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Introdução

Doze anos havia que o mundo gozava de uma paz


inalterável, desconhecida desde a morte de Numa Pompílio,
quando Deus, lançando um olhar de compaixão para a terra,
determinou baixar a ela em forma de homem, e de derramar
o seu sangue pelos crimes alheios.
Devia anunciar-se a sua vinda com grandes e
assombrosos acontecimentos, e assim sucedeu.
Os ímpios idólatras do Olimpo do Homero, os
adoradores sensuais de Vênus, a prostituta, e de Mercúrio, o
deus dos ladrões, os corrompidos cortesãos do Capitólio,
definhavam em languidez nos braços da indolência e do
amor.

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Aquela paz inalterável enchia-os de admiração, e um
dia foram ao templo consultar o oráculo de Apolo para
saberem quanto tempo ela duraria.
O oráculo respondeu-lhes estas palavras: “Até que se dê
o caso de uma Virgem dar à luz”.
Julgando, segundo a ordem natural, que seria
impossível que semelhante vaticínio sucedesse, colocaram
esta inscrição na elevada porta: “Templo da paz eterna”.
Entretanto, a sibila Cumeia, a poetisa, inspirada,
predizia a vida de Cristo na cidade ímpia dos sibaritas.
Otávio Augusto fez reunir o conselho e a profetisa foi
interrogada. O César queria saber se nasceria outro homem
mais onipotente que ele. Esperava o imperador a resposta,
quando um círculo de ouro apareceu em torno do sol.
No centro, rodeada de vividos raios, via-se uma Virgem
que tinha nos braços um formoso menino.
A sibila então estendeu a mão par ao brilhante astro do
céu, e exclamou com profética voz:
“- Aquele menino é mais onipotente que tu, adora-o”.
De súbito ouviu-se uma misteriosa voz que bradava:
“Esta é a ara santa do céu”.1
Sucedia isto em Roma quando no Oriente, na Babilônia
moderna, na populosa Selecucia, apareceu uma estrela que,
fazendo sair os reis magos dos seus palácios, os conduziu
com o fulgor do seu brilho à porta de um estábulo de Belém.
Cumpria-se a profecia de Balaão: a estrela de Jacó
acabava de despontar nos céus.

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Sobre o Capitólio em Roma, onde existia em tempo da vinda de Cristo o palácio de
Otávio Augusto, existe hoje o convento de Santa Maria d1Arca-Coeli, d’onde provém a
tradição que narramos.

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Do Oriente chegavam alguns idólatras, que
depositavam aos pés de um berço a primeira pedra do
cristianismo.
A voz do anjo despertou nas suas cabanas os pastores, e
estes achavam-se junto de um leito aos pés do qual ia morrer
o mundo pagão.
Um menino, formoso como o sonho do justo, loiro
como as espigas do Egito, agitava-se sobre um montão de
palha sorrindo com doçura; filho de uma Virgem, nasceu em
um presépio e estava destinado a redimir o mundo. O recém-
nascido era o Messias, que os profetas haviam anunciado.
Os terríveis deuses do paganismo, Molok, Tifon,
Abriman, curvaram a torva fronte ante o Cristo, o Deus-
Homem, o Deus da nobreza e da mansidão que, envolto na
túnica de mendigo, procurava o tugúrio do humilde para
viver com ele e ensinar-lhe estas palavras de conforto: “Bem
aventurados os que choram, porque eles serão consolados”.
Principiou então o homem a sentir dentro de si o
gérmen de uma nova vida, e quando a fadiga o fazia cair
banhado em suor sobre a charrúa, erguia ao céu os olhos
cheios de lágrimas, e pedia a Deus forças para esperar o dia
da recompensa.
O escravo, sacudindo os grilhões, lançou um olhar em
torno de si e permaneceu com o ouvido atendo, até que a sua
fisionomia se foi animando pouco a pouco, e um sorriso
melancólico assomou aos seus lábios.
Despontava-lhe no coração a esperança; os grilhões
caiam despedaçados aos seus pés, porque estas palavras
pronunciadas por Deus: “Todos somos irmãos” haviam
chegado aos seus ouvidos.
Reuniram-se então os desgraçados em volta de Jesus
Cristo, que, qual pastor das almas, atravessava a terra para

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procurar os aflitos, afim de lhes enxugar as lágrimas, e
derramar-lhes no coração angustiado a rica semente da fé
cristã.
Onde uma criaturas gemia, lá estava Cristo para a
consolar. Onde se lamentava um enfermo, lá estava o
Messias para lhe devolver a saúde.
As suas palavras eram o manancial copioso da caridade
e da consolação, manancial onde a humanidade colocou os
lábios sedentos, onde mitigou a sede abrasadora que lhe
minava o peito, exclamando ao mesmo tempo com
entusiasmo: “Creio em Vós, Senhor, porque entre os
inumeráveis benefícios que a vossa vinda nos trouxe, um há
que eternamente guardaremos no coração: os Evangelhos,
porque eles são os escolhidos entre os escolhidos, são o pão
da alma cristã, o divino facho que nos indica o caminho da
glória, a tua santa doutrina enfim.”
Na Samaria, em Candam, na Galiléia, Betânia e
Jerusalém, Jesus apareceu sempre como o anjo do bem sobre
a terra. Viu-se rodeado de um povo que sedento de amor, lhe
derramava flores ante os pés, e que chamando-lhe seu Deus e
seu Rei, lhe pedia com as lágrimas nos olhos que lhe
ensinasse a nova doutrina.
Sua fama, seus feitos, seus milagres, correram de boca
em boca por todos os âmbitos do mundo, até que um dia as
palavras “todos somos iguais” chegaram aos ouvidos dos
pontífices e pretores de Jerusalém.
Estremeceram os tiranos nos seus palácios e, fazendo
girar os sangrentos olhos, procurarem o filho do povo que
ousava intitular-se Deus da humanidade, Rei dos judeus, e
cujas palavras principiavam a transtornar a ordem das
cousas.

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Por fim acharam-no, interrogaram-no e, ao ouvirem a
santa verdade da sua doutrina, retiraram-se envergonhados,
murmurando estas palavras com enleio: “Com este homem a
ciência é impotente. Será o Messias?”
Desde então nos seus sonhos, nas suas bacanais, nas
suas orgias, viram escritas estas palavras “O que for maior
entre vós será vosso servo.”
Em seguida calcularam as suas forças e a imensidade
do perigo que os ameaçava e rugindo como os habitantes das
selvas africanas, com u’a mão continham as pulsações do
coração, devorado pela consciência, enquanto que com a
outra assinavam a morte do Redentor.
A raivosa impotência e o cego orgulho dos tiranos
fizeram com que se levantasse a Deus um cadafalso!
A tragédia divina teve o seu termo.
Cristo subiu ao calvário, exalou o último suspiro nos
braços do lenho sagrado; foi dali tirado para o sepulcro, e ao
terceiro dia elevou-se ao céu em apoteose.
As suas lágrimas cairam como gotas de orvalho sobre o
coração da humanidade; e as suas palavras foram a fonte da
consolação, o seu sangue a semente preciosíssima da religião
cristã, a cruz o sagrado sinal da redenção, a chave do paraíso.
Haviam-se cumprido as profecias.
Os apóstolos da fé, os propagadores da nova lei,
espalharam-se pela terra e, mão se importando como o
martírio, começaram a semear a palavra humanidade até
então desconhecida no mundo.
O Cristianismo cresceu como uma bola de neve. Os
circos de Roma, os tormentos da Índia, não puderam
esmagar-lhe a radiante e formosa cabeça.
Nero, Cômodo, Deocleciano, Maxêncio, todos esses
verdugos da humanidade, sacrificaram mais de um milhão de

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cristãos; porém o Cristianismo renasceu das suas cinzas
como a ave fênix. Por toda a parte renasciam novos rebentos
da fé, que estendiam a sua nova e viçosa seiva pelo coração
da humanidade.
Os filhos dos pagãos recebiam a água do batismo como
maná celeste.
As mulheres, com a sagrada instituição do matrimônio
cristão, tiveram uma posição social e uma família; e como se
todos estes benefícios não bastassem para proclamar a
divindade do Galileu, a ímpia Jerusalém, a cidade ingrata dos
fariseus, foi destruída pelas legiões de Vespasianos e Tito,
sepultando nas suas ruínas um milhão de hebreus, que a
celebração da Páscoa havia reunido a profecia dos muros da
cidade sacerdotal.
O Cristianismo, salvando a sociedade de uma ruína
certa, abrigou no seu seio carinhoso os restos da civilização e
das artes.
O plano deste livro abrange todos esses grandes
acontecimentos que o povo de Israel presenciou. Antes de o
principiar, tratamos de estudar as Sagradas escrituras, os
costumes hebreus e as poéticas tradições do Oriente. Sem
faltar ao dogma, muitas vezes havemos adotado o estilo
poético, que não fica mal a um livro desta índole.
A fé e a religiosa admiração que nos inspira aquele que
exalou o último suspiro no monte do Calvário, levou-nos a
escrever uma obra que nos assombrava ao concebê-la, e que
hoje, vendo-a terminada, damos à luz com respeito e
veneração.
Que a julgue todo aquele que a ler, e longe de ter este
livro como uma obra importante, tenha-o só como um grão
de areia que colocamos na pirâmide imensa do Cristianismo,
elevada pelas santas palavras do Mártir do Gólgota.

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LIVRO PRIMEIRO

Que outra coisa é a Escritura senão uma Carta do Todo


Poderoso aos homens? Rogo-te que todos os dias estudes e
medites as palavras do teu Criador, aprendendo assim a
conhecê-lo, - (GREGÓRIO MAGNO,Livro IV, epist.39)

CAPÍTULO I

O POVO ERRANTE

Formoso céu da Galiléia: desgraçadamente os meus


olhos não admiram ainda as poéticas cambiantes dos teus
crepúsculos.
Perfumadas faldas do Carmelo: o meu peito ainda não
respirou o balsâmico aroma das tuas virações.
Frescas margens do Jordão: os meus lábios profanos
jamais se umedeceram com o claro manancial da tua santa
corrente.
Cume sagrado do Calvário:os meus pés nunca pisaram
as tuas caleinadas rochas, que um dia se umedeceram com o
sangue do Messias e com as lágrimas da Virgem.
Velutos Olivete, cujos cimos serviram de pedestal do
Nazareno quando as nuvens celestes desceram do paraíso
para o tirarem da mansão dos homens: a brisa vespertina que
agita as pequenas e aveludadas folhas das tuas oliveiras
nunca bafejou a fronte.
Imortal Líbano, majestoso fantasma de todos os
tempos, que em teus mudos anais guardas a história
monumental: Balbek que os homens desconhecem, que
fertilizas as terras de Blak com o úmido pó da tua neve, que

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refrescaste os alvos cabelos do solitário Noé e presenciaste a
tragédia divina do Gólgota, soltando um gemido doloroso,
cujo eco foi perder-se nas profundas brenhas das tuas
quebradas: o balsâmico perfume dos teus cedros, o
resplandecente reflexo das tuas cordilheiras jamais me
detiveram os passos para te admirar dos pitorescos vales de
Zakle.
E tu, rainha da Ásia, inacessível cume do Sabino, que
ocultas a eterna neve das tuas cumiadas no tranquilo azul do
firmamento: os úmidos efusivos que o vento da tarde arranca
a tua cabeleira nevada, nunca me umedeceram os vestidos,
nem me cegaram os olhos.
Jamais tive a dita de te admirar, poética e formosa
Palestina. Os meus olhos nunca se extasiaram ante a
contemplação dos campos de Zabulon, eternamente cobertos
de violetas.
Invejo os viajantes ilustres, os peregrinos, cristãos que
teen percorrido o dilatado solo, que foi ocupado pelas doze
tribos de Israel desde o monte Hermon até à torrente do
Egito, desde as cordilheiras de Galaad até às tempestuosas
plagas do mar ocidental.
A história do teu povo tem sido o meu livro querido
desde que a minha língua principiou a ligar as letras do
alfabeto.
Mais ai! Que é feito dos descendentes de Abraão e
Jacó? O povo de Israel, tão sábio e valente, essa raça da qual
nasceram os profetas, essas tribos que imortalizaram o nome
dos seus chefes, aonde existem? Qual é o ponto da terra que
ocupam? Onde se acha o seu lar doméstico? Qual é a sua
pátria?
Deus nasceu entre eles, e o sangue do seu Deus que
derramaram pesa-lhes sobre a cabeça como uma maldição,

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impelindo-os pelo mundo quais ligeiras arestas que o
possante sopro do vendaval arrasta sem rumo certo.
O aríete romano converteu as suas poderosas cidades
em um montão de ruínas; a espada triunfante dos filhos do
Tibre cortou-lhes as cabeças, e as sombras terríveis de
Vespasiano e de Tito pairam ainda sobre os escombros
sangrentos de Jerusalém, perturbando o sono e arrancando
lágrimas de luto e de vergonha aos descendentes dos
Macabeus.
A hora anunciada pelos profetas soou no incorruptível
relógio do tempo; as águias e os corvos, que se aninhavam
nas escarpadas rochas do Líbano, submissas aos mandados
de Deus, caíram então sobre o solo da cidade maldita.
Com os curvos bicos e as garras aduncas despedaçaram
sem piedade as entranhas dos deicidas; e os que
sobreviveram a tão horrível catástrofe legaram aos filhos
uma maldição eterna, uma vida errante e miserável, que se
prolongará até a consumação dos séculos.
Cumpriram-se as profecias: o templo de Sião já não
tem os seus soberbos pórticos; as suas portas de ouro já não
se abrem ante os passos do sacerdote hebreu; os
descendentes de Jacó já não vão pressurosos fazer os
sacrifícios ante os altares do invisível Deus dos seus
antepassados, e as harpas e os saltérios das filhas de Judá já
não entoam doces e poéticas melodias ao Santo dos Santos.
Moisés, o intérprete de Jeová, o teu sábio legislador, o
teu dogma, já não tornará a guiar-te pelo deserto.
Debalde esperas, povo maldito, a vinda do Messias! Em
teu seio teve o teu berço: cuspiste-lhe no rosto, derramaste-
lhe o sangue, e a sua maldição esmaga com o seu pêso a
prosperidade de teus filhos. Não esperes, não; não esperes
que os campos de Gabaon se cubram outra vez com os louros

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de Josué e com os despojos sangrentos dos cinco reis
comandados por Adonisec.
Aquela batalha, que durou três dias sem se ocultar o
sol, só pudeste vencê-la pela vontade de Deus, e Deus
amaldiçoou a tua raça.
Por isso é que a bandeira dos Macabeus nunca mais
tornará a tremular triunfante pela inimiga Samaria, nem os
valentes filhos de Matias volverão a erguer as suas tendas
sobre as altas cumiadas do Garizim.
Débora já não fará justiça à sombra das palmeiras de
Efraim, nem o canto de Jael, a forte mulher, reanimará nos
combates o valor dos filhos de Judá.
Ester, a formosa, nunca mais tornará a salvar o seu
povo do furor dos inimigos; nem Elias, o raio de Deus, fará
chover do céu para acender a lenha verde do sacrifício.
As tuas conquistas não se estenderão do Mediterrâneo
ao Eufrates como no tempo de Davi, o ungido do senhor;
nem teus filhos gozarão mais em paz à sombra dos salgueiros
as imensas riquezas que o florescente reinado do rei dos
Cânticos lhes proporcionou.
Salomão, o amado do Senhor, nunca mais enviará os
seus navios a Ofir, terra do ouro, nem passeará pelas ruas da
cidade santa com o seu carro de bronze de Corinto, no qual
se lia em letras de diamantes: “Amo-te, querida Jerusalém”.
A rainha do Meio-dia, a bela Nicaulis, jamais tornará,
atraída pela fama da tua opulência, montada no seu
dromedário de Efra, e resplandecente como um mar de ouro,
esmaltado de prata e esmeraldas, a presentear o teu rei com
três elefantes carregados de aromas perfumes, ouro em pó e
pedras preciosas.
As tuas naus nunca mais explorarão o comércio do mar
Vermelho, nem das costas orientais da África, como no

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tempo de Josafá; nem teus filhos acharão no destêrro outro
Zrobadel, que os guie até aos abandonados lares para que
reedifiquem o templo derrocado dos seus antepassados.
Povo d’Abraão, o teu nome é um opróbrio, a tua pátria
um destêrro! Grande foi o castigo que Deus lançou sobre a
tua raça porém o teu crime ainda foi maior, pois derramaste o
seu sangue, quando ele havia escolhido o vosso país para a
sua morada entre os homens.
Tapaste os ouvidos às suas palavras, e fechaste os olhos
aos seus milagres; e aquelas palavras e aqueles fatos ainda
retumbam, perturbando até o teu nome.
Deus quis acolher-te debaixo das suas asas, como a
carinhosa galinha aos pintinhos, e tu sacrificaste-o em
recompensa do seu amor inesgotável.
“Jerusalém, Jerusalém! Em ti não há de ficar pedra
sobre pedra” disse Ele, e a sua promessa cumpriu-se.
Jerusalém, Jerusalém! A tua passada glória é um
montão de escombros, sobre os quais ainda adeja a terrível
maldição de Deus, repetindo sem descanso: Chora, chora,
cidade ingrata!

CAPÍTULO II

SÓ NO MUNDO

O céu estava carregado, a noite escura, e frio o


ambiente.
O solitário mocho, qual sentinela noturna, soltava de
vez em quando dos altos ramos das árvores um monótono e
prolongado pio, cujo eco lúgubre se ia perder nas
profundidades dos barrancos.

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O interminável ranger dos dentes dos famintos chacais
do bosque de Efraim, despertava do seu ligeiro sono os
ferozes lobos das brenhas da tribo de Manassés, os quais
enviavam aos seus terríveis companheiros, nas asas do vento,
noturno, uivos estridentes e prolongados.
De tempos a tempos a lua rompia as espessas nuvens
que a encobriam, deixando cair um raio da sua luz prateada
sobre as altas cumiadas dos montes da Samaria, que
estendem o seu dorso sombrio de leste a oeste, quais
fantasmas negros e encadeados.
O monte Hebal, mais escarpado, mais sombrio e
imponente que os seus irmãos, erguia-se no meio daquela
cordilheira como um gigante ameaçador, amaldiçoando a
impiedade dos rebeldes samaritanos.
O vento norte começou a sibilar por entre as sarças e as
fendas das rochas, e em seguida grandes montões de nuvens
repletas de eletricidade estenderam-se rapidamente desde as
plagas do mar ocidental até às margens pacíficas do rio
Jordão.
O surdo e longínquo trovão começava a ribombar pelo
espaço anunciando com a sua voz possante aos filhos de
Semer a próxima tempestade que ia estalar sobre as tuas
cabeças.
A atmosfera ia-se condensando, e do seu úmido seio
começaram a cair grossas gotas de água sobre a seca terra
dos adoradores do bezerro, e à qual os judeus chamaram
Terra da iniquidade.
Tudo anunciava uma dessas terríveis tempestades, que
com tanta frequência turvam o céu da Palestina. Os
relâmpagos começaram a suceder-se com rapidez, e o trovão,
percorrendo o espaço, fazia redobrar a sua voz potente.

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Sobre o alto cume do monte Hebal, à borda de um
profundo precipício, como o ninho de uma águia, viam-se os
negros e toscos muros de um castelo de mesquinha e tétrica
arquitetura. Esta sombra fortaleza, ali levantava pela atrevida
mão dos cuteus depois da dominação dos assírios, era
habitada por uma quadrilha de malfeitores.
O chefe desta quadrilha, mancebo de apenas vinte anos,
valente e temerário, conhecedor do terreno, e que tinha sido
levado por uma vingança à vida aventureira de salteador de
estrada, zombava dos soldados de Herodes, e carregado de
despojos voltava sempre para o seu covil inexpugnável, onde
repartia pelos companheiros os roubos que fazia.
Um relâmpago iluminou momentaneamente o obscuro
horizonte, e ao clarão azulado da sua luz viram-se uns
homens que deslizaram pela escarpada e resvaladiça encosta
do monte Hebal, em direção aos barrancos de Garizim.
Os viandantes noturnos caminhavam, deixando após si
a fortaleza de Hebal, sem fazerem caso da tempestade que
rugia pelo espaço, e sem se importarem com as densas trevas
que os envolviam, nem com o caminho perigoso pelo qual
seguiam com passo acelerado e seguro.
Um outro relâmpago iluminou por dois segundos o
espaço. O seu lívido clarão incidiu sobre os misteriosos
caminhantes com tétrica e fantástica luz. Pode-se ver então
que eram oito. Os trajos, misto de romano e hebreu, as fontes
requeimadas pelo sol, as barbas hirsutas e incultas, davam-
lhes um aspecto verdadeiramente feroz.
Ia entre eles um mancebo, imberbe por assim dizer:
vestia uma túnica pardacenta como os nazarenos. Na cabeça
trazia um turbante alto com bandas de linho, e uma camisola
de lã de camelo servia-lhe de manto.

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Com a mão direita apertava a curta lança de três pontas
dos soldados de César, e de sua cinta pendia-lhe o comprido
punhal dos samaritanos. Era o chefe dos bandidos. O valor
temerário que sempre demonstrara havia-o elevado entre os
companheiros ao posto de capitão, apesar dos seus poucos
anos.
Tinha uma estatura esbelta e fisionomia franca e
enérgica. Os seus olhos pretos, velados por longas e espessas
pestanas, ora despendiam olhares irresistíveis, quando a
cólera lhe devorava o coração, ora doces e compassivos,
quando a quietação se lhe hospedava no peito.
Nem uma só linha se encontrava no seu semblante que
inspirasse o sentimento da repugnância. Podia-se dizer que
era quase formoso.
Ao vê-lo caminhar no meio, daqueles foragidos de
olhar torvo e asquerosamente vestidos, dir-se-ia que era antes
um prisioneiro que o chefe de semelhantes homens.
O jovem capitão dos bandidos samaritanos chamavam-
se Dimas, nome que trinta e dois anos depois devia ser
imortalizado no cume de Gólgota pelo Mártir da Cruz, o
Redentor do homem.
Dimas era filho de um honrado ourives de Jerusalém.
Desde os mais tenros anos havia demonstrado um carinho
sem limites para com todas as crianças de menor idade que a
sua, um profundo respeito pelos cabelos brancos, e uma
extrema veneração pelos cadáveres. Como bom israelita
cresceu, aprendendo o ofício paterno, andando sempre
rodeado de rapazes do bairro e com os quais repartia suas
frutas e brinquedos.
Quando algum defunto era levado pela rua em que
vivia Dimas, ele acompanhava o fúnebre préstito até o vale

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de Josafá, oferecendo-se sempre a ajudar os coveiros a
colocar o cadáver no sombrio sepulcro.
Um dia Dimas ficou órfão; o filho chorou a repentina e
inesperada morte do bondoso pai, e com os olhos ainda
umedecidos pelo pranto, dirigiu-se à casa de um pedreiro
para que este fizesse uma modesta sepultura às cinzas do
autor dos seus dias. O ajuste foi feito por mil e duzentos
óbolos (trinta mil réis, pouco mais ou menos). Porém qual
não seria a surpresa de Dimas quando ao chegar em casa,
onde ainda o cadáver descansava no leito da morte, viu um
fariseu, um centurião romano e um malsim, a confiscarem a
pequena fortuna do falecido joalheiro!
- Que fazeis em minha casa? – perguntou Dimas com
assombro.
- Tomo, com autorização da lei e do poder romano, o
que teu pai devia, respondeu o velho.
- O sopro da morte emudeceu a boca a meu pai, porém
nosso jurar elo Deus invisível de Abraão, de Isaque e Jacó,
que ele nunca me disse nada a respeito da dívida que agora
reclamas.
- Um fariseu que tem as barbas brancas e que curva a
fronte ante a ara de Sião nunca mente. Estes que me
acompanham são testemunhas do empréstimo, que fiz a teu
pai e de certo que tudo quanto possui não chega às duas
terças partes do que me deve.
Dimas, aturdido, com o coração traspassado pela dor e
pela surpresa, não encontrava em si palavras com que
responder àquele velho, que o lançaria na miséria.
As testemunhas afirmaram a verdade das palavras do
fariseu, e o malsim continuou a confiscar tudo que via, sem
se importar com a atitude dolorosa do pobre órfão.

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- Pois bem; levem o meu erário, todos os meus
vestidos, a minha cama, se querem; não me oporei a isso.
Sou jovem e robusto e o trabalho não me atemoriza; porém
concedam-me ao menos um favor.
- Fala! disse o fariseu com lacônico acento.
- Empresta-me dois mil óbolos: eu os restituirei logo.
- Dois mil óbolos! estás louco, mancebo? Como
poderás pagar tão enorme quantia?
- Se for preciso trabalharei para ti toda a minha vida.
- Não posso servir-te.
- Vende-me como escravo, se queres.
- Um fariseu israelita não pode vender um descendente
da sua raça.
- Pela santa sinagoga, suplico-te que não me negues o
que te peço.
- Acabamos com isto! Exclamou o fariseu com
evidentes sinais de mau humor.
- Pensa não que fazer! volveu Dimas rangendo os
dentes ao ver a dureza daquele velho.
- Ameaçar-me?
- Unicamente te aviso.
- Desprezo-te.
- Olha que esse dinheiro que te peço é para enterrar
meu pai!
- Os pobres não precisam de sepulcros pois há valas
comuns.
- Miserável! bradou Dimas, agarrando nervosamente o
velho fariseu pelo pescoço, tu e meu pai descerão ao mesmo
tempo à sepultura.
As testemunhas arrancavam o fariseu das mãos de
Dimas, não sem custo, e duas horas depois o jovem órfão era
posto em uma escura masmorra da torre Antônia.

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Dimas tinha nesse tempo dezoito anos, idade em que as
paixões e os sentimentos não se ocultam nem comprimem.
Ao ver só no mundo, encerrado entre quatro úmidas e
lôbregas paredes, chorou como criança, porque se lembrava
dos carinhos de sua mãe e do cadáver insepulto do velho
autor dos seus dias.

CAPÍTULO III

AJUSTE É AJUSTE

Tanto a dor como o prazer tem o seu termo, e ambos se


dissipam quando o coração se enfastia ou endurece.
O pobre órfão acabou por não ter mais lágrimas. Três
meses permaneceu, esquecido dos homens em úmida e
sombria prisão, sonhando com a anelada hora da xingança.
U’a manhã, o carcereiro anunciou-lhe à liberdade.
Dimas correu a sua casa e, por um vizinho soube que o corpo
de seu pai havia ficado por sepultar durante seis dias, e que
por fim os coveiros o haviam lançado a uma vala, onde se
enterravam os cadáveres de leprosos.
Dimas ouviu a repugnante narração sem proferir uma
só palavra. Nem uma lágrima lhe assomou aos olhos. O
coração estava empedernido; a vingança crescia dentro do
peito como a vermelha papoula no meio de um campo estéril
e requeimado pelo sol do Egito.
Durante o resto do dia e da noite, andou sem norte nem
rumo pelas ruas de Jerusalém. Ao amanhecer notou que se
achava no bairro da Bezeta ou a Cidade Nova. Suas estreitas
ruas sujas e tortuosas, pertenciam à rica e opulenta
Jerusalém; porém nem o canto de Sion, nem os perfumes

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dos jardins de Herodes, nem o luxo da cidade de Davi,
chegavam até eles. Eram habitadas por modestos mercadores
de lã, por industriosos armeiros, por gente, enfim, dedicada
ao trabalho e ao comércio.
Dimas, cansado, sem saber para onde havia de dirigir
os passos, recostou-se a uma porta apenas cerrada.
Maquinalmente fixou os olhos nas folhas reluzentes dos
punhais, que pendiam de uma espécie de mostrador formado
com fios de cânhamo.
Dimas desejou comprar um daqueles punhais e com o
olhar no mostrador, começou a procurar a arma para executar
a sua vingança.
- Quanto custa esta navalha? perguntou indicando uma
comprida folha de Damasco que pendia de um dos fios.
- Dois silcos de prata, é uma arma excelente,
respondeu o cuteleiro tirando-a do mostrador.
Dimas examinou-a por um momento; mas, lembrando-
se de que não possuía um miserável óbulo, disse ao
vendedor:
- Queres fiar-me esta navalha? Dar-te-ei por ela vinte
onças romanas, e isto antes que a lua nova alumie com os
seus raios o alto minarete da terra de Davi.
- E quem me responde pela tua palavra? Bem sabes que
nunca te vi.
- Responde-te a memória de meu falecido pai, a quem
vou vingar com esta arma, e sobre cuja cabeça juro entregar-
te, caso não morra na empresa, a quantia que te ofereci, que
é, como sabes, vinte vezes maior que aquela que me pediste.
As palavras de Dimas tinham um cunho de verdade
irrefragável. O cuteleiro compreendeu que se passava no
coração daquele moço o quer que fosse de estranho e, por um
desses impulsos inexplicáveis em um judeu, fiou-se na

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palavra do matutino comprador, pois previa um negócio
excelente naquela venda.
- Se me enganares, pior para ti! disse, entregando-lhe a
navalha; se tiveres palavra, então que Jeová te proteja e te
salve dos perigos a que a tua vingança te vai expor.
- Obrigado! falou o órfão. Mas antes de separar-nos,
devo dizer-te o meu nome, para que conheças o teu devedor.
Chamo-me Dimas; algum dia ouvirás falar de mim, pois
estou certo que este nome há de soar bastante pelas doze
tribos.
E, sem esperar resposta, caminhou rua adiante,
atravessou a porta das Cabras e foi sentar-se à sombra de um
robusto sicômoro, de cuja fruta comeu com apetite, pois
bastantes horas havia que não tomava alimento algum.
Em seguida empunhou o cabo da navalha, e vibrou um
forte golpe no tronco da nodosa árvore. A folha da arma
enterrou-se umas três polegadas.
- Oh! Tem boa tempera! disse consigo, nem sequer
dobrou a ponta: bem pode entrar toda a folha de um só golpe
na garganta ou no coração daquele que atirou com o cadáver
de meu pai aos cães da vala dos leprosos.
Dois dias depois, junto à torre de Siloé, os soldados de
Herodes encontraram o cadáver de um velho. Tinha uma
ferida profunda na garganta e outra, exatamente igual no
coração. Sobre a fronte qual estava escrito com sangue:
“Dimas vingou o cadáver insepulto do seu pai com a morte
deste fariseu e jura, pela sua memória, perseguir os
descendentes dele até à quarta geração”.
Depois deste atentado, o jovem órfão fugiu da cidade
sacerdotal, refugiando-se nos montes de Rama. O cadáver
profanado do autor dos seus dias impeliu-o a cometer o

19
primeiro assassínio. A fome obrigou-o a praticar o primeiro
roubou.
Dimas arrebatou um cabrito a uns pastores. Daí em
diante começou a vaguear como um malfeitor pela mais
fragoso dos bosques. De noite abandonava as guaridas
incultas para assistir os indefesos caminhantes; porém nunca
o infeliz órfão, que aborrecia o sangue por instinto,
empregou outras armas além da ameaça para despojar as
vítimas.
Entretanto, a lua nova aproximava-se e Dimas não tinha
pago ainda no cuteleiro as vinte onças romanas que lhe
devia. Jurara pagá-las pela memória do insepulto cadáver de
seu pai, e era necessário cumprir o juramento. Mas como, se
não possuía sequer u’a miserável moeda de cobre?
Dimas, sentado à borda de um estreito barranco,
começou a meditar sobre a sua sorte no futuro. Havia dado o
primeiro passo no caminho do crime. Suas proezas
vandálicas não passavam ainda de miseráveis roubos, feitos a
pastores indefesos, com o fim único de aplacar a fome. Vivia
só, errante; e meditando em sua consciência, começou a
compreender o que havia feito.
Era impossível retroceder e via que era indispensável
que as suas aventuras fossem em maior escala.
- Salteador por salteador, disse consigo, busquemos
então o ouro. Tanto se arrisca a vida roubando um sestércio 1
como um talento2 hebreu. Tanto se perde a honra roubando
uma pomba como um boi.
Após esta resolução, Dimas levantou-se, e agitando os
compridos cabelos com um movimento enérgico de cabeça,
lançou um altivo olhar pela solidões que o cercavam e,
afagando o cabo tosco da navalha, murmurou:

20
1
moeda de cobre de pouco valor.

- Quando se estima pouco a vida, o homem pode chegar


a ser muito. Sim, é preciso que eu seja o rei dos bosques, o
terror de Israel.
Nesse tempo andava pelos montes da Samaria uma
quadrilha de bandidos que, à sombra das contendas civis que
agitavam as tribos de Israel, cometiam com incrível audácia
toda a casta de crimes. Debalde Herodes enviava seus
soldados para os exterminar: os bandidos da Samaria eram
invisíveis, apesar do coração da Palestina ser o teatro da suas
sangrentas expedições. A audácia dos bandidos samaritanos
não tinha limites. As ruas de Jerusalém presenciaram
milhares de vezes cenas de repugnante barbaridade,
praticadas pelo punhal homicida dos indômitos habitantes do
monte Hebal.
Os mercadores do Egito, de Damasco, de Tiro, e Sidon,
viam-se frequentemente assaltados ao meio dia nas estradas
mais concorridas.
As devastadoras correrias dos terríveis bandidos,
estenderam-se desde a tribo de Judá, à tribo de Aser; e não
poucas vezes, atravessando o Jordão, haviam levado o terror
e o saque até aos bosques de Efraim. Os montes de Samaria,
com as suas profundas cavernas serviam-lhe de refúgio para
se esquivarem às perseguições dos soldados de Herodes. O
sombrio e solitário castelo, que coroava o topo do monte
Hebal, servia-lhes de quartel de inverno.
Dimas era valente: perdendo a esperança de reingressar
na sociedade dos homens honrados, resolveu buscar a dos
ferozes salteadores da Samaria. Por conseguinte, depois de
quatro dias de marcha forçada chegou à raiz do terrível
monte. Ninguém se atrevia a tanto naquele tempo. O

21
desespero centuplicava o ânimo do filho do ourives
jerossolimitano.
Dimas deteve-se a uns trinta passos da solitária
fortaleza. A subida era escabrosa e fatigante. Desfalecido
pelo cansaço, o jovem hebreu sentou-se em uma pedra.
Achava-se só: nem o canto das aves, nem a voz humana
interrompiam a solidão profunda dos precipícios que o
rodeavam.
Dimas parecia o anjo do mal, quando depois da sua
queda se sentou á borda do abismo a contemplar por um
instante a horrível mansão, que Deus lhe concedia em castigo
da sua louca soberba.

CAPÍTULO IV

OS BANDIDOS

Nem uma só nuvem maculava o claro e formoso céu da


Palestina. O sol no seu zeni, e banhava com a radiante luz
dos seus raios as escabrosas cordilheiras e as férteis planícies
da Samaria. E, lá ao longe, para o levante, estendia-se uma
nuvem pardacenta que, à semelhança de uma longa cobra de
gaze, mergulhava a cabeça enorme nas azuladas águas do
lago de Genezaré, enquanto a sua enroscada cauda ia
abismar-se nas águas pesadas e malditas do mar Morto.
Esta cinta de flutuante renda, esta manga de pó que
parecia brotar da terra, eras as névoas do Jordão que iam
subindo para o céu em vaporosas e úmidas emanações.
Dimas contemplou em silêncio o panorama grandioso
que se dilatava ante os seus olhos. Sua vista fixava-se no
sombrio e solitário castelo, cuja fechada porta, ameias
desertas e desmoronados muros, lhe davam o aspecto de uma

22
dessas mansões malditas, cujas tradições sangrentas
afastavam com terror os tímidos habitantes das aldeias e os
simples e supersticiosos pastores.
Dimas, firme no seu propósito, depois de certificar-se
de que o punhal permanecia oculto nas dobras da túnica,
desprendeu do cinto uma larga funda, formada de folhas de
palmeira seca, colocou nela uma pedra de três polegadas de
diâmetro e, fazendo-a girar em torno da cabeça, atirou com o
projétil para dentro do castelo
Esperou alguns instantes, porém ninguém assomou a
cabeça pelas frestas dos torrões.
Dimas repetiu por três vezes a mesma manobra,
obtendo sempre o mesmo resultado.
- O castelo está solitário – penso. E aos seus lábios
assomou um singular sorriso:
- Não seria mau que me apoderasse dos tesouros desses
raposos barbados que fazem tremer só com os seus nomes os
ímpios e afeminados romanos, os torpes e covardes
herodianos e, os indefesos mercadores do Nilo, do Eufrates e
do Jordão, pensou.
Dimas passou várias vezes a mão pela fronte e, tirando
a comprida navalha, principiou a afiar a ponta do
instrumento com que tinha vingado a morte do pai.
- Vamos, valor, Dimas! A morte é um instante: a vida é
longa e pesada quando se tem fome e se dorme ao relento.
Dirigiu-se resolutamente para o castelo, a cuja porta
bateu três vezes com uma pedra que apanhara no chão.
Ninguém respondeu. Então, seguro de que o castelo estava
abandonado, examinou com atenção o muro que o cercava e,
achando um pedaço derruido pelo qual se podia escalar a
fortaleza mais facilmente, começou a trepar pela muralha
com o punhal entre os dentes.

23
Se lhe tivesse fraqueado uma das mãos, se despegasse
uma pedra, com certeza sua morte seria inevitável, pois o
corpo, rolando no abismo, ter-se-ia desfeito em
sanguinolentos pedaços de encontro às salientes arestas da
rocha.
Por fim, depois de incalculáveis dificuldades, Dimas
chegou à plataforma da muralha com o rosto inundado de
suor e a mãos ensangüentadas. Em vão percorreu depois os
estreitos passadiços, as desertas habitações da tétrica
fortaleza: o desejado tesouro com que sonhara não lhe foi
possível encontrar. Indubitavelmente, os bandidos deviam ter
outro lugar onde ocultavam as rapinas. Depois de três horas
de minuciosas buscas, Dimas desesperou de o encontrar.
- Tudo me indica, disse ele consigo, que esta guarida é
habitada pelos bandidos samaritanos. Vi ossos frescos de
carneiro pelo chão e archotes resinosos apagados de fresco. É
o mesmo: vim por ouro e não o encontro; esperarei que
regressem, e depois eles mo darão. De todo jeito preciso de
um albergue e achei este castelo.
Assim pensando dirigiu-se para uma estância que já
antes tinha visto e que, segundo os seus cálculos, devia ser a
cozinha e a sala de jantar dos bandidos. Lá, começou
cuidadosamente a revistar todos os escaninhos escuros da
cozinha, e não levou muito tempo a descobrir uma perna de
carneiro suspensa em um gancho de ferro.
Seguindo avante nas suas investigações, achou algumas
ânforas com água, diversos odes de vinho e alguns sacos de
milho em várias concavidades praticadas na parede, e que à
primeira vista não tinha distinguido por causa da
obscuridade. Era a despensa dos bandidos, e Dimas tratou de
aproveitar o tempo. Resolvido a esperar os salteadores,
encaminhou-se para o fogão, que se achava, segundo o

24
costume dos hebreus, no meio da cozinha. Com grande
alegria, viu que entre as cinzas brilhavam algumas brasas,
A um canto da lareira havia algumas achas de lenha
seca e archotes resinosos. Dimas reanimou o fogo e acendeu
um archote, porque naquele lugar a claridade era pouca.
Depois colocou a perna de carneiro junto ao fogo e, enquanto
a assava, amassou um pão com a farinha amarela do milho e
a água das ânforas.
Meia hora, depois, o moço aventureiro comia
tranquilamente e bebia o delicioso sumo da uva, sentado na
cozinha do castelo. Achava-se nesta plácida ocupação o
ousado Dimas, quando distinguiu um ruído surdo nas
profundidades da terra, mas continuou a interrompida ceia,
encolhendo os ombros com indiferença. O ruído aproximava-
se cada vez mais. Dir-se-ia que falavam muitos homens,
arrastando ao mesmo tempo pesados fardos por baixo da
terra.
De repente ouviu-se um rumor áspero e singular no
pavimento como se tivessem corrido um ferrolho ou uma
tranca de ferro umedecido.
O órfão continuou a comer como se nada tivesse
ouvido; só por precaução pegou no punhal.
De repente abateu-se um pedaço do pavimento, e
Dimas viu ao seu lado uma abertura de cinco pés de
diâmetro. Em seguida duas mãos apoiaram-se à borda
daquela abertura e pouco depois, apareceu o corpo de um
homem, que saltou com ligeireza para dentro da cozinha.
Sem reparar em Dimas, porque depois de saltar
inclinou o corpo para o buraco, estendeu os braços, aos quais
se agarram outras mãos. Puxou-as para si com fôrça, e outro
homem saltou da cova à cozinha, como se a terra os

25
vomitasse, quatorze foragidos, de aspecto repugnante, de
sujo e descomposto trajo.
O primeiro efeito que produziu nos bandidos a presença
de um homem que tranquilamente comia na sua impenetrável
guarida, foi o da surpresas. Porém voltando a sim deram um
rugido e desembainhando os compridos punhais, arrojaram-
se sobre Dimas. Este pôs-se em pé de um salto, e
retrocedendo alguns passos com a navalha na mão, bradou
com firmeza:
- Vamos, companheiros! Os lobos não devem comer-se
uns aos outros. Além disso a ingratidão é um defeito
desprezível. Pelo santo altar de Sion! Preparei a ceia para vos
poupar trabalho, e quereis matar-me em paga do serviço que
acabo de vos prestar?
Os bandidos entreolharam-se com assombro.

CAPÍTULO V

DIMAS EMPENHA SUA HORA PARA PAGAR O SEU


PUNHAL

Entre os salteadores, entre essa gente que arrisca a vida


a todo momento e crava o punhal no peito do próximo com a
mesma indiferença com que esgota um copo de vinho, entre
essa raça de miseráveis, que pululam nos presídios e morrem
no cadafalso, nada é tão digno de admiração, assombro e até
respeito, como o valor pessoal.
Aquele moço imberbe, criança quase, fitava-os com
olhar sereno e sorriso nos lábios. Tinha o coração e o espírito
tranquilo ante as afiadas lontas dos punhais que lhe
ameaçavam a existência.

26
Só um homem ousado podia ter assaltado aquela
mansão de horror, que eles habitavam, aquele teatro das suas
cenas vandálicas, o espanto dos camponeses samaritanos.
Essas reflexões perpassaram indubitavelmente pelas
obtusas e selvagens imaginações dos bandidos e, sem o
poderem explicar, sentiram certa simpatia, certa admiração
para com o atrevido mancebo que desafiava o seu poder, e
que tinha com a sua audácia cativado os corações daqueles
homens empedernidos por uma vida de crimes e de sangue.
- Ninguém lhe toque! Exclamou um bandido cuja barba
branca, gesto altivo e luxuoso trajo diziam claramente que
devia ser o capitão.
E dirigindo-se ao jovem aventureiro, falou:
- Quem és?
- Um companheiro vosso; um rapaz que quer encetar o
lucrativo ofício que professais; que, admirado das vossas
proezas, deseja que o aperfeiçoes com o vosso saber nos
segredos da arte.
Os bandidos soltaram uma ruidosa gargalhada.
- Rides? Atalhou Dimas imitando a hilaridade dos
facínoras. – Estimo, pois vejo que já principiamos a ser
amigos. Vou, portanto, pedir-vos um favor. Quereis
emprestar-me vinte onças romanas?
Os bandidos entreolharam-se como querendo dizer:
“não já dúvida, o rapaz está doido”. Só o capitão não
demonstrou espanto com as palavras de Dimas. Seus olhos,
penetrantes como os da ave de rapina oculta nos matagais,
fitavam-se de um modo tenaz na franca e altiva fisionomia
do mancebo.
- Compreendo o vosso espanto, volveu Dimas, vendo
que ninguém lhe falava. Antes de pedir dinheiro devia ter-
nos explicado o motivo que me obriga a solicitar um

27
empréstimo, logo pela primeira vez que tenho a honra de
tratar convosco; porém pelo sombrio Balaal, a quem todos
pertencemos, suplico que vos senteis, e não me olheis com
olhos espantados.
Dimas contou em poucas palavras o que desde a morte
de seu pai havia sucedido em Jerusalém e seus arredores. Ao
terminar a narração, o velho capitão, que até então só
descerrara os lábios para impedir que a sua gente fizesse mal
ao atrevido hóspede, deu um murro terrível nos joelhos e,
deitando nas mãos de Dimas um punhado de moedas de
prata, exclamou com voz sonora:
- Toma e paga a tua dívida, mancebo, pois é sagrada. Se
fores ingrato, que Belzebu te envie às suas regiões
asquerosas, e sejas devorado por elas; se, porém, fores leal,
então que Gad2 te eleve sobre os raios da sua roda e te proteja
o corpo dos golpes do ferro homicida.
- Obrigado, capitão. Dimas te mostrará que não
semeaste o beneficio em terra infértil.
- O meu nome, repôs o velho capitão, é Abadon3 Sou
samaritano; não esqueças, pois, o que vou dizer-te: com a
mesma facilidade estenderei a mão para proteger-te como
para exterminar-te.
- Jamais o olvidarei. Agora dá-me licença para partir;
antes de quatro dias será a lua cheia, e daqui a Jerusalém há
três longas jornadas.
1 Belsebuth ou deus das moscas, adorado pelos filisteus. Chamava-se assim porque estava

sempre coberto de moacas por causa de se achar incessantemente borrifado de sangue.

(Lamy, Aparato Bíblico, liv. III, Cap. I)

2 Ídolo da fortuna

3 Anjo exterminador

28
- A paz de Deus seja contigo durante a viagem, falou
Abadon.
- E acrescentou, dirigindo-se a um dos bandidos:
- Uries1 , acompanha este rapaz pelo subterrâneo à
estrada dos romanos.
- Devo-lhe vendar-lhe os olhos? Perguntou Uries ao seu
capitão.
Abadon olhou um instante para Dimas: este manteve
aquele olhar com tal nobreza e serenidade, que o capitão
respondeu:
- Não é necessário; fio-me na sua palavra; porém
conduze-o pelo caminho comprido.
Uries levantou o alçapão e desapareceu por ele,
acompanhado de Dimas. Ambos por espaço de meia hora
caminharam por um subterrâneo. O caminho era escuro,
atmosfera pesada e salitrosa, refrescando com os seus
vapores as frontes de Dimas e de Uries.
- Por Jacó! exclamou Dimas, se não me dás a mão para
guiar, com certeza vou deixar os miolos em alguma destas
rochas que ameaçam cair sobre as nossas cabeças.
Segue-me sem receio; o piso é suave, e a abobada é tão
alta que Golia e Saff, se vivessem, poderiam passar sem
inclinar a cabeça.
E dizendo isto, o bandido estendeu a ponta do seu
manto a Dimas.
O jovem aventureiro sentia de vez em quando sobre o
rosto um ar fresco, que lhe indicava que alguns buracos
abertos na rocha permitiam a renovação do ar n’aquele
subterrâneo.
São respiradouros essas correntes de ar que se sentem
de tempos em tempos?

29
- São caminhos que vão ter a outras saídas. Oh! Se os
soldados de Herodes chegam algum dia a descobrir a nossa
guarida, há de ter bastante trabalho para darem conosco.
Dimas compreendeu que tratava com homens prudentes
e entendidos no ofício, e isto foi um motivo de jubilo para
ele. Por fim o bandido deteve-se, dizendo:
- Chegamos. Ajuda-me a erguer esta pedra....
Dimas obedeceu, e pouco depois via os raios da lua,
que brilhavam como fios de prata sobre o extenso vale que se
dilatava aos seus pés. O mancebo olho em torno para
reconhecer o terreno.
- Não vejo o castelo, disse.
- Fica da parte oposto do monte.
Começaram a saltar da rocha em rocha em direção à
planície. A noite estava clara e tranquila, e o zéfiro noturno
apenas tinha força para gritar as folhas das árvores.
1 Fogo do céu.

- Tu, que hás de ser prático no curso dos astros, sabes a


que horas estamos da noite? perguntou Dimas.
- É cedo; achamo-nos apenas à cabeça de osgelis;1
antes que chegue a hora do cantar do galo poderás encontrar-
te em Betel.
Uma vez ali, caminha sempre para o nascente,
marginando um arroio que te conduzirá ao Jordão, em
seguida torce em direção ao sul até encontrares Jericó; de
Jericó a Jerusalém ninguém se perde, pois a estrada romana
conduzir-te-á à cidade santa. Porém vou dar-te um conselho.
As estradas feitas pelos romanos, que Deus confunda, não
nos convém tanto como as veredas intransitáveis dos lobos.
Acredita-me, mas vale caminhar só, pelos bosques, que
acompanhado pelas estradas do César.

30
- Obrigado; seguirei teu conselho.
- Então a paz seja contigo; já chegamos ao lugar em
que é preciso separar-nos. Segue esse atalho que te conduzirá
a Betel. A noite está clara e, dormindo nós, a terra de
Samaria está mais segura que o palácio do Idomeu.1
Antes de nos separarmos quero fazer-te uma pergunta.
Quando eu voltar, por onde devo introduzir-me no castelo?
- Pela muralha, como fizeste hoje. Se não estivermos lá,
espera.
- Esta bem. Até daqui a alguns dias.
- Que Jeová te guie, e que tudo saia à medida dos teus
desejos.
- O mesmo te desejo eu.
Dimas tomou o atalho que conduzia a Betel, e Uries
principiou a subir a encosta do monte em direção à sua
guarida.
Dimas, enquanto caminhava, dizia a si mesmo,
acariciando as moedas de prata, que tão generosamente lhe
havia emprestado o velho capitão.
- A minha primeira aventura saiu melhor do que
esperava. Com este dinheiro poderei honrar a minha palavra
e, se encontrar o cadáver de meu pai, dar-lhe-ei uma
sepultura digna dele. Vamos, aceleremos o passo, pois, como
diz o rifão “quem paga descansa”.

CAPÍTULO VI

OS CADÁVERES

Dimas seguiu o conselho de Uries. Atravessando os


atalhos mais ínvios, chegou à torrente do Cedron três dias

31
depois, e entrando na cidade sacerdotal pela porta judicial,
dirigiu-se para a baixa Jerusalém, que era
1 Herodes o grande

onde morava o cuteleiro. O confiado artista achava-se


ocupado em afiar a ponta de um punhal, com o peito
inclinado sobre um rebolo, e bem longe por certo de
imaginar que o seu devedor viria interrompê-lo no trabalho a
que se entregava.
- A paz de Deus seja contigo; disse Dimas entrando.
- O cuteleiro ergueu a cabeça, sem suspender o
movimento do pé direito que fazia girar o rebolo, e fixou um
olhar indiferente no mancebo.
- Não me conheces? falou Dimas.
- Parece-me que já te vi em alguma parte.
- Há quinze dias, aqui, fizeste-me um favor, e venho
pagar-te.
- Ah! Exclamou o vendedor de punhais, recordo-me.
- Por sinal que me ofereceste...
- Vinte onças romanas. Aqui as tens, ajuntou Dimas.
- Tirando da bolsa as moedas foi colocando-as sobre
u’a mesa.
O tilintar da prata impressionou agradavelmente os
ouvidos do judeu, a julgar pelo sorriso que lhe animou o
rosto.
- Por Jacó e minha mãe! Não esperava que cumprisses a
palavra!
- Fizeste mal em desconfiar.
- Tens razão; no entanto as tuas palavras indicam-me
que fizeste fortuna, o que estimo.
- Herdaste de algum parente?

32
- Não.
- Encontrarias por fortuna algum tesouro no velho
palácio de Salomão?
- Também não. A minha fortuna tem uma origem que
não posso revelar; porém se não se riscar da tua memória o
meu nome, algum dia a saberás. Chamo-me Dimas, não o
esqueças. Grava bem na memória as cinco letras de que o
meu nome se compõe.
- Deus de justiça! Porventura serás o assassino do
sacerdote Isaac, d’esse velho avarento e de má condição, que
os céus confundam?
Sim, assassinei-o, porque assim devia fazê-lo: a
navalha que me vendeste foi o instrumento de que me servi.
Agradeço-te em nome de meu pai, e em meu nome entrego-
te as vinte onças romanas.
Dimas, sem esperar resposta, tomou pela rua adiante,
deixando o cuteleiro absorto e aturdido.
O jovem aventureiro encaminhou-se para o cemitério
dos leprosos onde, segundo lhe tinham dito, haviam os
coveiros enterrado o cadáver do pai. Restavam-lhe na bolsa
mais de dois mil óbolos e, firme no seu propósito, queria dar
honrosa sepultura ao autor dos seus dias. Porém tudo foi em
vão: três horas de escrupulosas pesquisas empregou naquela
hediondo esterquilínio, e por fim perdeu a esperança de achar
os restos do pai, que talvez houvessem servido de pasto aos
abutres e corvos que esvoaçam pela pesada atmosfera desses
lugares tão repugnantes.
Duas grossas lágrimas assomaram-lhe às pálpebras e
erguendo os olhos ao céu, murmurou:
- Meu pai e senhor, tu foste bom durante a tua vida, e
enquanto vivi ao teu lado fiz sempre por imitar a tua
honradez. Porque motivo ao veres a angústia de teu

33
filho, não me chamas para que possa dar-te
sepultura digna de ti?
- Tornou a curvar-se sobre a terra, e com auxílio da
navalha continuou a interrompida e penosa tarefa de remover
aquele montão de ossos e corrompidos cadáveres meio
insepultos, que os seus pés calçavam.
- Dimas procurava o cadáver do seu pai como se
aquela seca e estéril terra ocultasse um tesouro. O amor filial
fez-lhe esquecer que os raios abrasadores do sol lhe caiam
perpendicularmente sobre a cabeça. Aquele jovem moço
valente e formoso, coberto de suor, abstraído no trabalho,
indiferente a tudo, era na verdade um filho modelo.
- Cada cabeça que assomava à flor da terra era uma
esperança; porém quando os seus olhos, ao buscarem as
feições queridas do velho pai, se encontravam com o lívido e
decomposto cadáver de um desconhecido. Dimas então,
exalando um doloroso gemido, continuava a tarefa. Aquele
gemido doloroso era uma esperança que lhe fugia do
coração, esperança vencida pela realidade de um desengano.
- Morto de fadiga, sem alento, o pobre aventureiro
deixou-se cair à sombra de um salgueiro, sem esperança de
poder achar o cadáver do seu pai. Ali, só com a sua dor,
assaltou-o uma idéia terrível, e um sorriso feroz assomou aos
seus lábios.
- - Sim disse consigo, é isso; esta noite irei ao vale de
Josafá: procurarei o túmulo opulento do fariseu, desse velho
cruel que infamou o cadáver de meu pai; arrancarei a lousa
que o cobre, tirarei o corpo embalsamado desse miserável, e
deixa-lo-ei neste lugar imundo para que sirva de pasto às
carnívoras raposas que lhe despedaçarão a carne maldita,
enquanto o noturno onocrótalo1, pousando as férreas garras

34
na sua impura fronte, batendo as negras asas sobre a sua
insepulta cabeça, satisfeito o seu pio horrível, e preparará
para o festim os dois estômagos, famintos de carne humana.
- Dimas, depois de proferir tão terrível ameaça,
meneou a cabeça, como se as fúrias com o seu ardente e
impuro hálito. Com os lábios entreabertos, os olhos
brilhantes e encovados, o rosto decomposto, o belo
semblante de Dimas tinha o que quer fosse de terrível e
infernal.
- - Eu era bom, falou, e tu, fariseu, impeliste-me para
a senda do crime. Um mar de sangue estende-se aos meus
pés; minha vida será infame; minha morte, a cruz e o meu
corpo feito em pedaços talvez seja exposto nas estradas. De
tudo isto tens a culpa, avarento de coração de pedra. Maldito
sejas! Maldito sejas como a mulher impura até à décima
geração, a qual eu juro exterminar, enquanto o meu braço
tiver força para empunhar o punhal vingador!
- E Dimas, deixou cair a cabeça com abatimento
sobre as mãos. Assim permaneceu por bastante tempo. A
brisa da tarde começou a gemer por entre os ramos das
árvores, e ele ainda permanecia imóvel.
- O zéfiro noturno suspirou por entre as plantas do
campo, e Dimas não se movia do lugar onde estava.
- A lua banhou com os seus dúbios raios a cilíndrica e
alta torre de David, e Dimas continuou na mesma atitude,
mudo e silencioso. As cegonhas, dos altos mirantes de
Jerusalém, começaram a entoar os seus sentidos cantos, e um
mocho, pousando sobre os ramos da árvore ao pé da qual se
achava o jovem órfão, soltou ao vento o seu lúgubre e tétrico
pio.

35
- Então Dimas ergueu-se e olhou em torno de si,
como se despertasse de um sono profundo. O rosto havia
perdido a ferocidade que pouco antes demonstrara. O olhar,
triste e úmido ainda pelas lágrimas de fogo que derramara,
era doce e inofensivo.
- De repente, um suspiro angustioso e prolongado
escapou-se-lhe do de seu peito.
- - Não... mil vezes não! Jamais profanarei um
cadáver, jamais deixarei sem proteção as crianças e os
velhos. A velhice e a infância serão sempre veneradas por
Dimas o bandido. Perdoa, meu pai, vinguei-te em um
corpo vivo. Deixa-me respeitar a matéria inerte que serve
de sustento aos vermes da terra.
- Dimas, durante as horas da triste meditação
decorrida junto daquela árvore, mantivera uma luta
horrível entre o desejo da vingança e os bons e generosos
instintos do seu coração juvenil; e o coração sairá
vencedor. Desistindo dos seus planos, só um caminho se
abria ante os seus passos: o dos montes de Samaria.
Dirigiu-se, portanto, para eles, chegando quatro dias
depois, ao entardecer, junto dos muros da inexpugnável
fortaleza dos bandidos e entro nela como da primeira vez.
- Quando se achou dentro, dirigiu-se para a cozinha, e
achou-a deserta. Estendeu-se no chão e esperou.
Dimas tinha dezoito anos e o sono, nesta idade, não
tarda a fazer cerras as pálpebras. O jovem aventureiro
adormeceu com a mesma tranquilidade como se achasse
debaixo do teto hospitaleiro da casa de seu pai, quando o
sono inocente da adolescência sorria sobre a formosa cabeça.
Estava a noite bastante adiantada quando o alçapão, que
os nossos leitores já conhecem, se abriu para dar passagem

36
aos companheiros de Abadon. Desta vez vinham carregados
de despojos e, nas suas selvagens e ferozes fisionomias,
brilhava o contentamento.
Como na cozinha estava escuro, não repararam em
Dimas. O capitão mandou acender luz, e pouco depois as
negras paredes coloriram-se dessa claridade avermelhada que
os archotes resinosos expelem. Foi então que viram Dimas,
que dormia tranquilamente no duro e frio chão da cozinha.
Cumpriu a palavra, disse Abadon, dirigindo-se aos
seus. Parece-me que poderemos tirar proveito deste rapaz.

CAPÍTULO VII

O BATISTMO DE SANGUE

O órfão de Jerusalém pertenceu deste aquele dia à


terrível quadrilha dos samaritanos. Sua juventude, seu valor e
sua boa presença foram para os bandidos poderosos motivos
para que todos o olhassem com certa deferência, que não
escapou à perspicácia do jovem aventureiro. Além disso,
Abadon, velho encanecido no crime começou a tratá-lo como
filho. Seu coração empedernido nunca havia amado, e aquele
belo e temerário moço, que o acaso tinha lançado no seu
caminho, havia-lhe feito sentir essa suave simpatia, esse
aflam desinteressado e puro, que os pais sentem pelos filhos.
Dimas, medianamente instruído, nas Escrituras
sagradas por um rabino, amigo inseparável de seu pai, tinha a
vantagem de saber ler e escrever o hebreu com bastante
correção.
Algumas noites, quando os esculcas não traziam
notícias favoráveis e era preciso permanecer encerrado na
inexpugnável guarida, Dimas, que tinha comprado em

37
Sichem o Pentateuco1, lia-lhes as sagradas narrações que o
historiador dogmático, o insigne filósofo, o admirável
teólogo, o inspirado profeta Moisés havia escrito para os
descendentes de Abraão.

A sublime inspiração do Eterno, que transmitiu ao povo


israelita o seu ilustre caudilho e libertador, entretinha
agradavelmente aquele punhado de homens que o crime
havia expulsado da sociedade, obrigando-os a viver nas
brenhas mais recônditas como as carniceiras feras do deserto.
As vezes, quando Dimas, com meigo sentido acento
lhes transmitia as sábias narrações do legislador do Sinai, os
ferozes bandidos prorrompiam em espontâneas aclamações, e
a admiração para com o seu jovem companheiro chegava
até ao entusiasmo.
Então os bandidos aconselhavam Dimas abandonar o
seu nome que nenhuma significação divina tinha entre os
hebreus, e tomar outro que expressasse uma condição celeste
ou honrosa para aquele que o usasse.
Todos os sentimentos como um filho, gritava um
bandido: ponham-lhe o nome de Davi2, que é o nome que lhe
corresponde. Não, não, dizia outro. Jeová enviou-o para o
meio de nós, e portanto deve chamar-se Samuel3.
Dimas ouvia com o sorriso nos lábios as contendas dos
seus companheiros, e acabava por convencê-los que o nome
posto pelo pai era melhor e o único que devia trazer um filho.

1
Pentateucho, palavra grega que significa cinco volumes e que são: o Gênesis, o Exodo, o
Levítico, os Números e o Deuteronomio. É o único livro que os samaritanos veneram, tendo-o
como divino e como único.
2
Amado
3
Posto por Deus

38
Assim decorreram alguns meses. Dimas foi
insensivelmente incutindo naqueles corações algumas idéias
humanas, fazendo-lhes ver que nada podia engrandecê-los
tanto aos olhos dos israelitas como converter as suas
vandálicas empresas em heróicas e temerárias proezas de
soldados independentes.
Uma guerra de partido contra Herodes e os romanos era
o que Dimas, a coberto dos montes de Samaria, queria
compreender; porém os seus ferozes companheiros não se
decidiam a abandonar facilmente os costumes antigos. O
roubo e o crime nutriam-se no seu peito impuro,
contaminando-lhe o sangue, e quando se encanece em uma
profissão, adquirem-se certos hábitos que chegam a
encarnar-se no mesmo ser, formando uma segunda natureza,
que só abandona o individuo quando exala o último sopro da
vida.
Dimas conheceu que para conseguir seu intento era
preciso deixar correr o tempo e os acontecimentos, ou
rodear-se de nova gente por conseguinte resolveu esperar
melhor ocasião.
Uma noite os bandidos souberam pelos seus esculcas
que uma caravana que conduzia a Jerusalém preciosas
mercadorias de Tiro, havia acampado em um barranco das
cordilheiras de Jope.
Abadon tratou de a assaltar, e saiu da inacessível
guarida, seguido dos seus terríveis companheiros.
A noite estava clara e serena; brancas e vaporosas
nuvens como pequenos blocos de neve deslizavam pelo
límpido horizonte, salpicando o diáfano azul do céu com as
suas poéticas e caprichosas ondulações. As vezes a lua, como
as virgens de Sião, lançava os seus dúbios raios através de
um aéreo e delicado véu de renda. Era uma noite formosa e

39
poética, cheia de encanto, de mistério e doçura, e em que o
céu sorria e a terra exalava os perfumes do seu seio.
Uma noite serena dirige à alma o imenso tesouro de
encantos cheios de volúpia, enquanto a beleza do dia só nos
fala aos sentidos. O sol arranca lágrimas dos olhos e a lua,
suspiros do coração. A noite representa a bondade do
Criador, e o dia o poder e a força de Deus; por isso, enquanto
uma chora lágrimas doces e perfumadas como o rocio, o
outro fortalece e abrasa a terra com os seus raios de fogo.
Sem as formosas brisas da noite, sem a viração
perfumada do zéfiro noturno, o mundo seria um árido
deserto, um paramo inabitável.
Os salteadores deslizaram de rocha em rocha em
direção ao ponto indicado pelos esculcas. Seria meia noite
quando se detiveram no cume de um outeiro.
Uriés, que era o mais conhecedor do terreno, separou-se
dos companheiros para explorar as cercanias do outeiro, pois
segundo os seus cálculos, a caravana devia achar-se
acampada por aqueles sítios.
O bandido, arrastando-se como uma cobra, chegou sem
fazer barulho à borda de um barranco e, agarrando-se a uns
arbustos com as suas calosas mãos, inclinou-se sobre o
abismo para reconhecer o fundo do solitário vale, que se
dilatava para além do despenhadeiro. A noite estava clara, e
a lua deixava ver os objetos sem dificuldades. Uriés langou
os olhos pelo vale, e em seguida foi reunir-se aos seus
companheiros.
- Que há? Disse-lhe secamente o capitão ao vê-lo
chegar.
A caravana, como nos disseram, respondeu Uriés com
indiferença, acampou efetivamente no vale de Jope. Todos

40
dormem, camelos e homens, porém pareceu-me ver reluzir à
luz da lua o quer que era semelhante aos capacete romanos.
- Isso talvez seja apreensão tua, atalhou outro
bandido.
- Tenho bons olhos; já sabes que me engano poucas
vezes... mormente de noite.
- Nada tem de singular, tornou a dizer Abadon, que
em alguma cidade dos arredores se tenha reunido
um ou outro soldado à caravana.
- Quem sabe se os da caravana terão pedido um
Sichem uma escolta? Interveio Dimas.
- E que devemos fazer? perguntaram diversos
bandidos.
- Por Deus vivo! Que devemos fazer? Descer ao vale
e, sejam romanos ou herodianos, levarmos as suas
cabeças para o nosso capitão como troféu de
vitória, exclamou Dimas cheio de ardor.
- Tens razão: desçamos à planície, repôs o velho
capitão.
Pouco depois caíram de improviso sobre o
acampamento, envolvendo-o como em uma rede. Os
mercadores, surpreendidos no seu primeiro sono, acordaram
sobressaltados; o pânico apoderou-se deles e só pensaram em
fugir, deixando em poder dos terríveis inimigos as cargas e
os camelos. Porém não sucedeu o mesmo aos três soldados
romanos, que ao primeiro grito de alarma saltaram com
presteza sobre os cavalos, e armando as destras com a curta e
terrível espada que os fizera senhores do mundo, arrojaram-
se com ímpeto sobre os bandidos.
Um romano, principalmente um romano da Palestina,
no tempo de Herodes, julgar-se-ia desonrado se retrocedesse

41
diante de seis judeus, raça vencida e escrava, que os filhos do
Tibre olhavam com insultante desprezo. Os legionários do
Idumeu iam para Jerusalém. Tendo encontrado por acaso
aquela caravana, haviam-se unido a ela por esse espírito
sociável, que predominava nos soldados do Capitólio.
Os romanos, soltando um grito de guerra ao qual se
seguiram os nomes de Marte e Minerva, brandiram as
terríveis espadas sobre as cabeças dos bandidos; porém
aqueles israelitas não eram os covardes e fracos filhos da
cidade de Jerusalém: eram raios da montanha, soldados
ferozes do deserto, cujo renome terrível de habitantes do
monte Hebel lhes fazia centuplicar as forças.
Os romanos não podiam fazer mais que bater-se até
morrer, e assim o fizeram. Porém as suas mortes deviam
custar caro aos samaritanos.
Abadon, o velho capitão, ao querer cravar a sua lança
no peito do cavalo de um dos seus inimigos, recebeu um
terrível golpe no pescoço, pelo qual se esvaiu em sangue,
morrendo pouco depois. Dois bandidos mais tiveram a sorte
do seu chefe.
Dimas matou pelas suas mãos um dos legionários;
porém ao mesmo tempo recebeu uma cutilada na cabeça que
o fez vacilar, e que indubitavelmente seria secundada, se
Uries não viesse em seu auxílio cravando o punhal nas costas
do romano, que caiu do cavalo.
A lua, sempre clara e formosa, alumiou, com os seus
dúbios e poéticos raios aquele combate, aquela cena do
sangue em que seis homens haviam exalado o último alento e
seis ficado gravemente feridos.
Os bandidos, senhores do campo, dispunham-se a
carregar os camelos com o mais rico da preza e a colocar em
outros os que não podiam pelo seu estado andar o caminho a

42
pé; porém Dimas, que apesar do ferido não tinha perdido a
serenidade e o conhecimento deteve-os, dizendo-lhes:
Companheiros, antes de partir devemos dar sepultura
aos mortos, com o que honraremos os corpos dos nossos
camaradas, não deixando além disso vestígios desta
catástrofe que havemos experimentado, e que sempre poderia
alentar os nossos perseguidores.
Esta segunda razão convenceu os bandidos, que
imediatamente se puseram a cavar uma vala. Pouco depois,
romanos e samaritanos jaziam sepultados para sempre
debaixo do pesado manto de terra. Os bandidos abandonaram
o lugar do combate, mudos e cabisbaixos.
Dimas caminhava ao lado deles sem descerrar os
lábios. Pelas suas faces rolaram lágrimas. O velho capitão
havia-lhe demonstrado um afeito franco e desinteressado,
chamava-lhe filho, e o mancebo chorava pela memória do
segundo pai que acabava de perder.
Já o dia ia bem adiantado quando chegaram ao monte
Hebal. A poucos passos da entrada subterrânea os bandidos
detiveram-se.
- Que devemos fazer aos camelos? Perguntou Uriés
dirigindo-se a Dimas, como se este fosse o chefe da
quadrilha.
Descarregai-os e, em seguida, voltai-lhes a cabeça
para o lado do mar, dai-lhes a voz de marcha e que vão para
onde quiserem.
- Não seria melhor vende-los amanhã em Bethel?
disse um dos bandidos.
- Já disse que convém desorientar os nossos
perseguidores, e estes animais poderiam descobrir-
nos.

43
- Tens razão, - ajuntaram vários salteadores.
Descarregados os camelos, foram os animais colocados
como mandara Dimas, e os quadrúpedes largaram a trote
através do monte, em direção ao oeste.
Então os bandidos fizeram entrar a braço no castelo a
rica preza, que tanto sangue lhes havia custado. Naquela
noite Dimas foi proclamado capitão e ao tomar o comando
fez jurar três cousas aos seus subordinados: a primeira, que
amparariam sempre, mesmo com perigo de vida, todas as
crianças de menos de dez anos; a segunda, que respeitariam
em todas as ocasiões, todos os velhos; a terceira e última, que
nunca deixariam os cadáveres insepultos, havendo tempo
para cumprir tão santa tarefa.
Dimas fez compreender aos companheiros que, já que a
sorte os lançara na vida de aventureiros, o que não era muito
honroso, forçoso era que a guerra à sociedade se fizesse em
condições mais suaves; e visto que sua intenção não era
senão enriquecerem, se poderia conseguir sem necessidade
do terror, ao abrigo da sua bandeira do partido que como
bons israelitas, deviam levantar em defesa da pátria aviltada
pelos ímpios romanos.

As palavras de Dimas exaltaram os bandidos, chegando


alguns deles a sentir remorsos pelo sangue derramado e pelo
tempo perdido no roubo e no crime. Em seguida, olvidando o
capitão morto, beberam à saúde do capitão novo até caírem
ao solo, embriagados.
Desde então a quadrilha de Dimas, apesar de viver
ainda da rapinagem, começou a ser mais humana, chegando
com o tempo a formar não uma quadrilha de salteadores, mas
um grupo de homens livres, que amantes da lei, da religião e

44
da independência, faziam com suas espadas uma guerra
terrível aos soldados do tirano Herodes.
Agora retrocedamos ao capítulo segundo deste livro,
quando ao lívido clarão do relâmpago vimos deslizar pelos
tortuosos atalhos dos montes da Samaria oito bandidos de
feroz aspecto, entre os quais caminhava um mancebo armado
com uma lança curto e envolvido em um manto de lã de
camelo.
O mancebo era Dimas, que havia seis meses
capitaneava os foragidos, alcançando de dia para dia mais
afeto e domínio nos seus corações.
Explicado o procedimento do moço bandoleiro,
sigamo-lo, apesar da noite tempestuosa e das escabrosidades
do terreno.

CAPÍTULO VIII

UM GOLPE DADO EM FALSO

- Com que então, amigo Uries, dizia Dimas a um dos


bandidos que caminhavam a seu lado, com que então afirmas
que a caravana egípcia, apesar do seu aspecto pobre e
miserável, conduz um tesouro?
- O carregamento é de trigo fecundado pelas águas do
Nilo; porém nos sacos do cereal estão ocultadas duas
caixinhas construídas em Alexandria, que encerram um
tesouro. Uma vez repleta de ouro em pó; e outra, de pedras
preciosas; ambas são destinadas a César. Seus condutores
ignoram que entre o louro grão que transportam se esconde
uma verdadeira fortuna. O carregamento vai consignado a
um rico negociante de Cesaréia, em cujo porto está um navio
romano ancorado, para transportá-lo à cidade dos cônsules.

45
- Boa deve ser a presa para que os meus lobos
montanheses não te amaldiçoem por lhes teres feito
abandonar o castelo em uma noite como esta. Mas, por Deus
vivo! Muito me admira que tão preciosos tesouro não seja
escoltado por gente armada.
- Os negociantes egípcios são desconfiados, odeiam os
romanos e receiam ser roubados por aqueles mesmos a quem
confiam a guarda das suas caravanas mediante um salário.
- Não estarás enganado?
- Só Deus é infalível. No entanto, agouro um êxito feliz
a expedição.
- Que parte ofereceste a quem te revelou o segredo?
- Nada ofereci; foi ele que fez as suas exigências; de
maneira que, se nada lhe dermos, não faltaremos à nossa
palavra.
- Vejo que és astuto e prudente.
- Capitão, tenho quarenta anos, entrei no ofício de
salteador quando apenas tinhas forças para levantar do chão
uma lança como essa que trazes na mão. Era criança ainda e
o autor dos meus dias reconheceu que eu era um rapaz
aproveitável; portanto, serviu-se de mim dando-me a honrosa
e delicada profissão de espião. Tomei como um passatempo
aquela ocupação e desempenhei-a com o aflam com que a
infância faz as cousas que lhe agradam. Aos doze anos era eu
um modelo de astúcia, sagacidade e penetração. Não é
imodéstia. Dimas: todos os velhos bandidos da Palestina
tinham-se por modelo, e designavam-se como uma maravilha
da nossa arte. Não tenho sido capitão por dois motivos:
primeiro porque não sou ambicioso, e isto não quer dizer
que tu o sejas; e o segundo, porque sendo simples membro
de uma quadrilha, posso servir melhor os meus
companheiros e levar uma existência mais independente.

46
Como sabes, às vezes ausento-me por dez ou quinze dias;
durante este tempo percorro as dozes tribos: sou judeu entre
os da Judéia, galileu entre os da Galiléia, e samaritano na
Samaria. Quando me convém mudo tanto de nome como de
raça. Umas vezes sou mercador, outras sacerdote; introduzo-
me nas casas, e como tenho isso que chamam dom de
agradar, faço por ganhar a amizade e simpatia dos donos
delas, descubro os seus segredos, apodero-me dos seus
planos e negócios, e quando a minha memória reúne uma boa
quantidade de conhecimentos, volto ao velho castelo de
Hebal, onde os companheiros me esperam: informo-os
depois de tudo, e eles saem a colher o fruto dos meus
trabalhos, evitando-lhes deste modo que passem a noite em
um barranco, mortos de frio ou ensopados, esperando os
Viandantes, que muitas vezes não trazem mais que um saco
de negra cevada ou um punhado de farinha.
- És um sábio, Ureis, e os nossos companheiros fazem
bem em dar-te duas partes nas prezas.
- Ah, meu caro Dimas! Os homens são muito ingratos.
Estou certo de que, apesar do meu saber, qualquer dia, em
recompensa dos meus cuidados e desvelos, me pendurarão de
uma árvore, como fizeram a meu pai que sabia tanto como
eu.
- Dimas sorriu-se ao ouvir as palavras do bandido, que
era tido entre os seus camaradas, como o mais astuto da
quadrilha.
- Acredita, capitão, volveu Uries, o homem foi criado
para não fazer nada; estuda com atenção o seu corpo, e verás
que os seus braços se prestam mais a estirar-se em
preguiçosa atitude que a cavar a terra com pesada enxada. A
preguiça é natural; o trabalho é violento e impróprio. O
homem, se afadiga e trabalha, é porque crê que chegará um

47
dia em que não fará nada. Trabalhemos, pois, por algum
tempo, e em seguida a regalada preguiça nos reterá entre os
seus amantes e carinhosos braços.
- Uries terminou dando um bocejo que só um trovão
espantoso fez acabar.
- Temos má noite, disse um dos bandidos.
- Piores foram as do dilúvio, atalhou outro.
- Se a presa for tão pesada como a atmosfera, então
tudo correrá bem.
- Uries é um preguiçoso, e visto que nos fez sair do
castelo em noite tão ruim, por certo que não foi com o fim de
nos fazer dar um passeio por estes barrancos.
- Falai mais baixo, que chegamos, disse Uries,
aproximando-se dos camaradas. Por aqui deve passar a
caravana quando a luz da aurora romper no Oriente.
Então o melhor será emboscar-nos, atalhou um outro
bandido.
Vamos, rapazes, cada um procure ao abrigo de uma
rocha um refúgio contra o mau tempo, interveio Dimas em
voz baixa. Embrulhai-vos nas vossas capas e cuidado com o
sono. Ao primeiro grito de alarma, todos ao meu lado.
Os bandidos emboscaram-se do melhor modo que
puderam nas salientes rochas de um estreito barranco. Dimas
e Uries, desprezando a chuva, colocaram-se, envolvidos nas
mantas, junto a uma árvore corpulenta, à beira do caminho
por onde a caravana passaria.
Meia hora haveria que os bandidos se achavam
acampados no barranco, quando o canto monótono do cuco
principiou a ouvir-se. Uries ergueu-se como o chacal que
ouve os passos do caçador e os latidos do cão; que deu com o
rasto.
- Que há? perguntou Dimas sem altear a voz.

48
- Ignoro; porém aquele canto nada promete de bom.
- Nos nossos livros o cuco não é ave de mau agouro.
- Quem canto não é uma ave, mas um homem.
- Um homem! exclamou Dimas, empunhando a lança.
- Nada receies; é um amigo, um espião que me serve
bem. Breve sairemos das nossa dúvidas.
E Uries imitou de modo admirável o grasnido
estridente e desagradável do corvo.
Pouco depois um homem, salpicado de lama e
escorrendo água, apareceu dizendo:
- A paz seja contigo, amigo Uries.
Dimas olhou com assombro para aquele homem que
chegara até eles sem fazer o menor ruído.
- Contigo venha, amigo Adão, que notícias trazes?
Uma circunstância inesperada tirou-nos a presa. Os
condutores da caravana caminham a estas horas em direção a
Jericó entre duas alas de terciários romanos.
- Por Isaac, explica-te melhor e depressa! Exclamou
Dimas com impaciência.
- Não sabeis ainda a nova, repôs o espião, que agita o
povo de Israel, e faz estremecer o tirano Herodes no seu
palácio?
- Nas montanhas de Samaria só se ouvem os uivos dos
lobos, redarguiu o jovem capitão.
- Pois bem, na cidade santa conta-se que três mago
caldeus vieram a Judá em busca do Messias prometido. O
idumeu desejando apoderar-se desses estrangeiros, que
chegaram à suas terras para alentar as esperanças do povo
judeu com falsas novas, espalhou seus soldados por todas as
tribos. Os viajantes são detidos e interrogados; suas
mercadorias sofrem revista escrupulosa, e esta sorte coube
aos egípcios que esperáveis por este barranco, pois a estas

49
horas caminham para Jericó, custodiados pelos legionários
do rei de Jerusalém.
- De modo que o tesouro... disse Dimas.
- Vai cair em poder de Herodes, atalhou o espião que,
ao saber o seu destino, se apressara a remetê-lo para Roma
como uma manifestação do respeito, que lhe inspira a cidade
ímpia.
Dimas encolheu os ombros, e disse com impassível
entoação:
- A empresa malogrou; é preciso resignarmo-nos a
esperar ocasião melhor. No entanto, não deixaria de ser
conveniente continuar na pista da caravana.
- Sou da mesma opinião, disse Uries. Quem sabe?
Herodes pode confiscar o trigo e pô-lo à venda, e nesse caso
o melhor negócio é comprá-lo.
- E podes encarregar-te desse assunto?
- Com todo o gosto.
- Pois então, parte para Jericó; esperaremos notícias
tuas no castelo.
- A minha bolsa está vazia, capitão.
- Recebe este cinto: contém doze minas hebréias, que
te bastarão para comprar o carregamento; porém não olvides
o que pode tomar-se não se deve comprar, segundo os
regulamentos da nossa profissão.
E Dimas, dizendo isto, entregou a Uries um cinto de
couro que a sua farta túnica ocultava.
- Queres acompanhar-me Adão? perguntou Uries.
- Sim! Respondeu aquele fazendo um gesto de
indiferença.
Depois, o jovem capitão reunindo os companheiros, e
disse-lhes em duas palavras o que se havia passado, e o que
decidira. Ninguém proferiu uma palavra, nem uma queixa;

50
no entanto, os rostos dos bandidos manifestava-se claramente
o desgosto daquele contratempo.
Uries e Adão tomaram o caminho de Jericó, e os
bandidos dirigiram-se praguejando para os monte da
Samaria.
Tinha cessado a chuva; porém a noite continuava
escura, ouvindo-se de vez em quando a longínqua e
ameaçadora voz do trovão.
Os bandidos caminhavam taciturnos e cabisbaixos,
demonstrando o seu mau humor no mais pequeno incidente.
Tinham abandonado uma presa fabulosa, e voltavam
molhados enlameados, sem aumentar os seus cabedais com
um miserável óbolo sequer.
Já perto do castelo de Hebal, ao atravessarem um
fragoso barranco, ouviram passos.
Dimas fê-los parar e ocultar-se por detrás das sarças e
das salientes rochas. Entretanto, pelo ínvio barranco que ia
ter ao lugar em que estavam os bandidos emboscados,
caminhava um venerável ancião, envolvido no pardacento
manto dos galileus. Trazia um jumento pelas rédeas, e sobre
a modesta cavalgadura ia uma mulher jovem e um menino de
pouco meses.
A criança dormia no regaço materno, e estava
cuidadosamente envolvida em uma capa cor de corinto: a
mãe chorava em silêncio, e o ancião orava em voz baixa.
O trovão continuava a ribombar por cima das cabeças
dos pobres viandantes. De repente o ancião parou, porque ao
dobrar uma curva do barranco viu surgir um homem, que lhe
pôs ao peito as afiadas pontas de uma lança, bradando com
voz torva:
- Alto ou morres!

51
O ancião recuou dois passos, a mulher exalou um
grito e, estreitando o filho ao seio, exclamou:
- Deus de Sião, salvai o meu Jesus!

LIVRO SEGUNDO

ESTRELA DO MAR

Uma viagem conceberá e dará à luz um filho, que se


chamará Emmanuel, isto é , Deus conosco. Este filho, dado
milagrosamente ao mundo, será um rebento do tronco de
José, uma flor nascida da sua raiz. Será chamado o Deus
forte, o Pai dos séculos futuros, o Príncipe da paz. Será
levantado como um estandarte à vista dos povos; as nações
virão oferecer-lhes as suas homenagens, e o seu sepulcro
será glorioso. (Profecias de Isaias)

CAPÍTULO I

MARIA

Começa o livro da Virgem. A inspiração de Zorrila, o


gênio de Murilo, tornam-se pequenos ante a formosura da
Mãe aflita que chorou no cume do Gólgota a morte de seu
filho. A grandeza de Maria é divina, e por isso não chega a
ela o talento humano.
Perdoa, pois, ó Virgem, se a minha insuficiência se
atreve a narrar a tua história dolorosa. A fé cristã dá alento às
minhas mesquinhas forças; o teu nome glorioso dará cor às
minhas pálidas idéias; em ti confio para levar a cabo a
penosa peregrinação que impus a mim mesmo.

52
Nazaré, a pátria de uma Virgem, o berço de um Deus,
envolta ainda nas últimas sombras da noite, dorme tranquila
a um extremo do pitoresco vale de Esdrelon. A vontade
suprema do Criador colocou-a no seio de duas colinas que,
mães carinhosas, a cingem com os seus robustos braços a fim
de a livrarem das tormentas outonais.
Nazaré, azulada pomba do Oriente, que formaste o teu
ninho à sombra de Hermon para te embriagares com o
perfume que te enviam os floridos campos de Canaã que
foram em tempo o cobiçado jardim da tribo israelita de
Zabulon; modesta açucena dos vales, em cujo cálice
depositou Deus a pérola do Oriente, o grão de ouro do
Cristianismo; ... Jerusalém, Séfora e Beiruth olharam-te com
desprezo porque se julgavam rainhas da Palestina, porque
ignoravam que tu estavas destinada a ser o ninho santo
anunciado nas profecias, a fonte inesgotável da salvação da
alma, o sol esplêndido da fé e da esperança.
O rocio celeste cai sobre os teus campos; Jeová salda-
te do seu trono de luz, e os anjos cantam o hino da benvinda,
porque as profecias vão cumprir-se.
Uma menina, formosa como a estrela da manhã, acaba
de respirar o primeiro sopro da vida e de seu peito virginal
sai um gemido de dor. E o primeiro de um Ente que nasce, de
um Ente que vem ao mundo interceder eternamente por nós.
Seu berço não se cobre com as ricas colchas do Egito,
nem se atavia com o ouro da Pérsia. Os seus vestidos não se
perfumam com a essência do nardo, nem se acende mirra
nem óleo balsâmico em turíbulos de prata, como se faz aos
príncipes hebreus.
Pobre e tosco linho lhe cobre os delicados membros;
uma choça a alberga e humildes mulheres do povo rodeiam o
seu berço e recebem o seu primeiro sorriso.

53
No entanto, aquela débil criatura nasceu com o destino
de ser Rainha dos céus, a mãe dos anjos, a Esposa de Deus.
Os conquistadores da terra deporão os cetros aos seus pés, os
reis curvarão ante Ela as altivas frontes, e os aflitos,
implorando a sua proteção irão adorá-la de joelhos ante os
altares levantados pela fé cristã. Porque Ela será o bálsamo
universal das dores humanas, a esperança do náufrago e a
consolação dos tristes.
Seu nome glorioso será invocado nos momentos
angustiosos da vida, porque Deus escolheu-a para gerar em
seu seio o Verbo Divino, que em forma de homem há de
remir com o seu precioso sangue os pecados nefandos da
humanidade. Porque Ela será “um tronco liso e brilhante em
que nunca se encontrará, nem o nó do pecado original, nem
o córtex do pecado atual”1
O seu nome será para os aflitos “mais doce aos lábios
que um favo de mel, mais apreciável ao ouvido que um
cântico suave, mais delicioso ao coração que a alegria mais
pura”2
Porém, não adiantemos os sucessos. Sigamos as
sagradas tradições do Oriente, e com elas à vista e a fé na
alma, Deus nos dará forças para levarmos ao fim a difícil
peregrinação que impusemos a nós mesmos.

Em Nazaré, pequena cidade da baixa Galiléia, vivia


um homem honrado, conhecido pelo nome de Joaquim, da
tribo da Judá e da descendência de Davi por Natã. Sua
esposa chamava-se Ana.

1
Santo Ambrósio
2
Santo Antônio de Pádua

54
Ambos eram bons e observavam com a fé no coração
os mandamentos de Jeová; porém o Senhor afastava deles os
olhos, e Ana era estéril depois de vinte anos de casada.
Joaquim podia quebrar aqueles infecundos laços,
dando a sua mulher a carta de divórcio, que a lei dos fariseus
com tanta facilidade concedia.
Lei bárbara e desumana, em que as esposas se
convertiam em escravas e os maridos em despóticos
senhores.
Ana, pois, vivia triste, porque a esterilidade era olhada
em Israel como um opróbrio. Porém Joaquim amava a
esposa, e vivia resignado entre o trabalho, a oração e a
esmola. Pediam a Deus com fervor que lhe concedessem um
herdeiro, para se verem limpos da mancha que sobre eles
pesava; e Deus ouviu as suas súplicas, porque saiam de dois
corações puros. Ana sentiu agitar-se nas suas entranhas o
gérmen de um novo ser, e louca de alegria, participou-o a seu
esposo.
Passou um lua e outro lua, e por fim em uma manhã
do mês de Tirsi1 Ana foi mãe, e Joaquim apresentou aos
parentes e amigos uma menina, formosa como um anjo, loira
como o ouro em pó dos mercadores do Egito.
Nove dias depois, segundo os costumes judaicos,
reuniram-se todos na casa paterna para porém um nome à
tenra criança. O pai pôs-lhe o mais formoso, o mais sublime
que ainda combinaram as letras do alfabeto, porque ele só
encerra um poema de ternura inesgotável.
Este nome era Mirian (Maria) nome que um língua
siríaca significa Soberana, e na hebréia Estrela do Mar.

1
Segundo a opinião de alguns orientalistas a Virgem Maria nasceu a 8 de setembro (Tori, primeiro
mês civil dos judeus) do ano 734 de Roma e 21 antes de Cristo. A hora do seu nascimento foi ao
amanhecer, e a dia sábado.

55
E como dar-lhe outro nome que melhor explicasse a
alta dignidade da Virgem, que havia de gerar em seu seio o
mártir do Calvário?
S. Bernardo disse: “Maria é com efeito aquela
formosa e brilhante estrela que brilha sempre sobre o mar
vasto e tempestuoso do mundo”.
A mulher hebréia purificava-se solenemente no
templo oitenta dias depois do parto, oferecendo no altar
sagrado um cordeirinho branco ou duas rolas, sendo pobre,
ou uma coroa de ouro, sendo rica.
Ana era pobre, e ofereceu uma rola para o sacrifício;
porém grata ao preciosismo dom que Jeová lhe concedera,
empenhou a palavra de consagrar a filha ao serviço do
templo, logo que aquela tenra flor soubesse distinguir o bem
do mal.
Ana criou Maria ao peito, porque Judá as mães tinham
a obrigação de amamentar os filhos.1
Estranho a formosa criança desde os seus mais tenros
anos aos brinquedos da infância, cresceu entre a meditação e
as tenras carícias de seus pais. Aos três anos era olhada com
respeito por todos os humildes habitantes de Nazaré. Nos
seus olhos, azuis como o céu do Oriente, brilhava um reflexo
de luz divina. Seus lábios, nacarados como as pétalas dos
cravos de Jericó, tinham sempre um sorriso de indefinível
doçura para todos os que se acercavam dela. Os abundantes
anéis dos seus louros cabelos caíam como chuva de ouro
sobre a modesta túnica de lã azul, que lhe cobria a delicada
carne.
Em certas tardes, na pitoresca estação da primavera,
seu pai levava-a a passear pelos floridos jardins do vale de
1
Em todos os livros da Escritura não se encontram senão três amas: a de Rebeca, a de Mefibosél e
a de Joás. Deve notar-se que Rebeca, a esposa de Isaac, era estrangeira; e os outros princípes

56
Esdrelon. A formosa criança, sentada à sombra de um
daqueles salgueiros, que tantas vezes abrigaram as caravanas
árabes1, comprazia-se em estender a vista pelo claro e
diáfano céu da Galiléia. Durante estes momentos de
contemplação celeste, o pai não se atrevia a interrompê-la,
pois, julgava-a inspirada por alguma revelação divina.
Ao voltar para casa, com as pequeninas mãos, brancas
e finas como a flor do terebinto, fazia um ramo de narcisos,
anêmonas e açucenas, e durante o caminho deleitava-se em
aspirar o seu delicado perfume. Muitas vezes o pai colhia-lhe
o dourado fruto do sicômoro e do platâno; a formosa criança
guardava-o e, ao chegar à povoação oferecia-o à mãe.
Maria chegou à idade fixada por seu pais para ser
entregue, conforme haviam prometido, ao templo sagrado,
como uma das virgens de Israel. Os parentes de Joaquim
dispuseram-se a acompanhá-la, pois segundo os costumes
hebreus deviam presenciar a sagrada cerimônia.
A humilde caravana saiu por conseguinte de Nazaré
em direção a Jerusalém. Estava-se na estação das chuvas. O
Cison, seco durante os ardentes meses do estio, arrastava
sobre o seu leito de areia vermelhas e túrbidas águas. Os
viandantes evitaram o perigo que o rio lhes oferecia,
tomando as encostas balsâmicas do monte Carmelo e a fértil
e arenosa planície de Saron, semeada por todas as partes de
laranjeiras, palmeiras e abetos. Depois de alguns dias de
viagem, chegaram por fim à populosa cidade de Jerusalém, e
entraram nela pela porta de Efraim.

CAPÍTULO II

1
A caravana mais numerosa podia abrigar-se em torno dos seus troncos colosais (Lamart, Viagem
á Palestina)

57
A VIRGEM DE SION

Alguns dias depois os pais, seguidos de numerosos


parentes e ataviados com os vestidos de gala, dirigiram-se
para o templo. Joaquim levava nos braços o cordeiro sem
mácula que devia oferecer ao Senhor. A esposa conduzia
Maria, sua filha. A menina levava nas suas pequeninas mãos,
envolvida em uma toalha de alvo linho, a flor de farina
indispensável ao sacrifício.
Ouçamos o que diz o abade Orsini da apresentação de
Maria: “Atravessando o pátio exterior, onde qualquer
estrangeiro devia deter os passos sob pena de morte, o
séqüito aumentou com bom número de empregados do rei,
de fariseus, de doutores e damas ilustres que uma disposição
oculta da Providência reunira por acaso nos pórticos de
Salomão. A comitiva deteve-se no estrado de mármore do
chel1. Ali os fariseus estenderam os seus thephllins2, e
cobriram as frontes orgulhosas com um dos panos do seu
talet3 de lã branca e fina, guarnecido de granadas purpurinas
e de cordões cor de jacinto. Os valentes capitães de Herodes
envolveram-se nos seus ricos mantos presos com broches de
ouro, e as filhas de Sion velaram mais os rostos com os véus
em respeito aos anjos do santuário.
“A divina donzela e a brilhante comitiva transpuseram
a porta de bronze que fechava aos profanos o sagrado
recinto. A porta de Nicanor girou sobre os gonzos para
deixar passar a vítima, e ofereceu em perspectiva o tempo de
1
Espaço de dez covados entre o pátio dos gentios e das mulheres.
2
Tephilim, pequeno pedaço de pergaminho, sobre o qual os fariseus escreviam com tinta feita de
próposito versículos da Escritura, colocando-o depois no braço direito ou ao meio da testa. Estava
isto muito em voga no tempo de Cristo e era um sinal de distinção. (Bernage, Hist. dos Judeus,
livro VII, cap. VII
3
Talet, manto quadrado que os judeus levavam para fazerem a oração, e com o qual cobriam o
rosto.

58
Zorobabel com as suas coroas votivas, as suas portas
forradas de folhas de ouro, as suas paredes construídas de
pedras enormes e polidas, nas quais as mãos dos séculos
haviam deixado essa cor de folha seca que distingue os
antigos edifícios do Oriente. Tudo era grande e venerável na
casa de Jeová, e no entanto, apesar da sua magnificência,
quanto decairá do seu esplendor e santidade! Um não sei que
de defeituoso e incompleto fazia-se sentir até nas cerimônias
mais imponentes. Os seus sacerdotes já não eram os ungidos
do Senhor; a Arca santa havia desaparecido. Porém ia
brilhar um dia glorioso e o Oriente começava a iluminar-se.
“Os sacerdotes e os levitas, reunidos no último degrau
do estrado, receberam das mãos de Joaquim a vítima da
prosperidade
Estes ministros do Deus vivo não tinha a fronte cingida
de louro e de ápio verde, como os sacerdotes dos ídolos: uma
espécie de mitra arredondada, de um espesso tecido de linho,
uma túnica comprida, também de linho, branca e pouco
farta, apertada por um cinto bordado a ouro, compunha o
traje sacerdotal que não se usava senão no templo.
“Depois de ter deitado sobre o ombro esquerdo as
pontas flutuantes do cinto, um dos echaneos1 pegou no
cordeio cuja cabeça virou para o norte, e enterrando-lhe no
pescoço o cutelo sagrado, pronunciou uma breve invocação
ao Deus de Jacó. O sangue, que caía em um vaso de bronze,
ficou reservado para recear os cornos do altar2.
“Feito isto, o sacrificador amontou em larga salva de
ouro as entranhas, os rins, o fígado, a cauda e as mais partes
da vítima, que vários levitas lhe apresentavam
1
Sacrificador ordinário
2
Nos quatros cantos do altar dos holocaustos havia quatro pilares pequenos e ocos, por onde se via
o sangue das vítimas. Eram estes os cornos do altar em que tanto fala a Sagrada Escritura. ( Hist.
dos Judeus)

59
sucessivamente1; depois de as ter lavado com cuidado na sala
da fonte, deitou sobre a oferenda incenso e sal; em seguida,
subindo com os pés descalços a suave escada que ia ter à
plataforma do altar dos holocaustos, fez libações de vinho e
sangue, lançou à chama brilhante, a qual nenhum sopro
humano havia acendido2 um pouco de flor de farinha diluída
em um copo de ouro com azeite do mais puro, e colocou
finalmente a oferenda da paz sobre os ardentes lenhos que
tinham saído do bosque de Sichem3 e que os oficiais
superiores do templo haviam examinado com cuidado e
despojado das suas cascas.
“O resto da vítima, exceto o peito e a espádua direita
que pertenciam aos sacrificadores, foi entregue ao esposo de
Sant’Ana, que dividiu pelos seus parentes mais próximos,
segundo o costume do seu povo.
“Os últimos sons das trombetas sacerdotais ecoaram ao
longo dos pórticos; e o sacrifício ardia ainda sobre o altar de
bronze quando um ministro do templo desceu ao átrio das
mulheres para determinar a cerimônia.
“Ana, seguida de Joaquim, levando sua filha nos
braços, com a cabeça coberta por um véu, adiantou-se para o
ministro do Altíssimo e apresentou-lhe a jovem serva do
Senhor, pronunciando comovida estas ternas palavras:
“Venho oferecer-vos o dom que Deus me fez”.
O sacrificador hebreu aceitou, em nome do Anjo, que
fecunda o seio das mães, o depósito precioso, que a gratidão

1
Besnage afirma que para o simples sacrifício de um cordeiro empregavam-se dezoito
sacrificadores
2
Os judeus não se serviam nem do sôpro da boca, nem de foles para acenderem o fogo do altar;
excitavam a chama derramando óleo sobre os carvões acesos. – (Hist. dos Judeus)
3
Território de Nauplus (Turquia asiática) único bosque d’onde se tirava a lenha para os sacrifícios.
– (Correspondência do Oriente, tomo IV)

60
lhe confiava, e abençoou os santos esposos, como Heli1, o
pontífice, havia abençoado em outro tempo e em
circunstâncias idênticas o piedoso Elcana e sua ditosa esposa.
Em seguida estendeu as mãos sobre a assembléia em que se
inclinava à sua benção pontificial2, exclamou: Oh Israel,
que o Eterno dirija, sobre ti a sua luz, e te faça prosperar
em todas as cousas e te conceda paz.
“Um cântico de gozo e de ação de graças,
harmoniosamente acompanhado pelas harpas sacerdotais,
terminou a apresentação da Virgem”.
Tal foi a cerimônia que teve lugar no templo de Sion
nos últimos dias de novembro.
Zacarias, príncipe dos sacerdotes de Ain e parente de
Joaquim e Ana, foi quem recebeu a meiga Virgem dos braços
de sua mãe, para depositar ao lado das suas companheiras na
casa de Deus.
Desde aquele dia, as piedosas matronas, que eram
responsáveis perante os sacerdotes pelo precioso depósito
que lhes era confiado, olharam com respeito para a terna
adolescente, cuja bondade e formosura as subjugava. O seu
retiro no templo não foi uma clausura monástica. Os pais,
que desde o momento da apresentação se domiciliaram em
Jerusalém, visitavam-na com frequência. Todas as tardes,
quando os raios do sol começavam a iluminar com a
vermelha luz do crepúsculo as cordilheiras do Tabor, e as
águias, abandonando os seus negros ninhos do Líbano,
pairavam com preguiçoso vôo sobre os brancos e elevados

1
Gran sacerdote hebraico e descendente de Sansão, que morreu ao saber que os filisteus se haviam
apoderado da Arca santa, no ano de 1112 antes de Cristo.
2
Enquanto o pontífice dava a benção, o povo era obrigado a tapar dos olhos com as mãos, afim de
não vêr a mão do sacerdote, cousa que não era permitida. Os judeus imaginavam que Deus estava
atrás do sacerdote, e os olhava através das suas mãos estendidas, e não se atreviam a levantar os
olhos para êle, porque ninguém pode vêr Deus e viver ao mesmo tempo. (Besnage, liv VII)

61
minaretes de Jerusalém, Maria, coberta com pudico véu das
virgens, e seguida das suas companheiras, entoava com
fervoroso acento junto ao altar, as orações de Extra; e Deus
de Sion indubitavelmente ouvia a sua doce súplica, que do pó
da terra se elevava até o santuário do paraíso, expressa neste
poético e santo estilo:
“Oh Deus!, Que vosso nome seja santificado neste
mundo que criastes segundo a vossa vontade: fazei reinar o
vosso reino: que a redenção floresça e que o Messias apareça
sobre a terra1.
Isto entoavam ao som das melodiosas harpas as virgens
do templo, e o povo respondia-lhes com fervor, inclinando as
frontes para o chão: “Amém, amém!”
Em seguida repetiam os inspirados versículos do belo
salmo dos profetas Ageu e Zacarias:
“O senhor levanta os que estão caídos, e ama os que
são justos.
“O senhor protege os estrangeiros: Ele protegerá
também a órfã e a viúva, e destruirá o caminho dos
pecadores.
“O senhor reinará em todos os séculos: o teu Deus, ó
Sion, reinará em todas as gerações”.
Maria permaneceu no templo de Salomão até aos
quinze anos, sendo modelo de virtude e santidade entre as
suas companheiras.
As horas que os ofícios divinos lhe deixavam livres
empregava-os em bordar, em outros lavores delicados e no
estudo dos livros sagrados. A sua habilidade sem par em fiar
o linho, chegou até nós em uma tradição oriental, que

1
Esta oração é a mais antiga de tôdas as que os judeus conservam; alguns escritores respeitáveis
afirmam que estava em uso antes de Cristo, e que os Apóstolos a adotaram com preferência na
Sinagoga.

62
designa com o nome de Fio da Virgem1 essas rendas finas e
delicadas que parecem desfazer-se ao menor sopro. Aos
quinze anos, Maria era, segundo S. Dionízio Areopagita,
contemporâneo da Virgem, e que teve a incomparável
ventura de ver a casta luz dos seus olhos e ouvir sua voz,
formosa até ao deslumbramento, e que a teria adorado
como a um Deus, se não soubesse que havia um só.
Santo Epifânio, no século IV, descreve-a deste modo:
“A sua estatura era mais que mediana; a tez, levemente
dourada, como a da Sulamita, pelo sol da sua pátria,
tinha o esplêndido matiz das espigas do Egito; seus
cabelos eram louros, os olhos vivos tirando um pouco a
cor de azeitona2; tinha as sobrancelhas perfeitamente
arqueadas e do negro mais formoso; o nariz . de uma
perfeição notável, era aquilino, os lábios rosados, o
semblante formosamente oval e as suas mãos delgadas e
compridas”.
Por conseguinte Maria, segundo o parecer de alguns
sábios correntadores da Escritura Sagrada, encerrava em si só
todos os ricos tesouros da beleza, caridade, valor e virtude,
que o grandioso catálogo das mulheres da Bíblia poderia
reunir.
Na pura e imaculada urna, que encerrava o seu espírito,
haviam-se reunido todas as perfeições que o Eterno pode
conceder à criatura.
A mãe de Deus não se concebe de outro modo. A
importante, a dolorosa, a regeneradora missão a que estava
destinada, desde o momento em o seu seio virginal respirou
na terra dos homens o primeiro sopro da existência,
1
Os tecelões franceses da Idade Média, em comemoração de Maria, levavam nas festividades um
estandarte com uma Virgem e uma legenda que dizia: Nossa Senhora, a rica.
2
As azeitonas na Palestina são de um verde azulado.

63
unicamente uma mulher bafejada pelo sopro de Deus, a
podia levar a cabo.
Por isso Deus, que a encolhera para que o mundo a
invocasse no porvir com o excelso nome de sua Mãe, fez
com que Maria fosse casta como Suzana, bela e valorosa
com Ester, a hebréia que evitou o extermínio dos seus
compatrícios, prudente como Abigail, esposa de Davi,
previdente como a profetisa Débora, que soube governar o
povo israelita e salvá-lo da dominação dos cananeus, sofrida
e resinada, enfim, como a mãe imortal dos Macabeus.
Terminaremos o retrato da Virgem, dizendo que Maria falava
pouco, que era simples nas suas palavras e modesta no seu
porte; e não gostava de deixar-se ver, apesar de jovem e
formosa
Assim se achavam as cousas, quando no céu soou a
hora de começarem as lágrimas a embaciar as límpidas
pupilas da Virgem. Aprouve a Deus dar princípio a terrível
prova a que a destinara. Zacarias, gran-sacerdote e parente de
Maria, entrou uma tarde na sua ceia e disse-lhe:
- Cobre a cabeça com o teu manto, e segue-me
- Para onde, senhor?
- No seu leito de morte está um homem exalando o
último suspiro da vida. Jeová o está chamando para a casa
dos vivo1, e antes de deixar os parentes para sempre quer
abençoar-te.
- É meu pai, exclamou Maria na dor mais cruel.
- Sim, é teu pai, respondeu o sacerdote, com acento
religioso. Joaquim morreu, como morrem os justos: rodeado
da família, e ouvindo em torno de si as orações e os soluços
dos parentes e amigos.
1
O sepulcro chama-se entre os judeus a “casa dos vivos”, para mostrar que a alma imortal aind
vive depois de se separar da matéria. – (Besnage, liv VII, cap. XXIV)

64
Maria fechou-lhe os olhos, e acompanhou com sua mãe
o cadáver à última morada, segundo o costume dos hebreus.
No entanto, este golpe cruel não veio só; outro os seguiu,
mais terrível, se é possível, que deixou a imaculada Maria
órfã e inconsolável. O seu coração começou a ser traspassado
de cruéis feridas, que foram o prelúdio de outras mil que a
esperavam.
A mortuária lâmpada ainda não se tinha apagado na
habitação da viúva. O grosseiro camelote1 ainda envolvia as
formas da Virgem, que tinha os pequeninos pés descalços,
quando um segundo emissário foi ao templo anunciar-lhe
que tinha a mãe a expirar. A jovem, acompanhada por uma
das matronas do templo correu para junto do leito de sua
mãe. Era noite: junto à modesta porta da casa de Ana, Maria
viu um carpideira acocorada, que lançava ao vento gemidos.
- Mulher, perguntou a Virgem, por desgraça morreria a
mãe da minha alma?
- Não, respondeu a carpideira, ainda vive; porém as
minhas lágrimas anunciam, que a sua a última hora está
próxima.
O orvalho da manhã, ao cair do céu, encontrou a alma
de Ana, que se elevava ao trono do Senhor. Maria estava
órfã, e por conseguinte, livre e senhora das suas ações. Ela
porém escolheu a Casa de Deus como refúgio ao seus
despedaçado coração.
Sua dor foi angustiosa, imensa, mas resignada. Do
mais íntimo da sua alma virginal soltaram-se preciosas e
abundantes lágrimas, porque o seu coração, fonte de
inesgotável ternura, jamais secou. Por conseguinte elevando
ao céu o rosto dolorido e os olhos lacrimosos, exclamava
com doloroso acento, esgotando o calix da amargura:
1
Túnica de luto de lã de camelo

65
- Oh! Jeová! Faça-me a vossa vontade!
Maria acendeu a lâmpada na Sinagoga, testemunha
muda da sua dor, que pedia orações para aquele que lhe dera
o ser; e jejuou por espaço de onze meses todas as semanas no
mesmo dia em que ficara órfã.1 Maria, ainda que pobre, teve
tutores da ordem sacerdotal.
Zacarias, esposo de Isabel e pai de S. João Batista, o
Precursor de Cristo, foi o tutor que Joaquim escolheu para
sua filha na hora da morte.
CAPÍTULO III

O ANEL DE OURO

Moisés disse: “Quem não deixar descendência em


Israel, será maldito”.
Por conseguinte, a lei obrigava Maria a tomar esposo.
Os pais de Batista, desse mártir do capricho de uma
rainha impura, viviam em Ain, pequena povoação situada a
duas léguas ao sul de Jerusalém. Não fazendo caso das
repetidas súplicas da sua pupila, que se obstinava a passar o
resto dos seus dias no templo de Sion, convocaram todos os
parentes da linhagem de Davi e da tribo de Judá.
Um descendente de Davi não podia subtrair-se ao jugo
do matrimônio. Os profetas haviam anunciado que de um
ramo verde e formoso sairia o Messias desejado, o Salvador
de Israel. Aquele que devia colocar o estandarte dos
Macabeus sobre os templos pagãos da ímpia Roma; e os
judeus regozijavam-se de ver nos seus sonhos de vingança o
assombro e o espanto, com que os escravos do Tibre leriam
estes rubros caracteres da sua gloriosa bandeira: Qual de
entre os deuses é semelhante a ti, ò Eterno?
1
Este jejum era a abstinência completa de todo e qualquer alimento por espaço de 24 horas.

66
Estas cousas eram a esperança do povo Israelita desde
que os assírios, derrotando-o com suas vencedoras legiões, o
levaram cativo para as margens do Eufrates.
Israel chorou lágrimas de dor na impura Babilônia; as
harpas de Judá perderam as suas doces melodias, e os vasos
sagrados do templo de Sião foram depositados aos pés do
ídolo Belo, como se Jeová pudesse tributar homenagens aos
deus sangrento dos babilônios.
Maria, pois, era uma esperança para o povo de Abraão.
A violeta perfumada de Nazaré, o verde rebento do rei dos
Cânticos, devia unir-se a um homem da sua raça, cuja
limpeza de sangue fosse tão pura, tão imaculada, como a que
girava pelas azuladas veias da Estrela do Mar.
Segundo as sagradas tradições, vinte e quatro
pretendentes aspiraram à mão da Virgem. Entre eles
encontrava-se José, o carpinteiro de Nazaré, e Agabuz, o
nobre jerosolimitano.
José era pobre, humilde e ganhava o sustento com o
trabalho das suas mãos. Teria quarenta anos,1 e a sua
veneranda cabeça achava-se coberta de cans.
Agabuz era jovem, rico e formoso. A sua linhagem das
mais nobres, e a sua família das mais poderosas de Judá. Um
oferecia à virgem uma vida de privações; o outro uma
existência de luxo e abundância. José dava-lhe o humilde
saio do pobre e o duro pão do jornaleiro. Agabuz ter-lhe-ia
lançado aos pés preciosas telas do Egito, e adornado os seus
braços com ouro e pérolas da Pérsia.
Porém os sacerdotes desprezaram as riquezas, e
escolheram o pobre carpinteiro de Nazaré. Deus havia-lhes
1
Alguns escritores atribuem a S. José oitenta anos na época do seu casamento; porém entre os
hebreus, a união de um velho com uma jovem era proibida nos termos mais humilhantes e
vergonhosos; por conseguinte, em virtude de todos os pareceres e tendo em conta a lei, fixámos-lhe
40 anos de idade.

67
recordado o vaticínio de Isaias que dizia assim: Sairá uma
vara da raiz de José, e da sua raiz uma flor preciosa”.
Depois de orarem, os pretendentes depositaram à noite
vinte e quatro varinhas de amendoeira no templo. Uma
tradição antiga, contada por S. Jerônimo, refere que a seca
vara de José, filho de Jacó neto de Natan, se encontrou verde
e florida no dia seguinte.
Agabuz, desesperado por este prodígio que o céu lhe
manifestava, fechando-lhe todas as portas à esperança,
quebrou resignado a sua vara, e foi encerrar-se em uma gruta
do Carmelo com os discípulos de Elias. Sua dor foi imensa;
porém a fé, tão grande, como a dor, fê-lo cristão, e morreu
com as honras de santidade.
Os tutores declararam a Maria o nome e a classe do
esposo escolhido, e Ela aceitou-o sem proferir uma queixa.
Os delicados trabalhos do templo, os perfumes da casa santa,
iam ser trocados em breve pelas rudes e penosas fadigas da
mulher do pobre. Porém Maria, forte de espírito, confiava em
que o Senhor lhe daria forças para suportar o pesado encargo.
Apesar de destinada a ser esposa de um carpinteiro, contudo
não se julgou aviltada porque todos os israelitas eram
artistas. Por mais alta que fosse a gerarquia deles, os pais
tinha obrigação de ensinar um ofício aos filhos, a não ser,
dizia a lei, que quisessem fazer deles uns salteadores. Por
outra parte José, ainda que pobre operário, descendia de
David; e nas outras veias, portanto, girava-lhe sangue dos
reis.
Os esposórios de José e Maria celebraram-se com a
poética singeleza dos tempos primitivos. O noivo, na
presença dos parentes e dos sacerdotes, ofereceu um anel de
ouro liso e de pouco valor à futura esposa, dizendo-lhe:
- Se consentes em ser minha esposa, aceita esta prenda.

68
Os escribas lavraram o contrato com esta lacônica
fórmula: “Eu José, filho de Jacó, disse a Maria, filha de
Joaquim: Sê minha esposa segundo a lei de Moisés e de
Israel. Prometo honrar-te e prover ao teu sustento e ao teu
vestuário, segundo o costume dos maridos hebreus, que oram
as mulheres e as mantém como convém à sua decência. Dou
desde já a quantia prescrita pela lei de duzentos zuces1, além
do vestuário, dos alimentos e de tudo o que te seja
necessário, prometo-te a amizade conjugal, cousa comum a
todos os povos do mundo.
Neste lugar assinava o marido e as testemunhas, e em
seguida continuava o contrato. “Maria consentiu em ser
esposa de José, e de própria vontade, conforme os seus bens,
ajuntou à soma anteriormente indicada oitocentos zuces2.
Depois desta cerimônia deram-se louvores ao Deus de
Israel, sendo no fim abençoados os dois esposos por um
sacerdote, que representava o pai de Maria.
Decorreram cinco meses, durante os quais os parentes
dos desposados prepararam a segunda cerimônia, que era
entre os israelitas a mais importante. Chegou por fim o dia
aprazado, que era uma quarta-feira3 do mês de janeiro.
A lua dardejava seus raios de prata sobre as plácidas
águas do apertado mar da Galiléia, quando em alegre tropel,
por uma rua estreita de Jerusalém, se dirigiram para a casa de
Maria muitas donzelas ricamente ataviadas. Os archotes que
as calosas mãos dos escravos empunhavam, alumiavam os
passos das jovens banhando de clara e vermelha luz os
âmbitos escuros da rua. Os ricos cintos de ouro, as tiaras da

1
Um zuce teria o valor de 140 reis da nossa moeda.
2
Êste segundo dote era maior ou menor segundo a fortuna dos noivos.
3
Os judeus escolhiam a quarta-feira para o dia do casamento, julgando-o de bom agouro. Era uma
superstição que se transformára quase em lei.

69
Pérsia, e os diamantes das virgens, despediam à luz dos
archotes mil reflexos brilhantes como as estrelas de uma
noite escura. Um pálio, sustentado por quatro mancebos,
esperava a esposa.
A Virgem apresentou-se no limiar da porta. As harpas e
as flautas dos tocadores lançaram ao vento deliciosas
torrentes de harmonia, e os amigos e parentes agitaram em
sinal de jubilo os ramos de palmeira e de murta que levavam
na mão.
A comitiva rompeu a marcha em direção ao templo.
José ia adiante, rodeado dos seus alegres amigos.
A dança e os gritos de alegria começaram, e as
mulheres, derramando essências sobre os vestidos da esposa,
e flores pela terra que pisava, entoaram com toda as forças
dos pulmões:
- Bendita seja a descendente de Davi!
Como qualificar este imenso prazer, esta entusiástica
alegria, que transbordava de todos os corações, nas bodas de
duas criaturas tão humildes como José e Maria? Deus, sem
dúvida que reservava tristezas para a Mãe de Jesus, quis dar-
lhe um dia de triunfo como a seu Filho, em troca das
dolorosas lágrimas que devia derramar no cume do Gólgota.
O pálio recebeu os dois esposos debaixo do seu augusto
docel: Maria levava o rosto coberto com um véu, e José ia
envolvido no seu talet.
- Eis aqui, disse José colocando um segundo anel no
dedo médio de Maria, eis aqui o sinal da nossa união; tu és
minha mulher, segundo o rito de Moisés e de Israel.
- Lança um dobra da tua capa sobre a tua serva – disse
o sumo sacerdote com voz pausada.
- Obedecido serás, respondeu o patriarca desdobrando o
talet, e cobrindo com ele a cabeça de Maria.

70
Depois um parente encheu de vinho uma taça de vidro,
aplicou a ela os lábios e deu-a aos esposos para que
bebessem também.
Então o sacerdote lançou ao ar um punhado de trigo em
sinal de abundância, e tomando a taça da mão dos nubentes,
apresentou-a a um menino de seis anos. Este quebrou-a com
uma varinha de prata. Tinham terminado a cerimônia
nupcial, e ia começar o festim.
Enquanto os convidados se entregavam ao buliçoso
encanto da conversação, José disse em voz baixa a sua
esposa:
- Tu serás como minha mãe, e hei de respeitar-te como
ao mesmo altar de Jeová.
Sete dias duraram as festas; ao oitavo, os esposos
abandonaram Jerusalém para se dirigirem a Nazaré. Alguns
parentes acompanharam-nos, segundo o costume, até à
primeira paragem; ali despediram-se deles com as lágrimas
nos olhos e sentimento no coração.

CAPÍTULO IV

O ANJO GABRIEL

Nazaré, a flor da Galiléia, recebeu no seu amante seio


os castos esposos.
Jesus, a rosa do campo, o lírio do vale, ia ser concebido
nas virginais entranhas da Estrela do Mar.
O Patriarca exercia a sua profissão de carpinteiro em
uma loja de doze pés de largura e outros tantos de
comprimento, afastada da casa de Ana cousa de setenta
passos.

71
Segundo uma antiga tradição do Oriente, José exercia o
seu ofício em um local separado daquele em que sua esposa
vivia. Caritativo em extremo, tinha levantado sobre a porta
da sua casa de trabalho uma espécie de coberto, feito de
ramos de palmeira, à sombra do qual os cansados viajantes
tinham um banco em que podiam descansar, água fresca com
que mitigar a sede, saboroso pão amassado pela Virgem com
que matar a fome, um teto hospitaleiro que os livrava dos
ardentes raios do sol, e um homem bom e afável que lhes
oferecia a sua pobreza com o sorriso nos lábios.
Ali, segundo diz Orsini, o laborioso operário construía
arados, cangas e carros de lavoura, levantando algumas vezes
as cabanas das aldeias. Ali, segundo S. Justino mártir, foi
onde mais tarde o Homem-Deus ajudou seu pai em tão
penosos e rudes trabalhos.
O braço de José era forte, e mais de uma vez o santo
operário derrubou a golpes do seu machado as robustas
árvores do Carmelo.
Entretanto Maria, a esposa imaculada, a terna Virgem
de Sion, moia com as suas delicadas mãos o grão de trigo, e
amassava a farinha em redondas tortas. Todos os dias, com o
rosto coberto por um espesso véu, e a pesada ânfora 1 dos
Nazarenos sobre a débil cabeça, tomando o caminho dos
Nopais, se dirigia a uma fonte2 pouco distante da povoação.
Terminados os afazeres da casa, a Virgem tomava o
tosco fuso e o áspero linho e, entretida com o trabalho,
esperava a hora em que Jose devia chegar a casa. Então,
sobre uma mesa de pinho, branca e polida como a
consciência do artista que a construíra, colocava Maria frutas

1
Enormes vasos de barro de altura desmedida, que levavam à cabeça.
2
Hoje é conhecida esta fonte pelo nome de Fonte de Maria.

72
saborosas e legumes secos, que constituíam a frugal comida
dos descendentes de Davi.
Os hebreus são sóbrios até à inverossimilhança, pois
em tempo de necessidade basta-lhes uma infusão de água e
um pedaço de pão negro para passarem o dia, sem que por
isso se mostrem alquebrados nas horas do trabalho. Durante
a frugal refeição, que se verificava às seis horas da tarde, o
sol no seu ocaso, enviava-lhes os últimos raios através das
nuvens brilhantes do céu da Palestina. Os rouxinóis nas
vizinhas ramagens soltavam os trinados gorjeios, saudando a
noite; e as melancólicas rolas do Carmelo arrolhavam nos
ramos das árvores, chamando as suas errantes companheiras
para o ninho noturno.
Assim decorreram dois meses. O anjo da paz abrigava
debaixo das suas níveas asas a modesta morada dos futuros
pais do Messias.
Um tarde1 José encaminhou-se para o monte. O
crepúsculo vespertino só derramava sobre o mundo essa
dúbia e vaga claridade que o sol deixa após si. A noite estava
próxima e José não voltara ainda do Carmelo.
Maria esperava-o resignada debaixo de um
caramanchão de açucenas e aromáticas madressilvas. Seus
olhos azuis dirigiam-se para o horizonte de Jerusalém,
procurando no dilatado céu o ponto que, segundo seus
cálculos, devia achar-se sobre o templo de Sion2. Seus lábios
rosados, como os cravos dos Alpes, entreabriam-se
silenciosos para darem passagem a palavras sem ruído,
formuladas no íntimo do seu virginal seio. Estas palavras era
a oração da tarde dirigida ao Deus de Jacó.
1
Sexta-feira 25 de março, segundo o padre Drexelius
2
Os povos orientais voltam-se para certo ponto do céu quando oram, chamando a isto, O kebla. Os
judeus voltam-se para o templo de Jerusalém, os maometanos para o de Meca, os sabeus par ao
meio dia e os magos para o Oriente. – (Orsini)

73
Os entrelaçados ramos do caramanchão abriram-se para
passagem a um formoso adolescente, de cuja alva túnica
saiam torrentes de luz. O anjo Gabriel, o emissário da
bondade extrema de Deus, achava-se junto de Maria que,
cheia de temor e sobressalto, ficou como cravada no chão. O
anjo iluminou a Virgem com um olhar celestial e disse com
doce e maviosa voz:
- Eu te saúdo, Maria, cheia de graça: o Senhor é
contigo: Tu és bendita entre todas as mulheres.
Maria, com os olhos fitos no chão, não se atrevia a
descerrar os lábios.
Assim como a flor, que ao receber a gota do rocio que o
céu lhe envia, abre as pétalas e curva o caule, assim a casta
Virgem de Nazaré, enquanto que o seu amantíssimo coração
se abria para albergar nele as misteriosas palavras do enviado
do céu, curvava a fronte, temerosa de o ofender com a vista,
ou talvez receosa, como Moisés “de ver o seu Deus e
morrer”.
- Nada receies, Maria, volveu o anjo com doçura,
inclinando a fronte, pois tens a graça de Deus: Conceberás
e darás a luz um Filho a quem porás o nome de Jesus. Ele
será grande e chamar-se-á o filho do Altíssimo. Deus lhe
dará o trono de seu Pai: reinará eternamente sobre a casa
de Jacó e o seu reino não terá fim.
- Como há de ser isso se não conheço varão? – disse
Maria singelamente, não sabendo como conciliar o título de
mãe com o voto de virgem oferecido junto do altar do Sião.
“A virgem não duvida, diz S. Agostinho. Ela deseja
instruir-se no modo como deve operar-se o milagre”.
- O espírito Santo descerá sobre Ti, ajuntou o anjo, e
a virtude do Altíssimo te cobrirá com o seu nome. Eis

74
porque o Fruto Santo que de ti há de nascer será
chamado o filho de Sion.
O mensageiro de Jeová quis deixar uma prova da
verdade das suas palavras à Virgem escolhida como a urna
santa, que devia ser por nove meses a depositária do Verbo
Divino; e por conseguinte continuou:
- Isabel, tua prima, concebeu um filho na senectude,
e este é o sexto mês de gravidez daquela que era reputada
estéril, porque nada há impossível a Deus.
Maria, comovida ante os benefícios de Deus, julgando-
se na sua grande modéstia indigna da escolha com o que o
Eterno a honrava, inclinou a fronte com humildade dizendo:
- Eis aqui a escrava do Senhor; cumpra-se em mim o
que a sua palavra ordena.
O anjo desapareceu, e o Verbo Divino fez-se carne para
padecer por nós o cruento martírio da Cruz. Maria, desde
aquele instante concebeu o pensamento de visitar sua prima,
a quem tanto devia. Isabel era já de bastante idade e Maria,
caritativa em extremo. Ser útil aos semelhantes era o seu
maior prazer.
Antes de transpor os umbrais dos ricos parentes da rosa
de Nazaré, diremos duas palavras a respeito do pai de S. João
Batista. Ouçamos o que diz Ataulfo da Saxônia, referindo-se
ao texto de S. Lucas:
“No tempo de Herodes, rei da Judéia, havia um
sacerdote chamado Zacarias, da família sacerdotal de Abia,
uma daquelas que por turno serviam no templo1. A mulher de
Zacarias, chamada Isabel, era igualmente da raça de Arão.
Ambos eram tidos como justos aos olhos de Deus, pois

1
Segundo o que estabelecera Davi, os sacerdotes judáicos estavam dividios em 24 turnos, cada um
dos quais servia no templo uma semana. Cada turno estava subdividido em sete partes. Zacarias era
dos turnos de Abia. – (Prid Hist. dos Judeus)

75
aguardavam estritamente todos os preceitos e as leis do
Senhor. Um dia, depois de Zacarias entrar no templo para
oferecer o incenso, apareceu-lhe o anjo do Senhor à direita
do altar dos perfumes. Tinha o rosto tão cheio de majestade,
toda a sua pessoa manifestava um ar tão divino, que o
sacerdote perturbou-se e todo o seu corpo principiou a
tremer. Foi preciso que o anjo o sossegasse, dizendo-lhe:
Nada receies, Zacarias; minha presença deve servir-te de
alegria e consolação e não de temor; tuas súplicas chegaram
ao céu, foram ouvidas de Deus, e para que te convenças sabe
que Isabel tua mulher, apesar de velha e estéril, te dará um
filho ao qual chamarás João, e que encherá de consolação
todas as tribos de Isarel. O seu nascimento será para muitos
outros motivo de grande contentamento e presságio certo de
uma futura grandeza. Será grande na presença do Senhor e
destinado a exercer um cargo sublime junto do Messias que
virá. Será santificado desde o ventre materno e cheio do
Espírito Santo, e em todo o decurso da sua vida guardará
uma abstinência rigorosa, jamais beberá vinho ou cidra.
Pregará com tanto zelo, que converterá muitos filhos da sua
raça ao seu Deus e Senhor. Ele precederá a vinda do
Redentor e irá adiante dEle com o espírito e a virtude de
Elias; pregará com tão próspero sucesso que os filhos
renovarão em seu peito a fé e piedade dos pais. Converterá
os incrédulos e obrigá-los a seguir o caminho da prudência
dos justos, e preparará para quando vier o Senhor um povo
perfeito, que receberá com docilidade os preceitos da sua
nova lei”.
Até aqui! Ataulfo da Saxônia.
Zacarias ouviu o anjo com grande alegria, porém a
dúvida estava no seu coração. Aquelas palavras que ecoavam
com suavidade aos seus ouvidos, não eram acreditadas pela

76
sua alma. O céu concedia-lhe na velhice a graça de um filho:
este filho era o Batista, o precursor de Cristo, e o sacerdote
ditoso sem dar crédito à revelação divina, exclamou:
- Eu sou velho, minha esposa também. Como poderei
saber que é verdade o que me dizes?
Os olhos do enviado de Jeová despediram um raio de
luz celestes, que foi ferir a língua do incrédulo.
- Eu sou Gabriel, repôs o emissário celeste, um dos
anjos que moram junto do trono de Deus, e de quem Ele se
serve para transmitir ordens. Ele enviou-me a ti, e já que
duvidaste das minhas palavras surdo e mudo serás até ao dia
em que cumpra o que vim anunciar-te.
Zacarias ficou aterrado, e não pode terminar a semana
do seu ofício no templo, por causa do castigo que Deus havia
lançado sobre ele. Triste e aflito, abandonou a populosa
Jerusalém, e atravessando uma parte da Galiléia, da fértil
Samaria e duas terças partes das terras de Judá, depois de
cinco dias de marcha chegou à cidade de Ain, onde tinha
uma casa. Sua mulher Isabel recebeu-o com alegria. A
venturosa mãe de João queria participar ao esposo, o favor
que Deus lhe havia concedido; porém o incrédulo sacerdote
não pode ouvir suas palavras nem responder às perguntas.
Lágrimas corriam dos seus olhos. Amargos suspiros saiam
do seu peito, porque Jeová tinha-o castigado.
Isabel lançou-se nos seus braços dizendo:
- O Deus de Jacó ouviu as minhas súplicas. Sou mãe!
Sou mãe! Sinto nas minhas entranhas o gérmen de um novo
ser que se agita, e tu não me dizes nada?
Zacarias debalde tentou falar. Estava mudo.
Exalou um suspiro de angustiosa dor, e caiu desfalecido
aos pés de sua mulher.

77
CAPÍTULO V

A PAZ SEJA CONTIGO

Maria guardou no íntimo da alma a revelação que o


anjo lhe fizera. Nada disse ao seu esposo porque, modesta
em extremo, temia que transluzisse nas suas palavras um
rasgo de vaidade. Guardou, pois, o segredo como um tesouro
precioso que Deus lhe tinha confiado, esperando com santa
resignação que os acontecimentos portentosos, que o céu lhe
anunciava, a conduzissem ao ponto escolhido pela
superioridade divina. No entanto, participou a José o prazer
que sentia em visitar sua prima Isabel, e ele, que bom e
benévolo se desvelava em satisfazer tudo quanto era grato à
esposa, deu-lhe permissão para empreender a desejada
viagem.
José era pobre, e não podia abandonar o trabalho; por
conseguinte aproveitando a ocasião em que passavam a Ain,
pátria de Isabel, uns parentes seus, recomendou-lhes sua
esposa, e Maria partiu de Nazaré na estação das rosas. José
acompanhou sua esposa até à distância de duas léguas da
povoação, e depois, com o coração oprimido pela ausência
da Virgem, voltou para casa.
Isabel, a esposa de Zacarias, tinha sido uma segunda
mãe para a Virgem, desde que Ana e Joaquim a haviam
deixado órfã. Os benefícios recebidos pela criança durante
sua permanência no templo de Sião, iam ser pagos pela
mulher na casa da velha Isabel.
A jovem e formosa viajeira, montada n’a modesta
burrinha e rodeada de algumas boas mulheres, que com ela
se dirigiam para as montanhas da Judéia, abandonou em uma
manhã a pátria adotiva.

78
A cidade Ain acha-se situada a um extremo da Judéia.
O caminho áspero e montuoso expõe a cada passa a vida do
viandante. Alguns escritores afirmam que a Virgem fez a
viagem sozinha: o que parece inverossímil, atendendo ao
ínvio e acidentado caminho que tinha de atravessar; e a que
na Síria, segundo Volney e outros vários conhecedores dos
costumes orientais, ninguém viaja só, mas em comitivas ou
caravanas, precaução necessária a um país aberto aos árabes
como a Palestina.
Como era possível além disso, que S. José, o varão
prudente e reflexivo, tivesse consentido que a terna Virgem
de quinze anos, empreendesse uma viagem de cinco ou seis
dias em um país sem mais pousadas que os grandes e
desmantelados cobertos, chamados Karavanserey, e onde os
caminhantes se refugiam durante a noite, amontoados como
um rebanho de ovelhas? Nos rodeamos Maria de amigas e
parentes durante a viagem à Judéia porque é mais verossímil,
atendendo ao caráter da viajeira e aos costumes dos judeus.
A caravana depois de atravessar as tribos de Issácar,
Manassés, Samaria e Benjamim saudou as altas torres do
templo de Sião, e os esbeltos minaretes da cidade sacerdotal
que deixou à sua esquerda; e chegou felizmente às cercanias
de Ain, sem que os ferozes habitantes da via sanguinária lhe
detivessem o passo.
Um dos parentes, que formava parte da comitiva da
Virgem adiantou-se a participar a Isabel a próxima chegada
de Maria. A que devia ser mãe do Batista achava-se em uma
arruinada casa de campo, quando recebeu a fausta nova; e
cheia de contentamento correu ao encontro da sua jovem
prima.

79
A virgem viu chegar a nobre anciã com o semblante
alegre e cheio de felicidade, e inclinando para o chão a
fronte, disse com doçura:
- A paz seja contigo!1
Isabel sentiu no seu seio um movimento estranho. A
voz suave e respeitosa de Maria tinha levantado um eco
melodioso no seu coração. O seu semblante reanimou-se
como se ela tivesse retrocedido quarenta anos. Que
misterioso influxo, que santa sensação haviam introduzido
no seu peito as palavras da Nazarena, para que a Isabel
exclamasse deste modo: “Bendita és tu entre as mulheres,
e bendito é o fruto do teu ventre!
E vendo que Maria conservando a sua humilde atitude
não proferia palavras acrescentou:
- D’onde me vem a felicidade para que a Mãe do meu
Senhor venha a mim? Logo que a tua voz chegou ao meus
ouvidos, meu filho saltou de alegria nas minhas entranhas;
Tu és ditosa por seres crente, e o que te foi dito por parte do
Senhor assim será comprido.
Isabel, a imortal esposa de Zacarias, ferida nos olhos da
alma pelo sopro misterioso de Jeová, tinha visto através do
ignorado futuro o trono de glória, que o Eterno reservava a
sua prima.
Porém ouçamos as palavras da Virgem, o cântico
poético e sublime do Novo testamento, o mais inspirado, o
mais harmonioso das Santas Escrituras, desse livro que tem
sido e será eternamente, o inesgotável manancial da
inspiração cristã.
Maria respondeu a Isabel:
“A minha alma glorifica ao Senhor, e o meu espírito se
alegra em Deus meu salvador.
1
Esta saudação foi empregado por Cristo muitas vêzes, e hoje é muito comum no Oriente.

80
“Porque atendeu à humanidade da sua serva, e para o
futuro serei chamada bemaventurada por todas as nações.
“A sua misericórdia estende-se de geração em geração
sobre os que o temem.
“Manifestou a força do seu braço e aniquilou os que se
enchiam de orgulho.
“Depôs os grandes do seu trono, e exaltou os humildes.
“Encheu de bens aos que estavam famintos,
empobreceu os que estavam ricos.
“Lembrou-se da sua misericórdia, e protegeu Israel seu
servo.
“Segundo a promessa feita a nosso pai Abraão e à sua
descendência para sempre”.
O abade Orsino, que com tão poéticas e delicadas cores
descreveu a Visitação de Maria, diz que a Virgem
permaneceu três meses no país dos hetenses, e passou essa
longa visita a curta distância de Ain, no fundo de um florido
e fértil vale em que Zacarias tinha a sua casa de campo.1
“Ali, foi, continua o abade Orsini, onde a filha de Davi,
profetisa também e dotada de um gênio igual ao do ilustre
chefe da sua família, pode contemplar à vontade o céu
estrelado, os bosques misteriosos, o vasto mar cujas ondas
agitadas ou tranquilas iam quebrar-se sobre as plagas da
Síria.
“O aspecto dessa natureza tão completa nas suas
particularidades, tão habilmente harmonizada no seu
conjunto, em que tudo é maravilhoso, desde o tecido da flor e
a asa do inseto até esses mundos errantes que brilham nas
trevas da noite, excitaram a profunda admiração da Virgem
para as obras grandiosas do Criador.
1
Neste vale possuía Zacarias duas casas. A entrevista efetuou-se na primeira, que está mais ao
ocidente de Jerusalém, e o nascimento de Batista na segunda.

81
“Como é grande, pensava a Filha dos Profetas – como é
grande Aquele que dá as suas ordens à estrela da manhã, e
que indica à aurora o ponto do céu em que aparecer; que
subjuga o trovão e a quem o raio submisso diz ao
apresentar-se: Aqui estou... Como é grande!... E a sua
bondade é igual ao seu poder!
“Ele é quem coloca no coração do homem a candura, e
dá aos animais o instinto. Ele é quem olha pelas necessidades
incessantes da criatura, quem dá calor sob a areia ao ovo do
avestruz, e vela sobre o behemoth1 quando dorme à sombra
dos salgueiros da torrente; Ele é quem prepara ao corvo o
alimento, quando os filhos andam errantes e famintos
grasnando pelas rochas dos despenhadeiros.
“Então, à imitação do Salmista, a Virgem Santa
convidava a natureza inteira a bendizer com Ela o Criador.
Nas suas excursões através dos prados comprazia-se na
contemplação das flores, que encontrava ante os seus passos.
“Por detrás da elegante casa do Pontífice hebreu
estendia-se um desses jardins, chamados paraíso entre os
persas, e cujo desenho os cativos de Israel haviam tomado do
povo de Ciro e de Semíraris. Campeavam nele as mais belas
árvores da Palestina, amenizando os seus atrativos o suave
perfume das laranjeiras e os arroios de cristalina água, que
serpenteavam por baixo dos ramos pendentes dos chorões.
“Ali era onde os ternos cuidados de Maria fizeram
olvidar a Isabel os seus temores sobre um sucesso, cuja
esperança a enchia de gozo, mas que a sua idade avançada

1
Animal em que fala o livro de Job. Uns julgam que é o hipopótamo, outros o rinoceronte; porém
segundo o Talmud dos judeus é o touro primitivo, o qual consumia todos os dias a herva de dez
montanhas, que tornavam a cobrir-se de nova vegetação durante a noite para o alimentar. Êste
touro, no dia do juízo, será comido pelos fiéis em um banquete presidido pelo Messias que,
segundo êles, deve vir ainda salvá-los.

82
podia tornar funesto. Como devia ser grave e religiosa a
conversação destas santas mulheres!
Um, jovem, simples e ignorante do mal, como Eva ao
sair das mãos do Criador: a outra, de avançada idade e
enriquecida com uma longa experiência, profundamente
piedosa. Uma, trazendo no seu seio, por longo tempo estéril,
um filho que devia ser profeta e mais que profeta, e a outra
a semente bendita do Altíssimo, o chefe libertador de Israel.
Nas formosas noites de verão, quando o pálido brilho
da lua alumiava a floresta, debaixo de uma copada figueira
ou dos verdes pântanos de uma ramada1 colocava-se a
comida da família opulenta do mudo Zacarias, composta do
cordeirinho alimentado com a aromática erva da montanha,
de peixe de Sidônia, de favos de mel silvestre, de saborosas
tâmaras de Jericó, que figuravam então até na mesa do César,
de damascos da Armênia, de figos de Alepo e de pêssegos do
Egito.
O vinho das colinas de Engahdi, que o mordomo do
príncipe dos sacerdotes guardava em cubos de pedra,
circulava em ricas taças que os criados enchiam com
semblante alegre.
Maria, tão sóbria no seio da abundância como no da
mediania, contentava-se com algumas frutas, um pouco de
pão, e um copo de água da fonte de Naphtoa.
Assim decorreram três meses, durante os quais Maria
foi para a idosa Isabel uma filha terna e solícita.
Zacarias, entretanto, mudo e surdo por causa da sua
dúvida ante o enviado de Jeová, esperava com santa

1
Os hebreus gostam muito de comer debaixo das ramadas, já pelo calor excessivo naqueles climas,
já pelo antigo costume dos seus antepassados, que por tantos anos viveram debaixo das suas tendas
durante as suas longas peregrinações – (Fleury, Costumes dos israelitas)

83
resignação que a bondade do céu descesse sobre ele,
devolvendo-lhe os preciosos sentidos que lhe tinha tirado.
Chegou finalmente o tão desejado dia, e Isabel deu à
luz um formoso e robusto menino. Grande foi a admiração e
o assombro dos pacíficos habitantes de Ain ao verem aquela
anciã, que com o rosto inundado de lágrimas de gozo, lhes
mostrava o filho com que Deus a amerceara.
Os parentes reuniram-se, e tratou-se do nome que se
devia pôr ao recem-nascido. Todos optaram pelo de Zacarias;
porém Isabel disse aos parentes com firme e segura:
- Não, meu filho será chamado João
Então, o velho sacerdote, a quem por sinais os parentes
perguntavam, que nome devia pôr-se definitivamente a seu
filho, pediu uma tabuinha encerada e um ponteiro, e escreveu
estas palavras, com mão firme: “João é o seu nome”.
Os circunstantes entreolharam-se com assombro.
Zacarias era surdo-mudo. Como pois, escrevia o
mesmo nome, que sua mulher acabava de pronunciar e que
ele não ouvira? Porém a expiação da culpa tinha terminado, e
Deus, com o seu infinito poder, devolvia ao sacerdote hebreu
as preciosas faculdades de que o tinha privado por espaço de
nove meses. Zacarias falava e ouvia como antes da revelação
do Anjo, e o povo comentava com assombro este milagre.
Por fim, chegou a hora em que a Virgem Santa devia
abandonar a casa dos seus parentes, e depois de abraçar e
abençoar o recem-nascido, voltou para Nazaré, acompanhada
por alguns criados de Zacarias.
O nascimento do Batista foi festejado como o do filho
de um príncipe hebreu. Os habitantes de Ain regozijaram-se
por espaço de alguns meses com as festas, que o sacerdote
fez em celebração de tão fausto acontecimento.

84
Alguns anos depois, os judeus, vendo que João era filho
de um sacerdote rico e Jesus de um pobre carpinteiro,
tiveram em mais conta o primeiro que o segundo; pois o filho
de Deus não foi para eles mais que um homem comum, sem
importância nem categoria alguma. A preponderância do
Batista foi imensa. João tinha passado a sua vida no deserto,
enquanto que Jesus viveu obscuro em Nazaré até três anos
antes da sua morte.
Porém quem, não sendo um Deus, teria podido levar a
cabo, em tão curto tempo, a obra da redenção que salva a
humanidade?
Os muçulmanos, segundo o célebre helenista Herbelot
na sua “Biblioteca Oriental”, conservam uma grande idéia de
S. João Batista, a quem chamam Yahia-bem-Zacarias (João
filho de Zacarias). Saadi, no seu Guliston faz também
menção do sepulcro do Batista, venerado no templo de
Damasco; nele fazia as suas orações, e refere as de um rei
árabe que foi ali em peregrinação.
O Califa Abd-el-Malek quis comprar esta igreja aos
cristãos; porém tendo estes rejeitado a quantia de quatro mil
dinar (dobras de ouro) que lhes tinha oferecido, armou a sua
gente e apoderou-se à viva força do templo que desejava
possuir.
Mais adiante tornaremos a ocupar-nos de S. João
Batista.
Agora regressemos a Nazaré, onde nos esperam outros
acontecimentos.

CAPÍTULO VI

O EDITO DO CÉSAR

85
Formosas donzelas de Nazaré que abris o postigo das
vossas janelas, quando a luz da alvorada vos envia do
Oriente os bons dias, vós não madrugais tanto como a casta
esposa de José o carpinteiro. Olhai... Lá vai ela! Sobre a sua
divina cabeça que há de ver-se rodeada de anjos, descansa o
pesado cântaro das nazarenas. Seus pés, ligeiros como os da
gazela, aos quais a lua já de servir de pedestal, deslizam pela
senda que vai ter à fonte.
Pelas veias gira-lhe sangue de reis; porém, o trono dos
seus antepassados desfez-se sob a pressão das garras da águia
romana, e a coroa descansa sobre a fronte de um senhor
estrangeiro. No entanto, a Virgem não se orgulha da sua
estirpe real: modesta e laboriosa, ocupa-se dos afazeres da
casa. Maria recorda-se das palavras do salmista seu
antepassado: “A honra da filha de um príncipe consiste no
interior da sua casa”.
A Virgem chega à fonte; algumas nazarenas, que a
seguem, chegam também, e trocando a saudação dos
israelitas, dizem-lhe:
- A paz seja contigo.
- A paz seja convosco, respondeu-lhes Maria.
E, colocando o seu pesado cântaro sobre a cabeça, torna
a encaminhar-se para Nazaré pelo caminho dos Nopais.
Então as filhas de Nazaré reunem-se em torno da fonte. O
estado da Virgem não escapou aos seus curiosos olhares.
Uma delas observa às outras que Maria está grávida;
regozijam-se e tencionam propagar a nova pela povoação.
Entretanto, José trabalhava na sua pequena oficina. O
nobre e honrado patriarca nada sabe, porque os seus olhos
são cegos à malícia, e respeita sua esposa como a uma
virgem de Sião. Porém os dias passam, e o estado de Maria
faz-se cada vez mais visível. José não pôde dar crédito ao

86
que os seus olhos vêem: uma tristeza, uma melancolia
inexplicável apodera-se do seu coração. O sono não desce
sobre as suas pálpebras, profundos suspiros saem do seu
peito, e a dúvida começa a estender o mortal veneno pela sua
alma simples e reta.
U’a manhã, com o machado ao ombro, toma caminho
do Carmelo. As profundas rugas da sua fronte acham-se
carregadas de negros pressentimentos. Com o corpo fatigado
e a imaginação preocupada, senta-se à sombra de um
frondoso salgueiro, esquecendo-se do motivo que ali o
conduz.
- Será verdade o que os meus olhos vêm? disse a si
mesmo. Será possível que Maria, a imaculada Virgem, a
esposa casta, a mulher de simples e puro coração, tenha
esquecido os seus deveres? Como acreditar que tenha
iludido a boa fé do homem, que como pai carinhoso a
admitiu em sua casa, respeitando os seus votos? Como
acreditar que Maria, desonrou os meus cabelos brancos? Oh!
Não, não; não é possível semelhante cousa.
Então José, suspendendo o seu solilóquio, derramando
um mar de lágrimas, permaneceu mudo e silencioso por
alguns instantes.
- Ela foi reconhecida grávida1 - tornou a murmurar o
patriarca – todo Nazaré o sabe; os meus parentes já vieram
felicitar-me, e as suas palavras de jubilo e alegria foram setas
que se me cravaram no coração, porque eles ignoram o casto
laço que nos une. Que hei de fazer, Deus de Sião?... Viverei
debaixo do mesmo teto em que vive u’a mulher adúltera?
Hei de cobrir-me de infâmia faltando à lei? Taparei os
ouvidos às palavras de Salomão, que nos disse: Aquele que

1
Os Evangelhos.

87
tem consigo uma mulher adúltera é um louco, um
insensato?
Como devia sofrer aquele santo varão nos momentos de
dúvida que o devoraram! Faltar à lei ou desonrar sua esposa,
eram os dois caminhos que a sua crítica situação lhe
apresentava.
A paixão dos ciúmes é dura como o inferno, e o
marido não perdoa, no dia da vingança. Isto disse
Salomão.
A mulher adúltera deve morrer, escreveu o grande
legislador dos hebreus no monte Sinai.
Os ciúmes eram terríveis entre os israelitas: a história
apresenta-nos exemplos cruentos. A suspeita só de um crime,
que odiavam, armava a mão do ultrajado esposo, e o ferro
homicida tornava para a sua bainha manchado com o sangue
da mulher culpada. Diná, Tamar, Mariana, e outras muitas,
são os exemplos que a história nos apresenta. O bastardo,
maldito até à décima geração, via-se privado de todas as
prerrogativas, de todos os direitos concedidos aos hebreus.
Seus pés impuros não podiam entrar nas sinagogas; as
assembléias nacionais fechavam-se para eles, e as escolas do
estado negavam-lhes as luzes da ciência.
Todas estas idéias agitavam-se tumultuosas na mente
do patriarca, quando Deus, compadecido da sua angústia, lhe
mandou sobre as pálpebras o fluido reparador do sono. José
fechou os olhos, requeimados pelas lágrimas de fogo que
havia derramado à sombra do solitário salgueiro. Uma
nuvem brilhante, cor de opala, desceu então do céu e
estendeu-se como uma rede sobre a frondosa árvore. Seus
flutuantes reflexos envolveram-lhe os ramos pendentes. Uma
voz doce e misteriosa saiu de entre as prateadas rendas da
nuvem, dizendo:

88
- “José, filho de Davi, não receies ter contigo Maria tua
esposa, porque o que nela se gerou foi formado pela virtude
do Espírito Santo; Ela dará à luz um Filho a quem porás o
nome de Jesus, porque será o Salvador do seu povo,
livrando-o dos seus pecados.”
O rosto de José, ao despertar de tão formoso sonho,
transbordava de felicidade. Suas suspeitas haviam-se
desvanecido como as ligeiras nuvens ante o sopro sutil da
noite. Seu espírito vacilante, fortalecido e forte com as
divinais palavras da misteriosa revelação de Jeová, já não o
atormentava. O braço, desfalecido e lânguido poucos
momentos antes, começou a vibrar golpes de machado sobre
os altivos pinheiros, como se quisesse recobrar com a
atividade as horas perdidas.
José adorou os misteriosos decretos do Eterno, e vendo
em Maria, a mãe do futuro Redentor, envergonhou-se das
suspeitas que concebera.
Decorreram alguns meses. Os ventos do outono
começaram a despejar os ramos das árvores das amareladas
folhas, e as névoas de outubro anunciavam as próximas
neves, quando u’a manhã a trombeta de um arauto romano
encheu de curiosidade e desalento os pacíficos habitantes de
Nazaré.
Assim, como as espantadas abelhas revoluteiam em
torno da colméia, assim os nazarenos se agitavam em redor
dos soldados romanos, ansiosos por saberem qual o motivo,
que à indefesa povoação os conduzia, armados do escudo de
guerra e da lança do combate. A sua incerteza durou pouco,
porque um centurião, agitando uma bandeira pequena,
indicou ao arauto que podia cumprir sua missão; este levou
aos lábios a comprida trombeta, e depois de tirar do bélico

89
instrumento duas prolongadas notas, pronunciou com voz
clara e vibrante estas palavras:
Quirino, Governador da Síria por ordem de César
Augusto, imperador de Roma, conquistador da Ásia, do
Egito, da Síria, da Judéia, da Fenícia: manda e ordena que
todos os hebreus da baixa Galiléia se vão inscrever por
famílias ou por tribos, passando às cidades dos seus maiores,
para que no prazo de três meses o César saiba os súbitos que
tem nos países conquistados com o poder das suas legiões.
Aquele que desobedecer sofrerá a multa de seis carneiros,
sendo rico, e sendo pobre será açoitado com varas. Que a
vontade do senhor do mundo seja cumprida.
A curiosidade dos nazarenos estava satisfeita; porém, o
edito do ímpio império (assim chamavam os hebreus aos
império romano) havia-os deixado tristes e com o coração
comprimido. No entanto, era necessário obedecer. Que
podiam fazer os israelitas senão acatar as ordens do seu
senhor? A monarquia hebréia, tão altiva, valente, e estimada
no tempo do rei poeta, não era reinado de Herodes mais que
um rebanho de servos, que lambiam a mão que os carregava
de grilhões.
- Nada de bom pode sair da Galiléia, haviam dito as
Escrituras.
E os profetas designavam Belém de Judá como o lugar
destinado ao nascimento do Messias.
José dispôs-se a empreender uma viagem para cumprir
com as ordens de César. Belém era a cidade dos seus
maiores. Os misteriosos decretos de Jeová conduziam-nos à
cidade escolhida, sem que ele mesmo o suspeitasse. Os
idólatras romanos eram o instrumento de que o Eterno se
servia, para que as profecias se cumprissem.

