a
razão esteja no fato de que a matança dos inocentes foi apenas uma das
numerosas carnificinas atribuídas a Herodes. Embora não seja referida por
outros autores além de Mateus, tal matança selou a sinistra fama histórica
de Herodes, lembrado para sempre como um tirano cruel.
A fuga para o Egito
A fúria de Herodes em Belém fracassou no seu objetivo. A sagrada família
escapou-lhe das mãos, protegida pelo alerta celeste. A família de Jesus
recorrera à solução tradicional dos judeus para os tempos difíceis: o Egito
havia sido terra de refúgio durante séculos.
No século I d.C., a população judaica residente no Egito era de cerca de
um milhão de pessoas, concentradas em sua maioria na cidade de
Alexandria, embora houvesse comunidades menores espalhadas por todo o
Egito. Parece lógico supor que os judeus participassem ativamente e com
sucesso da vida econômica do país, apesar da hostilidade dos gregos em
relação a eles e da pesada carga fiscal a que eram submetidos.
Para chegar ao Egito, era necessária uma longa viagem através de
estepes desoladas, queimadas pelo sol. José talvez levasse a família de
Belém para o oeste, rumo ao litoral mediterrâneo, para depois seguir pela
estrada costeira até a fronteira egípcia. O Novo Testamento, porém, não
oferece mais detalhes sobre o episódio. Podemos supor que, naquela terra
tão rica, José teria encontrado emprego de carpinteiro ou de trabalhador
rural caso precisasse. É possível imaginar que esse casal simples e humilde,
Maria e José, tenha sentido saudades do seu país natal, dos parentes
distantes e dos costumes de casa.
Após a morte de Herodes, em 4 d.C., José e a família regressaram à sua
casa, na Baixa Galileia. Mais uma vez eles tiveram de atravessar as extensas
regiões desérticas do Sinai e do Neguev, evitando, porém, passar pela
Judeia, que era dominada por Arquelau, o filho de Herodes.
Ilustração de uma aldeia típica, que poderia ser Nazaré, com sua rua de oficinas e artesãos.
A vida nas aldeias
Maria e José saíram do Egito e voltaram a Nazaré, onde, segundo o
evangelista Lucas, Jesus “cresceu e se desenvolveu”. Quando garoto,
Jesus observou atentamente a vida do campo, que influenciou as
imagens e os exemplos de seus futuros ensinamentos.
“Três vezes ao ano”, decretou Moisés aos filhos de Israel, “cada filho
macho teu será apresentado perante o Senhor teu Deus.” Assim, por
ocasião das três maiores festas religiosas do ano – Páscoa, Shavu’ot (Festa
das Semanas) e Sukkot (Festa das Tendas) –, muitos hebreus se dirigiam ao
Templo de Jerusalém. Havia fiéis de toda a Palestina e de todos os cantos do
mundo, congestionando as quatro estradas principais que conduziam a
Jerusalém e animando notavelmente a população da capital.
Na verdade, no entanto, uma peregrinação anual ao Templo era
considerada mais que suficiente à época de Jesus e, por isso, aqueles que
moravam longe da Cidade Santa participavam regularmente da mesma
festa todos os anos. Para o milhão ou mais de hebreus que viviam em
países estrangeiros, reunir-se no Templo em épocas de festa para assistir
aos rituais solenes e apresentar oferendas conforme a antiquíssima Lei
representava não tanto uma obrigação, mas muito mais a realização de um
sonho. O caminho em direção ao coração da Judeia era para a maioria dos
hebreus uma experiência única, a última etapa de uma longa viagem, por
terra ou mar, realizada com grandes riscos e principalmente com grandes
despesas.
A peregrinação da Páscoa
No tempo de Jesus, a festa primaveril da Páscoa era a mais popular e mais
frequentada por peregrinos. A Páscoa se iniciava com uma celebração logo
após o pôr do sol, que marcava o início do 15o dia do mês de Nisan, pelo
calendário hebraico, segundo o qual a duração de um dia vai de um pôr do
sol a outro. A comida principal da festa era o cordeiro oferecido ao Templo
durante o ritual que fazia parte da Páscoa. Essa oferenda era feita na tarde
do 14o dia; por isso os peregrinos provavelmente chegavam a Jerusalém
um ou dois dias antes, de modo a se instalarem e se organizarem em tempo
hábil.
