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A história completa da vida de Jesus contada de maneira cativante.

Historiadores e especialistas no estudo do fenômeno cristão reproduzem


neste livro, a partir dos quatro “Evangelhos” e também de fontes
romano-judaicas da época, o impressionante perfil de Jesus e sua época:
como eram seus pais, seus primeiros anos em contato com a cultura
judaica, a peregrinação da Páscoa e outras festas religiosas, o panorama
político e social, sua missão, o convite aos 12 apóstolos, as pregações,
milagres e parábolas, e, por fim, a crucificação e ressurreição.
Prefácio
“Faz dois mil anos, ó Cristo, que teus pés sangram pelas estradas do
mundo…”

Este verso do poeta francês contemporâneo Pierre Emmanuel exprime


a indiscutível e atormentada presença da figura de Jesus de Nazaré ao
longo desses vinte séculos que tomaram seu nome e cronologia. Se
quiséssemos resumidamente delinear esta presença, deveríamos recorrer a
dois rostos que se sobrepõem.
Por um lado, há o fenômeno histórico que se desenvolve em torno de
Jesus de Nazaré. Ele começa talvez por volta do ano 6 a.C., sob o reinado de
Herodes, o Grande e o império de Augusto, passa por uma execução em
Jerusalém, por volta de 30-33 d.C., sob o governo do procurador romano
Pôncio Pilatos, e aborda uma grandiosa herança recolhida das várias
comunidades de seus seguidores, cada vez mais ativos e numerosos.
Por outro, porém, há o mistério “Jesus Cristo, Filho de Deus”, que
anima uma literatura, a do Novo Testamento, que na realidade se tornou
por séculos “o grande códice e o grande vocabulário” da arte, da cultura e
do pensamento ocidentais.
Na esteira desta fé, milhões de homens e mulheres dedicaram sua
existência e assumiram a palavra daquele pregador ambulante da Galileia
como a luz para os passos de sua existência. Para todos esses é verdade o
que escreveu uma teóloga alemã contemporânea, Dorotea Sölle: “Compare
o Cristo com outros grandes, Sócrates, Rosa Luxemburgo, Gandhi: ele
domina o confronto. Mas será melhor compará-lo com você!”
À definição desse aspecto duplo, porém único, de Jesus Cristo é
dedicado este livro, dirigido a crentes e não crentes. Trata-se de um
itinerário que recria aqueles dias longínquos, aparentemente iguais aos
outros, mas que na realidade mudaram o mundo.
Vasculhando não só os 27 escritos do Novo Testamento – a partir dos
quatro livros chamados “Evangelhos” –, mas também as fontes romano-
judaicas da época, e fazendo um balanço da dispersa bibliografia surgida
em torno do cristianismo, os autores desta obra, especialistas no estudo do
fenômeno cristão, reproduziram de modo convincente o perfil mais
completo possível de Jesus.
Um texto egípcio apócrifo, nascido da devoção popular dos primeiros
tempos do cristianismo, por volta do ano 200, um tanto ingênuo, mas
decidido, afirma: “Alguém diz ‘Sou judeu!’ e ninguém se comove. Se diz ‘Sou
romano!’, ninguém treme. Se diz ‘Sou grego, bárbaro, escravo, liberto’,
ninguém se agita. Mas se diz ‘Sou cristão!’ o mundo inteiro estremece.”

Gianfranco Ravasi
Docente de Ciências Bíblicas na
Faculdade Teológica da Itália Setentrional, Milão
Membro da Pontifícia Comissão Bíblica
O nascimento de Jesus
Diz o Evangelho de Lucas: “Naqueles dias, foi publicado um decreto
de César Augusto, convocando toda a população do império para
recensear-se [...] cada um na sua própria cidade.” Assim, José e Maria
tomaram o caminho de Belém e Jesus nasceu na cidade de Davi.