90
A neve começava a cair sobre as montanhas da
Samaria, e o solitário Líbano, envolvido no seu branco
sudário de inverno, enviava as suas gélidas brisas desde as
margens do Leontes até às costas tempestuosas da Fenícia.
As encrespadas ondas do Mediterrâneo quebravam-se com
furor sobre as plagas de Tiro, Sidon e Berito; e as nuvens
senhoras do espaço transportavam as tempestades do
inverno desde os confins da Betânia, até aos desertos a
Iduméia. Todavia o rigor da estação não deteve José na sua
viagem. Longa era a distância, árido e perigoso o caminho
que tinha de atravessar; porém era preciso obedecer às
ordens do César. Pôs a confiança em Deus, e abandonou
Nazaré em uma manhã fria e chuvosa do mês de dezembro.
Era o ano 752 de Roma e 42 do império de Otávio
Augusto1 quando o humilde nazareno abandonou a sua
modesta casinha e a tranquila paz do seu lar, para se dirigir
com a sua virginal esposa à cidade de David. Maria, como
todas as filhas do Oriente, ia montada em uma formosa
jumentinha de branca e fina pele2 do galhardo animal
pendiam duas cestas de palma com as provisões da viagem e
uma vasilha de barro para tirar água das cisternas. José
caminhava ao seu lado. Com uma das mãos conduzia a
jumentinha pelas rédeas, e com a outra apoiava-se a um
nodoso cajado.
1
A época da vinda de Cristo não é dogma: é sómente o seu nascimento. A multidão de autores que
escreveram sobre este assunto, discrepa de maneira notável. Deixando as várias opinões dos
autores, por grande que seja a sua autoridade, seguiremos o que a Igreja diz no seu Martirológico:
“No ano 5099 da criação do mundo, quando no princípio criou Deus o céu e a terra; desde o dilúvio
2957; do nascimento de Abraão 2085; de Moisés e da fuga do povo de Israel do Egito 1510; desde
que Davi foi ungido rei 1032; cumprindo-se as sessenta e cinco semanas, segundo a profecia de
Davi; na Olimpíada 194; no ano 752 da fundação de Roma; no ano 42 do império de Otávio
Augusto; estando em paz todo o orbe; na sexta idade do mundo; Jesus Cristo, Deus Eterno e filho
do Eterno Pai, querendo consagrar o mundo com a sua piedosa vinda, em Belém de Judá nasce da
Virgem feito homem”.
2
Os jumentos da Palestina são de notável beleza.

91
O dia anunciava chuva; o céu começava a cobrir-se de
escurar e espessas nuvens. José tirou dos seus ombros o
manto de pele de cabra e colocou-o sobre as delicadas costas
de sua esposa, afim de a preservar da chuva que começava a
cair; e confiando em Deus prosseguiram a marcha em
direção à cidade sacerdotal. Chegou á noite, e os santos
caminheiros hospedaram-se em um desmantelado
Karavanseray que nas faldas do monte Naim servia de
refúgio às fatigadas caravanas da Galiléia e da Samaria.
Ali, afastados dos outros viandantes que pernoitavam
ao abrigo do karavanseray, os pais de Messias passaram as
horas das trevas sem mais cama que a capa de peles, sem
mais alimento que as duras e delgadas tortas dos nazarenos,
os figos secos e as uvas criadas nas margens do vale de
Zabulon.

CAPÍTULO VII

O BERÇO DO MESSIAS

E tu, Belém chamada Efrata, tu és pequeno entre as


cidades de Judá, porém de ti sairá Aquele que deve
reinar em Israel, e cuja geração teve princípio desde a
eternidade. – (Micheas)

Belém, pérola de Judá, tu, qual fatigada rola da


Palestina, pousas nas cumiadas dos montes para respirar o
perfume dos teus tempos. Pelas tuas formosas colinas trepam
os verdejantes pântanos, que te oferecem o sumo delicioso,
quando o sol do estio amadurece o transparente bago. Os
bosques de oliveira e azinheiras também te oferecem os seus
frutos e a sua sombra durante as abrasadoras horas da

92
canícula. As laranjeiras dos teus jardins perfumante com a
essência da sua flor, e as anêmonas e os narcisos dos teus
vales enviam-te os seus aromas e esmaltam o teu solo com
delicadas cores.
Cidade predileta, apreciada jóia que Deus contempla
com amor do seu excelso império: tu foste o berço de um
pastor, que depois de conduzir os seus mansos rebanhos
pelos teus pitorescos vales, levou o estandarte de Israel até as
margens do Eufrates. Tu serás o berço de um Deus que vem
ao mundo ser o humilde Pastor das almas. Davi e Jesus
receberam no teu seio a primeira carícia de suas mães; e o
primeiro sopro da vida estava impregnado do suave aroma
dos teus floridos outeiros.
Belém, terra imortal, cidade santificada, desperta do teu
sono, porque está a amanhecer o dia, e uma multidão de
dromedários trepa pela tua suave encosta.
Inocentes belemitas, assomai às janelas, porque os
viajantes aproximam-se dos vossos pacíficos lares. O edito
do César fá-los deixar as suas casas e encaminhar-se para as
vossas. Olhai para as ricas herdeiras da Palestina montadas
nas suas esbeltas e brancas jumentinhas: os seus mantos de
púrpura de Tiro flutuam ao vento como as bandeiras de Sião;
os seus véus de transparente cambraia envolvem-lhes as
cabeças, ocultando aos curiosos olhares o rosto das suas
donas.
Os cavalos árabes, esporeados pelos cavaleiros
luxuosamente vestidos, relincham e caracolam, manifestando
assim o fogo do seu sangue e a pureza da raça.
Também se vêem liteiras de cedro e marfim com ricas
cortinas de seda de Damasco, conduzidas por homens cujos
negros e longos roupões mostram a baixeza da sua classe e a
opulência de senhor que conduzem: e velhos veneráveis, com

93
as pernas cruzadas sobre as gibas dos camelos, e humildes
caminheiros sem mais apoio que o nodoso cajado, que as
suas mãos comprimem.
Todos caminham para Belém, porque César assim o
ordenou. Porém como poderá uma cidade pequena, que
como um ninho de pombas descansa sobre os outeiros da
montanha, conter em seu seio tanta gente? Os belemitas
abrem as portas e oferecem aos forasteiros as suas casas, e a
cidade enche-se de estrangeiros, que correm a inscrever os
nomes no grande livro de César. Nas suas estreitas ruas
agita-se como um formigueiro a multidão que a invadiu. A
cidade sacerdotal, a grande Jerusalém, não esteve nunca tão
concorrida, tão animada, nas festas dos Asmos, como Belém
no dia 24 de dezembro do ano 5099 da criação do mundo.
José e sua esposa, obedientes às ordens do imperador
pagão, chegaram também naquela dia, depois de seis
jornadas penosas, a inscrever os nomes na cidade de Davi. O
santo marido da Virgem deteve-se diante de um edifício de
paredes brancas e portas grandiosas, que se erguia a poucos
passos da cidade. Aquela casa tinha-se preparado para
receber os viandantes ricos de Israel. A imitação das grandes
pousadas da Pérsia, seu dono oferecia aos forasteiros, em
troco de algumas moedas de prata, toda comodidade desejada
em semelhantes casos.
José, coberto de pó, desfalecido pelo cansaço deteve-se
a poucos passos de distância do branco edifício, e deixando a
esposa à sombra de umas oliveiras, encaminhou-se só para a
casa branca em procura de um aposento onde pudesse
hospedar-se. Pela larga abertura das portas via-se no interior
revolver-se uma grande multidão de hebreus, cujos luxuosos
trajos mostravam a opulência da sua fortuna.

94
Um velho judeu de catadura repugnante, miserável
vestuário e amarelada cor, achava-se sentado em um banco
de pedra a dois passos da porta principal. Diante dele via-se
uma tosca e suja mesa, sobre a qual estava uma pequena arca
de ferro aberta, em cujo fundo brilhavam algumas moedas de
prata e ouro. Sua mão descarnada apertava um ponteiro, com
o qual ia inscrevendo sobre uma taboazinha encerada o nome
dos seus hospedes.
- A paz seja contigo, bom velho, disse José saudando o
judeu.
- Que queres?
- Minha esposa e eu vimos escrever os nossos nomes no
livro de César; somos de Nazaré, e pedimos-te por Jeová que
nos concedas um pedaço de teto onde nos alberguemos.
- A minha casa está aberta para o viajante que paga a
hospedagem.
- Nós, amigo, somos pobres; não temos um miserável
sestércio.
- Nada de bom nos vem da Galiléia, redarguiu o judeu.
E voltando grosseiramente as costas a José, pôs-se a
falar afavelmente com um romano, cujo cinturão de ouro e
brunido capacete apregoavam sua alta categoria militar.
José, exalando um suspiro, afastou-se daquela porta e
foi juntar-se a sua esposa.
- Entremos na cidade, respondeu a Virgem com doçura.
Talvez lá achemos uma alma caritativa que nos hospede.
Os dois consortes dirigiram-se para Belém. Pobres
como os errantes peregrinos que mais tarde deviam percorrer
a Palestina para adorarem o Santo Sepulcro de Cristo, José e
Maria atravessaram as estreitas ruas de Belém, sem
encontrarem uma casa caridosa que lhes abrisse as portas.

95
O sol começou a ocultar-se e ainda os pobres nazarenos
não tinham um telhado onde pudessem passar a noite, que
ameaçava ser fria e chuvosa. No entanto, a resignação via-se
pintada nos seus semblantes, e nem uma só queixa saiu dos
seus lábios durante aquelas longas horas de angústia.
A casta esposa, a imaculada Virgem, achava-se no
último mês de gravidez, e José, ao vê-la sorrir ante a
desgraça e a pobreza que os cercava, sentia despedaçar-se o
coração. O nobre operário batia a uma e outra porta,
suplicando com palavras doces que lhe concedesse, para
passar a noite, o canto mais desprezível da casa.
- Não cabes aqui, galileu, respondiam-lhe os
inopistaleiros habitantes de Belém.
E José, tornava a suplicar, e as suas súplicas eram
desatendidas.
Terna Virgem de Sion, inesgotável fonte de caridade e
ternura, mãe puríssima e imaculada que levas nas tuas
virginais entranhas o Verbo Divino e que não achaste um
sorriso compassivo, nem mão carinhosa, nem casa
hospitaleira que te recebesse com amor, a Ti que és toda
afeto e caridade! Jeová, nos seus misteriosos desígnios, quis
pôr à prova a tua inesgotável paciência, a tua incomparável
resignação e a tua bondade. Já fatigados de andar, a noite
veio surpreender os santos forasteiros em um extremo da
cidade. Ante os seus tristes olhos estendia-se a solitária
campina de Belém. Rodeava-os o silêncio da morte.
A lua com os seus melancólicos raios alumiava o santo
grupo que imóvel e indeciso, não sabia para onde dirigir-se.
O uivo do lobo e o estridente regougar dos chacais
começaram a ouvir-se nas vizinhas espessuras, anunciando a
hora de saírem dos seus covis.

96
Os santos esposos encontravam-se ao sul de Belém, e
não muito longe da cidade que lhes tinha negado
hospitalidade, quando um raio claríssimo e brilhante da lua
incidiu do céu sobre um penedo que se achava a poucos
passos do lugar que ocupavam. Pela parte do norte a imensa
fraga apresentava um ponto escuro, José aproximou-se para
reconhecer o terreno que o rodeava. De repente deu um grito
de alegria. Aquela mancha escura da pedra era a entrada de
uma caverna bastante espaçosa que, estreitando-se para o
interior, servia de curral aos rebanhos dos belemitas e
algumas vezes de asilo aos pastores nas noites de
tempestades. Os dois esposos deram graças ao céu por lhes
ter deparado aquela asilo selvagem; e Maria apoiando-se
ao braço de José, foi sentar-se sobre uma pedra nua que
formava uma espécie de assento estreito e incômodo.
Pouco a pouco seus olhos foram acostumando-se à
obscuridade que os rodeava ; e então viram que não
estavam sós. Um boi manso e tranquilo ruminava
pausadamente os últimos restos do seu jantar.
José colocou a jumentinha junto ao boi, em seguida
estendeu o manto de peles aos pés da Virgem, e sentou-se
sem descerrar os lábios.
Maria, a imaculada nazarena, a filha de Davi, a imortal
senhora nossa, deu à luz naquele miserável presépio, sem
socorro, o Messias prometido, o Rei dos reis, o Filho de
Deus.
A terna mãe colocou o Divino, recem-nascido sobre a
palha da manjedoura e, ajoelhando aos seus pés adorou-o
como ao enviado do céu. José imitou sua esposa.
A noite era fria, a caverna, úmida e desabrigada:
acender luz era impossível; porém o manso boi e a

97
inofensiva jumentinha prestaram o suave e temperado calor
da sua respiração para abrigarem o Divino Infante.
Entretanto Maria, inundada de lágrimas de prazer,
contemplava o terno Menino, que lhe enviava um sorriso
carinhoso.
- Como vos hei de chamar? exclamou a Filha dos
patriarcas inclinando-se sobre seu Filho. Imortal? Eu
concebi-vos por obra divina! Devo aproximar-me de Vós
com o incenso, ou oferecer-vos o meu leite? Serás
necessário que vos prodigalize os cuidados de mãe, ou
que vos sirva como escrava com a fronte no pó?1
A lua, desfeita em mil raios de prata, caia sobre tão
terno e encantador quadro, esmaltando-o com a sua suave e
formosa luz.
Deus tinha nascido: a humanidade ia brotar do seu
berço. Os deuses do paganismo resvalavam dos impuros
altares; os sacrificadores de Roma não achavam o coração
das vítimas.
Uma estrela apareceu no Oriente: Gabriel anunciava
aos pastores o nascimento de Cristo.
Herodes, o cruel idumeu, estremeceu; e com ele toda
Jerusalém. Todos estes prodígios anunciavam um
acontecimento assombroso, que ia encher de contentamento
o coração da aflita humanidade. Este acontecimento era que
Jesus nascia em um presépio, que o Cristianismo brotava do
seio de uma viagem em um pobre curral da cidade de Davi.

LIVRO TERCEIRO

OS PEREGRINOS DO ORIENTE

1
S. Basílio

98
Hei de vê-lo, mas não agora, hei de olhar para ele, mas
não de perto. De Jacó nascerá uma Estrela, e de Israel se
levantará uma vara; e ferirá os caudilhos de Moab e destruirá
todos os filho de Seth.
E a Iduméia será propriedade sua: a herança de Seir
cederá aos seus inimigos, porém Israel procederá com
esforço.
De Jaó sairá aquele que há de dominar e destruir as
relíquias da cidade (Liv. dos Números cap. XIV, Vaticinio
de Balaão)

CAPÍTULO I

OS PASTORES

Algumas choças humildes agrupadas pelo amor na raiz


de um monte indicavam ás peregrinas caravanas que aquilo
era uma povoação. Esta povoação chamava-se o povo dos
Pastores.
A meia légua de distância da cidade de Davi, os seus
simples habitantes passavam a modesta existência
alimentando os rebanhos com a verde erva dos vales, e a sua
esperança de israelita com (a anunciada vinda do Messias,
que havia de libertá-los do jugo estrangeiro.
Era o mês de dezembro, e o curso das estrelas marcava
meia noite.
Agrupados em redor de uma fogueira extinta, debaixo
do frágil teto de uma choça, achavam-se alguns pastores
velando pelas suas adormecidas ovelhas. O frio era extremo.
Entre os pastores via-se um velho de branca e comprida
barba, e em cuja venerável cabeça brilhavam a honradez e a

99
virtude dos antigos patriarcas. Sentado sobre uma pele de
carneiro, com os cotovelos sobre os joelhos e a cabeça entre
as mãos, achava-se imóvel como Ló, na presença do enviado
do Senhor.
- Má profissão é a do pastor, velho Sof, quando se tem
que estar de vela em uma noite como esta.
- Tens razão, mancebo, respondeu o velho sem levantar
a cabeça; porém Abraão foi pastor e era melhor que nós; e
isso deve consolar-te.
- Porém, esse patriarca criava a lã dos seus rebanhos
para seus filhos, enquanto que nós só trabalhamos para pagar
o tributo a César e alimentar os vícios dos ímpios romanos
que, em má hora, invadiram nossa terras.
- Os romanos, que Jeová confunda, riem-se dos
sofrimentos dos judeus, disse outro pastor intervindo na
conversação.
- Como para eles não somos mais que um bando de
escravos...
- Ai dos ímpios romanos! Ai dos torpes adoradores do
sombrio Molok e da lúbrica Vênus, se o Messias prometido
desce dos céus a salvar os filhos de Israel da escravidão!...
E ao pronunciar estas palavras, nos olhos da ancião na
expressão do seu semblante, via-se algo extraordinário e
profético.
- Muito tarde, o Messias, bom velho, atalhou outro
pastor. E, entretanto, o sanguinário Herodes trata-nos como
cães e ri-se da nossa dor e das nossas esperanças.
- Respeitemos os decretos e desígnios de Jeová.

100
- Melhor seria se todos os israelitas corressem a unir-se
com os bandos de homens livres da montanha para
expulsarem os estrangeiros de Judá.1
- Os assassinos e os salteadores, nunca podem devolver
a liberdade aos filhos de Abraão. Só ao Messias é permitido
gular-nos na noite escura do nosso infortúnio. Esperemos,
pois, a sua vinda.
- A paz de Deus seja convosco, disse uma voz doce e
harmoniosa, a cujo acento se comoveu o coração do ancião,
que se pôs em pé.
- Quem é? Entre com Jeová, disse o velho pastor. Se
fores viandante e procuras albergue, entre e toma a minha
pele de carneiro par a tua cama; se tens fome, vem servir-te
do pão do pobre e do leite das suas ovelhas.
O récen vindo entrou na choça. Era um adolescente de
vinte anos. Os seus olhos eram azuis como as violetas de
Jericó. Seu olhar, doce e benévolo, como o de uma virgem
do tempo de Sion. Seus cabelos, louros como as espigas do
Egito. Os lábios vermelhos como o pequeno fruto do
terebinto. A fronte radiante como o céu da Palestina em um
formoso dia de janeiro. Uma túnica alvíssima como a
castidade cobria-lhe o corpo em inumeráveis dobras. No
meio do peito brilhava-lhe uma estrela formosa, cujos raios
luminosos iluminaram com viva claridade os escuros
recantos da choça.
Aquela formosa aparição encheu de assombro os
pastores.
- Quem és? – perguntou o ancião com espanto.

1
Estes bandos de homens livres sobressaltavam bastante a Herodes e aos romanos. Alguns tinham
uma bandeira política; outros não eram mais que hordas de assassinos que entravam às vêzes em
Jerusalém, cometiam crimes horríveis á luz do meio dia e no meio das ruas. – (Flavius Josephus)

101
- Gabriel me chamo, e venho dar margens do Tigre
guiando três reis magos do Oriente que abandonaram a
populosa cidade de Seleucia para me seguirem.
- Vens acaso livrar-nos da opressão dos romanos? –
exclamou o velho pastor com alegria.
- Venho anunciar o Messias prometido, que acaba de
nascer.
Os pastores olharam atônitos com receosa curiosidade
para Gabriel.
- Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos
homens! Ajuntou o recém-chegado.
Do seu corpo saiam torrentes de clara e viva luz.
Cânticos celestiais ecoaram no espaço, repetindo:
- Glória a Deus, paz aos homens! Glória nos céus,
paz na terra ás criaturas de pensamento humilde e de
coração singelo.
Os pastores, assombrados e tímidos ante aquele
prodígio, começaram a retroceder.
- Nada receies, disse-lhes Gabriel, porque eu venho
trazer-vos uma nova que será para todos motivo de
grande alegria. Hoje na cidade de Davi nasceu o Salvador
que é Cristo. Eis aqui o sinal para o encontrardes; em
panos deitado em uma manjedoura encontrareis um
menino; esse é o Messias.
O desconhecido mancebo dispunha-se a abandonar a
choça, quando o velho pastor, prostando-se-lhes aos pés,
exclamou:
- Antes de abandonar-nos, dize ao menos quem és.
- Sou Gabriel, o anjo emissário de Deus sobre a terra.
O anjo desapareceu, a brilhante claridades dissipou-se,
os cânticos celestes cessaram. Então os pobres pastores
olharam uns para os outros com assombro.

102
- Abraão! Abraão! – exclamou o velho jubilosamente.
Deus sem dúvida quer que os bons tempos voltem, pois os
anjos descem do céu a visitar os homens.
Os simples pastores, loucos de alegria, pela graça que
Deus lhes concedia, saíram da choça; e deixando os rebanhos
sem mais guarda que a silenciosa noite, correram a despertar
amigos e parentes para participar-lhes a venturosa nova. O
povo em massa abandonou os seus humildes leitos apesar do
frio e do adiantado da noite, e carregando em uma formosa
jumentinha todos os dons que a sua pobreza tencionava
oferecer ao recem-nascido, encaminhou-se para Belém. O
velho pastor ia adiante. Como Zorobabel, pôs-se à frente dos
seus compatriotas para os conduzir á terra desejada. O arrabil
e os tamboris lançaram ao ar as suas pastoris melodias. As
jovens dançavam, e os rapazes soltando alegres cantos,
faziam mais curta a distância que os separava do Cristo
prometido. A alegre comitiva chegou por fim a venturosa
cidade que Deus tinha escolhido para pátria nativa do seu
Filho. Os pastores detiveram-se ante as primeiras casas para
tomarem uma deliberação.
- Onde está o Messias? perguntaram as curiosas
mulheres ao ancião. Queremos adorá-lo e depositar a nossa
pobreza aos seus divinos pés.
O velho pastor não sabia que responder. Belém, apesar
de não ser uma cidade muito populosa, era-o bastante para
não se encontrar de pronto à meia noite uma criança recém-
nascida. Um acontecimento sobre natural veio porém indicar
o que os pastores procuravam. Uma estrela, lá do azul escuro
do firmamento, dardejava um raio de formosa e clara luz
sobre o negro pórtico de um curral.

103
Os pastores voltaram a cabeça, como levados por um
impulso alheio à sua vontade, para o ponto onde incidia o
raio estelar.
- É aqui! Exclamaram todos com alegria e com uma
certeza que admirava a eles mesmos. Entremos...
E penetraram no curral. Deitado em uma manjedoura,
sem mais leito que um montão de palha, achava-se um
menino recem-nascido, formoso como devia ser o Filho de
Deus, gerado nas virginais entranhas de Maria. Aquele
menino era o prometido Messias, o Homem-Deus que
baixava à terra para morrer mártir pelos pecados da
humanidade; José e Maria, junto à manjedoura,
contemplavam com afeto aquele sagrado depósito que Deus
lhes confiava. A entrada dos pastores fez-lhe afastar os olhos
por um momento de seu filho.
- Senhora, disse o mais velho dos pastores, ajoelhando-
se, Tu deves ser uma rainha visto que um anjo do céu nos
manda adorar teu Filho; aceita, pois, estas pobres oferendas
que a teus pés vêm depositar os simples pastores. A
mesquinhez dos nossos dons é suprida pela boa vontade com
que os trazemos. Assim, pois, julgar-nos-emos ditosos se os
teus divinos lábios, ao depositarem o beijo maternal no
Messias que dorme na palha, intercederem por nós com o
enviado de Jeová, com o Salvador do povo abatido de Israel.
Ao terminar o ancião as suas palavras, vários pastores
depositaram aos pés da Virgem as humildes oferendas que
traziam, e uma donzela, colocando-lhe no regaço um
cordeirinho, ajuntou:
- Oh! Mãe de Deus! Branca, como as neves eternas do
Arará, é a cor deste cordeirinho que trago ao meu Senhor:
suave como os cabelos de Absalão é a lã que envolve as suas
delicadas carnes; puro como o sorriso dos teus lábios, doce

104
como o olhar dos seus olhos é o seu coração; aceita-o, pois,
Senhora, e com ele o gozo e a alegria de meu pai Sof, a quem
Deus concedeu este imenso favor de prestar este pequeno
tributo ao Cristo anunciado pelos profetas, antes de exalar o
último suspiro.

- Aceito, meus bons amigos, em nome de meu adorado


Filho, com lágrimas de gratidão, os presentes que me trazeis.
Jeová, que está olhando por vós e lê nos vossos corações, vos
recompensará como mereceis.
Maria e José receberam com carinhoso afeito os dons
dos pastores simples. Enquanto que uns após outros se
ajoelhavam junto ao presépio, para beijarem a palha em que
Jesus descansava, o arrabil e os tambores faziam ouvir as
suas campestres melodias, as donzelas dançavam alegres
ante o Menino Deus e seus augustos pais, e os rapazes
elevavam louvores ao Deus de Sion.
A lua com os seus raios de prata alumiava aquele
poético e singelo quadro, e o Eterno, do seu trono imortal,
abençoava os rústicos pastores que iam beber a primeira gota
da fecunda água do Cristianismo ao pé do pobre berço de seu
Filho.
Os pastores abandonaram o presépio depois de terem
adorado Jesus e, loucos de alegria, correram a espalhar a boa
nova por todos os contornos de Belém.
- O Messias nasceu! Bradavam com fé e entusiasmo os
verdadeiros descendentes de Abraão. Está salvo Israel!
Glória a Deus nas alturas.
CAPÍTULO II

OS ÁRABES

105
A luz do dia flutuava indecisa por entre as sombras da
noite. As pombas ainda não arrolhavam nos frescos cedros
do Líbano, quando uma caravana árabe que ladeava as faldas
do Carmelo, se deteve à voz do seu chefe, junto à fonte do
profeta Elias. Os obedientes camelos dobraram as nodosas
pernas, oferecendo desde modo fácil descida aos seus
senhores. Alguns árabes, envoltos nas brancas túnicas de lã,
apearam-se e, estendendo sobre a erva uns panos de vistosas
cores, sentaram-se cruzando as pernas junto a umas oliveiras.
Os camelos estenderam o comprido pescoço e aplicaram o
focinho ao fresco manancial que brilhava ante os seus olhos
e começaram a ruminar sossegadamente o penso de favas
secas que lhes tinham colocado em sacos pendentes das suas
cabeças. Um dos árabes limpou uma pedra e, colocando
sobre ela alguns punhados de trigo, começou a triturá-lo com
outra pedra; depois, fazendo uma espécie de massa com água
da fonte e um líquido extraído de uma vasilha de barro, foi
apresentar aos seus mudos companheiros aquele estranho e
frugal almoço. Comeram todos daquela massa e, elevando os
olhos para o Oriente, murmuravam em voz baixa uma
oração. De repente os silenciosos árabes interromperam sua
oração e, afastando os olhos do céu, procuraram na terra
alguma cousa que sem dúvida promovia sua curiosidade.
- Ouves, Hassaf? disse um dos árabes. Que dizes desta
música campestre, misturada com o canto da voz humana,
que chega até nós através das sombras silenciosas da noite, e
das palmeiras e das árvores da montanha?
- Digo que morreu algum desses orgulhosos
descendentes de Abraão que sofrem o jugo dos romanos, e
que os seus parentes o conduzem ao vale de Josafá.
- O eco que chega até nós não é o gemido triste e
monótono das carpideiras; ouve...

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- Tens razão. É um canto alegre e os gritos com que o
acompanham são de contentamento.
- Parece que as vozes se aproximam de nós e, nesse
caso...
- Vamos! Atalhou o outro, encolhendo os ombros. Os
judeus perderam seu antigo valor; fanáticos crentes das suas
tradições e dos seus profetas, sua vida é uma esperança, e
entretanto nascem e morrem escravos.
- Ibraim, sabes onde estamos? Perguntou Hassaf ao
interlocutor.
- Junto à fonte de Elias.
- Pois bem, Elias era um raio do Deus dos israelitas, e
eles vêm beber desta água porque dizem que endurece o
coração e aumenta o valor.
- Bem sei que nas grutas do Carmelo se refugiam os
terríveis discípulos desse profeta; porém nunca atacam os
árabes, mas os romanos. Nossa frontes, tostadas pelo sol do
Egito e pelo simun do deserto, agradam-lhes menos que os
rostos rosados e os perfumados cabelos desses mercenários
do idumeu, que na sentina do mundo beberam o leite das
suas prostitutas amas.
- Confia menos no teu valor, atalhou Hassaf, e lembra-
te de que esses camelos que estão descansando, e a pesada
carga que levam são a única fortuna de nossos filhos.
- Uma caravana árabe que, como a nossa, conta
quatorze condutores, não se rouba tão facilmente.
- Alá nos deixe voltar sãos e salvos à nossa terra e com
o trigo bem vendido.
- Ele te ouça, responderam vários árabes, que até então
não haviam proferido palavra.
A gritaria, a algazarra, o canto dos homens e os sons
dos instrumentos, iam aproximando-se cada vez mais da

107
fonte, junto da qual haviam acampado os árabes. As sombras
escuras da noite começavam a dissipar-se. Uma linha tíbia e
indecisa claridade anunciava os primeiros crepúsculos da
aurora. Os árabes puseram-se em pé, ao verem uma sombra
deslizar-se por entre o mato.
- Quem vem lá? Perguntou Hassaf, empunhando o
comprido punhal.
- Nada tema o árabe, respondeu uma voz.
E imediatamente apareceu um jovem entre os
comerciantes do Egito.
- Que queres? volveu a perguntar.
- Água, respondeu laconicamente o recém-chegado,
aplicando a boca ao fresco manancial que deslizava entre os
camelos.
- Quem és? tornaram os árabes a perguntar.
- Um discípulo de Elias.
Então Hassaf aproximou-se de um dos camelos,
introduziu a mão em uma cesta de palma, e tirando dela um
punhado de pêssegos secos, disse:
- Toma. Os árabes oferecem-te a amizade ao darem-te o
fruto da sua terra; já sabes que quando um filho de Agar
reparte com um forasteiro a sua frugal comida, é porque a
sua pessoa lhe é sagrada desde aquele instante.
- Bem sei, respondeu o jovem desconhecido, sentando-
se entre os árabes e comendo sem receio.
Seu semblante, ainda que um tanto pálido, era formoso,
pois seus grandes e negros olhos tinham uma viveza que
admirava. Um saio comprido de lã escura cobria-lhe o corpo
e as sandálias de pele de lobo preservavam-lhe os pés das
espinhosas plantas do monte. Este mancebo tinha o quer que
era de extraordinário. Poderia ser tomado por um demente:
no entanto seu semblante respirava doçura e resignação,

108
traços que formavam contraste com a sobriedade das suas
palavras e com o desalinho do seu vestuário.
Os árabes contemplaram-no em silêncio com esse olhar
frio e investigador dos filhos do deserto. O moço estrangeiro
continuava a comer com a mesma indiferença como se
estivesse só em uma das sombrias cavernas do Carmelo.
Entretanto, o longínquo e alegre ruído dos árabes e dos
cantos ia-se aproximando cada vez mais da fonte de Elias. Os
árabes começaram a distinguir por entre as árvores o grupo
dos alegres e madrugadores pastores que para eles se
encaminhava. Os mercadores egípcios conheceram desde
logo que aqueles novos hóspedes eram gente de paz. Alto!
Alto! Gritaram os pastores agrupando-se em volta dos
camelos.
- Sim, alto! Ajuntou uma pastora com alegre e
sonora voz. Bebamos da água santificada pelo profeta
Elias, e continuemos a jornada, se os da caravana o
permitirem.
- A água é do céu. Deus derrama-a sobre a terra para
aplacar a sede dos homens. Maldito seja aquele que a negar
aos seus semelhantes! Afogado se veja por falta de água
entre as áridas areias do deserto!.
O árabe que pronunciou estas palavras apresentou com
gravidade um púcaro de ferro à pastora, a qual foi enchê-lo
na fonte, fazendo-o passar depois de mão em mão pelos seus
companheiros.
- Aonde vão os pastores tão alegres e contentes?
Perguntou um dos árabes da caravana.
- Vamos, respondeu um velho de branca e venerável
barba, espalhar pelos povos da Galiléia a fausta nova de que
é vindo o Messias anunciado pelos profetas.
- Estás louco, ancião? replicou o árabe sorrindo.

109
- Estrangeiro, nunca tive o juízo tão são e os gracejos
não ficam bem aos meus cabelos brancos.
- Pelo meu rei Aretas, hebreu, não te compreendo.
- O anjo Gabriel apareceu-nos na nossa choça. Eu o vi,
e estes que me seguem tiveram a mesma dita. A luz celeste
de Jeová caiu sobre as nossas cabeças; o canto harmonioso
dos anjos ecoou aos nossos ouvidos; a estrela guiou os
pastores da serra até junto do berço do seu novo Rei, que
deve libertar do opróbrio o povo israelita.
Os árabes olharam com assombro uns para os outros.
Aquele velho era um visionário ou um profeta? O que
acabava de referir era uma verdade, ou uma ilusão fingida
pelo desejo de todo o israelita? A curiosidade dos árabes não
podia ficar com aquelas dúvidas.
- Esse Messias, esse Rei desejado, e que dizeis que
acaba de nascer, deve ser filho de um príncipe de Jerusalém
deve estar de festa....
- Não, árabe, replicou o velho pastor. O rei prometido
teve por berço uma manjedoura e por palácio um curral. Sua
mãe não é uma princesa poderosa, mas sim Maria, esposa de
José, o carpinteiro de Nazaré.
Alguns árabes soltaram uma gargalhada estrepitosa;
outros ficaram meditabundos. De repente, o misterioso
discípulo de Elias pôs-se em pé e, aproveitando um momento
em que os árabes deliberavam em voz baixa, aproximou-se
do ancião, e pegando em uma das duas mãos, disse-lhe:
- Ancião, pela honra das tuas barbas, pelas cinzas de
teus pais e pela paz de teus filhos, suplico-te que respondas
às minhas perguntas.
- Fala.
- Viste o anjo de Jeová?
- Como te estou vendo.

110
- Em que lugar teve lugar esse prodígio?
- Em Belém de Judá.
- Obrigado, bom velho.
E o misterioso homem, rápido como o gamo perseguido
pela matilha, perdeu-se por entre a espessura das árvores.
Os pastores depois de saudarem os árabes seguiram
monte acima amenizando o caminho com os seus cantares e
com o som dos rústicos instrumentos.
- Ouviste, Ibraim?
- Sim, Hassaf, porém rio-me das ilusões dos judeus, não
há mulher na Palestina que, ao dar à luz um menino, não o
julgue o Messias.
- Porém esses pastores dizem que viram e falaram com
o mensageiro de Jeová.
- O faminto sonha sempre com os delicados manjares
dos festins de Baltazar; e os judeus sonham com o Messias,
que os deve libertar do opróbrio que sobre as suas cabeças
lançou o estrangeiro.
- A dúvida é indigna de um crente como tu.
- Quando vejo os meus camelos enterrarem-se até os
joelhos nas areias do deserto, digo comigo: Alá é grande!
Quando o furioso simun envolve com as suas nuvens de areia
e fogo a minha espantada caravana, digo para mim: Alá é
poderoso. Quando ouço o canto das aves do paraíso, quando
o aroma das flores de um oásis me embriaga, digo também
comigo: Alá é bom e misericordioso! Então pressinto-o,
vejo-o através do espesso véu que me venda os olhos. Mas o
filho de uma hebréia que nasce em um presépio, só me diz
que nasceu um escravo mais dos romanos e feneceu uma
esperança dos israelitas.

111
Os árabes são muito dados à controvérsia. No entanto,
Hassaf cruzando os braços, exclamou com acento quase
imperceptível:
- Eu verei esse menino.
Pouco depois o dia dissipou com os seus formosos raios
as últimas sombras da noite. A caravana depôs-se a continuar
a interrompida marcha, e os obedientes camelos puseram-se
em pé à voz de seus donos.
Deixemos, porém, os árabes caminhando com os seus
camelos para Jerusalém e, retrocedendo um pouco, vamos ao
encontro de outros personagens que, como os pastores, eram
conduzidos até o Menino-Deus pela vontade do Eterno.

As trombetas lançam ao vento o toque de partida na


populosa cidade de Seleucia. Os bárbaros soldados da
moderna Babilônia reunem-se debaixo dos altivos pórticos
do palácio do seu velho rei. Nos seus robustos braços
brilham os braceletes de ouro, e nas suas calosas mãos a
pesada lança ou o ligeiro arco. Fortes como o leão, ligeiros
como o gamo, os dromedários esperam deitados no meio da
larga praça do palácio a hora da partida. As suas chatas
cabeças, ajaezadas com borlas de prata e seda, aspiram com
delícia o ar puro da manhã.
Os escravos começam a colocar as tendas, os alforjes
de víveres e os odres de água para a viagem sobre os
robustos e gibosos dorsos dos dromedários.
Os sátrapas com as suas brancas roupagens, os oficiais
com o marcial e guerreiro aspecto, agruparam-se nos
primeiros degraus da escadaria, esperando o seu senhor afim
de o saudarem antes da partida. O bélico som da trombeta
ressoa pela segunda vez ao extremo de uma das largas ruas

112
que desembocam na praça do palácio. Todos os olhos se
dirigem para aquele ponto.
Os seleucianos abrem as janelas e perguntam com
assombro o motivo daqueles aprestos militares que lhe
roubam o doce sono da manhã. Os medrosos pensam na
guerra, temem pelas suas vidas e pelas dos seus parentes, e
olham com receio para o brilhante séqüito que passa por
diante das suas portas fechadas. Os valentes sentem pulsar o
coração ante o brilho das armas.
A frente da luxuosa comitiva cavalga sobre um
dromedário um jovem ataviado com os magníficos
ornamentos das índias. Rico turbante recamado de
esmeraldas lhe envolve a fronte; um penacho verde saí do
centro de uma fivela de brilhantes, descaindo-lhe sobre as
faces; fina é a lã do seu encarnado Albornoz, rica é a faixa de
seda azul com franjas de ouro que lhe cinge a cinta; um
comprido punhal de damasco pende-lhe ao lado, e as
chinelas que lhe cobrem os pés nus, brilham como o mar
quando é ferido pelos raios da lua. Negro como a noite é a
cor do seu semblante, que brilha como as pérolas de Bassorá
aos raios do sol. Seus lábios grossos teen a cor de romã. Seus
dentes são brancos como o leite das camelas. Os grandes
olhos assemelham-se a duas amoras colocadas em um círculo
de neve; porém os olhares são tristes e melancólicos.
Porque Belchior, rei peregrino, cometeu um crime
horrendo, e implora o perdão dos céus. Por isso abandonou a
Judéia oriental que é a sua pátria. Por isso chegou a Seleucia
para consultar os sábios a respeito do seu nefando crime. É
triste o seu olhar, triste a sua atitude, tristes as suas palavras.
Seu sono é desassossegado, porque sempre ouve nele a voz
de uma irmã que lhe brada sem cessar:

113
- Belchior, restitui-me a honra! Maldito sejas infame
incestuoso!
Porque Belchior desonrou sua irmã, e esse crime
oprime-lhe o coração, mata sua felicidade e afugenta-lhe o
sono. E assim como a errante caravana procura no deserto a
fonte desejada, o oásis apetecido, assim Belchior percorre a
terra ansioso do perdão.
Gaspar, o rei mago, o profundo conhecedor da imutável
ciência dos astros, recebeu-o com os braços abertos, como o
pai carinhoso recebe o filho desgarrado. As suas palavras de
consolação derramaram a esperança no angustiado coração
do rei peregrino e os compridos cabelos brancos inspiram-lhe
confiança sem limites.
- Corre, disse-lhe um dia, apronta a tua gente e os teus
dromedários para uma viagem que devemos empreender
amanhã, e cujo termo ignoro ainda; aquela estrela fulgente,
que se move por entre as brancas nuvens, deve conduzir-nos
aos pés do rei de Judá, do anunciado Messias. Aquela estrela
é a que Jacó anunciou pela boca de Balaão.
Belchior obedeceu a Gaspar, e seguido dos seus negros
escravos entrou antes de nascer o sol na larga praça onde o
rei sábio tinha seu palácio. Os soldados de Seleucia
saudaram a chegada do estrangeiro, que seu senhor recebera
como a um filho. Pouco depois apareceram, nos arcos da
praça, Gaspar e Baltazar. Os escravos fizeram uma como
escada como os seus corpos para os reis subirem até aos
acastelados dorsos dos dromedários. Em seguida, a uma
ordem do mais velho, as trombetas tornaram a tocar os seus
estridentes sons. A caravana começou a mover-se, e por fim
tomou por uma das largas ruas que conduziam à porta do
Ocidente.

114
Os três reis magos iam adiante, falando amigavelmente.
Atrás deles caminhava em silêncio o luxuoso esquadrão.
- Para onde irão? Perguntavam os seleucionos.
Ninguém o sabe; e, enquanto cresce a curiosidade, o
veloz passo dos dromedários afasta-os da cidade, sem que a
multidão possa dar uma razão plausível do que vê.
Finalmente, a comitiva desaparece, e os curiosos olhos não
vêem mais que as nuvens de pó que deixam após si os reis
magos. As perguntas sucedem-se, os comentários e os
absurdos correm de boca em boca; porém a verdade ignora-
se e a curiosidade fica burlada. Gaspar, Baltazar e Belchior,
mas que homens de guerra, são homens de ciência. Para onde
irão, pois, os sábios reis? Os grupos dispersam-se, o sol
anuncia com os seus raios de fogo a hora do trabalho, e
Seleucia torna a recobrar seu estado normal.
Entretanto, a esplêndida caravana caminha avante, sem
rumo certo. Quando chegaram às ruínas da antiga Babilônia,
Gaspar deteve o dromedário e abrangeu com um olhar
doloroso o resto da cidade favorita dos caldeus, que só
continha escombros em redor da soberba torre de Belo, e
apresentava ruínas em volta dos mármores que em tempo de
pedestal à estatua altiva de Bres-Nemrod. Ainda ontem, por
assim dizer, circulavam alegres seiscentos mil habitantes
pelas suas ruas e cem deuses eram adorados nos seus templos
de mármore e ouro; e já hoje tudo aquilo não é mais que uma
mansão de espanto, um montão de entulho, que o furação
espalha com o seu possante sopro, e que só serve de refúgio à
selvagens feras do deserto. Seus frondosos jardins, seus
elegantes palácios já não existem. Só no meio de tanta
desolação cresce uma árvore cujo nome é desconhecido aos
viandantes, e a cuja sombra acampam as caravanas.

115
Ali o filósofo medida, o poeta canta, o crente ora, e
todos pensam em Deus. Gaspar, à sombra da solitária árvore
das ruínas, elevou sua oração ao céu. Os soldados imitaram-
no, porque, como ele, julgavam ouvir a voz do profeta Isaias
quando repetia no meio daquelas solidões: “Essa Babilônia,
tão distinta entre os reinos do mundo e cujo esplendor tanto
orgulho inspira aos caldeus, será destruída como Sodoma e
Gomorra. Nunca mais tornará a ser habitada; nem mesmo os
árabes levantarão ali suas tendas, nem os pastores deixarão
descansar seus rebanhos”.
Terminada a oração como uma lembrança tributada aos
senhores daquela rainha do mundo, a comitiva tornou a
empreender a interrompida marcha. Gaspar, o venerável
ancião, não afastava os olhos do céu, onde uma estrela, que
os raios do sol não podiam ofuscar, brilhava com estranho
fulgor. Astro misterioso, núncio divino que, olvidando as
invariáveis leis que regem os globos, ora se suspende nos
caprichosos flocos de uma nuvem nacarada, ora lança os seus
luminosos reflexos pelo límpido horizonte, que se entende ao
longe como um imenso pedaço de gaze. Com marcha
irregular dirige-se para o Ocidente. Os reis caminham após
ela atraídos por misteriosa força.
- Sim, não me engano, Belchior, disse Gaspar
estendendo o braço em direção à formosa estrela que, como
um pequeno sol, caminhava sempre diante dos três reis,
como se quisesse indicar-lhes o caminho que deviam seguir.
Não há nenhum astro no globo celeste que marque aquele
rumo; aquela estrela é completamente desconhecida dos
astrólogos caldeus.
- Sigamos a sua bela luz, exclamou Belchior com
júbilo. Ela é a minha esperança, nobre ancião.

116
- Não a percamos de vista e ela marcará o termo da
nossa peregrinação, disse por sua vez Baltazar.
- Assevero-vos, volveu Gaspar, que esta é a estrela de
Jacó, anunciada pelo profeta Balaão. Valor, amigos, ela será
para nós como a coluna luminosa que guiou os israelitas às
desertas plagas do mar Vermelho.
E os reis magos seguiram com a fé no coração e os
olhos no céu a caprichosa marcha do seu guia radiante.
Os dromedários andam mil estádios (40léguas
aproximadamente) de sol a sol, como afirma Aristóteles. A
estrela guiadora dos reis magos, colocada sempre à mesma
distância dos ligeiros quadrúpedes, seguia a sua marcha
sujeitando-se à dos seus seguidores. Quando a noite estendia
seu manto de sombras sobre a terra, o divino facho,
suspendendo a marcha, indicava aos viajantes que havia
soado a hora do descanso. Então ao verem a estrela imóvel,
suspensa sobre suas cabeças, os reis ordenavam aos escravos
que levantassem as tendas; depois da frugal ceia,
entregavam-se tranquilos ao sono, que lhes devia reparar as
forças para o dia seguinte. Passava a noite, o sol nascia, e a
estrela fulgente tornava a empreender a silenciosa marcha
sempre para Ocidente. A caravana seguia o farol misterioso
uma e outra jornada, sem dúvida porque Deus lhe alentava as
esperanças. A estrela, como uma rainha, indicava a hora do
descanso, o momento da partida. E assim decorriam os dias
e as semanas.
“Qual era, pois aquela estrela que nunca tinha
aparecido no meio dos astros, e que depois ninguém mais a
pôde encontrar no firmamento? Não era isto uma linguagem
magnífica do céu para cantar a glória de Deus e o parto de
uma Virgem?

117
O nascimento de Jesus foi grande, tal como devia ser o
de um Deus. Os pastores abandonaram os seus rebanhos para
o adorar. Os reis do Oriente deixaram os régios palácios para
empreender uma peregrinação cujo termo lhes era
desconhecido. Seleucia, a nova Babilônia, via-os partir com
assombro. Nunca o filho de um conquistador da terra se viu
tão honrado como Jesus, o filho de um pobre carpinteiro,
cujo berço era u’a manjedoura e o leito, um montão de palha.
Os filhos dos reis recebem as homenagens por ordem
real. Todos os que se humilham ante o seu berço são
tributários forçados ou escravos que lambem a mão que lhes
forjou os grilhões, esperando a hora de poderem despedaçar
o mesmo ante que se humilham.
A incredulidade de alguns filósofos nunca pôde
explicar os assombrosos acontecimentos que rodearam a
vinda do Filho do Homem.
Herodes, rei poderoso e altivo que assassinava os filhos
e a esposa sem que um só dos seus músculos se agitasse,
sabedor do nascimento de Jesus, perturbou-se em si mesmo
e com ele Jerusalém inteira. Em seguida reuniu os doutores e
sacerdotes para saber o que devia fazer, porque seu espírito
tranquilo via surgir ante o seu poder a vingadora imagem de
um Deus forte, para transformar a ordem das cousas. Os
falsos deuses cairiam, rolando, em pedaços, dos altares. Os
escravos quebrariam seus grilhões. Os verdugos da terra iam
comparecer perante Deus para darem conta dos seus crimes.
Jesus, filho de José, vinha recordar Joás, filho de
Ocosias, e a lembrança de Atália afugentava o sono ao
verdugo da Galiléia.

CAPÍTULO IV

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JERUSALÉM

Antes de penetrarmos no recinto da cidade santa


volvamos um olhar para o seu passado. Este capítulo deve
ser o itinerário que nos guie no decurso desta obra.
O povo hebreu precisava fundar uma cidade forte, que
fosse a capital onde se assentasse o trono dos seus senhores,
o refúgio daquelas hostes que desde a saída do Egito corriam
errantes em busca da terra prometida.
Adonisec, um dos cinco reis vencidos por Josué,
fortifica-se com o seu povo, os jesubianos, no monte Sion.
Desta fortaleza inexpugnável desafia e escarnece o exército
de Davi.
- Os coxos e os cegos, lhe brada Adonisec, são os que
mandarei sobre ti. Eles bastarão para exterminar-te.
Davi, o rei da guerra, o eleito do Senhor, despreza as
bravatas de jesubeu; assalta a fortaleza, passa à espada a
guarnição, segundo o bárbaro costume de então, e o exército
vencedor acampa sobre os montes de Sion, Acra e Mória. O
rei contempla do cume o seu exército acampado. A lua
ilumina com seus raios de prata aquele quadro sublime. Davi
empunha a harpa e eleva a Jeová o canto do triunfo. Os doces
sons do instrumento, as vibrantes melodias da voz
privilegiada do rei vão perder-se nas asas da brisa noturna,
entre as florestas de Gaboad e nas côncavas rochas do
despenhadeiro dos Cadáveres. O dulcíssimo eco daquele
canto chegou até nós. Diz assim:
“Os reis da terra conspiram reunidos contra nós;
disseram-se em segredo: faremos desaparecer o nome Israel
da superfície da terra; mas o Deus forte preparou o meu
braço para a batalha; persegui os seus inimigos e avancei
sempre até que os aniquilei; caíram-me por fim debaixo dos

119
pés; dispersei-os como o pó ao sopro do vento; submeti
povos que não conhecia; humilharam-se ante a fama do meu
nome; o estrangeiro escondeu-se e tremeu no fundo do seu
retiro”.
Davi deixa a harpa e deleita-se na contemplação da
poética paisagem que se estende a seus pés. Seus olhos
fitam-se naquelas três montanhas entrelaçadas que têm
gigantescos fossos criados pela palavra do que faz brotar o
mundo do nada, do que suspendeu o sol no firmamento, do
que marcou limite às turbulentas águas do oceano.
Então vendo no Oriente o profundo vale de Josafá
arrastando pelo seu leito as avermelhadas águas do Cedron,
ao Meio-dia o escarpado barranco do Geenon, e ao Ocidente
o nome dos Cadáveres, exclamou com um gozo inexplicável:
- Jerousch al Aim, mansão da paz, tu serás a cidade
forte de Israel; eu te engrandecerei a ponto que as nações
hão de invejar-te. Eu elevarei pelo Norte, a tua parte mais
fraca, uma tríplice muralha onde se despedace a cobiça de
teus inimigos.
Davi, o rei da guerra, edificou Jerusalém, Salomão, o
rei da paz, engrandeceu. O jovem filho de Davi cingiu a
coroa no ano de 2970 da criação do mundo. O monte do
Gabaon viu correr pelas suas resvaladiças encostas o sangue
de mil vítimas sacrificadas a Jeová ante o altar de bronze de
Moisés. O senhor apareceu-lhe em sonhos e disse-lhe:
- Pede o que quiseres, meu amado.
Salomão, pediu-lhe a sabedoria e Deus concedeu-lhe
também a beleza, a riqueza e a glória. Salomão sobrepujou
os quatros filhos de Mocol, os primeiros poetas dos tempos.
Compôs três mil parábolas, cinco mil cânticos e um
gigantesco livro sobre as plantas e animais. Desde o cedro
que cresce e perfuma os cumes do Líbano ate o hissope que

120
se estende pelas quebraduras dos muros. Desde a águia que
desafia o sol com o seu olhar altivo até o diminuto peixinho
que se oculta nas esponjosas rochas do oceano.
Muitos destes livros perderam-se no decurso dos
séculos que rolaram sobre eles. Mas restam-nos os Salmos e
os Cânticos dos cânticos, cuja poesia se avantaja em
perfume aos lírios de Gaalbó, em viço às rosas de Saaron, e
em brilho aos diamantes do Golconda. Estes livros bastam
para imortalizar o seu autor.
Salomão chegou a ser o homem mais rico, mais feliz,
mais glorioso do mundo; mas faltavam-lhe artistas
construtores para levar a cabo o pensamento de seu pai:
edificar um templo a Jeová sobre o monte Moriá.
Hisan, rei de Tiro e Sidon, enviou-lhe os fundidores de
bronze, os arquitetos, os artistas que lhe faltavam. Dez mil
homens começaram a devastar do Líbano os aromáticos
cedros e sete anos depois o templo estava concluído. Os
jónios precisaram de duzentos e vinte anos para construírem
o templo de Diana em Efeso. Deus havia-lhe cumprido a sua
palavra, porque aquela maravilha da arte era
verdadeiramente um milagre. A fama levou pela dilatada
terra o nome o rei-poeta. As naus de Salomão percorreram os
mares, levando para a sua cidade amada, tudo que havia de
mais grandioso, mais rico, mais surpreendente nos extensos
países do universo.
A rainha de Sabá, a formosa Nicaulis, atraída pela fama
de Salomão, quis conhecê-lo e deslumbrá-lo com a sua
riqueza. A soberana do Meio-dia chegou à cidade santa
seguida duma comitiva deslumbrante. Ao pisar o pavimento
do palácio de Salomão, levantou a cauda do vestido coalhado
de pedras preciosas, temendo molhar os pequeninos pés
cobertos de diamantes e safiras. O rei sorriu vendo o receio

121
da princesa, pois o que ela julgara que era água, era cristal
brunido. Então Nicaulis disse-lhe:
- Ditosos os que alcançam a tua sabedoria, oh, rei!
Ditosos os que te servem , oh! Senhor!
O reinado de Salomão durou quarenta anos com uma
paz inalterável. O seu povo foi rico e felix. O glorioso
reinado de Davi, seu pai, empanou-o uma mancha: o
adultério cometido com Betsabéa, mulher de Uries, a quem
matou envergonhado da sua infâmia. O florescente reinado
de Salomão foi também manchado pelos vícios e pelas falsas
religiões que predominaram. A riqueza atraiu a Jerusalém
multidão de mulheres formosas de outros países, e Salomão,
adorando-as, acabou por adorar os seus ímpios deuses.
As samaritanas fizeram-no prostar-se ante o bezerro de
ouro; mas Jeová, repreendendo a impiedade de Salomão,
anunciou-lhe que o seu reino iria para às mãos dum servo
seu.
Então o povo hebreu dividiu-se: Judá conservou-se
obediente a Roboão, filho de Salomão; Israel proclamou
Jeroboão. A decadência do povo escolhido por Deus
começava a passos agigantados.
Roboão, Abia, Assa, Enjudá, Nadab, Baasa, Ela, Zamri,
e Achab, em Israel, passaram sobre a terra com as débeis
arestas que arrastam com seu furor o poderoso sopro do
furação. Josafá foi uma poderosa trégua para o povo hebreu.
Mas breve a inumana Atália caiu sobre as tribos como um
açoite do céu.
Em vão Elias, raio de Deus, procura reunir aquele povo
desgarrado. As suas palavras e os seus milagres são
desatendidos. Os descendentes de Abraão caminham para o
abismo como uma torrente caudalosa.

122
Atrás de Elias aparecem sucessivamente Jonas, Oséas,
Amós e Isaias. A vinda do Salvador é anunciada, porém os
ouvidos cerram-se para escutarem as proféticas palavras.
Ezequias, rei piedoso e valente, levanta a bandeira de
Judá contra os assírios. Os anjos ajudam as suas hostes. Deus
volve olhos compassivos para o povo escolhido como no
tempo dos fortes de Davi. Os nomes de Hachamoni, Bamias,
Sema, Jesboão e Fesdomoni recordam-se e renasce a
esperança. Morto Ezequias por seus dois filhos, o ímpio
Manassés ocupa o trono de seu pai. Covarde, malvado e
sanguinário, foge ante o exército assírio, esconde-se entre
umas sarças, mas é encontrado e conduzido escravo para
Babilônia. Sucede-lhe Amon, tão ímpio, tão miserável como
ele e vinte anos depois Nabucodonosor cai sobre Israel
devastando com seu exército babilônio. Nabuzardan, um dos
príncipes do exército de Nabuco, incendeia por ordem do seu
senhor o templo de Sion e a casa real, aos quatrocentos e
vinte e quatro anos, três meses e oito dias da sua fundação
pelo rei dos cantares. Este dia era sábado. Também num
sábado deviam destruí-lo os romanos, como veremos mais
adiante. Nabuco levou cativo o povo de Israel e roubou os
vasos sagrados do templo de Sion. Jeová quis castigar aquela
sacrilégio, e apagou a luz da razão na mente do feroz
babilônio. Nabucodonosor viveu sete anos como as bestas
imundas.
Setenta anos de escravidão rolaram sobre o aflito povo
de Israel. O profeta Daniel consolava a amargura de seu
irmão: porém as harpas da donzela de Judá pendiam das
árvores e não tinham melodias para o Santo dos Santos.
Uma noite, o afeminado Baltazar celebrava um
banquete. Os vasos sagrados, iam ser profanados pelos lábios

123
das impuras cortesãs, pelos torpes adoradores do deus Belo e
pelos servis sátrapas do rei Nabonido.
Na parede do salão onde se celebrava o banquete, mão
misteriosa, ao tentar o primeiro brinde, escreveu estas três
palavras com as letras de fogo: Mane thecel phares. O
pânico aterrou os impuros cortesãos, as luzes apagaram-se, a
terra estremeceu debaixo dos seus pés, e Baltazar,
acovardado, chamou o seu amigo e profeta Daniel para que
lhe decifrasse aquele mistério. O profeta disse-lhe:
- Esta noite é a última da tua vida.
Dario e Ciro, com um exército de medas e persas,
passavam poucas horas depois à espada os habitantes de
Babilônia. Ciro foi bom e clemente com o povo judaico;
concedeu-lhe a liberdade e permissão para reedificar o
derruído templo de seus maiores.
Zorobatel guiou o seu povo até à cidade santa, e no ano
seguinte tornaram a lançar-se os alicerces ao novo edifício
destinado ao Santos dos Santos.
Duzentos anos viveram os judeus sujeitos aos persas.
Uma noite chegou até Jerusalém o estrondo da guerra, que
sobressaltou os seus tranquilos moradores.
Era Alexandre Magno, filho de Felipe, rei de
Macedônia, o grande devastador do universo, que se
aproximava dos seus muros com a sua triunfal bandeira
desfraldada para exterminar o povo hebreu para destruir
Jerusalém como tinha destruído Atenas. O nome de
Jerusalém estava escrito na tabuinha onde o conquistador
macedônico apontava as cidades que devia destruir. Geados,
grão sacerdote, ouviu os gritos lastimosos de Tiro e Sidon,
viu as vermelhas chamas da incendiada Gaza, e escutou o
clangor fatal das trombetas macedonias. Então correu ao
templo a implorar o favor de Deus e Deus disse-lhe:

124
- “Sai ao encontro de Alexandre; lança flores e palmas
a seus pés: abre-lhe as portas da cidade santa, e nada temas”.
Geados obedeceu e o conquistador embainhou a espada
ameaçadora, vendo aquele povo que se prostrava ante ele, e
ajoelhou-se por sua vez aos pés do sumo sacerdote.
Permenion, seu general o repreendeu dizendo-lhe:
- E acaso esse sacerdote do templo de Júpiter que
visitaste no oásis de Amon?
- Escuta, lhe disse Alexandre: quando estava em
Macedônia pensando na conquista da Ásia, o meu Deus
apareceu-me em sonhos. Vestia-se como esse ancião;
cercava a sua fronte uma coroa de luz na qual reconheci a
divindade. “Não temas, me disse, passa sem medo o
Elesponto. Eu caminharei à frente do teu exército e te farei
senhor do império dos persas.
Depois de Alexandre, decorreram cento e sessenta
anos. Os seus principais capitães haviam repartido entre si os
povo conquistados por ele.
Antíoco, da raça dos Eleidas, propôs-se a total ruína do
povo de Abrão. Aqui torna a elevar-se até à epopéia o povo
de Israel.
Os filhos do velho Matatias, os gloriosos Macabeus,
venceram em valor os fortes de Davi. A estes cinco irmãos
faltou um Homero que cantasse as suas gloriosas façanhas,
mais dignas de renome que as do imortal Aquiles. A sua
bandeira, que ostentava por moto estas quatro letras, M. C.
B. I., donde se crê tomaram o nome de Macabeus, passeou
triunfante pelas dozes tribos.
Eis aqui os nomes dos cinco heróis, que nos conservou
a história: João, chamado Eadis; Simão, chamado Tasis;
Judas chamado Macabeu; Eleazar, chamado Abdon, e
Jônatas, chamado Afus. Para descrever os heróicos esforços

125
destes cinco mártires da independência hebréia, entre os
quais figurava seu pai Matatias, velho de cento e quarenta
anos, seria preciso escrever um livro de mil páginas. Por fim
sucumbiram à força numérica, que depois de muitas derrotas
enviou contra eles Demétrio, o Macedônio.
Judas Macabeu tinha enviado embaixadores a Roma
pedindo a proteção daquele grande povo que começava a
assombrar o mundo. Quando regressaram, tinha Judas
morrido rodeado dos seus valentes. O que tinha destroçado
até o último soldado do formidável exército de Demétrio, o
que tinha cravado a cabeça e a mão de Nicanor à vista de
Jerusalém, o herói, o imortal filho da Palestina, já não
existia. Desde então os romanos começaram a influir nos
destinos de Israel, acabando por fazer os judeus tributários
do Capitólio. Pompeu, general romano, assaltou a cidade
santa e colocou Hircano, seu protegido, no reino de Israel,
proibindo-lhe que usasse diadema.
As profecias de Jasó iam cumprir-se: a vinda do
Salvador não podia tardar; o cetro de Judá tinha passado a
mãos estrangeiras. Alguns anos depois de um Idumeu
ocupava o trono de Davi e Salomão. Jerusalém no tempo de
Herodes, conservava em grande parte o seu antigo esplendor.
A muralha de Neemias rodeava-a com seus robustos braços
de pedra, e as suas trezes torres e doze portas ainda podiam
desafiar o enfado dos estrangeiros.
Pela face oriental, costeando o vale de Josafá, e à vista
do monte das Oliveiras, achavam-se as quatro portas do
Fiemo, a do Vale, a Doura e a das Águas. A primeira caía
sobre a fonte do Dragão, a segunda conduzia ao povo de
Getsemani, a terceira a Engadi e ao mar Morto, e a quarta ao
Jordão e a Jericó.

126
A face meridional das muralhas tinha duas portas: uma
conduzia ao monte Erego; a outra a Belém e Ebron.
Dominando o despenhadeiro dos Cadáveres pela parte do
ocidente, achavam-se as portas dos Peixes, a porta
Judiciária e a porta Genat. Saindo pela primeira via-se uma
distância de cinquenta passos o caminho que conduzia
indistintamente a Belém, Ebron, Gaza, Egito, Emaús, Jope ao
mar. A segunda conduzia a Silo, Gabaon e ao monte
Calvário tomando à direita, e à esquerda do sepulcro do
pontífice Ananias. A terceira era uma dependência do palácio
de Herodes; permanecia quase sempre fechadas, mas, através
da sua magnífica grade de ferro, podiam os curiosos
contemplar os elegantes jardins do Idumeu, com seus
bosques de pinheiros, palmeiras e sicômoros, suas
caprichosas fontes, seus magníficos tanques por onde
passeavam preguiçosamente esquadrões de cisnes, e viam-se
correr bandos de gazelas pelo meio daquelas deliciosas
florestas.
Por último, ao setentrião, achavam-se as portas das três
torres das Mulheres, a de Efraim e a do Ângulo. A primeira
desta conduzia a umas plantações das árvores frutíferas mui
freqüentadas naquela época pela gente moça nos dias
festivos; a segunda a Samaria e Galiléia; a terceira a Anatol e
Bete, deixando à esquerda o tanque das Cobras e à direita o
monte do Escândalo.
Como dissemos, as torres eram treze, a saber: a das
Fornalhas, a Angular, a de Ananiel, a Torre Alta, a de
Méa, a Torre Grande, a de Siloea, a de Davi, a de Psefine,
e as quatro restantes que se chamavam Torres das
Mulheres.
Jerusalém dividia-se em quatro cidades separadas uma
das outras por uma espessíssima muralha, para a tornar mais

127
inexpugnável em caso de ataque; mas todas elas se
comunicavam umas com as outras.
A cidade de Davi ou superior, encerrava no seu
circuito a montanha de Sion, o sepulcro de Davi e os palácios
dos reis de Judá, de Anaz e de Caifaz.
A cidade inferior gloriava-se com o templo, que
ocupava aproximadamente a quarta parte; o palácio de
Pôncio Pilatos; a cidadela Antônia; o Xisto, espécie de monte
de onde falavam ao povo os governadores romanos; o monte
Acha; o palácio dos Macabeus e o teatro fabricado por
Herodes, o Grande, em honra do César, sobre o qual
descansava uma águia de ouro, ave que trazia desvelados os
verdadeiros israelitas.
A segunda cidade era habitada pelas pessoas de
distinção, e nela tinha Herodes o seu palácio e os seus
magníficos jardins. A última chamava-se a cidade de
Bezeta, onde viviam os negociantes de lã, caldeireiros,
adelos e quinquilheiros.
Tal era Jerusalém sob o poder de Herodes.
Agora entremos no seu glorioso recinto, destinado pela
impiedade de seus filhos a ser até à consumação dos séculos
um montão de ruínas.
O seu nome enche o mundo; mas enche-o com a sua
memória, porque no cume dum dos seus montes foi
sacrificado o Salvador do homem.

CAPÍTULO V

OS PEREGRINOS

O nascimento de Jesus foi um grito de alarme as


divindades pagãs. Só Deus podia conseguir tão imenso

128
triunfo. Só da Deus era dado arrancar do coração do homem
a peçonha que o erro nele havia introduzido.
Milton, esse grande poeta, esse sábio inglês que tanto
honra a pátria que lhe foi berço, esse grande das suas
primeiras poesias descreveu, com essa admirável robustez
que possuía, os erros do paganismo antes da vinda ao mundo
do Redentor dos homens.
Vamos extratar algumas das suas estrofes, servindo-nos
da tradução do abade Orsini. Dizem assim:
“Os oráculos emudecem; nenhuma voz, nenhum
murmúrio sinistro faz ressoar palavras falazes sob as
abóbadas dos templos. Apolo, abandonado, com um grito de
desesperação, a colina de Delfos, não pode prognosticar o
futuro. Nenhum êxtase noturno, nenhuma inspiração secreta,
saindo duma caverna profética, se faz sentir ao sacerdote de
olhos espantados.
“Sobre as montanhas solitárias e ao longo dos
murmurantes ribeiros, só se escutam pranto e lamentos. O
gênio vê-se forçado a afastar-se dos vales que habitava no
meio dos pálidos choufos”.
“As ninfas, despojadas das suas grinaldas de flores,
gemem à sombra dos espessos matagais. Os lares e as larvas
fazer ouvir as suas queixas noturnas na terra consagrada e
sobre os santos tetos. As urnas e os altares despedem sons
lúgubres e desfalecidos que espantam as flâmides ocupadas
nos seus serviços e o mármore gelado parece cobrir-se de
suor enquanto cada deidade abandona o seu lugar
costumado”.
“Peor e Baal fogem dos opacos templos com o deus
arrojado da Palestina. Astarot, sob o nome de Lua, rainha
mãe do céu ao mesmo tempo, já não brilha cercada do santo
resplendor das tochas. A Hamom de Lídia oculta as suas

129
pontas, e os filhos de Tiro choram em vão o seu Tamuz
ferido. O sombrio Molok escapa-se deixando na sombra o
seu ídolo reduzido a negros carvões: em vão o ruído dos
instrumentos e a dança chamam um rei feroz junto de um
forno ardente. Os deuses do Nilo, da raça dos brutos,
afastam-se também rapidamente o cão de Anúbio segues Isis
e Osiris.
Por fim os reis Magos, depois de treze dias de viagem,
viram ao longe os altivos minaretes, as galhardas torres e as
fortes muralhas de Jerusalém.
Perto do caminho que seguiam murmurava a clara
corrente de uma fonte e os ilustres viajantes detiveram-se. A
uma voz do chefe do comboio os dromedários deitaram-se no
chão e os reis apearam-se.
Então quatro escravos africanos estenderam uma rica
alfombra de pano fino recamado de ouro sobre a fresca erva,
e, sentando-se nela dos Magos, serviram-lhe em delicados
cestinhos de palmas saborosas tâmaras e enroscados mich,
frugal almoço dos orientais. Outros escravos encarregados
dos dromedários deram a estes a sua ração de favas secas.
De repente e quando mais tranquila se achava a luxuosa
caravana dos reis, Gaspar pôs-se em pé e exclamou com
assombro:
O estrela, a estrela desapareceu!
Melchior e Baltazar levantaram-se, apontando da boca
as frutas que lhe iam levar as mãos. A estrela tinha
desaparecido entre as flutuantes nuvens que se moviam sobre
a cidade tributária.
Os reis viram com dor, a sua radiante e misteriosa guia
os abandonava, e, como o náufrago a quem escapa dentre as
mãos a táboa em que julgou ver a sua salvação, soltaram um
grito de dor. Mas um deles estendendo o braço para

130
Jerusalém, interrompeu a silenciosa meditação dos seus
amigos, dizendo:
- Prossigamos a nossa pobre peregrinação: a estrela
desapareceu; mas não importa: diante de nós levanta-se uma
grande cidade digna de servir de berço ao Rei dos judeus;
caminhemos para Jerusalém.
- Sim, sim, prossigamos o nosso caminho: a misteriosa
estrela que nos conduziu desde o Tigre ao Jordão, não pode
ter-nos abandonado, sem um poderoso motivo, exclamou
Baltazar.
- E depois, quem haverá na cidade dos pretores que não
saiba onde nasceu o Messias? Basta perguntar-nos ao
primeiro transeunte que encontremos e estou certo de que
nos conduzirá ao pé do berço Rei a quem buscamos.
Acordes os Magos, tornaram a montar nos ligeiros
dromedários, e pouco depois entravam em Jerusalém pela
porta Judiciária. Mas, ai! A cidade não apresentava o
buliçoso e alegre quadro que esperavam. As ruas viam-se
desertas, e as rosas, o mirto e o louro não alcatifavam o seu
duro pavimento. As harpas dos hebreus não entoavam
alegres melodias; as donzelas de Sion não elevavam sentidos
cantos a Jeová. A mirra e o incenso não se derramavam ante
os altares do templo. O óleo não ardia nas caçoilas, e as
lâmpadas de ouro não alumiavam os ricos trajes dos
sacrificadores. Jerusalém muda, quase deserta, recebeu no
seu recinto os peregrinos do Oriente. Algumas mulheres
curiosas, envoltas nos seus leves mantos, assomavam aos
terraços para verem os viajantes.
Os reis tristes, desalentados, caminhavam rua adiante.
A esperança ia esfriando no seu coração.
Pouco a pouco foram-se agrupando em torno da
oriental cavalgata alguns curiosos.

131
Então, Gaspar, que ia adiante, inclinava-se sobre o
nervudo pescoço do seu dromedário, e, dirigindo-se aos
curiosos espectadores, dizia-lhes:
- Dizei-me, jerosolimitanos, vós sabeis onde se acha o
Messias prometido pelos profetas, o rei dos judeus que acaba
de nascer?
Então a plebe olhava-se com espanto, e, não sabendo
que responder aos viajantes, fazia um movimento de ombros.
Baltazar por sua vez perguntou aos que tinha mais perto:
- Onde está o Messias, o rei dos judeus?
- Em Jerusalém não há outro rei senão Herodes, o
Grande, nosso senhor, lhe respondia um cavaleiro com
grosseiro acento.
- Nós vimos uma estrela desconhecida no céu, replicava
Gaspar e essa estrela, não nos resta dúvida, é a que predisse
Balaão.
- A estrela de Jacó ainda não nasceu para os israelitas,
lhe replicou um fariseu.
- Devem ser loucos, murmurou um soldado romano,
olhando com desdém os Magos.
- Demos parte ao nosso rei Herodes, tornou um escriba.
- Sim, sim, demos-lhe parte, exclamaram vários
herodianos que se achavam entre a apinhada multidão.
Os reis, vendo que eram inúteis as suas perguntas, pois
ninguém lhe indicava a casa do Messias, torceram por uma
larga rua que conduzia ao antigo palácio de Davi, e
instalaram-se num dos seus arruinados pátios.
Aquele palácio, em tempo encantadora mansão dum rei
sábio e poderoso, não era na época do nascimento de Cristo
mais que um montão de ruínas; porém, os Magos sabiam
pela tradição hebraica e pelos vaticínios dos profetas que do

132
tronco de Davi devia nascer o Messias libertador do povo de
Israel.
Perdida a estrela que com tanta insistência vinham
seguindo desde os seus lares, restava-lhes uma esperança.
- Talvez sob o pórtico do rei Davi, disseram,
encontraremos o Messias prometido; talvez junto daqueles
derruídos torreões, onde a harpa do rei poeta acompanhava
com melancólico gemido os cantares do vencedor de Golias,
achemos algum indício que nos oriente.
E uma vez ali, mandaram levantar as tendas, e
encerrando-se numa delas puseram-se a deliberar.

CAPÍTULO VI

HERODES, O GRANDE

No ano 3932 do mundo e 86 antes da vinda de Jesus


Cristo, nasceu o sanguinário Herodes, terrível plagiador da
inumana Atália. A sua pátria foi Escalon, cidade marítima da
Turquia Asiática, na Palestina. Negra como a sua alma, fria
como a sua impiedade, tempestuosa como as paixões que
dominaram o seu coração, foi a noite em que do seio de sua
mãe nasceu para ser o açoite da Galiléia, o opróbrio da sua
raça.
Os furações desencadeados saudaram a sua vinda ao
mundo, fazendo estremecer os edifícios com o seu potente
sopro. As ondas mugidoras dos mares bramiram como se
legiões infernais se agitassem no meio das suas águas. Os
ventos agitados fizeram tremer com o veloz ímpeto da sua
carreira os altos ceiros e as robustas figueiras das cercanias
de Escalon. Os rios sairam do leito, e, transbordando pelos
campos a suas turbulentas e avermelhadas águas encheram

133
de pavor e miséria os infelizes moradores das aldeias. A
natureza inteira soltava um gemido de dolorosa agonia
saudando o futuro tirano.
Herodes foi como a torrente transbordada que tudo
derriba ante a sua passagem; como o raio que tudo incendeia
com a sua queda; como a peste que tudo mata com o seu
hálito. Escravo das suas paixões, imperioso e colérico,
chegou à idade de vinte e cinco anos, trilhando um caminho
de crimes e escândalos. Seu pai, Antipatro, que havia
prestado ao César vencedor de Pompeu e senhor de Roma
serviços importantes no cerco de Alexandria, alcançou do
ditador romano o governo da Galiléia para seu filho Herodes.
A sua idade tocava nos vinte e quatro anos, quando
subiu os primeiros degraus que deviam conduzi-lo ao trono
de Jerusalém.
Herodes era arrojado e ambicioso. Obstáculos não
existiam para ele. Tinha sonhado uma coroa, e o crime, o
opróbrio e a baixeza não lhe detiveram o passo. Para lograr o
seu fim não teria retrocedido, ainda que se houvesse visto
obrigado a passar por cima do cadáver de seu pai, de seus
irmãos, da sua raça toda.
Uma coroa, só uma coroa ansiava a sua ambição, e,
desprezando os obstáculos, seguiu o caminho que podia
conduzi-lo á reabilitação dos seus sonhos, com a fronte
erguida. Mas a sorte foi-lhe contrária: vencido por Antígono,
seu rival, rei de Judá, viu-se forçado a refugiar-se com sua
família e riqueza num castelo de Iduméia.
Herodes sufocava naquela canto da Arábia Pétrea.
Quando algumas tardes, dos altos torreões da sua
inexpugnável fortaleza, com os braços cruzados sobre o
peito, o olhar torvo, estendia os sanguinários olhos por

134
aquelas soluções, soltando um rugido do fundo do seu
agitado coração, costumava exclamar com áspero acento:
- Iduméia! Iduméia! Mansão dos chacais, pátria dos
lobos, tu não és mais que um esqueleto e só apresentas às
minhas famintas fauces ossos para devorar; mas eu preciso
duma terra onde o osso esteja unido à carne, para aplacar este
apetite que me consome. Jerusalém – Jerusalém! Tu é o prato
que ambicioso no festim dos meus sonhos... eu serei teu rei e
tu minha escrava; sobre tuas altivas torres ondeará o meu
pendão de escarlate e ouro: teus filhos beijarão o pó que
levanta a fimbria do meu régio manto, e as tuas donzelas
cantarão hinos de glória, ante as aras de Sion, pelo seu
senhor Herodes.
Por fim o desterrado de Iduméia abandonou uma noite
a sua fortaleza, e, arriscando muito na sua atrevida empresa,
passou ao Egito para captar a vontade de Cleópatra. Herodes
tinha calculado bem confiando as suas ambiciosas esperanças
à rainha do Egito, tão célebre pela sua formosura como pelos
seus crimes. Só uma pantera podia compreender os instintos
dum tigre. As hienas acodem sempre aos gritos dos chacais.
Herodes, recomendado por Cleópatra e Marco Antonio,
passou sem perder tempo á orgulhosa e degradada cidade de
Roma.
O senado, ressentido com Antígono porque pedira
auxílio aos partos, inimigos acérrimos de Roma, pôs-se da
parte do ambicioso Idumeu, que chegava às portas do
Capitólio para implorar a sua proteção.
O vento da fortuna começou a soprar em favor dos
dourados sonhos do verdugo de Belém.
Antonio apadrinhou as ambiciosas aspirações de
Herodes, e, acendendo aos rogos da que mais tarde devia
compartir com ele o seu tálamo nupcial e o seu sepulcro,

135
ofereceu ao seu recomendado a coroa tributária de Jerusalém.
Herodes, ao aceitá-la, converteu-se no primeiro escravo do
Capitólio. O César romano era desde então o seu senhor.
Mas que lhe importava quando ia sentar-se sobre um trono,
quando a sua fronte ia coroar-se com o verde louro que o
senado entretecia para os seus favoritos?
Ativo em demasia e anelando o momento da sua
elevação ao trono, levantou tropas sem perda de tempo,
juntou com o seu ouro legiões de mercenários na cidade do
Tibre, e, acatando as ordens irrevogáveis de Antônio, deu o
comando das suas forças a Verutídio, favorito de César..
Feitos os aprestos militares e faminto de vingança, saiu com
os seus soldados da corte de Roma e encaminhou-se em
marcha para Jerusalém.
Antígeno, avisado por um amigo dos preparativos de
Herodes e do favor que lhe dispensa o César, aprestou a sua
gente e dispôs-se a castigar a ousadia dos seus inimigos das
altas muralhas da cidade santa, que mais tarde o Mártir do
Calvário devia amaldiçoar.
Herodes atacou com fereza aqueles baluartes de pedra e
aço que se colocavam ante ele como um obstáculo, como
uma vala à sua ambição.
O sangue correu a torrentes. José, irmão do sitiante,
exalou o último suspiro num dos assaltos.
Por fim o cortesão de Cleópatra, o adulador do
Capitólio, o escravo de César, entrou triunfante em
Jerusalém e a águia romana foi colocada sobre o templo de
Zorobabel. Milhares de habitantes pereceram ao
sanguinolento fio das espadas dos seus partidários. Nem um
só dos Antígonos se livrou do seu furor, sobretudo se tinham
bens que confiscar.
Roma pedia ouro e Herodes era escravo de Roma.

136
Tintas ainda as mãos com o sangue da feroz matança,
correu ao templo a unir-se com a bela e jovem princesa. Os
jerosolimitanos enxugaram por ordem do seu novo senhor as
lágrimas que lhes envermelheciam os olhos, e viram-se
forçados a cantar e dançar nas festas reais que celebrou o
tirano. Um rosto aflito era uma sentença de morte. Uma
lágrima derramada custava uma cabeça. Maquinador astuto e
receoso, para maior segurança concedeu alta dignidade de
sumo sacerdote a Aristóbulo seu cunhado, apesar dos seus
poucos anos.
Aquele moço galhardo e querido dos israelitas, aquele
desgraçado filho do cativo de Roma, havia nascido para
cingir a coroa que usurpara o esposo de sua irmã. O povo
começou a mostrar-lhe o amor que por ele sentia, e Herodes,
cioso daquele afeto que ele não soubera inspirar, mandou
afogar seu cunhado num banho em Jericó e fingindo depois
uma dor hipócrita pela sua morte, soube justificar-se aos
olhos dos fariseus e altos dignitários de Jerusalém. O senado
de Roma atendeu nesta ocasião mais aos presentes do
assassino que à justiça que pedia a inocência sacrificada.
Nunca monarca algum na terra derramou tanto sangue
inocente, nem deu cabimento no seu peito a tão baixas
paixões, como Herodes, o Idumeu, a quem a história deu o
glorioso cognome de Grande. Foi poderoso, carecendo de
todas as virtudes que honram e engrandecem os monarcas.
Cruel e sanguinário, regozijava-se com a dor das suas
vítimas. Fez morrer o velho Hircano, avó de sua esposa, o
qual lhe salvara a vida sendo governador da Galiléia.
Os anos e a alta dignidade de Hircano não detiveram o
braço do seu ingrato assassino. O crime do pobre ancião não
era outro que o de suspeitar o seu verdugo que tinha
recebido alguns presentes do rei dos árabes.

137
Sua esposa Mariana, a princesa mais bela do seu tempo
e que possuía um talento nada comum, morreu também
assassinada por ordem de seu marido, e pouco depois coube
a mesma sorte a Alexandra, mãe da desgraçada Mariana.
Temeroso de que seu filho Filipe vingasse sua mãe,
deu-lhe a morte, sem que a voz da natureza se levantasse
para o deter no fundo do seu coração.
O povo, indignado vendo aquele rio de sangue que
fazia correr um bárbaro opressor, começou a agitar-se como
num campo de espigas sacudido por dois ventos encontrados.
Herodes, protegido sempre de Roma, cortou aquelas cabeças
que se erguiam ante os seus passos desafiando o seu poder.
Uma coroa de louro, comprada no Capitólio com o ouro
do rico e a indigência do pobre, manchava a sua fronte cheia
de remorso. Porque a sua vida era um remorso contínuo.
Os seus sonos eram sempre povoados de fantasmas
aterradores, de visões horríveis que, girando em infernal
tropel pelo seu cérebro, lhe amarguravam sem cessar uma
por uma as sangrentas horas da sua maldita existência.
Herodes não tinha para se opor à aberta rebeldia do seu
povo mais que os seus sicários, os seus cortesãos e a seita
baixa, desprezível e diminuta dos herodianos, que, ao
receberem do seu senhor ouro às mãos chias, tinham
pretendido elevá-lo sobre o altar de Sion e adorá-lo como
deus. Os fariseus, potentes e atrevidos, recusavam-lhe o
juramento de fidelidade. Os indômitos Essênios seguiam o
exemplo dos fariseus.
Os jovens entusiastas, os valentes discípulos dos
doutores da lei de Moisés, cheios de nobre indignação,
conspiravam desafiando a morte, à luz do dia, sonhando
sempre no delicioso momento da vingança, no venturoso

138
instante da liberdade. Porque em Herodes só viam um
verdugo, um inimigo cruel e ansiavam exterminá-lo.
A vida do rei tirano de Judá era um contínuo
sobressalto. O punhal homicida ameaçava-o por todas as
partes. Um dia correu de boca a falsa notícia da sua morte e o
povo acendeu fogueiras em sinal de regozijo. Herodes
apagou aquelas fogueiras com o sangue dos que tinham tido
o atrevimento de as acender.
No mais forte destas discórdias civis foi que os reis
Magos chegaram a Jerusalém perguntando pelo rei de Judá
que acabava de nascer, pelo Messias anunciado pelos
profetas, pelo Salvador do povo de Israel.

CAPÍTULO VII

A CARTA DE ROMA

Herodes havia transportado para Jerusalém o luxo e os


costumes da cidade dos Casares. Os artífices gregos, de cujas
obras tanto gostavam então os patrícios romanos, viam-se
com frequência contratados pelo rei tributário para
aformosearem os salões do seu palácio.
Fazia-se servir por grande número de escravos etíopes,
desses filhos da abrasada Líbia que, fieis como os cães e
imutáveis como a bronzeada cor das suas faces, adoram os
seus senhores como os deuses pagãos dos seus templos.
Para contrastar com estes, tinha outros de raça Síria, de
rosada cútis e doce expressão. Dava o nome de Cubículo à
sua câmara, e o de Gineo à casa destinada a guardar as jóias
e a coroa real.
Quando, rodeado dos seus mercenários, se entregava
aos prazeres de Baco para afogar nos vapores do Falermo e

139
do Chipre os gritos da consciência, comprazia-se em invocar
todos os deuses do Olimpo de Homero, sentindo a falta das
livres Bacantes dos bosques de Baia e do delicioso Creta
que lhe serviam em compridos cornos de prata quando
celebravam os seus banquetes embriagadores.
Durante a sua permanência em Roma, os costumes
sibaríticos dos libertos tinham-no fascinado e quis transportá-
lo para Jerusalém.
Roma era então a senhora do mundo: os seus patrícios
achavam-se enfastiados de haurir gozos. Os seus cortesãos
tinham circos, teatros, jogos de palestra, onde o engenho
podia ostentar as suas galas diante da formosura; exercícios
de Marte, onde o valor era aplaudido pela beleza. Contava
nos seus templos mais de cem deuses, aos quais queimava
incenso e circos onde os gladiadores lutavam até vencer ou
morrer, alimentando o sanguinário instinto do povo com tão
bárbaro espetáculo.
A vida era ali uma torrente de prazeres, um delírio
embriagador e era um luxo gastá-la. O seu afã reduzia-se a
saciar os apetites do corpo, esquecendo-se da alma. A
matéria estava sobre o espírito.
A guerra e o amor eram os seus únicos desvelos, as
suas ocupações favoritas; as orgias, o seu paraíso terreal; o
luxo, a sua paixão dominante; morrer no campo da batalha
com a espada na mão, a melhor das mortes, o mais apetecido
triunfo, a fortuna mais cobiçada; o fastio, o cansaço, os
inseparáveis companheiros dos seus viciados corações.
Como, pois transportar para Jerusalém essa desordem que
marca sempre a decadência dum império poderoso?
A cidade santa, serena e tranquila como o mar de
Galiléia, numa clara noite de estio; a mãe dos soberbos
descendentes de Abraão e Jacó, cujas modestas filhas, depois

140
de adorarem o Deus de seus pais com a pura fé de seus
singelos corações, abandonam o sagrado templo, coberto o
pudibundo rosto com o denso véu, e regressando as suas
casas, punham-se a fiar o linho e a educar os filhos que
tinham criado com o leite dos seus peitos; não podia nunca
ser uma imitação de Roma, dessa sentina do mundo, a cidade
santa, pudibunda pomba do Jordão, a modesta Jerusalém.
Herodes nunca conseguiu a metamorfose que se
propunha levar a cabo. Esparta nunca teria tido Atenas, ainda
que todos os tiranos do mundo lhe houvessem proposto. O
Gólgota estava destinado a Jesus Cristo; Delfos a Apolo.
Entremos no palácio de Herodes, e, atravessando
alguns salões, nos achamos num aposento luxuosamente
adornado. Num leito de marfim, estendido sobre fofas
almofadas de pano de grã, acha-se o rei de Jerusalém.
Um mesa triangular de mármore de Paros, branca como
a neve que coroa eternamente o cume do Sabino, sustenta
uma lâmpada de ouro que tem a forma duma águia com as
asas estendidas. Uma luz clara e viva sai do bico do animal,
símbolo de Roma. Uma coroa de louro, colocada sobre um
pequeno coxim, achava-se junto à lâmpada.
Herodes, apoiada a cabeça entre as mãos como se
quisesse ocultar o semblante, agita-se convulsivamente,
vítima de agudas dores que lhe despedaçam as entranhas. O
rei veste uma túnica talar de cor de amaranto, a qual é
apertada na cintura, formando largas pregas por um cinto de
couro com pequenas estrelas de prata.
Um barrete preto, bordado a ouro, sujeito á nuca como
um solidéu, lhe cobria a parte superior da abundante
cabeleira preta, povoada de ásperas cãs. Entre os
emaranhados caracóis que lhe iam descansar sobre os
ombros, brilham dois grossos anéis de ouro que lhe pendem

141
das orelhas. A barba grisalha, as espessas sobrancelhas, os
olhos cavos e brilhantes, a cor excessivamente morena e o
ossudo e enrugado rosto, dão-lhe um ar de ferocidade
incrível. Basta olhá-lo para se convencer a gente de que
aquele homem é cruel, de que aquela natureza de aço pode
muito bem presenciar a morte de toda a sua raça sem
estremecer nem mudar a cor do rosto.
Os seus pés, extremamente grandes, calçam a saliga
romana semeada de pedras preciosas e botões de ouro. Não
mui longe do seu leito acham-se duas pessoas reclinadas
preguiçosamente em ricos divãs de seda com franja e
bordados de prata. São um homem e uma mulher. A mulher é
Salomé, irmã de Herodes: tem quarenta anos e é formosa;
mas as suas feições participam da dureza das de seu irmão. O
homem é Aleixo, esposo de Salomé, de rosto doce e olhar
frio, de estatura mediana e extremamente branco.
Ambos guardam silêncio, como se temessem
interromper a silenciosa imobilidade do monarca.
Aleixo tem nas mãos um rolo de papiro. Salomé, de vez
em quando, levanta-se do seu assento para deitar num
pequeno braseirinho de prata pós aromáticos de ervas do
Líbano, que enchem de grato e penetrante perfume a
habitação. Depois tudo torna a ficar em silêncio; só a agitada
respiração do Idumeu ou gemido de dor que lhe escapa do
peito interrompe de vez em quando aquela quietação.
Por fim Herodes levanta-se um pouco sobre os
almofadões. Aquele movimento executado pelo senhor põe
em pé os esposos favoritos que lhes assistem.
O assassino de Hircano afasta as mãos do rosto, e,
separando alguns caracóis de grisalhos cabelos que lhe caem
pelo torvo semblante, lança em torno de si um olhar feroz.
Aqueles parecem os do tigre que busca uma presa para

142
devorar. O seu rosto viu-se alumiado então pela brilhante luz
da lâmpada. A sua larga e tostada testa é cruzada por
multidão de rugas. Em cada uma delas se oculta um crime, se
agita um remorso.
Os pômudos avultados, o nariz curvo, a hirsuta barba e
os pequenos e vidrosos olhos, dão-lhe ao semblante uma
expressão de ferocidade que esfriava o sangue de quem tinha
a desgraça de contemplá-lo e incorrer no seu desagrado.
Sessenta anos se sepultam naquela natureza embotada de
crimes. A sua velhice é repugnante e asquerosa.
Redondas e amareladas manchas lhe salpicam o rosto,
emanações mortíferas da terrível enfermidade que o
consome: aquelas manchas pareciam os crimes que, cansados
de devorar o coração, subiam ao rosto para que deste modo
fosse tão feio o seu semblante como a sua alma.
Herodes, depois de ter abarcado com um olhar receoso
e covarde tudo quanto o rodeava, deteve-se na coroa de louro
que se achava sobre a mesa, e depois de a contemplar alguns
segundos, exclamou com voz cavernosa e como se falasse
consigo:
- Meus filhos querem cingir quanto antes a minha
coroa... Os empíricos desta cidade ingrata são seus
cúmplices... Oh! Se eu amanhã viver, se a ciência foi
impotente para comigo, mandarei enforcar nos pórticos do
meu palácio toda essa caterva de avaros cendedores de saúde
que deixam o seu rei morrer num canto da sua câmara.
E depois, dirigindo a palavra a seu cunhado, continuou:
- Ouves, Aleixo? Amanhã, não te esqueças, quero que
enforques todos os médicos, porque a ciência é impotente,
sofro muito, muito; estas dores são terríveis: creio que tenho
um áspide no estômago, outro no coração e outro no cérebro,

143
que me roem sem cessar: de que me serve ser rei sofrendo
tanto?
Salomé, pegando então num frasco de prata, derramou
algumas gotas numa taça do mesmo metal e foi apresentá-la
a seu irmão, dizendo:
- Isto te sossegará, meu irmão.
O enfermo pegou na taça e, depois de lançar um olhar
para o líquido que lhe apresentavam, disse com voz pausada:
- Bem sei que tu não me farás mal, porque me queres e
teu esposo também: vós sois a minha única família; eu desejo
pagar-vos os vossos serviços; veremos.
E bebeu o conteúdo da taça num só trago.
- Mas meus filhos, que estão em Roma continuou,
porque não sacrificam de boa vontade uma galinha preta no
altar de Eucalápio para que eu recobre a saúde?
- Teus filhos, disse Aleixo com gravidade, acercando-se
do leito do enfermo, em vez de anelarem o teu
restabelecimento, acusam-te ante o César Augusto.
- Acusam-me! Tornou Herodes, sentando-se na cama; e
de quê?
E Aleixo apresentou-lhe o rolo que tinha na mão.
Herodes aproximou-se quanto pode à luz da lâmpada, e
desenrolando o papiro murmurou:
- Veremos que reclamam meus queridos filhos contra
seu pai.
Um sorriso infernal lhe passou pelos lábios ao dizer
estas palavras. Depois percorreu com a vista as linhas
escritas, dizendo ao terminar, com acento estranho e cruel:
- Ah!... Acusam-me ante o César de sanguinário e
cruel; dizem que matei sem mais motivo que pelo prazer de
matar sua mãe Mariana e sua avó Alexandra; e, como sou um

144
rei tributário, Augusto diz-me que vá defender-me em pessoa
perante o senado... Irei... irei, meus filhos, mas, aí de vós!
Dois raios de fogo brilharam nas pupulas de Herodes ao
dizer estas palavras. Os seus dentes produziram um ruído
áspero e estranho ao tocarem uns nos outros, impelidos pela
raiva; e as suas encarnadas mãos amassaram aquele rolo de
papiro que de Roma reclamava justiça.
- Meu irmão, exclamou Salomé com voz doce e
carinhosa, esquece teus filhos e o César, pensa só na tua
saúde.
- Salomé tem razão... Aleixo não devia ter-me entregue
esta carta.
E Herodes lançou-a longe de si com manifestos sinas
de desprezo.
- Era do imperador, respondeu, baixando a cabeça, seu
cunhado.
- Sim, o imperador empuxou-se para escalar o trono
que ocupo; mas eu mandei-lhe montes de ouro em paga. Sou
pois o rei de Judá e só eu administro justiça na terra que é
minha. Se tenho cometido crimes, razão teria para isso... mas
eu irei a Roma defender-me quando puder... Que posso eu
temer de meus filhos rebeldes... Nada. Se Augusto
desatender as minhas razões e os proteger, então... lutaremos,
e Deus decidirá.
Um escravo etíope, negro como um gota de tinta e
ricamente vestido, apareceu entre as cortinas que cobriam a
porta da estância.
- Verutídio, o liberto romano, general das legiões
estrangeiras, diz que tem precisão de falar-te.
- Verutídio é meu amigo predileto; mas eu estou
doente: não quero nada, ouves? Quero descansar, estar só.

145
- Isso lhe disse, senhor; mas obstinou-se em entrar,
dizendo que era de alta importância o que tinha que
comunicar-te.
- Que entre pois esse importuno adorador de Cibele,
que nunca depositou uma pomba nos altares da castidade, e
que não tem compaixão do seu doente soberano.
Herodes disse estas palavras em tom de mofa, e o
etíope saiu para comunicar a ordem do seu senhor. Pouco
depois entrava o general romano na câmara do rei judeu; este
estendeu-lhe uma mão, que o liberto beijo, mas por
cerimônia que por respeito.
O seu ar era marcial, altivo o seu semblante, e rico o
manto, preso por um grosso florão de ouro cravejado de
diamantes colocado sobre o ombro esquerdo. Verutídio
pegou sem cerimônia num fofo almofadão que colocou junto
do leito do rei; e sentando-se nele exclamou, fazendo antes
uma cortesia.
- Marte na guerra, Apoio na paz, protejam o amigo
aliado do César, meu senhor.
- Eles te ouçam, lhe respondeu Herodes; e depois
continuou: Que importante missão te conduz àminha
estância?
- Rei de Jerusalém, deixa o teu leito, esquece as tuas
doenças, porque na tua cidade acabam de penetrar três reis
Magos seguidos dum brilhante séquito, que, guiados por uma
estrela, dizem que vêm em busca do Rei de Judá, do Messias
anunciado pelos profetas, que acaba de nascer.
Herodes estremeceu, e escorregando do leito ficou em
pé ao lado de Verutídio.
Salomé e Aleixo aproximaram-se para o sustentarem;
mas ele repeliu-os; e, pegando numa varinha de metal que
tinha escondida debaixo dum coxim da cama, deu duas fortes

146
pancadas numa folha de aço, a qual produziu dois sons
agudos e vibrantes que foram perder-se pelos dilatados
âmbitos do palácio. Imediatamente Cingo, seguido duma
multidão de escravos, apareceu como por encanto na
habitação do rei.
Cingo, o escravo favorito de Herodes, era um africano,
negro como as asas do corvo, forido como um atleta. Para
aquele filho do lago de Shiat, não havia outro adeus, outra lei
nem outra paixão que o seu senhor.
O monarca de Jerusalém amava o seu escravo como um
membro do seu corpo; Cingo era o seu braço. Alguns
inimigos de Herodes intentaram comprar a fidelidade do
feroz africano, que dormia aos pés do leito do seu senhor,
com a mão posta no cabo do punhal, e o ouvido atento como
um cão leal; mas só tinham comprado a morte, porque Cingo
era incorruptível como as águas do mar.
Quando Herodes o viu aparecer à porta da câmara,
sorriu-se pois sabia que para se chegar a ele era preciso antes
passar por cima do cadáver de Cingo. O Idumeu fez-lhe um
sinal indicando-lhe que esperasse. O escravo inclinou-se em
sinal de acatamento.
- Onde estão esses reis que dizes? perguntou Herodes a
Verutídio.
- Levantaram as suas tendas junto aos derruidos
pórticos do palácio de Davi.
- Cingo, acende as teias resinosas, reúne os meus
herodianos e traz-me esses estrangeiros.
Cingo saiu seguido dos escravos.
- Aleixo, tu reúne os sumos sacerdotes e escribas da
cidade, esses sábios conhecedores das profecias hebraicas, e
conduze-os a esta sala.

147
- Tu, meu bravo Verutídio, junta as tuas legiões, e
acampa-as nos pórticos do meu palácio; e tu, minha querida
irmã, minha boa Salomé, consulta os médicos da cidade
acerca da saúde de teu pobre irmão.
Todos partiram para executar as ordens do senhor de
Jerusalém. Herodes ficou só, e depois duma breve pausa,
durante a qual permaneceu imóvel como se estivesse cravado
na alfombra da sua habitação, deu um suspiro, e, deixando-se
cair no fofo leito, murmurou estas palavras:
- Que Rei será esse que acaba de nascer?... Oh, pobre
d’Ele se me cai nas mãos! E depois, estendendo a mão sobre
a coroa que se achava na mesa de mármore, continuou: Esta
coroa é minha, o simples desejo de possuí-la custa a cabeça.
Pobre d’Ele se a olha com cobiça, se quer arrancar-ma da
fronte!.

CAPÍTULO VIII

A SEMANA DE DANIEL

Uma hora depois Cingo tornou a entrar na câmara do


seu senhor.
- Onde estão esses estrangeiros? lhe perguntou este.
- A luz da aurora os encontrará à porta do teu real
palácio respondeu Cingo com um laconismo admirável.
- Que gente trazem?
- Pouca senhor: basto eu com os escravos da tua casa
para os exterminar, se te apraz.
Herodes respirou.
- De onde vêm?
- Dois deles da Pérsia ou Seleucia, e o outro da Índia
orienta segundo me informaram os seus soldados.

148
- Então quer dizer que os patriarcas persas não querem
abandonar as suas tendas durante a noite?
- O dia não está longe?
Herodes escorregou da cama, e dirigindo-se a uma
janela, abriu-a para olhar o céu.
- Está bem, disse: mas aqui não estamos sob os arcos do
seu palácio; não pende a campainha dos suplicantes que
anuncia com seu timbre sonoro que um homem pede justiça
ao meu senhor. Aqui estamos na Galiléia; eu sou o rei de
Jerusalém e posso castigar a sua desobediência.
Herodes, enquanto dizia isto, passeava, ocultando a sua
agitação, pela câmara. Cingo imóvel como uma rocha dos
Alpes seguia com a vista as evoluções do seu senhor,
esperando uma ordem para a executar.
Uma porta secreta abriu-se deixando um oco nas
preciosas tapeçarias. O seu ranger imperceptível fez com que
Herodes virasse a cabeça com rapidez, porque em todas as
partes via o punhal do assassino. Cingo empunhou o cabo do
largo punhal que lhe pendia, e avançou dois passos.
Aleixo apareceu então à porta.
- Esses homens esperam as tuas ordens, disse,
dirigindo-se ao seu cunhado.
Pouco depois Herodes, com a coroa de louro na cabeça,
a afetando uma tranquilidade de espírito que não sentia,
achava-se rodeado dos doutores da lei e dos príncipes dos
sacerdotes.
Absortos os nobres anciãos ante o seu rei sem poderem
compreender a causa daquela reunião, esperavam silenciosos
e graves ouvir da boca do seu senhor o que eles não podiam
adivinhar.

149
Depois duma breve pausa, durante o qual Herodes
procurou ler com um olhar escrutador do coração daqueles
anciãos, disse com doce acento e o sorriso nos lábios:
- Ilustres sábios sagrados sacerdotes que transmitis aos
vossos povos as profecias dos profetas: se vos chamei a tal
hora ao meu palácio, é porque, na Judéia, eu, vosso rei, sou o
primeiro súdito das sagradas leis de Moisés, e, desejando
render passagem ao vosso Deus invisível, quero perguntar-
vos: em que lugar deve nascer o Messias?
Os sábios conhecedores das Sagradas Escrituras, ainda
que absortos ante a inesperada pergunta, responderam sem
hesitar:
- Em Belém de Judá.
Herodes perturbou-se em si mesmo, permaneceu alguns
instantes como aturdido e sem saber o que dizer, pois aquelas
profecias que via quase realizadas, desorientavam-no.
Os anciãos de Israel, perceberam o efeito que a sua
resposta causara no tirano de Jerusalém, e, desejoso de
subjugar o favorito dos romanos, um deles continuou deste
modo:
- Herodes, sabe-o, já que segundo dizes és o primeiro
súdito da lei de Moisés. A semana do profeta Daniel acha-se
próxima a expirar. A aurora feliz que deve iluminar com seus
temperados raios a liberdade dos descendentes das doze
tribos de Israel, já começa a mostrar o seu refulgente disco
no céu da Palestina. As profecias vão cumprir-se, e Jeová
dirige os seus compassivos olhos para a terra de Davi, e faz
nascer a estrela de Jacó no Oriente.
A estas palavras proféticas pronunciadas pelo mais
velho dos juízes, seguiram-se alguns instantes do sepulcral
silêncio.

150
A dúvida e o medo lutavam no coração do monarca,
que, não encontrando palavras com que responder aquele
augúrio, se encerrava num vergonhoso silêncio. Por fim,
sacudindo as idéias que o subjugavam, tartamudeou estas
palavras.
- Agradecido, sábios doutores, satisfizestes uma
curiosidade que me preocupava há alguns dias. Jeová cumpra
os vossos desejos; agora podeis retirar-vos.
- Nós, responderam os sacerdotes, somos teus súditos;
até que o Messias apareça entre os homens, manda e serás
obedecido.
Estas palavras podiam tomar-se por uma ameaça;
porém. Herodes, ou não o compreendeu assim, ou,
preocupado com a idéia do novo Rei de Judá que acabava
de nascer, não quis fazer caso daquele insulto que lhe
atiravam ao rosto os seus súditos.
Os hebreus, saudando respeitosamente, sairam da
câmara do seu rei. Herodes, ficou só, e pela sua mente
passaram em tropel, tomando forma, as profecias dos
sacerdotes. Viu o Messias, o novo rei de Judá, levantar
triunfante o seu glorioso estandarte do Oriente ao Ocidente.
Recordou as inumeráveis vítimas sacrificadas no altar da sua
desmedida ambição para consolidar o seu poder, e grossas
gotas de suor começaram a correr-lhe pela rugosa fronte.
O sangue ilustre dos Macabeus tinha ocorrido em rios
durante a monarquia. O carro de ferro do despotismo tinha
passeado em triunfo o seu orgulhoso senhor pelos dilatados
confins de Judá esmagando debaixo do seu peso os
descendentes de Abraão. Montes de ouro depositados aos pés
de Roma para conquistar a sua proteção, tinham cruzado os
mares de Escalon e Gaeta. Seus filhos, sua esposa, seus
amigos e parentes, sacrificados ao fio da sua terrível acha a

151
menor desobediência; perdia a sua alma, a sua honra e o seu
repouso vendo eternamente nos seus sonhos as
ensangüentadas sombras das suas vítimas, ouvindo sem
cessar por todas as partes a maldição do seu povo, sentindo
no seu corpo a maldição de Deus com os terríveis e
prolongados padecimentos de uma enfermidade mortal: E
tudo isto para quê?
Um rei da descendência de Davi acabava de nascer. E
esse Rei poderoso e vingador ia-se levantar diante dele,
expulsá-lo do seu trono como um leproso imundo. Isto
pensava, Herodes medindo a largos passos a sua câmara. O
sanguinário Idumeu tinha medo e esse medo foi o seu
verdugo nos últimos anos da sua vida.
- Oh! não será!... exclamou com reconcentrado furor,
parando diante da coroa, cujas folhas brilhavam aos raios da
luz que despedia a lâmpada. Tu serás minha e só minha, até a
última hora!... E, se foi preciso para isso sacrificar a raça
israelita, eu armarei as minhas legiões, as minhas lanças
trácias, os meus valentes germanos: os meus nobres aliados
sairão de Jerusalém e as trombetas de desolação anunciarão o
seu último instante. Sim eu vos exterminarei como
Nabucodosonor: nem os mortos do vale de Josafá se hão de
livrar do meu furor; dizem que o mar Morto se formou sobre
as ruínas de Sodoma e Gomorra com a chuva de enxofre e
fogo que o céu indignado lançou sobre elas; pois bem, a
arenosa Palestina com o sangue dos seus sonhadores filhos se
converterá dentro um pouco em outro mar que denominarão
os vindouros com o nome de mar de sangue.
E Herodes, como se houvesse esgotado as últimas
forças do seu espírito enfermo, deixou-se cair desamparado
sobre um almofadão, contraído o semblante e trêmulo o

152
corpo. Desta abatida situação veio tirá-lo o seu escravo
Cingo.
- Os estrangeiros esperam, disse com seu habitual
laconismo.
- Vêm só?... perguntou o Idumeu, volvendo em torno
de si os receosos olhos.
- Assim o mandaste. A tua ordem é lei para mim,
respondeu o escravo.
- Tu és bom, Cingo amigo... Tu amas o teu senhor, e o
teu senhor não há de esquecer na sua última hora, que não
está distante, o que te deve.
- A minha vida é tua: diz-me que morra e me verás
expirar sereno aos teus pés.
O rei estendeu uma das mãos a Cingo que este beijou
com respeito.
Talvez o único ser que o amava na Palestina.
- Que respondo ao caldeus? Tornou o escravo, depois
duma breve pausa.
Herodes escorregou da cama, foi colocar-se diante de
um espelho, e, pegando numa redoma e numa esponja,
começou a tingir o cabelo e a barba, que adquiriram
instantaneamente um brilho e um negro admirável.
- Esses caldeus poderiam desprezar-me vendo as
minhas cãs; porque os velhos são fracos... E preciso enganá-
los, não é verdade, Cingo?
O escravo inclinou-se.
Quando o Idumeu viu terminado o seu adorno, um
sorriso de satisfação lhe assomou aos lábios.
- Agora sou outro homem... Que entrem, mas que
entrem sós, sem os seus soldados, ouves? eles sós.
Cingo saiu.

153
Herodes, procurando serenar o semblante, depois de
cingir a coroa e colocar sobre os ombros um rico e luxuoso
manto romano, foi sentar-se num dos divãs, tomando uma
atitude nobre e majestosa.
Quando os três Magos apareceram à porta da câmara,
Herodes era outro homem diferente do que acabava de ver-se
só com a sua consciência.
Antes de lhes falar esteve observando-os com vagar,
como se quisesses ler-lhes nos corações.
Os Magos, que com os braços cruzados sobre o peito
tinham saudado o senhor de Jerusalém, esperavam as suas
ordens junto da porta, imóveis e silenciosos. Cingo lia nos
olhos de seu amo e foi esconder-se com alguns companheiros
da sua escravidão entre as largas pregas das colgaduras da
porta.
Ali esperava com a mão posta no cabo do punhal uma
ordem de seu amo.
Herodes por fim dirigiu-se aos Magos, dizendo com
pausada e melífluo acento:
- Entrai e sentai-vos, ilustres estrangeiros.
Os peregrinos da estrela obedeceram ao rei de
Jerusalém.

LIVRO QUARTO

CAMINHO DO EGITO

CAPÍTULO I

OS QUATRO REIS

154
- Sábios do Irã que chegastes às minhas terras em busca
dum rei que acaba de nascer, eu vou saúdo, disse Herodes,
depois de contemplar um breve momento os caldeus.
Os discípulos de Zoroastro, os gentis adoradores do sol,
inclinaram-se respeitosamente, e Gaspar, o mais velho dos
três, e conhecedor da língua hebraica, disse:
- A esperança de encontrarmos esse rei nos traz das
margens do Tigre à tua cidade, que os deuses protejam; mas
as nossas esperanças desvaneceram-se como um sonho.
- Não vos compreendo, caldeus, respondeu Herodes
que com melífuas palavras e hábeis giros, queria saber como
tinham chegado aqueles reis às suas terras; mas sempre tenho
admirado os sábios da Pérsia. Por que, pois, não viestes
hospedar-vos no meu palácio, que é vosso? Por que antes de
me verdes, levantastes ao vossas tendas nos derruidos
pórticos do rei dos Cantares?
- Deus,o grande Peregrino do céu, tem a sua tenda no
sol; nós mortais peregrinos da terra, levantamos as nossas
tendas junto ao derruido palácio de Davi, porque desse
tronco há de nascer o Salvador de Israel.
- Por ventura aos ilustres babilônios interessa a sorte
dum povo que não é o seu?
- O que se anuncia aos homens com sinais do céu,
interessa a humanidade inteira.
- Anunciou-se-vos a vós desse modo?
- Balaão predisse uma estrela que devia aparecer na
época do nascimento dum grande rei, o qual estava destinado
a passar o seu estandarte vencedor do Oriente ao Ocaso.
- Mas essa estrela não a vimos em Judá: os meus sábios
nada me disseram. Como, pois, me explicais uma coisa tão
estranha? Como, pois, se anuncia o Deus invisível dos

155
hebreus, o verdadeiro Jeová, na terra dos pagãos, e não na
dos fiéis?
- Ninguém pode explicar aos incrédulos as misteriosas
revelações do Criador do universo.
- A fé não falta a Herodes.
- Então crê que esse formoso astro surgiu no Oriente.
- Durante a noite?
- Noite e dia brilhou sobre as cabeças dos nosso
dromedários, guiando com a sua misteriosa luz os nossos
incertos passos, através de arenosa Palestina, desde Seleucia
a Jerusalém.
- Mostrai-me o ponto do céu em que se acha essa
estrela; quero vê-la.
- É impossível; o formoso astro abandonou-nos ao
divisarmos os altos minaretes da tua cidade.
- E que augurais vós desse desaparecimento?
- Que aqui nasceu o rei que buscamos...
- E para que quereis encontrá-lo com tanto empenho?
- Para depositar aos seus pés ouro fino, colhido nas
margens de Nínive, a grande, como a príncipe; mirra como a
homem e incenso como a Deus. Beijar os seus pés, render-
lhe vassalagem e adorá-lo como merece um Anunciado dos
céus.
- Sábios caldeus, eu admiro a vossa ciência, respeito a
vossa fé. Nada é tão grande para Herodes sobre a terra,
depois de Deus, como um sábio... Já que o destino vos
conduz por fortuna ao meu palácio, perdoai se a minha
ignorância vos incomoda pedindo-vos pormenores acerca
dessa estrela que seguintes até Jerusalém.
Herodes, hábil político, fingiu aquela admiração, aquele
acatamento à ciência, porque queria saber dos mesmos
Magos todo o acontecido desde a sua saída de Seleucia.

156
Sagaz e astuto, procurou que os régios estrangeiros não
entendessem o sanguinário plano que lhe fervia no cérebro.
Sabia que os reis da Pérsia a primeira coisa que aprendiam
na sua infância era dizer a verdade.
A mentira tem-se como um opróbrio, como uma
hedionda nódoa que empana o sangue e o brasão dos
cavaleiros. Certo Herodes da verdade da narração que iria
ouvir dos caldeus, propôs-se tirar de todos os pormenores
armas para o seu plano.
Gaspar explicou cientificamente a lei invariável que
rege os globos celestes. Fez-lhe compreender também que o
rumo marcado pela estrela que tinham seguido até ali, era
estranho e sobrenatural. Disse que nunca nas regiões celestes
se tinha visto um astro das dimensões e brilho daquele que os
trazia preocupados.
Herodes escutou com profunda atenção as palavras de
Gaspar. Amável e lisonjeiro, mais duma vez que se mostrou
pasmado antes as profundas palavras dos reis. Entretanto, os
Magos nada suspeitavam. Como todos, esse sábios que
ilustram o mundo com as suas luzes, eram bons e ingênuos, e
os seus corações nobres e generosos não davam entrada à
desconfiança e malícia.
O Idumeu havia-lhes armado um laço, e satisfeita a sua
curiosidade, despediu os reis dum modo Cortez e lisonjeiro,
dizendo-lhes:
- Ide informar-vos exatamente desse Menino, e, quando
o houverdes encontrado, fazei-me saber para que eu também
vá adorá-lo e celebrar um banquete de nascimento à usança
do vosso país.
Os Magos saíram do palácio de Herodes, encantados do
bondoso caráter do rei protegido do Capitólio. Descendo a
escada, Gaspar disse aos seus companheiros:

157
- Se o rasto de sangue humano que tinge a terra de
Israel não o fizesse um assassino desprezível, julgaria que
este homem não é o que dizem.
Apenas os persas tinham abandonado a câmara do rei
de Judá, abriu-se uma porta, e, apartando mão invisível as
colgaduras que a cobriam, assomou por ela uma cabeça
coberta de longos e macios cabelos pretos, cujo risonho e
expansivo semblante contrastava com a torva e taciturna face
do rei tributário.
O novo personagem que assim se introduzia sem se
anunciar no quarto do verdugo de Mariana, era um menino
de doze a quatorze anos, de altivo e formoso semblante.
O traje romano que vestia ficava perfeitamente ao seu
talhe esbelto. Apesar dos seus poucos anos, pendia-lhe o arco
do braço, a adejava dos ombros e a espada curta da cinta.
A toga pretexta guarnecida de púrpura caia com
majestade sobre o corpo do adolescente, deixando adivinhar
debaixo das suas largas pregas e nascente musculatura de
uma atleta. A sua fronte era altiva, o seu olhar sereno e
majestoso e através da fina epiderme do seu rosto viam-se as
azuladas veias por onde circulava o seu sangue real.
Este menino chamava-se Aquiab, e era um dos
inumeráveis netos de Herodes. Na família chamava-se o
Favorito; havia-se educado em Roma com o esplendor dum
príncipe, às expensas de seu avó, que o amava de um modo
indizível, avivando com este afeto os ciúmes dos seus filhos,
e particularmente de Arquelau, pai de Aquiab.

CAPÍTULO II
A Q U I A B

158
Herodes, o Grande teve nove mulheres, vinte filhos e
um número ainda mais considerável de netos.
Sucessivamente coube a mesma sorte a Meltaca,
Palada, Olimpíada, Fedra, Elpides, Roxana, Salomé, e outras
duas de cujos nomes não nos recordamos.
Estas esposas, expulsas vilmente do palácio do
monarca, choraram nos seus desterros a indiferença do
bárbaro Idumeu, estreitando seus filhos contra os peitos
feridos pelo dardo cruel da infidelidade de seu esposo. Um
dia as lágrimas esgotaram-se e o desejo de vingança brotou
robusto e animoso nos peitos mulheris daquelas ex-rainhas
postergadas.
Aqueles olhos avermelhados pelo pranto, buscaram
cobiçosamente uma coroa para seus filhos: viram a de
Herodes, à qual todas tinham direito, e então com as mãos,
ainda contraídas pela raiva, começaram a afagar o punhal ou
o veneno que devia vingá-las e exterminar o tirano.
Herodes viu o perigo que o ameaçava; teve medo da
sua numerosa família; viu cem punhais sobre a cabeça
prontos a descarregar o golpe fatal e disse consigo:
“Matemos: os mortos não se vingam”.
Sem embargo, era preciso buscar um pretexto para
desculpar-se aos olhos de César, seu aliado, e de Israel, sua
escrava. Entre as princesas repudiadas, Mariana era a mais
temível pelo seu claro talento e deslumbrante beleza.
Mariana foi acusada de ter mandado um retrato a
Marco Antonio, com que se supôs em relações amorosas, e
foi morta. Pouco depois seu filho Alexandre, o mais querido
do povo hebreu, o mais conveniente para cingir a coroa,
sofreu a mesma sorte de sua mãe.
O sangue derramado começou a espantar o sono do
verdugo de Israel; a desconfiança encarnou-se na sua alma e

159
só se rodeava de escravos fiéis, aos quais o seu medo
enriquecia. Três eunucos que nunca se afastavam do lado do
rei, chegaram a ser os seus favoritos: Silóe, seu copeiro, Ratt,
que cuidava da sua comida, e Ferax, da sua cama.
A família de Herodes viu que aqueles três servidores
formavam um muro impenetrável ante o corpo do tirano, e
comprou-os. Cingo descobriu esta venda na mesma noite que
estava destinada como a última do seu senhor. Os eunucos
sofreram o tormento e declararam a conspiração. Alexandre,
filho de Mariana, era o chefe, e morreu com os seus
cúmplices.
Mais tarde, como o leitor verá no decurso deste livro,
caíram ao fio do cutelo ensangüentado de Herodes mais seis
filhos. O tirano quis afogar o grito incessante da sua
consciência, que lhe recordava a sua crueldade para com seus
filhos, prodigalizando toda espécie de cuidados a seus netos.
Muitas vezes, na prolongada agonia dos seus últimos anos,
fez com que aqueles meninos, que a sua mão deixara órfãos,
rodeassem o seu leito e entretinha-se em dispor os
casamentos daqueles infantes para mais tarde.
Entre os seus netos, o favorito era Aquiab, filho de
Arquelau, a quem destinava a coroa de Jerusalém.
Só seis pessoas rodeavam o rei: Salomé, sua irmã,
Aleixo, seu cunhado; Cingo, seu escravo; Vertúdio, general
legionário; Arquelau, seu filho, e Ptolomeu, o velho guarda-
selos. Depois destes todos os habitantes de Israel eram tidos
como inimigos, excetuando os soldados mercenários e os vis
herodianos.
Para Herodes a vida era um sonho de morte. O último
dos súbditos era mais feliz que o seu senhor.
Dados estes esclarecimentos, voltemos a encontrar
Aquiab, no momento em que penetrava na câmara do rei.

160
- Graças a Marte que te deixaram só, querido avozinho,
disse o mancebo entrando precipitadamente na habitação.
Herodes voltou a cabeça, e, ao ver seu neto, apareceu-
lhe um sorriso nos lábios.
- Como me achas? lhe perguntou com estouvamento o
menino, dando uma viravolta para que o visse melhor.
- Estás mesmo um capitão de César. Mas a que vem
esses aprestos militares em tempo de paz? Por que abandonas
o teu leito antes que o sol saúde com seus raios ou sepulcros
do vale de Josafá?
- Se me prometes não ter enfadar comigo, vou dizer-te
E o jovem deteve-se, receoso de que o seu avô o
repreendesse pelo que ia revelar.
- Fala; nada temas, Aquiab; já sabes que sou bastante
condescendente contigo.
- Pois bem, senhor, Cingo, teu escravo favorito é muito
meu amigo deste que tu o nomeaste meu mestre, e eu te
agradeço, porque Ptolomeu o velho guarda-selos da tua
coroa, não sei o que me ensinava; rabugento e ralhados,
nunca metia uma seta no alvo, nunca pôde desarmar um
escravo, e, sempre que pretendeu montar a tua água siríaca, o
ardente animal o atirou ao chão... Diz-me avozinho, quanto
tínheis guerra, Ptolomeu era valente?
Herodes, o feroz verdugo de Belém, era fraco ante
aquele menino, como Sansão aos pés de Dalila.
- Ptolomeu é um servo fiel e proíbe-te que lhe queiram
mal, respondeu com doçura Herodes.
- Pois então deixemos o teu guarda-selos. Hoje não
quero que te zangues comigo, e, tornando-te a falar de Cingo,
vendo este homem que eu cravara quatro flechas seguidas no
alvo, exclamou, dando uma patada no chão: “Pela vida de
Júpiter Olímpico, meu príncipe, que de todo o coração sinto

161
deixar-te agora que com tanta rapidez adiantas no exercício
das armas”.
- “Deixar-me? lhe disse.
- Amanhã passamos a Jericó; só os deuses sabem como
encontrarei o meu discípulo quando regresse a Jerusalém”.
- “Porque não me levas contigo? lhe tornei.
- “Príncipe Aquiab, Cingo não é mais que um escravo,
me respondeu: teu avó é meu rei; pede-lhe a sua vênia, que
eu ficarei muito contente se te vir cavalgar ao meu lado”.
Seguindo, pois, os seus conselhos e os meus desejos, venho
dizer-te: Avô, eu quero acompanhar-te a Jericó; não é
verdade que tu também queres que Aquiab te acompanhe?
- É preciso que teu pai Arquelau o consinta.
- Ah! Pois então de certo não vou... Mas tu és o rei;
aqui todos te prestam obediência; quem ousará contradizer
uma ordem tua?
Herodes, que como todos os adulados era fraco ante a
adulação, passando carinhosamente a mão pela cara de seu
neto, disse-lhe:
- Irás.
O jovem deu um salto, e pendurando-se aos ombros de
seu avô e cobrindo de beijos aquelas barbas encanecidas que
faziam tremer os hebreus, exclamou com infantil entusiasmo:
- Tu és bom; rei e senhor, muito bom para comigo; mas
eu prometo-te ser um rapaz obediente e aplicado.
Arquelau, filho de Herodes, entrou naquele momento
na câmara real. Trazia triste o rosto e o olhar inquieto. Seu
filho Aquiab perdeu a alegria à vista do pai.
- Senhor, disse Arquelau com voz agitada, dirigindo-se
a Herodes; desde a torre dos hípicos ao vale de Josafá, desde
a porta de Efraim ao tempo de Sion, levantou-se uma voz de
alarme, produzida pela chegada duns reis estrangeiros que

162
vêm em busca do rei de Judá que acaba de nascer. Pai, quem
é esse Rei que vem usurpar-nos a coroa?
Herodes, que estremecia a cada palavra que
pronunciava, procurou dominar-se dizendo:
- Nada temas, Arquelau; os sonhos dos judeus devem
inspirar desprezo aos herdeiros de Herodes; e depois,
dirigindo a palavra a seu neto, continuou: Aquiab corre a
dizer ao meu escravo Cingo que desejo partir imediatamente;
tu me acompanharás.
Aquiab beijou a mão de seu avô e saiu da câmara
saltando de alegria. Quando Arquelau e Herodes ficaram sós,
disse este a seu filho, baixando a voz:
- Tu, meu filho, ficas em Jerusalém; eu parto para
Jericó para fazer os preparativos duma viagem a Roma, onde
teus rebeldes irmãos me acusam; mas antes de partir escuta
bem o que vou dizer-te e não esqueças que do cumprimento
exato das minhas ordens depende que esta coroa que
descansa sobre a minha fronte passe amanhã à tua cabeça.
Esse sábios caldeus que semearam a inquietação na nossa
cidade, tornarão a dar-me notícias desse rei que procuram.
Então te apoderarás deles e mos mandarás a Jericó presos
entre dois muros de lanças.
- Serás obedecido, respondeu com prazer Arquelau, em
cuja veia ardia o pobre sangue de seu pai. Entretanto, dorme
tranquilo; tu reinarás em Galiléia ainda que seja preciso para
isso encher o Cedron de sangue humano.
Herodes, chegando-se à janela, pela qual começavam a
entrar os raios de sol nascente, agitou um lenço, e
imediatamente ressoou na praça o toque das trombetas.
Depois pegando na vara de metal, tornou a tirar da folha de
aço três sons vibrantes. Salomé, Aleixo e Verutídio
apresentaram-se à porta.

163
- E os médicos? Perguntou Herodes a sua irmã.
- Esperam na praça e acompanhar-te-á a Jericó.
- Mas que te disseram?
- Como sempre, aconselham-te os banhos temperados
de Calióre.
- Ora! Os médicos sempre acabam pelo mesmo; quando
se vêm perdidos, entregam o corpo nos braços da natureza.
Vamos.
E sairam da câmara. Verutídio, o general romano, ia
adiante. Herodes, apoiado nos braços de sua irmã e de
Aleixo, descia atrás, a larga escada do palácio. Depois, grave
e carrancudo, seguia o guarda-selos do palácio, Ptolomeu.
Quando Herodes chegou ao pórtico, uma riquíssima liteira o
esperava. Cingo abriu a portinhola, e pôs um joelho para
servir de estribo ao seu senhor. Ao seu lado achava-se
Aquiab, montado numa galharda égua de raça siríaca. Um
grito de viva el-rei ressoou na praça. Herodes, depois de
saudar com um sorriso seu neto e com um lenço os seus
soldados, disse ao seu escravo Cingo:
- Para Jericó!
- Para Jericó, repetiu Cingo ao guarda-seios, o qual
transmitiu a ordem a uma centurião romano.
Então Salomé entrou em outra liteira com a sua escrava
favorita. Aleixo montou num fogoso cavalo, e foi colocar-se
à direita da liteira de Herodes. Pouco depois o tirano de Judá
saía pela porta Dória, rodeado das suas lanças mercenárias, e,
tomando o caminho de Betânia, dirigiu-se para as margens
do Jordão, em procura da sua cidade favorita.
Deixemos o Idumeu prosseguir o seu caminho,
abismado nos seus sanguinários planos, e tornemos a
encontrar os peregrinos do Oriente, os sábios de Seleucia.

164
CAPÍTULO III

A ADORAÇÃO DOS MAGOS

Quando os peregrinos persas saíram do palácio de


Herodes, e dia achava-se indeciso nas nuvens do Oriente.
Imediatamente mandaram levantar tendas e com a esperança
no coração abandonaram a capital da Judéia, saindo pela
porta de Damasco, enquanto que a cavalgada de Herodes se
encaminhava para Jericó pela porta Dória.
Duas horas de marcha levaram os caldeus, cruzando
vales e subindo empinados desfiladeiros; já o sol, em toda
sua plenitude, lançava sobre a terra da Palestina a vivificante
e clara cruz dos seus raios, quando se detiveram junto duma
cisterna (que hoje ainda existe, e é conhecida com o nome de
cisterna dos magos), deixando beber aos seus dromedários,
das suas frescas e transparentes águas. De repente, quando
mais distraídos se achavam na zênite um astro luminoso que
desceu como uma exalação sobre as suas cabeças.
Os viajantes, sem se poderem contar, fazem um
movimento de terror, crendo que um raio caía sobre eles para
os exterminar.
Mas o fogo do céu não chega à terra; ficando suspenso
no espaço, a pequena distância das suas cabeças, envia-lhes
as cambiantes irradiações dos seus formosos raios que
esmaltam quanto tocam os seus brilhantes reflexos.
- A estrela, a nossa estrela! Exclamaram jubilosos os
reis, levantando os braços para o céu com religioso
movimento.
- A estrela, a estrela! Repetem com louco entusiasmo
os escravos e soldados da caravana.

165
- Prodígio dos céus! Misteriosa revelação dum Deus,
que nós os discípulos de Zoroastro, não temos adorado,
exclamou Gaspar com fervoroso acento; guia-nos até ao
berço do teu santo filho e eu beijarei os seus pés e adorarei o
seu corpo.
Então a estrela, como se houvesse esperado as palavras
do rei idólatra para empreender a sua marcha, começou a
deslizar-se pelo espaço. Os reis seguiram-na. Deixando a
terra aos seus dromedários, fitos os olhos na formosa estrela,
caminharam mais duas horas entre barrancos e precipícios
sem se importarem do perigo que os ameaçava a cada passo.
Por fim o divino astro deteve-se por cima duma
pequena cidade que descansava no topo duma colina.
Aquela cidade era Belém de Judá, pátria imortal, berço
santificado do Redentor do homem.
Os reis dispunham-se a entrar em Belém, quando a
estrela, como se houvesse desprendido da mão misteriosa
que a segurava no espaço, caiu do céu e foi colocar-se sobre
a desmoronada e arruinada porta dum estábulo. Os reis
julgavam encontrar num palácio o Messias; mas ainda que os
assombrou o miserável lugar que a mensageira do céu
escolhia para deter o seu passo, puseram pé em terra e,
ordenando aos seus escravos que lhes descalçassem as
sandálias, encheram as fontes com o pó do pobre umbral e
entraram no estábulo.
O Menino-Deus achava-se estendido no sue humilde
leito de palha; sua santa Mãe, ao seu lado, contemplava com
doce veneração a jóia do seu amor. O astro dos céus enviava-
lhe os seus formosos raios, que caiam como um raio de luz
sobre a Mãe e o filho.
Os reis caminharam até o pé da manjedoura com
profundo respeito. Grande era a fé que os animava quando

166
dobrando o joelho foram beijar com respeito os pezinhos
daquele Menino pobre e abandonado que nascera num
estábulo.
Os poderosos reis de Seleucia e Oriente, a cuja voz
curvavam a cabeça os seus leais escravos; os idólatras
babilônicos, os sábios da Pérsia, rendiam vassalagem ante o
Filho dum pobre carpinteiro de Nazaré. Não era isto um
sonho do Ginastan, mais verossímil, mas estranho que a
fabulosa existência dessa raça de Dives e Peris, desses
gigantes que habitavam uma cidade formada de um só
diamante e que as caprichosas falas do Cáucaso e do mar
Cáspio converteram em torrentes de cambiantes cores e em
mares de brilhante luz só com o lhe tocarem com sua varinha
misteriosa?
Prostrarem-se ante o Filho de um pobre operário três
poderosos reis do Oriente, no tempo da vinda de Jesus
Cristo, era tão inverossímil, tão portentoso, como esgotar o
Oceano à força de braços e converter o deserto de Saara num
vergel frondoso das margens do Eufrates! Só Deus poderia
levar a cabo tão portentosa transformação. Só o Filho de
Deus podia conduzir junto do seu berço, com os pés
descalços e o pó na fronte, Gaspar, Melchior e Baltazar.
Postos de joelhos ante Jesus, os potentes reis adoraram
o recém-nascido como os príncipes do Oriente adoravam
então os seus deuses e soberanos.
Abriram os ricos cofres que levavam e tiraram para
depositar aos pés de Messias, ouro puro de Nínive a granel e
perfumes árabes do Iemem.
O sacrifício do sangue começou a ser abolido pelos
mesmos pagãos que o veneravam. A branca novilha, o
inocente cordeirinho não dobravam o humilde colo ante o
cutelo do sacrificador, nem dirigiram o seu doce e doloroso

167
olhar na ocasião de expirarem, para o deus que lhes tirava a
vida. Jesus, desde o berço, desterrava da Sinagoga o sangue e
as vítimas. O Deus do perdão, da caridade, da tolerância,
nascia entre os homens para se sacrificar por eles. Só uma
vítima reclamava a humanidade extraviada, para livrar-se da
infalível perdição; essa vítima desceu dos céus para salvar o
mundo. A civilização cristã, o direito das gentes, a liberdade
do homem, nasceram num estábulo. Por inspiração divina,
três reis bárbaros puseram a sua pedra fundamental. Os
idólatras caldeus deram o primeiro passo sem o poderem
explicar a si mesmos, ao oferecerem como tributo da sua
vassalagem ao Filho de Maria, ouro como príncipe da terra,
mirra, como homem e incenso como Deus.
Maria contemplava com indefinível gozo aquela
adoração que os poderosos reis da Ásia tributavam ao seu
formoso Filho. Mãe extremosa, derramava doces e
agradáveis lágrimas ante aqueles nobres estrangeiros que de
tão remotos climas iam beijar os pezinhos de seu adorável
Filho.
José não se achava no estábulo quando teve lugar a
adoração dos reis Magos. Com quanto gozo haveria
contemplado aquela cena terna e assombrosa o casto e
cândido carpinteiro de Nazaré! Mas o Eterno assim o havia
disposto. Sua prença naquele lugar talvez houvesse semeado
a dúvida no coração dos reis peregrinos.
Gaspar e os seus companheiros eram homens de ciência
e sabiam o hebreu; e depois de adorarem o Menino e
oferecerem o seu respeito e valia a sua santa Mãe, sairam do
estábulo, caminhando de costas para a porta, e montando nos
seus dromedários puseram-se em marcha.
Antes da saída dos Magos, um árabe entrado em anos e
um jovem hebreu, confundidos entre os escravos dos

168
caldeus, tinham-se introduzido no santo estábulo. Durante a
adoração não apartaram a vista da misteriosa estrela, que
suspensa da abóbada da gruta, lançava seus fulgurantes raios
sobre a manjedoura em que dormia o Menino-Deus. Apenas
os reis sairam da caverna, o árabe encaminhou-se para o leito
de Jesus, e, dobrando um joelho e cruzando os braços sobre o
peito com veneração, beijou a palha que servia de leito,
murmurando estas palavras em voz baixa:
- Tu és o Messias prometido... Tu és o meu Deus, o teu
glorioso nome cravar-se-á no meu coração eternamente e no
de meus filhos e nos dos filhos de meus filhos...
E depois saiu do estábulo do mesmo modo que tinham
saído os reis Magos.
O jovem hebreu fez o mesmo que o árabe; entrou,
ajoelhou-se e beijou a palha do presépio. Depois saiu da
gruta murmurando estas palavras.
- O Messias nasceu; Jeová apiedou-se por fim dos
descendentes de Jacó; creio nele e hei de adorá-lo enquanto
viver.
O árabe encaminhou-se para Jerusalém abismado nas
suas reflexões. Os hebreus, com a fisionomia resplandecendo
felicidade, dirigiram-se para o Monte Carmelo. O árabe era
Hassaf, o caravaneiro do Egito; o hebreu Agabus, o
pretendente de Maria, o misterioso personagem da fonte de
Elias.
Entretanto, os reis Magos, fiéis à sua palavra, dirigiram
a cabeça dos seus dromedários para Jericó, com o fim de
revelarem a Herodes tudo o que lhes havia acontecido. Deus,
que lê no cerrado livro do coração humano, viu a fé singela,
a honradez dos caldeus, e a miserável hipocrisia do tirano de
Judá e quis salvar do perigo que os ameaçava os primeiros,

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mandando-lhes um emissário misterioso que os informou dos
sanguinários planos do rei de Jerusalém.
Esta revelação foi feita em sonhos, segundo o
Evangelho, e no dia seguinte os discípulos de Zoroastro
deram graças Aquele cujas tenda está no sol, e em vez de
tomarem as praias infecundas do lago Maldito, para
encontrarem o Jordão, fizeram torcer o rumo aos seus
dromedários para o Grande Mar, e atravessando as
perfumadas planícies que beijam com seus frescos lábios o
Bem-buier, dirigiram-se confiando em Deus às pitorescas
ribeiras da Síria. Para terminarmos o quadro do reis Magos,
cuja importante missão junto ao berço de Cristo é de tanta
monta para o cristianismo, acabaremos este capítulo dando a
conhecer aos nossos leitores algumas informações que sobre
o fim dos ilustres peregrinos pudemos adquirir.
S.Tomé apóstolo passou à Índia a pregar o Evangelho,
e os reis caldeus, que com esta missão percorriam o mundo
havia alguns anos, receberam o batismo das mãos do
discípulo de Jesus Cristo. Mais tarde, cheios de fé, instruindo
nos santos mistérios da nova lei os indômitos moradores dos
bosques da Índia, Gaspar e Baltazar sofreram o martírio,
morrendo às mãos duma horda de ferozes e descridos
idólatras. Melchior, o mais novo dos três, o que nos
representaram as Escrituras de cor negra ou escura,
livrando-se da morte encaminhou-se para a Índia Oriental,
sua pátria, e foi refugiar-se na cidade de Cangranor. Uma vez
ali, com suas riquezas fundou a cidade Calêncio, e, com o
coração cheio de fé cristã, erigiu um soberbo templo em
honra e glória da Virgem Maria e seu glorioso Filho.
Desde então os calêncios consagraram-se ao culto e
piedade de Maria, aumentando de dia para dia com a
influência de Melchior o respeito e veneração para com a

170
rainha dos céus. Culto que de geração em geração, e sempre
em aumento, se transmitiu até o século atual para que em
tudo se cumprissem as profecias dos livros sagrados, que
dizem: que do Oriente havia de nascer a fé verdadeira do
Messias anunciado pelos profetas.

CAPÍTULO IV

A ANCIÃO E A PROFETISA

A lei de Moisés prescrevia à mulher hebréia a


purificação no templo quarenta dias depois do parto. Maria
para cumprir a lei, abandonou a cidade de Davi e dirigiu-se a
Jerusalém. A Virgem, com o Menino Jesus nos braços e
acompanhada de seu esposo, chegou aos degraus do templo.
A Nazarena era pobre, e só podia oferecer em sacrifício uma
humilde rosa.
A Santa família esperava sob os altos pórticos da
sinagoga a hora do resgate do seu Primogênito, quando um
ancião venerando a quem o Evangelho chama Simeão o
homem justo, abrindo passagem por entre a gente, chegou
até onde estavam os Esposos, e, depois de se ajoelhar a seus
pés, tomou o Menino nos braços, e elevando à altura do
rosto, exclamou com indefinível gozo:
“Agora é que Vós, senhor, deixareis morrer em paz o
vosso servo; pois que os meus olhos viram o Salvador que
Vós nos destes e a quem destinais para estar exposto às vistas
de todos os povos, como a luz das nações e a glória de
Israel”.
Os Santos Esposos escutaram absortos as palavras
proféticas do velho Simeão, que com os olhos arrasados de

171
lágrimas permaneceu estático contemplando o cândido
semblante do Menino-Deus.
- Oh! Mãe feliz prosseguiu a ancião depois duma
pausa; teu Filho será o sol resplandecente que espantará as
trevas de Israel. Objeto de glória para uns, motivo de
perdição para outros, o seu santo nome será o alimento do
fraco, o temor do forte; e Tu, que o trouxeste no teu seio,
verás traspassada a tua alma maternal pela acerada ponta de
cem espadas.
Maria, cada vez mais admirada das palavras do ancião
olhava-o sem despregar os lábios, como se através das suas
misteriosas palavras visse o doloroso futuro que os céus lhe
destinavam.
Havia então em Jerusalém uma mulher entrada em anos
chamada Ana, a Profetisa. Esta virtuosa viúva passava a vida
entre a penitência, o jejum e a oração; vivia continuamente
no templo e era respeitada pelos judeus pelo seu saber, como
uma das suas sacerdotisas, como uma das suas profetisas.
Ana chegou ao templo na ocasião em que o Menino
Jesus se achava ainda nos braços do ancião. A profetisa
detém o passo diante de Simeão. Seu rosto demuda-se, seu
coração comove-se e exclama absorta do que sente:
- Que é isto, Deus invisível!...
Então os seus olhos fitam-se em Jesus... Um grito de
alegria sai da sua boca e, caindo prostrada aos pés de Maria,
diz, estendendo os braços:
- Tu és a Mãe do Messias: deixa que beije os pés do teu
Santo Filho.
Os jerossolimitanos, que respeitam o saber de Ana,
foram-se agrupando em torno dela, ansiosos de ouvir as
palavras de júbilo que a vista daquele Menino lhe arrancava.

172
- Oh! povo de Israel! Exclamou a inspirada mulher
derramando lágrimas de prazer e erguendo os olhos ao céu.
Oh, povo de Israel! Venturosos descendentes de Abraão e
Jacó... Já sobre a venturosa terra de Judá desceu o Deus forte,
o Deus poderoso que há de levar o vosso glorioso estandarte
por todo o Oriente. Olhai-º.... É este... O vaso humano que
contemplam vossos felizes olhos, encerra o Ser imortal e
poderoso de Jeová. Semeai flores e palmas ante os passos de
sua Santa Mãe... elevai cânticos de hosana... pela glória do
Filho... Fortes, poderosos escribas, espalhai tão faustosa nova
pelos dilatados confins da Palestina!... Filhos de Jerusalém,
adornai-vos como na festa dos Abemos, cantai como na festa
dos Tabernáculos, derramai óleos e essências como nas
bodas dos príncipes; porque ainda tudo isso e quanto façais
em honra da sua anelada vinda, será pobre e mesquinho para
obsequiar o Messias Salvador da sua oprimida raça!
E Ana, a inspirada profetisa, a virtuosa viúva, saindo do
templo de Sion, começou a correr pelas ruas da cidade
sacerdotal anunciando a vinda do Messias, o nascimento de
Deus.
As mulheres e os velhos que se achavam nos degraus
do templo, absortos ante as palavras de Ana, apressaram-se a
beijar o humilde e grosseiro manto da Virgem Maria.
“Não só (diz S.Ambrósio) os anjos, os profetas e os
pastores apregoam o nascimento do Salvador do mundo, mas
também, os justos e os anciãos de Israel fazem brilhar esta
verdade. Um e outro sexo, novos e velhos autorizam esta
crença, confirmada com santos milagres. Uma virgem
concebe, uma mulher estéril pare, Isabel profetisa, O Mago
adora, uma viúva confessa este maravilhoso sucesso e o justo
espera-o”.

173
A hora de apresentar o Menino na sala dos
primogênitos soou e José, deixando sua Santa Esposa no
átrio do templo, entrou na casa de Deus com o seu Filho nos
braços. Mas aí! Ali Jesus foi tratado como o último dos
hebreus. O sacerdote que recebeu a oferenda das mãos do
pai, nem sequer se dignou dedicar um olhar ao Deus-Menino.
O judeu avarento e mau sacerdote olhava com desprezo
o pobre dom que o honrado carpinteiro ia oferecer ante o
altar dos holocaustos. A sede de ouro endurecia o coração da
maior parte dos rabinos daquela época gloriosa e imortal.
Jesus era pobre e, por conseguinte foi olhado como lixo do
mundo.
O egoísta sacrificador recebeu das mãos de José as
inocentes aves destinadas pelo Levíticio, murmurando
palavras grosseiras e intempestivas, às quais o glorioso
patriarca cerrou os ouvidos, perguntando a si mesmo porque
pretendia aquele homem humilhá-lo tão duramente, quando a
poucos passos dali, à entrada do templo, seu glorioso Filho
tinha sido a admiração dos que o rodearam.
Segundo Josefo nas suas Antiguidades Judaicas, e
Besnage na sua História dos Judeus, o luxo e a avareza dos
príncipes dos sacerdotes de Jerusalém era incrível. Os
pontífices enviavam os seus satélites pelos campos para
arrebatarem os dízimos: isto reduziu os simples sacerdotes a
viver pobremente, sem outro alimento que figos e nozes, não
obstante, seus lábios não podiam produzir uma queixa,
porque então os pobres e desatendidos levitas eram acusados
de insubordinação e entregues aos romanos. O governador
Feliz encerrou um dia quarenta num cárcere, só por
comprazer aos príncipes da Sinagoga.
Outra baixeza, outra úlcera moral havia encarnado no
coração dos Judeus, mas repugnante, mais desprezível se

174
quiser que a avareza: a vingança, “Aquele que não alimente o
seu ódio e não se vingue, é indigno do título de rabino”.
Esta máxima horrível e cruel praticavam-na com
criminoso escrúpulo.
A vinda de Cristo ao mundo era uma necessidade,
porque a ruína, o caos estavam próximos. Jesus foi o
Salvador do homem, o facho divino que veio derramar os
claros raios da sua luz sobre as espessas trevas que
envolviam a sociedade.
O imortal Balmes o disse; nós o repetimos com ele:
“Sombrio quadro, por certo, apresentava a sociedade
em cujo centro nasceu o Cristianismo. Cheia de aparência e
ferida no coração com enfermidade moral, oferecia a imagem
da mais asquerosa corrupção, velada com a brilhante
roupagem da ostentação e opulência. A moral sem base, os
costumes sem pudor, sem freio as paixões, as leis sem
sanção, a religião sem deus, flutuavam as idéias à mercê das
preocupações do fanatismo religioso e das cavilações
filosóficas. Era o homem um fundo mistério para si mesmo e
não sabia estimar a sua dignidade, pois que consentia que o
rebaixassem ao nível dos brutos”.

“Enquanto grande parte da espécie humana gemia na


mais abjeta escravidão, exaltavam-se com tanta facilidade os
heróis até os mais detestáveis monstros sobre as aras dos
deuses.
- -

“O Cristianismo apareceu, e sem procurar alteração


alguma das formas políticas, sem atentar contra governo
algum, sem se ingerir em nada que fosse mundano e terreno,
trouxe aos homens dupla saúde, chamando-os ao caminho

175
duma felicidade eterna, ao passo que ia derramando às mãos
cheias o único preservativo contra a dissolução social, o
germe duma regeneração lenta e pacífica, mas grande,
imensa, duradoura, à prova dos transtornos dos séculos; e
esse preservativo contra a dissolução social, esse germe de
inestimável melhoras, era uma doutrina elevada e pura
derramada sobre todos os homens sem exceção de idade,
sexo, condição, como uma chuva benéfica que se destaca em
suas torrentes sobre uma campina seca e esgotada”.
- -

José terminada a cerimônia prescrita pela lei, saiu do


templo e, reunindo-se com a sua santa Esposa, abandonou a
cidade sacerdotal, e, tomando o caminho de Galiléia, dirigiu-
se a Nazaré.

CAPÍTULO V

O BOSQUE HOSPITALEIRO

Foi curta a permanência dos santos Esposos na Galiléia.


Simeão tinha vaticinado à gloriosa Mãe que um punhal lhes
transpassaria o peito; e estava escrito nos céus que as
palavras do ancião deviam cumprir-se. O mês de fevereiro
achava-se próximo à metade da sua carreira, quando uma
noite José se levantou assustado do seu leito. A voz de Jeová
tinha interrompido seu tranquilo sono. Estas misteriosas
palavras tinham chegado aos seus ouvidos: “Levanta-te,
toma o Menino e sua Mãe, foge para o Egito e permanece ali
até que eu te avise para a tua volta, porque Herodes busca o
menino para o matar”.

176
Ainda o eco misterioso da divina revelação soava nos
ouvidos de José, quando precipitadamente chegou à porta do
quarto de dormir de sua Esposa e lhe disse com voz agitada:
- Maria, desperta e deixa o teu leito, pega em teus
braços o inocente Menino e prepara-te para fazer uma
viagem longa e penosa.
Maria, que se acha junto ao berço de seu Filho, correu a
abrir a porta sobressaltada.
- Partir de Nazaré? perguntou a Virgem. E para onde?
- Para o Egito: Deus no-lo ordena; Herodes busca nosso
Filho para o matar.
Maria, correndo para o berço, abraçou Jesus, como se
no seu seio se achasse mais seguro do punhal assassino, o
Filho das suas entranhas. O Menino acordou enviando um
angélico sorriso que, como o raio de sol depois da tormenta,
tranquilizou o agitado espírito da Virgem. E logo, voltando-
se para o Patriarca, que permanência respeitosamente junto
da porta, disse:
- Entra, José, e não temas: Jesus sorri, e o seu sorriso é
como o arco-íris da tarde que dissipa as carregadas nuvens.
- Deus manda-nos executar o que te disse, tornou o
ancião.
- Partamos, pois, e do céu Jeová vele por nós durante a
viagem, disse Maria com santa resignação.
Os esposos aprontaram o mais necessário para a
viagem. Mas, eram tão pobres!... A Santa Virgem meteu num
saco de linho alguns panos e peças de roupa indispensáveis,
enquanto que José tirando da gaveta duma mesa de pinho as
suas parcas economias, as guardou cuidadosamente numa
bolsa de couro.
Depois aparelhou a linda jumentinha branca que os
havia conduzido a Belém dois meses antes; colocando sobre

177
seu dorso uma cesta com viveres e um odre de água e
abrindo sem bulha a porta da casa, deixou da ramada o
manhoso animal e foi chamar a esposa. A Trindade da terra
saiu de Nazaré com as lágrimas nos olhos e a dor no coração,
quando os astros da noite se achavam no meio da sua
misteriosa carreia. O Anjo havia-lhe anunciado um grande
perigo, mas não lhes tinha dito a maneira de o vencerem.
De Nazaré ao Egito mediava uma distância de 160
léguas. E depois, como atravessar o deserto com suas ondas
de areia, sem outra cavalgadura que uma modesta
jumentinha? Os árabes que, como bando de abutres, se
lançavam sobre as caravanas que não podiam resistir-lhes,
não os ameaçavam também com suas compridas lanças e
seus curvos punhais, a eles, pobres, indefesos e abandonados
viajantes, que não podiam apresentar contra o ferro inimigo
senão as suas lágrimas e súplicas?.
Já muito alto o dia,os viajantes, receosos de que a luz
do sol os entregasse aos seus inimigos, esconderam-se num
bosquezinho de palmeiras da tribo de Zabulon, cuja solitária
e abundante sombra lhes oferecia abrigo durante as horas do
dia. O murmúrio dos regatozinhos que nutre o Cison durante
as tempestades do equinócio, e o suave gemido das brisas
que se agitavam entre as bonitas copas das saborosas
palmeiras, o terno e cadencioso canto dos passarinhos, o
mavioso arrulho da rola silvestre, acompanharam com seus
melodiosos ecos a permanência dos fugitivos naquele vale
hospitaleiro. O sorriso do inocente Menino, o transparente
céu, a aura embalsamada dos campos, começavam a
tranquilizar o angustiado coração de Maria, quando José, que
se achava ocupado nos preparativos da frugal comida, deteve
os braços e ficou imóvel com o ouvido atento.
- Ouviste, Maria? Perguntou a Virgem.

