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Aspectos fundamentais da obra

A condição humana de
Hannah Arendt
Marciano Guerra*

Resumo: O presente artigo tem como objetivo compreender aspectos fun-


damentais trabalhados pela filósofa e pensadora política Hannah Arendt
na obra A condição humana. São apresentadas suas compreensões sobre
a vita activa e três atividades humanas fundamentais: o labor, o trabalho
e a ação. Essas condições coincidem e diferem em diversos momentos
e contextos com as distinções entre a esfera pública e a esfera privada,
também objeto deste estudo.

Palavras-chave: Hannah Arendt. Vita activa. Labor. Trabalho. Ação.

A filósofa e pensadora política Hannah Arendt (1906-1975) realizou


um percurso que está intrinsecamente ligado ao século XX. Por viver na
Alemanha e ser de origem judaica, pôde experimentar concretamente
o que aquele século produziu. As duas grandes guerras e os totalitaris-
mos de Hitler e Stalin desencadearam nesta pensadora a inquietação por
compreender mais sobre o ser humano, seus limites e condições. Cada
uma de suas obras tem presente estas e outras realidades históricas con-
cretas, iluminando-as com a análise no campo das ideias e vice-versa.
*  Bacharel em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Graduando em
Teologia pela PUCRS. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.

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Assim, os fatos históricos iluminam a compreensão das ideias de um
determinado tempo histórico.
Esse intento de Arendt é largamente reconhecido e necessariamen-
te consultado quando da tentativa de compreensão do século XX ou de
outros elementos de sua abordagem, como a questão do trabalho. Uma
de suas principais obras chama-se The Human Condition [A condição
humana] e foi publicada em 1958. Trata-se de um texto cuja pesquisa en-
volve diversas áreas do conhecimento, como a Filosofia, a História Geral,
a História das Ideias, a Ciência Política. A seriedade e estilo próprio das
reflexões arendtianas nesta obra são de relevância para o campo da his-
tória da filosofia, da antropologia e da filosofia política atual. Seu con-
teúdo contém análises da polis grega e da res publica romana, bem como
uma densa pesquisa acerca do labor, do trabalho e da ação e, por fim,
uma interessante abordagem da modernidade.
A presente pesquisa quer trazer alguns aspectos fundamentais do
pensamento arendtiano contido nesta obra, sem a pretensão de esgotar
as múltiplas questões por ela levantadas. Trata-se de um exercício de
compreensão e interpretação sempre necessário ao fazer filosófico.

Vita activa e condição humana

Logo no início do livro A condição humana, Hannah Arendt faz


uma afirmação emblemática, que se constitui no cerne de sua antropo-
logia e de onde se pode partir para compreender sua filosofia política.
Duas categorias aparecem aqui e podem ser apresentadas por meio das
expressões vita activa e condição humana.

Com a expressão vita activa, pretendo designar três atividades


fundamentais: labor, trabalho e ação. Trata-se de atividades fun-
damentais porque cada uma delas corresponde uma das con-
dições básicas mediante as quais a vida foi dada ao homem na
Terra (2003, p. 15).

Na sua acepção original, que remonta à filosofia política grega, a


expressão vita activa se refere a uma vida de dedicação aos assuntos pú-
blicos e políticos. Segundo Arendt, para Aristóteles (382-322 a.C) exis-
tiam três modos de vida (bioi) que podiam ser escolhidos livremente.

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São eles: a vida dos prazeres do corpo; a vida dedicada aos assuntos da
polis, na qual a excelência produz belos feitos; e a vida do filósofo, dedi-
cada à contemplação e investigação das verdades eternas. Nos dois últi-
mos casos, trata-se de uma existência dedicada ao que não é necessário
à vida imediata do ser humano e, nesse sentido, não é útil. A vida na
polis – chamada de bios politikos – dava-se através da ação e era verda-
deiramente livre, diferente da vida ocupada com as funções do trabalho
e do labor, que nesse contexto grego eram menos dignas (2003, p. 20-21).
Posteriormente, quando a cidade-estado grega deixou de existir,
a expressão vita activa passou a denotar todo tipo de envolvimento nas
coisas “deste mundo”, como um mal necessário à vida terrena dos hu-
manos. A contemplação passou a ser superior à ação e somente ela era
um modo de vida realmente livre. Pode-se dizer que, num certo sentido,
esta última ideia tem origem antiga, que antecede o fim da polis. Já Pla-
tão (427-347 a.C.), para quem a vida na polis deve ser dirigida pelo filó-
sofo e serve para que seja possível o modo de vida filosófico, antecipou
a tese do primado e da superioridade da vida contemplativa (ARENDT,
2003, p. 22).
Até a modernidade predominou essa noção negativa da vita activa,
em que a contemplação recebeu uma conotação de superioridade por
dirigir-se ao que está além daquilo que é realizado por mãos humanas
e, portanto, imperfeito, por oposição ao kosmos eterno, perfeito e orde-
nado. A vita activa passou a ser considerada como constituída pelas ati-
vidades dedicadas ao cuidado com as necessidades e carências do corpo
vivo para que a pessoa pudesse dedicar-se, em completo repouso e sem
perturbações, à contemplação (ARENDT, 2003, p. 24). Mas Arendt quer
rever isso. Não pretende empregar essa expressão com o mesmo sentido
que vêm sendo usado na tradição.