Jesus veio à luz num mundo pacificado. Era a paz romana, garantida
pelos zelosos legionários de Roma, cuja presença bastava, por si só, para
desencorajar qualquer tentação revolucionária nos mais longínquos cantos
do império. Na maioria dos casos, a paz gerou prosperidade e até mesmo
luxo e bem-estar, que se difundiram também nas províncias mais distantes.
Mas não foi esse o caso da Palestina, uma pequena região de cerca de
20.000 km2, situada nos limites orientais dos extensos domínios romanos.
A população local, formada por cerca de um milhão de judeus,
submetidos a Roma desde que as legiões de Pompeu conquistaram
Jerusalém no ano 63 a.C., representava apenas um reduzido número de
contribuintes num dos mais extensos e complexos sistemas tributários da
História, capaz de coletar impostos dos povos conquistados em todo o
império. As grandes obras públicas realizadas pelo governo de Roma –
estradas e aquedutos majestosos, prédios de mármore e amplas praças –
eram financiadas, em parte, pela receita fiscal, que pesava mais sobre as
classes menos favorecidas. Roma se comportava em matéria tributária,
assim como em tantos outros setores, como um patrão inflexível e sem
piedade. Os governadores das várias províncias tinham de convocar
periodicamente um censo com o objetivo de atualizar os cadastros fiscais
da metrópole. Foi um edito dessa natureza que obrigou José e Maria a fazer
uma viagem de 145 quilômetros para chegar a Belém.
O Evangelho de Lucas informa-nos que o imperador romano César
Augusto determinara que toda a população da Palestina retornasse às suas
cidades de origem para se submeter ao recenseamento; além disso, Lucas
também informa que, à época, o governador da Síria era Quirino. Os
estudiosos, porém, não encontraram referências históricas mais precisas
com relação ao recenseamento mencionado por Lucas. A documentação
disponível revela que houve ao menos um recenseamento durante a
administração do cônsul romano Públio Sulpício Quirino nas províncias da
Síria e da Palestina, mas a data remonta ao ano 6 d.C., uma década após a
morte do rei Herodes, o Grande. Entretanto Mateus e Lucas situam o
nascimento de Jesus justamente durante o reinado de Herodes.
Devemos supor, portanto, que Lucas e talvez outros autores do Novo
Testamento tenham confundido os acontecimentos ligados à vida de Jesus?
Os Evangelhos só foram escritos cerca de 70 anos ou talvez até mesmo um
século depois do nascimento de Jesus. Os episódios mais amados pelos
primeiros seguidores de Jesus, repetidos infinitas vezes ao longo daqueles
anos, devem ter sofrido certamente alterações e retoques.
Será que se trata de uma licença poética? A viagem até Belém
representa um dos episódios mais queridos da tradição cristã. Isso se deve,
em parte, à comoção suscitada pela narração da jovem grávida, obrigada a
enfrentar o cansaço da longa viagem: cinco dias a pé, da pequena aldeia de
Nazaré, na Baixa Galileia, até a cidade de Belém, berço dos antepassados de
José, na borda do deserto de Judeia ou Judá.
Pode ser ainda que o recenseamento tenha acontecido de fato, mas,
por se tratar de um detalhe insignificante, foi menosprezado pelos
historiadores do Império Romano, um domínio imenso, composto por 30
províncias e distribuído numa superfície de mais de 5 milhões de km2.
Afinal, a Palestina ficava muito distante de Roma, sede do poder político e
militar.
Falta de precisão, licença poética ou lacunas nos documentos
históricos? Encontraremos frequentemente esse mesmo tipo de
ambiguidade ao longo da nossa reconstrução da vida de Jesus. Para a
maioria dos leitores, essas imprecisões não comprometem a
verossimilhança da história: elas são bem compreensíveis, se
considerarmos as circunstâncias em que foram redigidos os textos do Novo
Testamento. A transcrição dos acontecimentos históricos preocupada com
a exatidão dos detalhes representa uma concepção bem recente. Naquela
época, a precisão cronológica dos fatos narrados era muito menos
importante do que a mensagem espiritual que emanava do testemunho
pessoal dos discípulos que ainda se lembravam de Jesus vivo.
Somente Lucas e Mateus narraram a história do nascimento de Jesus,
nos dois capítulos iniciais dos seus evangelhos. Embora os dois
evangelistas relatem os mesmos eventos com detalhes que às vezes até
parecem contraditórios, o seu objetivo é evidente: demonstrar que Jesus foi
o verdadeiro Messias anunciado pelas profecias. Por exemplo, ambos os
escritores afirmam que Jesus nasceu em Belém, mas a partir de dois pontos
de vista distintos. Segundo Mateus, o nascimento em Belém cumpre uma
profecia do Antigo Testamento que encontramos em Miqueias 5,2, mas ele
nada fala sobre os motivos que levaram Maria e José até aquela cidade.
Lucas, por sua vez, narrando como o recenseamento imperial obrigou José
e Maria a se deslocarem para Belém, mostra que Deus se serviu dos
máximos poderes terrenos para fazer com que Jesus nascesse justamente
naquela cidade, assim como havia sido anunciado pelas Sagradas
Escrituras.
Sobre os argumentos centrais, ou seja, os de maior relevância, Mateus
e Lucas estão de acordo. Ambos confirmam a intervenção dos anúncios e
das promessas divinas e ilustram a origem humilde de Jesus. Lucas
comenta, por exemplo, que Maria só se distinguia das outras jovens da sua
aldeia pela pureza da sua alma, e Mateus demonstra que foi a fé, e não a
posição social de José, que fez dele o alvo da escolha divina para a sua difícil
tarefa. Dessa maneira, os dois escritores, a propósito da escolha dos pais de
Jesus, pretendem enfatizar que a mensagem espiritual do Novo Testamento
se baseia mais na verdade interior do que nas aparências exteriores.
Duas anunciações
Lucas começa o seu relato do nascimento de Jesus pouco mais de um ano
antes da viagem para Belém, com a concepção e o nascimento de João, que
mais tarde receberia o cognome “Batista”. Zacarias e Isabel [Elisabete], um
casal idoso de devotos que vivia nas montanhas da Judeia, não tinham
filhos, embora fossem “justos diante de Deus e seguissem todos os
mandamentos e observâncias do Senhor de maneira irrepreensível”. Lucas
se demora nesse ponto porque, na tradição hebraica, a esterilidade da
mulher era interpretada como sinal de reprovação de Deus. Isabel era
obrigada a conviver, dia após dia, com a confirmação manifesta do
descontentamento divino, pois já perdera todas as esperanças de ter um
filho.
Zacarias, que era sacerdote, encontrava-se, um dia, no Templo,
ocupado com um rito de oferenda de incenso ao Senhor. De repente,
apareceu um anjo ao lado do altar para anunciar que Isabel conceberia e
daria à luz um filho “repleto do Espírito Santo”. Esse filho, a que chamariam
João, era destinado a receber as dádivas espirituais do profeta Elias. João
cresceria e levaria muitos judeus a se reencontrar com Deus, preparando
assim o povo para os planos divinos.
Embora fosse um homem profundamente devoto, a primeira reação de
Zacarias foi a incredulidade, pois o bom senso lhe dizia que sua esposa
tinha uma idade adiantada demais para ter um filho. Somente um milagre a
deixaria grávida. E era essa, obviamente, a essência do anúncio. O anjo, que
revelou chamar-se Gabriel, disse que, como sinal divino e punição pela sua
pouca fé, Zacarias ficaria mudo, incapaz de pronunciar uma única palavra
até o nascimento do filho. Quando Isabel descobriu que estava grávida,
sentiu grande alegria pela benevolência de Deus.
No sexto mês de gravidez de Isabel, Gabriel vai a Nazaré. Num
momento carregado de emoção, que inspiraria muitíssimos artistas de
todos os séculos seguintes, o anjo aparece para Maria. A jovem virgem, que
havia sido prometida em casamento a José, fica atônita ao receber a
saudação do anjo: “Alegra-te, ó tu que tens o favor de Deus, o Senhor está
contigo.” E tais palavras, que procedem da versão em latim da Bíblia,
iniciam a oração Ave-maria; e são repetidas numa infinidade de hinos
sagrados.
O anúncio do mensageiro celeste, conhecido como a Anunciação, dizia
que Maria conceberia um filho chamado Jesus, que este seria destinado a
ser “filho do Altíssimo”, a reinar no trono de Davi e que “o seu reino não
terá fim”. A reação de Maria foi bastante prática. Se não tinha marido, como
podia gerar um filho? Gabriel lhe explicou: “O Espírito Santo virá sobre ti e
o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.” O anjo, além disso,
informou Maria de que a sua parenta Isabel tinha concebido um filho na
velhice, concluindo com uma frase que se tornaria proverbial para os
cristãos, sobretudo nos momentos de confusão e aflição: “nada é impossível
a Deus”. Maria prestou fé imediatamente às palavras do anjo e se submeteu
à vontade divina, declarando-se serva do Senhor.
A missão de José
Mateus nos ensina que José ficou perturbado quando descobriu que sua
noiva estava grávida. Mas, como homem “justo” que era, “não queria
difamá-la” publicamente: decidiu então repeli-la em segredo. Para tanto,
era suficiente que colocasse por escrito as suas intenções de se divorciar de
Maria, num libelo ou documento assinado por duas testemunhas, que
podiam até ser os pais de Maria, sem precisar prestar conta de nada, nem
às autoridades nem a ninguém.
O noivado, em geral, durava um ano, e nesse período a infidelidade por
parte de um dos noivos era considerada adultério. Por isso José estava no
seu direito de pôr fim ao noivado com o divórcio. Apesar dos seus
sentimentos em relação a Maria, tudo indicava que a moça lhe havia sido
infiel.
Antes mesmo de pôr em prática suas resoluções, José teve um sonho,
no qual um anjo se dirigia a ele como “José, filho de Davi” e lhe explicava
que o filho concebido por Maria era obra do Espírito Santo. O anjo também
disse que essa criança se chamaria Jesus.
O nome Jesus vem de Iesous, versão grega do nome hebraico Yeshua,
por sua vez contração de Yeho shua (que provavelmente significa “O
Senhor salva”). Em português, Josué. Embora naquele tempo esse nome
fosse bastante comum, neste caso se revestia de um significado bem
especial, pois Jesus de fato salvou “o seu povo dos seus pecados”. O
nascimento a partir de uma virgem, como explicou o anjo, cumpria uma
profecia acerca da vinda do Messias. José então não teve mais dúvida e se
casou com Maria. O matrimônio, contudo, nunca foi consumado.
José descendia do rei Davi, como nos lembram tanto a saudação do
anjo quanto a genealogia levantada por Mateus, e, portanto, graças ao
matrimônio de Maria, Jesus nasceu na linhagem de Davi.
Davi é, sem dúvida, o mais amado entre todos os heróis do povo
hebraico. Nascido em Belém cerca de mil anos antes de Jesus, Davi, quando
moço guardava os rebanhos que pastavam nas colinas da região. Poeta e
músico talentoso, é provavelmente o autor de pelo menos uma parte dos
Salmos que lhe são atribuídos. Além disso, Davi foi um guerreiro corajoso e
habilidoso. A Bíblia narra que a sua carreira militar se iniciou quando,
ainda adolescente, armado somente com uma funda, matou o gigante Golias
durante o conflito entre a nação hebraica e os filisteus. A partir desse
episódio Davi se tornou um comandante destemido, vencedor de inúmeras
batalhas. Quando Saul (o primeiro rei de Israel) morreu, Davi foi coroado
seu sucessor. Com Davi teve início uma era de independência, expansão e
prosperidade para o reino de Israel. O ato mais importante para as
esperanças futuras do povo hebraico foi a aliança, relatada no Livro II
Samuel, que Deus estabeleceu com Davi e seus descendentes. Deus
prometeu que a casa e o reino de Davi seriam “estáveis” para sempre. Até
mesmo nos séculos que se seguiram, quando já nenhum descendente da
linhagem de Davi ocupava o trono, ainda havia muitas pessoas que
esperavam a vinda de um herdeiro davídico. Tanto Mateus quanto Lucas
asseveram que o nascimento de Jesus na descendência davídica representa
o cumprimento final daquelas esperanças e da promessa de Deus.
A visita a Isabel
Antes do nascimento de Jesus, Maria fez uma viagem, em decorrência de
uma notícia que recebera de Gabriel: a gravidez da sua “parenta” Isabel. Ao
narrar o episódio, Lucas não explica qual seria esse grau de parentesco,
embora a tradição as considere primas. De qualquer maneira, Maria e
Isabel se comportam como amigas muito próximas – Maria se põe a
caminho para visitar Isabel, que, mesmo em idade tão adiantada, havia
recebido essa extraordinária bênção divina. Não se sabe ao certo em que
cidade da Judeia moravam Zacarias e Isabel, mas acredita-se que ficava 140
quilômetros ao sul de Nazaré. Seria, portanto, uma viagem de pelo menos
cinco dias.
Quando entrou na casa de Zacarias, Maria saudou Isabel. Assim que
esta ouviu as palavras de Maria, João estremeceu no ventre da mãe, e
Isabel, “repleta do Espírito Santo”, disse: “Tu és bendita mais do que todas
as mulheres; bendito é também o fruto do teu ventre!” Maria respondeu à
prima com um hino de júbilo, o Magnificat, que se inicia com as palavras:
“Minha alma exalta o Senhor.” Dessa forma, Maria não apenas louva ou
engrandece a misericórdia, o poder e a generosidade de Deus, mas também
celebra a maneira como Deus intervém nos acontecimentos humanos,
fazendo cair os soberbos e os poderosos e exaltando os humildes e os
pobres: “doravante todas as gerações me proclamarão bem-aventurada”.
Maria permaneceu na casa da prima por cerca de três meses. Embora
Lucas não mencione os acontecimentos desse período, é lógico supor que
Maria tenha auxiliado Isabel nas tarefas do lar. Todos os dias era necessário
buscar água no poço da aldeia, amassar e assar o pão, coalhar o leite de
cabra para fazer o queijo. Nos dias de feira abastecia-se a casa, e o tecido
para as roupas era confeccionado em casa, fiando e tecendo.
O nascimento de João, o Batista
Pouco depois da volta de Maria a Nazaré nasceu o filho de Isabel, para a
alegria dos parentes e amigos que amavam e respeitavam essa mulher boa
e devota. De acordo com a lei hebraica, a criança foi circuncidada no oitavo
dia após o nascimento, e provavelmente depois dessa cerimônia houve
também uma festa.
Em geral, durante o ritual da circuncisão, também se anunciava o
nome que se queria dar à criança. Não foi pequeno o alvoroço quando
Isabel declarou que o recém-nascido se chamaria João. A escolha pareceu
incomum, pois, contrariamente aos costumes, esse era um nome estranho à
família de Zacarias. Nesse momento, porém, o velho genitor, ainda mudo,
fez um sinal para que lhe dessem uma tabuinha e nela escreveu, com
firmeza: “João é o seu nome.” Todos ficaram em alvoroço, e a confusão
ainda aumentou quando, após tanto tempo em silêncio, Zacarias, de
repente, abriu a boca e começou a louvar o Senhor. A sua oração, que
lembra a longa história da ligação divina com o povo hebraico e prediz a
missão de João como “profeta do Altíssimo”, constitui o hino conhecido
como Benedictus.
Com a história de Isabel e Zacarias, Lucas constrói o admirável
arcabouço para os prodígios, mais surpreendentes ainda, que
acompanhariam o nascimento de Jesus. Escritor habilidoso, Lucas sabe
como convencer o leitor, colocando lado a lado as qualidades humanas de
seus personagens e o poder imperscrutável do Senhor.
Na hospedaria não havia lugar para eles
Lucas inicia o relato do nascimento de Jesus com o recenseamento e a
viagem de Nazaré até Belém, mas não fornece nenhum detalhe sobre esse
deslocamento. É provável que o casal viajasse de noite e de madrugada,
buscando abrigo nas aldeias que encontrava pelo caminho. À época,
oferecer hospitalidade aos peregrinos era um dever sagrado.
Belém surge numa vertente baixa, mas bastante íngreme, entre as
colinas áridas e pedregosas logo ao sul de Jerusalém. A pequena cidade é
cercada por campos de relva e por olivais exuberantes, mas, ao leste, abre-
se o amplo deserto que leva até o mar Morto. Desde a época de Davi, havia
nos arredores de Belém um caravançará, ou seja, uma hospedaria. Com
efeito, a cidade era atravessada pela principal rota de caravanas entre
Jerusalém e o Egito.
Chegando a Belém, Maria e José não encontraram vaga na estalagem e,
por isso, foram procurar abrigo em alguma casa particular. Lucas não
explica por que ninguém os hospedou. De qualquer maneira, José e Maria
acabaram encontrando um abrigo de emergência, em Belém ou nos
arredores, mas não conhecemos o nome da localidade nem a natureza
desse refúgio.
Como único indício, Lucas menciona que naquele lugar havia uma
manjedoura, mas não esclarece se ela estava num pátio ou numa gruta. Ao
longo dos séculos, a tradição estabeleceu que o nascimento teria acontecido
numa gruta que servia de estábulo para o gado. Essa gente humilde não
deve ter estranhado nem achado repugnante passar a madrugada ao abrigo
de uma gruta, onde eram frequentemente guardados os animais. Quase
todas as moradias eram construídas de forma a permitir que as pessoas
ocupassem locais um pouco elevados do chão, ou a elas era reservado um
segundo andar, enquanto os animais eram confinados nos quintais ou
ficavam amarrados no andar térreo.
José e Maria saíram de Nazaré, na Galileia, para chegar a Belém através da Samaria.
Jesus nasceu
Lucas é o único evangelista a fornecer um relato daquela noite
extraordinária em que Jesus nasceu, dizendo que Maria “deu à luz o seu
filho primogênito, envolveu-o em faixas e o deitou em uma manjedoura” (2,
7).
Naquele tempo havia o costume de chamar uma parteira para ajudar a
parturiente. A parteira cortava o cordão umbilical do recém-nascido, que
em seguida era lavado com água para prevenir infecções e massageado com
uma pitada de sal. Os Evangelhos nada dizem a respeito. Só podemos
imaginar que José, desvelado e amoroso, tenha prestado todo o auxílio
possível a Maria. Talvez até tenha forrado a manjedoura com palha fresca.
Mas, antes de deitá-lo nesse berço funcional, Maria envolveu o menino com
faixas.
As faixas não serviam apenas para envolver o recém-nascido e mantê-
lo aquecido; eram também uma forma de refrear os movimentos do bebê e
garantir, assim, que os braços e as pernas crescessem retos e fortes. Uma
vez ao dia, as faixas eram desatadas e o menino lavado e massageado com
azeite de oliva, ou envolvido com pó de folhas de murta e, depois, de novo
enfaixado.
O anúncio aos pastores
Enquanto Jesus dormia na manjedoura, nos arredores de Belém alguns
pastores passavam a madrugada ao relento com os seus rebanhos de
ovelhas. Foram esses pastores os primeiros a tomar conhecimento de que
naquela noite havia ocorrido um evento portentoso.
Os pastores desempenham papel significativo na história de Jesus. Não
apenas porque nos lembram de que Jesus é descendente de Davi, o
pastorzinho de Belém, mas também porque simbolizam esse afetuoso
cuidado com os homens que inspiraria o ministério e as obras de Jesus. Ele
mesmo, quando adulto, se definiu como “bom pastor”, consciente de que
todos na Palestina compreenderiam a ligação de afeto e de confiança
recíproca que se estabelece entre o pastor e suas ovelhas, como escreveu o
salmista: “O Senhor é o meu pastor e nada me faltará!”
Era costume dos pastores da Palestina guiar seus rebanhos, em vez de
incitá-los por trás, como se faz no Ocidente. Mesmo nos dias atuais, nas
colinas da Judeia, não é raro ouvir pastores que chamam as ovelhas se
dirigindo a elas numa estranha linguagem – e os animais se apressam em
segui-los. A relação do pastor com suas ovelhas era tão íntima que o
guardador de um pequeno rebanho conhecia seus animais um por um, e
estes, por sua vez, reconheciam sua voz.
A data da Natividade
Durante os meses do inverno (geralmente de novembro até a Páscoa),
quando os pastos minguavam e a chuva e o frio se tornavam ameaças
graves, as ovelhas não mais podiam permanecer ao relento e eram
reunidas num abrigo. Mas Lucas menciona os pastores “que viviam nos
campos e montavam guarda durante a noite junto a seu rebanho”;
consequentemente, é muito provável que a data tradicional do Natal esteja
errada.
Só se começou a comemorar o Natal em 25 de dezembro a partir do
século IV. Essa data foi escolhida por razões práticas e simbólicas. No
mundo pagão do Império Romano, esse dia assinalava o início das festas
mais importantes do ano, as Saturnais, durante as quais a população se
permitia todo tipo de excesso. Era também uma data significativa do ponto
de vista astronômico: coincidia, na prática, com o solstício de inverno,
quando o sol retomava o seu movimento rumo ao zênite, nos meses de
verão. Era o dia em que todos podiam conferir a retomada do ciclo das
estações e ter a certeza de uma nova vida, destinada a desabrochar depois
da morte simbólica e real do inverno. O nascimento de Jesus indicava,
portanto, num plano diferente, a renovação da vida interior e deixava
pressentir a esperança de um renascimento espiritual para toda a
humanidade.
Segundo Mateus, Jesus nasceu durante o reinado de Herodes, o
Grande. Mas como este monarca morreu no ano 4 a.C., a data de nascimento
de Jesus deveria recuar alguns anos. Muitos estudiosos modernos admitem
o ano 6 ou talvez 7 a.C. No século VI foram feitos os cálculos para instituir a
era cristã do nosso calendário, a fim de lhe atribuir um início que
coincidisse com o ano de nascimento de Jesus. Em razão da escassez de
dados históricos disponíveis à época, Dinis, “o Pequeno”, o monge a quem
foi confiada essa tarefa, enganou-se ao fixar o ano de nascimento. E esse
erro se perpetua ainda hoje no nosso calendário.
O aparecimento dos anjos
Qualquer que fosse a data verdadeira daquele primeiro Natal, Lucas nos diz
que naquela noite um anjo do Senhor apareceu a um grupo de pastores de
Belém, inundando-os de uma luz fulgurante. “Não tenhais medo”, disse para
tranquilizá-los, e anunciou-lhes que havia acabado de nascer um “Salvador,
que é o Cristo Senhor”, a pouca distância dali. O anjo lhes explicou como o
achariam, dizendo que se tratava de “um recém-nascido envolto em faixas e
deitado numa manjedoura”. E logo apareceu uma multidão de anjos, a
cantar aqueles versos que estão tão intimamente ligados à celebração
natalina: “Glória a Deus no mais alto dos céus e sobre a terra paz para os
seus bem-amados”.
Assim que os anjos desapareceram no céu, os pastores não perderam
tempo e se apressaram a voltar a Belém e procurar o Menino Jesus. A visão
de Maria e José e da criança na manjedoura confirmou o seu espanto.
Convencidos de que o Altíssimo operara um milagre, eles espalharam a
notícia – segundo Lucas –, suscitando grande maravilha em todos os que os
escutavam. Para Jesus, ainda não havia chegado a hora de se revelar ao
mundo.
A adoração dos pastores foi mais uma prova para Maria daquilo que
ela já sabia, e ela “retinha todos esses acontecimentos, procurando-lhes o
sentido”. O glorioso acontecimento, contudo, não passou despercebido aos
olhos do mundo. Subjugados ao domínio romano, havia na Palestina muitos
judeus desiludidos e descontentes que esperavam a libertação pela mão do
Messias prometido. Lucas afirma que o Redentor havia chegado, mas
poucos sabiam disso ainda; além do mais, as autoridades hebraicas não
prestariam atenção àquelas pessoas simples envolvidas.
O cumprimento da Lei
Oito dias após o nascimento, também Jesus – assim como aconteceu com
João antes dele – foi circuncidado, de acordo com a lei hebraica. Mas, como
nos lembra Lucas, também havia outros rituais associados ao nascimento.
Maria, de acordo com as prescrições, tinha de se abster de todas as
celebrações religiosas por quarenta dias, e nos primeiros sete dias era
considerada impura. Se desse à luz uma menina, o período de impureza e
de abstenção dos ritos religiosos dobraria.
Terminado esse período, a pequena família percorreu os oito
quilômetros rumo ao norte que a separavam de Jerusalém, para cumprir os
rituais de purificação e oferecer um sacrifício no Templo. Nesse admirável
local de culto, Jesus, sendo o primogênito, foi apresentado a Deus de acordo
com a Lei que obrigava os judeus a oferecerem o primogênito do sexo
masculino para comemorar a intervenção divina que poupara os filhos dos
israelitas na chacina dos primogênitos egípcios, à época do Êxodo. Além
disso, a Lei exigia que Maria sacrificasse um casal de pombos, aves que José
provavelmente adquiriu no pátio do Templo. Se fosse mais rico, José talvez
oferecesse uma ovelha; mas, como era apenas um carpinteiro, as pombas,
mais os cinco siclos que teve de depositar no Templo como resgate
simbólico do primogênito, já pesaram demais no seu minguado orçamento.
O Templo representava o centro da vida religiosa dos judeus. Quando
Jesus foi levado para lá, o sagrado edifício fervilhava com centenas de
sacerdotes, sacrificadores, músicos, tesoureiros e uma infinidade de
pessoas remuneradas, dedicadas às mais variadas funções.
Mais surpreendentes ainda, porém, deviam parecer os encontros
mencionados por Lucas. Um ancião chamado Simeão – que havia sido
avisado pelo Espírito Santo de que não morreria antes de ver com os
próprios olhos o Redentor prometido – aproximou-se nessa hora dos pais
de Jesus e tomou a criança em seus braços. Louvando a Deus, Simeão disse:
“Agora despedes o teu servo, Soberano, em paz, conforme tua palavra.” Ele
compreendera que havia visto “a luz para a revelação aos pagãos e glória
de Israel, teu povo”. Da mesma forma, uma viúva de 84 anos chamada Ana,
uma profetisa que passava todos os dias no Templo jejuando e orando,
aproximou-se e louvou ao Senhor, falando sobre o menino a todos os que
aguardavam a redenção de Jerusalém.
A essa altura, Lucas deixa de narrar os primeiros anos de vida de Jesus,
limitando-se a nos informar que, após ter oferecido o sacrifício no Templo,
a família voltou a Nazaré. Nada mais ficamos sabendo sobre Jesus até ele
completar 12 anos de idade.
A estrela do Oriente
Pelo texto de Mateus, porém, temos a impressão de que Jesus talvez tivesse
passado os dois primeiros anos de vida em Belém. Quando relata o
nascimento do Messias, ele diz: “Eis que magos vindos do Oriente chegaram
a Jerusalém e perguntaram: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de
nascer? Vimos o seu astro no Oriente e viemos prestar-lhe homenagem.’”
Mateus não descreve em detalhes esse astro que os Magos seguiram,
mas menciona apenas esse fenômeno prodigioso: trata-se de um astro que
precede os três sábios e vai pousar sobre a casa onde morava Jesus. Apesar
dos esforços para se acharem referências históricas a esse evento, não se
encontrou explicação razoável. Não parece que algum cometa grande tenha
aparecido à época do nascimento de Jesus: houve, sim, cálculos que
atestaram que o cometa Halley se tornou visível por volta do ano 12 a.C.
Outros dois fenômenos bastante raros no céu noturno são as novas e
as supernovas, ou seja, o aumento temporário da luminosidade de algumas
estrelas após uma explosão. Esses fenômenos costumam deixar um rastro
na história. Ainda assim, não há referência ao episódio em questão nos
anais de Roma, embora a astrologia estivesse muito em voga à época. Uma
terceira possibilidade natural remete à conjunção de dois planetas, evento
também de grande relevância para os astrólogos. Calcula-se que no ano 7
a.C. Júpiter e Saturno tenham três vezes descrito órbitas insolitamente
próximas. Tal conjunção, que também se observa de tempos em tempos na
era moderna, cria uma forte luminosidade.
Independentemente da natureza do fenômeno celeste, quando os
magos que o detectaram chegaram a Jerusalém e se informaram para
localizar o “rei dos judeus que acaba de nascer” suas buscas suscitaram
grande alvoroço. Perturbaram especialmente Herodes, o Grande, o rei dos
judeus – um posto que ele havia garantido graças ao apoio dos poderosos
romanos.
No tempo do rei Herodes
O nascimento de um novo rei dos judeus representava uma evidente
ameaça a Herodes. Mais de uma vez o reino desse tirano se expusera ao
perigo de uma repentina e trágica queda por causa das conjurações
palacianas e dos atentados tramados contra sua vida. Para conservar o
poder, ele era obrigado a lançar mão de uma refinada diplomacia para com
seus superiores, os poderosos políticos de Roma, e ao mesmo tempo
manter uma constante vigilância sobre seus domínios, até mesmo no seio
da própria família.
Herodes estava acostumado a esmagar os inimigos potenciais; para
alcançar seus objetivos, não pararia diante de nada. Embora envelhecido e
doente, e talvez com a mente afetada pelo sofrimento e pelas enfermidades,
Herodes não hesitaria em utilizar quaisquer meios para descobrir o que
queria saber.
Antes de tudo, dirigiu-se aos sumos sacerdotes e aos escribas (os
sábios) de Jerusalém para obter informações. Perguntou-lhes onde deveria
nascer esse Messias. Ouviu que as profecias afirmavam que o Cristo
nasceria em Belém: Deus prometera que naquela aldeia surgiria “o chefe
que apascentará Israel, meu povo”. Com certeza, Herodes preferiria outra
resposta. Ele nascera na província da Idumeia, no sul da Judeia, e seus
antepassados haviam sido obrigados a se converter ao judaísmo. Não
podia, assim, nem de longe, argumentar que a profecia legitimava o seu
governo.
Secretamente, Herodes convocou os Reis Magos para interrogá-los.
Ficou sabendo, assim, que o insólito “astro” havia aparecido pela primeira
vez uns dois anos antes. Num ato de hipocrisia, Herodes exortou os Magos a
se informar “com exatidão acerca do menino”, de maneira que ele também
pudesse ir homenagear o novo herdeiro do trono de Israel.
Herodes chamou os Reis Magos, que estavam à procura do recém-nascido “Rei dos Judeus”, e os inquiriu
sobre o paradeiro da criança.
A adoração dos magos
Continuando seu caminho, os Magos foram conduzidos pela estrela até
Belém. Mas quem eram eles, e de que distantes países provinham? Ao longo
dos séculos, surgiram diversas lendas em torno desses personagens, tão
misteriosos e cativantes. De acordo com as diferentes versões, o seu
número varia de três a doze. Nas tradições sucessivas, são descritos como
“Reis”. Na Idade Média, receberam até mesmo nomes: Gaspar, Melquior e
Baltazar. Os estudiosos modernos supõem que vinham da Pérsia ou da
Babilônia; outros lançaram a hipótese de que fossem originários das
regiões desérticas da Arábia ou até dos territórios governados antigamente
pela rainha de Sabá.
Mateus chama-os simplesmente de “magos”, ou seja, “homens sábios”.
Como está descrito em outros textos da época, os Magos eram estudiosos
de astrologia e de magia. Consideravam-se discípulos de Zoroastro, ou
Zaratustra, o ilustre reformador religioso persa cuja doutrina afirmava a
existência de um só Deus. Na época de Jesus, entretanto, os seguidores de
Zaratustra haviam adotado o dualismo, ou seja, acreditavam na existência
de divindades opostas, o bem e o mal, e haviam incorporado práticas
astrológicas aos ritos do culto religioso.
Como sacerdotes herdeiros da religião de Zaratustra, os Magos tinham
de estar atentos a fenômenos celestes insólitos. Os sacerdotes de
Zaratustra costumavam observar a abóbada celeste em busca de sinais e
mensagens para a humanidade. Era natural, aos seus olhos, que um
acontecimento de enorme alcance fosse anunciado por um fenômeno
celeste raro e surpreendente.
Mateus, porém, no seu relato, concentra-se na própria visitação. Quem
quer que eles fossem, qualquer que fosse o sinal que lhes indicara o
caminho, os Magos finalmente acharam Jesus e sua mãe, Maria.
Ajoelharam-se e adoraram o menino, oferecendo presentes que, sem
dúvida, devem ter deixado perplexa a modesta família de Belém, presentes
a que foram frequentemente atribuídos significados simbólicos: o ouro,
como marca de soberania terrena; o incenso, ou olíbano, símbolo de
divindade; a mirra perfumada, que simbolizava a mortalidade do homem.
A matança dos inocentes
Os Magos tomaram o caminho de volta evitando satisfazer o traiçoeiro
pedido de Herodes, mas, assim, acabaram provocando, indireta e
inconscientemente, o desumano evento da matança dos inocentes. Depois
que um sonho os alertara a não voltar a se encontrar com Herodes, os três
sábios regressaram à sua terra sem informá-lo sobre a identidade da
criança e sobre o lugar em que vivia. Da mesma forma, num sonho, um anjo
ordenou a José que fugisse com a mulher e o filho para o Egito, porque
Herodes tentaria eliminar o menino, mesmo sem possuir as informações
que os Magos haviam deixado de lhe transmitir.
Naquela mesma noite, a família ameaçada se afastou de Belém sem
que ninguém percebesse e tomou o caminho para o sul. Mateus interpreta a
fuga como o cumprimento da profecia: “do Egito eu chamei o meu filho”.
Aqui Mateus cita Oseias (11, 1), embora a profecia se referisse, obviamente,
ao povo de Israel.
Furioso com a afronta recebida, o rei Herodes ordenou que fossem
assassinados todos os meninos de até 2 anos de Belém, ou seja, todos os
meninos nascidos ali depois do “aparecimento” do “astro”. A julgar pelas
estimativas da população residente em Belém e da taxa de natalidade
durante o século I d.C., é razoável acreditar que foram mortos cerca de 25
meninos. A História não menciona esse massacre em particular. Talvez a
razão esteja no fato de que a matança dos inocentes foi apenas uma das
numerosas carnificinas atribuídas a Herodes. Embora não seja referida por
outros autores além de Mateus, tal matança selou a sinistra fama histórica
de Herodes, lembrado para sempre como um tirano cruel.
A fuga para o Egito
A fúria de Herodes em Belém fracassou no seu objetivo. A sagrada família
escapou-lhe das mãos, protegida pelo alerta celeste. A família de Jesus
recorrera à solução tradicional dos judeus para os tempos difíceis: o Egito
havia sido terra de refúgio durante séculos.
No século I d.C., a população judaica residente no Egito era de cerca de
um milhão de pessoas, concentradas em sua maioria na cidade de
Alexandria, embora houvesse comunidades menores espalhadas por todo o
Egito. Parece lógico supor que os judeus participassem ativamente e com
sucesso da vida econômica do país, apesar da hostilidade dos gregos em
relação a eles e da pesada carga fiscal a que eram submetidos.
Para chegar ao Egito, era necessária uma longa viagem através de
estepes desoladas, queimadas pelo sol. José talvez levasse a família de
Belém para o oeste, rumo ao litoral mediterrâneo, para depois seguir pela
estrada costeira até a fronteira egípcia. O Novo Testamento, porém, não
oferece mais detalhes sobre o episódio. Podemos supor que, naquela terra
tão rica, José teria encontrado emprego de carpinteiro ou de trabalhador
rural caso precisasse. É possível imaginar que esse casal simples e humilde,
Maria e José, tenha sentido saudades do seu país natal, dos parentes
distantes e dos costumes de casa.
Após a morte de Herodes, em 4 d.C., José e a família regressaram à sua
casa, na Baixa Galileia. Mais uma vez eles tiveram de atravessar as extensas
regiões desérticas do Sinai e do Neguev, evitando, porém, passar pela
Judeia, que era dominada por Arquelau, o filho de Herodes.
Ilustração de uma aldeia típica, que poderia ser Nazaré, com sua rua de oficinas e artesãos.
A vida nas aldeias
Maria e José saíram do Egito e voltaram a Nazaré, onde, segundo o
evangelista Lucas, Jesus “cresceu e se desenvolveu”. Quando garoto,
Jesus observou atentamente a vida do campo, que influenciou as
imagens e os exemplos de seus futuros ensinamentos.