Ao longo da estrada proveniente da Galileia, entre os peregrinos da
aldeia de Nazaré, estavam também Maria, José e seu filho Jesus. Segundo
Lucas, o casal realizava a peregrinação pascal anualmente e Jesus passou a
acompanhá-los depois de completar 12 anos de idade. Em Lucas não há
indicação de que se tratasse da primeira peregrinação do menino, mas é
uma hipótese bastante provável. Aos 13 anos, teria sido considerado um
homem. No ano seguinte a essa importante etapa da vida, algumas famílias
estimulavam os rapazes a cumprir as obrigações religiosas próprias a um
adulto, entre as quais a peregrinação à Cidade Santa.
As coisas mudaram muito em Jerusalém num intervalo de poucos
anos. Após a morte de Herodes, o Grande, sob o reinado do filho Arquelau –
que detinha o título de rei da Judeia, Samaria e Idumeia –, a região
encontrava-se arrasada por uma década de guerras civis e religiosas.
Arquelau havia herdado a desumanidade do pai, mas nenhum de seus dotes
políticos; tornou-se inimigo de seus súditos por tratá-los de modo
grosseiro e desumano e incitar as facções religiosas em vez de neutralizá-
las. Em 6 d.C., o imperador o depôs para nomear um governador civil
romano. Novamente o coração do hebraísmo mundial se encontrava sob o
domínio direto de uma potência estrangeira. Havia tropas romanas em
toda parte, com sua presença enérgica e ameaçadora.
A Páscoa, que significa “passagem”, comemorava a libertação dos
hebreus da antiga escravidão e assumia o nome da promessa de Deus,
descrita no Livro do Êxodo (12, 13): “Não recebereis nenhum golpe
destruidor, quando eu golpear a terra do Egito.” Era uma ocasião solene e
festiva que, nessa época de ocupação militar romana, assumia um
significado vibrante. Durante os sete dias de observância pascal, em
Jerusalém pairava uma atmosfera de esperança e da promessa de
libertação. Era uma excitação popular muito perigosa, mas, se Roma
tentasse negar aos hebreus essa festa religiosa, as tropas teriam de
deparar, indubitavelmente, com uma sólida resistência por parte de toda a
população.
Chegando à cidade
Quando Jesus e sua família atravessaram a última cadeia montanhosa que
protege Jerusalém ao norte, o menino viu surgir diante de seus olhos o
horizonte que o historiador Plínio descrevera como “a cidade mais famosa
não apenas da Judeia, mas também de todo o Oriente”.
Em Nazaré, durante as tarefas normais da sexta-feira à tarde e do
sábado, Jesus, como todos os outros meninos, ouvia falar da história e da
sabedoria dos hebreus. Seguindo a tradição dessa educação religiosa,
aprendia, além disso, que a cidade era motivo de profundo orgulho para a
alma hebraica, rica de significados religiosos, e cerne da angustiante e
precária existência daquela nação. Mas esses conceitos teóricos por certo
não eram suficientes para prepará-lo para a realidade que veio a conhecer
na grande sede do poder político, do fervor religioso e da cultura hebraicos.
Ao longo da década seguinte, graças às pretensões e aos critérios de
Herodes, o Grande, Jerusalém foi transformada em uma joia de
deslumbrante arquitetura. Luxuosos palácios, imponentes obras públicas,
grandiosos muros e fortalezas de proteção e a magnífica esplanada do
Templo surgiam ao lado do antiquíssimo labirinto de praças, ruazinhas
estreitas e o emaranhado de casas que faziam parte da herança histórica da
cidade. Ao lado dos imensos portões da capital, como um transbordamento
da pressão interna dos peregrinos, os comerciantes se espalhavam do lado
de fora, erguendo barracas e bancas cheias de mercadorias para atrair os
pedestres.
Mas, acima de tudo, destacava-se o Templo: a pérola e o coração de
Jerusalém e do povo hebraico. Testemunha de aproximadamente um
milênio de respeitáveis tradições (como também da inacreditável potência
financeira do rei Herodes), o santuário era um espetáculo que inspirava
arrepios e medo reverencial. Esplêndido e majestoso, ele erguia-se sobre
uma rocha, isolado por uma imensa esplanada, capaz de acomodar uns
vinte dos nossos modernos campos de futebol. As suas paredes reluziam
como a neve sobre as montanhas, segundo o historiador Flávio Josefo, e
ficavam tão brilhantes que, ao sol, chegavam a ofuscar as pessoas, pela
intensidade de seus reflexos.
Uma multidão cosmopolita
O pequeno grupo de peregrinos vindos de Nazaré talvez tenha apenas se
distinguido junto aos portões da cidade. Segundo alguns estudiosos, os
nazarenos costumavam instalar seu acampamento no mesmo lugar todos
os anos, provavelmente no monte das Oliveiras, ao leste da cidade.
