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A reprodução da vida quotidiana

e outros escritos
fredy perlman
Textos Subterrâneos
textosubterraneos@riseup.net
www.textosubterraneos.pt
Tradução: Textos Subterrâneos
Revisão: Júlio Henriques
Grafismo: Textos Subterrâneos
Impressão: VASP-DPS
primeira edição: setembro de 2015
depósito legal: 398085/15
Textos extraídos e traduzidos da edição Anything Can Happen, Phoenix Press, Londres, 1992.
Este livro está escrito em desacordo ortográfico. A sua reprodução é completamente
livre e pode ser descarregado em formato digital em www.textosubterraneos.pt
Fredy Perlman, uma praxis da resistência
«Os homens acorrentados às suas actividades do dia-a-dia
só podem libertar-se através das suas actividades do dia-
a-dia. O problema é que as actividades que acorrentam os
homens são historicamente determinadas e a sua repro-
dução requer uma mera repetição; ao passo que as activ-
idades que os podem libertar têm de ser projectadas, a sua
realização exige actos criativos.»1

O percurso intelectual de Fredy Perlman (1934-1985) exprime de


forma muito eloquente a evolução do pensamento crítico (a que po-
demos chamar radical, que vai à raiz) decorrida entre o pós-guerra e
o nosso tempo, ao longo da travessia que vai da assunção iluminista
do progresso como categoria incontestável à desmontagem dos funda-
mentos dessa ideia de progresso. De início marxista «convencional»,
Fredy foi operando modificações nas suas análises e perspectivas a par-
tir da sua própria experiência prática, designadamente como estudante
e professor universitário, e dos novos conhecimentos que foi carreando
nas lutas sociais e em extensas leituras e releituras da História, que o
levaram a empreender uma crítica radical da industrialização e uma

1.  Fredy Perlman, «The Revolutionary Project», Black & Red n.º 6 ½, Detroit, Outono
de 1969.

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Fredy Perlman

importante reavaliação da história dos povos tribais ou sem Estado,


em particular nos seus dois últimos livros, o influente ensaio Against
His-Story, Against Leviathan (1983) e o romance The Strait (1988,
edição póstuma cujo 2º vol., incompleto, nunca foi editado).
Tendo em conta o modo artesanal como surge a presente colectânea
em português, vem a propósito citar um passo da nota ao leitor que
Perlman, em parceria com o ilustrador e seu amigo John E. Ricklefs, apôs
no seu primeiro livro, editado, como os restantes, por ele próprio: «Pedi-
mos-te […] que partilhes a nossa preocupação sobre a falta de meios de
comunicação livres num país onde a imprensa é um negócio. Segundo
cremos, tu e eu somos responsáveis pela concepção de formas de contor-
nar esta carência. Desejamos que te unas a nós na busca de uma impren-
sa livre e de uma literatura livre cujo único objectivo seja a comunicação.
Se partilhares a nossa preocupação, ou mesmo a nossa interpretação,
pedimos-te também que contribuas para que este livro seja reproduzido
e distribuído sem direitos, ou para que a tua própria interpretação do
problema seja reproduzida e distribuída isenta de direitos. Se assim fiz-
eres, leitor, a imprensa como um negócio terá sido contornada.2»
Fredy Perlman foi desde sempre um americano atípico. Nasceu em
Brno, na antiga Checoslováquia, em 1934, e em 1939 os pais, de ori-
gem judaica, donos de uma pequena fábrica de vestuário, tiveram de
emigrar, com ele e com o seu irmão mais novo, perante a iminência da
invasão dos Sudetas pelos exércitos nazis. Como no Panamá não con-
seguiram obter um visto para os Estados Unidos, foram para a Bolívia,
estabelecendo-se com um pequeno comércio em Cochabamba, onde
Fredy frequentou a escola primária, em língua espanhola, durante seis
anos; foi essa a sua segunda língua «materna» e ocorreu ali o seu pri-
meiro contacto com o mundo indígena americano ‒ quíchua, no caso
vertente. Em 1945 a família conseguiu emigrar para os Estados Unidos,
primeiro para o Alabama, depois para Nova Iorque, onde abriu um
modesto quiosque de guloseimas e publicações infanto-juvenis; pas-
sando para a língua inglesa, Fredy frequentou ali a escola secundária,

2.  Nota inicial do livro “The New Freedom”: Corporate Capitalism, Nova Iorque, 1961,
com um grande número de xilogravuras, a cores e a preto-e-branco, do seu amigo John
E. Ricklefs.

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fredy perlman, uma praxis de resistência

entre os 11 e os 15 anos. Posteriormente, em 1949, os Perlman muda-


ram-se para Lakeside Park, pequena cidade do Kentucky onde abriram
uma loja de utilidades domésticas.
Em 1951, com 17 anos, Fredy volta para Nova Iorque, para trabalhar
numa fábrica de fibra de vidro, regressando no Outono ao Kentucky
para prosseguir a escolaridade no ensino pré-universitário, onde teve
alguns professores europeus que muito o influenciaram. A sua ex-
periência do mundo laboral começou cedo, o que o levou a adquirir
uma grande sensibilidade prática, a reconhecer os meandros existen-
ciais do salariato e a rejeitar as proclamações meramente ideológicas,
tendo a certa altura declarado, já bem adulto, que o único ismo que
pessoalmente aceitava era o de violoncelista, arte musical que praticou
como empenhado amador.
Em 1953 foi para Los Angeles, trabalhando como jardineiro e inscre-
vendo-se, em estudos literários, na famosa UCLA (Universidade da
Califórnia), onde rapidamente se tornou co-editor do jornal estudantil
Daily Bruin (Urso Diário), que assumia posições anti-institucionais.
Mas Los Angeles e a UCLA foram um dos teatros de operações da «caça
às bruxas» lançada pelo senador McCarthy nos anos 50 e a repressão
atingiu os círculos que Fredy frequentava, entre os quais o Daily Bruin e
membros do Partido Comunista Americano, tendo então os cinco res-
ponsáveis do jornal decidido demitir-se e criar um jornal alternativo,
o Observer. Nesse período, Fredy pôde apreender, a expensas suas, a
dimensão do conformismo predominante também na instituição uni-
versitária e entre a massa dos estudantes, afastando-se em 1955 para
a Cidade do México, onde residiu durante alguns meses, trabalhando
num restaurante mexicano.
No fim desse ano regressa à Universidade do Kentucky, em Lexing-
ton, onde se diploma com notas elevadas, para não perder a bolsa. Em
Outubro de 1956 volta para Nova Iorque, ingressando na célebre Uni-
versidade de Colúmbia. Como os professores de literatura o decepcio-
nam, passa a frequentar também aulas de ciências políticas e filosofia.
Um dos professores que nessa altura o influenciaram foi o sociólogo C.
Wright Mills, cujas aulas eram um misto de ira panfletária e análise pro-
funda da sociedade estado-unidense, e cujo comportamento holístico
contrastava com o da maioria do corpo docente; à sua obra dedicará

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Fredy Perlman

mais tarde, em 1969, um ensaio em que revela uma ambivalente apre-


ciação crítica. Em Janeiro de 1957 conhece nessa universidade Lorraine
Nybakken, sua futura companheira, com quem a partir daí partilhará
quase todas as suas actividades políticas e literárias. Aos 23 anos, Fredy
já optara por um rumo decididamente inconformista. Os três anos
que passa na UC, que o levam a apreender mais cabalmente os limites
constitutivos da universidade, inclusive das melhores, dedica-os tam-
bém ao estudo de matérias extraescolares e a acções de protesto, em
particular com o Living Theatre, fomentando a desobediência civil às
normas impostas pelo establishment, a oposição ao armamento nuclear
e o apoio à revolução em Cuba, chegando a ser preso numa acção de
rua. Durante esses três anos, Fredy viveu de trabalhos de dactilografia
e mimeografia.
Em Outubro de 1962, quando os mísseis soviéticos foram instala-
dos em Cuba, o nacionalismo e a histeria bélica exacerbaram-se entre a
população dos Estados Unidos e Fredy participou em diversas manifes-
tações contra uma possível intervenção militar americana. Nessas oca-
siões, a hostilidade da população domesticada mostrou-se por vezes tão
violenta que Fredy se sentiu francamente mal no «seu» país, decidindo,
com Lorraine e o seu amigo John Ricklefs, ir para a Europa.
Depois da Dinamarca, onde ficaram três meses, Fredy tentou tra-
balhar na Checoslováquia, seu país natal, mas o governo checoslovaco
encarou com grandes suspeitas aquele «estranho» casal de americanos
de esquerda e recusou dar-lhes a necessária autorização de residência,
tendo então ido ambos para Paris, onde constataram uma coisa curi-
osa: ao mesmo tempo que os franceses dificilmente se deslocavam ao
estrangeiro, os alemães, ex-ocupantes da França, visitavam este país em
grande número, parecendo a muitos parisienses ser errada a ideia de
que a Alemanha tinha perdido a guerra.
Como a situação económica em França tornou difícil a sua per-
manência ali, decidiram então ir para a Jugoslávia, gastando na viagem
quase todo o dinheiro que lhes restava. E a calorosa recepção que al-
gumas pessoas lhes manifestaram em Belgrado levou-os a mudarem-se
«definitivamente» para ali. Fredy foi contratado como locutor de in-
glês por uma empresa jugoslava que realizava documentários turísticos
e Lorraine pôde exercer a sua profissão de violinista e professora de

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fredy perlman, uma praxis de resistência

música, tendo-se ambos inscrito num instituto de línguas para apren-


der servo-croata (uma outra língua em que Fredy se tornará fluente
ao fim de um ano). A experiência jugoslava, que irá durar três anos,
revelou-se fecunda para os Perlman; Fredy inscreveu-se na Faculdade
de Economia, onde fez uma tese de mestrado intitulada As Estruturas
do Subdesenvolvimento, trabalho que estava ainda longe de pressagiar a
sua posterior visão crítica sobre a industrialização mas durante o qual
pôde perceber que os «socialistas científicos» defendiam sem reservas
os princípios americanos de gestão. Posteriormente, fez uma tese de
doutoramento, na Faculdade de Direito da Universidade de Belgra-
do, intitulada Condições para o Desenvolvimento de uma Região Sub-
desenvolvida, em que já punha em causa algumas das políticas oficiais
e que só pôde levar a cabo graças à protecção do seu orientador, Milos
Samardžija, influente professor de economia e grande conhecedor da
obra de Marx e dos teóricos marxistas. Na sequência dessa investi-
gação, no seu último ano na Jugoslávia, Fredy trabalhou como membro
da comissão de planeamento da administração regional de Kosmet,
«província» que o regime tratava então de «desenvolver», podendo
constatar que essa actividade de orientação tinha poucos efeitos reais.
Fredy e Lorraine, ao mesmo tempo que apreciaram profundamente a
vida que tiveram na Jugoslávia, graças às relações calorosas que ali esta-
beleceram com pessoas muito diversas, aos conhecimentos que adquiri-
ram e até à excelente comida do dia-a-dia, verificaram também que a
tão cantada autogestão operária era um artifício, travando amizade com
dissidentes do regime, em particular com Velimir Moraca (que acabará
por morrer na prisão, nos anos 70). No entanto, a saída dos Perlman
da Jugoslávia, em 1966, não foi motivada pela repressão, mas porque
Lorraine, na sequência de uma intervenção cirúrgica, fora aconselhada
a regressar aos Estados Unidos; e também porque a onda de contestação
e as lutas contra a guerra no Vietname tinham entretanto tornado os
E.U.A. um país muito mais atractivo.
Graças a uma recomendação de Milos Samardžija, que leccionara
nos Estados Unidos como professor convidado, Fredy foi nomeado
professor assistente de economia na Western Michigan University, em
Kalamazoo. Apesar disso, o primeiro ensaio que redigiu após o regresso
aos E.U.A. (Critical Education) foi uma análise demolidora do ensino

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Fredy Perlman

das ciências sociais nas universidades estado-unidenses e da fervorosa


confiança de muitos jovens na superioridade americana. Num outro
ensaio, não publicado, Corporate-Military Culture and the Social Sci-
ences, foi ainda mais longe, afirmando que as corporações empresariais
e os governos contemporâneos procuram impedir as formas de pensa-
mento crítico que acompanham o desenvolvimento da tecnologia. Em
Kalamazoo, Fredy continuou ainda a ser estudante, frequentando um
curso de língua russa, leu detidamente as obras de Marx e voltou a ler
os economistas clássicos. Em 1967, em parceria com Samardžija, tradu-
ziu para inglês um importante livro do ensaísta russo I. I. Rubin (Essays
on Marx’s Theory of Value), que prefaciou com o seu «Essay on Com-
modity Fetishism», texto editado depois separadamente nos E.U.A. e
traduzido em espanhol e italiano.
Mas na universidade de Kalamazoo, Fredy voltou a ver em acção
a «caça às bruxas», desta vez na pessoa de um seu colega, Bob Raf-
ferty, que criticava o nacionalismo e o racismo americano na guerra
do Vietname e não poupava os «sensíveis» professores bajuladores do
sistema imperial estado-unidense. Além de se solidarizar com o seu
colega, Fredy publicou, antes de abandonar a universidade, um ensaio
intitulado I Accuse this Liberal University of Terror and Violence. Nesse
seu último semestre, na última aula, ofereceu publicamente um anel
de ouro a um dos alunos, um jovem muito lido e empenhado nas lutas
sociais, como um desafio que lhe lançava. Aquele anel, que Fredy usara
durante três anos, viera-lhe de um revolucionário angolano, oferecido
pelo seu anterior usuário, um dissidente jugoslavo que vivia em Paris;
partilhá-lo era estimular um compromisso nas lutas fora da universi-
dade, criando um vínculo de solidariedade entre as pessoas que o tinham
usado. Aquela cerimónia foi a sua última comparência numa sala de
aulas americana, selando assim a sua curta carreira académica
Na sequência desse «encerramento», voltou à Europa, a Turim, para
três semanas de palestras sobre economia no Instituto Universitário de
Estudos Europeus, proferidas em francês. E teve a espantosa sorte de
chegar a Paris no início dos tumultuosos acontecimentos de Maio de
1968, experiência em que se envolveu profundamente, chegando a in-
tervir junto de trabalhadores estrangeiros em espanhol e em servo-croa-
ta (havia também muitos imigrantes jugoslavos em França). Nesse curto

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fredy perlman, uma praxis de resistência

período, apesar de haver pouco tempo para leituras, conseguiu ainda


familiarizar-se com os textos «heréticos» da Internacional Situacionista,
do anarquismo, da Revolução Espanhola e dos comunistas de conselhos.
Em Agosto, Fredy encontrou-se de novo em acções de rua, desta vez
em Chicago, onde pôde conhecer dissidentes das mais diversas para-
gens dos E.U.A., estabelecendo contactos e amizades com anarquistas,
membros dos IWW e do SDS (alguns dos quais se organizaram pouco
tempo depois no movimento de guerrilha urbana Weathermen)3.
De volta a Kalamazoo, onde continuavam a morar, Fredy e Lorraine
passaram a acolher muitos militantes andarilhos e visitantes europeus.
No final dos anos 60 a agitação centrava-se sobretudo na luta contra a
guerra no Vietname e no omnipresente racismo americano, que sus-
citou grandes revoltas, como os motins de Los Angeles em 1965 e de
Detroit em 1967, tendo o Black Action Movement começado a dispor
de coerentes porta-vozes que inspiravam respeito.
Foi nessa altura que Fredy, Lorraine e outros companheiros
começaram a publicar a revista mensal Black & Red, cujo primeiro
número, saído em Setembro de 1968, foi constituído pela análise dos
acontecimentos em França, redigida por Fredy em parceria com Roger
Grégoire, pró-situacionista francês que então vivia em casa dos Perlman.
Nos seis números da Black & Red que saíram em Kalamazoo, os outros
colaboradores eram todos estudantes da Western Michigan University
cujas actividades extraescolares tinham passado a ser predominantes; o
sumário da revista, além das suas criativas e contestatárias ilustrações,
incluía informações sobre a resistência e as revoltas na América do
Norte e na Europa, textos da Internacional Situacionista e análises da
sociedade contemporânea. As tarefas práticas de produção da revista
levaram-nos também a estabelecer contactos com outros colectivos, em
particular com o Radical Education Project (REP) do SDS, mas sem-
pre com uma abordagem muito crítica quando surgiam contradições

3. IWW, Industrial Workers of the World, ou Wobblies, movimento sindicalista-


revolucionário criado em 1905 nos E.U.A. SDS, Students for a Democratic Society,
organização criada no início dos anos 60 e que se desfez em 1969. Weathermen, nome
popular atribuído à Weather Undergound Organization, facção clandestina do SDS
criada em 1969 e cuja acção terminou por volta de 1977.