178
A jovem Nazarena escutou um momento. Suas rosadas
faces empalideceram e, instintivamente, apertou seu Filho ao
coração. O Menino não sorria; as rolas não arrolhavam; os
passarinhos dos bosque suspenderam os doces trinados na
garganta e uma sombria nuvem escureceu o ardente disco do
sol.
- Ouço, murmurou Maria, assim como o ruído de armas
e passos de cavalos, no extremo oposto deste vale.
- Sim, para a montanha, pelo caminho romano que
conduz às ribeiras de Efa; talvez sejam comerciantes de
Ptolemaída ou Tiro que regressam aos seus portos.
- Se fossem herodianos!... E Maria mal pronunciou
estas sílabas, amedrontada Ela mesma de tal pensamento.
- Tranqüiliza o espírito; este vale acha-se afastado do
caminho.
Depois seguiu-se uma grande pausa. Os cavalos iam-se
aproximando. Maria escondeu Jesus entre as flutuantes
pregas do seu manto hebreu e levantou os olhos ao céu em
ademã suplicante. José, ao seu lado, estava mudo, triste, e
com o doloroso olhar fixo no ponto do caminho por onde
deviam aparecer os viajeiros que tão terríveis receios
derramavam no seu coração.
De súbito, uma voz varonil, ardente e vibrante, chegou
aos seus ouvidos. Esta voz humana era acompanhada por um
canto harmonioso e guerreiro, cujas notas chegavam claras e
sonoras aos ouvidos dos fugitivos, quebrando-se nas altas
copas das palmeiras.
- São romanos, murmurou José; ainda que não
compreendo bem as palavras, creio que cantam a canção do
famoso gladiador.
Maria não despregou os lábios; só pensava em seu
Filho, que apertava carinhosamente ao seio. A voz ia-se

179
aproximando e pouco depois as brisas do campo levaram até
aos ouvidos da Santa Família a canção romana.
Cessando a voz, as patas dos cavalos ouviam-se a
pequena distância. Os fugitivos mal respiravam. Um
momento depois, os capacetes romanos e as lanças trácias
dos cavaleiros brilhavam.
Maria teve medo, e, levantando os doces olhos ao céu
exclamou com doloroso acento:
- Oh, doce palmeira que elevas tua linda copa até aos
céus! Tu que te achas mais próxima de Jeová que esta pobre
Mãe, dize-lhe que não abandone meu inocente Filho.
Então sucedeu uma coisa extraordinária, sobrenatural: a
árvore inclinou para a terra seus longos e fortes ramos,
cobrindo com sua verde abóbada a Santa Família. Os
soldados de Herodes passaram junto da palmeira protetora
sem verem os que se escondiam entre o espesso cárcere de
suas folhas. A uns trinta passos daquele lugar, entre o
céspede há um manancial de água cristalina e os soldados
pararam e alguns puseram em pé em terra.
- A ordem não nos proíbe que bebamos água quando
tivermos sede e acharmos na passagem uma fonte, disse um
dos cavaleiros tirando o capacete e enchendo-o no
manancial.
- Por Júpiter! Que a infamante pena das varas não havia
de deter-me se tivesse sede e achasse um manancial tão claro
como esse que serpeia aos pés do meu cavalo.
- Que opinas tu da nossa mensagem, amigo Caio? disse
um dos soldados depois de beber água, dando o capacete
cheio a outro que ainda permanecia sobre a sela.
- Opino, Otávio amigo, que o tributário Herodes uivará
como um cão raivoso quando nos vir regressar a Jericó sem
os reis Magos.

180
- A terra sem dúvida engoliu esses estrangeiros.
- Alegro-me, volto a Esculápio. Nós soldados da invicta
Roma, não viemos à Palestina perseguir criancinhas e
encarcerar indefesos peregrinos.
- Herodes paga e manda na Judéia, replicou um
herodiano da comitiva.
- Roma protege-o, tornou o romano com império. O
César, meu amo, será sempre o senhor do Oriente.
O herodiano mordeu os lábios de raiva e foi ocultar a
sua perturbação no claro manancial da fonte.
O centurião deu pouco depois ordem de partir, e
tomaram a bom passo o desigual e quebrado caminho que
conduzia às praias de Cesaréia, onde os enviava Arquelau,
filho de Herodes, para evitar que os reis Magos embarcassem
naquela costa.
A medida que se iam afastando as patadas do cavalos as
caídas folhas da palmeira tornavam a tomar sua posição
natural. Então pôde ver-se a Santa Família reclinada sobre o
caloso tronco da árvore protetora, e dormindo com o sono
tranquilo e doce dos justos.
Deus, sem dúvida para evitar à aflita Mãe uma hora de
horrível e mortal angústia ouvindo a pouco passos a
conversação dos perseguidores de seu Filho, fez com que
descesse sobre eles o fluído misterioso e reparador sono.

CAPÍTULO VI

O BOM LADRÃO

Ao acordarem Maria e José do doce e vivificante sono


que tinham desfrutado à sombra da hospitaleira palma, a lua,

181
traspassando com seus prateados raios as apinhadas folhas
da árvore que lhes servia de tenda, banhava com sua luz clara
e tranquila a rosada fronte de Jesus. Um sorriso de
indefinível ternura vagueava no rosto do Santo Menino e um
amoroso olhar dirigido à Mãe infundiu na Virgem todo o
valor de que em tão penosa viagem precisava o seu espírito.
- É isto um sonho? dizia a Virgem apertando o Filho ao
coração. Vive ainda a vida da minha vida? Deus de bondade!
Seus ímpios perseguidores não derramaram o seu precioso
sangue?
- Maria, falou-lhe o esposo os anjos do Senhor nos
anunciam o perigo e o evitam com seu infinito poder. Mas o
tempo é precioso e a noite deve ser amigo até que cheguemos
às ribeiras da Síria, pois só alai começaremos a estar seguros.
A Virgem, delicada açucena de frágil e quebradiça
haste, revestiu-se desse valor que só possuem as mães
quando dele depende a vida de seus filhos, e abandonando o
bosque hospitaleiro onde tantos receios tinham
experimentado, seguiu o esposo com a resignação duma
mártir.
Em tão penosa viagem, quantas amarguras, quantos
dissabores os esperavam! A moléstia de Herodes, o ódio dos
israelitas aos soldados mercenários da opulenta Roma,
tinham exacerbado os ânimos e de dia para dia engrossavam
as quadrilhas de malfeitores que infestavam o país. Por toda
parte se cometiam roubos escandalosos, assassínios
horríveis. Transportar-se duma tribo a outra era correr
iminente perigo. Os homens agrupavam-se e armavam-se
para fazerem uma viagem insignificante. Mais até caravanas
de pacíficos comerciantes, pareciam destacamentos de
soldados; e ainda assim não estavam livres do perigo que os
cercava por toda parte.

182
Maria e José chegaram depois de mil incômodos à
rebelde e hostil Samaria. Durante as horas do dia
refugiavam-se nas profundas e ignoradas tabernas, e não
poucas vezes tiveram de deixar a passagem livre aos
imundos animais que nelas habitavam e que a Santa Família
desalojava para se acoitar. A Virgem sofria tudo com
resignação dos anjos e com o valor dos mártires; porque
aquela aflita Mãe só tinha um desejo, só a alentava uma
esperança: salvar seu filho do furor inimigo. Por isso
atravessava à noite os espessos bosques e calcinados
barrancos da Palestina. O estridente uivar dos lobos era mais
grato aos seus ouvidos que o estrondo das armas e o galope
dos cavalos. Por toda a parte sua medrosa imaginação
julgava ver um soldado romano que, com feroz sorriso,
estendia os nervudos braços para lhe arrebatar o amado
Jesus.
Errantes, fugitivos como criminosos perseguidos pela
lei, atravessaram a Galiléia e a parte da Samaria, fugindo das
cidades, evitando o contato da gente, caminhando de noite e
refugindo-se nas profundas cavernas dos montes durante as
horas do dia.
Nunca mãe alguma sofreu tão contínuos receios, tão
terríveis temores por seu filho, como a Santa Virgem por
Jesus. Parecia que o céu lhes retirava a sua proteção, ou
punha à prova sua paciência e sofrimento.
Cada passo que dava a Santa Família para o termo da
sua viagem, achava um perigo, um obstáculo e, contudo, de
todos esses contratempos a misteriosa mão da Providência os
tirava ilesos. Mas quanto lhe restava ainda sofrer antes de
chegarem ao Egito!...
Atravessaram as tribos da Palestina e, já quase livres
do furor de Herodes se achavam nas praias da Síria, mas ali

183
não os esperam os arenosos desertos do Egito? Por ventura
os santos viajantes poderão atravessar aquelas imensas
planícies de areia que, qual mar embravecido, sepulta as suas
cálidas ondas caravanas inteiras de viandantes logo que o
simun estende pelo deserto o seu poderoso sopro?
Aqueles caminhos semeados de cadáveres; aquelas
estradas marcadas pelos esqueletos dos camelos e dos
comerciantes; aquelas terríveis soledades infestadas de
bandidos cem vezes mais selvagens e cruéis que os de
Samaria; onde não se acha nem uma árvore, nem uma gota
de água, nem um pássaro que cante ao romper da aurora;
onde não se ouve mais que o grasnar do corvo que se lança
sobre o agonizante passageiro, ou o bramido da pantera que
das suas ignoradas cavernas farejou o cadáver do abrasado
caminhante...
Como poderão os pobres Nazarenos atravessar tão
dilatado caminho, sem outro auxílio que a sua modesta
cavalgadura, que se enterrará na movediça areia como o
cadáver na sua cova para não tornar mais a sair dela?
Mas voltemos a Samaria, onde numa noite áspera, fria e
chuvosa caminhavam os Santos Esposos e o Divino Jesus por
um profundo e solitário barranco, quando S. José, que ia
adiante levando a modesta jumentinha pela arreata, parou
ante uma voz áspera e imperativa que gritou da concavidade
duma penha:
- Alto ou morres!
José parou; Maria estremeceu, e, temerosa de que
aquele homem tratasse de roubar-lhe o Filho, procurou
escondê-lo debaixo do seu manto. Era a primeira vez desde a
sua saída de Nazaré que tinham visto interrompida sua
misteriosa viagem pela voz dos homens.

184
Antes que os modestos viajantes compreendessem o
que lhes acontecia, viram-se rodeados por multidão de
homens que foram saindo dentre as matas e as quebradas do
barranco. Os punhais achavam-se levantados sobre as suas
cabeças, quando S. José, em tom doce e suplicante, disse:
- Que mal vos fizeram esta pobre Mãe e seu inocente
Filho para levantardes os vossos punhais contra eles?
- Tens razão, ancião, disse uma voz varonil; estes
bandidos não tocarão num fio da vossa roupa; juraram-no e
estou certo de que nenhum deles faltará ao juramento ainda
que os satélites do feroz Herodes lhes apontassem uma cruz
levantada no Gólgota.
Dimas (pois era ele o que pronunciara aquelas
tranquilizadoras palavras) abriu passagem por entre os seus
companheiros, e aproximando-se de S. José, que estava
absorto, sem despregar os lábios, disse-lhe:
- Nada temas, ancião; as cãs da tua barba são uma
garantia para a tua pessoa; quanto a essa pobre Mulher que
aperta o seu tenro infante, receosa de que o ofendam, podes
tranquilizá-la, que nenhum risco corre entre nós, se alguém
se atrevesse a ofendê-la, o nosso punhal daria conta dele.
Mas a noite está fria; toma, oferece-lhe o meu matelô para
que se cubra.
E Dimas tirou sem afetação o manto de pelo de cabra
que trazia sobre os ombros e deu-o a José.
- Oh! Agradecido, agradecido, homem bom e caridoso;
Jeová te premei na hora da morte como mereces.
E José derramando lágrimas de reconhecimento cobriu
sua Esposa e o Menino com a capa do bandido.
- Agora, bom velho, segue-nos com a tua Esposa; meu
castelo está perto e deves aceitar a hospedagem que te

185
ofereço até que cesse a tempestade que ainda ruge sobre as
nossas cabeças.
Aceitando o oferecimento do bandido, algumas horas
depois achavam-se instalados na cozinha do castelo, onde
Dimas fez acender uma fogueira para que secassem a roupa.
O hospitaleiro facínora tratou seus hóspedes com admirável
solicitude. Serviu-lhes ceia abundante e pela sua própria mão
fez-lhe dois leitos de peles e mantos para que descansassem
da fadiga da viagem.
Ao deixá-los sós, pediu licença para beijar o menino e
Maria apresentou-lhe Jesus, dizendo-lhe:
- Beija-o, senhor, pois tu o protegeste.
Dimas imprimiu um beijo na fronte do Messias, e
depois, saindo da habitação com seus companheiros, disse-
lhes:
- Não sei o que senti no meu peito ao tocar com os
lábios aquele Menino; mas parece que me acho como se todo
o meu sangue se houvesse purificado.
Pouco depois todos dormiam no castelo; somente as
noturnas gralhas se agitavam nas bordas das muralhas e nas
fendas das rochas.
Quando na manhã seguinte, Dimas se encaminhou à
habitação dos hóspedes, a Santa Família recebeu-o com um
sorriso de agradecimento. O bandido mandou preparar uma
abundante refeição, e suplicou a Santa Família que saísse a
tomar o ar na plataforma do castelo.
- O dia está belo, lhes disse; subi comigo para que
vosso Filho aspire o ar puro da montanha.
Os hóspedes seguiram Dimas, admirando-se da
benevolência do bandido. Dimas, fascinado ante o olhar de
Jesus, não apartava os olhos daquele formoso Menino.

186
Vendo que nada lhe diziam do motivo daquela viagem
que os obrigava a caminhar durante a noite como gente
perseguida pela lei, não quis perguntá-lo, respeitando o
segredo que não lhe revelavam. Chegaram à muralha, e
subiram à plataforma do castelo. Dimas tomou nos braços a
Jesus e, aproximando-se das seteiras, mostrou-lhes umas
ovelhas que pastavam junto aos fossos do castelo, dizendo-
lhe com afável e complacente voz:
- Aquelas ovelhas que tranquilamente pastam à sombra
dos muros são nossa; e aquele cordeirinho branco como leite
de sua mãe é teu; eu te dou para te lembrares da hospedagem
que te ofereceu o facínora dos montes de Samaria.
Jesus sorriu como se houvesse compreendido aquelas
palavras e suas pequenas e delicadas mãos começaram a
afagar a crespa e comprida cabeleira do bandido. A terna
Virgem derramava em silêncio lágrimas de gratidão ao
contemplar aquele homem, envolto nas pesadas redes do
crime, que com tanta benevolência tratava seu Filho. José,
chegando-se a Dimas, disse-lhe com acento suplicante.
- Se és bom, se no teu coração ainda não se extinguiu o
amor aos desgraçados, porque não abandonas esta vida de
sobressaltos e crimes, que pode conduzir-te à perdição?
- Bom, ancião, lhe respondeu Dimas, enviando-lhe um
sorriso benévolo: o caminho do crime é uma ladeira mui
resvaladiça e quando o homem dá o primeiro passo, é lhe
impossível deter-se. Eu era bom; os homens fizeram-me mau
e rancoroso... agora é tarde.
A Santa Família permaneceu no castelo hospitaleiro até
o pôr do sol. Durante sua permanência foram obsequiados
pelo caritativo capitão duma maneira delicada. Quando José
foi buscar sua modesta cavalgadura, um bandido, por ordem
de Dimas, levou-a pelo freio à porta da fortaleza. Enquanto

187
José ajudou a subir a Virgem, Dimas pegou o Menino nos
braços. Jesus, como se quisesse despedir-se do homem que
com tanta bondade o tinha recebido em sua casa, lançou os
bracinhos ao redor do pescoço do facínora. Então Dimas
ouviu uma doce voz e melodiosa, como o som duma harpa
aérea, ferida pelo zéfiro noturno, que lhe dizia ao ouvido:
- Tua morte será gloriosa... e morrerás comigo.
Dimas ficou absorto, demudado, como se do fundo dum
sepulcro se houvesse levantado a voz de seu pão. De quem
era aquele acento misterioso? Quem tinha pronunciado
aquelas palavras? O Menino que tinha nos braços contava
apenas quatro meses.
Dimas sentiu que as forças o abandonavam e, receoso
de que aquele Menino lhe caísse dos braços foi depositá-lo
nos de sua Mãe, que já se achava montada na jumentinha.
Maria recebeu dos braços do bandido com um sorriso de
bondade o precioso Tesouro do seu coração, e depois,
despendindo-se de quantos a rodeavam, deixou o castelo
hospitaleiro. Dimas, imóvel, com os lábios fitos nos Santos
Viajantes, crendo ainda ouvir as misteriosas palavras,
permaneceu nos muros do velho castelo até que os últimos
raios do sol se escondessem atrás do alto cume do Líbano.
Trinta e dois anos depois, Cristo, sobre o Calvário,
recompensava com estas palavras a caridade hospitaleira do
Bom Ladrão:
“Hoje, estarás comigo no Paraíso”.
A tradição sobre que baseamos a lenda que precede, diz
assim:
“A Santa Família tinha passado adiante de Anatot, e
caminhava de noite a fim de se subtrair a uma perigosa
vizinhança quando viu desembocar dum escuro, barranco uns
homens armados que lhe impediram a passagem. O que

188
parecia ser o chefe desta quadrilha de bandidos, adiantou-se
do grupo hostil para reconhecer os viajantes. O salteador, que
buscava sangue ou ouro, volveu um olhar de assombro para o
velho sem armas, mui semelhante a um patriarca dos antigos
templos, e para aquela Mulher coberta com um véu que
ocultava o Filhinho entre as pregas do manto. Eles são
pobres, disse o bandido para si depois de demorar os olhos
alguns segundos sobre o santo grupo que tinha diante de si; e
viajam de noite como fugitivos.
Talvez aquele bandido tivesse um filho no berço, talvez
a atmosfera de doçura e misericórdia que cercava José Maria
influísse sobre aquela alma feroz; porque o terrível salteador
baixou a ponta da arma, e estendendo a mão amiga a José
ofereceu-lhe hospedagem para a noite na sua fortaleza,
suspensa no ângulo duma rocha, ninho duma ave de rapina.
Este oferecimento, foi aceito com confiança, e o teto do
bandido foi para a Santa Família, nessa ocasião, hospitaleiro
como a tenda do árabe. No dia seguinte, pelo meio dia, a
Santa Família, deixou a morada dos bandoleiros.
Esta tradição que segundo cremos, foi primeiro
admitida por Sto. Anselmo, em nada afeta o dogma
apostólico; por isso lhe demos cabimento neste livro. O
reverendo padre Ludolfo de Saxônia e o abade Orsini
admitiram-na também nos seus escritos.

CAPÍTULO VII

A CARAVANA

Gaza, cidade marítima do Oriente, pérola preciosa dos


filisteus a cujos pés se arrastam preguiçosas as azuladas
ondas do Mediterrâneo, e em cujos altos minaretes geme o

189
cálido sopro do deserto: as caravanas respiram com avidez o
perfume dos teus campos e a fresca brisa das tuas tardes,
antes de se internarem nas imensas solidões de areia de Etam
e Faraam. Porque Gaza é o último jardim da Palestina e o
primeiro oásis do deserto. As pombas lhe enviam os
lastimosos e doces arrulhos das fendas de suas desmoronadas
torres, onde vivem eternamente. Os rouxinóis cantam nas
florestas, as gazelas brancas correm nos montes, e as cabras
de compridas lãs pastam nos prados.
Quando o árabe, com as pernas cruzadas sobre o
arqueado dorso de seu dromedário, lança um olhar
investigador pelo horizonte avermelhado e sem fundo;
quando vê a seus pés estender-se seco, infecundo, maldito,
aquele vasto areal que o espanta; quando a sede cresce e a
esperança de achar um manancial se extingue, então reanima
com um grito selvagem a sua cavalgadura, fecha os olhos e
sonha com os regatos, com a floresta amena, com os jardins
da Pérsia.
Através daquelas ondas de fogo e areia que lhe secam
as faces e lhe queimam as pupilas, costuma ver Gaza com
suas campanas, com suas palmeiras, com seus frescos
mananciais e seus pacíficos habitantes, tão hospitaleiros, tão
inofensivos, tão amigos do forasteiro. E o árabe então canta,
arrulha aquele sonho delicioso para infundir alento à sua
paciente cavalgadura. Gaza, então é para o árabe tanto como
a sua pátria e ama os muros dela com a sua tenda e o seu
cavalo.
Mas, pelo contrário, quando a deixa para dirigir-se ao
Eito; quando ao chegar às planícies da Síria volta a cabeça
para lhe dizer ao deus de despedida e não vê as suas
palmeiras e os seus minaretes e o cálcio ambiente do deserto
bate na sua tostada fronte anunciando-lhe os perigos e

190
incômodos que o esperam, então um doloroso suspiro lhe sai
dos lábios e talvez uma ládrima se lhe deslize pela bronzeada
face.
Porque a cidade de Gaza é desde tempo imemorial o
ponto de reunião das caravanas que vão e vêm do Egito.
Pode dizer-se que é a colméia dos caravaneiros; todos se
reúnem e levantam as tendas nas suas ribeiras. O seu porto é
o bazar de compra e venda; dali se espalham como as abelhas
em busca de flores que libam para nutrirem com suas
essências o rico favo do seu negócio. Gaza está situada na
encosta dum outeiro, cujas fraldas se vêm eternamente
acariciada pelas ondas do mar. Olhadas de longe, as suas
alvas casas parecem uma manada de ovelhas que se
encaminham a tomar banho. Ciro, rei da Pérsia, a cercou e
tomou depois de dois meses de assédio (599 antes de Jesus
Cristo), e desde então as suas torres derruídas servem de
assento a seus pacíficos habitantes quando, nos ardentes
meses de canícula, vão respirar a brisa da tarde à sombra das
suas belas palmeiras.
A esta cidade, pois, foi que chegou uma manhã ao
despontar do dia a Santa Família. Os trabalhos que os
viajantes galileus sofreram durante a jornada, foram
incalculáveis. Seu refúgio durante a noite eram os desertos e
imundos silos, as escuras cavernas, os úmidos barrancos, os
incultos bosques.
A tradição indica uma gruta nas cercanias de Belém,
onde a Virgem passou só um dia inteiro, enquanto seu esposo
entrou, arriscando a vida em Jerusalém. Ignora-se o que
buscava o patriarca na cidade de Herodes, seu perseguidor;
talvez alguma caravana que não encontrou; talvez vender
alguma jóia de sua Esposa para ajuda das despesas de tão
penosa viagem.

191
José parou junto dum sicômoro e, ajudando sua Esposa
a descer da modesta jumentinha, a fez sentar ao pé da árvore.
Então descarregou a jumentinha de todos os modestos
objetos, único patrimônio da Família nazarena, e os foi
colocando ao redor da árvore.
Dimas tinha cumprido a palavra, porque um branco
cordeirinho começava a saltar junto de Maria, a qual, com
doce e maternal solicitude, mostrava a seu Filho o presente
do bandido.
- Maria, lhe disse José, depois de terminar o trabalho:
Deus quis conduzir-nos sãos e salvos à porta do deserto;
Deus nos tirará a salvo das terríveis solidões que vamos
atravessar em breve.
José, levando o modesto herbívoro pelo freio,
encaminhou-se para a cidade de Gaza, que levantava os seus
esboroados muros e uns trezentos passos do lugar em que se
achavam.
Maria ficou só com seu adorado Filho, sentada junto a
um sicômoro. De seus olhos azuis cheios de bondade
desprendeu-se uma lágrima, a muda e silenciosa despedida
que a Virgem enviava à pacífica cavalgadura que tão bons
serviços lhe havia prestado durante a viagem e da qual ia
separar-se para sempre, pois seu esposo encaminhava-se a
Gaza com tenção de vendê-la.
A Virgem ficou só e, depois de enxugar a lágrima que
lhe umedecia as faces, estendeu uma pele sobre o céspede e
nesta modesta cama deitou o Menino. Depois começou a
dispor sobre as esteiras de palma algumas frugais provisões
para que, ao voltar seu esposo, pudesse servir-se do almoço.
Distraída com esta ocupação, Maria não reparou que, a
pouca distância da árvore, em cujas vizinhanças
descansavam havia dez ou doze dromedários. Também não

192
observou que uns homens iam e vinham a fonte próxima, e,
enchendo grandes odres daquela água, os colocavam
cuidadosamente sobre os arqueados dorso das ligeiras
cavalgaduras. Entre esses homens achava-se um árabe
entrado em anos, que parecia ser o chefe, pois dava ordens
em voz baixa sem se ocupar do ímprobo trabalho que fazia
gotejar o suor na fronte dos companheiros.
O ancião passeava com os braços cruzados desde as
tendas até umas ruínas próximas, junto das quais brotava o
manancial. Num destes passeios, seus olhos fitaram-se no
sicômoro que servia de tenda à Virgem. O árabe viu Maria e
estremeceu visivelmente, como se n’Ela houvesse
reconhecido alguma pessoa amiga. Depois permaneceu um
momento indeciso, mas sem apartar os olhos de Maria, a
qual tão abstrata se achava com seu Filho, que não reparava
que era objeto de exame atento da parte do árabe.
Por fim o silencioso observador da Virgem fez um
movimento com a cabeça, como o homem que aceita uma
resolução que o teve indeciso por alguns momentos e
encaminhou-se para a árvore onde se achavam Maria e Jesus.
- Mulher, a paz seja contigo, disse.
- Árabe, ela te seja propícia, respondeu a Virgem.
- Perdoa, se com a minha pergunta te pareço indiscreto,
tornou o árabe; mas a julgar pelo teu traje pareces-me
galiléia.
- Nazaré é a minha pátria.
- Nasceu teu Filho também na flor da Galiléia?
- Belém de Judá foi o seu berço.
- Então tu és Maria, a venturosa Mãe a quem os anjos
de Abraão saúdam e os reis do Oriente rendem vassalagem.
- Meu Filho foi o que mereceu tanta honra.

193
- Perdoa se torno a fazer-te uma pergunta: que esperas
neste lugar, tão afastado da tua pátria? Para onde te diriges?
- Espero meu esposo. Vou ao Egito.
- Ao Egito! Exclamou o árabe com espanto, não vejo os
camelos nem o guia que deve conduzir-te.
- Deus é grande o misericordioso. Quem pode ler os
seus desígnios? Só sei que vou ao Egito.
As misteriosas palavras de Maria, a doce e modesta
dignidade do seu acento, comoveram o velho árabe, o qual
respondeu deste modo:
- Venturosa mulher a quem os reis rendem vassalagem,
e que moras num estábulo e te dispões a entrar nos imensos
areais de Etam e Faraam a pé e sem guia, eu te venero, ainda
que não te compreenda. Diz a teu esposo, que Hassaf o árabe
parte hoje para Heliópolis, a cidade do sol, donde se
encaminhará para Alexandria, e lhe oferece a amizade e os
seus camelos. Se aceitar, ali na minha tenda o espero.
Hassaf que era o mesmo árabe da fonte de Elias e de
Belém, saudou a Virgem e foi reunir-se com seus
companheiros. Uma hora depois regressou José da cidade de
Gaza. O ancião estava triste. Maria recebeu-o com o sorriso
de bondade eterna.
- Que tens, meu esposo perguntou com doçura.
- É preciso que façamos a viagem, sós, sem um guia
que nos indique os desconhecidos caminhos do deserto, sem
um camelo que encurte as imensas distâncias que havemos
de atravessar.
- Deus não esquece os bons, respondeu a Virgem com
essa entoação das mulheres virtuosas que tem de transmitir
boa notícia; enquanto procuravas uma caravana que nos
admitisse mediante um punhado de dinheiro, que talvez seja
o resto da nossa fortuna. Jeová enviou-nos um negociante

194
caritativo que se oferece a conduzir-nos à cidade do sol.
Olha, continuou a Virgem, vês aquele ancião que passeia
com os braços cruzados sobre o peito, diante daquelas
tendas? Pois é o chefe da caravana que está acampada junto
às ruínas; parte hoje para heliópolis e ofereceu-se para
conduzir-nos.
José, com o coração cheio de alegria, foi encontrar-se
com o árabe e este ofereceu-lhe um camelo para sua Esposa e
seu Filho sem retribuição alguma.
- Judeu, lhe disse Hassaf, não te ofereço se não um
camelo, porque não tenho mais; todos os que vês acampados
em redor de te são meus, é verdade; mas tenho-os alugados
aos negociantes de Gaza que conduzem as suas mercadorias
a Heliópolis, Cairo e Alexandria; muito o sinto, mas tu terás
de caminhar a pé com os meus criados.
- Que importa, respondeu José com alegria, se minha
Esposa e seu Filho caminharem sem cansaço?
O patriarca esquecia-se dos incômodos que o
esperavam no deserto. Maria e Jesus tinham uma
cavalgadura, e era toda a sua ambição. O Galileu colocou
sobre o animal que lhe emprestava o árabe a sua modesta
bagagem, entre a qual se achavam as ferramentas de
carpinteiro, pois no Egito não se contava com outros recursos
para prover às necessidades senão com o que tinha em
Nazaré, isto é, o trabalho.
Pouco depois, tudo estava pronto; os comerciante de
Gaza reuniram-se com os egípcios e Hassaf o árabe mandou
levantar as tendas e empreender a partida.

CAPÍTULO VIII

O DESERTO

195
A tradição pouco ou nada diz do longo e perigoso
itinerário que seguiram os santos viajantes desde Nazaré,
sua pátria nativa, até Matarié, a pitoresca aldeia do Egito que
escolheram como pátria adotiva durante os seus sete anos de
destêrro.
Se consultarem os eruditos cálculos dos cronologistas
da Virgem, achar-se-ão diversas opiniões sobre o modo ou
maneira de fazer, a perigosa viagem do Deserto. Desde a
costa da Síria até Heliópolis emprega um camelo dez ou
doze dias, e, ainda que nada seja impossível para Deus, um
viajante não poderá atravessar as imensas solidões de areia
do Deserto, a pé, sem empregar um mês na viagem.
Seguindo, pois, a opinião dos sábios escritores que
julgam mais verossímil que a Santa Família se reunisse nas
costas da Síria com uma caravana para empreender a
perigosa passagem do deserto e atendendo a que esta viagem
devia levar-se cabo pelo mês de março e que o equinócio da
primavera estava próximo, tempo em que o sim um percorre
com seu mortífero sopro as solidões do deserto, nós
adotamos este meio por crermos ser o mais verossímil.
A caravana abandonou os arrabaldes de Gaza, e
algumas horas depois os calorosos cascos dos dromedários
pisavam os infecundos campos da Síria. Apenas as primeiras
baforadas do cálido ambiente do deserto batem no tostado
rosto dos caravaneiros, o árabe suspende a conversação, seu
olhar escurece-se, sua fronte povoa-se de rugas e o seu
ademã torna-se grave e meditabundo.
Então, cruzando as pernas sobre o tosco pescoço da
cavalgadura e os braços sobre o peito, fecha os olhos para
não ver aquelas imensas planícies de areia que se estendem
ante seus olhos e cuja secura faz sede só de olhar-se, e

196
dispõe-se a sonhar desperto com algum fértil e pitoresco
oásis, com os transparentes e claros arrojos dos jardins de
Meca, ou com o doce amor de sua ansiosa família que o
espera para recompensar os trabalhos de tão longa viagem
com seus carinhosos cuidados.
Porque o árabe, como todos os filhos do Oriente, é
propenso a sonhar. Teme o deserto como ama os seus
costumes. A história recorda-lhe que as areias de Etam,
Faraam e Saará são famintas sepulturas que recebem
diariamente os desgraçados corpos de seus irmãos, a quem o
simum envolve com suas impetuosas ondas de ardente pó.
A sede que abrasa as entranhas, o simum que sepulta sob
montes de areia que arrasta com seu poderoso ímpeto, a
certeira e mortífera flecha dos brócolis, as esfaimadas feras
que espreitam ocultas entre as calcinadas rochas, o sol
abrasador que derrete com o fogo dos seus raios, a peste tão
comum no deserto, são os pó.
O árabe conhece os perigos a que se expõe, e aceita-os
com valor peculiar do filho da natureza. Seu corpo é tão forte
como fantástica a sua imaginação. Sóbrios até a
inverossimilhança quando as suas modestas provisões se
exaurem, basta-lhes um punhado de favas secas para
passarem o dia.
O dromedário, esse dócil e ligeiro transportador do
árabe no deserto, não é menos forte nem menos provado que
se dono. Com esse instinto do animal, sabe que nasceu para
sobrelevar um trabalho penoso e ímprobo. Desconhece a
preguiça e numa um gemido de dor saí de seu abrasado peito.
Quando suas fortes pernas vacilam sob o pêso da imensa
carga que o oprime, quando sua chata cabeça cai desfalecida
para o chão e seus melancólicos olhos começam a fechar-se
cavados pela fadiga, então uma ligeira tremura lhe agita o

197
corpo; isto indica a seu dono que a vida da fiel cavalgadura
vai extinguir-se. Então o árabe exala um suspiro e espera
impassível alguns segundos. O camelo dobra as pernas e o
dono desce e transporta em silêncio toda a carga da
cavalgadura para as outras que o seguem. Fita a penetrante
vista nos cerrados olhos do seu dromedário, tira o comprido
punhal que lhe pende à cinta, enterra-o no pescoço do nobre
animal, e depois, apartando os olhos daquele sangue, corre a
reunir-se com os seus companheiros e salta ligeiro como o
gamo sobre o dorso de outro camelo. Nem volve a cabeça
para olhá-lo, nem leva a menor dúvida sobre se o nobre
condutor está morto. Sabe que seu punhal lhe evitou com a
morte o padecer, porque os chacais e as feras do deserto o
devorariam em vida e o árabe evita ao seu fiel companheiro,
já que não pode ser de outra maneira, que sinta as raivosas
mordeduras dos implacáveis inimigos.
Uma hora depois os chacais e as hienas, esses covardes
perseguidores das caravanas que nunca atacam os vivos até
que o repugnante cheiro dum cadáver fira o seu refinado
olfato, lançam-se ao pobre e abandonado quadrúpede e
devoram-no sem piedade. O novo dia alumia um esqueleto, e
aqueles ossos espalhados pela areia que os raios do sol
branqueiam, vão-se pouco a pouco convertendo em branca
cinza que marca aos passageiros uma linha cinzenta sobre a
vermelha areia do deserto, indicando o caminho que deve
conduzi-los ao porto desejado. Os ossos insepultos são as
estradas do deserto, e também se acham ossos mais pequenos
de diversa forma que pertenceram em outro tempo a seres
humanos.
- -

198
Chegou a noite e cassaram os ardores do sol abrasador.
A lua estendeu seu clarão de prata por aquelas impotentes
solidões e os árabes fizeram alto. Levantaram a tenda os
negociantes, depois os condutores descarregaram os camelos
e, prendendo-os em círculo a umas estacas cavadas
profundamente na areia, começaram em silêncio a sua
modesta ceia de tâmaras e tortas de trigo assadas nas brasas.
A Santa Família estendeu junto duns secos matagais um
pedaço de esteira de palma, que era o seu único leito. Sua
tenda era o dilatado firmamento recamado de estrelas que
brilhavam sobre as suas cabeças. Pobres, desvalidos,
abandonados até do último dos criados da caravana,
achavam-se talvez eivando sua oração da noite ao Deus de
Sion, quando o velho árabe, que se tinha mostrado seu
protetor desde Gaza, se aproximou deles com uma caçarola
de ferro na mão.
- Galiléia, disse Maria, o árabe no deserto é sóbrio por
necessidade, mas ama as crianças respeita as mães e é
hospitaleiro. Toma, hoje reparto contigo a minha ração de
leite de camela. Talvez amanhã não possa dar-te nem uma
gota d’água. E sem esperar resposta o árabe foi reunir-se com
os companheiros.
Maria aceitou a fineza do velho egípcio, agradecendo
do fundo da alma tanta generosidade.
A Virgem galiléia não pode cerrar os olhos durante a
noite. A próxima vizinhança das esfaimadas feras do deserto
oprimia-ª . Seus uivos, os intermináveis lamentos chegavam
a Ela amedrontando-a pela sorte de seu adorado filho.
Os árabes acostumados à estridente e monótona
harmonia que produzem as fauces das hienas ao bater uma na
outra, dormiam embrulhados em suas capas ao lado dos
camelos, sem receio. Um só homem velava passeando ao

199
redor duma grande fogueira, que alimentava de vez em
quando com as secas glestas que, pobres e venenosas,
crescem de espaço a espaço, para afugentas com as chamas
asa feras da vizinhança.
A claridade da fogueira estendia-se por aquela solidão,
banhando com sua vermelha luz como uma aurora boreal um
círculo bastante extenso, e a Virgem mais de uma vez julgou
ver os vidrendos olhos dos chacais brilharem na escura
sombra que marcava a última distância onde o clarão da
fogueira se extinguia.
De vez em quando a Mãe fugitiva estremecia e apertava
sobressaltada ao peito o Filho das suas entranhas. Era que a
areia se movia debaixo do seu corpo, abrindo-se por fim para
dar passagem a um repugnante lagarto ou a uma asquerosa
cobra, répteis imundos que tanto abundam no deserto; o olho
perspicaz do árabe tem o instinto de conhecer só pelo rasto
que deixam, não só a que família pertencem, sendo também a
idade, o volume, e força e, o que é ainda mais extraordinário,
se aqueles vestígios são da véspera ou de poucas horas
antes.
Quantas amarguras, quantos sobressaltos, quantos
incômodos devia sofrer durante a perigosa e longa viagem a
delicada e terna nazarena!
Quando, depois de um dia abrasador por aquelas
horríveis solidões de areia, sobre as quais desaba um céu de
fogo, aquele palpável vento do deserto lhe açoitava o
delicado rosto com suas pesadas nuvens de areia a ponto de
lhe fazer rebentar sangue; quando queimados os seus
formosos olhos pelos raios do sol, abrasada a sua boca,
estonteada a sua mente pela sede e pelo calor insofrível,
julgava ver lá ao longe um lago claro e transparente como o
da Galiléia, rodeado de palmeiras e sicômoros, um delicioso

200
oásis que a brindava com a sombra das suas árvores e as
frescas águas dos seus poderosos inimigos com que lutam as
caravanas que o atravessam, mananciais e, sem apartar a
afanosa vista daquele panorama enganador, seguia as
voluptuosa ondulações da folhagem, crendo ouvir entre o
céspede e doce murmúrio do arroiozinho que se deslizava a
seus pés, e a noite que chegava, a caravana detinha-se, as
tendas levantavam-se, e à pálida luz da luz sentia a brisa da
noite que a despertava daquele fagueiro sonho. Então Maria
soltava um doloroso suspiro e inclinava a cabeça sobre o
peito virginal de seu Filho, como débil açucena que se dobra
à aproximação da chuva, receosa de não poder resistir com
seu delicado cabes aos mananciais que vão despenhar-se das
nuvens que se agitam sobre ela.
José então alentava sua delicada companheira e ambos,
com os olhos fitos no Menino Jesus, elevavam as suas preces
a Jeová. Pobres e humildes viajantes a quem a caridade dum
árabe emprestara um camelo, careciam de tudo no deserto; só
a fé os animava para suportarem a viagem.
Por isso quando o grito selvagem do egípcio condutor
da caravana exclama, com o prazer inexplicável do náufrago
que vê aproximar-se á frágil tábua que o sustenta, sobre as
espumantes ondas do navio salvador, Mokalteb! Mokalteb!
grito que todos repetem com prazer indefinível, grito ante o
qual os sedentos dromedários partem a galope rasgado,
abrindo as abrasadas ventas estirando o encurvado pescoço,
ansiosos de pôr os adustos lábios no claro manancial que seu
delicado olfato pressente: então, homens e animais, amos e
criados arrojavam-se com a desordem irremediável da
avidez, com a raiva natural do sequioso ante a água, sobre
aquele charco salvador.

201
A Santa Família era a última a aplacar a sede. Por fim,
depois de inúmeras fadigas, os santos viajantes divisaram ao
longe as planícies de Gizé, de cujo centro se erguem esses
gigantes de pedra cujas frontes não puderam desmoronar os
quarenta séculos que a destruidora mão do tempo tem feito
rolar sobre eles, esses monumentos que o orgulho e a soberba
dos poderosos do Egito edificaram com o suor e a vida dos
seus vassalos: as pirâmides.
A vista dessas moles gigantescas, desses colossos,
dessas histórias de granito que apregoam a grandeza de seus
antigos fundadores, as caravanas soltam um grito de alegria,
porque brevemente os calosos pés dos seus dromedários
deslizarão sobre os formosos e férteis prados esmaltados de
flores, e o perfume embalsamado dos campos lhes fará
esquecer o cálido e pesado sopro do simum.
Então o árabe entoa seu monótono canto, seu rosto
repele as sombrias cores, seus olhos pretos e penetrantes
buscam o fecundo Nilo, o rio santo que converte com suas
inundações o Egito num belo jardim, porque Deus e as
negras areias do Nilo derramam sobre aquela terra
privilegiada todos os dons, todas as riquezas duma vegetação
robusta e poderosa.
A Santa Virgem começou a sossegar depois de doze
dias de incessantes angústias, porque ao longe começou a
distinguir o céu do Egito, céu sem nuvens, horizonte triste
por onde irradia um sol de fogo como a boca dum forno. A
pátria dos Faraós, onde os cadáveres disputam a matéria ao
nada, onde a eternidade se faz palpável. As planícies de
Gizé, onde o soberbo Cheop levantou o colossal monumento,
palácio da morte dedicado ao seu real cadáver, gigante de
granito em que cem mil homens trabalharam por espaço de

202
vinte anos. O Egito, onde as adúlteras trazem o seu crime
escrito no rosto, onde o perjuro era castigado com a morte.
O Egito, onde o povo adora seu rei em vida como deus,
e o julga depois de morto como ao último dos plebeus,
recusando-lhe muitas vezes, conforme suas crenças, até as
honras da sepultura; onde nos banquetes se passeava um
cadáver de madeira metido num rico ataúde, e mostrando-o
aos alegres convidados lhes dia o dono da casa:
“Olhai para este homem, com quem vos parecereis
depois de morto. Bebei, pois, agora e diverti-vos”. O Egito,
mescla de ilustração e barbaria onde se acreditava na
imortalidade da alma, e se adorava ao mesmo tempo
multidão de deuses com cabeça de gato, ventre de crocodilo
e garras de milhafre. O Egito, onde a arte havia chegado ao
mais sublime e a degradação ao mais abjeto; onde o homem
fiava e se entretinha nas ocupações domésticas, e a mulher
nos negócios de fora; onde “tudo era deus, exceto Deus”, e
onde “o grande estava confundido com o pigmeu”.
O perigo tinha terminado. Eis Heliópolis, a cidade do
sol, com seus esbeltos obeliscos, seus galhardos minaretes e
as brunidas cúpulas de aço dos seus tempos pagãos, de onde
os raios do sol arrancam mares de luz que, em cambiantes
caprichosas, se estendiam sobre a cidade como uma imensa
cabeleira de prata e fogo. Heliópolis a cidade favorita de
Cleópatra, com suas agulhas sutis de pedra e bronze que se
escondiam entre as risonhas nuvens do seu céu, com a sua
formosa e caprichosa fundadora ocultava a púrpura de Tiro
do seu rio, as douradas tranças dos seus cabelos. Heliópolis,
onde a fênix ressuscita coria a depositar os restos de seu pai
sobre o altar do sol. Heliópolis, em cujo centro se ergue o
famoso templo de On, onde Putifar exercia o sacerdócio do
sol. Heliópolis, pérola do Egito, cidade natal de Moisés, onde

203
o profeta Onias levantara um templo a Jeová, procurando que
a arquitetura egípcia se assemelhasse o possível à Casa Santa
de Jerusalém; somente, em sinal de inferioridade, o famoso
candelabro de sete braços, do templo de Sion, era no Egito
representado por uma lâmpada de ouro.
Maria, a poética flor da Galiléia, estendeu os doces
olhos por aqueles bosques e campos coalhados de violetas
silvestres. Uma lágrima do desterrado que recorda, à vista
duma cidade populosa a sua humilde aldeia a sua pobre
casinha, os seus amigos da infância.
A caravana, antes de penetrar na cidade de Cleópatra,
deteve-se.
Ao passar a Santa Família por baixo dos arcos de
granito da porta principal de Heliópolis, todos os ídolos dum
templo próximo caíram de rosto por terra, saudando, aos
descerem de seus profanos pedestais, o verdadeiro Deus que
chegava fugitivo a pedir hospitalidade aos idólatras egípcios.
Os divinos viajantes só se detiveram na cidade para
agradecerem ao seu protetor e descarregarem do camelo os
seus modestos haveres.
José carregou sobre os ombros as ferramentas do seu
ofício e tudo o que possuía. Maria pegou na roupa e no
Menino e, saindo da populosa Heliópolis, onde a vida era
demasiado cara para a sua pobreza, tomaram o caminho da
próxima aldeia de Matarié, formoso povoado sombreado de
sicômoros, e no qual se encontra a última fonte de água doce
que há no Egito.
Os fugitivos galileus pararam a duzentos passos do
povo; a ninguém conheciam, pobre desterrados que iam pedir
hospitalidade entre os idólatras. Um frondoso sicômoro lhes
serviu de tenda durante a primeira noite, porque José, como

204
chegou ao cair da noite a Matarié, não quis entrar antes da
manhã seguinte num povoado onde ninguém o conhecia.
Pouco depois a Santa Família habitava humilde choça e
ali, naquele miserável ninho, a virtuosa mulher respirou em
paz longe de Herodes, o inumano perseguidor de seu Filho.

LIVRO QUINTO

A DEGOLAÇÃO

CAPÍTULO I

OS FILHOS DA VESTAL

Entretanto, Herodes esperava impaciente as notícias


que seu filho Arquelau devia transmitir-lhe dos Magos.
Passavam os dias, e o feroz escalanita rugia como um leão
que fareja a carne e vê que lhe escapa a presa que sonhou
devorar. Os soldados percorriam a Palestina, diariamente se
enviavam novos destacamentos de mercenários em procura
dos caldeus e de Jesus, Filho da Nazarena; porém tudo era
inútil; a terra ocultava-o às suas pesquisas; Deus estendia
sobre eles o seu manto protetor e impenetrável.
Uma esperança animava ainda o vingativo coração do
assassino de Mariana: era que seu filho não lhe havia
noticiado definitivamente a evasão dos caldeus.
No momento em que tornamos a encontrá-lo, Herodes
achava-se reclinado sobre uns almofadões de damasco, no
seu camarim de Jericó. Seu neto Aquiab, de pé, ao seu lado,
entretinha-se olhando um mapa do mundo conhecido dos
antigos. Esta carta geográfica estava estampada sobre uma

205
pele de carneiro primorosamente preparada. Com cor
vermelha se viam marcadas as províncias conquistadas pelos
romanos.
Herodes que, quando se achava com o neto costumava
esquecer-se até da sua doença, com um ponteiro de ouro
entretinha-se em mostrar-lhe os pontos por onde o exército
romano marchara durante a conquista. Aquiab prestava
profunda atenção às explicações do seu avô.
- Gostaria muito, exclamou o adolescente, que tu fosses
um rei tão poderoso como o nosso aliado Otaviano Augusto.
O Idumeu sorriu-se. O menino inocentemente tinha
afagado um desejo que Herodes teria realizado até à custa da
sua honra.
- Olha, lhe disse Herodes colocando o ponteiro sobre as
linhas encarnadas, e como se não tivesse ouvido as palavras
do neto, estas pequenas águias marcadas com tinta azul,
indicam os limites do império romano. Pelo Poente o Oceano
Atlântico, pelo Oriente o Eufrates, pelo Norte o Danúbio e o
Reno, e pelo Meio-Dia as cataratas do Nilo, os desertos da
África e o monte Atlas. Isto é a Itália, que tanto sangue tem
custado aos romanos desde Numa Pompílio até ao César
Augusto, nosso poderoso amigo. Aqui está a Espanha, país
rico e povoado, cujos filhos ostentaram sempre um valor
heróico e um amor à sua independência sem exemplo. Isto é
Sagunto, cidade grande e populosa, a aliada mais fiel de
Roma. Uma manhã Anibal apresentou-se ante os seus muros
com um exército de 150.000 cartagineses e intimou-os a
renderem-se. Em plena como se achavam então, era aquilo
uma infame traição. Sagunto era um povo de heróis, e
defendeu-se esperando socorros de Roma. Por fim viram que
lhes era impossível manterem-se entre aquelas ruínas, que o
senado não corria a protegê-los, e, antes de se renderem, os

206
saguntinos acenderam uma fogueira imensa no meio de
praça, e lançaram-se a ela homens e mulheres, velhos e
crianças. Quando o vencedor Anibal entrou, Sagunto era um
montão de cinzas formado com ossos dos seus habitantes.
Aquiab, ao ouvir o ato heróico dos saguntinos, exclamou
entusiasmado:
- Povo valente, eu te saúdo e venero, o teu nome ficará
gravado na minha memória.
- Não acabou aí o valor dos filhos da Espanha,
continuou Herodes, mudando o ponteiro de lugar. Aqui está
Numância que, sitiada pouco depois por Scipião Africano,
teve o mesmo valor que Sagunto. Os romanos foram então
iníquos como os cartagineses.
Herodes, sempre bom e condescendente com seu neto,
entretinha-se ensinando-lhe deste modo ameno a história
militar das nações.
- Seguindo o meu ponteiro continuou Herodes, podes
ver os dilatados reinos que possui Roma e que pagam tributo
ao nosso amigo Augusto. Isto é a África onde o atroz
Massinissa, à frente dos seus pagamentos e apoderando-se da
cidade de Zama. Aqui está a Macedônia; o desventurado
Perseu, seu último rei, foi conduzido a Roma por Paulo
Smlio, seu vencedor, onde morreu de fome entre as negras
paredes dum calabouço. Isto é a Grécia e isto as Ilhas
Britânicas. Júlio César foi o primeiro que desembarcou sobre
as encrespadas rochas das suas praias, submetendo pouco
depois a Gália, Ásia, Síria, o Ponto, a Bitínia e o reino
Pérgamo. Seguindo esta linha encontrarás o Egito, onde
Marco Antonio, o amigo de César, chegou como
conquistador e terminou escravo da rainha Cleópatra, que
soube adormecê-lo com os seus encantos. E isto, finalmente

207
é a nossa formosa Judéia, reino que eu legarei a teu pai e que
tu regerás algum dia, como dono e senhor.
- E diz-me, querido avozinho, exclamou Aquiab num
ímpeto de infantil curiosidade, colocando os cotovelos sobre
o mapa e acariciando a áspera barba de Herodes: esses reis
de Roma que são hoje senhores do mundo foram sempre tão
poderosos?
- Não, meu filho, seus domínios alargaram-se pelas
conquistas. A origem de Roma tem uma história fabulosa, é
quase um conto.
- Oh! Pois já sabes que eu morro pelos contos e pelas
histórias.
- Ouve-o, pois meu filho, e não esqueças que um rei,
por pequeno que seja o seu reino, pode com o seu valor
convertê-lo em grande e poderoso.
Herodes abandonou a mesa e, estendendo-se no seu
branco leito, fez com que seu neto se sentasse à cabeceira
sobre uns almofadões, e depois continuou desde modo:
- Aboliu reinava na cidade de Alba, situada no Labéu,
província de Itália. Seus férteis campos, o céu azul, sereno e
o mar Mediterrâneo que beijava suas formosas praias,
faziam-no uma das mais pitorescas e ricas províncias do
mundo. Aboliu tinha usurpado o trono a seu irmão Númitor,
o qual chorava sua desgraça num calabouço com seus dois
filhos Lasso e Réa Silvia. Amúlio mandou assassinar Lasso,
herdeiro de Númitor, e encerrou Réa num templo onde se
adorava a deusa Vesta. As vestais tinham obrigação de
alimentar continuamente o fogo sagrado, e a que o deixava
apagar era condenada a ser enterrada viva. Além, disso, as
vestais não podiam casar-se.
Por este meio Amúlio segurava a coroa. Mas os deuses
tinham disposto que a formosa Réa fosse roubada do templo

208
por um mancebo valente, que alguns dizem que era o deus
Marte, a quem adoravam em forma de lança os filhos de
Alba. A desgraçada Réa caiu segunda vez em poder de seu
tio Amúlio, e pouco depois deu à luz num cárcere dois
meninos, aos quais puseram os nomes de Remo e Rômulo. O
rei ordenou a um dos criados de sua confiança que lançasse
ao Tibre aqueles dois meninos.
O criado partiu de noite para cumprir a triste missão
que lhe confiara o amo; porém, ao chegar às margens do rio
que devia servir-lhe de sepulcro, pousou-os sobre o molo
céspede, ao tempo em que a luz, quebrando o denso véu de
uma nuvem, deixou cair do céu sua luz de prata sobre as
inocentes cabeças dos recém-nascidos. O criado, vendo as
doces fisionomias daqueles meninos, perturbou-se e teve
medo de cometer crime tão horrendo. Então toma-os nos
braços e entranha-se no bosque vizinho, deixando-os sobre
um matagal, e corre ao palácio do seu senhor a dizer-lhe que
as suas ordens estavam cumpridas. A Providências velou
desde aquele instante pelos dois meninos abandonados.
Uma loba, que tinha perdido seus filhos, levou-os à sua
cova onde os alimentou com seu leite, até que um dia foram
achados por uns pastores. Remo e Rômulo cresceram entre
os pastores, ocupando-se em apascentar cabras. Mas Rômulo
era violento; pelo motivo mais fútil armava uma pendência
com os guardas de Amúlio. Um dia levaram preso Remo,
que imediatamente foi encerrado num cárcere.
Rômulo, sedento de vingar seu irmão, e perseguido
pelos soldados do rei, vagueava pelas vizinhanças de Alba,
quando um acaso fez com que se encontrasse um dia com o
velho Fáustulo, que ra o mesmo criado que lhes tinha
poupado a vida, enganando seu senhor. Falaram um com o
outro, e então, ao saber Fáustulo, quem era Rômulo, lhe

209
contou sua história. Rômulo rugiu como uma hiena
encerrada, num circulo de fogo e, ardendo em desejos de
vingança, conseguiu reunir alguns pastores atrevidos como
ele. Entrando uma noite na cidade assassinou seu tio Amúlio
e abriu os cárceres de seu irmão e de seu avô Númitor, que
havia quarenta anos definhava na sua lôbrega masmorra.
Acostumados a uma vida selvagem e livre, afogavam
na cidade e, deixando a coroa a seu velho avô, sairam para o
campo ansiosos de levarem a antiga e independente vida de
caçadores. Um dia em que os dois irmãos não sabiam que
fazer, ocorreu-lhes fundar uma cidade para viverem nela com
seus companheiros à sua vontade. Procuraram e escolheram
lugar e ambos, com o ardor da juventude, começaram a abrir
o fosso que devia marcar o muro do novo povo. Então lhes
ocorreu uma dúvida: qual dos dois poria o nome; e
convieram em que aquele que visse maior número de abutres
ao voltar a cabeça. Remo disse que tinha visto dez; Rômulo
asseverou que tinha visto doze. Daí surgiu acalorada disputa,
e Rômulo arremessando sobre a cabeça de seu irmão um
maço de ferro, deixou-o morto no lugar. Os primeiros
alicerces da cidade de Roma ensoparam-se em sangue
fratricida.
Pouco tempo depois Rômulo foi aclamado pelos
companheiros o primeiro rei de Roma. Tinha dezoito anos. A
nova cidade foi asilo de todos os vagabundos e criminosos
dos países vizinhos. Nem uma só mulher se atreveu a
penetrar naqueles muros, onde viveram os homens sós até
que uma estratégia de Rômulo deu origem mais tarde ao
rapto das Sabinas...

CAPÍTULO II

210
AS VÍBORAS DO ESCRAVO

Embevecidos se achavam na sua relação histórica o


velho e o menino, quando u’a mão afastou a pesada
colgaduras que cobria a porta da entrada do camarim de
Herodes, e atrás desta mão apareceu entre as ondeantes
pregas de seda a figura de Verutídio, general romano. O
valente mercenário levava o traje de campanha, com suas
imensas botas de couro e seu capacete de bronze. Sua barba e
cabelo achavam-se cobertos de pó, e o manto de lã azul
enrugado e meio desprendido do grosso cravo de ouro que o
segurava sobre o ombro. Tudo indicava que tinha feito uma
jornada longa e a cavalo. Herodes, ao vê-lo entrar, afastou
suavemente o neto. O romano aproximou-se com ademã
familiar do leito, e beijou a mão que lhe estendia o rei de
Judá.
- Ah! Finalmente dignas-te vir ver este pobre rei
enfermo, meu valente general. Trarás novas desses caldeus?
- Senhor, lhe respondeu Verutídio, os habitantes, a
quem Júpiter confunda, protegidos talvez pelo seu deus Belo,
conseguiram escapar das nossas pesquisas. Os silos do
Carmelo, os bosques de Samaria, o deserto de Judá, a via
Sangrenta e as praias do mar Ocidental, foram examinados
escrupulosamente pelos meus valentes soldados. Tudo em
vão: foi-lhes impossível topar o seu rasto.
Herodes abrangeu com um olhar o romano. Das suas
pardas pupilas desprenderam-se faíscas de ira, e, deslizando
do leito, aproximou-se de Verutídio, apoiando-se no ombro
do seu neto que, com a curiosidade peculiar das crianças,
escutava sem compreender as palavras do general, e sentia a
agitação nervosa que a mão de seu avô lhe comunicava ao
corpo.

211
- E meu filho Arquelau que diz? perguntou o Idumeu de
modo estranho, que gelou o sangue do neto.
- Teu filho, lhe respondeu o romano, acha-se no teu
palácio de Jerusalém, entregando-se às fúrias do averno.
- Oh!, a moléstia torna-me impotente! E Herodes levou
a mão ao peito, rasgando a magnífica túnica escarlate, como
se um áspide o houvesse mordido no coração.
- A deusa Ceres aparte de mim os seus favores se teu
filho Arquelau não sente neste momento tanto como tu o
misterioso desaparecimento dos Magos. Eu vi-os arrancar as
barbas de raiva quando os teus herodianos regressaram sem
eles. Crê-me, senhor, nada desgosta tanto teu filho como
achar obstáculos no cumprimento das ordens que lhe
comunicas.
- Ah! os caldeus faltaram à sua palavra, murmurou
Herodes com nervoso acento; eu pretendia burlá-los e fui
burlado. Tanto pior para esse Menino a quem o povo apelida
o Messias. Por fortuna ainda não se perdeu tudo... os reis
fugiram, mas o menino cairá em meu poder... Cingo ainda
não voltou... e Cingo tem olhos de lince e é intencionado e
precavido como os chacais. Ele me trará boas notícias...
Como se estas palavras fossem de uma pitonisa, correu-
se um tapete da parede e a escura e feroz figura de Cingo, o
etíope, apareceu na câmara de Herodes.
Cingo vestia o pitoresco traje dos árabes da Nigrícia:
seu alquicer listado, de vistosas cores, sua túnica preta com
ramos escarlates, o turbante de linho, davam um ar selvagem
ao negro e reluzente rosto, cujas pronunciadas feições tinha
dureza feroz. Sobre o peito passava-lhe um cordão de seda
verde, em cujo extremo pendia um cabaça pequena
hermeticamente tapada com uma folha de prata. Os pés
descalços salpicados de barro e cobertos em pó. A mão

212
direita empunhava um grosso bordão de azevinho, à cintura
apertava-se um cinturão de pele de camurça, do qual pendia
uma pequena cadeirinha de bronze, e desta um punhal largo e
curto que se perdia entre duas profundas pregas do alquicer.
Cingo era o executor secreto de Herodes, o espião de
confiança do Idumeu. Quando o rei tinha necessidade de
saber alguma coisa ou de levar a cabo uma vingança,
chamava-o à câmara e, depois de o informar dos seus
desejos, o fiel escravo deixava o seu traje de corte, vestia-se
do modo como descrevemos, e com a bolsa bem repleta de
onças romanas, a pé ou a cavalo conforme as circunstâncias,
percorria os domínios de seu senhor como um simples
comerciante.
Se a vítima designada pelo rei devia morrer sem
escândalo, então Cingo arrastava-se como uma cobra até o
leito do sentenciado, levantava a folha de prata da cabeça, e
depositava-lhe sobre o pescoço uma das víboras que
encerrava o ventre daquela redoma da morte. A mordedura
era mortal; Cingo, contudo, permanecia pelas vizinhanças da
casa até que seus olhos vissem o cadáver da vítima. Então
regressava ao palácio a participar a seu senhor que estava
servido.
Herodes, ao ver o escravo, sorriu-se com ferocidade
indescritível Cingo permaneceu impassível. Nem um só
músculo do seu rosto se agitou.
- Verútidio, meu amigo, exclamou Herodes, espera-me
na antecâmara, que talvez precise dos teus serviços. E tu,
Aquiab, já são horas de tomares o banho; vai-te.
Aquiab beijou a mão do avó e saiu. Verutídio fez o
mesmo, mas não sem volver antes um olhar de desprezo ao
escravo negro, cujo favor para com o rei o desgostava

213
altamente na sua qualidade de general e de romano. Herodes
e Cingo ficaram sós.
- Fala, disse o primeiro.
- Más são as novas que te trago, senhor.
Herodes soltou um rugido mas indicou com um gesto
ao escravo que continuasse.
- Os judeus crêem chegada a hora da sua liberdade; por
todas as partes se fala da vinda do Messias. E se excetuarmos
uns pastores de Belém e um ou outro hebreu, ninguém o viu,
todos ignoram onde se acha. Jesus é o nome do Menino e
dizem que é o Rei de Judá; nasceu num estábulo de Belém.
Mas devemos ter em conta que há uns seis meses nasceu
outro menino em Ain que goza de tanta ou mais
popularidade entre os israelitas, que Jesus. Este menino
chama-se João e é filho do sacerdote Zacarias. Contam-se
coisas pasmosas entre a plebe, destes dois Meninos.
- Pois bem, Cingo, emprega tuas víboras nesses dois
Meninos.
- Isso não me foi fácil desta vez. Toda minha astúcia,
todo o dinheiro despendido para averiguar seu paradeiro foi
inútil: não pude encontrá-lo; percorri casa por casa toda a
cidade de Belém, e todos os seus habitantes me deram em
resposta, encolhendo os ombros: “Não sei de quem me
falas... não o conheço”... Quanto a João, filho de Zacarias,
esse foi-me mais fácil saber onde está; e espero as tuas
ordens.
- Então quer dizer que os belemistas se propuseram
ocultá-lo? Pois tanto pior para eles... Eu tencionava arrancar
uma só espiga, e eles opõem-se, Cingo, será preciso segar
todo o campo.
O escravo inclinou a cabeça em sinal de acatamento,
ainda sem compreender as palavras do amo.

214
- A história é o grande livro que deve reger os reis, é a
sabia mestra que os aconselha nas situações críticas da sua
vida. Os homens adulam o poder por medo ou por ambição;
mas a história, franca como a verdade, aconselha sem medo e
sem cobiça. Seus exemplos devem servir para evitar as
grandes catástrofes que ameaçam as cabeças dos monarcas.
Amúlio e Rômulo, Atalia e Jóas, vós sois os meus
conselheiros nesta ocasião... ter-vos-ei presentes, o vosso
sangue guardará o meu, e as vossas coroas derribadas
conservarão a minha sobre a fronte.
Herodes dizia todas estas palavras para si próprio,
dando largos passos pela câmara.
A presença de Cingo não impediu que murmurasse
aquelas reflexões históricas que mostravam sem disfarce o
fundo da sua alma, porque Cingo era surdo e cego. Sua
lealdade provada em cem ocasiões tinha-lhe demonstrado
que aquele escravo sem coração teria cravado na garganta o
punhal que lhe pendia do cinto, se seu senhor o houvesse
mandado.
Por desgraça, os tiranos que passaram sobre a terra com
a fronte coroada como uma maldição, como um açoite do
céu, tiveram servos leais, fiéis executores dos seus horríveis
desígnios, que não vacilaram em dar o sangue por eles.
Porque a ferocidade, o crime, o assassínio, costumam
ter também seus admiradores; almas empedernidas, seres
degradados e repugnantes que lambem carinhosamente a
ensanguentada mão do verdugo, e se sorriem com desprezo
ante as lágrimas da inocente vítima que implora ajoelhada a
seus pés uma clemência que desconhecem. Cingo era uma
destas criaturas. Pelo seu senhor teria sacrificado seu pai.
Herodes estava certo disto; por isso não tinha segredos para
aquele terrível e mudo agente das suas sentenças particulares.

215
O senhor e o escravo permaneceram alguns momentos
sem pronunciar uma palavra. Herodes combinava talvez
naquele momento o plano de um crime monstruoso que
encheu de assombro as nações: a degolação dos meninos
belemitas. Cingo esperava em silêncio as ordens do senhor.
Um passeava pela estância, agitado com o semblante
decomposto; o outro, cravado na alfombra, imóvel, junto ao
rico tapete da porta, parecia uma figura das que adornavam a
parede, que adiantara um passo cansada da sua eterna
imobilidade. Desta situação veio tirá-lo o ardente e
penetrante som dum clarim, ao qual se seguiu pouco depois
ruído de armas e pisadas de cavalos.
Herodes aproximou-se da janela que dava para a praça
do palácio, e lançou um olhar; mas antes que tivesse tempo
para fazer uma idéia do que sucedia no pórtico do seu palácio
de Jericó, uma voz que pronunciava o nome de “pai! pai!”
com alguma precipitação, lhe fez voltar a cabeça para o
interior da câmara. Aquela voz era a de Antípatro, o segundo
dos seus filhos, a quem os nossos leitores vão ver pela
primeira vez, e do qual nos havemos de ocupar no decurso
deste livro.
Antípatro teria vinte anos; era louro, efeminado e de
estatura menos que mediana. Nos seus olhos azuis, claros e
rasgados, brilhava alguma coisa sinistra, seu nariz era direito
e bem feito; as sobrancelhas arqueadas e extremamente
povoadas juntavam-se no extremo inferior da sua ampla
testa, formando uma ponta aguda que caía sobre o nariz. Sem
barba ainda, mostrava os lábios rosados e em extremo
delgados; os dentes raros revelavam a falsidade e a astúcia;
era, enfim, um jovem formoso, cujo semblante teria
inspirado desconfiança a um fisionomista. Seu traje usual, e
ao qual mostrava mais predileção, pois de nada serviam as

216
repreensões do pai, era o dos babilônios, porque gostava de
ostentar os pequenos pés, brancos como o leite, em cujos
dedos colocava profusão de anéis preciosos, pois o calçado
reduzia-se a uma sola de metal sobre que se punha o pé, o
que, preso por meio deste com uma correia incrustada de
pedras preciosas, deixava descobertos os dedos.
Um paletó de caseira branca, adornado de pequenas
borlas de ouro e apertado na cintura por dois cinturões de
pano de grau, lhe cobria o corpo descendo até o peito do pé.
Este paletó sem mangas e aberto pelo sovaco algumas
polegadas deixava completamente descoberto o braço, no
qual Antipatro trazia como adorno grossos braceletes de
ouro. Um fio de brilhante à maneira de diadema lhe prendia
os louros cabelos, e dele caíam duas fitas verdes que
flutuavam sobre os ombros. Das orelhas pendiam-lhe grossos
aros de ouro que se ocultavam entre os flutuantes caracóis.
Antípatro não trazia arma mas, em compensação seu
traje estava perfumado como o duma cortesã de Roma.
Herodes odiava Antípatro, filho de sua primeira esposa
Doria, a jerossolimitana, vítima dos seus sanguinários
instintos O efeminado Príncipe tinha-se educado em Roma,
onde ainda permaneciam Aristóbulo e Filipe, como tributo
da baixa adulação rendido ao César Augusto. Arquelau era o
seu favorito; Antípatro era honrado com a sua benevolência.
Herodes tinha também um filho de que nos ocuparemos
mais adiante.
O rei, ao voltar-se a cabeça e achar-se com seu filho
Antípatro ao lado, franziu o sobrolho; mas ele, antes de lhe
dar tempo para que fizesse a pergunta que sem dúvida estava
formando, exclamou com voz melíflua:

217
- Meu pai, Augusto manda-te de Roma um emissário a
quem acompanham vários soldados pretorianos: queres
recebê-lo?
Herodes ficou um momento suspenso; depois
aproximando-se de Cingo, falou-lhe em voz baixa e este
desapareceu pela porta secreta. Antípatro, para quem não
tinha passado desapercebido o aparte do pai com o negro,
mordeu os lábios, olhando dissimuladamente a porta por
onde acabava de sair o etíope.
- Que entre esse enviado de Roma, disse Herodes
sentando-se nos almofadões, depois de colocar a coroa de
louro na cabeça e o manto de púrpura sobre os ombros.
Antípatro fez uma saudação acompanhada dum sorriso
e saiu da câmara do pai.
Pouco depois quatro escravos levantavam a pesada e
larga cortina da porta do camarim de Herodes para que
passasse o mensageiro de Roma.

CAPÍTULO III
A LEI DAS DOZE TÁBUAS

Era este homem de cinquenta anos. Seu rosto


expressivo e bondoso era apuradamente barbeado.
Cruzavam a ampla testa essas rugas tão peculiares dos
homens estudiosos a quem, esquecidos dos mentidos
prazeres do mundo, surpreende a primeira cã, curvados sobre
os livros. O cabelo grisalho caía-lhe sobre os ombros,
mostrando com a sua aspereza indômita que o ferro dos
cabeleireiros romanos nunca se tinha introduzido nele para o
domar em caprichosos caracóis, conforme o costume da
época.

218
Seu traje era extremamente simples, pois se reduzia à
túnica laticlávias dos senadores, duma cor escura guarnecida
por diante com uma franja de púrpura, e ao coturno preto,
espécie de calçado que lhe chegava até ao meio da perna,
adornado com um C de prata posto na parte superior do pé.
Uma bolinha de ouro oca, na qual se via gravado um
coração, lhe pendia do pescoço presa por uma cadeiazinha do
mesmo metal. O braço esquerdo ocultava-se debaixo das
pregas da túnica, que, como as togas, se achava presa ao
ombro direito por uma broche de prata formando multidão de
pregas sobre o peito, onde colocava como num bolso o lenço.
O braço direito, completamente nu, saía pela abertura do
vestido. A mão oprimia um livro bastante grosso, em cuja
capa se lia em grandes caracteres romanos: Lei das Dozes
Tábuas.
- Saúde ao César Augusto, exclamou Herodes, vendo
entrar na câmara o enviado de Roma.
- A paz seja contigo, rei de Judá, respondeu o patrono
pondo a mão sobre a bolinha de ouro que lhe pendia do
pescoço; Otaviano me envia, continuou, com esta carta para
ti; e colocando um rolo de papiro, em cujo extremo pendia
um selo de cera no qual se representava a imagem duma
esfinge, sobre a capa do livro, apresentou-o a Herodes.
Este fez uma reverência, pegou no rolo e começou a
desdobrá-lo pausadamente. A segunda carta de Otávio
Augusto, imperador de Roma, dizia assim:
“Ao rei de Judéia, por nosso favor, Herodes, o
Escalonita, do Capitólio: saúde.
Meu querido Idumeu; Roma tem uma lei conhecida
pelos seus cidadãos com o nome do Lei das Doze Tábuas
ou dos Decênviros; se acaso não a conheces envio-te o
patrono Mário Curcio Severo; é um sábio que desde já te

219
aconselha que tomes por defensor na acusação que teus
filhos Aristóbulo e Filipe fazem contra ti pela morte de sua
mãe Mariana. Se seu cliente, pois, e confia em que os deuses
não te hão de abandonar. Roma concede-te o tempo
necessário para a viagem, e o imperador teu amigo
aconselha-te que não te demores, porque nenhum acusado,
nem mesmo o César, pode esquivar-se a comparecer ante os
magistrados. Mário pode informar-te da lei IV durante a
viagem, para que sossegues. Espera-te teu imperador –
Augusto”.
Herodes terminou a carta, procurando dominar as
desencontradas comoções que lhe agitavam o coração.
Por um lado o César, o poderoso Otávio, o grande
Augusto, o senhor do mundo, chamava-lhe querido e amigo,
e por outro seus filhos acusavam-no perante os tribunais de
Roma como assassino de sua esposa.
- Com que então meus filhos acusam-se e requerem a
minha presença em Roma?
E Roma não pode recusar-lhes o que pedem. Patrícios e
libertos, nobres e plebeus, militares e sacerdotes, todos
enfim, quantos nas dilatadas províncias onde estende as asas
e águia romana acatam a autoridade do César e dos
magistrados do seu império, devem acatar a lei escrita nas
tábuas do Capitólio.
- Pois bem, romano, eu acato a lei, e nomeio-te meu
patrono; lê-me a lei quarta dos Decênviros.
- Antes que eu te aceite por meu cliente, é preciso que
conheças os deveres que unem até o dia da sua morte o
defensor e o defendido.
- Fala, pois.

220
O romano pousou o livro sobre u’a mesa e, com um
gesto indicou aos escravos que podia retirar-se. Quando ficou
só com Herodes disse-lhe:
- Postas as mãos sobre leis que nos regem e a
consciência nos deuses que nos protegem, vais jurar que,
desde o instante em que tomes por teu patrono, verás em
mim a pessoa dum irmão, que nunca me acusarás perante os
tribunais, nem por pretexto algum poderás ser testemunha em
coisa quem em meu dano redundar, e que a tua vida estará
sempre pronta a salvar a minha.
- Juro, exclamou Herodes, estendendo a mão sobre o
livro.
- Eu juro também, sem violência de espécie alguma,
não te acusar e até não ser nunca testemunha contra ti, e
defender-te ainda com risco de minha vida e fortuna, sempre
que precisares de mim. Se algum de nós faltar ao juramento,
o seu corpo ensangüentado sirva de vítima consagrada a
Plutão e aos deuses infernais.
Mário Curcio fez uma pausa, durante a qual abriu livro
da lei que deixara na mesa.
- Teus filhos acusam-te, disse o patrônio com voz
grave, porque dizem que assassinaste tua esposa, sua mãe;
porém teus filhos, meu amado cliente, desconhecem que
Roma e as suas leis olham com horror o filho que se rebela
contra a autoridade paterna. Ouve, pois, a lei quarta dos
Decênviros, e depois dispõe-te a seguir-me. “Tábua quarta.
Lei sobre os direitos do pai de família”.
Herodes ouvia seu patrono com profunda atenção;
quase não respirava; teria dado a metade da coroa para poder
afogar com suas próprias mão os rebeldes filhos.
- A tábua quarta, lei sobre os direitos do pai de família,
continuou o patrono, concede aos pais o direito de vida e

221
morte sobre os filhos. O pai por esta lei pode condenar seus
filhos à prisão, a serem açoitados, a que trabalhem nos
labores do campo, e até se o merecerem ao suplício que
julgar conveniente. O filho não poderá adquirir sem o
beneplácito de seu pai nenhuma propriedade nem emprego
público e, se o fizer, olhado o dinheiro que produza como
pecúlio dos escravos.
Os filhos não se verão livres do poder dos pais até a
morte deste, ainda que cheguem a ter netos. As filhas casadas
dependem só de seus esposos.
- Ah! pois então! exclamou Herodes sem se poder
conter...
- Teus filhos são teus apesar da sua acusação.
O Idumeu pôs-se em pé, e, pegando numa varinha de
metal, descarregou uma forte pancada sobre um timbre que
se achava na caixinha de noite que em forma de águia estava
à cabeceira do leito. Cingo apareceu na câmara.
- Convoca imediatamente meus filhos, meus irmãos, o
general das minhas legiões e Ptolomeu, meu guarda-selos.
- Para onde hão de dirigir-se, senhor? perguntou o
escravo, baixando a cabeça.
- Aqui, lhe respondeu Herodes com laconismo.
- Devo advertir-te, senhor, disse o patrono, que em
Cesaréia nos espera um navio, que é o que me conduziu a
esta praça, e que me acompanha um manípulo de valites às
ordens de Paulo Atme, o atrevido: o César Augusto previu
tudo para que os preparativos de viagem não te roubassem o
tempo.
- Descansa, partiremos amanhã ao despertar do dia.
Alguns momentos depois achavam-se reunidos, num
dos espaçosos salões do palácio de Jericó, a família de
Herodes, o Escalonita, e algumas dignidades da sua coroa. O

222
rei expôs-lhe brevemente o motivo de viagem; deu ordem a
Ptolomeu para que dispusesse tudo, indicando-lhe as pessoas
que deviam acompanhá-lo. Encarregou seu filho Arquelau do
governo do reino, para cujo efeito escreveu uma carta que
entregou ao general Verutídio, pois Arquelau achava-se em
Jerusalém.
Entre os que as ordens de Herodes haviam reunido no
salão, achava-se Paulo Atme, chefe do manípulo que de
Roma tinha escoltado o patrono Mário. Paulo era um desses
filhos da guerra que crescem dentro da couraça em cima do
seu cavalo nos campos de batalha, ainda moço, pois não
contava mais que trinta anos, e de simples soldado tinha
chegado a general legionário. Como todos os guerreiros
romanos daquela época, tinha o olhar altivo e desdenhoso do
conquistador. Era ambicioso porque a história lhe recordava
que a guerra tinha elevado muitos soldados às primeiras
dignidades do estado. Seu uniforme era a clâmide de
viagem, espécie de capote de grão, guarnecido de púrpura.
Dum largo cinturão que lhe prendia o vestido pendia-lhe uma
espada espanhola sobre o lado esquerdo. O pé direito calçava
um borzeguim de metal, enquanto o esquerdo levava
simplesmente um calçado ligeiro guarnecido de cravos,
conhecido com o nome de caliga, do qual tomou o nome o
feroz e sanguinário Calígula.
Paulo estendeu desdenhosamente o olhar pelos âmbitos
do salão enquanto Herodes dava as ordens para a viagem e,
cruzando os braços ficou em atitude indiferente. No extremo
oposto do que Paulo ocupava, o efeminado Antípatro,
voltado de costas para o desvão duma janela, achava-se com
os cotovelos apoiados no peitoril, escutando com suma
atenção as palavras do pai. De repente seus olhos toparam
com a desdenhosa figura de Paulo, e o corado semblante de

223
Antípatro agitou-se. Seu primeiro movimento foi inclinar-se
para diante como o homem que se dispõe a andar; mas logo
se deteve tornando a tomar a atitude indiferente que tinha.
Passaram-se alguns minutos, durante os quais o filho do
rei não apartou seu doce olhar do pai. Depois, afeando
indiferença intencionada, abandonou a janela e pôs-se a
passear pela sala, trocando frases hipócritas sobre a
temeridade de seus irmãos com os que encontrava no
caminho, procurando levantar a voz quando se achava perto
de seu pai para que este as ouvisse. Assim continuou até
chegar onde estava Paulo, e então, pondo a mão
familiarmente no ombro do filho do Tibre, disse-lhe em voz
mui baixa.
- Eu julgava-te no campo de Marte vencendo homens e
conquistando belas.
- Corpo de Baco!!! Antípatro! Por Júpiter “Stator” que
me apraz encontrar-te, julgava-te na cidade santa dos
Macabeus, mas folgo de que te aches na cidade das rosas.
Devemos dizer que Antípatro, como todos os filhos de
Herodes, se tinham educado em Roma; rasgo de adulação
servil que o rei tributário de Judá rendeu a Otaviano
Augusto, o imperador.
Paulo conheceu-o na cidade pretoriana e fizeram-se
amigos. Além disso Atme tinha por duas vezes ido a
Jerusalém cobrar o tributo do César; de modo que eram
antigos conhecidos.
- Se Paulo não esqueceu, continuou Antípatro baixando
a voz, os nossos antigos costumes sibaríticos; se ainda
prefere o Cipre e o Falermo à água; se lembra daquelas
deliciosas noites que passaremos nas pequenas casinhas de
campo da via Ápia, de cujo terraço se via o sepulcro dos
Sipiões; se ainda é amigo de Antípatro, esta noite ao começar

224
a vigília média me esperará junto à quarta coluna do pórtico
do palácio.
E Antípatro, sem esperar resposta, separou-se de Paulo,
receoso de que seu pai suspeitasse daquela familiaridade.
- Sempre o mesmo, pensou Paulo: fino como uma dama
e forte como um gladiador de César quando se trata de beber
e bulhar. Mas este rapaz esquece-se de que cheguei hoje e
devo partir amanhã. Ora! Um soldado não deve recusar
nunca meia dúzia de garrafas de Falerno, ainda que se lhe
ofereçam na hora da morte. Irei, irei, que os desaires feitos a
Baco costumam custar caro.
Herodes despediu a corte com o pretexto de que
desejava descansar. Aquiab foi o último que lhe beijou a
mão.
- Então partes amanhã, avozinho? lhe disse.
- Sim, mas a minha demora em Roma será breve.
- E que vais fazer na cidade de César?
- Vou fazer com teus tios Aristóbulo e Filipe o que
Amúlio fez com Rômulo e Remo, para que não me suceda o
mesmo que lhe sucedeu a ele.
E Herodes, dando em seu neto uma pancadinha no
ombro, indicou-lhe que se retirasse. Ficando só, encaminhou-
se para o leito murmurando:
- Com meus filhos me servirá de exemplo Amúlio; com
o novo Messias, com o rei de Judá, tomarei por modelo
Atalia.

CAPÍTULO IV

O NINHO DUM PRÍNCIPE

225
Jericó dormia. Só o cadenciado murmúrio das águas do
Jordão, ao lamber o verde céspede das margens com sues
úmidos beijos, interrompia a quietação sepulcral em que se
acha envolta a cidade favorita do Idumeu. A lua tinha
emigrado do céu, mas em compensação nem uma só estrela
tinha deixado de assistir aquele concílio noturno, e,
estendendo-se em numerosos esquadrões pelo escuro e
dilatado horizonte, lançavam seus reflexos sobre a terra
como se pretendessem encontrar nela a rainha da noite, que
não estava no firmamento. O ambiente, embalsamado com as
emanações derramava-se pelos campos gemendo com doce
melancolia entre as copas das árvores e o calix entreaberto
das flores.
Um homem envolto numa dessas capas triangulares dos
hebreus saiu do palácio de Herodes e encaminhou-se para os
arcos da praça, contou as colunas, mas com as mãos que com
os olhos e, ao chegar à quarta parou. Persuadido de que se
achava só, encostou-se à coluna tomando a atitude do
homem que vai esperar. A princípio o misterioso e noturno
personagem conservou-se imóvel como incrustado na dura
pedra do pórtico; mas logo enrolou na cabeça uma das pontas
da capa em cujo extremo pendia uma borla, como faziam os
hebreus com o seu talet de linho ao entrar no templo, e
começou a passear debaixo do pórtico.
Assim decorreu coisa de meia hora, até que por fim
outra figura humana apareceu no extremo oposto da praça.
Este mudo passeante noturno ocultava o corpo sob as muitas
pregas duma toga romana de cor escura.
- Paulo! disse o primeiro ao ver junto de si o outro.
- Antípatro! respondeu o da toga.
- Já pensava que não vinhas.

226
- Sou pouco forte no conhecimento das estrelas, e
costumo enganar-me nas horas.
- É o mesmo; vamos lá.
- Vamos onde quiseres; mas advirto-te que ao
amanhecer tenho que estar pronto para partir.
- Antes que termine a vigília matutina teremos
terminado.
O filho de Herodes, o efeminado Antípatro, enfiou o
braço no de Paulo, o soldado romano, e ambos se
encaminharam pelas tortuosas e estreitas ruas em busca dum
dos bairros mais solitários e afastados da cidade, onde
pararam diante de uma casinha de modesta aparência.
- É aqui, disse Antípatro.
- Em boa hora, responde Atme com indiferença.
O filho de Herodes bateu de modo particular na porta,
que se abriu imediatamente.
- Boa noite, Enoe, disse Antípatro ao entrar na casa, a
uma jovem que, com um lâmpada na mão, alumiava aos dois
amigos.
- A paz seja contigo, senhor, e com quem te
acompanha, respondeu Enoe com a entoação melodiosa das
judias.
Paulo lançou um olhar à filha de Israel, e depois outro
ao amigo como a perguntar-lhe quem era a moça. Antípatro
sorriu-se e esse sorriso era uma resposta ao olhar de Paulo.
- Esperai, bons senhores, tornou Enoe; o corredor está
escuro e vos alumiar-vos.
A judia fechou a porta e passou adiante caminhando
por um estreito corredor. Os dois amigos seguiram-na em
silêncio e assim andaram cerca de vinte e cinco passos, até
que toparam com uma parede que lhes cerrava a paisagem. A
filha de Israel pôs a mão na parede, e esta abriu-se jogo.

227
- Passai, lhes disse Enoe.
Paulo e Antípatro atravessaram aquele desvão que dava
passagem para outro aposento. Então acharam-se num
camarim profusamente alumiado, que contrastava
agradavelmente com a escuridão da primeira estância. Enoe
tinha desaparecido.
- Oh! pronunciou com profundo assombro Paulo, isto é
maravilhoso: a luz sucede as trevas; a ostentação à pobreza.
Vejamos o que causava a admiração do soldado
pretoriano. Era uma habitação pequena, adornada com esse
gosto requintado dos gregos, e que os romanos espalharam
pelo mundo antigo, passeando a sua águia triunfante. As
paredes forradas de nacarada seda das Gálias, brilhavam
como a flor de romã ferida pelos rios do sol poente. Quatro
lâmpadas de ouro suspensas do artezoado teto derramavam
as claras ondas das suas chamas, alimentadas com azeite de
Mitelete, sobre u’a mesa de alóes com embutidos de margim.
A mesa era redonda e de um só pé ou manupudium, como
lhe chamavam os romanos, cuja forma caprichosa mostrava o
bom gosto do artífice construtor. Um leito de forma
triangular se estendia ao redor da mesa, onde os moles
almofadões de cetim azul convidavam ao descanso e à
preguiça. Algumas peles de leopardo lançadas pelo chão
serviam de alfombra, e nos quatro ângulos da habitação
ardim quatro braserinhos de prata, embalsamando o ambiente
com o aroma da mirra e do nardo, que, exalado em branca e
caprichosa coluna de transparente fumo se elevava em
espiral para a abóbada artezoada, desaparecendo, depois de
perfumar a habitação, por uma larga clarabóia.
A mesa estava posta para a ceia; a ausência da toalha
(pois não se começaram a usar até meiados do reinado de
Augusto) supria a extrema limpeza da madeira, que reluzia

228
como o ébano polido. Viam-se colocados sobre ela quatro
jarrões de louça, de duas asas, brancos como o leite, e finos
como o nácar. No seu seio os vinhos conservavam-se frescos
e claros como os mananciais do Líbano. Esses jarros tinham
cada um seu pergaminho quadrado em que se lia a espécie de
vinho, o ano da sua colheita e o nome do cônsul ou ditador
que governava a república romana quando se colheu a uva.
Sobre uma imensa torta de farinha de trigo descansava
um cervato louro como ouro, cercado de ervas aromáticas e
passarinhos de pequenas dimensões. Ao redor deste prato
seguiam-se outros de vidro que continham doces de conserva
e preciosas frutas. Uma ânfora de âmbar cheia de água e
vinagre (bebida de que gostavam muitos romanos) se achava
no extremo da mesa, e junto aos leitos duas grandes taças de
ouro de larga boca incrustada com caprichosas figurinhas de
relevo, que se tiravam e punham durante a conversação
alegre e animada dos pastores. Num extremo da habitação
via-se uma pia de mármore branco, e por cima desta duas
escápulas de pau de laranjeira, de que pendiam duas toalhas
de finíssimo linho.
Paulo depois de ter passado revista com os olhos a tudo
quanto o rodeava, fitou-os nos manjares, e, estendendo os
braços sobre eles, exclamou com entoação cômica:
- O deus Pan, protetor do gado, prolongue a tua família,
inocente cervadinho. O alegre Baco fecunde com o seu calor
divino os regalados campos da Itália, onde brota entre verdes
pâmpanos o Sorrento, o Lágrima, o Falerno, o Mássico, o
Calvi, o Cesabo e o Sezano. E tu, buliçosa Comus, deusa
dos banquetes e dos festins, derrama sobre Antípatro, meu
anfitrião, todos os teus dons, e concede-lhe um estômago
forte e incansável como o dos avestruzes, para que nunca

229
sinta os horrores da indigestão nas sua gloriosas batalhas
sibaríticas.
- Assim seja! exclamou o filho de Herodes soltando
uma gargalhada.
Então os dois amigos despojaram-se das peças de roupa
que podiam incomodá-los durante a comida, e, depois de
lavarem as mãos na pia de mármore, enrolaram a toalha no
pescoço e foram recostar-se no leito, ficando-lhe apoiado o
braço esquerdo e levantada a cabeça em proporção à mesa; e
começaram a comer com os dedos do cervatinho, arrancando
com o indicador e polegar pedaços de carne com assombrosa
facilidade.
- Mas Enoe? perguntou Paulo, que até então não tinha
sentido a falta da judia. Por que não ceia conosco?
- Enoe, meu amigo, desapareceu como um sonho
fantástico; mas juro-te pela deusa Cibela que a tornarás a
ouvir como uma realidade encantadora.
- Os deuses sabem quanto sinto a sua ausência.
- Ora, que te importa a ti essa escrava?
- Sou romano, e como tal supersticioso, e em todo o
banquete em que o número dos convidados é menor que o
das graças ou maior que os das musas, antes dum ano o
vinho costuma tornar-se sangue.
- A tua saúde, e à minha que sou teu amigo, exclamou
Antípatro, levantando uma taça à altura da testa, como se não
quisesse dar ouvidos à superstição do companheiro, que o
fizera empalidecer.
- À saúde do César Augusto. Pela glória de Roma e
pela prosperidade dos filhos do Tibre.
Os dois amigos esvaziaram dum só trago as taças. E
Paulo pegou noutro jarro para tornar a encher as taças.

230
Seus olhos fitaram-se no pergaminho que continha o
nome a idade do vinho, e leu cheio de prazer o letreiro:
“Sorrento puro, ano 636 da fundação de Roma. Sendo
ditador Lúcio Cornélio Sila” – Poder de Baco! – Tira-me os
pântanos da África, tu que com a tua Tábua de Prescrição
inundaste de sangue as ruas de Roma, roubando o sono dos
patrícios, e foste devorado pêlos bichos antes de ser cadáver,
levanta-te da tua cova e saúda um contemporâneo que soube
sobreviver ao teu sangrento reinado!.
Antípatro bebeu sem falar; indubitavelmente alguma
idéia preocupava o efeminado filho de Herodes. E Paulo,
depois desse discurso histórico, tomou fôlego e disse com
voz cavernosa e mofadora:
- Pelos sagrados bosques do divino Júlio, tornou Paulo
aproximando de si um prato de conservas, que a não te ver a
meu lado a não saber que o meu cavalo cordovês rumina o
seu penso nas cavalariças do palácio de Jericó, a não estar
plenamente convencido de que o Jordão se arrasta sobre o
seu leito de areia a poucos passos de nós, julgaria, ao aspirar
os gratos perfumes, que me embriagam, que me achava no
banho aromático e fascinante duma patrícia romana.
Neste momento o silencioso Antípatro, sem que o seu
alegre falador companheiro o observasse, apoiou o dedo
indicador da mão direita sobre uma das molduras do leito, e a
aguda vibração duma campainha de aço estendeu-se pelo
âmbito da sala.
- Ah! disse Paulo, volvendo os olhos em torno de si.
Essa campainha anuncia-me outra nova surpresa; mas
advirto-te, querido anfitrião, que um romano do tempo de
Augusto não se admira tão facilmente quando os fumos do
Sorrento e do Falerno começam a embriagar-lhe a cabeça.

231
- Não trato de surpreender-te, só quero cumprir a
palavra, respondeu o filho de Herodes: lembras-te que
prometi que tornarias a ouvir Enoe como uma encantadora
realidade?
- É certo.
- Pois bem, escuta e julga.
Neste momento começaram a ouvir as doces e
melodiosas notas dum saltério. Sua poética e sentida
cadência, seus melodiosos acordes estenderam-se com
arroubado acento pelos âmbitos da habitação. Paulo
suspendeu o manjar que ia levar à boca. Estava extasiado.
Aquilo era um sonho, um canto de Homero posto em ação
ante seus olhos, uma poesia de Virgílio recitada por um coro
de deuses.
O saltério suspendeu um instante as suas notas, que
imediatamente tornaram a ouvir-se;mas desta vez
acompanhada duma voz humana; voz de mulher, voz tão
melodiosa, tão doce, tão melancólica como o gemido que
arranca o zéfiro das harpas aéreas suspensas dos tristes ramos
dum salgueiro do bosque de Efraim. Aquela voz cantou o
seguinte:

Eu sou o rouxinol do escuro bosques, E ao pálido


clarão de aéreos lumes O peito meu exala Dulcíssimos
queixumes.

O pintassilgo sou que viu seu ninho Junto ao do rio


santo alvo licor: Meu canto é um gemido, Quimera o meu
amor.

232
Eu sou a pobre rola que do Líbano Nas crespas
rochas se aninhou errante Se tenho a alma ferida Porque
quereis que cante?...

Deixai que o peito meu dos seus amores viva


morrendo em solidão ditosa Sem sol e sem rocio; E, não,
perfumes não peçais à rosa.

O canto e a música cessaram, os ecos do saltério e os


gemidos harmoniosos da voz da mulher perderam-se como
os sonhos impalpáveis duma alma enamorada, deixando
somente, após si, uma doce recordação vaga, melancólica,
indefinida, como o som dum ósculo de despedida enviado
nas asas do zéfiro ao objeto do nosso amor.

CAPÍTULO V

DOIS AMBICIOSOS QUE FAZEM CASTELOS NO AR

- Quem é essa mulher que canta como uma bacante dos


bosques da Baia ferida pela flecha do deus cego? Exclamou
Paulo num ímpeto de entusiasmo.
- Essa mulher, respondeu-lhe o seu amigo, é Enoe,
minha escrava favorita, a solitária guarda desta casa, refúgio
nos meus momentos de fastio, consolação da eterna
melancolia que me devora, ninho enfim dum príncipe
desgraçado.
- Tu, melancolia!... Tu, o bebedor incansável, digno
rival de Marco Antonio, que encareceu os vinhos do Egito
nos banquetes de Cleópatra!

233
- O sorriso dos lábios nada tem com as amarguras do
coração. O vinho embriaga e adormece as penas.
- Tens razão, bebamos: rubicundo Baco embeleza o
presente e apaga o passado. Falemos de Enoe; interessa-me a
tua escrava; conta-me a sua história.
- Enoe não tem história: é uma violeta silvestre nascida
nas margens do Nilo e transplantada para Judá antes de abrir
seu perfumado botão: comprei-a a uns árabes, e tenho-a nesta
casa, tratando-a como uma irmã caridosa, e estou certo de
que essa pobre menina se deixaria matar por poupar-me um
gemido.
- Tua irmã? perguntou com grande dúvida Paulo.
- Minha irmã, Atme, minha irmã! Juro-te pela memória
de minha desgraçada mãe que não profanarei essa bela
sensitiva sem lhe dar antes o nome de esposa.
E Antípatro, ao invocar a memória de sua mãe,
estremeceu sensivelmente.
- Que tens? Perguntou Atme.
- Nada, meu amigo; quanto me lembro de minha mãe,
vejo sangue diante dos olhos... Mas falemos de outra coisa.
Gostas de ouro?
Paulo admirou-se desta pergunta; mas deu esta
resposta.
- A vida é cara em Roma, e a paz empobrece o soldado.
- Pois bem, eu posso enriquecer-te.
- Oferecimento é esse que me admira. Saibamos o que
me custa a fortuna que me ofereces.
- Jura-me antes, que, se não aceitares as minhas
condições morrerá contigo o segredo dos meus planos.
- Juro-o pela minha espada de soldado.

234
- Agora troquemos os punhais e as taças, e escuta pois
deste este momento Paulo Atme, o Atrevido, será irmão de
Antípatro.
Os dois desprenderam ao mesmo tempo as adagas de
talim e tocaram-nas; depois, enchendo as taças, ofereceram-
na mutuamente.
- O sombrio Molok, o terrível Ariman perturbe os sonos
e envenene o sangue do primeiro que violar a santa aliança
que nos une..., exclamou o filho de Herodes esgotando a taça
que lhe havia apresentado o romano.
- O sombrio Molok... o terrível Ariman perturbe os
sonos e envenene o sangue do primeiro que violar a santa
aliança que nos une, repetiu Paulo, imitando o seu
companheiro.
- Brevemente o sol banhará com seus raios matutinos
os altos minaretes da cidade e os âmbito do palácio de Jericó.
Então as trombetas dos legionários anunciarão aos
adormecidos habitantes a partir do rei, meu pai. Tu, Paulo, à
frente de teu manípulo, deves escoltá-lo até Roma. Sabes a
que vai meu pai à cidade de César?
- Por minha fé que não. Mandaram-me escoltá-lo e
obedecer-lhe. Esta é a minha senha.
- Pois bem, Paulo, meu pai vai a Roma, porque meus
irmãos o acusam perante o senado como assassino da nossa
mãe; porém, com essa acusação assinaram sua sentença de
morte.
- Herodes não matará nunca seus filhos: é pai.
- Não o conheces; a morte deles é certa e a minha não
está longe; mas eu não sou dos que se rendem sem lutar e,
uma vez apagada no coração a voz da natureza, a luta será
terrível e precisarei de ti, Paulo.

235
- Fala, respondeu o romano, vendo com desgosto que
aquela ceia, que começara com tão bons auspícios,
ia terminar com uma conspiração.
Terminada em Roma a sua causa, meu pai voltará a
Judá escoltado pelos soldados pretorianos. Se ao pisar as
praias da Palestina, meu pai deixar de existir, a coroa será
minha e terás vinte talentos hebreus.
- Se eu não fizer parte da comitiva de regresso, não
poderei servir-te.
- Sabes de antemão as ordens do César?
- Não; mas pode combinar-se que regresses a Judá com
meu pai. Os soldados romanos aborrecem a paz: morrer no
campo de batalha é a morte melhor e mais gloriosa para os
filhos do Tibre. Roma conta um crescido número de
legionários que, cansados da inação que os enerva, se acham
dispostos a desembainhar a espada à voz do primeiro que lhe
ofereça um punhado de ouro. Deves ser esse homem. Se o
César não te nomear chefe da escolta, podes introduzir-te nas
fileiras, comprando um dos centuriões, e ocupar o seu lugar;
durante a viagem não te será difícil subornar alguns
soldados, e, logo que pises a terra de Judá, não há de faltar-te
um pretexto para que um dos teus enterre a espada no peito
de Herodes. Eu, entretanto, em Jerusalém, reunirei os meus,
e, quando chegares às suas muralhas, para ti o ouro, para
mim a coroa.
- O teu plano é arriscado: esqueces-te de que o César é
o único que pode conceder-te a coroa de Judá?
- O César compra-se: meu pai assim o fez; posso
também fazê-lo.
- Arriscas a cabeça neste jogo.
- A morte de Herodes deve ser atribuída ao acaso, ou
motivada pelo seu caráter irascível.

236
- Mas em Jerusalém ficam três filhos de Herodes três
irmãos teus.
- Faze tu o primeiro e deixa por minha conta o mais.
Vacilas?
- Sempre desprezei a vida. Mas a quantia que me
ofereces fugir-me-á das mãos como um punhado de fumo:
não conheces a sede insaciável de ouro dos meus
compatriotas: nada lhes basta quando se trata de pôr preço às
suas vidas: se eu fosse o chefe encarregado da escolta, o
negócio podia então levar-se a cabo com mais economia.
- Fixa tu mesmo a quantia, falou laconicamente o filho
de Herodes.
- Dize antes as condições. Aos homens da minha
têmpera não basta ouro.
- Então, explica-te sem rodeios, e não esqueças que
ambos juramos segredo no caso de não combinarmos.
- Se a conspiração te der a ti uma coroa, eu, nesse caso,
exijo para mim o governo de uma das tribos de Israel.
Antípatro mordeu os lábios, mas não disse palavra.
Paulo continuou com pausada e fria gravidade:
- Tu serás rei, eu o governador. Quanto à soma que
devo perceber, se aumentará com mais doze talentos, que são
os que devem distribuir-se entre os soldados dos postos da
Palestina, para que coadjuvem no movimento.
Antípatro como se houvesse tomado uma resolução
repentina, disse sem vacilar:
- Aceito.
- Pois bebamos pelo bom resultado da nossa empresa.
Encheram as duas taças, e Paulo tornou:
- Pela prosperidade do futuro rei de Jerusalém, e pela
fortuna do próximo governador da Galiléia.

237
Depois de esvaziarem as taças, Antípatro saltou do leito
e, encaminhando-se para um dos extremos da estância, tirou
duma espécie de armário, embutido na parede mui
dissimuladamente, uma bolsa de couro bastante grande, um
tinteiro e dois pedaços de papiro, objetos que colocou sobre
a mesa sem despregar os lábios.
- Nesta bolsa acharás duzentas minas hebraicas. Tens
bastante para as primeiras distribuições de Roma?
- Creio que sim; mas....
- Compreendo-te. Nestes papiros podemos escrever as
obrigações; tu ficas com um, eu com outro.
Antípatro estendeu o papiro e molhou a pena no
tinteiro.
- Vejo que fazes o contrato com toda a legalidade de
uma advogado; estimo.
Eles escreveram uma obrigação do que cada um devia
fazer e receber na conjuração que se urdia contra o rei de
cidade santa. Terminada esta operação, cada um guardou
cuidadosamente o pedaço de papiro que lhe pertencia.
Ambos estavam comprometidos; talvez ambos tivessem
assinado a sua sentença de morte.
O resto da ceia foi silencioso. Os dois amigos comeram
pouco, mas fizeram frequentes libações, talvez para
desvanecer com os vapores do vinho as idéias que lhes
agrupavam a mente. Antípatro pensava na coroa que,
segundo a sua ambição, calculava dever-lhe descansar dentro
em pouco na fronte. Paulo lembrava-se da frase fatalista dos
romanos do tempo de Augusto: “Não te sentes em nenhuma
mesa em que os convivas sejam menos que as graças ou mais
que as musas”. O penetrante som duma campainha que se
estendeu pela sala, tirou da sua profunda meditação os dois
amigos.

238
- Que significa este som? perguntou Paulo.
- Que Enoe nos avisa de que o luzeiro da manhã
apareceu no Oriente.
- Então é preciso que nos separemos.
- Sim, dentro em pouco as trombetas convocarão a
comitiva.
- Saíamos, pois, e Júpiter nos dê boa sorte na empresa.
- Assim o espero. Valor e confiança!
- Mais fortemente se arraiga o valor num coração que a
confiança!.
- Pois não esqueças de que precisamos ambas as coisas.
Apertaram as mãos cordialmente, tomaram precauções
e encaminharam-se para o palácio, mas por diferente
caminho. Pouco depois, a porta do camarim de Herodes
abriu-se para dar passagem ao escravo Cingo, o qual se
dirigiu ao leito do seu senhor. O Idumeu não dormia.
- E então, Cingo? perguntou Herodes ao seu escravo.
- Não te havias enganado, senhor: Paulo e teu filho
passaram a noite juntos.
- Onde? perguntou com indiferença Herodes.
- Em casa de Enoé, sua escrava.
- Já o sabes. Desde agora a tua obrigação é ser a sombra
deste romano ambicioso; quanto a meu filho, desprezo-º Que
horas são?
- A aurora despontará em breve no Oriente.
- Avisa Ptolomeu e prepara tudo para partida. Tu vens
comigo.
Cingo saudou e tornou a sair do camarim por onde
tinha entrado. Herodes tornou a deixar-se cair sobre o mole
leito como se ninguém o houvesse interrompido.

CAPÍTULO VI

239
CLEÓPATRA E OS TRIÚNVIROS

Antes de penetrarmos na orgulhosa cidade do Capitólio


e de percorrermos as ruas de Roma, dessa rainha do mundo,
desse arsenal da glória e da arte, antes de nos colocarmos
diante da grave figura de Otaviano Augusto, imperador dos
romanos, os nossos leitores hão de permitir-nos que
volvamos um olhar retrospectivo, desde a morte de Júlio
César até ao nascimento de Jesus Cristo.
Júlio, Crasso e Pompeu, depois de formarem o
triunvirato, estenderam-se com suas poderosas legiões pelo
mundo, alargando pelas contínuas conquistas as possessões
romanas. Porém a sorte começou a ser contrária ao avarento
Crasso e, nas planícies da Mesopotâmia, foi destroçado pelo
rei dos partos, que, sabendo a sede insaciável de ouro que
acossava o feroz romano, fez com que lhe cortassem a
cabeça e mandou que lhe deitassem ouro derretido na boca,
dizendo com ironia cruel: “Agora é preciso fartá-la deste
metal de que não pôde saciar-se durante a vida”. A Itália
recebeu com um grito de dolorosa raiva a notícia da derrota
das legiões de Crasso. O triunvirato estava desfeito: tardou
pouco que César e Pompeu se indispusessem. Júlio achava-se
nas Gálias, Pompeu em Roma, e ambos conceberam o
ambicioso plano de governar a sós a república.
Júlio, levantando suas tendas a marchas forçadas,
atravessou os Alpes e deteve o seu exército na margem dum
riacho. Pompeu, sabedor de que César avançava sobre Roma,
sai ao seu encontro rodeado dos senadores, entre os quais se
achavam Cícero e Catão de Útica. Os dois exércitos
encontraram-se depois na Macedônia, a planície de Farsália.
Trava-se a peleja; o sangue romano tinge o largo campo que

240
ocupam os combatentes, esquecendo no seu furor que são
irmãos. César vence Pompeu, a quem salva a ligeireza do seu
corcel. Chega à praia, entra num navio, o vento favorece-o e
chega ao Egito, onde a rainha Cleópatra e seu irmão
Ptolomeu lhe cortam a cabeça e a remetem numa caixa ao
vencedor Júlio, como prova de sua covarde submissão.
César, clemente, perdoa aos partidários do seu inimigo,
mas Catão de Útica, dá-se à morte por suas próprias mãos
para não sobreviver à república que julgava perdida nas
mãos de Júlio César. Recebe César o ensangüentado crânio
de Pompeu, e, não podendo esquecer de seu sogro e amigo,
chorou sobre aquela cabeça insepulta, e castigou Ptolomeu.
Entra em Roma, onde se fez aclamar ditador, como Sila, por
dez anos. Distribui trigo e dinheiro ao povo; dá espetáculos
de gladiadores; converte o campo de Marte num lago
imenso, onde os romanos correm ébrios de prazer a
presenciar os simulacros navais com que os obcequeia o
vencedor Júlio.
O povo esquece que a república têm um senhor, e dá a
este o sobrenome de Divino. Adora-o como a um dos seus
deuses, e crê-se feliz. Mas Bruto e Cássio, amigos de
Pompeu, rudes e leais republicanos, não dormem e afiam o
punhal que deve livrar a pátria do ditador.
César é avisado pelos amigos do perigo que o
ameaçava. Vê o seu povo feliz, lembra-se da sua clemência
para com os inimigos, das suas conquistas que tanto
engrandeciam o nome romano, e vive tranquilo. Marco
Antonio e Lépido conduzem Júlio a uma galeria do seu
palácio, e estendendo os braços para o firmamento mostram-
no como sinal precursor dalgum grave acontecimento. O
povo agrupa-se nas praças e comenta a seu modo aquele
misterioso sinal do céu.

241
Passa a noite, nasce o sol, e César, com o seu manto de
púrpura, sem armas, encaminha-se a pé para o senado,
rodeado dos amigos. Mas, apenas transpõe o pórtico da
assembléia, cem punhais saem dentre as pregas das togas dos
senadores. César não se perturba; vê o perigo, desafia-o; mas
ao sentir-se ferido, volta a cabeça e vê um amigo, o seu
querido Bruto, e exclama com inexplicável sentimento:
também tu, Bruto! Então cobre a cabeça com o manto e cai
atravessado, sem vida, aos pés dos seus assassinos.
Marco António, rude e valente soldado, amigo de
acampamento do desgraçado Júlio, corre com Lépido ao
lugar da catástrofe. Mandam levar o ensangüentado corpo do
ditar para a praça pública, e colocam-no sobre um leito de
marfim para que o povo possa ver seu protetor. O povo
enfurece-se e os assassinos fogem de Roma, para morrerem
mais tarde na batalha de Felipos, nos Campos da Grécia.
Cícero, o sábio orador, acha-se já salvo na popa de uma
galera; mas teme o enjôo e faz-se conduzir a sua casa de
campo, numa liteira. Os soldados de António encontram-no,
cortam-lhe a cabeça e colocam-na no senado sobre a
tribuna dos discursos: sarcasmo cruel e sangrento do feroz
António, que arrancou lágrimas de dor aos sábios de Roma e
Grécia.
Marco e Lépido tornaram a Roma vencedores dos
conjurados. Então apresenta-se- lhes um moço de apenas
dezoito anos, de caráter tímido e pacífico, compleição
delicada, rosto pálido e doce, e que coxeava da perna
esquerda. Era um sobrinho de Júlio César, que o havia
nomeado seu herdeiro. Os ferozes soldados olham-no com
desprezo, e admitem-no no triunvirato, que era o segundo de
Roma. Marco António e Lépido admitiram a cooperação
daquele jovem enfermiço, como um escárnio; mas aquele

242
jovem, delicado como uma violeta, belo como uma sensitiva,
chamava-se Otaviano Augusto e foi mais tarde o imperador
mais poderoso do mundo.
Armaram-se as legiões; Marco e Otaviano
encaminharam-se à frente delas para a Grécia, onde Cássio e
Bruto tinham levantado um poderoso exército. Venceram-
nos na batalha de Felipes. Lépido entretanto ficou em Roma;
covarde e preguiçoso, inepto para governar aquela poderosa
nação, comete mil torpezas. Otaviano convence a Marco de
encaminhar-se ao Egito, com a metade do seu exército,
enquanto ele se dirige a Roma; e Marco Antonio que era
valente mais preguiçoso e gostava dos prazeres da mesa e
dos gozos de Baco, aceitou a proposta com a idéia de
descansar das fadigas do acampamento, pois a conquista das
ribeiras do Nilo era extremamente fácil para aquele caudilho.
A rainha Cleópatra vê ameaçada a sua coroa com a
aproximação dos romanos, e, ao invés de fugir ou preparar-se
para o combate embarca numa galera coberta de ouro e
pedraria, cujas velas eram de púrpura e os remos de
prata, e sai ao encontro da armada inimiga.
Cleópatra, molemente reclinada em ricos almofadões,
na coberta da sua embarcação, debaixo dum riquíssimo pálio
de brocado e de ouro, aspirava com voluptuosa preguiça o
perfume do incenso que ao seu lado queimavam quarenta
formosas mulheres vestidas com todo o luxo e esplendor do
Egito, enquanto doze meninas disfarçadas de amores
agitavam sobre a encantadora cabeça de sua soberana
vistosos leques de plumas, purificando o ambiente com suas
ondulações. Marco Antonio, à vista daquela encantadora
aparição ficou fascinado como se a deusa das espumas lhe
houvesse enviado suas ninfas para o receberem. Desde
aquele momento o amor com que o brindaram os braços da

243
astuta rainha prendeu-o nas suas rede, e esqueceu-se de
Roma, de sua esposa a Otávio e do seu dever, para pensar em
Cleópatra.
Augusto, indignado com o comportamento de Antônio,
ordenou-lhe que castigasse os partos, que começavam a
tornar-se insolentes; mas Antônio e as suas legiões, tinham-
se enervado na corte do Egito, os partos destroçaram-nos, e
Antônio correu a esconder a vergonha nos braços de
Cleópatra. Otaviano Augusto propôs-se vingar Roma e sua
irmã e dirigiu-se, com um exército considerável, ao Egito.
Antônio, falto de valor para esperar o seu contrário,
fugiu com a sua cúmplice logo que avistou a frota de
Augusto, retirando-se para Alexandria, onde atravessou o
peito com sua espada. Cleópatra, receosa da vingança de
Augusto, encerrou-se num sepulcro grande como uma casa,
onde fez conduzir Marco Antônio, que se achava malferido,
introduzindo-o por uma janela, atado com cordas. Duas horas
depois Antônio tinha deixado de existir, e Otaviano, sem
vencedor, achava-se em presença de Cleópatra.
- Dispõe-te a seguir-me a Roma com o manto de
púrpura sobre os ombros e a coroa na cabeça; far-te-ei entrar
pela via Triunfal diante do meu carro vencedor.
A rainha nada disse. Seus olhos, negros como a noite,
lançaram um olhar de ódio e desprezo ao romano. Quando se
viu só, chamou Iras, sua escrava favorita, e disse-lhe,
entregando-lhe um punhado de ouro:
- Toma, procura o camponês a quem encomendei o
último adorno do meu reinado.
Do fundo do mar começaram a alçar-se as trevas
anunciando a noite aos habitantes de Alexandria, quando
Iras, envolta num manto, abandonou o grandioso mausoléu

244
de Cleópatra, e, atravessando algumas ruas, chegou ao
campo e parou á porta duma choça. Ali havia um homem.
- Cumpriste as ordens da minha senhora? disse.
- Sim, escrava, lhe respondeu o homem entregando-lhe
um açafate cheio de figos, e cuidadosamente coberto com
pâmpanos e flores.
Iras deu ao camponês uma bolsa de seda cheia de
moedas de ouro, e retirou-se. Nos olhos do camponês brilhou
a alegria e a cobiça, e enquanto acariciava com suas calosas
mãos a bolsa da rainha, murmurou:
- Para que quererá Cleópatra as víboras, e porque me
terá dado tanto dinheiro por elas? As rainhas têm caprichos
inexplicáveis!
Entretanto, Iras chegou ao panteão onde a esperava sua
senhora. A rainha pegou no açafate e disse à escrava:
- Vai-te, quero estar só.
Quando Iras se retirou, Cleópatra examinou o açafate.
Entre os figos achava-se um pedaço de cana verde,
cuidadosamente fechado com dois tacos de raiz de salgueiro.
A rainha agitou a cana que produziu um leve ruído, como se
dentro houvesse algum corpo pesado. Um sorriso de prazer
brilhou-lhe no formoso semblante. Pousou o açafate sobre os
brancos almofadões do leito e vestiu-se com o traje mais
rico, mais resplandecente. Pôs a coroa e estendeu-se no leito.
Então tirou um dos tacos de cana e aplicou o vegetal a
seu branco e mórbido peito. Uma víbora estendeu a
esverdeada cabeça, agitando com rapidez a venenosa língua.
A rainha soltou um grito. O réptil agarrara a sua carne.
Cleópatra fechou os olhos e esperou a morte, talvez
pensando no amante, talvez pensando no assombro que a
presença de seu cadáver havia de causar a Otaviano, seu
vencedor.

245
No dia seguinte os soldados de Augusto acharam-na
morta com a coroa na cabeça e reclinada no leito, como se
dormisse. Augusto mandou enterrar os corpos de Antônio e
Cleópatra no mesmo monumento, e voltou a Roma, onde, ao
ver-se único senhor da república, tomou o nome de
imperador.
Aquele jovem débil e enfermiço, de olhar doce e caráter
pacífico cujo coxear Antônio imitava quando os vapores de
Falerno o transtornavam, reuniu em si todos os poderes,
todas as dignidades da república. Agripa e Mecenas, Horácio
e Virgílio, foram desde então seus amigos favoritos.
Restabelecida a paz no mundo, querido do seu povo,
admirado dos reis seus tributários, foi bom e bondoso para
com todos; perdoou aos inimigos e encheu-os de favores; foi,
enfim, um grande rei, um pai do seu povo, um carinhoso e
tolerante aliado das nações, e um protetor incansável das
letras e dos domínios que lhe pagavam o tributo.
Neste estado se achavam as coisas, quando num
estábulo da cidade de Belém de Judá nasceu o Redentor do
mundo. Augusto consultou a Sibila, e misteriosos sinais
apareceram no céu. Não é nosso intento por certo reproduzi-
los aqui, pois que podem consignar-se em outro lugar; mas
Roma está enlaçada com Israel. Augusto e Tibério, seu
sucessor, foram imortalizados pela vinda de Jesus Cristo.
Herodes o Grande, essa sombria figura dos Evangelhos e
esse açoite de Judá, vai penetrar na cidade dos pretores,
donde o veremos sair para levar a cabo o crime mais odioso,
mais repugnante que manchou as páginas da história.
Antes, pois, que o terrível Idumeu, atravessando a via
Apía e a antiga muralha de Túlio Ostílio, penetre pela porta
Capena na cidade do Capitólio, antes que se lance aos pés do

246
imperador Augusto no monte Célio, detenhamos o olhar no
palácio de César.
Um grupo de soldados velhos e encanecidos nas
batalhas passeava no primeiro átrio do vestíbulo e, na praça
que precedia a fachada do edifício, via-se uma ou outra
liteira e empregados da casa. Um homem, quase ancião,
vestido modestamente com a toga dos patrícios, saiu do
palácio de César e saudou com amabilidade, levantando a
aba das largas vestes, os que se achavam na pracinha. Todos
se inclinaram com mostras de respeito.
O homem da toga transpôs sozinho o arco do vestíbulo,
e encaminhou-se com passo tranquilo para a larga rua que se
estendia diante do monte Célio. Seu rosto tinha uma
expressão de indefinível bondade; a cabeça, coberta de cãs,
inclinava-se levemente para o peito, como os ramos duma
árvore carregada de fruto. Sua estatura mediana, seu físico
delicado e o seu ademã humilde, não mostravam nada de
extraordinário. Atentando-se um pouco, podia ver-se que
aquele ancião coxeava levemente da perna esquerda. De vez
em quando algum transeunte parava para o olhar como que a
reconhecê-lo. Então o homem da toga sorria-se com bondade
confundindo-se entre a multidão, e continuava o caminho
procurando evadir-se aos olhares, investigadores que lhe
dirigiam.
Assim cruzou grande parte de Roma, e, atravessando a
via Sacra; chegou ao monte Esquilino e ao Viminal. Ao
entrar neste bairro, retirado da populosa cidade, o rosto do
misterioso transeunte entristeceu-se visivelmente, e parou
lançando um olhar carinhoso sobre uma casa de modesta
aparência, inteiramente fechada.
Algumas árvores de folha amarelada erguiam às copas
por detrás dos muros, como os ciprestes num cemitério

247
abandonado pelos vivos, para enxugar uma lágrima e, depois,
soltando um suspiro, exclamou:
- Pobre Virgílio! Tuas flores já não perfumam teu
apaixonado acento; as aves não cantam sobre as copas das
tuas árvores, ouvindo teus doces versos. Os deuses imortais
arrancaram-te da terra para te levarem para o céu. Eles te
sejam propícios.
Depois prosseguiu o caminho em direção a u’a
magnífica casa de campo, cujos extensos jardins se achavam
a pequena distância da casa de Virgílio. Do centro do edifício
erguia-se uma torre que dominava toda a propriedade e
grande parte dos quatorzes bairros em que Roma se achava
dividida no tempo de Augusto.
O homem da toga entrou nos jardins e, percorrendo
aquela dilatada rua de árvores, chegou ao vestíbulo da casa,
onde sobre um pedestal de pedra rústica se erguia uma
elegante estátua de mármore.
Aquela estátua tinha certa semelhança com o homem da
com o homem da toga, que passou a seu lado. Ao transpor o
umbral da porta um escravo, que sentava num tamborete de
madeira, pôs-se em pé. Junto do escravo via-se um mastim
preso com uma grossa cadeia de ferro e, por cima do cravo
que a segurava à parede, lia-se “Cuidado com o cão”.
O homem que entrava acariciou a cabeça do cão com
familiaridade; este fechou preguiçosamente os olhos,
estendeu o pescoço e levantou a cauda em sinal de carinhoso
reconhecimento. Em seguida entrou em casa, subiu por uma
escada ao andar principal, atravessou várias salas em que
encontrou diferentes criados que se inclinavam diante dele,
parou a uma porta e, empurrando-a achou-a num quarto onde
havia dois homens. Um deles ocupava-se em folhear um
volume; o outro, estendido num leito, parecia enfermo, a

248
julgar pela palidez das faces. Por todas se viam grossos
volumes espalhados até pela cama do enfermo. Dir-se-ia ser
a habitação o gabinete dum sábio ou dum historiador. O
enfermo era Mecenas; o que folheava o livro, Agripa; o que
acabava de entrar, Otaviano Augusto, imperador de Roma.

CAPÍTULO VII

- Saúde ao César, exclamaram a um tempo Mecenas e


Agripa.
- Para ti a quisera eu, meu querido administrador.
- Ah! A minha, poderoso Augusto, é u”a menina
malcriada que há algum tempo anda descontente por dentro
do meu ser.
E Mecenas, dizendo estas palavras, procurou sentar-se
no leito. César tinha-se sentado sem cerimônia ao lado de
Agripa.
- Sabes, querido genro, disse Augusto dirigindo-se a
Agripa, que esta manhã minha filha Júlia me repreendeu
pelas horas que te roubou do seu lado? A pobre Júlia não
sabe que nos ocupamos em colecionar as obras dos nossos
queridos amigos Horácio e Virgílio, para enriquecer com elas
minha biblioteca grega e latina do templo de Apolo.
- As mulheres são egoístas, senhor; nenhuma delas
compreende sacrificar um instante de felicidade pelo público,
disse Mecenas.
- E todavia, nada lhes agrada tanto como exigir
sacrifícios dos homens, tornou Agripa.
- Deixando as mulheres tais quais elas são, tenho que
dar-vos uma boa notícia, disse o César. O nosso mui querido
Pisão, prefeito da cidade, conseguiu afinal compilar num
volume as obras da Síbila Cúmea, e desde amanhã os

249
numerosos frequentadores do teatro Marceio poderão lê-las
na minha biblioteca, Otávio.
- Os deuses me concedam vida suficiente para ver
terminada a nossa obra! terminou Mecenas.
- Pois então toca a trabalhar!
E Augusto, Mecenas e Agripa puseram-se a folhear
volumes que colocavam depois com ordem em uma estante,
formando antes um índice em longos pedaços de papiro que
se achavam estendidos na mesa.
Aqueles três homens passaram grande parte do dia
nesta ocupação bibliográfica, enriquecendo com os seus
trabalhos as duas bibliotecas fundadas por Augusto O
bondoso imperador desviava de vez em quando os olhos dos
livros para os fitar no pálido semblante de Mecenas. Depois,
aquele olhar encontrava-se com o de Agripa seu genro, e
ambos faziam um imperceptível movimento contristado.
Otaviano Augusto dizia sempre, quando nomeava seus
quatro amigos Horácio e Virgílio, Mecenas e Agripa:
- O meu maior desgosto será sobreviver-lhes.
A morte dos seus dois poetas favoritos encheu-o de dor
porque, folheando seus versos passava as horas melhores
da sua vida. Quando, algum tempo depois, a morte lhe
arrebatou Mecenas e Agripa, que tão bons conselhos lhe
haviam dado durante seu longo reinado. Augusto chorou e
sua desconsolação foi tão grande que deixou crescer a barba
e, cortando o trato com os homens, passou os últimos anos da
vida a instruir seu sobrinho Tibério nos deveres dum bom rei.
Enquanto esses ilustres personagens se ocupavam com
o afã e interesse dum antiquário, em colecionar os volumes
para os transportarem para a biblioteca, Herodes, seguido
dum crescido número de escravos e duma luxuosa comitiva,

250
entrava em Roma pela via Triunfal e, atravessando o Tibre
pela fonte Janículo, dirigia-se ao palácio de César Augusto.
O Idumeu chegava à cidade do Capitólio chamado pelo
imperador para defender-se da acusação de seus filhos.
Herodes montava um cavalo de raça siríaca; a sua direita
cavalgava Mário, seu patrono; à esquerda, Cingo, o escravo
negro. Seguiam-no alguns escravos luxuosamente vestidos e
uma liteira recamada de ouro, com as varas de prata. Depois
seguia-o Paulo Atem com seus trezentos cavaleiros romanos,
e em último lugar uma récua de possantes machos, que
conduziam as tendas, a bagagem e alguns presentes que o rei
tributário trazia da Palestina ao imperador.
Quando César Augusto regressou à casa, achou
Herodes e sua comitiva esperando no amplo vestíbulo. A
humildade e modéstia do poderoso Otávio, que caminhava a
pé e vestia como o último dos cidadãos da república,
contrastava com o luxo insolente e afetado do escalonita, do
rei tributário de Judá, do primeiro escravo de Roma.
Augusto recebeu Herodes com a amabilidade que tinha
por costume e fez com que se hospedasse em sua casa. O
baixo adulador Idumeu, que devia a cora a Marco Antônio,
esquecendo-se do seu protetor tão depressa como Augusto se
fez senhor do império do mundo depois da batalha de Ácio,
implorou e obteve, à força de ouro e baixezas, a proteção do
sobrinho de Júlio César. Imitando Aristóteles II, rei de
Jerusalém, que depois de consideráveis somas deu uma vida
de ouro a Pompeu, seu vencedor, o escalonita, desejando ter
sua parte o senhor do mundo na questão promovida por seus
filhos, e sabendo a insaciável sede de ouro que predominava
entre os romanos no seu tempo, trouxe infinitos presentes
para os juízes e uns cachos de pérolas para o César, entre os
quais se achava um de grande valor e dum gosto delicado,

251
pois o artífice tinha colocado algumas pérolas negras e
bronzeadas misturadas com as brancas, imitando dum modo
prodigioso a aproximação da vindima.
Herodes, como era astuto, não se esqueceu de
transportar de Jerusalém dois grandes caixões de livros
hebraicos para as bibliotecas do César, presente que Augusto
agradeceu. Quando, na seguinte manhã Herodes pediu
licença a Augusto para apresentar-lhe os presentes, o Idumeu
entrou na câmara do seu senhor.
- Este cacho de pérolas, ilustre César, lhe disse, trouxe-
os de Judá para que os mandes colocar na vide de ouro de
Aristóbulo, meu antecessor, para que Roma veja que a vide
de Judéia dá fruto nas mãos do teu servo Herodes.
Desde então, Augusto propôs-se, escudado com a lei
quarta das Tábuas, conceder a Herodes todos os direitos que
como pai tinha sobre seus filhos.
Avisados Alexandre e Aristóbulo de que seu pai se
achava em Roma para defender-se da acusação, prepararam-
se para a defesa. Mário, patrono de Herodes, era um desses
legistas que com o poder da palavra, e o engenho dos seus
escravos para a defesa, fazem do mais desprezível
delinquente o herói mais simpático e digno da terra, Herodes
foi defendido com tal maestria, com tanta eloquência, com
tal lógica, que o tribunal viu no Idumeu um homem de honra,
e na sua desgraçada Mariana uma mulher corrompida e
adúltera. Teve-se em conta a lei hebraica que manda matar as
esposas que esquecem os deveres e Herodes foi absolvido
depois de vinte dias de debates.
O tribunal, por conselho de Augusto e querendo que se
respeitasse a lei das Doze Tábuas, entregou os filhos ao pai,
para que obrasse com eles como lhe aconselhasse o coração.

252
Enquanto isto acontecia o manípulo Paulo Atme não se
descuidava. Diariamente concorria ao campo de Marte em
busca de aventureiros que recrutasse na sua pequena legião.
Cingo, escravo de Herodes, fiel ao seu senhor, astuto
como uma cobra, espiava o romano sem que ele o
percebesse, chegando a tal extremo sua astúcia e fingimento,
que Paulo, crendo na palavra do etíope, o julgava um inimigo
irreconciliável de Herodes e não teve inconveniente em
confiar-lhe todo o plano. Esta confiança perdeu-º Tudo
estava preparado: a partida marcada pelo César, era no
primeiro dia das Colendas de junho e Paulo estava nomeado
chefe da escolta que devia levar a Jerusalém o rei tributário.
Quatro galeras do César esperavam no porto marítimo
de Civita-Vecchia para os transportar às praias de Cesaréia.
Tudo estava pronto e, na véspera da partida. Augusto com o
seu caráter conciliador, quis que Herodes e seus filhos
jantassem com ele, crendo que por este meio se
reconciliariam aquelas desinteligências de família.
O Idumeu fingiu durante o banquete uma bondade uma
tolerância para com seus filhos, que estava mui longe de
sentir. Ao terminar o banquete, solicitou de Augusto uma
conferência secreta e ambos passaram a uma sala retirada.
Quando Herodes se viu só com Augusto, tirou uma folha de
pergaminho dentre as pregas da túnica e apresentou-se ao
César.
- Que é isto? perguntou Otávio fitando os olhos no
escrito. Mas antes que Herodes lhe respondesse, exclamou
com doloroso acento!
- Ah! Ainda há no meu império quem conspire contra
as ordens que dito!. Com que esses revoltosos filhos de
Marte, confiando na minha clemência, conspiram contra os
reis que eu protejo! Esta bem, Herodes, está bem! Eu

253
agradeço-te a descoberta, que em honra da verdade mais
competia a Pisão, prefeito geral da cidade, que a ti, que és
forasteiro.
- O nome de Cingo que aparece nesta lista, deve
excluir-se do castigo, porque Cingo é o meu escravo favorito.
Perderia gostoso a vida por obedecer às minhas ordens: pois
prevendo eu desde Jericó que meu filho Antípatro e Paulo
estavam de acordo, mandei ao meu escravo espiar o último
durante a viagem e a sua permanência na cidade do Tibre.
- Nas conjurações, amigo Herodes, lhe respondeu
Augusto, os reis que como eu não gostam de derramar
sangue, dirigem-se ao cabeça, para castigar. Os reis
sanguinários são bestas ferozes que os novos deveriam
esmagar como as víboras venenosas.
Augusto conhecia a ferocidade do Idumeu e acentuou
as últimas palavras. Herodes baixou covardemente os olhos
para o chão. Depois destas palavras, Augusto encaminhou-se
para a porta e, levantando o reposteiro chamou um dos seus
leitores, dando-lhe ordens em voz baixa. Uma hora depois, o
reposteiro tornou a levantar-se para dar passagem a dois
soldados romanos; um deles era Paulo Atme; o outro, um
velho que vestia o uniforme de centurião. Augusto deteve um
momento o olhar no semblante de Paulo, que estremeceu
levemente, e depois disse-lhe, estendendo-lhe o pergaminho
que lhe havia apresentado Herodes.
- Pelos deuses do Capitólio, pela honra de teus pais e
pela glória da águia, que serve de cimeira ao estandarte do
teu manípulo, exijo-te que me digas se é certo o que diz este
pergaminho.
- É certo, César.
- Só Augusto levanta legiões em Roma, exclamou o
imperador com voz ameaçadora; ninguém mais que eu tem

254
direito a conceder as coroas tributárias nos meus domínios.
Tu faltas à lei; morre pois, como soldado!
E Augusto, tirando a espada que pendia do cinturão de
Paulo, disse-lhe com voz enérgica, apresentando-lhe pelo
punho:
- Toma.
Paulo não esperou que lhe repetissem a ordem: sem
vacilar, sem se deter, compreendendo o que o César lhe
queria dizer entregando-lhe sua própria espada, com um
valor digno de melhor sorte, atravessou o peito, caindo
ensangüentado sobre a alfombra do pavimento.
- Assim devem morrer os traidores que ameaçam a
existência dos reis a quem concedo hospitalidade no meu
palácio, tornou Augusto, afastando os olhos do cadáver de
Paulo.
E depois, vendo que as duas testemunhas, Herodes e o
centurião, nada diziam ante aquele drama sangrento,
continuou, dirigindo-se ao velho soldado:
- Tu, meu leal Antoninho, escoltarás o rei a Jerusalém,
obedecendo suas ordens como as minhas próprias. Prepara-
te, pois, para te achares amanhã, quando a luz da aurora
saúde Roma, com tua centúria, no embarcadeiro do Tibre: e ,
voltando-se para Herodes, continuou: podes confiar nele; é
um velho e leal servidor, que pelejou comigo no Egito.
Pouco depois os litores mandavam enterrar o cadáver
de Paulo.

LIVRO SEXTO

CAPÍTULO I

255
FANTASIA

O sol desaparecia atrás das azuladas montanhas que


servem de pedestal ao templo de Júpiter. O bosque do divino
Júlio, agitado pelas brisas da tarde, sacode os empoados
loureiros, que perfumam o ambiente com sua aroma. A
violeta abre o calix erguendo-se para o céu, e o magnólio das
Índias inclina o seu corpo de margim para a terra. As
palmeiras e os pinheiros estendem suas sombras para o
Oriente em busca da noite. Os rouxinóis, ocultos nos
frondosos espinheiros, batem alegres as asinhas e as
tranquilas caudas, esperando que o zéfiro noturno lhe roce as
penas para enviarem ao Criador o canto das trevas.
Os pastores conduzem seu inocente gado ao aprisco e o
laboratório camponês regressa ao lar, sentado no duro dorso
dos pacientes bois, com o rosto coberto de suor e pó. As
montanhas de Albano, rodeadas de seus filhos, e sentadas
debaixo do tosco coberto das suas choças, entoam alegres o
poético canto da noite, prelúdio amoroso que indica o
regresso de seus maridos. As naus do Tibre, ancoradas,
enrolam sobre a coberta os toldos de lona que livraram os
tripulantes durante o dia dos raios do sol, e as ligeiras
andorinhas giram alegres em derredor dos galhardos mastros.
E lá ao longe, coberta por um céu de cor plúmbea envolta
numa densa névoa, ergue-se Roma, essa cidade que enche
com o seu nome o universo, e da qual o mundo foi uma
província. Cem templos pagãos se erguem altivos no seu
seio: o sol os banha a todos com os seus derradeiros raios. A
paz, a moleza enervou o braço dos seus soldados. Vênus
adormeceu o valor dos seus heróis.
A via Ápia, esse bazar do amor e da galanteria, esse
ponto de reunião onde o soldado se converte em sibarita,

256
onde o epigrama substitui a espada, e o perfume a couraça;
esse passeio favorito da elegante sociedade de Roma, onde
fervilha a juventude, superficial, escrava da moda no tempo
de Augusto, é onde vamos deter-nos um momento. Se o
cendor Ápio Cláudio Crasso se houvesse levantado do
sepulcro no tempo de Augusto, indubitavelmente teria
reconhecido aquele caminho que ele traçara quatrocentos
anos antes.
Já não era por onde chegavam à Europa as
preciosidades da Ásia e África; era antes um elegante
arrabalde de Roma. As casas de campo tinham-se convertido
em esplêndidos palácios; os túmulos em elegantes e colossais
mausoléus. O silêncio da morte, a majestosa frialdade das
urnas funerárias, importavam mui pouco à elegante e viciada
juventude de Roma.
Cícero havia dito: “Desde que os homens não são tão
singelos, os oráculos emudeceram?
Roma, pois, começava a rir-se até dos seus deuses.
A via Ápia tinha-se convertido no teatro das suas
aventuras amorosas. Os vivos falavam de amor sentados
sobre as cinzas dos mortos. O banco de pedra que rodeava o
sepulcro de Sipião, serviu mais duma vez de cadeira a Ovídio
para recitar à juventude a sua Ars amandi. As patrícias
juntavam-se ao pé do mausoléu de Ápio, sentando-se sobre
ricos panos de brocado de ouro. Ali esperavam os seus
amantes com o voluptuoso olhar na direção do campo de
Marte, e, agitando um leque de penas e aspirando os
perfumes de um frasco de essência, agaurdavam com a
cabeça preguiçosamente apoiada no mármore do sepulcro.
Os cavaleiros percorriam a via Ápia desde as cercanias
de Albano, até às muralhas de Roma e pouco lhes importava
que o precipitado galope dos seus ligeiros cavalos numidas

257
perturbasse o pesado sono da morte. Cupido impelia os
corações para Vênus, e o amor, quase sempre egoísta,
esquecia tudo menos o gozo, as esperanças, os voluptuosos
sonhos.
Naquele pamatório da corte de Augusto falava-se de
modas, discutiam-se as pomadas e os perfumes que suavizam
e embelecem a cútis, a largura das túnicas, o peso dos anéis,
a dimensão dos mantos e os adornos do calçado. Ali se
travavam acaloradas disputas sobre o corte dos cabelos e o
maior ou menor comprimento da barba.
Por toda parte se viam ligeiros eisium com suas caixas
de vime, carros tirados por três mulas ajaezadas com peles de
leopardo e multidão de cascavéis de prata. Por todo lado,
andavam os redos, trazidos das Gálias, com suas quatro
rodas douradas, seus coxins de púrpura e seus flutuantes
panos de seda arrastando pelo chão, onde, sentadas com a
gravidade duma estátua de pedra, iam as matronas vestidas
com sua estola branca como a neve de Arará, envoltas em
finíssimos mantos escarlates que flutuavam à mercê do vento
mostrando os roliços braços cheios de braceletes.
Ali se viam as patrícias com suas coroas de diamantes,
mostrando ao descer da carruagem os pequeninos pés nus,
perfumados com a pomada de lentisco e violeta. Os escravos
estendiam um pano das Gálias junto da carruagem, para que
a senhora não tocasse nunca o imundo pó da terra com os
pés. Então aquelas lânguidas sensitivas do Tibre, aquelas
formosas filhas do amor e da preguiça, davam alguns passos
apoiando as mãos nos nervudos ombros dos escravos, como
se lhes faltasse alento para caminharem sós e, sentando-se
num flácido almofadão, começavam a brincar com umas
bolinhas de âmbar, que tinham o duplo privilégio de
perfumar o ambiente e as mãos.

258
Mas não eram só as mulheres que caminhavam desde
modo; os homens, os descendentes daqueles bravos que
tinham conquistado o mundo, também buscavam o apoio que
sustentasse as suas cansadas forças. Não era estranho
encontrar no meio daquela alegre e resplandecente reunião o
impassível filósofo, que envolto no seu velho manto olhava
com desprezo essa vaidade da terra e o suplicante mendigo,
que se deleitava junto o repugnante cheiro de seus farrapos
com o aromático perfume das cortesãs.
Mas estes fantasmas que a ciência e a miséria faziam
passar diante dos sonolentos olhos das corrompidas cortesãs,
dissipavam-se depressa. Ao mendigo lançavam uma moeda,
ao filósofo, um sorriso de desprezo; depois, a nuvem
dissipava-se, o prazer chegava e o deus cego, fazendo-lhes
esquecer a alma, apresentava-lhes em cheio os encantos da
matéria.
Assim passava duas horas a elegante sociedade de
Roma, até que o sol, escondendo-se completamente atrás das
encostas do Ocidente, deixava o império à noite, que estendia
o seu lúgubre manto sobre os túmulos e os palácios da via
Ápia. Ai aquele lugar ficava deserto, Roma tornava a receber
em seu seio seus alegres filhos. Os prazeres não tinham
terminado.
A noite tinha também seus encantos na cidade do Tibre.
Os bufões da Grécia, as bailarinas de Cabes, os
gladiadores da África, o cômico Pilades, o mímico Bátilo, os
tigres, os leões, os elefantes, os leopardos, chegavam
diariamente à pátria de Rômulo para entreterem o ócio dos
afortunados filhos da loba.
Augusto tinha fundido sua baixela, conservando
somente um vaso, herança de seu tio Júlio César, e cento e
cinquenta milhões de sestércios se gastaram em teatros,

259
hipódromos e na via Flamínia. Augusto quis ver feliz o povo
e o sábio imperador não encontrava obstáculo para
conseguir.
Mas não entremos em Roma; detenhamo-nos um
momento na via Ápia. A lua, clara e radiante, subia serena
por um céu sem nuvens, banhando com seus raios os túmulos
e os elegantes palácios da via Ápia, pouco antes tão
concorridos. U’a mulher, ou melhor, um fantasma em forma
de mulher, caminhava em direção a Roma. Seu longo cabelo
ruivo caía-lhe sobre os ombros, flutuando à mercê do vento
da noite. Uma túnica preta presa na cintura por um cinturão
de aço era seu traje. Sua fronte era cercada por uma coroa de
folhas secas. A mão direita apoiava-se num báculo de abeto,
e na esquerda podia ver-se uma varinha de metal, em cujo
extremo figurava a uma espécie de vaso formado por cinco
cabecinhas de víboras. Ia descalça e parecia muito cansada.
Parou um momento. Aquela mulher, extremamente morena,
tinha uma formosura selvagem. Os olhos pretos como a
noite, sombrios como o remorso, agitavam-se nas órbitas
lançando olhares ameaçadores. A fronte altiva e ampla, os
lábios grossos e tingidos de um carmim vivíssimo, o nariz
perfeitamente delineado e reto, davam aquele semblante
alguma coisa de lúgubre e medonho.
Dificilmente teria podido dizer-se a idade daquela
viajeira que, com passo moderado, percorria os túmulos da
via Ápia a tal hora da noite. De vez em quando erguia os
olhos ao céu, e entreabrindo os lábios, um rugido de ira lhe
saia do peito. Mas, breve, com se um poder misterioso lhe
houvesse castigado a soberba, exalava um gemido,
inclinando a fronte para a terra e murmurando estas palavras:
- Ai dos deuses do Olimpo de Homero! Ai dos augures
da cidade do Tibre! A lagoa Estígia agita as águas, a esfinge

260
de Gizet cai do seu pedestal e afunda-se nas areias do
deserto. Ai de nós, que não podemos sentar-nos na trípode do
tempo de Delfos!.
Depois desta dolorosa lamentação exalava um suspiro
profundo, extenso, e continuava o caminho, que interrompera
entre lamentos. Assim chegou a um túmulo que se erguia
solitário na borda do caminho, e sentou-se no banco de
pedra, e apoiou a fronte no mármore do mausoléu
estremeceu ao sentir o contato da fronte da estrangeira; mas
ela, profundamente abismada na sua dolorosa meditação, não
percebeu aquele acontecimento sobrenatural. A estrangeira
continuava exalando fundos suspiros, quando uma voz, que
parecia romper do fundo do túmulo, lhe falou assim:
- Quem vem perturbar com seus gemidos o sepulcral
silêncio da morte?...
- Eu, disse a estrangeira erguendo-se.
- E quem és tu?
- Uma estrangeira que vem do centro do mundo, que
deixou atrás de si o golfo de Corinto, e que caminha em
busca da orgulhosa Roma. Venho de Delfos.
- Viste o oráculo de Apolo, visitaste o templo da
musas?
- Sim, mas quem és tu que me diriges a palavra do seio
dum túmulo?
- A lua banha com sua luz clara a lápide mortuária do
meu túmulo... lê se sabes.
A estrangeira desviou-se alguns passos do mausoléu,
onde pode ver esta inscrição, gravada no mármore:

VIAJANTE:
DETÉM O PASSO, E SAÚDA AS CINZAS
DO CENSOR

261
ÊLE TRAÇOU O CAMINHO ONDE
TE ACHAS, E FZ, O AQUEDUTO DAS
ÁGUAS ÁPIAS. ROMA AGRADECIDA
LHE LEVANTOU ESTE MAUSOLÉU.
ADEUS. – APLAUDE

- Tu és Ápio, o censor, o que escreveu a lei das Doze


Tábuas?
- Sabes se os romanos se regem ainda por elas?
- Ainda estão penduradas nos muros do Capitólio: teus
contemporâneos as gravaram em doze tábuas de ouro.
- Em que ano nos achamos da fundação de Roma?
- No ano de 752.
- Então há quatrocentos anos que descanso neste
túmulo. – Quem rege a república romana?
- Roma não tem república.
- E sofrem-no os patrícios!...
- Sim, porque o seu Imperador Otaviano Augusto é
senhor do mundo.
A voz do túmulo guardou silêncio por um breve
espaço; depois continuou deste modo:
- Quem és tu que tens o poder de agitar as minhas
cinzas, e dar voz ao meu espírito? Pertences à família dos
deuses?
- Sou a sibíla Cúmea.
- A sibíla Cúmea, a sibíla de Tarquínio abrindo os
fossos do Capitólio sobre a rocha Tarpeia, a vender os livros
sibilinos?
- Sou a mesma.
- Como gozas duma ancianidade tão dilatada? Não
cortaram as Parcas o fio da tua vida?

262
- Sim, morri: o velho Quiron conduziu minha alma pela
lagoa Estígia; visitei a caverna da morte e vi as três parcas:
Laquesis, de cujos dedos brotam milhares de fios; Cloto, que
sustenta eternamente o fuso; e Átropos, com suas incansáveis
tesouras de diamante que cortam sem cessar o fio da vida. O
meu caiu também sob o corte incansável da sua arma fatal.
- Como, pois, ouço a tua voz, se deixaste de existir?
- Ah! respondeu a sibíla exalando doloroso lamento.
Têmis ordenou a suas filhas que renovem por breves dias o
fio da minha existência; pois sou portadora da última missão
do oráculo de Delfos, do divino Apolo, que já não responde
às perguntas que lhe fazem. Os deuses pagãos estremecem e
caem derrotados dos seus pedestais, fugindo
precipitadamente para a caverna de Plutão, onde chorarão
eternamente sua impotência. O Titã do Cáucaso, o ladrão
divino, o soberbo Prometeu, rompeu cadeias de diamante e
viu morrer sobre o seu ensangüentado peito o corvo
insaciável. Júpiter, rei dos deuses e dos homens, vacila no
seu trono de marfim; o cetro cai-lhe das mãos; os raios
queimaram-lhe a fronte; a águia fecha as asas e a Formosa
Ebe chora sem consolação, a seus pés. Juno, sua esposa e
irmã a um tempo, não ouve os rogos das recém-casadas e
afasta os olhos das mães primíparas. Minerva cerrou o livro
da sabedora. Vesta viu como espanto apagar-se o fogo
sagrado. O escudo de Palas quebrou-se em três pedaços.
Vênus, filha do amor e da formosura, chora a ingratidão de
Eros, seu cupido favorito. Réa viu morrer os leões do seu
carro e cair as torres da sua coroa. A serpente de Saturno já
não morde a cauda, nem a foice está nas mãos dele. Diana
percorre os bosques atribulada, porque as suas flechas são
impotentes contra os gamos. Marte sentiu medo no coração.
A formosa cabeleira de Apolo encaneceu numa noite; sua

263
sonora lira quebrou, e as nove musas, filhas de Júpiter e
Mnemosine, choram amargamente percorrendo os montes
Piério, Hélicon e Parnaso.
- Cessa, cessa! Exclamou a voz do túmulo, fantasma
evocado do averno; espírito infernal, que vens turbar com
tuas palavras o tranquilo sono da morte. Vai-te, deixa-me
repousar em paz e não te deleites em pintar-me a ruína dos
deuses do Olimpo.
A estrangeira pôs-se em pé soltou doloroso suspiro, e,
tomando o caminho de Roma, disse:
- Dorme em paz, Ápio; mas, se a tua alma vagueia
errante pelas regiões do desconhecido em busca dum perdão
que não podem conceder-te os deuses pagãos, dirige-a para
Israel, terra prometida onde nasceu o verdadeiro Deus, o
Salvador do mundo, o Messias anunciado pelos Profetas.
- E que nome tem esse Deus?
- Jesus se chama; Redentor do mundo será.
Então ouviu-se um gemido no seio do túmulo; a lua
escondeu-se atrás do recortes duma nuvem de Ápio Cláudio
Crasso, caiu ao chão feita em pedaços; os mármores
estremeceram e a sibila Cúmea, inclinada a fronte para o
chão, apoiado o corpo no cajado que lhe servia de arrimo,
encaminhou-se para Roma, pronunciando estas palavras:
- Ai dos deuses do Olimpo de Homero! Ai dos augures
da cidade do Tibre! A lagoa Estígia agita suas malditas
águas; a esfinge de Gizet cai do seu pedestal e afunda-se nas
areias do deserto. Ai de nós, que não poderemos sentir-nos
na trípode do templo de Delfos!... Porque o Deus verdadeiro
nasceu em Israel; porque o Redentor dos homens desceu à
terra para derrotar os deuses pagãos.

264
CAPÍTULO II

O ORÁCULO DE DELFOS

Enquanto a sibila Cúmea se encaminhava para Roma


pela via Ápia, dois cavaleiros percorriam a larga rua de Juno
em direção ao monte Palatino. A julgar pelas manchas de
barro que lhes salpicavam os flutuantes mantos e as ricas
peles de leopardo dos cavalos, a chuva devia tê-los
incomodado pelo caminho.
Um dos cavaleiros era moço, teria vinte e quatro anos,
de estatura mediana, e parecia distinto, pelo ar marcial e
desenvolto com que montava. Era de pálido e gracioso rosto,
ainda que no conjunto se lhe notava certa rigidez nas feições,
lhe dava um ar sombrio e taciturno. A claridade da lua pôde
ver-se que o mancebo levava uma cobra do diâmetro de duas
polegadas enroscada no pescoço, cuja chata cabeça
acariciava de vez em quando com a mão ou com o extremo
inferior da barba, perfeitamente feita.
Chamava-se Tibério e era sobrinho de Augusto e estava
destinado a ser imperador de Roma. O indivíduo que
cavalgava a seu lado parecia um atleta e chamava-se Macron;
era o escravo favorito do futuro tirano, do que mais tarde,
baldão da humanidade, havia de matar u’a mãe porque
chorava a morte do filho que lhe mandara degolar e havia de
arrancar os cabelos e soltar gritos de desespero porque
Cartúcio se matou no cárcere antes que lhe chegasse a nova
da morte do tirano.
Os dois cavaleiros chegaram ao pórtico do palácio de
Augusto, e apearam. Os soldados do César rodearam os
forasteiros, estranhando-lhes a franqueza com que se
introduziam no palácio do seu senhor a tal hora da noite.