Se o uso da expressão vita activa, tal como aqui proponho, está


em manifesto conflito com a tradição, é que duvido, não da va-
lidade da experiência que existe por trás dessa distinção [entre a
vita activa e a vita contemplativa], mas da ordem hierárquica que
a acompanha desde o início (2003, p. 25).

O modo de articular as noções de vita activa e vita contemplativa


usado por Arendt, não quer, segundo ela, desvalorizar as concepções
anteriores e a importância que exerceram na tradição filosófica. Sua

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utilização procura questionar a posição que a contemplação assumiu
numa hierarquia tradicional de valores, obscurecendo as diferenças e
manifestações da vita activa. A vita contemplativa entendida como um
princípio global e central que prevalece sobre todas as atividades do ho-
mem é o que esta pensadora pretende desmantelar, estando a vita activa
numa posição nem superior nem inferior (2003, p. 26).
Já com a expressão condição humana, Hannah Arendt não está
falando apenas daquilo que é dado ao homem enquanto natureza hu-
mana. Ela procura designar aquilo que atua como força condicionante
sobre a vida humana. Veja-se esse trecho:

Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual en-


tram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua
existência. O mundo no qual transcorre a vita activa consiste
em coisas produzidas pelas atividades humanas; mas, constan-
temente as coisas que devem sua existência aos homens também
condicionam os seus autores humanos (2003, p. 17).

Isso significa que aquilo que o ser humano cria ou que toca sua
vida acaba por assumir um caráter de condição da existência humana.
Ao mesmo tempo, os homens acabam por se condicionarem às coisas.
Sem elas a existência humana não teria sentido; nem as coisas o teriam
se não fossem condicionantes da existência humana. Tudo que adentra
o mundo humano torna-se parte da condição humana e é sentida como
força condicionante (ARENDT, 2003, p. 17). O importante aqui é levar
em conta que Arendt concebe o mundo enquanto objetivo e circundante
de cada pessoa sem o qual essa pessoa não teria sentido e nem mesmo
poderia ser imaginada sem o que está ao seu redor. Exatamente por isso
são condições de sua existência.
Usando a expressão condição humana, Arendt não está falando
em natureza humana. Os aspectos que ela apresenta como constitutivos
da existência humana como trabalho, labor, ação, razão e pensamento
não podem ser chamados de características essenciais, sem as quais o
ser humano deixaria de sê-lo. Mesmo vivendo em outro planeta – uma
possibilidade visualizada hipoteticamente por ela em meados do século
passado – as características citadas acima perderiam sentido; permane-
ceria como parte da natureza dos seres humanos apenas o fato de que
são condicionados. Apesar de poder demonstrar, conhecer e definir to-

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das as coisas que rodeiam ao ser humano é muito difícil afirmar que isso
seja possível a respeito dele próprio: “seria como pular sobre nossa pró-
pria sombra” (2003, p. 18). Para a questão da essência humana, ampla-
mente discutida na tradição filosófica, Arendt concorda com Agostinho
(354-430), de que apenas Deus, como criador, é que poderia esclarecer
(ARENDT, 2003, p. 18).
Mesmo o que se entende como parte da condição da existência hu-
mana – natalidade e mortalidade, a própria vida, a pluralidade e outros
– não pode ‘explicar’ o que o ser humano é. Para Arendt, isso se deve ao
fato de que esses elementos jamais condicionam o homem de modo ab-
soluto. A filosofia já pensava dessa forma. A ciência também demonstra
esse fato ao colocar-se de um ponto de vista universal, fora da Terra1, e
ao perceber que, embora o ser humano se encontre sob condições terre-
nas, não é uma mera criatura terrena (2003, p. 19).

O labor

Trabalho e labor2 são tidos por Arendt como elementos diferentes


na condição humana. John Locke (1632-1704), no Segundo Tratado sobre
o governo, seção 27, usa os dois termos diferenciando-os: “o labor do
nosso corpo e o trabalho de nossas mãos”. Todavia, essa distinção quase
não é encontrada na tradição pré-moderna e esses termos normalmen-
te são usados como significando a mesma coisa. Segundo a pensadora,
pode-se recorrer aqui à linguagem, sobretudo a linguagem ordinária,
como depositária de experiências, de atividades e articulações (AMIEL,
1997, p. 61). O fato de que em diversas línguas existem “duas palavras

1  Arendt atribui essa noção da ciência a invenção do telescópio que permitiu ao ho-
mem, mesmo com os pés nesse planeta, pensar de modo universal. Assim, ações na
terra poderiam ser moldadas a leis cósmicas (2003, p. 276).
2  Segundo C. Lafer, o termo labor indica uma ideia de tarefas penosas, que cansam.
Etimologicamente, a palavra trabalho parece designar melhor o que Arendt chama
de labor. Trabalho viria do latim tripalium derivativo de tres e palus (três paus), um
aparelho que se destinava a ferrar animais que não queriam se sujeitar. Portanto,
tripaliare (trabalhar) significava torturar com o tripalium. Outro sentido que vem
do baixo latim é trabaculum, do latim trabs que significa trave ou viga também
usada para ferrar animais. De qualquer forma, conclui Lafer, o termo labor se re-
fere a trave “que todos nós carregamos na penosa e sisífica labuta de lidar com a
necessidade” (1979, p. 30).