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Fredy Perlman

entre aquilo que era proclamado (pelo SDS, por exemplo) e o que era
concretamente realizado, questões que surgem no ensaio de Fredy The
Reproduction of Daily Life, redigido no último Inverno que passou em
Kalamazoo e que parece ter sido o mais lido de todos os que publicou,
inclusive em português (foi editado em Lisboa, em 1975, pela Textos
Exemplares, com o título A Reprodução da Vida Quotidiana). O ensaio
já referido, «I Accuse this Liberal University of Terror and Violence»,
saiu no n.º 6 da B & R: «Os liberais não são “moderados”. Essa é a sua
auto-imagem. São extremistas, mas, ao contrário dos reaccionários, são
extremistas com boa consciência. Os seus instrumentos não são “ide-
ias”, são terror e violência. Mas, ao contrário dos linchadores, os libe-
rais desviam os olhos para continuarem a passar por inocentes.»
Em Abril de 1969, Fredy saiu de Kalamazoo e voltou à Europa, onde
ficou quatro meses, dando duas séries de palestras no Instituto Univer-
sitário de Estudos Europeus de Turim, designadamente sobre as ori-
gens sociais e económicas dos guetos nos Estados Unidos. Depois, num
pequeno Fiat, viajou com Lorraine até à Jugoslávia. Em Belgrado coli-
giu muita informação sobre os protestos sociais e a revolta estudantil ali
ocorridos em 1968, encontrando-se com dissidentes da universidade e
com amigos e antigos colegas. Esse material permitiu-lhe escrever, ainda
na Jugoslávia, o ensaio Revolt in Socialist Yugoslavia, editado em 1973.
Os Perlman aproveitaram a possibilidade de dispor de um carro
para visitar velhos amigos em Paris, Francoforte, Florença, Londres,
Amesterdão, Oslo, Copenhaga. Nesse momento, eram ainda grandes
as expectativas geradas pelas revoltas que haviam eclodido em vários
pontos do mundo.
Em Agosto de 1969, Fredy e Lorraine passaram a morar em Detroit,
em parte porque nesta cidade, graças aos motins ali ocorridos, as ren-
das eram bastante mais acessíveis do que em Nova Iorque ou São Fran-
cisco. Fredy estabeleceu rapidamente contacto com diversos militantes
ou grupos políticos que se opunham ao militarismo do governo e ao
racismo da sociedade, mas o colectivo de Detroit a que ficou mais liga-
do foi o grupo da revista Fifth Estate (que é hoje a mais antiga pub-
licação anarquista americana). Fundada em 1965 como publicação
underground, a partir de 1969 relacionou-se com a comunidade radical
de Detroit e Fredy passou a ser um seu activo colaborador, entre outras

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fredy perlman, uma praxis de resistência

coisas com as suas competências dactilográficas, de editor e de impres-


sor, ao mesmo tempo que continuou a publicar a Black & Red.
Nos primeiros anos que viveram em Detroit, Fredy e Lorraine le-
varam uma vida «muito frugal». Lorraine dava aulas de matemática a
tempo parcial, Fredy auferia uma pequena reforma da universidade e
recorreu à previdência social, devido à sua grave doença cardíaca (con-
traída ainda em criança e que acabou por vitimá-lo aos 50 anos); aufe-
riu esse abono durante dez anos (até à chegada de Reagan ao poder)
sem quaisquer escrúpulos, considerando que as «regalias sociais» a que
os trabalhadores tinham direito eram conquistas sociais e não «dádi-
vas» do poder.
A criação de uma cooperativa gráfica, aberta a todos os activistas,
foi encarada por Fredy como um dos «actos criativos» a que apelava
nos seus escritos, tendo-se dedicado com grande energia a essa inicia-
tiva juntamente com muitos companheiros, defendendo que deveria
ser uma actividade livre de pagamentos. O material que tinham podido
adquirir era antigo, mas as diversas competências dos participantes fa-
ziam-no funcionar em condições. Duas das linhas de orientação diziam
assim: «O equipamento da Printing Co-op é propriedade social. É e
continuará a ser controlado por todas as pessoas que dele necessitem,
o usem e o mantenham. […] O propósito da Printing Co-op é provi-
denciar o acesso a equipamento de impressão a todas as pessoas da
comunidade que desejem exprimir-se elas próprias (numa base não lu-
crativa), sendo as despesas apenas as necessárias para manter a oficina
(renda, materiais, manutenção da maquinaria).» Quando o IWW res-
surgiu, no início dos anos 70, Fredy e outros cooperantes tornaram-se
membros deste singular sindicato, tendo ele então criado um emblema
para figurar nas publicações, com os seguintes dizeres: «Pela abolição
do trabalho assalariado. Pela abolição do Estado.»
Em Detroit, a revista Black & Red transformou-se numa editora,
decididamente artesanal. Um dos livros que saiu da gráfica com esta
chancela foi uma inspirada sátira intitulada Manual for Revolutionary
Leaders, redigido por Fredy em parceria com Lorraine mas publicado
sob o pseudónimo de Michael Velli (1ª ed. 1972). Essa arrasadora des-
montagem dos candidatos a exercer o poder de Estado foi apresentada
pelos autores como «uma síntese das ideias dos maiores líderes revolu-

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Fredy Perlman

cionários do nosso tempo. […] Velli extraiu estas ideias do contexto em


que começaram por surgir e integrou-as no Pensamento Único de que
cada uma delas é um mero fragmento.» Curiosamente, o livro, que teve
muito sucesso (com uma 2ª edição dois anos depois), foi levado à le-
tra por muitos dos seus leitores, militantes que visivelmente aspiravam
mesmo a ser líderes e a tomar o poder, revelando com isso não estarem
à altura da ironia.
Na cooperativa gráfica, Fredy tornou-se um editor, tipógrafo e im-
pressor cada vez mais exigente e talentoso. Editou todos os seus livros,
inclusive Letters of Insurgents, de 831 páginas (romance epistolar sob os
pseudónimos de Sophia Nachalo e Yarostan Vochek). O seu primeiro
livro, Plunder (Saque), de 1962, uma peça de teatro, já tinha sido com-
posto e editado por ele (a várias cores), em Nova Iorque, nas instalações
do Living Theatre.
Além dos títulos citados neste artigo, são de referir, na sua bibliogra-
fia, «Cold War Mythology» (The Minority of One, Julho de 1962); The
Incoherence of the Intellectual: C. Wright Mill’s Struggle to Unite Knowle-
dge and Action (Black & Red, Detroit, 1970), «The Machine Against the
Garden», Fifth Estate, Detroit, 1985.

Júlio Henriques

Quase todos os dados referidos neste artigo foram extraídos do brilhante livro de
Lorraine Perlman, Having Little, Being Much – A Chronicle of Fredy Perlman’s Fifty
Years, Black & Red, Detroit, 1989, que inclui oito páginas de fotografias.

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A reprodução da vida quotidiana
e outros escritos
Tudo Pode Acontecer
«Sejamos realistas, exijamos o impossível!»

Este slogan, criado por revolucionários no Maio de 68 em França,


desafia o senso comum, especialmente o «senso comum» da propagan-
da corporativo-militar americana. O que se passou em Maio desafia
também o «senso comum» oficial americano. Com efeito, em relação
ao «senso comum» americano, muito do que acontece hoje em dia no
mundo é impossível. Não pode acontecer. Se de facto acontece, então o
«senso comum» oficial é absurdo: é um conjunto de mitos e fantasias.
Mas como pode o senso comum ser absurdo? Isso é impossível.
Para demonstrar que tudo é possível, este ensaio irá comparar alguns
dos mitos com alguns dos acontecimentos. Irá depois tentar descobrir por
que razão alguns mitos são possíveis, ou seja, irá explorar a «base científi-
ca» dos mitos. Se for bem sucedido, este ensaio irá depois demonstrar que
tudo é possível: é mesmo possível que uma população transforme mitos
em senso comum e é possível que os criadores de mitos se convençam da
realidade dos seus próprios mitos face à própria realidade.

«Senso Comum» Americano

− É impossível que as pessoas governem a sua própria vida; é por


isso que não têm a capacidade de o fazer. As pessoas não têm poder

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Fredy Perlman

porque não têm a capacidade nem o desejo de controlar as condições


materiais e sociais em que vivem e decidir sobre elas.
− As pessoas querem apenas ter poder e privilégios umas sobre as
outras. Seria impossível, por exemplo, os estudantes universitários lu-
tarem contra a instituição que lhes assegura uma posição privilegiada.
Esses estudantes apenas estudam para ter boas notas, porque com boas
notas podem obter empregos bem pagos, o que significa a capacidade
de dirigirem e manipularem outras pessoas e a capacidade de consumi-
rem mais bens do que as outras pessoas. Se a aprendizagem não fosse
recompensada com boas notas, bons salários, poder sobre os outros e
montes de bens de consumo, ninguém quereria aprender; não haveria
motivação para aprender.
− Mesmo que os estudantes, os trabalhadores e os agricultores qui-
sessem algo diferente, a verdade é que se encontram claramente satis-
feitos com aquilo que estão a fazer, de outra forma não o fariam.
− Seja como for, aqueles que não se encontram satisfeitos podem
expressar livremente a sua insatisfação ao comprarem e ao votarem:
não têm de comprar as coisas de que não gostam e não têm de votar nos
candidatos de que não gostam. Para eles é impossível mudarem a sua
situação de qualquer outra forma.
− Mesmo que algumas pessoas tenham tentado mudar a situação de
uma outra forma, seria impossível unirem-se; iriam apenas lutar umas
contra as outras, porque os trabalhadores brancos são racistas, os nacio-
nalistas negros não gostam de brancos, as feministas são contra todos
os homens e os estudantes têm os seus próprios problemas específicos.
− Mesmo que se unissem, seria claramente impossível eles destru-
írem o Estado e a força policial e militar de uma poderosa sociedade
industrial como os Estados Unidos.

Os Acontecimentos

Milhões de estudantes por todo o mundo – em Tóquio, Turim, Bel-


grado, Berkeley, Berlim, Roma, Rio de Janeiro, Varsóvia, Nova Iorque,
Paris – lutam pelo poder de controlar as condições sociais e materiais
em que vivem e decidir sobre elas. Não são travados pela falta de desejo

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tudo pode acontecer

nem pela falta de capacidade; são travados pela polícia. Talvez se inspi-
rem noutros lutadores que se organizaram contra a polícia: os cubanos,
os vietnamitas...
Em Turim e Paris, por exemplo, os estudantes ocuparam as suas uni-
versidades e formaram assembleias-gerais em que todos os estudantes to-
maram todas as decisões. Por outras palavras: os estudantes começaram
a gerir as suas próprias universidades. Não para terem melhores notas,
porque acabaram com os testes. Não para terem empregos com salários
mais altos e mais privilégios, porque começaram a discutir a abolição
dos privilégios e dos empregos com salários altos; começaram a discutir
o fim de uma sociedade em que tinham de se alienar. E nesse ponto, por
vezes pela primeira vez nas suas vidas, começaram a aprender.
Em Paris, jovens trabalhadores, inspirados pelo exemplo dos es-
tudantes, ocuparam uma fábrica de aviões e trancaram o director. Os
exemplos multiplicaram-se. Outros trabalhadores começaram a ocupar
as suas fábricas. Apesar do facto de durante toda a vida terem depen-
dido de alguém que tomasse as decisões por eles, alguns trabalhadores
criaram comités para discutirem a gestão da greve em conformidade
com as suas próprias condições e não com as do sindicato, deixando
todos os trabalhadores decidirem – e alguns trabalhadores criaram co-
missões para discutirem a autogestão das fábricas. Uma ideia em que
normalmente não faz sentido pensar, porque é absurda e impossível,
tinha-se tornado subitamente possível e passou a ser interessante, de-
safiante, fascinante. Os trabalhadores começaram mesmo a falar da
produção de bens simplesmente devido ao facto de as pessoas necessi-
tarem deles. Estes trabalhadores sabiam que era «falso pensar que a po-
pulação é contra serviços públicos gratuitos, que os agricultores são a
favor de um circuito comercial cheio de intermediários, que as pessoas
mal pagas estão satisfeitas, que os “gestores” estão orgulhosos dos seus
privilégios [...]»1. Alguns trabalhadores da indústria electrónica entre-
garam equipamento gratuitamente aos manifestantes que se protegiam
da polícia; alguns agricultores entregaram comida gratuitamente aos
trabalhadores em greve; e alguns trabalhadores da indústria do arma-

1.  Mouvement du 22 Mars, Ce n´est qu´un début, continuons le combat, Paris, Maspero, 1968.

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Fredy Perlman

mento falaram em distribuir armas a todos os trabalhadores para que


estes se pudessem proteger do exército nacional e da polícia.
Apesar de toda uma vida de propaganda de mercado sobre o quão
«satisfeitos» os trabalhadores estão com os carros, casas e outros objectos
que recebem em troca da sua energia viva, os trabalhadores expressa-
ram a sua «satisfação» através de uma greve geral que paralisou toda a
indústria francesa durante mais de um mês. Depois de terem sido ensi-
nados durante toda a vida a «respeitar a lei e a ordem», os trabalhadores
infringiram todas as leis ocupando fábricas que não lhes «pertenciam»,
porque, como rapidamente ficaram a saber, os polícias existem para ga-
rantir que as fábricas continuem a «pertencer» aos proprietários capi-
talistas. Os trabalhadores ficaram a saber que «a lei e a ordem» é aquilo
que os impede de gerir a sua própria actividade produtiva, e que a «lei
e a ordem» é aquilo que têm de destruir para poderem governar a sua
própria sociedade. Os polícias apareceram logo que os trabalhadores
agiram sobre a sua insatisfação. Talvez os trabalhadores sempre tenham
sabido que os policias se encontram no pano de fundo; talvez seja por
isso que os trabalhadores pareciam tão «satisfeitos». Com uma arma
apontada às costas, quase todas as pessoas inteligentes se sentiriam «sa-
tisfeitas» ficando de mãos ao ar.
Em Paris e noutros lugares, os trabalhadores começaram a aceitar o
convite dos estudantes para irem aos auditórios da Universidade de Pa-
ris (na Sorbonne, em Censier, na Halle-aux-vins, nas Belas-Artes, etc.)
para falar sobre a abolição das relações monetárias e a transformação
das fábricas em serviços sociais geridos por quem faz e por quem usa os
produtos. Os trabalhadores começaram a expressar-se. Foi então que os
proprietários e os seus administradores ameaçaram com a guerra civil,
e que uma enorme maquinaria policial e militar foi implementada para
tornar a ameaça real. Com essa flagrante exibição de «forças da lei e da
ordem», o rei ficou momentaneamente nu: tornou-se visível para todos
a ditadura repressiva da classe capitalista. Perderam-se assim quaisquer
ilusões que as pessoas pudessem ter sobre a sua própria «soberania
consumidora» ou «poder de voto», quaisquer fantasias que pudessem
ter tido sobre a transformação da sociedade capitalista através da com-
pra e do voto. Sabiam que o seu «poder de aquisição» e «poder de voto»
significavam simplesmente servidão e consentimento em face de uma

20
tudo pode acontecer

enorme violência. A revolta estudantil e a greve geral na França (como


a revolta negra nos Estados Unidos, como a luta anti-imperialista em
três continentes) tinham simplesmente forçado a violência latente a ex-
por-se; e isso tornou possível que as pessoas avaliassem o inimigo.
Perante a violência do Estado capitalista, estudantes, trabalhado-
res franceses, trabalhadores estrangeiros, camponeses, os bem pagos
e os mal pagos, ficaram a saber que interesses serviam ao policiarem-
-se uns aos outros, temendo-se e odiando-se. Perante a violência crua
do opressor comum, as divisões entre os oprimidos desapareceram:
os estudantes deixaram de lutar por privilégios relativamente aos tra-
balhadores, juntando-se a estes; os trabalhadores franceses deixaram
de lutar por privilégios relativamente aos trabalhadores estrangeiros,
juntando-se a estes; os agricultores deixaram de lutar por uma isenção
especial, juntando-se às lutas dos trabalhadores e dos estudantes. Jun-
tos começaram a lutar contra um único sistema mundial que oprime e
divide entre si os estudantes e os trabalhadores, os trabalhadores quali-
ficados e os não qualificados, os trabalhadores franceses e os espanhóis,
os trabalhadores negros e os brancos, os trabalhadores «nativos» e os
trabalhadores «nacionais», os camponeses colonizados e toda a popu-
lação «metropolitana».
A luta em França não destruiu o poder político e militar da socieda-
de capitalista. Mas não demonstrou que isso seria impossível:
‒ Numa manifestação em Paris, os estudantes sabiam que não se
podiam defender da carga policial, mas alguns estudantes não fugiram
da polícia; começaram a construir uma barricada. Foi aquilo a que o
Movimento 22 de Março chamou «acção exemplar»: um grande nú-
mero de estudantes ganhou coragem, não fugiu da polícia e começou a
construir barricadas.
‒ Os estudantes sabiam que não podiam, por eles próprios, destruir
o Estado e o seu aparelho repressivo, mas ainda assim ocuparam e co-
meçaram a gerir as universidades e nas ruas responderam ao gás lacri-
mogéneo lançado pela polícia com o lançamento de pedras da calçada.
Essa também foi uma acção exemplar, porque num grande número de
fábricas os trabalhadores ganharam coragem, ocuparam-nas e estavam
preparados para as defender dos seus «proprietários».
‒ Os primeiros trabalhadores que ocuparam as suas fábricas para

21
Fredy Perlman

se apoderarem delas e começarem a geri-las sabiam que não podiam


destruir o poder da classe capitalista sem que todos os trabalhadores se
apoderassem das suas fábricas e as defendessem, destruindo o Estado
e o seu poder repressivo; mas ainda assim ocuparam as fábricas. Essa
também foi uma acção exemplar, mas estes trabalhadores não conse-
guiram comunicar esse exemplo aos restantes trabalhadores: o gover-
no, a imprensa e os sindicatos disseram ao resto da população que os
trabalhadores que ocupavam as fábricas estavam simplesmente a fazer
uma greve tradicional para obterem do Estado e dos proprietários das
fábricas salários mais altos e melhores condições laborais.
Impossível? Tudo isso aconteceu no espaço de duas semanas, no
final de Maio. Os exemplos eram extremamente contagiosos. Terá al-
guém realmente a certeza de que os que produzem as armas, os tra-
balhadores, nomeadamente, ou mesmo os polícias e os soldados, que
também são trabalhadores, estão imunes?

«Base Científica» do «Senso Comum»

O «cientista social» é alguém que é pago para defender os mitos desta


sociedade. O seu mecanismo de defesa, na sua formulação mais simples,
funciona mais ou menos desta forma: começa por presumir que a socie-
dade do seu espaço e tempo é a única forma possível de sociedade; e, pos-
teriormente, conclui que qualquer outra forma de sociedade é impossível.
Infelizmente, o «cientista social» raramente admite as suas suposições;
normalmente afirma que não faz quaisquer suposições. E não se pode
dizer que esteja a mentir completamente: em geral toma de tal modo as
suas suposições como certas que nem se apercebe de que as faz.
O «cientista social» toma como certa a sociedade em que existe uma
«divisão do trabalho» bastante desenvolvida, que inclui tanto uma
separação das tarefas como uma separação («especialização») das pes-
soas. Nas tarefas incluem-se coisas tão úteis para a sociedade como pro-
duzir comida, roupa e habitação, e também coisas tão desnecessárias
como lavar cérebros, manipular e matar pessoas. Para começar, o «cien-
tista» define todas essas actividades como úteis, porque a sua sociedade
não poderia funcionar sem elas. De seguida, presume que essas tarefas

22
tudo pode acontecer

só podem ser realizadas se uma dada pessoa se encontrar presa a uma


dada tarefa para toda a vida, ou seja, se as tarefas especializadas são
efectuadas por pessoas especializadas. Ele não presume isso a respeito
de tudo. Por exemplo, comer e dormir são actividades necessárias; a
sociedade desmoronar-se-ia se elas não se efectuassem. Contudo, o
próprio «cientista social» não pensa que uma mão-cheia de pessoas
deva dedicar-se a comer tudo enquanto as outras nada comem, ou que
uma mão-cheia de pessoas deva dedicar-se a dormir o sono todo en-
quanto as outras nada dormem. Ele presume a necessidade de uma espe-
cialização só nas actividades que são especializadas na sua sociedade
particular. Na sociedade corporativo-militar, algumas pessoas têm todo
o poder político e as outras não têm nenhum; um punhado de pessoas
decide o que se produz e as outras consomem o que é produzido; um
punhado de pessoas decide que tipo de habitações se devem construir
e as outras vivem nelas; um punhado de pessoas decide o que deve ser
ensinado nas salas de aula e as outras têm de engolir isso; um punhado
de pessoas cria e as outras ficam passivas; um punhado de pessoas
realiza e as outras são espectadoras. Em suma, um punhado de pessoas
exerce todo o poder sobre uma determinada actividade e as restantes
pessoas não têm poder sobre isso, mesmo quando essa actividade as
afecta directamente. E, como é óbvio, as pessoas que não têm poder
sobre uma actividade específica não sabem o que fazer com esse poder;
nem sequer sabem o que fazer com ele enquanto não o detêm. Daí que
o «cientista» conclua que as pessoas não têm a capacidade nem o desejo
de deter esse poder, designadamente para controlar as condições soci-
ais e materiais em que vivem e decidir sobre elas. De uma forma sim-
ples, o raciocínio é este: as pessoas não têm esse poder nesta sociedade
e esta sociedade é a única forma de sociedade; daí que seja impossível
as pessoas terem esse poder. E de uma forma ainda mais simples: as
pessoas não podem ter esse poder porque não o têm.
A lógica não é muito ensinada nas escolas americanas e este raciocí-
nio parece impressionante quando é acompanhado por um enorme
aparelho estatístico e desenhos geométricos extremamente complica-
dos. Se alguém criticar insistindo em chamar ao raciocínio simplista
e circular, vê-se «apagado» logo que o «cientista» apresenta números
calculados em computadores inacessíveis ao público e é posto de parte