Supondo que essa peregrinação para Jerusalém representasse efetivamente
o primeiro encontro de Jesus com a Cidade Santa, pode-se presumir que
Maria e José rapidamente tenham levado o menino para visitar o Templo,
talvez para fazer uma oferenda pessoal nesse mesmo dia, antes do início
dos rituais da Páscoa.
Misturada a uma polifonia de sotaques e línguas estrangeiras, sob a
vigilância dos soldados romanos, a pequena família, esgotada pela longa
viagem, ficou espremida junto a um dos portões da capital, engolida pela
multidão. A chegada à Cidade Santa deve ter deixado uma profunda
impressão na alma daquele rapazinho atento e pensativo. Crescido entre as
pessoas humildes e simples da região, encontrava-se agora em meio a um
tropel cosmopolita, assediado por todos os lados pelos gritos dos
vendedores ambulantes e pego de surpresa por mendigos profissionais.
O sangue do cordeiro
O sacrifício mais significativo entre todos os que aconteciam durante a
Páscoa era comemorado na tarde anterior ao início da festa pascal, o
chamado seder. Tratava-se da oferenda coletiva de cordeiros pascais que
seriam consumidos simultaneamente pelos milhares de hebreus reunidos
em Jerusalém. Para tomar parte dessa cerimônia, Jesus e José
provavelmente voltaram uma outra vez ao Templo, após a primeira visita.
A oferenda de cordeiros pascais era diferente de todos os outros
sacrifícios coletivos. Era uma oferenda de grupo, em que cada sacrificante
matava o animal em um ritual anterior à refeição comum; apenas pequenos
pedaços de gordura e as vísceras eram colocados de lado e queimados
sobre o altar. O sangue do animal sacrificado, além disso, era derramado
aos pés do altar, e não mais aspergido sobre o batente da porta da casa,
conforme a antiga tradição. (Essa prática era um ritual em comemoração à
primeira Páscoa, quando os hebreus marcaram com sangue de cordeiro as
traves e as grades das portas, como forma de resguardar os primogênitos
do povo hebreu da ira divina, que havia percorrido toda a região do Egito
para exterminar os primogênitos dos egípcios.)
Os imoladores voltavam em seguida para suas famílias, companheiros
de viagem ou para a casa de amigos, com os cordeiros já prontos para
serem assados e consumidos, acompanhados de pão ázimo e verduras. A
refeição era servida seguindo um cerimonial, durante o qual se contava a
história do Êxodo. (Foi um seder pascal tradicional, que Jesus celebrou com
seus discípulos, que passou para a História como a Última Ceia.)
Entre os mestres
Talvez Jesus tenha voltado mais vezes ao monte do Templo com a família,
durante a semana da Páscoa, para assistir a outros sacrifícios e fazer
alguma oferenda, e sua mente inteligente teria sido atraída pelos debates e
argumentações sobre a interpretação dos textos sagrados que aconteciam
nos pátios internos. Talvez tenha ouvido discussões acaloradas e leituras
tranquilas, recebido estímulo da descoberta intelectual e refletido sobre
pacatas exposições dos pontos de vista mais comumente aceitos. Sem
dúvida as pessoas se inflamavam em relação ao significado preciso das
profecias, em relação ao tempo, lugar e modo de o Messias – cuja chegada
era esperada por todos – se manifestar.
Certamente o profundo anseio pela libertação do domínio romano era
percebido por muitos discípulos, que se reuniam ao redor dos grandes
mestres e estudiosos da Lei, atentos, prontos para levantar questões e
aprofundar os próprios conhecimentos.
Esses debates decerto não deviam envolver os sacerdotes do Templo,
ocupados como estavam com o desenvolvimento dos rituais. Eles eram
feitos por estudiosos da Lei, conhecidos pelo nome de escribas. A sua
denominação, que em hebraico deriva da palavra “expor”, “escrever”,
indicava que possuíam condições de ler e escrever; e eles deviam essa sua
capacidade exatamente à posição de privilégio em que se encontravam
havia séculos. A sua atividade original foi desenvolvida, concentrando-se na
interpretação da Lei, mais ou menos parecida à dos modernos advogados.
Eles aprendiam, interpretavam e ensinavam a lei hebraica, que envolvia o
tradicional código civil e criminal.
É portanto correto afirmar que a reunião mundial do judaísmo,
realizada por ocasião das maiores festas com a grande afluência de
peregrinos, representava muito mais que um simples cumprimento dos
antigos rituais de sacrifícios, muito mais até que a reafirmação da fé:
constituía-se fator essencial para conservar e cultivar a poderosa
continuidade, que era o âmago próprio do judaísmo. E, igualmente, também
ao povo da cidade esse encontro trazia benefício. Ali, no pátio do Templo,
os hebreus de Jerusalém observavam o comportamento dos irmãos vindos
dos mais longínquos lugares do mundo: viam também devotos e fiéis à sua
pátria espiritual, apesar de falarem idiomas diferentes e usarem roupas e
gestos de terras distantes.