265
- Que? Já me não conheceis, lobos caducos! Disse
Tibério imperiosamente. Tão depressa se apagou da vossa
memória a fisionomia do sobrinho do vosso senhor? Nesse
caso, aconselho-vos a que depositeis um coração de pomba
aos pés de Esculápio para que vós refresque a memória e vos
abra os olhos.
Dizendo isto atirou as rédeas do cavalo ao escravo
Macron.
- Saúde a Tibério, nosso general! exclamaram alguns
soldados inclinando-se.
- Graças sejam dadas a Júpiter imortal, lhes respondeu
Tibério.
E, tirando a cobra que se lhe enroscava no pescoço, a
entregou ao escravo dizendo, depois de acariciá-la.
- Macron, toma a minha favorita guarda-ª Meu ilustre
tio sente, sem razão, repugnância para com estes répteis.
Todos os grandes homens têm coisas pequenas. Júlio César,
nosso parene escondia-se nos subterrâneos do palácio quando
as nuvens troavam sobre Roma. Augusto, meu tio,
estremeceu só à vista duma cobra.
Macron pôs com impassibilidade a cobra no peito, e,
enquanto Tibério subia as largas escadas do palácio,
encaminhou-se para as cavalariças, seguido dos corcéis.
Quando Tibério chegou à antecâmara do imperador,
disse laconicamente a um dos litores que viu ao seu
encontro:
- Dize a César que Tibério está aqui.
- Meu querido tio tu quiseste que abandonasse a minha
rocha solitária para me estabelecer no teu palácio de Roma, e
os teus desejos são ordens para Tibério. Aqui me tens, falou
ele.

266
- Os anos começam a dobrar-me o corpo para a terra,
querido sobrinho, lhe disse Augusto. Preciso dum braço
jovem e robusto que dirija o império depois da minha morte,
e quero colocar-te na frente a coroa e nos ombros o meu
manto imperial.
- Eu sou o teu primeiro escravo, senhor, lhe disse;
manda; mas preferiria a solidão da minha rocha de Rodes ao
bulício de Roma.
- Chamei-te, pois, continuou Augusto desatendendo as
palavras de Tibério, porque desejo instruir-se nos deveres de
um rei clemente e justiceiro. A paz, meu filho, deve ser o
primeiro cuidado dos reis.
Tibério tornou a inclinar-se.
Estiveram falando por espaço duma hora. Augusto
mandara que o sobrinho se estabelecesse no seu próprio
palácio numa câmara contígua à sua. Quando o imperador
lhe disse que podia retirar-se, pois que no dia seguinte
continuariam a conversação, Tibério falou:
- Senhor, antes de nos separarmos quisera interceder
por um desgraçado que geme num cárcere, na praia do Ponto
Euxino, recordando na sua solidão os encantos de Roma, os
gozos da via Ápia.
Augusto franziu o sobrolho: um olhar de cólera lhe
passou como raio pelos olhos, sempre bondosos. Sua rugosa
mão travou do braço de seu sobrinho, apertando-o com uma
força incrível para os seus anos; um tremor lhe agitou o
corpo, e depois, com uma pausa cruel disse, olhando com
severidade a Tibério.
- Ovídio Nason, o poeta cínico, o corruptor da
juventude romana, ainda que dotado por Apolo dum númem
fecundo e criador, morrerá encerrado nos cárceres de

267
Sarmácia; não tornes a interceder em seu favor. Roma e os
seus prazeres não existem para ele.
Augusto despediu Tibério com um gesto. O imperador
ficou um momento taciturno, com os braços curvados sobre
o peito e os olhos no chão, como se o nome de Ovídio, o
cantor inspirado da Ars amatória, de Medea e do poema A
Batalha de Acio, lhe houvesse evocado na mente dolorosas
recordações.
Desse atitude veio tirá-lo um litor anunciando-lhe que
uma mulher estranha e coberta de pó, que dizia vinda de
Delfos, mostrava grande empenho em falar-lhe, apesar do
adiantado da hora.
- Que quer de mim essa estrangeira? perguntou o César.
- Diz que vem falar-lhe da parte do oráculo de Delfos.
Augusto estremeceu.
- Disse-te o nome?
- Sim, mas todos nos rimos; deve ser uma louca; diz
que se chama a sibila Cúmea.
- Abri-lhe as portas, exclamou Augusto estremecendo;
deixai passar a enviada do oráculo de Delfos.
Cúmea, apoiada no cajado, entrou na câmara do
imperador. Oito litores com suas varas de sarmento na mão
ficaram junto da larga cortina da porta, como esperando a
ordem do seu senhor. A sibila, com passo grave, fatídico,
misterioso, chegou a colocar-se até três côvados de Augusto.
- Tu já não és, Augusto, lhe disse Cúmea, com uma voz
grave que parecia sair do túmulo, o rei mais poderoso e
grande da terra, porque nasceu o teu Senhor em Belém de
Judá. Eis aqui a última revelação de Apolo, antes de
emudecer para sempre, antes de descer ao inferno para uma
eternidade.

268
A sibila partiu a varinha de aço que levava na mão e as
víboras de metal que lhe adornavam o extremo agitaram-se;
e, tirando um papiro enrolado, pô-lo nas mãos de Augusto. O
César, sobressaltado, agitado desenrolou o papiro e pôs-se a
ler com voz insegura estes três versos, últimas palavras do
oráculo de Delfos:

Me puer hebrae, divos Deus ipse gubernans,


Credere sedem jubet, tristemque reddire sub óreum. Aris
ergo lime tacitis abscedite nostris.

Apenas Augusto, pronunciara a última palavra dos três


versos do oráculo, quando Cúmea, estendendo o braço para o
Oriente exclamou:
- De Israel brota a luz que há de dissipar as trevas. Ai
dos cegos idólatras do Olimpo! Ai dos deuses pagãos! Jesus
mandou-os emudecer, e caem ante o seu glorioso nome dos
soberbos pedestais para baixarem ao inferno!
Augusto apertava o papiro entre os dedos, tremendo
ante o fatídico eco da sibila. Grossas gotas de suor lhe caíam
da fronte. Cúmea continuou:
- Já cumpri a última missão do oráculo; Átropos, corta
o fio da minha existência!...
A sibila soltou um gemido doloroso, extenso. O cajado
desprendeu-se-lhe das mãos; os olhos fecharam-se-lhe, e caiu
em cheio sobre a alfombra.
Augusto, espantado, saiu da estância apertando os
fatídicos versos com mão trêmula. Os litores abalançaram-se
a levantar a sibila; mas, ao porém as mãos sobre o corpo de
Cúmea, só acharam um esqueleto envolto no escuro roupão
que a cobria. O pânico apoderou-se dos servidores do César,
e fugiram daquela estância. Entretanto Augusto chegava ao

269
camarim de Herodes; e o Idumeu, vendo-o entrar com o
semblante descomposto, sentou-se os almofadões do leito,
sobressaltado.
- Dize-me, lhe disse o imperador sem lhe dar tempo,
sabes alguma coisa desse Rei poderoso, desse novo Deus de
deuses que os oráculos dizem ter nascido em Belém de Judá?
Herodes, sossegando da surpresa que aquela visita lhe
causava, explicou a Augusto a chegada dos caldeus a
Jerusalém, o rumor do povo hebreu, e as semanas de Daniel
comentadas pelos rabinos. O César ficou pensativo, e disse:
- Tu, parte amanhã; procura-me esse menino, esse Jesus
anunciado pelos profetas, e manda-o a Roma escoltado como
um Rei poderoso; quero que entre pela via triunfal no meu
carro de ouro, quero tributar-lhe as honras do triunfo.
Herodes prometeu buscar aquele Menino e cumprir as
ordens do César. Quando Augusto, pouco depois, se deixava
cair no leito, agitado e febricitante, com o papiro que
encerrava os três versos do oráculo de Delfos na mão, um
litor, entrou para dizer-lhe que a sibila Cúmea tinha morrido.
- Pois bem, respondeu Augusto, enterrai o cadáver nos
fossos da muralha, e não torneis a interromper-me; quero
está só.
- Senhor, tornou o litor com uma entoação que
mostrava o medo de que se achava possuído, não é um
cadáver, é um esqueleto.
- Pois enterrai o esqueleto!
Os litores foram executar as ordens do César: mas o
esqueleto da sibila Cúmea tinha desaparecido.

CAPÍTULO III

UM CORAÇÃO DE HIENA

270
Como acontece sempre, à noite sucedeu a luz da aurora,
e Herodes abandonou a casa de Augusto para empreender a
viagem para Jerusalém seguido dos escravos, ainda
sobressaltado com as últimas palavras do imperador. O
idumeu, astuto e precavido, havia solicitado do imperador,
alegando a sua pouca saúde que o obrigava a permanecer
sentado a maior parte do dia, que a viagem se fizesse por
mar, embarcando no Tibre. O César acedeu, e ordenou que as
galeras se achassem no embarcadeiro de Roma.
A acusação de seus filhos Aristóbulos e Alexandre, a
conjuração de Antípatro e Paulo para o assassinar, tinham-
lhe feito conceber um desses planos ferozes que com tanta
facilidade se arraigavam no seu perverso coração.
“Meus filhos, tinha dito consigo, conhecem-me, e
durante a viagem por terra tentarão escapar-se, o que não é
muito difícil; mas por mar é outra coisa, pois ninguém me
impede que os amarre à proa da galera, de onde não poderão
mover-se contra minha vontade”.
Herodes mandou conduzir seus filhos até às margens do
Tibre numa liteira custodiada pelo seu fiel escravo e, mandou
embarcá-los na mesma galera que devia transportá-lo. As
galeras esperavam a comitiva para celebrar as cerimônias do
costume antes da partida. As embarcações estavam ataviadas
como para uma festa. Multidão de grinaldas de flores e
vistosas bandeiras pendiam do mastro grande, da proa e da
popa. As três ordens de remeiros, sentados nos bancos com
as pás levantadas três côvados sobre a amarelada superfície
do rio, esperavam o sinal do comitre para empreenderem a
partida. Sobre o castelo da popa achava-se o comandante, o
piloto e o galinheiro. Este tinha na mão uma gaiola em que se

271
viam alguns pintos, animais indispensáveis para se
celebrarem os auspícios...
Herodes subiu ao castelo da popa, e principiou a
cerimônia, sem a qual não podia uma embarcação abandonar
o porto. O comitre descarregou uma forte pancada com o
grosso bordão que tinha na mão sobre uma tábua. Todos em
pé elevaram sua oração aos deuses imortais. Depois o
galinheiro deitou dois punhados de trigo junto da gaiola e
abriu as portas, deixando em liberdade os inofensivos
animais, que se atiraram com avidez ao cobiçado grão. Então
um ancião venerável de branca barba e de estranho e vistoso
traje se adiantou até colocar-se junto da gaiola. Estava
vestido com uma túnica listada de púrpura escarlate, presa
por colchetes de ouro. Um barrete cônico de fundo branco
com os signos cabalísticos pretos lhe cobria a venerável
cabeça. A sua destra empunhava uma varinha curva de metal.
Este ancião era uma augure, espécie de sacerdotes
encarregados de profetizar o futuro, por quem os romanos
tinham uma veneração sem limites.
Depois duma pequena pausa, durante a qual examinou
com atenção como comiam os pintos, o ancião levantou os
olhos ao céu com fanática e supersticiosa atitude e, tocando
um dos pintos com o extremo da vara, exclamou alto para
que o ouvissem os tripulantes das três galeras que se
achavam ao redor:
Os pintos comem com avidez... o grão cai-lhe dos bicos
espalhando-se pelo chão... Bom agouro!... Bom agouro!
Um grito de prazer ressoou nas galeras. Então
sacrificaram algumas vítimas, por felicidade da viagem. Se
alguém houvesse espirrado durante a cerimônia à esquerda
do comandante, ou alguma andorinha houvesse passado,

272
revoando por cima da embarcação, suspender-se-ia viagem.
Tal era, na época, o fanatismo dos romanos.
O augure, vendo que a cerimônia havia terminado sem
interrupção e vendo além disso, o céu limpo e claro, deu
permissão ao chefe para que as galeras saíssem do porto.
Então o augure foi transportado a margem numa espécie de
canoa, e durante a curta passagem acompanharam-no as
beções e os brados dos tripulantes. Depois o comandante deu
ordem de partir. O comitê deixou cair pela segunda vez o
bastão sobre a tábua, e as pás dos remeiros, como dirigidas
por uma só mão, caíram a um tempo nas águas do rio.
As galeras, empuxadas pela corrente e pelos remos,
começaram a deslizar sobre as amareladas águas do Tibre em
direção ao mar Tirreno. Apenas desembocavam no mar,
armaram-se as velas, porque o vento era favorável.
Herodes estava deitado em moles almofadões dum
toldo de tela, que se colocara para livrar o ilustre passageiro
dos raios do ardente sol de junho. Os dois filhos, vigiados
por Cingo e seus companheiros, achavam-se na proa da
mesma galera. Ainda que o tribunal tivesse pronunciado a
sentença em favor do pai, concedendo-lhe todos os bárbaros
privilégios da lei IV. Herodes, fingindo seguir os conselhos
de Augusto, mostrara-se com seus filhos, durante os últimos
dias de permanência em Roma, de uma amabilidade tal que
César julgou terminadas as questões enfadonhas de família.
Livre da conjuração de Paulo, graças ao incansável zelo
de Cingo e navegando para a costa, segurou da gente que o
escoltava, apenas a quilha da sua galera rasgou as águas do
Mediterrâneo, mandou os escravos para maior segurança
porém uma cadeia ao pescoço de seus filhos.
O comandante da frota e o centurião Antônio olharam
com repugnância aquele ato de barbaridade paternal, mas não

273
se atreveram a opor-se. Aristóbulo e Alexandre conheceram
desde aquele momento o desastroso fim que os guardava;
mas, jovens e valentes não permitiram a seu pai ver-lhes nos
lábios senão um sorriso de desprezo.
A frota chegou sem tropeço, depois de alguns dias de
viagem, à costa de Fenícia. Herodes viu do castelo da popa
da sua galera as altas cordilheiras do Líbano, e mandou que o
piloto atracasse no porto de Berito, que se via a duas milhas
do mar, nas praias do Mediterrâneo ocidental. O piloto
dirigiu a proa das embarcações para a costa e, um hora
depois os remadores, abandonando os bancos, atracaram os
navios nas estacas e argolas do embarcadouro de Berito.
Herodes falou ao comandante da flotilha que queria
seguir a viagem em liteira e, depois de distribuir uma quantia
considerável pelos tripulantes, desembarcou na praia,
seguido de Antônio com a sua centúria. Então a escolta do
rei tributário e os habitantes de Berito, que tinham acudido
atraídos pela curiosidade, presenciaram uma cena terrível,
cruel e inumana. Herodes achava-se deitado molemente nos
almofadões da sua liteira falando com o escravo Cingo,
enquanto desembarcavam os cavalos da centúria que deviam
escoltá-los até Jerusalém.
- Cumpre as minhas ordens, Cingo, e aviemo-nos, disse
Herodes ao escravo; tenho desejo de entrar em Jerusalém e
ver meu filho Antípatro.
Cingo afastou-se da liteira e foi reunir-se com os
escravos, que cuidavam das bagagens e dos presos,
esperando as ordens do amo. Sem que ninguém
compreendesse o motivo, seis dos escravos, com maravilhosa
rapidez, cravaram na móvel areia uns cavaletes de madeira
em forma de forcas, e, antes que os espectadores pudessem
entender algo, aqueles malvados, cegos instrumentos do

274
feroz escalonita, lançaram um laço corrediço aos pescoços
dos infelizes Alexandre e Aristóbulo e arrastando-os com
incrível ferocidade, os enforcaram à vista de todos, sem que
ninguém se atrevesse a evitar aquele ato de barbaridade.
Aqueles desgraçados príncipes lançaram horríveis
maldições durante a prolongada agonia da sua morte. Mas
seu pai, em cujo coração não existia nenhum sentimento belo
nem humanitário, presenciou a execução com indiferença. O
povo e os soldados romanos soltaram um grito de horror.
Então Herodes, estendendo o corpo o mais que pôde pela
portinhola da liteira, exclamou com voz forte e vibrante:
- Romanos! Fenícios! Ouvi: esta é a justiça que o rei de
Jerusalém manda fazer nas pessoas de seus rebeldes filhos!
Para Jericó!
Isto disse Herodes; suas palavras gelaram de espanto os
ingênuos habitantes de Berito e os rudes soldados do
Capitólio. Depois correu as cortinas da liteira e deixou-se
cair nos almofadões. A comitiva pôs-se em movimento pela
via Romana que atravessando a Galiléia e a Samaria,
conduzia à cidade favorita do Idumeu.
Os dois cadáveres, pouco depois balanceavam-se em
silêncio sobre as areias da praia. Os corvos do Líbano
farejaram a carne morta e, abandonando suas côncavas
rochas, começaram a revoar, soltando estridente grasnidos
sobre as forcas.
O pai brindava-os para o festim com os cadáveres de
seus filhos; mas os habitantes de Berito frustraram-lhes as
carnívoras esperanças, dando sepultura ignorada e humilde
àqueles dois príncipes desventurados.

275
Herodes chegou à sua cidade favorita. Durante o
caminho Antônio e sua centúria, aterrados com a cruel
vingança daquele pai bárbaro, seguiram tristes a liteira do
seu novo senhor como se fosse o cadáver dum general
querido, morto no campo da batalha. A ordem que tinham
era de obedecer Herodes. Aqueles soldados rudes e curtidos
na guerra obedeciam sem replicar, mas com repugnância.
Quando o Idumeu chegou a Jericó, mandou Verutídio
com a sua legião sobre Jerusalém, a cidade santa.
O general romano devia apoderar-se de Antípatro e
transportá-lo a Jericó carregado de cadeiras; mas o príncipe
rebelde, sabendo que seu pai lhe frustrara os planos, antes
que os soldados romanos chegassem às muralhas de
Jerusalém, julgou-se perdido e saiu da cidade, disfarçado,
durante a noite, e, graças à velocidade do cavalo, conseguiu
salvar-se do perigo que o ameaçava. Alguns cúmplices de
Antípatro foram levados para os cárceres da torre Antônia,
carregados de ferro.
Quando o feroz Herodes soube que seu filho se evadira,
teve um acesso de ira terrível. Aquele monstro, esquecendo-
se da dignidade real, rasgou os vestidos e, atacado de
terríveis dores de estômago, que sofria, revolveu-se pelo
chão, lançando espuma e blasfêmias. Mais que um monarca,
parecia um porco, mais que um homem, assemelhava-se a
uma besta imunda, devorada pelas mordeduras dos insetos
venenosos. Quando o escalonita era atacado daqueles acessos
de furor, só duas pessoas se atreviam a falar-lhe: seu neto
Aquiab e o seu escravo Cingo; porque era perigoso tratá-lo
naqueles momentos.
- Aquiab! Aquiab! Gritou-lhe o feroz Idumeu, cravando
os espantados e vidrentos olhos no menino, que tremia ao seu
lado. Se algum dia chegares a pôr uma coroa na cabeça,

276
lembra-te da história do Amúlio e Remo e Rômulo... Mata,
meu filho, mata!... Porque os usurpadores sempre usurpam
com o poder a vida aos reis.
O menino, que era o enfermeiro do avô, crendo que
aqueles gritos eram filhos das agudas dores que sentia,
trêmulo e aturdido, pegou num copo, e, esvaziando nele o
conteúdo duma garrafa, foi oferecê-lo ao avô, dizendo:
- Bebe; isto te sossegará.
- Ah! exclamou o enfermo; tu também queres
envenenar-me!
Esta desconfiança fez corar o jovem. Duas lágrimas se
lhe desprenderam dos olhos, e como resposta aplicou aos
lábios o copo, bebendo metade do conteúdo.
- Bebe, avozinho, tornou a dizer-lhe.
Herodes, envergonhado, bebeu o resto do líquido, e
depois disse, procurando ameigar a voz.
- Vai-te, Aquiab, vai-te! Quero estar só com Cingo.
O menino saiu, depois de beijar a testa do velho.
Então Herodes sentou-se, e, cravando os fosfóricos
olhos em Cingo, disse-lhe, estendendo o braço para a porta:
- A Belém, Cingo! A Belém, e que não fique nem um
belemitas de dois anos para baixo em todos os seus
contornos! Sou o rei de Judá e quero que por minha morte a
coroa passe a meus filhos e aos filhos de meus filhos!
Cingo saiu. O Idumeu, quando se viu só, murmurou:
- Augusto quer que lhe mande Jesus como um rei para
lhe tributar as honras do triunfo... quererá dar-lhe a minha
coroa?
E começou a afagar a coroa que sempre tinha ao lado e
a sorrir-se de modo feroz dizendo:
- Não irá a Roma, não irá a Roma: os mortos nem
reinam, nem falam, nem se vingam.

277
CAPÍTULO IV

CÂNTICOS DE ALEGRIA

Cantal, aves do Oriente, das altas copas das árvores que


vos servem de ninho. Estendeu as asas de variadas cores, que
já o zéfiro matinal roça com seus delicados beijos as vossas
macias plumas. Rosas de Jericó, aromáticas ervas do
Carmelo, delicadas açucenas de Zabulon, violetas do Jordão,
estendei sobre a terra o perfume dos vossos cálices, porque já
a delicada aurora derrama sobre vós o cristalino rocio que
vos sustenta e aformoseia. Perfumai o ambiente, alindai a
terra, porque o céu puro e radiante se sorri sobre vós, a brisa
murmura melancólica entre as verdes ramas das palmeiras de
Jerusalém.
Nunca dia tão belo, tão risonho, estendeu sobre a fértil
Palestina os seus radiantes esplendores, a sua poética e
formosa melodia. Os homens abandonam suas casas com o
primeiro raio de sol que vêm saudá-los, e encaminham-se
alegres para os seus campos com o espírito tranquilo e o
semblante risonho. Porque um céu sem nuvem espanta os
pesares; porque o sol quando nasce sem manchas que o
obscurecem, sem nuvens que o ocultem, derrama sobre os
filhos do trabalho um bem estar, uma alegria inexplicável.
A poética harmonia da manhã que nasce, ao inimitável
canto das aves que a saúdam, ao inebriante aroma das flores
que a perfumam, ao delicioso sopro da brisa que geme
acariciando as copas das árvores, às nuvens de púrpura e
prata que precedem o sol, une-se para mais embelezar os
encantos do dia, o alegre canto das mulheres de Belém e
Ramá, que ao som de pastoris instrumentos se dirigem

278
prazenteiras e ataviadas par a cidade de Davi, como se
fossem à festa dos abemos da cidade santa.
Onde se encaminham com os seus mais luxuosos
trajes?... Porque levam todas um tenro infante nos braços que
sorri como a luz da aurora às doces carícias e aos alegres
cantares de suas mães? Que novidade ocorre em Belém, que
por toda parte se dirigem para o seu empinado cume as
mulheres de Judá, cheias de prazer?
Um ancião envolto no largo e raiado alquicer dos
habitantes da praia do Mar Vermelho seguia o caminho que
conduz à infecunda Iduméia; vê as mulheres que caminham
para ele em sentido oposto. Os cantos, os gritos de alegria, os
risonhos semblantes chamam-lhe a atenção e detêm-lhe o
passo. Apoiado no seu grosso bordão de cedro, para na
margem do caminho e espera-as.
- Mulheres de Judá, lhes diz com trêmulo acento,onde
correis em alegre companhia tão de manhã, com vossos
tenros primogênitos nos braços?
- Ancião, responde a mais faladora de todas, quem
ignora em Belém e seus arredores o regozijo das mães?
- Eu sou estrangeiro... Minha tenda levanta-se na
Arábia Pétrea e hoje passo pelas tribos de Israel como as
aves de emigração em busca do ninho.
- Dirige os teus passos para o templo de Sion; vem
conosco e te faremos participante da nossa imensa alegria.
- Não posso; meus filhos e minha esposa esperam-me
nas praias do mar Vermelho. Cada sol que morre arranca
uma lágrima a seus olhos... aquela lágrima é uma recordação
tributada à minha memória... Mas contai-me o motivo do
vosso contentamento, para que eu nos serões do inverno o
refira a meus filhos quando ao calor da fogueira lhes narre as
aventuras das minhas viagens.

279
- Não podemos deter-nos; em Belém nos esperam antes
que termine a vigília matutina: disso depende o futuro de
nossos filhos.
- Então não vos detenho... a paz seja convosco.
- Contigo vá, honrado estrangeiro.
O ancião encaminhou-se para os montes da Judéia. As
mulheres alegres e jubilosas começaram a subir as faldas do
monte, em cujo topo descansa a pátria imortal de Davi, o
santo berço de Jesus.
Retrocedamos algumas horas para sabermos a origem
da alegria e contentamento das belemitas.
Ao cair da tarde do dia antecedente, Cingo, o feroz
escravo de Herodes, chegou com um forte destacamento à
cidade de Belém. O bélico som da trombeta anunciou aos
pacíficos belemitas que ia publicar-se algum edito do César
ou do seu rei Herodes. Não se enganavam: um arauto, com
clara e vibrante voz, disse estas palavras que se foram
repetindo como um eco por todos os extremos da cidade:
“Eu, Herodes, rei da Judéia, governador geral das doze
tribos de Israel, pelo presente edito, mando e ordeno: que
todas as mães de Belém e suas cercanias que tiveram filhos
varões de idade de dois anos para baixo, que se apresentem
com seus filhos nos braços no átrio da piscina grande de
Belém, amanhã, durante a vigília matutina para perceberem o
prêmio que me apraz conceder-lhes pelo precioso dom de
primogenitura que o Deus de Sion lhes concede para honra
de seus nomes e aumento e glória da sua raça. A mãe que,
desobedecendo este edito, faltar à hora e ao lugar citado, será
castigada com a separação de seu filho. Cumpra-se minha
real vontade. Eu, Herodes”.
Estas palavras percorreram a cidade de Davi e suas
cercanias, enchendo de prazer os corações das mães, que

280
sonharam durante a noite no brilhante futuro que o seu rei
destinava a seus filhos. Como faltar ao chamamento, quando
a pontualidade era premiada e a falta castigada com
separação dos filhos? Mas aí, mães infelizes, que,
desconhecendo a inaudita barbaridade do rei, corriam
jubilosas a pôr seus cândidos cordeiros sob o machado dos
verdugos!
O lugar destinado para a horrível matança era um largo
pátio, rodeado de muros. Cingo, o encarregado de levar a
efeito as ordens secretas do escalonita, rodeado dos seus
terríveis companheiros, esperava o momento da matança. As
inocentes mães começaram a entrar no sangrento matadouro.
Os meninos sorriam-se nos seus braços, e elas saudavam
com amabilidade os verdugos, mostrando-lhes prazenteiras o
adorado fruto das suas entranhas; e assim foram chegando
uma após outra, até que se encheu o loca. Então Cingo
estendeu um olhar de sangue sobre aquele quadro de
maternal amor, que se agitava em torno de si; julgou chegado
o momento de executar as ordens de seu senhor. U’a mãe se
aproximou para perguntar-lhe quando se lhe distribuiria o
galardão prometido. Aquela infeliz levava dois meninos; o
menor dormia; o maior já de dois anos, sorria apoiado no seu
braço.
- Quando se distribuem os prêmios, senhor? Perguntou
a mãe inocente. Tenho pressa; os serviços de casa me
aguardam.
- Agora mesmo ficarás livre e senhora da tua vontade,
respondeu Cingo; e, estendendo o nervudo braço, antes que a
mãe infeliz desse por isso, apoderou-se do tenro pimpolho, e
arrancando-o do seu braço, arremessou de encontro ao
ângulo do muro.

281
A mãe abriu os olhos com espanto e, soltando um grito
horrível, aterrador, caiu sem sentidos. Aquele grito foi o sinal
da matança.
Onde achar cores bastante poderosas para a bosquejar
o quadro dos mártires belemitas, com a verdade horrível e
sangrenta, quando só com trazer à memória tão
incompreensível barbaridade, exala um grito de espanto o
coração e uma lágrima de dor brota nos olhos? Sto.
Agostinho, com o seu fecundo e poderoso gênio, sua santa e
elevada inspiração, com os inimitáveis rasgos da sua imortal
pena, descreveu o quadro da degolação com uma verdade,
com um sentimento a que é mui difícil aproximar-se.
Ouçamos, pois, por um momento o africano convertido,
o poderoso autor da Confissão e da Cidade de Deus. A sua
narração, é clara como a luz do dia, sintética como a dor,
inspirada como as lágrimas que brotam das almas doloridas.
Diz assim:

CAPÍTULO V

LAMENTOS DE DOR

Grande martírio! Cruel espetáculo! Desembainha-se o


alfanje sem haver causa que o desembainhe. Ensanguenta-se
furiosa a inveja sem que ninguém lhe oponha resistência, e
recebe a ternura dos golpes que não tinha podido provocar. A
amarga queixa das mães superava o triste gemido dos
degolados cordeirinhos. Arrancava os cabelos a infeliz mãe
quando os ferozes verdugos lhe arrebatavam dos amorosos
braços a metade da alma.

282
U’a mãe vendo desconsolada que, despadaçando-lhe a
prenda do seu coração, a deixavam com vida, dizia ao
verdugo:
- “Para que me deixas? Se há culpa, essa é minha.
Minha, não ouves? Se não há delito e é só pelo prazer de
matares, então junta o meu sangue ao de meu filho, e livra-
me deste modo da dor que sinto.
“Outra, aflita mãe dizia: A um buscais, e amuitas
destruir; e a esse que buscais nunca encontrareis. Outra
infeliz, apertando contra o dolorido coração o corpo
ensangüentado do filho, exclamava levantando os chorosos
olhos para o céu:
- “Vem, já, Salvador do mundo! Por mais que te
busquem a ninguém, temes: veja-te o tirano e não tire a vida
a nossos queridos filhos”.
Até aqui Sto. Agostinho.
O sangue inocente tingia a terra. A dor de algumas
mães era tão intensa, tão terrível, que se sentavam no chão
com os despedaçados corpos dos filhos nos braços e
começavam a embalá-los e a cantar-lhes para os
adormecerem. Aquelas desgraçadas tinha os olhos sem
lágrimas, o sorriso nos lábios, e cantavam, porque tinham
perdido a razão. Outras, mais varonis e menos resignadas
com a sua sorte, ao verem maltratados os queridos pedaços
das suas entranhas, arrojavam-se contra os verdugos como as
panteras feridas, e caiam depois duma luta desesperada,
afogadas no seu sangue, sobre o cadáver dos filhos.
Mais de sessenta belemitas sacrificadas ao furor de
Herodes, jaziam degolados no largo do pátio da piscina. O
quadro era horrível, espantoso, sem exemplo. A história
recorda-o como assombro.

283
A cruel matança tinha terminado, e os verdugos
dispunham-se a abandonar aquele imenso bazar de sangue e
dor, quando viram uma mulher que se dirigia para aquele
local com um menino nos braços. Aquela infeliz, ignorante
do que a esperava, ia-se aproximando-se para o matadouro
dos inocentes entoando alegres cantares. De vez em quando
elevava à altura da fronte os delicados pezinhos do infante,
apoiando-os sobre o rosto e beijava-os. O menino ria-se das
ternuras que ela lhe manifestava. Cingo saiu ao encontro
daquela mulher e, sem despregar os lábios estendeu a calosa
mão e agarrou o menino por uma perna. A inocente
criaturinha ficou pendente da mão do verdugo com a cabeça
para baixo. A mão soltou um grito de surpresa; o menino
rompeu em amargo choro.
- Ai de ti, miserável escravo, exclamou a mulher com
as feições horrivelmente contraídas, se tocas num só cabelo
desse menino!
- Nada temas, lhe respondeu Cingo sorrindo-se dum
modo feroz; quanto a ele, não me denunciará aos juízes de
Jerusalém.
- Treme, infame, tornou a mulher, a quem dois satélite
de Cingo tinham segurado: esse menino é o herdeiro da
coroa de Judá, é filho de rei, e está destinado a ocupar o
trono.
Ao ouvir estas palavras, no escuro semblante de Cingo,
brilhou uma alegria feroz.
- Ah! com que, este menino é o Rei de Judá? Pois este
mesmo procuramos; o sangue derramado podia muito bem
ter-se evitado; e, fazendo girar o menino como um malinete
sobre a cabeça, o despediu pelo ar com toda a sua farsa.
Seus companheiros soltaram uma gargalhada horrível, e
apararam nas mãos aquele corpo que o chefe lhes enviara

284
pelo ar. Um deles separou com a espada a tenra cabeça do
inocente corpo, e apresentou-a ao chefe, dobrando um joelho
o chão dizendo com incalculável caninos:
- Cingo, eu te apresento a cabeça dum rei: não te
esqueças de me dar o galardão.
A infeliz mulher não pôde resistir ao sangrento
espetáculo, e caiu de costas, sem sentidos.
Cingo atou a cabeça do menino numa ponta do manto,
e saiu. As mães ficaram sós naquele lugar de horror e sangue.
Espantadas, chorosas, sem compreenderem o que lhe
acontecia, permaneceram horas e horas junto dos restos
despedaçados dos filhos, como se mão poderosa as prendesse
a pesar seu naquele lugar.
Chegou a noite, e a lua clara e formosa derramou a
chuva de prata que lhe brota da fronte sobre aquele campo de
sangue. Dir-se-ia que o astro luminoso das trevas por
vontade suprema brilhava com mais claridade que nunca,
para que as almas dos belemitas chegassem ao céu guiados
pelos seus tíbios e radiantes resplendores.
Os pais regressaram à casa, terminadas as quotidianas
fadigas do campo. A sua dor, o seu assombro foi grande ao
saberem a horrível tragédia acontecida durante a sua
ausência. Mas ai! Aqueles infelizes e indefesos lavradores,
que outra coisa podiam opor ao furor de Herodes e ao poder
dos romanos, que as suas lágrimas? Choraram.... sim,
lágrimas de fogo; lamentos de dor inexplicável se ouviram
em Belém e suas cercanias, que chegaram até aos sepulcros
dos mortos; e estes uniram as sus lágrimas e lamentos com os
que lhes tinham sobrevivido para presenciar a inexplicável
cena da degolação dos inocentes.
Belém, pátria de Davi, berço de Deus, foi a mãe dos
primeiros mártires do Cristianismo.

285
O sorriso daqueles anjos, imolados pelo custeio dum rei
sanguinário, cai ainda benéfico e fecundo como o rocio
matinal sobre as flores, adoçando as amarguras das almas
cristãs que curvam a fronte ante o lenho santo que semeou a
fecunda semente da liberdade do homem, da caridade e da
mansidão.

CAPÍTULO VI

SANGUE NO ROSTO

Os verdugos de Belém chegaram à cidade santa ao cair


da tarde. Cingo distribuía entre os seus ferozes companheiros
o preço do seu horrível morticínio, e aqueles miseráveis
espalharam-se pela cidade, ansiosos por afogar com os
vapores do vinho o remorso do crime que acabavam de
perpetrar.
Naquela noite os habitantes de Jerusalém, a cujos
ouvidos tinha chegado a notícia do sangrento drama,
presenciaram cenas de incrível cinismo. Os companheiros de
Cingo percorriam as ruas ébrios, fazendo alarde da sua brutal
ferocidade, e disputando entre si o número de vítimas que
imolara a sua cruel espada. Um deles mostrava o braço
coberto de feridas aos seus amigos, dizendo:
- Eu cortei vinte cabeças, vede aqui os dentes das mães.
Os companheiros soltaram uma feroz gargalhada; mas
no meio daquelas risadas selvagens, incompreensíveis,
flutuava uma coisa sombria. Era o terrível fantasma do
remorso que cravara as envenenadas setas nos corações
daqueles miseráveis assassinos.
Mais tranquilo que os seus satélites, o escravo favorito
encaminhou-se para o palácio de seu senhor. Como sempre,

286
penetrou no quarto de dormir de Herodes pela porta secreta.
O Idumeu passeava agitado, quando Cingo entrou na câmara.
Um sorriso feroz lhe apareceu nos lábios.
- Cingo...
- Estás obedecido.
- Todos?
- Todos, respondeu o escravo com o seu acostumado
laconismo.
Herodes exalou um suspiro do fundo do coração.
- Se havermos de dar crédito a uma das mulheres que
ficaram chorando em Belém, tornou Cingo com uma frieza
cruel, o Rei de Judá não deve inspirar-te o menor receio: eis
aqui a sua cabeça. E o escravo, desdobrando a ponta do
manto, apresentou a cabeça do menino que tão cruelmente
arrebatara dos braços da última belemita.
Herodes pousou aquele membro insepulto sobre u’a
mesa, e começou a examiná-lo em silêncio. As envidraçadas
pupilas do Idumeu fitavam-se com estranha tenacidade no
lívido semblante daquela cabeça ensanguentada. De vez em
quando esfregava os olhos, como se algum estorvo lhe
impedisse de examinar à sua vontade aquelas feições
inanimadas.
- É estranho, murmurou, parece que já vi esta cara...
Cingo nada dizia. Orgulhoso por ter desempenhado tão
fielmente a terrível missão de seu senhor, esperava
impassível a recompensa que, segundo o costume, devia
seguir o serviço prestado.
Herodes, sempre preocupado com o exame da cabeça e
como se uma dúvida o atormentasse, pegou pelos cabelos
ensanguentados o crânio do menino e aproximou-se da
janela, como se quisesse, com os últimos raios do sol poente,
desvanecer as dúvidas que sentia. Neste momento ergue-se o

287
pesado reposteiro que cobria a porta, e uma mulher pálida,
ensanguentada e com os olhos inchados, apresentou-se na
sala.
A mulher soltou um rugido reconhecendo Cingo.
Herodes voltou a cabeça.
- Tu aqui, Rebeca! perguntou o rei com estranheza.
- Sim... eu! Exclamou a mulher com um rouco e
nervoso acento. Eu... que venho entregar ao rei de Jerusalém
o corpo de seu filho, para que o uma com a cabeça que tem
nas mãos!
E Rebeca lançou aos pés de Herodes o mutilado tronco
dum menino que levava escondido debaixo do manto.
- Ah! exclamou o Idumeu, retrocedendo alguns passos.
Então esta cabeça?...
- É a de teu filho, do filho que confiaste aos meus
cuidados, que eu alimentei com o leite do meu peito; teu
filho, que este infame assassinou por ordem tua!
E Rebeca estendeu o braço na direção de Cingo.
Herodes soltou um grito e deixou cair a cabeça, que
rolou pelo chão produzindo um ruído oco e frio. Depois
levou as mãos ao rosto para ocultar aos olhos o cadáver do
último fruto do seu amor; porém aquelas mãos estavam tintas
com o seu próprio sangue, e aquele sangue manchou-lhe o
rosto.
O escravo não despregou os lábios; esperava a sua
sentença, e através da sua negra pele empalideceu. Rebeca,
qual a sombra do remorso, terrível, ameaçadora, permanecia
no meio da sala, sempre com o braço estendido na direção do
etíope.
- Deixai-me! Deixai-me! gritou o rei com acento
ameaçador depois de um momento; mais levai esse corpo

288
ensangüentado da minha presença. Sua vista abrasa-me os
olhos e faz-me arder o coração.
Rebeca levantou o destroçado corpo do menino,
embrulhando-o na saia e depois lançando um olhar
ameaçador ao escravo, exclamou em tom profético.
- Ai do assassino dos primogênitos de Judá! Seu nome
será maldito pelos séculos dos séculos, e na hora da sua
morte, as fúrias do inferno se deleitarão em despedaçar-lhe
as entranhas com as línguas de fogo!
Rebeca saiu da câmara do rei, apertando contra o peito
o cadáver do inocente mártir. Cingo ia também sair, quando
Herodes exclamou, levantado-se:
- Espera...
- Senhor, castiga-me; sou digno de tua cólera. E Cingo
inclinou a cabeça, como se esperasse o golpe que devia
vingar o seu rei.
- Não temas, Cingo, a fatalidade colocou debaixo do fio
da tua espada o pescoço de meu filho. Culpa é do deus
inimigo da minha raça, e não tua, mas escuta. O sangue
derramado será inútil se não conseguirmos apoderar-nos do
filho de Zacarias e do rebelde Antípatro: ao teu zelo confio a
tranquilidade do meu reino. Corre, procura, não poupes meio
para que se realizem os meus desejos. Enquanto viverem
João e Jesus, enquanto Antípatro gozar liberdade, e coroa
vacila-me na cabeça, o poder escapa-me das mãos... o punhal
dos meus inimigos ameaça-me por toda parte, o meu sono é
intranquilo, a minha vida uma agonia lenta e prolongada que
me consome... Porque tu bem sabes, Cingo... esta cruel
moléstia que me devora alenta os meus inimigos... Para onde
dirijo os olhos, vejo-os erguerem-se ameaçadores cobiçando
o meu cetro e os meus tesouros... Por todas as partes levanta
a cabeça a conjuração. Os fariseus, os essênios, cada via mais

289
terríveis e provocadores, conspiram até no templo de Sião e
nas ruas da cidade santa. Esse dois Meninos que se livraram
do meu castigo, servem-lhes para concitar os ânimos dos
israelitas. Mas tu destruíras a esperança dos hebreus. Corre...
corre... pois só em ti confio. Os romanos são indolentes... e
fazem-se pagar mui caro os serviços que me prestam... além
de que, estes negócios deve fazer-se em segredo e deve
preferir-se a noite ao dia: é mais calada.
Herodes deteve-se, seus encovados e envidraçados
olhos fitaram-se de modo tenaz no impassível semblante do
escravo, como se quisesse surpreender o efeito de suas
palavras; mas o etíope, acostumado a obedecer cegamente,
encaminhou-se para a porta. O rei deteve-o, travando-lhe o
braço. Aquela familiaridade fez estremecer o escravo.
- Se tu consegues apresentar-me as cabeças de João e
Jesus, prometo-te em recompensa um talento hebreu, e
devolvo-te a liberdade.
Herodes disse estas palavras vagarosamente e como
deixando-as cair no coração de Cingo.
O escravo respondeu com impassibilidade:
- Eros, escravo de Marco Antonio, imortalizou o seu
nome morrendo aos pés do seu senhor; a minha única
ambição é imortalizar o meu morrendo por ti.
Herodes estendeu uma das mãos aquele bravo e leal
servidor, que não tinha outra vontade que a do seu amo.
Cingo beijou aquela mão o que rei estendia, e nos seus
negros e penetrantes olhos, mas suas grosseiras e toscas
feições pôde distinguir-se claramente a imensa alegria em
que transbordava o seu coração.
- Parte, e não esqueças que te espero.
- Nunca descanso quando o meu senhor me encarrega
de alguma coisa.

290
O escravo saiu do aposento, caminhando de costas até à
porta. O rei de Jerusalém ficou alguns momentos imóvel no
meio da câmara. De repente o semblante tornou-se-lhe lívido
e desfigurado, os olhos escovaram-se-lhe, e todo o corpo se
lhe contraiu dum modo horrível. Algumas manchas de cor
purpúrea lhe assomaram ao rosto, e a boca, contraída pela
dor, soltou um prolongado gemido. Levou as mãos ao
estômago, e o corpo agitado por uma convulsão nervosa, caiu
sobre a fofa almofada, gritando:
- Socorro... Socorro!... que morro!
Herodes revolvia-se pelo chão, como um condenado.
Pela boca saiam-lhe borbotões de espuma, e um tremor
convulsivo lhe agitava o corpo. Dir-se-ia que o sopro do
inferno lhe queimava as entranhas. A família correu
precipitadamente e levou-o para o leito. Os médicos
rodearam-no, prestando-lhe auxílio mas a moléstia havia se
declarado sem máscara; tinha um câncer no estômago, e este
horrível mal havia de conduzi-lo ao sepulcro brevemente,
depois de o fazer padecer de modo incalculável.
Deus, farto dos crimes do feroz Idumeu, começava-o a
castigar, dando-lhe uma agonia longa e dolorosa. A
Providência é muda, invisível; mas sua mão poderosa e santa
reparte do céu os bens e os males com justiça irrepreensível.

CAPÍTULO VII

PRELÚDIOS DA MORTE

Cingo era homem de clara e rápida imaginação para


conceber e coordenar os golpes de mão que lhe incumbia seu
senhor. Bastavam-lhe alguns minutos para formar o plano

291
que devia seguir na árdua missão que se lhe confiava.
Chegou ao andar baixo do palácio, e, percorrendo um
corredor, entrou na estância destinada aos escravos. Uma vez
ali, escolheu quatro homens de sua confiança e mandou-lhes
que tirassem das cavalariças cavalos e que deitassem sobre
os ombros o alquicer dos comerciantes árabes, sem
esquecerem o punhal damasceno no cinto.
Feitos os preparativos esperou impassível que o sol
dobrasse as encostas do Ocidente, e então com o favor das
trevas saiu seguido dos seus satélites da cidade santa. Uma
vez no campo, informou os companheiros da importante
missão que lhe havia confiado o rei; depois, com esse
silêncio que precede os assassínios, encaminharam-se para o
sul de Jerusalém, em busca da cidade de Ain, pátria do
Batista.
Cingo havia calculado o modo de executar seu plano.
Tinha dito consigo: João é estimado mais pelos israelitas que
Jesus: apoderemo-nos primeiro de João. Quanto a Antípatro,
filho de Herodes tinha esperanças de o achar em Jericó, em
casa da escrava Enoé.
Ain dista só duas léguas compridas da cidade santa;
mas como o caminho era montanhoso, e a noite escura, os
perseguidores do filho de Isabel chegaram quase no meio da
noite aos arrabaldes da cidade. Cingo ordenou que um dos
seus companheiros ficasse guardando os cavalos num
bosquezinho próximo da cidade, enquanto ele acompanhado
dos três restantes, se dirigia para a casa de Zacarias.
O terrível drama de Belém tinha aterrado as mães de
Judá. Quando a noite cobriu com suas espessas sombras o
sangrento quadro, quando se acharam com os mutilados
corpos dos filhos nos braços, sentados num dos cantos de
suas casas, quando seus ignorantes esposos regressaram do

292
campo, ansiando por suavizar as fadigas dum dia de penoso e
ímprobo trabalho, com o sorriso e os beijos de seus filhos, e
encontraram a incrível realidade ante os absortos olhos, a
dor, a desesperação, as lágrimas e os gritos de raiva e
vingança foram incalculáveis.
Naquele mesmo dia, poucas horas antes, mal o sol
raiara, eles tinham abandonado suas casas para se dirigirem
ao campo. “A manhã era formosa. O ambiente perfumado
com ervas aromáticas do Carmelo, o céu azul e sereno de
Judá, o sorriso de seus filhos que nos braços de suas esposas
assomaram às janelas para lhe dizerem o adeus quotidiano,
tudo lhe anuviava um dia de trabalho, mas feliz e alegre.
Mas aquele céu sem nuvens, aquela manhã risonha
tinha sido substituída por uma noite de dor, dor tanto mais
terrível, tanto mais inconsolável, quando estavam mui longe
de esperar.
Mas ai! Aqueles pais desgraçados, aqueles infelizes
israelitas acabaram por chorar, como suas esposas, sobre os
ensaguentados cadáveres dos filhos. Povo sem caudilho,
raça envilecida pelo jugo estrangeiro, punhado de servos que
a orgulhosa Roma encadeava a seus pés, eram então os
descendentes de Abraão, Isaac e Jacó.
Aquele povo privilegiado, aquela família de heróis
escolhida por Deus para o berço do Verbo Divino, já não
contava entre seus filhos um Moisés que os ilustrasse, um
Elias que fizesse chover fogo do céu sobre os inimigos, um
Davi, que os elevasse, um Salomão que os enriquecesse e um
Josué que, fazendo parar o sol na sua carreira, os cobrisse
com os louros do vencedor.
Seu último chefe, o heróico Judas, Macabeu, o famoso
adailde de Israel, o caudilho invencível de Judá, ao derramar
a última gota de sangue pela independência de seu povo,

293
tinha forjado as cadeiras às doze tribos de Israel, e desde
então a ignominiosa nódoa da escravidão se esculpia com
opróbrio nas suas frontes abatidas.
As setenta semanas de Jacó tinham-se completado. O
Mestre anunciado pelos Profetas descera dos céus. A raça
humana contava entre os seus filhos o Salvador do mundo.
Mas os judeus esqueceram os seus Profetas, fecharam os
olhos à luz e os ouvidos à verdadeira e, escarrando na Santa
face de Cristo, levantaram sobre o Gólgota, um madeira para
o crucificarem.
U’a maldição terrível pesa desde então sobre a
miserável raça dos descridos. Sem pátria e sem lar, sem leis
que os protejam, sem templos santos que os admitam nos
seus seios para implorarem ante Deus ofendido o perdão de
suas culpas; raça maldita e desprezível, sua sorte é vaguear
errante pela larga superfície até a consumação dos século.

Até à pacífica e tranquila habitação de Israel tinham


chegado os dolorosos lamentos dos belemitas. A nobre velha,
temendo pela sorte do filho, comunicou seus temores a uma
das suas criadas, que nascera em sua casa. Zacarias achava-
se em Jerusalém exercendo os ofícios de seu sacerdócio; mas
Isabel não recua no seu propósito, e, apenas o último reflexo
do dia desapareceu atrás das montanhas de Judá, abandonou
o lar, levando nos braços o pequeno Batista e, seguida de sua
fiel criada, chegou ao Carmelo e estabeleceu-se numa das
suas profundas e ignoradas grutas. Um punhado de folhas
secas serve de leito às duas mulheres e ao santo precursor de
Cristo. Mas nada as arreda; ali ao menos julgam-se livres do
furor de Herodes.
Perguntam por João e a pergunta fica sem resposta,
porque todos ignoram seu paradeiro, ameaçam com a morte

294
os criados, e estes lançam-se aos pés dos verdugos
derramando lágrimas.
Cingo precisava duma vítima para aplacar a raiva do
seu senhor. Pergunta pelo velho sacerdote e diz-se-lhe que se
acha de semana no templo de Jerusalém.
Parte de Ain, chega a Jerusalém, penetra na câmara de
Herodes pela porta secreta com o fim de informar da sua
desgraçada missão, e detém-se ante o espetáculo que se lhe
apresenta aos olhos.
O Idumeu estendido no leito, soltando blasfêmias
entremeadas de dolorosos gemidos, revolve-se sobre os
almofadões. Em poucas horas o semblante do enfermo
desfigurou-se espantasomente. Seu corpo exala um cheiro
repugnante. Multidão de úlceras cancerosas lhe marcham a
lívida pelo do rosto. Um suor pegajoso, imundo, sulca a
fronte, e seus olhos encovados e embaciados dirigem, olhares
vagos e amortecidos em torno de si. Salomé, sua irmã, agita
um leque de penas sobre a cabeça do enfermo para refrescar
a atmosfera, enquanto Aleixo, seu cunhado, borrifa de vez
em quando com essências olorosas a cama e o corpo de
Herodes.
Num extremo da sala acham-se sentados quatro anciãos
ao redor de uma mesa. Uma lâmpada de prata derrama luz
sobre um grosso volume que se acha aberto. Esse anciãos são
os médicos do rei que deliberam em voz baixa. Ouçamos o
que dizem:
- A moléstia descobriu-se por fim: é um câncer no
estômago: o mal é terrível, incurável.
- Nunca devem perder-se as esperanças, replicou outro;
o médico tem o dever de arrebatar a presa à morte.
- Nos nossos livros não existe o remédio para o câncer,
tornou o primeiro.

295
Além do Jordão, tornou o segundo, acham-se os banhos
quentes de Caliroe; suas águias, que vão cair no mar Morto,
são medicinais e gratas ao paladar: o meu parecer é que o rei
se banhe em Caliroe. Se isto não o salva, então preparem o
lençol de linho para lhe envolver o corpo, porque a morte é
certa.
- Ainda nos falta tentar, disse um outro, os banhos de
azeite aromático. As úlceras da pele cerrarão, e o cheiro do
corpo desaparecerá.
- Tudo é inútil, replicou o primeiro; mas o nosso dever
é aconselhar, e opto pelos banhos de Caliroe.
- O rei tem sessenta anos: com esta idade e com esta
moléstia, o médico mais sábio só pode enganar a morte por
alguns dias; aconselhemos, pois, os banhos de Caliroe.
Este parecer, que foi o dum ancião que não tinha
despregado os lábios até então, foi aprovado pelos
companheiros e, depois de trocarem frases em voz baixa, um
dos médicos aproximou-se do leito do enfermo.
- Que opina a ciência, amigo Joaquim, deste pobre
enfermo? Perguntou Herodes vendo acercar-se o médico
favorito.
- A ciência opina, senhor, que deves tomar os banhos
de Caliroe.
- Mas eu sofro horrivelmente! É preciso que busqueis
alguma coisa que minore os meus padecimentos. Se não para
que sois médicos? Para que vos pago, para que vos tenho em
minha casa? Pedi ouro, mas dai-me saúde; já que estudastes
o remédio dos males do corpo, apagai este inferno que me
devora as entranhas!
- A ciência aconselha os banhos.
- Mas a ciência responde-me pelos resultados?
- O futuro está nas mãos do Deus invisível.

296
- Deixais o meu corpo nos braços do acaso?
- Não; a prática é a nossa mestre, e ela nos aconselha o
que nós te aconselhamos.
- Então não vês, desgraçado, que mal posso mover-me?
Meu corpo incha a cada momento, as úlceras alargam a cada
instante, minha carne apodrece. Como queres que me ponha
a caminho, se todos os tormentos do inferno nada serão
comparados com os que vou sofrer durante a jornada?
- Uma liteira conduzida pelos teus escravos pode
transportar-te, sem que sofras com isso mais do que agora.
- Está bem, tornou Herodes, entrego-me nas vossas
mãos; fazei de mim o que vos aprouver, mas salvai-me a
vida. Porque não quero morrer ainda... entendeis?
- Então manda que se prepare tudo para o novo sol.
- Ptolomeu! Ptolomeu! exclamou Herodes dirigindo a
palavra ao velho guarda-selos; bem ouves, dispõe tudo: a luz
da aurora não deve ofender-nos em Jerusalém.
As ordens de Herodes nunca se demoravam; todos
foram saindo da habitação para se prepararem para a jornada.
De vez em quando Herodes estremecia, e, cobrindo o
rosto com a colcha, murmurava:
-Passai, ensanguentados fantasmas, não quero ver-vos,
não quero... não, não, não!

CAPÍTULO VIII

A PROFANAÇÃO

O rei fico só, deitado no leito. A lâmpada lançava seus


raios melancólicos sobre a face lívida e contraída do
enfermo. O semblante do Idumeu causava horror. Aquele
enfermo, apesar do leito de marfim, das suas colchas do

297
Egito e dos almofadões de damasco, parecia um velho
asqueroso e repugnante. O remorso imprime uma nódoa
espantosa no rosto do criminoso.
Cingo, que permanecera oculto atrás das pregas duma
cortina, entrou na sala apenas viu que se achava só o seu
senhor. O escravo, andando nas pontas dos pés para não
fazer barulho, acercou-se do leito do seu senhor.
Neste momento Herodes tinha os olhos fechados;
parecia um cadáver. O escravo contemplou-o alguns
instantes. Aquele negro infame, homem cruel e sanguinário
que imolava com o punhal assassino todas as vítimas que lhe
indicava o amo, parecia comovido ante o leito do senhor.
Seus olhos umedeceram-se e um áspero e prolongado suspiro
se escapou de seus grossos lábios. O escravo adorava ao
senhor. Seu amor sem limites o teria colocado como um deus
no altar de Sion; porque, para Cingo, o rei Herodes era tudo
no mundo.
O enfermo abriu os olhos e viu a negra figura.
- Ah! És tu, meu leal Cingo, disse com voz desfalecida.
Não sabes! Os médicos desconfiam, a ciência é impotente, e
deixam-me morrer, mas ai deles! O meu último suspiro será
a sua sentença de morte.
- Senhor, lhe disse o escravo: se a saúde, se a vida
pudesse transmitir-se como a riqueza, tua não morrerias,
porque eu te daria a minha vida e saúde para te salvar.
- Bem sei, Cingo, bem sei, tu és bom e leal; eu não te
hei de esquecer na hora da minha morte.
- Vai e não te ocupes de outra coisa; a tua saúde é para
mim mais que a liberdade e a fortuna.
- Tu não és meu escravo, és meu amigo, meu
confidente.
- Senhor...

298
- Quando me vir livre desta horrível enfermidade, hei
de nomear-te general das legiões herodianas, hei de dar-te
carta de homem livre, e terás um palácio em Jerusalém e
outro em Jericó.
- Deixa-me teu escravo. Só ambiciono servir-te, ainda
que esta noite me foi impossível cumprir as tuas ordens.
- Não te compreendo.
- Isabel, esposa de Zacarias, fugiu de casa levando
João.
- Para onde? perguntou Herodes assentando-se como se
aquela notícia o houvesse curado dos padecimentos.
- Ignoro. Mas tenho um meio de descobrir o seu
paradeiro.
- Fala.
- Zacarias é sacerdote. Acha-se de semana no templo.
- Na cidade?
- Sim, em Jerusalém.
- Que o pai nos indique o lugar onde se acha escondido
o filho.
- Recusar-se-á: os israelitas são teimosos.
- Então... e Cingo afagou o cabo do seu punhal.
- É verdade, Cingo; com esses sonhadores eternos, com
essa raça teimosa e atrevida de Abraão, os reis que ocupam o
trono de Jerusalém é preciso que joguem o todo pelo todo.
Só a morte extermina os inimigos irreconciliáveis... Mata,
Cingo, mata, se for preciso.
Ao outro dia os aclamadores de ofício, os baixos
herodianos que anelavam elevar seu senhor sobre o altar do
santo templo como um deus saudaram Herodes com furiosos
e repetidos vivas, apenas se apresentou na praça para se
dirigir aos banhos de Caliroe.

299
Herodes não era covarde; mas nos últimos dias da sua
vida teve medo a dois fantasmas que se levantaram na sua
febril imaginação a toda a hora. Era a rebelião, que o cercava
por todas as partes, e os meninos aclamados em voz baixa
pelos israelitas como os próximos libertadores das doze
tribos. Isto tirava-lhe o sono.
Antes de deixar a cidade santa, quis mostrar às legiões
a sua munificência, o seu esplendor para com os leais
servidores do seu trono, distribuindo cinquenta drácmas a
cada soldado e duzentas a cada capitão, sem contar muitos
dons que distribuía aos seus amigos.
Seguro por esta parte da fidelidade das suas legiões,
porque o exército então clamava por seu senhor o que com
mais largueza pagava as aclamações, saiu da cidade santa
seguido dum brilhante acompanhamento, no qual se achava
parte da sua família e os quatro médicos da câmara.
Cingo ficou em Jerusalém. O negro devia derramar
sangue inocente e manchar com ele, a casa de Deus. O santo
sacerdote Zacarias, pai do Batista, sábio, preceptor da
Virgem, estava sentenciado à morte.
Os verdugos não recuaram ante o horroroso e sacrílego
crime. Cingo e seus infames companheiros apresentaram-se
no templo de Sion com o punhal homicida na destras.
O velho sacerdote achava-se desempenhando os santos
ofícios do átrio interior da casa de Jeová.
Os verdugos perguntaram-lhe por seu filho; ele que
ignorava e seu paradeiro, respondeu ingenuamente que
estava em casa de Ain, e que se ali não se achava ele não o
sabia.
Esta resposta singela e verídica foi tomada por uma
negativa zombeteira e desprezadora, e o pobre velho caiu aos
pés dos assassinos, banhando no seu sangue inocente. Os

300
fiéis fugiram com horror da casa de Deus ante aquela
assassinato sacrílego.
A notícia correu com a velocidade da desgraça por
todos os cantos da cidade. Alguns pacíficos comerciantes
fecharam as lojas. As patrulhas de soldados romanos
passeavam pelas ruas. Alguns mancebos mais atrevidos
mostravam aos soldados, em sinal de ameaça, os punhos
fechados, porque aquele crime manchava a moradia de Deus,
enchia de espanto os medrosos, de ódio e vingança os
valentes filhos da abatida raça de Israel.
Trinta anos, depois, esta morte sacrílega e injusta fez
exclamar ao Mártir do Gólgota estas palavras: “Sobre vós
cairá o sangue inocente derramado na terra; desde o do justo
Abel, até o de Zacarias, a quem tiraste a vida entre o altar e o
templo”.
A morte de Zacarias foi o sangrento epílogo com que
terminou a terrível tragédia dos mártires de Belém. O sangue
do justo, manchava os mármores da casa do Santo dos
Santos.
Não estava longe o dia em que o sangue de Deus devia
correr pelas ásperas ladeiras do Gólgota.

LIVRO SÉTIMO

A ÁGUIA DE OURO
CAPÍTULO I
A VIA SANGRENTA

Herodes chega a Caliroe, e os banhos daquela águas


medicinais, tão célebres então, pioram-lhe a saúde.

301
Uma ordem real convoca todos os médicos da Palestina
em torno do enfermo. A ciência discute, enquanto que o mal
caminha e devora o corpo. Por fim adota-se o banho de
azeite aromático, e os escravos conduzem o senhor, do leito
ao banho; porém o miserável verdugo de Israel apenas é
submergido no suave líquido, perde os sentidos, e os que o
rodeiam, crendo chegada a última hora, soltam
desconsolados gritos.
A família e os médicos acodem: Herodes é quase um
cadáver. Imediatamente é envolvido num lençol perfumado e
conduzido para o leito, e ali, à força de desvelos e cuidados,
conseguem reanimá-lo e o enfermo, entreabrindo os olhos
vidrados, exala um apagado suspiro. Seus lábios lívidos
agitam-se convulsivamente como se quisessem falar; mas
todos os esforços são inúteis. Por fim depois duma hora de
angustiosa e horrível luta, as palavras que se afogam na
garganta chegam líquidas à língua, e Herodes exclama com
voz desfalecida:
- Tenho fome... muita fome... Dai-me alguma coisa que
comer, porque morro.
Salomé consultou com um olhar os médicos; mas estes
que perderam a esperança de o salvar e que temem
desobedecer às ordens de um rei bárbaro e cruel que pode
mandá-los degolar na sua presença, respondem que se lhe dê
de comer tudo quanto quiser. Então os escravos assentam o
rei no seu leito e servem-lhe um jantar esplêndido. Herodes
lança-se aos manjares. Quanto mais come mais sente fome e
pede mais; aquele miserável, castigado pela culta mão de
Deus, inspira dó no último dos seus escravos. Finalmente,
rendido deixa-se cair na cama, derribando sobre a colcha as
viandas e o vinho.

302
Herodes estava ébrio e, na sua embriaguez, pede em
altos gritos que o transportem para o seu palácio de Jericó.
Todos temem desobedecer-lhe, e as suas ordens, cumprem-se
imediatamente. Chega a Jericó, mas em que estado!
Sua boca só se abre para blasfemar ou dizer que tem
fome e sede. As extremidades incharam-lhe, e a pele tornou-
se-lhe lívida, não pode mover-se sem o auxílio dos escravos.
Montões de bichos brotam das úlceras que lhe mancham o
rosto. Seu hálito pestífero mostra a podridão de que está
cheio o corpo, e a sua respiração fatigada dá um claro indício
de que o câncer vai minando interiormente aquela existência
que com penosas dores se despede do maldito corpo que a
encerra.
Proibia-se a entrada no quarto do rei a toda a gente; e os
escravos; crendo que o seu senhor morreu, espalham esta
nova, que corre a Judéia, enchendo de júbilo quantos a
ouvem.
Deixemos por alguns instantes Herodes sob a
salvaguarda dos médicos, e fixemos a nossa atenção num
cavaleiro que a todo galope corre por uma das tortuosas e
pedregosas veredas dos montes de Judá. Impossível é
imaginar-se caminho mais tétrico, mas sombrio, mais
espantoso.
Profundos barrancos, rochas escarpadas que ameaçam a
vida do viajante, profundas covas abertas no seio daquelas
áridas montanhas pelos espantosos abalos da terra, eterno e
impenetrável refúgio dos bandidos árabes e das selvagens
feras, encontra por todas as partes o intranquilo olhar do
viajante. A natureza não possui teatro mais terrivelmente
disposto para o crime que os barrancos das montanhas de
Judá.

303
O punhal do assassino deu um nome àquelas solitárias
veredas: a via sangrenta . O noturno cavaleiro parece
prático no caminho que percorre, e o cavalo inspira-lhe
confiança completa, pois as rédeas lhe flutuam ao vento
sobre o robusto e reluzente pescoço. De vez em quando o
aéreo véu duma nuvem rompe-se, e um raio da lua cai do
céu, banhando com sua doce e prateada luz as escuras
sinuosidades do caminho. Então o cavaleiro embuca-se no
pano da sua capa, como se temesse ser reconhecido por
aquelas solitárias árvores e agrestes rochas que se erguem
aos lados do caminho.
O ardente corcel, alheio às comoções que agitam o
coração do dono, que a tais horas da noite cruza tão solitários
caminhos, continua galopando com incansável e
imperturbável regularidade.
Assim decorrem duas horas. O nobre animal mostra
com seu penoso respirar que começa a sentir-se fatigado. Os
ilhais batem-lhe com precipitada violência, e um suor
espumoso começa a manchar a fina pele do peito. De súbito
o cavaleiro, que lançou em torno de si um olhar escrutador
para reconhecer o lugar em que se achava, pega nas rédeas,
puxa-as com força para si, e o cavalo detém o galope;
apoiando-se com força sobre o quarto traseiro, fica parado
junto dum espesso arbusto ao pé do qual nasce uma estreita
senda que conduz a um barranco.
Deve ser aqui, murmurou em voz baixa o cavaleiro.
Depois põe pé em terra, e, passando as rédeas pelo
braço direito, começa a descer em direção ao barranco,
seguido pelo dócil animal. Deste modo andaram cavaleiro e
cavalo mais de quinhentos passos. Uma vez ali detiveram-se.
O sítio não era por certo o mais a propósito para se
visitar à meia noite. Achava-se no fundo de um precipício.

304
Multidão de choupos e espinheiros cresciam entre as
gretadas rochas. Um monte em forma de ferradura cerrava a
passagem no extremo do barranco, e as duas paredes laterais
daquela espécie de anfiteatro tinha uma elevação prodigiosa.
As palmeiras, as sarças e as gestas eriçavam as
empinadas fraldas dum espinheiro, ficou imóvel como se lhe
importasse reconhecer o terreno. Persuadido depois de
alguns momentos de que era aquele o lugar que buscava,
começou a trepar pela empinada encosta que se erguia ante
ele, cerrando o barranco. Os primeiros cinquenta passos deu-
os sem dificuldade; porém, logo se viu obrigado a servir-se
das mãos para não cair. De vez em quando suspendia a
penosa ascensão para tomar fôlego.
O suor caía-lhe em fio pela fronte, e algumas gotas de
sangue manchavam as pequenas e branca mãos do noturno
cavaleiro: mas nem um suspiro de cansaço, nem um grito de
dor se escapava de seus lábios, quando, ao agarrar-se a
alguma rocha, um espinho lhe feria as mãos. Por tão penosa
senda adiantava pouco, porque precipitar-se ou querer vencer
a distância com passo ligeiro teria sido despenhar-se.
O homem que por tal caminho viajava e a tais horas da
noite, devia ser um desses homens de coração aos quais não
arredam nunca a fadiga nem o perigo, por grandes que se
levantem. E, num desses curtos intervalos em que a lua,
rompendo as transparentes garças das nuvens, mandava um
dos seus claros e argênteos raios sobre as densas sombras da
terra, pôde ver-se que o noturno viajeiro era um jovem do
rosto doce e delicado, sem buço, sem dureza no olhar, quase
uma criança, louro e branco como uma donzela do templo de
Sion.
Pelo meio do monte se acharia na sua perigosa subida,
quando se deteve, vendo que um arbusto arrancado das

305
entreabertas rochas que lhe deram o ser, cedeu ao colocar
sobre ela a mão. Reconheceu segunda vez o terreno, e como
se aquilo houvesse sido um sinal, sentou-se numa pedra e
tirando um pequeno tubo de metal, dentre as pregas do
vestido, levou-a à boca e pôs-se a tocar uma música hebraica
muito em voga naqueles tempos, sobretudo na popular e
tradicional festa dos asmos.
Imediatamente um rouxinol cantou a poucos passos do
cavaleiro; que se pôs em pé, e, como se o vomitasse a terra,
um homem se levantou dentre as matas.
O cavaleiro, ao ver levantar-se uma sombra ao seu lado,
empunhou por precaução a espada que lhe pendia do talim.
- A águia tem asas, disse o homem aproximando-se do
cavaleiro.
- E Abraão venábulos, respondeu este como se fosse
uma senha.
- Israel quer a saúde, tornou o homem.
- Porque está enfermo, o que a tira, respondeu o
cavaleiro.
- Ajuda-me tu, repetiu o homem.
- Começa tu, disse o cavaleiro.
Então o homem deu alguns passos, e agachou-se,
agarrando com seus robustos braços uma rocha. O cavaleiro
fez o mesmo. Pouco depois a boca duma gruta achou-se
aberta antes eles.
- Entra, disse o homem; só tu faltas.
O cavaleiro entrou sem despregar os lábios naquele
abismo que se lhe abria diante dos pés; mas a escuridão era
tão completa, que se deteve sem se atrever a dar um passo.
Desta indecisão o tirou uma mão que na escuridão lhe travou
do braço e começou a conduzi-lo naquele negro e intrincado
abismo.

306
O cavaleiro não pode dissimular um estremecimento
nervoso que lhe produziu o contato daquela mão invisível.
- Tens medo? perguntou uma voz.
- Estremecer não é ter medo; julgava-me só, e a tua
mão ao tocar-me o braço fez-me o efeito duma víbora; o leão
agita-se também quando um formiga lhe toca nas pálpebras.
- Mais vale assim, tornou a voz; pensava que te havia
assustado.
- Gente dura é a que se alberga neste sítio.
- A rudeza nada tem que ver com o valor: guia e cala,
que é o teu dever.
O homem invisível cerrou os lábios e continuou a guiar
o cavaleiro. Esta marcha subterrânea durou
aproximadamente um quarto de hora. Por fim pararam, e o
misterioso guia empurrou com o ombro o ângulo duma
rocha, que girou como montada sobre um eixo.
- Entra, disse ao cavaleiro.
Este entrou numa caverna espaçosa alumiada por uma
imensa lâmpada de ferro de três bicos.
A picareta dirigida pela mão do homem não tinha
entrado na escavação daquela montanha, se excetuar a porta
giratória da entrada. Aquele subterrâneo de altas e arqueadas
bóbadas alumiadas pelas oscilantes chamas da lâmpada, era
um desse silos, uma dessas cavernas que com tanta
frequência se encontram nos montes de Israel, e que tantas
vezes serviram de refúgio, durante as contendas civis e
religiosas do povo hebreu, aos bandidos, aos homens livres,
aos apóstolos da nova lei, e ultimamente aos cruzados e aos
peregrinos cristãos.
Quando o cavaleiro entrou na espaçosa gruta, parou: ao
princípio nada viu: mas pouco a pouco seus olhos,
percorrendo os largos âmbitos onde não chegavam os

307
reflexos da luz, puderam distinguir um grupo de homens que,
sentados no chão, conversavam em voz baixa.
O viajante caminhou alguns passos, e ao ruído das suas
pisadas os moradores da gruta voltaram a cabeça.
- É ele, disse um dos companheiros, e, todos se
puseram em pé.
- Caudilhos de Israel, começo por pedir-vos perdão pela
minha tardança, disse o cavaleiro saudando com uma ligeira
inclinação de cabeça; o homem que como eu é perseguido
pelos cães de Herodes, não dispõe das horas, senão do acaso.
- Sabemos, disse um dos homens da caverna, os perigos
que te rodeiam, e desculpamos-te de todo o coração a
tardança de algumas horas.
- Eu vo-lo agradeço.
- Assim possa um dia agradecer-te a ti o povo hebreu.
- A sua felicidade será a minha se chegar a governá-lo.
- Senta-te entre nós, pois nós te admitimos como um
irmão que vem derramar o sangue nas aras da liberdade da
pátria.
Os nosso leitores terão sem dúvida reconhecido no
noturno cavaleiro Antípatro, o fugitivo filho de Herodes. O
jovem príncipe sabia que a sua cabeça se achava posta à
preço por seu pai, e procurava salvá-la do perigo que a
ameaçava, buscando nas cavernas de Judá os rebeldes e
encarniçados inimigos do seu perseguidor.
Antípatro, pois, tomou assento entre aqueles
misteriosos revolucionários. Digno filho do rei de Jerusalém,
procurava uma coroa sem lhe importar passar por cima do
corpo de seu pai, contando que o conseguisse, porque
Antípatro não desmentia a raça de Herodes. Tinha o mesmo
sangue, os mesmos instintos, a mesma ferocidade.

308
CAPÍTULO II

A CONJURAÇÃO

Dissemos que eram quatro homens que se achavam na


caverna esperando Antípatro, filho de Herodes. Três deles
são desconhecidos e passarão pelas páginas deste livro
rápidos como uma exalação; o outro é conhecido, e
acompanhar-nos-á até ao cume do Calvário.
Os nomes dos desconhecidos são: Sedoc, Judas e
Matias; são três doutores da Lei, e inimigos irreconciliáveis
dos romanos; o outro é o jovem bandido de Samaria, Dimas,
o malfeitor, hospitaleiro da Virgem. Sedoc é assénio e tem
fama de adivinho entre a gente do povo; mas é apenas um
velho que encaneceu no estudo e na meditação. Seu pai
profetizou a Herodes, quando era menino, que seria rei de
Jerusalém, e como esta profecia se realizou a família ficara
como hereditária; todos era adivinhos.
Josefo diz-nos que Herodes protegia os essênios e a
explicação que disso nos dá é tão curiosa que merece ser
contada:
“Um assênio chamado Manaém viu Herodes estudar na
escola com outros meninos da sua idade, e vaticinou-lhe que
chegaria a reinar algum dia sobre os judeus; e como o jovem
estudante hesitasse em crê-lo, Manaém, dando-lhe uma
pancadinha no ombro, recordou-lhe a sua palavra profética,
traçou-lhe os deveres dum grande rei, e ao mesmo tempo
anunciou-lhe que a sua impiedade para com Deus e a sua
injustiça para com os homens mancharia a prosperidade e
grandeza do seu império. Quando Herodes foi rei, lembrou-

309
se da predição do essênio, e mandou-o chamar para
perguntar se reinaria pelo menos dez anos: Reinarás vinte,
trinta, respondeu Manaém; e o novo soberano dos judeus
despediu o seu profeta com grandes honras, e desde então
mostrou-se sempre mui favorável à comunidade essênia”.
Sedós era filho de Manaém, e a fama de seu pai ficara
hereditária nele.
Judas e Matias tinha grande influência entre os
discípulos, e quanto a Dimas, já o sabemos com a gente
contava, e a felicidade e respeito que pelo seu valor lhe tinha
os seus soldados.
Informamos de quem eram os personagens da caverna,
prossigamos a narração. Sedoc, o essênio, o mais velho, foi
quem rompeu o silêncio.
- Mancebo, tu que vens da cidade santa, dize-nos que se
passa nela?
- Jerusalém chora como sempre, respondeu Antípatro;
as filhas de Israel quebraram os saltérios e penduraram as
harpas no tronco das palmeiras.
- Os jerossolimitanos chorarão eternamente enquanto a
águia dos ímpios estender as asas de ouro sobre a casa de
Deus, disse Matias.
- A águia quebra-se e os ímpios exterminam-se, disse
por sua vez Dimas.
- Não esqueçais que o povo e Israel teme as legiões do
César, tornou Sedoc.
- Mas tende presente que o rei tributário se acha nas
últimas horas de vida, disse Antípatro, que outro rei deve
substituí-lo quanto expire, e que eu sei respeitar a lei de
Moisés e venerar o templo de Jeová, Deus invisível e
verdadeiro. Os bons tempos de Josué, Davi e Salomão ainda
podem tornar para os descendentes de Jacó, se um rei justo

310
empunhar o cetro de Judá; eu venho oferecer-vos o meu
sangue e os meus parciais para a empresa; dizei, pois, se me
admitis como amigo.
- Pensa, mancebo, que se Israel desembainhar a espada
será a primeira vítima, teu pai, lhe disse Sedoc com voz
grave.
- Meu pai deve ter expirado a estas horas; mas no caso
de viver no dia da batalha, por ventura não sacrificou ele
minha mãe e meus irmãos? Não me persegue com o intento
de sacrificar-me? Pois então, cale a voz da natureza e fale o
ódio que busca na luta: olho por olho, dente por dente, como
disse o legislador de Israel, o sábio Moisés.
- Irmãos, aceitais a fraternidade deste mancebo?
perguntou Sedoc.
- Que jure sobre as leis de Israel, disse Matias.
- Sim, que jure, repetiram Dimas e Judas.
- Seja, murmurou o essênio; levantando-se,
encaminhou-se a um dos extremos da caverna, de onde
voltou com o volume da Lei da mão.
Esse volume não era um livro, mas dois cilindros de
madeira. Sedoc sentou-se de novo entre os companheiros, e
Matias desceu a lâmpada de modo que a chama banhasse
com seus raios a fronte do ancião.
Então o essênio, pegando os cilindros pelas pequenas
manivelas da parte posterior, levantou-os sobre a cabeça e
começou a fazer girar as rodas de modo que o pergaminho ou
papiro onde estavam escritas as leis de Moisés fossem saindo
dum cilindro e, depois de rolar-lhe pela fronte, iam esconder-
se no outro cilindro. Esta operação fez-se com a pausa
suficiente para que Matias lesse os versículos hebraicos da
lei em voz grave e pousada.

311
- Estas são, disse Sedoc, as principais leis do hebreus,
que o Senhor Deus nosso reduziu a dez capítulos, e que estão
escritas nas Tábuas do profeta Moisés. Há um capítulo para
cada dedo da mão; não os esqueças, revolve-os na memória e
escreve-os nas tábuas do teu peito.
Matias começou a ler as sábias leis espalhadas pelo
sábio legislador do Sinai no Êxodo e no Levíticio.
Antípatro, sem levantar os olhos do chão, murmurava
com imperativo fervor um amém no fim de cada versículo.
Sedoc, impassível, fazia girar o cilindro; e Judas e Dimas,
imóveis como duas estátuas de pedra, só agitavam os lábios
para dizerem um assim seja logo que o eco da última letra
do amém de Antípatro se perdia nas concavidades da
caverna.
Esta cerimônia durou pouco mais de uma hora, e por
fim, o cilindro deixou de girar sob a vista de Sedoc; a leitura
da lei de Moisés tinha terminado, e Antípatro, pondo uma
das mãos sobre o volume que lhe apresentava o velho, e
outra sobre o coração, jurou não faltar enquanto vivesse
àqueles dez capítulos ditados por Jeová.
Então os quatro israelitas levantaram-se e, pondo as
mãos sobre a cabeça do jovem príncipe, exclamaram:
- Já és nosso irmão... a tua carne é a nossa carne, como
a nossa é a tua; e teu sangue nos será tão prezado desde este
dia como o que nos gira pelas veias.
- Apedrejado seja eu como os blasfemos, devorado
pelos cães se veja o meu corpo como os réprobos, sem luz
fiquem os meus olhos, sem harmonia os meus ouvidos e sem
palavras a minha língua, se faltar a essas leis do meu Deus,
que vi, ouvi e exaltei, tornou a murmurar Antípatro.
- Amém!... tornaram a dizer os quatros companheiros.

312
Depois, houve uma pausa. Os cinco conspiradores
rezaram em voz baixa para que Deus santificasse aquele laço
fraternal que em prol da liberdade e da pátria acabavam de
apertar.
- Agora, disse o essênio, cada qual revele a seus irmãos
aquilo com que conta para o dia do levantamento; e
dirigindo-se a Antípatro disse-lhe: fala tu primeiro que és o
mais moço.
- Eu conto com a minha bolsa bastante repleta de
moedas de ouro; com este dinheiro e a minha qualidade de
príncipe, creio reunir alguns parciais nas margens do Jordão,
que arrisquem a vida a minha voz pela liberdade do povo
hebreu.
- Eu, disse Dimas, estarei onde me designeis com os
meus terríveis companheiros samaritanos, disposto a morrer
à vossa voz.
- Pela minha parte ofereço, disse por sua vez Matias, os
quarenta discípulos que recebem em Jerusalém a minha
inspiração. Gente moça e atrevida, fará o que eu lhe mande
no momento do perigo; o seu Deus e a sua liberdade os
levarão ao combate com a espada na destra, o sorriso nos
lábios e a fé no coração.
- Eu também, replicou Judas, ofereço como Matias os
meus discípulos, e respondo com a cabeça pelo seu valor e
patriotismo.
- Eu pela minha parte exaltarei os ânimos do povo
jerosolimitano, exclamou Sedoc; e quando outra coisa não
possa este pobre velho, derramará até à sua última gota o seu
sangue pelo seu Deus e pela sua pátria. Agora só falta marcar
o dia, a hora e o lugar em que se deve dar o grito de
liberdade.

313
- Tu és como o mais velho o mais prudente; a ti
compete pois dirigir o movimento, disse Dimas.
- Permiti-me que vos diga, meus irmãos, tornou
Antípatro com melíflua voz, que a moléstia de meu pai
poderia auxiliar os nossos planos, e não devemos desprezar
esta ocasião.
- Dentro de cinco dias, disse Sedoc, deve celebrar-se
em Jerusalém a festa das sortes. Multidão de israelitas
acudirão de todas as partes para adorarem o seu Deus nos
átrios do santo templo. Nesse dia como as cerimônias
hebraicas permitem que de toda parte cheguem forasteiros a
Jerusalém, os soldados romanos e os herodianos dormem
tranquilos fiados na nossa fé. Nesse dia, pois, os nossos
parciais, com a arma escondida entre as pregas dos mantos,
confundidos com a multidão que encherá as ruas, não é fácil
nem que sejam reconhecidos nem que chamem a atenção dos
mercenários de Herodes: creio que o dia das sortes será
conveniente par ao nosso plano...
Os quatro responderam afirmativamente com a cabeça.
- Seja o dia das sortes então já que, como a mim, vos
apraz. Escolhamos a hora e a senha para darmos o grito de
rebelião. Quando o sumo sacerdote ler no livro de Ester
aquele versículo que diz: “E assim foi enforcado Aman no
patíbulo que tinha preparado para Mardoquéu, e cessou a ira
do rei”, então dos discípulos de Matias e Judas farão em
pedaços a águia de ouro que mancha a casa de Deus, e isto
será o sinal do combate.
- Quando cair a águia que pousa sobre o pórtico do
templo, os meus soldados desembainharão a espada pela
pátria, exclamou Dimas entusiasmado.

314
- O mesmo prometemos à frente dos nossos discípulos
derribar esse padrão de ignomínia que rouba o sono aos
judeus descendentes de Jacó.
- Agora, o Leão de Judá afie as garras como em outros
tempos, e o glorioso estandarte dos Macabeus tremula,
agitado pela aura da liberdade, sobre o abatido povo de
Israel.
Os cinco conspiradores abandonaram a caverna depois
de fazerem o segundo juramento. Era dia.
Então começaram a descer, não sem custo, pela encosta
daquele escabroso e sombrio monte. Chegaram ao fundo do
barranco e detiveram-se. Ali deviam separar-se.
- Deus seja convosco, disseram uns aos outros.
- A celebração das sortes seja tão propícia aos judeus
de agora, como o foi para os judeus no tempo de Ester,
exclamou Sedoc.
Depois Dimas, ligeiro como umgamo desapareceu da
vista deles, dirigindo-se à Samaria. Antípatro, montado no
seu fogoso corcel, tomou o caminho de Jericó; e os três
doutores da lei dirigiram-se com tranquilo passo á cidada de
Jerusalém.

CAPÍTULO III

O TEMPLO DE SION

Enquanto o Eterno não concedia morada fixa aos


judeus para lhe elevarem um templo estável, as doze tribos
de Israel serviram-se dum portátil, durante os seus longos
anos de errante peregrinação.
O povo israelita não reconhecia então outro rei senão
Deus. Moisés era a providência que o dirigia, transmitindo-

315
lhe as ordens de Jeová. Por isso erguiam no meio do seu
acampamento o santo Tabernáculos, como a tenda de um rei.
E, em torno daquele templo improvisado com telas, peles e
leves tábuas, colocavam nos arraiais dos levitas, e nos seus
quatro extremos plantavam as suas bandeiras, para proteger a
casa de Deus, as valentes tribos de Judá, Ruben, Efraim e
Dan.
As oito tribos restantes dormiam tranquilas debaixo das
suas tendas, vendo flutuar os estandartes sobre as suas
cabeças.
Aquelas telas que agitavam o ar do deserto tinham
esculpidas as insígnias das tribos. Judá ostentava um leão,
símbolo da fereza; Ruben um homem, como rei dos animais;
Efraim, um boi, imagem da força; e Dam uma águia com
uma serpente enroscada aos pés, imagem da astúcia e da
sabedoria.
Quando o sábio legislador mandava levantar os arraiais,
os levitas desfaziam o templo com prodigiosa rapidez, pois
cada um tinha a seu cargo um pano ou uma tábua dos que
formavam as paredes.
Chegou por fim o venturoso reinado de Davi. O jovem
monarca conhece que o povo precisa duma cidade forte que
o defenda dos inimigos. Seu olhar de águia fita-se nas
montanhas de Sion, de Acra e de Mória, como se fitava
pouco antes, armado da funda, na colossal figura de Golias, o
gigante filisteu.
As escarpadas rochas do vale de Josafá atraem-no: fala
às suas tribos, e oferece o posto de general do exército ao
primeiro que as escale, Joab, sobrinho do rei, escala o muro
no meio duma nuvem de flechas, e a espada de Israel degola
a população jebusea. Davi fica senhor de Jerusalém; seu
reinado cresce como se a mão invisível de Deus derramasse

316
sobre seus vassalos os seus eternos dons, e o rei pensa em
elevar um templo a Jeová.
Tudo está pronto: plantas e material; porém Davi
morre, e seu filho Salomão tem a glória de pôr em obra o
pensamento do pai.
O monte Mória é escolhido para berço da casa de Deus
e, sete anos depois, o templo de Sion brilha e refulge aos
raios do sol como um astro. Cinco séculos giram em torno
dos seus soberbos muros, que caem convertidos em ruínas
ante os formidáveis soldados de Nabucodonosor. Os
babilônios apoderam-se das riquezas do templo e, lançando
uma cadeia ao pescoço do desgraçado rei Joaquim, cegam-
lhe os olhos e transportam-no cativo com o seu numeroso
povo israelita para a orgulhosa cidade dos sátrapas, onde o
deus Belo é adorado.
Gerencias chora nos seus sentidos e poéticos cantos a
escravidão de sua raça: mas enfim, Zorobabel alcança a
liberdade de seu povo, e torna à frente dele a estabelecer-se
na cidade santa. Segundo templo se eleva no monte Mória no
mesmo lugar que o primeiro. Os israelitas acodem
pressurosos a adorar o Deus invisível ante seus sagrados
altares; mas o tempo, com seu poderoso hábito, desmorona
seus altivos pórticos, seus soberbos muros.
Seis séculos descarregaram as tempestades, chuvas e
furações sobre o gigante de pedra que serve de morada ao
Deus de Sion, e Herodes o Grande cinge a fronte com a
coroa tributária de Jerusalém, e torna a reedificá-lo tal como
vamos bosqueja-lo aos nossos leitores servindo de descrição
que Josefo, o historiador judeu, nos deixou:
“Tinha o templo cem côvados de largo e cento e vinte
de alto, altura que com o andar do tempo ficou reduzida a
cem côvados pelo desaprumo dos alicerces. Era de

317
maravilhar a dureza e brancura das pedras do edifício, não
menos que as suas dimensões, pois tinham vinte e cinco
côvados de comprimento, oito de altura e doze de largura.
“As artes tinham desenvolvido todas as suas riquezas
na arquitetura daquele monumento, que parecia o palácio
dum rei e o mais famoso que ainda se viu debaixo do sol.
Ricos tapetes recamados de flores de púrpura decoravam os
pórticos; nas cornijas das colunas pendiam cepas de ouro
com seus pâmpanos, e cachos. Tinha o templo dez portas;
quatro ao norte, quatro ao sul, duas ao oriente, e o lado que
olhava ao ocidente estava tapado; todas de duas folhas, cada
uma com trinta côvados de altura e quinze de largura;
estavam os quicés chapeados de ouro e prata; uma só o
estava de cobre de Corinto, mas aquele cobre superava em
valor todos os metais; o frontispício do monumento,
coalhado de ouro, reluzia como brasa aos raios do sol
nascente.
“O interior do templo, dividido em duas partes,
assombrava pelo seu rico ornato: sobre a porta do primeiro
recinto sagrado via-se uma vida de ouro, do tamanho de um
homem, com cachos do mesmo metal; um tapete babilônico
de cinquenta côvados de altura e dezesseis de largura cobria
as portas, por onde se passava para o segundo recinto; o azul,
a púrpura, o escarlate e o linho, mesclados naquele tapete,
representavam os quatro elementos: o azul, o ar; a púrpura, o
mar de onde sai; o escarlate, o fogo; o linho a terra que o
produz. Ajudada pela ciência, a arte havia representado
naquele grande véu o círculo da esfera celeste, menos os
doze signos. Passado o seguindo recinto, e na profundidade
do templo, acha-se o Santo dos Santos.
“Rodeavam o templo, sustentadas por fortes paredes,
largas e altas galerias. Um outeiro, a leste do monumento

318
religioso tinha-se convertido em terrado de quatro fachadas,
cujas enormes pedras estavam unidas entre si com chumbo;
uma triple galeria, que atravessava profundo e dilatado vale
ou precipício, ligava o templo com o bairro ocidental da
cidade; cento e sessenta e duas colunas da ordem corintia de
vinte pés de circunferência cada uma, sustentavam em três
fileiras aquela triple galeria”.
Esta obra, que não fazemos mais que indicar
incompletamente, porque ainda conhecendo os sítios nos é
impossível desentranhar a obscuridade da descrição que faz
dela o historiador judeu, devia ser uma construção
prodigiosa.
“Ao norte do templo, a torre dos Asmoneus, reedificada
por Herodes e semelhante ao seu palácio, tomou o nome de
Antônia, em memória do benfeitor do rei. Uma abóbada
subterrânea conduzia da torre Antônia à porta oriental da
casa de Deus; nesta fortaleza era que se guardava a vestidura
solene do sumo sacerdote sob os dois selos do pontífice e do
tesoureiro.
“No dia da dedicação do templo, Herodes, seu
restaurador, oferecia pela sua parte trezentos bois em
sacrifício. Uma águia colocada sobre a porta principal do
santuário perturbava a piedosa, alegria dos israelitas,
forçados a devorar como um ultraje aquele sinal profano”.
Com o maior gosto ofereceríamos a iconografia do
templo de Jerusalém para que os nossos leitores pudessem
fazer uma idéia mais aproximada do grandioso templo
imortal, que recebeu no seu seio o Filho de Deus; mas a
índole do nosso livro não nos permite deter-nos nos
pequenos pormenores descritivos, pelo que desistimos,
contentando-nos com o ligeiro bosquejo que fizemos.

319
CAPÍTULO IV

A FESTA DAS SORTES

O sol estendia sobre a cidade santa os puros raios da


sua fronte numa manhã do mês de Adar, mês que conservava
nos anis de Israel um recordação de dor e outra de prazer;
mês em que nos dias 7 e 8 se jejua pela morte do seu mestre
Moisés, e a 14 e 15 se celebra a festa chamada Porim ou das
Sortes, em memória de ter alcançado a bela Ester do rei
Assuero que revogasse a sentença de morte que contra os
judeus de todas as partes havia assinado, por conselho do
seu favorito Aman.
O favorito tinha deitado sortes para ver o dia que devia
começar a terrível matança; mas, felizmente para o povo
hebreu, a formosa rainha consegue salvá-lo do cutelo
homicida e perder o iniciador de tão terrível pensamento.
Um povo imenso circulava pelas ruas. As casas eram
insuficientes para albergar a multidão de forasteiros que
acudira para ouvir da boca do sumo sacerdote os belos
versículos do livro de Ester, sua salvadora, que deviam ler-se
no santo templo. Apinhadas massas de homens, mulheres e
crianças se encaminhavam para a cidade inferior, ansiosa
por encontrar um lugar cômodo nos grandes átrios das
nações, porque nesses dias de solenidade religiosa nem a
todos era permitido penetrar no átrio dos israelitas.
O pórtico oriental ou de Salomão parecia um imenso
formigueiro que engolia aquela apinhada corrente de gente
que pela porta Susan se introduzia nos átrios, para se deter
diante da segunda porta chamada Corintia, diante da qual se
levantavam duas terríveis colunas, cujas latinas e gregas

320
inscrições proibiam, sob pena de morte, penetrar no templo
aos gentios e imundos. Andando um pouco mais, a multidão
teria encontrado a porta superior, e atrás desta o átrio dos
sacerdotes: mas naquele recinto era vedado ao povo penetrar.
A alegria era geral e brilhava em todos os rostos. A gente foi-
se colocando o melhor que pôde e revestindo-se dessa
paciência buliçosa do povo nas festividades que nada lhe
custavam, e esperava o aparecimento do sumo sacerdote.
Entretanto, não estava ociosa a multidão, pois os
homens inscreviam com pedaços de carvão ou gesso sobre os
bancos, e sobre as pedras que levavam de propósito, um
nome:este nome era o de Aman; e as mulheres e crianças
começaram a agitar sobre as cabeças pequenos maços de pau
e martelos de ferro.
Chegou por fim a hora em que o sumo sacerdote devia
começar a cerimônia. Era este um ancião de respeitável e
nobre semblante, alta e majestosa figura e vestia uma túnica
talar cor de jacinto, guarnecida no extremo inferior de
sessenta e duas campanhas de ouro e outras tantas granadas
que produziam sonido vibrante e harmonioso, ao menor
movimento do sacerdote.
Um pano de trinta centímetros, bordado de torçal
branco, lhe cobria o peito, em cujo centro brilhavam de um
modo deslumbrante doze pedras preciosas com os nomes dos
doze filhos de Jacó. Este rico peitoral era preso na cintura
por duas fitas que marcavam o talhe e nos ombros por dois
rosetões de ouro, onde também se viam incrustados os nomes
dos filhos de Jacó, de modo seguinte: no dia direita, os seis
mais velhos e no da esquerda, os seis mais moços.
Terminava este traje majestoso uma espécie de tiara ou
barrete com uma lâmina de ouro cheia de inscrições

321
hebraicas, presa por uma fita de cor azulada. Nos pés nada
levava, ia descalço.
O sacerdote abençoou o povo, e abrindo um volumoso
livro que tinha na mão, dispôe-se a ler em voz alta. A
multidão guardou tal silêncio que, se um estrangeiro
houvesse passado naquele momento pelas vizinhanças do
templo, o teria julgado desabitado. O sacerdote, com voz
grave e pausada, falou desta maneira ao povo:
- Ouvi, ouvi, ouvi, o livro de Ester, filha de Abigail,
sobrinha de Mardoqueu, da tribo de Benjamim, mulher de
Assuero, rei da Pérsia.
Aqui fez uma pausa e leu os dois primeiros capítulos do
livro, no meio de religioso silêncio.
Enquanto a poética e interessante narração do livro de
Ester só se reduzia à desobediência da rainha Vasti, esposa
de Assuero, ao decreto para que as mulheres obedecessem a
seus maridos, e à descrição da formosa judia que arrebatou
de amor o coração do monarca persa, ninguém se moveu do
lugar; mas, ao chegar ao final do capítulo terceiro, quando o
favorito Aman, indignado de Mardoqueu não curvar a cabeça
como um escravo, concebe um plano de aconselhar ao seu
senhor que extermine a raça judaica, e o rei seja o decreto;
quando, depois de deitar sortes sobre o dia da matança fica
consignado o dia treze do mês duodécimo, chamado Adar,
e o sacerdote leu com as lágrimas nos olhos o versículo 15,
que diz: “Os correios que foram enviados apressaram-se a
cumprir a ordem do rei, e logo se afixou em Susan, corte de
Assuero, o edito na ocasião em que o rei e Aman celebravam
um banquete, e todos os judeus que havia na cidade estavam
chorando”; então o sacerdote suspendeu a leitura, e todo o
povo rompeu num lamento que durou alguns minutos. As
mulheres rasgavam os vestidos, os homens arrancavam os

322
cabelos, os rapazes agitavam em som de ameaça os martelos
e os maços. Desde então, cada vez que dos lábios do leitor
sacerdote saía o nome de Aman, os assistentes
descarregavam furiosas pancadas com os martelos sobre o
mesmo nome que pouco antes tinham inscrito com carvão e
gesso, exclamando todos:
- Sumido seja o teu nome: o nome do malvado seja
destruído.
A dor dos judeus mudou-se em estrondosas alegria
quando o sacerdote leu o versículo 10 do capítulo VIII que
diz: “E assim foi enforcado Aman no patíbulo que tinha
preparado para Mardoqueu, e cessou a ira do rei”.
Tocava seu termo a leitura do livro de Ester quando um
acontecimento veio perturbar a solenidade religiosa da festa
das sortes.
- Abaixo os ídolos dos ímpios! exclamaram várias
vozes que figuravam sair da parte superior dos pórticos do
templo.
- O leão de Judá quer ser livre, responderam outras
vozes que saíram da multidão que enchia o átrio das nações.
Neste momento, a águia de ouro que Herodes colocara
como uma baixa adulação a Roma sobre a entrada oriental do
templo caiu, rolando em pedaços aos golpes de alguns jovens
hebreus que, armados de martelo, tinham subido ao alto
pórtico. Um clamor universal se seguiu a este rasgo da
audácia. Este grito tinha várias entoações: umas de alegria,
outras de assombro, as mais, de espanto. As mulheres, as
crianças e os velhos fugiram com medo para suas casas. Os
soldados de Antípatro, os bandidos de Dimas e os discípulos
de Sedoc, Matias e Judas, agruparam-se nos átrios, e as
espadas ocultas brilharam aos raios do sol. Por outra parte a
curiosidade tinha formado seus grupos de espectadores que

323
esperavam o resultado daquele motim, indecisos ainda em
tomar parte nele.
A notícia, como acontece sempre em semelhantes
casos, correu com rapidez por todos os âmbitos da cidade.
Por fim deteve-se no Palácio de Herodes, e foi pousar nos
ouvidos de seu filho Arquelau e do seu general Verutídio. A
trombeta das legiões reuniu os soldados do Tibre. Verutídio e
Arquelau desembainharam as espadas e, montando a cavalo,
encaminharam-se para o lugar onde o motim começava a
levantar a cabeça, com intenção de fazerem pagar caro o
atrevimento.
Apenas os soldados de Herodes apareceram diante do
templo, os sediciosos agruparam-se em redor de seus chefes.
Os gritos tinham cessado; mas começara o perigo. Os
valentes israelitas abarcaram com um olhar aquela legião
coberto de aço que se aproximava deles. Compreenderam o
perigo que os ameaçava, pois os soldados legionários do
Idumeu eram o quíntuplo das suas forças.
Os inimigos podiam-lhes apresentar os largos escudos
de couro ante a ponta dos punhais e eles só apresentavam os
peitos cobertos com a simples túnica, muro humano onde
iam cravar-se para saírem ensanguentadas até ao punho as
cortadoras espadas dos romanos.
Dimas compreendeu que aquele batalhão de aguerridos
soldados que avançava para eles com o seu aspecto marcial e
ameaçador podia esfriar o valor dos companheiros. O sangue
excita os combatentes; o estrondo das armas, os gritos dos
que lutam no combate, reanimam o valor, e Dimas conhecia
tudo isso e receoso de que os seus parciais retrocedessem
ante o perigo, tirando o comprido punhal com a mão
esquerda, arremessou com toda força a azagaia, a qual foi
cravar-se no peito de um centurião que caminhava adiante

324
dos soldados do Capitólio. O Centurião soltou um grito e
caiu, banhado em sangue, do seu cavalo. Aquele grito foi o
sinal do combate.
Os israelitas detiveram a primeira investida dos
romanos; de ambas as partes se faziam esforços de valor:
Israel defendia à casa do seu Deus; Roma lutava por vencer
os profanadores da sua águia triunfadora. O sangue corria
com abundância pelos átrios.
Aquela luta era o último esforço de um povo que
combate pela sua liberdade; a última tentativa do escravo
desfalecido para arrancar a pesada cadeia que o sujeita ao
despótico jugo de seu tirano opressor. A luta, era
desesperada, raivosa, sem quartel. O ferido não tinha quer
esperar clemência do vencedor, porque era inútil.
Por fim os israelitas foram cedendo ante a força
numérica dos romanos. Alguns combatentes, vendo a
superioridade dos inimigos, começaram a buscar a salvação
na fuga. Antípatro foi um dos primeiros a abandonar
vergonhosamente o campo de batalha. Aquele príncipe
efeminado e sedicioso perdia pela sua falta de valor uma
coroa e arriscava a vida, que o medo lhe fez olhar naquele
instante com mais afeição do que devia.
Um hora de luta encarniçada bastou aos soldados de
Herodes para provarem aos sediciosos israelitas que o seu
plano malograra. Mais de cem homens se revolviam pelo
chão, manchados com o sangue que lhes manava das feridas.
Quando o homem se persuade de que é impotente
contra o perigo que o ameaça, o valor apaga-se e a idéia da
salvação individual toma grandes proporções no ânimo. A
Dimas bastou um olhar para compreender que tudo se tinha
perdido, e, tirando uma trompa de caça que lhe pendia da
cinta, aplicou-a aos lábios. Aquele som reuniu em torno dele

325
como por encanto todos os soldados da sua companhia que
restavam com vida.
- Tudo se perdeu, disse com raivoso acento. Para
Samaria, para Samaria! Siga-me quem puder; e, derribando
com o terrível punhal quantos se achavam na passagem saiu
do templo seguido dos seus companheiros e abandonou a
cidade.
Pouco depois tudo tinha terminado.
Os habitantes de Jerusalém chegavam-se com medo às
janelas para verem passar uma legião de herodianos que
conduziam entre duas fileiras de lanças, Sedoc, Judas e
Matias, e quarenta dos seus valentes discípulos. Estes
mártires da liberdade caminhavam carregados de cadeias,
com o traje em desordem, o rosto decomposto e manchados
com o sangue dos seus vencedores.
Arquelau e Verutídio caminhavam à frente da coluna,
iam a Jericó apresentar ao terrível Herodes os prisioneiros de
guerra, aqueles infelizes de quem Deus era a sua única
esperança; mas essa esperança é a última do crente; por isso
cai como um bálsamo santo sobre o coração dos
desgraçados.

CAPÍTULO V

A CLEMÊNCIA DE HERODES

No dia seguinte, quando o rei enfermo sou que os


revoltosos de Jerusalém carregados de cadeias no hipódromo
de Jericó esperavam as suas ordens, mandou que o vestissem
e o transportassem numa liteira a onde estavam os
prisioneiros.

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Herodes, cruel por natureza, sanguinário por prazer,
quis cerva-se na dor daquele punhado de israelitas. Sedoc,
Matias e Judas alentavam o desfalecido espírito dos seus
discípulos que, moços e cheios de vida, começavam a
empalidecer ante a morte que lhes pairava sobre as cabeças.
A chegada de Herodes causou desagradável impressão
nos prisioneiros. O séquito real deteve-se a poucos passos do
grupo dos rebeldes e Cingo descerrou as vermelhas cortinas
de seda de Tiro que fechavam a liteira, para que o seu senhor
estendesse a cabeça.
- São aqueles? perguntou o rei do escravo, de um modo
desprezador?
- Não vejo meu filho.
- Evadiu-se! Sabes que essa palavra me incomoda?
Vejo com dor que te tornas desastrado nos negócios
importantes.
- Quando a peça se perde, o podengo não desespera
enquanto não perdeu o rasto.
- De modo que tu tens o rasto?
- Ainda mais, senhor; espero topar com o javali dentro
em pouco, esta noite.
- Pois se tal for a tua fortuna, encerra-o bem e avisa-me
logo. Mas não esqueças de que nós, os velhos, temos alguma
coisa de criança, e nos agastamos quando não cumprem o
que nos prometem.
Cingo saudou e Herodes dirigiu o olhar para o grupo
dos prisioneiros.
- Ingratos! exclamou depois duma pausa, com uma
entoação sentida e bondosa como a que costumam empregar
os pais para repreender algumas inconveniências do filho a
quem mais querem. Ingratos! Eis a paga que recebo, em
troca dos benefícios que derramo às mãos cheias sobre eles.

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Eu reedifiquei o seu templo, eu abro os meus celeiros quando
a fome os cerva ameaçadora e cruel, eu sacrifico com a fé do
crente ante o altar do Deus invisível dos seus maiores, eu
tenho esgotado os meus tesouros para pensionar os seus
poetas, levantar teatros, circos e cidades, engrandecendo com
o auxílio da arte a terra de Israel; e eles, filho desnaturados,
rebelam-se contra seu pai enfermo, com uma ingratidão
incrível... A minha mão benfeitora, sempre estendida para
semear o bem, esperava uma lágrima de agradecimento e um
beijo de afeto... e como víboras cruéis vêm cravar o seu
venenoso ferrão, empeçonhando os últimos dias da minha
vida. Deus o quer!
Herodes soltou um suspiro. Os prisioneiros, ante aquela
doce e paternal reconvenção do seu senhor, sentiram-se tão
comovidos que, agrupando-se em derredor da liteira, se
lançaram aos pés do rei, pedindo o perdão das suas culpas.
Sedoc, que não tinha inclinado a orgulhosa fronte ante
Herodes, admirado da estranha clemência daquele tirano,
dirigiu-lhe a palavra dessa maneira:
- Eu sou Sedoc, filho de Manaém, o adivinho, e
agradeço-te em nome destes moços que se prostram a teus
pés admirados da tua real clemência.
- Ah! exclamou o Idumeu fitando o penetrante olhar
naquele velho. Por ventura possuis tu o mesmo dom de teu
pai? És, como ele, desses inspirados que vaticinam o futuro e
lêem no misterioso livro do porvir?
- Assim o crê o povo, respondeu o essênio.
Sedoc deu alguns passos e tornou a deter-se.
Seu olhar de águia abrangeu com tenacidade o
cadavérico rosto de Herodes, fez uma leve pausa como se
decifrasse um enigma e depois, estendendo a mão, disse com
voz profética:

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- A página da tua vida apresenta-se muito escura no
porvir; as letras estão apagadas, mas observo um sinal que
me diz que antes que a lua nova apareça em todo o seu
esplendor sobre as tranquilas águas de Tiberíades, exalarás o
último sopro da tua vida.
Herodes guardou silêncio. Dir-se-ia que a profecia de
Sedoc tinha lhe aniquilado a língua. Teve medo daquele que,
precursor da morte, se erguia ante ela para lhe apontar a
cova. O pai tinha-lhe profetizado uma coroa; o filho, o
sepulcro.
O Idumeu lançou um punhado de moedas de prata
sobre aqueles infelizes que tremiam a seus pés e deu ordem
que o conduzissem ao seu palácio. Ao sair do circo, o rei
agitou o lenço em sinal de perdão. Os conspiradores soltaram
um grito de alegria; mas aquela clemência de Herodes era
um cruel sarcasmo, uma sangrenta burla.
O infame Idumeu mostrava-lhes o céu só pelo prazer de
os abismar no inferno; oferecia-lhes uma esperança para lhes
tornar mais amargo o desengano. Porque nos sanguinários
cálculos do verdugo de Mariana jamais entrara o perdoar os
rebeldes israelitas. Por isso, esquecendo os seus
padecimentos, preocupado com uma idéia de sangue, tão
frequente nele, chegou ao palácio e chamou o guarda-selos,
dizendo:
- Ouve, Ptolomeu: que pena te parece que devia impor-
se a esses rebeldes?
- A clemência é a maior virtude dos reis, lhe respondeu
o velho servidor.
- Sim, ouviu-o dizer, a clemência é uma grande coisa;
mas com o caráter dos hebreus, a clemência é um
inconveniente.

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- Salomão disse que a benevolência é como o rocio,
tornou Ptolomeu.
Herodes dirigiu-lhe um olhar terrível, que fez tremer o
guarda-selos.
- Salomão, disse com entoação fria o cruel Herodes, era
um sábio, e pensava como costuma pensar essa família de
loucos pacíficos que divagam pelas ruas, e que o vulgo
denomina com a palavra de sábios; mas eu não tenho talento:
mais que um homem de letras, sou de armas; e o meu dever é
castigar a rebelião que levanta a cabeça para perturbar a paz
dos seus súditos.
- Tu és o nosso senhor, tua vontade é lei: manda e serás
obedecido.
Ptolomeu disse estas palavras com todo o medo que
poderia dizê-las um cortesão que vê em risco a sua vida.
- Quantos são os sediciosos? perguntou Herodes depois
duma pausa.
- Cerca de oitenta.
- Pois olha, escolhe quarenta, os que mais te
incomodem, e fá-los morrer assedeados no hipódromo,
quanto aos três chefes da expedição, o mais prudente é
queimá-los vivos e espalhar depois as cinzas. A má semente
convém exterminar pela raiz.
Ptolomeu dispunha-se a abandonar o quarto do rei,
receoso de que terrível sentença o alcançasse quando
Herodes o deteve:
- Ah! esquecia-me. Os outros podes deixar livres para
que apregoem a clemência de Herodes. Vai e dize aos meus
escravos que me sirvam a ceia.
O guarda-selos saiu da câmara real, e meia hora depois
o rei ceava tranquilamente com seu filho Arquelau, seu neto
Aquiab e o seu general Verutídio.

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As ordens de Herodes foram cumpridas no dia seguinte.
Os primeiros alvores do crepúsculo oriental caíram sobre o
circo de Jericó, banhando as altas colunas do real edifício
levantado com o ouro de Herodes para entreter a plebe com
os ferozes espetáculos que tanto entusiasmavam o povo do
Tibre.
O inocente canto das aves juntou-se com os dolorosos
gemidos dos quarenta discípulos, que por espaço de duas
horas serviram de alvo aos atiradores herodianos. Sedoc,
Matias e Judas foram queimados na presença dos
companheiros. O feroz idumeu tinha lavado com um mar de
sangue o insulto que os israelita haviam feito a Roma.
Pouco depois, quando o morticínio de Berito, Belém e
Jericó chegou a saber-se no Capitólio, quando o clemente
César soube que Herodes, depois de assassinar seus filhos,
degolava os primogênitos da cidade de Davi, o ilustre
vencedor de Cleópatra, o prudente imperador dos romanos,
exclamou com indignação estas palavras que a história
consignou como um padrão de infâmia que mancha as
páginas do tempestuoso reinado de Herodes.
- Esse miserável com coroa é um infame sem coração.
Vale mais ser porco que filho de Herodes.
Deixemos o rei ceando na sua câmara, rodeado dos
filhos e do general, e sigamos Cingo que caminha favorecido
pela escuridão da noite por uma das ruas desertas de Jericó.
O escravo vai só e envolto num manto cinzento, que
enrola à maneira de alquicer na sua enorme e áspera cabeça.
A cinquenta passos, e seguindo o mesmo caminho,
destacavam-se quatro vultos entre as sombras da rua. Todos
caminhavam sem fazer bulha, como as cobras que deslizam
pelas margens do rio para surpreender os ninhos das cercetas.

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O escravo para diante duma porta de mesquinha
aparência, e apalpa com as mãos as tábuas como procurar
fechadura. Então, com um instrumento começar a forcejar,
mas sem que o mais leve ruído, interrompa a silenciosa
tranquilidade da noite. A porta cede e fica aberta diante do
etíope.
As quatro sombras reúnem-se com o negro, e este diz
em voz baixa:
- Entremos.
Os punhais brilham nas mãos dos misteriosos
companheiros de Cingo, e imediatamente desaparecem todos
no estreito e escuro corredor que comunica com o interior da
casa.
Cingo detém-se e, aplicando os lábios no ouvido de um
dos companheiros, murmura uma frase que só aquele a quem
é dirigida pode ouvir.
Esse deteve, tornou a desandar o andado, e,
embuçando-se no manto, foi sentar-se de cócoras sobre o
tosco degrau da porta.
Os outros quatro seguiram avante, caminhando pelo
escuro corredor com as mãos estendidas como se temessem
topar nas paredes que os rodeavam.
Aonde iam?... Vamos vê-lo.

LIVRO OITAVO

A AGONIA

CAPÍTULO I

A DUPLA CADEIA

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Retrocedemos algumas horas.
Tomemos o fio da nossa narração desde o momento em
que o príncipe Antípatro, vendo perdida sua causa
abandonou o templo, buscando na fuga a salvação da vida
ameaçada tão de perto pela vencedora espada dos romanos.
Um homem, surdo ao próximo estrondo dos combates,
insensível ao grito de dor dos moribundos, achava-se sentado
junto ao umbral duma porta de miserável aparência, numa
das vielas do novo bairro de Beceta. Segurava com a destra
as rédeas de um fogoso corcel impaciente ao seu lado. A
bronzeada cor das suas faces, o largo alquicer de variegadas
cores com que encobria o corpo e o receoso e estúpido olhar
de seus pequenos e fundos olhos, diziam claramente que
aquele homem era um desses seres degredados que a Arábia
arrojou do seu seio e que arrastam toda a vida a pesada
cadeia da escravidão sem o sentirem, nem compreenderem o
afrontoso jugo que, como uma maldição do céu, pesa sobre
eles, de pais a filhos, séculos e séculos.
O jovem príncipe, coberto de sangue e suor, entrou
precipitadamente na indicada rua e, aproximando-se ao
homem do cavalo arrancou-lhe as rédeas da mão, e ligeiro
como um lince saltou sobre o robusto dorso do inquieto
animal dizendo ao mesmo tempo que deitava algumas
moedas de prata no chão:
- Escravo, és livre, celebra a tua alegria e a minha
desdita com esses ciclos que semeio a teus pés. E, enterrando
o acicate nos ilhais do corcel, partiu a galope rasgado.
O escravo deitou-se de bruços no chão e começou a
apanhar as moedas com avidez. Aquilo era uma fortuna para
ele; nunca seus olhos tinham visto tanto dinheiro junto e
aquele dinheiro era seu. Tanta emoção transtornava-o e nem

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reparou em dois cavaleiros que penetraram na rua e que
passaram diante dele.
- Eh! gritou um dos cavaleiros desviando o cavalo para
não o atropelar.
- Eh! bom homem, tornou a gritar o mesmo; quem é
aquele cavaleiro que desemperra a rua?
- Ignoro, mas deve ser pelo menos filho de um rei,
respondeu o árabe.
- É meu irmão, disse um dos cavaleiros, dirigindo-se ao
outro.
- O mesmo creio, respondeu o primeiro.
- Então, Cingo, já sabes o teu dever.
- Nunca o esqueço, meu príncipe.
- Mercúrio empreste ao teu corcel suas asas.
- Assim o espero.
Então Arquelau, pois era ele, fez voltar o corcel em
direção ao templo e Cingo, o escravo favorito de Herodes,
partiu em seguimento de Antípatro.
O árabe ficou só no meio da rua olhando com
espantados olhos em torno de si.
- Belzebu vos guie, exclamou um hebreu encostando-se
ao muro para não derribado.
- Estão loucos, murmurou outro.
- Dize antes que fogem da refrega, falou por sua vez um
rapazote.
- Ora, quem não conhece na cidade o efeminado filho e
o sombrio escravo de Herodes?
A conversação tornou-se geral mas em voz baixa, e os
cavaleiros perderam-se no espaço.
Uma hora de carreia desesperada à mercê dos cavalos
levavam os dois cavaleiros, sem que por isso houvesse
podido evitar a terrível perseguição de que era objeto, nem o

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outro encurtar a distância que o separava do que com tanto
empenho perseguia.
Cingo conheceu que o galope dos cavalos era tão igual,
que nada adiantaria, pois só no caso em que seu inimigo
desse um tropeção poderia conseguir alcançá-lo.
Então recorreu a um meio usado entre os filhos do
deserto; reduzia-se a aliviar o seu corcel da carga inútil e
estender-se o cavaleiro sobre o pescoço do animal, para que
seu corpo, ao cortar o ar na carreira, não entorpecesse o
passo.
Cingo, resolvido a levar a cabo a sua estratégia,
agarrou-se com força, às crinas do cavalo, e, com risco de
cair, conseguiu tirar-lhe a sela e a manta e mais arreios,
deixando dentro em pouco o cansado animal em pêlo.
Então deitou-se sobre o pescoço do animal, e este
relinchou. Breve Antípatro percebeu que o seu perseguidor
ganhava terreno, e julgando impossível salvar-se e não tendo
bastante valor para se virar contra ele, ocorreu-lhe a idéia de
se deixar cair do cavalo e esconder-se num dos espessos
matagais que por toda parte o rodeavam.
Firme na sua resolução, reconheceu o terreno com um
olhar, e vendo que um cotovelo que formava o barranco que
seguia era o mais conveniente para que a sua manobra não
fosse descoberta, foi escorregando para o quarto traseiro do
animal, e deixou-se cair ficando direito no chão.
Esta manobra foi executada com tanta rapidez, que
Cingo não pôde vê-lo por causa do quebrado do terreno.
Antípatro teve cuidado de picar a ancar do cavalo com
a adaga que tinha na mão ao cair, de modo que o corcel, livre
do peso do dono e ferido pelo ferro, redobrou o veloz galope.
O príncipe escondeu-se no mato, e pouco depois viu,
oculto entre as ramas, passar como uma sombra fantástica a

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negra e sombria figura de Cingo, estendida sobre o cavalo.
Passou-se um quarto de hora, e as pisadas dos cavalos
perderam-se ao longe.
Cingo, sempre estendido sobre o pescoço do corcel,
esperava impaciente o instante em que os cavalos se
juntassem para apoderar-se do inimigo.
Antípatro começou a respirar quando o eco das pisadas
se perdeu ao longe. Mais tranquilo sobre o perigo que tão de
perto o ameaçava, começou a ocupar-se do presente. Negro e
borrascoso era o que o cercava, e mais terrível ainda o porvir
que a sua esquentada mente divisava ao longe.
Na terrível noite do seu infortúnio só aparecia uma
estrela que do céu tempestuoso da sua desgraça lhe enviava
os suaves e tranquilos raios da sua luz pura e formosa.
Aquela estrela era Enoé, à escrava favorita.
Quando cansada a mente, desfalecido o espírito,
Antípatro sentia que o seu ser lânguida devorado pelo fastio,
voava para o lado de Enoé em busca duma vida que iam
consumindo as discórdias da sua família. Então o amor de
Enoé em busca era o misterioso amuleto que o reanimava.
Amar e ser amado... compreender a balbuciante
linguagem dos ósculos, decifrar as expressivas frases sem
ruído dos olhares, sentir os doces efeitos de um suspiro
embalsamado com o aroma do coração que no-lo envia, ter
um seio amigo onde reclinar a fronte carregada com os
negros pensamentos que agrupa o infortúnio, ter enfim um
ninho de amor onde possa esquecer-se a perfídia dos
homens, o bulício do mundo, que maior ventura, para que
mais felicidade sobre a terra enquanto não chega a hora da
eterna recompensa?
Por isso Antípatro, que ao esconder-se entre o mato do
barranco se julgou o homem mais desgraçado do universo,

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começou a tranquilizar o seu tempestuoso espírito, porque a
lembrança de Enoé lhe desceu sobre a fronte como um
bálsamo consolador, como uma harmonia celeste. Pensou no
seu amor e julgou-se menos desgraçado.
Um pensamento lhe assaltou a mente, e disse para si:
- Enoé ama-me: corramos para o seu lado, a sua casa
será o meu porto de salvação, as suas lágrimas a benéfica
consolação que ambicionam as minhas dores; os seus doces e
enamorados cantos tornarão ao meu espírito a paz de que
tanto precisa, porque o amo é o remédio universal das penas
da alma.
Tomada esta resolução, saiu do seu esconderijo; e,
como nenhum ruído se percebia em torno dele, depois de se
orientar quanto ao lugar que ocupava e ao caminho que devia
seguir para Jericó, pôs-se a andar, servindo-lhe de guia o
preguiçoso Jordão que a pouca distância dali se arrastava
sobre o seu leito de areia.
Algumas horas depois, já de noite, o príncipe, fugitivo
bateu à porta da escrava, e esta abriu-a rapidamente.
Enoé era, como já dissemos, uma menina de dezoito
anos, tão formosa, tão cheia de vida como pode ser uma
donzela nascida nas margens do rio santo. Amava seu senhor
como acontece às escravas egípcias, que se enamoram dos
que as compram, isto é, com um respeito que tem muitos
pontos de contato com a adoração.
- Só um sentimento agitava o doce e terno coração
daquela menina: o amor. Só um nome sabia balbuciar a sua
encantadora boca: Antípatro.
Costumava lembrar-se da pátria; mas um olhar do seu
senhor, tinha o poder de fazer-lhe esquecer tudo.
Quanto a seus pais, mal os tinha conhecido. Antípatro
entrou em casa de Enoé, e esta pegando-lhe na mão de pois

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de a beijar, conduziu-o ao seu camarim favorito. Só ali a
formosa egípcia pôde reparar no deplorável estado do
amante. Roto, ensanguentado, com o cabelo em desordem, a
face comovida e pálida, os olhos encovados e envidraçados,
aquele formoso moço tinha envelhecido dez anos num só dia.
Enoé deu um grito ao vê-lo daquele modo, e lançou-se-
lhe nos braços. Antípatro pagou aquela afetuosa recepção
com um beijo e um sorriso e antes que a escrava lhe dirigisse
a palavra, disse-lhe:
- Querida Enoé, tenho uma fome horrível: há mais de
vinte horas que não como, e contra o meu costume vi-me
forçado a correr a pé uma distância considerável. Oh! os
meus delicados pés derrame uma prova da sua fortaleza; mas
com essa prova dilacerante, olha.
E Antípatro, que se tinha deixado cair sobre um coxim
indiciou os pés a Enoé.
- Esta ajoelhou-se e respeitosamente os beijou.
- Oh! disse-lhe o príncipe levantando-a com carinho,
deixa agora os meus pés e ocupa-te do meu estômago, minha
querida.
Enoé saiu da câmara enxugando as lágrimas. A pobre
menina não tinha despregado os lábios. O seu amor não tinha
encontrado palavras bastante expressivas para mostrar-se
com toda a beleza do seu sentimento, e recorreu à muda
eloquência das lágrimas e dos olhares, patrimônio exclusivo
das almas sensíveis, dos corações amantes.
Antípatro viu sair a escrava, e acompanhou-a com um
olhar doce e carinhoso.
- Pobre menina, disse consigo, só os deuses lares
poderiam revelar-te o teu futuro, quando os escravos de meu
pai me lancem ao pescoço a cadeia opressora que preparam!
Um suspiro seguiu estas palavras.

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Depois, apartando com a pequena não os desordenados
cabelos que lhe caiam pela testa, recostou-se no leito e,
apoiando os cotovelos nos almofadões, deixou cair a cabeça
entre as mãos, ficando naquela posição por alguns
momentos.

CAPÍTULO II

ONDE SE PROVA QUE NÃO É DIFÍCIL


ADORMECER NOS BRAÇOS DUM ANJO E
ACORDAR NOS DUM DEMÔNIO

Enoé tornou a entrar no camarim, conduzindo uma


bandeja com Carne e duas garrafas de vinho.
Antípatro não levantou a cabeça: um inferno lhe
refervia no cérebro, um mundo de idéias o preocupava; e
quando um homem se acha num desses períodos críticos da
vida, nada sente, nada vê, senão o que o preocupa e aturde
naqueles instantes.
A tímida donzela não se atrevia a interromper o
silêncio, a imobilidade do seu senhor. Em vão se afanava por
descobrir a origem daquela profunda dor. Mulher enamorada,
participava das dores do amante sem as compreender, sofri
com ele; mas, receosa de o molestar, sofria em silêncio.
Então passou-lhe uma idéia pela mente. Seus úmidos e
formosos olhos fitaram-se numa pequena e leve harpa que
pendia dum prego. Seus mãos apoderaram-se daquele
instrumento, e depressa uma doce melodia que chega ao
coração do jovem príncipe lhe faz a voltar a cabeça.
- Ah! estás ai, Enoé?
- Espero as tuas ordens, senhor.

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- Canta, pois, minha bela: a tua doce voz faz-me bem.
Sou tão desgraçado!
- Tu não és minha serva, és minha doce amiga; podes
cantar o que te agrade; só devo advertir-te que sou um
príncipe mui desgraçado a quem a morte persegue mui de
perto.
Enoé, estremeceu. Antípatro começou a comer
distraidamente, e Enoé, depois de procurar uma canção
análoga às circunstâncias, atreveu-se a dizer:
- Senhor, na história do teu povo acha-se um rei
chamado Ezequias que, próximo à morte, salvou a vida pela
fé que lhe inspirava o Deus dos seus maiores. O profeta
Isaias lhe anunciou mais quinze anos de vida, quando ele só
esperava viver um instante. A voz do profeta, o relógio solar
de Acaz retrocedeu seis graus e o sol subiu de novo ao
horizonte da parte do Oriente. Queres que preludie o canto de
agradecimento que elevou ao seu Deus o rei Ezequias?
- Ouçamos o canto do rei.
Enoé começou um acompanhamento que tinha um
doçura, uma variação indefível e, pouco depois, a sua voz
argentina começou a cantar a poética prosa de Isaias desta
maneira:
“No meio dos meus dias, entrarei pelas portas do
sepulcro: vejo-me privado do resto dos meus anos. Já não
verei o senhor meu Deus na terra dos que vivem. Não verei
mais homem algum, nem os que morarem em doce paz.
Tira-se-me o viver, vai-se dobrar a minha vida como a
tenda dum pastor: quando a estava ainda urdindo, então Ele
ma cortou; de manhã à noite acabarás comigo, ó Deus meu.
Esperava viver até ao amanhecer: o Senhor como um
leão forte havia quebrado os meus ossos; mas pela manhã
dizia: antes de anoitecer acabarás, ó Senhor, a minha vida.

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Estava eu como um filhinho de andorinha; gemia como
as pombas; debilitaram-se-me os olhos de olhar sempre para
o alto do céu. A minha situação, Senhor, é mui violenta;
toma a teu cargo a minha defesa.
Mas que é que digo? Como me tomará Ele sob o seu
patrocínio, quando Ele mesmo foi o que fez isto? Repousarei,
ó Deus meu, diante de Ti com a amargura da minha alma
todos os anos da minha vida.
Ó Senhor! Se isto é viver e em tais apuros se acha a
vida da minha alma, castiga-me, rogo-te, e castiga-me, e
vivifica-me.
Vede como se mudou em paz a minha amaríssima
aflição; e Tu, ó, Senhor, livraste da perdição a minha alma,
lançaste para trás das costas todos os meus pecados.
Porque não hão de cantar as tuas glórias todos os que
estão no sepulcro, nem hão de entoar os teus louvores os que
estão em poder da morte, nem aqueles que descem à cova
esperavam ver o cumprimento das Tuas verídicas promessa.
Os vivos, Senhor, os vivos são os que Te hão de
tributar louvores, como eu faço neste dia; o pai anunciará a
seus filhos a Tua fidelidade nas promessas.
Cessou o canto: Antípatro, ainda preocupado como se
escutasse o doce eco da voz de Enoé, ficou alguns momentos
sem despregar os lábios.
As palavras do rei moribundo tinham-lhe chegado até
ao fundo do coração, e este pulsava de modo estranho para
ele.
Por fim, deslizando do leito e pegando num leque de
penas, começou a abanar-se e a passear distraído pela sala.
De súbito os olhos do senhor encontraram-se com os da
escrava, e então o senhor foi sentar-se aos pés da formosa

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egípcia, que lhe apresentou o regaço para que reclinasse a
cabeça.
Antípatro aceitou o oferecimento enviando um sorriso a
Enoé, e depois disse-lhe:
- Fizeste bem em recordar-me a prece do rei Ezequias.
Desde este momento prometo-te ocupar-me um pouco mais
de Deus e um pouco menos dos homens.
- Meu príncipe: de Jeová emana todo o bom e
consolador; dos homens todo o aziago e penoso. Deus é a
fonte do bem que vivifica o foco de luz que ilumina; pensa
n’Ele e serás feliz, ama-o e terás ventura sobre o pó da terra.
- Vejo, querida Enoé, que a tua alma é tão bela como o
rosto. Bendito seja o instante em que os meus olhos te viram
pela primeira vez. Bendito seja o dia em que formamos este
pequeno ninho onde tu, branca pomba do Nilo, me fazes
esquecer com teus doces arrulhos de amor as terríveis
tempestades que agitam minha vida.
- A felicidade é a filha predileta do amor. As ternas
avezinhas são felizes porque amam; fazem suas tendas nos
flutuantes ramos das árvores, donde erguem seu canto
matinal para o Deus que fecunda o grão que as sustenta.
Como nada ambicionam, seus sonos são tranquilos, os cantos
são alegres; quando a noite se aproxima, enquanto a mão dá
calor com o corpo aos frágeis ovozinhos, o pai enamorado
corre a pousar as delicadas plantas sobre o industrioso ninho,
e depois de acariciar com o bico as suaves penas com que a
natureza adornou a cabeça da amada companheira,
adormecem, olhando-se mutuamente com amor. Um raio de
sol, uma gota de orvalho, algumas sementes espalhadas sobre
a terra do paraíso que escolheram para amar-se, é tudo que
ambicionam para o dia seguinte; e Deus eterno velador do
criado, nunca deixa sem realizar as esperanças das aves,

342
porque esperam tudo d’Ele, e só n’Ele confiam. Por que,
pois, não imita o homem as aves para ser ditoso?
- Porque o homem, Enoé, pertence a uma raça maldita e
ambiciosa que olha o amor como um passatempo ameno da
vida e a ambição, como o grande todo das suas aspirações.
Porque o homem luta e devora-se para engrandecer-se com
os despojos das duas vítimas, e o seu faminto orgulho nunca
se farta ainda que reúna montes de ouro e a vaidade nunca se
contenta, ainda que veja curvar-se-lhe o corpo sob o peso das
dignidades. Mas eu te juro, minha Enoé, regenerar-me. Tuas
palavras levantaram um eco dulcíssimo no meu coração.
Essas preciosas lágrimas que se desprendem dos teus negros
olhos apagarão com seu úmido orvalho a memória do que
fui. O teu amor e só o teu amor será de hoje em diante a
minha maior fortuna, meu constante pensamento. Que vale
uma coroa de ouro quando queima a fronte que oprime,
comparada com a que as tuas formosas mãos podem tecer-
me de rosas embalsamadas com o perfume dos teus beijos e
com o aroma dos teus suspiros! Oh! reconheço que fui um
insensato! Gozem embora meus irmãos da herança maldita
de meu feroz pai. Elevem-se sobre o sangrento trono de
Jerusalém os da minha raça. Que me importa? A minha
pátria será desde hoje a que tu escolheres, a minha fortuna o
teu amor, o meu palácio uma tenda onde nos recolhamos
ambos, a minha ambição a tua felicidade, o meu tesouro o
teu coração, os teus beijos e os teus formosos cantos.
- Antípatro, Antípatro, murmurou a escrava acariciando
a loura cabeleira do seu amanate com as pequenas mãos; a
tua felicidade começa se o teu coração sente o que acaba de
exprimir a tua língua. Porque o amor é o paraíso antecipado
dos mortais.

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O príncipe hebreu selou com um beijo as palavras da
sua amada.
Enoé, cheia de felicidade com o risonho porvir que lhe
proporcionava o amor, apoderou-se do leque de penas de
Antípatro, e começou a abaná-lo como se quisesse afugentar
da mente do seu amado, o resto de sombrios pensamentos
que o agitavam.
- Amanhã, continuou o príncipe, quando fortalecido o
meu corpo com o descanso, chegar a noite que é a protetora
dos desgraçados, reuniremos a nossa pequena fortuna e
partiremos para o Egito. Como os árabes do Iemen,
levantaremos a nossa tenda nasa férteis margens do rio santo.
Tu, minha formosa Enoé, te ataviarás como as desposadas de
Israel, para que eu te contemple eternamente com amor e
beba a minha felicidade nos teus olhares. A cor de jacinto, de
que tanto gosto, será o teu calçado. Na tua esbelta cintura
colocarei com as minhas mãos o branco cinto de linho, e um
manto finíssimo de branca lã cobrirá tuas delicadas formas.
Eu adornarei de jóias a tua nevada fronte, e as tuas orelhas
com ricos brincos de coral. As tuas delicadas mãos
amassarão tortas de flor de farinha como as princesas de
Davi; eu a teus pés te adorarei como a rainha da formosura e
do amor. Porque te amo, Enoé, mas dum modo desconhecido
para mim até este momento. Porque tu és uma necessidade
da minha vida, um segundo ser do meu corpo, a metade desta
minha misteriosa alma que se agita no meu ser.
A voz de Antípatro ia-se enfraquecendo pouco a pouco.
Algumas frases entrecortas seguiram as palavras de
amor, e depois um beijo, um nome e um suspiro se
escaparam dos lábios do príncipe. Depois ficou dormindo
nos braços da escrava. Aquela natureza delicada não pôde
resistir por mais tempo, e pagou o seu tributo ao sono.

344
Enoé continuou abanando com o leque a formosa
cabeça do amante. O amor da contemplação brilhou com
todo o seu fogo nas negras pupilas da egípcia.
A formosa estrangeira não se atrevia a mover-se para
não acordar o seu senhor.
Assim decorreu uma hora.
Antípatro, embriagado de amor tinha feito promessas
que estava longe de cumprir, porque era ambicioso. Enoé
nada lhe tinha perguntado: conhecia o amante e esperava
com a resignação da mulher enamorada que o tempo e as
suas carícias lhe fizessem desistir das suas temerárias
empresas.
O príncipe tinha adormecido nos seus braços, e o sono
ia revelar-lhe com a sua rude franqueza o que o amor não se
tinha atrevido a comunicar-lhe desperto.
- Filho de reis, balbuciava em sonhos Antípatro, o teu
lugar é um trono... a vida é nada quando se arrisca por uma
coroa... role o meu crânio insepulto se os anéis de ouro do
diadema de meu pai não marcaram com o seu contato a pele
da minha fronte. Um trono... um povo ajoelhado a meus pés,
e cem legiões que curvem a cabeça e desembainhem a
espada à minha voz... isso ambiciono ... Mas a desgraça
acaricia-me com suas descarnadas mãos, e a fortuna vira-me
as costas enojada... Maldito... Maldito... seja o matador de
minha mãe... o seu podre sangue circula pelas minhas veias e
queima-me o coração... mas ah! a morte sorri sobre a sua
cabeça... está pálido como um cadáver... estende os longos e
amarelados braços sobre a coroa e retira-os com horror,
porque encontrou outras mãos que acariciavam as suas folhas
de louro... são as mãos de seu filho, de meu irmão
Arquelau... mas eu tenho ainda escondido entre as pregas da
túnica um punhal cuja ponta está envenenada com a peçonha

345
que me vendeu um árabe... e esse punhal se sepultará na
garganta de meu irmão, e a sua coroa será minha... eu serei
rei... Oh! que belo será ser rei!
Antípatro soltou uma gargalhada, e Enoé começou a
chorar em silêncio; duas horas decorreram; Enoé ainda
chorava, e o seu amante adormecido nos seus braços, preso
dum pesadelo horrível, continuava a revelar-lhe todos os
segredos ambiciosos do seu coração.
A pobre menina estava tão preocupada, e absorta na dor
do amante, que não percebeu uma porta abrir-se atrás dela, e
um homem entrar no camarim andando em ponta de pés
sobre a mole alfombra para não fazer bulha.
Aquele homem era um negro de feroz semblante. Um
sorriso de prazer horrível separou seus grossos lábios,
deixando ver duas muralhas de marfim. Sua destra oprimia
um longo punhal e a esquerda, uns cordões de seda.
Atrás do negro apareceu outro homem, e atrás deste
outro, e atrás outro. Eram quatro; o negro ia adiante, e
chegou até onde estava a escrava.
Antípatro dormia com a formosa cabeça reclinada no
seio da sua amada, e esta chorava em silêncio e agitava o
leque de penada refrescando a ardente fronte do seu senhor.
De repente Enoé soltou um grito terrível, mas afogado,
porque uma mão rude e calosa caiu brutalmente sobre a sua
nacarada boca.
Antípatro abriu preguiçosamente os olhos, e no seu
semblante plantou-se com as cores mais vivas o assombro e
o terror.
- Ah! formoso príncipe, disse Cingo com insultante
entoação: por fim consegui pôr-me em contato com a tua
bela pessoa.
- Miserável! exclamou Antípatro cheio de ira.

346
- Não tens de que enfadar-te, meu amo, respondeu o
negro colocando a ponta do punhal sobre o coração de
Antípatro, fazendo sinal aos seus para que o atassem com os
cordões.
- Covardes, porque não me matais dum só golpe?
Tornou o jovem, forcejando por desembaraçar-se dos
perseguidores.
- Porque isso é incumbência do meu senhor, teu pai.
Antípatro, a quem os seus inimigos tinham atado e
posto em pé, dirigiu um terrível olhar à escrava Enoé,
chorando ao seu lado, aturdida com o que estava vendo.
- E quanto te valeu, miserável escrava, lhe disse com
tom de desprezo, entregar a minha pessoa aos meus
inimigos? Responde.
- Eu sou inocente, Antípatro, esses homens forçaram a
minha porta, eu nada sabia.
- Mentes! Mentes!...
Enoé quis lançar-se aos pés do amante;mas o irritado
mancebo repeliu-a dizendo:
- Maldita seja a mulher que esquece os juramentos e
põe preço à liberdade do amante.
Enoé deu um grito e caiu desamparada aos pés de
Antípatro. Este apartou a vista com desprezo daquela mulher
que ele julgava culpada e, voltando-se para Cingo, disse:
- Tira-me quanto antes desta casa.
- Conduzi-o aonde sabeis, disse o negro aos seus.
Os três homens saíram levando atado o peso. O negro
ficou um momento no camarim; pôs-se a contemplar o
desmaiado corpo de Enoé.
- É formosa como uma virgem do templo de Sion,
esbelta como uma garça do mar de Tiberiades. Pobre menina,
perdeu o seu protetor. Bem posso sê-lo, desde agora.

347
E dizendo isto, tomou nos braços Enoé, como se fosse
uma criança, e saiu pelo estreito corredor, atrás dos
companheiros.

CAPÍTULO III

AS MAÇAS E O MENINO

Decorreram alguns meses desde os últimos


acontecimentos.
A moléstia de Herodes agravava-se. O ilustre enfermo
apenas conta alguns intervalos de sossego, durante os quais
se ocupa em formular seu testamento e dar ordens
excêntricas que tem sobressalto a família e os poucos
cortesãos que o rodeiam.
Com assombro dos rabinos e altos dignitários de
Jerusalém e Jericó, o idumeu, cuja origem plebéia o
atormenta, mandou queimar os livros hebraicos em que
consigna a cronologia dos príncipes de Israel.
- Por este meio, diz a posteridade ignorará que a minha
raça não era tão ilustre como a de Davi.
Na ocasião em que tornamos a apresentá-lo em cena,
acha-se como de costume deitado na cama. Ptolomeu,
sentado junto duma mesa, escreve nuns grandes pedaços de
papiro as ordens que lhe dita o senhor.
- Lê-me o último testamento, lhe diz com voz apagada.
Ptolomeu leu o que segue com voz grave:
- “Distribuo o meu reino, porque assim é minha
vontade, da maneira seguinte: Deixo por sucessor no reino e
coroa de Jerusalém meu filho Antípatro.
- Não...não é isso, gritou o enfermo, estendendo a mão.

348
- Senhor, atreveu a dizer o guarda-selos, há três dias tu
mesmo me ditaste o que acabo de ler.
- Não te digo o contrário; mas agora mudei de parecer.
Pega na pena e escreve de novo; quero testamentar de outra
forma. Nomeio por meu sucessor meu filho Arquelau, o qual
é minha vontade e desejo que cinja a coroa depois da minha
morte.
Ptolomeu escreveu, encolhendo os ombros e fazendo
um gesto de desgosto, mui dissimulado, receoso de que seu
senhor o descobrisse.
- A meu filho Antípatro, continuou Herodes, nomeio
tetrarca da Galiléia e da Pétrea. A Felipe dou a Traconitide,a
Gaulonita e a Betânia, que elevo à dignidade de tetrarquia; a
Salomé, minha irmã, dou a Jámmia, Azote e Fasaclide, com
cinquenta mil moedas de dinheiro constante.
Ptolomeu, quando acabou de escrever a última frase,
disse, levantando a cabeça:
- Contante...
Aqui uma pausa, durante a qual o guarda-selos
permaneceu imóvel com a pena suspensa sobre o papiro,
esperando que seu senhor ditasse.
- Agora continua a copiar as doações que faço aos meus
amigos e à imperatriz dos romanos, como está no testamento
antecedente, pois não quero alterar essa parte.
O secretário escreveu e, terminando, foi apresentá-lo a
Herodes. Leu o rei com sossego o testamento. Depois selou-o
e tornou a entregá-lo a Ptolomeu, o qual, enrolando-o, o
introduziu-o num canudo de prata que colocou num armário
de marfim, na alcova do enfermo.
O guarda-selos ficou imóvel, ao terminar, esperando
novas ordens.

349
- Agora, Ptolomeu, pega na pena e escreve o que vou
ditar-te; é um pensamento novo que surpreenderá os
israelitas.
No macerado semblante de Herodes brilhou um sorriso
de selvagem alegria. Seus pequenos e encovados olhos
injetaram-se de sangue e disse desta maneira:
- Eu, rei de Jerusalém e de todo o território que
compreendem as doze tribos de Israel, desde as fronteiras do
Líbano às desertas praias da Iduméia, desde as ribeiras do
mar ocidental às rochas do monte Galaad, mando e ordeno
que no prazo de quinze dias, desde aquele em que se afixe e
publique este edito, todos os primogênitos dos meus estados
que descendam de famílias ilustres e nobres corram ao
hipódromo de Jericó onde desejo transmitir-lhes minha
última vontade para o bem do povo hebreu e descanso do
meu espírito, que desfalece oprimido pelos males do corpo.
Os que desobedecerem à minha ordem, serão considerados
réus de lesa-majestade, e o rigor da lei cairá sobre eles.
Cumpra-se o meu edito. – Eu Herodes, rei de Jerusalém.
Dado no meu palácio de Jericó aos sete dias do mês de Sabat
e ano trinta e seis da minha coroação no senado de Roma.
- Está pronto, senhor, disse o guarda-selos.
- Agora encarrega-te da publicação desse edito. Hoje
mesmo podem estender-se os arautos pelo meu reino.
Ptolomeu saudou e saiu da câmara do rei, não sem levar
no peito alguma curiosidade sobre aquela medida extrema
que acabava de ditar-lhe o seu senhor.
- Que canto tão sublime teria escrito o meu amigo
Virgílio se existisse! exclamou Herodes quando se viu só. A
posteridade poderá admirar o meu sublime pensamento nas
graves páginas da história. Porém um poema tê-lo-ia
imortalizado mais. Minha morte jamais se apagará da

350
memória dos israelitas e quem sabe, talvez que inventem
alguma festa para celebrar o aniversário. Que surpresa vai
causar-lhes a realização desta idéia! Sim, eles chorarão a
minha morte, ah, ah, a morte do seu rei, de seu querido
idumeu como me chamam, ah, ah, ah...
Herodes começou uma risada convulsiva que um forte
acesso de tosse deixou por terminar. Quis pedir socorro; mas
a voz apagou-se-lhe na garganta, produzindo um ronco
estranho, como a última blasfêmia de um condenado a quem
a morte fecha a boca antes de a terminar.
Então cravou as unhas na rica colcha do Egito que lhe
cobria o leito, e com o rosto lívido e os olhos chamejantes
como um hidrófobo, começou a deslizar da cama, fazendo
inauditos esforços. Caiu, não sem trabalho, sobre a alfombra
e continuou a difícil caminhada arrastando-se pelo chão em
direção à porta.
Neste momento o menino Aquiab apareceu à porta da
câmara do rei. Trazia o jovem príncipe um cestinho de
palma cheio de maças. Ao ver o avô naquele estado soltou
um grito, e o cestinho escapou-se-lhes das mãos, rolando
pelo chão as maçãs.
- Avô, meu avô, exclamou Aquiab correndo, com os
braços abertos, para onde estava Herodes.
O rei, lançando sanguinosa espuma pela boca, estendeu
o descarnado braço em direção a u’a mesa onde se viam
algumas redomas de vidro. O menino, compreendendo,
deitou parte do lívidos lábios do enfermo. Este bebeu com
avidez e logo grossas gotas de suor começaram a deslizar-lhe
pela fronte.
- Ah! exclamou o enfermo depois da horrível luta.
Todos me abandonam, todos me esquecem! Julgava sufocar,

351
julguei que tinham soado a á ultima hora da minha vida...
Aquiab, tu me salvaste.
Entretanto o menino, com grande esforço pôde colocar
o rei no leito.
- Eu não te abandono nunca, meu avô; e uma prova
disso é que te trazia este cestinho de maças, porque sei que é
a tua fruta favorita. São muito boas, eu provei uma. Oh!
Quando eu for rei, recompensarei os lavradores dos campos
de Damasco, que tão boas maçãs fazem produzir às suas
árvores.
A verbosidade do terno adolescente encantava o velho
monarca.
- Bem sei, meu filho, que me amas, lhe disse
acariciando a sedosa cabeleira do menino, e olhando-o de
modo estranho. Tu és para mim como o raio do sol que
aquece o entumecido corpo dos velhos num dia de inverno;
teu sorriso aplaca as dores do meu corpo; tua voz afugenta os
tétricos pensamentos que se me agrupam na mente; porque
eu sofro muito meu filho. Tenho sonhos horríveis, que se me
erguem na mente como somras malditas, como espetros
evocados dos sepulcros... e sobretudo muita fome; mas uma
fome devoradora, insaciável, cruel, que não me deixa um só
instante, que nunca se aplaca, que jamais cessa.
O menino calava, porque as palavras do avô lhe
causavam medo; e, depois, olhava-o com olhos tão
espantados, tão fosfóricos, e a sua voz tão rouca, tão
estranha, que o pobre adolescente não se atrevia a respirar.
- Olha, Aquiab, continuou o enfermo atraindo-o para si:
tenho um tesouro grande, muito grande, sepultado no fundo
dum barração que ninguém conhece senão eu, porque os
quatro escravos que me ajudaram a enterrá-lo... cortei-lhes a
cabeça para que não revelassem o segredo: porque os mortos

352
não falam, meu filho, tem-no presente para quando fores
rei... Pois bem, esse tesouro é teu... todo para ti, porque com
muito ouro os reis consolidam a coroa sobre a fronte. Eu te
direi onde o acharás, mas é preciso que cuides muito de mim
e espies teu pai e teus tios, e todos os que me rodeiam,
porque querem envenenar-me.
Herodes olhou em torno de si com receio. Aquiab
estava pálido e tremia. As pernas quase se recusavam a
sustentá-lo, porque o horrível cheiro que se desprendia do
corpo do enfermo lhe ia transtornando a cabeça. Percebera o
rei a agitação do neto, e um sorriso espantoso lhe passou
pelos lábios.
- Tens medo? perguntou; e por que tens medo?
- Eu não tenho medo, respondeu o menino com voz
apagada; mas as tuas palavras fazem-me mal.
- Ah! As minhas palavras fazem-te mal, tu vinhas
trazer-me um cestinho de maçãs criadas nos campos de
Damasco... e essas maçãs... essas maçãs... – E Herodes parou
um momento e olhou seu neto como se quisesse ler no fundo
da alma. – Apanha as maçãs e trá-las aqui em cima da cama;
quero vê-las, tocá-las e comê-las, porque tenho muita fome...
ah... dá-me uma faca, anda, traze as maçãs e a faca...
Aquiab apanhou as maçãs, pô-las em cima da cama, e
depois, pegando ma faca de prata da mesa onde se achavam
os medicamentos, foi entregá-la a Herodes.
- Uma, duas, três, quatro, cinco, seis... seis maçãs, disse
Herodes contando-as e olhando às furtadelas o neto; que
bonitas são, coradas como a flor do terebinto, finas como a
seda da Síria! Não é verdade que são muito lindas?
- Muito, avozinho, respondeu o menino mais tranquilo
e quase reposto do medo.

353
- Pois olha, tu vais comer três, ouves? três; eu, as
outras.
- Mas eu já não tenho vontade de mais, trouxe-as para
ti. São tão bonitas que ao vê-las neste cestinho disse comigo;
vou pegar nelas e levá-las ao avozinho, e ele me agradecerá.
Herodes ficou um momento estudando as palavras do
neto e depois disse:
- Pois bem, comamo-las ambos, eu quero-o, ouves?
- Então obedeço; e o menino pegou numa maçã e
começou a comê-la.
Certo Herodes de que seu neto não tratava de
envenená-lo, começou a corta outra e comeu-a com a avidez
que tinha por costume, e depois, outra. Ao chegar à terceira,
os dentes cerraram-se-lhe, e uma forte dor de estômago lhe
fez soltar um grito aflitivo.
Os receios tornaram a atormentá-lo, e obrigou o menino
a comer a maçã que ele acabava de morder.
Aquiab obedeceu. Persuadido o rei de que as fortes
dores que sentia não eram filhas senão de sua horrível
moléstia, começou a revolver-se no leito como um demente
num acesso de furor.
- Sim... sim, exclamou agitando a faca em redor de si;
este mal que me devora é insofrível; far-me-á padecer
demasiado e dum modo cruel alguns dias, talvez alguns
meses, depois matar-me-á, porque não há esperança para
mim. Tenho fome, e apenas levo o alimento à boca parece
que um punhal me rasga as entranhas. Devora-me a sede, a
água cai-me no estômago como chumbo derretido... a vida é
uma carga penosa. A vida é um mal quando não produz um
bem... pois então para que a quero! Eia, valor e acabemos
com ela. E dizendo isto fez menção de enterrar no peito a
faca que tinha na mão.

354
Aquiab soltou um grito e precipitou-se sobre seu avô.
Então começou uma luta desesperada, Herodes
procurava desprender-se dos braços do neto para cravar o
punhal no coração, e o generoso adolescente, pendurado no
pescoço do avô, impossibilitava-lhe o levar a cabo aquele
suicídio.
- Socorro, socorro! gritava Aquiab. O rei quer matar-se!
Guardas... escravos... meu pai, aqui!.
- Cala-te, louco! A vida estorva-me, cansa-me, lhe
repetia o rei lançando espuma pela boca. Cala-te, não vês que
eu quero acabar duma vez esta agonia lenta e dolorosa?
Herodes, ainda que enfraquecido pela moléstia, era
mais forte que o neto; assim, é que tinha, apesar dos esforços
do menino, podido desviá-lo do peito e ferir-se, ainda qual
levemente, e algumas gotas de sangue mancharam o leito
real.
Salomé, Aleixo e Ptolomeu correram à câmara de
Herodes seguidos por escravos e soldados.
O bondoso Aquiab, repelido pelo avô a alguns passos
da cama já não podia impedir o crime; mas felizmente
Aleixo lançou-se sobre o rei, e, arrebatando-lhe o punhal das
mãos salvou-lhe a vida.
Herodes, vendo frustrada a tentativa, cego de raiva,
caiu sem sentidos sobre o leito.
- Sai vós, exclamou a irmã do rei dirigindo-se aos
escravos e soldados; mas chamai imediatamente os médicos,
porque o rei creio que morreu.
Os escravos sairam sem voltar as costas.
Então Aquiab informou seus tios do que tinha
acontecido, e todos cercaram a cama procurando auxiliar o
enfermo.