23
Fredy Perlman

logo que o «cientista» começa a «comunicar» numa linguagem comple-


tamente esotérica cheia de falácias lógicas apenas compreensível para
os seus «colegas cientistas».
Conclusões mitológicas baseadas em suposições mitológicas são
«provadas» através de estatísticas e gráficos; muita da «ciência social
aplicada» consiste em ensinar a pessoas jovens que tipo de «dados» se
devem recolher para que obtenham as suas conclusões e muita da «te-
oria» consiste em ajustar esses dados às fórmulas pré-estabelecidas. Por
exemplo, através de numerosas técnicas pode-se «provar» que os tra-
balhadores preferem trabalhos bem remunerados a trabalhos aprazíveis
ou significativos, que as pessoas «gostam» do que ouvem na rádio ou
vêem na televisão, que as pessoas são «membros» de um ou outro cul-
to judaico-cristão, que quase toda a gente vota nos democratas ou nos
republicanos. Os estudantes são levados a aprender um conjunto de
métodos para a obtenção de dados, um segundo conjunto para os orga-
nizarem, um terceiro para os apresentarem e «teorias» para os interpre-
tarem. O conteúdo apologético dos «dados» é encoberto pela sua sofis-
ticação estatística. Numa sociedade em que comer depende de sermos
pagos e em que fazer um «trabalho significativo» poderá significar não
sermos pagos, a preferência do trabalhador por um trabalho bem remu-
nerado em detrimento de trabalhos significativos poderá significar sim-
plesmente que ele prefere comer a não comer. Numa sociedade onde as
pessoas não criam nem controlam aquilo que ouvem na rádio ou vêem
na televisão, não existe outra escolha senão «gostar» daquilo que ouvem
e vêem, ou então desligar o raio do aparelho. As pessoas cientes de que
os seus amigos olhariam para elas de forma estranha se fossem ateias,
preferem frequentar uma ou outra Igreja, e quase toda a gente ciente de
que se encontra numa sociedade onde perderia todos os seus amigos,
tal como o seu trabalho, se fosse socialista ou anarquista, obviamente
prefere ser democrata ou republicano. Contudo, esses «dados» servem
de base para a concepção que o «cientista social» tem das possibilidades
e impossibilidades das pessoas e até mesmo da sua «natureza humana».
As entrevistas, inquéritos e demonstrações estatísticas sobre as filiações
religiosas das pessoas, o comportamento eleitoral e as preferências de
emprego, reduzem as pessoas a dados monótonos. No contexto des-
ta «ciência», as pessoas são coisas, são objectos com inúmeras quali-

24
tudo pode acontecer

dades – e, surpreendentemente, cada uma dessas qualidades é servida


por uma ou outra instituição da sociedade corporativo-militar. Acon-
tece que os «gostos materiais» das pessoas são «satisfeitos» por corpo-
rações, que os «anseios físicos» são «satisfeitos» pelos militares, que as
suas «tendências espirituais» são «satisfeitas» por cultos e que as suas
«preferências políticas» são «satisfeitas» pelo Partido Republicano ou
pelo Partido Democrata. Por outras palavras, tudo aquilo que o milita-
rismo-corporativo americano significa, serve às pessoas perfeitamente.
Tudo é classificado, excepto o facto de o trabalhador ser usado como
ferramenta, de vender o seu tempo de vida e a sua capacidade criativa em
troca de objectos, de não decidir o que faz, nem para quem, nem porquê.
O «cientista social» afirma ser empírico e objectivo; afirma não fazer
juízos de valor. Mas, ao reduzir a pessoa a um conjunto de gostos, desejos
e preferências a que ela se encontra restringida na sociedade capitalista,
o «cientista objectivo» faz a afirmação bizarra de que esse conjunto
constitui aquilo que o trabalhador é; e faz o fantástico juízo de valor de
que o trabalhador não pode ser outra coisa senão aquilo que é na so-
ciedade capitalista. Segundo as «leis do comportamento humano» desta
«ciência», a solidariedade dos estudantes com os trabalhadores, a ocu-
pação de fábricas pelos trabalhadores, o desejo dos trabalhadores de
gerirem a sua própria produção, distribuição e coordenação, são tudo
coisas impossíveis. Porquê? Porque essas coisas são impossíveis na socie-
dade capitalista e porque para esses «cientistas», que não fazem juízos de
valor, as sociedades existentes são as únicas sociedades possíveis e a so-
ciedade corporativo-militar é a melhor de todas as sociedades possíveis.
Segundo os juízos de valor destes especialistas («que não fazem juízos
de valor»), toda a gente na sociedade americana deve estar satisfeita. Para
estes «cientistas» sem juízos de valor, a insatisfação é um «juízo de va-
lor» importado do estrangeiro, pois como poderia alguém não estar
satisfeito no melhor dos mundos possíveis? A pessoa que não reconhece
este mundo como o melhor dos mundos possíveis, tem com certeza
«ideias estrangeiras»; se não está satisfeita com ele, deve ser dese-
quilibrada; se a sua insatisfação a leva a desejar agir, deve ser perigosa;
e para a constante satisfação do especialista, deve ser despedida do seu
trabalho, passar fome, se possível, e ser morta, se necessário.
Para o cientista social americano, a «natureza humana» é aquilo que

25
Fredy Perlman

as pessoas fazem na América corporativo-militar: algumas tomam de-


cisões e o resto cumpre ordens; algumas pensam e as outras executam;
algumas compram o trabalho de outras pessoas e as outras vendem o
seu próprio trabalho; algumas investem e as outras consomem; algu-
mas são sádicas e as outras masoquistas; algumas têm o desejo de matar
e outras têm o desejo de morrer. O «cientista» faz passar tudo isso como
«troca», como «reciprocidade», como uma «divisão do trabalho» em
que as pessoas se encontram tão divididas quanto as tarefas. Para o
«cientista social» é tudo tão natural que pensa que não faz quaisquer
juízos de valor ao considerar que tudo é normal. As corporações e os
militares até lhe dão bolsas para ele demonstrar que tem sido sempre
assim: bolsas para demonstrar que esta «natureza humana» se encon-
tra alojada no início da História e nas profundezas do inconsciente.
(Os psicólogos americanos – especialmente os «behavioristas» – dão
a ambígua «contribuição» de demonstrar que os animais também têm
uma «natureza humana» – os psicólogos levam os ratos à loucura em
situações semelhantes à de uma guerra que os próprios psicólogos aju-
dam a planear, demonstrando depois que os ratos também têm desejo
de matar, que têm tendências masoquistas...).
Dada esta concepção da «natureza humana», a força do sistema
corporativo-militar não reside na potencial violência do seu exército
e polícia, mas no facto de o sistema corporativo-militar ser compatível
com a natureza humana.
Segundo aquilo que o «cientista social» americano considera nor-
mal, quando os estudantes e os trabalhadores começaram a lutar em
França para acabar com as tais «reciprocidade», «troca» e «divisão do
trabalho», não estavam a lutar contra a polícia capitalista, mas contra
a «natureza humana». E uma vez que isso é obviamente impossível, os
acontecimentos que tiveram lugar em Maio de 1968 não tiveram lugar.

O «Senso Comum» Explode

A questão de o que é possível não pode ser respondida em termos de


o que é. O facto de a «natureza humana» ser hierárquica numa socie-
dade hierárquica não significa que uma divisão hierárquica das pessoas

26
tudo pode acontecer

entre diferentes tarefas seja necessária para a vida social.


Não são as instituições capitalistas que satisfazem as necessidades
humanas. São os trabalhadores da sociedade capitalista que se moldam
para se ajustarem às instituições da sociedade capitalista.
Quando algumas pessoas compram trabalho e outras pessoas o ven-
dem, cada uma luta por se vender pelo preço mais alto, cada uma luta
para convencer o comprador e para se convencer a si mesma de que a
pessoa ao lado vale menos.
Numa sociedade assim, os estudantes que se preparam para se
vender como directores e manipuladores bem remunerados devem
dizer aos seus compradores e a si mesmos que, como «profissionais»,
são superiores aos trabalhadores manuais não universitários.
Numa sociedade assim, os trabalhadores WASP2 que se vendem por
altos salários e por trabalhos mais fáceis dizem freneticamente a si mes-
mos e aos seus compradores que são melhores, trabalham mais e mere-
cem mais do que os estrangeiros, católicos, judeus, porto-riquenhos,
mexicanos e negros; os «profissionais» negros dizem a si mesmos que
são melhores que os trabalhadores manuais negros; todos os brancos
dizem a si mesmos que são melhores que todos os negros; e todos os
americanos dizem a si mesmos que são melhores que os «indígenas»
sul-americanos, asiáticos ou africanos. E como os WASP conseguem
sistematicamente vender-se ao melhor preço, todos os que estão abaixo
deles tentam tornar-se o mais WASP possível. (Diga-se de passagem
que os WASP são tradicionalmente a classe dominante. Se os anões
conseguissem sistematicamente os melhores preços, todos os que estão
abaixo deles tentariam ser anões).
Para manter os seus privilégios relativos, cada grupo tenta fazer
com que os grupos abaixo dele não façam abalar a estrutura.
Daí que, em tempos de «paz», o sistema seja amplamente auto-poli-
ciado: os colonizados reprimem os colonizados, os negros reprimem
os negros, os brancos reprimem os brancos, os negros e os coloniza-

2.  Acrónimo, que podemos traduzir por Protestante Branco Anglo-Saxónico (White
Anglo-Saxon Protestant), utilizado para definir uma determinada classe social estado-
unidense descendente dos colonos britânicos que detém hegemonia política, económica
e social nos E.U.A. (N. do t.)

27
Fredy Perlman

dos. Assim, a população trabalhadora reprime-se a si mesma, a «lei e a


ordem» é mantida e a classe governante livra-se de mais gastos com o
aparelho repressivo.
Para o «cientista social» e para o propagandista profissional, esta
«divisão do trabalho» é tão natural quanto a própria «natureza huma-
na». Para o «cientista social», a unidade entre os diferentes «interesses
de grupo» é tão inconcebível como a própria revolução.
Ao afirmar como «cientificamente provado» que os diferentes gru-
pos não se podem unir numa luta anticapitalista, o especialista faz to-
dos os possíveis para impedir essa unidade e os seus colegas concebem
armas para o caso de as pessoas se unirem efectivamente contra o siste-
ma capitalista.
Porque por vezes toda a estrutura se desmorona.
O mesmo especialista que define o sistema capitalista como com-
patível com a «natureza humana», com os gostos, vontades e desejos
das pessoas, constrói o arsenal de mitos e armas com que o sistema
se defende. Mas o sistema defende-se contra quê? Contra a natureza
humana? Se para sobreviver tem de lutar contra a natureza humana,
nesse caso, segundo a própria linguagem do especialista, o sistema é
extremamente antinatural.
Assim, enquanto alguns especialistas definem a revolta ocorrida em
França como impossível por ser antinatural, os seus colegas especialis-
tas concebem os gases incapacitantes com os quais os polícias podem
suprimir essas revoltas impossíveis. Porque tudo é possível.

[1968]

28
A Reprodução da Vida Quotidiana
A actividade prática quotidiana dos homens tribais reproduz, ou per-
petua, uma tribo. Esta reprodução não é simplesmente física, mas tam-
bém social. Através das suas actividades diárias os homens tribais não
reproduzem simplesmente um grupo de seres humanos; reproduzem
uma tribo, nomeadamente, uma forma social particular em que este gru-
po de seres humanos realiza actividades específicas de uma forma especí-
fica. As actividades específicas dos homens tribais não são o resultado de
características «naturais» dos homens que as realizam, da mesma forma
que a produção de mel é um resultado da «natureza» da abelha. A vida
quotidiana praticada e perpetuada pelos homens tribais é uma reposta
social específica a condições materiais e históricas particulares.
A actividade quotidiana dos escravos reproduz a escravidão. Através
das suas actividades diárias, os escravos não se limitam a reproduz-
ir-se e a reproduzir os seus senhores fisicamente; reproduzem também
os instrumentos com os quais o senhor os reprime e os seus própri-
os hábitos de submissão à autoridade do senhor. Para os homens que
vivem numa sociedade esclavagista, a relação entre o senhor e o escravo
parece ser uma relação eterna e natural. Contudo, os homens não na-
scem senhores ou escravos. A escravatura é uma forma social específica
e os homens apenas se lhe submetem em condições materiais e históri-
cas muito particulares.
A actividade prática quotidiana dos trabalhadores assalariados re-
produz o trabalho assalariado e o capital. Através das suas actividades

29
Fredy Perlman

diárias, os homens «modernos», assim como os homens tribais e os es-


cravos, reproduzem os habitantes, as relações sociais e as ideias da sua so-
ciedade; reproduzem a forma social da vida quotidiana. Tal como a tribo
e o sistema esclavagista, o sistema capitalista não é a forma natural nem
a forma final da sociedade humana; como as formas sociais anteriores, o
capitalismo é uma resposta específica a condições materiais e históricas.
Ao contrário de formas de actividade social anteriores, o quotidiano
na sociedade capitalista transforma sistematicamente as condições mate-
riais a que o capitalismo originalmente respondeu. Alguns dos limites
materiais da actividade humana ficam gradualmente sob o controlo hu-
mano. A um nível elevado de industrialização, a actividade prática cria
as suas próprias condições materiais assim como a sua forma social.
Daí que o tema em análise não consista apenas em saber como a activi-
dade prática na sociedade capitalista reproduz a sociedade capitalista,
mas também como essa mesma actividade elimina as condições mate-
riais para as quais o capitalismo é uma resposta.

A Vida Quotidiana na Sociedade Capitalista

A forma social das actividades regulares das pessoas sob o capi-


talismo é uma resposta a uma certa situação material e histórica. As
condições materiais e históricas explicam a origem da forma capitalista,
mas não explicam por que é que essa forma continua depois de a situ-
ação inicial desaparecer. O conceito de «atraso cultural» não é uma ex-
plicação para a continuidade de uma forma social depois do desapare-
cimento das condições iniciais às quais respondeu. Este conceito é sim-
plesmente um nome para a continuidade da forma social. Quando o
conceito de «atraso cultural» se exibe como o nome dado a uma «força
social» que determina a actividade humana, é um obscurecimento que
apresenta o resultado das actividades das pessoas como uma força ex-
terna fora do seu controlo. Isto não é apenas verdade para um con-
ceito como o de «atraso cultural». Muitos dos termos usados por Marx
para descrever as actividades das pessoas foram elevados ao estatuto de
forças externas e até «naturais» que determinam a actividade das pes-
soas; daí que conceitos como «luta de classes», «relações de produção»

30
A reprodução da vida quotidiana

e particularmente «A Dialéctica», tenham o mesmo papel nas teorias


de alguns «marxistas» que o «Pecado Original», a «Fé» e «A Mão do
Destino» tiveram nas teorias dos místicos medievais.
Na realização das suas actividades diárias, os membros da sociedade
capitalista levam a cabo dois processos simultaneamente: reproduzem a
forma das suas actividades e eliminam as condições materiais às quais
esta forma de actividade inicialmente respondeu. Mas eles não sabem
que levam a cabo esses processos; as suas próprias actividades não são
para eles transparentes. Estão sob a ilusão de que as suas actividades são
respostas a condições naturais fora do seu controlo e não vêem que eles
próprios são autores dessas condições. A tarefa da ideologia capitalista é
manter o véu que impede as pessoas de ver que as suas próprias actividades
reproduzem a forma da sua vida quotidiana; a tarefa da teoria crítica é
revelar as actividades da vida quotidiana, torná-las transparentes, fazer
com que a reprodução da forma social da actividade capitalista seja visível
nas actividades diárias das pessoas.
Sob o capitalismo, a vida quotidiana consiste em actividades relaciona-
das que reproduzem e expandem a forma capitalista da actividade social. A
venda do tempo de trabalho por um preço (um salário), a materialização do
tempo de trabalho em mercadorias (bens alienáveis, tanto tangíveis como
intangíveis), o consumo de mercadorias tangíveis e intangíveis (tais como
bens de consumo e espectáculos) – estas actividades, que caracterizam a
vida quotidiana sob o capitalismo, não são manifestações da «natureza
humana», nem são impostas aos homens por forças fora do seu controlo.
Se se afirma que o homem é «por natureza» um homem tribal sem
criatividade e um homem de negócios criativo, um escravo submisso e um
artesão orgulhoso, um caçador independente e um trabalhador assala-
riado dependente, então ou a «natureza» humana é um conceito vazio, ou
ela depende de condições materiais e históricas e é de facto uma resposta
a essas condições.

Alienação da Actividade Viva

Na sociedade capitalista, a actividade criativa adquire a forma de


produção de mercadorias, nomeadamente a produção de bens comer-

31
Fredy Perlman

cializáveis, e os resultados da actividade humana adquirem a forma de


mercadorias. A mercantilização ou comercialização é a característica
universal de toda a actividade prática e de todos os produtos.
Os produtos da actividade humana que são necessários para a so-
brevivência têm a forma de bens comercializáveis: só estão disponíveis
a troco de dinheiro. E o dinheiro só está disponível a troco de mer-
cadorias. Se um grande número de homens aceita a legitimidade des-
tas convenções, se aceita a convenção de que as mercadorias são um
pré-requisito para o dinheiro e o dinheiro um pré-requisito para a so-
brevivência, estes homens encontram-se então encerrados num círcu-
lo vicioso. Uma vez que não possuem mercadorias, a sua única saída
desse círculo é verem-se a si próprios, ou a partes de si próprios, como
mercadorias. E esta é, de facto, a «solução» peculiar que os homens
impõem a si próprios perante condições materiais e históricas espe-
cíficas. Eles não trocam os seus corpos ou partes dos seus corpos por
dinheiro. Trocam o conteúdo criativo das suas vidas, a sua actividade
prática quotidiana, por dinheiro.
A partir do momento em que os homens aceitem o dinheiro como
um equivalente para a vida, a venda da actividade viva torna-se uma
condição para a sua sobrevivência física e social. A vida é trocada pela
sobrevivência. A criação e a produtividade passam a significar activi-
dade vendida. A actividade de um homem é «produtiva», útil à socie-
dade, só quando é actividade vendida. E o próprio homem só é um
membro produtivo da sociedade se as actividades da sua vida quotidi-
ana forem actividades vendidas. A partir do momento em que as pes-
soas aceitem os termos desta troca, a actividade diária assume a forma
de prostituição universal.
A capacidade criativa vendida, ou a actividade diária vendida, ad-
quirem a forma de trabalho. O trabalho é uma forma histórica específi-
ca de actividade humana. É uma actividade abstracta que tem somente
uma propriedade: é mercantilizável; pode ser vendido por uma certa
quantidade de dinheiro. O trabalho é uma actividade indiferente: in-
diferente à tarefa particular realizada e indiferente ao sujeito particular
a quem a tarefa se destina. Escavar, imprimir e cinzelar são actividades
diferentes, mas todas são trabalho na sociedade capitalista. Trabalhar é
simplesmente «ganhar dinheiro». A actividade viva que toma a forma

32
A reprodução da vida quotidiana

de trabalho é um meio para ganhar dinheiro. A vida torna-se um meio


de sobrevivência.
Esta irónica inversão não é o clímax dramático de um romance
imaginário; é um facto da vida quotidiana na sociedade capitalista. A
sobrevivência, nomeadamente a auto-preservação e a reprodução, não
constitui o meio para a actividade prática criativa, mas precisamente
o contrário. A actividade criativa na forma de trabalho, ou seja, activi-
dade vendida, é uma dura necessidade para a sobrevivência; o trabalho
é o meio para a auto-preservação e reprodução.
A venda da actividade viva traz à baila outra inversão. Através da
venda, o trabalho de um indivíduo torna-se «propriedade» de outro, é
apropriado por outro, fica sob o controlo de outro. Por outras palavras,
a actividade de uma pessoa torna-se a actividade de outra, a activi-
dade do seu proprietário; é alienada à pessoa que a realiza. Assim, a
própria vida, as realizações de um indivíduo no mundo, a diferença que
a sua vida faz na vida da humanidade, não são apenas transformadas
em trabalho, uma dura condição para a sobrevivência; são transforma-
das em actividade alienada, actividade realizada pelo comprador desse
trabalho. Na sociedade capitalista, os arquitectos, os engenheiros, os
trabalhadores, não são construtores; o construtor é o homem que com-
pra o seu trabalho; os seus projectos, cálculos e movimentos são-lhes
alienados; a sua actividade viva, as suas realizações, são dele.
Os sociólogos académicos, que tomam a venda do trabalho como
certa, compreendem esta alienação do trabalho como um sentimento:
a actividade do trabalhador «parece» alienada ao trabalhador, «parece»
ser controlada por outro. Contudo, qualquer trabalhador pode expli-
car aos sociólogos académicos que a alienação não é um sentimento
nem uma ideia na cabeça do trabalhador, mas um facto real da vida
quotidiana do trabalhador. A actividade vendida é de facto alienada ao
trabalhador; o seu trabalho é de facto controlado pelo seu comprador.
Em troca da sua actividade vendida, o trabalhador recebe dinheiro,
o meio de sobrevivência convencionalmente aceite na sociedade capi-
talista. Com esse dinheiro ele pode comprar mercadorias, coisas, mas
não pode recomprar a sua actividade. Isto revela uma «lacuna» peculiar
no dinheiro enquanto «equivalente universal». Uma pessoa pode vender
mercadorias por dinheiro e pode comprar as mesmas mercadorias com

33
Fredy Perlman

dinheiro. Pode vender a sua actividade viva por dinheiro, mas não pode
comprar a sua actividade viva por dinheiro.
As coisas que o trabalhador compra com o seu salário são, primeiro
que tudo, bens de consumo que possibilitam a sua sobrevivência, a re-
produção da sua força de trabalho para que possa continuar a vendê-
la; e essas coisas são espectáculos, objectos de admiração passiva. Ele
consome e admira os produtos da actividade humana passivamente.
Não existe no mundo como um agente activo que o transforma, mas
como um espectador indefeso e impotente; ele pode chamar a este esta-
do de admiração inofensiva «felicidade», e visto o trabalho ser penoso,
ele poderá desejar ser «feliz», isto é, inactivo, durante toda a sua vida
(condição parecida com a de ter nascido morto). As mercadorias, os
espectáculos, consomem-no; ele gasta energia viva em admiração pas-
siva; é consumido pelas coisas. Nesse sentido, quanto mais tem, menos
é. (Um indivíduo pode aguentar esta morte em vida através de uma
actividade criativa marginal; mas a população não pode, exceptuando
se abolir a forma capitalista de actividade prática, se abolir o trabalho
assalariado, desalienando assim a actividade criativa.)