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de etimologia diferente para designar o que para nós, hoje, é a mesma
atividade” (ARENDT, 2003, p. 90) é testemunho que aponta para um
entendimento diferente em relação a esses dois conceitos.
O labor, segundo S. Schio, é a “mais natural, a menos mundana e
a mais provada das atividades” (2006, p. 164). Ele corresponde à manu-
tenção do processo biológico do corpo humano e, portanto, não possui
nem começo e nem fim. A sua função não é produzir objetos, embora
isso até possa ocorrer esporadicamente. O labor ocupa-se com os meios
da própria reprodução da vida: ocupa-se em produzir vida.
Na antiguidade, os responsáveis por essa dimensão da vida eram
os escravos. Hannah Arendt explica que os historiadores costumam
afirmar que o labor era visto com desprezo por ser realizado pelos es-
cravos. Todavia, para os antigos, o raciocínio era outro. A escravidão se
justificava e era defendida por ser indispensável que determinados in-
divíduos cuidassem das necessidades da vida. A escravidão estava, por-
tanto, sujeita à própria condição da vida humana. A liberdade só podia
ser conquistada nessas condições: subjugando outros para que ficassem
escravos de suas próprias necessidades e de seus senhores (2003, p. 94).
A existência de escravos na civilização berço da filosofia, portanto, não
tinha por objetivo a obtenção de mão de obra barata, como ocorre com
a escravidão recente, por exemplo. Seu objetivo era possibilitar a elimi-
nação do ônus que as carências elementares da vida, como fome e sede,
impõem a todos. Enfim, os escravos eram os responsáveis por garantir
apenas o consumo da casa e não produziam em grande escala para a
sociedade em geral (ARENDT, 2003, p. 131).
A distinção entre o trabalho e o labor, confundida ou ignorada ao
longo do pensamento político e, como foi dito, conservada por muitos
idiomas, torna-se “apenas uma diferença de grau quando não se leva em
conta o caráter da coisa produzida” (ARENDT, 2003, p. 105). Um exem-
plo disto emerge do olhar para o pão e para a mesa. O pão que normal-
mente permanece no mundo por um dia e a mesa que pode ultrapassar
uma geração. Essa distinção entre as coisas produzidas, frutos do labor
e do trabalho, respectivamente, é mais óbvia do que a tentativa de dife-
renciação que partisse do padeiro e do marceneiro. Essa diferença entre
trabalho e labor mostra que são os produtos do primeiro que garantem
a permanência e durabilidade das coisas do mundo. E entre esses pro-
dutos é que se encontram os bens necessários a sobrevivência dos indi-

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víduos. Ou seja, entre os frutos do labor – que não têm uma estabilidade
própria e que surgem e logo desaparecem por serem consumidos – estão
os produtos do trabalho que dão familiaridade e sentido de permanên-
cia dos homens com as coisas e entre si (ARENDT, 2003, p. 106).
Os frutos produzidos pelo animal laborans – animal que labora –
são geralmente de curta duração. A natureza tem um ciclo em que as coi-
sas são produzidas, mesmo que pelo homem, e logo consumidas. Mesmo
o que é chamado de nascimento e morte, para esse ciclo natural não exis-
te. No mundo humano é que esse movimento aparece como crescimento
e declínio: “somente quando ingressam no mundo feito pelo homem po-
dem os processos da natureza ser descritos como crescimento e declínio”
(ARENDT, 2003, p. 109). Diferente do trabalho, que termina quando
o objeto está pronto, o labor é incessante e acontece como movimento
infinitamente repetitivo. O fim só chega quando acontece a morte bioló-
gica desse organismo vivo.

O trabalho

Ao ambiente natural, no qual o homem está envolvido, é acres-


centado um mundo “artificial” de coisas. O trabalho é a atividade que
o produz e que corresponde ao artificialismo da existência humana
(ARENDT, 2003, p. 15).
Para Hannah Arendt, o trabalho produz coisas que dão objeti-
vidade à vida humana e tem por função a estabilização desta vida. A
objetividade vem do fato de as coisas terem durabilidade. Mesmo tendo
sido produzidas por consumidores, elas não são consumidas e, embora
numa situação em que são abandonadas voltem ao ciclo natural, elas são
antes, pelo uso, desgastadas. Estabilizam a vida porque, diante de con-
sumidores vorazes em que o ciclo da natureza tudo absorve, os homens
podem reaver sua identidade no contato com os objetos que não variam.
Mas tratando-se do ser humano – um ser cuja natureza é consumir –
pode-se ver a existência de certo elemento de consumo no desgaste dos
objetos (2003, p. 149-151). As roupas, por exemplo, poderiam confun-
dir essa diferenciação ao dar a impressão de um consumo mais lento.
Arendt responde que a “destruição, embora inevitável, é acidental com
relação ao uso, mas inseparável do consumo” (2003, p. 151).