Os peregrinos, por sua vez, levavam para casa histórias em relação a
tudo o que presenciavam em Jerusalém; e a simples constatação de que um
judeu podia ser ao mesmo tempo um cidadão abastado da Babilônia e um
rico comerciante grego, ou ainda um proprietário de terras egípcio,
contribuía para ampliar os horizontes de todos os que moravam na cidade,
nas regiões e aldeias da Palestina.
“As coisas do meu Pai”
A partida dos peregrinos de Jerusalém no fim da festa era no mínimo tão
caótica e movimentada quanto sua chegada. Outra vez, as estradas ficavam
repletas de caravanas e comitivas de viajantes: todos partiam no mesmo
momento. Podemos fazer uma ideia bastante clara folheando o Evangelho
de Lucas (no Capítulo II), segundo o qual José e Maria tinham viajado um
dia inteiro antes de se darem conta de que Jesus não se encontrava em sua
comitiva. Os pais, então, voltaram a Jerusalém e o procuraram por cerca de
três dias, quando o encontraram “no Templo, sentado em meio aos mestres,
ouvindo-os e interrogando-os”.
Isso deve ter ocorrido no Átrio das Mulheres, onde habitualmente
aconteciam debates intelectuais, pois também Maria estava presente
quando Jesus foi encontrado. A quem ele ouviu durante todos esses dias?
Que perguntas fez? Que respostas recebeu? E que palavras ele usou? Nada
sabemos. Lucas nos diz apenas: “todos os que o ouviam se extasiavam com
a inteligência das suas respostas”. Em outras palavras, não apenas os
mestres responderam às suas perguntas – como habitualmente ocorria
com tantos jovens discípulos nos espaços do Templo –, mas eles também
lhe fizeram perguntas. Suas respostas simples, dadas com opinião e
repetidas espontaneamente, apesar de completas e exatas, devem ter soado
surpreendentes para um rapaz no início da idade adulta.
A reação de Maria nessa circunstância nos parece totalmente
compreensível. É fácil imaginar que qualquer mulher teria ignorado a
distinção e a importância de tal reunião e, tão logo encontrasse o filho
perdido, lhe chamasse a atenção: “Meu filho, por que agiste assim conosco?
Vê, o teu pai e eu, nós te procuramos cheios de angústia.” Jesus não se
desculpou nem procurou evasivas. Ao contrário, respondeu, talvez sem se
fazer compreender nem pelos próprios pais, nem pelos intelectuais, nem
pelos mestres que o ouviam: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu
devo estar junto do meu Pai?”
Assim, com o ânimo exaltado e um pouco confusos, Jesus e seus pais se
reencontraram no Templo. Fora um encerramento imprevisto para as
solenidades pascais. O rapaz que havia sido levado de Nazaré para ver as
maravilhas de Jerusalém e conhecer a origem de sua fé terminou a semana
discutindo conceitos religiosos em um nível tão elevado que intrigou e
surpreendeu os próprios estudiosos.
Maria, segundo Lucas, não disse nada a ninguém sobre esse
acontecimento, mas “guardava todos esses acontecimentos em seu
coração”. Pode-se imaginar que o episódio não tenha sido divulgado e que
Jesus tenha retomado sua vida habitual de rapaz do campo na antiga
Palestina. Jesus, certamente, ainda segundo Lucas, era “obediente” a seus
pais. Ainda não havia chegado o momento de assumir sua missão, que o
afastaria de seus pais para seguir os desígnios do Pai celeste.
João e seus seguidores suscitaram preocupações tanto entre as autoridades religiosas de Jerusalém
quanto entre as autoridades romanas.
Conflitos religiosos
Roma concedia aos povos sob o seu domínio a liberdade de culto, mas
não de ação política. Na Palestina, onde política e religião eram
inseparáveis, as antigas dissidências vieram à tona. Alguns chegaram
a empunhar armas em nome de Deus, outros se refugiaram no
deserto à espera do Messias.
Jesus se dirige à multidão aglomerada às margens daquela pequena baía do mar da Galileia.
A missão do Messias
Na palavra e nos trabalhos, Jesus lançava um desafio a muitas
tradições entre as mais respeitadas daquela terra, atraindo, assim, a
atenção de seus conterrâneos. Alguns viam nele um mestre
carismático, outros o líder que encarnava a oposição ao domínio
romano; aos olhos de um pequeno núcleo de crentes, porém, ele era o
Redentor enviado por Deus.