O Fetichismo das Mercadorias

Ao alienarem a sua actividade, materializando-a em mercadorias,


em receptáculos materiais do trabalho humano, as pessoas repro-
duzem-se a si próprias e criam Capital.
Do ponto de vista da ideologia capitalista, e particularmente da
Economia académica, esta declaração é falsa: as mercadorias «não são
apenas produto do trabalho»; elas são produzidas pelos «factores de
produção» primordiais, Terra, Trabalho e Capital, a Sagrada Trindade
capitalista, e o principal «factor» é obviamente o herói da peça, o Capital.
O propósito desta Trindade superficial não é a análise, pois não
é para analisar que estes Especialistas são pagos. Eles são pagos para
obscurecer, para mascarar a forma social da actividade prática sob o
capitalismo, para encobrir o facto de os produtores se reproduzirem
a si mesmos, reproduzirem os seus exploradores e os instrumentos
com os quais são explorados. A fórmula da Trindade não consegue

34
A reprodução da vida quotidiana

convencer. É óbvio que a terra não é mais mercadoria produtora do


que a água, o ar ou o sol. Além disso, o Capital, que é ao mesmo tem-
po o nome atribuído a uma relação social entre os trabalhadores e os
capitalistas, aos instrumentos de produção detidos por um capitalista
e ao equivalente monetário dos seus instrumentos e «intangíveis», não
produz nada mais do que as ejaculações publicadas pelos Economistas
académicos. Mesmo os instrumentos de produção que são o capital de
um capitalista só são «factores de produção» primordiais se as palas
desses economistas limitarem a sua visão a uma empresa capitalista iso-
lada, porque a visão de toda a economia revela que o capital de um capi-
talista é o receptáculo material do trabalho alienado a outro capitalista.
Contudo, ainda que a fórmula da Trindade não convença, ela cumpre
a tarefa de obscurecer ao mudar o tema da questão: em vez de pergun-
tar por que é que a actividade das pessoas sob o capitalismo adquire a
forma de trabalho assalariado, potenciais analistas da vida quotidiana
capitalista são transformados em académicos marxistas domesticados
que perguntam se o trabalho é ou não o único «factor de produção».
Assim, a Economia (e a ideologia capitalista em geral) tratam a ter-
ra, o dinheiro e os produtos do trabalho como coisas que têm a capaci-
dade de produzir, de criar valor, de trabalhar pelos seus proprietários,
de transformar o mundo. Foi a isto que Marx chamou o fetichismo
que caracteriza as concepções quotidianas das pessoas e é elevado
pela Economia ao nível de dogma. Para o economista, as pessoas vivas
são coisas («factores de produção») e as coisas vivem (o dinheiro «tra-
balha», o Capital «produz»).
O adorador do fetiche atribui o produto da sua própria actividade
ao seu fetiche. E disso resulta que ele deixa de exercer o seu próprio
poder (o poder de transformar a natureza, o poder de determinar a
forma e o conteúdo da sua vida quotidiana); exerce apenas esses
«poderes» que atribui ao seu fetiche (o «poder» de comprar merca-
dorias). Ou seja, o adorador do fetiche castra-se a si próprio e atribui
virilidade ao seu fetiche.
Mas o fetiche é uma coisa morta, não é um ser vivo; não tem viri-
lidade. O fetiche não é mais do que uma coisa para a qual e através
da qual as relações capitalistas são mantidas. O poder misterioso do
Capital, o seu «poder» de produzir, a sua virilidade, não reside em si

35
Fredy Perlman

mesmo, mas no facto de as pessoas alienarem a sua actividade criativa,


de venderem o seu trabalho aos capitalistas, de materializarem ou reifi-
carem o seu trabalho alienado em mercadorias. Por outras palavras, as
pessoas são compradas com os produtos das suas próprias actividades,
vendo, contudo, a sua própria actividade como actividade do Capital
e os seus próprios produtos como produtos do Capital. Ao atribuírem
poder criativo ao Capital e não à sua própria actividade, renunciam à
sua actividade viva, à sua vida quotidiana, entregando-a ao Capital, o
que significa que as pessoas se entregam diariamente à personificação
do Capital, o capitalista.
Ao venderem o seu trabalho, ao alienarem a sua actividade, as
pessoas reproduzem diariamente as personificações das formas domi-
nantes de actividade sob o capitalismo; reproduzem o trabalhador as-
salariado e o capitalista. Não reproduzem simplesmente os indivídu-
os fisicamente, reproduzem-nos também socialmente; reproduzem
indivíduos que são vendedores de força de trabalho e indivíduos que
possuem meios de produção; reproduzem os indivíduos assim como as
actividades específicas, tanto a venda como a posse.
Sempre que as pessoas realizam uma actividade que elas próprias
não definiram e não controlam, sempre que pagam por bens que pro-
duzem com dinheiro que recebem em troca da sua actividade alienada,
sempre que passivamente admiram os produtos da sua própria activi-
dade como objectos alienados obtidos pelo seu dinheiro, dão nova vida
ao Capital e aniquilam as suas próprias vidas.
O objectivo do processo é a reprodução da relação entre o tra-
balhador e o capitalista. Contudo, esse não é o objectivo dos agen-
tes individuais nele envolvidos. As suas actividades não são para eles
transparentes; os seus olhos estão fixados no fetiche que se encontra
entre o acto e o seu resultado. Os agentes individuais mantêm os seus
olhos fixados nas coisas, precisamente nessas coisas para as quais as
relações capitalistas são estabelecidas. O trabalhador enquanto produ-
tor procura trocar o seu trabalho diário por um salário em dinheiro,
procura precisamente aquilo através do qual a sua relação com o capi-
talista é restabelecida, aquilo através do qual ele se reproduz a si mesmo
como trabalhador assalariado e reproduz o outro como capitalista. O
trabalhador como consumidor troca o seu dinheiro por produtos do

36
A reprodução da vida quotidiana

trabalho, precisamente as coisas que o capitalista tem para vender de


maneira a realizar o seu Capital.
A transformação diária de actividade viva em Capital é mediada
por coisas, não é levada a cabo pelas coisas. O adorador do fetiche não
sabe disso; para ele, o trabalho e a terra, os instrumentos e o dinheiro,
os empresários e os banqueiros, são todos eles «factores» e «agentes».
Quando o caçador que usa um amuleto abate um veado com uma pe-
dra, ele poderá considerar o amuleto um «factor» essencial no abate do
veado e até na consideração do veado como um objecto a abater. Se ele
for um adorador do fetiche responsável e bem-educado, irá dedicar a
sua atenção ao seu amuleto, tratando-o com cuidado e admiração; de
maneira a melhorar as condições materiais da sua vida, ele irá melhorar
a forma como utiliza o seu fetiche, não a forma como atira a pedra; no
limite, talvez até mande o seu amuleto «caçar» por ele. As suas próprias
actividades diárias não são para ele transparentes: quando come bem,
não consegue ver que foi a sua própria acção de atirar a pedra, e não a
acção do amuleto, que lhe forneceu a comida; quando passa fome, não
consegue ver que o que causa a sua fome é a sua própria acção de adorar
o amuleto em vez de caçar, e não a ira do seu fetiche.
O fetichismo das mercadorias e do dinheiro, a mistificação das
próprias actividades diárias, a religião da vida quotidiana que atribui
actividade viva a coisas inanimadas, não são caprichos mentais prove-
nientes da imaginação do homem; têm a sua origem no carácter das
relações sociais sob o capitalismo. Os homens relacionam-se de facto
através de coisas; o fetiche é de facto a ocasião para a qual eles actuam
colectivamente e através da qual reproduzem a sua actividade. Mas não
é o fetiche que realiza a actividade. Não é o Capital que transforma
matérias-primas, nem é o Capital que produz bens. Se a actividade viva
não transformasse os materiais, estes permaneceriam intactos, inertes,
matéria morta. Se os homens não estivessem dispostos a continuar a
vender a sua actividade viva, a impotência do Capital seria revelada; o
Capital deixaria de existir; a última coisa que teria capacidade de fazer
seria fazer lembrar às pessoas uma forma ultrapassada de vida quotidi-
ana caracterizada como prostituição diária universal.
O trabalhador aliena a sua vida para preservar a sua vida. Se não
vendesse a sua actividade viva não receberia um salário e poderia não

37
Fredy Perlman

sobreviver. Contudo, não é o salário que faz da alienação a condição


para a sobrevivência. Se os homens não estivessem colectivamente dis-
postos a vender as suas vidas, se estivessem dispostos a assumir o co-
mando das suas próprias actividades, a prostituição universal não seria
uma condição para a sobrevivência. É a disposição das pessoas para
continuarem a vender o seu trabalho, e não as coisas pelas quais eles o
vendem, que torna a alienação da actividade viva necessária à preser-
vação da vida.
A actividade viva vendida pelo trabalhador é comprada pelo capi-
talista. E é só esta actividade viva que dá vida ao Capital e o torna «pro-
dutivo». O capitalista, «proprietário» de matérias-primas e instrumen-
tos de produção, apresenta objectos naturais e produtos do trabalho de
outras pessoas como sua «propriedade privada». Mas não é o misteri-
oso poder do Capital que cria a «propriedade privada» do capitalista; o
que cria a «propriedade» é a actividade viva, e a forma dessa actividade
é aquilo que a mantém «privada».

A Transformação de Actividade Viva em Capital

A transformação de actividade viva em Capital acontece através de


coisas, diariamente, mas não é levada a cabo pelas coisas. As coisas que
são produtos da actividade humana parecem ser agentes activos porque
as actividades e os contactos são estabelecidos para as coisas e através
delas e porque as actividades das pessoas não são para elas transpar-
entes; confundem o objecto mediador com a causa.
No processo de produção capitalista, o trabalhador encarna ou ma-
terializa a sua energia viva alienada num objecto inerte utilizando instru-
mentos que são materializações de actividades de outras pessoas. (Os
instrumentos industriais sofisticados materializam a actividade in-
telectual e manual de inúmeras gerações de inventores, aperfeiçoadores
e produtores de todos os cantos do globo e de várias formas de socie-
dade.) Os instrumentos, em si mesmos, são objectos inertes; são ma-
terializações de actividade viva, mas não estão vivos. O único agen-
te activo no processo de produção é o trabalhador vivo. Ele utiliza os
produtos do trabalho de outras pessoas e infunde-lhes vida, por assim

38
A reprodução da vida quotidiana

dizer, mas a vida é a sua própria; não pode ressuscitar os indivíduos que
depositaram a sua actividade viva no seu instrumento. O instrumen-
to poderá levá-lo a fazer mais num determinado período de tempo e,
nesse sentido, poderá aumentar a sua produtividade. Mas só o trabalho
vivo que é capaz de produzir pode ser produtivo.
Por exemplo, quando um trabalhador industrial maneja um torno
mecânico, ele utiliza produtos provenientes do trabalho de gerações de
físicos, inventores, engenheiros eléctricos, fabricantes de tornos. Ele é,
obviamente, mais produtivo que um artesão que cinzela o mesmo objecto
à mão. Mas o «Capital» à disposição do trabalhador industrial não é
de nenhuma forma mais «produtivo» que o «Capital» do artesão. Se
a actividade intelectual e manual de sucessivas gerações não tivesse
materializado o torno mecânico, ou seja, se o trabalhador industrial
tivesse que inventar o torno, a electricidade e o torno mecânico, levaria
inúmeras vidas a transformar um simples objecto num torno mecâni-
co, e nenhuma quantidade de Capital poderia aumentar a sua produ-
tividade acima da do artesão que cinzela o objecto à mão.
A noção de «produtividade do capital» e, particularmente, o cál-
culo detalhado dessa «produtividade», são invenções da «ciência» da
Economia, dessa religião da vida quotidiana capitalista que leva a ener-
gia das pessoas a adorar, admirar e lisonjear o principal fetiche da so-
ciedade capitalista. Os colegas medievais desses «cientistas» efectuaram
cálculos detalhados da altura e largura dos anjos no Céu, sem nunca
terem questionado que anjos ou Céu seriam e tomando como certa a
existência de ambos.
O resultado da actividade vendida do trabalhador é um produto que
não lhe pertence. Esse produto é uma encarnação do seu trabalho, a
materialização de uma parte da sua vida, um receptáculo que contém
a sua actividade viva, mas que não é dele; é-lhe tão estranho como o
seu trabalho. Não foi ele que decidiu fazê-lo, e quando fica feito, não
dispõe dele. Se o quiser, tem de o comprar. Aquilo que ele fez não foi
simplesmente um produto com certas propriedades úteis; para isso não
precisaria de ter vendido o seu trabalho a um capitalista em troca de
um salário; precisaria apenas de escolher os materiais necessários e as
ferramentas disponíveis, precisaria apenas de modelar os materiais ten-
do em conta os seus objectivos e apenas limitado pelos seus conheci-

39
Fredy Perlman

mentos e capacidades. (É óbvio que individualmente só pode fazer isso


de forma marginal; a apropriação e o uso pelos homens de materiais e
ferramentas por eles utilizáveis só pode realizar-se depois da abolição
da forma de actividade capitalista.)
O que o trabalhador produz sob as condições capitalistas é um pro-
duto com um atributo muito específico, o atributo da vendibilidade. O
que a sua actividade alienada produz é uma mercadoria.
Pelo facto de a produção capitalista ser uma produção de merca-
dorias, é falsa a afirmação de que o objectivo dessa operação é a satis-
fação das necessidades humanas; trata-se de uma racionalização e de
uma desculpa. A «satisfação das necessidades humanas» não é o ob-
jectivo do capitalista nem do trabalhador envolvido na produção, nem
é o resultado dessa operação. O trabalhador vende o seu trabalho para
receber um salário; o conteúdo específico do trabalho é-lhe indiferente;
ele não aliena o seu trabalho a um capitalista que não lhe dê um salário
em troca, independentemente da quantidade de necessidades humanas
que os produtos desse capitalista possam satisfazer. O capitalista com-
pra trabalho e emprega-o na produção para que disso resultem mer-
cadorias que possam ser vendidas. Ele é indiferente às propriedades
específicas do produto, tal como é indiferente às necessidades das pes-
soas; a respeito do produto, interessa-lhe apenas saber por quanto o irá
vender, e sobre a necessidade das pessoas só lhe interessa o quanto elas
«precisam» de comprar e como podem ser coagidas, através de propa-
ganda e de condicionamento psicológico, a «precisarem» de mais. O
objectivo do capitalista é satisfazer a sua necessidade de reproduzir e
aumentar o Capital, e o resultado de toda essa operação é a reprodução
expandida do trabalho assalariado e do Capital (que não são «necessi-
dades humanas»).
A mercadoria produzida pelo trabalhador é trocada pelo capitalista
por uma quantidade específica de dinheiro; a mercadoria constitui um
valor que é trocado por um valor equivalente. Por outras palavras, o
trabalho vivo e passado materializado no produto pode existir em duas
formas distintas mas equivalentes, em mercadorias e em dinheiro, ou
naquilo que lhes é comum, o valor. Isto não significa que o valor seja
trabalho. O valor é a forma social do trabalho reificado (materializado)
na sociedade capitalista.

40
A reprodução da vida quotidiana

Sob o capitalismo, as relações sociais não são estabelecidas directa-


mente; são estabelecidas através do valor. A actividade quotidiana não
passa por uma troca directa; é trocada na forma de valor. Consequente-
mente, o que acontece à actividade viva sob o capitalismo não pode ser
identificado observando a actividade em si mesma, mas apenas seguin-
do as metamorfoses do valor.
Quando a actividade viva das pessoas assume a forma de trabalho
(actividade alienada), ela adquire o atributo da permutabilidade; ad-
quire a forma de valor. Ou seja, o trabalho pode ser trocado por uma
quantidade «equivalente» de dinheiro (salários). A deliberada alienação
de actividade viva, que os membros da sociedade capitalista entendem
ser necessária à sua sobrevivência, reproduz a forma capitalista na qual
a alienação é necessária para a sobrevivência. Pelo facto de a actividade
viva ter a forma de valor, os produtos dessa actividade devem também
ter a forma de valor: devem poder ser permutáveis por dinheiro. Isso
é óbvio pois, se os produtos do trabalho não assumissem a forma de
valor mas, por exemplo, a forma de objectos úteis à disposição da socie-
dade, não sairiam da fábrica ou seriam levados livremente pelos mem-
bros da sociedade sempre que tivessem necessidade deles; em ambos os
casos, os salários em dinheiro recebidos pelos trabalhadores não teriam
valor e a actividade viva não poderia ser vendida por uma quantidade
de dinheiro «equivalente»; a actividade viva não poderia ser alienada.
Consequentemente, logo que a actividade viva adquire a forma de valor,
os produtos dessa actividade adquirem igualmente a forma de valor e
a reprodução da vida quotidiana ocorre através de mudanças ou meta-
morfoses de valor.
O capitalista vende os produtos do trabalho num mercado; troca-os
por uma quantia de dinheiro equivalente; realiza um determinado
valor. A magnitude específica desse valor num determinado mercado
é o preço das mercadorias. Para o Economista académico, o Preço é a
chave de S. Pedro que abre as portas do Céu. Como o próprio Capital, o
Preço movimenta-se num mundo maravilhoso composto inteiramente
por objectos; os objectos têm relações humanas entre si e estão vivos;
transformam-se e comunicam entre si; casam-se e têm filhos. E é claro
que é só graças a objectos inteligentes, poderosos e criativos, que as
pessoas podem ser tão felizes na sociedade capitalista.