No século I d.C. a população da Galileia vivia, geralmente, em pequenas


aldeias rurais, onde a agricultura determinava quase todos os aspectos da
vida cotidiana: tradições e costumes, festas religiosas e crenças. Assim deve
ter sido também em Nazaré – onde Jesus passou a infância –, um povoado
num vale resguardado a aproximadamente 400 metros de altitude. As
colinas em torno de Nazaré fazem parte da cadeia de montanhas de rocha
calcária que demarcava a fronteira meridional da Baixa Galileia. Do alto da
colina a oeste se avista o monte Carmelo, à beira do Mediterrâneo; a leste, o
vizinho monte Tabor; e, distante, ao norte, encontra-se o monte Hermon,
eternamente coberto de neve.
Ao sul de Nazaré abre-se a fértil planície de Israel ou Esdrelon: as
tranquilas encostas do terreno e sua posição estratégica tornaram-na um
campo de batalha para os invasores e um ponto de comércio e de
baldeações desde os tempos remotos. A trilha das caravanas que deixavam
o Egito, contornando pelo litoral, provavelmente foi a mesma que Maria e
José seguiram com o menino Jesus para retornar à sua região, após a morte
de Herodes.
A população da Baixa Galileia
Apesar de os habitantes da Galileia nos tempos de Jesus terem sido
hebreus, entre eles vivia um pequeno número de pagãos – tanto escravos
quanto homens livres. Ali se encontravam sírios vindos do norte; gregos,
estabelecidos nessa região em decorrência do furor das conquistas de
Alexandre, o Grande; e também romanos, que chegaram por volta do século
I d.C.
Os hebreus tinham estatura baixa e, apesar da cor de pele mais clara,
estavam sempre bronzeados na maior parte do ano como consequência de
toda uma vida passada ao ar livre. Seus rostos marcados eram quase
sempre emoldurados por cabelos negros ou castanho-escuros, que tanto
homens quanto mulheres mantinham naturalmente longos. Por respeito à
tradição, quase todos os homens deixavam a barba crescer.
Os galileus falavam um dialeto aramaico que soava rústico para
aqueles que tinham recebido educação grega, e aos olhos dos habitantes de
Jerusalém pareciam pessoas grosseiras. Os rigorosos líderes religiosos de
Jerusalém nutriam muito pouco otimismo em relação aos hebreus da
Galileia, acusando-os de pouco se preocuparem com o cumprimento das
leis.
O sábado e as festas religiosas
Como parte das obrigações religiosas que atingiam todos os aspectos de
sua vida cotidiana, os hebreus respeitavam os preceitos de se
desobrigarem do trabalho por um dia inteiro para se dedicar ao Senhor. O
sábado começava ao pôr do sol da sexta-feira e terminava ao entardecer do
dia seguinte. Esse conceito ficou arraigado e ritualizado na cultura hebraica
de tal forma que, nos tempos de Jesus, como era proibido desenvolver
qualquer atividade aos sábados, a sexta-feira à tarde ficava sobrecarregada:
os homens terminavam seus trabalhos e as mulheres faziam limpeza na
casa com um cuidado especial, enchiam as lamparinas, preparavam as
refeições antecipadamente e lavavam as roupas.
Toda sexta-feira à noite, ao surgirem as primeiras estrelas no céu, um
hazzan, isto é, um membro da sinagoga, convocava os moradores da aldeia
para a oração com três toques agudos de corno de carneiro, e os fiéis se
reuniam na sinagoga. O jantar de sexta-feira, que se realizava pouco depois,
era uma ocasião alegre para a família, fosse pelas saborosas iguarias
servidas à mesa, fosse pela aclamação do Kiddush – uma bênção feita sobre
o vinho. A família voltava à sinagoga novamente no sábado pela manhã
para outras orações e leituras das Escrituras, e o dia terminava com outro
alarme de corno de carneiro.
Enquanto o sábado era celebrado a cada semana, outras festas e datas
ocorriam anualmente. O primeiro dia do Ano-novo hebraico, Rosh
hashanah, incidia no primeiro do mês de Tishri (setembro-outubro). Dez
dias depois se celebrava o Yom Kippur, dia da expiação, durante o qual os
hebreus se arrependiam dos pecados cometidos no ano anterior. No Yom
Kippur não havia festa, mas jejum total e reflexões. A Hanuca, uma festa de
oito dias, começava em 25 de Kislev (novembro-dezembro) para
comemorar a nova exaltação do Templo de Jerusalém feita por Judas
Macabeu em 164 a.C., após sua profanação por parte de Antíoco IV Epifânio.
A festa de Purim, ao contrário – que ocorria em 14 e 15 do mês de Adar
(fevereiro-março) –, era uma ocasião de alegria e de grandes festejos.
Purim comemorava a libertação dos hebreus de seus inimigos, como
descreve o Livro de Ester, lido na sinagoga durante as cerimônias
religiosas. Havia, além disso, algumas festividades ligadas ao período de
plantação e ainda a Semana da Páscoa (Pessach), que assumiu um novo e
profundo significado com a existência de Jesus.
A comemoração da Páscoa reunia em uma única festividade duas
antigas cerimônias. De um lado, relembrava a libertação dos hebreus do
jugo do Egito, ocorrida no século VIII a.C.; de outro, a data aprofundava os
laços com um passado ainda mais remoto – talvez uma festa ligada à
transumância dos gregos na primavera (o pastor nômade das regiões
montanhosas vive com seu rebanho nas montanhas durante o verão e o
outono; e na planície durante o inverno e a primavera). Iniciado o dia 15 do
mês de Nisan (entre março e abril), os hebreus abriam a semana de festa
com um seder especial, isto é, uma cerimônia ritual que incluía a narração
da história da Páscoa.
Segundo Lucas (2, 41), José e Maria iam todos os anos a Jerusalém para
comemorar a Páscoa. Embora essa época do ano fosse particularmente
importante para os camponeses, muitos deles iam a Jerusalém, onde seus
antepassados, por tradição, tinham estabelecido o início da Páscoa. Mas
muitos camponeses e o povo geralmente se satisfaziam em passar essa
festa em sua aldeia, em companhia de parentes e amigos.
A oferenda da primeira colheita era inaugurada com a festa de Shavu’ot, 50 dias após a Páscoa.
Jerusalém, a Cidade Santa
A cidadela fortificada do rei Davi, dominada pelo magnífico Templo
de Herodes, representou a base do judaísmo por cerca de um milênio.
Quando Jesus, aos 12 anos, acompanhou os pais à Cidade Santa para
comemorar a Páscoa, o exército romano vigiava a multidão de
peregrinos.

“Três vezes ao ano”, decretou Moisés aos filhos de Israel, “cada filho
macho teu será apresentado perante o Senhor teu Deus.” Assim, por
ocasião das três maiores festas religiosas do ano – Páscoa, Shavu’ot (Festa
das Semanas) e Sukkot (Festa das Tendas) –, muitos hebreus se dirigiam ao
Templo de Jerusalém. Havia fiéis de toda a Palestina e de todos os cantos do
mundo, congestionando as quatro estradas principais que conduziam a
Jerusalém e animando notavelmente a população da capital.
Na verdade, no entanto, uma peregrinação anual ao Templo era
considerada mais que suficiente à época de Jesus e, por isso, aqueles que
moravam longe da Cidade Santa participavam regularmente da mesma
festa todos os anos. Para o milhão ou mais de hebreus que viviam em
países estrangeiros, reunir-se no Templo em épocas de festa para assistir
aos rituais solenes e apresentar oferendas conforme a antiquíssima Lei
representava não tanto uma obrigação, mas muito mais a realização de um
sonho. O caminho em direção ao coração da Judeia era para a maioria dos
hebreus uma experiência única, a última etapa de uma longa viagem, por
terra ou mar, realizada com grandes riscos e principalmente com grandes
despesas.
A peregrinação da Páscoa
No tempo de Jesus, a festa primaveril da Páscoa era a mais popular e mais
frequentada por peregrinos. A Páscoa se iniciava com uma celebração logo
após o pôr do sol, que marcava o início do 15o dia do mês de Nisan, pelo
calendário hebraico, segundo o qual a duração de um dia vai de um pôr do
sol a outro. A comida principal da festa era o cordeiro oferecido ao Templo
durante o ritual que fazia parte da Páscoa. Essa oferenda era feita na tarde
do 14o dia; por isso os peregrinos provavelmente chegavam a Jerusalém
um ou dois dias antes, de modo a se instalarem e se organizarem em tempo
hábil.
Ao longo da estrada proveniente da Galileia, entre os peregrinos da
aldeia de Nazaré, estavam também Maria, José e seu filho Jesus. Segundo
Lucas, o casal realizava a peregrinação pascal anualmente e Jesus passou a
acompanhá-los depois de completar 12 anos de idade. Em Lucas não há
indicação de que se tratasse da primeira peregrinação do menino, mas é
uma hipótese bastante provável. Aos 13 anos, teria sido considerado um
homem. No ano seguinte a essa importante etapa da vida, algumas famílias
estimulavam os rapazes a cumprir as obrigações religiosas próprias a um
adulto, entre as quais a peregrinação à Cidade Santa.
As coisas mudaram muito em Jerusalém num intervalo de poucos
anos. Após a morte de Herodes, o Grande, sob o reinado do filho Arquelau –
que detinha o título de rei da Judeia, Samaria e Idumeia –, a região
encontrava-se arrasada por uma década de guerras civis e religiosas.
Arquelau havia herdado a desumanidade do pai, mas nenhum de seus dotes
políticos; tornou-se inimigo de seus súditos por tratá-los de modo
grosseiro e desumano e incitar as facções religiosas em vez de neutralizá-
las. Em 6 d.C., o imperador o depôs para nomear um governador civil
romano. Novamente o coração do hebraísmo mundial se encontrava sob o
domínio direto de uma potência estrangeira. Havia tropas romanas em
toda parte, com sua presença enérgica e ameaçadora.
A Páscoa, que significa “passagem”, comemorava a libertação dos
hebreus da antiga escravidão e assumia o nome da promessa de Deus,
descrita no Livro do Êxodo (12, 13): “Não recebereis nenhum golpe
destruidor, quando eu golpear a terra do Egito.” Era uma ocasião solene e
festiva que, nessa época de ocupação militar romana, assumia um
significado vibrante. Durante os sete dias de observância pascal, em
Jerusalém pairava uma atmosfera de esperança e da promessa de
libertação. Era uma excitação popular muito perigosa, mas, se Roma
tentasse negar aos hebreus essa festa religiosa, as tropas teriam de
deparar, indubitavelmente, com uma sólida resistência por parte de toda a
população.
Chegando à cidade
Quando Jesus e sua família atravessaram a última cadeia montanhosa que
protege Jerusalém ao norte, o menino viu surgir diante de seus olhos o
horizonte que o historiador Plínio descrevera como “a cidade mais famosa
não apenas da Judeia, mas também de todo o Oriente”.
Em Nazaré, durante as tarefas normais da sexta-feira à tarde e do
sábado, Jesus, como todos os outros meninos, ouvia falar da história e da
sabedoria dos hebreus. Seguindo a tradição dessa educação religiosa,
aprendia, além disso, que a cidade era motivo de profundo orgulho para a
alma hebraica, rica de significados religiosos, e cerne da angustiante e
precária existência daquela nação. Mas esses conceitos teóricos por certo
não eram suficientes para prepará-lo para a realidade que veio a conhecer
na grande sede do poder político, do fervor religioso e da cultura hebraicos.
Ao longo da década seguinte, graças às pretensões e aos critérios de
Herodes, o Grande, Jerusalém foi transformada em uma joia de
deslumbrante arquitetura. Luxuosos palácios, imponentes obras públicas,
grandiosos muros e fortalezas de proteção e a magnífica esplanada do
Templo surgiam ao lado do antiquíssimo labirinto de praças, ruazinhas
estreitas e o emaranhado de casas que faziam parte da herança histórica da
cidade. Ao lado dos imensos portões da capital, como um transbordamento
da pressão interna dos peregrinos, os comerciantes se espalhavam do lado
de fora, erguendo barracas e bancas cheias de mercadorias para atrair os
pedestres.
Mas, acima de tudo, destacava-se o Templo: a pérola e o coração de
Jerusalém e do povo hebraico. Testemunha de aproximadamente um
milênio de respeitáveis tradições (como também da inacreditável potência
financeira do rei Herodes), o santuário era um espetáculo que inspirava
arrepios e medo reverencial. Esplêndido e majestoso, ele erguia-se sobre
uma rocha, isolado por uma imensa esplanada, capaz de acomodar uns
vinte dos nossos modernos campos de futebol. As suas paredes reluziam
como a neve sobre as montanhas, segundo o historiador Flávio Josefo, e
ficavam tão brilhantes que, ao sol, chegavam a ofuscar as pessoas, pela
intensidade de seus reflexos.
Uma multidão cosmopolita
O pequeno grupo de peregrinos vindos de Nazaré talvez tenha apenas se
distinguido junto aos portões da cidade. Segundo alguns estudiosos, os
nazarenos costumavam instalar seu acampamento no mesmo lugar todos
os anos, provavelmente no monte das Oliveiras, ao leste da cidade.
Supondo que essa peregrinação para Jerusalém representasse efetivamente
o primeiro encontro de Jesus com a Cidade Santa, pode-se presumir que
Maria e José rapidamente tenham levado o menino para visitar o Templo,
talvez para fazer uma oferenda pessoal nesse mesmo dia, antes do início
dos rituais da Páscoa.
Misturada a uma polifonia de sotaques e línguas estrangeiras, sob a
vigilância dos soldados romanos, a pequena família, esgotada pela longa
viagem, ficou espremida junto a um dos portões da capital, engolida pela
multidão. A chegada à Cidade Santa deve ter deixado uma profunda
impressão na alma daquele rapazinho atento e pensativo. Crescido entre as
pessoas humildes e simples da região, encontrava-se agora em meio a um
tropel cosmopolita, assediado por todos os lados pelos gritos dos
vendedores ambulantes e pego de surpresa por mendigos profissionais.
O sangue do cordeiro
O sacrifício mais significativo entre todos os que aconteciam durante a
Páscoa era comemorado na tarde anterior ao início da festa pascal, o
chamado seder. Tratava-se da oferenda coletiva de cordeiros pascais que
seriam consumidos simultaneamente pelos milhares de hebreus reunidos
em Jerusalém. Para tomar parte dessa cerimônia, Jesus e José
provavelmente voltaram uma outra vez ao Templo, após a primeira visita.
A oferenda de cordeiros pascais era diferente de todos os outros
sacrifícios coletivos. Era uma oferenda de grupo, em que cada sacrificante
matava o animal em um ritual anterior à refeição comum; apenas pequenos
pedaços de gordura e as vísceras eram colocados de lado e queimados
sobre o altar. O sangue do animal sacrificado, além disso, era derramado
aos pés do altar, e não mais aspergido sobre o batente da porta da casa,
conforme a antiga tradição. (Essa prática era um ritual em comemoração à
primeira Páscoa, quando os hebreus marcaram com sangue de cordeiro as
traves e as grades das portas, como forma de resguardar os primogênitos
do povo hebreu da ira divina, que havia percorrido toda a região do Egito
para exterminar os primogênitos dos egípcios.)
Os imoladores voltavam em seguida para suas famílias, companheiros
de viagem ou para a casa de amigos, com os cordeiros já prontos para
serem assados e consumidos, acompanhados de pão ázimo e verduras. A
refeição era servida seguindo um cerimonial, durante o qual se contava a
história do Êxodo. (Foi um seder pascal tradicional, que Jesus celebrou com
seus discípulos, que passou para a História como a Última Ceia.)
Entre os mestres
Talvez Jesus tenha voltado mais vezes ao monte do Templo com a família,
durante a semana da Páscoa, para assistir a outros sacrifícios e fazer
alguma oferenda, e sua mente inteligente teria sido atraída pelos debates e
argumentações sobre a interpretação dos textos sagrados que aconteciam
nos pátios internos. Talvez tenha ouvido discussões acaloradas e leituras
tranquilas, recebido estímulo da descoberta intelectual e refletido sobre
pacatas exposições dos pontos de vista mais comumente aceitos. Sem
dúvida as pessoas se inflamavam em relação ao significado preciso das
profecias, em relação ao tempo, lugar e modo de o Messias – cuja chegada
era esperada por todos – se manifestar.
Certamente o profundo anseio pela libertação do domínio romano era
percebido por muitos discípulos, que se reuniam ao redor dos grandes
mestres e estudiosos da Lei, atentos, prontos para levantar questões e
aprofundar os próprios conhecimentos.
Esses debates decerto não deviam envolver os sacerdotes do Templo,
ocupados como estavam com o desenvolvimento dos rituais. Eles eram
feitos por estudiosos da Lei, conhecidos pelo nome de escribas. A sua
denominação, que em hebraico deriva da palavra “expor”, “escrever”,
indicava que possuíam condições de ler e escrever; e eles deviam essa sua
capacidade exatamente à posição de privilégio em que se encontravam
havia séculos. A sua atividade original foi desenvolvida, concentrando-se na
interpretação da Lei, mais ou menos parecida à dos modernos advogados.
Eles aprendiam, interpretavam e ensinavam a lei hebraica, que envolvia o
tradicional código civil e criminal.
É portanto correto afirmar que a reunião mundial do judaísmo,
realizada por ocasião das maiores festas com a grande afluência de
peregrinos, representava muito mais que um simples cumprimento dos
antigos rituais de sacrifícios, muito mais até que a reafirmação da fé:
constituía-se fator essencial para conservar e cultivar a poderosa
continuidade, que era o âmago próprio do judaísmo. E, igualmente, também
ao povo da cidade esse encontro trazia benefício. Ali, no pátio do Templo,
os hebreus de Jerusalém observavam o comportamento dos irmãos vindos
dos mais longínquos lugares do mundo: viam também devotos e fiéis à sua
pátria espiritual, apesar de falarem idiomas diferentes e usarem roupas e
gestos de terras distantes.
Os peregrinos, por sua vez, levavam para casa histórias em relação a
tudo o que presenciavam em Jerusalém; e a simples constatação de que um
judeu podia ser ao mesmo tempo um cidadão abastado da Babilônia e um
rico comerciante grego, ou ainda um proprietário de terras egípcio,
contribuía para ampliar os horizontes de todos os que moravam na cidade,
nas regiões e aldeias da Palestina.
“As coisas do meu Pai”
A partida dos peregrinos de Jerusalém no fim da festa era no mínimo tão
caótica e movimentada quanto sua chegada. Outra vez, as estradas ficavam
repletas de caravanas e comitivas de viajantes: todos partiam no mesmo
momento. Podemos fazer uma ideia bastante clara folheando o Evangelho
de Lucas (no Capítulo II), segundo o qual José e Maria tinham viajado um
dia inteiro antes de se darem conta de que Jesus não se encontrava em sua
comitiva. Os pais, então, voltaram a Jerusalém e o procuraram por cerca de
três dias, quando o encontraram “no Templo, sentado em meio aos mestres,
ouvindo-os e interrogando-os”.
Isso deve ter ocorrido no Átrio das Mulheres, onde habitualmente
aconteciam debates intelectuais, pois também Maria estava presente
quando Jesus foi encontrado. A quem ele ouviu durante todos esses dias?
Que perguntas fez? Que respostas recebeu? E que palavras ele usou? Nada
sabemos. Lucas nos diz apenas: “todos os que o ouviam se extasiavam com
a inteligência das suas respostas”. Em outras palavras, não apenas os
mestres responderam às suas perguntas – como habitualmente ocorria
com tantos jovens discípulos nos espaços do Templo –, mas eles também
lhe fizeram perguntas. Suas respostas simples, dadas com opinião e
repetidas espontaneamente, apesar de completas e exatas, devem ter soado
surpreendentes para um rapaz no início da idade adulta.
A reação de Maria nessa circunstância nos parece totalmente
compreensível. É fácil imaginar que qualquer mulher teria ignorado a
distinção e a importância de tal reunião e, tão logo encontrasse o filho
perdido, lhe chamasse a atenção: “Meu filho, por que agiste assim conosco?
Vê, o teu pai e eu, nós te procuramos cheios de angústia.” Jesus não se
desculpou nem procurou evasivas. Ao contrário, respondeu, talvez sem se
fazer compreender nem pelos próprios pais, nem pelos intelectuais, nem
pelos mestres que o ouviam: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu
devo estar junto do meu Pai?”
Assim, com o ânimo exaltado e um pouco confusos, Jesus e seus pais se
reencontraram no Templo. Fora um encerramento imprevisto para as
solenidades pascais. O rapaz que havia sido levado de Nazaré para ver as
maravilhas de Jerusalém e conhecer a origem de sua fé terminou a semana
discutindo conceitos religiosos em um nível tão elevado que intrigou e
surpreendeu os próprios estudiosos.
Maria, segundo Lucas, não disse nada a ninguém sobre esse
acontecimento, mas “guardava todos esses acontecimentos em seu
coração”. Pode-se imaginar que o episódio não tenha sido divulgado e que
Jesus tenha retomado sua vida habitual de rapaz do campo na antiga
Palestina. Jesus, certamente, ainda segundo Lucas, era “obediente” a seus
pais. Ainda não havia chegado o momento de assumir sua missão, que o
afastaria de seus pais para seguir os desígnios do Pai celeste.

João e seus seguidores suscitaram preocupações tanto entre as autoridades religiosas de Jerusalém
quanto entre as autoridades romanas.
Conflitos religiosos
Roma concedia aos povos sob o seu domínio a liberdade de culto, mas
não de ação política. Na Palestina, onde política e religião eram
inseparáveis, as antigas dissidências vieram à tona. Alguns chegaram
a empunhar armas em nome de Deus, outros se refugiaram no
deserto à espera do Messias.