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A produção do homo faber – homem que faz ou fabrica – altera o
reino da natureza, na medida em que o material necessário já é retirado
de sua localização natural. O trabalho contém um elemento de “viola-
ção e violência”. O homem apresenta-se como amo e senhor da terra,
numa compreensão de que só constrói um mundo humano na medida
em que promove a destruição do que fora criado por Deus (ARENDT,
2003, p. 152). Schio confirma que o uso de violação e violência é inerente
ao processo de fabricação. Todavia, essa intervenção possui uma justifi-
cativa: o fim a que este trabalho está visando, ou seja, todo processo de
produção está organizado em vista de se tornar um produto, de “possuir
um lugar no mundo, oriundo de sua utilidade” (2006, p. 167).
Nessa relação de tensão entre as forças devastadoras da natureza e
o uso violento de uma força humana é que o homo faber sente-se satis-
feito e seguro de si mesmo, por sentir que consegue dominar a natureza.
Ele realiza o processo de reificação, de transformação daquilo que está
na natureza em coisas do mundo humano. A solidez das coisas resulta
da força empregada pelo homem: “E não é simplesmente tomada de em-
préstimo ou colhida como dádiva gratuita da natureza eternamente pre-
sente, embora fosse impossível sem o material arrancado da natureza. A
solidez já é um produto do homem” (ARENDT, 2003, p. 153).
A análise do homo faber permite sua caracterização como faze-
dor de instrumentos e utensílios. Esses instrumentos são utilizados no
labor para dar a ele mais tranquilidade e agilidade. Os instrumentos e
ferramentas usadas pelo animal laborans representam a estabilidade
e durabilidade do mundo, em meio ao seu processo de intenso consu-
mo, destruição e instabilidade (ARENDT, 2003, p. 157). Na fabricação,
a relação entre meios e fins pode entrar numa cadeia em que todo fim
pode ser meio em outro contexto. Basta ver que o processo do traba-
lho é organizado em vista dos produtos, que nesse momento são fins.
Todavia esses produtos tornam-se meios na medida em que podem ser
trocados ou utilizados para tornar a vida mais confortável, por exemplo,
uma cadeira. Para o homo faber, o mundo estritamente utilitário tende
a fins de curta duração, para que logo se tornem meio para outros fins
(ARENDT, 2003, p. 166-167). Mas Arendt aponta o problema de uma
mentalidade utilitarista, que se “perde na cadeia intermediária de meios
e fins sem jamais chegar a algum princípio que possa justificar a catego-
ria de meios e fins, isto é, a categoria da própria utilidade” (2003, p. 167).

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A resolução desse problema só se faria com a afirmação de algu-
ma coisa que fosse “um fim em si mesma”. Segundo a autora, a saída
para esse dilema de meios e fins normalmente usada é colocar o homem
como fim último, o homo faber cria um utilitarismo antropocêntrico,
em que o homem dá o significado das coisas e põe termo a essa cadeia
infindável. É o que fez Immanuel Kant (1724-1804) quando argumen-
tou ser o homem nunca um meio, sempre um fim. Todavia, apesar de a
preocupação kantiana ser a de colocar um fim à categoria de meios e fins
e afastar essa compreensão da ação política, é inegável que essa fórmula
tem origem no pensamento utilitário. Ele se deixa levar ainda pela pos-
sibilidade de resposta do dilema – meios e fins – a partir de “um fim em
si mesmo”. Enfim, o dilema permanece na medida em que,

embora somente a fabricação, com seu conceito de instrumento,


seja capaz de construir o mundo, esse mesmo mundo torna-se
tão sem valor quanto o material empregado – simples meio para
outros fins – quando se permite que os critérios que presidiram
o seu nascimento prevaleçam depois que ele foi estabelecido
(ARENDT, 2003, p. 169).

Mais que isso: na medida em que todas as coisas, hora ou outra, se


tornam meios, elas perdem seu valor próprio, independente. A própria
natureza perde seu valor por não ser dotada de reificação advinda do
trabalho. Mas Hannah Arendt alerta que isso não vem diretamente do
processo de fabricação, já que esse tem sim um fim, o de obter um pro-
duto acabado, com existência própria. Essa categoria de meios e fins só
está presente quando se produz apenas objetos de uso, em que o produ-
to acabado se torna meio; ou quando o processo vital do ser humano se
apodera das coisas e as utiliza enquanto meio para seus fins (2003, p. 170).

A ação

A ação é apresentada por Hannah Arendt como atividade consti-


tutiva da vita activa. A pluralidade é condição correspondente à ação.
Pode ser observada no fato de que não apenas um Homem habita a Ter-
ra, mas os homens vivem na Terra e habitam o mundo. O que caracteri-
za a condição da pluralidade é seu aspecto de igualdade e de diferença.

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Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreen-
der-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o
futuro e prever as necessidades das gerações vindouras. Se não
fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os
que existiram, existem e virão a existir, os homens não precisa-
riam do discurso ou da ação para se fazerem entender (ARENDT,
2003, p. 188).