41
Fredy Perlman

Nas representações pictóricas dos trabalhos celestes do Economista,


os anjos fazem tudo e os homens não fazem nada; os homens simples-
mente desfrutam do que esses seres superiores fazem por eles. Não é só o
Capital que produz e o dinheiro que trabalha; têm semelhantes virtudes
outros seres misteriosos. Assim, a Oferta, a quantidade de coisas que é
vendida, e a Procura, a quantidade de coisas que é comprada, determi-
nam em conjunto o Preço, uma certa quantidade de dinheiro; quando
a Oferta e a Procura casam numa posição particular do diagrama, dão
à luz o Preço Equilibrado, que corresponde a um estado universal de
felicidade. As actividades da vida quotidiana são feitas pelas coisas, e
as pessoas, durante as suas horas de «produção», são reduzidas a coisas
(«factores de produção»), e a passivos espectadores de coisas duran-
te o seu «tempo de lazer». A virtude do Cientista Económico consiste
na sua capacidade de atribuir o resultado da actividade quotidiana das
pessoas às coisas e na sua incapacidade de ver a actividade viva das pes-
soas sob as palhaçadas das coisas. Para o Economista, as coisas através
das quais a actividade das pessoas é regulada sob o capitalismo são,
elas próprias, as mães e os filhos, as causas e as consequências da sua
própria actividade.
A magnitude do valor, isto é, o preço de uma mercadoria, a quan-
tidade de dinheiro por que é trocada, não é determinada pelas coisas,
mas pelas actividades diárias das pessoas. Oferta e procura, competição
perfeita e imperfeita, não são mais do que formas sociais de produtos
e actividades na sociedade capitalista; não têm vida própria. O facto de
a actividade ser alienada, ou seja, de o tempo de trabalho ser vendido
por uma quantidade específica de dinheiro que tem um certo valor, tem
várias consequências para a magnitude do valor dos produtos desse
trabalho. O valor das mercadorias vendidas deve, pelo menos, ser igual
ao valor do tempo de trabalho. Isto é óbvio tanto do ponto de vista de
uma empresa capitalista isolada, como do ponto de vista da sociedade
como um todo. Se o valor das mercadorias vendidas pelo indivíduo
capitalista fosse menor que o valor do trabalho que contratou, as suas
despesas com o trabalho seriam, por si sós, maiores do que os seus
lucros e ele iria rapidamente à falência. Socialmente, se o valor da pro-
dução dos trabalhadores fosse menor que o valor do seu consumo, a
força de trabalho não poderia sequer reproduzir-se a si mesma, e ainda

42
A reprodução da vida quotidiana

menos a classe dos capitalistas. Contudo, se o valor das mercadorias


fosse simplesmente igual ao valor do tempo de trabalho nelas despen-
dido, os produtores de mercadorias reproduzir-se-iam simplesmente a
si próprios e a sua sociedade não seria uma sociedade capitalista; a sua
actividade ainda poderia consistir na produção de mercadorias, mas
não seria uma produção de mercadorias capitalista.
Para que o trabalho crie Capital, o valor dos produtos do trabalho
tem de ser maior que o valor do trabalho. Ou seja, a força de trabalho
deve produzir um produto excedente, uma quantidade de bens que não
consome, e este produto excedente deve ser transformado em mais-valia,
uma forma de valor que não é apropriada pelos trabalhadores como
salário, mas pelos capitalistas como lucro. Além disso, o valor dos pro-
dutos do trabalho deve ser ainda maior, já que o trabalho vivo não é
a única forma de trabalho que neles é materializado. No processo de
produção, os trabalhadores despendem a sua própria energia, mas tam-
bém usam, nos instrumentos que empregam, o trabalho acumulado de
outros trabalhadores, e dão forma a materiais em que já foi previamente
despendido trabalho.
Isto leva ao estranho resultado de o valor dos produtos do tra-
balhador e o valor do seu salário terem diferentes magnitudes, ou seja,
de o montante de dinheiro recebido pelo capitalista quando vende as
mercadorias produzidas pelos seus trabalhadores contratados ser dife-
rente do montante que ele paga aos trabalhadores. Esta diferença não
se explica pelo facto de os materiais utilizados e as ferramentas terem
de ser pagos. Se o valor das mercadorias vendidas fosse igual ao valor
do trabalho vivo e dos instrumentos, não haveria ainda espaço para os
capitalistas. O facto é que a diferença entre as duas magnitudes tem de
ser suficientemente grande para sustentar uma classe de capitalistas
– não apenas os indivíduos, mas também a actividade específica a que
esses indivíduos se dedicam, nomeadamente a aquisição de trabalho. A
diferença entre o valor total dos produtos e o valor do trabalho despen-
dido na sua produção é a mais-valia, a semente do Capital.
Para se poder localizar a origem da mais-valia, é necessário examinar
por que razão o valor do trabalho é inferior ao valor das mercadorias
por ele produzidas. A actividade alienada do trabalhador transforma
materiais com o recurso a instrumentos e produz uma certa quantidade

43
Fredy Perlman

de mercadorias. Contudo, depois de essas mercadorias terem sido ven-


didas, os materiais usados e os instrumentos pagos, os trabalhadores
não recebem, na forma de salário, o valor remanescente daquilo que
produziram; recebem menos. Ou seja, durante todos os dias de tra-
balho os trabalhadores realizam uma determinada quantidade de
trabalho não pago, trabalho forçado, pelo qual não recebem qualquer
equivalente.
A realização deste trabalho não pago, deste trabalho forçado, é outra
«condição para a sobrevivência» na sociedade capitalista. Contudo, tal
como a alienação, esta condição não é imposta pela natureza, mas pela
prática colectiva das pessoas, pelas suas actividades quotidianas. Antes
da existência dos sindicatos, o trabalhador isolado aceitava qualquer
tipo de trabalho forçado disponível, já que a rejeição do trabalho sig-
nificaria que outros trabalhadores aceitariam os termos disponíveis de
troca e o trabalhador isolado não receberia salário. Os trabalhadores
competiam entre si pelos salários propostos pelos capitalistas; se um tra-
balhador se despedisse porque o salário era inaceitavelmente baixo, um
trabalhador desempregado estava disposto a substitui-lo, já que para o
desempregado um pequeno salário é maior do que nenhum salário. Esta
competição entre os trabalhadores era chamada «trabalho livre» pelos
capitalistas, que fizeram grandes sacrifícios para manter a liberdade
dos trabalhadores, por ser precisamente esta liberdade que preservava
a mais-valia do capitalista e lhe possibilitava a acumulação de Capital.
Nenhum trabalhador tinha a intenção de produzir mais bens do que
aqueles por que era pago. O seu objectivo era obter um salário tão alto
quanto possível. Contudo, a existência de trabalhadores que não rece-
biam qualquer salário e cuja concepção de um salário alto era conse-
quentemente mais modesta do que a do trabalhador empregado, tornou
possível ao capitalista contratar trabalho por um salário mais baixo. Na
verdade, a existência de trabalhadores desempregados tornou possível
que o capitalista pagasse o salário mais baixo pelo qual os trabalhadores
estariam dispostos a trabalhar. Deste modo, o resultado da actividade
colectiva diária dos trabalhadores, lutando cada um individualmente
pelo maior salário possível, consistiu em diminuir os salários de todos;
o efeito da competição de um contra todos foi que todos receberam o
menor salário possível e o capitalista ganhou o maior lucro possível.

44
A reprodução da vida quotidiana

A prática diária de todos anula os objectivos de cada um. Mas os


trabalhadores não sabiam que a sua situação era um produto do seu
comportamento diário; as suas próprias actividades não eram para
eles transparentes. Para os trabalhadores, parecia que os salários
baixos eram simplesmente uma parte natural da vida, como a doença
e a morte, e que a diminuição dos salários era uma catástrofe natural,
como uma cheia ou um Inverno rigoroso. As críticas dos socialistas
e as análises de Marx, assim como o incremento do desenvolvimento
industrial que proporcionou mais tempo para a reflexão, arrancaram
alguns dos véus e tornaram possível que os trabalhadores tivessem, até
certo ponto, uma visão penetrante das suas próprias actividades. Ainda
assim, na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, os trabalhadores não
se livraram da forma capitalista da vida quotidiana; formaram sindi-
catos. E na União Soviética e Europa de Leste, em condições materi-
ais diferentes, os trabalhadores (e camponeses) substituíram a classe
capitalista por uma burocracia de Estado que adquire trabalho aliena-
do e acumula Capital em nome de Marx.
Com os sindicatos, a vida quotidiana é parecida com aquilo que
existia antes dos sindicatos. De facto, é quase a mesma coisa. A vida
quotidiana continua a consistir em trabalho, em actividade alienada e
em trabalho não pago ou forçado. O trabalhador sindicalizado já não
estabelece os termos da sua alienação; os funcionários do sindicato
fazem-no por ele. As condições em que a actividade dos trabalhadores
é alienada já não são orientadas pela necessidade individual dos tra-
balhadores de aceitarem o que está disponível; passaram a ser orien-
tadas pela necessidade dos burocratas do sindicato de manterem a sua
posição de chulos entre os vendedores e os compradores de trabalho.
Com ou sem sindicatos, a mais-valia não é um produto da natureza
nem do Capital; é criada pelas actividades diárias das pessoas. Na real-
ização dessas actividades, as pessoas não estão apenas dispostas a alienar
essas actividades, estão também dispostas a reproduzir as condições que
as forçam a alienar as suas actividades, a reproduzir o Capital e, dessa
forma, a capacidade que o Capital tem de adquirir trabalho. Isto não
acontece por não saberem «qual é a alternativa». A pessoa que se encon-
tra incapacitada com uma indigestão crónica porque come demasiadas
gorduras, não continua a comer gorduras por não saber qual é a alter-

45
Fredy Perlman

nativa. Ou prefere ficar incapacitada a desistir das gorduras, ou então


não vê claramente que o causador dessa incapacidade é o seu consumo
diário de gorduras. E se o seu médico, sacerdote, professor e político lhe
dizem, primeiro, que a gordura é aquilo que a mantém viva e, segundo,
que eles já fazem por ela tudo o que ela faria se andasse bem de saúde,
então não é de admirar que a sua actividade não seja para ela transpar-
ente e que não faça grande esforço para a tornar transparente.
A produção de mais-valia é uma condição de sobrevivência, não
para a população, mas para o sistema capitalista. A mais-valia é a
porção do valor das mercadorias produzida pelo trabalho que não é
devolvida aos trabalhadores. Pode expressar-se em mercadorias ou
em dinheiro (tal como o Capital pode expressar-se como uma quan-
tidade de coisas ou de dinheiro), mas isto não altera o facto de que é
uma expressão do trabalho materializado presente numa determinada
quantidade de produtos. Uma vez que os produtos podem ser troca-
dos por uma quantia «equivalente» de dinheiro, o dinheiro «está para»,
ou representa, o mesmo valor que os produtos. O dinheiro pode, por
sua vez, ser trocado por uma outra quantidade de produtos de valor
«equivalente». A junção dessas trocas, que ocorrem simultaneamente
durante a efectivação da vida quotidiana capitalista, constitui o proces-
so de circulação capitalista. É através deste processo que a metamorfose
da mais-valia em Capital se realiza.
A porção do valor que não é devolvida aos trabalhadores, nomeada-
mente, a mais-valia, permite a existência do capitalista e também per-
mite que este faça muito mais do que simplesmente existir. O capitalis-
ta investe uma porção desta mais-valia; contrata novos trabalhadores e
compra novos meios de produção; expande o seu domínio. O que isto
significa é que o capitalista acumula novo trabalho, tanto na forma de
trabalho vivo contratado como na de trabalho passado (pago e não pago)
que se encontra conservado nos materiais e máquinas que ele compra.
A classe capitalista como um todo acumula o trabalho excedente da
sociedade, mas este processo ocorre numa escala social e, consequente-
mente, não pode ser visto observando-se apenas as actividades de um
capitalista isolado. Convém lembrar que os produtos comprados por um
determinado capitalista como instrumentos têm as mesmas característi-
cas que os produtos que ele vende. Um primeiro capitalista vende instru-

46
A reprodução da vida quotidiana

mentos a um segundo capitalista por um determinado valor e só uma


parte deste valor é devolvido aos trabalhadores sob a forma de salário;
a parte restante é mais-valia, com a qual o primeiro capitalista compra
novos instrumentos e trabalho. O segundo capitalista compra os instru-
mentos pelo valor determinado, significando isso que ele paga, pela quan-
tidade total de trabalho prestado ao primeiro capitalista, a quantidade
de trabalho que foi remunerado assim como a quantidade de trabalho
realizado livre de cobrança. E isto significa que os instrumentos acumu-
lados pelo segundo capitalista contêm o trabalho não pago prestado ao
primeiro. O segundo capitalista, por sua vez, vende os seus produtos por
um determinado valor e devolve apenas uma porção desse valor aos seus
trabalhadores, usando o restante para novos instrumentos e trabalho.
Se todo o processo fosse comprimido num único período de tempo
e se todos os capitalistas fossem agregados num só, ver-se-ia que o valor
com que o capitalista adquire novos instrumentos e trabalho é igual
ao valor dos produtos que não devolveu aos produtores. Este trabalho
excedente acumulado é Capital.
Na sociedade capitalista como um todo, o Capital total é igual à
soma do trabalho não pago realizado por gerações de seres humanos
cujas vidas consistiram na alienação diária da sua actividade viva. Por
outras palavras, o Capital, em face do qual os homens vendem os seus
dias de vida, é o produto da actividade vendida do homem e é repro-
duzido e expandido todos os dias em que um homem vende mais um
dia de trabalho, em cada momento em que decide continuar a viver a
forma capitalista da vida quotidiana.

Conservação e Acumulação de Actividade Humana

A transformação de trabalho excedente em Capital é uma forma


histórica específica de um processo mais geral, o processo da industri-
alização, a permanente transformação do ambiente material do homem.
Certas características essenciais desta consequência da actividade
humana sob o capitalismo podem ser compreendidas através de uma
ilustração simplificada. Numa sociedade imaginária, as pessoas passam
a maioria do seu tempo activo a produzir alimentos e outras necessi-

47
Fredy Perlman

dades; só uma parte do seu tempo é «tempo excedente», no sentido em


que é isento da produção de necessidades. Esta actividade excedente
pode ser dedicada à produção de alimentos para padres e guerreiros,
que por si próprios não produzem; pode ser usada na produção de bens
que são esbanjados em ocasiões sagradas; pode ser usada na realização
de cerimónias ou exercícios ginásticos. Em qualquer desses casos, não
é provável que as condições materiais dessas pessoas seja alterada, de
uma geração para a outra, como resultado das suas actividades diárias.
Contudo, uma geração de pessoas desta sociedade imaginária poderá
pôr de reserva o seu tempo excedente em vez de o usar. Por exemplo,
poderão passar este tempo excedente a comprimir molas. A geração
seguinte poderá descomprimir a energia armazenada nas molas para
realizar tarefas necessárias ou poderá simplesmente utilizar a energia
das molas para comprimir novas molas. Em ambos os casos, o tra-
balho excedente conservado da geração anterior irá fornecer à nova
geração uma maior quantidade de tempo de trabalho excedente. A nova
geração poderá também conservar esse excedente em molas e noutros
receptáculos. Num período relativamente curto, o trabalho conserva-
do nas molas irá exceder o tempo de trabalho disponível a qualquer
geração viva; com o dispêndio de relativamente pouca energia, as pes-
soas desta sociedade imaginária serão capazes de empregar as molas
na maioria das suas tarefas necessárias e também na tarefa de com-
primir novas molas para as gerações vindouras. A maioria das horas
de vida que anteriormente despendiam a produzir bens, estarão agora
disponíveis para actividades que não são ditadas pela necessidade mas
projectadas pela imaginação.
À primeira vista não parece provável que as pessoas dediquem as
suas horas de vida à bizarra tarefa de comprimir molas. Também não
parece provável, mesmo que comprimam as molas, que as conservem
para gerações futuras, já que a descompressão das molas poderá for-
necer, por exemplo, um maravilhoso espectáculo em dias festivos.
Contudo, se as pessoas não dispusessem das suas próprias vidas, se a
sua actividade laboral não fosse sua, se a sua actividade prática consistisse
em trabalho forçado, então a actividade humana poderia ser empregada
na tarefa de comprimir molas, na tarefa de conservar em receptáculos
materiais tempo de trabalho excedente. O papel histórico do Capitalis-

48
A reprodução da vida quotidiana

mo, um papel desempenhado por pessoas que aceitaram a legitimidade


de outros disporem da sua vida, consistiu precisamente na conservação de
actividade humana em receptáculos materiais através de trabalho forçado.
A partir do momento em que as pessoas se submetem ao «poder»
do dinheiro para comprar trabalho conservado assim como actividade
viva, a partir do momento em que aceitam o «direito» fictício de os de-
tentores de dinheiro controlarem e disporem da actividade conservada
assim como da actividade viva da sociedade, essas pessoas transfor-
mam dinheiro em Capital e os detentores de dinheiro em Capitalistas.
Esta dupla alienação, a alienação de actividade viva na forma de tra-
balho assalariado e a alienação da actividade de gerações passadas na for-
ma de trabalho conservado (meios de produção), não é um acto isolado
ocorrido algures na História. A relação entre trabalhadores e capitalistas
não é uma coisa que se impôs a si mesma na sociedade algures no pas-
sado, de uma vez por todas. O homem nunca assinou um contrato, nem
sequer fez um qualquer acordo verbal, em que abdicava do poder sobre
a sua actividade viva e em que abdicava do poder sobre toda a actividade
viva de todas as gerações vindouras em todas as partes do globo.
O Capital usa a máscara de uma força natural; parece tão sólido
como a própria terra; os seus movimentos parecem ser tão irreversíveis
como as correntes; as suas crises tão inevitáveis como terramotos e che-
ias. Mesmo quando se admite que o poder do Capital é criado pelo
homem, esta admissão poderá ser uma mera ocasião para a invenção
de uma máscara ainda mais imponente, a máscara de uma força fabri-
cada pelo homem, um monstro Frankenstein, cujo poder inspira maior
temor do que qualquer força natural.
Contudo, o Capital não é uma força natural nem um monstro fabri-
cado pelo homem, criado algures no passado e que desde então passou
a dominar a vida humana.
O poder do Capital não reside no dinheiro, pois o dinheiro é uma
convenção social que não tem mais «poder» do que aquele que os
homens estejam dispostos a conceder-lhe; quando os homens recusam
vender o seu trabalho, o dinheiro não pode realizar nem sequer as tare-
fas mais simples, porque o dinheiro não «trabalha».
O poder do Capital também não reside em receptáculos materiais
nos quais o trabalho de gerações passadas é conservado, porque a ener-

49
Fredy Perlman

gia potencialmente conservada nesses receptáculos pode ser libertada


pela actividade de pessoas vivas, quer os receptáculos sejam ou não
Capital, nomeadamente «propriedade» alienada. Sem a actividade viva,
a acumulação de objectos que constitui o Capital da sociedade seria
um mero amontoado disperso de variados artefactos sem vida própria
e os «proprietários» do Capital seriam uma mera mistura dispersa de
pessoas invulgarmente pouco criativas (por formação), que a si mes-
mas se rodeiam de pedaços de papel na vã tentativa de ressuscitarem
memórias de um passado grandioso. O único «poder» do Capital re-
side nas actividades diárias das pessoas vivas; este «poder» consiste na
disposição de as pessoas venderem as suas actividades diárias em troca
de dinheiro e de abdicarem de controlar os produtos da sua própria
actividade e da actividade de gerações anteriores.
A partir do momento em que uma pessoa vende o seu trabalho a um
capitalista e aceita apenas uma parte do seu produto como pagamento
por esse trabalho, ela cria condições para a aquisição e exploração de
outras pessoas. Nenhum homem daria o braço ou um filho de boa von-
tade em troca de dinheiro; ainda assim, quando um homem vende a
sua vida de trabalho deliberadamente e conscientemente para adquirir
coisas necessárias à existência, ele não reproduz apenas as condições
que continuam a fazer da venda da sua vida uma necessidade para a
sua preservação; cria também condições que fazem com que a venda
da vida seja uma necessidade para outras pessoas. Gerações vindouras
poderão claramente recusar vender as suas vidas de trabalho pela mes-
ma razão que ele recusou vender o seu braço; contudo, cada falha na
recusa do trabalho alienado e forçado aumenta a reserva de trabalho
conservado com que o Capital pode comprar vidas de trabalho.
Para poder transformar trabalho excedente em Capital, o capitalista
tem de encontrar uma forma de o conservar em receptáculos materiais,
em novos meios de produção, e tem de contratar novos trabalhadores
para activarem os novos meios de produção. Ou seja, tem de alargar
a sua empresa ou começar uma nova empresa num diferente ramo de
produção. Isto pressupõe ou requer a existência de materiais que podem
ser transformados em novas mercadorias comercializáveis, a existência
de compradores desses novos produtos e a existência de pessoas su-
ficientemente pobres para estarem dispostas a vender o seu trabalho.