No seu longo e serpenteante percurso para o sul, as águas turvas e com


frequência impetuosas do rio Jordão deslizam por 320 quilômetros para
transpor um trecho de apenas 100 quilômetros do mar da Galileia ao mar
Morto. A diferença de altitude entre o lago de água doce mais baixo da
Terra e o ponto mais baixo da superfície terrestre é de cerca de 182 metros,
razão pela qual até nos trechos mais planos o Jordão nunca é um rio
tranquilo. Na primavera, engrossado pelas chuvas invernais e pelas neves
que derretem ao norte, o rio com frequência transborda e inunda a vasta
planície de aluvião que flanqueia o seu leito; quando cessa o aluvião
sazonal, as suas curvas costumam mudar de posição. Exceto no braço mais
meridional, onde a terra é farta em jazidas salinas, a ponto de não permitir
o desenvolvimento de uma vegetação densa, a planície se apresenta
verdejante, recoberta por uma espessa mata de tamargueiras, salgueiros,
choupos, juncos e oleandros, que, entrelaçados com cipós e arbustos
espinhosos, formam um emaranhado luxuriante sob o sol abrasador.
João Batista
Foi provavelmente num lugar como este que, por volta do ano 28 d.C.,
despontou um misterioso profeta que se pôs a pregar para imensas
multidões. Homens assim não eram raros naquela época. Muitos deles
percorriam o país de um lado a outro, divulgando uma infinidade de
doutrinas. Mas João Batista era diferente.
Não tanto por seu aspecto, embora o mesmo devesse ser
impressionante: o corpo emaciado, maltratado e enrijecido pela vida no
deserto; como única indumentária uma faixa de pelo grosseiro de camelo
atada à cintura por uma cinta de couro; os cabelos revoltos e a barba
descuidada. Não tinha o ar de um velho sábio, porque não passava muito
dos 30 anos. O que chamava a atenção de seu público e engrossava a cada
dia o rol de seus seguidores era a mensagem proclamada por João e a
convicção passional que o inspirava: “Convertei-vos: o Reinado dos céus
aproxima-se!”
Na sua voz ecoava o fervor dos antigos profetas que anunciavam o
juízo de Deus – homens como Elias, Amós ou Isaías. No deserto, lugar
carregado de ressonâncias bíblicas da aliança de Deus com Moisés e o povo
hebreu, muitos aceitaram suas exortações à penitência e à conversão.
Estava próximo o dia do juízo de Deus, gritava João para as multidões, e o
descrevia em termos facilmente compreensíveis: “O machado já está
pronto para cortar a raiz das árvores; toda árvore, portanto, que não der
bom fruto será cortada e lançada ao fogo.” Era uma imagem vívida, que sem
dúvida fazia correr um arrepio de terror nos ouvintes, muitos deles
camponeses ou trabalhadores braçais agrícolas. Convencidos pela força
eloquente de seu convite, muitos ali presentes entravam nas águas do
Jordão com João, que os batizava na correnteza do rio.
O banho de purificação era muito praticado no judaísmo, por múltiplos
motivos. Algumas seitas, entre as quais os essênios, praticavam um severo
ritual cotidiano baseado em purificações. Mas o banho de João era
diferente, tanto que começou a ser chamado “aquele que imerge”, “o
batista”. O seu batismo não era uma simples imersão na água, mas uma
afirmação única que marcava aqueles que se penitenciavam como
pertencentes ao novo povo de Deus, prontos a acolher a intervenção divina
no mundo. Muitos de seus ouvintes se perguntavam se não seria ele o
próprio o salvador, o Messias.
E assim aprendemos no Evangelho de João que um grupo de
sacerdotes e de levitas chegou de Jerusalém para fazer perguntas a João
Batista. Em certo sentido, vieram para visitar um dos seus, porque João
também gozava dos direitos hereditários do sacerdócio: de fato, seu pai,
Zacarias, exercera por longo tempo o cargo de sacerdote no Templo de
Jerusalém.
A rigor, nenhum ato de João contradizia os preceitos da Torá, nem
pareceria ilegal se ele fosse proclamado o Messias. Contudo a experiência e
as Escrituras preveniam contra o perigo sempre à espreita dos falsos
profetas, exortando os fiéis a não dar crédito a promessas ilusórias. Dizia-
se que Herodes Antipas, tetrarca da Galileia e da Pereia, a leste do Jordão,
vivia incomodado com a fama de João, temendo que uma influência tão
forte exercida sobre o povo pudesse descambar para a revolta aberta.
Posicionados ao longo do rio, os sacerdotes e levitas confrontaram
João Batista. O Evangelho de João reproduz fielmente a troca de palavras:
“Quem és tu?” Ele fez uma declaração sem restrição; declarou: “Eu não sou
o Cristo.” E eles lhe perguntaram: “Quem és tu? És Elias?” Ele respondeu:
“Eu não sou Elias.” “És tu o profeta?” Ele respondeu: “Não.” Disseram-lhe
então: “Quem és tu? [...] para que teremos uma resposta aos que nos
enviaram! Que dizes de ti mesmo?” Ele afirmou: “Eu sou a voz daquele que
clama no deserto: ‘Aplanai o caminho do Senhor’, como disse o profeta
Isaías.”
Que perguntas surpreendentes! Por que não lhe perguntaram de onde
vinha, sobre sua família, suas convicções ou aspirações políticas ou
religiosas? Elias tinha vivido muitos séculos antes: por que então lhe
perguntarem se era Elias? Quem era “o profeta”? Mas nem a João nem a
seus interrogadores ocorreram explicações para essas alusões bíblicas.
As antigas Escrituras falavam daqueles tempos, e todos os presentes
conheciam bem o que aquelas palavras subentendiam. (Quando João
replicou que não era o Cristo, certamente os presentes sabiam que se
referia ao ungido por Deus: o Messias, o Cristo. A pergunta sobre Elias era
um breve aceno à promessa de Deus relatada ao fim das profecias de
Malaquias: “Eis que vou enviar-vos Elias, o profeta, antes que venha o dia
do Senhor, o grande e terrível dia.” Em relação “ao profeta”, aqueles que
interrogavam Batista se referiram à promessa feita por Deus a Moisés: “Eu
estou com tua boca e com a sua boca e vos ensinarei o que fazer. Ele falará
ao povo em teu lugar, ele será tua boca e tu serás seu deus.” A resposta final
de João foi a paráfrase de outro trecho das Escrituras, tirado das profecias
de Isaías: “No deserto abri um caminho para o Senhor, nivelai na estepe
uma estrada para o nosso Deus.”’
Todos os quatro evangelistas nos falam de João Batista, embora
apenas Mateus e Marcos o descrevam também fisicamente. Todos o
definem como uma figura profética, cujo fervoroso apelo fez vibrar o
coração das multidões. Segundo Mateus, até os fariseus e saduceus,
expoentes das duas mais poderosas facções da Judeia, acorriam para se
deixar batizar. “Eu vos batizo na água, em vista da conversão”, dizia João,
“mas aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu: eu não sou
digno de tirar-lhe as sandálias; ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo.
Traz na mão a pá, vai joeirar sua eira e recolher o trigo no celeiro; mas o
refugo, ele o queimará no fogo que não se extingue.”
À espera do Messias
Cerca de duas décadas antes, depois de mais de 30 anos de paz difícil e
sofrida e de relativa prosperidade sob o reino de Herodes, o Grande,
seguiu-se uma década de sublevações populares sob o governo do filho de
Herodes, Arquelau, homem brutal e incompetente. No ano 6 d.C., Roma
depôs Arquelau e proclamou a Judeia (incluindo as regiões de Samaria e
Idumeia) província romana. Desde o início, os hebreus não haviam aceitado
a ideia do domínio romano e a situação ficou ainda mais explosiva no ano
26 d.C., quando Pôncio Pilatos foi nomeado governador da Judeia.
Administrador de poucos escrúpulos e de sensibilidade ainda mais escassa,
não moveu um dedo para conquistar a simpatia do povo a ele submetido.
Muitos hebreus, ao ler e ouvir as palavras dos antigos profetas, como
Isaías, reconheciam a si mesmos e os próprios tempos atribulados. Isaías
traduzia a visão desesperada do fim de uma era que pisoteou as aspirações
do povo hebraico. O profeta prosseguia declarando que de um momento
similar não devia surgir a angústia, mas sim a esperança, porque uma nova
época se desenhava no horizonte: “Eis, com efeito, o Senhor: é no fogo que
ele vem, seus carros iguais a um tufão, trazendo de volta com furor a sua
cólera e suas ameaças com chamas de fogo.”
De um extremo ao outro do país as pessoas esperavam a chegada de
um messias, na esperança de que um dia, não distante, um herói
desconhecido seria enviado por Deus para transformar suas vidas. Algumas
esperavam um grande comandante militar para livrá-las do jugo romano.
Outras prognosticavam um santo sacerdote capaz de restaurar a fé de
Moisés na sua pureza original. Outros ainda sonhavam com a intervenção
direta de Deus, sem intermediários humanos, para acabar com a corrupção
do mundo e instaurar uma nova ordem de paz e justiça universais.
A tolerância religiosa de Roma
O domínio romano, embora objeto de profundos ressentimentos na
Palestina, concedia uma notável liberdade no setor privado. Os mercadores
eram livres para desenvolver seu comércio e enriquecer, os proprietários
de terra para administrá-las, os pescadores e os agricultores para tocar
seus negócios como melhor lhes aprouvesse, desde que, obviamente, não
causassem aborrecimentos ao governo e pagassem seus tributos. O lado
mais admirável desse comportamento tolerante era que tanto aos judeus
quanto aos seus vizinhos era garantida a mais completa liberdade de fé e
culto religioso.
A liberdade nesse campo era norma do império. Era uma boa política
conceder a todas as religiões o direito de continuar sua prática nos lugares
de origem. No caso de algumas, inclusive o judaísmo, foi até permitido que
se expandissem para outras regiões do Império Romano. Somente quando
uma seita desafiava a supremacia política de Roma, ou ameaçava subverter
a ordem pública, ou defendia ações criminosas, as autoridades
intervinham.
Embora saduceus e fariseus estivessem constantemente em rixa, eles
não representavam ameaça para os romanos. Cada facção procurava
exercer a máxima influência nas questões cívicas e divulgar as próprias
posições religiosas como as únicas e verdadeiras normas do judaísmo
devoto, sem por isso desencadear rebeliões. Ao mesmo tempo,
proliferavam outras seitas cujos comportamentos iam de um extremo ao
outro: alguns se retiravam na solidão ascética para se dedicar
exclusivamente à vida espiritual, outros preferiam adotar a violência como
suporte das próprias convicções.
O Evangelho não descreve em detalhes a cerimônia do batismo, mas limita-se a dizer que João batizava
com água.
O batismo de Jesus
Um dia – o Evangelho de João diz que foi no dia seguinte àquele no qual
chegaram de Jerusalém sacerdotes e levitas para interrogá-lo –, quando
estava pregando, João viu um homem que se aproximava, olhou para ele e
anunciou: “Eis aquele do qual eu disse”, gritou João, “depois de mim vem
um homem que me precedeu, porque antes de mim ele era.” Mateus narra
que, quando Jesus pediu para ser batizado, João ficou assombrado e queria
impedi-lo. “Eu é que preciso ser batizado por ti, dizia, e és tu que vens a
mim?”, perguntou, confuso. “Deixa, agora é assim que nos convém cumprir
toda a justiça”, responde Jesus.
E assim João celebrou o rito. Quando Jesus saiu da água, como relata o
Evangelho de Marcos, ele viu “os céus rasgaram-se e o Espírito como uma
pomba descer sobre si”. E dos céus veio uma voz: “Tu és o meu filho bem-
amado, aprouve-me escolher-te.” Era chegada a hora de Jesus.
Aquele evento constitui, de fato, o início do ministério público de Jesus
Cristo.

Jesus se dirige à multidão aglomerada às margens daquela pequena baía do mar da Galileia.
A missão do Messias
Na palavra e nos trabalhos, Jesus lançava um desafio a muitas
tradições entre as mais respeitadas daquela terra, atraindo, assim, a
atenção de seus conterrâneos. Alguns viam nele um mestre
carismático, outros o líder que encarnava a oposição ao domínio
romano; aos olhos de um pequeno núcleo de crentes, porém, ele era o
Redentor enviado por Deus.