355
Naquela noite espalhou-se por Jericó a notícia de que o
rei, cansado dos seus padecimentos, pusera termo à vida
cravando um punhal no coração. Esta nova voou por toda
parte com a rapidez do costume.
O príncipe Antípatro, que gemia num calabouço desde
a noite em que o terrível Cingo e arrancou dos braços da
escrava, ouviu através da grossa porta da prisão várias vozes
que falavam com calor.
Aplicou o ouvido à fechadura e ouviu estas palavras
pronunciadas através da parede, que o privava da liberdade.
- Alguma coisa importante sucede na cidade quando se
reforça esta torre com mais vinte praças.
- Assim o creio: visto que o rei Herodes acaba de pôr
termo a seus dias cravando um punhal no coração.
- Ah!...
- Eu creio, amigo Cocels, que aquele velho leproso fez
bem em matar-se; quando o homem não pode beber nem
amar, a vida é um estorvo.
- Tens razão, Heráclio, eu peço aos deuses imortais de
Roma que, como primeiro sintoma da velhice, me enviem o
último suspiro da minha vida.
- Ah! esquecia-me dizer-te que a sentinela que esta
noite dormir no seu posto, tem pena de morte. As rondas
serão mais frequentes: já o sabes.
- A vista disso, dá-lhes um pouco de cuidado o preso da
torre alta.
- Sciu!... Cocles... o soldado romano recebe o seu soldo
e obecede.
- Tens razão, Heráclio, o tempo dirá por quem devem
desembainhar-se as nossas espadas.

356
- Em Roma, a morte dum imperador é sempre uma
fortuna para as suas legiões, porque o novo rei espalha ás
mãos cheias o ouro entre os soldados.
- Nós podíamos estabelecer também esse costume na
Judéia: não são três os herdeiros?
- Sim, mas...
O príncipe tornou a lançar-se sobre o montão de palha
que lhe servia de leito. Pouco depois, a pesada porta girou e
um homem entrou no calabouço, fechando a porta atrás de si.
Levava uma lanterna numa das mãos e na outra, uma cesta
de palma.
Era Cingo, o negro, que aproximando-se do miserável
leito do desgraçado príncipe, pousou ambas as coisas no
chão, dizendo com voz pausada.
- Boas noites, meu príncipe.

CAPÍTULO IV

O LIVRO DE JÓ

Antípatro assentou-se sobre a palha e disse com


naturalidade.
- Ah! és tu, Cingo? Alegro-me de ver-te; esta solidão
cansa-me... Que queres! Sou um homem efeminado... a quem
desde pequeno acostumaram a viver com alguma
comodidade e neste calabouço não tenho muitas, por certo.
- O homem deve acostumar-se a tudo, senhor.
- Sim, é verdade, mas eu não posso; prefiro uma
punhalada no coração, como a que meu pai deu em si hoje, a
dormir numa cama dura e comer alimentos maus.
- Ah! como sabes?

357
- Ouvi-o através da porta, que um soldado o contava a
outro. Meu pai fez o que eu faria se tivesse um punhal.
- Matar-te-ias, senhor?
- E porque não? A morte é um instante, e nunca a
temi... mas os sofrimentos físicos horrorizam-me. Vejo com
desgosto que os deuses imortais me voltam as costas, me
abandonam. Eu não tenho o mau gosto de crer no Deus
invisível dos rabinos da cidade santa; o livro de Jó causava-
me um sono horroroso quando minha mãe mo lia sendo
menino, para me inclinar à paciência. Calcula, pois, querido
Cingo, o aborrecimento deste desgraçado príncipe, que passa
só entre estas quatro paredes vinte e três das vinte e quatro
horas do dia.
- O rei, meu senhor, é justo castigando as tuas
rebeldias.
- Por Júpiter, que nem tu mesmo crês o que dizes!
Herodes justo, o matador da virtuosa Mariana, o assassino de
meus irmãos, o verdugo de Belém, Justo! Ora, Cingo, tu
estás mangando. Ainda que seu filho Antípatro fosse tão
manso como um cordeirinho, seu pai ter-se-ia desfeito dele:
estava escrito.
- Tu exageras.
- Será como dizes... mas ocorre-me fazer-te uma
pergunta. És ambicioso?
- Quem não é? respondeu o escravo encolhendo os
ombros.
- Tens ocasião de enriquecer, se te apraz.
- Move-me a curiosidade as tuas palavras.
- Vou ser claro contigo. Os inimigos devem atacar-se
de frente.
- Eu sou um inimigo?

358
- Ao menos o tens sido até agora. Mas não te acuso.
Quando o escravo cumpre o meu dever, é tão honrado como
o seu senhor. Tu podes erguer a fronte sem vergonha.
- Voltemos à fortuna.
- Pois ganha a tens, se me servires nesta ocasião.
- Que devo fazer?
- Abrir-me a porta do meu cárcere.
- Isso é ser traidor.
- Meu pai morreu.
- Assim o dizem os propagadores de novas na cidade,
mas... e Cingo ficou pensativo, como o homem que duvida
ao tomar uma resolução.
Antípatro julgou ver alguma esperança na indecisão do
escravo.
- A tua mão pode transportar-me das trevas à luz, da
morte à vida; o favor, como compreendes, é grande. Pede
sem medo.
- Eu sou homem que gosto de meditar as coisas; peço-te
um dia para me decidir.
- Um dia é um século nesta ocasião.
- Compreendo a tua impaciência a abato doze horas.
- Meu irmão Arquelau será então rei de Jerusalém, e a
tua generosa proteção me seria inútil.
- Ora! Doze horas passam-se num momento.
Esse momento é a morte da minha esperança, porque a
primeira vítima de Arquelau ao subir ao trono serei eu.
- Dorme, meu príncipe, dorme sossegado, enquanto eu
medito as tuas propostas. E Cingo encaminhou-se para a
porta.
- Compreendo que não queres enriquecer nem ser meu
amigo, deixo entregue aos deuses o meu futuro; mas se te
palpita no peito um coração, se compreendeste alguma vez o

359
amor, essa paixão que é a nossa vida e a nossa morte, essa
misteriosa essência que ninguém sabe o que é, mas que ao
espalhar-se pela nossa alma nos enche de dor e de prazer; se
amaste, enfim, Cingo, responde pelo teu amor, que é de
Enoé?
- Enoé... e quem é Enoé?
- Tu... não a conheces? exclamou Antipatro deixando
cair sílaba por sílaba, com pausa, dos lábios, e estudando o
efeito que faziam suas palavras no escravo.
- É a primeira vez que me chega esse nome aos
ouvidos... E Cingo deu outro passo em direção da porta.
- Espera, escravo, exclamou o príncipe com voz
imperiosa. Se o teu bárbaro senhor te manda cravar-me o
punhal na garganta, aqui a tens, não te demores.. fere e
cumpre o teu dever; mas antes de me dares a morte, arranca
com uma palavra esta dúvida que, como uma cobra, se me
enroscou no coração. Dize-me se a escrava em cujos braços
me surpreendeste, foi tua cúmplice.
- Eu não a conhecia nem a conheço; os meus soldados
espiaram-te, descobriram a tua guarida, e eu surpreende-te;
esta é a história.
- De modo que Enoé...
- Enoé é tão inocente como tu. Já o sabes.
Antípatro deu um grito de alegria e deixou-se cair sobre
o montão de palha, exclamando:
- Agradecido, escravo, agradecido, agora, se não aceitas
as minhas condições, dize a meu feroz que, ao começar o seu
reinado, deve sacrificar, como é costume, vítimas ante os
altares: que não se esqueça de que eu devo ser a primeira.
Cingo saiu do cárcere, e, pouco depois, da torre. Ao
chegar à rua apagou a lanterna e encaminhou-se para o

360
palácio. O escravo deteve-se junto da porta do camarim de
Herodes e aplicou o ouvido.
O rei não estava só: ouviam-se as vozes de várias
pessoas que conversavam. O escravo levantou o extremo da
larga cortina que cobria a porta e observou o que se passava
no interior da câmara real.
O idumeu estendido no leito, olhava com olhos
espantados um ancião venerável, que lia um grosso volume,
sentado à cabeceira da cama. Salomé, sua irmã, e Aleixo,
seu cunhado, de pé junto ao leito, tinham os olhos fitos no
real enfermo. Aquiab, sentado aos pés do velho, entretinha-se
a desfiar a grossa, franja da colcha do Egito, que cobria a
cama.
- Rabino, exclamou Herodes com voz enfraquecida: os
médicos abandonam meu corpo, mas recomendam meu
espírito aos sábios. Tu o és; recebe-o, pois, sob o teu amparo,
e os deuses imortais te premeiem.
- Só Jeová, o deus invisível de Abraão e Jacó, pode
proteger os filhos de Israel, respondeu o velho. Os deuses
pagãos do Olimpo, os ídolos de barro e vil metal, fabricados
pela mão do homem, não podem atrair o bem e o mal sobre a
raça humana.
- Oh! bom velho, lê o teu livro, se é que com a sua
leitura podes tranquilizar as minhas pernas, e deixa os deuses
e as crenças religiosas de lado.
O velho rabino abriu o livro, e leu deste modo com
entoação afetada e fanhosa:
- “Livro de Jó. Capítulo primeiro. Havia na terra de Hus
um varão que se chamava Jó, e era de coração são e reto:
temia a Deus e fugia de tudo o que pudesse ter a menor
sombra de mal. Tinha sete filhos e três filhas, e os seus bens

361
consistiam em sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas
juntas de bois, quinhentos...
- Ela, acaba, rabino, exclamou Herodes; basta dizer que
o meu compatriota Jó, era rico mas não tanto como eu.
- Moisés não escreveu este livro santo, respondeu o
judeu sem se perturbar, para que tu o talhasses por onde se te
antolhasse.
Moisés escreveu esse livro para os desgraçados: eu
respeito o grande legislador, mas quero que comeces pelo
capítulo terceiro, quando Jó amaldiçoa, o dia do seu
nascimento... ouves, rabino? Eu sou o rei, eu to mando.
A fronte do velho cobriu-se duma cor incendiada; mas
um olhar suplicante de Salomé bastou para que o severo
judeu encolhesse os ombros e começasse a virar folhas com a
mesma tranquilidade que se não tivesse havido a precedente
disputa.
- “Livro de Jó. Capítulo terceiro, tornou com a mesma
entoação. E passados os sete dias, abriu Jó a boca e
amaldiçoou o dia do seu nascimento. E falou desta maneira:
Pereça o dia em que nasci, e a noite em que de mim se disse:
Foi concebido um homem sobre a terra! Converta-se em
trevas aquela dia!... Não o tenha Deus em conta lá do alto,
nem de luz seja alumiado!...
Herodes, torva a face e preso o corpo dum tremor
convulsivo, escutava em silêncio a leitura desse grande
poema do deserto, desse grito de dor sublime, imutável.
Suas descarnadas mãos esfregavam a rica colcha e
horríveis gestos, descompunham o seu cadavérico semblante.
O rabino, inspirado com a leitura do livro santo, que
tantas vezes tinha feito ouvir na Sinagoga, ia insensivelmente
levantando a voz até tomar um timbre grave e majestoso, que
fazia estremecer o coração do enfermo.

362
O velho leitor conheceu que ao rei chegavam os efeitos
da sua leitura, e quis aproveitar as boas disposições do
monarca. Para o não fatigar, julgou conveniente, pois era seu
ofício ler os livros santos aos enfermos, e sabia-os de cor, ir
saltando capítulos e ler-lhes só os versículos que mais em
harmonia estivessem com as circunstâncias agravantes do
enfermo.
Assim é que, sem que o percebesse Herodes, pulou
algumas folhas e tornou a ler no versículo V do capítulo VII,
que diz assim:
“Ferve a minha carne em bichos; asquerosas crostas
cobrem todo o meu corpo; a minha pele seca vê-se toda
encolhida e enrugada. Se concebo alguma esperança de achar
descanso, quando de noite me recolho a repousar,
consolando-me com gemidos, e buscando alívio aos meus
males com lágrimas e suspiros, então cheio de sobressalto
me vejo acometido de espanto com as imagens e sonhos que
me perturbam a alma.
Eu não tenho esperança de viver; compadece-te Senhor,
de mim, e cesse já o castigo. Não é muito o que te peço, pois
que é tão pouco o que me resta viver.
Que é o homem para que mereça que Tu ponhas nele o
teu coração, e o olhes como alguma coisa grande?
- Basta!... Basta... velho miserável! exclamou Herodes,
estendendo os punhos ameaçadores para o rabino, que se
levantou do seu coxim todo assustado, vendo o rei daquele
modo. Tu profetizas-me a morte e comprazes-te na minha
agonia!... Pois bem responde, já que tanto sabes e que tanta
fé tens nos teus livros: quantos dias te restam a ti de vida?
O rabino ficou pálido como um agonizante. Herodes,
com os olhos fitos no aturdido velho, ria-se de maneira cruel.

363
Salomé, Aleixo e Aquiab tremiam, conhecendo que o
pobre leitor ia receber uma sentença de morte dos lábios do
rei.
De repente, reanimou-se a fisionomia do rabino, e,
ajoelhando-se junto da cama de Herodes, disse com voz
severa e clara:
- Mui poucos, senhor, porque te ofendi segundo parece,
e a minha vida está pendente dos teus lábios; a minha estrela
pode eclipsar-se quando à tua rale vontade se antoje.
Herodes humanizou a dura expressão do semblante, e,
deixando-se cair sobre os almofadões, disse com tom de
desprezo.
- Vai-te... eu perdôo-te, mas leva esse livro que de nada
serviu aos meus males.
O rabino saiu. Salomé e Aleixo aproximaram-se do
enfermo; que lhes disse:
- Ide-vos todos, quero estar só com as minhas dores...
para nada preciso de vós, de nada me servis.
Todos sairam: Herodes ficou só.
Cingo,que tudo tinha ouvido, oculto atrás da cortina
decidiu-se a entrar na câmara desobedecendo à ordem do seu
senhor. Chegou-se ao leito e esteve contemplando alguns
segundos o enfermo.
Pelas toscas faces do escravo rolaram duas lágrimas.
Porque aquele homem feroz, aquele verdugo que matava sem
tremer a um sinal do seu rei, amava o seu senhor como a um
filho querido, e teria dado até a última gota do seu sangue,
para devolver-lhe a saúde.
Herodes abriu os olhos e viu ao seu lado o escravo
favorito. No rosto do enfermo brilhou um raio de alegria e
estendeu uma das mãos, que o escravo cobriu de beijos. Uma
lágrima ficou na mão do rei, e este disse-lhe:

364
- Choras, Cingo?
- Sim pela primeira vez na minha vida, porque tu
morres senhor.

CAPÍTULO V

ONDE SE PROVA QUE O AMOR


DOMESTICA AS FERAS

- És um servidor leal, Cingo, e quisera antes de exalar o


último sopro de vida recompensar os teus serviços. Dize-me,
que ambicionas? Que queres? Pede, estou pronto a satisfazer
os teus desejos.
- Só anelo servir-te até que morras, e depois partirei
para a África, pois quisera morrer sob aquele sol que me viu
nascer.
- Pouco ambicionais.
- Os filhos da Líbia são sóbrios, senhor; o seu cavalo,
as suas armas, a sua tenda e uma mulher que alegre com os
seus cantares, as ardentes sestas do estio, é tudo o que
ambicionam, tudo o que anelam.
- Amanhã receberás uma quantia de ouro, em
recompensa dos teus serviços.
- Agradecido, senhor; mas não me trazia à tua câmara o
afã da riqueza, venho da torre e vi teu filho Antípatro.
- Ah! E que diz o preso? Resigna-se com a sua sorte?
- A estreiteza do calabouço afoga-o; a liberdade é a
rainha do seu pensamento, a mais bela imagem dos seus
sonhos.
- Nunca, enquanto eu viver.
- A notícia da tua morte espalhou-se pela cidade, e,
traspassando as grossas paredes do seu cárcere, chegou-lhe

365
aos ouvidos. Teu filho ofereceu-me meio reino se lhe abrir as
portas do cárcere.
- E tu? ... perguntou Herodes, assentando-se.
- Eu corri os ferrolhos da porta, guardei a chave, e
venho consultar-te sobre o que devo fazer?
O rei ficou um momento pensativo. As rugas da fronte
afundaram-se-lhe, e uma sombra e feroz expressão lhe
passou pelo semblante.
- Antípatro tem rosto de mulher e coração de aço. É um
desses ambiciosos que nunca cedem, uma dessas víboras que
é necessário esmagar para que não os empeçonhe. Enquanto
ele viver, nem eu nem seu irmão Arquelau teremos
tranquilidade no nosso reino. Cingo, matarás esta noite meu
filho. Lance a história desse novo e horrível crime, executado
à hora da minha morte, sobre mim, nada me importa; sua
morte é uma necessidade; mas procura que morra sem
escândalo, e que o seu corpo seja sepultado no velho castelo
de Hircanion.
- Que morte se lhe deve dar? perguntou o escravo,
como se tratasse da coisa mais natural do mundo.
- Nada de sangue; emprega as tuas víboras; dizem que
esses animais peçonhentos, apenas nascem, devoram suas
mães e se devorariam uns aos outros se não fosse cegos.
Antípatro é uma víbora: solta pois as tuas víboras sobre eles.
- Far-se-á como desejas. Dize-me o dia e a hora.
- Esta noite. Amanhã uma lousa de pedra deve cobrir
seu corpo eternamente. Parte, e não te esqueças de que é a
última ordem que recebes do teu senhor, porque a minha vida
se apaga; a ruim matéria decompõe-se por instantes, e o
espírito não tardará a evaporar-se deste vaso quebrado e
fugitivo.
- Parto, pois, a obedecer-te.

366
O escravo saiu da câmara do seu senhor, e encaminhou-
se para sua humilde habitação, situada no último andar do
palácio de Herodes. Subiu preocupado a estreita e alta escada
e, parando diante duma porta, tirou a chave e abriu-a,
fechando cuidadosamente depois de entrar.
Nada tinha de luxuosa a habitação do negro. Uma
lâmpada de ferro espalhava sua tênue claridade pelas
pardacentas e desmanteladas paredes. Uma mulher saiu ao
seu encontro. Aquele mulher era Enoé. Cingo passou por
junto dela como se não a houvesse visto, e, soltando um
doloroso suspiro foi sentar-se sobre um velho e roto coxim,
que se via no meio do pavimento.
Houve um momento de pausa. A egípcia contemplava o
africano, e este imóvel como uma estátua da dor, com a
cabeça escondida entre as mãos, nada lhe dizia.
- Que tens, escravo? lhe perguntou Enoé.
A doce voz da egípcia fez-lhe levantar a cabeça.
Cingo fitou os negros olhos da jovem: daqueles olhos
desprendiam-se algumas lágrimas.
- Por que choras? tornou a perguntar-lhe.
- Porque tenho um inferno no coração... porque te amo
e a tu aborreces-me... porque te vi...
- Enquanto o meu senhor gemer num cárcere, a minha
língua só saberá abaldiçoar-te; rompe as suas cadeiras e este
ódio que encerra por ti o meu peito, se extinguirá.
- Ontem tencionava comprazer-te, hoje é-me
impossível.
- Então o príncipe morreu?
- O príncipe vive... mas a sua morte acaricia com os
descarnados dedos os louros cabelos da sua formosa cabeça.
- Tu juraste-me salvá-lo: costumam em África faltar à
sua palavra os homens da tua raça?

367
- Nunca, escrava; na Etiópia o juramento é sagrado.
Olha, Enoé, continuou Cingo, procurando adoçar o mais
possível o seu acento. Lá na Líbia, no extremo oriental do
deserto de Saara, acha-se a região de Nigrícia, cujas altas
cordilheiras, alfombradas de ervas aromáticas, prendem com
seus robustos braços o pacífico lago de Tchad. Os filhos
daquelas ribeiras tem a cor da cara, negra como a noite, o
coração ardente como o sol do seu céu, altivo como as
palmeiras dos seus oásis, bravo como os leões dos seus
areais, e livre como o vento que areja os seus aduares. Amam
e aborrecem a ponto de matarem ou morrerem pelas pessoas
que lhe comovem o peito, porque a sua única paixão é o
amor e o ódio; nos seus abrasados campos criam-se
peçonhentas ervas e víboras de mortal picadura para os seus
inimigos; nos seus jardins, tâmaras, plátanos e óleo
aromático para os que amam. Quando a lua espelha a sua
cabeleira de prata sobre as tranquilas águas do seu lago,
estendem na macia pele de leopardo à porta da sua tenda,
fazem assentar-se nela a mulher que adoram, e deitados a
seus pés recitam-lhe os cantos de amor dos seus poetas mais
populares. Oh, Enoé... Enoé! As noites nas margens do
Tchad são tranquilas como o sono das virgens, formosas
como o paraíso onde moram as huris da África, claras como
os mananciais do Líbano. É aquela a minha pátria; o primeiro
sol que me feriu a pupila arrancando-lhe uma lágrima é o que
ali brilha. Eu tenho ouro suficiente para ser o mais rico, o
mais poderoso dos povoadores do lago. O meu braço é forte
como um cedro; o meu coração bate com um vigor que não
desmaia; o meu amor por ti cresce e aumenta: ama-me, e
serás a rainha de Tchad e eu, teu escravo: veja eu nos teus
divinos olhos um só reflexo de amor, e beijarei o pó que
levantarem teus pequenos pés.

368
Cingo, com olhar suplicante, as mãos juntas e preso o
corpo dum tremor convulsivo, lançou-se aos pés da egípcia.
- Escravo, exclamou Enóe com indignação,
retrocedendo alguns passos, as mulheres da minha raça
nunca se unem com os homens da tua. A sua lei o proíbe.
- Medita bem murmurou o negro, afogando um rugid:
eu tenho respeitado o teu corpo... vivendo debaixo do mesmo
teto, um ao lado do outro: sendo tu formosa e jovem e
amando-te eu, não me tenho atrevido a ofender-te nem com
um olhar: mas o teu desprezo pode exacerbar-me. Sou mais
forte que tu e estás em meu poder. Pensa-o bem, Enoé,
pensa-o bem!...
- Eu era feliz, respondeu a egípcia sem se comover com
a ameaça do negro, tu, como o anjo do mal, envolto nas
sombras da noite introduziste-te na minha morada e
roubaste-me a felicidade. Depois, vendo-me só e desvalida,
apoderaste-te de mim e encerraste-me nesta mansão maldita.
Eu sou a pomba, tu és o gavião; podes despedaçar-me, porém
não esperes que a minha garganta harmonize arrulhos de
amor para ti. As mulheres como eu amam uma só vez na
vida... Não o esqueças... a violência redobrará o desprezo que
me inspiras.. Agora faze o que melhor te agrade.
- Pela última vez, exclamou o negro, contendo a raiva,
queres partilhar comigo a minha fortuna? Queres vir para a
África e ser minha esposa?
- Nada quero sem Antípatro.
Cingo abarcou com um olhar aquela tenra jovem que
com tanto valor se defendia, e murmurou em voz baixa:
- Tu o queres... seja.
Encaminhou-se para um dos extremos da habitação, e,
abrindo um pequeno armário, tirou dele uma cabaça fechada
hermeticamente por uma tampa de prata.

369
- As víboras! exclamou Enoé com horror; qual é o teu
intento?
- Lembra-te das minhas palavras. Nos meus areais
criam-se peçonhentas ervas e víboras de mortal picadura para
os inimigos; frescos oásis, saborosas tâmaras e delicados
perfumes para os amigos.
E o negro, dizendo isto, saiu precipitadamente do
quarto, deixando absorta e agitada a infeliz egípcia.
Enoé, um tanto reposta depois de um momento, correu
à porta que estava fechada. Então, deixando-se cair sobre o
velho coxim, cobriu o rosto com as mãos e começou a
chorar.
O feroz sorriso de Cingo, as palavras ameaçadoras que
tinha pronunciado e sobretudo aquelas víboras que por
espaço de alguns dias tinha visto alimentar com cuidado,
tudo lhe fazia temer alguma catástrofe.
Aquele homem feroz tinha-se enamorado para desgraça
dela: tinha ciúmes. O seu amante achava-se sob a guarda
dele, e tudo devia temer-se.
- Se mata Antípatro, disse a egípcia como se falasse
consigo, eu saberei vingá-lo.
Aquela resolução pareceu tranquilizá-la. Depois
esperou uma hora, e duas, e três, e Cingo não vinha.
Nasceu o dia, caiu o sol sobre os ferros da sua janela, e
o escravo não tornava. A ansiedade de Enoé era terrível. Um
mundo de idéias fervia no cérebro daquela menina
enamorada. Sua febril imaginação apresentava-lhe o amante
morto, e o feroz negro contemplando-lhe o cadáver com
sorriso satânico.

LIVRO NONO

370
AS VÍBORAS

CAPÍTULO I

UM SONHO DE AMOR

Deixemos por alguns instantes a egípcia, e sigamos o


africano, a quem a desesperação dos ciúmes e o hidrópico
desejo de vingança que lhe devorava o coração, prestavam
asas para chegar quando antes à prisão do desventurado
príncipe.
Cingo podia matar o rival impunemente, satisfazer uma
vingança sem que a consciência, esse juiz terrível e secreto
dos homens, viesse mais tarde roubar-lhe o sono e
amargurar-lhe a existência, porque Herodes, o sangrento
monarca de Israel, colocava a garganta de seu filho sob o
punhal do escravo. Assim é que uma alegria selvagem, um
prazer feroz, inexplicável, reanimava o ódio do africano.
Nunca com maior prazer, com maior afã tinha corrido a
executar uma ordem. Salvar o príncipe, poupar-lhe a vida,
conceder-lhe a liberdade, teria sido faltar ao dever para um
escravo tão servil, tão fiel como Cingo. O desgraçado destino
do príncipe estava nas suas mãos, e Antípatro não tinha outro
futuro que a morte.
“Mata meu filho, e enterra-o sem pompa nem
cerimônia alguma no velho castelo de Harcanion”. Estas
eram as palavras do idumeu, e Cingo corria a cumpri-las. A
espécie de morte não fazia ao caso, de uma víbora, tudo era
morrer. O resultado daquela missão terrível era um cadáver.
Cingo chegou diante da pesada porta do cárcere e
deteve-se. Pela primeira vez na sua vida sentiu que o coração

371
lhe batia de um modo estranho e novo para ele. Aquele crime
era do rei ou seu? Sem o explicar fez a si próprio esta
pergunta.
Sua consciência erguia-se dentro do seu ser pela vez
primeira na vida. Sua voz estranha e poderosa agitou-o,
como o primeiro sopro de uma tempestade agita enxárcias de
um navio, arrancando-lhe um gemido inexplicável.
- Ora! disse consigo querendo tranquilizar-se, o rei
mandou, eu obedeço: entremos.
Descerrou os pesados ferrolhos; e entrou no calabouço.
Antípatro, no montão de palha que lhe servia de leito,
dormia profundamente. A bela e efeminada cabeça do
príncipe tinha uma desordem encantadora. O negro parou
para o contemplar a dois passos da cama. Os dourados
cabelos caíam-lhe em grossos cachos pela branca e fina
garganta como a cabeleira duma mulher. Um sorriso cheio de
amor voluptuoso, resvalava da boca do jovem adormecido e
seus nacarados lábios agitavam-se como se beijassem um
objeto adorado.
Cingo julgou adivinhar os sonhos do príncipe, e levou a
mão ao coração.
Antípatro dormia e ia revelar a Cingo os pensamentos
mais recônditos do seu coração. Ouçamos o que sonhava:
- Olha Enoé, dizia numa voz balbuciante como se o
amor lhe agitasse o coração: eu julguei-te culpada... que
queres... o homem à quem açoita sem cessar com suas
ásperas refregas o vento do infortúnio, pensa mal, desconfia
de tudo, e torna-se receoso e taciturno... que louco fui,
pensando que tu, meu amor, podias ter-me vendido aos meus
inimigos! Quando essa idéia bastarda me passava pela mente,
eu esquecia que poucos dias antes me tinhas jurado amor
eterno pela memória de teus pais. Então não compreendia,

372
como agora que sei que és inocente que uma menina como tu
não pode vender o homem que lhe entregou o coração sem
ser mais pérfida que Dalila, mais infame que Tamar, mais
criminosa que Atália. Mas esse agravo que te fiz, eu te juro
que saberei recompensá-lo... porque, ouve e não o digas a
ninguém, Enoé, guarda este segredo, porque estou rodeado
de inimigos. Meu pai morreu, e um escravo a quem ofereci
muito ouvo, virá esta noite abrir as portas do meu cárcere e
dar-me a liberdade... e amanhã, quando a luz da aurora
brilhar sobre os ferros da estreita janela do meu cárcere, a
essa hora em que o rocio cessa de cair sobre as flores, e as
violetas abrem os seus cálices para darem o aroma do seu
seio ao zéfiro oriental, eu serei livre, correrei a buscar-te, e
apertar-te ao coração. Que vale um reino comparado com o
teu amor! Desde agora só serás a minha ambição. A minha
coroa será o teu amor eterno; o meu reino o teu peito
enamorado; os meus vassalos, os meus súditos, os teus
ardentes beijos.
Cingo levou a mão ao coração.
O príncipe soltou um suspiro voluptuoso. Depois
parecia escutar uma resposta, pois agitava a cabeça e sorria
com um prazer, com um gozo indefinível. Cingo, cravado no
duro pavimento do cárcere, com os olhos injetados de
sangue, o semblante descomposto e o corpo trêmulo,
contemplava o adormecido príncipe, lançando-lhe um sorriso
feroz, sanguinário e, enquanto com a mão apertava o peito
devorado pelos ciúmes, com a outra agitava a pequena
cabaça das víboras, com o fim sem dúvida de assanhar com
aquela prolongada sacudida os venenosos répteis que se
mexiam no seio daquele vegetal.
Antípatro continuou depois duma breve pausa:

373
- Oh! nunca... nunca! Meu amor é uma fonte
inesgotável que me brota no coração, que não se exaurirá
nunca, - será a minha última palavra ao adormecer, à noite.
Amo-te – a última coisa que pronunciará a minha língua: na
ocasião de morrer, será também – amo-te, amo-te, minha
Enoé.
Cingo resolveu aplicar aos lábios do príncipe a abertura
da maldita jaula das víboras.
O príncipe agitou os lábios como se quisesse dar um
beijo, murmurando: Amo-te, amo-te, minha Enoé!
Neste momento sairam da cabaça três ou quatro
cabecinhas de víboras, agitando as venenosas línguas com
um rapidez incrível.
Antípatro estremeceu e os seus lábios trêmulos
continuavam a agitar-se sem perceber que as víboras
enterravam neles uma e outra vez as peçonhentas setas de
suas mortais línguas.
O escravo estava horrível naquele momento. O mais
leve descuido, a mais pequena picadura daquelas víboras que
ele aplicava à boca do príncipe, espalhava uma peçonha
mortal pelo sangue, à qual se seguia uma morte rápida e
desesperada.
Conheceu que não podia gozar mais sem grave risco,
porque as víboras, ainda que cegas, têm um ouvido tão fino,
uma elasticidade tão prodigiosa, que matam com a picada um
cavalo no mais rápido da carreira, colocando-se pelo eco das
pisadas no lugar por onde tocou com a ponta deste as cabeças
das répteis, os quais imediatamente se retiraram,
escondendo-se no fundo da jaula. Então fechou com a tampa
e pendurou a cabaça na cintura. Passaram alguns momentos
sem que Antípatro despertasse; mas aquele curto espaço
agitou-se, mostrando o seu mal estar, sobre o úmido leito.

374
A fronte foi tingindo primeiro duma cor lívida; depois,
de pronto enegreceu dum modo horrível, e por fim uma cor
amarelada, com manchas escarlates, lhe foi pintando o rosto.
Então deu um doloroso suspiro e abriu os olhos.
Viu Cingo e quis levantar-se; mas não pode mover-se:
fez segundo esforço, mas como o primeiro foi em vão.
- Por Júpiter, tornou o príncipe, creio que ainda estou
dormindo: escravo, honra a tua mão apertando a minha e
ajuda-me a pôr-me em pé.
Cingo não se moveu nem estendeu a mão que lhe pedia
o filho do seu rei. Sabia que era inútil, porque a mote se
assenhoreava daquele corpo.
- Que, não me ouves! exclamou o príncipe com
espanto; ou é que teus ouvidos se tornaram tão entorpecidos
como os meus membros.
- Tu não podes mover-te mais desse leito de palha,
disse o negro comprazendo-se com a próxima agonia do seu
rival.
- Que não posso mover-me! exclamou Antípatro; vou
desmentir as tuas palavras, escravo insolente e... Não pode
acabar a frase: um grito estranho, terrível, agudo lhe saiu do
peito como se um prego ardendo se lhe houvesse cravado no
cérebro; o rosto desfigurou-se de modo horrível; todos os
seus membros tomaram uma elasticidade monstruosa, e
abrindo espantosamente os olhos que se tinham encovado
nas órbitas, expirou depois de se revolver pelo chão alguns
momentos, preso de uma convulsão horrível.
Cingo, com a frieza do homem endurecido no crime,
pôs uma das mãos, no coração do cadáver e disse:
- Meu príncipe, tu já não podes realizar os teus belos
sonhos de amor; quem sabe se Cingo, o escravo, realizará os
seus?

375
Depois encolheu os ombros, e volvendo um olhar de
triunfo para o cadáver, saiu do cárcere.
Algumas horas depois o povo corria pelas estreitas ruas
de Jericó, aglomerando-se em uma rua para ver passar um
séquito fúnebre. Adiante ia Cingo montando num soberbo
alazão: levava o airoso traje dos escravos etíopes do rei; atrás
dele caminhavam quatro homens vestidos de preto, cujos
amplos roupões lhes chegavam até aos pés. Conduziam uma
espécie de liteira descoberta em que descansava o cadáver do
príncipe Antípatro.
Fechavam a marcha fúnebre doze soldados romanos.
As mulheres judias, segundo costume, rompiam em
lamentos ao verem passar o cadáver.
Estes lamentos chegaram até à habitação de Enoé, a
egípcia, e a curiosidade levou-a até à janela. Reconheceu o
cadáver do seu amante, soltou um grito e caiu desmaiada no
duro pavimento do quarto.
O séquito saiu da cidade, chegou ao castelo de
Hircanion, e o corpo do malogrado príncipe, segundo a
ordem de Herodes, foi enterrado modestamente num dos seus
subterrâneos.
O rei continuava enfermo: era quase um cadáver; mas
ao ver seu escravo favorito, levantou-se nos braços e disse-
lhe:
- E meu filho?
- Já não existe, senhor.
- Agradecido, leal escravo.
Cingo saudou.
- Toma, esperava-te, e por isso mandei Ptolomeu trazer-
me esta quantia de ouro.
E Herodes estendeu ao seu escravo um pesado saco
repleto de moedas.

376
- Senhor... murmurou Cingo beijando a mão que o
enriquecia.
- Agora és livre, tornou o rei.
- Nunca, enquanto viveres.
Herodes indicou-lhe que podia retirar-se, e o escravo
obedeceu.
O feroz idumeu, ficando só, volveu um olhar de prazer
para a coroa que tinha na mesa do quarto; depois adormeceu
com o sorriso nos lábios.
No seguinte dia, quanto os cortesãos entraram, a saber
da sua saúde, disse-lhes com tranquilidade inexplicável:
- Esta noite dormi muito bem; havia muito tempo que
não gozava um sono tão doce, tão tranquilo; creio que estou
melhor.
Felizmente, aquele pai feroz, aquele rei inumano
enganava-se: aquele repouso era o repouso da morte, o
sossego do sepulcro que chegava para a sua maldita
existência.

CAPÍTULO II

A AGONIA DUM VERDUGO

Os príncipes e os nobres de Israel reuniram-se em


Jericó, obedecendo ao edito do seu terrível senhor, e
Ptolomeu, que era o encarregado de os receber, ia-os
conduzindo ao hipódromo, donde lhes era proibida a saída
até nova ordem de Herodes.
Os hebreus, a quem a barbaridade de seu rei trazia
atemorizados, perguntavam-se em voz baixa a causa daquela
reunião; mas era um segredo que ninguém sabia.

377
Assim decorreram quatro dias mortais. O valor dos
Macabeus tinha-se extinguido no coração dos filhos de
Israel. Sofreram o afrontoso jugo que sobre eles pesava, com
as lágrimas nos olhos, e o vergonhoso silêncio do medo nos
lábios. Mais de dez mil judeus se tinham reunido em poucos
dias no hipódromo. Em outro tempo, cento e sessenta anos
antes, bastaram oitocentos campeões ao terrível Judas
Macabeu, para combater com Bachides e Alcino, que
marchavam contra Jerusalém à frente de vinte mil soldados.
O caminho de Galgado, os campos de Masselot,
presenciaram o fabuloso arrojo do filho de Matias. O
hipódromo de Jericó foi testemunha do afrontoso medo dos
descendentes daqueles heróis que venceram os seleucíades.
A Judas faltou um Homero para ser o herói mais grandioso,
mais fabuloso do mundo. Quanto aos príncipes de Israel, sua
covardia era tanta, que bastava uma ordem de Herodes para
os fazer tremer. Mais tarde a maldição de Deus devia
espalhá-los pelo universo como uma raça maldita.
Deixemos por alguns instantes os nobres de Israel
chorando sua sorte, e entremos pela última vez na câmara do
rei tributário.
Quatro eram as pessoas que cercavam o leito do
moribundo: Salomé, sua irmã; Aleixo, seu cunhado; Aquiab,
seu neto e Arquelau, seu filho. Os médicos despedidos num
momento de furor pelo real enfermo, esperavam na câmara
próxima talvez a sua sentença de morte. Gritos de desespero,
espantosas blasfêmias, ameaças terríveis lhe rebentaram da
contraída e repugnante boca.
- Não, quero morrer, não quero! exclamava,
revolvendo-se no leito de púrpura, como um possesso, e
lançando olhares espantosos em redor de si como se quisesse
com eles absorver a vida dos que o rodeavam. Eu sou o rei, o

378
senhor, o dono de Israel! A vossa saúde é minha, preciso
dela, ouviu? dai eu mando que vos crucifiquem no mais alto
da torre Antônia, para que os vossos corpos sejam pasto das
vorazes aves de rapina.
- Sossega, meu irmão, lhe dizia Salomé, limpando o
suor que inundava a fronte do monarca. A ciência ainda não
perdeu a esperança de te salvar: confia, espera.
- Confiar, quando a impotência dos médicos se mostrou
clara como a luz do dia! Esperar, quando os frios dentes da
morte fizeram presa nas minhas entranhas e as estão
arrancando do seu lugar!
Herodes fez um violento esforço para levantar-se e, não
podendo conseguir seu intento, deixou-se cair no leito. O
silêncio de morte que reinava na câmara real, só era
interrompido pelo respirar rouco e fatigado do enfermo.
Aleixo indicou a sua esposa que fizesse beber ao rei do
líquido que continha uma taça de ouro e esta, depois de
repetidas e carinhosas súplicas, conseguiu que o enfermo
obedecesse.
- Obedeço-te, minha irmã, disse o rei depois de ter
bebido; mas tudo é inútil: sei que morro; a minha vida foge
por instantes deste frágil vaso em que se encerra. O meu
único sentimento ante a morte certa que me acaricia, a minha
horrível desesperação ao abandonar a vida, não é a minha
morte; é o gosto, o prazer, o grito de alegria com que será
saudada pelo povo hebreu... Mas eu sou o rei. Não é verdade
que sou o rei, e que nas doze tribos ninguém se atreverá a
desobedecer-me?
- Quem pode duvidar disso, senhor! lhe respondeu a
irmã. Enquanto viveres, no teu reino não haverá outra lei que
a tua vontade.

379
- E depois de morto se acatarão as tuas últimas
disposições, disse por sua vez Aleixo.
- Não é verdade que sim?
E Herodes tomou sua irmã pelo braço e aproximou-se
do leito como para estudar no seu olhar o que acabava de
dizer.
Salomé empalideceu, porque o mau cheiro que lançava
o corpo do rei era insuportável. Dissimuladamente cobriu o
rosto com um lenço embebido em essência, fingindo limpar
as lágrimas.
- Pois que ainda se cumprem as minhas ordens,
continuou com fatigada voz Herodes, aproximai-vos todos; e
tu, Aleixo, escreve neste pedaço de papiro selado com o meu
anel, porque vou ditar-me a minha última vontade.
- Dita, senhor, já te escuto.
- Querido Aleixo, o que vou ditar-te é o pensamento
mais feliz que a minha real cabeça tem tido durante os seus
trinta e nove anos de reinado: tu verás, tu verás. Sófocles
teria escrito uma grande tragédia se lhe houvesse ocorrido: tu
verás, tu verás. E Herodes soltou uma gargalhada horrível
que fez estremecer os que a ouviram.
- Escreve, continuou Herodes: “É minha vontade que o
povo de Israel, que me aborreceu em vida, me chore depois
de morto: e como isto parece algum tanto impossível,
atendendo ao ódio que me tem, apesar dos benefícios que de
mim tem recebido, mando que morram degolados no
hipódromo de Jericó os treze mil judeus que ali se acham
reunidos, tão depressa como eu expire, para que as suas
famílias, chorando sua morte, chorem ao mesmo tempo a
minha”.
Aleixo escrevia sem respirar; mas a mão tremia-lhe e a
cor do rosto tinha desaparecido.

380
- Que vos parece o meu recurso?
- Senhor... murmurou Salomé.
- Basta, irmã, basta; conheço a tua intenção, mas já
sabes que sou inflexível; quero que se cumpra a minha
vontade, entendeis? E ai do que incorrer no meu desagrado!
Ai do que desobedecer as minhas ordens!
- Será obedecido, senhor, disse Arquelau com
severidade.
- Agradecido, meu filho; essa obediência anuncia-me
em ti, que és o meu sucessor, um reinado digno do meu.
Aleixo apresentou o papiro, e o rei assinou e selou com
a mão convulsa, exclamando:
- É o meu presente de morte... o povo de Israel verá que
na última hora da minha vida lhe dediquei o meu derradeiro
pensamento.
Aleixo enrolou o pergaminho e entregou-o a Arquelau,
dizendo:
- Toma, senhor; quando fores rei cumpre a vontade de
teu pai.
- Agora façamos a última experiência desse Herodes,
pois que os médicos não acham o remédio para este mal que
me devora, colocai-me numa liteira e conduzi-me rodeado
dos meus escravos à praça pública.
- Isso é impossível, meu irmão! A tua moléstia pode
piorar.
- Ora, eu sou um cadáver que fala e sente ainda por
acaso.
- É que não compreendemos que bem possa fazer-te
medida tão estranha!
- Ah! não o compreendeis? Pois eu vo-lo direi. Os
caldeus tem fama de sábios, não é verdade?

381
- Sim meu irmão, de toda parte do mundo correm os
homens de saber à moderna Selêucia a admirar esses sábios,
conhecedores do globo celeste que com tanta precisão
marcam o misterioso rumo das estrelas; mas...
- Pois olha, irmã os caldeus não tem médicos: quando
um deles se acha gravemente enfermo e a sua família perde a
esperança, colocam-no numa liteira fechada por vidros e
conduzem-no à praça pública, e todos os que passam tem
obrigação, sob penas mui severas, de se aproximar do
enfermo e de se informar da espécie de mal que sofre, e
então, se há algum que se achou no mesmo caso, indica aos
seus parentes o método que seguiu para recobrar a saúde.
- Isso é um absurdo, murmurou Aleixo.
- Será o que quiseres; mas advirto-te que em nenhuma
parte do mundo chegam a maior velhice os homens que nas
margens do Eufrates, na terra de Ur e na Arábia Feliz:
porque ali curam-se pela experiência e caridade, e não pela
ciência e interesse.
- Perdoa, senhor, se não te obedecemos nesta ocasião,
atreveu-se a dizer Arquelau; seria uma imprudência.
Herodes, acostumado a ser obedecido durante o seu
reinado até nas coisas mais absurdas, olhou seu filho com
assombro, e depois exclamou:
- Quem se opõe aqui a minha vontade?
- Eu, disse com energia seu filho, sem baixar os olhos.
Eu porque creio que é um dever de filho e súbdito leal,
desobedecer-te!
- Tu, tu! exclamou de modo feroz: e, dirigindo-se a seu
cunhado continuou: Leva esse borracho!
Arquelau, que mais tarde mostrou que não tinha tão
negra a alma e tão sanguinário o coração como seu pai,

382
cruzou os braços, e com serenidade imprópria da situação
disse:
- Os insultos convertem-se em louvores quando se
tributam a um homem que cumpre o seu dever: Aleixo não
me porá as mãos na roupa, porque Aleixo sabe que não deve
obedecer-te.
Herodes passou as mãos pelos olhos. Depois cobriu a
cabeça com a colcha e começou a maldizer que o cobria, e
saltou da cama repente atirou longe de si a roupa que o
cobria, e saltou da cama ao chão; mas estava fraco e não
pode ter-se em pé, caindo depois de cambalear um segundo
sobre a macia alfombra.
Todos correram a levantá-lo mas ele repeliu-os com um
ademane de cólera. Seu rosto estava mais horrível que nunca;
suas palavras eram um ruído rouco e ininteligível; tremia
como se o frio interior lhe gelasse o sangue, e, um copioso
suor lhe corria por todo o corpo. Salomé correu para a
estância próxima em busca dos médicos: mas, quando estes
chegaram, o auxílio da ciência era inútil. Herodes, o idumeu,
o açoite de Israel, o verdugo dos hebreus, tinha finalmente
morrido.
Sua agonia foi terrível como um castigo de Deus: pode
dizer-se que durou dois anos. Seu corpo foi devorado pelos
vermes. Nos últimos momentos da vida, acossado pelos
remorsos e pelas agudas dores do mal que o devorava, fazia
com que os seus inumeráveis netos lhe rodeassem o leito de
morte, comprazendo-se em arranjar casamentos daqueles
pimpolhos reais, a quem o seu punhal sanguinário deixara
órfãos.
O idumeu solicitava as carícias daquele punhado de
crianças como se delas dependesse sua felicidade eterna: mas
o rosto ulcerado e fétido do enfermo repugnava as crianças

383
que mostravam sua repulsão com a franqueza peculiar dessa
idade em que tudo se diz porque se ignora o valor das
palavras. Deus quis negar-lhe até o carinho daqueles anjos.
A sua morte foi um grito de alegria para Israel. Só um
ente chorou a morte daquele tirano. Cingo, seu escravo. A
família não derramou uma lágrima, não exalou um suspiro de
dor.
O enterro de Herodes foi faustoso. A tradição só
recordava um que lhe parecesse: o de Salomão.
Arquelau mostrou grande esmero nas honras funerárias
a seu pai. Pôs o cadáver num leito de ouro bordado de
pérolas e pedras preciosas; o estrado era guarnecido de
púrpura; o corpo vestido de brocado de ouro, tinha uma
coroa na cabeça e um cetro real na mão direita; ao redor da
cama estavam os filhos e parentes: depois iam adiante todos
os da sua guarda, um esquadrão de gente trácia, de alemães e
franceses, todos armados e em ordem de guerra, todos os
outros soldados seguiam os seus capitães depois mui
convenientemente; quinhentos escravos e libertos levavam
perfumes; e assim foi levado o corpo, caminho de duzentos
estádios ao castelo de Herodion, onde foi sepultado conforme
as suas ordens.
E, cousa estranha, Herodes, o velho lobo de Israel, o
coração malvado que nunca se fartava de derramar sangue, o
feroz verdugo dos hebreus, amava as artes com delírio.
Durante o seu desgraçado reinado, levantou o ruidoso
templo de Zorobabel; edificou as cidades de Sebasto e
Cesaréia em honra de Otaviano Augusto; reparou os
monumentos de Atenas, reedificou em Rodes o templod e
Apolo Pítio; construiu palácios em Ascalon, banhos públicos
em Trípoli, Damasco e Ptolemaida; cercou de muros a cidade
de Bíblio, e fez bolsas, aulas, templos e praças em Tiro,

384
Berito, e Sidônia; deu prêmios nos jogos olímpicos e
pensionou em Roma; fez teatros, aquedutos e belas lagoas.
Isto lhe valeu o cognome de Grande. Seus crimes
disputaram-lhe este glorioso apodo, recordando as célebres
palavras de César Augusto quando soube a terrível vingança
de Berito: “Mais vale ser porco que filho de Herodes”.

CAPÍTULO III

O REI MORREU! VIVA O REI!

Herodes morreu ao amanhecer, e às doze horas daquele


mesmo dia, Arquelau seu filho, seguido dos chefes
legionários e, de todas as dignidades da corte de seu pai,
apresentou-se no hipódromo.
A guarda pretoriana sabia o régio acontecimento, e
tinha pronunciado em voz baixa o grito de – O rei morreu! –
e esperava o seu novo senhor para o aclamar e receber a paga
da sua submissão.
Os infelizes judeus tremeram ante o séquito real; os
soldados romanos, empunhando as armas, formaram para
saudar a sua fidelidade. Ptolomeu desenrolou com sossego
um longo pergaminho, e indicando com um gesto que
guardassem silêncio, leu em voz grave o testamento do
defunto rei, no qual se nomeava seu filho Arquelau, herdeiro
da coroa; mas exprimindo que isto seria depois que o César
Otaviano Augusto, seu protetor o confirmasse.
Lida a última vontade de Herodes, ressoou por todo o
anfiteatro o grito de – Viva o rei Arquelau! O jovem monarca
saudou com amabilidade a multidão. O gozo, o prazer,
saltavam-lhe aos borbotões pelo semblante. Era rei pela
vontade de seu pai, e esta vontade confirmava-a a espontânea

385
aprovação dos seus soldados. Restava em verdade um
obstáculo por vencer: que o César confirmasse o testamento;
porém Arquelau sabia de sobejo que o ouro que Israel havia
tempo que abrandava o coração dos senhores de Roma.
Entretanto os soldados legionários juraram-lhe
fidelidade como a seu pai, e Arquelau, que seis anos mais
tarde devia cair do trono pela crueldade, quis uma vez na sua
vida mostrar-se clemente para conquistar por este meio o
apreço dos israelitas. Mandou seu tio ler a última sentença de
seu pai, e o temor, o assombro estendeu-se por entre os
pobres presos. Os desgraçados rasgavam os vestidos com
desesperação. Outros caiam chorando aos pés de Arquelau,
pedindo-lhe com gritos de medo a vida que seu pai com tão
incrível desumanidade mandava tirar.
Arquelau, no meio daquela desordem, daquela
confusão, daqueles lamentos intermináveis, agitou o
pergaminho no ar e mandou que guardassem silêncio.
Calou-se a aterrada multidão, e ele falou deste modo:
- Nobres de Israel! Ilustres primogênitos de Judá, nada
temais! O meu reinado, se é que ao César nosso senhor lhe
apraz que eu vos governe, não começará com um crime tão
horrível, com um assassínio tão espantoso. Eu quero o vosso
amor, e não o vosso ódio; quero as vossas bênçãos, e não as
vossas ameaças; meu pai sentenciou-vos à morte, eu salvo-os
a vida. Sois livres! Podeis abandonar o hipódromo quando
vos aprouver!
E dizendo isto, rasgou o pergaminho e fez voar pelo ar
os pedaços. Seria impossível descrever o entusiasmo
daqueles infelizes.
Caminhar para a morte, e encontrar-se com a vida, é
uma alegria que não tem palavras com que descrever-se.

386
Arquelau foi levado em triunfo ao palácio e seu reinado
teve um começo que bem depressa desmentiu o pobre e
perverso sangue que lhe corria pelas veias.
Herodes, o Grande, foi conduzido ao sepulcro com um
luxo, uma ostentação tão desusada naqueles épocas, que os
israelitas costumavam dizer: “Quem comesse como o rei
Assuero e fosse enterrado como o rei Herodes!”
Assuero deu banquetes que duraram cem dias.
Arquelau fez festas pela memória de seu pai, em toda Israel,
e o número das carpideiras que acompanhavam o cadáver
subia a cinco mil; mas naqueles lamentos, aquelas lágrimas
compradas com o ouro das suas vítimas, não subiram ao céu.
Os primeiros cuidados do novo rei, ao tomar as rédeas
do poder, foram mandar emissários a Roma, carregados de
presentes, para inclinar o César em seu favor, e procurar o
tesouro que, segundo a voz pública, o idumeu havia
enterrado.
Os embaixadores foram mais felizes que os boxadores
de ouro. Otávio Augusto reconheceu Arquelau como rei da
Judéia; mas o tesouro não pode encontrar-se.
Um rei pobre acha-se mais exposto a ser restronado que
um rei rico.
Arquelau tinha comprado o exército legionário à força
de ouro. A bolsa dos soldados do Tibre estava repleta; a do
rei, vazia; era pois indispensável recorrer aos impostos. Israel
sentiu o primeiro golpe real que caia atroador sobre as suas
arcas.
Gemeu e pagou. O primeiro decreto do seu novo rei
custava-lhe ouro; o segundo ia custar-lhe sangue.

CAPÍTULO IV
FOGO ENTRE CINZAS

387
Cingo tinha terminado sua missão em Israel ao pé do
túmulo de Herodes.
Livre e rico, pensou na pátria. O seu leal servilismo, o
seu caráter enérgico e selvagem, o favor de que tinha gozado
durante doze anos ao lado do idumeu, tinham-lhe criado
inimigos na Judéia.
Arquelau, o jovem rei, odiava-o; assim é que, quando
lhe pediu licença para abandonar a terra de Jacó, o jovem
monarca, encolhendo os ombros, respondeu-lhe com
desprezo:
- Vai-te quanto te aprouver; para nada preciso de ti.
O negro mordeu os lábios, curvou a cabeça e saiu da
câmara real sem murmurar, aquele desprezo queimava-lhe o
coração. Teria dado toda a fortuna para arrancar a língua
aquele mancebo que o ofendia.
Desde aquele dia, pensou na pátria, no ardente sol da
África, nas selvagens caçadas do deserto, na tenda do árabe,
nas tranquilas noite de Tchad e na bela liberdade dos filhos
da Líbia.
Resolvido a não servir de instrumento a nenhum tirano
ansiando lançar-se nos braços da voluptuosa preguiça tão
encarnada no sangue dos filhos da África, começou a fazer
preparativos de viagem.
Tudo estava pronto oito dias depois. Dois fornidos
dromedários esperavam nunca casa dos arrabaldes de Jericó
o momento da partida.
A viagem era longa, mas Cingo não esqueceu nada; a
tenda, os odres para a água, as caixas para as provisões, as
macias peles para a noite, os matelots, para os aguaceiros, e
os cães guardadores do sono.

388
E, no entanto, não partia, porque uma coisa o
preocupava a ponto de roubar-lhe o sono: Enoé.
A formosa egípcia viva com ele, na casinha do
arrabalde, dócil, submissa, obediente; mais que um ser vivo,
parecia um autômato desde a morte de Antípatro. Nunca
despregava os lábios. Sua eterna melancolia, sua
imobilidade, seu retraimento, desconcertavam o negro que
não se atrevia a molestá-la nem com a sua conversação. Ela
não ignorava que o amante tinha sido assassinado por Cingo
e, contudo seus lábios não pronunciaram uma queixa.
Chorar, permanecer horas e horas acocorada num canto do
aposento com as mãos cruzadas sobre os joelhos e os olhos
pregados no chão era a sua vida.
Falto de resolução ante a dor e recolhimento de Enoé,
Cingo não se atrevia a empreender a viagem. Partir sem ela
era de todo o ponto impossível, porque a amava com delírio;
e deixá-la na Judéia era deixar a metade de sua vida, todas as
suas ilusões, todos os seus belos sonhos de felicidade.
Esperar uma recompensa para o amor que lhe devorava o
peito, era quase impossível. Cingo começava a sentir um
vácuo no cérebro. Receiou endoidecer, e uma noite,
resolvido a arriscar o todo pelo todo, sentando-se ao lado da
escrava, falou-lhe deste modo:
- Sabes Enoé, que vou deixar a terra de Israel?
- Fazes bem, se não tem encantos para ti.
- A ave do deserto quer liberdade; e tu, Enoé, que
queres?
- Eu?... nada... Sobra-me tudo porque me falta ele.
- Muito o amavas.
- Era a minha vida.
- O tempo e a distância dizem que são grandes
remédios para as doenças do amor.

389
- O amor que vive na alma, morre no sepulcro e torna a
renascer no paraíso.
- Que faria eu para consolar as tuas penas?
- Chorar comigo.
- As lágrimas afrontam os homens.
- Mas embelezam a mulher.
- Se tu me amasses, Enoé!... – Cingo deixou cair esta
frase a medo.
A egípcia levantou os formosos olhos do chão, e
fitando-os com indefinível melancolia no negro, exclamou,
depois de exalar um doloroso suspiro.
- Amar-te! Pode-se amar duas vezes na vida? Não há
mais que um amor: o primeiro, como não há mais que uma
existência, a que recebemos ao nascer.
- Os poetas da minha terra escrevem muitas histórias
em verso ponderando a excelência do segundo amor.
- Pobres homens! O que eles julgavam amor era
vaidade: o que julgavam segundo, era o primeiro.
- Mas o homem que conseguiu apoderar-se do teu
coração já não existe.
- E que importa? Por ventura, ainda que a terra o cubra
com a sua capa impenetrável, ainda que o sepulcro encerre as
suas cinzas para as guardar no profundo silêncio da morte,
ainda que eu não o veja com os olhos do corpo, deixo de o
ver sempre com os olhos da alma? O amor da realidade não
existe, mas o amor das recordações ergue-se maior, mais
belo no meu coração, na minha memória.
E Enoé juntou as mãos e ergueu os olhos ao céu como
se através do teto da habitação visse nos céus a imagem
querida do príncipe de Israel.

390
- Tu aborreces-me, Enoé, murmurou Cingo, e esse ódio,
esse desprezo que te inspiro mais reanima o fogo de amor
que o teu doce olhar me acendeu no peito.
- Aborrece-te! Oh, pobre de mim! O ódio não me cabe
no coração, porque todo ele está cheio de amor.
Enoé mentiu; e se o negro não estivesse tão aturdido,
teria visto passar pelos olhos da egípcia alguma coisa
extraordinária.
- Pois bem: se não me aborreces, se te inspira
compaixão o eterno sofrimento que a tua frieza me causa,
exclamou Cingo com o entusiasmo do náufrago que vê junto
de si uma esperança de salvação, esta mesma noite partirás
comigo para a África.
- Irei onde me mandes, respondeu com doçura Enoé; a
tua vontade é a minha. Tu respeitas a minha dor, eu devo
obedecer-te.
Cingo pôs-se em pé; passou as mãos pelos olhos como
se duvidasse do que ouvia, e depois, estendendo uma da
mãos a Enoé, disse-lhe com o tom medroso de uma criança a
quem seu pai repreende:
- Se fosses tão boa que me deixasses apertar a tua mão
em sinal de amizade, de simpatia...
Enoé apertou a mão do negro com a sua, e este
imprimiu nela um respeitoso beijo. Enoé estremeceu, como
se um botão de foto a houvesse queimado; mas o negro era
tão feliz, que nada observou.
- Se queres, Enoé, partiremos quando o luzeiro
matutino erga a sua formosa luz por cima dos cumes de Judá.
Tudo está preparado. Eu não me atrevia a empreender a
viagem receoso de ofender-te, porque a tua vontade é a
minha lei... que querer! Amo-te como um louco. Em África
serei teu escravo; a minha fortuna será tua. Tu serás a

391
senhora, eu serei o servo. Agradar-te, satisfazer os teus
desejos será o meu único afã. Os deuses, propícios a minha
paixão, façam com que um dia brotem dos teus rosados
lábios palavras de amor para mim.
Cingo esperava impaciente uma resposta, porque a
condescendência, a bondosa resignação da egípcia lhe
deixava entrever uma esperança.
- Partiremos a essa hora, se é que assim te apraz,
respondeu sem levantar os olhos do chão.
- Tu não podes imaginar o bem que me fazem as tuas
palavras: partir para a minha pátria e partir levando-te ao
meu lado, para que mais ventura! Oh, que boa és! Não se
porque me diz o coração que hei de ser muito feliz.
Enoé exalou um suspiro. Cingo, louco de alegria
começou a reunir tudo o que julgava indispensável para a
viagem.
A egípcia olhava de vez em quando para o negro; mas
os seus olhos fitavam-se as vezes com tenacidade na cabaça
que lhe pendia do citno: dir-se-ia que com seu olhar queria
aprouver as pequenas víboras que se agitavam no seio
daquele vegetal.
- Olha, Enoé, vou deixar-te só alguns instantes; preciso
de encher os odres de água e carregar os dromedários: logo
volto; procura achar-te pronta para a partida.
Cingo saiu entoando uma canção do seu país. Enoé
permaneceu imóvel no mesmo lugar, somente, erguendo os
olhos ao céu, exclamou depois de soltar um doloroso suspiro.
- Oh! Quanto tardas, momento desejado! Antípatro,
Antípatro! Confia! O meu valor não desmaia, a minha
memória está fresca como no dia da tua morte.

392
Depois voltou à sua habitual posição: triste, imóvel,
chorosa, como a estátua da amargura, com os olhos no chão e
as mãos cruzadas sobre os joelhos.

CAPÍTULO V

O CANTO DO CISNE

Algumas horas depois, Cingo e Enoé abandonaram a


cidade de Jericó.
O negro etíope, armado duma lança trácia e dum curto
sabre de Damasco à cinta, com o seu traje árabe e o
semblante risonho, montava um poderoso cavalo, presente de
seu defunto senhor. A seu lado, embuçada num manto
ralado, Enoé cavalgava encastelada num dromedário, e atrás
deste um camelo de carga levava sobre o robusto dorso os
petrechos de viagem, a tenda e a fortuna de Cingo.
Caminhavam ao lado do negro dando saltos e ladridos
de alegria três cães enormes de raça caldeia, que tão
importante papel desempenhavam nas batalhas.
Apenas sairam da cidade, tomaram a via Roma que,
atravessando a Samaria da Galiléia, conduz os viajantes do
interior às ribeiras do mar Ocidental, onde Cingo esperava
achar alguma navio de transporte que o levasse para a costa
da África.
- Que manhã tão bela, Enoé! dizia Cingo. Tudo sorri
em torno de nós; só tu conservas essa eterna melancolia que
me desespera. Não podes compeender o que eu faria para
ver-te alegre e feliz!
Cingo calou-se, porque Enoé respondeu as suas
palavras com um suspiro.

393
- Vês aquelas nuvenzinhas cor de opala que assomam
pelo Oriente? tornou a dizer o negro. Pois na minha terra,
quando meus irmãos de dispõem a elevar a sua oração
matinal e vem a saída do sol procedida por aquelas
nuvenzinhas, tem-no por bom agouro, e as caravanas prontas
para atravessar o deserto empreendem sua penosa viagem
com a alegria no rosto, a esperança no coração e os cantares
nos lábios. Canta, sim, Enoé, ri, deita, fora a tristeza, porque
os deuses imortais nos asseguram uma feliz viagem.
- Sim, tens razão, Cingo, devo cantar. Quando era
menina levantava-me com a alva e juntava os meus tristes
trinados com os dos pássaros que andavam na margem do rio
santo. Vou ver se me lembro duma canção da minha
infância.
- A tua voz encantadora ressoa no espaço, levantando
um eco dulcíssimo no meu coração. Canta, Enoé, canta. Eu
te escuto.
Houve um momento de silêncio, durante o qual a
egípcia parecia recordar os versos do canto da sua infância.
Por fim, precedido dum prolongado lamento, canto o
seguinte romance com uma entoação triste como o gemido
dum cisne moribundo:

Aonde vais, ò meu Dario?


Edna, á guerra me vou,
Pois já o exército persa
Em nossas terras entrou.
Não vás, não me deixes;
Peço-te pelo nosso amor,
Pelas cinzas de minha mãe,
Pelo nosso Deus protetor.

394
Nos plainos de Gizé
Já suas tendas levantou
Um exército estrangeiro
Que a nossa hora manchou.
Nada temas, Edna, minha.
Eu voltarei... E porque não,
Se Júpiter me presta amparo
E Minerva proteção?

Edna choa, Dario parte;


A triste dos olhos prantos solta, Porque passam dias
após dias
E o seu amado não volta.
Desde então a donzela
Em vão procura o amante!
Triste tem o seu olhar
Triste o seu semblante!
Triste é o eco da sua voz,
Que pelos bosques de Nicot
Repetindo vai: - Dario! Dario!

Porque me deixaste tão só?


Oh! Volta volta... volta
Peço-te pelo nosso amor,
Pelas cinzas de minha mãe,
Pelo nosso Deus protetor.

Calou-se a egípcia. Sua voz perdeu-se ao longe como


gemido do zéfiro entre os espessos ramos dos salgueiros.
Duas lágrimas lhe escorregaram pelas ternas faces. Sua
formosa cabeça caiu sobre o peito, dobrada como a pura
sensitiva aos ardentes raios do sol do meio dia.

395
Os dois cães que saltavam ao redor do seu
camelo,apenas se extinguiu o triste som da voz de Enoé,
soltaram um prolongado e fúnebre uivo, que foi perder-se,
fatidicamente entre as concavidades dos barrancos.
Cingo era árabe e, portanto supersticioso. A canção de
Enoé, o uivo dos cães, fê-lo estremecer, e sentiu que o
sangue das veias se lhe gelava. Então, não achando palavras
na língua, quis desimpressionar-se do fatídico estupor que o
tnha sobre-encolhido e, cravando o acicate nos ilhais do
corcel, partiu a galope, fazendo na sua carreia mil evoluções
que mostravam que era um cavaleiro consumado. Os
camelos imitaram o galope do cavalo, os cães saltaram em
redor dos camelos; todos corriam apressados sem despregar
os lábios, preocupados, tristes, meditabundos. A canção de
Enoé tinha produzido efeito melancólico.
A aurora daquela viagem tinha-se apresentado risonha,
tranquila. Mas aquelas nuvenzinhas cor de opala tinham-se
transformado em pardas nuvens de cor feia e achumbada.
Quando o sol saiu, não pode lançar sobre a terra os seus raios
vivificadores, porque estava nublado.
Entretanto Cingo, corria e corria, mais para se aturdir
que por correr, e atrás dele os camelos, levantando as
cabeças, aspirando o ar e mostrando os dentes; e os enormes
cães, ora adiante, ora atrás da pequena caravana, galopavam
também, dando saltos e ladridos.
De repente rasgaram-se as nuvens e um raio cruzou o
ar, deixando após de si uma serpente de fogo.
O cavalo de Cingo encabritou. Os dromedários
lançaram um sopro medroso, augurando a próxima
tempestade. Um trovão surdo e longínquo rolou nas nuvens,
e algumas densas e grossas gotas caíram sobre a terra.

396
O negro conteve o cavalo e parou. Os camelos fizeram
o mesmo. Os cães deitaram-se no chão com a língua dilatada,
a respiração fatigada e os ilhais batendo.
- Dentro em pouco a água cairá sobre nós a torrentes,
Enoé; é preciso pôr pé em terra e levantar a tenda, disse
Cingo.
- Como quiseres; respondeu a egípcia com indiferença.
O negro pôs pé em terra, prendeu o cavalo ao tronco
duma árvore e, aproximando-se do dromedário de Enoé,
tocou-lhe com a lança nos nodosos joelhos, e o dócil animal
deitou-se para que a egípcia descesse.
Com rapidez assombrosa, o negro levantou a tenda,
colocando-a junto à fralda dum outerinho, resguardada do
levante, que trazia sobre eles a tempestade.
Depois estendeu uma das peles e disse à escrava:
- Entra: a lona da tenda tem uma preparação que repele
a água. Debaixo do seu teto achar-te-ás tão abrigada da
chuva como no palácio dum rei.
Depois prendeu os camelos junto do cavalo e mandou
aos cães que não se movessem: e os cães, acostumados a
vigiar o sino da caravana, foram deitar-se a vinte passos da
árvore que servia de refúgio aos herbívoros, como se a hora
da sua atalaia houvesse chegado.
Cingo entrou na tenda onde já se achava Enoé, e fechou
atrás de si a porta de lona com as fortes correias de pele de
touro.
Parecia que as nuvens só esperavam que o negro
terminasse a tarefa para descarregarem sobre a terra as
ferventes cataratas que encerravam nos seus flutuantes bojos.
Poucos minutos bastaram para que o dia, que se
apresentava belo, claro, cheio de poesia e de luz, se

397
convertesse num dia de horrível tempestade, de furiosos
ventos, de mares de água.
No Oriente estas mudanças de tempo são mui comuns.
Os dromedários e o cavalo chegaram-se ao tronco da
árvore que lhes servia de tenda, para se livrarem da água que
o céu derramava sobre eles. Os cães não se mexeram do
lugar que lhes tinha indicado seu dono.

CAPÍTULO VI

DEBAIXO DUMA TENDA

Cingo contemplou-a alguns instantes mais, fazendo um


movimento de ombros como o homem que se decide a
revestir-se de paciência, sentou-se também, ainda que um
pouco desviado da companheira de viagem.
- A tormenta durará pouco, disse quase falando consigo
mesmo. Mas corremos muito, e algum descanso não será
mau para os camelos e para o cavalo... Se estás cansada,
passaremos parte da noite nesta tenda.
- Eu só tenho direito a obedecer, respondeu Enoé.
- És muito cruel.
- A condescendência é crueldade na tua terra, africano?
- Não; mas a indiferença despedaça os corações
ardentes e apaixonados como o que sinto bater no peito.
- E que me importa a mim que o teu coração se
despedace quando o meu está feito cinzas desde o instante
em que o meu senhor desceu ao sepulcro?
Cingo abriu os olhos desmedidamente, pôs-se em pé, e
cruzando os braços sobre o agitado peito, exclamou com ira
reconcentrada:

398
- Sabes que as tuas palavras podem converter a mansa
ovelha em lobo feroz?
- Isso é uma ameaça?
- É uma advertência que pode servir-te muito.
- O rei poeta, o pai de Absalão, o dos longos cabelos,
disse: “As repreensões suaves quebram a ira: as palavras
duras excitam o furor”. Não esqueças estas palavras do sábio
Salomão.
- Oh! Que mais humildade queres no homem que te
ama? disse o negro juntando as mãos com ademã suplicante.
- Que mais resignação esperas da mulher que te
aborrece? respondeu a egípcia lançando-lhe um olhar altivo
que fez estremecer o negro.
- Enoé, Enoé, lembra-te que estamos sós; que sou o
mais forte, e que a te o poderoso estrondo da tempestade é
em meu favor, porque apaga a voz humana.
Enoé encolheu os ombros e fechou os olhos inclinando
a cabeça sobre um almofadão e murmurando:
- Ora! Tu não me farás mal; sei-º.. deixa-me dormir;
incomoda-me a conversação; estou cansada.
Cingo, desorientado ante aquela jovem, soltou um
rugido e deixou-se cair num dos extremos da tenda,
escondendo a cabeça entre as mãos, sem dúvida para não a
ver.
Entretanto, Enoé, triste como sempre, tranquila como
nunca, continuava reclinada sobre o seu coxim com os olhos
fechados.
Para um homem como Cingo, uma mulher como Enoé
era a desesperação. O feroz negro, vendo-se sempre vencido,
derrotado por aquela fraca menina, estava fora de si. As
idéias sucediam-se em tropel naquela imaginação inculta,
selvagem.

399
Tão depressa pensava em obrigá-la a obedecer pelo
poder da força, como lhe ocorria cair-lhe aos pés e chorar
com ela a morte do venturoso príncipe que ainda depois de
morto reinava no seu coração. Há tempestades no cérebro
que devastam e deixam sinais no ser humano como a
passagem do furação num campo de espigas.
Cingo, apesar do minguado espaço da tenda, passeou,
ou para melhor dizer; deu voltas como a hiena em redor dum
cadáver desenterrado.
- O vinho é bom conselheiro nos casos graves da vida,
tornou; e depois os seus vapores consolam e fazem esquecer-
nos as penas: bebamos, pois.
Dirigiu-se a um dos extremos da tenda, desatou um
odre e deitou uma porção de vinho numa ânfora de barro.
Depois tomou um punhado de tâmaras da caixa de
provisões e uma pedaço de torta, e foi sentar-se junto da
porta onde tinha posto a pele e um coxim. Uma vez sentado,
bebeu um grande trago de vinho e olhou para Enoé.
- Queres tâmaras? disse estendendo-lhe a mão cheia
daqueles frutos.
A egípcia não respondeu.
- Terás adormecido?
Ao fazer a si próprio esta pergunta, a julgar pelo brilho
dos seus olhos e pela expressão de prazer que lhe assomou ao
semblante, algum pensamento horrível lhe tinha passado pela
mente; mas imediatamente fez um gesto de indiferença com
os lábios e tornou a beber com avidez, murmurando:
- Ora! O tempo é um grande remédio para a moléstia de
que em pedaço. Respeitemos o luto do amor... e bebamos...
Depois destas reflexões, um tanto mais tranquilo, Cingo
procurou uma posição mais cômoda e continuou fazendo

400
repetidas libações. Os vapores do vinho começaram a
produzir efeito; mas Cingo bebia e Enoé fingia dormir.
De repente os cães começaram a ladrar de modo
desesperado. Cingo, com uma voz rouca e presa dos
borrachos murmurou:
- Que é isso Moloch? Que há, Tifon? Há algum curioso
pelas vizinhanças, leais sentinelas? Mordei, despedaçai, mas
não me quebreis a cabeça com os vossos desagradáveis
gritos.
Os cães continuavam com mais força os seus ladridos.
- Vejamos o que há, tornou o negro. E. não sem alguma
dificuldade, pôs-se em pé e, pegando na lança, saiu da tenda.
Enoé abriu os olhos ao ver-se só; pôs-se em pé,
percorreu a tenda com precipitação, procurando alguma coisa
que não encontrava e depois, tornando a colocar-se na
mesma posição, disse, fechando os olhos:
- Espera, espera, meu amor, que eu não durmo nunca.
Cingo, apoiado na lança, percorreu as vizinhanças da
tenda; mas não encontrou nada.
A tempestade havia-se dissipado; os raios do sol da
tarde ainda brilhavam.
Para o norte destacavam-se ao longe as tétricas
montanhosa de Samaria como um esquadrão de gigantescos
fantasmas. A tempestade ainda pairava sobre os altos cumes,
encaminhando a sua terrível cólera para s costas ocidentais.
Cingo tornou a entrar na tenda, cambaleando, e deixou-
se cair sobre a pele. Alguns momentos depois dormia
profundamente.
Sua respiração forte e pausada mostrava a qualidade do
sono que a produzia. Cingo dormia o sono pesado e profundo
do borracho.

401
A egípcia abriu os formosos olhos. Um raio de sol,
entrando pela porta da tenda, banhava a negra e selvagem
cara do escravo.
- Cingo, Cingo! disse Enoé em voz baixa.
O negro permaneceu na mesma posição.
Então a jovem levantou-se e, aproximando-se ao
dormente, tornou a repetir o mesmo nome; mas desta vez
com voz mais forte e aplicando os lábios ao ouvido do
adormecido.
O negro estremeceu, porém seus lábios permaneceram
cerrados.
- Dorme, disse consigo Enoé, dorme profundamente.
Cingo tinha deixado as armas ao alcance da mão, e
Enoé pegou um punhal.
Depois, pondo-se de joelhos ao lado do negro, com
uma das mãos agarrou a pequena cabaça que continha as
víboras, e com a outra em que tinha o punhal, cortou o
cordão de seda que a prendia ao cint.
Senhora daquela arma terrível, pôs-se em pe, dizendo:
- Olho por olho, dente por dente. Agora és meu,
africano feroz. A tua morte é certa como a de Antípatro, a
quem vou vingar. Amanhã, Belzebu, o asqueroso deus das
moscas, mandará as suas repugnantes legiões para que
saboreei a podre substância da tua carne envenenada.
Rápida como uma pantera saltou por cima do corpo do
negro, e colocando-se à porta da tenda, destapou a cabaça, e
deitou todas as víboras no peito de Cingo.
Os venenosos répteis começaram a estender-se,
agitando a língua, por todo o corpo; duas delas se enroscaram
no pescoço do negro e lhe cravaram os ferrões na carne;
outra foi picar-lhe nos lábios; outra nos olhos.

402
Com a alegria feroz da leoa que acaba de despedaçar a
hiena que lhe surpreende na cova dos cachorros, enoé se
afastou da tenda, e desprendendo os dromedários e o cavalo
do tronco da árvore, montou no seu e deu o grito de partida.
Os dóceis camelos tomaram com passo grave a
primeira senda que se abria ante eles. O cavalo seguiu os
camelos saltando e relinchando. Os cães, com o olhar
fosfórico, procuravam seu amor e, não o vendo,
encaminharam-se para a tenda com esse instinto leal tão
próprio da raça canina.
Ao chegarem à porta encontraram o corpo do negro que
se revolvia pelo chão, lutando por sacudir o seu pesado sono
do vinho.
Os cães estenderam o pescoço, e dilataram os narizes
cheirando o corpo do amo; mas de repente sacudiram as
orelhas e retrocederam alguns passos, soltando um lastimoso
uivo.
Tinham visto as víboras; o seu imperceptível silvo
horrorizava-os. O leão foge da víbora; todos os animais da
criação, inda os mais ferozes, as temem e evitam o seu
encontro, cedendo o campo porque a sua picadura é a morte,
e eles o sabem por um secreto instinto.

CAPÍTULO VII

MELODIA FÚNEBRE

Os uivos dos cães e as terríveis picadas das víboras


acabaram de despertar o negro, que fazendo um violento
esforço para sacudir o pesado e horrível sono que o
subjugava, se pôs em pé e olhou em torno de si com os olhos
espantados.

403
- Enoé? perguntou a si mesmo. Onde estarás? E levou
ambas as mãos ao rosto para esfregar os olhos, receoso de
não ver bem que o tinha na frente.
Então encontrou entre os dedos um corpo estranho que
sentiu frio, e atirou de si com repugnância, soltando um grito
horrível, desesperado, atroador, que foi seguido de outro, não
menos espantoso, que soltaram os cães, pois uma das víboras
tinha ido cair sobre a cabeça dum deles, que
instantaneamente se sentira ferido pelo mortal ferrão.
-As víboras! As víboras! exclamou desesperadamente
correndo para fora da tenda. Onde está Enoé? Miserável
mulher! Eu preciso afogar-te entre os braços antes que o
veneno que me corre pelo sangue me esfrie o coração.
E Cingo correu louco, desalentado para a árvore onde
tinha deixado o cavalo.
E os cães seguiram-no ladrando funebremente.
E Enoé, a uns cem passos da tenda, montada no seu
camelo, encaminhava-se para os vizinhos bosques de
Samaria, cantando com melancólica voz o romance de Edna
e Dario.
Cingo levantou a cabeça, viu Enoé, soltou um grito de
alegria, correu à tenda, passou por cima das víboras,
empunhou a comprida e pesada lança, tornou a sair ao campo
e arremessou-se no encalço da egípcia.
Esta, sem deixar o patético canto, meteu a cavalgadura
a trote. O negro viu-a afastar-se de si, como uma visão
fantástica.
A raiva, a desesperação, cresceram-lhe no peito vendo
que aquela mulher que o tinha burlado se escapava, à sua
vingança. Mais que um figura humana, parecia um espectro
infernal lançado à carreira.

404
A espuma brotava-lhe da contraída boca. Os olhos
encovados e reluzentes tinham uma imobilidade espantosa.
As pernas, fracas pelo vinho e trêmulas pelo veneno que lhe
empeçonhava o sangue, mal podiam sustê-lo.
Caia, mas tornava a levantar-se pela sua poderosa força
de vontade, e a cada queda soltava blasfêmias a que os cães
faziam coro com os uivos.
E Enoé corria adiante, e Cingo corria atrás, e ladravam
os cães dum modo horrível, saltando em torno do amo.
- Espera, espera, Enoé! gritava com infernal entoação.
Eu preciso antes de morrer atirar-te ao rosto a minha língua
empeçonhada. Espera, espera! E tu, Sátis, deusa terrível da
morte, datem-lhe o passo com teu envenenado hálito.
Mas Enoé, sempre a igual distância como se tivesse o
maravilhoso poder de medir o terreno que a separava do seu
perseguidor, cantava com impassibilidade.
- Maldita sejas! Maldita a que te trouxe nas entranhas,
maldito o fruto do teu ventre se um dia conceberes, até a
quarta geração! exclamou Cingo soltando um rugido.
E que exalava o último sopro da vida, e arrojando com
fúria sobrenatural a pesada lança que tinha na mão, caiu
desamparado e rolou por uma ladeira, despedaçando o rosto
ao cair com os pedregulhos que juncavam o terreno.
A lança passou silvando por cima da cabeça de Enoé,
mas a egípcia não se moveu; viu cair Cingo; cessou o canto e
deteve a cavalgadura, e erguendo os olhos ao céu com
dolorosa atitude, murmurou em voz baixa:
- Meu amor, já estás vingado.
Depois, querendo certificar-se mais, dirigiu a cabeça do
dromedário para o lugar onde tinha caído o negro, e
chegando a dois passos do ensanguentado corpo, deteve-se
de novo.

405
O etíope estava horrivelmente desfigurado. Tinha
morrido; mas ainda tinha os olhos abertos e agitavam-se-lhe
as pálpebras com espantosa precipitação. Os três cães
lambiam-lhe as mãos e o rosto, uivando sempre.
- Sim, já não existe, murmurou Enoé; sua morte foi
horrível, espantosa. O meu pobre Antípatro devia ter sofrido
muito pois morreu do mesmo modo que este miserável
escravo. Oh! quando penso que tu, meu príncipe, senhor do
meu coração, morreste sem que os meus lábios cerrassem
tuas formosas pálpebras, abandonado dos homens e talvez
dos deuses imortais, creio que a minha vingança foi
pequena!...
Enoé deteve-se um momento. Depois apartou os olhos
do cadáver e elevou-os ao céu, exclamando:
- Deus do Olimpo, cerrai o vosso formoso paraíso ao
espírito deste malvado! Lares protetores da minha família,
guiai pela senda da vida, esta donzela abandonada!
Enoé fez passar o camelo por cima do corpo inanimado
de Cingo e continuou seu caminho à mercê da cavalgadura.
A esta seguiram o camelo e carga e o cavalo. Os cães,
mais leais, ficaram junto do cadáver.
Depois, nada: sombras, silêncio, solidão!... porque
Enoé já não cantava, e os cães morreram sobre o cadáver do
dono, envenenados como ele pelas mortais víboras.

CAPÍTULO VIII

UM CAVALHEIRO QUE ROUBA EM DESPOVOADO

Deixemos os mortos e sigamos Enoé, que há três horas


caminha sem rumo.

406
Se a vista e o passo do dromedário não fossem, uma
mais perspicaz, e o outro mais seguro que o do homem,
indispensavelmente o modesto e valente herbívoro que
conduzia a egípcia teria caído em alguns dos profundos
precipícios que marginavam o caminho que à sua vontade
seguia; mas isto acontece poucas vezes. Um árabe dorme
sobre o acastelado dorso do seu camelo com a mesma
tranquilidade que à sombra duma palmeira ou sob o pavilhão
da sua tenda.
Enoé, abismada em suas reflexões deixara o prudente
animal caminhar a seu bel prazer, porque lhe era indiferente
qualquer ponto da terra.
Caminhava, pois, ao acaso, sem pensar no que faria no
dia seguinte: na sua imaginação só existia o ontem, isto é:
Antípatro e o seu amor.
Jovem e enamorada, só no mundo, tinha cometido um
crime para vingar o seu amante. Sua imaginação entusiasta,
ardente, julgava um dever o que acabara de executar. Não
matar Cingo, teria sido para ela uma covardia... mais que
isso, uma ingratidão, uma falta de amor.
Estava pois, tranquila; não tinha remorso; não a
amedrontava o que pudesse sobreviver-lhe, porque não
pensava, como dissemos no futuro. O presente e o passado,
isto é o seu amor sentido e o seu amor chorado, era tudo o
que lhe ocupava a imaginação. Tinha dezoito anos. Só havia
amado o príncipe Antípatro, de quem era escrava, escravidão
que mais de uma vez tinha abençoado, afagando os louros e
sedosos cabelos do amante.
Abismada na recordação do seu amor, caminhava Enoé
à mercê da cavalgadura, quanda esta deteve o passo ao voltar
de um barranco, e levantou bruscamente a cabeça. Este
movimento inesperado fez perder o equilíbrio à jovem, e

407
indubitavelmente teria caído ao chão se mão vigorosa não
houvesse obrigado o camelo a abaixar o arqueado pescoço,
com o que tornou a ficar sentada tão aprumada e segura
como antes.
Enoé viu à claridade da lua um homem moço e belo
parado diante da cabeça do seu dromedário.
Com a mão esquerda segurava o camelo, travando-lhe o
freio de cânhamo. A direita empunhava uma azagaia curta de
três puas. O vestuário era uma espécie de capa curta e um
turbante com bandas que caiam sobre os ombros. A barba era
pouca e mui rala, sem dúvida por causa da juventude.
Nada tinha de temível aquela aparição à meia noite e
num barranco solitário.
- Boas noites, Enoé, disse o estranho com amabilidade
e com voz doce e melíflua como a dum cortesão da rainha
Cleópatra.
- Conheces-me? perguntou a egípcia com assombro.
- Sim, pois já que sei o teu nome.
- E quem és?
- Sou um cavaleiro que rouba em sítio despovoado.
- Um ladrão?
- Esse é o qualificativo que se dá nas cidades aos
homens que tem o meu ofício; mas não me ofendo com isso.
Mercúrio foi ladrão e hoje é um deus dos pagãos; é bem
verdade que a tais crentes não fica mal um deus tão
desonrado.
- Tu és judeu, pois que falas com desprezo dos deuses
do Olimpo.
- Só Deus é Deus, Enoé. Tu és egípcia e lá na vossa
terra levantam-se pedestais e sacrifica-se a essas divindades
pagãs fabricadas pela mão do homem; porém eu sou hebreu e

408
só venero o Deus invisível de Abraão e Jacó, porque este
Deus é o único. Ele só é verdadeiro.
- E qual é o teu intento, ao impedir-me a passagem?...
Vens pelo ouro que presumes conduzem os meus camelos?
- Venho servir-te de guia, por ser teu amigo, teu irmão.
- Mas eu não te conheço... Como sabias tu que eu
passaria por este lugar, quando, desde que o sol se escondeu,
caminho à mercê do meu camelo?
- Compreendo o teu espanto, e vou satisfazer a tua
curiosidade enquanto não chega a minha gente. O lugar em
que te achas é Samaria. Este barranco conduz a Siquén; é um
atalho muito conhecido pelos camelos e dromedários das
caravanas. Suas rochas calcinadas pelos raios do sol e pelo
casco das cavalgaduras, tem sido feridas mais duma vez
pelas pisadas da que te conduz. Agora, informada do terreno
que pisa o teu dromedário, continuo a minha relação, pois
desejo satisfazer o espanto que leio no teu semblante,
formoso como o duma virgem de Sion, sobretudo neste
momento em que a lua reflete sobre a tua fronte.
Esta galanteria fez corar Enoé, sem que ela
compreendesse o motivo. O misterioso personagem
continuou.
- Sou, pois, como te disse, um bandido, capitão de uma
quadrilha de bandoleiros que infesta este país. Tenho espiões
em toda parte onde o comércio se explora, e não sai caravana
de uma cidade de Judá sem que eu o saiba. Há alguns dias os
meus agentes trouxeram-me a nova de que o escravo favorito
do defunto rei Herodes, a quem Deus Jacó confunda, fazia os
preparativos para empreender uma viagem para as costas de
Tiro, com o fim de embarcar naquelas águas para a África,
sua pátria. Sem ser eu um sábio da Grécia, calculei que
Cingo, o escravo não abandonaria a corte, sendo pobre, como

409
um Galileu da montanha, sem outro patrimônio que o seu
matelo de pêlo e o seu surrão de pele de cabra. Eu achava-
me em Jericó; sabia que todos os nomes de Israel se
encontravam no hipódromo; confiava que nos seus corações
não se teria extinguido de todo a recordação da sua passada
glória e o amor à sua independência, e queria contribuir para
a salvação da minha pátria; mas enganei-me; os descendentes
de Matatias já não serão mais que escravos covardes e
efeminados. Mas isto não satisfaz a tua curiosidade; desculpa
se divaguei... Achava-me, pois, como te disse, em Jericó, e
soube quando Cingo saiu da cidade montado no seu cavalo e
levando dois dromedários de carga, num dos quais ias tu.
Então corri a um bosquezinho próximo, onde quatro homens
de minha confiança me esperavam, e seguimo-vos a longa
distância. Depois sobreveio a tempestade; levantou Cingo a
sua tenda, e ambos vos abrigastes nela; fácil nos teria sido
então assaltar-vos mas eu prefiro a noite ao dia para executar
essa tarefa. Como com a chuva e com a terra úmida os cães
têm mais faro, farejaram o nosso rasto e ladraram. O escravo,
inquietado pelos ladridos, saiu para reconhecer o terreno;
mas nada viu e tornou a encerrar-se na tenda. Eu conheci que
os cães eram um inconveniente para vos surpreender e
mandei um dos meus que lhes deitasse uma perna de
carneiro; porque o cão farto rastreia menos. Enquanto os cães
comiam, deslizei-me por entre os arbustos e fui pôr-me atrás
da vossa tenda. Do meu esconderijo ouvia a vossa
conversação. Então sobre que teu eras Enoé, a escrava
favorita do malogrado príncipe Antípatro; e como eu queria
muito a este moço, propus-me salvar-te do furor do etíope.
Depois vi que ele bebia e que tu não te mexias fingindo
dormir. Por fim os vapores do vinho venceram Cingo e então
tu...

410
O bandido deteve-se e, depois de uma pausa durante a
qual Enoé nada disse, continuou:
- Tu então vingaste teu amante; eu montei num cavalo,
partir a galope e vim colocar-me neste barranco onde te
conduziu o dromedário. Eis porque sei o teu nome e porque
me achas no meio do teu caminho como uma aparição; mas
não temais; eu sei respeitar a mulher e ai do que tocasse num
só fio de tua roupa! Dimas, o bandido, saberia castigar o seu
atrevimento.
- Não sei porque tuas palavras me inspiram confiança;
sou teu prisioneira. Conduze-me aonde te aprouver.
- Não, és minha amiga. As mulheres, as crianças e os
velhos tem um asilo no meu castelo. Nada tema. Serás livre
no dia em que queiras e conduzida por mim ou pelos meus
companheiros ao lugar que tu nos indiques. Antípatro bateu-
se ao meu lado contra os ímpios. Eu saberei respeitar a sua
memória na tua pessoa.
- Agradeço-te em seu nome, generoso bandido.
- Cumpro um dever. Agora segue o passo do meu
cavalo, que a distância que temos que percorrer é longa.
Dimas foi para seu cavalo: montou e, aproximando-se
de Enoé, disse-lhe:
- Vamos.
Uma hora antes de amanhecer chegaram ao castelo de
Hebal, Enoé entrou sem medo na tétrica fortaleza.
Apenas passaram a porta, alguns bandidos se
aproximaram para a ajudar apear.
- Meus amigos, lhes disse Dimas com doçura,
apresento-vos minha irmã. Tratai-a como merece.

LIVRO DÉCIMO

411
OS DESTERRADOS

CAPÍTULO I

ARQUELAU

Nesse tempo as nações conquistadas pelos filhos do


Tibre não eram mais que províncias romanas sujeitas ao
capricho e à vontade dos Casares. O mundo era uma
numerosa família de escravos que curvavam a cabeça com
medroso ademã entre um só senhor: o César romano. Estas
províncias eram governadas por tributários régulos que
lambiam vergonhosamente a mão que os humilhava.
Morto Herodes, o Grande, Otaviano Augusto dirigiu
seus reais olhares para a Judéia e à sua onímida vontade
pareceu conveniente que aquele reino desgraçado e
envilecido se dividisse em quatro tetrarquias tributárias a
Roma. Nomeou Arquelau tetrarca da Judéia, isto é, alguma
coisa mais que tetrarca e um pouco menos que rei; a
Abissínia, e a Galiléia, deu-as a Herodes Antipas, e a Felipe
concedeu a Ituréia e a Traconitide.
Ficaram os três irmãos contentes, parecia, com a
imperial distribuição, e Arquelau, o mias favorecido pelo
César, crendo-se senhor da sua vontade, começou a mostrar
sem rebuços seus instintos ferozes e sanguinários.
Os distúrbios civis seguiram-se como era natural às
tropelias reais.
Joazar, sumo pontífice dos hebreus, foi substituído pelo
ouro de Eleazar, seu irmão, e pouco depois as dobras de
Josué decidiram Arquelau a conferir-lhe a alta dignidade de
que privara Joazar. A lei da Judéia foi escarnecida pela
ambição do tetrarca, porém o sanguinário sucessor de

412
Herodes cortou a cabeça dos alvorossadores, e o terror selou
os lábios dos descontentes.
A avareza, aos abusos arbitrários de Arquelau, faltava
um escândalo que decidisse os israelitas a tomar vingança
daquele podre pimpolho do Idumeu, que se apresentava mais
cruel, mais vingativo que seu pai.
Arquelau tinha uma esposa. Chamava-se Mariana. O
povo amava a soberana porque era bondosa com os aflitos e
mais de uma vez tinha conseguido desviar o ferro homicida
da trêmula garganta da vítima. Mariana era formosa,
prudente, e amava o povo.
Um dia Arquelau viu Cléfira, viúva de seu irmão
Alexandre e de Juba, rei de Mauritânia. Cegou-o sua
formosura e, desatendendo os santos vínculos que o uniam a
Mariana, repudiou-a barbaramente e casou-se com Cléfira.
Esta infâmia arrancou um grito de indignação ao povo
de Judá. Herodes tinha repudiado sua primeira esposa e
assassinou a segunda. O filho não estava muito longe de
imitar o pai. Os nobres de Israel, ainda que amedrontados,
reuniram-se num dos profundos silos do Carmelo.
Sublevar o reino era empresa vã, atendendo ao
acovardado espírito que se apoderara dos descendentes de
Jacó. Outra tentativa nas ruas de Jerusalém só custaria
sangue, e Arquelau estaria, no seu direito, derramando-o pela
tranquilidade do seu reino.
Então um ancião levantou a voz e disse à assembléia:
- O raio de Elias não se acha entre nós: o valor de Judas
Macabeu apagou-se no coração dos filhos de Israel. O Deus
invisível abandona-nos porque o templo de Sion é profanado
e a lei de Moisés calcada como um feto imundo. Nada
espereis do nosso povo que treme amedrontado sob as pregas
da sua rota capa, roendo o osso podre que lhes atira aos pés

413
esse rei avarento que nos governa e empobrece. Só um
homem pode salvar-nos, porque esse homem é poderoso
como David, sábio e clemente como Salomão: esse homem é
o César Otaviano Augusto, o senhor do mundo. Arquelau, o
verdugo de Judá, é rei por praga sua. Recordai as palavras do
Imperador, quando lhe concedeu a etnarquia: - “Concedo-te
o governo da Judéia e Abissínia, mas com a condição de que
hás de ser clemente e bondoso com os teus súditos. Pai e não
verdugo dos judeus, quero ver-te. Se assim não obrares, a
minha amizade se trocará em justiça e a minha cólera
imperial cairá sobre tua cabeça”. – Isto disse o César. Isto
mandou que se noticiasse ao oprimido povo de Israel.
Irmãos, só o César Augusto pode livrar-nos do verdugo que
esvazia as nossas arcas, escarnece as nossas leis, profana os
nossos templos e derrama o nosso sangue.
Este discurso foi recebido com um grito de entusiasmo
e o venerável ancião foi convidado pelos companheiros para
indicar o que se devia fazer.
Então decidiu-se que partisse com muito segredo uma
comissão para Roma, para informar o César da sua
desgraçada sorte.
Quando os secretos embaixadores do aflito povo de
Israel chegaram à cidade de Tibre, Augusto recebeu-os com
a bondade própria do seu caráter. O imperador respondeu,
quando o velho rabino terminou a sua dolorosa relação.
- As tuas lágrimas e as tuas cãs são para mim uma
garantia, ancião: o oprimido povo de Israel encontrará em
mim um protetor. Descansai, pois nada aborreço tanto como
os tiranos, nada me inspira mais repugnância que os
verdugos coroados: as víboras esmagam-se.

414
Os judeus lançaram-se aos pés de Augusto, derramando
um mar de lágrimas aos pés daquele rei magnânimo e
generoso.
Augusto, depois de os consolar, disse-lhes dirigindo-se
ao mais velho:
- Ouvi dizer que na vossa terra nasceu o Messias,
anunciado pelos profetas.
- Assim se assevera em todo Israel, senhor, lhe
respondeu o rabino.
- Viste-o, ancião?
- Tive a felicidade de beijar os seus divinos pés no
templo de Sion.
- Em que tribo de Israel vive esse Deus homem?
- A perseguição de Herodes obrigou-o a emigrar para o
Egito, e não voltou à pátria: durante sua penosa viagem os
anjos de Abraão guiaram sua cavalgadura; os deuses pagãos
do Cairo, de Alexandria e de Hermópolis caíram quebrados
em pedaços dos seus pedestais; as árvores abaixaram suas
frondosas ramas para lhe servirem de tenda, e as fontes
brotaram das secas rocas de Matarié.
- A Herodes dei o encargo de procurar esse Menino,
disse Augusto.
- E Herodes degolou todos os da sua idade, na santa
cidade de Belém.
O César, depois de saber algumas particularidades da
infância de Jesus, despediu os embaixadores, dizendo-lhes:
- Se algum dia encontrardes esse Deus, homem ou
menino, e eu não houver morrido, dizei-lhe que o senhor de
Roma quer adorá-lo. Agora, parti tranquilos; não esquecerei
o que vos prometi.
Algumas semanas depois, mandou um emissário e fez
comparecer o feroz Arquelau ante o senado de Roma. O

415
clamor dum povo pôde mais que a soberba dum rei.
Arquelau foi destituído da sua dignidade, seus bens foram
confiscados e o César mandou-o desterrado para Viena do
Delfinhado, doze anos depois do nascimento de Jesus Cristo:
a Judéia foi desde então província imperial.
Mas era preciso que um homem a governasse em nome
de Roma, e Capônio foi escolhido por Otaviano Augusto.
O novo governador quis explorar depressa demais o
filão que abrira ante a sua cobiça, e aquele abuso de
confiança atraiu-lhe o desagrado de César. Capônio caiu do
poder e foi substituí-lo Marco Ambibio, que, falto de saúde,
pediu a aposentadoria e deixou o bastão a Pôncio Pilatos,
célebre mais tarde pela sentença e morte de Jesus Cristo.
Herodes, o Grande, para que não se cumprisse a
profecia de Jacó, de que o salvador de Israel viria quando o
trono de Judá estivesse ocupado por estrangeiro, mandou
queimar os livros genealógicos dos reis de Judá para que
pudesse justificar-se que ele não era oriundo daquela nação.
Porém a sua empresa foi vã e o bárbaro atentado, infrutífero.
A profecia tinha-se cumprido.
A Judéia não era mais que uma província de Roma
quando nasceu o Salvador do mundo no miserável estábulo
de Belém.
O César mandou recensear os judeus porque eram seus
súditos, e José e Maria foram conduzidos por ordem dum
estrangeiro à cidade predestinada pelos profetas para servir
de berço ao ungido do Senhor, ao Messias prometido.

CAPÍTULO II

OS SANTOS EMIGRADOS

416
Atravessemos o deserto e passando, sem nos determos
pelas planícies de Gizé, se ergueu a pirâmide de Chops,
entremos no Egito povoado.
Rodeemos os soberbos muros e as altivas portas da
cidade do sol. Não detenhamos o olhar nas altas agulhas de
Semíramis, nem aos brunidos minaretes de Hermópolis, a
bela.
As cúspides dos seus templos pagãos brilham como um
mar de prata quando o sol os fere com seus raios; mas que
nos importa a nós o estrondo das cidades nem os soberbos
edifícios da pátria dos faraós, da terra dos Logidas?
No extremo oriental do povoado, e um pouco separada
do pequeno grupo de casinhas que forma, vê-se uma humilde
cabana com teto de palha. A poucos passos da porta estende
os seus ramos um robusto sicômoro, como se quisesse
abrigar com seus frondosos ramos aquele miserável ninho
que se coloca à sua protetora sombra.
U’a mulher moça e formosa, de olhar doce e sereno, de
fronte casta, de cabelos louros e humilde ademã, está sentada
junto do tronco desta árvore. Uma túnica de lã de cereja,
apertada na esbelta cintura por um cordão, e um pequeno
turbante de linho branco, são as peças de que se compõe o
seu modesto traje. Suas mãos brancas e pequeninas agitam
com assombrosa rapidez uns pauzinhos que pendem de fios
extremamente finos.
Esta Mulher ocupa-se a fazer rendas da Palestina, com
tanto afã procuradas para cobrir os rostos das virgens de
Israel. De ez em quando desvia os olhos do trabalho que a
preocupa, e dirige um olhar doce e carinhoso para o pequeno
povoado de Matarié, detêm-no um segundo como se
esperasse alguma coisa, e depois, soltando um suspiro,

417
prossegue a interrompida tarefa. Já a luz do dia, vencida
pelas sombras da noite, se acha próxima a desaparecer, e
ainda a formosa jovem continua a trabalhar.
A solitária jovem torna a dirigir os formosos olhos para
Matarié. Um sorriso de amorosa bondade lhe resvala pelos
lábios.
- Ah! exclama com apaixonado acento; lá vêm.
E, esbelta como a jovem palmeira do Iêmen, majestosa,
como a rainha Ester, põe-se em pé.
Um Menino de seis a sete anos, corado como uma rosa
dos Alés, formoso como o sorriso da aurora, e um ancião
venerável como os cumes do Sabino, vem pela vereda que
conduz à árvore da cabana. O velho leva um pesado machado
ao ombro, e o tenro infante, um feixinho de lenha pendente
das espáduas.
A Jovem do sicômoro sai ao seu encontro, juntam-se os
três, e saldam-se com amorosa cordialidade. Então a mulher
toma nos braços o tenro adolescente e leva-o até à porta da
cabana; o ancião que os segue levanta os olhos ao céu, e no
seu bondoso semblante pintam-se as doces comoções que
agitam o seu belo coração.
Aquele tenro e formo Infante veste simplesmente uma
túnica de lã de cor escura. Seus longos cabelos castanhos
caem-lhe com majestade sobre os ombros, e o olhar de suas
pupilas azuis resplandece como a luz do dia.
Uma pobre mesinha de pinho que reluz como prata
brunida, pela extrema limpeza da sua madeira, acha-se
preparada no meio do limitado espaço da cabana.
Frugal é a ceia: mas a paz e o amor moram debaixo
daquele modesto teto, e dão graças quotidianamente ao Deus
invisível de Abraão com lábios fervorosos pela sua eterna

418
bondade. O ancião abençoa, com patriarcal acento, a comida,
e todos se preparam para a ceia.
- Quanto trabalhaS, José exclama a Mulher pondo um
prato de verduras cozidas diante do ancião.
- Bendigamos a Deus, Maria, que assim o dispôs,
responde José; mais me condoo deste tenro infante.
- Nunca o cansaço me entorpece os membros. Sou tão
feliz vivendo no seio da vossa pobreza! Minha fortuna é o
vosso amor, disse por sua vez o menino.
E a sua voz tem um eco dulcíssimo que chega até ao
mais recôndito da alma, causando um bem indefinível.
- Filho do meu coração, exclamou Maria depositando
um amoroso beijo na fronte do Menino; o pão do destêrro é
amargo como a folha do loureiro, negro como as asas do
corvo, duro como as pedras angulares do templo de Sion. E
Tu, alma da minha alma, ser do meu ser, depósito sagrado
que Jeová me concede para mitigar as minhas penas, Tu, o
formoso Menino, que tens a majestade dos reis de Israel na
fronte, o sorriso dos Anjos de Abraão na boca, e o reflexo do
Deus invisível de Moisés no olhar, sofres e padeces os rudes
embates da nossa pobreza, sem que uma queixa ou um
suspiro saia dos teus lábios.
- Mãe, respondeu o Menino com admirável gravidade,
Deus, meu pai, assim o escreveu. Acatemos sua vontade:
esperemos a hora designada.
- Oh! meu Jesus! As tuas palavras ressoam como as
harpas de Sion no fundo da minha alma; eu te venero, eu te
bendigo, porque Tu és o bálsamo universal das minhas dores.
A Santa Família pôs fim à sua modesta ceia e, dirigindo
os chorosos olhos para Jerusalém, entoaram o cântico de
graças e orações da noite.

419
Depois, José fechou a porta; a Virgem foi buscar o
descanso na sua pequena habitação; Jesus estendeu no seu
quarto o leito de esteiras, e o Patriarca descansou sobre o
pobre montão de palha que lhe servia de cama.

CAPÍTULO III

ONDE APARECE EM CENA UM RÉU DE MORTE

Passou uma hora, e duas, e três. E a noite ia muita alta,


e todos dormiam o sono dos justos, na cabana.
Uma nuvem branca e brilhante como a espuma dos
mares desceu do céu e um mancebo louro como as espigas
que fecundam o rio santo saiu dentre as nuvens.
Branco era o seu vestido. Uma estrela brilhava-lhe no
meio da fronte. Um raio de luz divina lhe saía dos olhos
azuis.
A celeste visão chegou com passo mesurado à cabana e
deteve-se. Sua passagem tinha deixado após si um rasto
brilhante e luminoso como a quilha dum navio sobre a
superfície dum mar tranquilo.
- Eu sou Gabriel, emissário predileto do Senhor, disse o
anjo com celestial acento,que chegou à tua porta, ò José, para
dizer-te: “Levanta-te, José, e toma o Menino e sua Mãe, e vai
para a terra de Israel, porque são mortos os que queriam
matar o Menino”.
Gabriel cessou de falar, inclinou a formosa cabeça
sobre o peito, e permaneceu nessa atitude alguns minutos.

420
Depois envolveu-o a nuvem entre as suas pregas e,
abandonando a mansão dos homens, elevou-se
majestosamente ao céu, repetindo:
- “Levanta-te, José, toma o Menino e sua Mãe, e vai
para a terra de Israel”.
Levantou-se José, e participou a Maria a revelação do
anjo Gabriel.
No dia seguinte os humildes desterrados abandonaram
o povo hospitaleiro de Matarié.
Ao chegarem ao deserto, a fronte de José escureceu-se
e os olhos de Maria cobriram-se de lágrimas. Jesus pelo
contrário: um sorriso resplandecente lhe assomou aos lábios.
Caminhava a pé junto do nobre ancião que lhe servia de pai.
Três dias depois chegaram, ao cair do sol, à torrente do
Egito.
Só lhe faltava atravessar a estéril Iduméia para se
acharem na formosa terra de Judá. Buscando refúgio onde
passar a noite, viram uma caverna a poucos passos do lugar
que ocupavam.
Jesus entrou adiante e um misterioso raio de luz,
iluminou aquelas escuras e socavadas rochas.
Ali, sem outros leitos que os pobres vestidos,
encostadas as cabeças nas duras pedras, dormitaram com o
coração alegre, pois em breve iam ver as altas torres da
cidade santa.
À meia noite, dois homens se apresentaram à porta da
caverna. Um deles vinha do Egito; o outro das terras de Judá.
- Dimas! disse o que chegou primeiro.
- Gestas! falou o segundo.
E ambos entraram na caverna.
- Queres que acendamos luz? perguntou Dimas a
Gestas.

421
- Para quê? Pode-se falar perfeitamente sem ela, e nós
somos aves noturnas destinados a viver na escuridão.
- Tens razão. Mas sentemo-nos; estou cansado.
Os dois homens sentaram-se no chão.
Os santos Viageiros continuavam a dormir sem darem
pela companhia.
- O teu emissário, disse Dimas depois duma pequena
pausa, disse-me que querias transportar-te a Samaria com a
tua gente.
- É verdade. O deserto está pouco concorrido, e os
meus soldados, que cobiçam o despojo e anelam a orgia
depois do combate, aborrecem-se de esperar os dias de sol a
sol emboscados nas escalvadas rochas e venenosos arbustos
de Etam e Param. Assim, pois, querem que os leve para um
país mais abundante. Como tu és o chefe dos montes de
Samaria, quis saber se nos darias hospitalidade ou, para
melhor dizer, se queres que a tua guarida seja nosso refúgio e
repartamos os despojos como bons camaradas.
- Nunca recusei hospitalidade aos homens que batem à
minha porta. Aqui está a minha mão.
- Podes vir quando quiseres; minha gente não pegará
em armas contra a tua gente.
Neste momento ouviu-se um profundo suspiro que saía
do extremo da caverna.
Gestas leu a mão ao cinto para encontrar o punhal, e
disse, baixando a voz:
- Aqui está gente.
- Também me parece, respondeu Dimas.
- Espera, acenderei luz.
Gestas tirou uma corda enxofrada que trazia enrolada
na cinta e, saindo da caverna, procurou duas pederneiras.
Depois esfregou com violência as duas pedras e o extremo da

422
corda, até que se inflamou, despedindo uma chama
amarelada e um cheiro acre e desagradável.
Armado desde archote entrou na caverna, e ambos
começaram a revistá-la.
Dimas foi o primeiro que viu o Viajantes adormecidos,
e estremeceu como se os reconhecesse.
- Eis aqui um despojo que não esperava, disse Gestas; e
fez ademã de dirigir-se à Virgem.
Dimas travou-lhe do braço e deteve-o, dizendo-lhe:
- Ouve, Gestas, ao ver esta pobre gente senti o coração
dar saltos.
- Pois bem, que é que queres? disse Gestas.
- Eu não deixo perder a ocasião, assim como não a
deixarão perder os romanos, quando me apanhem.
- Rogo-te pelo que mais ama na terra que respeites seu
sono.
- O que eu mais amo na terra é o dinheiro.
- Pois bem, não lhe toques e eu dou-te vinte dracmas de
prata.
- É pouco, respondeu Gestas com cobiça.
- Ajunto a essa soma este cinturão de couro e este
punhal de Damasco.
Gestas examinou os objetos.
Dimas, vendo que ele vacilava, continuou.
- Se recusas o que te proponho, então está entendido
que te disputarei a presa.
Esta razão decidiu Gestas a aceitar.
Neste momento ouviu-se uma voz do fundo da caverna,
que dizia:
- Dimas, Gestas, vós morrereis comigo; um à minha
direita, e outro a minha esquerda.
Os bandidos sairam atemorizados da caverna.

423
Dimas dirigiu-se para a Iduméia murmurando em voz
baixa:
- É Jesus, Filho de Maria: reconheci-º
Quanto a Gestas, dizia para si:
- Este Dimas não sabe fazer contrato; para não depenar
uma família de mendigos deu-me vinte dracmas e o seu
punhal. Creio que a vantagem está da minha parte, se viver
ao seu lado.
Alguns dias depois a Santa Família chegou “a Nazaré
para que cumprisse o que tinham dito os profetas: que será
chamado Nazareno”.
Com quanta alegria, com quanto regozijo viram os
desterrados do vizinho monte as modestas chaminés da sua
aldeia, os tranquilos prados onde correu a sua infância, a
fonte onde apagavam a sede nos ardentes dias do verão!.
A Santa Família chegou a Nazaré depois de mil perigos
e sobressaltos. A viagem era longa, porém o Deus invisível
guiou os seus passos no deserto.
O regozijo dos parentes foi indescritível. José achou
sua modéstia casinha, e estabeleceu-se com alegria
incalculável. Maria bendisse a Deus, e Jesus, levantando os
olhos ao céu, deu graças ao Eterno, remediado dos
desgraçados.

CAPÍTULO IV

A FESTA DOS ÁZIMOS

Filhos de Israel, povoadores das doze tribos


descendentes de Abraão e Jacó, disponde-vos a abandonar os
vossos lares; escolhei no vosso rebanho o cordeirinho sem

424
mancha, são de carnes, branco de pele e tenro de um ano;
vesti-vos com vossas túnicas mais novas; envolvei-vos nos
vossos mantos mais finos, e enrolai no pescoço o curto talet
de linho cor de jacinto!
Recordai as palavras do Senhor, que vos disse por
Moisés:
“O cordeiro há de ser sem defeito, macho, e dum ano.
Reservai-o até ao dia quatorze deste mês, em cuja tarde o
imolará toda a congregação dos filhos de Israel. E tomarão
do seu sangue e rociarão com este as duas ombreiras e a
padieira da casa em que o comerem. E as carnes, as comerão
aquela noite, assadas ao fogo, e pães ázimos com ervas
amargas.
“Nada dele comereis cru, nem cozido em água, mas
somente assado ao fogo; a cabeça, com as pernas e as
assaduras. Não ficará nada dele para a manhã seguinte; se
sobrar alguma coisa a queimareis no fogo. E o comereis
deste modo: tereis cingido os rins e metido o calçado nos
pés, e um cajado na mão, e comereis depressa por ser a
Páscoa do Senhor.
“Porque eu passarei aquela noite pela terra do Egito, e
ferirei todo o primogênito da dita terra sem poupar homem
ou besta, e dos deuses do Egito tomarei vingança, Eu o
Senhor. O sangue vos servirá de sinal na casa onde estiver,
pois Eu verei o sangue e passarei de largo sem que vos toque
a praga exterminadora, quando eu ferir a terra do Egito”.
Vinde, chegai em boa hora, pastores de Betânia e de
Manassés, rebeldes samaritanos, marinheiros fenícios,
lavradores de Zabulon e Judá, montanheses do Líbano e da
Galiléia. Jerusalém vou espera adornada com os atavios
duma desposada, e suas altivas portas estão abertas para vos
receberem.

425
Mas não vos esqueçais de trazer convosco as primícias
da colheita, porque a vossa mão deve depositar no templo de
Sion a espiga verde de cevada para que o sacerdote lhe
sacuda os grãos e os toste ao fogo, e os triture depois com
uma pedra para que a sua farinha misturada com incenso e
azeite seja oferecida em sacrifício sobre o santo altar. Por
espaço de sete dias comereis o pão sem fermento, e o que
assim não fizer, maldito será por Deus, e morto a mão
armada há de vê-lo a família.
Para que se cumpram os preceitos da lei, revistai os
cantos de vossa casa, não seja que os ratos hajam escondido
algum bocado de pão fermentado e a maldição de Jeová caia
sobre vós.
Jerusalém! Jerusalém! Cidade eterna, Matrona augusta!
Jerusalém, Jerusalém! Perola da Palestina, cobiçado florão
do Oriente entoa o canto de Hosana, adorna os teus soberbos
muros de bandeiras, enfeita com palmas e mirto os ameiados
torreões da chata porta de Damasco, de Efraim e de Débora,
porque os povoadores das dozes tribos vem para ti em
alegres caravanas.
Pelas escabrosas veredas do Sul, chegam os
montanheses de Judá e Sion com suas túnicas roxas e suas
mantas azuis como o céu. Do Leste descem os moradores de
Gad e Rubens, e as fímbrias das suas achumbadas vestiduras
acham-se ensopadas nas águas do Jordão.
No norte baixam os povoadores do Líbano e Zakle,
recolhendo na passagem os habitantes das tribos de Asser e
Neftali e Zabulon, e ao atravessarem a hostil Samaria,
recebem com paciência os insultos e o escárnio dos filhos de
Sem, dos ímpios adoradores do bezerro, da família que
vegeta na casa maldita da impiedade.

426
Os pobres galileus, com suas túnicas pardas e brancos
turbantes, caminham fatigados em busca do Santo dos
Santos.
A lei, com tanta exatidão praticada, proibir-lhe a
mistura nas grandes festividades. Por isso as mulheres
caminham adiante, num grupo, e os homens atrás, a uma
distância de quinhentos passos. Mas detenhamos um
momento o olhar para contemplarmos o modesto grupo das
nazarenas.
Vede-a! Aí vai a Virgem Mãe, a Estrela do Mar, a Flor
da Galiléia, a que em breve será fonte de ternura imaculada.
Seu olhar é doce e amoroso como o da fazela; sua
fronte, clara e radiante como o disco da lua; seu sorriso
bondoso, como a caridade cristã. Todos a rodeiam com amor;
sua pobreza é muita; mas o seu coração, inesgotável fonte de
bondade, perene manancial de virtudes, a exalta e eleva sobre
os seus, e é amada e querida como a filha dum príncipe
desterrado que semeia o bem a mãos cheiras entre os
hospitaleiros moradores que lhe abriram as portas para a
receberem.
Junto da Santa Virgem, e com saborosa prática
entretidas, caminham Joana, esposa de Chus; Salomé,
mulher de Zebedeu, e outra que mais tarde devia consignar-
se nos Evangelhos, com o nome de Altera Maria.
Atrás deste grupo de mulheres que o sangue do
Crucificado imortalizou, vêm os galileus. José, o humilde
carpinteiro de Nazaré, vai entre eles. Jesus caminhava ao
lado do pai, rodeado de alguns jovens da sua idade, entre os
quais se achavam os filhos de Zebedeu, Tiago, impetuoso
como a torrente do Egito durante as estações equinoxiais, e
João, formoso e inofensivo como o cordeiro de Isaias.

427
Os pescadores de Betsaida, apelidados mais tarde por
Jesus “filhos do trovão”, caminhavam também a seu lado, e
os filhos de Alfeu, Judas, Simeão, José e Joaquim, seguiam
os galileus, olhando com desprezo o Filho do carpinteiro, a
quem deviam adorar e proclamar como seu Deus.
Tiago, ensoberbecido com sua posição e seus estudos,
com o seu semblante frio, ser ar melancólico, o rosto pálido e
a longa cabeleira, castanha, sempre que Jesus lhe dirigia a
palavra, não se dignando responder, enviava-lhe um sorriso
desdenhoso.
Tiago ignorava que mais tarde chegaria a ser Bispo de
Jerusalém pelas doutrinas daquele Jovem que caminhava ao
seu lado e que ele olhava com indiferença.
E Jesus? Jesus, como tudo possuía, nada afetava,
porque só se finge o que se não tem.
Sua conversação era adequada aos seus curtos anos, e
seus jovens parentes, segundo a carne os quais mais tarde
devia fazer apóstolos da fé, escutavam-no com assombro
crescente, sem perceberem o magnético poder das duas
palavras.
Rudes pescadores, a quem a luz do seu Divino Mestre,
esclarecendo-lhes o cérebro, outorgou a eloquência sublime e
santa que devia conduzi-los ao martírio para selarem com o
sangue a doutrina do Redentor, caminhavam para Jerusalém
ignorantes ainda do imortal futuro que lhes preparava aquele
adolescente que viam a seu lado.
Por fim chegaram à cidade santa depois de quatro dias
de viagem. A família de José instalou-se nos pórticos do
templo, onde comeram, segundo a lei, o cordeiro sem
mancha, o pão sem fermento e as ervas amargas. Terminados
os sete dias que prescrevia a lei, os galileus abandonaram a
cidade e encaminharam-se para Nazaré.

428
Bastante entrada noite, detiveram-se as mulheres que
iam adiante, na casa desmantelada que devia servir-lhe de
albergue durante a noite.
Maria volveu um olhar para o alegre grupo de galileus
que se aproximava. A rosada cor das frescas faces da Virgem
começou a desaparecer. José tinha chegado, e Jesus não
estava com ele.
- E meu filho? perguntou.
- Não saiu contigo da cidade? falou, estremecendo por
sua vez, o santo Patriarca.
Maria estendeu os olhos em torno e, não vendo Jesus
soltou um grito doloroso. Era o grito da mãe que julga
perdido seu filho no meio dum caminho deserto, no principio
duma noite sem lua, num país onde as feras assaltam com
violência o indefeso caminhante.

CAPÍTULO V

O MENINO PERDIDO

A desolação da Mãe ao ter certeza de que seu Filho se


tinha perdido foi imensa. Em vão a consolavam os parentes,
fazendo-lhe promessas de percorrerem a cidade em sua
procura. Um mar de lágrimas lhe brotava dos formosos
olhos, e aquelas lágrimas se esgotavam, porque sua alma
pura, imaculada, começava a ser o perene manancial das
dores
Antes que a luz da aurora destacasse os objetos
confundidos pelas sombras da noite, Maria acompanhada de
alguns de sua família, se encaminha para Jerusalém com o
semblante descomposto pelo pranto, o coração despedaçado
pela pena e dor.

429
Aquele caminho foi a primeira rua da sua amargura.
Qual rola enamorada que busca seus filhinhos de ramo em
ramo, assim Maria andava e desandava o caminho
perguntando a todas as mulheres que via pelo seu Filho
amado.
As palavras do salmista, pronunciadas pela sua boca,
tinham um sentimento e amargura indefiníveis.
- Haveis, por ventura, visto Aquele a quem tão deveras
adora a minha alma? lhes diz com olhos arrasados de
lágrimas e as mãos juntas com dolorosa atitude; mães que
tendes filhos, buscai pelo Deus de vossos maiores.
Absortos, compadecidos da profunda dor da jovem
galiléia, os caminhantes suspendem seus alegres cantares,
detêm o passo, sentem-se enternecidos e perguntam-lhe
como Salomão:
- Que tem o teu Amado sobre os outros amados, ó tu, a
mais formosa entre todas as mulheres? Que há no teu
Querido sobre os outros queridos, para que assim nos rogues
que o busquemos?
- Oh, filhas de Jerusalém! Se soubésseis quem é o
Amado da minha alma, quem é o Bem que choro perdido,
não estranhareis que assim vos rogasse para que me
ajudásseis a buscá-lo.
Maria chegou alterada a Jerusalém; percorreu as ruas;
bateu com trêmula mão às portas dos seus parentes e
amigos;mas ali seu Filho adorado não aparecia.
Seus parentes, ao abrirem-lhe as cerradas portas de suas
casas, a receberam com o sorriso nos lábios dizendo-lhe com
fraternal doçura.
- Oh! Ditosos somos, Maria, pois regressais ao nosso
lar com graça e formosura.

430
- Não me chameis Noemi, lhes diz, chamai-me Mara,
porque o Todo Poderoso me encheu de amargura. Há três
dias era feliz e ditosa: meu Filho sorria ao meu lado; o calor
dos seus olhares chegava ao meu coração dando-lhe vida; e
hoje choro meu Filho perdido, e busco-o e corro, e em vão
me canso... meu Filho não aparece, Jesus não se encontra.
Enquanto a Mãe dolorosa procurava o Filho perdido
com as ânsias da agonia no coração, as lágrimas nos divinos
olhos e a desconsolação pintada no puríssimo semblante,
Jesus tinha-se instalado nos pórticos da Sinagoga, que mais
tarde deviam servir-lhe de tribuna para pregar a sua nova lei,
e os doutores e fariseus escutavam absortos as suas divinas
palavras e os seus maravilhosos conceitos.
Aqueles anciãos, mudos, absortos, vencidos,
impotentes ante aquele tenro adolescentes que se havia
apresentado ante eles com a humildade do pobre e o modesto
traje dos galileus da montanha:
- Quem é este Menino? perguntavam em voz baixa. Em
que sinagoga aprendeu o que sabe? Que rabino, que doutor
da lei lhe ensinou essas perguntas a que nós não sabemos
responder, e às quais eles mesmo dá uma solução tão clara,
tão profunda, tão irrecusável? Que move a sua língua com
tão prodigiosa fecundidade? Daniel seria vencido pela sua
palavra, e Salomão quebraria a sua pena escutando-º
Jesus parava nos seus discursos de quando em quando.
Então ninguém se atrevia a interrompê-lo; mas todos o
observavam com interesse, e curiosidade crescentes.
Seus longos cabelos cor de bronze antigo, partidos ao
meio da sua larga e luminosa testa, lhe caíam em grossos e
graciosos caracóis, sobre os ombros. Nos seus azuis e
melancólicos olhos brilha uma faísca de luz divina, que
aprofundava, ao deter-se, as mais recônditas dobras da alma.

431
Os doutores, vendo-o chegar aos degraus da Sinagoga,
imaginaram ver Davi no momento em que Saul o viu ir
pequenino e sereno receber a unção santa. Mas naqueles
olhos, naquela fronte, naquela ademã, havia alguma coisa
mais que a sagrada inspiração que aformoseou as feições do
rei poeta, porque Jesus encerrava no seu o Espírito
incomparável de Deus.
Tanta majestade, tanta formosura, tanto saber num
Menino, encheu de pasmo e admiração os sábios doutores do
templo. Os anciãos, receosos duma nova derrota, não se
atreveram a dirigir-lhe a palavra quando Maria, seguida de
José seu esposo, chegou aos degraus da Sinagoga.
A aflita Mãe soltou um grito de júbilo ao ver seu filho;
mas toda a alegria do seu coração se converteu em surpresa
vendo-o sentado entre os doutores da lei, a Ele, um Menino
de doze anos.
Era aquele o Menino que ela procurava? Nunca sua
Mãe, o tinha ouvido falar daquele modo! Era Jesus, sim,
Jesus, seu Filho, sua alma.
- Filho, porque obraste assim conosco? Olha como teu
pai e eu te procuramos.
- Porque me procuráveis? Não sabeis que nas coisas do
meu Pai me convém cuidar? respondeu Jesus.
Jesus queria dizer-lhe, com estas palavras: Tudo deve
abandonar-se por Deus.
Sua mãe o compreendeu e, unindo-se de novo à
Família, saíram da cidade e encaminharam-se para Nazaré.
Pelo caminho, aquela Mãe amorosa lhe perguntou.
- Onde comeste e dormiste estes três dias, Filho
Adorado, faltando-te o cuidado de Tua Mãe?

432
- Deus não esquece os pobres, e a hospitalidade tem as
portas abertas para todo o desvalido que se chegue a elas
com a fé na alma.
Jesus tinha mendigado o sustento pelas ruas de
Jerusalém.
Era o primeiro assomo da mansidão que ia pregar em
breve da pobreza que ia defender dentro em pouco.
Chegaram a Nazaré, onde Jesus Cristo cresceu em
sabedoria, caridade e graças, esperando a hora da sua
dolorosa peregrinação sobre a terra do homem.

CAPÍTULO VI

OS FUNERAIS DE AUGUSTO

Dois imperadores imortalizou o Mártir de Gólgota: com


o seu nascimento, Otaviano Augusto; com a sua morte,
Tibério Cláudio Nero.
Sendo estes dois príncipes de alguma importância na
narração deste livro, deixemos as pacíficas e sombrias
ribeiras do Jordão e nos transportemos por alguns momentos
a Roma.
A cena que vamos bosquejar ocorria no monte Célio,
no palácio de Augusto, três anos depois que Jesus
surpreendera com suas perguntas os doutores de Jerusalém.
Otaviano Augusto achava-se gravemente enfermo.
Deitado sobre os moles almofadões do seu leito de
púrpura, pálido como um cadáver que se dispõe a
empreender o caminho do sepulcro, o César ocupava-se em
regular os seus negócios e escrevia as últimas disposições
com mão trêmula e cansada.

433
Os médicos não encontravam enfermidade a combater.
A ciência via a morte na dolorosa melancolia, na grave
expressão, no pálido semblante do imperador; mas não
podendo combatê-la afastava-se daquele leito, confusa e
humilhada, confessando a sua importância.
O mal de Augusto estava no espírito. Debilitado pela
avançada idade, recebeu o golpe mortal que o levou ao
sepulcro, quando soube a catástrofe irreparável de Varo e
suas legiões.
Augusto, como todos os conquistadores da terra,
sonhava sempre com o canto do mundo que não lhe
pertencia, ainda que este fosse o mais pobre, o menos
produtivo do globo terrestre.
Seu poder era intenso. O mundo então conhecido pode
dizer-se que pagava tributo à águia romana; porém os seus
olhares dirigiram-se a contemplar com a cobiça dos
usurpadores um trato de terra, selvagem e escabrosa que lhe
tinha escapado.
Aquele país chamava-se a Germânia, povo separado da
Gália pelo caudaloso Reno. O César, pensando sempre no
que possuía, enviou suas legiões sob o comando do general
Varo, homem de limitado talento e de desmedida avareza.
Um moço chamado Armínio, duma das famílias mais
nobres e poderosas da Germânia, de grande valor e da
habilidade rara para a guerra, desejando sacudir o jugo dos
romanos e farto da crueldade e avareza do general
estrangeiro, fingiu-se seu amigo,e prometendo-lhe descobrir
o lugar onde tinham as riquezas ocultas, conseguiu conduzi-
lo com uma parte considerável das suas legiões a um dos
bosques de que então estava coberto aquele país.
Armínio tinha reunido naquele lugar algumas tribos
címbrias, que só esperavam o sinal para se lançarem contra

434
os romanos, como lobos famintos. Chegou a noite, e a
horrível matança dos estrangeiros com ela.
Varo, ante tão inesperada derrota, vendo-se perdido,
como Bruto, na batalha de Felipe, atravessou o peito com a
espada para não cair nas mãos dos inimigos. Armínio,
orgulhoso do seu triunfo, levantou uma tribuna no meio do
sangrento campo de batalha; dali, depois de arengar aos
soldados, mandou que fossem degolados todos os
prisioneiros, negando-lhes até sepultura.
Três legiões imensas de soldados veteranos pereceram
naquela bosque. Só puderam salvar-se alguns, que levaram a
infausta nova às margens do Tibre.
Augusto, sabedor da catástrofe, vestiu-se de luto,
deixou crescer a barba e o cabelo em sinal de desconsolação,
e começou a sentir-se doente. Às vezes passava horas com os
olhos no chão, braços caídos e atitude dolorosa, repetindo
sem cessar: Varo, Varo, restitui-me as minhas legiões.
A consternação foi grande em Roma ao saber-se a
notícia. Criam ver os germanos passando o Reno e dirigindo-
se para a Itália a marchas forçadas. Porém Armínio
contentou-se com a sua vitória e com sacudir o jugo
estrangeiro.
Já dissemos que o César morreu de paixão. No
momento em que o apresentamos achava-se sentado no leito,
escrevendo as últimas disposições.
No seu semblante bondoso, nos grandes e doces olhos,
ainda maiores pela magreza da face e pelo círculo azulado
que os cercava, via-se a majestade daquele republicano que
cingira a fronte, com a coroa imperial. Junto do leito via-se
um homem de larga fronte, nariz aquilino, lábios delgados e
extremamente juntos e olhar torvo e receoso. Esse ovem era

435
um tirano: chamava-se Tibério, e estava destinado a governar
o mundo.
Bastava deter-se a gente um momento ante aquela
fronte altiva, para compreender a astúcia, a reconcentração e
a inveja que encerrava no coração aquele homem.
Otaviano, casado, duas vezes, não tinha filhos varões e,
desejando que o império ficasse em poder da sua família,
fitou os olhos em Tibério, filho de Lívia, sua segunda
mulher, e casou-o com Júlia, sua filha e viúva do seu amigo
Agripa.
Tibério, taciturno e desconfiado, jamais teve amigos e
nunca acreditou nos favores do sogro; vivia retirado no seu
castelo, suspenso sobre as rochas na praia, donde sonhava
com seu império, cometendo atos de barbaridades na
vizinhança para entreter, segundo dizia, o aborrecimento
que o matava.
- Tibério, disse-lhe Augusto deixando a pena e
olhando-o com bondade; mandei-te chamar porque me sinto
morrer, e pensei em ti para que me sucedas no poder.
Tibério sentiu o coração bater de modo violento; mas o
rosto não mudou. Abaixou a cabeça em sinal de acatamento.
- Desde este momento, continuou Augusto, adoto-te
como filho. O povo e o senado cumprirão minha última
vontade, escrita nestes pergaminhos. Serás o imperador de
Roma, o senhor do mundo. Se conseguires fazer a felicidade
de teus súditos, os deuses imortais velarão pela tua real
pessoa e pelos teus vastos domínios; e não esqueças nunca
meu filho, que é mais prejudicial a um rei ser mau e
sanguinário que ser clemente e justiceiro. Sê pai do teu povo;
repele de ti o ofício do verdugo, que envilece e desonra.
- Tua vida, que os deuses conservem por longos anos
para o bem do teu povo, será um exemplo quando a pesada

436
carga que me confias caía sobre os meus ombros. Eu serei
digno de ti: juro-o pelo nome de meu pai.
- Escuta, Tibério: eu adoto-te como filho; porém tu, por
tua vez, quero que adotes também Germânico, neto de
Otávia, minha irmã, e esposo de Agripina, filha do meu
maior amigo. É um moço leal e valente que, dirigido por ti,
será um grande general. Jura-me pelos deuses lares que serás
o protetor, o pai desse moço, e morrerei contente.
- Eu o juro.
- Guarda o meu testamento e prepara os meus funerais,
porque o novo sol alumiará meu cadáver.
Tibério beijou a mão do César deixando nela uma
lágrima: primeira e última que derramou durante a sua vida.
Otaviano Augusto não se tinha enganado: duas horas depois
expirava.
Tibério esteve contemplando o cadáver um instante.
Depois aplicou os lábios à boca do defunto imperador.
- A alma dos moribundos está nos lábios, exclamou
Tibério dirigindo-se aos que o rodeavam: eu recebi a de
Augusto. – E depois, tirando-lhe um anel e pondo-o no dedo
médio, exclamou com voz grave e dolorosa.
- Otaviano Augusto, imperador romano, morreu.
- Morreu, Morreu! repetiram os presentes caindo de
joelhos e apoiando a cabeça no leito do cadáver.
Decorreu uma hora, durante a qual reinou o maior
silêncio na habitação. Tibério levantou-se e chegando os
lábios ao ouvido do cadáver, disse com voz vibrante:
- Otaviano Augusto, levanta-te do teu leito mortuário.
Tornou a decorrer outra hora, e Tibério tornou a repetir:
- Otaviano Augusto, levanta-te do teu leito mortuário.
O mesmo silêncio reinou na sala; e decorrida outra
hora, Tibério pela terceira vez repetiu:

437
- Otaviano Augusto, levanta-te do teu leito mortuário.
Decorreram alguns segundos, e o novo imperador disse,
dirigindo-se aos que o rodeavam.
- Chamei-o e não me responde: é morto o César.
Apresentai ao senado o seu testamento. – E entregou a um
dos senadores os pergaminhos que o nomeavam herdeiro.
Um liberto, apresentou a Tibério, numa pequena
bandeja de ouro, um triente, pequena moeda do valor de seis
maravedis. Tibério pegou-a e pô-la na entreaberta boca do
cadáver, para que com ela pagasse a passagem a Carente,
barqueiro dos infernos.
O corpo de César, foi entregue aos escravos
embalsamadores, que o lavaram com água quente e o
perfumaram, e os encarregados do templo de Vênus, Lecitina
apresentaram aos parentes do imperador uma riquíssima
mortalha de púrpura e ouro.
O ramo de ciprestes se pendurou sobre a porta da casa
mortuária, e o cadáver de Otaviano foi posto num leito de
marfim no vestíbulo da casa, com os pés fora do leito, para
denotar que estava pronto a empreender a última viagem.
Feito isto, as carpideiras começaram a chorar e a
arrancar os cabelos, lançando de vez em quando flores e
folhas de louro sobre o corpo do seu imperador.
César esteve oito dias exposto. Alguns jovens da
nobreza, vestidos de branco em sinal de luto, de pé e graves,
ao lado do féretro, enxotavam as importunas moscas que
pousavam no rosto do seu senhor.
Os funerais foram esplêndidos, suntuosos.
Rompia a marcha multidão de coros de flautas e
trombetas; seguiam-nos as carpideiras; iam, em seguida, os
cômicos e bufões, um dos quais arremedava quanto podia o
defunto, executando com seus companheiros de faça alguma

438
cena análoga à vida do que já não existia. Depois seguiam os
libertos, e Tibério, por vaidade, tinha dado liberdade a todos
os escravos do César para que o número fosse excessivo. Aos
libertos seguiam-se as imagens do defunto e de seus
antepassados, presas a umas varas compridas e postas em
quadros, com o vestido que traziam em vida.
Depois o cadáver do César, estendido no leito e
coroado, e com os despojos das suas conquistas, era levado
por oito senadores.
Fechavam a marcha fúnebre algumas centúrias de
tropa escolhida, com as bandeiras baixo e dando pancadas
com as armas do som duma marcha, em sinal de
desconsolação.
O séquito fúnebre chegou ao Fórum, e pousou-se o
cadáver sob a tribuna dos Discursos. Um magistrado, parente
do defunto, saiu à rostra e ali pronunciou o panegírico de
Augusto e uma oração fúnebre. O orador terminou, e o
cadáver foi conduzido, para ser queimado fora da cidade, no
lugar marcado pela lei.
As andas com o cadáver foram colocadas sobre a pira, e
os parentes pegaram fogo à lenha seca, virando a cabeça para
outra parte, para mostrarem sua repugnância.
O povo orou com fervor para que os ventos
favorecessem o progresso das chamas, enquanto os
parentes lançavam perfumes sobre o fogo, e vestidos, armas
e objetos de valor que o defunto tinha apreciado em vida; as
tropas desfilaram três vezes ao redor da pira, com as
bandeiras para baixo e dando pancadas com as armas. Depois
apagaram o fogo com vinho, recolheram as cinzas e
encerraram-nas numa urna de ouro, e soltando uma águia,
exclamaram todos.
- Leva para o céu a alma do César!

439
Augusto havia construído em vida o seu sepulcro, no
campo Márcio, entre a via Flamínia e o Tibre. Aquele
sepulcro, levantado no meio de bosquezinho, era uma obra
de arte. Os baixos-relevos representavam em mármore a
história de Augusto.
Sobre a polida lousa que cobria as cinzas do César, lia-
se este epitáfio:

V.F.
DEDICADO AOS DEUSES MANES.
AQUI JAZ
OTAVIANO AUGUSTO
IMPERADOR DE ROMA
E SENHOR DO MUNDO

Os romanos, em Augusto tinham perdido um imperador


sábio, um general valente.
Tibério, hipócrita e receoso, antes de se aclamar
imperador, comprou alguns senadores e, certo dos seus
votos, recusou o império; porém eles lançaram-lhes aos pés
pedindo-hle com as lágrimas nos olhos que não os
abandonasse.
Subiu ao trono, envolveu-se na púrpura por um rasgo
de bondade às súplicas do senado, e para render um tributo
de admiração e respeito a Otaviano, quis que o honrassem
como a um deus e lhe erigiu em Roma um soberbo templo,
proclamando-se sacerdote da nova divindade com outros
cavaleiros e senadores.
Senhor do império e mandando a seu capricho aquele
grande povo conquistador do mundo, mudou o seu antojo os
governadores das províncias romanas e os generais das

440
legiões que acampavam nas dilatadas fronteiras, para
segurança do estado.
Então soube por um dos seus espiões, que um
adolescente chamado Jesus de Nazaré tinha confundido os
doutores de Jerusalém e que se murmurava na Palestina que
aquele jovem descendente de Davi era o Messias, anunciado
pelos profetas. Julgou ameaçada a conquista de Israel, pois
não tinha esquecido o furor de Herodes contra um Menino
Galileu, nem os vaticínios da sibila Cuméia e os portentosos
acontecimentos que, pela época do nascimento de Jesus,
tinham sucedido em Roma e no Egito.
Um homem desconfiado e avarento como Tibério não
podia deixar em dúvida um acontecimento tão importante.
Escreveu a Valério Gratos governador da Galiléia, uma carta,
dizendo-lhe: “Valério; dize-me o que souberes de um jovem
de Nazaré chamado Jesus, pois interessa a Roma saber desse
jovem a verdade e o que se pode temer d’Ele”.
Valério respondeu:
“A Tibério Augusto, imperador de Roma, o seu súdito
Valério Gratos.
Jesus não deve inspirar-te receio. É filho dum pobre
carpinteiro que passa os dias fabricando arados e tetos de
cabanas. Os judeus sonham com o seu Messias há três mil
anos. Suas esperanças duram tanto tempo como a sua
escravidão. Nem Roma nem o grande Tibério devem temer
nada do Filho dum artista que não tem duas gearas de terra
de seu, e a quem os parentes olham com indiferença. Eu te
afianço, Tibério; Jesus é um cordeirinho inofensivo que crece
debaixo do teto de colmo duma humilde cabana, e que
deixará de existir no dia em que te aprouver.
Tibério, tranquilo, esqueceu bem depressa Jesus. O
soberbo imperador ignorava que aquele Menino era Deus

441
que baixava à terra a destruir os seus ídolos e a regenerar o
homem com o seu sangue.
Dois anos depois, sucedeu a Grato, no governo da
Palestina, Pôncio Pilatos, nome que a sentença contra o
Mártir do Gólgota imortalizou.

CAPÍTULO VII

A HORA ANUNCIADA

Os anos rolavam um após outro pelo declive


interminável do tempo. Nazaré dormia à sombra das
palmeiras como uma ave de arribação que descansa das
fadigas de penosa viagem.
Jesus crescia na modesta cabana de seus pais,
esperando a hora da peregrinação. Maria era feliz vendo o
Filho, tranquilo e bondoso, sob o humilde teto da sua
morada. Jesus, que durante o dia se ocupava nos rudes
trabalhos de seu pai, Jesus, que era dotado duma dignidade
régia, duma alma elevada e reflexiva, durante a noite de pé
no terraço da casa buscava o descanso contemplando longas
horas as altas montanhas, os dilatados bosques de Canaã. “O
que vinha mudar as crenças no mundo, nada tinha que
aprender dos homens, disse Orsini, e não podia ser mais que
sua própria obra; era uma vara vigorosa, respirando o ar livre
por todos os poros, e não recebendo outra umidade que a do
rocio do céu”.
Maria nunca interrompeu as longas meditações de seu
Filho. Seu silêncio, sua resignação, eram sublimes rasgos
daquele coração amante e dolorido. Sabia que seu Filho,
durante as horas de soledade e recolhimento, falava com

442
Deus; que um abismo se abria debaixo dos seus pés, e que a
redenção do homem ameaçava a preciosa vida de seu Jesus
amado.
Algumas vezes, cansada de o esperar corria em sua
procura, faminta de contemplar o formoso semblante. Então
a fronte de Jesus, que era cruzada por uma profunda ruga, em
cujo seio descansava a idéia santa de redenção, reanimava-se
à vista de sua Mãe, e um sorriso de bondade lhe assomava
aos lábios.
O Filho de Deus seguia em silêncio sua Mãe, com a
modéstia, com a humildade de que tantas vezes mostras deu,
percorrendo a terra dos homens.
S. Bernardo não admira menos a dignidade da Virgem,
que a humildade de Jesus.
“Este Deus, diz a quem estão submetidos os anjos, a
quem obedecem os principados e potestades, está sujeito a
Maria. Admirai o que mais quiserdes destas duas coisas: ou a
assombrosa humildade do Filho, ou a eminente dignidade da
Mãe, quanto a mim, uma e outra me assombram, e são a
meus olhos grandes portentos. Que um Deus obedeça a uma
mulher, é uma humildade sem exemplo: que uma mulher
mande a um Deus, é um grau de glória que não tem igual”.
Jesus, desde a manifestação no templo de Jerusalém,
até aos trinta anos da sua idade, em que abandonou Nazaré,
viveu oculto e obscuro na pobre oficina de seu pai,
trabalhando pelo seu mesmo ofício e esperando a hora do seu
evangelho.
Cristo correspondeu ao excessivo amor de sua Mãe
com uma ternura sem limites.
Maria, sempre zelosa do seu amor e profunda
conhecedora dos livros sagrados do seu tempo, instruía seu
Filho nas leis inquebrantáveis de seus maiores.

443
“Ela lhe fala de Deus (diz o padre Ebiuef no seu livro
das Grandezas da Virgem) como se fala às crianças; fala-
lhe de amar e adorar a Deus: diz-lhe que é seu Deus e seu
pai, e suas palavras lhe entram aos poucos na alma pelos
sentidos, que se abrem e desenvolvem diariamente. E quando
Ele começa a ser um tanto mais robusto. Ela lhe canta e lhe
faz aprender os hinos que a piedade da lei tinha destinado
nos louvores de Deus. Oh, santa e feliz escola em que Maria
ensina e Jesus aprende”!
Ia Jesus completar vinte e nove anos quando o anjo da
morte estendeu as impalpáveis asas sobre a modesta choça, e
José, o patriarca de Nazaré, fechou os olhos à vida.
A dor de Maria e a de seu santo filho foi grande, porque
José o homem justo, era adorado por quantos tiveram a
fortuna de o conhecer. O pobre carpinteiro e descendente de
Davi, foi conduzido humildemente à última morada, levando
à testa do seu simples enterro o Filho de Deus com as
lágrimas nos olhos e o choroso olhar no chão.
Um ano depois, Jesus como o bordão do viajante, a
túnica parda dos galileus sobre os ombros, a fronte serena
como o mar da Galiléia, saiu de Nazaré e encaminhou-se
com passo grave e mesurado para as margens do Jordão.
A hora amada já tinha soado nos céus, e Deus havia-lhe
dito: Parte, prega a tua nova lei, e morre pelo homem; e Jesus
dando um doloroso abraço em sua Mãe, que banhada em
lágrimas o detinha temerosa de perdê-lo, havia abandonado a
paz do lar, o carinho de sua amorosa Mãe, para receber os
insultos do homem e as dores da cruz.
Nas margens do Jordão, a pequena distância de Jericó,
vivia um homem chamado Batista. O poder de sua palavra
conduzia às margens do rio santo multidão de israelitas, que
se afastavam do seu lado depois de receberem as águas

444
batismais sobre as cabeças, espalhando pelas tribos a fama
daquele homem que tinha crescido nas desertas cavernas do
Carmelo e cuja eloquência se avantajava à dos profetas.
Jesus quis receber o batismo antes de começar a
dolorosa peregrinação. Aquele Cordeiro sem mácula
desejava a limpeza do corpo como o último dos hebreus.
U’a manhã abandonou o humilde lar antes que a luz da
aurora enviasse o orvalho aos campos de Zabulon.
Maria viu-o partir, sentiu que o coração se lhe
despedaçava e, ao vê-lo de longe entranhar-se nas estéreis
montanhas de Jericó, cobriu a casta cabeça com o véu e ficou
imóvel, como a estátua da dor, sobre o terraço da sua casa.
O Cristianismo erguia-se duma humilde cabana de
Nazaré. Pobre, solitário, sem outro apoio que o seu bordão,
seguia seu caminho com os olhos no chão e o pensamento
em Deus.
Quem senão o Eterno podia levar a cabo a grande obra,
a assombrosa revolução de idéias que se efetuou no mundo
no breve espaço de três anos?
O Cristianismo flutuava nas amorosas pupilas do
solitário Viajante, na santa palavra do pobre Galileu,
“manancial obscuro, gota de água desconhecida, em que dois
passarinhos não teriam podido apagar a sede: que um raio de
sol teria podido secar, e que hoje, semelhante ao grande
oceano dos espíritos, tem enchido todos os abismos da
sabedora humana, e banhado com suas águas inesgotáveis o
passado, o presente e o futuro”.

LIVRO UNDÉCIMO

O ANJO DAS TREVAS

445
CAPÍTULO I

AO AMANHECER

Amanhecia a aurora. As névoas da noite começavam a


dissipar-se, pressentindo a aproximação do sol. O mar de
Genezaré tranquilo como o sono duma virgem, acariciava
com suas suaves ondulações as agrestes ribeiras que o
prendem. O diáfano céu da Galiléia sorria sem uma nuvem
sobre os férteis campos de Cafarnaum e Godara.
As pombas dos bosques de Jabes batiam as robustas
asas arrulhando entre os espessos ramos das árvores.
O vento da manhã agitava docemente os altos penachos
das palmeiras de Betsaida, e os pescadores do lago,
carregados com as redes, abandonavam as humildes cabanas,
dirigindo-se com preguiçoso passo em busca das suas barcas.
As aves, essas eternas, incansáveis madrugadores do
bosque e do espaço, esses cantores sonoros da natureza,
enviavam seus mil harmoniosos ecos, suas infinitas
modulações ao sol que ia nascer.
Na margem do lago erguia-se majestosa uma cidade
moderna, recém-construída, cidade dedicada por Herodes
Antípas a Tibério, chamada Tiberiades.
Tinha fortes muralhas de granito, palácios de mármore,
jardins preciosos, um circo para entreter o ócio dos soldados
mercenários, e vinte torres cilíndricas para defender-se das
invasões estrangeiras.
O verdugo de Belém tinha dedicado a Augusto a cidade
e torres em prova de vassalagem. Seu filho Antípas seguiu a

446
mesma marcha para captar as simpatias do senhor de Roma,
seu aliado.
O sol rompeu por fim. Seus brilhantes raios banharam
com a formosa luz os altos minaretes da cidade nova e a
tranquila superfície do mar da Galiléia.
As sentinelas que passeavam pela muralha com
sonolento passo, assomaram para verem sair por uma das
portas que dava para o mar uns homens que, a julgar pelos
longos roupões negros à usança de Roma, deviam ser
escravos.
Oito destes homens conduziam uma riquíssima liteira
de cedro com embutidos de nacar e prata.
As cortinas, de pele duma cor forte, simetricamente
fechadas por anéias de prata, pelos quais passava uma
varinha de metal, e o balanço grave e pesado da liteira,
mostravam que dentro devia viajar alguma pessoa.
Como guardando as portinholas da liteira, caminhavam
dois homens luxuosamente vestidos com longos roupões e
turbantes de linho à moda hebraica. Atrás da liteira seguiam
doze escravos que conduziam pesadas caixas de madeira
pregadas com redondos e grossos cravos de bronze.
Finalmente via-se sair um pelotão de soldados com
apetrechos de guerra. Eram soldados romanos.
Quando a comitiva chegou à margem do lago, parou:
um dos hebreus levantou um extremo da cortina e trocou
alguma palavra com o personagem que viajava na liteira.
Depois, dirigindo-se aos escravos, disse com voz de mando:
- Para os barcos!
Os escravos deixando a liteira no chão, e pegando uma
das caixas, levaram-na até à margem do lago, onde se viam
barcas guardadas por alguns soldados. Tiraram da caixa

447
finíssimos panos de Tiro e três almofadões de seda com
riquíssimas franjas de ouro.
Com rapidez incrível, levantaram na popa duma
daquelas barcas uma espécie de dossel, dentro do qual
colocaram os três almofadões, uma alcatifa da Pérsia e
quatro perfumadores de prata.
Então o homem que tinha recebido e dado ordens
entrou na tenda, encheu os perfumadores de mira e pegou-
lhes fogo. Breve um perfume fino, delicioso, se estendeu
dentro daquela tenda improvisada.
- Aos remos! tornou o homem do turbante.
Doze homens se assentaram nos bancos do lado e
empunharam os remos, com as pás levantadas um côvado da
superfície da água.
- Conduzi vós o tetrarca, disse o homem aos oito
escravos que estavam livres.
Estes obedeceram e momentos após uma das
portinholas da liteira achava-se perfeitamente unida à popa
da barca.
O mesmo que tinha dirigido toda esta manobra, abriu a
cortina da liteira e disse:
- Estás servido.
Então abriu-se a portinhola, e um homem de trinta e
seis a quarenta anos de idade, barba preta, olhar de águia e
pômulos salientes, saltou da liteira ao barco. Vestia
simplesmente uma longa túnica de pano verde com uma
franja de seda carmezim em volta da fímbria. Levava um
barrete chato na cabeça por baixo do qual saíam longos e
abundantes cabelos pretos. Entre o cabelo podiam distinguir-
se as grossas argolas que trazia nas orelhas.
Este homem chamava-se Herodes Antípas, e era
tetrarca da Galiléia, filho de Herodes, o Grande.