50
A reprodução da vida quotidiana

Estes requisitos são eles mesmos criados pela actividade capitalista e os


capitalistas não reconhecem limites ou obstáculos à sua actividade; a
democracia do Capital exige uma liberdade absoluta.
O Imperialismo não é simplesmente a «última fase» do Capitalismo;
é também a primeira.
Tudo o que possa ser transformado num bem comerciável é grão
para o moinho capitalista, quer esteja na propriedade do capitalista ou
na do vizinho, quer se encontre à superfície da terra ou debaixo dela,
quer flutue no mar ou rasteje no seu solo; quer esteja restringido a outros
continentes ou a outros planetas. Todas as explorações humanas da na-
tureza, da Alquimia à Física, são mobilizadas para a busca de novos
materiais em que seja possível depositar trabalho, para encontrar novos
objectos que alguém possa ser ensinado a comprar.
Compradores de produtos velhos ou novos são criados por qualquer
meio disponível e estão constantemente a ser descobertos novos meios.
«Mercados abertos» e «portas abertas» são estabelecidos à força e
através da fraude. Se as pessoas não têm meios para comprar os pro-
dutos do capitalista, são contratadas pelos capitalistas e são pagas para
produzir os bens que desejam comprar; se os artesãos locais já pro-
duzem o que os capitalistas têm para vender, são arruinados ou subor-
nados; se as leis ou tradições proíbem o uso de certos produtos, as leis
e as tradições são destruídas; se às pessoas faltam os objectos em que
possam usar os produtos capitalistas, são ensinadas a comprar esses
objectos; se as pessoas já não tiverem necessidades físicas ou biológicas,
os capitalistas «satisfazem» as suas «necessidades espirituais» e contra-
tam psicólogos para as criarem; se as pessoas estiverem tão saciadas
dos produtos capitalistas que já não conseguem usar novos objectos,
são ensinadas a comprar objectos e espectáculos que não têm qualquer
utilidade mas que podem ser simplesmente observados e admirados.
Há pessoas pobres em sociedades pré-agrárias e agrárias em todos
os continentes; se não forem suficientemente pobres para estarem dis-
postas a vender o seu trabalho quando os capitalistas chegarem, são
empobrecidas pelas actividades dos próprios capitalistas. As terras dos
caçadores tornam-se gradualmente «propriedade privada» de «pro-
prietários» que recorrem à violência do Estado para restringirem os
caçadores a «reservas» onde não há alimentos suficientes para os man-

51
Fredy Perlman

terem vivos. Gradualmente, as ferramentas dos camponeses vão fican-


do disponíveis apenas através de um mesmo comerciante que genero-
samente lhes empresta dinheiro para comprarem essas ferramentas, até
as «dívidas» dos camponeses serem tão grandes que se vêem forçados
a vender terrenos que nem eles, nem os seus antepassados, alguma vez
haviam comprado. Os compradores de produtos artesanais vão-se
gradualmente reduzindo aos comerciantes que revendem os produtos,
até chegar o dia em que um comerciante decide acolher «os seus ar-
tesãos» debaixo do mesmo tecto e lhes fornece os instrumentos que os
levam a concentrarem a sua actividade na produção dos artigos mais lu-
crativos. Caçadores, camponeses e artesãos independentes assim como
dependentes, homens livres assim como escravos, são transformados
em trabalhadores contratados. Os que anteriormente dispunham das
suas próprias vidas perante difíceis condições materiais, deixam de dis-
por das suas próprias vidas precisamente quando assumem a tarefa de
modificar as suas condições materiais; os que anteriormente eram cri-
adores conscientes da sua própria pobre existência, tornam-se vítimas
inconscientes da sua própria actividade mesmo quando terminam com
a sua pobre existência. Homens que eram grandes mas tinham pouco,
passam a ter muito mas são pequenos.
A produção de novas mercadorias, a «abertura» de novos mercados e
a criação de novos trabalhadores, não são três actividades separadas; são
três aspectos da mesma actividade. Uma nova força de trabalho é criada
precisamente para produzir as novas mercadorias; os salários recebidos
por esses trabalhadores são eles mesmos o novo mercado; o seu trabalho
não pago é fonte de nova expansão. Não há barreiras naturais nem cul-
turais que detenham a propagação do Capital, a transformação da activi-
dade diária das pessoas em trabalho alienado, a transformação do seu tra-
balho excedentário na «propriedade privada» dos capitalistas. Contudo,
o Capital não é uma força natural; é uma série de actividades realizadas
pelas pessoas diariamente; é uma forma de quotidiano; a sua contínua
existência e expansão pressupõem apenas uma condição essencial: a dis-
posição das pessoas para continuarem a alienar as suas vidas de trabalho
e para assim reproduzirem a forma capitalista da vida quotidiana.

[1969]

52
Revolta na Jugoslávia Socialista
«Os hereges são sempre mais perigosos que os inimigos», concluiu
um filósofo jugoslavo depois de analisar a repressão dos intelectuais
marxistas pelo regime marxista da Polónia (S. Stojanović, Student, Bel-
grado, 9 de Abril de 1968, p. 7).
Na Jugoslávia, onde a «autogestão dos trabalhadores» se tornou a
ideologia oficial, uma nova luta pelo controlo popular expôs a lacuna
entre a ideologia oficial e as relações sociais que afirma descrever. Os
heréticos que expuseram esta lacuna foram temporariamente isolados;
a sua luta foi momentaneamente suprimida. A ideologia da «autoges-
tão» continua a servir de máscara a uma burocracia comercial tecno-
crata que tem concentrado com sucesso a riqueza e o poder criados
pela população trabalhadora jugoslava. Contudo, mesmo que de forma
isolada e parcial alguém lhe tire a máscara, isso arruina a sua eficácia: a
«elite» governante da Jugoslávia foi denunciada; as suas proclamações
«marxistas» foram reveladas como mitos que, uma vez revelados, dei-
xam de servir para justificar a sua governação.
Em Junho de 1968, o fosso entre a teoria e a prática, entre as procla-
mações oficiais e as relações sociais, foi denunciado pela prática, pela
actividade social: os estudantes começaram a organizar-se em manifes-
tações e em assembleias-gerais, e o regime que proclama a autogestão
reagiu a este exemplo raro de auto-organização popular acabando com
ele através da repressão policial e da imprensa.

53
Fredy Perlman

A natureza do fosso que separa a ideologia jugoslava e a sociedade


foi analisada antes de Junho de 1968, não pelos «inimigos de classe»
dos governantes «revolucionários marxistas» jugoslavos, mas por revo-
lucionários marxistas jugoslavos – por heréticos. Segundo declarações
oficiais, numa sociedade em que a classe trabalhadora já se encontra no
poder não há greves, porque é absurdo para os trabalhadores fazerem
greve contra eles próprios. Contudo, greves que não foram cobertas
pela imprensa porque não poderiam ter lugar na Jugoslávia, têm irrom-
pido durante os últimos onze anos – e de forma maciça (Susret, nº. 98,
18 de Abril de 1969). Além disso, «as greves na Jugoslávia são um sinto-
ma da tentativa de reavivar o movimento dos trabalhadores». Ou seja,
numa sociedade onde se diz que quem governa são os trabalhadores,
o movimento dos trabalhadores está morto. «Isto poderá parecer para-
doxal a algumas pessoas. Mas não o é devido ao facto de a autogestão
dos trabalhadores existir principalmente “no papel” (…).» (L. Tadić,
Student, 9 de Abril de 1969, p. 7).
Contra quem se manifestam os estudantes, contra quem fazem greve
os trabalhadores, numa sociedade onde os estudantes e os trabalhadores
já se governam a si próprios? A resposta a esta questão não pode ser
encontrada nas declarações da Liga dos Comunistas da Jugoslávia, mas
apenas em análises críticas das relações sociais na Jugoslávia – análises
que são heréticas porque contradizem as declarações oficiais. Nas socie-
dades capitalistas, as actividades são justificadas em nome do progresso
e do interesse nacional. Na sociedade jugoslava, os programas, políticas
e reformas são justificados em nome do progresso e da classe trabalha-
dora. Contudo, não são os trabalhadores que dão início aos projectos
dominantes, nem eles servem os interesses dos trabalhadores: «Por um
lado, partes da classe trabalhadora são trabalhadores assalariados que
vivem abaixo do nível necessário à existência. O fardo da reforma eco-
nómica é carregado pela classe trabalhadora, facto que deve ser admi-
tido abertamente. Por outro lado, pequenos grupos capitalizam-se da
noite para o dia sem quaisquer escrúpulos, à custa de trabalho privado,
serviços, comércio e como intermediários. O seu capital não se baseia
no seu trabalho, mas sim na especulação, mediação, transformação de
trabalho pessoal em relações de propriedade e, muitas vezes, numa cor-
rupção sem rodeios.» (M. Pečujlić, Student, 30 de Abril de 1968, p. 2).

54
revolta na jugoslávia socialista

O paradoxo pode ser afirmado em termos mais gerais: as relações


sociais já conhecidas por Marx reaparecem numa sociedade que pas-
sou por uma revolução socialista liderada por um partido marxista em
nome da classe trabalhadora. Os trabalhadores recebem salários em
troca do seu trabalho vendido (mesmo que os salários sejam chamados
«rendimentos pessoais» ou «bónus»); os salários são um equivalente
dos bens materiais necessários para a sobrevivência física e social dos
trabalhadores; o trabalho excedente, apropriado pelas burocracias esta-
tais ou empresariais e transformado em capital, rende lucros como for-
ça alienada que determina as condições materiais e sociais de existência
dos trabalhadores. Segundo as histórias oficiais, a Jugoslávia eliminou
a exploração em 1945, quando a Liga dos Comunistas da Jugoslávia
conquistou o poder de Estado. Mas os trabalhadores, cujo trabalho
sustenta uma burocracia de Estado ou comercial e cujo trabalho não
pago se volta contra eles como uma força que parece não resultar da
sua própria actividade mas de um poder mais alto, executam trabalho
forçado: são explorados. Segundo as histórias oficiais, a Jugoslávia, em
1952, eliminou a burocracia enquanto grupo social que dominava a
classe trabalhadora, quando o sistema de autogestão dos trabalhadores
foi introduzido. Mas os trabalhadores que alienam a sua actividade viva
em troca de meios de sobrevivência não se autogovernam; são gover-
nados pelos indivíduos a quem alienaram o seu trabalho e o produto
desse trabalho, mesmo que essas pessoas se apaguem em documentos
legais e proclamações.
Nos Estados Unidos, os trustes deixaram de existir legalmente no
preciso momento histórico em que começaram a centralizar o enorme
poder produtivo da classe trabalhadora estado-unidense. Na Jugoslá-
via, o estrato social que gere a classe trabalhadora deixou de existir em
1952. Mas, na realidade, «o desmantelamento do unificado monopólio
burocrático centralizado levou à criação de uma rede de instituições
autogeridas em todos os ramos da actividade social (redes de conselhos
de trabalhadores, organismos autogeridos, etc.). De um ponto de vista
formal-legal, normativo e institucional, a sociedade é autogerida. Mas
será também essa a condição das relações reais? Por detrás da fachada
da autogestão, no interior dos organismos autogeridos, decorrem das
relações de produção duas tendências poderosas e opostas. Em cada

55
Fredy Perlman

centro de decisão, numa forma metamorfoseada e descentralizada, há


uma burocracia. Consiste em grupos informais que mantêm um mono-
pólio na gestão do trabalho, um monopólio na distribuição do trabalho
excedente contra os trabalhadores e os seus interesses, que se apro-
priam disso baseados na posição que ocupam na hierarquia burocráti-
ca e não no seu trabalho, que tentam manter os representantes da “sua”
organização ou da “sua” região permanentemente no poder para assim
assegurarem a sua própria posição e para manterem a anterior separa-
ção, o trabalho não qualificado e a produção irracional – transferindo
o fardo para os trabalhadores. Entre si, comportam-se como represen-
tantes de um monopólio de propriedade [...] Por outro lado, existe uma
tendência profundamente socialista e autogestora, um movimento que
já começou a agitar-se [...]» (Pečujlić, Ibidem).
Esta tendência profundamente socialista representa uma luta con-
tra a dependência e impotência que permite que os trabalhadores se-
jam explorados com os produtos do seu próprio trabalho; representa
uma luta pelo controlo de todas as actividades sociais por quem as re-
aliza. No entanto, que forma pode esta luta tomar numa sociedade que
já proclama a auto-organização e o autogoverno como seu sistema so-
cial, económico e legal? Que formas de luta revolucionária podem ser
desenvolvidas num contexto em que um partido comunista já detém o
poder de Estado e onde este partido comunista já proclamou o fim da
governação burocrática e elevou a autogestão ao nível de uma ideologia
oficial? Manifestamente, a luta não pode consistir na expropriação da
classe capitalista, porque essa expropriação já ocorreu; nem pode con-
sistir na tomada do poder de Estado por um partido marxista revolu-
cionário, porque esse partido já exerce o poder de Estado desde há um
quarto de século. Claro que é possível fazer isso mais uma vez e conve-
cermo-nos de que o resultado será melhor à segunda tentativa do que
à primeira. Mas a imaginação política não é tão pobre que precise de
limitar as suas perspectivas a fracassos passados. Compreende-se hoje
em dia que na Jugoslávia e noutros lugares a expropriação da classe ca-
pitalista e a sua substituição pela «organização da classe trabalhadora»
(i.e. o Partido Comunista), que a tomada do poder de Estado nacional
pela «organização da classe trabalhadora» e mesmo a proclamação ofi-
cial de vários tipos de «socialismo» pelo Partido Comunista no poder,

56
revolta na jugoslávia socialista

já são realidades históricas e que não significaram o fim da produção de


mercadorias, do trabalho alienado, do trabalho forçado, nem o início
da auto-organização e do autogoverno popular.
Por conseguinte, as formas de luta organizada que já provaram ser
instrumentos eficientes para a aceleração da industrialização e para a
racionalização das relações sociais segundo o modelo do Admirável
Mundo Novo, não podem ser as formas de organização de uma luta pela
iniciativa crítica e independente e pelo controlo exercido por toda a
população trabalhadora. A tomada do poder de Estado pela burocracia
de um partido político não é mais do que as próprias palavras dizem,
mesmo que este partido se autodenomine «a organização da classe tra-
balhadora» e mesmo que chame à sua própria governação «a Ditadura
do Proletariado» ou «a Autogestão dos Trabalhadores». Além disso, a
experiência jugoslava nem sequer demonstra que a tomada do poder
de Estado pela «organização da classe trabalhadora» seja uma fase no
caminho para o controlo da produção social pelos trabalhadores ou
mesmo que a proclamação oficial da «autogestão dos trabalhadores»
seja uma fase com vista à sua realização. A experiência jugoslava só
representaria essa fase, pelo menos historicamente, se os trabalhadores
jugoslavos fossem os primeiros no mundo a iniciar uma luta bem-su-
cedida pela desalienação do poder a todos os níveis da vida social. Mas
os trabalhadores jugoslavos não iniciaram essa luta. Tal como nas so-
ciedades capitalistas, foram os estudantes que iniciaram essa luta, e os
estudantes jugoslavos não foram dos primeiros.
A conquista do poder de Estado por um partido político que usa
um vocabulário marxista para manipular a classe trabalhadora deve
ser distinguida de outra tarefa histórica bem diferente: o derrube das
relações mercantis e o estabelecimento de relações socialistas. Duran-
te mais de meio século, a primeira tarefa tem sido apresentada sob a
forma da segunda. A ascensão de uma «nova esquerda» pôs fim a esta
confusão; o movimento revolucionário que está a passar por um renas-
cimento à escala mundial caracteriza-se precisamente pela sua recusa
de impulsionar uma burocracia partidária para o poder de Estado e
pela sua oposição a essa burocracia onde ela já se encontra no poder.
Os ideólogos do partido argumentam que a «nova esquerda» nas
sociedades capitalistas nada tem em comum com as revoltas estudantis

57
Fredy Perlman

no «países socialistas». Essa visão, na melhor das hipóteses, é exagera-


da; no que diz respeito à Jugoslávia, o mais que se pode dizer é que o
movimento estudantil jugoslavo não é tão desenvolvido como nalguns
países capitalistas: até Junho de 1968, os estudantes jugoslavos eram
conhecidos pela sua passividade política, pela sua simpatia pró-ame-
ricana e pelos seus objectivos de vida pequeno-burgueses. Contudo,
apesar dos desejos dos ideólogos, os estudantes jugoslavos não ficaram
muito atrás; os estudantes jugoslavos não ficaram alheios à busca de no-
vas formas de organização adequadas às tarefas da revolução socialista.
Em Maio de 1968, quando a vasta luta pela desalienação de todas as
formas de poder social separado estava a ganhar experiência histórica
em França, o tópico «Estudantes e Política» foi discutido na Faculdade
de Direito de Belgrado. O «tema que deu o tom à discussão» foi «[...]
a possibilidade de um envolvimento humano no movimento da “nova
esquerda”, que, nas palavras do Dr. S. Stojanović, se opõe à mitologia
do “Estado social”, com a sua clássica democracia burguesa, e também
aos partidos de esquerda clássicos – os partidos social-democratas que
conseguiram, através de todos os meios possíveis, esbater os objectivos
revolucionários nas sociedades ocidentais desenvolvidas, assim como
os partidos comunistas que muitas vezes desacreditaram os ideais ori-
ginais por que lutaram, perdendo-os frequentemente por completo em
notáveis deformações burocráticas.» («O Tópico é a Acção», Student,
14 de Maio de 1968, p. 4).
Em Maio de 1968, os estudantes jugoslavos tiveram muitas coisas
em comum com os seus companheiros nas sociedades capitalistas. Um
editorial de primeira página do jornal estudantil de Belgrado dizia, «a
tensão da presente situação político-social tornou-se mais aguda devi-
do ao facto de não existirem quaisquer soluções rápidas e fáceis para
os inúmeros problemas. São visíveis na universidade várias formas de
tensão, e a falta de perspectivas, a falta de soluções para os inúmeros
problemas, está na base de várias formas de comportamento. Sentindo
isso, muitos perguntam se a tensão se poderá transformar em conflito,
numa crise política séria, e que forma poderá essa crise assumir. Al-
guns pensam que a crise não poderá ser evitada, podendo apenas ser
atenuada, por não haver uma forma rápida e eficiente que influa nas
condições que caracterizam a estrutura social como um todo e que são