Bem perto das águas frescas do Jordão erguem-se as impenetráveis


cadeias de montanhas do deserto. Nessa hostil estepe da Judeia, Jesus se
retirou para orações e jejum, passando o mesmo número de dias que
Moisés sobre o monte Sinai, onde este recebera de Deus os Dez
Mandamentos. A tradição impunha aos hebreus o jejum como penitência,
mas Jesus quis privar-se de alimentos por seis semanas com o objetivo de
reforçar o espírito.
A austeridade do deserto revelava a antiga crença de que a voz de
Deus poderia ser ouvida com mais clareza entre as montanhas. No entanto,
conforme outra crença antiga, também os espíritos malignos frequentavam
as áridas estepes do deserto. De fato, ao fim de quarenta dias, conta o
Evangelho de Mateus, Satanás transformou-se em pessoa para tentar o
jovem esfomeado e esgotado pelas privações. Predominavam como fundo
para a tentação talvez as encostas da montanha Gebel Qarantal, de cerca de
400 metros de altitude, localizada a noroeste de Jericó. Lá embaixo, o solo é
estéril e arruinado por pedras acastanhadas, semelhantes a grandes pães.
Mas Jesus resistiu à tentação de transformá-las em pão; ao contrário,
replicou ao maligno com palavras que exprimem o Deuteronômio (8, 3):
“Nem só de pão vive o homem, mas que ele vive de tudo o que sai da boca
do Senhor.”
Depois, Jesus recobrou-se, transportado para cima da cumeeira do
templo de Jerusalém. Segundo Flávio Josefo, seria impossível desviar o
olhar do topo da torre até o precipício do vale de Cedron sem sentir
vertigens. Se Jesus pulasse, como aconselhou o demônio, os anjos de Deus
correriam para apanhá-lo e pô-lo em segurança. Mas novamente Jesus
resistiu à tentação, citando o Deuteronômio (6, 16), que adverte para que
não se ponha Deus à prova. Novamente no deserto, o demônio levou Jesus
“para uma montanha muito alta” – ainda, talvez, o Gebel Qarantal – “e
mostra-lhe todos os reinos do mundo”, convidando-o a assumir o poder
sobre eles como imperador. “Tudo isso te darei se, prostrando-te, me
adorares”, sugeriu o demônio. Mas Jesus respondeu: “Retira-te, Satanás!”
(Mateus 4, 8-10)
Ao contar esse episódio das tentações – e qualquer outro
acontecimento na vida de Jesus –, tornamos a fazer as narrativas que dela
nos dão os quatro Evangelhos. Estes, escritos nas últimas décadas do século
I, são testemunhos da fé de Jesus como Messias e Filho de Deus. Os textos
sagrados são diferentes entre si sob muitos aspectos, e por isso desde suas
origens a Igreja cristã revelou-se resistente em reconhecer a autoridade de
apenas um em detrimento dos outros. Por exemplo, cada Evangelho traz
uma impressão diferente em relação às tentações do deserto. Os
Evangelhos de Mateus e Lucas reproduzem a história em detalhes, mas
invertendo a ordem da segunda e terceira tentações. O Evangelho de João
não fala delas com minúcias.
Os evangelistas acreditam demonstrar a fidelidade de Jesus aos
mandamentos de Deus da forma como aparecem expostos no Antigo
Testamento. Confirmam, além disso, o poder de Jesus ao encarar as forças
do mal presentes no mundo e vencê-las. Eles proclamam ainda que o
ministério de Jesus não possuía natureza política nem aspirava à glória
pessoal, mas baseava-se na confiança em Deus e na submissão a seus
desígnios.
Depois das tentações, Jesus não permaneceu no deserto para esperar a
multidão e incentivá-la a purificar a alma para a chegada iminente do
julgamento divino, como fazia João Batista. Ao contrário, ele percorreu as
aldeias e cidades para transmitir sua mensagem às pessoas mais humildes.
Os primeiros anos de pregação
Segundo Lucas, Jesus estava com cerca de 30 anos quando iniciou seu
ministério. Além desse particular, nada sabemos sobre os aspectos físicos
de Jesus. Os judeus consideram pecaminosa qualquer reprodução das
formas humanas, por isso nenhum retrato de Jesus foi difundido entre seus
conterrâneos. As primeiras tentativas de descrevê-lo remontam ao século
III a.C., quando os padres da Igreja decidiram que o aspecto de Jesus era o
de uma pessoa modesta e afável, repetindo Isaías (53, 2), segundo o qual o
Servo de Deus “não tinha nem aspecto, nem imponência tais que o
notássemos nem aparência tal que o procurássemos”. Mas no século IV,
para os escritores cristãos, influenciados pelo esteticismo greco-romano
idealizado, Jesus possuía aspecto cativante, citando o Salmo 45, 3: “Tu és o
mais belo dos homens (…)”. Obviamente, não há provas para sustentar
nenhuma das duas hipóteses. Sabemos apenas que Jesus era um hebreu da
Galileia e é justo imaginar que tenha se parecido com tantos outros homens
galileus de seu tempo: barbudo, de túnica, manto e sandálias.
Não há clareza em relação ao que tenha feito Jesus ao longo de várias
semanas no início de seu ministério, visto que os Evangelhos divergem
sobre esse ponto. Segundo o Evangelho de João, no lado leste do Jordão,
onde estava sendo batizado, Jesus chamou seus primeiros discípulos: um
homem do qual não sabemos o nome (talvez João) e o pescador André,
vindo da Galileia para ouvir os ensinamentos de João Batista.
(A palavra “discípulo” significa estudante, aprendiz ou seguidor.) Esses
dois primeiros discípulos seguiram imediatamente Jesus ao pressentirem
sua extraordinária espiritualidade. Quando André apresentou ao mestre
seu irmão Simão, Jesus percebeu no mesmo instante o seu caráter e o
chamou Pedro, que significa precisamente “pedra”. Para os hebreus, era um
gesto especial atribuir a alguém um novo nome – como no Livro do Gênesis,
Deus havia modificado o nome de Abrão para Abraão e de Jacó para Israel –
e indicava que tal pessoa havia sido escolhida para uma missão divina.
Após o encontro com Pedro, segundo o Evangelho de João, Jesus
decidiu ir para a Galileia e convidou Filipe, de Betsaida, cidade natal de
Simão Pedro, e Natanael, de Caná, para segui-lo.Pela versão de Lucas, no
entanto, Jesus iniciou seu ministério ensinando nas sinagogas da Galileia.
Mas ele não se limitou a pregar nas sinagogas: andou entre as pessoas
comuns. Para alguns ele pede maior empenho do que simplesmente ouvir
suas palavras, e talvez tenha sido nesse momento que ele tenha dito a seus
discípulos pescadores que o seguissem e se transformassem em
“pescadores de homens”.
Da parte dos discípulos não houve hesitação. Tiago e João
responderam ao chamado prontamente, abandonando o pai Zebedeu no
barco com seus empregados. Esses pescadores largaram seu trabalho para
seguir Jesus, pois consideraram, como é fácil imaginar, um discreto padrão:
suas considerações comuns caíram diante da convicção de que realmente
“o reinado dos céus aproximou-se”.
Em Cafarnaum e redondezas
Cafarnaum – cidadezinha à margem de uma baía, com 5.000 a 6.000
habitantes –, como base do novo ministério, passou a ter prevalência de
hebreus. Situada ao longo de uma das principais estradas comerciais entre
Damasco e Alexandria – talvez até a fronteira entre os territórios de
Herodes Filipe, a leste, e as áreas governadas por Herodes Antipas –, a
cidade era certamente mais cosmopolita que Nazaré. Jesus estabelece sua
segunda residência provavelmente na casa de Pedro.
Jesus, por certo, pregou várias vezes nas sinagogas locais e desse modo
conseguiu sua reputação como mestre tão querido. Segundo Marcos (1, 22),
as pessoas ficavam admiradas “com o seu ensinamento, pois ensinava como
quem tem autoridade e não como escribas”. Por alguns meses, Jesus
continuou suas lições na sinagoga de Cafarnaum e arredores. Mas, graças a
outra característica de seu ministério – o poder de curar os doentes e os
possuídos pelo demônio –, a sua fama rapidamente se alastrou pela região.
É provável que tenha sido sua reputação como curador que atraiu as
multidões descritas pelos Evangelhos.
Jesus não ia à procura dos doentes, não era necessário. Sua
disponibilidade para socorrê-los, numa sociedade que conhecia bem
poucos remédios eficazes, era suficiente para espalhar sua fama. As pessoas
juntavam-se em massa para ouvi-lo. Às vezes havia uma multidão tão
grande que ele era obrigado a se afastar num barco na baía. Para Jesus, esse
tipo de ministério era a prova patente do amor de Deus pelo homem.
Enquanto esteve na cidade de Caná, conta João, um funcionário militar
se dirigiu a Jesus tomado pelo desespero: seu filho estava morrendo em
Cafarnaum. Com confiante autoridade, Jesus lhe disse: “Vai, teu filho vive.”
Quando o funcionário chegou em casa no dia seguinte soube que a febre do
rapaz havia acabado no momento em que Jesus pronunciava aquelas
palavras.
Em outra ocasião, na sinagoga de Cafarnaum, enquanto Jesus ensinava,
uma pessoa possuída pelo demônio começou a gritar: “Ah, que há entre nós
e ti, Jesus de Nazaré? Vieste para nos perder.” Reconhecendo nessa
confirmação de sua missão divina o desafio de um ser demoníaco, Jesus
ordenou: “Cala-te, abandona esse corpo!” (Lucas, 4, 33-36). As convulsões
do homem terminaram e ele saiu de lá curado. Para os presentes, essa foi a
prova do poder de Jesus sobre as forças do mal.
Mais tarde, durante essa mesma jornada milagrosa, Jesus estava para
se sentar à mesa na casa de Simão Pedro quando lhe disseram que a sogra
de Pedro estava ardendo em febre. Segundo Lucas, tão logo Jesus tocou na
mão da mulher, a febre cessou e, retomando os hábitos domésticos, ela se
levantou e se pôs a servir a refeição do sábado aos hóspedes.
As curas milagrosas, no entanto, não eram desconhecidas no tempo de
Jesus. Seja nos círculos judaicos ou nos helenísticos, acreditava-se que os
homens santos ou inspirados pela divindade possuíam poderes para
realizar curas milagrosas. Além disso, muitos judeus eram particularmente
sensíveis a essas ações, pois estavam convencidos de que antes da salvação
nacional chegariam os prodígios.
No entanto, a narrativa sobre as curas feitas por Jesus mostra-se
extraordinária em muitos pontos. Nenhum outro contemporâneo de Jesus
possuía fama de curar tão grande quantidade de doenças, da cegueira à
paralisia e à lepra, restabelecendo até uma orelha cortada por espada. Os
Evangelhos mencionam três casos em que Jesus ressuscitou um ser
humano. Mas ele não recorria a fórmulas mágicas ou a rituais obscuros,
como outros curadores. Mais que repetir orações e invocar o poder de
Deus, Jesus frequentemente estimulava a fé do doente ou de quem fosse até
ele. Além disso, não curava por dinheiro.
A escolha dos 12 Apóstolos
Um dia após os milagres de Cafarnaum, Jesus procurou o isolamento, indo
antes do amanhecer para um lugar retirado. Segundo Marcos, quando
Simão Pedro e alguns amigos o encontraram para contar-lhe que as
pessoas o procuravam, Jesus negou-se a voltar atrás. “Vamos alhures às
aldeias vizinhas, para eu pregar também lá”, explicou a eles, “para isso, na
verdade, é que eu vim.”
Como sugere esse comentário, para Jesus havia chegado o momento de
reunir ao seu redor um pequeno grupo de seguidores. Concentrando-se na
Galileia, uma região de aproximadamente 40.000 km2 com cerca de 300 mil
habitantes, Jesus escolheu 12 homens entre seus discípulos para torná-los
Apóstolos e enviá-los a outros lugares como emissários de seu ministério.
(O termo “apóstolo” é grego e significa “enviar”.) O número de apóstolos
correspondia ao das tribos de Israel, talvez para enfatizar que o ministério
de Jesus era dirigido antes de tudo à restauração do povo de Israel.
Em suma, os apóstolos pertenciam à mesma classe social de Jesus:
pobres, mas não necessitados, visto que todos possuíam uma ocupação ou
profissão. Esses homens se dedicaram a Jesus, como faziam
tradicionalmente todos aqueles que decidiam seguir um mestre. Os alunos
de um rabino cedo aprendiam tanto com os atos quanto com as palavras do
mestre, e esperava-se que estivessem em condições de absorver seus
ensinamentos integralmente “como um reservatório, revestido com argila,
que não deixa escapar uma gota de água”.
No entanto, havia pelo menos duas diferenças fundamentais entre
seguir Jesus e desenvolver o aprendizado ao lado de um mestre tradicional.
Antes de tudo, os apóstolos haviam sido escolhidos, diferentemente dos
discípulos que, segundo a Torá, “escolhiam um mestre”. Além disso, Jesus
não baseava seu ensinamento na explicação rigorosa da Torá, nem havia
alcançado sua posição influente por conhecimentos recebidos de outros
mestres. Ele afirmava que sua autoridade era proveniente de sua
capacidade de interpretar os desígnios de Deus. Esta era uma diferença
fundamental que parecia, aos olhos de muitos hebreus tradicionalistas, a
coisa mais difícil de ser aceita.
A tarefa dos 12 apóstolos, no entanto, não era simplesmente teórica.
Esses homens puseram de lado os prazeres mundanos, largaram suas
profissões, as ligações familiares, o casamento e todas as posses materiais.
Por fim, aceitaram partilhar perigos, privações e humilhações por sua
fidelidade a Jesus.
No momento da escolha dos 12 apóstolos, na Palestina vibrava no ar
um entusiasmo iminente de alegria e vitória. A multidão entusiasmada
aumentava dia a dia, procurando-o aonde ele fosse. Um grupo numeroso de
pessoas seguia Jesus, outro os apóstolos e, graças aos costumes de então,
boa parte delas eram mulheres. Segundo Lucas (8, 2-3), o esteio financeiro
para as viagens de Jesus e dos 12 apóstolos era fornecido por um grupo de
mulheres, entre as quais Joana, a esposa do administrador de Herodes
Antipas, Susana, e Maria Madalena, da qual Jesus expulsou sete demônios.
(Segundo a tradição, Maria Madalena seria a pecadora que lavou os pés de
Jesus com as próprias lágrimas e os enxugou com os cabelos, mas não há
provas a esse respeito: é quase certo que tenham sido duas mulheres
diferentes.) Para Marcos (15, 40-41), um grupo de mulheres seguia Jesus
por toda a Galileia e depois o acompanhou a Jerusalém. Marcos menciona
Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, e Salomé. Para um mestre
dessa época, era algo espantoso ter mulheres como seguidoras; mesmo
esse simples fato contribui para ressaltar a natureza particularíssima do
ministério de Jesus.
Os 12 apóstolos
“Naquele dia Jesus foi para a montanha pregar e passou a noite em
orações. Quando amanheceu, chamou seus discípulos e deles escolheu
12, aos quais deu o nome de apóstolos” (Lucas 6, 12-13). Apesar de
formarem um grupo heterogêneo, os Doze eram unidos em seu amor
por Jesus e, exceto Judas Iscariotes, no empenho de difundir a
mensagem evangélica para a humanidade. Ei-los, um por um:Pedro.
Simão, o pescador galileu, recebeu de Jesus o nome de Pedro, “a pedra”.
Os Evangelhos ressaltam sua especial posição no interior da
comunidade dos Doze e na futura Igreja, a sua generosidade e
entusiasmo. Foi o primeiro a declarar sua fé em Jesus, mas durante o
julgamento do mestre negou por três vezes conhecê-lo. Na nova Igreja,
Pedro desenvolveu seu apostolado principalmente entre os judeus.
Segundo a tradição, Pedro foi crucificado de cabeça para baixo na Roma
de Nero.André. Irmão de Pedro, também era pescador. Os irmãos eram
de Betsaida. Pela tradição, ele teria ido pregar em Sízia, onde foi
crucificado em uma cruz em X (a cruz de Santo André).
Tiago, filho de Zebedeu. Pescador também, Tiago abandonou sua
profissão, com o irmão João, para seguir Jesus. Quando alguns
habitantes de uma região da Samaria se negaram a hospedar Jesus,
Tiago e João perguntaram ao mestre se podiam invocar o fogo dos céus
para destruir a agregação. Segundo Marcos (3, 17), Jesus chamou-os de
“filhos do trovão”. Tiago, João e Pedro eram os discípulos mais próximos
de Jesus.
João. Irmão de Tiago, João talvez tenha sido o discípulo “que Jesus
amava”, como mencionou o seu Evangelho, e aquele ao qual Jesus, da
cruz, confiou a mãe. Paulo definiu João, assim como Pedro, como um dos
“pilares” da Igreja de Jerusalém. Provavelmente ele foi o autor, ou a
fonte primária, do quarto Evangelho e das Epístolas de João; mas, pelo
senso comum, não é o autor do Livro do Apocalipse. Segundo a tradição,
morreu bem velho.
Filipe. Como Pedro e André, Filipe era de Betsaida. Na Última Ceia
ele disse a Jesus: “Senhor, mostre-nos o Pai”, ao que Jesus respondeu:
“Quem me viu terá visto o Pai.” Segundo a tradição, Filipe pregou o
Evangelho em várias partes do mundo.
Bartolomeu. O apóstolo com esse nome em Mateus, Marcos e
Lucas talvez seja o Natanael do Evangelho de João. Alguns estudiosos
têm a convicção de que Bartolomeu (“o filho de Tolmai”) seria o nome
de família do apóstolo. Segundo João, Felipe disse a Natanael que Jesus
era aquele sobre o qual escreveram Moisés e os profetas. Natanael
respondeu: “De Nazaré não pode nunca vir alguma coisa de bom?” Diz a
lenda que Bartolomeu difundiu o Evangelho na Índia e na Grande
Armênia, onde morreu como mártir, torturado e decapitado.
Mateus. Cobrador de impostos, Mateus abandonou o posto quando
Jesus passou diante de sua banca um dia em Cafarnaum e lhe disse:
“Segue-me!” Como outros hebreus que cobravam impostos para os
romanos, Mateus provavelmente era desprezado por seus conterrâneos.
O nome Levi também é atribuído a este apóstolo no Evangelho de
Marcos e Lucas. Quando participava de um banquete na casa de Mateus,
Jesus foi criticado porque frequentava “publicanos e pecadores”; ele
respondeu: “Não vim para chamar os corretos, mas sim os pecadores.”
Mateus é considerado pela tradição como autor do Evangelho que leva
seu nome.
Tomé. Chamado “Dídimo” (“o gêmeo”) no Evangelho de João, Tomé
declarou-se pronto para seguir Jesus na Judeia e arriscar-se na vida com
ele, mas só acreditou que Jesus havia ressuscitado depois de tê-lo visto
em pessoa. Segundo a tradição, Tomé difundiu o Evangelho na Índia,
onde foi martirizado.
Tiago, filho de Alfeu. Este talvez seja o Tiago mais novo citado no
Evangelho de Marcos (15, 40), para distingui-lo do irmão de João.
Segundo uma tradição muito ambígua, ele é “Tiago, o irmão do Senhor”
(Gálatas 1, 19), sucessor de Pedro como líder dos cristãos de Jerusalém,
apedrejado em 62.
Simão, o Zelota. Não há nada sobre ele nas Escrituras, além de ter
sido um dos Apóstolos. O adjetivo “zelota” indica que era zeloso em
relação à lei judaica. Talvez fizesse parte de um grupo de hebreus
zelotas que enfrentaram o domínio romano. Em Mateus e Marcos ele é
chamado de Simão, o Cananeu (“zelota” em aramaico).
Judas, filho de Tiago. Este provavelmente seja o Tadeu dos
Evangelhos de Mateus e Marcos, alcunhado apóstolo para que não fosse
confundido com Judas Iscariotes. No Evangelho de João, Judas
perguntou a Jesus, durante a Última Ceia, por que ele não havia se
manifestado para o resto do mundo como tinha feito com seus
discípulos. A tradição o vincula estreitamente a Simão, o Zelota, e parece
que foram ambos pregar na Pérsia, onde foram martirizados.
Judas Iscariotes. O sobrenome de Judas, o traidor, significa talvez
“originário de Keriot”, indicando que era o único apóstolo nascido fora
da Galileia (Keriot fica na Judeia). Judas era o tesoureiro do grupo e,
segundo o Evangelho de João, desonesto. Traiu Jesus por dinheiro,
denunciando-o aos inimigos com um beijo. Segundo Mateus, quando já
era tarde, Judas tentou libertar Jesus; depois, em desespero, enforcou-se
na propriedade que adquirira com a quantia recebida pela delação.
Segundo os Atos dos Apóstolos (1, 18), essa propriedade depois foi
chamada de “campo de sangue”.
A visita a Nazaré
A certa altura, durante uma pregação na Galileia (demonstrada pelos
Evangelhos em épocas diferentes), Jesus foi a Nazaré, a aldeia onde
crescera. Certamente, sua fama havia chegado antes, pois as notícias se
espalhavam como um relâmpago pela Palestina, e aparentemente as
narrativas sobre as obras desse jovem da aldeia haviam provocado
admiração e desconfiança entre todos os que o conheciam. Inclusive,
enquanto falava na sinagoga local, conta Marcos (13, 55-56), alguns
conterrâneos seus murmuravam entre si: “Não é ele mesmo, o filho do
carpinteiro? Sua mãe não se chama Maria e seus irmãos Tiago, José, Simão
e Judas? E as suas irmãs não estão entre nós? De onde vêm, pois, todas
essas coisas para ele?” O pavor diante dos ensinamentos de alguém que
acreditavam conhecer bem se transformou rapidamente em ódio, entre os
moradores da aldeia, e por fim terminou em indignação. Jesus afastou-se,
surpreso com essa descrença.
Pela versão de Lucas sobre esse episódio, os moradores da aldeia
foram tomados de tal modo pelo desprezo que se revoltaram em massa e
tentaram jogá-lo em um precipício nos arredores. (Essa história talvez
tenha se inspirado no ritual de Yom Kippur, em que um sacerdote jogava
um bode expiatório de um penhasco, como pagamento dos pecados
cometidos pelo povo durante o ano.)
Jesus nunca mais voltou às estradas poeirentas de sua infância. Nazaré
se tornaria símbolo, um aviso dirigido a todos os homens, para sempre
ligada ao comovido comentário de Jesus: “Um profeta só é desprezado,
pois, em sua pátria, entre seus parentes e em sua casa.”
A família de Jesus
E quem ali era de sua casa? Maria é apenas mencionada na história do
ministério de Jesus. Segundo a tradição, José morreu antes de Jesus iniciá-
lo. Os “irmãos” e as “irmãs” de que falaram os nazarenos na sinagoga não
aparecem mais bem caracterizados na história; imagina-se que fossem
primos ou parentes mais distantes. Com efeito, não havia em hebraico
palavras específicas para diferenciar os irmãos dos outros membros da
parentela.
Havia sido criada uma situação conflitante entre Jesus e algum
membro de sua família? É provável que alguns familiares tivessem se unido