Ser igual significa que os homens podem, em suas ações e discur-


sos, compreenderem-se entre si, decidir algo que seja comum. A diferen-
ça relaciona-se com a alteridade na medida em que o ser humano se dis-
tingue quando está frente a outros. Apesar de a diferença estar presente
em outras formas de vida, o ser humano é o único capaz de exprimir
essa diferença, comunicando não apenas coisas, mas a si próprio. Por-
tanto, para Arendt, a alteridade – que o homem tem em comum com
aquilo que existe – e a distinção – também partilhada com tudo o que
vive – torna-se singularidade. Esse raciocínio é concluído pela autora na
afirmação da pluralidade humana como “paradoxal pluralidade de seres
singulares” (2003, p. 189). A singularidade dos seres humanos é mani-
festada no discurso e na ação. Essa manifestação permite que eles se
mostrem por sua iniciativa. A autora não entende a vida sem discurso e
sem a ação, o que não ocorre com as outras atividades da vita activa. Os
seres humanos até podem viver sem trabalhar, obrigando que outros o
façam para si ou usando as coisas sem nada acrescentar a elas. Todavia,
uma vida sem discurso e ação seria considerada “morta para o mundo;
deixa [ria] de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre os
homens” (2003, p. 188-189).
A reflexão política arendtiana considera a natalidade, entendida
não em sentido biológico, mas político, um conceito central (LAFER,
1979, p. 29). Segundo Schio, a natalidade é uma condição para ação,
quando permite o início de uma vida que não existia antes. Portanto, “a
natalidade não permite apenas a continuidade da espécie, pois adquire
um cunho político ao permitir a renovação de ideias no convívio públi-
co” (2006, p. 173), ela significa as novas iniciativas, as novas propostas, o
nascimento de algo novo através da ação.
Agir relaciona-se com o “tomar iniciativa”, “iniciar”. Em grego, cor-
responde a palavra archein que significa “começar”, “ser o primeiro”. Em
latim, o termo agere refere-se a “imprimir movimento a alguma coisa”.

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Por isso que a ação é relacionada com a natalidade e é expressão dela
pela medida que cada nova ação representa um novo nascimento. Agos-
tinho chegou a dizer que “o homem foi criado para que houvesse um
começo, e antes dele ninguém existia” (AGOSTINHO apud ARENDT,
2003, p. 190). Ou seja, com o homem acontece o início, não do mundo
nem de uma coisa, mas o início de quem é um iniciador, de quem traz a
noção de início (2003, p. 190). Com o ser humano é possível afirmar que
se pode “esperar o inesperado”. O novo da ação ou aquilo que não podia
ser previsto surge em confronto com o estabelecido, ou com aquilo que
se costuma ter como certo. Cada nascimento é a certeza de que algo de
singularmente novo está surgindo.
Ação e discurso são inseparáveis na medida em que ambos são
necessários para a manifestação de alguém que, quando chega, precisa
responder à pergunta “quem és?”. Ele se revela sempre pelas palavras e
atos. Sem discurso, a ação perderia seu caráter revelador e, nas palavras
de Arendt, perderia o seu sujeito. A ação é revelada pelas palavras. Os
atos tornam-se relevantes quando o autor, pela palavra, se identifica e
anuncia o que fez, faz e pretende fazer (2003, p. 191). A revelação do
homem enquanto aquilo que é está implícita naquilo que ele diz e faz.
Isso ocorre de um modo privilegiado na simples convivência humana.
Aí, na medida em que há uma pré-disposição a revelar-se, diferente de
quem pratica boas ações e procura se ocultar e daquele que é crimino-
so e pretende se esconder, os homens em geral inserem-se no âmbito
do cenário político. A ação requer “plena luz” para sua manifestação e
convivência. Do contrário, trata-se apenas da busca de meios e fins; ou
também de posicionamentos em que as pessoas se colocam ou a favor
ou contra outras e pretendem apenas alcançar seus objetivos contra os
inimigos. A palavra torna-se mera “conversa”, meio de alcançar um fim,
por exemplo, iludindo um inimigo (ARENDT, 2003, p. 193).
A ação cria o que a autora chama de “teia de relações”. Os homens
criam como que uma mediação subjetiva advinda do fato de que agem
e falam entre si. Há também a mediação objetiva, que surge quando os
agentes falam e agem sobre elementos físicos, mundanos, sobre coisas e
realidades concretas. Diferente disso, todavia, existe algo que, mesmo
em sua intangibilidade, se faz real tal como o mundo das coisas que
visivelmente o homem tem em comum. Esta teia está presente sempre
que houver seres humanos que convivem. Ela se constitui como o modo

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que um grupo humano se relaciona, vive suas vontades e conflitos. Toda
vez que alguém imprime uma nova ação sobre essa “teia” já formada se
“produz” uma nova história. Com intenção ou não o agente faz surgir
uma história porque já existe uma base real, que permite que também
a ação seja real: a teia de relações humanas. É a ação que torna possí-
vel que cada vida humana seja uma história, desde o nascimento até a
morte, e que a História seja um “livro de histórias da humanidade”. O
interessante é que a própria humanidade dificilmente pode ser aponta-
da como sujeito dessa história. Mesmo numa história em que pode ser
percebido um significado único, o que se pode fazer é “quando muito
isolar o agente que imprimiu movimento ao processo; e embora esse
agente seja muitas vezes o sujeito, o herói da história, nunca poderemos
apontá-lo inequivocamente como o autor do resultado final” (ARENDT,
2003, p. 197).
É por esse motivo que por diversas vezes os filósofos da História
procuram colocar na Providência, na natureza, no espírito do mundo,
ou em outras compreensões uma possível explicação para o problema de
que mesmo devendo sua existência aos homens, a História não é “feita”
por eles (ARENDT, 2003, p. 194-198).
A ação, enquanto responsável por desencadear novos processos,
também gera certa insegurança nos seres humanos. Arendt aponta ca-
racterísticas ou problemas da ação. São elas, especialmente, a irreversi-
bilidade e a imprevisibilidade que “acabam causando grande desconfor-
to entre os seres humanos, por não lhe permitir um controle sobre ela”
(SCHIO, 2006, p.171). Existem alguns recursos que, estando contidos
nas próprias potencialidades da ação, podem diminuir essas dificulda-
des que acabam levando muitos a afastarem-se dela:

A única solução possível para o problema de irreversibilidade


– a impossibilidade de se desfazer o que se fez, embora não se
soubesse nem se pudesse saber o que se fazia – é a faculdade
de perdoar. A solução para o problema da imprevisibilidade, da
caótica incerteza do futuro, está contida na faculdade de prome-
ter e cumprir promessas (ARENDT, 2003, p. 248-249).

A irreversibilidade advém das ações e suas consequências que fo-


gem ao controle daquele que desencadeou o processo, ou seja, aquilo
que foi iniciado não pode ser revertido. Se não houvesse a possibilidade

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do perdão nos negócios humanos, possivelmente os homens se veriam
sempre presos a algum ato ou palavra e, como suas vítimas, não pode-
riam continuar na convivência da mesma forma com os outros homens.
Diferente da vingança, que não coloca fim à transgressão inicial da ação,
o perdão tem algo de inesperado porque não se condiciona ao ato inicial,
mas liberta tanto aquele que perdoa como o que é perdoado (ARENDT,
2003, p. 248-254).
Diferente do perdão, que foi incorretamente entendido apenas em
sua conotação religiosa e considerado inadmissível na esfera pública, a fa-
culdade de prometer sempre teve seu espaço. A imprevisibilidade decorre
tanto da inconfiabilidade do homem que não pode garantir ser amanhã
o que é hoje e da impossibilidade de prever as consequências de um ato
em uma comunidade. A primeira é o preço que se paga pela liberdade e a
segunda é resultado da alegria de conviverem juntos num mesmo mundo.
A função da faculdade de prometer é justamente tentar colocar uma solu-
ção para estes dois problemas (ARENDT, 2003, p. 255-257).
Por conta dessas dificuldades inerentes à ação, ao longo da história
houve diversas tentativas de eliminá-la. Platão propunha o governo do
rei-filósofo e sua intenção era trazer para o corpo político aquela carac-
terística do homo faber de manipular sozinho a natureza e fabricar os
objetos, inclusive pela violência, conforme sua intenção. O governante
eliminaria assim a ociosidade de ações e opiniões que são constituintes
dos negócios humanos. A monarquia, em suas várias formas históricas,
tem esse objetivo de eliminação dos problemas concernentes à ação. As
formas de governo de um só homem, para Arendt, apresentam em sua
estrutura o “banimento dos cidadãos da esfera pública e a insistência
em que devem dedicar-se aos seus assuntos privados, enquanto um só, o
soberano, deve cuidar dos negócios públicos” (2003, p. 234).
A fuga da ação está presente tanto na história do ocidente como no
campo das ideias.

A fuga da fragilidade dos negócios humanos para a solidez da


tranquililade e da ordem parece, de fato, tão recomendável que a
maior parte da filosofia política, desde Platão, poderia facilmen-
te ser interpretada como uma série de tentativas de encontrar
fundamentos teóricos e meios práticos de evitar inteiramente a
política (ARENDT, 2003, p. 234).

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Diante desse contexto, Hannah Arendt responde que essas carac-
terísticas que fazem da ação irreversível e imprevisível são inerentes a ela
devido à pluralidade humana e que, portanto, não podem ser elimina-
das. Enfim, como afirma Schio, apenas com a ação, o discurso e o nas-
cimento o homem pode fugir da condenação à limitação dos processos
vitais. Somente porque podem perdoar e prometer é que eles não estão
sujeitos a processos automáticos. Apesar de morrer, o homem pode nas-
cer politicamente para iniciar algo de novo (2006, p. 179).

As esferas pública e privada

Em seus escritos Hannah Arendt toma experiências históricas e pro-


cura fazer o “exercício do pensamento político” (AMIEL, 1997, p. 9-10)
frente a esses acontecimentos. Na obra A condição humana ela trabalha a
vita activa nas formas do labor, do trabalho e da ação. Mas aborda esses
conceitos situando-os em seus lugares históricos. As esferas pública e
privada, bem como a esfera social, são analisadas ao longo do seu desen-
volvimento histórico na civilização ocidental.
A organização da vida na antiga Grécia, sua compreensão de ser
humano, e, a partir disso, a localização das esferas em que ele está situa-
do, são rico material das abordagens de Hannah Arendt.