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Chama-lo-emos, desde agora, Antípas. Tão depressa se
viu ele sob o rico tendal que os escravos lhe tinham
preparado, voltou-se para a liteira e disse:
- Vem, Rute; mas não te esqueças o saltério: a música
me deleita.
Uma jovem formosa, cujo rosto, extremamente moreno,
resplandecia de modo notável, assomou a cabeça pela
portinhola da liteira. Estava completamente envolvida num
finíssimo manto de casemira que, subindo até a cabeça, se
enrolava, afina, no pescoço. O extremo do manto era uma
boria de seda azul que caía sobre o peito. Debaixo daquela
imensidade de pregas adivinhavam-se as formas de uma
estátua grega.
Rute saltou também para o barco. Ia descalça, como as
mulheres caldéias, mas nos dedos dos pés brilhavam
multidão de anéis.
Os braceletes que lhe apertavam os torneados braços
eram de ouro, formando simplesmente uma argola, onde
podia ver-ser um H e um T feitos com esmeraldas. Levava
na mão direito um saltério extremamente pequeno e, na
esquerda, um bordãozinho de prata que formava um gancho
no extremo.
Antípas e Rute, sua escrava favorita, que apenas
contava dezoito anos, entraram para baixo da tenda, e
sentaram-se nos almofadões.
Quando o tetrarca desapareceu atrás do flutuante
pavilhão da tenda, os doze escravos impeliram a barca para a
água.
O homem encarregado das manobras disse
laconicamente.
- Remai para Betsaida.

449
Os doze remos caíram a um tempo sobre as águas do
lago, tornando-se a levantar imediatamente.
A barca rasgou o seio do tranquilo lago com a delgada
quilha. Uma chuva de gotas caiu dos remos obre a serena
superfície da água.
Depois, suave, rápida como a garça marinha que
persegue o inocente peixinho, partiu a barca em direção ao
nordeste do lago, deixando na retaguarda a moderna cidade
de Tiberíades.
O resto da comitiva embarcou imediatamente nas duas
barcas que se achavam ancoradas, e seguiu a brilhante esteira
que deixava após de si a embarcação do seu senhor.

CAPÍTULO II

UM CONVÊNIO INFAME

Quando o sol se achava no meio da sua carreia, os


remeiros de Antípas alçaram as pás. O barco parou.
Aqueles infelizes escravos estavam mortos de cansaço
e cobertos de suor. Seis horas remaram sem descansar, mas
por fim a proa do seu barco tocara as desejadas praias de
Betsaida.
Imediatamente, esquecendo o cansaço, se lançaram á
água, e, em breve, a liteira se aproximou à popa da frágil
embarcação, para que Antípas e sua escrava subissem.
Todos saltaram em terra, excetuando seis homens que
ficaram a guardar as barcas. A comitiva, levando a liteira do
seu senhor aos ombros, atravessou as ruas de Betsaida. Os
moradores assomavam às estreitas janelas cheios de
curiosidade. Antípas que tinha nas veias o podre sangue de
seu pai, não concedeu nem uma hora de descanso aos seus

450
escravos. Os infelizes viram-se obrigados a comer a ração de
torta de milho e de figos secos, andando. Assim atravessaram
o espesso bosque de Jabes.
Entretanto, o tetrarca de Galiléia, preguiçosamente
reclinado sobre os moles almofadões, quase dormindo,
deleitava-se ouvindo a doce voz da escrava e o harmonioso
som do saltério.
A escrava terminou uma estrofe e ia pousar o saltério
no regaço.
- Pelos manes de tua mãe, pelo tempo de Belo, a quem
adoras, te rogo, Rute querida, que tornes a repetir essa
estrofe.
Rute, pegou no saltério e cantou a estrofe seguinte,
acompanhada duma melodia doce, sentida como o lamento
duma mãe que chora sobre a sepultura de seu filho:

Porque, senhor, te empenhas meu canto em


prolongar?
A garça prisioneira não canta qual soía
Cantar lá pelo espaço sobre o dormente mar;
Seu canto entre cadeias é canto de agonia!

Ah! Bem se vê, exclamou o tetrarca, que os poetas da


Selêucia embalaram teu berço; tu és poetisa, fazes versos
como Safo, aspiras talvez que te chamem a musa undécima,
como os habitantes de Lesbos chamaram a Safo a décima
musa. Pobre menina, não te desejo a sorte que teve a heroína
do promontório de Leucades. Se encontrarem algum Faon
que te despreze, não te deites ao mar.
Rute só disse:
- Canto mais, senhor?

451
- Não: podes deixar o saltério e dormir; eu vou fazer o
mesmo.
E o tetrarca cobriu a cabeça com o extremo do manto
escarlate.
Rute exalou um suspiro, e cobrindo o rosto com o seu
albornoz de casemira, encenou a cabeça sobre o almofadão.
Depois, o senhor e a escrava guardaram silêncio.
Naquele mesmo dia a comitiva do tetrarca, ao cair do
sol, entrava na cidade de Gaulon, residência de Filipe, seu
irmão, tetrarca da Ituréia.
Herodes Antípas foi recebido por seu irmão Filipe e por
sua esposa Heródias, sua sobrinha, com grande regozijo.
Antípas ia a Roma oferecer a nova cidade de Tiberíades
ao imperador.
Heródias, tão formosa como infame, tinha uma filha
que apenas contava quatorze anos de idade, com a beleza
fascinante de sua mãe.
Antípas encheu-a de carícias e presentes e convidou a
uma entrevista sua mãe, a quem amava em segredo havia
algum tempo.
Filipe, seu irmão, era bom e confiado.
Quando, depois do fetim toda a gente se retirou a
descansar das fadigas do dia, Filipe acompanhou seu irmão à
estância que lhe tinha destinado.
Nunca Antípas tinha mostrada mais afeto, mais
deferência a Filipe, que naqueles breves instantes que
permaneceram sós falando das suas tetrarquias. Fez
promessas que encheram de prazer o coração do irmão.
- Quando sais para Roma? perguntou Filipe.
- Amanhã, ao despontar da aurora.
- Desconfia de Tibério, meu irmão: a serpente favorita
que trazia sempre enroscada no pescoço foi devorada pelas

452
formigas. Trasílio, seu astrólogo vaticinou-lhe que aquilo
queria dizer que ele seria morto pela multidão. Este agouro
fê-lo arisco e receoso. Encerrado na fortaleza de Caprera, não
vê senão inimigos em todos os que se lhe aproximam: o
medo da morte faz-lhe cometer crimes.
- Nada temo respondeu Antípas; Tibério é meu amigo;
eu sou o seu mais fiel aliado.
Depois despediram-se.
Antípas ficou só, e começou a passear pela habitação.
De vez em quando chegava-se a uma janela e
permanência contemplando o escuro horizonte recamado de
estrelas.
Assim transcorreram duas horas. O tetrarca começava a
impacientar-se. Por fim ouviram-se leves passos no corredor
que conduzia à habitação do ilustre hóspede. Antípas
chegou-se à porta e, aplicando o ouvido, escutou um
momento. “É ela”, disse consigo, E abriu a porta.
Heródias entrou na habitação, e ambos foram sentar-se
num cômodo divã.
A criminosa esposa de Filipe tinha uma formosura
resplandecente, lábios vermelhos como a flor da romã, olhos
negros como uma noite de tempestade, e o nariz aquilino
como o de Cleópatra, as sobrancelhas povoadas e terminando
em arco sobre a texto, a tez morena mórbida, o colo redondo
e perfeitamente unido aos ombros, a fronte larga e
provocadora; tudo dizia que a cólera daquela mulher devia
ser terrível.
- Cumpri a minha palavra, disse Heródiades ao amante.
- Teu irmão dorme: nada receia.
- Tanto melhor: o que ignora não sofre.
- Sim, mas amanhã o saberá.

453
- Que me importa se te tiver na Galiléia, no meu
palácio, rodeada dos meus soldados? Eu sou mais forte: não
irá buscar-te, assevero-te. Se me declarar guerra, tanto pior
para ele. Conquistarei as suas cidades e me pagará tributo.
Nada deve importar-te meu irmão.
- Tens razão... Falemos. Vais a Roma?
- Amanhã.
- Tão cedo!
- Tenho precisão de ver Tibério, meu aliado.
- Quando tencionas regressar às tuas tribos?
- Ignoro.
- Então nada podemos convencionar.
- Por que não? Eu procurarei mandar-te emissários que
te indiquem o dia em que deves achar-te na ribeira de
Cafarnaum e, uma vez ali, nada temas, estarei ao teu lado.
- Eu só temo uma coisa: que tu não me ames.
- Pode um homem sem amar faltar assim ao dever mais
sagrado? Não és tu minha sobrinha e mulher de meu irmão
há tempo?
- Todavia, tua esposa...
- Minha esposa!... Ora! Quem faz caso disso? Repudiei-
a, remeti-a carregada de presentes a seu pai Aretás, rei da
Arábia. Quem sabe se esse velho bárbaro me enviará as suas
legiões? Mas antes que atravessem o deserto de Manalem,
Pilatos, meu aliado, lhe cortará o passo.
Heródiadese deu um grito de alegria. Seus negros olhos
brilharam de modo inexplicável. Dir-se-ia que suas pupilas
deitavam faíscas.
- Ah! exclamou. Já não deve temer nada de tua esposa?
Agora sim, creio que me amas.
- Fizestes mal em duvidar.

454
- Eu amo ou odeio; via uma mulher moça ao teu lado, e
amava-te; os ciúmes são filhos do amor.
Heródias pegou numa das mãos de Antípas, e olhando-
o com firmeza como a ler-lhe no coração, perguntou:
- Amas-me, não é verdade? O teu coração é meu, como
o meu é teu. Em breve serei tua esposa, e este amor não será
segredo para ninguém.
- Assim o espero.
- Dize-me a verdade. Que farás então de Rute, tua
escrava?
- Será tua escrava e farás dela o que te aprouver.
- Por que a trazes contigo?
- Rute é para mim uma mulher, é u’a musa, um cisne
que canta para me adormecer e embevecer os meus sonhos;
quando os doces acordes do seu saltério e as vibrantes notas
de sua garganta me chegam aos ouvidos, penso em ti, única
mulher que amo, e então o amor das recordações bate as asas
sobre a minha fronte, e sou feliz.
Heródias guardou silêncio como se duvidasse; mas o
olhar sereno de Antípas pareceu tranquilizá-la.
- Vou pedir-te uma coisa. Dá-me Rute, tua escrava.
Antípas não vacilou em responder:
- É tua.
Heródias beijou a mão que apertava as suas.
Aquela mulher infame, aquela adúltera coroada,
ambicionava um trono maior, mais esplêndido que o que lhe
tinha cabido em sorte. As tribos de Gad e Ruben eram mais
ricas que as de Manassé e Betânia. O bosque de Efraim
parecia-lhe mais grandioso que o de Jabes, a tetrarquia de
Ituréia, onde reinava seu esposo era um deserto areal
comparada com a rica e frutífera Pereia, onde reinava seu
amante.

455
Depois, Antípas era rico, imensamente rico; edificava
cidades tinha a soldo soldados mercenários, e era amigo de
Tibério, o maior imperador do mundo.
Heródias não vacilou. Ao separar-se do amante tinha
celebrado com ele um contrato infame. A adúltera jurou
abandonar o esposo tão depressa como o emissário de
Antípas fosse dizer-lhe:
- Partamos: o meu senhor te espera.
Duas luas depois, a essa hora em que os pescadores de
Cafarnaum retiram as suas redes do mar, um barco com uma
só vela latina e seis remadores chegou às ribeiras. Duas
mulheres, completamente ocultas nos compridos e largos
mantos judaicos saltaram do barco à praia. Um homem
vestido à romana saltou depois delas, levando um cofrezinho
debaixo do braço.
Deram algumas moedas aos remadores e, com passo
receoso chegaram a uma casinha de modesta aparência,
situada a um tiro de pedra da cidade.
Daquela casa saíram oito escravos com uma liteira. As
duas mulheres entraram na liteira. O homem que as
acompanhava montou um soberbo cavalo que também
tiraram da casa.
Depois todos se puseram em movimento em direção a
Tiberíades.
De vez em quando uma cabeça infantil, rosada como as
folhas de uma papoula silvestre, assomava a uma das
janelinhas da liteira.
O caminho que seguia a silenciosa comitiva era áspero
e tortuoso. Ao voltar de um cotovelo viram um homem de pé
sobre uma rocha. Era moco: teria trinta anos. Trazia o cabelo
apartado ao meio da fronte, como os galileus; ia descalço, e

456
vestia uma túnica parda sem costura, e um manto judaico cor
de corinto.
Seu rosto era formoso e o olhar de seus olhos azuis,
doce como o duma moça moribunda. Tinha a barba repartida
em forma de forquilha.
A fronte, que irradiava como o mar ferido pelos raios
da lua, era pura como o perfume duma violeta. Através
daquela fronte parecia adivinhar-se alguma coisa que fazia
estremecer a alma e subira oração aos lábios. Apesar da
humildade do traje havia naquele silencioso caminhante
alguma coisa da majestade dos reis e da grandeza de Deus.
Firme sobre a rocha que lhe servia de base, com as duas
mãos apoiadas num bordão contemplava com melancólicos
olhos o fértil vale de Zabulon que se estendia a seus pés.
A poética luz crepuscular da tarde banhava com suas
suaves cores o formoso panorama que o tinha embebido.
As pisadas do cavalo que precedia a liteira, ressoando
sobre as duras pedras, fizeram-lhe voltar a cabeça.
Ao fitar o olhar na liteira, um raio de luz divina
apareceu nos seus grandes e formosos olhos. As mulheres
assomaram a cabeça para o verem melhor. Os olhos do
homem da penha encontraram-se com os olhares das
incógnitas viajeiras.
O rosto duma delas cobriu-se subitamente de rubor, e
escondeu a cabeça envergonhada atrás da cortina da liteira.
Os lábios do homem da túnica agitaram-se como a murmurar
algum oração.
A mulher, que tinha corado, julgou perceber uma voz
doce que dizia:
- Desanda o andado, torna para tua casa, recorda a tua
lei que diz: Será morta a pedradas a mulher adúltera.
A viajeira tremeu.

457
- Que tens, minha mãe? perguntou-lhe a jovem, que
sem dúvida observava a agitação de sua mãe.
- Viste aquele homem? Seus olhos resplandecem como
o Efod do sumo sacerdote; o seu olhar penetra docemente até
o fundo da alma como uma repreensão carinhosa que
julgamos justa; na sua fronte pareceu-me encontrar a
majestade de Davi e a inteligência de Salomão... Quem será
este homem? Que fará imóvel sobre aquela pedra?
- Que nos importa a nós, minha mãe, esse pobre
viandante? exclamou a jovem com alegre acento.
A mãe inclinou a cabeça sobre o peito como se alguma
idéia a preocupasse. Talvez pensasse no crime, na infâmia
que acabava de cometer, porque aquelas duas viajeiras,
outras não eram senão Heródias e sua filha, que iam reunir-se
com Antípas, tetrarca da Galiléia.

CAPÍTULO III

O BATISTA

Nas margens do Jordão, não longe das montanhas de


Gelboé, e como que a cinco milhas de Jericó, sobre as
mesmas ribeiras do rio santo, ergueu-se uma cidade pequena
que o cristianismo imortalizou, pertence à tribo de Ruben, e
chama-se Betabara.
Ali corriam todas as tribos de Israel a ouvir a inspirada
palavra dum homem que tinha passado a vida no deserto,
comendo mel silvestre e gafanhotos. Chamava-se João e não
trazia outro vestido que um curto saio de pele de camelo
atado na cintura. Sua fronte, tostada pelo sol e pelo vento dos

458
furações, era larga e despejada como a de Elias; nos olhos
pretos brilhava um raio de luz divina.
Sua voz, quando repreendia, era poderosa como o
bramido da tempestade; quando os conselhos brotavam da
sua boca, eram doces como o arrulho da rola.
João, sendo muito criança, foi salvo do furor de
Herodes por sua mãe Isabel.
Conta a tradição que, quando a mãe do Batista soube a
terrível matança de Belém, fugiu com seu filho nos braços.
Perseguida por vários soldados, corria por áspera montanha,
como a amedrontada corça. De repente observou que o
caminho se cerrava ante os seus passos.
Achava-se num profundo barranco; rochas inacessíveis
adiante; atrás, os infames perseguidores já com o cutelo
levantado sobre sua cabeça.
- Deus de Abraão e de Jacó! exclamou Isabel com voz
espantada. Tu me disseste por teus anjos que o fruto do meu
ventre era o precursor de Messias. Se o deixar morrer, o que
me disseram os teus emissários era falso.
Então abriu-se uma rocha em cujo fundo resplandecia
uma grande claridade, e uma voz lhe disse:
- Entra.
Isabel entrou: a rocha tornou a fechar-se: os soldados
arremessaram-se sobre aquele muro que lhe cerrava a
passagem, roubando-lhe a presa, descarregando inutilmente
as cintilantes espadas sobre a dura pedra e fugiram
espantados. João Batista, o precursor de Cristo havia-se
salvado como o Filho de Maria, do furor dos seus
perseguidores.
O deserto foi desde então sua morada. As feras
respeitaram o corpo daquele que, fugindo dos homens, se

459
refugiava entre elas, do que mais tarde havia de lançar sobre
a cabeça do Filho de Deus as águas do batismo.
O nome de João e o maravilhoso poder das duas
palavras estenderam-se por todos os âmbitos da Palestina. A
nova que o Batista pregava tinha duas bases, profundas,
humanitárias: a esmola, e o desinteresse.
Sentado numa rocha, à sombra duma árvore, aquele
homem de apenas trinta anos, sereno como um céu sem
nuvens, majestoso como os cedros do Líbano, cuja
consciência reta como o tronco duma palmeira de Betânia,
rodeado duma multidão que, sedenta das suas palavras,
corria a ouvir a sua voz, dizia-lhe com um acento que
penetrava o mais recôndito dos corações:
- Raça de víboras! Quem vos ensinou a fugir da ira que
ainda não chegou? Fazei dignos frutos de penitência, e não
digais: Temos por pai Abraão... Porque vos digo que Deus
pode fazer destas pedras filhos de Abraão. A machada está
colocada junto à raiz das árvores, pois toda a árvore que não
der fruto será cortada e deitada ao fogo.
E, abrangendo com olhar compassivo a enorme
multidão que o ouvia, dizia-lhe com acento majestoso:
- O que tem dois vestidos, dê um ao que não o tem: e o
que tem para comer faça o mesmo com o faminto.
Uns soldados que tinham parado para ouvir a palavra
daquele homem, comovidos pela sua voz que levantava ecos
dulcíssimos no coração, perguntaram-lhe também:
- E nós, que faremos?
- Não maltrateis ninguém, não calunieis e contentai-vos
com o vosso soldo.
Chegaram uns publicanos para que os batizasse e
sentando-se entre a turba com sorriso zombeteiro e acento
provocador, lhe perguntaram:

460
- Mestre, que devemos fazer nós?...
O Batista deteve o olhar no rosto daqueles homens.
Aquele olhar cheio de luz divina penetrou nos corações dos
publicanos que percorriam as tribos cobrando o tributo
romano, e baixaram a cabeça como se não pudesse resistir ao
brilho daqueles olhos que os repreendiam.
João soltou um doloroso suspiro, e disse-lhes:
- Não exijas mais do que se vos mandou exigir.
- Não és tu o Messias?
- Não és o Cristo?
- Não és tu o salvador de Israel? lhe perguntava o povo
em redor.
João respondia a estas perguntas.
- Eu, em verdade, batizo-vos em água; mas virá outro
mais forte que eu, e de quem não sou digno de desatar uma
correia das sandálias. Ele vos batizara com o Espírito Santo e
o fogo. O crivo está na sua mão, e limpará a sua eira e
guardará o trigo em seu celeiro, e a palha a queimará com
fogo que nunca se apagará.
Um dia em que João se achava no meio dos discípulos
e rodeado de imensa multidão que corria a ouvir suas
palavras, viu vir pela margem do Jordão, seguindo a corrente
um homem, moço como ele, e a quem não se lembrava de ter
visto entre o seu auditório. Aquele homem levava o cabelo
repartido ao meio da testa como os filhos da Galiléia, ia
descalço e vestia uma pobre túnica de lã. No seu rosto
formoso brilhava uma mansidão suprema e uma doçura
infinita. Caminhava com passo tranquilo e com a radiosa
fronte inclinada para o chão.
Ninguém o conhecia.

461
O precursor olhou o Galiléu; e depois curvando a
cabeça sobre o peito, como se o deslumbrasse alguma luz
celeste exclamou com acento comovido.
- Tu és o Messias.
Jesus, pois era este o homem que exaltava com a sua
presença o espírito de João, disse por sua vez com um acento
dulcíssimo e curvando a fronte com humildade:
- João, que as águas do batismo caiam sobre a minha
cabeça.
- Eu devo ser batizado por Ti, e Tu vens a mim?...
exclamou o precursor com grande admiração dos ouvintes.
- Assim nos convém cumprir toda a Justiça, tornou
Jesus.
João obedece às súplicas do Galileu, e derramou sobre
a sua santa cabeça as águas do batismo.
Nesse momento sublime uma claridade diáfana
apareceu no espaço. Um raio de luz pura e bela, como tudo o
que brota do céu, caiu sobre a humilde cabeça de Jesus, e sua
fronte cobriu-se dum resplendor celeste.
O Espírito Santo, em forma de pomba, desceu dos céus
e pousou na cabeça do que mais tarde devia morrer na Cruz.
Então uma voz do céu chegou à terra dizendo:
- Este é meu Filho amado, em que pus toda a minha
complacência.
Jesus considerou a sua missão santificada, e chamou-se
desde então Cristo, isto é, ungido, consagrado.
Depois deste movimento sublime, o Nazareno, com
passo tranquilo, abandonou a vizinhança de Betabara e,
guiado pelo Espírito Santo, encaminhou-se para o deserto,
onde devia jejuar quarenta dias antes de empreender sua
penosa peregrinação, e onde o anjo que anda nas trevas devia

462
humilhar ante as humildes palavras do Galileu o orgulhosa e
maldita fronte.

CAPÍTULO IV

AS PALAVRAS DE UM JUSTO

Os doutores de Jericó, os fariseus de Jerusalém,


professavam um ódio profundo ao Batista. O epíteto de
feiticeiro, possesso do espírito mau, juntavam-se com as
diatribes que lhe dirigiam até nas mesmas sinagogas.
Recusavam-se a receber as águas do batismo e
aconselhavam diariamente a Pilatos, governador de
Jerusalém, e ao tetrarca da Galiléia, que se apoderassem
daquele homem que fomentava a sedição do povo.
- Se não quereis prendê-lo, diziam, ponde-lhe uma
mordaça.
Um receio deteve então Antípas: o povo, que amava
João como um profeta; o povo que corria a escutar as suas
inspiradas palavras e que lhe dava o nome de Messias,
salvador de Israel, suplicando-lhe que lhe concedesse o
batismo.
João soube com indignação a infame libertinagem da
adúltera Heródias.
Filipe tinha querido recobrar sua criminosa esposa;
porém Antípas, seu irmão, colocou as suas lanças
mercenárias na torrente de Joboc, e os soldados de Filipe,
menos em número e em valor, não se atreveram a passar os
últimos limites do deserto de Manaim.

463
Filipe devorou em silêncio o agravo; Israel soltou um
grito de indignação. O receio emudecia todas as línguas
porque Israel era então um rebanho de escravos.
João, criado no deserto, livre como o vento que levanta
as penas da águia no espaço, busca os criminosos que
esqueciam o seu crime nos braços do prazer.
João soube por um dos seus discípulos que o tetrarca e
sua infame esposa se achavam com toda à corte na moderna
cidade de Libíada na margem oriental do Jordão, a pequena
distância do castelo de Macheronte.
As festas solenes da dedicação daquela cidade tinham
reunido dentro dos seus recentes muros grande número de
curiosos.
João, seguido dos seus discípulos, entrou na Libíada,
onde o prazer assentava os seus arraias, onde a alegria
ocupava todos os corações. Seu aspecto grave, meditabundo,
silencioso, augurava algum acontecimento importante.
João chegou à larga praça onde Antípas tinha o seu
palácio. A curiosidade reunia naquele lugar uma multidão
imensa. O traje estranho do precursor, seus longos cabelos
estendidos em desordem sobre os ombros e costas, a
majestosa atitude daquele venerável cabeça e o brilho
ameaçador dos olhos, transmitiam um medo inexplicável à
multidão que o rodeava.
Por fim ressoou nos pórticos do palácio o marcial som
duma trombeta. Aquela voz de metal anunciava que o
tetrarca ia sair com a sua corte, como tinha por costume
todas as tardes.
João ergueu a cabeça como o leão que ouve no deserto
o grito selvagem do camelo. Seus olhos fitaram-se na porta
do pátio.

464
Breve se viu sair uma luxuosa cavalhada. Adiante via-
se o tetrarca montado num cavalo branco de raça siríaca: a
seu lado cavalgava, numa égua espanhola sua nova esposa
Heródias. Atrás seguiam alguns centuriões romanos e vários
dignitários da tetrarquia.
João sereno como um herói de Esparta ante o perigo,
grave como o remorso, adiantou-se alguns passos direito a
Antípas.
- Que irá fazer? perguntavam em voz baixa as pessoas.
João continuava sem se deter.
- Escuta, Antípas, exclamou o Batista com voz firme e
grave, e tu também, mulher de Filipe: não é lícito reteres a
esposa de teu irmão. Ai dos que abriguem debaixo do seu
teto a mulher adúltera. Malditos serão pelo Deus invisível de
Israel. Torna Heródias para Ituréia; o leito de teu esposo
ainda está quente: ele te espera; abre os ouvidos à minha voz
que ensina o dever. Maldita seja e morta a pedradas a
adúltera!
Os olhos de Heródias despediram raios de cólera. Com
que prazer teria pulverizado aos pés do seu cavalo o homem
que se levantava ante ela como um remorso!
Antípas, pálido, abatido, só pode articular estas
palavras:
- Afasta!
João afastou-se e a comitiva, triste e assombrada,
continuou o seu caminho.
As festas, perturbadas pela última cena, terminaram
naquele mesmo dia.
Desde então Heródias uniu-se com os doutores e os
fariseus para perder o Batista. Antípas resistiu o princípio,
recusando-se a satisfazer os desejos de vingança que ardeu
no coração da esposa; porém cedeu enfim, e João foi

465
arrebatadado do seio dos seus discípulos e conduzido aos
calabouços do castelo de Macheronte.
O crime de sedição era o delito de que o acusavam; mas
atrás deste pretexto via-se o ódio de Heródias e a inveja dos
fariseus.
Os discípulos de João alcançaram de Antípas uma
graça: que se lhes permitisse entrar no cárcere de seu mestre.

CAPÍTULO V

A TENTAÇÃO

Jesus depois do batismo, retirou-se para os montes da


Judéia, onde permaneceu quarenta dias.
Uma noite que, com a fronte encostada a uma penha
dava graças ao Pai celestial que lhe havia dado forças para
resistir as necessidades do corpo, estremeceu a terra debaixo
de seus pés.
O Nazareno ergueu a fronte. Um homem se achava
junto dele, contemplando-o, com os braços cruzados sobre o
peito, ostentava uma profunda cicatriz na fronte. Seus olhos
azuis, extremamente claros, tinham alguma coisa sinistra e,
no fundo das pupilas, brilhava-lhe a pavorosa luz do raio.
Seus longos cabelos, agitados pelo vento do deserto,
despediam um resplendor fosfórico. Era formoso, porém na
sua formosura havia uma coisa de infernal. Os lábios
sorriam-se, mas no seu íntimo pintava-se a desesperação e a
ira.
Sua estatura era meio côvado mais elevada que a do
homem mais alto. Seu vestuário era simplesmente um saio
preto atado na cintura por uma correia; estava descalço e,

466
quando movia os pés, deixava após de si um vestígio azulado
que apagava imediatamente.
Jesus estremeceu levemente quando seus olhos se
fitaram no misterioso personagem que parecia ter saído da
terra.
- Filho do homem, conheces-me? disse o misterioso
personagem.
- Sim; tu eras o arcanjo mais formoso do céu; o
resplendor do sol brilhava-te na fronte, o sorriso do
crepúsculo oriental nos lábios; mas um dia rebelas-te contra
Deus, e o seu sopro vingador arremessou-te das alturas do
céu aos abismos malditos da terra.
- Sou o rei do Averno, o senhor do mundo, tornou
Lusbel levantando a maldita fronte.
- Sim, tu és o que anda nas trevas.
- Esse nome me dão as escrituras.
- Também te chamas pais dos ímpios;mas o teu orgulho
é insensato. Só ao nome de meu Pai a tua cabeça se curva e o
teu corpo se arrasta.
- Pois bem, se és Filho de Deus, dize a estas pedras que
se convertem em pão.
- Está escrito, disse Jesus, que não vive o homem só de
pão: mas sim da palavra de Deus.
- Deita-te daqui a baixo.
O arcanjo levou pelos ares a Jesus e, colocando-o na
ameia mais alta do templo de Jerusalém, disse-lhe:
Jesus respondeu-lhe:
- Está escrito, não tentarás o Senhor, teu Deus.
Jesus e Lusbel, arrebatadas por um turbilhão de vento,
correram pelo espaço fora com a rapidez do furação. Por fim
pararam no cume de uma montanha altíssima que formava
três cabeças, o grupo de Himalaia.

467
- Debaixo das nossas plantas, disse o arcanjo, temos o
monte mais alto do universo. Sabes o seu nome?
- Sim, chama-se Dawalagiri, respondeu Jesus com uma
voz tão doce, que contrastava com o rouco acento do anjo da
trevas.
- Vais ver passar aos teus pés todos os reinos da terra.
Então ouviu-se um estremecimento profundo.
A montanha maldita, como se houvesse convertido em
eixo da terra, fazia girar, com rapidez incrível, o mundo.
Lusbel, agitava de vez em quando os ruivos cabelos,
que despediam faíscas de luz sinistra.
Jesus olhava com olhos compassivos o anjo tentador.
- Olha, lhe disse por fim Lusbel, o panorama que gira
debaixo dos teus pés. Essa imensidade de terra que se
encaminha para nós, tão depressa estéril como feraz, cruzada
por todas as partes de rios e lagos, é a Ásia. Adiante está a
terra da Promissão. Deus prometeu-a a Abraão e a escolheu
para teu berço. Não sentes a olorosa fragrância dos cedros do
Líbano? Olha os altos cumes do Sabino, cobertos
eternamente de neve: vês um fantasma gigantesco com os
braços cruzados sobre o peito? É Sem, filho de Noé, o tronco
de onde saem esses quinhentos milhões de habitantes que
povoam um milhão de léguas quadradas de terra. Adiante
vem a Palestina, como lhe chamam os romanos ou terra de
Canaan, como lhe chamam os fundadores. Vês aquele lago
que encerram umas colinas, Genezaré? Vês aquela
monstruosa serpente que se arrasta sobre o seu leito de areia;
é o Jordão! Seguindo a corrente podes ver o Mar Morto,
sepulcro móvel que encerra no seio a depravação dos filhos
de Gomorra, Sodoma e Adama. Tua raça conquistou aquela
região aos jebuseus: a presa foi repartida em doze tribos: em
vão a voz do profeta lhes recordava o dever, ensinando-lhes

468
as palavras da sua lei; em vão Elias levantava a voz no
Carmelo; as terras conquistadas pelas guerras tingiram-se mil
vezes com sangue inocente; Gelboé está manchada com o
sangue de Saul; o Gólgota manchar-se-á com o teu. Olha
bem aquele montão de casas, templos e palácios que se vão
aproximando. Vês aquele pequeno povoado agrupado num
extremo do pitoresco vale de Zabulon? É Nazaré teu ponto
de partida; à sua direita, e olhando para o Norte, está
Cafarnaum, de cujas ribeiras sairão os teus discípulos mais
queridos. Seguindo a corrente de Jordão para o Sul, está
Jericó, destruída por Josué, e mais adiante, encravada no
centro da tribo de Benjamim, acha-se Jerusalém, que te
coroará a fronte de espinhos, te escarrará no rosto e te verá
morrer.
Lusbel deteve-se. O silêncio do Nazareno irritava-º
Sacudindo a longa cabeleira ficou um momento com os
braços cruzados e o gesto altivo.
Entretanto foram passando rios, montes e cidades, e
chegou a Armênia quase encerrada pelo Ponto-Euxino e mar
Cáspio, cortado pelas cordilheiras do Cáucaso, de cujo cume
tinha desaparecido Prometeu, o ladrão divino.
Os rios Circo, Aranes, Tigre e Eufrates estendiam sua
fecundantes correntes por toda parte.
O arcanjo contemplava Jesus em silêncio, e entretanto o
mundo continuava girando em redor da fralda do
Dawalairigi, e passou a Mesopotâmia, essa grande planície
encerrada entre o Tigre e o Eufrates, com a cidade de Aran,
onde viveram Abraão e Jacó; Cunaxa, onde Ciro, o moço, foi
derrotado por seu irmão Artaxeres; a Assíria, com a sua
esplêndida Ninive, fundada por Nino; a Arbela em cujos
plainos Alexandre venceu a Dario.

469
Olha agora, tornou Lusbel, aquilo é Babilônia, onde os
homens adoravam cem deuses; aquela torre é a de Babel;
onde se ergue como um gigante no meio das ruínas. O meu
alento inspirou aos babilônicos aquela obra colossal, triste
memória da soberba do homem.
A terra de Medos com seu clima temperado seus ares
puros e sua eterna primavera, passa também perfumando o
ambiente.
O divino Galileu ouvia outra vez a voz do arcanjo, que
dizia:
- Aparece a Índia; esse triângulo de terra cuja vegetação
poderosa não tem igual no mundo. Suas canas são árvores,
suas árvores, bosques, seus rios encerram ferozes caimães,
crocodilhos carnívores. Pelas suas selvas se arrastam
monstruosas cobras de vinte côvados. Os gigantescos
elefantes percorrem suas planícies. Os leopardos, as panteras
e os leões albergam-se nos seus incultos barrancos. A terra
dá duas colheitas por ano, e o tortuoso Ganges dizima os
habitante com sua pútridas emanações. Para onde dirigires os
olhos verás a grandeza, e vida e a morte. A Índia, avó do
gênero humano, sem o seu tifo e o seu cólera invadiria o
mundo. Vês aquele fantasma que caminha adiante daquela
extensão quadrada de terra seca no centro, verde nos
extremos: Pois é Cam. Aquela terra chama-se África; sob o
seu sol abrasador respira uma raça de homens negros como a
noite, bravos como os leopardos de seus desertos. Chega o
Egito; mais de trinta milhões de homens estão sujeitos ao
capricho da natureza. O Nilo é a sua vida, a sua fortuna, o
seu celeiro. Se o meu hálito secasse os ignorados mananciais
de onde brota aquele rio, em breve Elefantina, Alexandria,
Hormópolis, o Cairo e outras vinte mil cidades seriam um
montão de ruínas; os seus férteis campos, os seus formosos

470
jardins, um deserto seco e estéril. O Egito passou por sua vez
com suas pirâmides, seus obeliscos, seus desertos, seus
vergéis e seu Nilo fecundante.
Outro fantasma apareceu no espaço arrastando seu
longo sudário pela terra e, com o olhar fito num ponto
longínquo que resplandecia como o mar banhado pela lua.
Era Jafet. Seguiu-o a Europa: a Itália foi estendendo o belo
panorama do seu solo compreendido entre o Adriático e o
mar Tirreno; Manta com seu lago resplandecente; Nápoles
com o seu radiante golfo; Pompéia, vítima do Vesúvio;
Cures, pátria de Numa Pompílio; Roma, senhora do mundo,
rainha da arte, recostada sobre o Tibre; Caudion, a das
forças caudinas; Grotona, a dos homens esforçados, e cem
mais que passaram coroadas de glória resplandecente e de
formosura, impregnadas de perfumes, ante o dolorido olha de
Jesus.
O arcanjo, com o braço estendido, fazia girar o mundo.
Por fim passou a Europa, antiga, apresentando aos
olhos divinos de Jesus a Gália, a Germânia, a Panónia, com o
seu Danúbio, a Sarmácia e as Ilhas Britânicas.
O mundo antigo tinha girado ao redor do Himalaia.
Mas o arcanjo permanecia ainda com o braço
estendido, e outra vez se ouviu sua voz, atroando o espaço.
- Olha, lhe disse, vês aquela imensidade de água que
caminha para nós? Pois esse mar chamar-se-á o vasto
Oceano. Um homem atrevido atravessará essas imensas
solidões de água. Os sábios lhe darão o apodo de louco; mas
o louco dará um mundo novo ao mundo velho.
E a América passa também com seus bosques
impenetráveis, seus rios que parecem mares, suas majestosa
cataratas, suas férteis planícies, seu Chimborazo, seu Niágara

471
e seu Mississipi, suas cordilheiras, seus Andes, e sua
poderosa vegetação.
- Essa terra ignorada tem as entranhas de ouro; é rica
até o inverossímil; um aventureiro conduzirá às suas praias
milhões de homens impelidos pela cobiça, tornou Lusbel.
Pois bem, tudo o que viste me pertence: é teu se ajoelhado
aos meus pés me adorares.
Jesus levantou os olhos ao céu. Depois abrangeu com
um olhar compassivo o arcanjo tentador, e, com voz doce e
melodiosa falou:
-Não tentarás o Senhor, teu Deus. Adorarás o Senhor
teu Deus, e só a Ele servirás.
Então estremeceram as entranhas do monte. Um grito
espantoso atroou o espaço, abriu-se a terra, e o arcanjo
tentador caiu com estrondo nos seus profundos abismos,
soltando uma blasfêmia horrível.
Jesus ajoelhou-se. Duas lágrimas lhe deslizaram dos
olhos; erguia ao céu compassivo o olhar. Sua doce voz
também ergueu-se à mansidão de seu eterno Pai, dizendo:
- Perdoa ao soberbo. Da us fronte imaculada brotava a
puríssima luz da manhã, e o orgulho submergiu nas
profundidades do abismo. Perdoa ao soberbo.
Cessou a santa voz.
A aurora estendeu suas nacaradas cores e as aves
começaram o seu canto de boa vinda.
Jesus continuava orando. Quando o primeiro raio do sol
dissipou as trevas achava-se de joelhos sobre um alto pico
dos montes de Judá.

LIVRO DUOCÉCIMO

472
O PASTOR DAS ALMAS

CAPÍTULO I

A NOVA LEI

Chateaubriand disse: “Jesus Cristo apareceu no meio


dos homens cheio de graça, verdade e doçura, porque veio a
ser o mais desgraçado de todos os mortais. Suas palavras
comovem; todos os seus prodígios fá-los em favor dos
miseráveis, dos desgraçados aflitos”.
Jesus, depois do deserto, encaminhou-se para a
Galiléia. Sua santa missão vai começar.
Humilde pastor de almas, busca por toda a parte a
ovelha desgarrada para a reconduzir ao redil. Para encarnar
os seus preceitos no coração dos desgraçados, escolhe o
apólogo ou a parábola. A natureza é o grande livro que se
abre diante os olhos do povo.
Para onde quer que dirija os passos, uma multidão
sedenta de ouvir a autoridade da sua palavra, ansiosa de
escutar a doçura da sua voz e de sentir a consoladora luz do
seu olhar, o rodeia com amor e lhe chama seu Mestre, seu
Deus.
Nos lábios do santo Peregrino nunca se esgotam as
palavras de consolação. Sua eloquência apostólica busca os
similes nos objetos que o cervam, para que aquelas naturezas
simples o compreendam.
Apresenta o menino como modelo de inocência; a
viúva pobre que deposita dinheiro na urna das esmolas, como
exemplo de caridade. Vendo as flores dum prado, exorta o
povo a que confie na Providência, que mantém as plantas e

473
alimenta as tenras avezinhas. Em presença dos frutos
sazonados dum campo, ensina a julgar o homem pelas suas
obras.
Na primavera assenta-se sobre uma colina e instrui a
multidão que o rodeia, comparando os objetos que se
estendem ante os seus olhos.
Mas não adiantemos a marcha dos sucessos.
Jesus, depois do deserto tornou a Nazaré, sua pátria.
Era o dia de sábado, e encaminhou-se para a sinagoga. Os
sacerdotes deram-lhe o livro de Isaias.
Jesus leu onde diz:
“O espírito de Deus está sobre mim. Para dar boas
novas me enviaram; para curar a todos os que crêem de
coração.
Para anunciar aos cativos redenção e aos cegos vista.
Para pôr em liberdada os oprimidos; para publicar o ano
favorável do Senhor e o dia do galardão”.
Jesus enrolou o livro, e devolvendo-o ao sacerdote
assentou-se no meio da multidão que o rodeava.
Por um momento contemplando com amor aquele
povo, no meio do qual tinha crescido. Por toda parte
encontrava rostos conhecidos; mas também por toda parte
observara olhares carregados, como se o repreendessem por
achar-se naquele lugar.
Os murmúrios de desgosto começaram a ouvir-se em
redor do humilde Nazareno. Por fim um profundo e doloroso
suspiro saiu dos divinos lábios do futuro Mártir; e falou desta
maneira.
- Hoje cumpriu-se a Escritura. A profecia de Isaías que
ressoou aos vossos ouvidos, será cumprida.
A dulcíssima voz de Jesus penetrou em todos os
corações.

474
O Filho de Maria continuou a falar-lhes, e a força
misteriosa das suas palavras maravilhava-os.
- Não é este o filho de José, o carpinteiro?
perguntavam.
- Se é, como diz, o Messias, porque não faz entre nós o
que contam que fez em outras partes? tornou outro.
- Dizem que cura os cegos.
- E os possessos...
- Que o poder da sua palavra levanta os paralíticos do
seu leito...
- Nas bodas de Canaã converteu a água em vinho,
exclamava outro.
- Se fosse certo tudo que dizem, fa-lo-ia na sua pátria...
- Como há de ser um profeta o filho de um carpinteiro?
- Chama-se o Cristo.
- Nada bom sairá da Galiléia, disseram as Escrituras.
Não é ele Galileu?
Jesus escutava com infinita bondade todos estes
comentários.
Por fim falou desta maneira, e à sua voz extinguiram-se
os murmúrios:
- “Em verdade vos digo que nenhum profeta é aceito na
sua pátria. Muitas viúvas havia em Israel no tempo de Elias,
quando se fechou o céu por três anos e seis meses, quando
houve uma grande fome por toda a terra. Mas a nenhuma
delas foi enviado Elias senão à viúva Sarepta, filha de
Sedônia. Muitos leprosos havia em Israel no tempo de
Eliseu, o profeta: mas nenhum deles foi limpo senão
Naaman, da Síria”.
Os nazarenos, indignados ante a verdade destes
exemplos que Jesus arrancava da história para repreender a
sua incredulidade, começaram a ameaçá-lo. A doçura de

475
Cristo irritava-os, chegando por fim no seu cego furor a
expulsá-lo da Sinagoga.
Jesus foi arrastado pela multidão ao cume de um monte.
Algumas mãos ímpias empurraram-no para o precipitarem no
abismo. Porém Ele, sereno ante o perigo, humilde ante o
insulto, tranquilo ante a ameaça, abarcava com um
dulcíssimo olhar aquela turba louca, rogando em silêncio a
seu santo Pai por ela.
O poder da sua mansidão humilhou os soberbos. Cristo
passou pelo meio deles e; com passo firme, começou a
descer pela encosta do abismo, por um lugar por onde
homem alguma se tinha atrevido a baixar.
Alguns dias depois chegou a um ponto situado no
extremo setentrional do lago de Genezaré ao povoado de
Cafarnaum, isto é, da consolação. Ali sara um
endemoninhado, e cura das febres a sogra de Simão.
O povo atropela-se para ver o divino Mestre.
Todas as tardes, à hora em que os últimos raios do sol
poente se estendem sobre o tranquilo mar de Tiberíades,
Jesus, sentado numa rocha, rodeado duma multidão sequiosa
das suas palavras, que penetravam em todos os corações,
chama a si os aflitos, os desgraçados.
Oh! Quantas recordações da sua doce e infinita
bondade conservam as santas ribeiras daquele lago escolhido
por Deus! Ali acudiam os enfermos que saravam só pelo
poder da palavra do Redentor. Ali foi onde disse ao
paralítico: “Levanta-te, pega no teu leito, e vai para tua
casa”. E o paralítico levantou-se e pegou no leito, dando
graças ao Deus cuja bondade infinita acabava de reanimar a
sua inerte matéria.
Ali também foi onde uma tarde mandou lançar as redes
a Simão Pedro, e as redes saíram das águas repletas de peixes

476
a ponto de se romperem as malhas. E dois barcos se
encheram quase até se afundarem nas águas.
Então Simão Pedro, absorto ante o prodígio que tinha à
vista, lembrando-se de que na noite antecedente havia
lançado inutilmente as redes ao lago, caiu aos pés daquele
Homem maravilhoso, e pondo a fronte no pó, exclamou com
medroso acento:
- Senhor, perdoa os meus pecados!
Jesus então estendeu a mão protetora sobre aquela
cabeça que se humilhava, e disse:
- Nada temas. Chamas-te Simão, chamar-te-ás Pedro, e
daqui em diante serás pescador de homens.
A fama e os milagres de Jesus, estenderam-se com
prodigiosa rapidez pelas doze tribos.
Entretanto o ungido do Senhor recrutava nas ribeiras de
Genezaré os seus apóstolos, os modernos propagadores da
sua nova lei. Rudes pescadores haviam de comover o mundo
com o poder da palavra, sempre inspirada pelo divino
Mestre. A Pedro segue André, seu irmão. Mais adiante os
filhos de Zebedeu vêm passar Jesus, na ocasião em que se
ocupavam a consertas as redes. Jesus chama-os, e Tiago e
João abandonam seu pai para seguirem o Homem cujas
palavras arrebata, cujo olhar seduz.
Pouco depois, seguido sempre por toda parte da
multidão, Jesus detém os passos no cume de um monte.
Ali escolhe os seus apóstolos: Pedro, André, João,
Tiago, Filipe, Mateus, Tiago de Alfeu, Simão, chamado
zelador, e Judas Iscariotes, que mais tarde devia vender o seu
Mestre.
Estes foram os homens venturosos escolhidos pelo
Salvador do mundo. Homens imortais que, com a palavra

477
regeneradora nos lábios, percorreram mais tarde a terra em
busca do martírio.
Jesus os conduziu a um plano. Sentou-se sobre a terra
do campo e, abrangendo com olhar bondoso os soldados da
sua nova lei, começou a falar-lhe deste modo:

CAPÍTULO II

AS BEM AVENTURANÇAS

Bem-aventurados os pobres, porque deles é o reino dos


céus.
Bem-aventurados os que agora tendes fome, porque
sereis fartos.
Bem-aventurados os que agora chorais, porque rires.
Bem-aventurados sereis quando os homens vos
aborrecerem e apartarem-se de vós e vos ultrajarem...
Jesus inclinava de vez em quando a radiosa fronte para
o chão. Mas em breve tornava a ouvir-se a sua dulcíssima
voz que dizia:
Aí de vós os que estais fartos, porque tereis fome!
Aí de vós os que agora rides, porque chorareis e
gemereis!
Mas digo-vos a vós que me ouvir: Amai os vossos
inimigos, fazei bem aos que vos querem mal.
Bendizei os que vos maldizem e orai pelos que vos
caluniam.
Ao que vos ferir numa face, apresenta-lhe também a
outra e ao que vos tirar a capa, não lhe impeçais levar
também a túnica.
Daí a todos os que pedirem; e ao que tomar o que é
vosso não lhe torneis a pedir.

478
O que quiserdes que façam convosco os homens, isso
mesmo fareis vós com eles.
Se amardes os que vos amam, que merecimento tereis?
Se fizerdes bem, aos que vos fazem bem, que
merecimento tereis?
Se emprestardes àqueles de quem esperais receber, que
merecimento tereis? Os pecadores também fazem isto.
Amai, pois, os vossos inimigos, fazei bem, daí
emprestado sem esperar por isso nada, e o vosso galardão
será grande e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bom
até para os ingratos e maus.
Sede, pois, misericordiosos como vosso Pai é
misericordioso.
Não julgueis e não sereis julgados, não condeneis e não
sereis condenados, perdoai e sereis perdoados.
Daí e dar-se-vos-á medida boa e apertada; porque com
a mesma medida com que medirdes, se vos tornará a medir.
Por que como podereis dizer: deixa-me, irmão, tirar-te
o argueiro do teu olho, não vendo tu a trave que há no teu?...
Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e depois verás
para tirar o argueiro do olho de teu irmão”.
Sublime doutrina, digna somente de um Deus que
desceu do paraíso para derramar o seu sangue pelo homem e
fazer da raça humana uma família.
Todos filhos de Deus, todos irmãos; eis aí uma frase
que encerra por si só um poema de indefinível ternura, de
inesgotável amor.
Jesus depois de instruir os seus discípulos, entrou na
cidade de Cafarnaum, onde curou o criado do centurião
romano.

479
Cristo, incansável no desempenho da sua sublime
missão, procurava com terna solicitude os desgraçados para
chorar com eles.
A viúva de Naim vê levantar-se o cadáver de seu
adorado filho. A mão de Jesus havia tocado o féretro, e a sua
voz tinha dito: “Levanta-te”.
- Deus visita o seu povo, exclamou a multidão absorta
ante tão grande milagre.
- Um grande Profeta se levantou entre nós, exclamaram
os discípulos em voz baixa.
A fama deste milagre correu até os confins da Judéia.
João Batista ouviu no seu cárcere o assombroso
acontecimento que preocupava o ânimo dos israelitas e
mandou dois dos seus discípulos em busca do Messias.
- És tu o que há de vir, ou esperamos outro? lhe
perguntaram.
- Dizei a João o que ouvistes e vistes: que os cegos
vêm, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos
ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres anuncia-se o
Evangelho.
Um dia Jesus encaminhava-se para a Galiléia, e era
preciso atravessar a hostil Samaria. Os raios abrasadores do
sol caíam perpendicularmente sobre a terra.
Jesus sentiu-se fatigado.
A cidade de Ceguem distava coisa de um quarto de
hora do lugar em que o Nazareno se achava. Era esta herdade
que Jacó tinha dado a José, comprada aos filhos de Hemer
por cem cordeiros.
Junto desta herdade havia um poço de água viva,onde
as mulheres de Siquém iam buscar água. Jesus ficou junto
daquele manancial. Os discípulos dirigiram-se à cidade em
busca de mantimentos.

480
Jesus ficou só. Um pensamento profundo germinava
naquela fronte divina. Seus grandes olhos azuis, fitos na
profunda abertura do poço, pareciam ler na transparente e
clara superfície do manancial algum mistério.
De súbito estremeceu. Sua nobre cabeça levantou-se
como a copa da galharda palmeira depois do último sopro do
furação. Volveu um olhar cejio de perdão e bondade para
Siquém, donde caminhava em direção à fonte uma mulher
com uma ânfora de barro à cabeça e uma comprida corda
enrolada na esbelta cintura e no braço esquerdo.
Era uma formosa moça: teria vinte e quatro anos... Seus
olhos resplandeciam; seus lábios grossos e nacarados
respiravam sensualidade e paixão.
As faces, morenas como as da Sunamita e mórbidas
como as de Abigail, ostentavam saúde; descobriram que
aquela mulher encerrava um coração faminto de prazeres.
Longas tranças de negros cabelos lhe caíam sobre os
redondos ombros da túnica de lã cor de amaranto.
Aquela mulher chamava-se Sar. Os Evangelhos só a
consignam com o nome de sua pátria. Chamava-se a
Samaritana.
Sara, chegando ao poço pouso o cântaro, dirigindo um
olhar desdenhoso para aquele homem silencioso que a
contemplava com olhos compassivos. Seu traje e seu
penteado mostram claramente a sua raça.
Era um Galileu, gente que os samaritanos olhavam com
profundo desprezo. Sara encheu a ânfora, e Jesus disse-lhe
com doce acento:
- Dá-me de beber.
Sara, a formosa Samaritana, perguntou com admiração:
- Como! Tu... um judeu, pedes água a uma mulher de
Samaria! Quando teve o teu povo trato com o meu?

481
- Se soubesses, respondeu Jesus com doçura, quem é o
que te diz “dá-me de beber”, tu lhe pedirias e ele te daria
água viva.
A mulher samaritana volveu um olhar em torno de si
como procurando um objeto, e, não o encontrando, fez esta
pergunta com riso mofador:
- Não tens com que tirá-lo e o poço é fundo. Onde está
essa água que me ofereces? És tu, por ventura, maior que
nosso pai Jacó, que nos deu este poço?
- Todo aquele que bebe a água deste poço, replicou
Jesus, tornará a ter sede: mas o que beber da água que eu lhe
der, jamais terá sede.
A mulher, escutando absorta aquelas palavras, e quase
subjugada ante a majestade de Jesus exclamou:
- Senhor, dá-me dessa água, e assim evitarei vir todos
os dias a este manancial, tornando para Siquém fatigada com
o peso do cântaro.
O Salvador quis mostrar àquele mulher que Ele era
mais que homem.
- Vai, lhe disse, chama teu marido, e vem com ele.
- Não tenho marido, respondeu Sara, baixando o rosto
para o chão, envergonhada ante o olhar puríssimo de Jesus
que lhe recordava a sua vida passada.
- Bem disseste, tornou o Nazareno; não tens marido;
porque cinco tiveste, e o que agora vive contigo não é teu
esposo.
A Samaritana levantou os olhos, confusa, para olhar
aquele homem que parecia saber sua história silenciosa.
- Senhor, vejo que és profeta, lhe disse. Eu sei que vem
o Messias que se chamará Cristo e, quando vier, nos
declarará todas as coisas.

482
Jesus, que lia no coração daquela pecadora um
vivíssimo desejo de conhecer a verdade, disse-lhe
simplesmente estas palavras:
- Eu sou o Messias, que falo contigo.
Sara caiu aos pés do Redentor como se a luz de seus
divinos olhos a houvesse deslumbrado. Afogados soluços lhe
saíam do peito, e um mar de lágrimas lhe corria pelas
morenas e frescas faces.
- Mulher, continuou Jesus, não está longe o dia em que
um só Deus será adorado em toda a redondeza da terra, dum
modo perfeito. Os sacrifícios dos samaritanos e dos judeus
serão abolidos. A fé da nova lei se derramará por toda parte
como a benéfica chuva sobre os campos para os fecundar. O
Deus verdadeiro não se achará sujeito ao lugar que escolham
os homens. Estará por toda parte: a errante caravana, ao
atravessar as secas areias do deserto, o encontrará, se o
buscar. O pobre náufrago, no meio dos irritados mares, e
encontrará, se n’Ele confiar. O enfermo prostrado no leito da
dor, o perdido caminhante, o aflito, o faminto, o deserdado,
todos enfim, os que vivem sobre a terra, o encontrarão se o
invocarem com fé; porque Ele é o verdadeiro Deus e está em
todas parte; no ar tíbio que mexe o melancólico penacho da
palmeira, no cálix duma flor, na fonte que sussurra ao pé das
colinas, no canto misterioso das aves, nos radiantes raios do
sol que iluminam e vivificam. Porque é espírito, e é mister
que o adorem em espírito e verdade.
Ainda permanecia aos pés de Jesus a Samaritana,
escutando as palavras do divino Mestre, como se fosse o eco
harmonioso de uma música celeste, quando chegaram os
discípulos que tinham ido a Siquém comprar víveres.

483
A presença de uma mulher naquele lugar admirou-os
mais ninguém se atreveu a dizer ao Mestre: que perguntou
ou que diz ela
Sara, ao ver-se rodeada dos apóstolos, abandonando o
cântaro, foi precipitadamente à cidade participar o venturoso
encontro que tivera na herdade de Jacó.
- Vinde, clamava Sara a todos os que encontrava pelo
caminho. Vinde ver um homem que revelou tudo o que tenho
feito, na minha vida: será acaso o Cristo.
Enquanto esta mulher alvoroçava os habitantes de
Siquém que, cheios de curiosidade se encaminhavam para a
fonte de Jacó, os Apóstolos, apresentando ao seu Mestre as
provisões, lhe pediam que comesse, mas Jesus rejeitava a
comida, dizendo:
- Eu tenho para comer um manjar que vós não sabeis.
Só um murmurou em voz baixa:
- Ter-lhe-ia trazido comida aquela mulher?

LIVRO DÉCIMO TERCEIRO

CAPÍTULO III

A SAMARITANA

Alguns dias depois, a mulher de Siquém, à quem havia


falado Jesus no poço de Jacó, estava sentada em sua casa e
chorava. A voz poderosa e triste, severa e ao mesmo tempo
consoladora que lhe havia dito: “Oh! Se conhecesses o dom

484
de Deus!” Aquela voz ressoava-lhe incessantemente nos
ouvidos, e retraía-lhe o coração dos longos extravios.
Sonhos de inocência desvanecida, secretos
arrependimentos, não confessados ainda a ela mesma, lhe
perturbavam o espírito. Repassava na imaginação os seus
dias que se tinham deslizado entre a febril embriaguez das
paixões, e o rubor corava-lhe por um momento a face, que
logo empalidecia de novo com a amargura das recordações.
E aquele pobre coração, por tanto tempo cheio dos
sentimentos tumultuosa da terra, volvia-se apesar seu, para o
que tanto amava, porque a graça o tinha surpreendido no
meio duma afeição mais profunda e ardente que quantas até
então o tinham agitado; e o seu coração palpitava ainda sob o
peso dos novos pensamentos que lhe germinavam no peito,
junto dos que não a tinham de todo abandonado, e a sua alma
gemia na turbação e na angústia.

II

- Safan não virá, dizia consigo no meio da inquietação


do espírito; ele foi vender seu gado e a herança para se
estabelecer para sempre ao meu lado. Eu exigi-lhe esta prova
de amor. Queria eu que tudo deixasse por mim, como eu teria
deixado por ele todos os bens da terra... mas como renunciar
aos do céu, agora que brilharam a meus olhos! E agora, que
vai ele pensar, achando-me tão outra do que me deixou?
Mas, prosseguia, e crescia a palidez do seu rosto e o seu
seio se levantava mais agitado, quem pode prever se voltará?
Um ano de constância talvez o tenha cansado. Por outra
parte, uma esposa jovem e bela, ornada sem dúvida, ai! de

485
toda a sua inocência, o aguarda ao lado de seu pai... Quem
sabe? Talvez não volte mais. Melhor seria isto que termos
que separar-nos... para não nos vermos mais. Oh, meu Deus!
Mui fraca sou ainda! Custar-me-á a vida!

III

Assim falava Sara, a bela samaritana, conhecida até


então em Siquém por seus infortúnios e pelo atrativo das
suas graças, às quais poucos homens sabiam permanecer
insensíveis. Mas hoje o formoso semblante está escurecido
pelas lágrimas, e Sara vê-se abismada em amargas
recordações juntas com previsões ainda mais amargas.
- Ah! Se ele houvesse escutado, como eu, a voz de
Cristo, sua alma se teria certamente comovido como a minha,
e ambos juntos seguiríamos o Salvador, para escutarmos
sempre as palavras que fazem levantar os mortos dos seus
sepulcros e os pecadores do abismo dos seus pecados. Mas
querer-me-á acreditar, a mim, pobre mulher, sem ciência
nem autoridade? Oh meu Deus! Eu não espero senão a Vós!

IV

Ao cair daquele dia, depois duma lua de ausência,


apareceu Safan, à porta da casa de Sara, e abriu-a sem
dificuldade. Ao entrar na habitação baixa em que morava a
jovem, deixou a aljava e o bordão de viagem, e, dirigindo-se

486
a ela, disse-lhe com um tom que manifestava uma forte
comoção.
- Sara, já me tens de volta ao teu lado... Disse adeus,
como tu quiseste, a meu pai, a minha pobre mãe, a meus
irmãos, ao teto que me viu nascer, à que me estava destinada
para esposa. Rompi todos os laços que podiam afastar-me de
ti... Vem, Sara! Faça-me o teu amor esquecer tudo quanto
deixei por ti!
Sara permanecia trêmula, longe dele, e não caminhava.
As sombras começavam a subir pelo horizonte: um
derradeiro raio de sol ao morrer atravessou as grades da
janela, iluminando os negros cabelos de Sara e dourando-os
com um brilhante reflexo. Mas seu rosto estava na escuridão.
Aproximou-se Safan e olhou-a: estava inundado de lágrimas.
- Que sucedeu? tornou um tanto bruscamente o jovem.
Donde vem tão estranha recepção? Não, tu não me recebias
assim... Foi talvez demasiado longa a minha ausência para a
constância dum coração de mulher? Fala, ao menos.
Um suspiro de Sara foi toda a resposta. Estas palavras
do amante fizeram-lhe conhecer toda a profundidade da sua
abjeção, pois podia crê-la capaz de o esquecer tão depressa.
Safan examinava-a com olhos de suspeita. Continuou,
pois, e a sua voz trêmula na cavidade do robusto peito:
- Dize-me, obrei mal em deixar tudo pelo teu amor? ...
Oh! Se assim o pudesse crer... di-lo, di-lo, Sara! Tão
depressa vais vingar meus pais e a minha jovem prometida
do inesperado abandono em que os acabo de deixar? Meu
pai, a quem Deus abençoe e console, meu pai, o sábio ancião,
já me disse que tu os vingarias um dia a todos; mas eu, na
minha cegueira e no meu amor insensato, não quis crê-lo. E
tu és a que tão depressa deves convencer-me? - E olhava

487
Sara, e os seus olhos exprimiam uma desconfiança mista de
cólera e de dor.
- Safan! exclamou ela. Eu amo-te sempre! Oh! sim,
sempre o bastante para morrer por ti se tiveres necessidade
da minha vida.
- Então!... disse Safan.
- Durante a tua ausência passaram-se aqui, nestes
lugares, algumas coisas... das quais eu teria querido que
fosses testemunha, Safan, e estas coisas me deram a conhecer
que outros pensamentos, mui diferentes dos da terra, devem
encher o espírito das criaturas de Deus.
Safan em pé, com os braços cruzados e contraídos,
olhava aquela mulher comovida e palpitante e, não sabendo
ler no fundo da sua alma que casta de agitações a
perturbavam, num terrível acesso de furor exclamou:
- Ah, coração de mulher, mais inconstante que as ondas
movediças do mar! Que extravio de pensamentos, que
vertigem se apoderou de mim para dar crédito às tuas
palavras? Oh, desdita! Sou um insensato!
- Safan, querido Safan, não me amaldiçoes, exclamou
ela pondo-se de joelhos diante dele e beijando-lhe as mãos
com imensa dor. Não me oprimas, não me mates com esse
menos prezo que leio nos teus olhos. Não, não creias, não
mudou o meu coração: é teu, amo-te a ti unicamente, e nunca
o possuirá outro. Mas escuta: brilhou a minha vista uma nova
e súbita luz que me fez ver a minha pequenez e miséria.
Compreendi, senti mistérios desconhecidos, cuja sublimidade
me aterrou. Uma voz me falou. Ó, Safan, se tu também
conhecesses o dom de Deus!.
- Que queres dizer-me? Essas palavras são para mim
incompreensíveis.

488
V

Safan tinha-se deixado surpreender por carinhosas


palavras e uma mulher bela e apaixonada. Tinha-se
entregado sem defesa às suas sedutoras graças. Subjugado
pelos seus encantos, nada lhe havia custado a resolução de
romper por ela todos os vínculos que unem os homens entre
si. Tudo tinha rompido bruscamente e sem pensar, a fim de
seguir sem peias as suas inclinações.
Quando fazemos um sacrifício das nossas mais
queridas e inocentes afeições para as pormos aos pés de um
ídolo que cremos nos aparta deles, sentimos o maior
tormento que pode devorar a alma do homem. Safan viu
naquele momento sua velha mãe chorando e dizendo-lhe o
último adeus; seu pai, enfermo e oprimido de pesares, e seus
irmãos, fiéis aos antigos costumes, seguirem-no com severo
olhar, ao dizer-lhe o último adeus. Tornava a ver também a
sua prometida esposa, a bela e encantadora Ilida, que
escondia as lágrimas á sua partida.
Sem o saber, trouxera a Siquém um coração irresoluto
com imagens de uma pura felicidade e recordações e
remorsos que queria esquecer nos fogos de uma paixão
ardente. Ai! Sara viu num só olhar tudo o que se passava no
coração de Safan, pois sentia-se duplamente iluminada pelo
amor e pela dor.

VI

- Ó, Safan! exclamou chorando com amargura. Porque


não te opuseste, quando, louca, eu, te exigia tão grandes

489
sacrifícios? Eu queria pagar com uma vida inteira de amor,
com uma existência toda consagrada a ti, pois eu amo-te
como nunca, como jamais amei.
- Se tu me amasses...
- Oh, meu Deus, sim, eu amo-te! Mas, continuou
baixando os olhos cheios de lágrimas, o Cristo, o Salvador
desceu à Siquém; fez-nos ouvir a sua palavra divina, e a sua
voz comoveu-me a alma até ao mais profundo dela.
Safan sorriu-se de modo estranho.
- Já não me acreditas, tornou Sara, oprimida por um
grande peso. Perdi o direito de persuadir-te. Não o teria tido
senão para tua perdição? Ah! Porque não te achavas aqui?
Por que me deixaste? Terias visto e sentido como nós o
poder irresistível que exerce. Ele falou e todos emudeceram
para escutá-lo. Curou aqueles que sofriam, e o seu límpido
olhar penetrava até o fundo da consciência e perturbava-a
como um raio do sol perturba a água, à qual a um tempo
aquece e ilumina:
- Mas, disse Safan bruscamente, onde nos levará este
discurso?
- Pois bem, replicou Sara com voz segura: reconhecei a
minha culpa e dela me arrependi.
- Com quem? exclamou Safan em tom de profundo
desprezo.
Duas lágrimas saltaram dos olhos de Sara a este insulto
inesperado.
- Tu não me acreditas! Ah! bem o mereci. O terrível
castigo dum procedimento insensato é o não poder inspirar
confiança. Que direi eu agora, se não dás o mínimo crédito às
minhas palavras? Vamos procurar Eliezer: as suas simples
palavras talvez te convençam; mas ia-lo que chega.
VII

490
Com efeito, um ancião inclinado sob o peso dos anos
chegava dos campos. Era Eliezer, tio de Sara e pai dos jovens
que sucessivamente tinha morrido depois de a terem tomado
por esposa. Eliezer era um ancião entendido, singelo nas suas
palavras, e cujas ações tinham sido boas diante de Deus.
Suas cãs eram por todos respeitadas, porque a experiência
consumada é a coroa dos velhos e a sua glória consiste no
temor de Deus.
- Safan, meu filho, bem-vindo seja! disse ao mancebo
estendendo-lhe a rugosa mão.
Levantou-se este com respeito à velhice. Mas não
respondeu. Este afetuoso acolhimento não deixou de o
surpreender, e causou-lhe certa sensação no coração; porque
Eliezer, sabendo que um filho de Israel não podia ser esposo
duma samaritana, tinha vituperado fortemente as sua relações
com a sobrinha. Há bondades que fazem pressentir a
desgraça.
-Posso o teu regresso restituir a paz a Sara! continuou o
velho: oito dias há que não sabe senão chorar, e os seus olhos
convertem-se em rios de lágrimas.
E sem dúvida conhecerás a causa de tão profundo
pesar? disse em amargo tom o jovem hebreu.
- Ah! A causa, disse Eliezer sentando-se junto de Sara,
a causa desta pena é e será a alegria de muitos: um homem
apareceu entre nós, e a sua boca ensinava a sabedoria. A
graça divina e a força fluíam dos seus lábios, como cai o
orgulho da manhã sobre a terra. Ele derramou a luz sobre
quantos o escutaram com reto e sincero coração. A Sara
devemos a sua vinda. Bendita seja ela para sempre!
Acrescentou lançando sobre a bela Samaritana um olhar
benévolo e paternal. Bem sabes, continuou que eu e ela
sofremos juntos muitos pesares, e eu a acusava alguma vez

491
de ter esquecido muito depressa seus esposos por um novo
amor... Mas se sofri muito por ela, por ela também me veio a
consolação. Bendita seja! Por ela, Safan, se levantou de
repente diante de mim a esperança de outra vida no sepulcro.
Já se dissiparam os meus temores e se aclararam as trevas
que me enchiam de horror: a velhice, meu filho, já não é para
mim aquele mal débil e pesado que conduz à morte. É o
áspero e duro da verdade, mas iluminado por um raio do
futuro, que conduz a uma vida imperecedora. Oh, minha
filha! Bendita sejais para sempre!

VIII

Safan olhava Eliezer, que, perdido nos seus


pensamentos, parecia penetrado para com Sara de um
inefável reconhecimento. O jovem hebreu não compreendia
as suas palavras. Eliezer prosseguiu.
- Terão passado pouco mais de oito dias. Minha filha
tinha saído da cidade à sexta hora do dia, para ir, segundo ela
me contou, tirar água da fonte de Jacó. Um homem estava
sentado junto do poço. Parecia fatigado, e descansava à
sombra das palmeiras; no seu modo de vestir fácil era
reconhecer a sua nação, era um Galileu; seu ar era plácido e
majestoso; e só com ver a sua nobre serenidade, vinham
vivos desejos de ajoelhar a seus pés. Isto foi o que Sara nos
disse ter sentido, e depois o experimentei eu mesmo. Quando
minha filha se aproximou da fonte, o estrangeiro pediu-lhe
com acento cheio de doçura que lhe desse de beber.
Admiranda Sara pela confiança que lhe manifestava, pois, já
sabeis que o ódio divide as nossas duas nações, respondeu-
me: “Senhor, tu és judeu, como me pedes de beber, a mim

492
que sou samaritana? Os judeus não tem comércio com os
samaritanos.
Então Ele respondeu, e esta resposta comoveu
profundamente o coração de minha filha: “Se tu conhecesses
o dom de Deus, e se soubesses quem é que te diz: dá-me de
beber, tu mesma talvez lho houvesses pedido, e ele te daria
água viva”.
- Que quer isso dizer? interrompeu Safan. Tinha, pois,
esse homem, sendo viajante, um vaso bastante grande para
tirar água do poço de Jacó? E duma profundidade
considerável...
- Isso mesmo é o que lhe fiz notar, disse por seu turno
Sara, e respondi-lhe com surpresa: “Senhor, se não tens nada
com que tirar água, e o poço é tão profundo, donde terias
tirado água viva? És tu maior que nosso pai Jacó, que nos
deu este poço, de cuja água bebeu ele mesmo e também seus
filhos e seus rebanhos?” Mas ele me respondeu: “Qualquer
que beba desta água terá ainda sede, mas o que beber da que
eu lhe der se converterá para ele num manancial que brotará
dele até à vida eterna.
E Sara ficou pensativa, como se aquela voz e aquelas
palavras ainda lhe ressoassem nos ouvidos.
O ancião baixando a voz e dirigindo a palavra a Safan,
que permanecia imóvel com aquela narração, disse:
- Sara sentia-se perturbada no seu interior, e lhe disse
com uma espécie de movimento involuntária:
“Senhor, dá-me dessa água para que eu não tenha mais
sede, nem haja de vir aqui mais para a tirar”. E o estrangeiro
lhe disse então: “Vai chama teu esposo, e volta aqui.
Sara, permanecia absorta em profundas reflexões,
seguia com atento ouvido cada uma das palavras de Eliezer,
e exclamou de repente:

493
- Sim, Safan, o Senhor me disse que te chamasse, e
ainda que deva custar-me à felicidade e o gozo da minha
vida, eu te chamarei com todas as vozes do meu coração, até
ao dia em que me respondas: Aqui me tens.
E Sara escondeu o rosto entre as mãos; as lágrimas
corriam-lhe através dos formosos dedos.
- Foi-me preciso dizer-lhe a verdade, e confiei-lhe com
vergonha e rubor, prosseguiu. “Eu não tenho esposo”, lhe
disse, e Ele me respondeu. “Com razão dizes que não tens
esposo”; e a voz do que assim me falava era uma voz cheia
de harmonia compassiva. E eu exclamei como perdida:
“Senhor, eu bem vejo que tu és um profeta”. E fiquei
aniquilada diante d’Ele. Estava abismada de pasmo pelas
revelações que acabava de fazer-me acerca da minha vida
passada, e dos laços que nos uniam, Safan. Todavia, esforcei-
me para recobrar os sentidos, a fim de não perder as suas
palavras, e ainda o ouvi dizer: “Deus é espírito e vida, e é
preciso que os que o adoram o façam em espírito e verdade”.
Safan olhou para o ancião, como para pedir-lhe uma
explicação das elevadas doutrinas que ele não compreendia;
mas Eliezer parecia perder-se abismado nos seus
pensamentos; seus olhos levantados para o céu indicavam de
que natureza eram as suas reflexões. Sara continuou:
- Eu atrevi-me a dizer-lhe, balbuciando: “Sei que breve
deve vir o Cristo ou o Messias. Quando tiver vindo,
anunciará todas as coisas”. Mas, Safan, Ele me respondeu e o
meu coração estremece ao pensá-lo e a minha boca mal ousa
repeti-lo: “Sou eu mesmo. Eu, que te estou falando”.
Safan e o ancião olharam-se; sentiram gelar-se-lhe o
sangue.
- A estas palavras fugi como espantada, e ao mesmo
tempo arrobada de alegria. Deixei ali o meu cântaro, e vim

494
aqui correndo e arquejando e dizendo a quantos encontrava
pelo caminho: “Vinde ver um Homem que me disse tudo o
que tenho feito. É o Cristo, o Messias”.
- E que fizeram os que chamavas? disse Safan. Deram
créditos tão facilmente às tuas palavras?
Sara não respondeu: foi Eliezer o que disse:
- Grande número de habitantes de Siquém, e eu com
eles, saímos pressurosos da cidade, e fomos ao seu encontro.
Ele estava ainda sobre a montanha, rodeado dos seus
discípulos. Ao vê-lo detivemo-nos a alguma distância, sem
nos atrevermos a passar avante. O sol banhava-o com a sua
luz, porém Ele parecia brilhar com raios interiores, mais
fulgurantes que todos os resplendores do céu; os nossos
olhos ficaram deslumbrados com a sua presença. De longe o
ouvimos conversar com os seus discípulos. Eles lhe pediam
que tomasse o alimento que lhe tinham levado; porém Ele
respondia-lhes com imponente gravidade: “Não dizeis vós:
dentro de quatro meses virá a ceifa? Agora vos digo Eu:
Levantai-vos e olhai os campos que já branqueiam e estão
para segar-se. O que segar receberá o seu salário, e colherá
frutos para a vida eterna, para que tão contente fique o que
semeia, como o que lhe colhe as messes”.
- Que queria dizer com isso exclamou Safan, e de que
ceifa queria falar? Não compreendo essas figuras.
- Nas nossas almas é que semeia as suas palavras, e
para o céu sem dúvida que quer colher o fruto, respondeu o
velho samaritano. Ah! se aqui estivesse, Safan! Os que o
ouviram creram n’Ele, porque o poder e a persuasão
manavam dos seus lábios com abundância.
- Permaneceu muito tempo em Siquém?
- Dois dias esteve entre nós. Durante este tempo a sua
palavra divina germinou nas nossas almas, e a metade do

495
povo crê n’Ele. E não pelo que nos disse Sara, senão porque
o vimos nós mesmos, e sabemos que é o Salvador do mundo.
- Safan! O Senhor disse-me que te chamasse. Oh! não
te faças surdo à sua voz.
- A sua voz não chegou aos meus ouvidos, respondeu o
mancebo, e o que me dizem um velho crédulo e uma mulher
que facilmente se impressiona, não pode comover-me. Além
disso, acrescentou como procurando fortalecer-se na sua
incredulidade, o Cristo prometido aos verdadeiros filhos de
Israel como teria conversado por tanto tempo com
samaritanos, cujo culto é para nós abominável? tornou Safan.
- Esquecia-me de dizer-te ainda, tal é a minha
perturbação, que para sair das dúvidas que fizeste nascer no
meu espírito respeito ao nosso culto e à nossa crença, disse
com timidez ao Senhor: “Nossos pais adoram sobre esta
montanha em que nos achamos, e os da tua nação nos dizem
que em Jerusalém é que se deve adorar”. E Ele respondeu-
me: “Crê-me, mulher: breve há de vir o tempo em que vós
não adorareis a Deus nem nesta montanha nem em
Jerusalém: vós adorais o que não conheceis; mas só
adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos
judeus”.
- Disse isso? Murmurou Safan, em cujo peito os
desvarios da mocidade tinha enfraquecido, mas não de todo
extinguido a fé de seus pais; Ele disse a verdade: a salvação
do mundo deve sair do meio do povo escolhido de Deus.
- Também nos disse, prosseguiu Eliezer: “Não julgueis
que Eu tenha vindo para abolir a lei e os profetas. Não vim
para os abolir, senão para os cumprir”. E mandou deixar tudo
para o seguir; mandou viver segundo os pensamentos
elevados do espírito, e não segundo os desejos insensatos da
terra; manda a doçura e o perdão das ofensas; quer o

496
desapego das riquezas, e diz: “Daí ao que vos pede, e não
vireis o rosto ao que quer pedir-vos emprestando. Não peçais
os vossos bens ao que vo-los tirou. Perdoai e sereis
perdoados. Finalmente, o que quiserdes que façam os
homens por vós, fazei-o também por eles”. Esta é a lei que
prega.
- Oh, lei de amor e de mansidão infinita! exclamou o
ancião num rapto de piedosa gratidão. Oxalá não tardes a
reinar no mundo e a derramar por toda parte tuas benignas
influências!

IX

Safan escutava com grande pasmo. Por momentos o seu


espírito parecia interessar-se nestas coisas tão novas para ele,
mas por momentos também meneava a cabeça e se
entrincheirava na sua incredulidade.
- Também nos disse o Salvador, continuou Eliezer:
“Saberás que se disse: Amarás o teu próximo, aborrecerás o
teu inimigo: eu porém digo-vos: amai os vossos inimigos:
fazei bem aos que vos aborrecem: abençoai os que vos
maldizem: rogai pelos que vos perseguem e por aqueles que
vos caluniam.
Safan fez um gesto de comoção profunda. Eliezer
reparou no seu movimento, e continuou.
- O Salvador acrescentava com uma mansidão que se
comunicava à alma, levando a ela a sua doçura e paz; “Vosso
Pai celestial não faz nascer o sol para o bons e para os maus?
E não faz cair a sua chuva sobre os justos e os pecadores?
- Não acabava de cair a sua palavra divina sobre uma
pecadora indigna de ouvi-la? exclamou Sara. Ó tu Safan, ó,
tu, nascido em Jerusalém, filho da promessa! Não te deixarás

497
levar pelo chamamento do Messias quando nós,
amaldiçoados pelo teu povo, repelidos pela lei, nos
levantamos da nossa abjeção para o seguirmos?

Mas Safan permanecia inquieto e indeciso. E de


repente, para fazer vacilar as resoluções da jovem
samaritana, disse:
- Sara, no dia em que me resolva submeter-me a essa
nova lei de que acabas de falar-me, ou ainda tão somente
seguir a lei severa dos meus pensamentos, é preciso que
renuncie ao teu amor, que volte a meu pai, e que lhe diga:
Dá-me agora a esposa que me tinhas prometido.
- Bem o sei, disse Sara, e as lágrimas lhe cobriram o
rosto; ali bem sei que terão de romper-se os nossos laços...
Mas a ti ao menos, teu pai, tua mãe, tua família te acolherá
com gosto... Tu acharás a felicidade numa união pura e santa,
acrescentou redobrando as lágrimas e soluços... Os males não
serão se não para mim, que ficarei só e aflita. Mas eu confio
em que não me faltará valor, e como o Senhor vê a minha
miséria, terá compaixão da sua pobre serva, e abreviará a
duração das suas penas em paga da sua submissão.
- Não Sara, exclamou Safan, voltando com toda a
ternura para aquela mulher a quem amava, e cujas lágrimas
testificavam o amor que lhe tinha; não, não, crê-me, deixa
esses pensamentos demasiado elevados para o teu espírito e
severos em demasia para a minha juventude. Enxuga as
lágrimas. Esqueçamos tudo, o tempo que foge, e os que
podem vituperar-nos, e a nós mesmos! A vida é curta e é
preciso empregá-la segundo o nosso coração e desejo. Adeus

498
por hoje; faze com que amanhã o teu rosto resplandeça como
a nova aurora, e o júbilo renascerá em nosso peito como
renasce cada manhã em toda a superfície da terra.
E Safan afastou-se para romper uma conversação que o
feria no fundo da alma e lhe deixava o coração descontente a
despeito de si mesmo; porque a verdade nunca se mostra de
todo em vão, e a sua vida perturba ao menos aqueles a quem
não esclarece inteiramente. Eliezer, ao vê-lo partir, seguiu-o
com a vista e disse a Sara:
- Valor, minha filha! A felicidade, se é que há na terra,
consiste mais no cumprimento dos deveres que na satisfação
dos desejos.
Mas a velhice ter-se-á esquecido tanto do passado, que
já nem sequer saiba o que a juventude chama felicidade,
quando ela pode também muitas vezes enganar-se neste
ponto? O dever é inflexível como ele mesmo; é de ferro, e
rompe e despedaça o coração como a morte. Força é
aprender a cumpri-lo em todo o seu rigor, mas sem esperar
que se nos converta em prazer. Assim o sentiu Sara, e
chorava copiosamente. Diante de Safan tinha contido a dor;
mas agora a jovem desfazia-se em soluços.
- Oremos, exclamou que Deus dá indubitavelmente à
sua criatura a força necessária para o cumprimento dos
sacrifícios que lhe impõe! Peçamos-lhe a sua graça que dá
força; por mim só, bastante o conheço, não posso fazer mais
que gemer.

XI

O jovem hebreu regressara a Siquém descontente,


voltado o pensamento, sem o advertir, para o que deixara,
pronto a desprezar a mulher por quem abandonara o seu país

499
e todos os seus, disposto a acusá-la pela mínima suspeita,
para desculpar talvez a si mesmo as suas recordações.
Mas a sua vista, a sua beleza, a sua dor, o desejo que
manifestara de romper os frágeis laços que os uniam, tudo
reanimava o seu amor. Ele amava-a perdidamente; e depois,
quando entregava a alma a este amor, a doutrina severa, mas
tão sublime e elevada d’Aquele a quem chamam o Messias;
os remorsos daquela a quem amava, remorsos poderosos para
combater a sua ternura; as palavras e Eliezer; aquela voz
secreta que fala no fundo do coração e sempre protesta
dentro de nós contra as paixões desordenadas, tudo se
mancomunava para introduzir-lhe a perturbação no espírito,
e a sua alma flutuava num oceano de dúvidas e incertezas.
Oh, meu Deus! Só em Vós se encontra o repouso!

XII

Dois dias se passaram durante os quais Safan e Sara


não se tornaram a ver. Safan anda errando pelo campo; tão
depressa procura Sara nos lugares onde muitas vezes a
encontrava, nas planícies ou debaixo das palmeiras da fonte
de Jacó como se entranha na sombra do monte através das
ásperas veredas; conversando consigo mesmo acerca das
palavras que escutou da boca do ancião e de sua filha, mas
depois, cansado do esforço do seu espírito confuso, busca de
novo aquela por cujo amor deixaria ainda outra vez o que já
tinha deixado, e que parecia fugir obstinadamente dele.
Sara, entretanto, constantemente pede, Aquele de quem
vem todo o dom perfeito, que ilumine e faça descer sobre ela
a sua força e socorro. Depois de ter derramado abundantes
lágrimas, depois de ter deposto as suas humildes súplicas aos
pés do Eterno, levanta-te a jovem u’a manhã, chama um

500
criado fiel, faz-lhe tomar sandálias, um nodoso bordão, fala-
lhe longo tempo em segredo, e fá-lo partir antes da aurora,
dizendo-lhe:
- Vê, Micas, informa-te com exatidão, e vem dizer-me
em que lugar poderemos encontrá-lo.
Depois de o mensageiro ter partido, põe-se de joelhos, e
ora ainda longo espaço. Levanta-se, e sai ao encontro do
jovem hebreu.

XIII

- Safan, Deus nos separa, lhe diz com voz que pretende
conservar firme e treme apesar de seus esforços. Minha vida
foi sempre desgraçada: cinco irmãos quiseram um após outro
unir a sua sorte com a minha, seguindo o costume de se unir
o irmão com a viúva de seu irmão para lhe dar sucessores.
Todos cinco pereceram de morte imprevista e violenta: um,
pelo fogo do céu, outro nas águas, os outros na última
guerra... Um filho, doce esperança da minha vida, que
Fanuel, último de meus esposo, me deixara morreu-me
também nos braços... E quem o acreditará? Tantas dores
ainda não me cansaram a alma; e quando Eliezer, a quem os
mesmos judeus chamaram o bom samaritano, te conduziu à
nossa habitação coberto de feridas que te haviam feito uns
ladrões nos desfiladeiros das nossas montanhas, a minha
alma voou inteira para ti. Depois de longa solicitude e
cuidados, quando pudeste ver-me tive a fraqueza de
comunicar-te a minha ternura, e apesar do quanto desgosta
aos teus patrícios uma mulher de Samaria, tive a arte ou
felicidade de fazer-me amar por ti... E amo-te tanto!
Deteve-se, porque o pranto a sufocava.

501
- Pois bem, pois bem! exclamou Safan. Se é uma falta o
amar-se, esta nos é comum! Não posso arrepender-me de
haver-te amado.
- Pois eu arrependo-me, disse Sara através do pranto.
- Arrependes-te! disse Safan. Então tu já não me amas?
- Arrependo-me, e amo-te, Safan. Se tu conhecesses o
dom de Deus!
- Mas qual é esse dom de Deus que vem despedaçar os
corações?
- É amá-lo sobretudo e com todo o amor. É esperar o
seu reino e guardar a sua lei. É, finalmente, Safan, chorar
pelas faltas duma vida culpada, e arrancar o coração se for
necessário, para não cometer outra culpa.
Safan olhou Sara com olhos inquietos e disse:
- Eu não creio no teu arrependimento nem nas tuas
fingidas dores. És ainda demasiado moça para pensares na
penitência e a tua alma demasiado ardente para rejeitar o
amor. O que eu creio é, outro soube agradar-te e que queres
abandonar-me. Podes fazê-lo, Sara, porque não te une
comigo vínculo algum. As leis do teu país e ainda mais as do
meu, que condenam o teu culto, se oporiam a uma união
legítima entre nós. Mas antes de seguires as tuas novas
inclinações,quero que ao menos saibas bem o que fazes, e
qual será a minha sorte. Escuta-me! Meu pai e minha mãe,
depois de terem empregado todos os seus inúteis esforços
para vencerem a minha resolução de deixar tudo por ti,
desterraram-me da sua venerável presença. Diante de mim
repartiram os seus bens entre meus irmãos, e deserdaram-me.
É se não pronunciaram contra a minha cabeça a maldição dos
filhos rebeldes, foi porque Ilida, a esposa que eles me
tinham escolhido, se lançou entre mim e eles, e lhes pediu o
meu perdão.

502
- Safan! exclamou sara. Por mim arrostavas tantos
infortúnios! Oh! Deus tenha compaixão de nós!
- A tua lembrança tinha-me armado contra tudo quanto
se opunha ao nosso amor. Eu era forte: tinha um valor que
tocava em fereza, e para vir para aqui, para viver ao teu lado
abandonei amigos, pais e pátria. E quando chego com o
coração dilacerado por todas as dores, que encontro no meu
regresso? Sara, Sara, eu vim com todo o fogo da minha
juventude, e ardendo em esperanças. Que fizeste da minha
vida? Que fizeste do futuro que me brilhava há pouco diante
dos olhos? Tudo pereceu, tudo se submergiu, tudo devoraram
os teus caprichos; e agora abandonas-me... Ai de mim!
- Oh! Não fales assim! Meu Deus!... Meu Deus!... Que
não possa dar-te eu a minha vida, o meu sangue, para
indenizar-te de tantas penas, de tantos sacrifícios de que sou
causa! Pois eu amo-te mais que a vida, mais que a luz dos
olhos. Mas, ah! não posso amar-te mais que a Deus poderoso
e bom que te chama, que nos quer a um e a outro ao seu lado,
e que por alguns instantes de dores sofridas na terra, nos
promete uma eternidade passada no meio de gozos infinitos...
dos quais apenas pode dar-nos uma débil idéia a imensidade
das nossas penas. Safan, Safan, tu foste forte diante dos teus
pais pelo amor da tua pobre Sara. Ó amado da minha alma!
Eu sou forte contra ti pelo amor que te consagro. Porque
quero que a tua alma, tão forte e tão bela, conheça e adore o
Deus de todo o amor, de todo o poder e de toda a beleza.
- Sara, os teus lábios são eloquentes, exclamou Safan,
olhando-a com certo pasmo de júbilo; mas não demasiado
belos para ensinarem outra cousa que o amor. Escuta-me; é
nosso o porvir; algum dia, entre os gelos da velhice, nos
lembraremos dessas palavras; mas hoje, se é verdade que
ainda me amas, se é verdade que nenhum outro amor veio

503
desterrar-me de teu coração, não pensemos senão na
felicidade de viver um para o outro.
- Deus nos separa, disse Sara afastando-se suavemente.
- Não, não, Sara, se tu me amas, não te deixarei mais...
- Oh, meu Deus! exclamou Sara levantando ao céu os
olhos rasos de lágrimas. Não era bastante o ter de espedaçar
só o meu coração... é também forçoso dilacerar o seu!...
Perdão, meu Deus, ou fazei-me mais forte!
E Sara, escapando a Safan, fugiu aflita para ir chorar
longe daquele cuja presença e cujas palavras podiam ser
demais poderosas contra as sua novas resoluções.

XV

Entretanto voltou o criado.


- Jesus tomou o caminho da Galiléia, disse a Sara. A
sua passagem é assinalada por prodígios que espalham o
pasmo e a admiração entre o povo.
- Louvado seja o Senhor, e Ele te recompense pela tua
diligência e zelo, disse Sara; mas a palidez espalhou-se pelo
seu rosto. Foi com Eliezer ter com Safan, de quem fugia
desde a sua última entrevista.
- Safan, disse ao jovem hebreu, antes de renovar
penosas discussões, venho pedir-te uma graça, esperando que
não te negarás às minhas súplicas. Desçamos todos três à
Galiléia, até encontrarmos o Salvador.
Safan pareceu surpreendido, e não respondeu.
- Ele te chamou, Safan, continuou o jovem com valor; e
as suas palavras perderam o seu poder passando pelos lábios
duma infeliz pecadora como eu: a sua voz que vence todos os
corações, não deixará de comover e mudar o teu, quando te
soar aos ouvidos. Partamos, pois.

504
Safan parecia indeciso. Não obstante, disse:
- Consinto em ir, se me prometes que não me
despedirás do teu lado, quando estivermos de volta.
Sara vacilou, e não deu resposta, porque temia o efeito
das suas palavras. Eliezer foi o que disse:
- Partamos em todo caso, meus filhos, e na volta se fará
conforme a vontade d’Aquele que tem na mão todos os
corações.
Pensou que ao menos, durante a viagem, não podia
fugir dele a bela samaritana, e consentiu na partida.

XVI

No dia seguinte, ao despontar da aurora, partiram


ambos acompanhados do velho Eliezer, que desejava ouvir
mais uma vez a palavra do Salvador.
Micas guiava o carro, em cada aldeia e em cada
povoado encontravam pessoas reunidas, conversando
pasmadas acerca das maravilhas que presenciaram com seus
próprios olhos. Diziam:
- Um grande Profeta se levantou entre nós, e coisas
novas e maravilhosas se preparam para nós e para nossos
filhos. Esperemos a luz do mundo que se eleva em Israel.
- Quem o acreditará? Este homem tão santo, cujos
preceitos são a mesma sabedoria, deteve-se a conversar com
pecadores, e com mulheres cuja vida não é a mais pura. Que
pensar d’Ele.
E Sara baixava o véu sobre o rosto, chorava, e dizia
consigo: Oh! Se Ele não falasse aos pecadores, se não fizesse
brilhar a sua bondade nas trevas do espírito do culpado, que

505
seria de mim hoje? De mim, pobre pecadora, indigna de
levantar para Ele os olhos!

XVII

Os viajantes continuavam o caminho: Eliezer e Sara


dando graças a Deus pelas suas misericórdias e Safan
escutando a todos e cada um em silêncio, iam imersos num
abismo de reflexões cuja profundidade só teria podido sondar
o que fez o coração do homem.
No terceiro dia chegaram a um pequeno povoado da
Galiléia que o Salvador tinha deixado na véspera; a multidão
estava apinhada ainda nas ruas, comovida, e referindo com
um misto de admiração, terror e amor os seus milagres e a
sua divina bondade.
Tinha curado o filho dum centurião que estava para
morrer. Tinha também curado a sogra de Simão, um dos seus
discípulos, e outros muitos enfermos ou tolhidos, que se
mostravam ao povo como provas vivas dum poder sobre
humano. Este se livrara das suas doenças, aquele dos seus
pecados. Todos cantavam com júbilo os louvores de Deus:
uns por terem recobrado a saúde do corpo débil, outros por
terem alcançado aquela paz que vem de Deus e com cuja
doçura não há coisa que seja comparável.
Interrogava Sara quantos encontrava e o que deles
ouvia lhe enchia a alma de imenso respeito.

XVIII

506
- Safan, dizia ela, não sentes uma tremura dentro de teu
ser? Não sei o que me sucede; mas parece que o mesmo ar se
comove, que a natureza toda se acha enternecida pela
presença do Senhor. Parece-me que Jesus deixou o seu
suavíssimo perfume na atmosfera que nos rodeia: o ar ondula
de amor em torno de nós, e faz-me vibrar no seio todas as
cordas do coração.
Safan não respondeu e seu semblante ia-se tornando
mais sombrio ante aquele transporte de Sara, que fazia
transluzir os mesmos pensamentos. Eliezer sentado entre os
dois num espesso feixe de palha, disse ao jovem:
- Meu filho, como não sentiria o que sente Sara, tão
viva sempre nas comoções, quando os seus ossos já velhos
estremeceram desde que vi Aquele cuja vinda transformou a
face do mundo?
Safan esteve calado tenazmente, até exclamar:
- Mas um ancião sábio e experiente como tu, como
pode cegar-te a ponto de crer que um homem obscuro e
pobre, saído de pais obscuros e pobres como ele, pode ser o
Salvador prometido de Israel? Não sabes que o Messias
prometido desde o princípio a nossos país há de ser um
príncipe forte e poderoso? Esqueceste-o? Este domará os
inimigos do seu povo, levanta-lo-á de sua abjeção e mim fará
brilhar com nova glória a nação escolhida. Onde está, pois, a
coroa? Onde está o cetro de tão indomável conquistador?
Onde estão seus guerreiros, seus carros, seus corcéis, seus
inumeráveis exércitos? Quantas batalhas tem dado? Que
inimigos tem vencido para que nós proclamemos assim a sua
vitória?
- Verdade é que o seu poder não é aquele que no nosso
orgulho tínhamos esperado loucamente, disse Eliezer. Na
minha cegueira esperava eu, como tu, um homem poderoso e

507
forte pela espada, e a sua força não está na espada. É
clemente, doce, prescreve a paz como um belo preceito, e só
a sua vista espalha e inspira. As suas mãos estão desarmadas,
Safan, convenho nisso: Ele é só e sem dominação aparente,
e, não obstante, à sua voz obedecem os ventos, as
tempestades, a própria morte. Que conquistador exerceu
ainda tal poder, e que pensas que possa ser um homem a
quem os ventos e o mar estão sujeitos?
Safan estremeceu; contudo, replicou com certa
aspereza:
- Ainda que obrasse todas essas maravilhas e muitas
outras mais, que nos importa a nós? E que alegria e que
prazer podem causar-nos essas coisas?
- Bem se vê, meu filho, que a juventude e as suas
paixões ardentes e tumultuosas sufocam em ti graves
pensamentos. Mas se contasses como eu noventa invernos, e
tivesses visto, desaparecer uma após outra todas as tuas
afeições, se conhecesses bem toda a inconstância da coisas
da vida, se sobretudo visses aberta diante de ti a sepultura
que o tempo te tivesse cavado lentamente, ah, meu filho!
meu filho! como bendirias o que vem dizer-te com uma
autoridade sustentada por inumeráveis milagres, que vai
começar para ti uma vida nova além do sepulcro!
- Ah, meu pai! falou Sara: esta vida nova que
aformoseia a tua esperança, enche também de celestial
claridade a minha. Porque, eu, que vivi entregue a todas as
paixões, eu, que senti despedaçado o coração pelas
procelosas tempestades da alma, que lhe direi quando chegue
para mim essa vida que nos oferece na eternidade e me faz
tremer?
- Espera, disse o ancião, o arrependimento absolve. Não
nos disse o Senhor que há mais alegria no céu pela volta dum

508
pecador convertido, que por cem justos que perseveraram na
justiça?
Mas Sara sentia o coração cheio de agitações e sustos.

XIX

Depois de alguns dias de caminho, os viajantes, saindo


duma estreita garganta de montanhas, acharam-se ao lado do
lago Genezaré. Detiveram-se, possuídos de misteriosa
admiração, à vista daqueles lugares, escolhidos na eternidade
para serem inundados pela palavra divina.
O dia já declinava, e os penhascos pelos quais
acabavam de descer projetavam sua sombra pela planície que
se estende até à praia. As ondas tranquilas refletiam o azul
puríssimo do céu, e pareciam deter os seus murmúrios para
não perturbarem a deliciosa paz daqueles lugares.

XX

Eliezer quis descer à planície e aproximar-se do lago.


Mas a multidão estava agrupada, e o carro não pôde passar
muito adiante.
E a voz, uma voz que bendiz, que penetra no fundo do
coração de cada um, fazia-se ouvir, e as almas estavam
irresistivelmente comovidas como a natureza. Oh! Quem
ouviu alguma vez elevar-se aquela voz no seu coração e pôde
resistir-lhe? Ela doma os mais rebeldes. Safan já não falava,
já nada via; escutava. Sim, escutava, e o seu peito respirava
com custo: sentia-se oprimido. Vendo que o carro, apesar de

509
todo o esforço de Micas, não podia andar mais, saltou dele e
disse ao ancião e a Sara:
- Esperai-me aqui; quero chegar até Ele, e depois
voltarei.
- Vai, Safan! Não voltarás. O que ouve as palavras de
Deus e recolhe-as no coração, não volta; vai, corre e nunca
retrocedas.
- Vai, vai, disse Sara, e compreendo o teu coração o que
escutarem teus ouvidos.

XXI

O carro acomodou-se à sombra da montanha, e a voz


chegava até os viajantes.
- Meu pai, escutemos, disse Sara; façamos com que as
suas palavras nutram o nosso espírito como o maná que
alimentava em outro tempo os israelitas no deserto.
- Escutemos, disse o ancião, e possam as suas divinas
lições germinar em nós até à vista eterna.

XXII

E ambos diziam:
- O que fizemos nós para merecer ter nascido neste
tempo e ouvir estas palavras divinas, nós, os prevaricadores
da lei de Deus?
E a voz dizia: “Eu vim para os pecadores e não para
aqueles que não tem necessidade de penitência. Vim para
salvar judeus e gentios”.
E cada um dos pensamentos recebia assim sua resposta,
como se o Salvador não houvesse falado senão com eles. Sua

510
alma alimentava-se e engrandecia-se. E permanecia em muda
admiração e adoração, louvando o Eterno com imenso amor
e infinito reconhecimento. E os céus e todas as criaturas,
elevando as vozes que falam quando tudo caia, diziam no
meio de um arroubamento divino: Glória a Deus! Glória a
Deus na terra, e no mais alto dos céus! Entretanto o sol tinha
desaparecido por trás das montanhas. A voz de Cristo tinha
cessado; a multidão feliz tinha-se dispersado, levando
consigo as palavras de salvação que deviam estender-se por
todo o universo. Safan não aparecia. Que será feito dele? As
horas passam, a noite caminha, e não o traz aos que o
aguardam. Oh, Safan, Safan!

XXIII

O jovem hebreu ficou só na praia, sentado numa pedra.


A lua ilumina-lhe a fronte inquieta. A água do lago, há pouco
tão pacífica começa a agitar-se e vem banhar-lhe os pés com
surdos gemidos. A copa das árvores da ribeira dobra-se ao
impulso de um vento borrascoso. Mas nem o sussurro do
vento na folhagem, nem o das ondas, nem o surdo mugido
das águas que se encrespam, ao longe, nada lhe chega aos
ouvidos. Sua alma já não está nele, toda ela se acha n’Aquele
a quem acaba de ouvir. As palavras que lhe ressoam sempre
no interior, levantam e acalentam por sua vez todas as
tormentas do coração.
Tinha já decorrido metade da noite. A tempestade
crescia; Eliezer e Sara inquietos pela sua longa ausência,
desceram do carro e foram em sua procura, divagando longo
espaço sem o encontrarem. Finalmente descobrem-no, com a
cabeça escondida entre as mãos, e perdido num abismo de

511
idéias e de sentimentos tumultuosos, e várias vezes o
chamaram sem poder conseguir que os ouvisse.
Quando os viu junto de si, levantou-se, foi para eles, e
lançando-se aos seus pés, exclamou!
- Perdão, Sara! perdoa-me o ter arrastado a tua
juventude até ao abismo em que ambos caímos. Perdoa ainda
mais o ter-te resistido miseravelmente, quando vinhas
chamar-me às altas verdades que tarde conheci. Tua alma,
mais terna e melhor que a minha, compreendeu mais
depressa os mistérios de amor e mansidão admiráveis que
contêm as doutrinas do Salvador. Bendita sejas tu, Sara, tu, a
quem já não me atrevo a chamar amada, bendita sejas tu por
teres vindo chamar-me e conduzir-me à luz! Sempre viverá a
tua memória no meu coração! Porque és o anjo da minha
salvação! Tu me guiaste, a pesar meu, para o princípio e fim
de toda a criatura. Bendita sejas! Adeus, Sara! Um dia
tornaremos a ver-nos nas moradas eternas; mas hoje deixo-te
para colocar-me sob a autoridade d’Aquele que me chama.
Ele diz que se deixe tudo para o seguir; continuou o jovem, e
eu deixarei tudo e lhe direi: “Aqui me tens: pequei contra ti;
já sou digno de ser chamado teu filho, trata-me porém, como
o último de teus servos”.
- E o Senhor te abençoará, disse Eliezer, e o seu
coração de Pai se alegrará, “porque seu filho morreu e
ressuscitou, estava perdido e encontrou-se”.
Sara chorava com dois prantos: nela se juntavam a
tristeza e o prazer mas o prazer superava a dor.
- Eu não verei meu pai, nem minha mãe, nem minha
esposa! falou Safan. O Salvador diz que tudo se há de deixar
para o seguir. Deixando-te a ti, deixarei tudo... Não eras tu
para mim mais que tudo?...

512
Sara, juntando as mãos, prorrompeu num transporte
involuntário.
- Oh, Deus poderoso! Vós tiveste compaixão da minha
fraqueza! Graças sem fim Vos sejam dadas! Na Vossa
misericórdia ainda poupastes a minha pena! Pois só a Vós o
cederia eu! A Vós só! Adeus, Safan, amado da minha alma,
adeus...

XXIV

E dos dois separaram-se apontando para o céu, único


que dá forças para deixar tudo na terra para tornar a
encontrá-lo nele.
E os ecos das soledades, comovidos, ainda pelo divino
hosana, repetiram mil vezes harmoniosos: Glória a Deus!
Glória a Deus sobre a terra e no mais alto dos céus!

CAPÍTULO IV

PAX HUIC DOMUI

Jesus entretanto continuava sua divina peregrinação.


Suas palavras eram a luz que dissipava as trevas. A fama dos
seus milagres saía-lhe ao encontro por toda parte. Velhos,
mulheres, moços e crianças corriam a encontrá-lo sequiosos
de ouvir a sua nova lei, e a infinita misericórdia do futuro
Mártir caía sobre os desgraçados como o orvalho matutino
sobre os campos.
As praias do mar de Tiberíades, as ruas de Cafarnaum,
os pitorescos vales de Zabulon, a florida tribo de Asser, e a
fiel Galiléia foram as prediletas do seu coração. As costas da
Fenícia, Tiro, Sidon e outras infinitas cidades presenciaram

513
com assombro os milagres do Divino Mestre, e ouviram a
santa doutrina do Messias prometido pelos profetas.
- Corramos, diziam os leprosos, pois, se os seus divinos
olhos nos banharem com a luz, ficaremos limpos.
- Vede, por ali passa, diziam os paralíticos; se
conseguirmos alcançá-lo, se tivermos a felicidade de beijar o
extremo da sua santa túnica, os nossos membros tornarão a
adquirir a perdida força.
E sofrendo mil fadigas, arrastando-se pelo chão,
chegavam aonde estava o pastor das almas e diziam-lhe:
- Jesus!... Mestre!... Tu és o Messias, sara os nossos
corpos.
E a fé lhes devolvia a saúde.
- Avisai-nos quando estiver perto, diziam os cegos aos
que os acompanhavam, para que caiamos de joelhos aos seus
divinos pés!
E os cegos lançavam-se aos pés de Jesus e lhe pediam
com fé que dissipasse as trevas em que viviam envoltos. E
Jesus, sempre compassivo, sempre amigo dos deserdados,
colocava a ponta do dedo sobre as cerradas pálpebras, e as
pálpebras se abriam, e a luz tornava às mortas pupilas.
- Senhor, Filho de Davi, lhe dizia a cananeia
caminhando sempre atrás do Divino Mestre, tem piedade de
minha filha.
E Jesus, querendo experimentar a fé daquela pecadora
descendente dos idólatras gregos, encerrava-se num piedoso
silêncio, e continuava o seu caminho sem despregar os lábios
sem voltar a cabeça.
Mas a cananeia, sempre incansável, seguia as pisadas
do Nazareno, repetindo:
- Senhor, Filho de Davi, verdade é que a minha raça
pertence às nações condenadas; verdade é que os meus

514
maiores são idólatras e desprezam o verdadeiro Deus que é
teu Pai; verdade é que a religião que professamos é grosseira
e ímpia... mas Tu, Senhor, terás piedade desta pobre Mãe,
porque tu és um manancial inesgotável de bondade e de
mansidão; porque dos teus santíssimos lábios brota
eternamente a palavra perdão, porque tu desceste à terra,
Médico divino, para curar os enfermos do espírito; porque os
cãezinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus
amos; salva minha filha, Senhor pois Tu podes.
Jesus, compadecido de tanta constância, de tanta fé,
deteve o passo, e abrangendo com um olhar cheio de doçura
aquela humilde pecadora, disse-lhe:
- Mulher, grande é a tua fé; faça-se como desejas.
E a piedosa cananeia não duvidou; e ao chegar a casa a
sua amada filha saiu a recebê-la, porque se achava curada da
sua moléstia.
- Senhor, salva-nos, que perecemos! lhe bradam mais
tarde os seus discípulos, vendo-o docemente adormecido
numa barca, enquanto os ventos desencadeados silvavam e o
mar embravecido ameaçava submergir a frágil embarcação
nos abismos.
Então Jesus repreende a sua pouca fé: ergue os radiosos
olhos para o céu, e manda aos ventos e às águas que se
acalmem. O sol apareceu no céu: as águas aplacam-se, e
alegria e a tranquilidade tornam a albergar-se em todos os
corações.
- Quem é Este a quem os ventos e o mar obedecem?
exclamam.
Mais tarde, caminha milagrosamente sobre a superfície
das águas, e estende mão protetora a Pedro, seu discípulo,
repreendendo a sua pouca fé, para o salvar. Entretanto, tendo
chegado a hora de instruir os seus apóstolos, uma tarde que

515
se achava na esplanada dum monte situado entre Cafarnaum
e Betsaida, sentou-se Jesus numa pedra. Os seus doze
discípulos, sempre sedentos de escutar a divina palavra,
sentaram-se também em redor d’Ele.
Então Jesus começou a falar-lhes deste modo:
“Não possuais ouro, nem prata, nem dinheiro nas
vossas faixas. Não leveis nada para o caminho, nem bordão,
nem alforjes, nem pão, nem tenhais duas túnicas. E em
qualquer casa em que entreis, saudai-a dizendo: Paz huie
domui (a paz seja nesta casa). E se aquele casa foi digna da
paz evangélica, a paz virá sobre ela; e se não for digna, a paz
voltará para vós e fugirá dela.
E todo o que não vos receber e não ouvir as vossas
palavras ao sairdes da casa ou da cidade, sacudi o pó de
vossos pés.
Não esqueçais que eu vos envio como ovelhas ao meio
dos lobos. Sede, pois, prudente como serpentes, e simples
como pombas. Não temais os que matam o corpo, temei o
que pode lançar a alma no inferno.
E todo o que der de beber a um daqueles pequeninos
tão somente um copo de água, em verdade vos digo que não
perderá o galardão”.
Mais tarde, Jesus executou o milagre dos pães e dos
peixes. Depois apresentou um menino como modelo,
dizendo:
Deixai aos meninos que venham para Mim, porque
deles é o reino dos céus.
Imediatamente brotaram de seus divinos lábios estes
mandamentos:
Não matarás, não cometerás adultério, não mentirás,
não dará falso testemunho. Honra teu pai e tua mãe, e ama o
teu próximo como a ti mesmo”.

516
Enquanto a sublime doutrina de Cristo levantava ecos
dulcíssimos no coração dos israelitas, Jesus dizia aos seus
discípulos:
- Não toques a trombeta para fazeres emola como
fazem os fariseus em Jerusalém. O que fizer a mão direita
não deve sabê-lo a esquerda; e se um olho vos escandalizar,
tirai-º Orai com a porta fechada dizendo deste modo:
Pai nosso, que estás nos céus; santificado seja o teu
nome.
Venha a nós o teu reino: seja feita a tua vontade assim
na terra , como no céu.
O pão nosso de cada dia dá-nos hoje, senhor.
E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós
pecadores aos nossos devedores.
E não deixeis cair em tentação; mas livra-nos do mal.
Amém.
Enquanto as suas belas parábolas enchiam de júbilo os
desgraçados, inundando de fé as almas dos modernos filiados
na nova lei, em Jerusalém, na cidade ingrata, reuniam-se os
doutores do Sinédrio, cegos de raiva, para combinarem a
maneira de perder aquele transformador das coisas
estabelecidas pela lei, e que se atrevia a chamar-se o
Messias prometido, o rei dos judeus.
Entre esses fariseus achava-se Nicodemos, que poucos
dias antes tinha procurado Jesus durante a noite, e Jesus o
tinha instruído. O supremo conselho atroava as altas
abóbadas do Sinédrio, pedindo uma pronta vingança contra o
transformador público. Um dos fariseus agitava na mão um
pedaço de pergaminho dizendo:
- Ouvi, ouvi, sábios doutores, o que Jesus diz aos
sacerdotes e fariseus de Jerusalém.

517
E, desenrolando o pergaminho, pôs-se a ler com voz
estentórea:
“Raça de víboras, ai de vós os fariseus, que limpais o
exterior do prato e do copo, enquanto o vosso interior está
cheio de imundície e de maldade! Néscios! O que fez o que
está fora, não fez também o que está dentro?
Mas ai de vós, fariseus, que dizimais a erva boa e
traficais com a justiça e com a lei de Deus!
Ai de vós, fariseus, que gostais dos primeiros assentos
nas sinagogas e vos comprazeis em ser saudados na praça!
Ai de vós que sois como os sepulcros cobertos de erva
que não o parecem, e os homens anda por cima!
Ai de vós, doutores da lei, que carregais os vossos
próximos com cargas que não podem levar, e vós nem sequer
com um de vossos dedos tocais as cargas!
Ai de vós, que edificais sepulcros aos profetas que
vossos pais mataram, dando a entender que consentis nas
obras de vossos pais! Porque eles os mataram e vós os
enterrais.
Ai de vós, doutores da lei, que vos levantastes com a
chave da ciência! A vossa inveja e o vosso orgulho vos
tornam indignos de entrar aonde proibistes aos outros que
entrassem.
Qual de vós pode ajuntar à sua estatura um côvado?
Qual de vós pode tornar branco um de seus cabelos?”
Ao terminar o rabino a leitura do pergaminho,
levantou-se um murmúrio de indignação na assembléia.
- Sábio conselho exclamou Caifás com irritada voz. E
havemos de consentir que um embarcador percorra as nossas
tribos chamando-se Filho de Deus e afrontando-nos
publicamente a toda a hora?

518
- Não, não, prenda-se! Castigue-se! – exclamaram
várias vozes.
- Diz que ele é a perfeita salvação e que ressuscitará ao
terceiro dia.
- É um blasfemo!
- É preciso procurar esse homem.
- Quem sabe onde se acha?
- Ontem entrou na cidade. Os jerosolimitanos
presenciaram a audácia desse Galileu que se apelida Filho de
Deus. Armado dum látego expulsou dos degraus do templo
os vendedores, dizendo: “Não façais da casa de Meus Pai
uma caverna de ladrões”.
- Sábios doutores. Até quando ajuntou Anás, havemos
de tolerar que um miserável se apelide o Salvador do
homem? Prendei-o, e terminemos tão enfadonha questão. Os
seus absurdos humilham a dignidade do nosso tribunal. Onde
aprendeu esse homem? Quem foi o seu mestre? Como se
concebe que os velhos renasçam? Não o esqueçais, doutores:
Jesus é um transformador público, um falso profeta que
busca entre a plebe mais abjeta um nome e uma posição que
não pode dar-lhe o berço. Senão vede a gente que a rodeia:
leprosos, mendigos, miseráveis, enfim. Não o esqueçais,
doutores, as Escrituras o disseram: “Nada bom sairá da
Galiléia, e Jesus é filho de Nazaré.
Estas palavras de Anás que era o inimigo mais terrível
de Cristo, decidiram o conselho, e dispôs-se que alguns
rabinos saíssem em busca de Jesus para o prenderem. Os
fariseus designados abandonaram o sinédrio, desejando
agradar a Anás. Então um homem entrado em anos levantou-
se e fez ademã de que queria falar. Aquele homem pertencia
à seita dos fariseus: chamava-se Nicodemos. Eis aqui o que
disse com voz firme e ademã severo:

519
- Sábios doutores, para julgar esse Homem é preciso
ouvi-lo; ouvi a Jesus, e as suas palavras vos comoverão. Eu
procurei-o durante a noite; discuti com Ele por espaço de
muitas horas. A sua fronte resplandece como a de Moisés; a
sua palavra persuade como a de Elias. Ignoro onde aprendeu
o que sabe; mas eu, que encaneci no estudo da lei, vi-me
obrigado a curvar a cabeça e a confessar-me vencido ante
esse Nazareno, filho de um pobre artista. Se não é o Messias,
então será preciso confessar, ainda que vos pese, que é o
sábio mais profundo da terra, o homem maior do universo.
Eu creio-o Enviado de Jeová. Porque nos seus olhos mora a
bondade de Deus, na sua fronte resplandece a divindade
sublime do Santo dos Santos.
O conselho escutou com profundo assombro as
palavras de Nicodemos. O espanto dos doutores foi grande
vendo a defesa que de Jesus fazia um dos seus, reputado
entre eles por um sábio. Nicodemos, vendo que ninguém lhe
respondia, continuou:
- Sábios rabinos, por ventura a nossa lei julga um
homem sem o ter ouvido, primeiro e sem se informar do que
fez?
Então Anás, indignado, cego pela ira, levantou-se do
seu assento, e estendendo o punho fechado para Nicodemos,
disse-lhe com voz atroadora:
- És tu também Galileu? Esquadrinha as Escrituras e
entende que da Galiléia nunca se levantou profeta algum.
Nicodemos ergueu a fronte, olhando ao mesmo tempo
com dolorosa compaixão a cólera de Anás, que acabava de
lhe atirar ao rosto um insulto em vez de uma resposta.
Chamar Galileu a um fariseu era o maior agravo que se lhe
podia fazer.
Nicodemos, apesar disso, não se comoveu.

520
- Anás, lhe disse, acabas de atirar-me ao rosto uma
grosseira ignomínia; mas perdo-te e rogo-te que estudes as
nossas Escrituras, para que aprendas, se não sabes, que
Naum e Josias são reconhecidos na nossa lei como profetas e
nasceram na Galiléia.
Anás empalideceu de raiva.
Nicodemos acabava de dar-lhe um dura lição.
Felizmente para Anás as palavras do defensor de Jesus,
que tinham produzido profunda sensação no conselho,
esqueceram-se; porque naquele momento entraram no
sinédrio os fariseus que tinham ido prender Cristo.
- Prendeste-o? perguntaram alguns doutores.
- Não, rabinos, responderam os emissários. Nem nós
nem os soldados que nos acompanhavam nos atrevemos a
tocar num só fio das suas vestes; ouvimo-lo falar, e nenhum
homem fala como Ele fala. As suas palavras fazem
estremecer o coração.
- Será o Messias? murmuravam alguns em voz baixa.
Entretanto Jesus continuava pregando no templo, e um
dos discípulos disse-lhe:
- Mestre, foge, pois bem se vê que tratam de prender-te.
Jesus respondia-lhe com a sua dulcíssima voz, com a
sua mansidão infinita:
- Não temais. A minha hora não chegou.
E continuou tranquilo a instruir todos quanto se
aproximavam d’Ele ansiosos por escutar as suas divinas
palavras.

LIVRO DÉCIMO QUARTO

O CASTELO DE MÁGDALO

521
CAPÍTULO I

A PÉROLA DA BETÂNIA

Sir era um pobre judeu respeitado em todo o Israel pelo


seu ilustre nascimento e pela retidão do seu coração. Sua
mulher, Eucária, era tida entre as filhas de Abraão como o
modelo mais perfeito da esposa.
Sir e Eucária tiveram três filhos: um varão e duas
meninas. Chamava-se o primogênito Lázaro. Chamavam-se
suas irmãs Marta e Maria. Sir era rico. Possuía um castelo,
antigo residência de seus maiores em Galiléia, perto do lago
de Genezaré. Este castelo, nomeado com o nome do seu
fundador, chamava-se o castelo de Mágdalo.
Eucária tinha levado em dote a seu mairod Sir um horto
riquíssimo pela abundância das suas palmeiras, situado em
Betânia (casa das âmaras), na mesma fralda do monte das
Oliveiras. A felicidade sorria sobre este casal. Sem uma dor
que empanasse o sol venturoso da felicidade conjugal, Sir e
Eucária viram chegar o seu primogênito à idade viril.
Quando nas formosas estações vernais os dois esposos se
sentavam à sombra das suas palmeiras rodeados de seus
filhos, os habitantes de Betânia exclamavam ao passar:
- Ali está a honra de Israel! Que família tão venturosa!
Sem embargo, a venerável fronte do velho Sir
enrugava-se mais de uma vez, e no fundo daquelas rugas
vagueavam sinistros pensamentos. Então costumava pensar:
- Deus de Abraão e de Jacó! Dou-te graças porque
permitiste a este pobre velho que veja as barbas no rosto do
seu primogênito. Mas rogo-te de todo o coração que cortes o

522
fio da minha existência, antes que minha rebelde filha
manche a honradez da minha fronte.
A filha que assim o preocupava nos momentos de
soledade chamava-se Maria, jovem de dezoito anos e
formosa como um crepúsculo do mês de maio. Era a mais
jovem dos três irmãos, e aquela a quem o velho Sir mostrava
mais preferência apesar do seu caráter estouvado e exigente.
É verdade que Maria tocava harpa e saltério e cantava como
um Serafim. Tinha um cabelo tão formoso, que quando
desatava as tranças loiras deixando-as flutuar sobre os
ombros, o extremo de seus preciosos cabelos tocava-lhe os
delicados pés.
Em Israel davam-lhe o nome de pérola da Betânia. Os
mais ricos primogênitos de Jerusalém solicitavam sua mão.
A esperança de possuir a formosa filha de Sir conduzia-os
diariamente da Cidade Santa, à pitoresca Betânia, montados
nos seus soberbos corcéis da Síria, ricamente ajaezados.
- Escolhe, exclamava seu pai, entre todos esses
pretendentes o que mais te agrade.
- Sou muito moça, dizia ela.
Mas, os seus sorrisos, os seus olhares, repartiam-se por
igual entre os solícitos mancebos. A esperança animava com
seu tíbio calor vinte corações a um tempo. Em vão Lázaro, o
prudente, e Marta, a laboriosa, admoestavam sua irmã mais
nova. Os rogos dos irmãos era desatendidos como as súplicas
dos pais.
Estando assim as coisas, a morte bateu as implacáveis
asas sobre a morada de Sir, e a virtuosa Eucária soltou nos
braços de seus filhos e de seu esposo o último suspiro. Desde
então o velho Sir, com a veneranda barba pousada no seio, os
dolorosos olhos fitos no chão, passava horas cismando. Em
vão Lázaro e Marta procuravam dissipar a eterna melancolia

523
do pai. Uma tarde, Sir fez sinal aos filhos para que se
sentassem a seu lado, de pois disse-lhes:
- Meus filhos: sinto o frio da morte circular-me pelas
veias... vou morrer. Conheço-os, e dou graças ao Santo dos
Santos... pois a vida era para mim uma carga enfadonha
desde que a minha adorada Eucária me abandonou. Amai-
vos como bons irmãos que sois, e não vos esqueceis de
honrar as cinzas de vossos pais.
O velho Sir parou. O cansaço da morte afogava-lhe as
palavras no peito. O estertor da agonia era cada vez mais
rouco e cansado. Lázaro, com um dos criados, conduziu o
velho Sir para o leito. Os filhos rodeavam-no derramando
copiosas lágrimas. O velho deteve os olhos em sua filha
Maria.
- Maria, lhe disse com uma fadiga que ia em aumento,
em breve de meus lábios sem calor fugirá o último sopro de
vida. Ouve este pobre velho que te fala da borda do sepulcro,
e não esqueças as suas palavras. A modéstia, a virtude e a
honradez, quando se entrelaçam são a coroa de mais preço
com que se pode ornar-se à fronte duma donzela. Lázaro, teu
irmão mais velho, será desde a minha morte teu pai...
obedece-lhe... sê humilde para com ele, imita tua irmão
Marta; eu serei feliz na eternidade.
Depois, o ancião de Betânia deixou cair a cabeça sobre
os travesseiros; mal estendeu asa descarnadas mãos como
para abençoar seus filhos, e expirou.

CAPÍTULO II

O JARDIM DO AMOR

524
Lázaro e Marta tinham caráter retraído e modesto.
Gostavam mais do pacífico retiro do lar, do que do buliçoso
estrondo das festas. Isto irritava a estouvada Maria, que,
sempre se achava pronta para as diversões e prazeres.
Lázaro repreendia sua irmã com doçura; porém Maria,
cerrando os ouvidos aos conselhos, passava a maior parte do
dia à janela ostentando a sua formosa cabeça carregada de
perfume e de pérolas.
Estes gênios tão diametralmente opostos caminhavam
para uma luta que não se fez esperar. Todas as noites Lázaro
encontrava, ao recolher-se, noturnos amantes que rondavam
sua casa. As pendências sucediam-se com frequência. Em
Betânia, começou a murmurar-se da irmã de Lázaro.
Um dia um homem caiu ferido debaixo da janela da
formosa loura. No povo levantou-se um grito de indignação.
Murmuravam em voz baixa o nome do morto e do matador.
O primeiro pertencia a uma família de Jerusalém. O segundo
era um centurião romano, favorito do governador Pilatos.
Lázaro, com o semblante severo do homem honrado,
chamou sua irmã e disse-lhe:
- Maria, isto não pode continuar assim; não posso
tolerar que se manche o nome sem nódoa de meu pai. Tens
muitos pretendentes; escolhe um esposo.
- Não vendo a minha liberdade. Se os homens se matam
porque cobiçam a minha formosura, não é culpa minha; a
minha honra está limpa como a luz do sol. Mas se não te
agrada o meu proceder, amanhã podemos separar-nos. O
castelo de Mágdalo será à minha residência, pois me
pertence. Tu e Marta podeis ficar em Betânia, já que tanto
vos enfada o meu procedimento.
- Pensa bem, Maria, tornou Lázaro; és moça,
separando-te de nós, corres para tua perdição.

525
- Só se perde quem quer; a vossa modéstia, o vosso
retraimento, enfastiam-me como vos enfastia o meu gênio
alegre e comunicativo; é melhor a separação.
Nada puderam as súplicas de Lázaro e os rogos de
Marta. Maria acompanhada de alguns criados e duma velha
que lhe tinha servido de ama, partiu de Betânia e foi
estabelecer-se na antiga fortaleza de Mágdalo, situada na
Galiléia, perto do lago de Genezaré, onde foi conhecida com
o nome de Maria Madalena. Desde esse momento Maria
julgou-se livre e absoluta senhora da sua vontade. Os olhares
severos de seu irmão, os conselhos incessantes da laboriosa
Maria, já a não molestavam. Seu coração ardente propôs-se
fazer do velho castelo de Mágdalo um paraíso. Escolheu para
criadas as quatro donzelas mais formosas de Cafarnaum.
Maria tinha no peito um coração faminto de comoções.
Sua alma impressionável, sua imaginação ardente e volúvel
como a mariposa, nunca achavam um homem como tinha
sonhado. Os seus olhares cheios de amor repartiam
diariamente entre os seus adoradores mentidas esperanças
que alentavam a fé e o entusiasmo dos pretendentes. Todos
os jovens que rendiam culto ao prazer, à música, à preguiça,
tinha francas as portas do castelo de Mágdala. Diariamente
se dançava à sombra das densas ramadas do jardim, e a
formosa Madalena, rodeada das suas donzelas enlouquecia
os adoradores fazendo-lhes ouvir os dons privilegiados da
sua voz e as dulcíssimas notas do seu saltério.
Era impossível resistir aos encantos que a natureza
tinha entornado sobre a formosa castelo de Mágdalo. Tinha a
majestade e beleza da Vênus; seus olhos límpidos e azuis
como o céu da Fenícia, nacarados, um pouco entreabertos,
pareciam ouvir eternamente um ósculo aos seus amantes. No
seu redondo rosto destacava-se uma covinha que parecia

526
feita pelo dedo voluptuoso de Adônis. Seu corpo tinha a
majestade de Débora e as formas acabadas de Medeia. A arte
grega só teria desejado uma coisa em Madalena: transformar
a carne em mármore da Itália.
Todas as tardes Madalena descia ao jardim. As suas
donzelas estendiam um riquíssimo tapete da Pérsia junto
dum corpulento sicômoro, ao redor do qual colocavam
quatro braseiros de ouro, e a mirra, e o incenso perfumavam
com suas tíbias emanações o ambiente. Madalena sentava-se
debaixo daquele verde docel, com cabeça languidamente
apoiada nos moles coxins de seda das Gálias com franjas de
ouro, e o harmonioso saltério sobre os joelhos.
Então uma das suas criadas abria a porta do jardim e
começava a corte do amor. Madalena repartia por igual os
seus ardentes olhares e os amorosos sorrisos ao ver-se
rodeada dos amigos íntimos, os quais, com as mais delicadas
súplicas e as frases mais polidas, instalavam com ela para
que lhes fizesse ouvir os encantos da voz; e então cantava
alguma canção, enlouquecendo o auditório com a doçura da
sua voz e a ardente expressão do seu semblante.
As flores e os hosanas choviam sobre aquela jovem,
rainha da formosura e do amor. Madalena então resplandecia
de felicidade: parecia a rainha Sara no meio da sua corte.
Quando mostrava achar-se fatigada, mandava às
donzelas que dançassem ao redor da árvore, e finalmente,
seguida da sua corte, transportava-se a um lugar do jardim
dedicado aos jogos de pela.
Os romanos tinham-se saturado nos costumes gregos,
levando-os depois pelo mundo conquistado pelas suas
legiões. A juventude alegre da Palestina, os efeminados
descendentes dos fortes de Israel, os que transigiam com o
império ímpio, adotaram as diversões e as modas dos

527
romanos, zombando das ameaças que os rabinos ou doutores
da lei lhes faziam das sinagogas.
Madalena era, na época que vamos descrevendo, mais
que uma modesta filha de Israel, uma patrícia romana. Nos
seus jardins tinha mandado construir o sphoeristerium dos
romanos, onde jogava, antes de tomar o banho, com os
amigos a triagonal, jogo de pela que os jogadores formavam
em triângulo, e, atirando a pela uns aos outros perdia o que a
deixava cair. A falta cometida por uma das jovens, era
satisfeita permitindo que o venturoso moço que tivera a
fortuna de lhe fazer perder, lhe beijasse a mão.
Madalena, seguida da sua corte, depois da música e a
dança, encaminhava-se para o sphoeristerium. Ali, ansiosos
os pretendentes por ganhar o prêmio estabelecido pela
formosa Madalena, serviam-se de todos os recursos
imagináveis para lhe fazerem perder o jogo e beijarem aquela
linda e macia mão tão cobiçada.
Madalena, ágil como um corça, flexível como uma
serpente, com os penetrantes olhos fitos no mancebo que se
dispunha a enviar-lhe a pela ou o volante, defendia a
cobiçada presa, rindo-se como uma doida quando o acaso a
punha em risco de perder. Então o cansaço acendia as
formosas cores da rosa dos Alpes aquelas faces, e o seu
semblante, recobrando que era preciso, como da luz do sol
desviar dele os olhos.
Madalena empregava a arte de agradar com mestria. Às
vezes ao ver ir para ela o volante, escondia as mãos atrás das
costas, deixando-o cair sem oposição alguma. Então ouvia-se
um grito de inveja, e o afortunado mancebo chegava-se a
Madalena para receber o galardão.
A formosa castelã estendia a mão, e, enquanto o feliz
moço imprimia os lábios, costumava dizer-lhe em voz baixa:

528
- Não ganhaste; mas beija-me, que é o mesmo.
O sol escondia-se, e, com grande sentimento da
reunião, Madalena despedia-se dos amigos e, atrás do último
convidado, fechava-se a porta do jardim. O castelo de
Mágdalo, muito silencioso, rodeado de árvores seculares,
ficava só quando a noite estendia as suas sombras pelo
Oriente. Então fechavam-se todas as portas, e alguns criados
velavam da alta ataláia, porque esta fortaleza distava cerca de
uma hora de Cafarnaum. Sem embaraço, estas sentinelas
tinham uma ordem da senhora, como se verá mais adiante.

CAPÍTULO III

O FILHO DO TROVÃO

Madalena, ficando só, encaminhava-se para a sala do


banho, seguida da sua donzela favorita, rindo-se como uma
doida da esperança dos amantes. Ao sair do banho
perfumava o cabelo com essência de rosmaninho, e vestindo-
se com luxo deslumbrante dirigia-se a um pequeno camarim,
onde resplandecia o luxo dos gregos. Naquele camarim havia
uma pequena mesa de mármore com a ceia servida. Uma
lâmpada egípcia, em forma de esfinge, alumiava a habitação.
Cômodos divãs de seda azul rodeavam as paredes. Um leito
de marfim coberto com um conopeo (cortinado de seda)
servia de sobrecéu aos moles almofadões de seda cor de
romã.
Este camarim tinha uma janela que dava para o campo.
A lua penetrava por ela, ao mesmo tempo que os perfumes
inebriantes que exalavam os braseiros saiam ao seu encontro.
Madalena, voluptuosamente reclinada na sua mole cama,

529
com os olhos fitos nas molduras do teto, parecia esperar
alguma coisa.
Assim decorreram duas horas: a donzela, imóvel junto
da janela; Madalena, recostada no leito. Por fim ouviu-se
junto de janela ruído de passos que se detinham; depois no
alto do castelo uma voz, que disse:
- Guardai as flechas!
Estas palavras foram repetidas por três vezes, mas por
uma vez diferente que se ia perdendo no espaço. Madalena
sentou-se, e um sorriso de indefinível prazer lhe assomou aos
formosos lábios. A donzela, caminhando um passo para a sua
senhora, parecia esperar. Madalena, fez-lhe um sinal com a
mão e foi sentar-se no divã, perto da janela.
Pouco depois ouvia-se no meio do campo o som
melodioso duma lira que tocava u’a música. Aquelas notas,
que, no meio do silêncio da noite, subiam à janela de
Madalena impregnadas com o perfume religioso dos campos,
tinham uma melancolia que enchia de doce harmonia o
aposento, levantando um eco amoroso no fundo da alma.
Madalena fechou os formosos olhos como se quisesse
recolher melhor aquelas harmoniosas notas, e murmurou em
voz baixa estas palavras:
- Ah! Boanerges! Tu tocas lira como Terpandro e
Enpédocles; mas eu tenho o fogo de Cleópatra nos olhos e a
sedução de Betsabé nos lábios.
Apenas Madalena disse estas palavras, a lira cessou
por um momento, e uma voz fresca e varonil cantou lindas
estrofes.
Apenas se extinguiu o último acento do noturno canto
no espaço Madalena fez sinal à donzela e, esta tirando dum
pequeno armário, feito no pedestal duma estátua de Adonis,
uma escada de seda, prendeu-a fortemente à janela, e deixou-

530
a cair depois, para a parte de fora. Depois olhou para sua
ama.
- Vai-te, lhe disse Madalena.
A donzela obedeceu. Um momento depois entrava um
homem pela janela. Teria vinte anos. Era formoso, ainda que
de feições um pouco efeminadas.
Vestia uma túnica curta até o joelho duma fazenda de lã
escura, atada na cinta por um cinturão de couro, de que
pendiam dois objetos: ao lado esquerdo um largo punhal de
Damasco; e ao lado direito uma flauta pequena, de metal, de
três buracos. Quando saltou pela janela, tinha a cabeça
descoberta, e na mão um barrete de pele de raposa que
terminava em ponta. Pelas pernas enrolavam-se-lhe umas
correias de pele de cabrito, e seus pés calçavam umas
sandálias bastante toscas. Pendente das espaldas, como se
fosse aljava dum caçador índio, levava uma pequena lira
perfeitamente colocada dentro duma saca de tela.
Este homem, a quem chamaremos desde agora
Boanerges (filho do Trovão), era um desses cantores
ambulantes que se alugam para os banquetes e enterros, cujas
melodias tocadas tanto serviam para o prazer como para a
dor.
Quando Boanerges saltou pela janela, depois de
recolher a escada que lhe tinha servido para subir até ao
aposento, foi ajoelhar-se aos pés de Madalena e esta,
estendendo-lhe a mão, deixou que o noturno cantor
imprimisse nela um beijo.
- Boas noites, meu querido Boanerges, boas noites, meu
querido mestre, lhe disse a senhora de Mágdalo com
dulcíssimo acento. Não era necessário que houvesse cantado
a última estrofe ameaçando-me com a morte para que eu te
abrisse a minha janela. O Deus de Jacó não permitia que eu

531
seja nunca a causa da morte do melhor tocador de lira das
doze tribos, do meu bom mestre, a quem o divino Apolo
colocaria sem vacilar, se o ouvisse, o sistro com a cigarra na
mão e o rouxinol na cabeça.
Boanerges que se tinha sentado aos pés de Madalena,
inclinou a cabeça em sinal de agradecimento pelas lisonjeiras
frases que lhe tributava, e beijou pela segunda vez a mão da
castelã, que ainda conservava entre as suas.
- Agradeço-te, formosa senhora minha, disse o cantor
com voz doce com as notas da sua lira; e peço-te perdão por
ter demorado esta noite a minha chegada.
- Oh! Esta noite fizeste vibrar a corda da tua lira como
nunca.
- Julguei encontrar-te aborrecida.
- E talvez por isso entoaste o sombrio canto do filho do
Trovão, que tanta celebridade adquiriu na Galiléia.
- Esse canto é a minha história: o que se sente exprime
com dobrada paixão.
- Vós, os poetas, sabeis regular perfeitamente as
palavras para que produzam efeito.
- A ceia espera-nos, disse Madalena, levantando-se.
Boanerges levantou-se também.
Então o cantor e a castelã foram sentar-se nos ricos
divãs que rodeavam a mesa ao uso hebraico. A ceia era
frugal. Consistia em dois assados, doces de conservas e
frutas secas. Durante a ceia apenas proferiram uma ou outra
palavra. Boanerges comeu pouco, ocupava-se mais em servir
a senhora de Mágdalo.
Esta mulher, que tinha alcançado dos filhos de Israel o
epíteto de Pecadora; aquela órfã desenvolta, que rendia culto
à formosura e que desprezava os clamores do vulgo, nunca
tinha concedido aos seus adoradores outra coisa que olhares

532
de amor e promessas ilusórias que jamais se realizavam.
Comprazia-se em atormentar os amantes. Tinha o corpo
virgem e a alma corrompida.
Seu coração, sedento de comoções, sentia um vácuo
que o amor dos homens não podia encher. Aquela alma
ardente, insaciável, estava destinada pelo Supremo Ser que
rege os destinos da criatura a amar mais tarde, com o
entusiasmo e a fé dos mártires, o Homem-Deus, que descia à
terra para salvar com o seu sangue o gênero humano.
- Boanerges, disse Madalena, a estrela matutina não
tardará muito a aparecer no Oriente. É tarde: o sono vence-
me; cumpre com o patuado: recebe a recompensa prometida
e vai-te.
Então Madalena fechou os olhos e dispôs-se a dormir.
Boanerges esprendeu a flauta de metal que pendia do cinto, e
começou a tocar uma melodia doce e sentida como o arrulho
da rola namorada. Enquanto o noturno cantor tocava, a
donzela tinha os olhos fitos no rosto de Madalena. Por fim
levantou a mão, indicando ao músico que cessasse, e disse-
lhe em voz mui baixa:
- Dorme.
Então Boanerges chegou-se ao leito, levantou com
cuidado o extremo do flutuante cortinado, e depositou um
manso ósculo na fronte nacarada da formosa senhora de
Mágdalo. Os lábios do cantor enamorado tinham passado
pela fronte de Madalena ligeiramente, como a asa de uma
andorinha sobre a tensa superfície dum lago.
- Toma e vai-te, tornou a donzela, dando uma moeda de
ouro ao cantor.
Boanerges rejeitou aquela esmola com alívio ademã,
dizendo:

533
- Guarda para ti esse ouro, como sempre; mas não digas
à tua senhora que eu o tenho recusado desde o primeiro dia.
Boanerges encaminhou-se para a janela e saltou por ela.
A criada recolheu a escada e tornou a metê-la na pequena
coluna que servia de base à estátua de Adonis. Depois foi
sentar-se sobre uns coxins do leito da sua senhora.

CAPÍTULO IV

BARRABÁS

Naquela mesma noite e à mesma hora em que


Boanerges pulsava a sua lira ao pé da janela de Madalena,
num estreito barranco das vizinhanças de Cafarnaum achava-
se um homem de aspecto feroz e miserável catadura
fortemente atado com correias ao tronco duma palmeira.
Blasfêmias horríveis, maldições ímpias, ameaças espantosas
cima da imunda boca daquele homem, que fazia esforços
inauditos para quebrar as ligaduras que o prendiam à árvore.
Oito homens de rosto crestado pelo sol, barbas hirsutas,
cercavam a palmeira acompanhando com alegres
gargalhadas os desaforados gritos do miserável preso.
A julgar pelos seus vestuários e por algumas azagáias e
flechas espalhadas pelo chão, e pelas compridas e largas
facas que lhes pendiam dos cintos, aqueles homens eram um
desses bandos de malfeitores que infestavam as doze tribos
na época que nos ocupa.
- Canta, Barrabás, canta! Tua voz é alguma coisa
parecida com a do onocrótalo quando desenterra os
cadáveres, disse um daqueles bandidos, dirigindo-se ao
homem que estava amarrado à árvore.

534
- Covardes! Covardes! Clamou Barrabás, deitando pela
boca espuma de raiva. Soltai-me e vereis, tornou Barrabás.
- Oh! Se te soltassemos deitarias a correr, para escapar
à justa vingança dos nosso valentes capitães Dimas e
Gesta;mas não tenhas cuidado, não te soltaremos ainda que
nos lances ao rosto a tua imunda saliva.
- Não me soltais porque me tendes medo.
Os bandidos soltaram em coro uma gargalhada.
- Só as mulheres e crianças, disse uma voz varonil
podem temer-te, miserável assassino.
Os bandidos voltaram-se precipitadamente, exclamando
com respeito:
- O Capitão!
- Que fez esse? perguntou o homem que tinha
aparecido tão improvisadamente entre os bandidos,
indicando Barrabás.
O que fez esta pergunta era um homem de cinquenta
anos, de barba branca e rosto venerável.
Chamava-se Dimas, e em nada se teria conhecido à
infamante profissão que exercia.
- Já sabes, capitão, disse um dos bandidos indicando
Barrabás, que este descobriu a nossa guarida aos soldados de
Pilatos, o governador. Infame! Por um punhado de ouro faz-
nos perder a nossa querida fortaleza de Hebal! Tu, capitão,
depois da terrível refrega daquela noite em que o nosso bom
companheiro Uries perdeu a vida e tu recebeste uma cutilada
no ombro, recomendaste-nos que apanhássemos este traidor;
Gestas recomendou-nos o mesmo; e hoje caiu-nos felizmente
nas mãos: surpreendemo-lo numa caverna da vizinhança do
lago; acabava de assassinar vilmente um pobre velho que se
recusava a entregar-lhe umas quarenta moedas de prata, fruto
da sua colheita. Quando nós entramos na caverna, o pobre

535
velho revolvia-se num lado de sangue; como se nada
houvesse feito, sentado numa pedra, se entretinha em contar
o dinheiro sem fazer caso dos lamentos do velho, o qual nos
disse antes de morrer que Barrabás o tinha ferido. Nós então
apoderamo-nos dele, e como nos tinha dado ponto de reunião
neste barranco, apresentamos para que faças o que melhor te
aprouver deste miserável.
Dimas, que tinha escutado a narração do bandido com
os braços cruzados sobre o peito e os olhos fitos em
Barrabás, que tremia de medo, disse secamente.
- As víboras esmagam-se para que não envenenem a
carne sã com suas mordeduras. Degolai-º
O bandido que tinha falado tirou o largo punhal da
bainha e disse aproximando-se da árvore:
- Vou fazer a honra a esse lobo de o degolar: sinto-o
pelo meu punhal, que nunca se verá, ainda que o afie, limpo
de tal nódoa.
- Dimas, és um covarde, exclamou Barrabás; se me
achasse só contigo nos montes de Judá, me deixarias a
passagem franca e tirarias o turbante para me saudar.
E dizendo isso cuspiu no rosto do capitão. O olhar
bondoso de Dimas despediu um raio de luz sinistra. Seu rosto
tingiu-se de cor de sangue, e, tirando rapidamente o punhal
da bainha, exclamou com voz de trovão:
- Soltai esse homem!... Soltai-o!...
E, como visse que ninguém lhe obedecia, correu para
Barrabás, e cortando as ligaduras que o tinham preso à
árvore, tornou a exclamar: - Já és livre! Livre como eu... dai
um punhal. Defende-te, porque vou matar-te.
Dimas levantou a fronte com altivez, e com o olhar de
leão irritado esperou o adversário. Barrabás, ainda que solto,

536
não se mexia do lugar. Os olhos e o gesto de Dimas,
aterravam-no.
- Defende-te, miserável, repetiu o capitão; - e para
excitar o valor do seu adversário deu-lhe uma terrível
bofetada, que ressoou no silêncio da noite.
Barrabás caiu ao chão como se houvesse recebido um
golpe de maça na cabeça. Pela asquerosa boca saía-lhe uma
torrente de sangue
- Oh! exclamou cobrindo a cara com as mãos; de que te
serve correr sempre atrás desse falso profeta que se levantou
em Israel com o nome de Jesus? Como te mostras tão
admirador da sua nova lei? Porque aprendes as suas
parábolas de cor, e os seus mandamentos, se não os
praticais? “Perdoai aos vosso inimigos; dizia uma tarde em
que o ouvi nas vizinhanças de Naim; “socorrei os desvalidos,
protegei os fracos... “ Isto dizia, e tu o escutavas imóvel
como a torre de Davi; e contudo, humilhas-me porque tens
mais força do que eu, porque estás entre os teus, que te
vingarão se te matar; covarde, covarde, covarde!
E Barrabás batia com a cabeça no chão. Dimas
embainhou o punhal. Seu semblante serenou subitamente. As
palavras daquele homem ressoaram-lhe no fundo do coração.
Os olhos tornaram a adquirir o doce e compassivo olhar do
costume, e com uma voz suave como a dum mártir que olha
para a morte sem a temer, e a chama, disse lançando uma
bolsa cheia de moedas aos pés de Barrabás:
- És livre, vai-te: perdo-te a vida e o insulto.
- Livre! exclamou Barrabás apanhando as moedas e
levantando-se de um salto, ligeiro como um gato montês.
- Sim, livre.
- E posso retirar-me?

537
- Para onde quiseres. Invocaste o nome do Messias, do
Salvador de Israel, do Mestre divino: eu, em seu nome,
perdo-te. Vai-te!
Barrabás olhou em redor com assombro e tartamudeou
com medroso acento:
- Queres escarnecer de mim? Dizes-me vai-te, e quando
me for, me arrojarás a azagaia pelas costas.
- Vai-te, miserável: eu desprezo-te; as minhas armas
não se mancharão com o teu impuro sangue.
Os bandidos que cercavam Dimas exalaram um
murmúrio de desaprovação.
Barrabás apoderou-se da bolsa que Dimas lhe tinha
lançado aos pés, e deitou a correr. Alguns bandidos fizeram
menção de o seguir; porém, Dimas gritou-lhes com voz
imperiosa:
- Ninguém se mova! Deixai-o!
Entretanto Barrabás, com rapidez incrível, tinha trepado
pela empinada ladeira do barranco. Depois desapareceu.
Dimas reuniu em torno de si os seus bandidos.
- Ouvi-me, lhes disse: eu vou separar-me de vós por
alguns dias. Gestas, meu amigo, dirigirá entretanto as vossas
empresas. Espera-vos no asilo da água nos montes de Judá:
bem sabeis, no extremo da via Sangrenta. Ide, pois reunir-
vos com ele.
E o prudente capitão, sem esperar resposta, pegou na
azagaia que tinha posto no chão pouco antes, e encaminhou-
se para o lago da Galiléia, que se achava ao norte do
barranco.

CAPÍTULO V

OS PRIMEIROS CANTOS DO CISNE DA GALILÉIA

538
Os nossos leitores lembrar-se-ão do capítulo que com a
epígrafe de Um cavaleiro que rouba em despovoado,
deixamos consignado num dos livros precedentes. Dimas ao
apresentar Enoé aos seus companheiros, dissera-lhes:
O célebre bandido dos montes de Samaria cumprira a
palavra à escrava favorita do desgraçado príncipe Antípatro.
Desde então Enoé foi a irmã de Dimas, e os seus
companheiros respeitaram-na.
Alguns meses depois, numa noite de tempestade, em
que o trovão e o relâmpago cruzavam ameaçadores pelos
ares, Enoé, no velho e desmantelado castelo de Hebal, deu à
luz um menino, formoso como o primeiro sorriso da aurora.
A egípcia confiou ao generoso bandido que aquele menino
era filho do príncipe Antípatro, e Dimas jurou ser seu
protetor enquanto vivesse. Os bandidos puseram ao tenro
pimpolho o nome de Boanerges, porque nascera numa noite
de trovões e relâmpagos.
Seis anos permaneceu Enoé na fortaleza. Dimas
respeitou sempre aquele sensitiva enamorada da memória
dum morto. Os bandoleiros respeitavam a dor de Enoé, e
amavam com toda a força de seus rudes corações o menino
Boanerges.
Enoé tocava citara, lira e saltério, de modo admirável.
Sua voz era clara como a estrela que precede o dia, doce
como o favo das abelhas, apaixonada como o arrulho da rola.
Os bandidos chegavam a ponto de chorar ouvindo os seus
cantares. Mas Enoé, a quem chamavam pelo respeito que ises
inspirava, Sara, era boa e condescendente com aqueles
desgraçados. Ela preparava sua frugal comida e amassava
diariamente as suas tortas de farinha. Curava suas feridas e

539
passava a noite de vela à cabeceira dos seus leitos de folhas
secas. Um dia Dimas disse-lhes:
- Enoé, não podes permanecer mais conosco sem
correres grave risco. No dia em que os soldados do tirano de
Jerusalém descubram a nossa guarida, serás crucificada. E
sendo inocente, como és, dos crimes que cometemos, não
quero expor-te.
Enoé encolheu os ombros mostrando que tudo lhe era
indiferente. Dimas lembrou-lhe então que tinha um filho, e
Enoé, abraçando Boanerges, respondeu:
- Tens razão, meu irmão; para onde hei de ir?
- Esta noite partiremos; comprei-te uma modesta
casinha perto de Cafarnaum, na margem do lago da Galiléia.
Aquele país é tranquilo e ali não correis perigo nem tu nem
teu filho. Eu irei ver-vos sempre que as minhas ocupações o
permitam. Bem sabes que nunca hei de abandonar-te.
Enoé beijou a mão daquele homem generoso, que o
acaso lhe tinha deparado e alguns dias depois achava-se
estabelecida na sua nova habitação de Cafarnaum, Enoé, na
solidão do seu retiro, ocupou-se só na educação de seu
amado filho. A natureza tinha dotado Boanerges de um
coração de fogo e de uma inteligência clara. Sua mãe pôs um
dia a lira na mão do menino e ele chegou a ser um grande
músico.
Deus tinha-lhe dado a inspiração dos poetas.
Boanerges, aos quatorze anos, tocava lira e cantava com a
mesma doçura que uma virgem do templo de Sion. Uma
noite Enoé chorava com os olhos fitos nos tições do lar. Era
o aniversário natalício de Boanerges.
Aquela pobre enamorada talvez pensasse no seu infeliz
amante.