a outros conterrâneos numa tentativa de deter Jesus, pois, como diz
Marcos, ele parecia “fora de si”. Apesar desses brevíssimos fatos sobre a
família de Jesus, a narrativa dos Evangelhos se concentra principalmente
na figura do Mestre, e não há absolutamente nada, por exemplo, sobre qual
foi o papel de Maria nesses anos.
O Sermão da Montanha
Jesus continuou a ensinar, abandonando sua missão apenas para ir em
peregrinação a Jerusalém e visitar Tiro, Sidônia e Cesareia de Filipe – talvez
à procura de alívio para o calor da Galileia ou com o propósito de retirar-se
temporariamente em consequência da oposição ao seu ministério. A
mensagem de Jesus, na verdade, amedrontava as autoridades por causa da
estima de que gozava entre as pessoas comuns. Por quê?
Os ensinamentos carregados de profundo significado que constituem o
Sermão da Montanha revelam tanto a força quanto o caráter problemático
da mensagem de Jesus. Para alguns estudiosos, eles fizeram parte de um
discurso voltado ao público geral. Segundo Mateus, eles foram direcionados
principalmente aos discípulos. Decerto os trechos contados por Mateus,
quase quatro vezes maiores que os de Lucas (pronunciados por Jesus “num
lugar plano”), arriscavam produzir um efeito perturbador sobre a multidão
reunida numa área aberta, que o ouvia pela primeira vez.
Qualquer que tenha sido o verdadeiro cenário histórico – para alguns,
uma colina mais elevada voltada para o mar da Galileia –, o Sermão da
Montanha encerra em si todos os ensinamentos de Jesus. Cada nova
geração de cristãos trouxe interpretações diferentes, no entanto; a atenção
é sempre focada em pelo menos três pontos, que julgam despertar e
reforçar a consciência individual e sugerir um modelo de vida que exige fé e
determinação espiritual.
Em primeiro lugar, as bem-aventuranças, aquelas rápidas bênçãos que
se mostram tão paradoxais quando as encontramos pela primeira vez em
Lucas. “Abençoados vós, pobres, porque vosso é o reino de Deus.
Abençoados vós que têm fome, porque serão saciados” (Lucas 6, 20-21).
Com igual força ressaltam as maldições: “Ai de vós que agora rides, porque
ficareis agoniados e chorareis” (Lucas 6, 25). Em Mateus, as bem-
aventuranças assumem uma conotação mais espiritual se comparadas à
versão de Lucas. (“Bem-aventurados os pobres em espírito [...] Bem-
aventurados os humildes porque herdarão a terra” (Mateus 5, 3-5).
Entretanto, os Evangelhos conservam intacto o espírito do paradoxo que os
inspira: o reino de Deus, nas palavras de Jesus, é o oposto do mundo, da
maneira como se apresenta a um simples mortal. As bem-aventuranças
iluminam a mente e o espírito de forma que o indivíduo aceite totalmente
os desígnios de Deus em sua vida.
Para impedir que surgissem mal-entendidos sobre sua mensagem
provocativa, Jesus acrescenta que está cumprindo as leis de Deus: “Não
penseis que eu tenha vindo para anular a Lei e os Profetas; não vim para
anular, mas para dar cumprimento.” Sua interpretação é, ao mesmo tempo,
profunda e rigorosa; ela coloca os pensamentos humanos sob a mesma
severa investigação que a antiga Lei aplicou para as ações. Sim, a Lei proíbe
o crime, mas Jesus repreende os homens por não evitarem a ira e o ódio
que matam o coração. A Lei pune o adultério; Jesus considera igualmente
pecaminosos os pensamentos libidinosos.
As palavras de Jesus obrigavam os atentos ouvintes a reelaborar suas
reações mais básicas. Essas advertências se assemelham a pequenos
sobressaltos que dominam os cômodos parâmetros do pensamento e do
comportamento: “Ou melhor, se alguém te bate na face direita, oferece
também a outra.” E “amai vossos inimigos e rezai por vossos opressores”. O
objetivo final dos discípulos – talvez inatingível na esfera humana, mas
para perseguir sempre com persistência – era serem “perfeitos como é
perfeito o vosso Pai celeste”.
O homem não deve vangloriar-se das próprias vitórias espirituais e
nem procurar reconhecimento público por trabalhos bem-feitos. Até a
oração exige uma justa dose de humildade, como observamos no modelo
fornecido pelo próprio Jesus com o Pai-nosso.
Jesus recomenda a seus ouvintes que não dediquem sua vida à
acumulação de bens materiais. “Não podeis servir a Deus e à mammon”,
pregava ele; a palavra semítica mammon significa “riquezas”. É melhor
contar com a providência divina, que nos garante aquilo de que
necessitamos: “Olha os pássaros no céu: não esbanjam, nem plantam, nem
mantêm celeiros; contudo, vosso Pai celeste os alimenta. Não entendeis
vós, talvez, mais do que eles? E quem de vós, mesmo dedicando-se a fazer,
pode acrescentar apenas uma hora à sua vida?” (Mateus 6, 26-27). Jesus
estimula seus ouvintes a procurar mais a justiça e o reino de Deus, “e todas
essas coisas serão dadas a vós em acréscimo”.
O Sermão da Montanha prossegue com alguns princípios que ilustram
as boas ações, dos quais o mais famoso é: “Tudo o que quereis que os
homens façam a vós, fazei-o também a eles: esta, na verdade, é a Lei e os
Profetas” (Mateus 7, 12). A salvação, diz Jesus, será concedida apenas a
quem tiver feito a vontade do Pai celeste.
Jesus terminou o sermão com uma parábola. Aqueles que ouvirem
suas palavras serão como o homem sábio que construiu sua casa sobre
sólida rocha: ela resistirá à fúria das tragédias. Mas aqueles que ouvirem as
suas palavras e não tomarem providências serão como o homem tolo que
construiu sua casa sobre areia, que depressa será destruída pela
tempestade.
As parábolas de Jesus
Durante sua pregação, Jesus muitas vezes usou parábolas, como se
costumava fazer nas escolas das sinagogas para investigar os significados
mais profundos das Escrituras. As parábolas de Jesus abrangem uma vasta
gama de metáforas e comparações, que variam de poucas palavras a longas
histórias. Para muitos ouvintes, sem dúvida, estas não passavam de
narrativas fictícias, mas para os próximos de Jesus elas se transformaram
em revelações que os animavam a avaliar sua compreensão em relação a
Deus e a si próprios.
Pode-se entender, talvez, a importância de que se revestiam as
parábolas aos olhos de Jesus, revelando como tratava o tema “reino de
Deus”. Ele usou como recurso uma infinidade de parábolas para que seus
seguidores pudessem entender o que seria o “reino de Deus”, e o que havia
sido; entre elas há a parábola mencionada por Mateus (13, 44-46): “O reino
dos céus é parecido a um tesouro escondido num campo; um homem o
encontra e o esconde novamente; depois, cheio de alegria, vende todas as
suas posses e compra aquele campo. O reino dos céus é semelhante a um
mercador que vai à procura de pérolas preciosas; encontrada uma de
grande valor, ele vende todas as suas posses e a compra.”
Obviamente, é inútil parar para perguntar se aquele que descobriu o
tesouro devia ao menos avisar aos proprietários do campo sobre tal
descoberta. Jesus, na verdade, não fala nem de campos nem de pérolas; ele
menciona até a descoberta de um valor tão grande que o homem se dispõe
a renegar seu passado (vende todas as suas posses) e iniciar um novo
caminho (adquirido com satisfação).
A morte de João Batista
Durante os primeiros anos de pregação de Jesus, João Batista havia sido
preso por ordem de Herodes Antipas, que via nele uma ameaça, na
fortaleza de Maqueronte, a leste do mar Morto. A certa altura, a fé do
prisioneiro parece enfraquecer, ou talvez ele tenha dado ouvidos a
seguidores que punham em dúvida as ações de Jesus. (Ele não impunha o
jejum a seus discípulos, por exemplo, como fazia João.) Não sabemos os
motivos de João, mas apenas que ele esteve em condições, mesmo da cela
de sua prisão, de enviar dois de seus seguidores à procura de Jesus na
Galileia e perguntar-lhe: “Tu és aquele que virá ou devemos aguardar um
outro?”
A pergunta talvez tenha surgido da natureza fundamentalmente
diferente entre o ministério de Jesus e o de João Batista. Embora Jesus
considerasse seu ministério absolutamente ligado ao de João, ele sabia que
havia seguido por um caminho diferente para cumpri-lo. Segundo Lucas (7,
33-35), ele disse: “Chegou, de fato, João, o Batista, que não come pão nem
toma vinho, e vós dizeis: ele tem um demônio. Chegou o Filho do Homem
que come e bebe, e vós dizeis: eis aqui um comilão e um beberrão, amigo
dos publicanos e dos pecadores. Mas à sabedoria foi restituída justiça por
todos os seus filhos.” Mais que estimular as pessoas a segui-lo pelo deserto
à procura da pureza, a exemplo dos monges, Jesus prefere andar pelas
cidades e aldeias e se misturar às pessoas que nem de longe poderiam se
vangloriar de praticar os princípios divinos; dirige-se ao meio daqueles que
eram marginalizados, necessitados e abandonados. A essa altura, apenas
um homem de notável perspicácia poderia imaginar que Jesus fosse de fato
“aquele que devia vir”.
Como observamos em Lucas (7, 22-23), Jesus dá uma resposta
modesta à pergunta de João Batista: “Ide e contai a João o que vistes e
ouvistes: os cegos recuperaram a visão, os aleijados andam, os leprosos
foram curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitaram, aos pobres foi
revelada uma boa notícia. E bem-aventurado é qualquer um que não for
ofendido por mim.”
João suportou a prisão por dez meses. Depois, segundo Flávio Josefo,
Herodes Antipas mandou assassiná-lo, afirmando que ele era o líder de
uma sublevação. Também Jesus corria o risco de terminar vítima de uma
acusação semelhante: na verdade, graças à sua extraordinária fama, podia
ser acusado, como João, de organizar uma rebelião contra a autoridade de
Herodes.
Os Evangelhos de Mateus e Marcos, no entanto, contam uma história
mais fascinante sobre o fim de João Batista. A esposa de Herodes Antipas,
Herodíades, odiava João porque ele a havia denunciado como adúltera.
Durante um banquete, a sua atraente filha Salomé dançou diante de
Herodes. Segundo a tradição, a mocinha se apresentou com uma dança
exótica típica das culturas nômades do Oriente Médio, oferecendo um
espetáculo de agilidade, graça e sutil erotismo. Fascinado, Herodes jurou
que lhe daria qualquer coisa que pedisse. Persuadida pela mãe, Salomé
respondeu: “Dê-me, sobre uma bandeja, a cabeça de João Batista” (Mateus
14, 8). Mesmo com culpa, Herodes manteve a promessa.
Certamente o martírio de João gerou grande alvoroço. E talvez
exatamente essa notícia tenha feito Jesus se afastar por um pequeno
período; na verdade, procurou abrigo nos domínios de Herodes Filipe.
O milagre da multiplicação dos pães
Mateus, Lucas e Marcos, após a morte de João, relatam o milagre da
multiplicação dos pães e peixes. O Evangelho de João traz o episódio um
pouco antes da Páscoa. Jesus procurou um momento de tranquilidade,
longe da multidão de Cafarnaum, navegando para um lugar solitário com
alguns discípulos. Enquanto a embarcação se aproximava das margens,
porém, perceberam que muitas pessoas o aguardavam lá.
O dia começou como tantos outros: Jesus pregava, ensinava e curava
doentes. Talvez essa jornada tenha sido particularmente fascinante para
todos, pois somente no calar da noite alguém se deu conta de que a
situação havia se tornado problemática. Milhares de pessoas haviam se
amontoado no campo para ouvir Jesus e tinham fome; os únicos alimentos
naquele momento se resumiam a cinco míseros pãezinhos e dois peixes.
Essa quantidade não era suficiente, mas Jesus disse aos Doze para fazer
sentar-se as pessoas. Em seguida, abençoou o alimento, partiu os pães e os
distribuiu entre os esfomeados. Havia em torno de 5.000 pessoas com fome
e os restos ainda encheram 12 cestas. Essa surpreendente história é
interpretada por alguns como uma parábola em ação, para demonstrar que
Deus, tendo criado todas as espécies vivas da Terra, continua a fornecer-
lhes sustento. E também como um símbolo da Eucaristia.
A missão dos discípulos
O milagre da multiplicação dos pães e dos peixes sugere, além disso, que os
discípulos já tinham aprendido as tarefas práticas relativas a seu papel,
compreendido a capacidade de administrar a multidão. Bem rápido, na
verdade, foram-lhes atribuídos deveres mais delicados. Jesus ordenou-lhes
que fossem dois a dois por toda a região estimular todos ao
arrependimento e divulgar que o reino de Deus estava próximo. Após
receberem o poder de curar doentes e expulsar demônios, esses discípulos
iniciavam assim uma espécie de aprendizado.
Jesus se mostrava muito determinado sob um aspecto de seus
ensinamentos. Os viajantes daqueles tempos tinham o hábito de carregar
uma muda de roupas e sandálias, uma bengala, comida e uma certa quantia
em dinheiro. Mas, segundo Marcos, Jesus ordenou a seus discípulos que
carregassem apenas uma bengala para peregrinar e as sandálias e a túnica
que vestiam. Na narrativa de Mateus, até as sandálias e a bengala foram
excluídas: eles deviam viajar sem outros recursos que não a mensagem
para difundir entre as pessoas. Jesus os estimulou a aceitar a hospitalidade
das pessoas caridosas; se, ao contrário, fossem rejeitados, disse-lhes: “ao
sairdes da cidade deles, sacudi a poeira de vossos pés como testemunha
contra eles”.
Não sabemos como foi recebida essa primeira missão: podemos
apenas deduzir que tenha gerado alvoroço pela grande preocupação
demonstrada contra Jesus por Herodes Antipas, que nunca tinha ouvido
falar dele, nem o visto. Parece que Herodes havia sido informado de que
esse arrebatador do povo era João Batista ressuscitado. Embora bem
diferente de João em muitos aspectos, tanto Jesus quanto seus discípulos
estimulavam Israel ao arrependimento, como fizera João, deixando
evidente ao povo a exigência de viver como súdito do reino de Deus, em vez
do tetrarcado de Herodes. Este conhecia a repercussão política que uma
mensagem desse tipo ameaçava desencadear, pois, na prática, todos os
movimentos políticos em Israel tinham raízes na religião. A imagem da Lei
justa e poderosa de Deus transmitia implicitamente a crítica ao governo
romano, ao qual os galileus estavam submetidos.
Jesus, o Messias
Com o passar do tempo, Jesus começa a dar mais valor à atuação de seus
discípulos, apesar de também eles, como os seus inimigos, encontrarem
muitas dificuldades em aceitar a sua inversão dos valores religiosos
comuns. Em um dos episódios mais comoventes do Novo Testamento, Jesus
leva seus discípulos a um local afastado para um encontro particular longe
da Galileia, na região de Cesareia de Filipe. Talvez esse tenha sido um dos
primeiros encontros depois da missão dos discípulos; a conversa coloca em
discussão estratégias de relacionamento. Segundo Mateus (16, 13), Jesus
perguntou: “As pessoas disseram que eu sou o Filho do Homem?” (Para
Marcos, 8, 27, ele pergunta diretamente: “Quem disse às pessoas quem eu
sou?”) Levando em consideração as expectativas do povo e a convicção de
alguns discípulos, para os quais ele seria o libertador, misteriosamente
ninguém o chamava de Messias. Corria o boato de que o Messias seria João
Batista, Elias, Jeremias ou um filho de outro profeta.
Logo a seguir, Jesus se concentrou na opinião dos próprios apóstolos:
“Vós dissestes quem seria eu?” Pedro respondeu imediatamente com uma
curta, mas expressiva, confissão de fé em Jesus: “Tu és o Cristo, o Filho de
Deus vivo” (Mateus, 16, 16). (“Cristo” é um nome grego que significa
“ungido”, “bálsamo”, e é sinônimo do hebraico “messias”.) Jesus declara
Pedro “bem-aventurado” por ter reconhecido essa verdade, pois somente
Deus poderia tê-la revelado. Em seguida, falando sobre o significado do
nome “Pedro”, Jesus continua: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei
minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela. Darei a ti as
chaves do reino dos céus, e tudo o que tenha conquistado na Terra será
conquistado nos céus, e tudo o que tenha escolhido na Terra será escolhido
nos céus.” Essas palavras serão fundamentais para a definição do papel de
Pedro na Igreja. Jesus, por último, determina aos discípulos que
mantenham em segredo sua identidade naquele momento.
O que faltou na confissão de Pedro foi revelado nas palavras seguintes
do Evangelho: “Desde então Jesus começou a dizer abertamente a seus
discípulos que deveria ir a Jerusalém para sofrer [...] e ser morto e
ressuscitar no terceiro dia” (Mateus, 16, 21). Associar a ideia do Messias
com os sofrimentos e a morte era algo completamente estranho à
mentalidade dos discípulos, e Pedro, depois de puxar Jesus para o lado,
repreendeu-o por ter aventado tal possibilidade. “Fica longe de mim,
Satanás!”, responde Jesus, com uma expressão que faz lembrar as tentações
do deserto. Então Jesus disse a seus discípulos: “Se alguém quiser vir atrás
de mim, renegue a si próprio, pegue sua cruz e me siga.”
A transfiguração de Jesus
Cerca de uma semana depois, um pequeno grupo de fiéis fez um gesto que
reforçou ainda mais a fé já expressa por Pedro. Jesus leva Pedro, Tiago e
João “para uma alta montanha”. Enquanto Jesus estava em pé diante deles,
concentrado na oração – conta Mateus –, seu aspecto físico sofreu uma
transformação: o rosto brilhava como o sol, suas roupas ficaram
avermelhadas com a luz. Subitamente – dizem Mateus, Marcos e Lucas – os
três discípulos viram dois personagens que se dirigiam a Jesus e falavam
com ele: Moisés, que havia entregado aos hebreus a Lei de Deus, e Elias, o
protótipo de profeta do Antigo Testamento.
Pedro, impaciente e impulsivo como sempre, propõe construir cabanas
para os três; talvez pensasse nos abrigos temporários organizados durante
a festa de Sukkot. Enquanto ainda falava – diz Mateus (17, 5) –, “uma
nuvem luminosa aproxima-se com sua sombra. E, eis que uma voz diz: ‘Este
é meu filho predileto, com o qual me contento. Escutai-o!’” A nuvem se
evapora e a visão desaparece. Jesus novamente avisa aos apóstolos que não
digam nada sobre esse acontecimento “enquanto o Filho do Homem não
tivesse ressuscitado da morte”. Os discípulos não faziam ideia do que dizia
seu mestre.
A viagem para Jerusalém
Pouco tempo depois, Jesus deixou para sempre a Galileia. Aquela região
havia sido cenário de seus mais famosos sermões e dos mais
extraordinários milagres, mas havia chegado o momento de um novo e
último enfrentamento. E, assim, “dirige-se firmemente a Jerusalém”, diz
Lucas, porque estava convencido de que um profeta deveria “morrer”
somente naquela cidade. Da generosa terra da Galileia ele leva os discípulos
à rochosa Judeia, onde o coração daqueles que o combatiam se revelaria
duro como a impiedosa terra em que moravam. Aproveitamos um esboço
desse dramático itinerário em Marcos (10, 32): “Enquanto estavam
viajando para chegar a Jerusalém, Jesus caminhava na frente deles e eles
estavam admirados; aqueles que vinham atrás estavam completamente
aterrorizados.” No ar pairava um medo quase palpável, mas o passo
decisivo de Jesus os arrastava para o perigo.
Ao longo da estrada, no entanto, Jesus continuou a ensinar à multidão
que se amontoava onde quer que ele aparecesse. A certa altura, foram
levadas até ele também duas crianças, para que as tocasse. Quando os
discípulos tentaram intervir, Jesus indignou-se e lhes disse: “Deixai que as
crianças venham a mim e não as impeçais, porque para quem for como elas
pertence o reino de Deus. Em verdade, vos digo: quem não recebe o reino
de Deus como uma criança não entrará nele.” E pegou as crianças no colo e
as abençoou.
Antes de Jesus partir, um jovem correu a seu encontro e caiu de
joelhos diante dele, perguntando-lhe o que deveria fazer para conseguir a
vida eterna. Segundo Marcos, quando Jesus lhe disse que respeitassem os
Mandamentos o jovem respondeu que sempre havia feito isso. “Então, Jesus
o encarou e disse: ‘Apenas uma coisa te falta: vai, vende tudo o que possuis
e dá aos pobres, e então terás teu tesouro no céu; depois, vem e me segue.’”
Mas o jovem, ao ouvir aquelas palavras, retirou-se aflito, porque era muito
rico. Jesus olhou ao seu redor e disse aos discípulos: “É mais fácil um
camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino
dos céus.”
Ao ouvirem essas palavras, os discípulos de Jesus ficaram perturbados
e atônitos, e perguntaram a seu mestre se ninguém nunca poderia se salvar.
Mas Jesus os tranquilizou, dizendo: “Impossível aos homens, mas não a
Deus! Porque tudo é possível a Deus.” Pedro, então, lembrou-lhe que seus
discípulos haviam renunciado a tudo para segui-lo, e Jesus respondeu: “Não
há ninguém que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou
filhos, ou campos por minha causa e por causa do Evangelho, que não
receba já no presente cem vezes em casas, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos e
campo, junto a perseguições, e no futuro a vida eterna. E muitos dos
primeiros serão os últimos, e dos últimos, os primeiros”.
Jesus em Jerusalém
Talvez, como sugere João, Jesus tenha chegado a Jerusalém um pouco antes
da festa de Sukkot, no outono; ou, se quisermos seguir a cronologia dos
outros Evangelhos, na primavera, antes da Páscoa. Em todo caso, ele entrou
em pleno conflito com fariseus e saduceus.
Esse foi um período de contrastes, segundo João. As pessoas
questionavam: “Como alguém pode conhecer as Escrituras sem ter
estudado?” Os seus interlocutores exigiam uma resposta precisa: “Se tu és o
Cristo, diga-nos abertamente.” E a presença desenvolta de Jesus
preocupava as autoridades, como podemos observar em um comentário
mencionado por João: “Não é este aquele que pretendem matar? Eis que ele