A esfera da casa

A esfera privada se refere à casa (oikos, em grego) ou à família. Os


homens eram impelidos a essa esfera por estarem sujeitos às suas neces-
sidades e carências. Trata-se do cuidado com a manutenção da vida e
das necessidades corporais, ou como afirma Arendt, era a necessidade
que reinava como condição de sobrevivência da espécie. Isso engloba
a alimentação, o cuidado, a reprodução, a segurança, etc. Tanto o ho-
mem como a mulher tinham sua função: o primeiro, principalmente, a
direcionada ao suprimento dos alimentos; a segunda, sobretudo as ati-
vidades relacionadas com o cuidado da casa e à reprodução biológica.
Ambas as frentes, a alimentação e o parto, são constitutivas do labor,
porque são atividades exercidas no lar (2003, p. 40).

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O próprio significado original de “privado” enquanto “privação”
deve ser entendido na acepção de que o indivíduo encontra-se priva-
do, destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana. Isso
pelo fato da privação em ser visto e ouvido, ou da não possibilidade de
realizar algo mais permanente que a simples sobrevivência. Na medida
em que o homem está privado, ele é como se não existisse, porque não
se dá a conhecer (ARENDT, 2003, p. 68). A privação do lar está também
relacionada com o fato de mostrar ou não o que deve ser mostrado em
público. Para os antigos, o que deveria ser escondido era justamente o
que estava ligado ao processo corporal da existência e o relacionado com
a manutenção de suas necessidades. As duas categorias, de mulheres e
trabalhadores eram mantidas fora da vista pública porque se dedicavam
às funções corporais, seja das necessidades de sobrevivência ou carên-
cias físicas da espécie (ARENDT, 2003, p. 82).
A desigualdade estava presente e era constitutiva dessa esfera. Quem
comandava era o chefe da família e nada o limitava, nem lei ou justiça.
Ele exercia seu poder com autoridade: a mulher era como que sua pro-
priedade, bem como os escravos que se mantinham sobre suas ordens.
O chefe da família era o pater familias, o dominus, o senhor que co-
mandava, no dizer de Arendt, de um modo “perfeito”, muito mais que
qualquer tirano (ARENDT, 2003, p. 36). A sujeição às necessidades dava
ao chefe o direito de empregar a violência sobre os outros – os escravos,
por exemplo – para que elas pudessem ser supridas segundo seu enten-
dimento. E isso não deve ser confundido com a utilização política da
violência ou com as guerras, que também ocorriam. No contexto grego
o domínio ou submissão eram tidos como pré-políticos, mais próprio
da esfera privada. Na esfera pública deveria reinar a ação e o discurso.
E era dessa forma que a política se dava. A violência e a opressão, neste
sentido, estavam restritas ao lar, apenas ali poderiam ser usadas.

A esfera política

Se na esfera privada os homens estavam sujeitos ao labor e ao tra-


balho, lhes faltava o que era tido como a mais alta capacidade humana: a
ação. Estando sujeitos à “prisão” das necessidades, aqueles homens que

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conseguiam vencê-la poderiam participar da esfera pública da polis3.
Inclusive pode-se afirmar que a esfera pública só foi possível à custa da
esfera privada da família. Isso quer dizer que a participação na vida pú-
blica somente realizava-se para aqueles que haviam conseguido, além
de não estarem sujeitos ao labor indispensável à satisfação das necessi-
dades, serem donos de uma casa, possuir um lugar no mundo. Os que
não fossem “senhores” de uma casa, não poderiam participar da vida na
polis (ARENDT, 2003, p. 39). A liberdade era expressão dessa condição:
na medida em que se encontrava livre das necessidades do lar, o homem
poderia participar da esfera da liberdade na polis. Neste contexto, a pro-
priedade tinha uma função muito própria:

A propriedade significava nada mais nada menos que o individuo


possuía seu lugar em determinada parte do mundo e portanto per-
tencia ao corpo político, isto é, chefiava uma das famílias que, no
conjunto, constituíam a esfera pública. [...] A expulsão do cidadão
[da polis] podia significar não apenas o confisco de sua proprieda-
de, mas a destruição de sua morada (ARENDT, 2003, p. 71).

Anne Amiel analisa as características da esfera pública em seus


estudos sobre a obra de Hannah Arendt e explica os dois sentidos que
ela apresenta para o termo público:

O público seria, portanto, o lugar próprio, absolutamente reque-


rido, do viver conjuntamente, da pluralidade, portanto, da ação,
portanto da política. [...] Público significa 1 – o que acontece
em público, o que é julgado como sendo digno; 2 – o mundo
enquanto é comum, o intermédio que liga e separa os homens
(1997, p. 75-76).

3  O termo polis é utilizado para designar esse espaço, nas palavras de Aristóteles,
de co-participação de atos e palavras. Ela tem duas funções: possibilitar que haja
mais oportunidade de se obter fama imortal e remediar a futilidade da ação e do
discurso, presente antes da polis existir. Para Arendt, a polis não é, a rigor, “a cidade
estado em sua organização física”. Mas se trata da organização da comunidade no
agir e falar juntos, não importa onde estejam. A frase “não importa onde vás, serás
uma polis”, além de expressar uma afirmação sobre a colonização grega, expressa
a ação e o discurso entre pares que pode situar-se em qualquer tempo e espaço
(ARENDT, 2003, p. 209-211).