540
Boanerges tinha a lira na mão e pôs-se a tocar uma
melodia tão triste como o coração de sua mãe. Enoé levantou
a cabeça. Não conhecia aquele canto: mas não disse nada.
Sem saber como, Boanerges pôs-se a cantar:

Eternamente nos teus olhos o pranto vejo, senhora.


Dize-me, mãe querida, porque chorais?
Se a causa das tuas mágoas é o filho que te
Então, recebe a minha vida, e não chores mais!

- Quem te ensinou essa canção? perguntou Enoé


enternecida.
- As tuas lágrimas.
- És então poeta? tornou a perguntar com certo orgulho
aquela mãe.
- Ignoro: senti o que cantei.
- Oh, Deus te abençoe! E Enoé abraçou ternamente o
filho cobrindo-lhe o rosto de beijos e lágrimas.
Boanerges, como os rouxinóis da espessura, como as
cotovias no espaço, cantava sem saber a razão disso, porque,
como as aves, recebia dos dons de sua inspiração do céu.
Dimas, pela sua parte, ensinou aquele menino, a quem amava
como filho.
A fama levou o nome do Filho do Trovão pelas doze
tribos, Boanerges começou a fazer excursões com a lira às
costas pelas cercanias de Cafarnaum. A tribo de Zabulon foi
o seu primeiro teatro. Os que o ouviam exclamavam com
espanto:
- Canta como um cisne.
Os israelitas, propensos a pôr apelidos, chamaram-lhe
em breve o Cisne da Galiléia. Boanerges cantava sempre.
- A minha amada morreu lhe dizia um.

541
E Boanerges cantava à dor.
- Minha esposa deu-me um primogênito, lhe dizia
outro.
E o cisne da Galiléia, cantava ao prazer.
Uma noite muito escura, Boanerges ia por um tortuoso
caminho em direção a Cafarnaum. De repente um homem,
como se nascesse da terra, levantou-se ante ele. Aquele
homem pôs-lhe a afiada ponta dum punhal ao peito e gritou-
lhe em voz de mando:
- Alto!
- Eh! Devagar, bom homem, respondeu Boanerges sem
se perturbar; tira-me a tua arma do peito. Que lucrais com
matar o Filho do Trovão, o Cisne da Galiléia?
- Boanerges!... exclamou o homem retirando o punhal.
- Conheces-me?
- Algumas vezes te acalentei sobre os joelhos.
- Ah! Então pertences aos bravos que capitaneia o
generoso bandido da Samaria... Sabes onde se acha?
- Segue-me.
O bandido conduziu Boanerges a uma gruta. Ao redor
duma fogueira achavam-se dez ou doze bandidos. Tolos
voltaram a cabeça, e ao reconhecerem o jovem trovador
soltaram um grito de alegria. Dimas saiu ao seu encontro e
deu-lhe um abraço.
- Que é isso Boanerges? Está por desgraça tua mãe
enferma? Sucedeu alguma coisa em tua casa?
- Felizmente acha-se boa.
- Então?... tornou Dimas como estranhando encontrá-lo
naquele lugar àquelas horas.
- Venho das bodas que se celebraram esta manhã numa
aldeia das margens do lago, e a noite surprendeu no caminho.

542
- Então ficarás conosco; daqui a tua casa há três horas,
e a noite está escura.
Boanerges ficou com os bandidos. Depois da ceia
pediram-lhe que lhes fizesse ouvir a doçura da sua voz e a
harmoniosa da sua lira. O trovador perguntou-lhe que
queriam que cantasse. Um dos bandidos disse:
- Canta-nos alguma coisa do nosso ofício, que
possamos aprender e cantar nos momentos de perigo; uma
canção que reanime o nosso valor, com as que Davi dirigia
aos seus guerreiros.
Boanerges meditou um momento. Depois improvisou-
lhes um canto guerreiro que se tornou popular em Israel.
Boanerges era um poeta que percorria a terra conquistada por
Davi com a lira na mão. Assim chegou à idade das paixões.
Um dia apresentou-se um homem à porta da sua cabana.
- És tu o cisne da Galiléia? lhe disse.
- Assim costumam chamar-me os aduladores,
respondeu o poeta.
- Pois uma senhora deseja ouvir-te... hoje dá um
banquete aos seus amigos; queres vir? Pagar-se-te-á bem. É
a estrela de Mágdalo, a pérola de Betânia.
- Ah! exclamou o poeta; dizem que é muito formosa.
Sua fronte tem a brancura do lírio, seus olhos o azul do
céu, seus cabelos o brilho do ouro; seus lábios são dois
terebintos unidos pela mão duma deusa, respondeu o
emissário.
- És poeta? lhe perguntou Boanerges.
- Não, sou pintor; retratei esta pérola de Betânia,
porque precisava dum modelo para Helena e ela deu-me o
encargo de procurar.
- Então espera que dê um adeus à minha mãe e
partiremos.

543
Boanerges foi ao castelo de Mágdalo. Durante o
banquete, amenizou o prazer da mesa com a doce harmonia
da lira e o terno encanto da sua voz. Todos os seus versos
eram dirigidos à senhora de Mágdalo. O músico-poeta
embevecido ante a deslumbrante formosura de Madalena.
Ao terminar o festim, Madalena fez com que Boanerges
a acompanhasse até o gabinete que os nossos leitores já
conhecem, e disse-lhe:
- Na verdade és um cisne; nunca ouvi nada que se te
avantaje. Estou satisfeita, e dou-te os agradecimentos pelos
versos que me dedicaste: pede o que quiseres e concedo-to.
Boanerges respondeu com toda a veemência do seu
coração impressionável:
- Quero o teu amor!
- Pedes muito, mancebo, respondeu, sorrindo-se,
Madalena, que não desgostara da altivez do músico.
- Que é preciso para o alcançar?
- Merecê-lo.
- Indica-me o modo, e por difícil que seja eu o
conseguirei. Quando um homem como eu deseja alguma
coisa, não lhe importa jogar a vida para ganhá-la.
Madalena sentiu por aquele jovem altivo, alguma coisa
desconhecida até então ao seu coração, e disse-lhe:
- Ouve, pois, o que quero. Todas as noites, quando os
galos anunciem nos seus cantos a meia noite, acharás uma
escada pendurada à minha janela: subirás por ela.
- Ah! exclamou o poeta, crendo que Madalena ia
recompensar o seu amor.
- Espera, tornou Madalena. Ainda não terminei. Com as
vibrações da tua lira recrearás os meus ouvidos durante a
ceia. Depois acalentarás o meu sono.
- E que recompensa receberei pelo prazer de ver-te?

544
- Quando dormir permito-te que me deposites um
ósculo na fronte, e depois a minha criada te entregará uma
moeda.
- Rejeito a moeda; admito o ósculo, respondeu
precipitadamente o cantor.
- Quero que admitas ambas as coisas. Quero
experimentar se me amas, se tens suficiente valor para fazer
todas as noites o mesmo.
- Isso é um tormento.
- Só por esse preço poderei talvez amar-te amanhã.
Aceitas?
- Poderei falar-te do meu amor?
- Só quando improvises, ao som da tua lira.
- Aceito.
- Então vai-te, e até amanhã.
Boanerges havia três meses, que, sem faltar uma noite,
ia ao castelo de Mágdalo. Toda as noites depositava um
respeitoso ósculo na fronte de Madalena. Esperava a
recompensa da sua constante paixão; porém Madalena não
amava ninguém.
Enoé, com essa delicada sagacidade das mães,
conheceu que seu filho não era feliz. Ao ver o seu desalento
quis reanimá-lo, e então lhe contou a história de seu pai.
Boanerges soube que lhe corria pelas veias sangue real.
Explicados estes antecedentes, tornemos a encontrar
Dimas. O bandido, quando depois de conceder a liberdade ao
miserável Barrabás, se encaminhou para o povo de
Cafarnaum, residência de Enoé, a egípcia. Isto sucedeu na
mesma noite em que Boanerges cantou a Madalena a canção
da Formosa Pecadora

CAPÍTULO VI

545
LUZ NA ALMA.

Dimas parou enfim diante duma casa de pobre


aparência situada na margem do Lago de Genezaré, e a mui
pequena distância da cidade de Cafarnaum, e deu com o coto
da azagaia três pancadas compassadas na frágil madeira da
porta.
- Quem bate a estas horas? disse uma voz de mulher no
interior da casa.
- O que deseja entrar, respondeu Dimas de fora.
Isto sem dúvida era uma senha convencionada, pois
imediatamente se abriu a porta. Dimas entrou, e sentando-se
num banco disse.
- Boas noites, Enoé.
- Bem-vindo sejas, Dimas.
- E teu filho? perguntou o bandido.
- Meu filho não volta à casa sem que no céu assome a
estrela matutina.
- Onde passa as noites?
- Ignoro.
- Ama talvez?
- Isso presumo.
- Devia procurar averiguá-lo.
- O amor verdadeiro é pouco comunicativo; rejeita a
liberdade e escolhe um cárcere onde não penetram os raios
do sol, a alma.
- O que ele ama mais no mundo é sua mãe.
- O filho tem um amor imenso que mata o amor da
mãe; é o que sente pela mulher que o fascina. O Mestre
Divino, o Messias que percorre a terra de Israel, disse: “Pela
esposa deixarás teus pais.

546
- É verdade, murmurou Dimas ficando dolorosamente
com os olhos fitos no chão, como se aquela citação que
acabava de pronunciar a egípcia lhe houvesse recordado
algum pensamento doloroso.
Houve um momento de silêncio. Enoé pensava em seu
filho; Dimas, em Jesus. Por fim a mãe de Boanerges disse
com a sua voz doce e apaixonada:
- Que tens irmão? O teu olhar é triste como o gemido
dum moribundo.
- Tenho, Enoé... que ouvi pela terceira vez a palavra do
Mestre de Galiléia.
- Estiveste em Betânia?
- De lá venho.
- Está ali Jesus?
- Vi-o à porta da cada de Lázaro, sentado à sombra
duma palmeira. Multidão de gente o rodeava; todos os
desgraçados das vizinhanças que buscavam a consolação
dos seus males no poder divino da palavra desse Homem
extraordinário, que traz escrita na fronte a majestade de
Deus, que tem a luz dos céus nos olhos e a sabedoria dos
profetas nos lábios. Ao redor de si tinha crianças: umas
sentadas sobre os joelhos, outras ao seu lado; sua mão
acariciava como um pai amoroso aquelas cabecinhas. Estava
falando. Um silêncio sepulcral reinava em redor dele. Nem o
zéfiro se agitava entre os ramos altivos da palmeira, nem as
aves cantavam. Parecia que a natureza havia calado os seus
mil ruídos para o ouvir. Os meninos olhavam-no sem
compreender. Detive os passos para o escutar também. Jesus
fitou os formosos olhos na minha pessoa, e enviou-me um
sorriso cheio de bondade. Senti aquele sorriso penetrar-me
no fundo da alma, e uma voz terna, amorosa, que me dizia:
“Dimas, afasta-te do caminho que segues; não entesoures

547
para ti na terra onde tudo consome a traça; entesoura no céu,
onde nem os homens roubam, nem a traça consome”. Um
estremecimento estranho me agitou o corpo; a luz dos olhos
escureceu-me; senti um ruído espantoso nas fontes e baixei
os olhos envergonhado.
Dimas deteve-se. Pela fronte corriam-lhe grossas gotas
de suor; o corpo tremia, e a voz ia-se apagando pouco a
pouco.
- Esse homem é Deus, disse pausadamente Enoé.
- Sim, minha irmã, Deus, que baixou à terra dos
homens para se salvar. O que escuta uma só vez a santa
bondade da sua doutrina, não duvida; a fé brota no seu
coração. Jesus leu no meu , pois pela segunda vez me
ressoou a sua voz nos ouvidos, dizendo: “Dimas, vejo a tua
fé; a tua morte será gloriosa; exalarás ao meu lado o último
suspiro, e comigo entrarás na mansão de meu Pai”.
- Que queria dizer-te com isso? perguntou Enoé.
- Ignoro... Mas há mais de trinta anos, eu era muito
moço, quando uma noite dei hospitalidade no meu castelo a
uns pobres viajantes que levavam um Menino de três meses:
aquele Menino chamava-se Jesus, e apesar da tenra idade, ao
despedir-me d’Ele ao dar-lhe um beijo na fronte, que
resplandecia como a porta do templo de Sion, disse-me ao
ouvido: Dimas, tu morrerás comigo. Já ouviste, Enoé, falar
um menino de três meses.
- Oh! Nunca!
- Pois aquele menino falou, e é hoje um homem que se
chama Emanuel (Deus, conosco).
- Dimas, desde que Jesus percorre as tribos, os cegos
vêm,os coxos andam, os mortos ressuscitam, murmurou com
voz profética Enoé.

548
- Sim, Deus está entre nós. Eu sinto uma voz secreta
que grita no fundo do meu ser. “Detém o passo, afasta os
olhos da terra, e olha para o céu. Tenho remorsos, Enoé. A
vida que por espaço de trinta e quatro anos levei, pesa-me
sobre o coração, e decidi desviar-me do caminho do crime:
abdiquei todo o sinistro poder que se achava nas minhas
mão, nas de Gestas.
- Ah! Agradecida, meu irmão, não sabes o prazer que
me causam as tuas palavras; temia ver-te nas mãos dos
soldados de Pilatos
- Desde amanhã seguirei os passos de Jesus. Ele
perdoará as minhas culpas, que são muitas, e me fará bom
em paga da fé que sinto no coração.
Dimas e Enoé ficaram silenciosos. Aqueles dois
corações rasgados pelo amor e outro pelos remorsos,
esperavam tudo do Pastor de almas que percorria a terra dos
homens em busca do martírio.

CAPÍTULO VII

O FESTIM DE MACHERONTE

Vede-o, ali está: é Macheronte, gigante de granito que


das fronteiras da Judéia ameaça eternamente os árabes
rapaces que habitam as solitárias praias do mar Morto. A lua,
derrama os puros raios da sua fronte sobre seus altos muros e
denegridas torres.
Que sucede em Macheronte? Aquela fortaleza erguida
ali pela mão poderosa dos senhores de Israel para deter as
invasões do faminto árabe; aquele escudo de guerra onde
tantas vezes se espedaçou a flecha do filho do deserto; aquele
montão de rochas inexpugnáveis cuja entranhas o avarento

549
Antípas sepultava os seus tesouros, converteu-se na mansão
do prazer, da preguiça, da voluptuosidade, do amor? Porque
em vez do grito de guerra se escutam os doces acordes da
música, o apaixonado canto dos trovadores de Israel?
Porque o mês de Elo chegou ao meio da sua carreira, e
Herodes Antípas reuniu no seu inexpugnável castelo de
Macheronte, os mais valentes oficiais das suas legiões, os
mais nobres herdeiros da Galiléia para celebrar um
esplêndido festim por seu aniversário natalício.
No festim de Macheronte as mulheres ostentavam
diademas de pérolas à moda da Pérsia, redesenha de
esmeraldas, coroas de ouro, e algumas, no impudico e mal
coberto colo, mostravam gargantilhas de diamantes para
chamarem para aquele ponto os lúbricos olhares dos
mancebos. A maior parte daquelas bacantes da Palestina que
esqueceram a voz profética de Gerencias, tem as cabeças dos
dedos tingidas da cor purpurina da rosa silvestre, e as
sobrancelhas e liras, as maviosas flautas e as penetrantes
cítaras, enchem com suas mágicas harmonias os âmbitos do
amplo salão de Macheronte.
Mais de cinquenta convidados de ambos os sexos se
acham em volta da esplêndida mesa a que preside a impudica
Heródias. Os vinhos da Itália começam a embriagar a cabeça
dos sibaritas de Israel.
Os olhares provocadores das mulheres fascinam os
ardentes cérebros dos jovens convidados.
- Brindo, exclama um centurião romano quase
embriagado, pelas lágrimas do rei Areias e pela
desconsolação de sua filha.
Este ímpio brinde foi seguido de uma hosana de
entusiasmo. As lágrimas da mulher de Antípas, tão vilmente
repudiada, faziam rir a corte do miserável tetrarca da

550
Galiléia. Heródias agradeceu com um olhar ao romano
aquele brinde. Aquela miserável adúltera estava preocupada
durante o banquete. Um pensamento horrível lhe fervia no
cérebro. Só esperava uma ocasião oportuna para o realizar.
Neste momento abriu-se a porta. Heródias soltou um
grito de prazer. Todos dirigiram os olhos para a porta.
- Oh! exclamou Antípas fascinado; é Salomé minha
adorada filha adotiva; que formosa está! Parece uma ninfa
surgindo dentre as espumas do mar. Adiante, minha filha,
adiante só um anjo faltava nesta festa deliciosa para que o
festim tivesse alguma coisa de celestial.
Salomé, a filha de Heródias, caminhou alguns passos, e
ao chegar ao lugar que ocupava Antípas apresentou-lhe a
fronte para que o beijasse. Aquela menina contava apenas
quinze anos; sua formosura era provocadora, fascinante,
longos caracóis negros e lustrosos lhe caíam sobre os
ombros; o seu corpo, apenas coberto até à cintura por um véu
de finíssima faze de romã, deixava ver o roliços braços e
nascentes seios aos cobiçosos olhares dos convidados. Trazia
uma saia branca que lhe chegava até ao tornozelo, e outra
saia de seda azul por cima, um pouco mais curta. Ricos
braceletes lhe brilhavam nos braços, e um primoroso
diadema de diamantes lhe rodeava a cabeça. Os brincos que
lhe adornavam as pequenas e rosadas orelhas eram
simplesmente dois fios de pérolas. Nas pequeninas mãos
agitava uma pandeireta com cascavéis de ouro.
Depois de receber o beijo de seu pai adotivo, olhou
Salomé para sua mãe. Os olhos de Heródiase resplandeciam
de prazer. Sua filha estava radiante de formosura. Sua
presença no salão tinha eclipsado o brilho às mais formosas.
Aquela jovem era, mais que uma realidade, um sonho

551
fantástico. Antípas, embelezado na contemplação da sua
afilhada, tinha fiado com a taça na mão.
Heródias, fez sinal a Salomé, e a jovem pôs-se a tocar
pandeireta e a dançar diante do tetrarca da Galiléia. Seria
impossível descrever os ademãs desonestos, a impudica
desenvoltura daquela jovem que, amestrada por sua adúltera
mãe, arrastava aos pés daquela corte corrompida, o mais
precioso o mais caro para uma jovem: o pudor da
adolescência.
Os aplausos, o entusiasmo aturdia com seus impuros
gritos aquela menina corrompida. Salomé dançava, sem
trégua e sem mostrar fadiga. O suor corria-lhe pela fronte
corada pelo cansaço. Por fim caiu quase desfalecida nos
braços de Antípas. Este apertou-a ao coração, ébrio de
prazer. Naquele momento de entusiasmo, e quando dava à
jovem na afogueada face o beijo de agradecimento, disse-lhe
com infinita alegria:
- Formosa e incomparável Salomé! Tua cintura é
flexível como a tenra palma que cresce nas margens de um
lago, quando a agita o zéfiro da manhã; teus olhos tem o
brilho irresistível do diamante ferido pelos raios do sol. Os
gênios da graça e do amor não podem formar outra mais bela
que tu. Pede, minha filha, pede o que quiseres que eu te
prometo debaixo da palavra de honra que concedo, ainda que
me pedisses metade do reino.
Salomé procurou sua mãe. Heródiase abraçou sua filha
com um entusiasmo que nunca sentira.
- Já ouviste, exclamou Salomé, o que me disse teu
esposo, meu senhor? Que te parece que lhe peça, minha
mãe?
Pede-lhe a cabeça do Batista.

552
A jovem correu para Antípas. Alguns cortesãos o
rodeavam, elogiando a graça irresistível de Salomé. Ao
verem-na chegar abriram passagem. A filha da infame
adúltera, ajoelhou-se aos pés do tetrarca.
- Venho, senhor, lhe disse, reclamar o oferecimento que
há pouco me fizeste. Peço, senhor, a cabeça de João Batista,
sobre um prato.
Estas palavras produziram um efeito mágico. Os
miseráveis cortesãos de Antípas, aplaudiram com entusiasmo
o criminoso capricho de Salomé. O tetrarca tinha dado a
palavra, mas vacilava.
- Tenho a tua palavra, senhor, que é sagrada, tornou a
desenvolta jovem.
- É verdade, disse um cortesão, adulador desprezível da
adúltera Heródias; tu, senhor, disseste-lhe que pedisse o que
quisesse, e essa jovem desinteressada, quase heróica, pede a
cabeça desse transformador da ordem pública, desse
andrajoso, que fazendo crer que era inspirado pelo Santo dos
Santos, embarcava as tribos pondo em grave risco a
tranquilidade da Galiléia.
A maior parte dos cortesãos apoiaram as palavras do
seu companheiro, Antípas, ainda que com alguma
repugnância, chamou um oficial do castelo, e disse-lhe:
- Desce ao calabouço de João e manda a uma salão que
lhe corte a cabeça. Põe sua cabeça num prato e depois
entrega-a a esta menina.
Então, barbaridade inaudita, Heródias faz um sinal aos
músicos e empunhando uma taça, convidou os convivas a um
brinde, dizendo:
- Pela graça da dançarina, pelos encantos irresistíveis
de Salomé, minha filha.

553
Todos esgotaram a taça, exceto Antípas, em cujo rosto
se pintava o remorso. O festim continuou com a mesma
alegria, com a mesmo entusiasmo. Que importava para
aqueles infames e a vida dum homem, como João Batista?
Entretanto, num tétrico e úmido calabouço, onde não
penetrava a luz do dia, um homem ainda moço gemia entre
as grossas cadeias que o prendiam a um banco de pedra.
Aquele homem chamava-se João Batista; era o Santo
Precursor de Cristo. Na noite do festim que bosquejamos,
dormia com o sono tranquilo do justo, sobe as duras pedras
que lhe serviam de leito. Aos seus ouvidos não chegava o
báquico estrondo do banquete, celebrado na parte alta do
castelo. Havia sete meses que esperava em vão, dia após dia,
ver quebradas as suas cadeias. Dois pensamentos lhe
preocupavam a imaginação: os milagres do Messias, cuja
fama tinha chegado até o seu cárcere, e ver a luz do sol.
Quando os algozes entraram no cárcere, João dormia
tranquilamente. O ruído das armas, o clamor dos archotes
acordou-º O oficial encarregado de tão horrível sentença
estava pálido. João dirigiu-lhe um olhar cheio de compaixão.
- Vens, lhe disse, anunciar-me a hora da minha
liberdade?
- Venho, disse baixando os olhos para o chão, anunciar-
te a hora da tua morte.
João não se inquietou. Um sorriso cheio de santa
resignação lhe assomou os lábios.
- Faze, pois o que te mandam, disse sem levantar a voz.
Só sinto morrer sem beijar os divinos pés de Cristo, que
percorre a Galiléia pregando a nova lei. Mas dize à tua ama e
ao adúltero Antípas, que pelas terras de Israel vai o que há de
vingar a minha morte; que eu deploro, no último instante
desta vida passageira, que eles me tiram, o fim que lhes está

554
reservado. Antípas, Heródias e Salomé sua filha morrerão em
terra estrangeira, abandonados de Deus e dos homens. Agora
fere, verdugo, fere sem receio, que eu te perdôo.

CAPÍTULO VIII

O SONHO DE UM ASSASSINO

Quando terminou o festim, o oficial encarregado da


terrível sentença, apresentou a Salomé a cabeça de João num
prato, dizendo-lhe:
- Toma formosa jovem, o prêmio que cobiças pelas tuas
graças.
- Aqui tens, minha mãe, o que me pediste.
Heródias tirou o pano e pôs-se a contemplar a lívida
cabeça do Batista. Depois tirou um alfinete de ouro do
cabelo, e entreteve-se em picar aquela língua que lhe tinha
chamado adúltera. A mulher de Marco Antonio tina feito o
mesmo à língua de Cícero. Parace incrível tanto rancor, tanta
ferocidade, no coração de uma mulher.
Entretanto, Antípas tinha-se deitado. Em vão procurava
o covarde assassino de Macheronte conciliar o sono. Mil
sombras ensanguentadas lhe passavam pela mente. O oficial
tinha-lhes dito as últimas palavras de João, e a serenidade
com que tinha visto brilhar a arma homicida sobre o pescoço.
Antípas, o assassino, conseguiu por fim adormecer.
Mas ai! então se apresentou ante os olhos da sua febricitante
imaginação o horrível futuro que o esperava. Viu em sonhos
um poderoso exército que, atravessando as altas cordilheiras
do monte Hermon, parava na planície de Aubanitide.
Aqueles soldados, de rosto tostado pelo sol do deserto,
vestiam brancos alquiceres que flutuavam à mercê do vento.

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Em suas calosas mãos brilhavam os curtos alfanges e as
leves lanças. Seus cavalos corriam com a rapidez do vento.
Aquele exército era comandado por um ancião de nobre
semblante e barba branca. Tinha um estandarte negro na mão
esquerda, e um pesada acha de armas na direita. Um
capacete de ferro, ao redor do qual brilhavam as folhas duma
coroa de ouro, lhe cobria a cabeça. O cavalo que montava
obedecia à voz. As rédeas eram inúteis. O estandarte tinha
um letreiro. Os cerrados olhos de Antípas leram aquele
letreiro que dizia: “Aretas, rei da Arábia, vingará sua filha”.
Grossas gotas de suor caíam da fronte do adormecido
tetrarca da Galiléia, porque aquele nome era o do rei cuja
filha acabava de repudiar para se unir com a mulher de seu
irmão, com a vingativa Heródias. O exército árabe, que se
encaminhava a vingar a filha do seu senhor, deteve-se nos
campos de Betânia e a cerca duma hora da cidade de Gaulon.
Antípas viu outro exército que saía da cidade. Adiante
daquele exército, montado num cavalo negro como a dor e
impaciente como a ira, via-se um homem vestido com trajes
dos senhores hebreus. Aquele homem chamava-se Filipe; era
o esposo escarnecido de Heródias, o irmão de Antípas. Filipe
e Aretas falaram com calor por longo espaço debaixo duma
tenda. O miserável verdugo de João viu como aqueles dois
caudilhos apertaram a mão um ao outro, e ouviu este
juramento: “Guerra de extermínio a Herodes Antípas!”
Depois os dois exércitos, o árabe adiante e o de Filipe
atrás, encaminharam-se para o Jordão em som de guerra. Ao
chegarem à margem oposta do Corazin vadearam o rio, e,
como o simun, se estenderam devastando tudo pelas
pacíficas tribos de Neftali até Zabulon.
Antípas ouvia o lamento dos seus súditos, cujas
gargantas eram segadas pelo alfanje do invasor. Estas

556
maldições lhe chegaram aos ouvidos: Maldita seja a mulher
adúltera! Deus castigue os galileus porque permitem que os
governe um rei covarde e vicioso. Maldito seja Antípas,
maldita seja Heródias, maldita seja Salomé!
Entretanto, Aretas e Filipe conquistando cidades e
talando campos, chegaram a Tiberíades. Antípas, teve medo
e fugiu com sua esposa e sua infame afilhada. De noite
rodeado dum punhado de mercenários romanos, expostos a
cair cem vezes cada dia em poder dos invasores, chegaram à
torre de Stralon. A força de ouro, a lancha de um pescador,
correndo mil riscos, os transportou a Tiro. Esta viagem
custou-lhes muitas noites, temiam navegar de dia. Heródias
enfermava; porém, dum mal estranho, desconhecido. Antípas
via de dia em dia apagar-se a beleza daqueles olhos que lhe
tinham feito cometer uma infâmia.
Salomé, encerrada na sua for, amaldiçoava aquele
monarca desterrado. Por fim chegaram a Roma.
Antípas tinha uma esperança: Tibério, mas ai! Tibério
tinha deixado o cetro de Roma. Outro reinava em seu lugar.
Chamava-se Calígula. Devia o império a um oficial chamado
Machon, que, audaz e temerário, tinha afogado o seu senhor
Tibério debaixo de um montão de almofadas sentando-se
sobre elas dizendo com burlesca entoação: Eis aqui um
tirano que morre por falta de ar, e não deixava respirar
ninguém no império.
Quando Antípas soube que reinava Calígula, teve
medo, porque Calígula era um louco que erguia templos às
suas amantes, que semeava com pó de ouro as areias do circo
onde os gladiadores se despedaçavam para entreter o seu
ócio, que fazia puxar os carros os senadores, e que só em
dezoito horas fez matar no hipódromo quinhentos ursos e
trezentas panteras e leões. Mas Calígula, de insensato, de

557
louco, transformou-se depois da sua grave enfermidade no
mostro desprezível, assassino mais soez.
O seu primeiro crime foi monstruoso. Potísio, vendo
enfermo o imperador, ofereceu a sua vida aos deuses se
salvassem o jovem Calígula; e Calígula, crueldade incrível,
mandou, vendo-se restabelecido, que cumprisse a promessa.
Potísio foi passeado pelas ruas de Roma. coroada a fronte de
louro, e depois arremessado da Rocha Tarpeia.
Calígula, louco sanguinário, covarde assassino, a quem
fazia tremer a idéia da morte, tinha o capricho de se
apresentar em público com a barba de ouro imitando os
falsos deuses da antiguidade. Porque Calígula, extravagante e
mentecapto, mandou construir uma cavalariça de mármore
branco para o seu cavalo, cobriu-o com púrpura real, adornou
seu pescoço com fios de pérolas, servia-lhe cevada em pratos
de ouro, fazia-lhe beber vinho na sua própria taça, nomeou-
lhe cavalheiro para seu serviço, e finalmente elevou-o à
categoria de consul. Porque Calígula comprava todo o grão
das colheitas para que o povo morresse de fome, e exclamava
de vez em quando: Ai! Se o povo romano não tivesse mais
que uma cabeça e pudesse cortar-se dum só golpe!...
Antípas, no seu horrível sonho, via todas estas coisas
que ainda pertenciam ao domínio do futuro.
O covarde fugitivo da Galiléia apresentou-se temeroso
ao tirano de Roma, e o tirano disse-lhe:
- O destêrro e a miséria são a morte mais dolorosa que
pode dar-se a um rei. Tu ajudaste a conspiração de Sajan, rei
dos partos, contra Tibério. Pois bem, teu irmão Agripa é teu
delator; eu dou-lhe as tuas riquezas e o teu reino, e desterro-
te com tua família para um canto de Espanha.
Antípas via tudo isto com a verdade aterradora dum
pesadelo. Salomé abandonou aqueles pobres desterrados que

558
tinham fome e que viviam numa miserável aldeia da Serra
Morena. Heródias foi atacada da lepra, e contagiou seu
esposo. Este mal isolou-o da gente. Os dois chegaram a
odiar-se; por fim a morte pôs termo a tão miserável vida.
Mas o sonho de Antípas era pertinaz como a desgraça.
Depois de mortos, viu como os seus corpos foram pasto das
aves de rapina. Viu Salomé cair num rio gelado e ficar com a
cabeça foram e o corpo submergido no fundo. Salomé fazia
esforços horríveis para sair daquela situação desesperada;
porém o cortante fio de gelo foi pouco a pouco segando a
garganta. Antípas viu a formosa cabeça da sua afilhada rolar
por sobre a gelada superfície do rio, e o corpo afundar-se nas
profundidades da água. A cabeça tinha os olhos abertos, e a
língua falava e dizia:
- Maldita, maldita seja a que me trouxe nas entranhas!
Ela me disse: “Pede a cabeça de João”, e João era um
escolhido do Deus verdadeiro. Maldita, maldita seja a mulher
rancorosa, pois por ela morro degolada! Mãe, tu querias a
cabeça do Batista; pois bem: toma também a minha.
E Antípas viu rolar aquela cabeça insepulta, que se
chegou a ele dando-lhe um beijo. Então acordou. O suor
inundava-lhe o corpo. O medo fazia-lhe estremecer as
carnes. A luz do dia que penetrava por uma janela do castelo
começou a serená-lo.
- Ah! exclamou. Que sonho tão horrível se fosse certo!
Aquele sonho devia cumprir-se alguns anos depois da
morte do Nazareno.

CAPÍTULO IX

A APARIÇÃO

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Transcorreram alguns dias. Madalena acabava de
abandonar o leito. Durante a noite, a formosa donzela de
Mágdalo tinha tido um sonho fatigante. Desejando respirar o
ar puro dos campos encaminhou-se para a janela. O sol
banhava com seus raios as árvores do jardim.
Madalena, com os braços apoiados no peitoril da janela,
respirava o perfumado ambiente do seu jardim, deixando
vaguear pelo espaço o indeciso olhar. Madalena parecia
deleitar-se ouvindo os suaves trinados das aves, aspirando o
aroma das flores que subia até a sua janela, e contemplando o
formoso panorama que se estendia ante seus olhos. De súbito
seu olhar parou num grupo de homens que por uma estreita
vereda caminhava para o castelo.
Atrás daqueles homens viam-se caminhar algumas
mulheres que levavam crianças pela mão. O grupo de
caminhantes chamou a atenção de Madalena. Seus olhos
fitaram-se nos dois que abriam a marcha. Um era moço: teria
trinta e dois anos, e era formoso; mais uma formosura que
fascinava. O outro, algum tanto mais entrado em anos, tinha
a barba branca.
Conversavam em voz baixa. O moço parecia fazer
compreender ao velho alguma coisa que este não entendia. O
velho escutava com respeito o moço. Aquilo parecia estranho
a Madalena, porque em Israel as cãs tinham em tudo a
preferência. Os dois viajantes detiveram-se a poucos passos
do castelo, à sombra dum corpulento terebinto.
Madalena pode ver melhor aqueles homens que tinham
chamado sua atenção. Nunca os cobiçosos olhares daquela
mulher tinham visto em ser tão perfeitamente belo. O fitar de
seus olhos azuis era irresistível. A majestade de sua nobre
fronte tinha alguma coisa que não pertencia à terra. A barba,

560
de cor castanha e separada em forma de forquilha no
extremo, era finíssima como a sede de Damasco.
Madalena, imóvel, absorta contemplava aquele homem
sem poder compreender o que sentia.
Assim decorreram alguns segundos. Os caminhantes
foram-se reunindo em redor do terebinto; porém ficavam
respeitosamente afastados alguns passos do moço da barba.
Por fim este fez um gesto para falar, e encostou o corpo ao
tronco da árvore. Todos se assentaram no chão, para o
escutarem.
O silêncio era profundo. Madalena julgou ver alguma
coisa que resplandecia em torno daquele homem. Ainda que
a janela estava bastante afastada do lugar que ocupava o
terebinto, Madalena ouviu a voz do misterioso orador. A voz
levantou-lhe um eco no fundo da alma. Estremeceu-lhe o
coração dum modo estranho, tremeu-lhe o corpo apesar seu.
O homem dizia assim:
“Não há coisa encoberta que não se descubra com o
tempo, nem coisa escondida que não se saiba.
As coisas que disseste nas trevas, serão ditas à luz do
dia.
Mais é a alma que a comida, e o corpo mais que o
vestido.
Qual de vós, por muito que o pense, pode ajuntar a sua
estrutura um côvado?
Pois se não podeis o que é menos, porque andais
afanosos pelas outras coisas?
Vede como crescem os lírios, que nem trabalham nem
fiam; pois diga-vos que nem Salomão em toda a sua glória,
se vestiu como um deles.
Não andeis, pois, afanosos pelo que haveis de comer e
beber.

561
Buscai primeiramente o reino de Deus e a sua justiça, e
todas essas coisas vos serão acrescentadas.
Vendei o que possuis, e daí esmola. Fazei bolsas que
não envelheçam, entesourai nos céus, onde o ladrão não
chega nem rói a traça. Porque onde está o vosso tesouro, está
inteiro o vosso coração.
Quando fordes convidado para bodas, não vos sentes no
primeiro lugar, não seja que ali haja outro convidado mais
honrado que vós.
Não convideis os ricos quando deres um banquete,
porque esses o podem retribuir; convidai os pobres, os
paralíticos, os cegos e os coxos.
E sereis bem-aventurado, porque não tem como que
corresponder-vos, mas sereis galardoado na ressurreição dos
justos”.
Aquele Homem continuou a falar por espaço de uma
hora, enquanto descansavam os que o seguiam. As suas
palavras, sempre cheias de bondade, de mansidão, de ternura,
comoviam de um modo maravilhoso o coração de Madalena.
Por fim pôs-se em pé, e levantando a cabeça, fitou os olhos
cheios de pureza em Madalena. A pecadora de Mágdalo não
pôde resistir aquele olhar. Então lhe pareceu perceber uma
voz que lhe dizia:
“Toma a cruz, e segue-me, mulher pecadora. Eu desci à
terra para salvar o enfermo do corpo e alma”.
Madalena viu como aquele Homem abandonava a
benéfica sombra do terebinto, seguido dos seus
companheiros. Parecia-lhe eu um perfume delicioso lhe
penetrava no coração. Não se atrevia a mover-se do vão da
janela.
O homem tinha desaparecido e Madalena escutava
ainda as suas palavras, e via-o com todo o resplendor da sua

562
beleza sobrenatural, em pé, imóvel, junto da árvore. Por fim
pôde arrancar-se daquele lugar, e, ao voltar a cabeça viu um
homem que, a poucos passos dela, no meio do seu camarim,
a contemplava com doloroso gesto. Madalena soltou um
grito retrocedendo até topar com a parede da janela, porque
aquele Homem era o mesmo que acabava de desaparecer
pelo caminho de Cafarnaum.
- Não temas, Madalena, lhe disse com uma voz cheia de
doçura e mansidão.
- És tu uma sombra ou um realidade? perguntou com
medroso acento Madalena.
- Sou Jesus de Nazaré, que vem dizer-te: Ovelha
desgarrada, torna o teu aprisco... Teu irmão Lázaro e tua
irmã marta esperam-te com os braços abertos em Betânia.
Deus perdoa as tuas culpas, porque desceu à terra a salvar os
pecadores.
Madalena cobriu o rosto com as mãos, como se o
resplendor que despedia a fronte de Jesus a cegasse. Quando
descobriu o rosto, Cristo tinha desaparecido.
Naquela noite Boanerges foi como de costume, ao pé
da janela da Pecadora de Mágdalo; mas a janela permaneceu
fechada. Em vão o Filho do Trovão arrancou da sua lira as
mais doces notas: Madalena não ouviu o cantor. A luz da
aurora surpreendeu o músico junto dos muros de Mágdalo.
O jovem amante deixou-se cair desfalecido sobre o brando
céspede do campo, e chorou.
- Madalena, pensava, zombou deste amor que me
abrasa o peito.
Já mui entrado o dia, viu sair do castelo duas mulheres.
Ambas levavam o rosto coberto com o véu das virgens de
Israel e encaminharam-se a pé para Cafarnaum. Boanerges
julgou reconhecê-las; mas, duvidando, permaneceu um

563
momento indeciso. Quando andaram um bom pedaço, saiu
do esconderijo e seguiu-as.
As mulheres chegaram a Cafarnaum. Pararam diante
duma casa de modesta aparência em que se notava bastante
animação. Viam-se entrar e sair algumas pessoas. As duas
mulheres que tinham saído do castelo de Mágdalo
perguntaram a um velho que se achava sentado à porta:
- Dize, bom velho, não é esta a casa de Simão, o
fariseu?
- É, respondeu o velho.
- É certo que Jesus janta hoje nesta casa?
- É certo o que dizes.
- Agradecida, nobre ancião, e perdoa se te faço terceira
pergunta. Está dentro o Cristo?
- Está.
Então uma das mulheres tirou o véu que lhe cobria o
rosto e entregou-o à companheira.
Boanerges, que as tinha seguido e as observava oculto
entre a multidão, reconheceu-a: era Madalena. A que ia à
casa de Simão, o fariseu, a donzela de Mágdalo? Por que
perguntava com tanto afã pelo jovem profeta chamado
Cristo? Porque não lhe tinha aberto a janela na noite
precedente?
Boanerges sentiu ferver-lhe no cérebro um inferno de
idéias. Os ciúmes erguiam-se terríveis, ameaçadores, naquela
mente inflamada pelo amor. Entretanto, Madalena, com os
formosos cabelos soltos pelas costas, e na mão uma taça de
ouro cheia de precioso ungüento, penetrou em casa de
Simão.
Jesus, os seus discípulos, e algumas pessoas distintas da
cidade, achavam-se ao redor de uma mesa. A comida tocava
o seu termo.

564
A entrada da mulher pecadora, tão desvantajosamente
conhecida na Galiléia, produziu um murmúrio de indignação.
Como se atrevia a penetrar naquela casa, modelo de
honradez, a jovem que presidia aos escândalos de Mágdalo?
Madalena, afligida pelo remorso da sua vida passada,
pouco serena ante o desprezo dos convidados, ajoelhou-se
aos pés de Jesus.
Cristo não voltou a cabeça para a olhar. Continuava em
voz baixa conversando com o seu parente João, e com o seu
discípulo Pedro. Nem as conjecturas dos convidados nem as
lágrimas da Pecadora o distraiam.
Madalena, entretanto, derramava o precisioso unguento
sobre os pés do Messias, enxugando-os depois com amorosa
e terna solicitude com seus macios e finos cabelos. Então um
dos convivas não pôde conter-se e disse ao que estava ao seu
lado, em voz baixa:
- Se esse Homem fosse profeta, bem saberia quem é e
qual é a mulher que lhe toca, porque é pecadora.
Então Jesus levantou os amorosos olhos para os fitar
em Simão, seu hospedeiro, que era o que tinha falado, e lhe
disse:
- Simão, quero dizer-te uma coisa. Um credor tinha
dois devedores: um devia-lhe quinhentos dinheiros e o outro
cinquenta; mas como não tivessem com que pagar-lhe,
perdoou-lhe a ambos. Qual dos dois deve amá-lo mais?
Simão meditou um momento, e depois disse:
- Penso, Mestre, que aquele a quem mais lhe perdoou.
- Retamente julgaste, respondeu Jesus.
- E voltando-se para a mulher, disse a Simão:
- Vês esta mulher... Entrei em tua casa: não me deste
água para os pés; mas esta com as suas lágrimas banhou-me
os pés e os enxugou com seus cabelos.

565
- Não me deste o ósculo; mas esta, desde que entrou
não tem cessado de beijar-me os pés.
Não me ungiste a cabeça com óleo: mas esta com
unguento me ungiu os pés.
Pelo que te digo: que perdoados lhe são seus muitos
pecados, porque amou muito. Mas aquele a quem menos se
perdoa menos ama.
E disse a ela:
- Perdoados te são os teus pecados.
Alguns convivas murmuravam em voz baixa:
- Quem é este que perdoa os pecados?
Jesus, sem os escutar, disse à mulher.
- A tua fé salvou-te; vai-te em paz.
Madalena saiu por fim, lançando as ricas e preciosas
galas aos pobres que estavam sentados junto à porta
esperando a saída de Jesus. Depois, no meio do assombro
que produziu o seu procedimento, encaminhou-se para o seu
castelo. Então Boanerges a tornou a seguir. Quando julgou
que ninguém podia ouvi-los, apertou o passo, e, colocando-se
diante de Madalena, disse-lhe:
- Detém-te, Maria!
Madalena e sua criada detiveram-se. Boanerges estava
pálido com um convalescente.
- Esta noite, continuou, permaneci debaixo da tua
janela. O sol ao nascer surpreendeu as lágrimas dos meus
olhos: porque chorei senhora. Já te arrependes da promessa
que fizeste?
Boanerges, respondeu Madalena baixando os olhos:
entre nós terminou tudo. Deus desceu à terra para ensinar-
nos, a nós pecadores, os gozos da vida eterna. Toma tu, meu
amigo, a cruz como eu, e segue-o, porque ele é a fonte da
vida luz.

566
Boanerges sentiu alguma coisa desconhecida no fundo
da alma. Seus lábios cerraram-se.
Madalena continuou o caminho.
Boanerges não teve valor para a deter; mas ai! aquele
moço, todo amor, todo entusiasmo, era um cadáver. Então
quis correr atrás daquela mulher que aformoseara os seus
sonhos. Madalena tinha desaparecido. Apagou-se-lhe a luz
dos olhos, e exclamando com a dor duma alma despedaçada:
“Minha mãe!” caiu no chão sem sentidos.
Uma hora depois, um homem montado num cavalo
parou junto do corpo exânime do Filho do Trovão. Inclinou o
corpo para o chão para reconhecer se era um morto. Depois
apeou-se.
- Pelos cornos do altar de Sion! Exclamou o cavaleiro.
É o Cisne da Galiléia!
Pôs a mão sobre o coração de Boanerges.
- Ainda bate, tornou. Este rapaz percorre as tribos ao
som da sua lira. É um entusiasta das musas. Façamos um a
boa obra: o que não é muito entre as muitas más que me
pesam sobre a consciência.
Getas, era ele, colocou o corpo de Boanerges na garupa
do seu cavalo e, montando depois encaminhou-se para
Cafarnaum, onde vivia a mãe de Boanerges.

CAPÍTULO X

Madalena fechou desde aquele dia as portas do seu


castelo. Os seus alegres visitadores fizeram mil conjecturas
sobre aquele mudança inesperada.

567
Pouco tempo depois o antigo castelo de Mágdalo tinha
mudado de dono. O novo proprietário era um rico cavaleiro
de Cafarnaum que enriquecera com as cobranças dos pobres
contribuintes da Galiléia.
Madalena distribuiu todos os seus bens pelos
necessitados. Com a consciência mais tranquila,
encaminhou-se para Betânia em busca de seus irmãos, para
lhe pedir perdão pelas suas passadas culpas.
Entretanto, dois discípulos de João chegaram às
margens do lago de Genezaré, com a infausta notícia da
morte de seu mestre. Jesus, com alguns dos seus discípulos,
embarcou numa pequena barca, atravessando o lago da
Galiléia; encaminhou-se para o deserto de Betsaida, onde
permaneceu alguns dias.
Madalena chegou a Betânia e, ao achar-se perto da
porta daquela honrada casa que a vira nascer, caiu de joelhos
beijando humildemente o pó da terra.
Marta, a laboriosa, viu uma mulher que soluçava com a
fronte colado no chão. Marta chamou Lázaro, e disse-lhe:
- Vem, meu irmão; junto da nossa porta jaz uma mulher
prostrada; deve estar doente, socorramo-la.
Os irmãos sairam, seu contentamento e seu pasmo
foram imensos ao reconhecerem Madalena.
- És tu! exclamaram cobrindo-a de ternas carícias.
- Sim, eu sou Madalena, a jovem alegre e estouvada
que após os prazeres mentidos e vãos do mundo abandonou
um dia este tranquilo lar; Madalena, que chora eternamente
arrependida as suas culpas; Madalena, que vos pede perdão
de joelhos e que vem servir-nos. Porque lhe ressoou na alma
a voz de Deus, e vendeu as suas terras para dar aos pobres,
despiu as galas que a enlouqueciam, e só anela tesouros no

568
céu, como lhe disse o Messias que derrama a luz e a fé pelas
terras de Israel.
Lázaro, apertou ao peito sua irmã vendo-á tão
arrependida. Marta chorava de alegria.
Madalena foi desde aquele dia a admiração de Betânia.
Sua humildade não tinha exemplo. Assim decorreu um mês.
Jesus apareceu uma manhã em Betânia, seguido dos seus
discípulos e, como sempre, foi pedir hospitalidade a Lázaro.
A laboriosa Marta preparava tudo com a limpeza e prontidão
que lhe eram proverbiais; porque, como mais velha, fazia as
honras da casa. Madalena, sentada a seus pés, ouvia-o com
doce arroubamento. Os olhos da pecadora arrependida
contemplavam o divino rosto do futuro Mártir. Marta, numa
das vezes que foi na cozinha à mesa, repreendeu a irmã
docemente, e dirigindo a palavra de Jesus, lhe disse:
- Senhor, não vês que a minha irmã me deixar servir
só? Diz-lhe, te rogo, que venha ajudar-me.
Jesus levantou a cabeça, e enviando um sorriso cheio de
bondade a Marta, disse-lhe:
- Marta, Marta, muito te apressas e conturbas com o
cuidado de muitas coisas. Contudo, uma só coisa há que seja
necessária. Maria escolheu por certo a melhor parte, que não
lhe será tirada.
Marta, ainda que não compreendia mui claramente as
palavras do Mestre divino, não tornou a ocupar-se de sua
irmã. Naquela mesma tarde partir Jesus para a Galiléia. Ia
despedir-se de sua mãe.
Entretanto, Madalena empregava as horas em fazer
obras de caridade, em chorar as suas culpas passadas e
esperar tudo d’Aquele que lhe dissera: “Toma a cruz e segue-
me”.

569
Um tarde, achava-se Madalena ajoelhada junto do
sepulcro de seu pai, cujos conselhos tinha desatendido em
outro tempo. Seus olhos, cheios de dolorosas lágrimas, o seu
rosto macerado pela penitência, tinham sofrido mudança
assombrosa. Dificilmente a teriam reconhecido os seus
antigos adoradores.
Madalena chorava com a fronte apoiada no frio
mármore do sepulcro. Um homem que entrara furtivamente
no jardim chegou até onde estava a pecadora arrependida e
parou. Era Boanerges. Seu formoso semblante também tinha
sofrido pasmosa metamorfose. Pálido, macerado, com os
olhos encovados e o olhar melancolicamente distraído, como
o homem a quem preocupa uma idéia fixa, já não era o
jovem em cuja fronte resplandecia a altivez, em cujas pupilas
brilhava a luz misteriosa do gênio. Por espaço de uma hora
permaneceu contemplando Madalena. Por fim disse-lhe deste
modo:
- Maria, eis aqui outra vez.
Madalena levantou a cabeça. A presença do seu antigo
adorador não a comoveu, porque para aquela alma tão
solenemente contrita só existia um pensamento: a vida eterna
prometida pelo divino Mestre.
- Vai-te, Boanerges, lhe disse: o passado deve ser um
sonho para ti como o é para mim. O porvir é todo o meu afã.
Deus tocou-me a alma com sua clemente mão. Vai-te.
- Nunca, senhora, respondeu o cantor. Enquanto me
restar um sopro de vida, hei de amar-te; o teu amor é para
mim como o ar que respiro, como o pão que me alimente.
Podes não amar-me; podes, se assim te apraz, aborrecer-me.
Para que eu te ame não preciso do teu amor.

570
Madalena levantou-se e encaminhou-se para casa com
passo tranquilo. Boanerges, juntando as mãos com gesto
suplicante, disse-lhe:
- Amo-te, Madalena, amo-te como nunca, e o teu
desdém vai-me esgotando a vida: sinto-me morrer; tem pena
de mim.
- “Toma a cruz e segue-me”, disse o Salvador de Israel.
Segue-o tu também Boanerges; despreza esta vida passageira
pela que Ele nos prometeu na eternidade.
Maria entrou em casa. Boanerges, inclinando a cabeça
sobre o braço, chorou como uma criança.
Quando o sol começava a esconder-se atrás das
montanhas do ocidente, enxugou as lágrimas e abandonou os
jardins de Madalena.

CAPÍTULO XI

A DESPEDIDA

Três anos havia que Jesus tinha abandonado Nazaré


para espalhar pela terra de Israel a frutífera semente da sua
divina palavra.
Maria achava-se separada de seu filho. Terna, amorosa
Mãe, que chorava em silêncio a triste soledade do seu
coração! Na dor, Deus tinha-lhe concedido três amigas que
nunca a abandonavam. Chamavam-se estas Maria Cleofas,
mãe de Joaquim e de Simão; Maria Salomé, mãe dos filhos
de Zebedeu; e Susana, esposa do mordomo do tetrarca da
Galiléia.

571
Muitas vezes a aflita Mãe do Redentor do mundo
costumava dizer às solícitas amigas:
- Corramos, irmãs; meu filho acha-se em Galiléia.
Corramos a ouvir, confundidas entre a absorta multidão, as
divinas palavras de meu filho.
E então, aquela Mãe escolhida por Deus para trazer nas
suas entranhas o fruto bendito da Redenção, velado o rosto
sob o espesso véu das filhas de Israel, e oculto o corpo atrás
da gente que rodeava seu filho, escutava embelezada o que
mais tarde devia morrer no Calvário transpassando-lhe o
coração de amargura.
Entretanto, a hora marcada por Deus aproximava-se.
Jesus chegou às vizinhanças de Cafarnaum, de regresso da
sua última viagem. Numa vereda que conduzia à cidade,
encontrou sua Mãe, acompanhada das três inseparáveis
amigas que nunca a abandonavam. A mãe lançou-se
chorando aos pés de seu filho. Jesus levantou-a com doçura.
Os discípulos e as mulheres separaram-se do terno grupo,
que se tinha refugiado à sombra duma árvore.
Então, entre aquela amorosa Mãe e aquele Filho que
caminhavam para o martírio, passou-se uma cena, um idílio
mavioso, cujas doces palavras se perfumaram com a
puríssima essência das rosas de Zabulon:
- Saúde e paz, minha Mãe, lhe disse Jesus.
- Disseram-me, Filho e Senhor, que te diriges à cidade
que mata os profetas, à ímpia Jerusalém, respondeu Maria.
- Deus meu Pai, o ordena: a hora aproxima-se, devo
cumprir as Suas ordens. A minha morte está decretada nos
céus, donde desci de boa vontade para morrer pelo homem.
O meu sangue levará em breve a culpa cometida. O meu
sangue será a semente que há de dar amanhã o fruto à
humanidade.

572
- Leva-me contigo, faz com que o meu peito exale o
último suspiro com o teu.
- Tu, minha Mãe, hás de sobreviver-me mas não temas:
será por breves instantes. No cume do Gólgota, pomba
solitária e dolorida, acalentarás com teus dolorosos gemidos
a amargura da minha morte. Todos me deixarão; tu só,
ajoelhada ao é do lenho, confundirás as tuas lágrimas com o
meu sangue. Porque tu, humilde violeta de Nazaré, nasceste
para sofrer agudíssimas dores na terra do homem, e perfumar
no céu a dolorosa agonia da raça humana. Porque tu, rosa
puríssima do vale de Zabulon, palmeira solitária de Betsaída,
prestarás eternamente a tua benéfica sombra aos
desgraçados. Porque tu, arca selada onde se encerra a infinita
clemência de Deus, serás o farol do perdido navegante, a luz
reanimadora que guia o passo do cansado peregrino; o teu
nome glorioso será invocado nos momentos de amargura, e a
tua pureza resplandecerá eternamente com os raios
luminosos do sol.
Maria chorava em silêncio, sem se atrever a
interromper seu santo Filho.
- Não chores, mulher, lhe tornou Jesus, que breve nos
tornaremos a reunir na morada eterna. Já o disse: a nossa
separação será curta, porque eu sou a tua essência e tu o meu
alento; porque a minha vida está depositada na tua mesma
vida. No livro imortal está este mistério que talvez não o
compreendas.
- Ah, Senhor! exclamou a Mãe dolorosa. Revoga a tua
sentença; compadece-te da minha dor e amargura; lembra-te
que sendo Menino te alimentei com o suco dos meus peitos;
que abrigado no meu seio te levei para o Egito; que o meu
maior prazer nas horas de agonia era beijar-te a fronte,
branca como os cumes do Sabino, pura como a gota do

573
orvalho que se esconde no perfumado cálix dos lírios do
vale. Então na tua boca rosada como as rosas de Jericó,
vagueava um sorriso que era todo o meu encanto, toda a
minha felicidade. Se tu partes, se me deixas, que vai ser desta
pobre Mãe abandonada?
- Cessa, Mãe e Senhora; do sacro céu desci a morrer
pelo bem da humanidade; as tuas entranhas foram a taça
perfumada que recebeu o Verbo Divino. Não rogues mais;
minha hora aproxima-se. A cruz me espera.
Jesus, acompanhado de alguns discípulos, tomou o
caminho do Jordão. Sua Mãe e as três Marias o seguiram a
uma distância respeitosa. As bondosas mulheres
consolavam em vão, durante o caminho, a Mãe aflita.
No dia seguinte Jesus achava-se rodeado, como sempre
do imenso auditório que ouvia as suas palavras, quando se
apresentou um homem coberto de pó e com as sandálias do
viajante nos pés e o cajado do caminhante na mão. Vinha de
Betânia.
- Senhor, lhe disse o caminhante, Lázaro, meu amo,
está doente; Maria e Madalena enviam-se para que te diga
que só Tu podes devolver-lhe a saúde.
Jesus respondeu ao emissário;
- Essa doença não é para morrer, senão para glória de
Deus, e para que seja glorificado o Filho de Deus por ela.
- Vinde, pois, lhe dizia o mensageiro.
Porém Jesus, que amava muito a família de Lázaro,
ficou quatro dias naquele lugar. Durante este tempo, instruiu
os seus discípulos, dizendo-lhes:
- O Filho do homem será entregue nas mãos dos
homens, e o farão morrer, e depois de morto, ressuscitará ao
terceiro dia.

574
Os discípulos, não o compreenderam, guardaram
profundo silêncio. Jesus pegou um menino e disse-lhes:
- Qualquer que recebe um destes meninos em meu
nome, a Mim recebe. E todo aquele que escandalizar um
destes pequeninos que crêem em Mim, mas valeria que lhe
atasse ao pescoço uma pedra de moinho, e o deitassem ao
mar.
Se a tua mão te escandaliza, corta-ª. Mas vale entrar
maneta na outra vida, que ter duas mãos e ir para o inferno,
para o fogo que nunca pode apagar-se.
Se o teu pé te escandaliza, corta-o fora.
Se o teu olho te escandaliza, tira-o fora.
Os discípulos ouviam-no absortos e assombrados.
Jesus continuou:
- “Filhos: quão difícil coisa é entrar no reino de Deus
confiando nas riquezas!
Mais fácil coisa é passar um camelo pelo fundo duma
agulha, que entrar um rico no reino dos céus.
- “Quem poderá salvar-se?” lhe perguntavam em voz
baixa os apóstolos.
- “Para Deus todas as coisas são possíveis”.

CAPÍTULO XII

LÁZARO, VEM A MIM!

A multidão se agrupava à porta duma casa de Betânia,


ansiosa por ver o cadáver dum homem justo e honrado, que
acabava de morrer. Nunca um mendigo implorara uma

575
esmola diante daquela porta, sem que u’a mão o socorresse.
O sequioso encontrava a água com que matasse a sede
devoradora; o faminto, o pão desejado. E Deus-Homem, o
Mestre divino que percorria as terras de Israel, muitas vezes
se hospedava sob o teto daquela casa caritativa. O povo de
Betânia adorava-º Mas Lázaro tinha morrido, e o povo
chorava.
A gente, pois, esperava junto da porta para ver passar o
cadáver do benfeitor do povo, do amigo do Messias; pois
naquela hora devia ser enterrado no mesmo jardim de sua
casa, no sepulcro de pedra construído pelos seus maiores. No
interior da casa ouvia prolongado lamento das carpideiras de
ofício, e o melodioso e triste prelúdio das flautas fúnebres.
Um dos parentes de Lázaro, cuja barba branca e austero
semblante lhe dava direito para dirigir a cerimônia fúnebre,
levantou-se enxugou as lágrimas, e disse às pessoas que
rodeavam o cadáver:
- Conduzamos ao sepulcro os restos de Lázaro.
Todos se levantaram. Quatro mancebos pegaram pelos
quatros cantos da cama que sustentava o corpo de Lázaro, e
levantaram-na. Então a comitiva saiu da casa. Os músicos
iam adiante, depois as carpideiras, logo o cadáver, e por fim
os parentes e amigos. Aquela comitiva aumentou
consideravelmente ao transpor a porta. O enterro penetrou no
jardim. A lousa do sepulcro estava tirada. Quando o séquito
fúnebre chegou junto da porta do sepulcro, um dos da
comitiva entrou nele e examinou o primeiro e segundo
vestíbulo. Depois saudou e disse:
- Lázaro pode entrar na casa dos vivos.
Lázaro foi colocado no sepulcro.
Quando a pesada lousa cobriu a abertura ocultando o
corpo de Lázaro, redobraram os lamentos.

576
- Se Jesus houvesse estado conosco, se houvesse vindo
ao nosso chamamento, Lázaro não teria morrido! dizia
Marta, chorando copiosamente.
Decorreram quatro dias. Durante este tempo, como
Betânia só distava um quinze estádios de Jerusalém, muitos
amigos do defunto corriam a consolar as aflitas órfãs. U’a
manhã disse-lhes um destes solícitos amigos.
- Jesus abandonou a Judéia e vem para esta terra. Vós,
que tanto o amais, pedi-lhe que faça um milagre. O Mestre
foi grande amigo de Lázaro e o nome de Lázaro tem uma
significação na Escritura, que deve alentar a vossa esperança.
Apenas acabara o jerossolimitano de pronunciar as
precedentes palavras, quando as duas irmãs viram entrar pela
porta de casa um homem que dizia:
- Raboan viu-o: Joséf curou-se da surdez: corramos que
já chega a nós. Está nos hortos vizinhos falando com os seus
discípulos.
- Jesus vem a Betãnia, irmã, disse Madalena.
- Eu sairei em sua procura; fica tu a cuidar da casa.
Marta pegou no manto e saiu em busca de Cristo. A
gente que encontrava na passagem, indicou-lhe o caminho
que seguia o Mestre. Não tardou muito a vê-lo. Como
sempre, caminhava com majestoso e ao mesmo tempo
humilde passo, rodeado de crianças e mulheres. Quando
Marta o viu, correu ao seu encontro e, caindo ajoelhada a
seus pés, disse-lhe:
- Senhor, se tivesse estado aqui, meu irmão não teria
morrido!
- Ressuscitará teu irmão! lhe disse Jesus.
- Bem sei, tornou Marta, que ressuscitará na
ressurreição do último dia.

577
- Eu sou a ressurreição e a vida, replicou Jesus com
acento doce e tranquilo. O que crê em Mim, ainda que tenha
morrido viverá, e todo aquele que vive e crê em Mim nunca
morrerá. Crês isto?
- Oh! disse com ardente fé Marta. Eu sempre cri que Tu
és o Cristo, o Filho de Deus, vivo, que vieste a este mundo.
Jesus continuou em direção à aldeia de Betânia. Marta
seguia-º Quando chegaram à porta do horto onde estava
enterrado Lázaro. Cristo, vendo Maria Madalena ajoelhada
junto das pedras do sepulcro de seu irmão e chorando
amargamente, sentiu o ânimo aflito.
Algumas mulheres e parentes choravam também junto
do sepulcro de Lázaro. Jesus, vendo tanto dor pela perda do
homem honrado e justo e lembrando-se de quer, em outro
tempo, fora aquela casa o seu asilo seguro, quis fazer o maior
milagre que presenciaram os homens; e aproximando-se do
sepulcro, disse, dirigindo-se aos que o rodeavam:
- Onde o pusestes?
- Vem, Senhor, e o verás, lhe responderam.
E Jesus chorou.
Disseram então os judeus? – Vede como o amava.
- Pois Este que abriu os olhos do que nasceu cego, não
poderia fazer com que este não morresse? falou outro.
- Tirai a lousa! disse Jesus aproximando-se da gruta que
encerrava o corpo de Lázaro.
- Senhor, exclamou Marta, sem compreender o grande
milagre que Jesus ia operar aos olhos de quantos o
rodeavam; Senhor vede que cheira mal, porque é morto há
quatro dias.
- Não te disse que, se cresses, verias a glória de Deus?
tornou Jesus. Tirai, pois, a lousa. E Jesus, erguendo os olhos
ao céu falou: - Pai, graças te dou porque me ouviste. Eu bem

578
sabia que sempre me ouves. Mas pelo povo que está em
torno o disse, para que creiam que Tu me enviaste.
Então Jesus, adiantou-se, e estendendo a mão em
direção à gruta, disse com tom profético:
- Lázaro, vem para fora
Então sucedeu uma coisa sobrenatural. A porta do
sepulcro caiu ao chão sem que ninguém lhe tocasse. Os que
se achavam presentes retrocederam alguns passos, porque
viram sair o cadáver envolto no seu lençol e faixas
mortuárias, coberto o rosto com o sudário branco.
Como se levantara aquele corpo do chão, sendo um
defunto e tendo os braços e aos pés presos pelas tiras de
pano? Ninguém o podia explicar; mas o que não duvidavam
era que Jesus dissera: “Lázaro, vem para fora”; e Lázaro,
abandonou o sepulcro, obedeceu à voz do Salvador.
- Desatai-o e deixai-o ir, disse Jesus.
Lázaro havia recuperado a vida.
Milagre portentoso, inolvidável. Os judeus cortaram as
ligaduras de Lázaro. Enquanto todos rodeavam o que pouco
antes fora um cadáver, enquanto as mulheres tocavam com
assombro o corpo daquele homem que fora por quatro dias
um defunto, Jesus desapareceu, seguido, como sempre, dos
seus discípulos.
De todas as partes sacudiram, ansiosos de conhecer o
homem a quem o Messias dispensara um favor tão grande.
Este fato maravilhoso chegou aos ouvidos dos fariseus, que
tremiam nos seus palácios ante aquele profeta que
transformava a ordem das coisas, e que ameaçava destruir
seu poder. Caifás, sumo pontífice aquele ano, disse no
sinédrio:
- Jesus é um transformador público: será preciso que a
sua obra termine no cume do Gólgota.

579
No dia seguinte as três Marias e Susana, a mulher do
mordomo do tetrarca, chegaram a Betânia. Marta, Lázaro e
Madalena deram-lhe hospitalidade em sua casa. Maria
perguntou por seu Filho.
- Partiu para Jerusalém, onde faz amanhã a sua entrada.
A Mãe amorosa respondeu:
- Eu também, sem que ele me veja, quero presenciar
seu triunfo.
- Desde este momento, Mãe e Senhora, exclamou
Madalena, a nossa missão é não o abandonar, porque os
perigos o cercam.
- Partiremos amanhã.
Sim, partiremos.
Maria, Mãe de Deus, Maria Cléofas, Maria Salomé,
Maria Madalena e Susana, apenas o alvor do novo sol
banhou as altas palmeiras de Betãnia, encaminharam-se para
Jerusalém, onde tantas lágrimas deviam derramar, onde
tantas dores deviam sofrer.

LIVRO DÉCIMO QUINTO

O CAMINHO DAS FLÔRES

CAPÍTULO I

A GRUTA DE JEREMIAS

O mês de Adar tocava sem fim. A noite estava escura, o


céu nebuloso. O vento frio e úmido silvava nas fendas das
rochas e nos entrelaçados ramos dos espinheiros. Seriam
onze horas da noite, quando alguns soldados sairam do

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palácio do governador Pilatos e; chegaram à porta de Efraim,
onde o “quem vem lá”? duma sentinela os deteve.
- Abre-nos a porta, disse um dos soldados levantando a
voz; trazemos uma ordem de Pilatos.
Pouco depois a porta ficava franca, e a partida, que se
compunha de dez homens armados de lanças e espadas saiu
seguindo um homem desarmado que vestia uma túnica de lã
à moda dos hebreus. O homem, que parecia um guia, tomou
caminho a Efraim e, apesar do escuro da noite, seu passo
seguro e rápido mostrava a prática que tinha. Um dos
soldados disse ao que tinha ao lado, em língua germânica.
- Já sabes de que nos encarregou o centurião a respeito
deste homem!
- Nada temas, lhe respondeu; a minha lança, se fugir,
lhe buscará o coração pelas costas; se defender, pelo peito.
Depois caminharam, sem dizer mais palavras, coisa de
um quarto de hora, o judeu adiante, os soldados atrás.
O guia parou.
- Que sucede? lhe perguntaram os soldados em língua
hebraica.
- Nada, respondeu o guia.
- Então porque paras?
- Porque devemos torcer à esquerda. O monte está à
esquerda do caminho de Efraim.
- Pois vamos pela esquerda, tornou o soldado.
- É que a noite está tão escura, que não vejo o atalho
que conduz à gruta.
O guia tomou resolutamente pela esquerda e todos se
calaram e o seguiram. Alguns momentos depois, tornou a
parar.
- Creio que me enganei!

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- Pelo César, meu senhor, que se antes de meia hora
não nos conduzes à gruta de Jeremias, esta noite é a última
da tua vida, Barrabás, exclamou o soldado.
E dirigindo-se a um companheiro, ajuntou:
- Ata-lhe uma corda ao pescoço e faze com que apresse
o passo picando-lhe o costado com a ponta da lança.
Os soldados ataram uma corda ao pescoço de Barrabás.
- Agora, anda, acrescentou o soldado que parecia ser o
chefe da partida.
Poucos momentos depois entravam numa gruta.
- Aqui, ao menos, não se sente o ar frio da noite.
Acendei um archote e examinai todos os cantos desta maldita
cova, onde tão amargamente se lamentou em outro tempo o
profeta Jeremias.
A gruta compunha-se de três corpos. As paredes
gretadas tinham profundas cavidades, suficientemente largas
para que um homem se escondesse nelas sem ser visto.
- Colocai-vos na gruta do melhor modo possível e o
mais próximo da entrada, para que não escapem; eu estarei
com este réptil, no segundo vestíbulo. Ai do que adormecer!
E sobretudo, chegando a hora, cuidado de não matar
ninguém; é melhor que o espetáculo se dê no Gólgota. É
preciso divertir a plebe de vez em quando!
Enquanto os soldados de Pilatos esperavam
emboscados o momento de se lançarem sobre a presa,
explicaremos nos sucintamente alguma coisa que o leitor não
sabe.
Na noite em que Gestas, o bandido encontrou
Boanerges desmaiado no caminho ia justamente a Cafarnaum
à casa de Enoé, onde lhe tinham dito que se achava Dimas,
seu companheiro. Gestas depositou nos braços da aflita mãe,
Boanerges, que recobrou em breve os sentidos; Enoé à

582
cabeceira da cama de seu filho, lhe prodigalizava toda a
espécie de carícias.
- Disse-me a nossa gente que deixas o ofício, querido
Dimas, falou Gestas.
- Disseram-te a verdade, amigo Gestas.
- Fazes mal. Remorde-te a consciência? Tu não és
rico...
- Para que quero eu o dinheiro? Se o tivesse reparti-lo
entre os pobres, como aconselha o divino Mestre...
- Aflige-me a tua obstinação.
- E a mim a tua cegueira
- Não insisto mais, mas vou pedir-te um favor. No dia 7
do mês de Adar, dia em que todos os israelitas celebram o
rigoroso jejum pela morte de Moisés, à meia noite, devo
reunir-me com toda a gente no barranco de Garizim, em
Samaria; eu prometi-lhes que tu acudirias à reunião para
dispores as correrias do mês de Nisan, pois desde o dia 1,
que é o jejum pela morte dos filhos de Aarão, até o dia 15 em
que se celebra em Jerusalém a festa da Páscoa, todos os
habitantes das tribos se põem em movimento, como sabes,
desejosos de cumprir a lei. A nossa companhia deve dividir-
se em três pelotões: um ocupará o monte da Judéia; outro as
ribeiras do Jordão, percorrendo desde Jericó a Tiberíades, e o
terceiro, que é o mais exposto, deve percorrer as vizinhanças
da cidade, tão depressa deve achar-se no vale de Gebn-
Hinon, como nas escarpadas veredas do caminho de Emais,
percorrendo a torrente do Cedron, ao longo do vale de
Josafá. Este é o meu pensamento e espero que a presa será
esplêndida: mas alguns recusam-se; a desordem começa a
tomar incremento, e eu rogo-te que vás à reunião para alentar
o seu valor, que decai desde que nos abandonaste.

583
Dimas resistiu; por fim, cedendo aos rogos de Gestas,
prometeu-lhes que iria à reunião.
No dia 7 do mês de Adar, a essa hora em que o sol
esconde atrás das encostas do Ocidente os últimos raios, um
homem caminhava com receoso passo por uma barranca do
monte Garizim. Tinha um aspecto feroz. As barbas e cabelo
seram vermelhos e áspero como a sedosa juba do leão. A
testa deprimida, os beiços grossos, o nariz achatado e os
olhos extremamente pequenos davam-lhe um aspecto de
ferocidade selvagem. O seu vestuário asqueroso, coberto de
lama e sangue, não tinha feito nem cor. Levava um largo
punhal na mão direita, e um cabrito recem-degolado agarrado
pelos pés e lançado sobre o ombro.
Aquele miserável, era Barrabás; acabava de ferir um
pastor para roubar algumas moedas de cobre e um cabrito.
Barrabás corria, para fugir.
Quando chegou ao extremo do barranco, procurou entre
as matas a entrada duma cova e introduziu-se nela. Aquele
lugar ignorado que habitavam de vez em quando as feras e os
bandidos de Samaria, pareceu tranquilizar o agitado espírito
de Barrabás. A caverna era imensamente grande. No
primeiro vestíbulo desembocavam cinco galerias abertas pela
mão da natureza, na mesma rocha. Barrabás introduziu-se
numa delas, perdendo-se dentro em pouco entre as sombras.
Depois decorreram algumas horas, e quatro bandidos,
entraram na cova, e acenderam uma fogueira. Pouco depois
apresentaram-se outros quatro, e depois até dezesseis.
Finalmente Dimas e Gestas entraram na caverna. Todos se
sentaram ao redor da fogueira.
- Queridos companheiros, disse Gestas, os meus rogos
não conseguiram nada: Dimas está resolvido a abandonar-
nos.

584
Houve um momento de silêncio.
- A profissão do bandoleiro é para gente moça, disse
Dimas, interessado com a dolorosa atitude de seus antigos
camaradas. Quando as cãs assomam à barba, o homem
precisa descansar e pensar em Deus.
- Tu és forte e moço, disse Gestas.
- Tenho cinquenta e cinco anos; mas não é a idade que
me oprime; é a consciência. A palavra de Deus ressoa-me no
fundo da alma; não insistas, é-me impossível seguir-vos.
Os bandidos não se atreveram a refutá-las.
- Cumpra-se a tua vontade, murmurou Gestas.
- Assim seja, disseram quase em coro os outros.
- Agora, por minha vez, tenho que pedir-vos um favor,
disse Dimas:
- Fala, escutamos-te, respondeu Gestas.
- Jesus de Nazaré irá este ano à cidade santa celebrar a
Páscoa, acrescentou Dimas; é provável que os doutores de
Jerusalém, que querem perdê-lo, procurem apoderar-se da
sua santa Pessoa, e neste caso eu tornaria a empunhar a
azagaia para defender o Salvador de Israel; jura-me tu, amigo
Gestas, que no dia 14 do mês de Nisan, à meia noite em
ponto, estarás na gruta de Jeremias disposto a receber e
cumprir as ordens que eu te transmitir?
- Lá estarei sem falta, respondeu Gestas com voz firme.
- Que Deus conserve tua memória.
- Não temas que esqueça, se vier, a palavra que agora te
dou pelas cinzas dum pai.
Dimas levantou-se e disse:
- Agora, permiti que me retire.
E Dimas saiu da caverna. Gestas, vendo-se só com os
companheiros, informou-os do plano que deviam seguir. Se
os bandidos não estivessem tão preocupados,

585
indubitavelmente teriam visto dois olhos que brilhavam na
escuridão. Eram os de Barrabás, que tinha ouvido tudo.
Alguns dias depois, um destacamento de soldados
germanos dos que serviam Pilatos, apanhava um assassino
que se chamava Barrabás. Este nome era pronunciado com
repugnância em Israel, feroz e imundo. Os mesmos bandidos
o repeliam do seu seio, porque o seu punhal mais de uma vez
se assanhara contra as débeis crianças, contra as indefesas
mulheres, contra os pobres velhos. Indubitavelmente a cruz
era o futuro que esperava aquele infame.
Barrabás foi encerrado num cárcere subterrâneo da
torre Antônia. Um dia queixando-se ao carcereiro da raça de
favas cozidas que lhe davam por único alimento, fez-lhe a
seguinte proposta:
- Tenho muita fome! Quando era livre, comia um
cabrito todas as manhãs, ainda que fosse cru. A morte é
preferível à fome. Se dobras a ração até o dia em que o juiz
romano me mande crucificar, comprometo-me a entregar-vos
os dois bandidos mais temíveis da Palestina: Dimas e Gestas.
O carcereiro participou o oferecimento a Pilatos. Aceita
a proposta, saíram de Jerusalém guiados por Barrabás, foram
emboscar-se na intrincada gruta de Jeremias e esconderam-se
depois de apagarem o archote, esperando o instante de se
lançarem sobre a presa. O silêncio era sepulcral. Nem o
vento da noite gemia entre os espinhos, nem o mocho piava
sobre os secos ramos das árvores. Assim decorreu uma hora.
- Dimas! ouviu-se uma voz.
- Gestas! respondeu o que esperava.
- Estamos ambos sós?
Gestas deu um salto e desembainhou o punhal. Dimas
não se moveu do lugar.

586
- É inútil, disse a mesma voz que os tinha
sobressaltado, que trateis de defender-vos; olhai em redor de
vós.
Gestas e Dimas viram-se cercados de soldados.
Barrabás saiu duma das galerias com o capitão romano que
trazia um archote aceso na mão. Gestas e Dimas entregaram-
se.
- Vendeste-me Dimas? perguntou Gestas.
Dimas respondeu a esta pergunta com um olhar
desdenhoso.
- Não foi ele, fui eu, disse Barrabás soltando um
gargalhada. É tão grato ir ao Gólgota, acompanhado de
antigos amigos!
Os soldados ataram fortemente os três bandidos, e
sairam.
- Não se perdeu a noite, querido Nacor, disse um
soldado ao companheiro.
- Não, por certo; tendo estes três morcegos nos cárceres
da torre Antônia, a Palestina poderá dormir sossegada.
- Ora! O pássaro engaiolado pode fugir; mas o pássaro
morto já não voa.
- Tens razão, a cruz é o melhor cárcere do mundo.
Depois entraram em Jerusalém, e os presos foram
depositados, carregados de ferros, nas úmidas masmorras da
torre Antônia.

CAPÍTULO II

O DIA 13 DE NISAN

Cidade santa, a muito amada de Salomão, por motivo


da celebração da Páscoa, apresentava aspecto surpreendente.

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A muralha de Neemias encerrava entre os seus braços de
tosca pedra um aumento de mais de duzentas mil pessoas.
Jerusalém, manancial das crenças israelitas, abrigava
em seu seio todos os filhos de Abraão, que acudiam guiados
pela fé dos seus maiores a cumprir os preceitos da lei.
O cordeiro pascal esperava a hora do sacrifício.
Os sacrificadores, armados do cutelo matador, olhavam
com indiferença a paciente vítima.
Os sacerdotes, ataviados com suas resplandecentes e
sagradas vestiduras, sacudiam as verdes espigas no degrau do
templo de Sion.
De toda parte vinham mercadores ambulantes, cuja
indústria nômade segue a multidão, prestando animação com
suas destemperadas vozes às romarias e festas populares.
Todas as casas estavam repletas de forasteiros.
As tendas levantadas no mercado das Madeiras
apresentavam aspecto pitoresco.
Durante os três dias da primeira e mais popular festa
dos hebreus, reinava na cidade sacerdotal uma liberdade sem
limites. As portas da cidade permaneciam abertas e a
multidão entrava e saía livremente sem que os soldados do
juiz romano cruzassem as lanças sobre o peito dos
transeuntes.
Viam, pois, por toda parte, robustos dromedários
conduzindo sobre os encurvados dorsos os seus nobres
donos; pacientes asnos seguiam com tardo passo os inquietos
corcéis; homens, mulheres e crianças que, em fervente
enxame, se agitavam dum para outro recinto da cidade,
buscando onde se hospedassem. Jerusalém, contemplada de
lugar eminente, parecia um imenso formigueiro, remexido
pela cauda duma serpente. Mas que importavam os
incômodos da peregrinação aos filhos de Jacó? O importante,

588
o necessário, o preciso para eles era celebrarem a liberdade
da sua raça, era santificarem o memorável dia em que os
descendentes de Abraão foram visitados pelos anjos do
Senhor para sacudirem o jugo do Faraó.
Neste estado se achava Jerusalém na noite de 13 de
Nisan, quando dois homens envolvidos em compridos
mantos penetraram pela porta das Águias que era a mais
próxima do monte das Oliveiras. Os dois homens
caminhavam com passo receoso, escondendo parte do rosto
com os panos do manto. Um era moço; teria ao muito trinta e
quatro anos de idade. A túnica, cor de corinto carregada, e o
manto pardo, caiam-lhe com certa elegância sobre o bem
formado corpo. O rosto era formoso, a cor do cabelo louro
claro, e a barba muito pouco visível. Os olhos dum azul
puríssimo, respiravam bondade. Nos seus lábios via-se
sempre um sorriso carinhoso. Este homem chamava-se João,
filho de Zebedeu. O outro, que caminhava ao seu lado era
mais velho: teria cinquenta anos. Sua barba, grisalha e
áspera, o nariz aquilino, o olhar altivo e as feições
pronunciadas, davam-lhe um ar de audácia aventureira que
muitas vezes se tornaram sombria. O traje era igual ao do
companheiro: chamava-se Pedro, e era filho de Jonas.
Quando os dois noturnos e silenciosos judeus passaram
a porta das Águias e se acharam na cidade de Davi, torceram
à direita, e atravessando parte do arrabalde de Ofel,
internaram-se na cidade até chegarem ao palácio de Caifás,
donde diretamente chegaram à piscina grande de Sion.
Durante esta caminhada, os silenciosos viajantes
dirigiram olhares perscrutadores por toda parte, como se
procurassem alguma coisa. Quando chegaram à piscina
grande pararam.
- Irmão, disse Pedro a João, vês ali o que procuramos?

589
- Sim, agora põe o cântaro sobre a cabeça.
- Sigamos, pois, esse homem.
- Sim, e cumpramos o que nos ordenou o Mestre.
Esta conversação era a respeito de um homem cujo
traje dizia bem claramente que era alguma criado de casa
abastada. O homem, depois de encher o cântaro na piscina,
encaminhou-se para uma rua situada entre o palácio de
Caifás e o lugar onde debaixo da quadrúpla tenda fora
depositada a arca à volta do deserto. Pedro e João seguiram o
homem do cântaro; mas depressa este, conhecendo a
espionagem de que era objeto, parou, e encarando os
discípulos de Jesus, disse:
- Porque seguis os meus passos?
- Prossegue teu caminho, irmão, e não temas; o que
pode mandou que sigamos os teus passos, disse João.
A doçura daquela voz dissipou os receios do homem do
cântaro. Caminharam e o homem do cântaro parou diante de
uma casa de antiga construção.
- Esta é morada de meu amo, disse o criado.
- Entra, pois, e dize-lhe que aqui o esperam dois
homens, tornou João.
O criado obedeceu, e os dois discípulos de Jesus
encostaram-se aos muros do vestíbulo, dispostos a esperar.
Em breve se apresentou um homem de aspecto venerável que
trazia a túnica branca dos essênios. Um criado o precedia
com um archote aceso na mão.
- Diz o meu servo que procurais o dono desta casa.
- Sim, irmão, responderam ao mesmo tempo os dois
apóstolos.
- Sou eu, pois; que me quereis?
- Somos dois discípulos de Jesus da Galiléia, continuou
João, que nos disse: “Ide à cidade e encontrareis um homem

590
que leva um cântaro de água; segui-o até à casa onde entrar,
e dizei ao pai da família da casa: “O Mestre te diz: Onde está
o aposento em que tenho de comer a Páscoa com os meus
discípulos? E ele vos mostrará uma grande sala adornada;
prepara-a ali”. Nós, seguimos as ordens do Salvador,
entramos há pouco na cidade santa, vimos teu criado,
seguimo-lo, e aqui nos tens.
- Na minha casa de Betânia passou a última Páscoa o
Cristo. Já não vos lembrais de mim?
- Sim, disse Pedro, reconheci-te: tu és Heli, cunhado de
Zacarias e de Hebron. É esta a tua casa?
- Não, é a casa de Nicodemos, o Fariseu, e de José de
Arimatéia. Eu alugueia-a para que Jesus celebre a ceia
convosco. Segui-me e vos mostrarei o aposento destinado à
ceia pascal.
Heli tomou o archote das mãos do servo e entrou,
seguido de João e Pedro, em sua casa.
João e Pedro subiram ao andar principal da moderna
casa construída sobre as ruínas do antigo circo dos fortes de
Israel. Um pigmeu se tinha levantado sobre a ossada dum
gigante. A sala destinada ao cenáculo estava dividida em três
partes por umas cortinas imensas de pano de Tiro e ricos
tapetes da Pérsia. Estas repartições estavam profusamente
iluminadas com lâmpadas e serpentinas de bronze. As
paredes estavam pintadas de branco desde a altura dum
homem até ao teto e a parte inferior coberta de tapetes.
Multidão de tornos, à maneira de ganchos, rodeavam estes
tapetes. Ali é que os convidados deviam pendurar a roupa.
Na peça do centro via-se uma mesa imensamente comprida,
cercada de leitos primorosamente trabalhados. Nesta mesa
havia treze talheres.
- Será aqui, disse laconicamente Heli.

591
Os dois discípulos inclinaram-se e, como nada mais
tinham de fazer, pediram licença para se retirarem e
participar o que tinham visto ao seu Mestre.
- Ide, lhe disse o hospedeiro, e saudai o Mestre em meu
nome dizendo-lhe que o espero.
Os dois emissários do Redentor sairam daquela casa
pela porta das Águias e encaminharam-se para Betfagé, onde
os esperava o divino Mestre.

CAPÍTULO III

HOSANA NAS ALTURAS

Jesus, no caminho de Jericó a Betânia, tinha parado


alguns instantes para que descansasse a gente que o seguia.
- Vamos a Jerusalém, disse aos seus discípulos, e serão
cumpridas todas as coisas que escreveram os profetas do
Filho do Homem, que será escarnecido, açoitado e cuspido.
E depois de o açoitarem lhe tirarão a vida e ressuscitará ao
terceiro dia.
Os apóstolos, em cujos corações vivia rica e poderosa a
fé, guardavam silêncio sobre alguma coisa que não
compreendiam. Quando Jesus chegou à aldeia sacerdotal de
Betfagé, mandou dois dos seus discípulos a Jerusalém. Estes
eram João e Pedro, os que deviam seguir o homem do
cântaro, como deixamos explicado no capítulo precedente.
Jesus, com os apóstolos, passou a noite de 13 em Nisan na
aldeia. No dia seguinte, quando os raios do sol começaram a
estender-se sobre as copas das oliveiras de Getsemani, Cristo
disse aos discípulos:

592
- Ide ao lugar que está em frente de vós e achareis um
jumentinho preso, no qual não montou ainda homem algum;
desprendei-o e trazei-º
Os discípulos trouxeram o jumentinho; puseram os
mantos sobre o paciente lombo do animal, e Jesus
montou,dizendo:
- Agora vamos a Jerusalém.
Todos se puseram a caminho.
Entretanto, a notícia de que o Messias salvador de
Israel se aproximava da cidade, correu com rapidez. Uma
multidão imensa se agrupava, para o ver passar, na
embocadura da estrada de Betânia. Os homens levavam
palmas nas mãos; as mulheres espalhavam flores para
alfombrar o caminho que em breve devia ser santificado pelo
Cristo. Por toda parte se ouviam brados de hosana,
exclamações de entusiasmo, cânticos de alegria.
E os homens, as crianças e os velhos repetiam com
entusiasmo: “Bendito o Rei que vem em nome do Senhor!
Hosana, hosana, Paz no céu e... glória nas alturas!”
Cinco mulheres colocadas numa pequena eminência
dirigiam, ansiosas, os olhares para o lugar por onde devia vir
o filho de Davi. Uma daquelas mulheres levava um largo
manto azul que a cobria. No seu formoso semblante brilhava
a felicidade, o gozo, a alegria. Era ela a Mãe amorosa do
Mestre divino. Confundida com a multidão, rodeada das suas
leais companheiras, que nunca a abandonaram, queria
deleitar-se com o triunfo d’Aquele que trouxera nas
entranhas. Felicidade passageira, gozo momentâneo, que
devia tornar-se breve em dolorosa amargura!
Seus olhos puros e radiantes como a tênue luz da
aurora, iam em breve converter-se em mananciais
inesgotáveis de pranto.

593
De vez em quando via-se entre a alegre multidão um ou
outro homem de rosto carrancudo, de olhar ameaçador: era
um fariseu, um inimigo irreconciliável d’Aquele que baixara
à terra a tirar-lhe o manto da asquerosa hipocrisia, e que lhes
chamavam raça de víboras. Entre o entusiasmo geral, só os
romanos se mostravam indiferentes. Soldados mercenários,
só adoravam Tibério, que lhes pagava. Para estas planta
exóticas, na Palestina, tudo era indiferente, exceto o ouro e a
guerra.
A águia romana tinha feito presa da cidade santa. Suas
robustas asas estendiam-se sobre o templo de Sion, e eles
deixavam dormir as espadas nas bainhas e o escudo num
prego à cabeceira da cama, confiando em que a vítima não se
escaparia. A romaria maior, a festa religiosa mais popular de
Israel, era-lhes indiferente.
Mais ai daqueles desgraçados descendentes de Abraão
se houvessem soltado um grito de ódio, ou uma ameaça
contra o senhor de Roma, porque então aqueles indiferentes
filhos da guerra teriam desembainhado as espadas e as
cabeças judaicas teriam caído como as espigas sob a foice do
segador!
- Vêde-o! Lá vem, dizia um homem aos que o
rodeavam. Eu era cego de nascimento: Jesus pôs-me o dedo
sobre as cerradas pálpebras e, imediatamente, vi a luz
querida do sol. Bendito seja o Senhor, que vem a nós!
- Eu estava entrevando havia dez anos numa cama,
ajuntou outro: “Deixa o leito e levanta-te”, disse; e levantei-
me, e me vi bom, forte, e ágil como me vedes. Bendito sejas
Jesus! Ele é o Messias verdadeiro, o Filho prometido de
Adonai.
- Ei-lo ali. Meu Jesus! exclamou Maria, estendendo um
braço em direção ao caminho de Betânia.

594
O povo começou a mover-se. Todos queriam vê-lo
passar. Todos desejavam tocar-lhe as vestes, porque davam
saúde ao corpo. Todos ansiavam ouvir-lhe as suas palavras,
porque eram a fonte da consolação, o fecundo manancial da
fé.
Jesus aproximou-se dos muros da cidade santa
humildemente montado num jumento, rodeado dos
discípulos e dum povo faminto do amor e consolação.
E as pessoas gritavam: “Hosana! Hosana ao filho de
Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor!”
E todos se comoviam ao vê-lo, e diziam: “Quem é
este?”
E alguns respondiam: “Este é Jesus, o Profeta de
Nazaré da Galiléia”.
- Que fez esse homem para que todos o adorem?
perguntava um soldado de Pilatos a uma mulher.
- A sua voz aplaca as tempestades, os seus pés
caminham sobre a superfície das águas sem que o seu corpo
se afunde, e quando a sua palavra diz aos mortos: levantai-
vos” os mortos levantam-se e vivem como tu e como eu.
O soldado punha-se então na ponta dos pés para o ver
passar e, sem poder da razão disso, exclamava com os
outros:
- Hosana nas alturas! Bendito o que vem nome do
Senhor!
No meio do contentamento, do entusiasmo geral, os
fariseus e os doutores da lei que tinham acudido impelidos
pela curiosidade a ver Jesus, murmuravam:
- Desconfiemos desse Galileu que faz milagres que
ninguém pode fazer.

595
- Devemos prendê-lo antes que Israel se levante e
venham os romanos e nos destruam como uma manada de
ovelhas, disse outro.
Mas ninguém se atrevia a pôr a mão no jovem Mestre.
Jesus, cuja humildade era infinita, cuja mansidão era
inesgotável, dirigia em redor de si olhares de doçura e
sorrisos de amor divino. Quando chegou junto aos soberbos
muros da cidade decida, deteve o passo da modesta
cavalgadura.
O povo apinhou-se em redor dele e guardou profundo
silêncio, porque Cristo tinha mostrado com seu olhar que ia
falar e as suas palavras eram um tesouro inapreciável para o
povo de Jacó.
O chão estava semeado de flores, palmas e mirto. O
silêncio foi tal que até as aves que saltavam de ramo em
ramo suspenderam os seus trinados. Os raios claros e
brilhantes do sol caíam como chuva de ouro sobre a formosa
cabeça de Jesus. Ao olhá-lo, estremeciam todos, porque
notavam no jovem Mestre alguma coisa da divindade de
Jeová.
Jesus chorava com a radiosa fronte inclinada sobre o
peito. Depois dum momento de doloroso silêncio, ergueu os
olhos, e disse dirigindo-se à cidade, com uma voz que
chegou até os últimos, com a mesma vibração, com a mesma
clareza que aos primeiros:
- Jerusalém, Jerusalém! A minha alma estremece de
dor, contemplando os teus soberbos muros. Oh, cidade
ingrata, a quem tanto tenho amado e distinguido! Eu quis
recolher teus filhos como a galinha o faz aos seus
pintainhos, e tu pretendes dar-me a morte... O teu louco
orgulho, a tua vã soberba há de perder-te, pobre povo da
Judéia. Serás serva; a águia imperial estende o seu vôo pelo

596
orbe; suas robustas garras rasgarão o pudibundo véu das tuas
virgens, e a coroa de louro dos teus senhores se manchará
como o lodo da terra. Hostes estrangeiras percorrerão as doze
tribos de Israel; as tuas altivas torres cairão ao choque das
armas; o ar trará a peste no seu seio; tuas mulheres serão
violadas: porque virão dias contra ti em que os teus
inimigos te cercarão com trincheiras, e te porão cego, e te
apertarão por toda parte, e de derribarão em terra, e não
deixarão em ti pedra sobre pedra.
Cessou a voz angustiosa de Jesus.
Doloroso pranto corria dos olhos dos ouvintes.
A comitiva continuou a interrompida marcha e as
palmas tornaram a agitar-se, e as flores tornaram a cair ao
pés do Messias, e os coros das virgens ressoaram no espaço,
repetindo ao som dos saltérios e das harpas:

De flores e palmas o solo junquemos.


Teçamos coroas de mirto e laurel, Que hoje abre o
céu suas portas Ao Deus de Israel.

CAPÍTULO IV

PÔNCIO PILATOS

Enquanto Jesus caminhava em triunfo para o templo de


Salomão, na cidade de Beceta, o tetrarca de Galiléia, o
infame Antípas, acossado pelos remorsos, julgava que Jesus
era o Batista que tão infamemente mandara degolar em
Macheronte. Herodes tremeu no seu palácio, porque o
clamor entusiástico da entrada de Jesus em Jerusalém lhe
chegava aos ouvidos.

597
Herodes, que por uma questão de família estava de mal
com Pilatos, governador romano, não se atreveu a enviar um
dos seus cortesãos ao juiz estrangeiro para que castigasse a
insolência daquele transformador da ordem pública que tinha
alvoroçado Jerusalém.
Deixamos, pois, o assassino de João lutando com todo
o medo e com os remorsos, e entremos no palácio do
governador romano. Naquele bairro erguia-se a inexpugnável
cidadela Antônia, que Herodes, o Grande, reedificou em
honra do triúnviro Marco Antônio, e cujo nome tinham
respeitado os seus sucessores Augusto e Tibério.
Aos pés deste gigante de granito e de mármore,
encostado ao flanco setentrional, achava-se um palácio,
palácio que era quase uma povoação pelas suas imensas
edificações, habitado na época de Jesus Cristo pelos juiz
romano.
Seiscentos soldados viviam entre a cidadela Antônia e o
palácio. O espanhol Pôncio Pilatos havia seis anos que
daquelas ogivais janelas, daquelas robustas torres, vigiava o
sono dos descendentes dos Macabeus. Tibério tinha posto
toda a sua confiança naquele soldado mercenário. Pilatos era
homem de ação, valente até à temeridade. Seu sono era leve
como a Águia. Sabia que o povo de Jerusalém o odiava e
estava sempre pronto para repelir qualquer insurreição.
Mais duma vez a espada dos aventureiros do Tibre,
durante o governo de Poncio, tinha derramado o sangue
israelita pelas ruas de Jerusalém. Na história do seu governo
achavam-se três grandes charcos de sangue que Tibério
aplaudiu do solitário ninho de Capreia, para onde se tinha
retirado.
O primeiro, foi em um dia em que o povo de Jerusalém
viu entrar pelas portas de Damasco uma legião estrangeira

598
que levava nos estandartes a efígie de Tibério. O povo
sublevou-se, porque aquilo era contrário à lei. Esta
sublevação fez desembainhar a espada a Pôncio, e as mães e
as esposas de Jerusalém choraram amargamente. O segundo,
foi quando extraiu violentamente do tesouro sagrado todo o
dinheiro para fazer um aqueduto. Pôncio ouviu da sua guarda
bramir o povo e, armando-se da espada, saiu a impor-lhe
silêncio. O terceiro motivo foi o mais injusto de todos: o
sangue correu em abundância pelas vizinhanças do templo de
Sion. Os israelitas não queriam reconhecer outro senhor que
Adonai, e recusaram-se a brindar em honra de Tibério.
Pôncio castigou pela terceira vez os rebeldes.
Desde então, o sono do governador era desassossegado.
Sempre se achava disposto a sufocar o grito de liberdade que
tão pronto está a pronunciar um povo escravo.
Este homem, cuja energia o tirano de Roma admirava,
cujo valor e firmeza o último dos soldados conhecia, pouco
depois da entrada de Jesus em Jerusalém devia cobrir seu
nome de opróbrio com um rasgo de fraqueza inqualificável.
Ele ainda não tinha completado os quarenta anos. O seu
ademã era altivo e marcial quando o capacete lhe oprimia a
fronte e a couraça o peito; mas quando deixava os apresos de
guerra, quando perfumava o cabelo e se vestia com túnica
laticlávia, então o soldado desaparecia sob a forma dum
cortesão de Roma.
Tibério amava este servidor, que se unira em casamento
com uma parente um tanto remota, bela, rica e nobre, por
cuja influência o senhor do Tibre lhe concedera o governo da
Judéia. Esta romana chamava-se Cláudia Procia.
Pilatos, que, velava sempre, viu duma seteira da
cidadela Antônia que o povo corria e se apinhava pelo
caminho do monte das Oliveiras. Como a cidade estava

599
infestada de forasteiros e, além disso, dizia-se que um
homem, um sedicioso, percorria as tribos pregando máximas
estranhas. Pôncio começou a recear e, chamando um
centurião, disse-lhe:
- Flávio, indubitavelmente ocorre alguma coisa
estranha na cidade. Sabes o hebraico com um rabino de
Jericó; disfarça-te em judeu e vai ver o que há.
Algumas horas depois, Pôncio viu entrar no seu
camarim o espião Flávio, pálido e demudado.
- Senhor, um Homem a quem não chegaram em
prodígios todos os deuses do Olimpo de Homero.
Pilatos soltou uma gargalhada.
- Não te ririas se, como eu, o houveras visto; se, como
eu o houveras ouvido.
- Quem é, pois, esse homem a quem dás as condições
de Deus? perguntou Pôncio.
- Jesus de Nazaré! disse Flávio baixando os olhos.
- Ah, o Galileu, o que cura as enfermidades, o que dá
vida aos mortos, vista aos cegos e agilidade aos paralíticos!
Por Esculápio, que é prodigioso tudo o que d’Ele se conta, e
a não ser fábula, merecia que os seus compatriotas o
colocassem sobre os cornos do altar! Mas fala, Flávio, fala:
dá-me conta do que viste...
Flávio falou desta maneira:
- Senhor: Indubitavelmente esse Homem pertence à
família dos deuses. Suas palavras penetram até ao fundo das
almas. Basta que com a mão toque a cabeça de um enfermo,
para que o mal desapareça. Eu vi-o abrir a porta do templo
com uma só palavra, e com outra secar uma figueira. Os
sábios do sinédrio, os doutores de Jerusalém, saem-lhe ao
encontro, fazendo mil perguntas, que ele desfaz com uma só
palavra. Tanto que os seu saber os humilha e desejam perdê-

600
lo. Quando chegou ao templo, as escadas estavam cheias
desses vendedores de vítimas. Jesus, com um açoite na mão,
expulsou-os dali, dizendo: “Não façais da casa de meu Pai
uma caverna de ladrões”. Eu temi que os mercadores
castigassem o seu atrevimento, porque pagam aos sacerdotes
um aluguel por aqueles degraus, mas todos os obedeceram
sem descerrar os lábios.
- Um homem contra tantos! exclamou Pilatos.
- Sim, um Homem cujo olhar é irresistível, cuja fronte
brilha como a aurora, e cuja majestade tem algo que faz
estremecer,
Pôncio meditava. Flávio continuou:
De pé sobre os degraus, disse coisas extraordinárias.
Uns homens lhe apresentaram uma mulher chamada em
adultério, que, segundo a lei de Moisés, devia morrer à
pedradas. Disseram-lhe: “Tu, que sabes tanto, que opinas que
façamos a esta criminosa?” Então Jesus guardou silêncio e
pôs-se a escrever com a ponta do dedo indicador alguns
caracteres na areia. Ninguém se atreveu a interrompê-lo; por
fim, levantando a majestosa cabeça, e abrangendo com um
olhar cheio de ternura aquela infeliz que chorava disse, com
uma voz que uma vez ouvida não pode esquecer-se: “Aquele
de vós que esteja sem pecado que atire a primeira pedra”. Eu
vi aqueles homens fugirem envergonhados como se fossem
criminosos, como se as palavras de Jesus lhes houvessem
recordado que eles também tinham culpas e crimes que
ocultar. O Messias levantou a adúltera e disse-lhe: “Mulher,
onde estão os que queriam matar-te? Ninguém te condenou?
Nem eu também! Vai e não peques mais”.
- Esse Homem sabe mais que os doutores do sinédrio?
disse Pilatos.

601
- Como os fariseus o perseguem por toda a parte para o
prenderem, vendo que o povo gritava em redor de Cristo:
“Viva Jesus de Nazaré, rei da Judéia! se aproximaram
dizendo-lhe: “Tu, que sabes tanto, diz-nos se é justo pagar
tributos ao César”.
Pôncio, ante esta pergunta, levantou os olhos. Tinham
dito: “Viva Jesus, rei da Judéia”, e tinham ao seu arbítrio o
tributo romano.
Flávio continuou:
- Eu aproximei-me mais para ouvir melhor a resposta
de Jesus que, dirigindo um olhar desdenhoso aos fariseus,
lhes disse: “Porque me tentais? Mostrai-me u’a moeda.
Apresentaram-lhe uma, e Jesus colocando-a na palma da
mão, tornou a dizer. “Que efígie, tem ela? “A do César”, lhe
disseram. Pois bem, replicou Jesus, daí a César o que é de
César e a Deus o que é de Deus”.
- Esse homem é indubitavelmente o açoite dos fariseus,
disse Pôncio, desses hipócritas especuladores do fanatismo
hebreu. Continua, Flávio, continua, pois vejo que Jesus não é
inimigo de Tibério.
Senhor, disse Flávio, o Galileu falou, disse muitas
parábolas e todas causaram profunda sensação; e depois,
seguido dos seus discípulos e de uma multidão imensa, saiu
da cidade pela porta Dória.
- E onde ia?
- Segundo ouvi, ao horto das Oliveiras.
Pilatos despediu Flávio e, mais tranquilo, foi reunir-se
com sua esposa Cláudia, que passeava pelos jardins do
palácio.

CAPÍTULO V

602
PROFECIAS

Naquela mesma tarde, Jesus, sentado numa rocha no


monte das Oliveiras, dirigia um olhar doloroso à Jerusalém.
Os apóstolos, sentados também em redor de seu jovem
Mestre, comentavam em voz baixa as divinas parábolas do
futuro Mártir. Ninguém se atrevia a interromper aquela
dolorosa meditação. O clamor longínquo da cidade chegava a
eles nas asas do vento. Os raios de sol caíam como um par de
ouro sobre os altos muros e a douradas portas do templo de
Sion. Duas lágrimas, que brilhavam como duas pérolas de
Bassorá feridas pelos raios da lua, desprendiam-se dos
divinos olhos do Nazareno.
Jesus levantou a radiosa fronte, e exalando um doloroso
suspiro, estendeu a mão para a cidade, dizendo como
profético acento:
- Vês aqueles grandes edifícios, aquelas torres altivas
que desafiam as nuvens? Pois de tudo isso não ficará pedra
sobre pedra que não seja derribada.
Os discípulos então perguntaram-lhe com certo temor.
E quando sucederá isso? Que sinal haverá quando todas
essas coisas comecem a cumprir-se?
- Tende cuidado que ninguém vos engane disse Jesus,
porque muitos virão em meu nome, dizendo: Sou eu. Porque
se levantará gente contra gente, e reino contra reino, e haverá
terremotos pelos lugares, e fome. Isto será o princípio das
dores. Mas guardai-vos vós mesmos, porque vos entregarão
nos conselhos, e sereis açoitados nas sinagogas, e
comparecereis ante os governadores e reis para que deis
testemunho da minha doutrina. E em todas estas coisas

603
convém que seja pregado o Evangelho a toda a gente. E,
quando vos levarem para vos entregar, não premediteis o que
haveis de dizer, dizei o que vos for dado naquela hora,
porque não sois vós os que falais, senão o Espírito Santo.
Então o irmão entregará o irmão à morte, o pai, o filho; os
filhos se levantarão contra os pais e os matarão. E sereis
aborrecidos de todos, pelo mesno nome. Mas o que
perseverar até o fim, esse será salvo. E quando virdes a
abominação da desolação e os exércitos romanos entrarem
no templo para destruírem, profanando a casa de Deus, então
os que estiverem na Judéia fugirão para os montes, e o que
estiver no campo, não volte atrás para tomar o seus vestido.
Jesus fez uma pequena pausa, e continuou exalando
segundo suspiro:
- Mas ai das grávidas e das que criem naqueles dias!...
Rogai, pois, que não sejam estas coisas no inverno, porque
serão dias de espanto e tribulação, como nunca foram desde
que Deus fez as criaturas até agora. Porque se levantarão
falsos profetas e darão sinas para enganar. Estais de
sobreaviso. Eis que tudo isto vo-lo disse de antemão. Porque
naqueles dias de tribulação se escurecerá o sol, e a lua não
dará esplendor, e cairão as estrelas do céu, e virá o Filho do
Homem nas nuvens com grande poder e glória, e enviará os
seus anjos e juntará as suas legiões dos quatros ventos desde
um cabo da terra até outro cabo do céu. Em verdade vos digo
que não passará esta geração sem que tudo isto se cumpra.
Estai de sobreaviso; velai e orai, porque não sabeis quando
será esse tempo. Não seja que quando vier de repente, vos
ache dormindo.
Jesus guardou silêncio. O pranto corria dos seus olhos.
Os apóstolos, ante aquela terrível profecia, estavam absortos.

604
O Nazareno, que não desviava o doloroso olhar de
Jerusalém, tornou pela terceira vez a falar, e disse:
- Dias de luto, de pranto, de dor, te esperam, cidade
ingrata! O sangue de teus filhos regará teus férteis campos.
Sobre as tuas ruínas se amontoarão os milhares os cadáveres
insepultos. Os abutres e os corvos virão em imensos
esquadrões pousar sobre as tuas desmoronadas torres. Seus
curvos bicos, suas afiadas garras despedaçarão sem piedade
as entranhas dos deicidas, e os que sobreviverão a tão
espantosa catástrofe, como débeis grãos de mostarda
espalhados pelo poderoso sopro do furação, se dispersarão
pelo universo errante e perseguidos, para nunca se unirem.
Nem os filhos dos filhos de seus filhos, deixarão de ser
errantes e peregrinos, sobre cujas frontes pesará a maldição
de Deus pelos séculos dos séculos.
Os apóstolos tremeram pela sorte que estava reservada
aos seus descendentes. Só um rosto se vi sereno, imutável; só
numa fisionomia se notava a dúvida. Judas não crendo nas
palavras do seu Mestre, procurava ocultar um sorriso que
pugnava por lhe assomar aos lábios. A ambição de Judas não
tinha limites. A caridade de Jesus fazia-lhe mal. Recebedor
das esmolas. Recebedor das esmolas que os piedosos
israelitas faziam aos pobres soldados de Jesus Cristo,
obedecia sempre com repugnância ás ordens do Mestre
quando se tratava de dar alguma das moedas que, como
tesoureiro dos apóstolos, descansavam no fundo da sua bolsa
de peles de lebre.
Judas conhecia tão bem como Tiago os livros
hebraicos. O seu talento era claro, a sua palavra fluente.
Colérico e irascível, seu rancoroso coração irritava-se pela
menor contradição. Receava de tudo, e a dúvida, que tinha

605
lançado profundas raízes na sua alma, fê-lo incrédulo e
sarcástico.

CAPÍTULO VI

O GRANDE SINÉDRIO

Seriam oito horas da noite. Multidão de sacerdotes,


escribas e rabinos conversavam com bastante agitação no
grande sinédrio situado no templo de Sion, entre o átrio dos
sacerdotes e o átrio dos Israelitas. Este temível tribunal dos
hebreus, este memorável lischathagasith (conclave de
pedra) tinha ao redor uma bela varanda de bronze, e a forma
de semi-círculo, e estava colocada de modo tal que parte
pertencia ao átrio dos sacerdotes e a outra ao átrio dos
israelitas. O presidente supremo do sinédrio, chamado
Hanasci (principal ou primeiro) sentava-se no centro do
semi-círculo para que pudessem vê-lo e ouvi-lo todos sem
incômodo. Sentava-se a sua direita um ancião chamado Ab
(padre do sinédrio) e à sua esquerda outro denominado
Hacan (sábio).
Segundo o Talmud dos judeus, os julgamentos civis de
pouca monta eram feitos por três juízes; e os criminosos em
que se tratava da pena capital estas sentenças era a porta da
cidade. Os juízes sentavam-se no chão, e os litigantes
estavam de pé, ao redor. O povo podia ouvir e apreciar a
retidão dos juízes, aprovando ou desaprovando as sentenças
pronunciadas pelos paletohs (executores da sentença).
O tribunal maior ou o grande sinédrio era o que julgava
as desordens das tribos, a audácia dos falsos profetas e tudo o
que dizia respeito a questões religiosas. Este tribunal achava-
se ao templo. O número dos juízes era de sessenta e um.

606
Na noite de que nos ocupamos, isto é, naquela mesma
em que Jesus celebrava a Ceia eucarística em casa de Heli,
achavam-se reunidos no sinédrio todos os príncipes dos
sacerdotes, excetuando Nicodemos e José de Arimatéia, os
quais não tinha sido convocados por terem defendido o
Nazareno poucos dias antes.
Caifás presidia aquela noite ao supremo tribunal. Anás,
seu genro, receoso de que alguns anciãos quisessem deferir a
causa para depois de terminada a festa dos Asmos, porque
segundo a lei não lhes era lícito tirar a vida a ninguém no
dia festivo da Páscoa, nem exerce o juízo das almas, tinha
comprado alguns membros cujos nomes a história nos
conservou. São os seguintes: Sumus, Datam, Gamabel, Levi,
Neftali, Alexandre, Siro, Roboam e Amer.
Estes nove sacerdotes, que eram os mais furiosos do
sinédrio unidos a Caifás e Anás que, além de serem os
presidentes, odiavam de morte a Jesus, achavam-se dispostos
a saltar por cima da lei, que reinava no sinédrio era grande.
As curas milagrosas que Jesus tinha feito ao povo traziam-
nos inquietos. Era indispensável acabar com aquele homem
audaz que ameaçava derrotar o seu poder. Mas como? O
Profeta Galileu podia com uma só palavra insurgir as tribos.
Seu partido era imenso e os sacerdotes temiam que a espada
dos romanos interviesse, como de outras vezes, nos seus
negócios. Viam seu poder ameaçado e meditavam a morte do
Nazareno.
Naquele momento de confusão e dúvida em que todos
falavam e o medo e o temor não os deixavam entender-se,
apresentou-se no sinédrio um executor das sentenças e disse:
Ilustre senado, no átrio das Nações espera um homem a
vossa licença para entrar; diz que se chama Judas e que é

607
discípulo do falso Profeta que transtorna a paz da cidade
santa.
Os sacerdotes olharam uns para os outros perguntando-
se que queria aquele homem, discípulo de Jesus. Anás, o
mais resolvido de todos, e inimigo encarniçado de Cristo,
sem esperar que os seus companheiros decidisse, exclamou:
- Conduz esse homem até aqui.
Pouco depois, Judas Iscariotes achava-se no grande
sinédrio diante dos terríveis e rancorosos inimigos do Mestre
Divino. Todos os olhares se fitaram no recém-chegado. Judas
volveu em torno de si os olhos, mostrando uma agitação
espantosa.
Dir-se-ia que aquele homem tinha corrido muito; sua
respiração era cansada; agitava os lábios como se a língua se
lhe pegasse ao paladar. Todos os seus movimentos
mostravam medo, cansaço, desgosto. Os sacerdotes
contemplaram-no uns instantes, ignorando se era amigo ou
inimigo. Por fim Anás rompeu o silêncio, perguntando:
- Discípulo de Jesus, que te traz ao sinédrio?
Judas levantou a fronte com orgulho como se as
palavras de Anás o tivessem ferido:
- Chamo-me Judas: nunca tive medo, entendeis? Mas
soube que vos acháveis reunidos para tratar de um negócio
que vos importa muito, e pensei: Vamos lá. Os juízes querem
prendê-lo e não se atrevem; pois bem, eu atrevo-me, se me
pagarem bem. Se quereis prender Jesus, eu vo-lo entregarei.
- E que segurança nos ofereces? disse Anás, que viu
naquele homem o que em vão buscara durante o dia.
- Tu és seu discípulo e todos os seus discípulos se
deixariam crucificar por Ele.

608
- Todos, menos eu; por isso venho dizer-te: Que me dás
e entrego-te? O que te prova que em vez discípulo, sou seu
inimigo.
Anás falou em voz baixa com os sacerdotes.
- Está feito o contrato, falou depois.
- Quando me dareis o dinheiro?
- Quando nos entregares Jesus.
- Esta noite, antes da vigília média. Virei aqui dizer o
lugar onde podereis encontrá-lo.
- Cumpre tua parte e nós cumpriremos a nossa; mas ai
de ti se nos vende! falou Anás.
Judas ia sair do sinédrio quando Caifás o deteve
dizendo:
- Espera.
- Que queres? replicou o Iscariotes com receoso acento.
- O tribunal não pode permanecer aberto tantas horas:
sabes tu onde vive meu sogro Anás?
- Vive no baixo Jerusalém, no monte Acra, respondeu
Judas; de tua casa à de Heli apenas há duzentos passos.
- Pois bem, ali te esperamos.
Judá saiu do sinédrio, e atravessando a esplanada do
baixo Jerusalém, subiu ao monte Acra, e parou diante duma
casa grande antiga. Dois homens passeavam diante da porta.
- É esta a casa do pontífice Anás? perguntou.
- Sim, respondeu um dos homens.
Judas continuou o caminho e, chegando ao mais alto da
cidade de Sion, entrou numa casa, a casa que Nicodemos e
José de Arimatéia haviam alugado a Heli. Era o santo
cenáculo onde Jesus se achava reunido com os seus
discípulos.

609
Entretanto os sacerdotes fizeram o juramento de um
jejum forçoso se Jesus de Nazaré caísse nas suas mãos e
fosse crucificado.

CAPÍTULO VII

A ÚLTIMA CEIA

Jesus e os discípulos achavam-se reunidos no salão que


lhes prepara Heli. O cordeiro pascal fumegava em cima da
mesa. O Nazareno indicou que podia começar o sacrifício.
Os apóstolos deitaram-se nos leitos que rodeavam a
mesa da parte exterior; pela interior serviam os criados a
ceia. Jesus ocupou o leito do centro. João, o discípulo
favorito, o apóstolo de doce sorriso, de olhos azuis,
eloquente palavra e coração generoso, sentou-se à direita. Ao
lado de João sentaram-se Tiago Maior, filho de Zebedeu e
irmão de João; Tiago Menor, primo de Jesus por parte de sua
Mãe; Bartolomeu; Tomé, o incrédulo, que não creu nas
chapas de Jesus sem as tocar.
Pouco depois devia sentar-se, junto de Tomé, Judas o
traidor, o filho da aldeia de Iscariote.
Da parte oposta, sentaram-se junto de Jesus: Pedro,
André, Judas Lebbe, o discípulo mais fiel; depois Simão,
Mateus, e finalmente Felipe, que não esperava nada de bom
de Nazaré.
Na mesa só havia três pratos. O do centro cotinha o
cordeiro pascal. A direita estava um prato de ervas amargas,
à esquerda outro de ervas doces.
Heli tinha começado a trinchar o cordeiro, pois servia à
mesa em honra dos seus hóspedes, quando Judas, inquieto

610
como homem a quem persegue de perto o remorso, entrou no
cenáculo. Jesus dirigiu um olhar cheio de doçura ao discípulo
que acabava de vendê-lo e Judas, sem se atrever a olhar o
Mestre Divino, foi assentar-se a um extremo da mesa ao lado
de Tomé, o incrédulo.
Jesus tocou com os lábios o vinho que lhe acabava de
deitar Heli, e depois disse a oração que lhes tinha ensinado
no monte, e que começa assim: Pai nosso que estás nos
céus. Depois começou a santa ceia. O futuro Mártir estava
triste. De vez em quando o seu doloroso olhar fitava-se com
amorosa ternura naquele punhado de seres que tanto deviam
padecer por Ele.
Judas não desviava os olhos do prato, receoso de se
encontrar com o olhar do Mestre.
Por fim, Jesus exalou um doloroso suspiro, e rompeu o
silêncio, dizendo:
- Em verdade vos digo, que um de vós me há de
entregar.
Os discípulos olharam-se uns aos outros com olhar
cheio de profunda tristeza, de mudas perguntas que se
dirigem. Aqueles corações puros não podiam compreender
tal maldade. Vender Cristo! Vender seu Mestre!... Era
impossível! João disse:
- Mestre, serei por desgraça eu esse miserável que tu
dizes?
- Sou eu acaso? perguntou com energia Pedro.
- Eu por ventura.
- Acaso cabe a mim essa desgraça?
- Serei eu esse infame?
Todos, indignados, lhe dirigiam a mesma pergunta.
Judas, abismado na sua vergonha, comia e calava. Jesus
continuou:

611
- O que mete comigo a mão no prato, esse é que me
entregará.
Ao dizer Jesus estas palavras achavam-se no prato as
mãos de Judas Iscariotes. Cristo contemplou um momento a
perturbação do traidor e o assombro dos outros e disse com a
sua bondade nunca desmentida:
- O filho do homem há de ser entregue, como está
escrito; mas ai daquele por quem for entregue! Mais lhe
valera não ter nascido!
Todos os olhos se fitaram em Judas, o único que não
tinha dirigido a pergunta a Jesus. O Iscariotes conheceu que
era preciso dizer alguma coisa:
- Sou eu, por ventura, Mestre?
O Nazareno deteve um momento o doce olhar na
carregada e ameaçadora fronte do discípulo. Em seus olhos
meigos e amorosos apareceu uma lágrima, e com uma voz
que ressoou até o mais recôndito das almas dos discípulos,
disse simplesmente:
- Tu o disseste, Judas.
E Jesus entregou ao traidor um pedaço de pão, símbolo
da reconciliação. Judas pegou maquinalmente no pão que lhe
oferecia o Mestre. Seus olhos, injetados de sangue, a boca
meio aberta pela comoção, a testa enrugada, mostravam a
horrível luta que estava sustentando o seu espírito. Percorreu
com olhar estúpido os semblantes dos companheiros. Todas
as fisionomias respiravam uma severidade acusadora.
Judas não pôde suportar aqueles juízes silenciosos,
mais terríveis. Desceu do leito, possuído duma vertigem.
Colocou-se no meio do cenáculo, deitou com força ao chão o
pão que ainda tinha na mão, e saiu precipitadamente da sala.
Houve um momento de pausa. Aquela cena tinha
comovido os discípulos. Jesus, tranquilo e esquecendo o

612
perigo, partiu o pão, e distribuindo-o entre os discípulos,
disse:
- Tomei e comei, este é o meu corpo.
Os discípulos comeram em silêncio.
Depois Jesus tomou o cálice, aplicou-lhe os lábios e
entregou-o aos discípulos, dizendo:
- Bebei todos, porque este é o meu sangue, que será
derramado para bem de muitos e remissão de pecados.
Os discípulos beberam. Depois entoaram o hino do
profeta, que começa assim:
- Levanta-te! Levanta-te! Sacode o pó: senta-te,
Jerusalém; desata as ataduras do teu colo, escrava filha de
Sion. Debalde fostes vendidos, e sem prata sereis resgatados.
Quão formosos são sobre os montes os pés do que anuncia a
paz: do que diz a Sion: reinará o teu Deus!
Alegrai-vos e cantai, desertos de Jerusalém: porque o
Senhor consolou o seu povo. Olhai que o meu servo será
exaltado ante ti e sublimado sobremaneira.
Quem crerá o que nos ouça contar?
E subirá como uma vergôntea que brota duma terra
estéril, e não saberá bom parecer nele , sem formosura; vê-
lo-emos e não nos dignaremos olhá-lo, tão desfigurado e
serão grandes os tormentos que padecerá por nós.
Em verdade Ele tomará sobre si todas as nossas
enfermidades, (os nossos pecados) e carregará com as nossa
dores: por nossa causa se verá coberto de chagas; será
afligido pelos nossos crimes, e morrerá no meio de cruéis
sofrimentos, sem despregar os lábios, como o cordeiro que
conduzem ao sacrifício, e sobre os seus ombros carregará o
peso das nossas iniquidades”.
Quando terminaram o hino do profeta, Jesus fez
segunda libação, oferecendo depois o cálice aos seus

613
discípulos. Jesus então desceu do leito e, tirando o manto que
lhe embaraçava os braços, encaminhou-se com passo
tranquilo para o extremo da sala onde se via uma toalha, duas
ânforas de cobre e uma bacia do mesmo metal. Dois criados
de Heli entregaram a toalha a Jesus, que a cingiu à cintura.
O Nazareno aproximou-se de Pedro e disse-lhe:
- Amado Pedro, vou lavar-te os pés.
- Tu vais-me lavar os pés? exclamou Pedro.
Pedro opunha-se. Aquela humildade do seu Mestre não
estava ao alcance da sua inteligência. Jesus, com a mansidão
nunca desmentida, disse-lhe estas palavras:
- Quando o Espírito Santo inundar de luz a tua
inteligência, saberás porque faço estas coisas e outras muitas
que agora ignoras. O que não me obedecer será excluído do
número das minhas ovelhas.
Jesus lavou um por um os pés dos seus discípulos.
Depois deixando a toalha e pondo o manto pardo sobre os
ombros, tornou a sentar-se no leito e disse-lhes deste modo:
- Meus amados, o que fiz convosco, deveis vós fazer
com vossos irmãos para ganhardes o reino dos céus. Em
verdade vos digo, o servo não é maior que o senhor, nem o
enviado é maior que o que o enviou; se isto fizerdes, se
compreenderdes a necessidade que tem o homem de
humilhar-se ante o seu semelhante por pequeno que seja,
bem-aventurados sereis se o fizerdes.
Ninguém se atreveu a interromper o divino orador.
Jesus combinou:
- Meus filhos, ainda permanecerei algumas horas, entre
vós; mas depois me procurareis e não me encontrareis;
porque onde Eu vou, não podeis vós ir. Um mandamento
novo vou dar, não o esqueçais nunca: Amai-vos uns aos
outros assim como Eu vos amei. Não afasteis de vossos

614
corações a caridade, que nisso vos conhecerei por meus
discípulos. Nunca deis entrada em vossos peitos à avareza;
tratai os homens como vossos irmãos, que o são. Se à noite
ao retirardes-vos às vossas casas achardes um dinheiro nos
bolsos, levantai-vos, sai de casa sem temerdes nem a chuva,
nem o vento, nem o frio, procurai o necessitado, dae, e
depois entregai-vos ao sono, doce e benfazejo do que semeia
o bem na terra.
Jesus deteve-se. Inclinou a radiosa fronte para o peito e
um suspiro se lhe escapou dos lábios.
Pedro cujo caráter nobre e impetuoso não estava
conforme com a separação que acabava de anunciar-lhe o
Mestre, aproveitando aquela breve pausa, acrescentou:
- Senhor, disseste que onde Tu vais não poderemos
seguir-te; porque não te posso seguir eu? A minha alma e
vida são tuas dispõe delas;não creias que me arreda o perigo.
Que maior alegria que morrer por ti?...
Jesus contemplou com amoroso olhar a Pedro, e disse-
lhe com um sorriso cheio de ternura.
- Darás a alma por Mim?... Em verdade, em verdade te
digo que não cantará o galo esta noite sem que me tenhas
negado três vezes.
Pedro ouviu aquelas palavras com um assombro
imenso. Como era possível que ele negasse três vezes a
Jesus, seu Mestre, seu muito amando Senhor? Aquela dúvida
atormentava-o a um ponto indizível.
Jesus continuou:
- A paz vos deixo, a minha paz vos dou. Não se
perturbe o vosso coração nem se acovarde. Todos vós,
meus amados discípulos, padecereis esta noite por Mim,
porque está escrito: Ferirei o pastor e se dispersarão as

615
ovelhas do rebanho. A minha morte está próxima. Mas
depois que ressuscite irei adiante de vós à Galiléia.
A tristeza dos discípulos era imensa.
Jesus, pai amoroso, via aproximar-se o instante terrível
da separação, e as lágrimas lhe vinham aos olhos. Por fim fez
um esforço e levantando-se do leito, disse com voz firme aos
discípulos:
- Vamos, a hora aproxima-se.
Sairam do cenáculo. Jesus ia adiante; os discípulos
atrás. A noite estava escura. Ao transpor o umbral da casa de
Nicodemos, o Nazareno ouviu um gemido. Voltando a
cabeça viu duas mulheres ajoelhadas aos dois lados da porta.
- Mãe! Madalena! disse. Que fazeis aqui?
- Queríamos ver-te sair, Filho amado! exclamou a Santa
Virgem com doloroso acento. Jesus deu a sua Mãe um beijo.
Era o último que devia dar-lhe na terra, onde ia padecer o
doloroso Calvário da morte.
Madalena beijou em silêncio o extremo do manto do
Mestre Divino.
Jesus e Maria permaneceram um momento abraçados.
Os dolorosos soluços daquela Mãe sem igual entristeciam os
silenciosos apóstolos.
Pouco depois, Heli dava hospitalidade em sua casa
àquelas duas mulheres cuja amargura era sem igual.

LIVRO DÉCIMO SEXTO

O CAMINHO DE SANGUE

CAPÍTULO I

616
AS TRÊS GOTAS DE SANGUE

Jesus e seus discípulos saíram de Jerusalém pela porta


Dória e, passando a torrente do Cedron, tomaram a estreita
vereda que conduz ao monte das Oliveiras.
Seriam dez horas da noite. O vento soprava frio,
impetuoso, como um rouco lamento da natureza quebrando-
se nas rochas do vale dos Cedros. Os mochos entoavam seu
tétrico canto do sepulcro dos Profetas. A lua, triste e pálida
como nunca, começava a elevar a fronte por trás do monte
Erego. Espessas nuvens percorriam o ar anunciando uma
próxima tempestade.
O doloroso silêncio de Jesus, que caminhava adiante
com a fronte inclinada para o chão, e a tristeza da noite,
oprimiam o aflito espírito dos apóstolos.
Tinham caminhado uns mil passos além da torrente do
Cedron, quando Jesus parou diante duma quinta chamada
Getsemani. Aquela quinta, cujo terreno fértil S. Jerônimo
designa com o nome de Vallis pinguissima, estava recostada
na fralda oriental do monte das Oliveiras. Então Jesus disse
a Simão, Bartolomeu, Tadeu, Felipe, Tomé, André, Mateus e
Tiago Menor:
- Ficai neste cerrado: Eu vou ora ali. – E estendeu o
braço na direção do monte. Velai e orai a fim de não cairdes
em tentação; e vós, Pedro, Tiago Menor e João, segui-me.
Jesus, seguido dos seus discípulos favoritos, entrou por
uma abertura que havia no muro da terra que cercava o
jardim. Depois caminharam coisa de uns sessenta passos.
Um raio da lua caiu sobre a fronte de Jesus. Pedro fez
observar aos amigos a palidez do Mestre. O Galileu falou:
-Vós, que me tendes seguido por toda a parte, só vós
podeis ver a minha fraqueza sem duvidar. Esperai-me aqui;

617
estas oliveiras, as mais velhas do monte, vos servirão esta
noite de tenda.
- Pois que, deixas-nos, Senhor? perguntaram os
discípulos.
Jesus estendeu o braço na direção duma gruta, cuja
entrada se achava meio escondida pelas sarças.
- Eu vou ali, lhe disse.
E caminhando alguns passos entrou na gruta com o
coração oprimido. Uma vez dentro, prostrou-se por terra, e
colando a fronte no pó começou a orar.
Uma tradição, antiga como o mundo, refere que os pais
do gênero humano, quando foram expulsos do Paraíso, se
refugiaram naquela gruta.
Mais tarde, segundo outra tradição, Adão e Eva, os
desterrados do Paraíso, foram gozar, o eterno sono da morte
sobre o solitário cume do monte Gólgota, onde segundo se
crê estão enterrados naquela gruta.
Jesus orava com a fronte colada no pó, quando ressoou
nos âmbitos da gruta o som duma trombeta. As abóbadas
estremeceram, a terra tremeu, porque aquele som tinha o
poderoso acento do trovão, o eco espantoso do furação
desencadeado. A sua voz os mortos devem um dia agitar-se
nos seus sepulcros. O seu acento poderoso encherá o
universo, e a terra, abrindo largas bocas, lançará do seu seio
milhões de esqueletos. Porque a trombeta que aterrou Jesus
na gruta será a que deve evocar os mortos no dia do juízo
final.
Quando o eco da trombeta se perdeu nos escuros
âmbitos da gruta, ouviu-se uma poderosa voz, que dizia:
- Filho dos homens! Escutai a voz do que tem a chave
da eternidade: ouvi a palavra d’Aquele que refreia a fúria dos
mares e torna em brando zéfiro o sopro devastador do

618
furação. Escutai o acento do que dá luz ao sol, fruto aos
campos, aroma as flores; ouvi a palavra do Ser infinito que
empresta chamas ao inferno e poder à morte: e se existe
debaixo da azul imensidade uma criatura que queira morrer
pelo gênero humano, se dá um homem que se atreva a
suportar a morte mais dolorosa que ainda sofreu ser algum
desde o justo Abel até o presente, se há uma criatura que
queira aparecer ante a presença de Deus, que responda: O
Eterno a espera.
- Senhor, exclamou Jesus, o meu corpo acha-se pronto
para o sacrifício: pereça eu, rasguem-me os homens a carne
em pedaços, se a minha dolorosa morte há de salvar o gênero
humano.
Então um raio de luz esplendida desceu dos céus.
Aquela luz banhou com seus divinos raios o corpo de Jesus,
que permanecia orando com o rosto colado no chão. Depois
tornou a unir-se a abóbada, e as trevas reinaram pela segunda
vez na gruta.
Aquele raio de luz celestial encheu de valor o coração
de Jesus. Pôs-se em pé e disse em voz sossegada:
- Cumpra-se o que de cima emana: estou pronto.
Então abriu-se a terra e apareceu na gruta o arcanjo
tentador. Trazia o vestuário brancos dos essênios, e o sorriso
irônico dos réprobos lhe brilhava nos lábios.
- Eis-me aqui, disse o arcanjo; pela segunda vez venho
oferecer-te a minha proteção; a tua hora aproxima-se. Estás
resolvido a morrer para salvar as iniquidades do gênero
humano?
- Sim, respondeu tranquilamente Jesus; o meu sangue
lavará o pecado da humanidade. Minha cruz será a chave da
redenção.

619
O arcanjo exalou um rugido de ira. A impassibilidade
do Nazareno irritava-º
- Escuta, disse, a sangrenta história dessa raça que
queres salvar com o teu sangue inocente. Depois do aleivoso
assassínio de Caim, passemos sem nos deter por um imenso
mar de sangue que cobrem as gigantescas asas do divino
universal. O castigo de Deus estava próximo. Os raios da
cólera divina ainda se viam na terra quando nasceu um
Nemrod que foi o maior ladrão que desde o princípio pisara a
terra dos homens; porque Nemrod, privando a todos da
liberdade, se erigiu senhor pela força e se fez adorar como
Deus, sendo um miserável assassino. Seguindo a história do
povo escolhido por Deus, encontramos o incesto das filhas
de Lo, a raiva de Esaú a seu irmão Jacó, a atroz perfídia de
Simeão e Levi, a infame venda do casto José. O ruído das
cadeias, os lamentos de dor, nunca cessam. Adonibecé corta
os pés e as mãos a cinquenta senhores, e ata-os debaixo da
sua mesa, dizendo que aqueles lamentos o ajudavam a fazer a
digestão. Abimelec, para cingir a coroa, degola sessenta
irmãos, e o persa Artaxerxes VIII, pelo mesmo motivo,
assassina oitenta e cinco entre irmãos e parentes. Dalila,
vende seu esposo Sansão. Heli perde Israel pela sua torpeza.
Saul é devorado pela inveja. Atalia degola os primogênitos
de Judá. Aman é incestuoso, Absalão traidor e Adonias,
fratricida. Salomão, seu pai, chora amargamente nos últimos
anos da vida a perfídia de seus filhos. Atrás do rei poeta,
seguem-se em Israel dezenove tigres com a fronte coroada: a
terra tinge-se com o sangue das vítimas. O povo empobrece
com a cobiça dos seus tiranos, e a virtude foge envergonhada
da nação escolhida. Depois segue-se Aristóbulo, que matou à
fome sua mãe; Hircano, que quis usurpar a coroa a seu pai, e
a guerra civil devasta a Judéia. O estandarte vencedor de

620
Pompéu percorre as tribos, saqueando os indefesos
descendentes de Jacó, e, por último, Herodes, o Grande, cai
sobre Israel como um açoite. Seu terrível cutelo nada
respeita: corre o sangue até no seu próprio palácio e o de
suas mulheres e seus filhos mistura-se com o dos inocentes
belemitas e o do seu oprimido povo. O mesmo templo de
Sião mancha-se com o do justo Zacarias. Com o teu, ó Jesus!
se ensopará em breve o cume do Gólgota. E por essa raça de
incestuosos, de fraticidas, de verdugos e assassinos vais
sacrificar-te?
Lusbel soltou uma terrível gargalhada, que fez
estremecer as abóbadas da gruta.
Na fronte de Jesus brotou uma gota de suor.
Aquela gota suava sangue. Erguendo os olhos cheios de
doce resignação ao céu, murmurou esta frase:
- Meu Deus, cumpra-se a tua vontade!
Lusbel interrompeu sua gargalhada e exalou um grito
de dor. A mansidão de Cristo despedaçava-lhe o coração.
Tomou alento, como o que se prepara para lutar, e disse:
- Pois que, para convencer-te, não te bastam os crimes
célebres que tem perpetrado essa raça maldita que queres
salvar, escuta; Deus concede-me só três horas para pôr-te á
prova, breve espaço por certo. Para te recordar as infâmias
do homem, seriam necessários mil dias com suas noites; mas
aproveitarei o tempo. Já ouviste a história criminosa do povo
predileto do Senhor. Agora irei revelando a ventura de outros
países. Cambises, cego pela ambição, sepultou um imenso
exército nos desertos, areais da África, Artabano assassina
Xerxes e acusa Dario, que morre degolado por seu irmão
Artaxerxes. Siatira, mulher cruel manda matar sua sogra
Perísatas. A concubina Aspásia, revela a seu senhor
Artaxerxes II,que um de seus filhos a requestra, e aquele pai

621
cruel executa uma horrível matança, de três filhos legítimos e
cento e doze bastardos. A este bárbaro sucedeu o assassino
de Artaxerxes III, que extinguiu a sua numerosa família.
Quinto Cúrcio assassina vinte e seis irmãos. O punhal
embota-se na mão do seu eunuco Bogoas; mas o tirano grita-
lhe: Mata, mata!... Algum tempo depois o veneno de Bogoas
vinga as vítimas de Cúrcio. O eunuco, afeiçoado à morte
experimentara segunda vez o veneno no seu novo senhor;
mas é descoberto e obrigado a esgotar a taça e morre.
Depois, lhe corta o fio da existência. Se diriges os olhos para
a moderna república de Roma, que acharás? Sangue, como
em toda parte. Rômulo mata seu irmão Remo. Numa
Pompílio, sendo um farsante faz-se adorar pelo seu povo.
Túlio Hostílio, mais que homem, é um lobo carniceiro que
alarga as fronteiras da Itália. Tarquinio Prisco ajunta doze
povos à república e morre às mãos de seus filhos. Túlia,
esposa de Tarquínio, o soberbo, obriga seu marido a matar a
mãe, e depois esmaga o cadáver debaixo das douras rodas de
seu carro. Ápio Cláudio enamora-se brutalmente da casta
Virgínia, e não podendo conseguir uma carícia, manda-a
degolar numa praça na presença de seu pai. Mário e Sila,
com suas tábuas de proscrição, derramam tanto sangue do
mais querido de seus amigos pelas ruas de Roma, que o
Tibre transborda, e Augusto, Marco Antonio e Lépido
sacrificam os seus partidários, mas reinam juntos e devoram-
se mais tarde; e Tibério , o senhor de Roma, manda crucificar
as mães só pelo crime de terem chorado a morte de seus
filhos. Mas o prazo vai terminar: não posso deter-me a relatar
os crimes de Nero, de Calígula, de Como e outros assassinos
ilustres que existirão amanhã; nem os de Orestes que mata
sua mãe, nem os de Medeia, que assassina seus filhos, nem
os de Tiest, que os come. Nada quero dizer-te de Antemão,

622
que edificou uma pirâmide com os crânios dos estrangeiros
que passavam pelas sua terras; nem de Manassés que
mandou serrar pelo meio o profeta que há cerca de nove
séculos profetizou a dolorosa morte que te espera.
Lusbel parou. Jesus tornou a dizer:
- Senhor, faça-se como desejas.
Um grito atroador saiu da imunda boca do demônio
tentador, que disse:
- E não desprezas essa raça?
- Não... Morrerei por ela, respondeu Jesus.
Naquele momento segunda gota de sangue rebentou da
divina fronte de Jesus.
- Jerusalém! Jerusalém! Prepara-te para presenciar a
mote do Justo. Sua dor será imensa, sua agonia, dolorosa, sua
morte, cruel; mas o seu sangue purificará o gênero humano...
e vós, cuja fé inquebrantável, apóstolos de Jesus, vos leva
após os passos do divino Mestre, preparai-vos para o futuro
martírio que vos espera. Vós sereis a semente cristã que se
estenderá pelo campo do universo; mas a vossa morte será
terrível cruel, horrorosa.
Depois ressoou um pavoroso trovão. O arcanjo tinha
desaparecido. Jesus caiu de joelhos e pôs-se a orar. Terceira
gota de sangue lhe tingiu a fronte. A abóbada da gruta tornou
a abrir-se. A luz do céu banhou segunda vez o corpo do
Mártir, e os anjos entoaram este canto.
- A tua dor sublime, o teu sangue inocente, dará a paz
ao universo. Glória a Jesus sobre a terra! Glória ao senhor
nos céus!

CAPÍTULO II

623
O TREVO DA JUDEIA

Jesus continuava orando com a fronte colada no pó.


Deus ouvia as súplicas, todas em favor da humanidade. Seus
rogos foram atendidos, e o sangue que oferecia pelo pecado
alheio admitido.
Quando Jesus se levantou, uma das gotas de sangue que
lhe tingiam a pura fronte, caiu no cálix duma pequena e
modesta flor que se achava a seus pés. Ia sair da gruta, pois a
hora da sua prisão se aproximava, e queria antes despedir-se
dos seus três discípulos favoritos, quando ouviu uma voz
imperceptível, que lhe dizia:
- Senhor, inclina os teus divinos olhos para a terra e
olha-me; teus castos lábios, não há muito, tocaram-me as
inodoras folhas; o precioso sangue da tua fronte caiu no meu
cálice sem perfume. Eu sou a planta mais humilde e modesta
de Israel. Ninguém me olha, ninguém me colhe com amor,
porque não tenho virtude alguma; mas Tu podes fazer-me
imortal concedendo à minha família uma gota de sangue em
cada uma de suas pequenas e brancas folhas, e um pouco de
perfume de tuas divinas palavras na semente que me
fecunda. Senhor, não te vás sem conceder-me o que te peço!
Jesus inclinou os olhos para o chão.
Aquela voz nascia do cálice duma flor.
Compadecido o Nazareno ante a súplica daquela débil
planta, disse-lhe:
- Já que presenciaste a minha amargura, já que Deus te
concede por um momento o dom da palavra, o meu sangue
esmaltará desde esta noite as tuas brancas folhas, e a essas
três manchas ajuntarei a coroa de espinhos que hei de cingir
amanhã na cidade, e o delicado perfume dos lírios do vale do
Babulon.

624
- Senhor, Senhor, bendito sejas! tornou a tenra
florzinha.
Desde então cresce nos campos uma flor silvestre, que
ostenta em suas brancas folhas três manchas de sangue que
entrelaçam uma coroa de espinhos.
Esta flor chama-se trevo da Judéia.
Jesus saiu da gruta e encaminhou-se para as velhas
oliveiras onde tinha deixado os discípulos. Dormiam
profundamente. Cristo esteve-os contemplando em breve
espaço e estremeceu. Tinha escutado o ruído de armas pelo
caminho de Cedron, e a luz dos archotes resplandecia na
escuridão da noite. Vinham prendê-lo. Sua hora aproximava-
se. Inclinou-se para o chão e, pegando por um braço a João,
sacudiu-o brandamente, dizendo:
- Pedro, Tiago, João, levantai-vos, porque estão perto
os que vêm por Mim.
Os apóstolos levantaram-se. Naquele momento o
resplendor dos archotes banhou a modesta parede do horto
de Getsemani. Os apóstolos viam caminhar aquelas luzes,
ouviam o ruído das armas e as pisadas que se aproximavam,
e olhavam Jesus como perguntando-lhe que era aquilo.
Jesus sorriu-se de um modo doloroso, e disse-lhes:
- Estai alerta, porque se aproximam os que hão de
prender-me.
Seria uma hora da noite.
- Os que vão prender-te? disse Pedro com assombro.
Oh! Isso não sucederá: tenho a espada pendente do cinto; na
granja de Getsemani temos oito amigos decididos e nós três,
onze: quem se atreverá a tocar-te? Ai dos que te ponham a
mão sobre o ombro!...

625
- Pedro, exclamou Jesus, tudo o que vai acontecer-me,
está escrito lá em cima. É vontade de Meu Pai. Tu não farás
nada.
- Saiamos ao encontro dos que vêm prender-me.
Jesus caminhava adiante, triste, mas sereno. Saía ao
encontro dos seus inimigos, como para lhes evitar trabalho.
Quando estava perto da parede, voltou a cabeça e chamou
João, que se colocou ao seu lado.
Jesus pôs amorosamente uma das mãos sobre o ombro
do discípulo favorito e disse-lhe:
- Quando me achar em poder dos meus inimigos,
dirigir-te-ás à porta Dourada. Ali está minha Mãe com as
santas mulheres que a acompanham. Eu tenho-te sempre
querido como a um irmão; minha Mãe, como a um filho;
depois da minha morte, toma-a por Mãe, que Ela te tomará
por filho. A ti a recomendo, porque são muitas as dores que
lhe resta sofrer.
João deixou cair a cabeça dolorosamente sobre o peito
do seu Mestre. Abundantes lágrimas lhe rebentavam dos
olhos, azuis como o céu. Depois continuaram o caminho:
Jesus, adiante; os três discípulos, mudos, comovidos, atrás.
Quando chegaram a uns vinte passos de Getsemani, Jesus viu
Judas, que caminhava adiante da multidão. Parou e exalou
um suspiro, dizendo:
- Eis o que me vendeu.
Inclinou a fronte para o chão e esperou.
Tiago, aproveitando o momento, correu a acordar os
companheiros. Pedro, com a espada escondida debaixo do
manto, olhar ameaçador e fronte alta, colocou-se ao lado do
Mestre disposto a tudo. João chorava em silêncio recordando
as últimas palavras de Jesus.

626
CAPÍTULO III

SOU EU!

Retrocedamos algumas horas. Tomemos a narração


desde o momento em que Judas, deitando ao chão o pão que
Jesus lhe havia entregado, saiu desesperadamente do
cenáculo arrancando os cabelos e gritando:
- Sou um miserável!
Como dissemos, a casa de Heli distava uns duzentos
passos do palácio de Anás, onde se tinham reunido os juízes
para esperarem o traidor. No vestíbulo achavam-se alguns
soldados mercenários aquecendo-se ao redor de um largo
braseiro, porque a noite estava fria. Aqueles filhos da guerra
maldiziam em voz baixa o medo e receio do sumo sacerdote,
que os tinha em vela; mas a disciplina obrigava-os a
permanecer naquele posto, esperando ordens.
Depois do vestíbulo achava-se uma ante-sala quadrada
onde estavam os criados do sinédrio e os sacerdotes
comentando também em voz baixa, o acontecimento da
noite, que assim os tinha velando e sem esperança de
dormirem. Passando esta ante-sala, achava-se um comprido
corredor alumiado com archotes resinosos, colocados numas
braçadeiras de ferro nas paredes. Depois, levantado uma pesa
cortina de pano de Tiro, entrava-se no salão de cerimônias do
pontífice Anás.
Este salão, coberto de tapetes e sem outros móveis que
uns divãs de seda amarela e u’a mesa sobre que se viam
pedaços de papiro e apresto de escrever, uma bolsa de couro,
parecendo cheia de prata, estava pobremente alumiada por
duas lâmpadas de bronze. Aquela opaca claridade não

627
deixava ver bem os rostos miseráveis que deviam conduzir,
cegos de ira, ao cume do Gólgota, Jesus de Nazaré.
Judas chegou ao vestíbulo da casa de Anás, agitado e
trêmulo como o homem que vai cometer uma ação infame. O
soldado que passeava por diante da porta com a lança no
braço, ao ver aquele homem de má catadura, cruzou a lança
diante dele, proibindo-lhe a entrada.
- Esperam-me, disse Judas. Por que me deténs?
- Romano, deixa-o passar, disse um dos criados do
pontífice: esse homem é o que o entrega.
- Espera-me um instante, disse o soldado; e entrou no
salão onde os sacerdotes se achavam reunidos em número de
mais de quarenta.
A tardança do discípulo traidor, tinha-os impacientes.
Era tal o desejo de verem Cristo no Gólgota, que cada
minuto que passava era para eles um tormento. Quando
entrou o arauto e disse: “Judas espera”, ouviu-se uma
exclamação de gozo.
- Fá-lo entrar, disse Anás; e foi sentar-se com três
fariseus junto da Mesa.
Pouco depois, levantou-se a cortina e Judá entrou no
salão.
- Vens, pois, entregar-nos o teu Mestre? lhe perguntou
Anás.
- Está claro! A que havia de vir? Está perto desta casa;
apenas o separam uns duzentos passos de vós, mui
sossegado, em casa de Heli, celebrando a Páscoa.
- E toleramos, sábios sacerdotes, exclamou cheio de ira
Anás, que esse Galileu celebre a Páscoa em quinta-feira?
- Ora! disse Judas em tom de desprezo. Não tendes
tolerado que cure os enfermos ao sábado? Que vos admira
pois? As vossas leis, os vossos costumes, olha-os com

628
desprezo. Ele segue um caminho novo que a vós não
convém, e tratais de desfazer-vos d’Ele; creio-o justo e por
isso venho unir-me convosco.
- Explica, pois, o teu plano: os soldados que pediste
esperam-te, disse um ancião.
- Não há pressa; este negócio deve levar-se com
cuidado, pois do contrário podia servos fatal.
- Crês tu que Jesus e os seus discípulos se defenderão?
- Jesus não é homem de guerra, é de paz. Ele mesmo
apresentará as mãos para que as ateis. Quanto aos seus
discípulos, excetuando Pedro, os outros bastante farão em
chorar a sorte do Mestre.
- Então que esperamos? perguntou um sacerdote.
- Que Jesus saia de Jerusalém, disse Judas. A cidade
está cheia de forasteiros; muitos deles, e particularmente os
da tribo de Zabulon, os moradores das praias do mar da
Galiléia, conhecem-no e querem-lhe como a um profeta. Um
grito de Jesus armaria mil braços para o defenderem.
Acreditai-me: neste negócio não convém precipitar-nos.
- Mas se sai de Jerusalém escapa-se das nossas mãos,
exclamou Anás.
- Eu sei onde dorme esta noite, e ali o pilharemo
desprevenido.
- Aquele a quem eu der um beijo é Jesus.
Anás tornou a perguntar:
- A que horas tencionas sair com os soldados
- Quando a noite se achar no meio da sua carreira.
Preciso de vinte homens?
- Nós também te acompanharemos, disseram alguns
anciãos.
Anás chamou um criado e disse-lhe em voz baixa:

629
-Malco, tu és um servidor; irás com Judas prender
Jesus. Se Judas nos trair, apodera-te dele.
- Tendes-me perguntando muitas coisas, e nada me
dizeis da paga. Tornais atrás com o prometido?
Anás não respondeu; mas pegando na bolsa de couro
que estava em cima da mesa, deitou-a aos pés de Judas
dizendo:
- Ai tens a recompensa prometida.
Judas pegou na bolsa, e contou com vagar o dinheiro
que continha.
Judas saiu para o vestíbulo acompanhado de Malco, e
pegando num banco aproximou-se do braseiro onde estavam
os soldados.
- Deixai-me aquecer, meus amigos, disse-lhes, porque
estou frio como o gelo.
Um romano levantou-se do assento, e travando do
braço de Judas, disse-lhe com áspero tom:
- Não profanes o honroso nome da amizade, miserável
judeu: um traidor como tu não deve sentar-se ao lado dos
soldados de Tibério.
E, empurrando-o bruscamente, repeliu-o do lugar que
ocupava.
O mau apóstolo levantou-se, por fim, do banco e,
dirigindo-se a Malco, disse-lhe:
- Já são horas. Vamos.
Malco entrou no salão e disse a Anás o que Judas lhe
recomendara.
- Atai-o e parti, disse o pontífice.
- Nós o acompanharemos, acrescentaram alguns
anciãos, que talvez ignorassem que iam desonrar suas cãs
naquela noite.