fala livremente e não lhe dizem nada. Porventura os chefes reconheceram
nele o Cristo?” Parece que em certa ocasião os guardas do Templo,
enviados pelos sumos sacerdotes e pelos fariseus para prender Jesus,
voltaram de mãos vazias: até eles foram convencidos por suas palavras.
A adúltera e o cego
Muitas vezes os escribas e os fariseus criaram armadilhas para Jesus a fim
de induzi-lo a erro ou a contradição, ou para constrangê-lo a demonstrar
sua ignorância sobre a antiga Lei. Não apenas jamais conseguiram isso,
dizem os Evangelhos, como Jesus sempre esteve em condições de se
dedicar a um debate em uma aula positiva. E ele nunca esqueceu a
dimensão humana, como demonstra a história contada por João (8, 1-11),
sobre uma mulher adúltera.
Um dia, quando Jesus ensinava no Templo, alguns escribas e fariseus
levaram até ele uma mulher. Para colocá-lo à prova, disseram: “Ela foi
surpreendida em flagrante adultério. Moisés, pela Lei, nos manda apedrejar
mulheres como esta. O que tu nos dizes?” Era sabido que Jesus sempre se
mostrava benevolente para com os pecadores, mas, se aconselhasse deixar
aquela mulher ir embora, corria o risco de violar a Lei.
Calado, Jesus virou-se, inclinou-se para o chão e começou a escrever na
poeira com o dedo. (Alguns textos dizem que ele escreveu “os pecados de
cada um de vocês”.) Finalmente, Jesus se levantou, fixou o olhar sobre eles
e respondeu: “Quem de vós não é pecador? Atire a primeira a pedra contra
ela.” Emudecidos, um a um os acusadores e curiosos se afastaram
lentamente. Foi uma resposta inteligente; e, além disso, a resposta de um
homem que sabia conciliar os princípios da Lei com a compaixão pelos
pecadores.
Quando Jesus levantou os olhos, viu a mulher parada diante dele
sozinha, sem dúvida surpresa com aquela imprevista salvação de uma
morte dolorosa.
– Mulher, onde estão eles? – perguntou-lhe Jesus. – Ninguém te
condenou?
– Ninguém, Senhor.
– E nem eu te condeno – disse-lhe Jesus. – Vai, e de hoje em diante não
peques mais.
Em ocasiões parecidas, os delatores de Jesus não encontravam motivo
para acusá-lo. Mas ocorreram outras situações conflitantes, muitas vezes
provocadas pela recusa de Jesus de fazer jejum aos sábados, como
interpretavam os escribas e os fariseus. Certo sábado, Jesus passou diante
de um mendigo cego de nascença. Jesus cuspiu na terra, formou um barro
com a saliva, espalhou-o sobre os olhos do mendigo e disse-lhe que se
purificasse na piscina de Siloé. Seguindo as instruções de Jesus, o cego
passou a enxergar e, no auge da felicidade, correu para espalhar a notícia
de sua cura. A informação chegou aos fariseus, que mandaram prender o
mendigo atônito. Eles não admitiam que uma cura tivesse sido feita
violando o mandamento de Deus: Jesus havia curado o cego num sábado.
Para o Evangelho de João, o contraste entre os intransigentes princípios da
tradição e o esforço em aliviar os sofrimentos humanos não poderia ser
mais nítido. Os fariseus viam no milagre uma violação da Lei, um ato
provocativo, não uma nova interpretação da Lei; eles consideravam Jesus
um herege, não um curador numa missão divina.
Apesar de tudo isso, durante aquele ano tão turbulento, Jesus
continuou a ensinar em público, até que, pela última vez, tomou a decisão
de isolar-se para fortalecer o espírito. Segundo João, ele atravessou o
Jordão e por um certo período ficou na Pereia, região a leste de Jerusalém.
A ressurreição de Lázaro
Em seguida, conta João, chegou-lhe a notícia de que o seu amigo Lázaro,
irmão de Marta e Maria, estava doente. Jesus permaneceu por lá ainda por
dois dias e depois disse a seus discípulos: “Vamos novamente à Judeia!” Os
discípulos manifestaram temor de que Jesus correria o risco de ser
apedrejado se pusesse os pés na Judeia. Mas ele falou aos discípulos de
modo claro, dizendo que seu amigo Lázaro estava morto e queria ir vê-lo.
Dessa vez não foi Pedro que falou primeiro, mas Tomé, muitas vezes
lembrado por duvidar da ressurreição; ele apoiou a decisão de Jesus com
veemência: “Vamos também nós morrer com ele!”
Todos partiram para a aldeia de Betânia, um pequeno centro na
fronteira sul do deserto da Judeia, nas encostas orientais do Monte das
Oliveiras. Quando chegaram à cidadezinha, já estavam reunidos os parentes
e os amigos para consolar as irmãs. Marta saiu para receber Jesus; Maria,
no entanto, estava tão desolada que a irmã foi obrigada a chamá-la e
encorajá-la a ir ao encontro de Jesus. Tão logo o viu, ela também se
prostrou a seus pés. Jesus se comoveu e chorou; depois, levou todos até o
túmulo de Lázaro.
A entrada do túmulo estava fechada por uma grande pedra. Os
presentes ficaram ainda mais assustados quando Jesus ordenou: “Retirai a
pedra!” Marta, a mulher conhecida por seu espírito prático, argumentou
que Lázaro já estava morto havia quatro dias e podia-se sentir o cheiro do
cadáver. O corpo, conforme os costumes tradicionais, havia sido lavado
com óleos perfumados e enrolado em tiras de linho branco; os judeus não
embalsamavam seus mortos. Apesar disso, Jesus insistiu. Depois de ter
dirigido uma oração a Deus, ele gritou: “Lázaro, vem para fora!” Ainda
envolvido pelas faixas mortuárias, o homem avançou, deparando com a luz
do dia. Estava cumprida a promessa que Jesus havia feito a Marta: se
acreditasse, veria “a glória de Deus”.
Logo a seguir, Jesus e seus discípulos foram para Efraim, aldeia isolada
sobre as colinas, a cerca de 20 quilômetros a nordeste de Jerusalém.
Entretanto, a ressurreição de Lázaro havia sido contada aos fariseus e
desencadeado uma explosão de raiva no Sinédrio. Com milagres desse tipo
corria-se o risco de que o povo se sentisse atraído a seguir Jesus em uma
revolta e – o que eles mais temiam – até provocar uma intervenção dos
romanos. O sumo sacerdote Caifás expressou esses temores, ao dizer: “[...] é
melhor morrer apenas um homem pelo povo, e não toda uma nação”. A
essa altura, com as prerrogativas do poder e a preocupação de preservar a
ordem pública, surgiram questões de máxima urgência.
Portanto, tomou-se a decisão de livrar-se de Jesus rapidamente.
Segundo João, os sumos sacerdotes e os fariseus promulgaram uma ordem,
segundo a qual aquele que soubesse onde estava Jesus devia informá-lo
prontamente, de maneira a levá-lo preso. Parecia óbvio às máximas
autoridades do Templo que um líder religioso como Jesus não perderia a
ocasião de se manifestar na cidade na época das celebrações pascais.
Enquanto se concebiam os planos para sua captura, Jesus preparava os
discípulos para os ensinamentos futuros. Segundo Lucas (18, 31-33), ele foi
bastante explícito: “Nós vamos a Jerusalém, e tudo o que foi escrito pelos
profetas em relação ao Filho do Homem se cumprirá. Será entregue aos
pagãos, ridicularizado, ultrajado, coberto de cuspe e, depois de açoitado, o
matarão e, ao terceiro dia, ele ressurgirá.” O mistério da profecia se tornava
ainda maior pela enigmática denominação usada por Jesus: “o Filho do
Homem”.
O significado dessa expressão ainda hoje é motivo de debates por
parte dos crentes. Talvez se referisse ao testemunho de uma visão no Livro
de Daniel concernente a uma figura celeste que havia recebido “um poder
eterno”. Talvez Jesus usasse essa denominação para dissipar as noções
preconcebidas do povo em relação a um Messias. Muitas vezes ele usou a
expressão “Filho do Homem” ao prever a Paixão que o esperava, como se
fosse o modo mais rápido para transmitir a ideia de um Messias condenado
ao sofrimento e à morte.
A entrada triunfal em Jerusalém
Seis dias antes da Páscoa, Jesus voltou a Betânia, onde – acontecendo como
dissera o evangelista João – a multidão correu para ver tanto Lázaro quanto
ele. Segundo Mateus, Jesus mandou dois de seus discípulos buscarem um
jumento em Betfage, cidade vizinha. Entre a multidão que se reunia em
Jerusalém para as celebrações pascais corria o boato de que também Jesus
estaria presente.
No dia seguinte, uma multidão festiva se juntou ao longo da estrada
que levava à cidade. Alguns estendiam no chão ramos de palmas; outros os
seus mantos. Justamente no meio de tanto entusiasmo e alegria apareceu
Jesus no dorso do jumento. A atitude era claramente um desafio a todas as
autoridades políticas de Jerusalém. Jesus, na verdade, segundo Mateus,
cumpria a promessa da chegada do Messias manifestada nos versos de
Zacarias (9, 9): “Eis que, para ti chega o teu rei. Ele é íntegro e vitorioso;
humilde, monta um jumento.”
Esse acontecimento gerou tão grande alvoroço que deixou inquietos
muitos fariseus, sobretudo quando as estradas que levavam à Cidade Santa
retumbaram com delirantes gritos como: “Hosana! Bendito aquele que vem
em nome do Senhor! Bendito o reino que vem de nosso pai Davi!” Segundo
uma velha tradição, do século IX, Jesus entrou em Jerusalém pela Porta
Dourada, ou Bela, que levava diretamente ao monte do Templo.
A purificação do Templo
Segundo o Evangelho de Marcos, Jesus, após sua chegada triunfal a
Jerusalém, entrou no Templo e olhou ao seu redor. Provavelmente viu os
mercadores e ambulantes que enchiam os pátios, ocupados, como de
costume, em satisfazer os grupos de peregrinos que já invadiam a cidade
para festejar a Páscoa dali a poucos dias. No entanto, como já fosse tarde,
Jesus saiu com seus apóstolos e seguiu para pernoitar em Betânia. Mas a
indignação com o tráfico e o comércio que prosperavam nos espaços do
Templo talvez já fervilhasse em sua alma.
Na manhã seguinte, quando saía de Betânia, Jesus avistou de longe
uma figueira e, como estava com fome, aproximou-se para ver se nela havia
frutos. Mas não era época de figos e a árvore estava carregada apenas de
folhas. Irritado, Jesus maldisse a figueira: “Que ninguém nunca mais possa
comer teus frutos.” Depois continuou a viagem para Jerusalém. Quando
chegou próximo ao Templo, deu livre curso à ira que sentia desde o dia
anterior. Começou a expulsar todos os vendedores e compradores e
derrubou as mesas dos cambistas e as bancas dos vendedores de pombas
para as oferendas, e não permitiu que carregassem coisas para o Templo.
Em seguida, começou a ensiná-los e lhes disse: “Por acaso não está escrito
‘a minha casa será chamada casa de oração por todas as pessoas’? Vós, ao
contrário, fizestes dela um antro de ladrões!” Os sumos sacerdotes e os
fariseus ficaram assustados com esse incidente, mas temiam que o povo se
revoltasse contra eles se tentassem prender Jesus. Por isso, limitaram-se a
elaborar secretos complôs contra ele, esperando por uma ocasião mais
propícia para agirem.
Jesus recomeçou a ensinar no Templo e durante a noite novamente foi
a Betânia. Na manhã seguinte, na estrada para Jerusalém, passou ao lado da
mesma figueira que havia maldito e Pedro o fez perceber que a árvore
havia secado. O episódio possuía em si o valor de uma ação simbólica.
Jesus, com efeito, disse a Pedro que a fé era capaz de remover montanhas.
“Tudo aquilo que pedis na oração”, disse a ele Jesus, “tende fé de haver de
consegui-lo e ele vos será concedido. Quando começardes a orar, se
tiverdes alguma coisa contra alguém, perdoai-o, porque também vosso Pai
que está nos céus perdoa a vós e vossos pecados.”
“Dai a César”
O entusiasmo popular que acompanhou a entrada de Jesus em Jerusalém,
ao que parece, desapareceu rapidamente. Segundo Mateus e Lucas, Jesus
retomou a rotina de ir ao Templo para ensinar e debater, enquanto João
menciona que ele estava perturbado e falava que havia sido rechaçado pelo
povo de Israel. Como outras vezes, os seus inimigos tentavam pegá-lo em
erro: não se tratava apenas de humilhar Jesus num debate; embora as
questões colocadas pelos fariseus e os escribas fossem às vezes sinceras, na
maior parte dos casos elas eram um convite para brincar com a morte.
Em uma ocasião, foi perguntado a Jesus se era justo que os judeus
pagassem impostos a César, déspota pagão e opressor do povo de Israel. Se
Jesus tivesse dado uma resposta positiva, pareceria que apoiava a tirania,
uma posição indubitavelmente contrária aos sentimentos do povo. Mas se
ele tivesse condenado o imposto, então os romanos o teriam acusado de
subversivo. Por isso, Jesus pediu para ver uma moeda daquelas usadas para
pagar os impostos: suas palavras foram ainda mais notáveis, exatamente
pelo aspecto concreto da solução. O dinheiro de prata, moeda feita em
Lyon, na Gália, não era comum na Palestina: em um lado estava estampado
o semblante do imperador Tibério. “De quem é esta imagem e inscrição?”,
perguntou Jesus. “De César”, responderam. A conclusão de Jesus, que
desconcertou seus opositores, era correta tanto do ponto de vista político
quanto religioso. “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”
Novamente frustrados com a resposta sagaz, todos os inimigos formaram
uma frente única contra Jesus: fariseus, saduceus e herodianos. O dado,
enfim, havia sido lançado.
Traição e presságios de morte
Mas foi exatamente no círculo íntimo de Jesus que se gerou a mais vil
traição. Considerado por alguns como o mais perspicaz dos discípulos,
Judas Iscariotes, o tesoureiro do grupo dos apóstolos, perde a fé em seu
coração, conta João. Teria ele, talvez como muitos entre a multidão festiva
que havia recebido Jesus na cidade alguns dias antes, se desiludido porque
Jesus não havia tomado o poder? Por uma determinada quantia em
dinheiro, diz Mateus, Judas, naquela quarta-feira, faz acordo para entregar
Jesus nas mãos dos inimigos, indicando a eles o momento propício. Não se
diria que a quantia combinada para a traição fosse grande o bastante para
justificar um ato tão abjeto. As 30 moedas de prata equivaliam ao preço
normal para se comprar um escravo; mas, na era romana, essa cifra seria
suficiente apenas para uma túnica nova. Os verdadeiros motivos de Judas
foram perdidos na História: a sua deserção representava talvez uma
espécie de termômetro do humor popular em Jerusalém. Com a
proximidade da Páscoa, parecia óbvio que o entusiasmo popular em
relação a Jesus já diminuía, enquanto outros iam abrindo caminho.
Embora o perigo rondasse, Jesus não parava de avisar seus discípulos
que não se deixassem enganar pelas aparências. Sim, ele seria morto e
aparentemente aniquilado, mas após sua morte ocorreria uma terrível
destruição. Todos os dias o pequeno grupo subia até a grande esplanada do
Templo e passava as horas do dia entre as imponentes colunas de mármore
do santuário. “Não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja destruída”,
dizia-lhes Jesus. Que visão mais funesta do futuro! Os discípulos, a essa
altura, sentiam-se aniquilados por todos os acontecimentos ocorridos e
incapazes de avaliar tudo o que Jesus dizia: o processo iminente, o
significado do abandono ao qual ia de encontro, a antevisão da morte e, por
último, o presságio de que o Templo de Herodes, o Grande seria posto
abaixo. Essas revelações não eram certamente adequadas para dar
esperanças ao povo. Talvez alguns dos presentes tenham sobrevivido até
70 d.C. para assistir pessoalmente à destruição de Jerusalém, quando um
exército de 80 mil soldados, sob o comando do futuro imperador Tito, sitia
a cidade durante muitos meses e, uma vez conquistada, a incendeia.
Com a mente ocupada com a ideia da morte iminente, segundo o
Evangelho de Mateus, Jesus aconselhava os discípulos que se preparassem
para a morte, visto que ignoravam o dia ou a hora em que o Filho do
Homem seria recebido para reunir diante de si todas as pessoas e separar
as ovelhas das cabras. A essa altura, ele havia acolhido para a vida eterna
todos aqueles que tinham dado de comer aos famintos, de beber aos
sedentos, hospedado desconhecidos, vestido os desnudos, visitado doentes
e prisioneiros, porque “todas as vezes que fizeres essas coisas a uma única
pessoa dentre esses meus irmãos menores, tu o terás feito a mim”. E
condenou ao fogo eterno os que negligenciaram essas obras caridosas,
porque “todas as vezes que não fizeres essas coisas a um desses meus
irmãos menores, não o terás feito a mim”.
Dois dias antes da Páscoa, enquanto Jesus comia na casa de Simão, o
Leproso, em Betânia, entrou uma mulher com um vaso de mármore nas
mãos cheio de um precioso unguento e o derramou sobre os pés de Jesus.
Alguns dos presentes se indignaram, repetindo que aquele unguento podia
ser vendido por mais de 300 denários para dar de esmolas. (Um denário
era o salário de um operário por uma jornada de trabalho.) O evangelista
João (12, 4-6), sobre esse particular, é muito mais específico, dizendo
claramente que quem lamentou foi Judas Iscariotes, ao qual não
interessavam tanto os pobres, mas sim “porque era ladrão e, como tinha o
cofre, pegava aquilo que colocavam dentro dele”.
No entanto, Jesus limitou-se a repreendê-lo, dizendo: “Ela me fez uma
boa ação; aos pobres, na verdade, tereis sempre com vós e podereis ajudá-
los quando quiserdes; a mim, ao contrário, não me tereis sempre.” A
mulher, Jesus explicou a seus discípulos, havia espalhado aquele óleo sobre
seu corpo tendo em vista a sepultura.
Na Última Ceia, Jesus lava os pés de seus discípulos surpresos, estimulando-os a ajudar os outros como
ele os havia ajudado.
A Última Ceia
Na quinta-feira à tarde, Jesus se reuniu com os 12 apóstolos em um cômodo
no “andar de cima”, a sala dos hóspedes para qualquer um de quem não
conheçamos a identidade. Lá, fizeram juntos a refeição passada à História
como “a Última Ceia”. Para Mateus, Marcos e Lucas, tratou-se de um seder
pascal tradicional. Segundo João, foi um dia antes da Páscoa, e muitos
estudiosos concordam com ele, porque o processo que ocorreu naquela
noite, e nas primeiras horas da manhã seguinte, dificilmente se
desenvolveria no dia da Páscoa. De todo modo, Jesus dá àquela ceia um
significado inteiramente novo: entre o mestre e os discípulos se
estabeleceu uma atmosfera de comunhão e de intimidade tão profunda
que, após a morte de Jesus, a ceia transformou-se em símbolo de seu
vínculo de fidelidade ao Senhor, continuamente comemorada como “a Ceia
do Senhor”.
No início da refeição, segundo João (13, 3-15), Jesus quer dar aos
discípulos um exemplo, abandonando seu papel de mestre e assumindo o
de um escravo. Ele coloca água numa bacia e começa a lavar os pés deles.
Os discípulos, surpresos, não sabiam como reagir, mas Jesus expôs a eles
que seu gesto simbolizava o exemplo de servir ao próximo: “Se, então, eu, o
Mestre e Senhor, lavei vossos pés, também vós deveis lavar os pés uns aos
outros.”
O momento da ceia, que se transformaria no elemento central da
liturgia cristã, é descrito por Mateus, Marcos e Lucas. A certa altura, no
decurso da refeição, Jesus tomou o pão não fermentado, rendeu graças a
Deus, repartiu-o e o deu a seus discípulos. “Pegai, este é o meu corpo”,
disse. Em seguida, pegou um cálice de vinho, rendeu graças, passou-o aos
discípulos para que todos bebessem e disse: “Este é o meu sangue, o sangue
da união, derramado por muitos” (Marcos, 14, 22-24). Ao mostrar o
“sangue da união” Jesus se referia ao episódio do monte Sinai, do Livro do
Êxodo (24), quando é confirmada a aliança de Deus com o povo de Israel
após a libertação do Egito.
Para esses discípulos, a celebração pascal dessa histórica libertação
não teria mais o mesmo significado. A festa em comemoração ao evento
passado estava projetada ao futuro, e o próprio Jesus reorienta esse
conceito, dizendo aos apóstolos: “Em verdade vos digo que eu não mais
consumirei o fruto da parreira até o dia em que o consumirei de novo no
reino de Deus.”
A festa pascal era costumeiramente uma ocasião de alegria, um dos
momentos culminantes no calendário hebraico, que todos esperavam com
satisfação. Para o Talmude ela é “deliciosa como as azeitonas”. Aquela
noite, no entanto, ficou marcada por uma profunda meditação. Jesus falou
sobre sua morte iminente e, num dado momento, anunciou que alguém
naquela sala havia cometido traição. Teria sido o homem que “pôs comigo
as mãos no prato”. Quando Judas pegou um pedaço de pão – das próprias
mãos de Jesus, conta João –, o mestre não fez qualquer manifestação de
desprezo. Mais uma vez a mente dos discípulos parecia turva, incapaz de
compreender. Jesus, que aceitava o que deveria ocorrer, disse a Judas:
“Aquilo que deves fazer, faze-o depressa.” Judas retirou-se imediatamente.
Nos momentos afetuosos de intimidade após a saída de Judas, Jesus
falou do amor que seus discípulos deveriam expressar em relação aos
outros. Provavelmente os comensais estavam estendidos em divãs,
conforme o hábito romano. Era a bonança antes da tempestade. Saciados,
pensativos, concentrados em ouvir o mestre entre as chamas dançantes das
lâmpadas a óleo na noite fresca de primavera, os apóstolos fizeram
perguntas a Jesus e a ele manifestaram uma fé inquebrantável. Jesus
afirmou que o devotado Simão Pedro, embora tivesse se declarado pronto
para oferecer sua vida por Jesus, haveria de negar conhecê-lo por três
vezes antes do canto do galo, na manhã seguinte.
Em um longo sermão citado por João, assim Jesus aconselha seus
discípulos: “Amai uns aos outros, como eu vos amei. Ninguém tem maior
amor que este: dar a vida pelos próprios amigos. Vós sois meus amigos, se
fizerdes o que vos peço.” O caminho não haveria de ser fácil para seus
discípulos, mas Jesus lhes promete uma paz profunda e inalterável. “Vós
tereis preocupações no mundo”, acrescenta ele, que estava para ser traído,
“mas tende fé; eu venci o mundo!”
Em seguida Jesus “dirigiu os olhos ao céu”, conforme palavras de João,