58
revolta na jugoslávia socialista

as causas directas de toda a situação.» («Sinais de Crise Política», Stu-


dent, 21 de Maio de 1968, p. 1). A mesma primeira página do jornal es-
tudantil trazia a seguinte citação de Marx sobre a «alienação velada no
cerne do trabalho»: «[...] O trabalho produz maravilhas para os ricos,
mas miséria para o trabalhador. Produz palácios, mas casebres para
o trabalhador. Produz beleza, mas horror para o trabalhador. Substi-
tui o trabalho pelas máquinas, mas atira parte dos trabalhadores para
um trabalho bárbaro e transforma em máquinas a outra parte. Produz
consciência, mas para o trabalhador produz estupidez e cretinismo.
No mesmo mês, o editorial do jornal da Federação da Juventude de
Belgrado dizia: «[...] na nossa opinião, o papel revolucionário dos estu-
dantes jugoslavos reside no seu compromisso de lidar com problemas
sociais gerais e contradições (entre os quais estão incluídos os proble-
mas e as contradições da situação social e material dos estudantes). Os
problemas particulares dos estudantes, por mais drásticos que sejam,
não podem ser resolvidos de forma isolada, separados dos problemas
sociais gerais: a situação material dos estudantes não pode ser separada
da situação económica da sociedade; o autogoverno dos estudantes não
pode ser separado dos problemas sociais do autogoverno; a situação
da universidade não pode ser separada da situação da sociedade [...]»
(Susret, 15 de Maio de 1968). O número seguinte da mesma publicação
continha uma discussão sobre «as condições e o teor do compromis-
so político da juventude actual» que incluía a seguinte observação: «A
reforma da universidade não é pois possível sem reformar ou, por que
não?, sem revolucionar toda a sociedade, porque a universidade não
pode ser separada do espectro mais abrangente das instituições sociais.
Disto decorre que a liberdade de pensamento e de acção, nomeada-
mente a autonomia para a universidade, só é possível se toda a socieda-
de for transformada, e, se houver uma tal transformação, torna possível
um clima geral de liberdade e autonomia.» (Susret, 1 de Junho de 1968).

***

Em Abril de 1968, tal como os seus companheiros nos países ca-


pitalistas, os estudantes jugoslavos demonstraram a sua solidariedade
com a Frente de Libertação Nacional do Vietname e a sua oposição

59
Fredy Perlman

ao militarismo dos Estados Unidos. Quando Rudi Dutschke foi atin-


gido a tiro em Berlim na sequência da campanha da Springer Press
contra os estudantes radicais da Alemanha Ocidental, os estudantes
jugoslavos demonstraram a sua solidariedade com a Federação Alemã
dos Estudantes Socialistas (FAES). O jornal dos estudantes de Belgrado
publicou artigos de Rudi Dutschke e do filósofo marxista alemão Ernst
Bloch. A experiência do movimento estudantil mundial foi comunica-
da aos estudantes jugoslavos. «As revoltas estudantis que tiveram lugar
em muitos países durante este ano, demonstraram que a juventude é
capaz de levar a cabo projectos importantes no processo de mudança
de uma sociedade. Podemos afirmar que estas revoltas influenciaram
alguns círculos da nossa universidade, porque é óbvio que a coragem
e a vontade de lutar aumentaram, que a consciência crítica de muitos
estudantes se aguçou (a revolução é muitas vezes o tópico de discus-
sões intelectuais)» (Student, 23 de Abril de 1968, p.1). Quanto às for-
mas de organização através das quais esta vontade de lutar se poderia
expressar, Paris forneceu um exemplo. «O que é completamente novo
e extremamente importante no novo movimento revolucionário dos
estudantes de Paris – mas também dos estudantes alemães, italianos
e americanos –, é que ele só foi possível porque era independente de
todas as organizações políticas existentes. Todas estas organizações,
incluindo o Partido Comunista, se tornaram parte do sistema; foram
integradas nas regras do jogo do dia-a-dia parlamentar; mal têm tido
vontade de arriscar as posições que já alcançaram para se lançarem nes-
ta operação loucamente corajosa e à primeira vista desesperada.» (M.
Marković, Student, 21 de Maio de 1968).
Outro elemento-chave que contribuiu para o desenvolvimento do
movimento estudantil jugoslavo foi a experiência dos estudantes de Bel-
grado com a burocracia da associação de estudantes. Em Abril, os estu-
dantes da Faculdade de Filosofia escreveram uma carta de protesto con-
tra a repressão dos intelectuais marxistas na Polónia. «Hoje em dia, por
todo o mundo, os estudantes encontram-se na vanguarda da luta para a
criação de uma sociedade humana e, por isso mesmo, estamos profun-
damente surpreendidos com as reacções do regime socialista polaco. O
pensamento crítico livre não pode ser suprimido por nenhum tipo de
poder, nem mesmo por aquele que superficialmente se apoia em ideais

60
revolta na jugoslávia socialista

socialistas. Para nós, jovens marxistas, é incompreensível que nos dias


que correm seja possível, num país socialista, tolerar ataques anti-semi-
tas e usá-los para solucionar problemas internos. Consideramos inacei-
tável que depois de o socialismo polaco ter passado por tantas experiên-
cias dolorosas, os conflitos internos tenham de ser resolvidos por meios
tão antidemocráticos e que para solucioná-los o pensamento marxista
seja perseguido. Também consideramos inescrupulosas as tentativas de
separar e criar um conflito entre o movimento progressista estudantil e
a classe trabalhadora, cuja completa emancipação é também o objectivo
dos estudantes [...]» (Student, 23 de Abril de 1968, p. 4). Uma assembleia
de estudantes da Faculdade de Filosofia enviou essa carta para a Polónia
– e o Conselho Universitário da Associação de Estudantes Jugoslavos
opôs-se a essa acção. Porquê? Os estudantes de filosofia analisaram a
função e os interesses da sua própria burocracia: «O Conselho Universi-
tário da Associação de Estudantes Jugoslavos encontrava-se numa situ-
ação em que tinha perdido o seu vigor político, não podia reagir, sentia-
-se fraco e sem qualquer obrigação de fazer alguma coisa. Contudo, se
esta associação não fosse solicitada, se o seu conselho não fosse ouvido,
“não deveriam ser empreendidas” acções. Isto demonstra processos no-
civos e um ainda menor respeito pela democracia, que deve atingir a sua
máxima expressão entre os jovens, como os estudantes. Precisamente
no momento em que o Conselho Universitário deixou de compreender
a essência da acção, a discussão foi canalizada para o terreno das for-
malidades: “Deveria ter sido inquirida a opinião de quem?” “De quem
deveria ter sido recebida autorização?” Nessa atmosfera de passividade
não se perguntou quem daria início a uma acção. Não é paradoxal que o
Conselho Universitário se volte contra uma acção que foi iniciada pre-
cisamente pelos seus próprios membros e não por um qualquer fórum,
se tivermos em conta que o princípio básico do nosso socialismo é a au-
togestão, o que significa tomar decisões entre as fileiras dos seus mem-
bros? Por outras palavras, o nosso pecado foi termos aplicado o nosso
direito básico à autogestão. A organização nunca poderá ser um fim em
si mesma, mas apenas um meio para a realização de determinados fins.
O maior valor da nossa acção encontra-se precisamente no facto de ter
sido iniciada pelas bases, sem directrizes ou instruções de cima, sem
estúpidas formas institucionalizadas.» (Ibidem).

61
Fredy Perlman

Com estes elementos – consciência da inseparabilidade dos proble-


mas universitários das relações sociais de uma sociedade baseada no
trabalho alienado, consciência da experiência da «nova esquerda» in-
ternacional e consciência da diferença entre auto-organização das ba-
ses e organização burocrática –, os estudantes de Belgrado entraram em
acção. O incidente que desencadeou as acções foi secundário. Na noite
de 2 de Junho de 1968, uma actuação que deveria ter sido efectuada no
exterior, perto dos dormitórios dos estudantes em Nova Belgrado, teve
lugar numa pequena sala fechada e os estudantes que queriam vê-la não
puderam entrar. Começou assim uma manifestação espontânea a que ra-
pidamente se juntaram milhares de estudantes e os manifestantes come-
çaram a dirigir-se para os edifícios governamentais. Foram impedidos de
avançar, tal como nas sociedades capitalistas, pela polícia (oficialmente
chamada «milícia» na linguagem da autogestão jugoslava); os estudantes
foram agredidos à bastonada pela milícia e muitos foram detidos.
No dia seguinte, 3 de Junho, houve assembleias-gerais contínuas na
maioria das faculdades que compõem a Universidade de Belgrado (re-
nomeada Universidade Vermelha Karl Marx) e também nas ruas de
Nova Belgrado. «Nas suas discussões, os estudantes realçaram a enor-
me diferenciação social da sociedade jugoslava, o problema do desem-
prego, o aumento da propriedade privada e a imerecida riqueza de uma
camada da sociedade, a insuportável condição de uma larga parte da
classe trabalhadora e a necessidade de levar a cabo de forma consistente
o princípio da distribuição segundo o trabalho. As discussões foram
interrompidas por fortes aplausos, por palavras de ordem como “Os es-
tudantes estão com os trabalhadores”, “Somos filhos de trabalhadores”,
“Abaixo a burguesia socialista”, “Liberdade de imprensa e de manifesta-
ção!”» (Student, número especial, 4 de Junho de 1968, p.1).
À repressão policial seguiu-se a repressão da imprensa. A imprensa
(comunista) jugoslava não comunicou a luta dos estudantes ao resto da
população. Comunicou uma luta dos estudantes por questões estudan-
tis, a luta de um grupo à parte por maiores privilégios, uma luta que
não existiu. A primeira página da edição de 4 de Junho do Student, que
foi banido pelas autoridades de Belgrado, relata a tentativa da impren-
sa de apresentar uma luta revolucionária emergente como uma revolta
estudantil por privilégios especiais: «A imprensa conseguiu novamente

62
revolta na jugoslávia socialista

distorcer os acontecimentos na universidade [...] Segundo a imprensa,


os estudantes estão a lutar para melhorar as suas próprias condições
materiais. Mas todos quantos participaram nos encontros e manifes-
tações sabem muito bem que os estudantes já tinham tomado outra
direcção – para uma luta que englobasse os interesses gerais da nossa
sociedade, uma luta, acima de tudo, pelos interesses da classe traba-
lhadora. É por isso que os comunicados enviados pelos manifestantes
enfatizavam, acima de tudo o resto, a diminuição de diferenças sociais
injustificadas. Segundo os estudantes, esta luta (contra a desigualdade
social), conjuntamente com a luta por relações de autonomia e por re-
formas, é hoje de importância central para a classe trabalhadora e para
a Jugoslávia. Os jornais não citaram um único orador que tenha falado
sobre diferenças sociais injustificadas [...] Os jornais também omitiram
as principais palavras de ordem gritadas durante os comícios e mani-
festações: Pela unidade dos trabalhadores e dos estudantes, Os estudan-
tes estão com os trabalhadores, e palavras de ordem semelhantes que
expressavam uma única ideia e um único sentimento: que os caminhos
e os interesses dos estudantes são inseparáveis dos da classe trabalha-
dora.» (Student, 4 de Junho de 1968, p.1).
A 5 de Junho, a Federação dos Estudantes Jugoslavos conseguiu con-
quistar a liderança do crescente movimento e tornar-se seu porta-voz.
A organização estudantil proclamou um «Programa de Acção Política»
que continha os objectivos revolucionários expressos pelos estudantes
nas assembleias, comícios e manifestações – mas o programa também
continha, como que através de um apêndice, uma «segunda parte» sobre
a «reforma universitária». Este apêndice, mais tarde, teve um papel-cha-
ve ao adormecer o movimento estudantil jugoslavo recentemente des-
pertado. A primeira parte do programa de acção política enfatizava, pri-
meiro que tudo, a iniquidade social, o desemprego, a «democratização
de todas as organizações políticas e sociais, particularmente a Liga dos
Comunistas», a degeneração da propriedade social em propriedade pri-
vada, a especulação imobiliária e a comercialização da cultura. Contu-
do, a segunda parte, que nem deve ter sido lida pelos estudantes radicais,
satisfeitos com a expressão relativamente correcta dos seus objectivos
expostos na primeira parte, apresenta uma orientação bastante diferen-
te, que na verdade se lhe opunha. A primeira «exigência» da segunda

63
Fredy Perlman

parte já pressupõe que nenhum dos objectivos expressos na primeira


parte seria cumprido: é uma exigência de adaptação da universidade
às correntes necessidades do sistema social jugoslavo, nomeadamente
a exigência de uma reforma tecnocrática que satisfaça os requisitos do
regime tecnocrático-comercial jugoslavo: «Uma reforma imediata do
sistema escolar para adaptá-lo aos requisitos do desenvolvimento social
e cultural da nossa economia e das nossas relações de autogestão [...]»
(Student, número especial, 8 de Junho de 1968, p. 1 e 2).
Esta mudança brusca, esta manipulação da revolta estudantil com a
intenção de servir as necessidades das relações sociais dominantes con-
tra as quais os estudantes se tinham revoltado, não se tornou eviden-
te até ao ano lectivo seguinte. As reacções imediatas do regime foram
bem menos subtis: consistiam em reprimir, isolar, separar. As formas
de repressão policial incluíam espancamentos e prisões, a proibição do
jornal estudantil que levava a cabo o único relato completo dos acon-
tecimentos, das manifestações e das reuniões; e na noite de 6 de Ju-
nho «dois agentes da polícia secreta e um oficial da milícia atacaram
brutalmente estudantes que distribuíam o jornal estudantil, agarraram
em 600 exemplares do jornal, rasgaram-nos em pedaços e queimaram-
-nos. Tudo isto se passou diante de um grande grupo de cidadãos que
se tinham ali juntado para obter exemplares do jornal.» (Student, 8 de
Junho de 1968, p. 3).
Para além da repressão policial, os interesses dominantes consegui-
ram isolar e separar os estudantes dos trabalhadores, pondo tempora-
riamente em aplicação a sua «tentativa inescrupulosa de separar e criar
um conflito entre o movimento estudantil progressista e a classe traba-
lhadora, cuja total emancipação é também o objectivo dos estudantes.»
Isto foi feito de várias formas. A proibição da imprensa estudantil e
a desinformação da imprensa oficial mantiveram os trabalhadores na
ignorância dos objectivos dos estudantes; directores de empresas e os
seus círculos de especialistas «explicaram» a luta estudantil aos «seus»
trabalhadores, deram-lhes instruções para defenderem as «suas» fá-
bricas dos ataques dos estudantes «violentos» e para depois enviarem
cartas à imprensa, em nome do seu «colectivo de trabalhadores», fe-
licitando a polícia por ter salvo a autogestão jugoslava dos estudantes
violentos. «Segundo o que é escrito e dito, dir-se-ia que foram os estu-

64
revolta na jugoslávia socialista

dantes que utilizaram a força contra a Milícia Nacional, que bloquea-


ram as esquadras da milícia e as cercaram. Tudo o que tem caracteri-
zado o movimento estudantil desde o início, na cidade e nos edifícios
universitários, a ordem e o sangue-frio, é descrito com a velha palavra:
violência (…) Esta burocracia, que quer criar um conflito entre os tra-
balhadores e os estudantes, encontra-se dentro da Liga dos Comunis-
tas, das empresas e dos cargos de Estado, e é particularmente poderosa
na imprensa (a imprensa é uma estrutura eminentemente hierárquica
que se apoia na autogestão apenas para se proteger das críticas e da
responsabilidade). Ao enfrentar o movimento dos trabalhadores e dos
estudantes, a burocracia sente que o chão lhe foge dos pés, que está a
perder os lugares obscuros por onde prefere movimentar-se – e, por
medo, clama as suas pretensões sem sentido. [...] O nosso movimento
precisa de se unir urgentemente à classe trabalhadora. Tem de explicar
os seus princípios básicos e tem de assegurar que esses princípios são
realizados, que se tornam mais ricos e complexos, que não são apenas
meros lemas. Mas isso é precisamente o que a burocracia teme e é por
isso que dizem aos trabalhadores para protegerem as fábricas dos es-
tudantes, é por isso que dizem que os estudantes estão a destruir as fá-
bricas. Que estupidez monumental!» (D. Vuković, Student, 8 de Junho
de 1968, p. 1). Por isso, os autogeridos directores do socialismo jugos-
lavo protegiam os trabalhadores jugoslavos dos estudantes jugoslavos
tal como, semanas antes, as «organizações dos trabalhadores» francesas
(a Confederação Geral do Trabalho e o Partido Comunista Francês)
tinham protegido os trabalhadores franceses da revolução socialista.