630
A comitiva percorreu em silêncio as desertas ruas de
Jerusalém; saiu pela porta Dória em busca do caminho do
Cedron e da granja de Getsemani.
- Veja o homem a quem buscamos, disse Judas.
- Mas ali vejo dois homens: qual deles é?
- Aquele a quem eu der um beijo na face.
Jesus aproximava-se dos soldados com passo majestoso
e ademã sereno. Judas adiantou-se alguns passos. O clarão
dos archotes alumiava os semblantes dos infames opressores
de Jesus. Aqueles rostos tinham alguma coisa de infernal. Os
anciãos que iam na comitiva cobriram o rosto com o extremo
do manto, como envergonhados da ação que iam cometer e
que lhes desonrava as cãs. Jesus parou. O apóstolo traidor
chegou até onde estava o Mestre, e disse-lhe com acento
carinhoso:
- Deus te guarde, Mestre.
- Amigo, a que vieste? lhe perguntou Jesus.
Judas lançou os braços em volta do pescoço de Jesus e
imprimiu um beijo carinhoso na face d’Aquele a quem
acabava de vender tão miseravelmente.
Jesus, vendo o tropel que se aproximava, perguntou
com carinhosa voz:
- A quem buscais?
Malco e alguns anciãos responderam-lhe:
- A Jesus Nazareno.
- Sou Eu, disse com majestade Cristo, adiantando-se
um passo.
Os soldados retrocederam e em alguns foi tal o
aturdimento que caíram ao chão.
Jesus estendeu o braço na direção dos soldados e,
imediatamente, todos se puseram em pé.
O Nazareno perguntou segunda vez:

631
- A quem buscais?
- A Jesus Nazareno, disseram algumas vozes com
temor.
- Disse-vos que sou Eu. Se me buscais a Mim, deixai
esses. E indicou com um gesto os apóstolos, que
contemplavam com temor aquela cena.
Neste momento, Malco, com os cordéis na mão
esquerda, aproximou-se de Jesus e pôs-lhe a mão direita
sobre o ombro. Pedro não pôde suportar o atrevimento
daquele miserável que ousava pôr a mão no Mestre e, tirando
a espada, descarregou uma terrível cutilada em Malco, que o
fez cair ao chão de costas dando um grito doloroso. O arrojo
de Pedro produziu um momento de pânico entre os
perseguidores de Jesus. Alguns soldados apelaram para a
fuga, temendo, sem dúvida, que os outros discípulos
tomassem parte na refrega. O senturião romano
desembainhou a espada, e disse com toda a força dos
pulmões.
- Sois soldados de Tibério, e fugis diante de um
homem! Covardes! Ai do que não cumpra o seu dever! A
pena das baquetas lhes cairá nas costas!
Esta ameaça deteve os fugitivos, que se agruparam ao
redor do senturião. Entretanto, Jesus tinha dito a Pedro:
- Mete a espada na bainha! O cálix que me deu meu
Pai, não tenho de o beber?
Depois, inclinou-se para o chão, pôs a mão na ferida de
Malco, e curou-º
Malco tivera a orelha arrancada, e achava-se bom,
como se nada lhe houvesse sucedido. O miserável, em vez de
agradecer o milagre que nele acabara de operar Jesus, atirou-
se como uma hiena a Ele e começou a atá-lo.
Enquanto o atacavam disse-lhes com doçura:

632
- Como a um ladrão saístes para prender-me, com
espadas e paus, e quando estava convosco ensinando no
templo, não me prendíeis... Mas é preciso que se cumpra
a Escritura.
Os discípulos tinha desaparecido, exceto Pedro e João,
que, escondidos atrás de uma árvore, observaram,
transpassados de dor, os insultos que prodigalizavam ao
Mestre.
A comitiva saiu de Getsemani. Ao passar a torrente
Cedron, Malco empurrou brutalmente Jesus para que saltasse
o regato. O Nazareno caiu de joelhos sobre uma duríssima
pedra. Um doloroso gemido lhe saiu do peito: um trovão
prolongado, ressoou no espaço. Os verdugos agruparam-se
com temor. Um dos criados lançou ao chão o archote que
levava na mão e deitou a correr, possuído de pânico. Malco
puxou com força a corda; mas coisa estranha! Jesus em vez
de cair de costas, pôs-se em pé. O seu formoso semblante,
pelo qual começava a correr o suor que em breve devia ser
tão copioso, respirava uma doçura, uma mansidão infinita.
Os anciãos, os soldados e os criados de Anás, que desde
a saída de Getsemani não tinham cessado de dirigir-lhes
palavras grosseiras e insultos miseráveis redobraram seus
horríveis gritos ao entrar na cidade.
Mário Cúrcio, o senturião romano, disse em voz baixa a
um dos soldados que se achava ao seu lado:
- Creio que o preso vale, pelo menos, tanto, Ele só,
como todos os hipócritas rezadores da sinagoga que
especulam com o fanatismo do povo. Pilatos, não devia
empregar seus soldados nestas intrigas sacerdotais...
A comitiva tornou a entrar em Jerusalém e, tornando a
fralda do monte Dória, chegou junto da esplanada do cerro
de Acra, e parou à porta da casa de Anás.

633
CAPÍTULO IV

OS MILHAFRES E A POMBA

Caifás desempenhava no ano da morte de Jesus as


funções de sumo sacerdote de Jerusalém; mas por deferência
com seu sogro Anás, cuja idade era muito adiantada,
conveio-se em que tão depressa Jesus caísse nas mãos dos
seus perseguidores, fosse conduzido à casa deste último.
A comitiva que conduziu o Nazareno desde a granja de
Getsemani, tão depressa chegou diante do átrio da casa de
Anás, começou a soltar gritos de entusiasmo e alaridos de
prazer.
Os gritos de – “Abram caminho! É Jesus, o falso
profeta, o embaraçador, o feiticeiro!” – e outros mil insultos
que os criados do sogro do pontífice prodigalizavam ao
Nazareno à porta da rua, cessaram de repente apenas um dos
criados de Anás se apresentou e disse que o seu senhor
esperava o réu. Jesus penetrou no salão. O cruel Malco
empurrava-o bruscamente, dando-lhe punhadas nas costas.
Todos os juízes fitaram o rancoroso olhar no manso
Cordeiro que tinham diante. O rosto de Jesus estava
demudado, seu manto feito em farrapos, e a barba ensopada
de sangue. Anás, vendo o futuro Mártir, sentiu transbordar-
lhe o ódio no coração.
- E és Tu Jesus de Nazaré? lhe disse descarregando uma
terrível punhada sobre a mesa. Tu, um miserável mendigo!
Tanta audácia num homem! Juízes: eis o que se chama o
Messias, o que se instituía rei da Judéia, o que se atreve a
ameaçar-nos com a ruína do templo, o que nos chama raça de
víboras!... E és Tu o que queres fazer o que ninguém tem

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feito?... Com que autoridade dizes tudo isso? Responde, fala,
hipócrita Galileu.
Jesus, que tinha fortemente atados os braços atrás das
costas, levantou com humildade a cabeça, e disse:
- Por que me perguntais a mim? Perguntai aos que
ouviram o que Eu lhes disse e ensinei; eles bem sabem o
que Eu disse.

Apenas Jesus acabou de falar o miserável Malco, que se


achava ao seu lado, levantou a mão e deu-lhe uma terrível
bofetada. Jesus caiu no chão.
Jesus levantou-se. Sua face tinha impressa, como uma
vermelha papoula, o guante do covarde verdugo. Duas
lágrimas se lhe desprenderam dos olhos, e olhando o seu
esbofeteador dum modo cuja bondade e compaixão nunca
poderia exprimir bastante nem o pincel do pintor, nem a pena
do poeta, disse:
- Se falei mal, mostra-me em que? e se falei bem,
dize-me porque me bates.
Aquele miserável, que faltava ao respeito que se deve
às leis e aos juízes, aquele verdugo que tão iniquamente
tratava Jesus, não foi admoestado por nenhum homem do
tribunal. Parece incrível que o ódio cegue os homens a tal
ponto! Os sacerdotes buscavam Jesus para o julgar.
Encontraram-no e a lei via-se caleada. O último dos
criminosos que gemiam nas úmidas masmorras da cidadela
Antônia, teria encontrado um defensor, teria sido amparado
pela lei.
O ódio dos homens amesquinha-os, às vezes, até ao
crime, e leva-os quase sempre à loucura.

635
A humildade de Jesus irritou de tal modo Anás, que,
levantando-se do seu assento e esquecendo a compostura que
lhe impunha o cargo que desempenhava, começou a gritar:
- Levai-o à casa de Caifás! Ali está reunido o tribunal e
o esperam as testemunhas que o acusam! Não quero ver na
minha presença esse miserável.
- Vamos, falso Profeta, exclamou Malco, cuidado com
a língua na presença do pontífice, se não queres que a minha
mão te afague pela segunda vez a face.
Então um soldado pôs uma cana nas mãos de Jesus,
passando-a barbaramente pelos cordéis que lhe prendiam os
pulsos.
- Já tens cetro, disse Malco soltando uma brutal
gargalhada; vamos ao pontífice para que te ponha a coroa.
E tirou Jesus do salão quase a rastos.
Ferocidade incrível – Jesus, o manso cordeiro caiu
sobre a dura lage e, ao levantar-se o seu formoso semblante
achava-se coberto de sangue.
Aquele sangue e aquela cana irrisória que promoveu a
hilaridade dos verdugos, deviam ser mais tarde a semente da
redenção, o cetro do mundo.
Entretanto em casa de Caifás, possuídos de uma
mesquinha paixão de vingança, achavam-se reunidos
multidão de anciãos, escribas, sacerdotes e fariseus.
Nicodemos achou-se também naquela assembléia. Mudo,
num extremo da sala, esperava o Nazareno, do qual se
nomeara em segredo, defensor. De vez em quando os olhos
de Caifás encontravam-se com a impassível figura de
Nicodemos. A presença do amigo de Jesus no salão
desconcertava o pontífice, que se valera de subterfúgios
indignos da sua dignidade para o prender. Ali estavam
também testemunhas falsas.

636
O Nazareno era esperado com impaciência. O ódio
cegava a razão dos juízes. A lei ia calcar-se julgando o que
cuidavam um transtornado da ordem pública.
Pedro, que temendo o furor dos soldados, se escondera
atrás dumas árvores no momento da prisão, tão depressa
desapareceu a comitiva levando o Mestre, cobrou ânimo. O
valor tornou a reanimar-lhe o coração e, embuçando-se no
manto encaminhou-se para Jerusalém, resolvido a saber o
que acontecera. Ao atravessar a torrente do Cedron, topou
com um homem que reconheceu por um discípulo de Jesus.
- Quem és? lhe disse.
- Sou João, discípulo de Jesus, lhe respondeu o homem
com admirável serenidade, atendendo às críticas
circunstanciais por que passavam.
- Sigamos o Mestre, tornou Pedro.
- A pobre Mãe e a arrependida Madalena, que acabo de
deixar no vale de Josafá, pediram-me o mesmo.
- Então vamos.
Os dois apóstolos entraram em Jerusalém. Em breve os
gritos dos verdugos lhe fizeram encontrar a comitiva.
Algumas janelas começavam a abrir-se. O povo perguntava a
causa daquele alvoroço.
Jesus tinha muitos amigos no arrabalde de Ofel.
Ninguém, contudo, se atreveu a defendê-lo.
Roto o vestido, o rosto ensanguentado, pálido pela dor
e pelo cansaço, caminhava quase desfalecido entre os seus
verdugos. Quem podia reconhecê-lo naquele estado? Era
aquele Homem que, pouco antes, rodeado de gloriosa
admiração, tinha entrado pisando flores na cidade santa?
João e Pedro choravam em silêncio sob as pregas dos
mantos, vendo-o passar.
Por fim, Jesus chegou à casa do pontífice Caifás.

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Os dois discípulos entraram também confundidos entre
a multidão. De um extremo da sala podiam ver, ouvir tudo
sem inspirar suspeitas. Depois todos os olhares tinham um
ponto onde se reconcentrassem: o humilde Mártir.
Caifás, vendo entrar Jesus, exalou um grito de
satisfação. Era o tigre ao ver a indefesa presa, a hiena em
presença da ferida onça, o lobo ante o manso cordeiro.
Naquele momento Nicodemos procurou no salão talvez
um amigo que se pusesse com ele da parte de Jesus. José de
Arimatéia, que acabava de entrar, ainda não tinha sido
convocado, levantou o extremo da capa fazendo-lhe ao
mesmo tempo um sinal de inteligência. Aqueles dois homens
tinham-se compreendido. Não sem muito esforço procuraram
reunir-se.
A multidão que rodeava a casa do pontífice era imensa.
Ia-se julgar um Profeta, um Deus: isto era curioso.
Caifás cravou os negros olhos em Jesus. O sumo
sacerdote, que teria uns quarenta anos de idade, e cujas
feições extremamente pronunciadas tinham alguma coisa de
feroz, vestia uma túnica branca, e um largo manto cor de
absinto, cujas franjas de ouro lhe corriam pelos ombros.
Sobre o peito brilhava-se o efod do sacerdote, e na cabeça
descansava-lhe a tiara do pontífice. Era o terceiro poder de
Jerusalém: governador depois de Pilatos, tetrarca depois de
Herodes.
- Aproximai-me esse embalador, disse com voz de
trovão.
Malco obrigou Jesus a caminhar até o pontífice.
Jesus em pé diante do tirano, pálido, desfalecido, tinha
o olhar docemente fito num ponto da sala, onde estavam os
seus dois discípulos favoritos, Pedro e João.

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Caifás chamou as testemunhas. Alguns homens
apresentaram-se diante do tribunal. Nicodemos, ao ver
aqueles homens, não pode dominar a indignação que lhe
inspiravam e, adiantando-se um passo, disse:
- Caifás, não dês crédito a esses homens! Pensa que
Jesus, em vez de ser um falso Profeta, pode ser um Enviado
do nosso Deus, um escolhido do Santo dos Santos.
- Nada bom sairá da Galiléia, disseram as escrituras, e
Jesus é Galileu, exclamou Caifás.
- Sim, mas Jesus nasceU em Belém, e a Escritura diz:
- “Sairá um Profeta da raça de Davi e da cidade de
Davi”.
- És tu o defensor desse Homem? perguntou o
pontífice.
- Sou fariseu, respeito a lei. Se Jesus é culpado, medi-o
com a mesma medida que aos outros homens. A lei deve ser
reta como a torre de Davi, firme como as rochas do Sinai.
Caifás, colérico, pôs-se em pé segunda vez e dirigiu-se
às testemunhas depois de enviar um olhar de desprezo a
Nicodemos.
- Falai vós, lhe disse. Que sabeis desse embalador?
- Nós, disseram várias testemunhas, ouvimo-lo dizer:
Eu destruirei o templo feito à mão, e em três dias
edificarei outro não feito a mão.
- Não respondes alguma coisa ao que atestam contra
ti?
Jesus abrangeu com um olhar de compaixão as
testemunhas, e guardou silêncio.
- Que fale, que se defenda! gritavam alguns.
Jesus guardava silêncio. Os murmúrios cresceram.
Caifás gritou com acento ameaçador:
- És tu o Cristo, o Filho de Deus bendito?

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- Eu sou, respondeu humildemente Jesus; e vereis o
Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus e vir
com as nuvens do céu.
Como se as palavras do dulcíssimo Jesus houvessem
sido um insulto lançado ao pontífice, este começou a dar
gritos rasgando as vestes e arrancando as barbas.
- Blasfemou!... Blasfemou! bradava Caifás, levantando
as mãos e fazendo gestos indignos do honroso cargo que
desempenhava. Para que precisamos, já de testemunhas?
Agora ouvistes a blasfêmia; que vos parece?
- É réu de morte! É réu de morte! gritavam vários
anciãos.
- A cruz! A cruz para o blasfemo! repetiam os fariseus.
Então houve um momento horrível. Todos gritavam, todos os
rostos estavam alterados. Caifás dirigiu-se aos sacerdotes; o
povo uivava pedindo uma vítima. Ninguém se entendia.
Nicodemos cobriu a cabeça com o manto, para não ver
os ferozes rostos dos juízes, para não ouvir as terríveis
blasfêmias dos seus companheiros. José de Arimatéia imitou
o amigo, e ambos sairam do salão precipitadamente,
murmurando:
- Fujamos deste lugar onde a lei empunha o punhal do
assassino, onde os juízes tem o aspecto dos verdugos.
João também abandonou sobressaltado a sala.
Ao passar junto a Pedro, disse-lhe:
- Jesus está perdido; corro a consolar sua Mãe.
Pedro, absorto, aterrado com o que acabava de
presenciar, foi esconder-se entre a multidão, receoso que o
reconhecessem.
Entretanto a raiva, o frenesi tinha-se apoderado dos que
rodeavam Jesus. Uns escarravam-lhe no rosto, outros
açoitavam-no com varas e os soldados descarregavam-lhe

640
terríveis bofetadas sobre a divina face. Jesus entregue à plebe
soldadescas, foi na casa do pontífice objeto da mais
sangrenta mofa.
- Faz um milagre, falso Profeta! lhe dizia um.
- Adivinha como se chama o que te dá esta bofetada,
sábio! repetia outro.
As gargalhadas, os gritos, os uivos atroavam aquelas
malditas abóbadas. Nunca o homem mais desprevízel da
terra se vira tão cruelmente escarnecido pelos seus juízos. O
último dos criminosos tem sempre um amigo que o respeite;
a lei; e alguém que se compadeça dele. Jesus. o Redentor do
homem, o puríssimo lírio de Nazaré, o Salvador de Israel,
achou-se só com sua dor nas mãos dos seus ferozes
verdugos. Pedro, aturdido, medroso, e sem compreender o
que via, procurou abandonar a sala e foi refugiar-se no átrio
da casa do pontífice, onde alguns criados se aqueciam ao
redor de uma fogueira. Ocupou um assento ao lado daquela
gente que comentava com alegre alvoroço o acontecimento.
- Oh! O ilustre pontífice Caifás estará contente com os
seus servos, dizia um criado. Ao abandonar o salão, disse-
lhes: Soldados, eu vos entrego este Rei; tratai-o como
merece. E os soldados postaram-se bem.
- É costume romano, e que chegou a Israel, disse outro,
que as legiões celebrem com regozijo a subida dum
imperador.
- Estou certo, objetou um terceiro, que a esses imbecis
não ocorre coroar o novo Rei!
- Enganas-te, Nacor; Malco teve uma boa idéia.
Coroaram-no de espinhos.
Esta frase terminou com uma gargalhada. Então
aproximou-se u’a mulher que exercia o mister de porteiro.

641
Teria trinta anos; era alta, morena e de ademãs desenvoltos.
Levava uma roça na mão esquerda e um fuso na direita.
- Muito madrugas hoje, Rebeca, lhe disse um dos que a
rodeavam.
- Boa! Deitou-se alguém nesta casa esta noite?
respondeu a mulher. E fitando os penetrantes olhos na
imóvel e atemorizada figura de Pedro, continuou, pondo a
mão no ombro do apóstolo, e desviando um pouco o manto
para lhe ver melhor a cara:
- Não estavas tu com Jesus Nazareno?
Todos os olhares se fitaram nele. Pedro estremeceu;
mas era preciso dar uma respostas e respondeu perturbado:
- Mulher; nem o conheço, nem sei o que dizes.
Pedro, não se julgando seguro naquele lugar levantou-
se e saiu do átrio. Ao transpor o umbral parou. Então ouviu o
penetrante canto dum galo. A mulher seguiu Pedro e tornou a
dizer aos que estavam à porta:
- Esse homem é dos de Jesus.
- Porque me persegues? respondeu Pedro. Não te disse
já que o não conheço?
Alguns homens o cercaram; mas no meio dos insultos
que começavam a levantar-se, ouviu Pedro segunda vez o
canto profético do galo. Um dos presentes disse,
aproximando-se do apóstolo:
- Por que negas que o conheces? Rebeca tem razão: tu
és Galileu como ele, e vimos-te no templo, ouvindo suas
patranhas.
Pedro julgou-se perdido. Sua razão ofuscou-se e o
medo pôs-lhe na língua palavras e juramentos que mais tarde
deviam causar-lhe dolorosas lágrimas de arrependimento.

642
- Não o conheço, disse: o Deus de nossos maiores não
dê ouvidos às minhas súplicas, se tendo tido contato com
esse Galileu de quem falais.
Este juramento pareceu tranquilizar os que o rodeavam.
Pedro abandonou aquele lugar; mas, apenas teria caminhado
doze passos, quando o galo cantou pela terceira vez. Então
lembrou-se das proféticas palavras do Mestre e amargo e
doloroso pranto lhe correu dos olhos.
O dia começava a despontar. Pedro escondeu-se no vão
duma porta. Os servos do pontífice, que tinham posto a Jesus
uma coroa de nabka cujos agudos espinhos se lhe cravavam
dolorosamente na fronte, e um velho tapete sobre os ombros
para imitar a púrpura dos imperadores, cansados de executar
a sangrenta zombaria, dispunham-se a arrastar o preso à casa
de Pilatos, procurador romano, que devia assinar a sentença,
como único juiz que tinha direito de vida e morte sobre os
réus. Um centurião deteve a comitiva, dizendo:
- Ainda é muito cedo para incomodar Pilatos; esperai
que o sol possa iluminar o rosto do Réu, e do juiz. Os
fariseus tem medo de o sentenciar de noite.
Então Jesus foi encerrado num quarto que recebia a luz
por um grande. Uma teia de abeto alumiava aquela
habitação. Ao seu vermelho e oscilante clarão, podiam ver-se
Jesus e os soldados que o guardavam. Alguns curiosos iam
contemplá-lo através dos ferros da grade, aonde lhe
prodigalizavam toda a casta de insultos.

CAPÍTULO V

O SUICIDA

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João havia-se reunido com a Virgem e Madalena a
poucos passos da casa do pontífice Caifás. A Mãe de Jesus e
a dolorosa castelã de Mágdala tinham passado parte da noite
sentadas no madeiro, à porta dum carpinteiro. Ali esperavam,
com o coração traspassado de dor e os olhos cheios de
lágrimas, que João lhes participasse o resultado da sentença.
- Que é de meu Filho? exclamou Maria com doloroso
acento.
João não pôde responder. A profunda amargura do
discípulo foi para aquela Mãe uma revelação terrível.
Decorreu um breve momento sem que ninguém se atrevesse
a interromper aquelas lágrimas, aqueles soluços. No meio
daquele silêncio ouviu a Virgem numa casa próxima, que
permanecia fechada, o estridente som duma serra que cortava
madeira, e a pancada seca dos martelos que batiam pregos.
Aquelas pancadas retumbavam de modo doloroso no coração
de Maria. Pouco depois viram dirigir-se um homem para
aquele lugar, parar diante da casa e bater.
- Quem é? disse de dentro uma voz varonil.
- Abre, Jacó; sou eu, Malco, servo do sumo pontífice,
respondeu o de fora.
O ruído cessou, e um homem com um lampião na mão
abriu a porta.
- A paz seja contigo, honrado carpinteiro, disse Malco.
Meu senhor manda perguntar-te como vão os trabalhos.
- As cruzes de Dimas e de Gestas estão se acabando; ai
asa tens: só falta pôr-lhe o apoio para os pés.
- É que venho encomendar-te outro trabalho, tornou
Malco. Precisamos de outra cruz para outro réu, um falso
profeta.
- Ah! Pois então será preciso que nos esmeremos.
Disse-te de que madeira a quer o tribunal?

644
- Da mais pesada, da mais vil e desprezível que se
conheça na Judéia.
- Então fa-la-emos de carrasco ou de enzinha; esta é a
árvore que mais abunda em Israel. Agora falta o tamanho.
- Para que o povo veja melhor o réu, fa-la-eis de pés
mais alta que a dos dois bandidos.
- Então terá quinze pés de comprimento e o cruzeiro
oito, não te parece?
- Põe, então, mãos à obra.
- Três horas bastam-me para a terminar.
A poucos passos da casa, havia um grupo de gente que
rodeava um homem. Este gritava com toda a força dos
pulmões, dizendo:
- Sim... Sim... eu sou Pedro, antes Simão! sou Galileu,
discípulo de Jesus, verdadeiro Profeta! Sou um dos seus
apóstolos; rasgai-me as vestes, despedaçai-me as carnes! Que
vos detém? Se há pouco, por um covarde escrúpulo, pude
negar o meu Mestre agora arrependo-me, reconheço-o,
admiro-o e adoro-º
- Este homem está louco, disse um soldado.
E o povo foi deixando só a Pedro, em cujos olhos
ainda não tinham secada as lágrimas. Maria, João e
Madalena reuniram-se com Pedro, e este conduziu-os pelo
estreito corredor da casa do pontífice, em cujo extremo se
achava Jesus encerrado. A Mãe dolorosa viu seu Filho
através dos varões duma janela. Mal o conheceu; tal o tinham
posto os seus bárbaros verdugos. Caifás tinha mando deixar
livre a entrada para a plebe ver e insultar à sua vontade o
Nazareno. Maria chegou aflita e sua presença naquele lugar,
fez emudecer os curiosos. A Virgem caiu de joelhos junto à
grade, exclamando de modo indefinível:
- Filho da minha alma!

645
A dois passos da grade via-se um grupo cuja dor era
imensa, Madalena, João e Pedro choravam, dirigindo através
da grade olhares dolorosos para Jesus.
- Eu não tenho deixado de ver-te, minha Mãe, desde o
momento da nossa separação, disse o Mártir; bendita serás
entre as mulheres como bendito será o fruto do teu ventre,
que hoje é objeto de zombaria e escárnio.
Naquela dolorosa cena as lágrimas substituíram as
palavras; dor profunda, imensa, indescritível; cruel amargura
a que a pena do homem não dará nunca o elevado sentimento
de que foi digna.
Entretanto, no átrio da casa do pontífice, um homem
cujo olhar tosco e receoso inspirava desconfiança,
perguntava aos soldados com preocupada e intranquila voz:
- É certo que Jesus foi sentenciado à morte?
- Tão certo como nós estarmos aqui esperando que
amanheça para o levarmos à casa do juiz romano, responde
um soldado.
- E não amaldiçoou ninguém? Não disse que um traidor
o vendera?
- Jesus suportou tudo com uma humildade
incompreensível e pediu a Deus o perdão dos seus inimigos e
juízes.
Judas, pois este era o homem que fazia as precedentes
perguntas, afogando um doloroso gemido, saiu do átrio e
encaminhou-se , ocultando-se na sombra, para a cidade de
Davi. A medida que se ia afastando da casa do pontífice, seu
passo era mais precipitado, sua respiração mais cansada.
Quando chegou à rápida ladeira da porta de Sion, quase
corria.
A bolsa que pendia do cinto do apóstolo traidor, fazia
soar no fundo as trinta moedas de prata. Quanto mais corria,

646
mais lúgubre e ameaçador era o argentino som do dinheiro,
que levantava um eco doloroso no coração do miserável.
Judas reconheceu naquele grupo de anciãos alguns dos
juízes do sinédrio, e parou. Um horrível sorriso apareceu em
seus lábios. Seus olhos brilhavam de modo sinistro. Grossas
gotas de suor lhe saíam da fronte e o cabelo e a barba
eriçavam-se-lhe por momentos.
- Vede o que o vendeu! disse um dos anciãos.
- Sim, eu fui o infame, o miserável, o traidor; este
dinheiro queima-me as mãos; tomai-o, tomai-o, para nada o
quero.
Judas estendeu a bolsa aos anciãos, mas eles
retrocederam mostrando repugnância.
- Esse dinheiro é teu, disse um; tu o ganhaste, nós não
podemos aceitá-lo.
- Pois bem, eu ofereço-o como uma dádiva ao templo,
tornou o judeu.
- Esta dádiva mancharia a dignidade do Santo dos
Santos.
- Aceitai, miseráveis! gritou Judas. Que maior mancha
para o Deus invisível de Israel que as vossas orações?
E dizendo isto, atirou com as moedas aos pés dos
sacerdotes e, descendo as escadas do templo, dirigiu-se
desesperadamente para a porta Dourada.
Judas correu muito, por fim parou a poucos passos da
fonte de Sion, situada entre a porta dos Peixes e a porta
Grande. Ali, à borda dum precipício, crescia um sicômoro
cujos robustos ramos se inclinavam para o abismo: um destes
ramos parecia um pau duma força. Judas fitou nele os
espantados olhos, e sorriu-se de modo horrível, como sorri o
suicida em presença da morte, com o sorriso de Satanás.

647
- A vida, disse com cavernosa, é um gemido
interminável, quando se tem, como eu, um inferno no
coração. Ela, pois, valor, lancemos fora uma carga tão
penosa.
Judas desatou uma corda que levava ao cinto, atou um
extremo ao ramo do sicômoro, e fez no outro extremo um
laço corrediço. Depois pôs uma pedra em cima de outra
debaixo da árvore. Subiu, com uma impassibilidade digna de
melhor causa acima daquelas pedras com muito cuidado para
que não caíssem. Meteu a garganta no laço corrediço e
empurrou a pedra com o pé, soltando uma horrível blasfêmia,
cujo eco aterrado foi perder-se nas concavidades do abismo.
Depois o corpo de Judas, horrivelmente desfigurado,
bamboleou sobre o abismo. Era um cadáver.
No dia seguinte quatro homens cortaram a corda, e o
corpo de Judas caiu no barranco. Desceram a levantá-lo, e
levaram-no para uma das vertentes do monte do Mau
Conselho, onde os sacerdotes tinham comprado um pedaço
de campo com o dinheiro de Judas para o enterrarem. Aquele
campo chamou-se desde então Had ed adom, preço do
sangue. O sicômoro que servira de força ao mau apóstolo,
permaneceu em pe, suspenso sobre o abismo, por espaço de
mil e quatrocentos anos. Durante essa longa idade, nem um
caminhante, nem um pastor, nem um árabe, se sentaram à
sombra daquela árvore maldita.

CAPÍTULO VI

A FAMÍLIA DE BELI-BETH

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A pequena distância da Porta dos Juízes, na rua que
mais tarde o mundo cristão devia denominar Rua da
Amargura, via-se uma casa de modesta aparência, sobre cuja
porta começavam a estender-se os delicados braços duma
parreia cujas verdes folhas formavam um frondoso tendal.
Debaixo desta abóbada verdejante, via-se o local dum poço e
um banco de pedra.
Seram três horas da madrugada. Na estreita habitação
achava-se uma mulher sentada à cabeceira duma cama, onde
jazia enferma uma velha. Junto via-se um berço, onde dormia
um menino que apenas teria doze meses de idade.
A julgar pelo escudo, couraça, espada, capacete e lança
que pendiam de uns pregos da parede, aquela habitação devia
ser de um soldado. E com efeito, Samuel Beli-Beth era o seu
dono; a velha enferma, sua mãe; o menino no berço, sua
filho. A mulher que se achava junto da cama, era uma pobre
vizinha cujo coração caritativo está sempre disposto a fazer
bem aos semelhantes. Chamava-se Seráfia, e em breve o seu
nome devia imortalizar-se na via dolorosa do Nazareno.
Beli-Beth era judeu. Apenas o buço lhe apontava no
rosto quando sentou praça numa legião romana.
Soldado mercenário, tinha percorrido grande parte do
mundo sob a águia triunfante do Tibre. Sem fé, sem crenças
religiosas, o seu Deus era a guerra, os seus amigos a lança e
o capacete. Serviu Otaviano Augusto nos últimos anos do
seu reinado, depois Tibério. Ria-se dos deuses do Olimpio e
do Santo dos Santos. Tinha força do atleta e foi elevado à
dignidade de centurião. Beli-Beth comandou por espaço de
alguns anos cem homens e, no exército adquiriu a reputação
de valente. Por fim, em Jerusalém, pediu licença ao juiz
Pilatos e contraiu casamento com uma jovem jerosolimitana.

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Beli-Beth juntou suas economias de soldado como o
dote de sua mulher, e dedicou-se ao comércio de cereais. Sua
nova profissão aborrecia-o porém, amava entranhavelmente
sua jovem esposa, e suportava o aborrecimento dirigindo de
vez em quando algum olhar aos seus aprestos militares, que,
cobertos de pó e mofo, permaneciam pendurados na parede
da casa. Beli-Beth teria quarenta anos; era alto, fornido, e de
feições pronunciadas, ainda que bastante regulares. Tinha
fama de questionador e irascível entre os amigos, os quais
lhe puseram o opodo de Beli-Beth em atenção à sua vida
errante e inquieta. Sem embaraço, Samuel havia recolhido
em casa sua velha mãe, que jazia numa cama sofrendo uma
paralisia geral que a tinha privado da fala e do ouvido.
Aquela pobre velha, surda e muda, nem sequer podia
agradecer os sacrifícios que por ela fazia seu filho.
Quis a sorte que Samuel perdesse a querida esposa e
ficasse com um menino de dez meses, de modo que o
soldado se achou só com sua mãe seu filho. Então uma
vizinha, a caritativa Seráfia, amiga da defunta esposa de
Samuel, ofereceu-lhe os seus serviços.
Na noite de que nos ocupamos, tinha Samuel saído de
casa desejoso de saber o motivo das vozes e do barulho que
interrompia o sono dos habitantes de Jerusalém. Informado
de tudo, regressou à casa quando Jesus foi preso, por ordem
de Caifás.
- Que sucede na cidade, Samuel? perguntou Seráfia.
- Que Jesus Nazareno, o embalador, o charlatão, foi
preso pelos sacerdotes, respondeu Samuel.
Seráfia estremeceu e, levantando-se do assento que
ocupava, disse de um modo significativo:
- Isso não é possível, se não estão loucos os sacerdotes.
Samuel soltou uma gargalhada.

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- Não te rias, Samuel; esse homem é um Profeta; e tua
mulher não teria morrido se lhe houvesse pedido com fé a
saúde.
- Olha, Seráfia, respondeu Samuel, eu era quase uma
criança quando, abandonando o ofício de sapateiro, tomei as
armas nas legiões romanas e saí de Israel. Sabes o que me
induziu a essa resolução? Não foi outra coisa que o
fanatismo dos meus compatriotas. Não há judeu que não
sonhe com o Messias anunciado pelos profetas. Pobre gente,
sofrem o jugo romano, esperando o maná do céu!
Samuel soltou segunda gargalhada, e continuou:
- Amanhã teremos um grande dia: o cume do Gólgota
será concorrido. Eu gosto muito desses espetáculos; mais que
das funções do hipódromo... ora verás... ora verás, amiga
Seráfia, como nos divertiremos com esse feiticeiro que se
apelida filho de Deus.
- Os fariseus não se atreverão a crucificar um homem
que não faz mal a ninguém.
- Ora, se eu tivesse tão certa a imortalidade como a
morte de Jesus, viveria tanto tempo como o sol. Julgas tu que
pode um homem como eu crer nos deuses do Olimpo ou no
Messias de Israel? Isso fica para vós, pobres fanáticos. Eu vi
Jesus esbofeteado, escarrado, escarnecido, coberto o rosto de
sangue, feita em pedaços a roupa; Malco pôs-lhe a mão na
cara: porque não fez um milagre na presença de todos? A
ocasião era propícia: podia ter confundido os juízes e não o
fez; embaucador! Oh! Quando amanhecer será conduzido ao
juiz romano. Digo-te que vamos ter um dia divertido: eu não
perderei nada. Felizmente, para ir ao Calvário deve passar
por esta casa... Mas, deixando esse mago embaucador, como
está minha mãe?
- Dorme.

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- E meu filho?
- Dorme também.
- Sim, sim, a velha tem o sono pesado, prelúdio da
morte, e o menino o sono da infância; só eu vivo. Não é
verdade Seráfia, que a minha sorte é bem aziaga? Esse
silêncio que me rodeia é horrível. Se ao menos minha pobre
mãe não tivesse perdido o uso da palavra!
Samuel aproximou-se da cama de sua mãe e do berço
de seu filho. Seráfia retirou-se.
Samuel sentou-se junto do berço do filho e esteve-o
contemplando por alguns momentos.

CAPÍTULO VII

CLÁUDIA PROCLA

Retrocedamos. O sol acabava de nascer. Seus raios


saiam como uma chuva de ouro sobre os mármores brunidos
da cidade Antônia e da cilíndrica torre de Davi.
Pôncio Pilatos passeava pelo camarim. Nisto abriu-se
uma porta e apareceu u’a mulher moça e formosa.
- Ah! disse o governador. És tu Cláudia? A que devo a
felicidade de ter ver cedo? Mas estás agitada... pálida! Que
tens?
- Tive um sonho horrível... espantoso! disse Cláudia.
- Repele os teus receios, Cláudia, respondeu Pôncio
sorrindo-se. Eu bem sei que esta triste cidade de Jerusalém
não é muito do teu agrado: mas que queres? O teu parente
Tibério diz que precisa que um homem como eu o represente
em Israel, e é mister resignarmo-nos a viver neste destêrro
até o dia em que tenha piedade de nós, que espero seja

652
breve... Enquanto não chega esse momento, vive tranquila,
teu esposo e as suas legiões velam por ti e, além disso, os
judeus conhecem que são impotentes ante a espada triunfante
dos filhos do Tibre.
- Não é isso, Pôncio, exclamou Cláudia que, apesar das
palavras de seu marido, não recuperava a tranquilidade. O
que neste momento me sobressalta, o que me aflige, não é
uma insurreição: é um sacrilégio, um deicídio, uma coisa
horrível, espantosa, que vão cometer os sacerdotes, e que não
quero que sanciones com a tua aprovação.
- Minha Cláudia, estranho as tuas palavras: rogo-te,
pois,que te expliques.
- Conheces Jesus Nazareno?
- Ah! sim! Esse Galileu que percorre as tribos curando
enfermos; esse homem extraordinário que prega uma lei
nova; o que diz que os homens são irmãos; que o último será
o primeiro no reino de seu Pai, e não sei quantas coisas mais,
cuja significação não compreendo. Mas que tem que ver esse
Homem com o teu sobressalto?
- Pois Jesus foi preso esta noite pelos teus soldados!
Nunca homem algum se viu tão cruelmente maltratado.
Desde quando escarram os filhos do Tibre no rosto e
arrancam as barbas dos seus indefesos prisioneiros?
Pilatos olhou com assombro sua esposa. Ele ignorava o
que ouvia.
- Como sabes isso? lhe perguntou. Saíste da cidadela?
- Não, já te disse que tive um sonho horrível.
- Não creio nos sonhos, querida Cláudia.
- Pois eu vi uma horda de homens ferozes que, armados
de lanças e paus, saiam pela porta das Águias à meia noite.
Entre esses homens iam soldados teus, e anciãos e sacerdotes
do conselho. Chegaram ao horto das Oliveiras. Ali estava

653
Jesus orando como de costume. Ao verem-no, arremessaram-
se sobre Ele como lobos famintos. Jesus com a sua imutável
mansidão, deixou atar as mãos atrás das costas. Depois
conduziram-no à cidade, à casa do pontífice. Pelo caminho as
sangrentas zombarias, os cruéis golpes prodigalizaram-se
com criminoso luxo. Jesus sofria tudo, dizendo com
dulcíssima voz. Perdoa-lhes, meu pai: não sabem o que
fazem. Pôncio, Pôncio, em Jerusalém, vai cometer-se um
crime espantoso. O sangue do inocente Galileu cairá sobre o
teu nome, manchando-o eternamente. Tu és juiz romano, só
tu tens direito de vida ou de morte sobre os judeus. Eu venho
rogar-te que não sejas cúmplice de tão nefando crime.
- Repele vãos temores, lhe respondeu Pilatos um tanto
preocupado. Juro-te que eu defenderei Jesus, caso ele não
tenha conspirado contra Tibério, meu senhor.
- Não esqueças que tenho a tua palavra.
- Confia: a sentença de Jesus, se não for inimigo do
império, não se assinará.
Pilatos tirou do dedo um grosso anel em cuja prenda se
achava gravada a cabeça de Tibério, e entregou-o à esposa.
- Estás contente? disse-lhe.
- Oh, sim, estou contente, porque vou evitar-te uma
infâmia.
Apenas Pôncio Pilatos acabava de dizer estas palavras,
quando Caio Ápio, centurião da guarda pretoriana, entrou no
gabinete. Caio Ápio era espanhol, como Pilatos, e ambos
filhos de Taragona. O governador tinha em Caio um amigo
leal e um súdito fiel.
- Senhor, os sacerdotes trazem-te um réu para que o
julgues, disse Caio.
Neste momento, chegaram ao gabinete do governador
as confusas vozes do povo, que da praça pedia justiça.

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- Caio, bradou Pôncio, abre todas as portas do palácio;
que entrem essas hienas.
Caio correu a executar as ordens do seu senhor. Cláudia
saiu da câmara; mas antes recordou ao esposo que lhe dera a
palavra de respeitar a vida de Jesus. Poucos momentos
depois, tornou a aparecer Caio Ápio. Os gritos continuavam
com dobrada fúria.
- Senhor, disse Caio, os juízes do sinédrio, os
sacerdotes e os fariseus, recusam-se a entrar no palácio,
porque não querem manchar a consciência entrando no dia
de Páscoa em casa de um homem que adora os deuses do
Olimpo.
- Miseráveis hipócritas! exclamou Pilatos. Raça
desprezível e vil, que toca as trombetas para dar um
miserável dinheiro de cobre ao mendigo, e rouba em silêncio
um talento hebreu.
É como neste momento os gritos de “ – Justiça! Saia o
governador! Apareça Pôncio Pilatos” – lhe chegavam com
mais força aos ouvidos, continuou:
- Está bem. Já que eles não querem vir a mim, irei eu a
eles. Caio, forma a minha guarda pretoriana nas escadas do
palácio, coloca o meu trono portátil debaixo do primeiro
pórtico, e põe dois porta-estandartes ao pé dos degraus. Vou
ver o que querem de mim esses cães danados.
Caio obedeceu. O povo abrandou um tanto os seus
ferozes clamores em vista do aparato guerreiro que o juiz
romano ostentava. Ápio colocou dois porta-estandartes no
primeiro degrau do palácio. Aqueles soldados, graves,
ameaçadores, com a pele de leopardo sobre as espaldas, a
brunida couraça e o estandarte com a águia imperial
inspiravam-lhe respeito.

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Dentro em breve correu a notícia de que o juiz romano
ia apresentar-se.
Jesus, entretanto, achava-se no meio da praça, sofrendo
os insultos e golpes da plebe.
Por fim apareceu Pilatos. A presença do governador
reanimou os instintos sanguinários e ferozes da plebe. Pôncio
Pilatos estendeu em direção à praça um pequeno bastão de
ouro que levava na mão, indicando que queria falar. Um
silêncio profundo se estendeu pela praça. O governador
abrangeu com um olhar de desprezo aquela multidão e
depois, dirigindo outro de compaixão ao réu, disse:
- Justiça! A cruz para Jesus Nazareno! exclamaram mil
vozes a um tempo.
Pilatos estendeu segunda vez o bastão, e disse:
- De que delito acusais esse homem?
Entre os sacerdotes houve um momento de vacilação,
buscando como devia expor ante o juiz romano os crimes
imaginários do Nazareno. Por fim escolheram um homem
que se prestou a tão degradante comissão. Tinha voz
ostensória e estatura elevada. Esse homem, que caminhou até
chegar junto dos estandartes, chamava-se Beli-Beth.

CAPÍTULO VIII

DE PILATOS PARA HERODES

Samuel Beli-Beth agarrou brutalmente pelo ombro


direito a Jesus e conduziu-o quase a rastos até junto dos
degraus onde estavam os estandartes.
Depois, dando-lhe uma terrível punhada nas costas,
disse:

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- Juiz romano, o povo pede justiça, e espera-a de ti,
porque só tu tens direito de vida e morte sobre os súditos do
ilustre imperador Tibério. Este homem é filho do carpinteiro
José e Maria; todos o conhecem perfeitamente. Diz, sem
embargo, que é Rei de Judá, Filho de Deus e não sei quantos
sacrilégios que não é decoroso recordar. Há três anos que
percorre as tribos embalando as pessoas simples; não respeita
a lei de nossos maiores, e cura ao sábado as doenças do
próximo. Isto, como vês merece a morte, e isso espera de ti o
povo que enche a praça.
Beli-Beth tornou a assentar segunda punhada no peito
de Jesus. O povo aplaudiu-º. O miserável judeu fez uma
cortesia, agradecendo.
- Se Jesus não cometeu mais crimes que os que acabas
de relatar, disse Pilatos, eu, que represento Roma, não lhe
acho culpa suficiente para o castigar.
- É um malfeitor, um conspirador, um blasfemo, gritou
Caifás, aproximando-se dos degraus. Se não fosse um
criminoso não to haveríamos trazido.
- Se esse Homem pecou contra a vossa lei, tornou
Pilatos, julgai-o vós. Que tem que ver Roma com as vossas
questões religiosas? Tolera-vos o vosso templo, permite-vos
que rezeis nas vossas sinagogas e nada mais. Julgai-o vós.
- A pena de morte, bem o sabes, Pilatos, que o
reservaste a vós, disse Caifás, como direito de conquista; nós
não podemos sentenciar Jesus, e o seu crime merece a morte.
- Pois bem, acusai-o de crimes que mereçam a cruz:
estou pronto a ouvir-vos; mas em tudo o que me dissestes
nada achei digno de morte...
- Pilatos, no que te dissemos tens motivos para
sentenciar Jesus; lembra-te que Tibério declarou réu de

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morte em cruz afrontosa todo feiticeiro, e este homem cuja
endemoninhados e faz outros mil sortilégios.
A Pilatos, que era homem justo e reto, ainda que um
pouco tímido e político, começava a desagradar o nome de
Tibério naquele negócio; e, desejando acabar depressa,
mandou um litor, que fizesse subir Jesus ao Pretório.
Ao ver o Nazareno, Pilatos contemplou alguns
segundos a sua mansidão. No divino olhar de Jesus havia tal
bondade, que o juiz não pode deixar de murmurar em voz
baixa:
- Este Homem não pode ser criminoso: tem no rosto a
beleza da alma.
Depois perguntou-lhe com acento carinhoso:
- És tu o Rei dos Judeus?
Jesus respondeu, fitando os formosos olhos nos de
Pôncio:
- Dizes isso por ti mesmo ou disseram-te outros de
Mim?
Pilatos meditou, porque a voz de Jesus lhe tinha
produzido na alma uma doce sensação e disse:
- Sou eu acaso judeu? A tua nação e os pontífices te
puseram nas minhas mãos. Por que desejam a tua morte
com tal empenho?
- O meu reino não é deste mundo, disse Jesus; não
devo, pois, inspirar receio ao teu senhor. Se deste mundo
fosse, os meus ministros pelejariam para que não fosse
entregue aos judeus.
- És tu Rei? disse Pilatos.
- Tu dizes que o sou, respondeu Jesus; Eu para isso
nasci, mas venho reinar nos corações dos justos, transmitir-
lhes a luz divina da graça e da verdade: todo aquele que
ama a verdade, escuta a minha voz.

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- Mas que verdade é essa de que me falas?
Jesus não respondeu. Então Pilatos, disse ao povo,
levantando a voz:
- Nenhum delito acho neste homem.
A opinião de Pilatos irritou os fariseus, que começaram
de novo a soltar maldições.
- Meditas o que dizes, exclamou Caifás, crendo que a
vítima lhe escapava das mãos. Jesus na Galiléia praticou toda
a casta de sacrilégios.
- É Galileu Jesus? perguntava Pilatos.
- Sim, de Nazaré.
- Pois então levai-o a Herodes, tetrarca da Galiléia, que
se acha no seu palácio de Jerusalém por causa das festas da
Páscoa; que julgue ele, dizer-lhe da minha parte. Não é
decoroso que eu me intrometa nos crimes dos seus súditos.
E depois entrou no seu palácio. Sua esposa, esperava-o
na ante-câmara.
- Estás contente comigo? lhe perguntou Pôncio.
- Pôncio, creio que foste fraco nesta ocasião: devias ter
arrebatado Jesus das mãos dos seus verdugos.
Entretanto Jesus era conduzido ao palácio de Herodes,
que se achava na cidade de Beceta, a pequena distância do de
Pilatos. O que com mais encarniçamento maltratava Jesus era
Beli-Beth, que gritava como um energúmeno ao seu lado,
dando-lhe desapiedados golpes.
- Mago feiticeiro, faz um milagre, concedendo-me a
mim a imortalidade, e a minha mãe, que é muda, o uso da
palavra!
Jesus voltou uma vez a cabeça, junto do palácio de
Herodes, e dirigindo-se a Beli-Beth, disse:
- O filho do homem vai-se... mas tu esperarás que
volte.

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Beli-Beth soltou uma gargalhada.
A comitiva continuou a caminhada, parando em frente
ao palácio de Herodes. Aquele rei verdugo, monarca
assassino, receoso e cruel, tinha edificado seu palácio-
fortaleza com um luxo, e magnificência incríveis.
O palácio era construído de mármore em cores. Os
muros tinham uma altura de trinta côvados; e, como se
aquela muralha não a fosse bastante para a segunda do
assassino de Belém, três torres, as mais altas que então se
conheciam no universo, protegiam o palácio. Mais que um
palácio, era um povoado. Seus imensos jardins, seus amplos
salões, admiravam os viajantes. Herodes Antípas, o matador
do Batista, achava-se neste palácio quando um dos seus
servos foi dizer-lhe que Pilatos, o juiz romano, lhe enviara
Jesus Nazareno para que o julgasse como a sua reta justiça
tivesse por conveniente. Herodes tinha vivos desejos de
conhecer Jesus, cuja fama lhe chegara aos ouvidos. Dirigiu-
se à sala das audiências mandando que introduzissem o Réu
e os acusadores à sua presença.
Quando Jesus entrou na sala, achava-se Herodes
sentado no trono. O Galileu que durante a noite precedente e
parte da manhã não tinha levantado os olhos do chão, sem
abandonar nem um momento sua admirável mansidão, tão
depressa se viu diante do assassino de João Batista, fitou nele
o olhar. Herodes suportou aquele olhar por um momento, e
depois disse:
- Não podeis imaginar, respeitáveis sacerdotes, quanto
vos agradeço o apresentar-me este Homem. Há tempo que a
fama dos seus milagres me ressoa nos ouvidos, e desejo
vivamente ver com meus olhos um desses prodígios que traz
alvoroçados os habitantes de Zabulon. Aproxima-te Profeta,
e não temas; e, pois que os prodígios estão em tuas mãos,

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mostra-me as tuas habilidades. Confunde a minha pouca fé.
Vamos, faze um milagre.
Jesus dirigindo um olhar de compaixão ao tetrarca,
guardou silêncio.
- És mudo? tornou Herodes. Por que não falas? Por que
não me confundes? Chega-te a essa janela de onde se vê a
cilíndrica torre de Davi, e dize-lhe que te saúde. Esqueces
que sou o tetraca de Galiléia, exclamou Herodes cheio de ira,
e que o teu silêncio pode custar-te caro?
O Nazareno sorriu-se docemente.
- Miserável, disse o tetrarca, desprezas as minhas
ameaças! Estás louco! Faze um prodígio ou, do contrário, o
rigor da minha ira te cairá sobre a cabeça.
O Mártir permaneceu impassível e mudo com os olhos
fitos no rosto do tetrarca.
- Faço mal em irritar-me contigo, disse Herodes. Sem
dúvida, ilustre Rei, julgas-me inferior à tua pessoa e
desprezas-me. É justo; mas devo advertir-te que eu não me
acho disposto a perdoar-te e aclamar-te meu Senhor, mas até
prometo adotar-te como Deus, se lograres ressuscitar teu
nobre avô Davi. Faze esse milagre e caio de joelhos aos teus
pés.
Jesus nada respondeu. Então Caifás, o mais
encarniçado inimigo de Jesus, que o seguira até ao palácio de
Herodes, adiantou-se alguns passos e colocando-se junto do
Réu, exclamou:
- Ilustre tetrarca, este Homem é um embaucador;
ofereces-lhe uma coroa por um milagre, e não o faz.
- Ora! Para que precisa Jesus da coroa? Não a tem de
espinhos na cabeça? Que falta lhe faz o cetro? Não o tem de
cana nas mãos? Só lhe resta a túnica branca dos reis do
teatro. Pois, daí a Jesus Nazareno a túnica, e levai-o a Pilatos

661
para que lhe penha sobre os ombros o manto de púrpura dos
imperadores.
Depois, descendo do trono, abandonou a sala da justiça,
mandando que levassem dali aquele Homem.

CAPÍTULO IX

DE HERODES A PILATOS

Pilatos já se julgava livre do grave compromisso de


sentenciar Jesus,quando ouviu na praça altas vozes. Chegou-
se a uma janela e, com desgosto e assombro, viu que lhe
levavam segunda vez Jesus. Caio Ápio entrou para dizer-lhe
que um criado de Herodes desejava falar-lhe.
- O tetrarca envia-te Jesus, respondeu Caio.
- Porque não o sentencia?
- Sem dúvida não lhe acha crime para isso.
- Que entre esse Homem.
Pouco depois o criado de Herodes achava-se em
presença do governador.
- Meu amo envia-me, disse o criado, para dizer-te que
te agradece o teres-lhe enviado Jesus Nazareno, e que desde
este momento te roga dês ao esquecimento todo o passado, e
o reconheças como um amigo e um súdito fiel e leal do
Augusto Tibério.
- Dize a teu amo que pode contar desde agora com a
minha amizade, e que fico muito honrado se me conta no
número dos amigos. Mas, por que torna a remeter-me Jesus?
Por que não o julga, sendo Galileu?
- Porque meu amo crê que esse Homem, mais que
criminoso é um louco.

662
- Pilatos! Saia o Governador! Sentencie o Galileu! A
cruz para o Nazareno! – gritava a alvorotada multidão da
praça desaforadamente.
Pôncio estremeceu. Aqueles gritos levantaram-lhe um
eco doloroso na consciência. Já o dissemos: Pilatos era fraco,
e a sua fraqueza ia manchar-lhe para sempre o nome. A
história do juiz romano ia escurecer-se com uma nódoa
indelével.
- Oh! Essas hienas acabarão por devorar o indefeso
Cordeiro que lhes caiu nas mãos! exclamou Pilatos; e,
dizendo isto, encaminhou-se para o terraço do palácio ou
ponte do Xisto, de onde falava ao povo.
- Israelitas, lhes bradou, que quereis de mim?
- A morte, o Gólgota, a cruz para este Homem, gritou a
multidão com raivoso acento.
- Apresentaste-me esse Homem, como pervertedor do
povo, e eis que interrogando-o eu diante de vós não achei
n’Ele culpa alguma daquelas que lhe imputais; remeti-vos
para Herodes, e também o tetrarca não o julga criminoso. Se
nada se provou que mereça a morte, por que o quereis matar?
Assim, solta-lo-ei depois de o ter açoitado.
Pilatos sentou-se junto de uma mesa que tinha mandado
levar para o terraço, e escreveu esta sentença em língua
latina:
“Despi, atai e açoitai com varas a Jesus de Nazaré por
sedicioso e menosprezador da lei de Moisés, acusado pelos
sacerdotes e príncipes da nação. – Litor, vai e entrega as
varas”.
Esta sentença foi uma infâmia. Se Jesus, era inocente,
como acabava de decidir Pilatos, porque o sentenciava a um
castigo tão afrontoso? Em vão mais tarde lava as mãos para

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se limpar do afrontoso baldão que ia cair sobre o seu nome,
desprezado pelas gerações vindouras.
O litor pegou no criminoso papiro que levava a
sentença de Jesus e correu a buscar os verdugos e o Réu.
Pilatos retirou-se do terraço, afrontado de sim mesmo.
Temia encontrar Cláudia, sua esposa.

LIVRO DÉCIMO SÉTIMO

O GÓLGOTA

CAPÍTULO I

A COLUNA DAS AFRONTAS

O Litor desceu os degraus do palácio com a afrontosa


sentença na mão, seguido de seis salões, cujo rosto
amarelado, miserável catadura e magro corpo, revelavam a
origem egípcia; homens degradados na repugnante profissão
de tormentadores públicos.
Apenas o litor lhes aponteou Jesus, lançaram-se sobre
Ele e conduziram-no quase a rastos para baixo dos pórticos
onde se achavam as colunas dos ultrajes.
Teriam estas escassamente cinco pés de altura, e uns
grossos anéis de ferro para atar os braços do réu, de modo
que as costas apresentassem toda a largura para que os
golpes não fosse infrutuosos.
O sentenciado devia receber quarenta açoites com
varasa de aveleira formando feixes. Destes quarenta açoites,
perdoava-se um para que não se descontasse em prejuízo do
paciente. Vergonhosa clemência que horroriza e indigna o
mundo ilustrado!

664
Estes trinta e nove golpes davam-se; treze nas costas,
treze no ombro direito e treze no esquerdo.
Os saiões amarraram terrivelmente Jesus na coluna,
rasgando-lhe a veste pelas costas até mostras as carnes.
Naquele doloroso momento o semblante de Jesus
respirava mansidão infinita; seus olhos contemplavam com
dulcíssima expressão os verdugos.
O litor fez um sinal com a mão, e o verdugos
começaram sua afrontosa e terrível tarefa.
- A cruz! O Gólgota para Jesus! Crucificai-o!
Crucificai-o!
Pilatos, aturdido com aquela gritaria infernal, mandou
um arauto que tocasse o clarim de silêncio.
Tão depressa as ardentes notas do bélico instrumento se
estenderam pelas âmbitos da praça, o povo calou-se. Todas
as gargantas emudeceram. O silêncio foi universal.
Naquele momento horrível só se escutava o assobio das
varinhas espinhosas ao caírem sobre as ensanguentadas
costas de Jesus, e os dolorosos gemidos do divino Mártir,
murmurando:
- Perdoai-lhes, meu Pai: não sabem o que fazem!
Jesus, entregue ao furor dos soldados romanos e dos
ferozes verdugos, sofreu o que nenhum homem jamais
sofreu. Aqueles idólatras ajoelharam-se diante d’Ele para o
venerarem por escárnio, como Rei. Quando o desataram da
coluna Jesus caiu desfalecido aos pés dos verdugos.
- Deus te salve, Rei da Judéia! exclamava um,
açoitando o rosto de Jesus com as duras e ensanguentadas
correias que ainda conservava na mão.
- Glorioso Messias! exclamava outro, escarrando na
divina face do Nazareno. Faze um milagre! Enriquece-me!
pois boa falta me faz.

665
Guardava Jesus profundo silêncio ante tão atrozes
insultos.
Os costumes, as leis, tinham sido violadas, e, sem
embargo, ainda se cevavam de um modo cruel na indefesa
Vítima que se acha a seus pés.
Esta fraqueza produziu um grito de júbilo enre os
verdugos.

CAPÍTULO II
“ECCE HOMO”

Jesus jazia no chão, cercado dos seus verdugos que lhe


escarravam no rosto e maltratavam o corpo, quando de
pronto se levantou sobre os joelhos e logo se pôs em pé.
Como os gritos da multidão redobrassem ao invés de
diminuirem mandou Pilatos que cobrissem os ombros do
Réu, com um manto de púrpura e o conduzissem à sua
presença.
O juiz romano pensava por este meio irrisório aplacar o
furor do povo.
Pilatos mandou que Jesus, amparado por dois soldados,
fosse levado à varanda do seu palácio, para que o povo o
visse com o manto de púrpura, coroa de espinhos e cana na
mão.
- Vêde-o, israelitas! Gritou Pilatos. “Ecce Homo”!
Bastante castigado está pelos seus crimes. Que vos importa
que este Homem viva depois da afronta que acaba de
receber?...
- Ao Gólgota!... Ao Gólgota!... Crucificai-o! Crucificai-
o! clamava o povo.

666
Caifás, cujo rancoroso coração temia que Jesus se
livrasse da morte, subiu até o último degrau do palácio, e
gritou com voz desaforada.
- Pilatos, o teu dever é respeitar a nossa lei e castigar os
inimigos do César. Jesus chamou-me filho de Deus: merece,
pois, a morte, pela nossa lei. O segundo delito de Jesus é o
crime de rebelião contra Tibério, e merece morte na cruz.
Crucificai-o tu, que é a quem compete.
O nome de César fez estremecer Pilatos. Tibério era
cruel, e castigava os crimes de rebelião tentados contra a sua
pessoa, de um modo terrível. Pôncio começou a temer que
aqueles furiosos sacerdotes o envolvessem em alguma
calúnia de fatais consequências para ele. Fez aproximar-se
Jesus, e disse-lhe:
- Defende-te. Bem ouves o que de ti dizem.
Jesus guardou silêncio. Neste instante, um criado de
Cláudia acercou-se de Pilatos e disse-lhe:
- Senhor, tua esposa me manda dizer-te que não
esqueças a tua promessa; que respeites a vida do Nazareno,
porque é um homem justo.
Pôncio Pilatos chegou a desorientar-se.
Fez um último esforço para o salvar. Entre os hebreus
havia o costume de dar liberdade nos dias de Páscoa a um
criminoso.
A poucos passos do palácio do juiz romano achava-se o
cárcere e numa das masmorras, carregado de cadeias, jazia
um criminoso, um ladrão, um assassino, cujo só nome
assustava a gente honrada. Devia morrer na cruz passadas as
festas, e chamava-se Barrabás.
Pilatos chegou segunda vez à varanda e indicou que ia
falar. O povo calou-se.

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- Judeus, lhes disse: Interroguei pela terceira vez Jesus,
e a minha consciência diz-me que é inocente e não merece a
morte. Entre vós existe o costume de conceder a liberdade a
um criminoso nestes dias. Quereis que se solte Jesus?
- Faz morrer Jesus! Solta-nos Barrabás! exclamaram os
sacerdotes.
Pilatos tornou a retirar-se da varanda. Apesar da sua
fraqueza de caráter, repugnava-lhe matar Jesus. Fez o último
esforço: interrogou novamente o Réu; mas o Réu continuava
encerrado no seu sublime silêncio.
- Porque não me respondes? lhe disse Pilatos. Não
sabes que na minha mão está a tua morte ou a tua vida?
Jesus, que não se tinha defendido, ao ouvir as palavras
do juiz romano, dirigiu-lhe um olhar, e disse com pausado
acento:
- Nenhum poder terias sobre mim, se não te fosse dado
do Alto.
As palavras, o acento, o olhar de Jesus, tudo naquele
Homem tinha uma majestade tão sublime, que Pilatos sentiu
uma coisa extraordinária dentro do seu ser.
Jesus naquele momento, parecia-lhe um Deus.
Suas mãos, assinando a sentença de morte d’Ele,
manchavam-se para uma eternidade. Seu coração, pouco
antes indeciso e fraco, resistiu-se de valor, e tornou a chegar
à varanda, resolvido a salvar o Acusado.
Esta resolução irritou de um modo horrível os
sacerdotes e a plebe. Caifás, que formava à frente daquelas
feras, falou:
- Pilatos, lembra-te que esqueces os teus deveres. Jesus
proclamou-se Rei dos Judeus, usurpando uma dignidade que
pertence a Tibério, teu senhor e nosso, por direito de
conquista. Esse homem que defendes é inimigo do César.

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Sendo seu defensor, tornas-te seu cúmplice. Salvando-lhe a
vida, atentas contra a glória do augusto imperador de Roma.
Ai de ti, Pilatos! Ai de ti, se o teu procedimento neste dia
chega aos ouvidos do senhor do mundo, do imortal Tibério!.
Pilatos tremeu, ouvindo as palavras do Pontífice. Fraco
e covarde, rendeu-se ante as ameaças daquele sacerdote
perigoso, e cometeu a infâmia de dizer com trêmula voz:
- Pois bem, já que o quereis, seja: eis aqui o vosso Rei,
a quem quereis matar!
Então o povo gritou:
- O nosso rei é o César Tibério; a ele só rendemos
acatamento. Jesus é um inimigo de Deus e do imperador.
Pilatos tremia ouvindo pronunciar o nome de Tibério,
mas repetiu pela última vez:
- Que o sangue do justo caia sobre a consciência do
assassino.
- Caia o seu sangue sobre a geração presente e sobre os
filhos dos nossos filhos, disse Caifás.
Pilatos desceu ao pátio onde estava o tribunal chamado
pelos hebreus Gabbatha, e pediu uma bacia de água.
Pouco depois, apresentaram-se dois criados com a bacia
e a toalha. Traziam também a Pilatos o anel que sua esposa
Cláudia lhe devolvia, com estas palavras:
“Pôncio, Deus te perdoe o sacrilégio que vais cometer.
Devolvo-te o teu selo e a tua palavra”.
Pilatos pegou no anel maquinalmente, e mandou ao
criado que lhe deitasse água nas mãos.
Depois que as lavou, voltou-se para os fariseus e
sacerdotes, e disse-lhes:
- Tomo o céu por testemunha de que sou inocente na
morte desse Justo! A cólera celeste caia sobre os seus
verdugos.

669
- Amém! replicaram os sacerdotes.
Depois, Pôncio Pilatos sentou-se numa cadeira junto da
mesa; Jesus de pé ao seu lado: os soldados rodeando o
mártir, e os ferozes sacerdotes e o povo em frente.
Era sexta-feira, e seriam aproximadamente dez horas da
manhã. O juiz romano escreveu com mão trêmula.
“Nós, Pôncio Pilatos, governador de toda a província da
Judéia pelo sacro império romano; estando no nosso tribunal
e sala de audiência; ouvidas as acusações criminais dos
sacerdotes, escribas e fariseus, a comoção e clamor do povo
contra Jesus de Nazaré; concordando todos e dizendo como
alborotou e comoveu toda a cidade e povo, ensinando
doutrinas novas contra a lei de Moisés; fazendo-se autor
duma nova lei; pretendendo levantar-se Rei, e como tal
sendo tido o atrevimento de entrar triunfante com ramos e
palmas na cidade; e por ser menosprezado a justiça e
autoridade do imperador Tibério, proibindo aos vassalos lhe
pagassem tributo; mas o que causa ainda maior escândalo é
que se gloriou e disse muitas e diferentes vezes que era
Filho de Deus, sendo Homem de baixa condição, filho de um
pobre artista, e de uma Mulher chamada Maria.
Portanto, tendo considerado muito bem, e examinando
a verdade das sobreditas acusações, achando-se gravíssimos
os seus delitos, julgamos que deve ser condenado e
sentenciado, como de fato o sentenciamos a ser conduzido
pelas ruas castumadas da cidade de Jerusalém com uma
cadeia e corda ao pescoço, levando Ele mesmo a cruz,
acompanhado de dois ladrões, para maior afronta, até à
montanha do Calvário, e ali seja crucificado na sua cruz.
Os dois ladrões estão igualmente pendentes das suas
cruzes um à direita e outro à esquerda, residindo no meio
como Rei, para que seja exemplo e escarmento de todos os

670
malfeitores, e em voz alta pelo pregoeiro,para que chegue ao
conhecimento de todos e ninguém possa alegar ignorância
alguma. – Pôncio Pilatos”.
O juiz romano entregou o escrito aos sacerdotes
dizendo:
- Tomai, cumpra-se como desejais.
Depois entrou no palácio.

CAPÍTULO III

A RUA DA AMARGURA

Junto da cidadela Antônia achava-se o cárcere. Uma


mulher acocorada no umbral da porta chorava amargamente,
com a cabeça escondida nas pregas do manto.
Ao seu lado, de pé, triste, imóvel, achava-se um moço
com uma citara pendente do ombro. Era Enoé e o moço era
Boanerges, seu filho, que esperavam para ver o seu protetor,
o bandido Dimas.
Um litor seguido de quatro soldados parou diante da
porta do cárcere. Enoé levantou a cabeça. Um carcereiro saiu
ao encontro do litor e este apresentou-lhe um papiro, que
dizia:
“O carcereiro entregará ao litor os dois bandidos Dimas
e Gestas”.
- Ah! Com que finalmente os crucificam, disse o
carcereiro, dando voltas ao molho de chaves que lhe pendia
da cinta.
- Quando o sol se achar no meio da carreira, serão
cravados no cume do Gólgota.

671
- Mais digno dessa sorte era Barrabás que Dimas!
tornou o carcereiro.
- O povo assim o quer.
- Morre também com eles o Nazareno?
- Sim, entre dois ladrões, segundo diz a sentença.
Enoé, que escutara absorta o precedente diálogo, vendo
que os soldados se dispunham a entrar no cárcere, pôs-se em
pé, e, adiantando-se para o litor, deteve-o, dizendo-lhe:
- Pois que, vão crucificar Dimas? O homem melhor de
Israel?
E como Enoé colhera maquinalmente com a mão
nervosa o manto do litor, este disse aos soldados.
- Afastai esta mulher.
Enoé, repelida pelos soldados, caiu nos braços de seu
filho.
Pouco depois, Dimas e Gestas saiam do cárcere
conduzidos pelos soldados.
Boanerges, cobriu o rosto de sua mãe com o corpo, para
que não o visse.
Dimas saudou Boanerges enviando-lhe um olhar de
despedida.
Quando os réus chegaram à praça, a multidão saudou-
os com um grito de prazer. No meio da praça as afrontosas
cruzes esperavam os réus. Doze verdugos, soldados das
fileiras romanas, rodeavam os instrumentos do patíbulo. O
povo, para não se manchar com seu contato, deixava um
espaço entre eles e os saiões.
Como cães danados, como carniceiras hienas,
lançaram-se sobre Jesus, e, arrancando-lhe o manto de
púrpura que pouco antes lhe tinham posto sobre os ombros,
vestiram-no com o antigo traje para que fosse reconhecido de
todos.

672
Trinta soldados, capitaneados por Caio Ápio,
esperavam junto aos degraus da cidadela Antônia o momento
da partida. Era a guarda de honra que devia acompanhar
Jesus ao Gólgota.
Os quatro brucianos, os miseráveis desertores que,
depois de abandonarem as fileiras dos romanos, exerciam em
castigo a degradante profissão de verdugos, fizeram o sinal
de que o Réu estava vestido e pronto. Então ouviu-se uma
trombeta, e depois uma voz que disse:
- Cumpra-se a sentença.
Esta era a voz de Longuinhos, que devia romper a
marcha adiante de quatro soldados a cavalo. Os calabreses,
mais compassivos, puseram as cruzes sobre os ombros dos
bandidos Dimas e Gestas, sustentanto-as pelos extremos para
que não fosse a carga tão pesada. Mas os brucianos,
miseráveis desalmados, colocaram o pesado lenho sobre o
ombro direito de Jesus, dizendo:
- Já que és Filho de Deus, leva só a carga e faze um
milagre, para que te não seja pesada.
Jesus estava débil, pálido, desfalecido. Mal podia ter-se
em pé. Ao receber sobre os amantíssimos ombros o pesado e
afrontoso lenho, seu corpo dobrou-se como a frágil cana
impelida pelo rijo sopro do furação.
Os verdugos riram-se daquela fraqueza. O povo, vendo
o Mártir pronto a encetar o caminho do suplício, agitou-se
como um imenso formigueiro, soltando gritos de prazer.
A comitiva seguiu o caminho do Calvário, ao lúgubre
som das trombetas. Longuinhos, seguido de quatro soldados
a cavalo, ia adiante, afastando a gente com a lança. Seguia-se
um pregoeiro e dois trombeteiros.
O primeiro devia ler a sentença em todas as bocas de
rua do trânsito.

673
Caminhavam depois os soldados a pé, apetrechados
com os arreios de guerra, capacetes, escudos, coraças e
espadas.
Atrás destes soldados iam Dimas e Gestas com a cruz
às costas, e rodeados dos auxiliares dos verdugos, que lhes
sustentavam o pesado extremo do lenho. Logo seguia,
deixando espaço, um jovem luxuosamente vestido á romana,
levando uma águia de ouro bordada no peito. Levava na mão
um bastão comprido, no extremo do qual via-se uma a
tabuinha de cedro com este letreiro em samaritano, grego e
latim:

“JESUS DE NAZARÉ, REI DOS JUDEUS”

Atrás deste jovem ia Jesus, rodeado de verdugos, com


uma corda atada à garganta.
Um menino, formoso como as alvoradas de maio, louro
como as espigas de agosto, risonho como o canto da cotovia,
caminhava confundido entre os verdugos. Levava sobre os
débeis ombros uma cesta com pregos, martelos e tenazes e ia
cantando alegremente.
Jesus dirigia seus compassivos olhos para aquele
inocente pimpolho carregado com os cruéis instrumento da
sua morte.
O Nazareno com a mão direita procurava diminuir o
peso enorme do afrontoso lenho, e com a esquerda levantava
a comprida túnica para não tropeçar nas duras e desiguais
pedras das ruas.
Jesus não tinha comido nem bebido desde a ceia do dia
precedente. Além disso, seu sangue tinha corrido com
abundância: a sede e a febre devoravam-no: porém seu Pai

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dos céus lhe emprestou forças para suportar tão fatigante
peregrinação.
Os passos que distam desde o palácio de Pilatos ao
monte Gólgota, um milhão de vezes tem sido contados com
religioso escrúpulo pelos peregrinos cristãos, que, cheios de
fé, tem acudido a Jerusalém de todos os países do mundo, a
orar sobre o monte Calvário, Aquele que sofreu pela raça
humana: são mil trezentos e vinte e nove passos, ou três mil
trezentos e três pés.
A plebe, instada pelos fariseus e sacerdotes, seguia
Jesus, uivando, escarrando da sua cruel agonia.
Aos oitenta passos tropeçou Jesus numa pedra,
faltaram-lhe as farsas e caiu. A multidão soltou um grito de
alegria. A divina fronte do Galileu tinha batido no duro
pavimento da rua.
Os saiões puxaram as cordas para o levantarem; os
soldados deram-lhe duríssimos golpes com as hastes das
lanças para refazerem suas desfalecidas forças.
Jesus levantou-se fitando os formosos e doces olhos no
céu.
Seus divinos lábios murmuraram uma frase que
ninguém pode compreender e, ao redor da sua puríssima
fronte apareceu uma auréola de resplandecente luz.
- Saudai o Rei dos Judeus! exclamou um. Não vedes
como se levanta para olhar o povo, para agradecer ao
numeroso acompanhamento que o segue ao Calvário?
- Dize-nos, falso Profeta, exclamou outro, enterrando-
lhe a coroa de espinhos como o coto da lança, porque com a
queda se lhe desviara um pouco da fronte; dize-nos quando
cairá o templo; quando virão as tuas legiões de anjos
defender-te. Por Júpiter, que deve ser uma grande batalha a
que se der então! Pelejar com os homens é vulgar: mas com

675
os anjos, isso já muda de figura. Só peço aos deuses do
Olimpo que me concedam essa glória!
Esta horrível gargalhada foi repetida pela multidão.
Jesus continuou o doloroso caminho repetindo em voz baixa:
- Perdoai-lhes, meu Pai: não sabem o que fazem.
Entretanto a Virgem Maria dissera a João.
- Corramos ao Calvário! Quero ver meu filho!
As santas mulheres e o discípulo favorito de Jesus
foram juntos. Maria colocou-se na Via Sacra, num ponto por
onde ia passar o Filho.
Ali caiu de joelhos. Madalena, Maria Cléofas, Maria
Salomé e João rodearam-na. Era em vão querer consolar
aquele coração dilacerado.
A gritaria, o barulho ia-se aproximando.
Jesus tinha caminhado mais sessenta passos desde a
primeira queda, quando encontrou sua Mãe, que fazendo um
esforço sobrenatural, se lançou aos pés de seu Filho.
Alguns soldados pretenderam repeli-la com as lanças.
A Virgem sofreu aqueles duros golpes sem apartar os
chorosos olhos da triste imagem do seu Jesus amado.
Então passou-se uma coisa horrível. Um miserável
verdugo, um daqueles brucianos escolhidos pelas suas
infâmias para sacrificadores, pegou num punhado de pregos
da cesta que levava o rapaz, e, atirando-os ao rosto de Maria,
dissera-lhe:
- Toma, Galiléia: ai tens o presente de morte que te faz
teu filho, o Profeta de Nazaré.
Jesus quis correr em socorro de sua Mãe. Mas ai! os pés
enredaram-se-lhe na túnica, e segunda vez caiu ao chão,
batendo com a divina fronte nas duras pedras da rua.
- Filho da minha alma! exclamou a Virgem, com um
desses gritos que só podem sair do coração de u’a mãe.

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Jesus, sereno, pálido e vacilante, dirigiu um doloroso
olhar a sua mãe, e levantando-se disse-lhe com voz
dulcíssima:
- Salve, Flor de amargura! Salva, Estrela puríssima da
manha! Salve, minha Mãe!
Mas antes que os lábios da Mãe depositassem um beijo
na dolorida fronte do Filho, os ferozes verdugos afastaram-na
bruscamente. Maria caiu desfalecida nos braços de
Madalena. João cobriu com seu manto o corpo daquela
Mártir.
A enamorada donzela de Mágdalo, dirigiu um olhar
cheio de amor e amargura para Jesus, e a comitiva continuou
a interrompida marcha.
A multidão rugia em derredor do Mártir, dando gritos
de – Viva Barrabás! Morra o Galileu! – E Jesus, o
mansíssimo Cordeiro, o Amigo dos aflitos, o Redentor dos
homens, caminhava oprimido sob o peso do afrontoso lenho,
repetindo:
- “Jerusalém! Jerusalém! Quantas vezes quis congregar
os teus filhos como a galinha congrega os pintainhos debaixo
das asas, e não quiseste!”
Jesus teria caminhado a metade da dolorosa estrada,
quando parou pela terceira vez, falto de alento. As pernas
fraquejavam-lhe.
Alguns pobres do arrabalde de Ofel e algumas mulheres
a quem a bondade e os milagres de Jesus tinham curado as
doenças, choravam amargamente seguindo os passos do
Mártir.
Jesus levantou maquinalmente a formosa e dolorida
cabeça. A poucos passos do lugar em que se achava, viu-se
uma casa, sobre cuja porta estendia os seus verdes ramos

677
uma formosa parreira. Ali havia um poço e, em cima do
bocal, um cântaro cheio de fresca e transparente água.
Junto do poço, posto em pé sobre um banco de pedra,
via-se um homem de elevada estatura e feições pronunciadas.
Era Samuel Beli-Beth.
- Hosana ao que vem em nome do Deus invisível de
Israel morrer pelo homem! exclamou Beli-Beth em tom de
mofa. Ah! Ah! Ah! O Gólgota vai ficar honrado com o teu
suplício. Chorai, hipócritas jerossolimitanos! Chorai pelo
Mago, pelo falso Profeta, pelo Embaucador!
E aquele miserável ria-se como um condenado.
- Samuel, disse Jesus, tenho sede! Dá-me dessa água!
Samuel, permite-me por caridade que descanse um momento
à sombra dessa parreira. Não posso com a fadiga: deixa que
descanse alguns instantes no banco da tua horta!
- Anda, feiticeiro maldito; teu contato murcharia os
verdes pâmpanos da minha parreira.
- Samuel, repetiu Jesus, ainda podes salvar-te! Ajuda-
me a levar a cruz até o Gólgota.
- Ah! ah! exclamou Samuel. Não és Filho de Deus. Pois
então, porque não chamas os anjos?... Anda, embaucador;
anda, feiticeiro; e empurrou brutalmente Jesus, que caiu pela
terceira vez a porta daquele miserável sem caridade, nem
coração, nem clemência.
Jesus levantou-se lentamente. Colocou o pesado lenho
sobre o ombro, olhou de um modo compassivo Samuel e
disse:
- Tu o disseste. Ofereci-te o paraíso de meu Pai, e
disseste-me anda, quis dar-te a água que aplaca a sede
eterna, e disseste-me anda, pedi-te um assento para te dar
um trono na mansão dos céus, e disseste-me anda. Pois bem,
Samuel Beli-Beth, Eu logo descansarei; mas tu andarás

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sem cessar até que Eu volte. Os séculos futuros te chamarão
o Judeu Errante; e teu passo não se deterá nunca; serás
imortal, mas a imortalidade será o teu maior castigo. Prepara
as tuas sandálias; prepara o teu bordão de viagem. Infeliz!
Disseste-me anda; pois tu andarás até à consumação dos
séculos. Anda, anda, Samuel Beli-Beth; maldito como a tua
pátria, vaguearás pelo universo até o dia do juízo final.
Samuel passou as mãos pelos olhos como se visse
alguma coisa sobrenatural. Uma auréola de luz que apareceu
ao redor da fronte do Nazareno havia-o cegado. As pernas
fraquejaram, e viu-se obrigado a sentar-se no paiol da porta,
para não cair.
Neste instante u’a mulher saiu da casa da frente com
um lenço na mão. Era Seráfia. Aproximou-se do divino
Galileu, cujo rosto se achava banhado de suor e sangue, e
ajoelhou-se diante d’Ele dizendo:
- Senhor, meu Jesus, permite que esta humilde pecadora
limpe o teu divino rosto com este lenço tecido pelas suas
mãos.
Seráfia limpou o suor que inundava o rosto de Jesus.
- Deus te pague, mulher caritativa, disse Jesus. Vê
agora o que te deixo no lenço.
Seráfia soltou um grito de alegria. Algumas mulheres a
cercaram. No lenço tinha ficado impresso por três partes o
rosto do Mártir. Cada um dos crudelíssimos espinhos da sua
coroa despedia um raio de luz. Seráfia estava absorta.
- Seráfia, deixa o teu nome e toma o de Verônica, pois
nas tuas mãos deixo a minha verdadeira imagem.

CAPÍTULO IV

A CRUZ

679
Ao mesmo tempo que o Centurião Longuinhos saia
pela porta Judiciária precedendo a comitiva de Jesus, um
homem chamado Simão, natural de Cirene, na Líbia, e
israelita de religião, entrava com seus dois filhos Alexandre e
Rufo.
Simão vinha do campo e encostou-se para não ser
atropelado. Depois entrou na cidade. Caio Ápio, que durante
o doloroso caminho não desviava os olhos de Jesus, vendo-o
desfalecer por instantes, dirigiu-se a um dos soldados, e
disse-lhe:
- Observai! Jesus não pode com o enorme peso do
lenho. Bom homem, disse olhando para Simão, ajudai-o
antes que morra!
Simão recusou-se; mas Caio, pegando num feixe que o
Cirene levava às costas, disse-lhe:
- Obedece ao César.
O Nazareno enviou-lhe um olhar compassivo.
Continuou a caminhada e passaram a porta Judiciária, por
onde tantos réus tinham saído para morrer no Gólgota.
Passaram a porta do Vale dos Cadáveres, e deixando à
esquerda o sepulcro dos Profetas, pôs Jesus a sua divina
planta na pedregosa vereda que conduz ao monte das
Caveiras.
Ai, caiu pela quarta vez desmaiado. Simão deixou a
cruz e correu a levantar o Nazareno.
Um grupo de mulheres que esperava o jovem Mestre
para o ver passar, vendo em tão doloroso estado o que seis
dias antes entrara coberto de flores e de bênçãos por um
caminho de rosas e de plantas, pôs-se a chorar.
Jesus ergueu a fronte, abatida pela dor, manchada pelo
sangue, e disse-lhes:

680
- “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim! chorai por
vós e por vossos filhos; porque virão em breve dias em que
dirão: Bem aventurados as estéreis e os ventres que não
conceberam e os peitos que não amamentaram!”
Uma senda estreita e tortuosa, semeada de grossas e
duras pedras, conduzia ao cume do Gólgota, desde o lugar
em que as chorosas mulheres se ajoelharam aos pés de Jesus.
Este caminho teria setenta passos.
Jesus gastou cerca de um quarto de hora para subi-lo.
Já perto do cume, caiu pela quinta vez.
Os verdugos, como se achavam próximo do lugar do
súplice, descarregaram-no do peso da cruz.
A comitiva rodeou o cume do Calvário, e os saiões
prepararam-se para exercer seu ignominioso ofício.
Caio Ápio despediu Simão, agradecendo-lhe; mas
Simão pareceu não ter ouvido a ordem do romano, e
permanecia cravado junto ao corpo desfalecido de Jesus.
Simão afastou-se alguns passos. Em seus olhos
apareceu uma lágrima.
Alguns passos acima do lugar em que Jesus se despediu
do homem venturoso de Cirene, achava-se a pequena e
pedregosa esplanada do Gólgota, onde o Cordeiro de Deus
devia ser sacrificado entre dois ladrões
Os brucianos estenderam a cruz no chão; os calabreses
começaram a abrir os buracos.
Gestas maldizia sua morte; Dimas, com os olhos fitos
no Nazareno, mirava-º
Quando os quatro saiões tiveram os cravos, os martelos
e a cordas preparadas junto da cruz dirigiram-se a Cristo, e
pegando-lhe asperamente de um braço, arrastaram-no até o
lugar onde devia ser crucificado.

681
Terminadas estas operações que o povo contemplava
com criminoso interesse, os verdugos começaram a despir
Jesus, rasgando a roupa, que se pegara à carne por causa das
feridas que cobriam o corpo do Mártir. Quando chegaram à
túnica inconsútil que a Santa Virgem tecera por suas próprias
mãos, e que, segundo a tradição, foi a única que trouxe Jesus
por espaço de trinta anos, pois crescia com o corpo, um dos
verdugos disse aos seus companheiros.
- Creio que não devemos rasgar esta túnica. Seria
conveniente que a tirássemos inteira, porque a poderíamos
vender a algum dos fanáticos que crêem que este homem é o
Messias.
- Dizes bem, esfolemo-lo, pois tem na pegado ao corpo.
As feridas de Jesus eram tantas, que a dor que sofreu
durante aquela operação foi crudelíssima. Então Jesus,
ensanguentado, desfalecido, dirigiu em torno de si os
doloridos olhos, buscando um olhar de compaixão e só
encontrou as horríveis gargalhadas dos ferozes verdugos e os
miseráveis motejos da plebe.
De repente ouve um grito atrás de si; volve a cabeça; vê
uma mulher que sobe precipitadamente ao cume do Gólgota
seguida de duas mulheres e de um homem; reconhece-a; é
sua mãe, é Maria, é a Virgem dolorosa, que arrancando o
casto véu que cobre a sua virginal cabeça, corre a cobrir com
ele o nu e dilacerado corpo de seu Filho, abá-lo nos rins,
beija depois a pálida fronte do Filho das suas entranhas sem
que os saiões se oponham, porque a dor daquela Mãe era
imensa, incomparável.
Os verdugos colocaram Jesus sobre o afrontoso
madeiro.
Iam pregá-lo. Maria soltou um grito sem exemplo
vendo os cravos e o martelo nas mãos do verdugo. Cristo,

682
estendido sobre a cruz, enviou um sorriso de amor a sua
Mãe. João e Madalena arrancavam daquele lugar a Maria,
conduzindo-a a um gruta que se achava a poucos passos.
De repente ouviu-se um ruído seco, dilacerante. Era o
cravo que, penetrando a carne, pregava a mão direita de
Jesus no vergonhoso madeiro. Quatro vezes caiu com força
sobre o duro cravo o terrível malho e seu som, seco,
aterrador, chegava ao coração de Maria ferindo-o como a
ponta de um punhal.
O sangue saltava ao rosto do verdugo. Jesus agitou-se
dolorosamente sobre o madeiro.
A mão esquerda foi, por fim, pregada. Os cravos
tinham nove polegadas , eram triangulares e a cabeça
redonda. A ponta ensanguentada saiu pelo outro lado da cruz.
Faltavam os pés, e colocaram-nos sobre o ponto de
apoio um por cima do outro. Dois cravos esperavam a carne
para a penetrarem.
Dez marteladas terminaram o horrível martírio. Jesus
ficou pregado, e foi levantado à vista das nações. Então
ressoou um grito de entusiasmo ao redor do Gólgota.
Pilatos tinha mandado pôr uma tabuinha na parte mais
alta da cruz com este letreiro:

JESUS NAZARENO, REI DOS JUDEUS

Caifás, que tinha presenciado tudo rodeado dos seus


amigos e fariseus, apenas leu o letreiro aproximou-se de Caio
Ápio e disse-lhe com voz descomposta:
- Tira aquela tábua, onde diz que aquele Condenado é
nosso Rei, e põe: Jesus de Nazaré, que se diz Rei dos
Judeus.

683
Caio enviou um olhar desdenhoso ao pontífice, que se
dirigiu a Pilatos.
- O escrito, escrito. Saí de minha casa, e não espereis
que se mude nem uma só letra, disse Pilatos.
Entretanto, Jesus exclamava com moribundo acento:
Perdoai-lhes, meu Pai, não sabem o que fazem.
Alguns homens do mais soez da plebe, que se tinham
reunido com os verdugos, escarneciam desapiedadamente do
Filho de Davi.
- “Eh! Tu que destróis o templo de Deus, lhe disse um e
em três dias o reedificas, salva-te a Ti mesmo. Se és Filho de
Deus, desce da cruz!
E aqueles miseráveis riam-se e zombavam.
- Vede que Profeta, que salva a todos e não pode salvar-
se a Ele mesmo!
- Não és Rei de Israel? grita outro. Pois desce da cruz e
crerei em Ti.
O bandido Gestas, pregado na cruz à esquerda do
Galileu, voltou a cabeça para olhá-lo, e disse-lhe com
desprezo:
- Se Tu és Cristo, salva-te a Ti mesmo e a nós.
- Gestas, exclamou Dimas com dolorosa e triste voz,
não blasfemes, não duvides do poder de Deus. Regozija-te da
glória que te cabe por morreres ao lado do Messias
verdadeiro. Nós, na verdade aqui estamos sofrendo a sorte
afrontosa da cruz com justiça, pois pagamos a pena que
merecem os nossos crimes. Mas Jesus nunca fez mal a
ninguém.
E voltando a cabeça para o Nazareno, Dimas
continuou:
- Senhor, lembra-te de mim quando fores ao teu reino.
Cristo dirigiu-lhe um doce olhar e disse-lhe:

684
- Em verdade te digo, que hoje estarás comigo no
Paraíso.
Entretanto, ao pé da cruz tinha surgido uma disputa.
Os miseráveis brucianos, os cruéis verdugos que
haviam despojado Jesus das vestiduras, tinham tirado uns
dados e estavam jogando a túnica inconsútil do Nazareno.

CAPÍTULO V

TUDO ESTÁ CONSUMADO

Maria, a Flor de pureza, a virgem imaculada, não pôde


permanecer muito tempo na gruta para onde a tinham
conduzido os amigos. Quis tornar a ver seu Filho.
Os rogos de João, as súplicas de Madalena, foram vãos.
Saiu, por fim, e pouco depois caía ajoelhada aos pés de
Jesus, e abraçava-se ao cruel madeiro, com a alma dilacerada
de dor e de angústia.
Entretanto o sol escurecia, sem que uma só nuvem
atravessasse o firmamemto. A terra ia tomando uma cor
pálida, triste, como o doloroso semblante do Mártir. As aves
buscavam precipitadamente refúgio nas frondosas árvores do
vale do Cedros. As trevas da noite lutavam por usurpar o
cetro ao pai do dia. Jesus, vendo que sua hora se aproximava,
deixou cair para sua Mãe um doloroso olhar.
Seus olhos, cheios de doce e amorosa expressão
encontraram-se com os olhares angustiosos dos três únicos
seres que o tinham acompanhado até o cume do Gólgota: sua
Mãe, Maria Madalena e João, seu discípulo favorito.
O angustioso olhar da Virgem parecia pedir-lhe farsas
para suportar tão bárbara agonia.

685
Jesus estremeceu e disse, dirigindo-se a sua mãe:
- Mulher, ai tens teu filho; e com um movimento de
cabeça indicou-lhe João.
- João, ai tens tua mãe!
Jesus ergueu os olhos ao céu, como se buscasse seu Pai
no pálido e triste horizonte que se estendia sobre sua cabeça
ensanguentada e, exalando um doloroso grito, disse:
- Eli! Eli! Lamma Sabacthani?
E os verdugos, ao escutarem estas palavras,
exclamaram em tom de mofa:
- Chamas Elias para que venha livrar-te? Mas dize-lhe
que não se detenha no caminho.
Maria abraçada ao afrontoso madeiro, não afastava os
doloridos olhos do angustioso rosto de seu Filho.
Jesus agitou a cabeça com agonia e, neste momento,
um relâmpago azulado atravessou os dilatados âmbitos do
espaço.
Cem mil espectadores levantaram os olhos para o céu
depois de passarem as mãos por eles.
Não havia nuvens; mas o sol ostentava a palidez dos
cadáveres e os muros da cidade, e as cristas dos montes, e os
seios dos barrancos tingiam-se de um resplendor estranho,
que gelava o sangue nas veias e oprimia o espírito.
Cessou o trovão, como se a natureza suspendesse seu
enfado, e Jesus, abrindo a boca, exclamou com moribunda
voz:
- Tenho sede.
Longuinhos, que se achava próximo de Jesus, embebeu
uma esponja em mirra e vinagre, bebida horrível que davam
aos condenados para lhes entontecer o cérebro e minorar as
dores, e chegou-a brutalmente a divina boca de Jesus.

686
O Nazareno voltou o rosto para o Ocidente, exalando
um doloroso suspiro. Os elementos responderam com sua
poderosa voz a este gemido do Redentor.
A terra tornou-se de cor achumbada e no céu
apareceram algumas estrelas. Prolongados e longínquos
trovões se sucederam com rapidez, e o raio cruzava em todas
as direções. O temor, o assombro, a admiração começou a
espalhar-se entre os espectadores.
Longuinhos, que se achava perto da cruz, a custo podia
segurar o cavalo que, espantado e receoso, trabalhava para
despedir-se da sela o cavaleiro.
Jesus tornou com moribundo acento:
- Tudo está consumado.
Os trovões redobraram: a escuridão entendeu-se pelo
espaço; a pavorosa luz do raio dilatou-se pelo éter.
Por fim soou na eterna mansão do Ser Supremo a hora
em que o Homem-Deus devia morrer pela raça humana. O
Cordeiro sem mácula ia morrer, e soltando um gemido
emudeceu a natureza. Seus lábios abriram pela última vez e
estas palavras pronunciadas em voz baixa, mas que chegaram
aos ouvidos dos enfermos que se achavam em Jerusalém,
saíram da sua boca:
- Meu Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!
Jesus inclinou a cabeça e, exalando um suspiro, soltou
o último alento.
Naquele momento o estridoroso trovão retumba em mil
partes ao mesmo tempo; o vale de Josafá ilumina-se com a
azulada luz do raio; os sepulcros dos profetas quebram-se em
pedaços; as sepulturas abrem-se, os mortos saem das covas.
O templo de Sion inclina-se como para saudar o último
suspiro do Redentor, e o véu do Santo dos Santos rasga-se
com espantoso estrondo.

687
A noite substituiu o dia; as estrelas, o sol.
Os soldados que rodeavam o Mártir retrocederam,
proclamando a sua divindade. As mulheres e os velhos
ergueram as mãos ao céu, aterrados ante o universal estrondo
que lhes anunciava com a poderosa voz da natureza que
acabavam de presenciar um deicídio. Uma terrível escuridão
reina por toda parte.
Os vivos vêm os cadáveres pelas ruas e os pálidos
esqueletos inclinam-se para saudar os parentes.
No meio desta desolação geral, dois homens
permaneciam no cume do Gólgota com a fronte erguida e o
olhar provocador.
Ambos fitaram os altivos olhos no corpo sem alento de
Jesus. Um chamava-se Longuinhos e outro Samuel Beli-
Beth.
Beli-Beth! Nazareno! Não me respondes? É o mesmo:
escuta as minhas palavras. Eu rio-me da voz da tempestade e
desprezo essa raça covarde que foge espantada quando vibra
o raio sobre as suas cabeças; a minha nunca se inclina. Se és
homem vencer-te-ei, estou certo; se és Deus, advirto-te de
que me acho pronto para a luta; disseste que eu seria imortal;
pois bem; só os deuses são imortais; eu sou deus, comece a
luta.
Samuel abandonou o Gólgota soltando terrível
gargalhada.
Longuinhos descarregou uma terrível lançada no lado
direito de Jesus. A acerada ponta abriu uma larga ferida no
peito do Nazareno. Por aquela ferida rebentou uma fonte de
sangue e água, que correu como um arroio pela lança de
Longuinhos, umedecendo-lhe as mãos.
Longuinhos sentiu ao tocar aquele sangue alguma coisa
estranha. Maquinalmente a lança caiu-lhe das mãos, e

688
esfregou os olhos. O sangue de Jesus tocou-lhe as pálpebras
e Longuinhos viu com espanto que tinha recobrado a vista.
Então soltou um grito, e descendo do cavalo, exclamou:
- Milagre! Milagre! Jesus, Deus meu, eu creio na tua
infinita providência!
E, caindo aos pés de Jesus, adorou-º

CAPÍTULO VI

CAIO ÁPIO

Os trezentos mil espectadores da tragédia divina, tão


depressa a terra lhes tremeu sob os pés e o sol ocultou a
brilhante fronte como envergonhado do crime que acabava
de cometer-se, dispersaram-se.
Atropelando-se uns aos outros entraram na cidade e,
escondendo-se nos mais escuros cantos de suas casas,
repetiam com covarde acento:
-Era verdade que Este era Filho de Deus e matamo-lo.
Os covardes jerossolimitanos fechavam as portas e
janelas, porque alguns mortos que tinham saído dos
sepulcros corriam pelas ruas, graves, silenciosos como os
túmulos que tinham encerrado os seus corpos.
Entretanto ao redor da cruz, onde ainda permanecia
pregado Jesus, agrupava-se com amor um grupo doloroso de
onde devia brotar brevemente a fecundante fonte do
Cristianismo.
Daquele punhado de israelitas reunido no cume do
Calvário, ia nascer o perfume imortal e salvador que há
dezenove séculos fortalece com sua essência o grande
espírito da humanidade.

689
Maria, a Mãe dolorosa, era o precioso vaso que reunia
as flores abatidas do Evangelho.
Madalena, Maria Salomé, João, Pedro e outros
discípulos choravam amargamente ao pé da cruz, quando
viram subir pelas desertas fraldas do Gólgota, José de
Arimatéia e Nicodemos, seguidos de quatro criados.
Os dois amigos de Cristo tinham alcançado do juiz
romano licença para darem sepultura ao corpo do Mártir;
eram responsáveis para com Pilatos pelo cadáver de Jesus.
José de Arimatéia levava finíssimo lençol de linho e
Nicodemos cem libras de mirra e aloés para ungir e
embalsamar o corpo de Cristo, segundo o costume dos
judeus.
José fechou o sepulcro com uma enorme pedra e, como
tudo estava terminado, regressaram a Jerusalém, onde os
chamava a celebração da Páscoa.
A noite estendeu suas sombras sobre a cidade santa. A
muralha de Naim encerrava em seus braços de pedra cerca de
um milhão de almas. Os filhos de Galiléia, os habitantes da
praia do mar de Tiberíades, pregoavam em voz alta pelas
ruas da cidade maldita, que os fariseus e os escribas, com o
horrível crime que acabavam de perpetrar, indubitavelmente
chamariam a cólera de Deus sobre o povo de Israel. O
descontentamento espalhava-se por todas as partes.
Os fariseus temeram que os partidários do Galileu
roubassem o corpo do Crucificado, fazendo depois crível a
ressurreição que profetizara e os fizeram reunir no sinédrio.
O concílio acordou que era preciso que Pilatos lhes
desse certo número de soldados para guardarem o sepulcro,
que eles temiam fosse violado pelos amigos de Jesus.
Imediatamente foram escolhidos doze soldados e um
Centurião para guardarem o cadáver de Jesus.

690
Já se dispunham a abandonar o conclave de pedra
quando Caio Ápio se apresentou às portas da assembléia.
- Miseráveis! lhes disse Caio Ápio. Em vão procurais
opôr-vos a vontade de Deus, cujo filho crucificastes no
Gólgota, porque tudo o que Ele vos prometeu se cumprirá. A
sua maldição, que retumba no espaço e cujo eco sentis na
consciência, vos espalhará pelo orbe como um punhado de
areia ao poderoso sopro do furação. Malditos serão os filhos
de vossos filhos, porque vós matastes o profeta verdadeiro.
Os filhos do evangelho povoarão em breve as dilatadas
regiões do mundo. Os soldados abandonarão a lança e
empunharão a cruz. Os lavradores deixarão o arado e
empunharão a cruz. Os deus pagãos cairão feitos pedaços nos
templos, e este santuário, que tendes manchado, será
convertido em pó, como disse Jesus, antes que acabe a
presente geração. Malditos! Malditos! Malditos sereis!
Caio Ápio saiu do templo sem que ninguém se
opusesse. Suas palavras tinham sobressaltado os sacerdotes e
os fariseus.
Naquele momento, no interior do Santo dos Santos,
cujo véu se tinha rasgado, justamente à mesma hora em que
Jesus soltou o último suspiro, ouviram-se vozes que nunca se
pôde saber quem pronunciou, as quais diziam: Partamos
deste lugar.
Caifás fez esforço para reanimar os companheiros.
Logo partiram alguns sacerdotes seguidos dos soldados,
chegaram ao jardim de José de Arimatéia e levantaram a
pedra do sepulcro. Ali estava o cadáver de Jesus.
Em presença dos sacerdotes tornou a colocar-se a
enorme pedra, e pelas suas próprias mãos foram seladas as
juntas.

691
Quatro soldados com a lança no braço se colocaram à
porta do sepulcro.
Os sacerdotes sairam do jardim, e já no campo, Caifás
disse aos que o cercavam:
- Agora estou tranquilo. Se é Deus, que quebre a lousa
do sepulcro e ressuscite, o que é difícil que suceda.

CAPÍTULO VII

OS MORTOS FALAM

Samuel Beli-Beth, depois de apostrofar Jesus na


agonia, desceu do Gólgota e começou a caminhar sem saber
para onde, como impelido pela aterradora voz da
consciência. A escuridão era completa; o temor dos
habitantes de Jerusalém tão grande, que a gente se atropelava
pelas ruas.
Samuel parecia insensível ao espanto geral. Seguia seu
caminho com a fronte inclinada e como se a maldição de
Deus lhe pesasse sobre a cabeça.
Sem o perceber, atravessou grande parte da cidade de
Beceta e, torneando as fraldas do monte Mória, achou-se nas
portas das Águas. Parou fatigado no vale dos Cadáveres, que
conduz ao sepulcro de Absalão.
Ali limpou o suor que lhe inundava a fronte e, erguendo
a cabeça, retrocedeu dois passos, aterrado.
Os profetas achavam-se sentados sobre os seus
sepulcros com os descarnados braços na direção do Gólgota.
Aqueles esqueletos envoltos nos brancos sudários, que se
levantavam das sepulturas para chorarem a morte de Deus,
aterravam Samuel, que os olhava com olhos espantados.

692
O trovão, rugia-lhe sobre a cabeça; a terra tremia-lhe
debaixo dos pés. Então, ao resplendor dum relâmpago, pôde
ver que os esqueletos se puseram em pé que dos seus olhos
sem luz corriam lágrimas de sangue. Caiu de joelhos, e
estendendo as mãos em direção aos mortos, murmurou com
voz aterradora:
- Perdão!... Perdão!...
Os profetas responderam-lhe com a voz espantosa dos
sepulcros:
- Anda!
Imediatamente, em toda extensão do vale de Josafá, se
escutou um gemido, cujo eco repetiu de modo fúnebre:
- Anda, anda, anda!
Samuel pôs-se em pé possuído de um pânico horrível.
Então viu umas letras de fogo esculpidas sobre as
pedras do sepulcro, que diziam: Absalão.
- Piedade! exclamou Samuel juntando as mãos.
O esqueleto de Absalão estendeu o braço em direção ao
Gólgota e disse:
- Anda!
Os mortos do vale de Josafá tornaram a repetir por três
vezes:
- Anda, anda, anda!
Samuel com o cabelo eriçado, olhos encovados, a testa
coberta de suor, começou a caminhar como impelido por
mão misteriosa.
A terra parecia escapar-lhe debaixo dos pés e parou
como para tomar um fôlego; mas apenas tinha detido o
passo, a pedra dum sepulcro que se achava ao lado caiu em
pedaços e o cadáver do profeta Zacarias saiu do túmulo,
repetindo:
- Anda!

693
E outra vez, os mortos tornaram a repetir dos seus
sepulcros:
- Anda, anda, anda!
Samuel continuou seu caminho, caindo fatigado depois
de meia hora de caminhada junto duma árvore. Ali, só com
sua dor, com a cabeça entre as mãos, permaneceu longo
tempo.
O remorso devorava-lhe o coração e quis novamente
implorar a clemência divina: mas apenas os lábios abrasados
pela febre pronunciavam a palavra perdão ouviu uma voz
que lhe repetia sobre a cabeça:
- Anda, maldito como eu, anda, anda!
Ergueu os olhos para ver quem era o que o perseguia e
ameaçava em tão desertos lugares, e viu à luz de um
relâmpago o corpo de um homem enforcado que se agitava
sobre o precipício.
Aquele cadáver era o de Judas.
Samuel abandonou aterrado o lugar, encaminhou-se
para a cidade e entrou pela porta Estercolária; atravessou do
mesmo modo o arrabalde de Ofel, a esplanada do templo,
passou sem se deter parte da cidade de Beceta e chegou por
fim, à sua casa.
Então viu com horror que um esqueleto se achava
sentado no poial da sua porta. Fitou os olhos espantados
naquele espectro dos túmultos, soltou um grito, e disse com
medroso acento:
- Sara, Sara! Minha esposa, tu também deixas o
sepulcro para amaldiçoar-me?
O espectro respondeu com doloroso acento:
- Samuel, Deus permite-me que abandone por um
instante o sepulcro e que venha despedir-me de ti e dizer-te:

694
Anda, maldito de Deus, anda até a consumação dos
séculos!
A visão desapareceu.
Samuel desfalecido, entrou em casa e foi refugiar-se
junto ao berço do filho, que apenas contava doze meses.
Ali ao menos julgava-se seguro dos mortos. Fitou os
aterrados olhos no formoso menino que dormia no berço;
mas, naquele momento, o menino levantou-se, e pondo-se
em pé, estendeu a mãozinha em direção ao Gólgota, e disse
com voz doce e sonora, que devem ter os anjos:
- Samuel Beli-Beth, anda, anda, anda!
Samuel retrocedeu até tocar com a cama da sua velha
mãe; que, muda, paralítica, havia muitos anos, pôs-se em pé,
e disse com claro acento:
- Anda, anda, anda, maldito de Deus!
Samuel não pôde resistir a tanta comoção e caiu
desamparado no chão. Naquele momento ouviu-se uma
pancada na porta da rua, logo outra, depois outra.
Estas três pancadas pausadas, sem que ele pudesse
compreender a causa, reanimaram subitamente, o espírito
aterrado do judeu. Pôs-se em pé e perguntou:
- Quem é?
Uma voz que não tinha nada da terra, respondeu:
- O que Deus envia. Abre.
- Entra, se queres, respondeu Samuel, que parecia ter
recobrado a passada energia.
A porta abriu-se. Um jovem que quando muito teria
dezesseis anos de idade, branco como o leite, louro como o
ouro, formoso como as rosas de Saron e vestido com um
túnica resplandecente, entrou em casa de Samuel. Levava um
bordão de viagem na mão, e do corpo irradiava uma auréola
de luz.

695
- Quem és? perguntou Beli-Beth.
- Sou Gabriel, o enviado do Senhor, o mensageiro do
Paraíso, que venho entregar-te o bordão do viajante e dizer-te
que a tua hora chegou: Anda!
- Então era Deus? exclamou dum modo indescritível
Samuel. Então era Deus? E recusei-lhe a água que me pedia!
Ah, maldito, maldito, maldito, seja o meu nome!
O arcanjo repetiu:
- Samuel, a hora chegou. Anda!
- Por caridade, permite que dê um beijo na fronte desse
pobre menino que se acha no berço.
- Anda! Repetiu Gabriel.
- Deixa que dê a minha mãe o ósculo de despedida.
- Anda, anda! tornou o enviado de Deus.
- Estou cansado; deixa que respire um quarto de hora;
corri muito desde que Jesus soltou o último suspiro.
- Anda! Anda! Anda! repetiu o Arcanjo; mas de um
modo tão enérgico, que Samuel baixou a fronte, pegou no
bordão que lhe apresentava, atou as sandálias e exalando um
doloroso suspiro, saiu de casa para nunca parar, para
caminhar eternamente.
Jacó Besnage, autor protestante, na sua História dos
Judeus, conta três judeus errantes; o primeiro chamou-se
Samer, e foi amaldiçoado por Deus por ter fundido o bezerro
de ouro no tempo de Moisés, o segundo, com o nome de
Cataflio que foi porteiro de Pilatos; e o último chamado
Assuero, sapateiro de ofício, que tinha a loja na rua que
depois de chamou via Dolorosa, recusando a Jesus um pouco
de água quando caminhava para o Calvário.
Feijó, no tomo segundo das suas Cartas eruditas,
falando extensamente sobre o judeu errante, diz que no de
1129 apareceu o judeu errante na Inglaterra, em 1547 em

696
Hamburgo, em 1575 em Madrid, em 1609 em Viena, em
1610, em 1612 em Astran, em 1643 em Paris, em 1694 em
Moscou, e finalmente indica-se nos fins do século XVII em
Londres pela segunda vez, como assegura uma carta da
duquesa Hortência de Mazzarino, irmão do célebre cardeal
do mesmo sobrenome.
Acrescenta Feijó, que um homem astuto e sagaz,
instruído na história em oito ou nove línguas, que vida mais
agradável podia escolher que a de se fingir judeu, o errante,
chamando a atenção dos príncipes e pessoas poderosas, ou
que estranho seria que depois o imitassem outros
embusteiros?
Em todo o caso, se a tradição é uma fábula, como deve
crer-se, é preciso convir que em nada pode representar com
tanta exatidão o disperso povo de Israel, que nunca pôde
reunir-se, como esse homem, amaldiçoado por Deus em
cujos ouvidos ressoa claramente o anda, anda, anda! da
tradição.
Nós demos-lhe uma forma fantástica, porque em anda
afeta o dogma, assim como nos servimos dum nome que
ninguém cita, em vista dos diferentes pareceres que desde o
célebre historiador Matias de Paris (o primeiro que deu à luz
a tradição do judeu errante no ano de 1299) até nós se tem
adotado.

CAPÍTULO VIII

TRÊS DIAS DEPOIS

697
Quatro soldados da sinagoga, encostados as suas lanças
guardavam o sepulcro de pedra que encerrava o divino corpo
do Salvador.
Aqueles mercenários de Roma, emprestados por Pilatos
aos sacerdotes israelitas riam-se muito do receio dos fariseus.
Formando um grupo a uns doze passos do sepulcro achavam-
se mais oito homens. O dia não estava longe. O avermelhado
resplendor de duas teias alumia a enorme pedra do sepulcro.
- Para isto viemos nós? dizia um dos soldados,
dirigindo a palavra aos companheiros.
- Só os judeus são capazes de pôr sentinelas ao redor
dum cadáver. Fanáticos! respondeu outro.
- Felizmente, disse o primeiro, o prazo desta guarda
enfadonha terminará brevemente.
- Sim, depressa se completarão os três dias que teme a
sinagoga.
Quando surgir o sol, que não está longe.
- Sabes, disse um que até então não tinha despregado os
lábios, que seria coisa surpreendente que se realizasse o
medo desses velhos rabinos?
- Com certeza! Ver voar um homem pelos ares!
Os soldados romperam numa gargalhada; mas ao
mesmo tempo ouviu-se um doloroso gemido no centro da
terra.
- Ouviste? disse um deles.
- Sim, a terra tremeu debaixo dos nossos pés.
Então houve um breve silêncio; mas depressa os
soldados, envergonhados do seu medo, tornaram a rir.
- Bonito fora que os filhos da guerra, os adalides de
Tibério, se pusessem a chorar de medo como covardes
mulheres! exclamou o Centurião da força.

698
A aurora começava naquele momento a estender suas
róseas cores pelo espaço. Apesar das gargalhadas e da
chacota da soldadesca, desde que tinham sentido o estranho
estremecimento da terra não tornaram a despregar os lábios,
notando-se em todos os semblantes certa expressão de
desgosto.
Subitamente, fez-se escuro.
Antes que os soldados pudessem compreender aquele
acontecimento inesperado, tornou a gemer e estremecer o
centro da terra. Aquele eco subterrâneo, pavoroso, parecia
aproximar-se da superfície com incrível rapidez e, como a
maré, crescia, reforçando sua aterradora voz. De repente
saltou a pedra que cobria o sepulcro em mil pedaços e uma
chama esplêndida brotou do seio do túmulo.
Alguns soldados caíram aterrados ao chão; outros
apelaram para a fuga, encaminhando-se para Jerusalém. A
profecia acabava de cumprir-se. Cristo ressuscitava dentre os
mortos ao terceiro dia. Abandonava o túmulo para tornar a
aparecer sobre a terra dos vivos. O túmulo que encerrava o
seu divino corpo achou-se vazio. Um anjo apareceu sentado
na borda do sepulcro. Os seus olhos brilhavam como os
serenos raios do sol. Seus vestido, branco como as nuvens de
Arará, resplandecia como a fronte da lua numa noite serena.
As quatro sentinelas que tinham caído meio mortas,
levantaram-se retrocedendo com assombro na presença do
anjo.
Este estendeu o celeste braço em direção a Jerusalém e
disse, com dulcíssima voz.
- Ide a Jerusalém e contai o que vistes.
Os soldados obedeceram. O anjo ficou só na gruta. Ao
mesmo tempo umas mulheres saíam de Jerusalém.

699
- Corramos, dizia uma delas, e derramemos sobre o seu
puríssimo corpo estes preciosos aromas. Hoje completa-se o
terceiro dia, e os soldados da sinagoga poderão deixar-nos
vê-lo, já que está morto. Corramos, seus discípulos e sua
amorosa Mãe também não faltarão.
A que assim falara era a enamorada donzela de
Mágdalo.
Chegaram ao sepulcro. Madalena entrou só, primeiro.
O dia ainda estava indeciso às portas do Oriente.
Aproximou-se do sepulcro, e vendo a pedra levantada do seu
lugar, não retrocedeu; mas introduzindo a formosa cabeça na
gruta, soltou um grito:
- Levaram o Senhor!
Então correu a participar a triste notícia aos seus
amigos, Pedro e João encaminhavam-se para aquele lugar.
Madalena saiu-lhes ao encontro, dizendo:
Levaram Jesus; que faremos agora?
Os apóstolos, cheios de assombro penetraram na gruta.
O sepulcro estava vazio. Madalena tinha dito a verdade.
Pedro examinou atentamente o sudário que se achava
colocado num extremo do sepulcro, e disse, dirigindo-se a
João:
- Observa bem que o corpo do nosso Mestre não foi
roubado com precipitação; porque nesse caso não se teriam
entretido em desatar as tiras de pano. Cristo ressuscitou dos
mortos, como disse.
- Corramos a participar tão faustosa nova a nossos
irmãos, disse João.
Madalena caiu de joelhos junto do sepulcro. Seu amor
imenso precisava de verter um mar de lágrimas sobre aquela
pedra abandonada: mas ao fitarem-se os formosos olhos no

700
fundo do sepulcro, viram dois mancebos vestidos de branco,
cujos corpos despediam um perfume inebriante.
Um deles estava sentado no mesmo lugar em que três
dias antes tinham posto a cabeça de Jesus. O outro achava-se
no lugar onde estavam os feridos pés de Cristo.
- Mulher, porque choras tão amargamente? lhe
perguntou o mancebo, sentado à cabeceira.
Madalena, contemplando com sobressalto aquele
formoso mancebo, respondeu-lhe:
- Choro porque tiraram o meu Senhor e não sei onde o
puseram.
Apenas pronunciara estas palavras Madalena sentiu
atrás de si um ruído que lhe fez voltar a cabeça, e viu um
homem que lhe pareceu o hortelão do jardim onde se achava.
- Mulher, a quem procuras? lhe disse o homem.
Madalena sem levantar os joelhos do chão, juntou as
mãos com gesto suplicante e disse:
- Se tu o tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei.
Madalena observou no olhar daquele homem alguma
coisa de sobrenatural que lhe sobressaltava o espírito. Jesus,
pois este era o que se achava junto da arrependida pecadora,
compadecendo da sua dor, pronunciou com a voz que tão
docemente ressoava nos ouvidos da desgraçada durante a
pregação do evangelho:
- Maria!
Madalena conheceu Jesus. Soltou um grito, e lançando-
se-lhe aos pés exclamou com apaixonado acento:
- Mestre!
Jesus recuou, dizendo:
- Não me toques; ainda não subi a meu Pai; mas vai a
meus irmãos e dize-lhes o que viste.

701
Tinha aparecido a Madalena primeiro que aos
Apóstolos, mas depois que a sua Mãe, a quem dedicou a sua
primeira visita ao ressuscitar. Entrevista venturosa foi esta
para aquela Mãe aflita; cena doce, felicidade imensa, com a
qual recompensou o Redentor do mundo a incrível amargura
que sofrera a Flor de Nazaré, a Estrela do mar. Madalena
voltou pressurosa a Jerusalém. Encontrou os dois apóstolos
que poucos momentos antes tinham observado detidamente o
vazio sepulcro e, com gozo indefinível que lhe transbordava
na alma, lhes diz:
- Cristo ressuscitou, eu o vi, como vos vejo a vós. Ouvi
a doce voz que me comoveu o coração, enchendo-o de
alegria e de gozo.
Pedro e João creram o que Madalena lhes disse; mas ao
participarem-no a seus irmãos, a dúvida achou cabida em
alguns deles.
Naquela mesma tarde, dois discípulos de Cristo
caminhavam tristes e meditabundos de Jerusalém para a
aldeia de Emaus, que dista duas léguas da cidade santa.
Falavam com doloroso acento dos tristes acontecimentos
daqueles dias.
A morte de Jesus, seu jovem Mestre, era o motivo da
conversação.
- Sim, Lucas, dizia um deles, Jesus Nazareno era um
Homem sem igual, um grande Profeta.
- Amigo Cléofas, respondeu Lucas, Cristo foi poderoso
conosco, e amado de todo o povo. Os fariseus cometeram um
crime horrível.
Neste momento, apareceu-lhes um desconhecido, que
disse:
- A paz seja convosco: de que falais, irmãos?

702
Contaram-lhe os acontecimentos que o povo
jerossolimitano presenciara três dias antes, e que umas
mulheres tinham trazido a surpreendente notícia a Jerusalém
de que Jesus ressuscitara dentre os mortos.
O viajante misterioso notou a dúvida na palavra dos
apóstolos e, como já se achassem perto da aldeia, disse-lhes:
- Vejo que a dúvida se alberga no vosso coração: fazeis
mal. Crede tudo o que vos disserem do Messias que pregou
convosco o Evangelho.
Pouco depois chegaram a Emaus e os apóstolos
convidaram o viajante para comer com eles.
O viajente aceitou. Mas tão depressa se sentou à mesa,
pegando num pão sem fermento, partiu dele dois pedaços, e
dando um a Lucas e outro a Cléofas, disse-lhes:
- Tomai o meu corpo.
Os apóstolos estremeceram e creram reconhecer o
Mestre; mas o estranho desapareceu. Era efetivamente
Cristo, o Mártir do Gólgota.

CAPÍTULO IX

A ASCENÇÃO

Cristo, depois da sua ressurreição apareceu primeiro a


sua mãe; logo, a Madalena, depois às piedosas mulheres
Maria, mulher de Cléofas, Joana, mulher de Chusa,
intendente que foi de Herodes; Salomé, mãe de João e Tiago,
e a outras que o seguiam no tempo da pregação.
No mesmo dia da triunfante ressurreição, os apóstolos,
excetuando Tomé, achavam-se reunidos no cenáculo e Pedro
referia com ardente fé o assombroso acontecimento da
ressurreição de Cristo.

703
O sol acabava de esconder os últimos raios do
Ocidente, e duas lâmpadas de bronze alumiavam a habitação.
Todas as portas estavam fechadas, pois o receio de serem
surpreendidos pelos soldados da sinagoga não era estranho
nos apóstolos.
A dúvida tinha cabimento na alma de alguns daqueles
futuros mártires; já começavam as réplicas entre eles, quando
Cristo apareceu no meio do cenáculo sem que nenhuma porta
se abrisse para lhe dar passagem. O assombro dos apóstolos
foi grande.
- A paz seja convosco, disse com aquela voz que
penetrava até o mais fundo dos corações; sou Eu, não temais.
Os assombrados discípulos mal podiam dar crédito ao
que viam. Pedro, reposto do seu assombro, e crendo-se o
mais pecador por o ter negado três vezes, caiu aos pés do
Cristo, e juntando as mãos com gesto suplicante, exclamou:
- És Tu, Mestre! És Tu o Cristo! És Tu o Messias! Ah,
Senhor!
- Sou Eu, lhes disse Deus; e depois estendeu a mão
sobre os apóstolos, encheu-os da sua divina essência e disse-
lhes:
- Recebei o Espírito Santo: aqueles a quem perdoardes
os pecados, perdoados lhe são: e aqueles a quem o retiverdes,
retidos lhes são.
Depois disto desapareceu do mesmo modo que
aparecera, sem se saber por onde.
Oito dias depois achavam-se os apóstolos reunidos no
mesmo lugar e com a porta fechada. Os escribas e os
sacerdotes tinham comprado à força de ouro o silêncio dos
soldados guardadores do sepulcro, para que o assombroso
acontecimento da ressurreição não se divulgasse.

704
Os apóstolos eram acusados como ladrões do corpo de
cristo. No sinédrio meditava-se a maneira de os prender, e
aquele punhado de ovelhas agrupava-se durante a noite para
tratar da pregação do evangelho.
- Para que Tomé creia, meus irmãos, é preciso que o
veja e que o toque.
Então apareceu Cristo, entre eles e, como da primeira
vez, disse-lhes com doçura:
- A paz seja convosco.
Jesus, com passo tranquilo e olhar sereno, foi-se
aproximando de Tomé, que o olhava com olhos espantados.
Quando chegou mui perto dele, disse-lhe:
- Aproxima-te do teu Mestre, mete aqui o dedo,
examina esta chaga, sonda depois a do lado, e não sejais por
mais tempo incrédulo, mas fiel.
Tomé, que tinha escutado as palavras de Jesus e visto
as feridas que o Mestre lhe mostrava, caiu confundido a seus
pés, exclamando com doloroso acento:
- Perdão, pela minha dúvida, Senhor e Deus meu: o
martírio não poderá com seu doloroso tormento apagar a luz
vivíssima da minha fé.
- Porque me viste, Tomé, creste, lhe disse Jesus; bem-
aventurados os que não viram e creram.
Jesus, tornou a desaparecer do cenário. Por espaço de
quarenta dias percorreu a Galiléia, mostrando-se a muita
gente. O lago de Tiberíades presenciou depois da
ressurreição os novos milagres de Cristo.
Os apóstolos que, receosos do furor dos sacerdotes, se
tinham retirado a Cafarnaum, julgando-se ali mais seguros,
tornaram a ver o Mestre divino um dia em que pescavam nas
suas barcas, mandando-lhes Ele que regressassem a

705
Jerusalém sem receio dos fariseus, pois não havia de faltar-
lhes o socorro do Alto.
Os apóstolos, fieis ao que lhes tinha mandado o Mestre,
chegaram a Jerusalém, e prepararam uma comida em casa de
José de Arimatéia, no santo cenáculo. Onze se achavam
sentados à mesa quando Jesus tornou pela quarta vez a
aparecer. Durante a ceia instruiu-os no que deviam fazer.
- Ide por todo o mundo, e pregai o Evangelho a toda a
criatura! Ensinai a toda gente, batizando-os em nome do Pai,
do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-lhes que guardem todas
as coisas que eu vos mandei guardar, praticar e cumprir, para
serdes eternamente felizes; e estai certos que Eu
permanecerei em vossa companhia até à consumação dos
séculos.
Terminada a comida, Jesus levantou-se e disse aos
discípulos:
- Segui-me! Chegou a hora de abandonar a terra o que
desceu do céu.
Cristo saiu do cenáculo. Sua Mãe, as piedosas mulheres
que nunca a abandonavam e mais de cento e vinte discípulos,
reuniram-se aos apóstolos. Todos seguiam Jesus, que se
encaminhou com tranquilo passo para o povoado de Betânia.
Ao chegar ao cume do monte das Oliveiras, o Nazareno
parou.
Todos os que o seguiam fizeram o mesmo. Jesus dirigiu
um olhar amoroso, primeiro a sua Mãe, que se achava quase
ao seu lado; depois aqueles fiéis que deviam pregoar em
breve a milagrosa ascensão; e, por último, ao grandioso
panorama que o rodeava, pois do cume do monte distinguia o
sombrio mar Morto, o clarão do Jordão, e as gigantescas
palmeiras do vale do Jericó. Depois, inclinando a divina
fonte sobre o peito, ficou pensativo.

706
Todos os rodeavam sem se atreverem a interrompê-lo.
De súbito, o corpo de Jesus encheu-se dum resplendor
vivíssimo. Da sua divina fronte brotaram raios da luz. Uma
harmonia dulcíssima se ouviu no espaço, e uma nuvem
nacarada foi descendo do céu até tocar com sua transparente
fimbria os cabelos de Jesus.
A voz dos anjos cantavam o hino da glória; o hosana
dos céus ressoou aos ouvidos dos apóstolos, que caíram
ajoelhados aos pés do seu Mestre.
Então Jesus estendeu os braços sobre aquelas cabeças
inflamadas pela semente fecundante do Evangelho e
abençoou os futuros mártires do Cristianismo. Depois foi-se
elevando suavemente em presença dos discípulos, que o
olhavam com infinito gozo.
Por muito tempo viram Jesus, rodeado de anjos, elevar-
se ao céu. Quando o corpo do divino Mestre, do Deus-
Verdade, desapareceu, quando Jesus, abandonando a terra
penetrou pelas portas do Paraíso para sentar-se á direita de
Deus Pai, os apóstolos ficaram estáticos, absortos, imóveis,
com os olhos fitos no céu, como se o assombroso
acontecimento que acabavam de presenciar lhes houvesse
roubado a faculdade vital de toda criatura. Dir-se-ia que o
seu estático arroubamento os convertera em estátuas.
Dois formosos mancebos, completamente vestidos de
branco e que tinham uma palma na mão direita e uma
pequena cruz na esquerda, apareceram no meio dos
apóstolos.
Um deles disse-lhe com a voz dos anjos:
- Varões de Galiléia, que fazeis neste lugar olhando
para o céu? Os desgraçados vos esperam. Ide, pois, percorrei
o mundo, contai o que vistes, porque o vosso Salvador, meu

707
Deus, que acaba de subir ao céu na vossa presença, voltará
algum dia a cumprir o que vos prometeu.
Os anjos desapareceram.
Então os apóstolos, como fortalecidos com as
misteriosas palavras, agruparam-se como para transmitirem a
fé dos seus corações.
Aquelas flores do evangelho preparavam-se para
perfumar o mundo com o aroma das palavras do Mártir.
Aqueles soldados de Jesus Cristo, anelando semear a
frutífera e benéfica semente do Cristianismo, estenderam as
mãos sobre o lugar onde pouco antes se tinham firmado os
pés do Mestre, e juraram percorrer o universo pregando o
Evangelho, e morrer pela fé do Cristo.
E cumpriram o juramento.

CAPÍTULO X

O SEPULCRO DAS ROSAS

Alguns anos depois uma pequena e veloz barca fendia


com a deigada proa as águas transparentes e azuladas do mar
Icário.
Duas mulheres, formosas como aquele mar que se
estendia ante os seus olhos, e um homem, cuja doce
fisionomia expressava a bondade do coração, achavam-se
sentados no banquinho de popa do barco, contemplando as
costas pitorescas da Asia Menor, semeadas de plátanos e
açucenas.
Os três viajantes vestiam o traje judaico, pobres
desterrados que buscavam em solo estranho a paz de
existência. A barca chegou à praia, e os viajantes saltaram

708
sobre a finíssima alfombra de areia que separa a cidade de
Efeso do mar.
- Quão belo é este solo! Quão brilhante o firmamento!
Quão claro o mar que o acaricia! exclamou o homem,
embevecido na contemplação da paisagem.
- João, meu filho, disse uma das mulheres; lembra-me o
formoso solo da Galiléia, o transparente lago de Tiberíades, o
pitoresco jardim de Zabulon.
- É verdade, murmurou em voz baixa o homem.
- Pobres desterrados! tornou a mulher.
A SS. Virgem, Maria Madalena e João, o discípulo
favorito de Jesus, pois estes eram os viajantes, entraram na
cidade de Efeso.
O ódio insaciável dos fariseus a Jesus tinha-os feito
emigrar, dispersando os apóstolos da fé pelo mundo.
A misteriosa Flor do Evangelho, a Mãe do Mártir do
Gólgota, sem mais parentes sobre a terra que João – seu filho
adotivo, e Madalena, sua inseparável amiga, viu passar um,
outro e outro sono, em país estrangeiro, sentada à sombra
duma daquelas frondosas árvores que aformoseiam as
vizinhanças de Efeso, e com os dolorosos olhos no mar
Icário, como procurando no seu longínquo horizonte as
palmeiras da Galiléia, céu da sua pátria.
Durante aqueles momentos de doce contemplação,
enquanto Maria e Madalena vagueavam por esse mundo
encantador dos sentidos que tanto embevece a amargura do
desterrado, João, o modesto pescador de Betsaida, o amoroso
discípulo de Cristo, ocupava-se em escrever um livro cuja
maravilhosa ciência, cuja poesia inesgotável devia ser
imortal.
Uma nova desgraça fez rebentar de novo as lágrimas
dos olhos da Virgem. Madalena, a doce amiga, a enamorada

709
de Jesus, deixou de existir. A Virgem e João companharam
aqueles restos queridos à última morada e, desde então, a
soledade do seu destêrro foi mais dolorosa, mais sombria. A
virginal Açucena de Nazaré começou a pensar novamente na
Pátria.
Pressentia o fundo do coração que seu Filho ia enfim
chamá-la à mansão eterna. Uma noite que João escrevia ao
lado do seu leito, disse-lhe com voz carinhosa:
- João, meu filho, pressinto que a minha vida se acha
próxima a extinguir-se, e antes quero visitar o templo de
Jerusalém.
João, que não tinha outra vontade senão a de sua Mãe
adotiva, preparou tudo para a viagem, e poucos dias depois
embarcaram no porto de Mileto, numa galera que ia dirigir a
proa para a Europa, fazendo escala em Sidon. A Santa
Virgem, durante a viagem de regresso à pátria, contemplava
com indefinível gozo as costas pitorescas que passavam ante
seus olhos aproximando-se da cidade querida. Por fim a
galera chegou a Sidon. Os remeiros levantavam cansados as
pás das águas, e a Santa Mãe pisa enfim a terra desejada.
Quando os viajantes chegaram a Jerusalém,
hospedaram-se na cidade de Sion numa modesta casa
levantada perto do arruinado palácio de Davi.
Em breve souberam que Tiago era Bispo de Jerusalém,
e que quase todos os apóstolos tinham regressado à cidade
santa, depois de terem semeado em outros países com
proveitoso fruto as sublimes palavras do Evangelho. João
correu a participar a chegada da Mãe de Jesus aos apóstolos e
em breve a modesta Flor de Galiléia se viu rodeada daqueles
santos varões, cujo amor a Ele e a seu Filho era inesgotável.
Maria, cansada da viagem recebeu os fieis recostada num
leito de pobre aparência.

710
Seus bondosos olhos encheram-se de lágrimas na
presença dos santos varões, que com tão carinhosa solicitude
a rodeavam. Pedro, o apóstolo ancião, o homem da fé, disse-
lhe, pegando-lhe na mão:
- Maria, nossa Mãe, não te separarás nunca mais do
nosso lado!
- Pedro! murmurou a Virgem com desfalecido acento.
A minha hora aproxima-se, e meu Filho espera-me: logo
cerrarei os olhos à vida terrestre.
Algumas horas depois, quando a noite estendia pelo
firmamento as sombras, quando os débeis clarões de uma
lâmpada banhavam com sua vacilante luz a habitação que
ocupavam os apóstolos, Maria deu um suspiro e,
pronunciando o doce nome de seu Filho, fitou os
moribundos olhos no bispo de Jerusalém, dizendo:
- Por que me olhas assim, Tiago?
Tiago, afogando a profunda dor que lhe devorava o
peito, respondeu:
- Ah, nossa Mãe! Porque vendo o teu divino rosto, creio
ver o imortal Mestre, o meu bom Jesus.
Maria sorriu-se e disse:
- Quanto desejo vê-lo!
Depois, exalando um gemido, elevou a sua alma à
região do Paraíso. A Virgem deixara de existir; mas a
formosura do seu rosto era tamanha, as rosas de suas faces
tão puras, que os apóstolos ficaram estáticos contemplando-ª
Quando os apóstolos se convenceram de que a Mãe de
seu Mestre havia morrido, acenderam a lâmpada funerária,
derramaram sobre o seu santo corpo preciosos aromas,
velando durante a noite o precioso cadáver. Um aroma
inebriante perfumava a estância, e os cânticos dos santos
enchiam de harmonia o espaço.

711
No dia seguinte, o corpo embalsamado da Virgem foi
colocado sobre um leito de flores, e coberto com um véu
fúnebre tecido pelas donzelas de Sion.
Os apóstolos conduziram-no aos ombros ao horto de
Getsemani, onde lhe estava destinada a sua derradeira
mansão sobre a terra.
As piedosas mulheres de Jerusalém tinham coberto de
rosas o sepulcro destinado a Maria. Os filhos do Evangelho
depositaram no fundo do sepulcro o corpo da Mãe do seu
Mestre. Três dias permaneceram velando aqueles restos
queridos, que uma lousa cobria para sempre.
Um homem fraco, pálido, coberto de pó com a barba
quase branca e com todos os sintomas dum ente que sofreu
muito, chegou ao horto de Getsemani no dia terceiro ao cair
da noite. Os apóstolos fitaram os olhos naquele homem, que
parara fatigado junto do sepulcro de Maria.
- Quem morreu? Que fazeis vós aqui? perguntou o
viandante.
Aquela voz fez palpitar todos os corações, e os
discípulos pronunciaram ao mesmo tempo um nome: Tomé!
- Sim, sou eu, meus irmãos, lhes disse, que venho
novamente reunir-me convosco. Tão desfigurado me achais
que não me conhecestes senão quando vos falei. Mas
respondei-me: a quem guardais nesse sepulcro?
- A Maria de Nazaré, a Flor mística do Evangelho, a
Mãe do Redentor do Mundo, disse Pedro com voz pausada e
grave.
Tomé aproximou-se do sepulcro, e dirigindo-se a
Tiago, que se achava junto da pedra, disse-lhe:
- Deixa, meu irmão, que veja pela última vez o divino
rosto da Estrela do Mar, da Flor da Amargura.
Então dos discípulos levantaram a pedra.

712
Todos os olhares se dirigiram para o fundo do sepulcro.
O cadáver da Virgem tinha desaparecido.
A concavidade do túmulo estava cheia de flores, cujo
delicioso aroma se espalhou embalsamando o corpo.
A Virgem Mãe tinha-se elevado ao céu em corpo e
alma como seu divino Filho.

EPÍLOGO

NEM PEDRA SOBRE PEDRA

Quarenta anos depois que o Homem-Deus exalou no


cume do Calvário o seu derradeiro alento, Jerusalém era um
montão de ruínas.
A profecia do Lírio de Nazaré havia-se cumprido.
Os descendentes de Abraão e de Jacó, quais débeis
arestas que esparge com o seu sopro o poderoso furação,
haviam-se espalhado pelo universo, chorando a sua vergonha
e a sua dor.
Era uma manhã do mês de Nisan, desse mês venturoso
em que os filhos de Israel abandonavam as tribos para
celebrarem a festa do cordeiro pascal na mui amada cidade
de Salomão, na mui querida Jerusalém.
As harpas de Sion, já não ressoavam no Santo dos
Santos, nem as alegres donzelas de Galiléia levantavam as
tendas ao redor das muralhas de Nain.
O vale dos Cedros era um solitário páramo semeado de
cadáveres e ruínas, e os corvos e as águias do Líbano,
abandonando as quebradas rochas, pairavam sobre a cidade
maldita, depois de devorarem as entranhas dos deicidas.
Um homem, ou antes um velho, curvado sob o peso dos
anos, branca a barba, branco o cabelo, triste e melancólica a

713
face, como se o grito da consciência lhe levantasse ecos
dolorosos no fundo da Alma, encostado ao bordão do
viajante, ladeava a pedregosa falda do monte dos Cadáveres
até encontrar uma estreita vereda que conduzia ao crime.
Quando pôs o pé na vereda parou, buscou com afanoso olhar
um ponto da terra, talvez recordações, e crendo encontrá-lo,
caiu de joelhos beijando com veneração as empoadas pedras.
O misterioso viandante beijava com fervoroso ardor a terra
que quarenta anos antes, santificara com a sua terceira queda
o Mártir Galileu.
Ali, naquele mesmo lugar, a venturosa mão de Simão
Cireneu ajudara a Cristo a levar o pesado madeiro.
- Sim, sim, foi aqui, murmurou o viajante com apagada
voz, foi aqui onde disse: “Mulheres de Jerusalém, não
choreis por mim, chorai por vós e por vossos filhos”; e as
mulheres choraram; e a profecia cumpriu-se; e as mães
depois de devorarem seus filhos enlouquecidas pela fome,
invejaram as estéreis; e o templo, reduzido a pó, já não abre
suas portas como em outro tempo ante os passos do
sacerdote hebreu: porque Ele amaldiçoou a cidade, e a cidade
maldita é um montão de ruínas cuja grandeza esparge o
vento do deserto. Oh! Senhor Deus de bondade e
misericórdia, Rei dos reis, eterna Fonte de clemência, volve
os olhos para mim; condoi-te da minha agonia, e faze com
que a morte introduza o seu sopro exterminador nas minhas
veias.
O viajante exalou um doloroso gemido, pôs-se em pé e
tomando a tortuosa senda, chegou ao cume do monte dos
Cadáveres. Ali tornou a ajoelhar-se, e seus lábios beijaram o
buraco onde em outro tempo esteve cravada a cruz de Cristo.
Com o rosto colado às duras pedras, o corpo inclinado, orava

714
em silêncio o misterioso ancião, insensível a tudo, menos à
sua dor.
Seu abatimento impediu que visse outro homem que
vinha pelo mesmo caminho de Emaús em direção ao
Gólgota. Teria uns sessenta anos. Trazia o traje dos
peregrinos cristãos, e pendia-lhe do ombro uma pequena
citara. Brancos e brilhantes caracóis de cabelos lhe caíam
sobre os ombros e costas, e barba longa e branquíssima como
a neve lhe descansava sobre o peito. O peregrino, sem
estranhar que outro homem estivesse orando no cume
santificado com o sangue do Mártir, ajoelhou-se e orou
também.
Depois da muda oração, aquelas duas cabeças
veneráveis ergueram as maceradas frontes para o céu. Nos
olhos do peregrino da citara refleia-se a esperança: no olhar
do ancião do bordão, a dor.
Depois desta cena muda, sentaram-se ambos sobre as
pedras.
O ancião da citara dirigiu um olhar ao ancião do bordão
e disse-lhe:
- A paz seja contigo.
- Contigo venha, irmão, respondeu o velho.
- És judeu?
- Nasci em Jerusalém.
- És cristão?
- Pregando a fé de Cristo percorro o mundo, porque só
assim espero o perdão das minhas culpas. És tu cristão?
- Sim, e, como tu, percorro há trinta anos as tribos,
cantando ao som da minha citara, as belezas do Evangelho.
- Jerusalém não existe, exclamou o ancião do bordão,
estendendo o braço com doloroso gesto para as ruínas.

715
- Nem pedra sobre pedra resta da cidade santa: Jesus
havia-o profetizado.
- Estiveste dentro dos seus muros durante o sítio? A dor
dos seus filhos seria imensa.
- Grande foi, meu irmão, tornou o velho da citara. A
celebração da Páscoa, continuou, havia reunido dentro dos
muros da cidade sacerdotal mais de um milhão e trinta mil
almas. Os filhos de Jacó preparavam o pão sem fermento e as
ervas amargas, os inocentes cordeiros balavam nos pátios do
templo. A alegria e o contentamento enchiam todos os
corações. Eu percorria, pobre viandante, as buliçosas ruas da
cidade cantando as glórias do Salvador, e a gente repelia-me,
dizendo: “Longe daquia cristão: a tua voz incomada-nos”.
Sem embargo, eu cantava sem fazer caso do seu desprezo.
Chegou a noite e fui refugiar-me à sombra dum sicômoro no
Vale dos Cedros; mas não pude dormir, porque um ruído
estranho como o da tempestade que se aproxima no meio
dum bosque me chegava aos ouvidos. No dia seguinte,
quando Jerusalém despertou, um grito de terror, de
assombro, de espanto rompeu de todas as gargantas.
Numeroso exército cercara as muralhas de Naim, e as
máquinas de guerra dos romanos começavam a romper em
pedaços os fortes muros. Os israelitas aprestavam-se para a
defesa, defendendo palmo a palmo os lares; mas ao mesmo
tempo, dividido dentro da cidade em três bandos, quando o
inimigo suspendia os ataques, pelejavam eles entre si,
esquecendo o perigo que os ameaçava e a necessidade que
tinham de conservar o sangue que derramavam.
O ancião da citara parou. O viajante que o escutava
com religioso silêncio, articulou em voz baixa:
- Pobre povo de Israel, maldito, maldito estás como eu!
O narrador continuou:

716
- Vespasiano era o general dos soldados do Tibre. O
seu valor batia inutilmente de encontro aos fortes muros
levantados por Davi e o tempo decorria sem que a águia
triunfante dos filhos da loba tremulasse sobre o monte santo
de Sion. Então Roma teve necessidade de um imperador, e
chamou Vespasiano, cuja espada tanta glória tinha
conquistado. Tito, seu filho, continuou o cerco da cidade.
Diariamente sacrificava os prisioneiros judeus à vista dos
sitiados, alguns era reenviados à cidade com as mãos
cortadas. A peste, estendeu sobre Jerusalém seu hálito
mortal, chegando a ponto de as mães comerem seus filhos. O
templo caiu convertido em pó e, quando a cidade não foi mas
que um montão de ruínas, quando um milhão de cadáveres
insepultos juncavam o solo maldito, quando os corvos
pairavam sobre a cidade ímpia. Tito entrou, triunfante em
Jerusalém e o povo judeu pobre, fraco, humilhado,
dispersou-se pelo mundo sem pátria, sem lar, sem religião,
sem lei.
O ancião da citara guardou silêncio e duas lágrimas se
lhe desprenderam das pálpebras.
- Eu estava então em Roma, disse por sua vez o outro
ancião. A entrada triunfante de Tito foi esplêndida. Trezentos
escravos judeus luxuosamente vestidos puxavam-lhe o carro;
mil donzelas de Israel cantavam hinos de glória em torno do
vencedor. Roma, louca de contentamento, semeou de flores o
caminho do seu herói. As feras do hipódromo fartaram-se de
carne hebraica para entreterem o ócio da plebe. As areias do
circo tingiram-se com o sangue dos filhos dos deicidas, como
oito anos antes se tinha tingido com os dos mártires do
Evangelho.
- Viste morrer os confessores? perguntou o ancião da
citara.

717
- Sim, tive a desgraça de apreciar o atroz martírio dos
filhos do Evangelho. Nero, monstro incompreensível, que
construira palácios ao seu macaco favorito e mandou abrir as
entranhas de sua mãe, para ver o lugar que tinha ocupado
antes de nascer, tocou fogo numa noite à cidade de Roma. Eu
vi-lhe a tela incendiária na mão. Observei-lhe nos delgados
lábios o sorriso de infernal prazer. A cidade ardeu, e este
crime foi atribuído aos cristãos, que não tinham cometido
outro delito que moderar os seus costumes e não assistir aos
ferozes espetáculos do circo. A matança foi horrível. Os
dolorosos gemidos das vítimas enlouqueciam de prazer o
feroz assassino, que percorreu disfarçado em condutor de
carro o lugar do martírio, atropelando gente. Nos seus
próprios jardins foram queimados cristãos untados de pez e
postos ao redor duma mesa para que alumiassem em lugar de
brandões o banquete que celebrou o monstro Nero. Pedro,
também foi crucificado como seu Mestre mas, por humildade
pediu aos verdugos que pusessem a cabeça para baixo e os
pés para cima: morreu com o valor incompreensível dos
mártires.
O ancião parou, para tomar fôlego, e então o peregrino
falou por sua vez:
- Os primeiros apóstolos da nova lei do Nazareno todos
têm selado a fé com o martírio. Eu vi também Tiago Maior
quando regressou da sua expedição à Espanha, onde com
tanto proveito pregara o Evangelho. O miserável Herodes,
Agripa, a pedido dos hipócritas sacerdotes da sinagoga,
como ao Batista, lhe mandou cortar a cabeça.
- Depois de Mateus converter na Etiópia, tornou o
ancião, um sem número de virgens à religião cristã, os
ciúmes do rei bárbaro decretaram sua morte, expirou com o
glorioso nome do seu Mestre, percorrendo a Arábia, Tomé

718
quis derribar o falsos ídolos, e morreu também às mãos dos
sacerdotes.
- Ah! Não és tu só quem teve a desventura de
presenciar o desgraçado fim dessa flores do Evangelho, disse
o peregrino. Eu vi também os ferozes escribas arrojarem do
alto do templo Tiago Menor, primeiro Bispo de Jerusalém. A
altura era imensa: fechei os olhos aterrado para o não ver, e,
ao abri-los, vi com assombro que Tiago levantava os braços
ao céu dando graças a Deus. Estava vivo, quase são. Mas
naquele momento, um miserável judeu lhes esmagou a
cabeça com um malho de ferreiro.
- Ai! exclamou o ancião. Tu só presenciaste o fim de
dois desses mártires. Eu vi morrer nove. Na Albânia, cidade
da Armênia, vi matar Bartolomeu, horroroso espetáculo que
me gelou o sangue nas mãos e que fazia rir seus ferozes
verdugos. Depois achava-me numa cidade da Grécia, que
ergue os muros na praia do mar Jónico. O que corria e corria
com afã; eu, impelido também pelo povo cheguei numa larga
praça, no meio da qual vi um homem atado aos pés e atados
a uma cruz de forma estranha. O povo dizia: André, o
cristão, um gênio; vede, vede que cruz que inventou par que
lhe sirva de suplício. E o verdugos queimavam com bárbara
complacência o corpo do apóstolo. Oh! Dois dias com suas
noites durou aquele bárbaro tormento, até que enfim a morte
pôs termo a tanta dor. Eu sai então da cidade impelido
sempre pela voz aterradora que já cinquenta anos me ressoa
no fundo da alma. Andei muito, dia e noite sem cessar, e
cheguei à região da Frígia na Ásia Menor. Mas apenas
penetrei numa cidade, vi um homem coberto de sangue, com
os dolorosos olhos no céu e as mãos cruzadas sobre o peito;
parecia confundamente embevecido numa oração, e outros
homens desapiedados que arremessavam enormes pedras

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sobre ele. Era Filipe, o apóstolo de Jesus. Horrorizado,
abandonei aquela terra, e depois de andar muito cheguei à
Pérsia, e na cidade de Sauster, Simão e Tadeu, que nunca se
tinham separado, morriam também apedrejados, com as
palavras do Evangelho nos lábios. Da Pérsia dirigi-me a
Roma. Ali o feroz e covarde Domiciano soube que um
homem chamado João, judeu de nação, pregava o Evangelho,
mandou-o deitar numa caldeira de azeite a ferver. Aquele
homem sorria e saiu ileso daquela horrível prova. O verdugo,
envergonhado, mas não convencido daquele milagre,
desterrou o apóstolo para a ilha de Patinon. Este mártir
chamava-se João em outro tempo.
O peregrino que tinha escutado com assombro a crônica
do ancião, olhava-o cheio de curiosidade. Aquele homem
tinha alguma coisa sobrenatural. A um tempo inspirava
respeito e lástima. De repente, o ancião sentado e com
cabeça pendida para o peito, ergueu-se com se uma víbora
houvesse mordido no coração. Pôs-se em pé e, empunhando
o bordão, levantou os olhos ao céu com dolorosa expressão.
Seus lábios agitaram-se como que propunha uma súplica em
voz baixa. Pouco a pouco seu melancolico semblante foi-se
reanimando e por fim exalando um suspiro disse, frisando os
olhos do peregrino.
- Irmão, a misteriosa voz do anjo, manda-me prosseguir
meu interrompido caminho. Vamos separar-nos para sempre,
mas antes dize-me o teu nome, para que este momento de
trégua que Deus me concedeu no cume do Calvário, nunca se
apague da minha mente.
O peregrino preocupado com a palavra do ancião, disse
com voz insegura:
- Em outro tempo, quando eu era moço, quando apenas
a barba me apontava no rosto, chamava-me Boanerges ou

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Cisne da Galiléia mas quando perdi a esperança do meu
coração, quando minha querida mãe soltou, poucos dias
depois da morte de Jesus, o último suspiro nos meus braços
fiz-me cristão. Pedro lançou-me sobre a cabeça as águas do
batismo, e comecei a percorrer as tribos pregando a fé de
Cristo ao som da minha citara; hoje chama-me o Cantor do
Evangelho.
- Não aparte Deus de ti a sua santa misericórdia, disse
o ancião d
dispondo-se a abandonar o Gólgota.
- Espera , tornou o peregrino, antes de nos separar-
nos dize-me por tua vez, porque nunca se detêm as
tuas plantas intranquilas.
- Eu sou Samuel Beli-Beth, o maldito de Deus, o
homem mortal destinado a vaguear eternamente e
ouvindo sem cessar como agora, nos ouvidos a
aterradora voz do anjo que me repete
continuamente: - anda, anda, anda! – até a
consumação dos séculos. Os séculos futuros me
conhecerá com o nome de Judeu Errante.
O peregrino ficou aterrado porque aquelas palavras
foram pronunciadas com um voz espantosa.
O ancião empreendeu a interminável jornada, e
descendo do cume do Calvário sem entrar na cidade passou
ao longe da muralha, deixando à esquerda o Monte Acra, o
sepulcro de Jesus, a torre Ípica e o palácio de Davi.
Quando se achou no caminho de Belém dirigiu os
passos para os desertos areais da Iduméia.
O peregrino, reposto um tanto do assombro que aquele
homem maldito lhe causara, desprendeu a citara do ombro, e
levantando os olhos ao céu, como se dela esperasse a
inspiração, entou um hino de louvor ao Mártir do Calvário.

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FIM

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