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Para essa primeira compreensão, Arendt usa a metáfora da luz.
No privado a existência se encontra como que na penumbra, na treva.
Todavia, na medida em que vem a público uma luz intensa ilumina os
acontecimentos. Somente aquilo que é tido como relevante para toda a
comunidade é aceito. O que não é, tem caráter de assunto privado. Aqui
não se trata de afirmar que tudo que está na esfera privada é irrelevante,
mas de esclarecer que há diferenças entre os conteúdos das esferas: o que
é comum e o que se refere à privatividade. Pelo contrário, há atividades
que requerem estar escondidas, pois a luz do público seria catastrófica
– o amor, por exemplo, se extingue se for trazido a público, já que não
deve ser usado para fins políticos. Já a segunda definição quer significar
que há um mundo comum de coisas e esse mundo é intermediário entre
aqueles que habitam em comum; ele não apenas separa, mas possibilita
a relação entre os homens.
A desigualdade, própria da casa familiar não mais fazia parte da es-
fera pública. O homem deixava o lar e podia ingressar na esfera política,
onde todos eram tidos como iguais. “Iguais”, neste contexto, tem pouco
a ver com o que hoje se entende por igualdade, já que essa igualdade na
esfera pública pressupunha uma “desigualdade” no privado. “Significa-
va viver entre pares e lidar somente com eles” (ARENDT, 2003, p. 42), já
que antes disso já haviam suprido suas necessidades entre desiguais no
lar, onde o chefe estava como que acima da mulher e dos escravos.
Somente na esfera pública era exercida a verdadeira liberdade. To-
davia não se pode confundir o moderno conceito de liberdade com sua
antiga compreensão. E, nas palavras de Lafer, Hannah Arendt entende a
liberdade em seu sentido antigo:

Liberdade, para Hannah Arendt, é a liberdade antiga, relaciona-


da com a polis grega. Significa liberdade para participar, demo-
craticamente, do espaço público da palavra e da ação. Liberda-
de, nesta acepção, e a política surgem do diálogo no plural, que
permite a palavra viva e a ação vivida, numa unidade criativa e
criadora (1979, p. 32).

Para Benjamin Constant a liberdade dos antigos tem suas caracte-


rísticas próprias:

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Consistia em exercer coletiva, mas diretamente, várias partes da
soberania inteira, em deliberar na praça pública sobre a guerra
e a paz, em concluir com os estrangeiros tratados de aliança, em
votar as leis, em pronunciar julgamentos, em examinar as con-
tas, os atos, a gestão dos magistrados; em fazê-los comparecer
diante de todo um povo, em acusá-los de delitos, em condená-los
ou em absolvê-los (1985, p. 11).

A liberdade era, portanto, o exercício coletivo de todas essas ações.


A participação política era sentida pelos antigos como que a essência
mesma da liberdade (ARENDT, 1972, p. 143). Somente agindo e discur-
sando o homem poderia ser considerado livre.
A busca por uma imortalidade terrena estava presente naqueles
que desfrutavam a possibilidade da esfera pública. Quando o ser hu-
mano entra no mundo pelo nascimento e o deixa para trás ao morrer,
ele sabe que esse mundo permanece, ou seja, muitos já passaram e mui-
tos irão ainda passar. O fato de ingressar no mundo público apresenta
igualmente esse desejo de permanência: primeiro, do próprio mundo co-
mum, com suas regras e leis que poderiam ultrapassar os séculos; depois,
o próprio desejo pessoal de que algo seu, ou algo que teve sua colabo-
ração permanecesse por mais tempo que sua vida terrena. A polis era,
portanto, “garantia contra a futilidade da vida individual, o espaço pro-
tegido contra essa futilidade e reservado à relativa permanência, senão à
imortalidade, dos mortais” (ARENDT, 2003, p. 66).
Junto à imortalidade advinda da participação na esfera pública,
o cidadão encontra certo esplendor e fama. Segundo Hannah Arendt,
na obra publicada postumamente A promessa da política, o homem se
expressa em sua opinião (doxa) sobre o mundo, assim como ele se lhe
revela.

Ela [a doxa] está relacionada à esfera política, que é a esfera pú-


blica na qual todo mundo pode aparecer e mostrar quem é. Afir-
mar a própria opinião fazia parte de ser capaz de mostrar-se, ser
visto e ouvido pelos demais. Este era, para os gregos, o grande
privilégio da vida pública e que faltava na privacidade da vida
doméstica, onde não se era visto nem ouvido pelos outros. [...] Na
privatividade se está oculto e não se pode aparecer nem brilhar;
consequentemente ali nenhuma doxa é possível (2008, p. 56).

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Neste sentido, o objetivo de Sócrates, presente em vários dos es-
critos de Platão, era ajudar os homens a trazer à luz da verdade aquilo
que toda pessoa potencialmente possui: a sua doxa (ARENDT, 2008,
p. 57). Fica bastante claro o significado da esfera pública destacado por
Hannah Arendt: a esfera de relações onde o homem pode aparecer, ma-
nifestar-se, ser conhecido.

Referências bibliográficas

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tuto Piaget, 1997.
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modernos. In: Filosofia Política, Porto Alegre, n. 2, p. 9-25, junho. 1985.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa:
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