e orou pelos apóstolos que enviava ao mundo do mesmo modo que o Pai o
havia enviado. “Destina-os à verdade”, orou. “A tua palavra é a verdade.”
Além disso, pediu pelos que haviam acreditado nele mediante os
ensinamentos dos apóstolos: “Todos são uma coisa só. Como tu, Pai, estás
em mim e eu em ti, estão também eles em nós, uma coisa só, para que o
mundo acredite que eu tenha sido enviado por ti.”
A agonia em Getsêmani
Logo a seguir, os apóstolos acompanharam Jesus até a saída da cidade:
atravessaram o vale de Cedron, a nordeste, e chegaram a um sítio no Monte
das Oliveiras, conhecido como Getsêmani. Talvez fosse um olival de
propriedade de um de seus seguidores. Jesus e seus discípulos haviam
descansado muitas vezes sob essas árvores no passado. Ele lhes disse que o
esperassem enquanto se afastava para orar, acompanhado por Pedro, Tiago
e João. Depois, profundamente abalado e amargurado pelos sofrimentos
que o esperavam, disse aos três que parassem para vigiar e se afastou um
pouco mais, sozinho. Não queria morrer. Caindo de joelhos, orou: “Fala, Pai!
Tudo é possível para ti, afasta de mim esse cálice! Mas não o que eu quero,
e sim o que queres tu.” Após a oração, virou-se para seus seguidores.
Esgotados ao limite de sua força física, emocional e mental pelos
acontecimentos da semana, os discípulos adormeceram profundamente. E
Jesus disse a Pedro: “Simão, estás dormindo? Não conseguiste ficar
acordado nem uma hora? Vigia e pede para não cair em tentação; o espírito
está pronto, mas a carne é fraca.” Depois de ter se isolado ainda por duas
vezes e depois retornado para junto dos apóstolos, encontrando-os
novamente adormecidos, Jesus lhes disse: “Levantai-vos, vamos! Eis que
aquele que me traiu está próximo.”
De repente o pequeno sítio se enche de luz e de barulhos. Com tochas
em punho e fazendo retinir as espadas, uma multidão de homens armados,
entre os quais os guardas do Templo, chega guiada por Judas. Cedendo ao
habitual gesto de cumprimentar o mestre, Judas colocou-se à frente para
beijar Jesus. Desse modo, o mestre é exposto a seus perseguidores, que
rapidamente o prendem. Jesus não opôs nenhum tipo de resistência, mas
Pedro saca uma espada e corta a orelha de um dos escravos do sumo
sacerdote. Então Jesus disse: “Deixa-o, não faças isso!”, e restabeleceu
milagrosamente a orelha do infeliz.
Após interrogatório, Jesus é enviado para Pôncio Pilatos, escoltado por soldados.
Jesus diante de Anás e Caifás
O que aconteceu exatamente naquela noite e na manhã seguinte, no
entanto, é muito difícil de se reproduzir, porque nos Evangelhos há
diferenças na descrição da ordem dos acontecimentos. Para João, a
sequência se inicia quando Jesus é escoltado até o rico bairro do Monte
Sião, na casa de Anás, ex-sumo sacerdote e sogro de Caifás, atual sumo
sacerdote. Esse importante personagem e habilidoso político “interrogou
Jesus sobre seus discípulos e sua doutrina” como se ele tivesse algum
segredo a revelar. Jesus afirmou sempre ter falado abertamente nas
sinagogas e no Templo. “Pergunta àqueles que ouviram o que eu disse a
eles; eles sabem o que eu disse.” Por essa resposta, um dos guardas deu
uma bofetada em Jesus para puni-lo por sua insolência, e o interrogatório
não foi adiante. Anás enviou Jesus, amarrado, para a casa de Caifás e, dali,
foi levado ao governador civil romano, Pôncio Pilatos, para ser processado.
João não nos diz o que foi dito entre Caifás e Jesus. Menciona, em vez disso,
que Pedro até negou conhecer Jesus, por pelo menos três vezes, como havia
sido previsto, antes do canto do galo. O Evangelho de João não diz se Jesus
foi levado diante de um verdadeiro e apropriado tribunal hebraico,
limitando-se a dizer que houve um único interrogatório da parte de Anás.
Mateus e Marcos sublinham, ao contrário, outro aspecto desse
acontecimento. Depois de sua prisão, Jesus foi arrastado até Caifás, o sumo
sacerdote, que havia convocado outros sacerdotes, anciãos e os escribas
para uma assembleia. Nela, no coração da noite, o Sinédrio iniciou o
processo. Segundo Marcos, apenas foram apresentados falsos testemunhos
e suas declarações não coincidiram absolutamente. Para Mateus, dois deles
afirmaram que Jesus havia se vangloriado de ser capaz de destruir o
Templo de Deus e reconstruí-lo em três dias. Apesar desse testemunho, no
entanto, por fim o processo se aplicou sobre uma única pergunta, feita a
Jesus pelo sumo sacerdote: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus bendito?”
Segundo Marcos (14, 62), Jesus respondeu: “Eu sou! E vereis o Filho do
Homem sentado à direita do Todo-poderoso, vindo sobre as nuvens do
céu.” O termo “Todo-poderoso” significava claramente Deus. Essa
declaração foi considerada uma blasfêmia, uma clara pretensão do homem
à divindade, e Jesus foi condenado à morte. Enquanto Jesus confessava sua
identidade e recebia a condenação, Pedro por três vezes negou conhecê-lo;
mas depois se arrependeu e caiu em pranto. Naquela manhã o Sinédrio,
após uma reflexão, transferiu Jesus para Pilatos.
Lucas nos oferece uma terceira versão desses acontecimentos. Após a
captura, Jesus é levado à casa do sumo sacerdote e é aprisionado no pátio
por toda a noite. Pedro também estava presente, ao lado do fogo aceso
sobre o lajeado, e a prova de sua fidelidade assume nesse dramático
momento um tom de particular intensidade. Embora Jesus estivesse
próximo a ele, Pedro não consegue encontrar coragem para se declarar seu
discípulo. Por duas vezes negou conhecê-lo e, enquanto pronunciava as
palavras de sua terceira negativa, “um galo cantou. Então, o Senhor,
virando-se, olhou para Pedro, e este lembrou-se das palavras a ele ditas
pelo Senhor: ‘Antes que o galo cante, hoje me negarás três vezes.’ E, ao sair,
chora amargamente”. Quando alvoreceu, Jesus foi por fim levado ao
Sinédrio. Novamente, Lucas sublinha que a única preocupação da
assembleia era averiguar se Jesus havia declarado ser o Cristo e o Filho de
Deus. “Mesmo que eu dissesse isso a vós [...] não acreditaríeis em mim [...].”
Lucas não cita uma expressão formal, mas diz que a assembleia toda
acompanhou Jesus até Pilatos.
Mesmo hoje os estudiosos questionam se o Sinédrio possuía
autoridade para condenar à morte um homem por um crime capital. Com
certeza eles sabiam que na maior parte dos casos cabia ao governador civil
romano a sentença de morte, e que ele poderia intervir no processo se
achasse conveniente.
Pilatos e Herodes Antipa
O governador romano, Pôncio Pilatos, era conhecido pelo desprezo que
nutria aos judeus e a suas crenças. Sua única preocupação era manter a
ordem pública e explorar a província. Quando o acusado foi levado diante
dele, Pilatos não se preocupou minimamente em saber se Jesus havia
pronunciado ou feito declarações sacrílegas contra o Deus dos hebreus. A
ele interessava esclarecer um único ponto: “Tu é o rei dos judeus?” Essa
pergunta havia se tornado quase uma fórmula para todos os rebeldes que
se punham à frente das insurreições contra Roma na Palestina, como os
condenados que naquele exato momento aguardavam para ser mortos por
sua ordem. Sem reclamar sua inocência, Jesus responde ambiguamente:
“Tu o disseste”, sem que depois lhe fossem imputadas novas acusações.
Os Evangelhos, em um ou outro ponto, descrevem Pilatos como
contrário a condenar Jesus. Talvez ele tenha sinceramente ficado
constrangido com esse prisioneiro. João menciona o diálogo entre eles
quando Jesus afirmou que – apesar de seu reino não pertencer a este
mundo – ele na realidade havia nascido para ser um rei, e ser testemunho
da verdade. A essa altura, Pilatos perguntou, com o ceticismo e a ironia
gerados nas intrigas da política: “O que é a verdade?”
A fama de Pilatos em suas relações com os judeus não era das
melhores. Fílon da Alexandria descreve a conduta desse governador,
acusando-o de inclinado “à corrupção, à violência, ao roubo, a ultrajes, a
agressões injustificadas, a numerosas execuções sem processo e a
incessantes abusos praticados com enorme crueldade”. De todo modo, os
Evangelhos reforçam que Pilatos não encontrou em Jesus nenhuma culpa
que merecesse a condenação à morte, mas, apesar disso, mandou-o ao
suplício. Fica insinuado no entreato descrito por Lucas que Pilatos deu
pouca importância ao caso, entregando Jesus a Herodes Antipas, que havia
ido da Galileia para Jerusalém a fim de comemorar a Páscoa.
Herodes, segundo Lucas, ficou contente por Jesus lhe ter sido enviado.
Talvez desejasse ver um milagre, ou simplesmente quisesse acabar, de uma
vez por todas, com seus temores de que Jesus fosse João Batista
ressuscitado. Jesus, que certa vez havia mencionado expressamente o
tetrarca, chamando-o de “aquela raposa”, recusou-se a falar.
Enfurecido, Herodes estimulou seus soldados a zombar do prisioneiro
e mandou que o vestissem com uma “roupa luxuosa”, talvez um manto real.
O tetrarca novamente descarregou a decisão sobre os ombros de Pilatos.
Apesar disso, segundo Lucas, “Herodes e Pilatos tornaram-se amigos; antes,
na verdade, havia rivalidade entre eles”.
Naquele momento, Pilatos decidiu atrapalhar a decisão da aristocracia
sacerdotal, que queria se livrar de Jesus, recorrendo a um ardil que
rapidamente, no entanto, voltou-se contra ele. Pelos Evangelhos, era
costume dos romanos homenagear a celebração da Páscoa libertando um
criminoso condenado à morte. Naqueles dias, havia sido condenado à
morte um rebelde de nome Barrabás, envolvido numa sublevação contra
Roma. Pilatos, esperando brincar com a popularidade de Jesus de modo a
fazer a multidão aprovar a execução do rebelde, oferece ao público a
escolha entre libertar Barrabás ou Jesus, “o Rei dos Judeus”. Diante da
possibilidade de obter a libertação de um rebelde ativo contra os romanos,
a multidão rapidamente vibrou: “Liberta Barrabás!” Surpreendido pelo
rumo dado aos acontecimentos, Pilatos evidentemente reformulou sua
proposta e pressionou para colocar em liberdade o homem que, do seu
ponto de vista, parecia menos perigoso.
Pelas palavras de Marcos, Pilatos acrescentou: “Que farei então deste
que vós chamais de rei dos judeus?” E a multidão novamente gritou:
“Crucifica-o!” Mas Pilatos dizia a eles: “Que mal ele fez?” E então eles
gritaram mais alto: “Crucifica-o!”
A multidão estava decidida a libertar Barrabás, apesar de essa
negociação custar a vida de Jesus. No fim, Pilatos desistiu de seu plano. Ao
perceber que embaixo disso se agitava uma rebelião, segundo Mateus, ele
mandou trazer uma bacia com água e lavou as mãos em público: “Não sou
responsável por este sangue; cuidai dele vós!” Logo a seguir, Pilatos dá
ordem para libertar Barrabás e crucifixar Jesus.
Flagelo e crucificação
A crucificação, descrita por Cícero como “a mais cruel e horripilante das
punições”, na Palestina era dirigida apenas a criminosos sem direito de
cidadania romana, a rebeldes contra o Estado, a escravos infratores e a
malfeitores condenados pelos crimes mais horrendos. Era uma punição
abominável concebida como dissuasiva contra a criminalidade. Talvez
criado de uma forma um tanto diferente da dos persas e difundido pelo
Oriente Médio por Alexandre, o Grande, esse método de execução foi
aprimorado pelos romanos para produzir uma morte lentíssima e
extremamente dolorosa.
Primeiramente, o prisioneiro condenado à morte era despido,
amarrado a uma pilastra e recebia 39 chibatadas, às vezes mais, com um
pequeno chicote de couro, o flagrum. Às correias do flagrum eram presas
bolinhas de chumbo e fragmentos afiados de ossos de ovelha para rasgar a
pele. Como de hábito, dois soldados se revezavam para dar as chicotadas. O
objetivo era provocar uma considerável perda de sangue, dor agudíssima e
colapso circulatório; segundo o historiador Flávio Josefo, alguns judeus
eram “despedaçados pelo chicote, mesmo antes de serem crucificados”. A
tortura enfraquecia o condenado a ponto de encurtar seu tempo sobre a
cruz, talvez um gesto de compaixão involuntário. No caso de Jesus, à
tortura foram acrescentados a canseira por uma noite sem dormir, os
insultos e as calúnias recebidos, a presença em vários tribunais e os
percursos a pé de um lugar a outro, no total de aproximadamente quatro
quilômetros. Depois de o soltarem da pilastra, Jesus foi vestido com um
manto vermelho, coroado com uma guirlanda de ramos espinhosos,
ridicularizado e cuspido pelos soldados.
A essa altura, segundo João, Pilatos reaparece para pronunciar a
famosa frase: “Eis o homem!” Talvez desejasse que a multidão visse o
resultado de sua escolha, ou transferir à própria multidão a
responsabilidade por aquela condenação à morte.
O caminho doloroso
Conforme o costume, o prisioneiro deveria carregar o patibulum, ou viga,
para sua cruz ao longo das ruas até o lugar da execução, que, em Jerusalém,
era uma colina além dos muros da cidade, chamada Gólgota, “o lugar das
Caveiras”. Lá era fixado um enorme tronco de madeira, pronto para servir
como a trave vertical da cruz.
Tropeçando em uma pedra solta, Jesus começa a carregar o patíbulo,
que por vezes media até dois metros de comprimento e podia pesar por
volta de 60 quilos. Não se sabe que tipo de madeira foi usado para fazer a
cruz; de qualquer modo, o fato é que Jesus, já debilitado por causa das
torturas e da perda de sangue, não conseguia transportá-la. Os soldados,
então, pararam um homem “que vinha do campo” – um judeu da Diáspora
chamado Simão, proveniente de Cirene, no norte da África –, e o obrigaram
a carregar a viga, seguindo o vulto exausto e ensanguentado de Jesus. Desse
modo, percorreram quase meio quilômetro.
Uma grande multidão seguia Jesus, inclusive muitas mulheres que
choravam por ele. A certa altura, Jesus virou-se e lhes disse que chorassem
por elas próprias e não por ele, citando o provérbio: “Se tratam assim a
madeira verde, o que será da madeira seca?” Jesus comentava
amargamente seus sofrimentos: se ele, que era inocente, havia sido
submetido a tais torturas, o que aconteceria com Jerusalém, cidade
culpada?
Quando Jesus chega ao Gólgota, de onde tinha uma vista panorâmica
da cidade que o havia expulsado, foi despido e jogado ao chão. Seus braços
foram estendidos sobre a trave. A julgar pelos restos de ossos de vítimas
crucificadas descobertos em Jerusalém, dois grandes pregos de ferro
atravessavam os ossos dos punhos, despedaçando os nervos médios e
causando ao infeliz uma dor lancinante. Quatro soldados àquela altura
levantavam o patibulum e o fixavam ao tronco vertical. Em seguida, os pés
de Jesus foram fixados, talvez em um banquinho chamado suppedaneum.
Sobre a cabeça de Jesus foi afixado o titulus, um letreiro que trazia o
nome da vítima e o crime cometido. No caso de Jesus, Pilatos disparou uma
última flechada irônica contra os judeus que tanto desprezava. Sua
inscrição dizia: “Jesus, o Nazareno, rei dos Judeus.” (Segundo João, a frase
estava escrita em grego, latim e hebraico, mas por “hebraico” João
provavelmente entendesse o idioma comum dos hebreus do lugar, isto é, o
aramaico.) Os sacerdotes haviam objetado, afirmando que a inscrição
deveria indicar que somente Jesus tinha dito ser rei, mas não chegaram a
dissuadir Pilatos. “O que escrevi”, respondeu Pilatos, “escrevi.” Sob essa
irônica inscrição, Jesus iniciou sua longa agonia, segundo Marcos, por volta
das nove da manhã – a terceira hora do dia.
Jesus na cruz
Algumas personalidades da aristocracia fizeram uma rápida aparição no
lugar do suplício para zombar de Jesus. Os soldados, que haviam se
apoderado de suas roupas, tirando a sorte, ridicularizavam-no, dizendo: “Se
tu és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo.” Para muitos hebreus, todas as
esperanças depositadas em Jesus pareciam ter desaparecido para sempre.
As expectativas messiânicas pareciam agora totalmente ridículas.
Também estavam presentes alguns seguidores de Jesus, chocados,
como também muitas mulheres que o haviam seguido desde a Galileia.
Entre elas se encontrava Maria, a mãe de Jesus, cujas palavras e ações não
são mencionadas nos Evangelhos. Ao ver a mãe parada ao lado da cruz com
“o discípulo que ele amava” – do qual não sabemos o nome, mas a tradição
o identifica como João –, Jesus aconselhou os dois a serem como mãe e
filho.
Aos lados da cruz de Jesus haviam sido crucificados dois “ladrões”,
talvez rebeldes como Barrabás; eles também padeciam nos últimos
espasmos de agonia. Um dos dois malfeitores, preso à sua cruz, insultava
Jesus, mas o outro o repreendeu e, em seguida, virando-se para Jesus, em
um ato de fé, pediu-lhe que se lembrasse dele quando entrasse em seu
reino. Jesus lhe prometeu o paraíso naquele mesmo dia.
Das últimas horas de Jesus possuímos poucos detalhes. Na verdade,
segundo o Evangelho de João, a única admissão de sofrimento de Jesus foi
aquele grito “tenho sede”. Davam-lhe de beber numa esponja umedecida
com vinho ou vinagre. Segundo Marcos, foi oferecido a Jesus “vinho
misturado com mirra”, que teria agido como sedativo, mas ele recusou. A
mirra representava, além disso, um dos donativos presenteados pelos Reis
Magos ao Menino Jesus, símbolo de sua humanidade e dos sofrimentos que
havia padecido.
Morte e sepultura
Jesus morreu às três da tarde. “Tudo está terminado”, disse. “E, inclinando a
cabeça, morreu.” As trevas se estendiam “sobre toda a terra” desde a hora
sexta, ou meio-dia – dizem os Evangelhos –, e, à nona hora, quando Jesus
morreu, a terra tremeu e o véu do Templo “se rasgou em dois de cima a
baixo”. Aos seguidores aflitos reunidos no Gólgota, as grandes promessas
de vida de seu mestre haviam acabado em vergonha e horror. Ninguém –
pelo menos segundo as fontes de que dispomos – havia ainda conhecido o
verdadeiro significado do dia hoje comemorado pelos cristãos como Sexta-
feira Santa, embora muitos, entre os presentes, tivessem reparado que
havia acontecido algo de extraordinário no momento da morte de Jesus. O
próprio centurião que estava diante dele disse: “incontestavelmente este
era o Filho de Deus!”
José de Arimateia, um discípulo rico que havia seguido Jesus
secretamente, consegue de Pilatos autorização para sepultar seu mestre.
José, que era membro do Sinédrio e, segundo Lucas (23, 51), “não havia
aderido à decisão e ao comportamento dos outros”, possuía um túmulo
novo num rochedo em um sítio não longe do Gólgota. Segundo João, ele é
ajudado por Nicodemos, um médico fariseu que, tempos atrás, havia ido até
Jesus para debater questões espirituais. Algumas mulheres entre os seus
seguidores e alguns parentes que se encontravam ao lado da cruz, sem
dúvida, se aproximaram para ajudá-los a enfaixar o cadáver em um sudário
de linho e espalhar unguento sobre ele. Depois dessa triste cerimônia,
colocaram o corpo no túmulo e fecharam a entrada com uma grande pedra.
Visto que já começava o sábado, os exaustos discípulos de Jesus voltaram à
cidade à luz fraca do crepúsculo.
Ressurreição e ascensão
Ninguém estava preparado para as desconcertantes revelações que
começaram a se espalhar entre os discípulos no decurso de 48 horas, ou até
menos. Naquela manhã de domingo, segundo a narrativa de Marcos, Maria
Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé foram ao túmulo após o nascer do
sol. O sábado havia terminado e as mulheres queriam ungir o corpo de
Jesus com bálsamos. Segundo Marcos, as mulheres, ao chegar à entrada da
sepultura, perceberam que a pedra já havia sido retirada. E viram um
jovenzinho vestido de branco sentado sobre a tumba. “Não tenhais medo”,
disse a elas. “Vós procurais Jesus Nazareno, o crucificado. Ele ressuscitou,
não está aqui.”
Jesus apareceu para Maria Madalena, talvez alguns minutos depois.
Quando Jesus aproximou-se dela, encontrando-a em lágrimas diante da
sepultura, segundo o Evangelho de João, ela pensou que se tratasse de um
jardineiro. Mas bastou Jesus chamá-la ternamente pelo nome que a mulher
o reconheceu.
Ao longo daquele primeiro dia, e nos seguintes, graças a várias visões e
aparições, todo o grupo que havia seguido Jesus passou a crer que ele
estava vivo. Em pouco tempo, os discípulos procuraram uma maneira para
confirmar sua presença, ouvir suas palavras. Segundo João, quando o
apóstolo Tomé colocou suas dúvidas em relação à ressurreição, Jesus o
convidou a tocar com as mãos suas feridas pela crucificação. “Porque me
vistes, acreditais”, disse-lhes Jesus. “Abençoados aqueles que mesmo não
vendo acreditaram!”
Estes dias serviram para fortalecer a fé dos discípulos e para assegurar
que as palavras de Jesus incentivassem um movimento em seu nome.
Depois, um dia, ele levou seus seguidores ao Monte das Oliveiras, onde os
abençoou, “se separou deles e foi levado aos céus”. Esse fato seria chamado
de Ascensão de Cristo. A partir desse momento, os discípulos
permaneceram sozinhos, com a alma cheia de questionamentos. Por que
Jesus os havia chamado, há tanto tempo, às margens do mar da Galileia? No
entanto, permaneceram a alegria e a esperança, das quais seus corações
estavam cheios, à espera dos dias que viriam.
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Adaptado de Jesus e sua época, publicado pela Reader’s Digest do Brasil
Ltda.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de
1990, em vigor no Brasil a partir de 2009.

Editora-executiva
Raquel Zampil

Seleção de conteúdo
Liane Mufarrej

Produção do arquivo ePub
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ISBN: 978-85-7645-453-3

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