***

A repressão e a separação não acabaram com o movimento revo-


lucionário jugoslavo. As assembleias-gerais continuaram a realizar-se,
os estudantes continuaram a procurar formas de organização que os
pudessem unir aos trabalhadores e que fossem adequadas à tarefa de
transformar a sociedade. O terceiro passo consistia em pacificar e, se
possível, recuperar o movimento para que servisse as necessidades da
própria estrutura contra a qual ele tinha lutado. Este passo ganhou
forma através de um grande discurso de Tito, impresso na edição do

65
Fredy Perlman

Student de 11 de Junho. Numa sociedade em que a grande maioria das


pessoas considera o «culto da personalidade» na China o maior pecado
existente à face da terra, a maioria dos estudantes aplaudiu as seguintes
palavras do homem cuja fotografia tem decorado todas as instituições
públicas jugoslavas, muitas casas particulares e a maior parte das pri-
meiras páginas dos jornais diários durante um quarto de século: «[...]
Ao pensar nas manifestações e no que as precedeu, cheguei à conclusão
de que a revolta dos jovens, dos estudantes, surgiu espontaneamente.
Contudo, à medida que as manifestações se desenvolveram e quando
mais tarde passaram da rua para os auditórios das universidades, deu-
-se uma certa infiltração gradual de elementos estrangeiros que que-
riam utilizar essa situação para os seus próprios fins. Estes elementos
incluem várias tendências, das mais reaccionárias às mais extremas,
e elementos aparentemente radicais que apoiam partes das teorias de
Mao Tsé-Tung.» Depois desta tentativa de isolar e separar os estudantes
revolucionários ao deslocar o problema do conteúdo para a origem das
ideias (elementos estrangeiros com ideias estrangeiras), o Presidente da
República tenta recuperar os bons estudantes nacionais que apenas têm
ideias locais. «Contudo, cheguei à conclusão que a grande maioria dos
estudantes, posso dizer 90%, são jovens honestos [...] Os mais recentes
desenvolvimentos nas universidades demonstraram que 90% dos estu-
dantes são a nossa juventude socialista, que não se deixam envenenar,
que não permitem que os vários djilasitas, rankovićitas e maoístas rea-
lizem os seus próprios objectivos com o pretexto de que estão preocu-
pados com os estudantes [...] A nossa juventude é boa, mas temos que
lhe prestar mais atenção.» Depois de dizer aos estudantes como não de-
veriam deixar-se utilizar, o Presidente da Jugoslávia autogerida diz-lhes
como se devem deixar utilizar. «Dirijo-me, camaradas e trabalhadores,
aos nossos estudantes, para que nos ajudem a fazer uma abordagem
construtiva de todos estes problemas e a dar-lhes solução. Possam eles
prosseguir o que estamos a fazer, que é o seu direito; possam eles fazer
parte do nosso dia-a-dia, e quando algo não for claro, quando algo tiver
de ser esclarecido, possam eles dirigir-se a mim. Podem enviar uma de-
legação.» No que toca ao conteúdo da luta, aos seus objectivos, Tito fala
a crianças do infantário e promete-lhes que ele próprio prestará atenção
a qualquer uma das suas reclamações. «[...] A revolta é em parte resul-

66
revolta na jugoslávia socialista

tado do facto de os estudantes terem visto que eu próprio levantei com


frequência essas questões e de, apesar disso, terem ficado por resolver.
Desta vez prometo aos estudantes que me irei empenhar pessoalmente
em toda a parte no sentido de as resolver, devendo os estudantes aju-
dar-me. Para além disso, se não for capaz de resolver estes problemas,
não deverei continuar a ocupar este lugar. Penso que qualquer velho
comunista que tenha a consciência de um comunista não deve insistir
em permanecer onde se encontra, que deve ceder o seu lugar a pessoas
capazes de resolver os problemas. E, finalmente, dirijo-me de novo aos
estudantes: é tempo de voltarem aos vossos estudos, é tempo de exames
e desejo-vos sucesso. Seria uma pena que perdessem ainda mais tem-
po.» (Tito no Student, 11 de Junho de 1968, p. 1 e 2).
Este discurso, que em si mesmo representa uma auto-denúncia, só
deixou em aberto duas linhas de acção: ou o posterior desenvolvimen-
to do movimento, completamente à margem das organizações políti-
cas manifestamente vulneráveis, ou então a cooptação e um silêncio
temporário. O movimento jugoslavo foi cooptado e temporariamente
silenciado. Seis meses depois da explosão, em Dezembro, a Associação
de Estudantes de Belgrado adoptou oficialmente o programa de acção
política proclamado em Junho. Esta versão do programa incluía uma
primeira parte, sobre os objectivos sociais da luta, uma segunda parte,
sobre a reforma da universidade, e uma terceira parte, posteriormente
adicionada, sobre os passos a dar. Na terceira parte é explicado que «ao
realizar o programa, o método de trabalho deve ser tido em considera-
ção. 1) A Associação de Estudantes não tem a capacidade de participar
directamente na solução dos problemas sociais gerais (primeira parte
do programa) [...] 2) A Associação de Estudantes tem a capacidade de
participar directamente na luta pela reforma da universidade e do sis-
tema de educação superior como um todo (segunda parte do progra-
ma) e de ser porta-voz das tendências progressistas na universidade.»
(Student, 17 de Dezembro de 1969, p. 3). Daí que tenha havido vários
acontecimentos desde Junho. A luta estudantil tem sido instituciona-
lizada: a «organização dos estudantes» apoderou-se dela. Em segundo
lugar, foram acrescentados dois novos elementos aos objectivos origi-
nais da luta de Junho: um programa de reforma universitária e um mé-
todo para a realização dos objectivos. E, finalmente, os objectivos ini-

67
Fredy Perlman

ciais da luta são deixados nas mãos dos grupos sociais contra os quais
os estudantes se tinham revoltado. Aquilo que anteriormente fora um
apêndice, tornava-se agora a única parte do programa sobre a qual os
estudantes devem agir: «a reforma universitária». Assim, a revolta con-
tra a elite administrativa foi cinicamente transformada no seu oposto:
a universidade deve adaptar-se a estar ao serviço das necessidades do
sistema de relações sociais dominante; os estudantes devem ser forma-
dos para servir mais eficazmente a elite administrativa.
Ao mesmo tempo que a «organização dos estudantes» inicia a «luta»
pela reforma universitária, os estudantes, que tinham começado a or-
ganizar-se para lutarem por objectivos bastante diferentes, tornaram-se
mais uma vez passivos e politicamente indiferentes. «Junho foi caracte-
rizado pelo início de uma consciência entre os estudantes; o período
depois de Junho tem, de muitas formas, as características do período
de antes de Junho, o que pode explicar-se pela reacção inadequada da
sociedade aos acontecimentos de Junho e com vista aos objectivos ex-
pressos durante esse mês.» (Student, 13 de Maio de 1969, p. 4).
A luta pela subversão do statu quo foi desviada da sua insanidade;
foi convertida em realista; foi transformada numa luta para servir o
statu quo. Durante essa luta, em que os estudantes não se envolvem
porque «a sua organização» assumiu a tarefa de a gerir por eles, não
há reuniões, assembleias-gerais ou qualquer outra forma de auto-orga-
nização. Porque os estudantes não lutaram por uma «reforma univer-
sitária» antes de Junho ou durante este mês, nem foram recuperados
para essa «luta» depois de Junho. De facto, foi sobretudo o «porta-voz
dos estudantes» que foi recuperado, porque aquilo que era conhecido
antes de Junho é ainda conhecido depois de Junho: «O melhoramento
da universidade só faz sentido se se basear no axioma de que as trans-
formações da universidade dependem das transformações da socieda-
de. A presente condição da universidade reflecte, em maior ou menor
grau, a condição da sociedade. À luz deste facto, não faz sentido afirmar
que discutimos sobre problemas sociais gerais durante bastante tempo
e que chegou o momento de focarmos a nossa atenção na reforma da
universidade.» (B. Jakšić, Susret, 9 de Fevereiro de 1969).
O conteúdo da «reforma universitária» é definido pelo reitor da
Universidade de Belgrado. Na sua formulação, publicada no Student

68
revolta na jugoslávia socialista

meio ano depois dos acontecimentos de Junho, o reitor até inclui «ob-
jectivos» contra os quais os estudantes lutaram explicitamente, tais
como a sua separação da classe trabalhadora em troca de recompensas
e a sua compulsiva integração não apenas na tecnocracia, mas também
nas forças armadas: «A luta para melhorar a posição material da uni-
versidade e dos estudantes é a nossa tarefa constante [...] Uma das ques-
tões-chave do actual trabalho na universidade é a luta imprescindível
contra todas as formas de derrotismo e demagogia. A nossa universida-
de, e particularmente a nossa juventude estudantil, são e continuarão a
ser a defesa entusiasta e segura da nossa pátria socialista. A organização
sistemática para a construção do poder defensivo do nosso país contra
qualquer agressor, seja de onde for que tente atacar-nos, deve ser a ta-
refa constante, rápida e eficiente de todos nós.» (D. Ivanović, Student,
15 de Outubro de 1968, p. 4). Estes comentários foram precedidos por
declarações longas e bastante abstractas alardeando que «a autogestão
é o conteúdo da reforma universitária.» Os comentários mais explícitos
atrás citados tornam claro aquilo que o reitor entende como «conteú-
do» da «autogestão».
Uma vez que os estudantes não se lançam com ardor na «luta» pela
reforma universitária, a tarefa é deixada aos especialistas que estão
interessados nisso, os professores e os funcionários académicos. «Os
principais tópicos de conversação de um grande número de professores
e dos seus colegas são os automóveis, as casas de férias e a vida fácil. Es-
ses são também os principais tópicos de conversação da elite social tão
incisivamente criticada nos escritos desses académicos, que não com-
preendem que são parte integral e significativa dessa elite.» (B. Jakšić,
Susret, 19 de Fevereiro de 1969).
Sob o título de reforma universitária, um dos principais economistas
(oficiais) da Jugoslávia defende uma utopia burocrática com elementos
de magia. O mesmo economista que, alguns anos antes, enfatizara as
«balanças de produção nacional» aritméticas desenvolvidas pelos «en-
genheiros sociais» soviéticos para aplicação em seres humanos por uma
burocracia de Estado, defende agora «a aplicação da Teoria Geral de Sis-
temas para a análise de sistemas sociais concretos». Esta Teoria Geral
de Sistemas é a mais recente descoberta científica de «sistemas sociais
desenvolvidos e progressistas» – como os Estados Unidos. Devido a esse

69
Fredy Perlman

facto, «a Teoria Geral de Sistemas tornou-se indispensável a todos os fu-


turos especialistas nos diferentes campos das ciências sociais e mesmo a
todos os outros especialistas, seja qual for o campo de desenvolvimento
social em que possam participar.» (R. Stojanović, «Sobre a necessidade
do estudo da Teoria Geral de Sistemas nas Faculdades de Ciências So-
ciais», Student, 25 de Fevereiro de 1969). Se através da reforma universi-
tária a Teoria Geral de Sistemas puder ser enfiada na cabeça de todos os
futuros tecnocratas jugoslavos, a Jugoslávia irá presumivelmente tornar-
-se, por artes mágicas, um «sistema social desenvolvido e progressista»
– nomeadamente, uma burocracia comercial, tecnocrática e militar, um
país das maravilhas para a engenharia humana.

***

Os estudantes foram separados dos trabalhadores, a sua luta foi re-


cuperada e isso tornou-se uma ocasião para os burocratas académicos
servirem mais eficazmente a elite tecnocrata-comercial. Os burocratas
encorajam os estudantes a «autogerirem» esta «reforma universitária»,
a participarem na sua própria transformação em homens de negócios,
técnicos e directores. Enquanto isso, os trabalhadores jugoslavos pro-
duzem mais do que alguma vez produziram e vêem os produtos do
seu trabalho aumentarem a riqueza e o poder de outros grupos sociais,
grupos que usam esse poder contra os trabalhadores. Segundo reza a
Constituição, os trabalhadores governam-se a si próprios. Contudo,
segundo um trabalhador entrevistado pelo Student, «Isso só existe no
papel. Quando os directores escolhem os seus subordinados, os tra-
balhadores têm de obedecer; é assim que as coisas funcionam aqui.»
(Student, 4 de Março de 1969, p. 4). Se um trabalhador decidir encetar
uma luta contra o incessante aumento da desigualdade social de rique-
za e poder, vê-se desde logo sustido pelo enorme desemprego que há
na Jugoslávia, onde um grande exército de reserva de desempregados
está à espera de o substituir, porque a única alternativa é sair do país.
Os trabalhadores ainda têm um poderoso instrumento com o qual se
podem «governar a si próprios»; é o mesmo que os trabalhadores têm
nas sociedades capitalistas: a greve. Porém, segundo um analista, as
greves de trabalhadores separados das correntes revolucionárias ad-

70
revolta na jugoslávia socialista

mitidas nesta sociedade e separados do resto da classe trabalhadora,


nomeadamente, as greves «económicas», não aumentaram o poder dos
trabalhadores na sociedade jugoslava; o efeito é praticamente o oposto:
«O que mudou depois de onze anos de experiência com greves? Onde
quer que tenham surgido, as paralisações reproduziram exactamente
as mesmas relações que levaram à greve. Por exemplo, os trabalhado-
res revoltam-se porque são enganados na distribuição de rendimentos;
depois alguém, provavelmente quem os enganou anteriormente, aceita
dar-lhes aquilo que lhes tinha tirado; a greve termina e os trabalhadores
continuam a ser assalariados. E quem cedeu fê-lo apenas para manter
a sua posição de poder ceder, de protector dos trabalhadores. Por ou-
tras palavras, as relações salário-trabalho, que são de facto a principal
causa da greve como método de resolução de conflitos, continuam a
ser reproduzidas. Isso leva-nos a outra questão: será possível que a clas-
se trabalhadora se emancipe deveras no contexto de uma empresa, ou
esse é um processo que tem de se desenvolver em toda a sociedade, um
processo que não tolera nenhuma separação entre diferentes empresas,
ramos, repúblicas?» (Susret, 19 de Abril de 1969).
Quanto aos especialistas que defraudam a classe trabalhadora, o
Student fez uma longa descrição de diversas habilidades: «1) Os fun-
cionários da empresa (directores, empresários, agentes comerciais, etc.)
são pagos pelo conselho de administração, pelo conselho dos trabalha-
dores ou por outros órgãos autogeridos, para infringirem os estatutos
legais ou as normas morais de modo a que isso seja economicamen-
te vantajoso para a empresa […] 2) […] 3) Para fugir aos impostos,
são efectuados trabalhos fictícios ou simulados […] 4) […] 5) Fundos
guardados para despesas sociais são distribuídos para a construção de
apartamentos privados, casas de férias ou compra de automóveis […]»
(Student, 18 de Fevereiro e 1969, p. 1).
A ideologia oficial da Jugoslávia socialista não entra em conflito
com os interesses da sua elite comercial-tecnocrática; na realidade, jus-
tifica esses interesses. Em Março de 1969, a Resolução do IX Congresso
da Liga dos Comunistas da Jugoslávia fez referência às críticas dos re-
volucionários de Junho só para as rejeitar e para reafirmar a ideologia
oficial. A absurda opinião de que a produção de mercadorias continua
a ser a relação social central no «socialismo» é reafirmada nesse do-

71
Fredy Perlman

cumento. «As leis económicas de produção de mercadorias agem no


socialismo como um forte apoio ao desenvolvimento das modernas
forças produtivas e de gestão racional.» Esta declaração é justificada
através da agora familiar demonologia, designadamente recorrendo ao
argumento de que a única alternativa à produção de mercadorias no
«socialismo» é o estalinismo: «A gestão administrativo-burocrática da
administração e da reprodução social deforma as relações reais e forma
monopólios, nomeadamente subjectivismo burocrático nas condições
da gestão, e leva, inevitavelmente, à irracionalidade e ao parasitismo na
distribuição do produto social [...]» Daí que a escolha seja clara: manter
o statu quo ou voltar ao sistema que a própria Liga dos Comunistas
impusera à sociedade jugoslava antes de 1948. É utilizado o mesmo
tipo de demonologia para demolir a ideia de que o lema «a cada um
segundo o seu trabalho», mote oficial da Jugoslávia, significa o que es-
tas palavras dizem. Semelhante interpretação «ignora as diferenças nas
capacidades e contribuições. Uma tal exigência leva à formação de uma
força administrativa e burocrática omnipotente, que se coloca acima da
produção e acima da sociedade; força essa que institui uma equidade
artificial e superficial, e cujo poder cria carências, iniquidade e privi-
légios [...]» (Student, 18 de Março de 1969). O princípio «a cada um
segundo o seu trabalho», desenvolvido historicamente pela classe capi-
talista na sua luta contra a aristocracia latifundiária, tem na Jugoslávia
actual o mesmo significado que teve para a burguesia. Daí que os enor-
mes rendimentos pessoais (e os prémios) de um empresário comer-
cial de sucesso numa firma de importação-exportação jugoslava sejam
justificados por este mote, visto o sucesso financeiro deste empresário
provar simultaneamente as suas superiores capacidades e o valor da
sua contribuição para a sociedade. Ou seja, a distribuição dos rendi-
mentos ocorre de acordo com a avaliação social do trabalho de cada
um; e numa economia de mercado o trabalho é avaliado no mercado.
O resultado é um sistema de distribuição de rendimentos que pode re-
sumir-se no mote «de cada um segundo a sua capacidade, a cada um
segundo o seu sucesso de mercado», mote que descreve um sistema de
relações sociais amplamente conhecido como produção capitalista de
mercadorias e não como socialismo (definido por Marx como negação
da produção capitalista de mercadorias).

72
revolta na jugoslávia socialista

A defesa deste documento não foi caracterizada por métodos mais


subtis de argumentação, mas antes pelo tipo de complacência conser-
vadora que se limita a considerar o statu quo como o melhor, garan-
tidamente, de todos os mundos possíveis. «Dificilmente posso aceitar
críticas que não são coerentes com o espírito desta matéria e com as
ideias básicas que realmente contém [...] A insistência numa concepção
que daria soluções racionais a todas as relações e problemas com que
nos confrontamos, parece-me ir para além das possibilidades reais da
nossa sociedade [...] Esta é a nossa realidade. As diferentes condições
de trabalho nas diferentes empresas, nos diferentes ramos, nas diferen-
tes regiões do país e noutros lugares – não as podemos eliminar [...]»
(V. Rakić, Student, 11 de Março de 1969, p. 12).
Noutro número do Student, esta atitude foi caracterizada nos se-
guintes termos: «O indíviduo que considere tudo o que é coerente e
radical como um exagero, identifica-se com o que existe objectivamen-
te; daí que tudo lhe pareça demasiado idealista, abstracto, quixotesco,
irreal, demasiado rebuscado para a nossa realidade, e nunca lhe conve-
nha. Muitas pessoas, em particular as que poderiam contribuir para a
transformação da sociedade, apoiam-se constantemente na realidade,
nos obstáculos que ela apresenta, não vendo que muitas vezes são pre-
cisamente elas, com o seu sentido superficial da realidade, com a sua
autodenominada realpolitik, que constituem os obstáculos de que di-
zem ser vítimas.» (D. Grlić, Student, 28 de Abril de 1969, p. 3).
«Não podemos permitir-nos esquecer que a democracia (para não
falar do socialismo), assim como a autogestão, pode, de uma forma
alienada e ideológica, transformar-se num instrumento perigoso para
promulgar e disseminar a ilusão de que “introduzindo-a”, nomeada-
mente através de uma proclamação ou de um decreto de autogestão,
optámos pelo direito ao controlo independente, que nega eo ipso a ne-
cessidade de qualquer tipo de luta. Contra quem e por que motivo de-
vemos nós lutar, se já nos governamos a nós próprios? Assim sendo,
somos nós próprios – e ninguém acima de nós – os culpados de todas
as nossas falhas.» (Ibidem)
A ideologia socialista da Jugoslávia revelou-se oca; a elite gover-
nante tem sido destituída das suas justificações. Mas por enquanto esta
revelação tem tomado a forma de análise crítica, de teoria revolucio-

73
Fredy Perlman

nária. A prática revolucionária, a auto-organização de base, tem ainda


pouca experiência. Entretanto, aqueles cuja luta pelo socialismo se tor-
nou desde há muito numa luta para se manterem no poder, continu-
am a identificar a sua própria governação com a autonomia da classe
trabalhadora, continuam a definir a economia de mercado, da qual se
tornaram ideólogos, como a sociedade mais democrática do mundo.
Em Maio de 1969, o presidente recém-eleito do parlamento croata,
membro de longa data do comité central do Partido Comunista Jugos-
lavo, afirmou insipidamente que «os factos relativos aos índices mais
básicos do nosso desenvolvimento mostram e provam que o desenvol-
vimento económico da República Socialista da Croácia e da Jugoslávia
como um todo tem sido harmonioso e progressivo.» Este presidente
está consciente do desemprego e do exílio forçado dos trabalhadores
jugoslavos, mas o problema está prestes a ser resolvido, porque «Foram
encetadas algumas acções para enfrentar a preocupação que temos com
os nossos compatriotas que se encontram temporariamente emprega-
dos no estrangeiro; estas acções devem ser sistematizadas, melhoradas
e incluídas como parte integrante do nosso sistema, da nossa econo-
mia e do nosso governo [...]». Este presidente tem também consciência
das profundas críticas ao actual plano, mas para ele isso são «ilusões,
confusões, desespero, impaciência, pretensões quixotescas, manifes-
tadas – independentemente da aparente contradição – por coisas que
vão de um palavreado revolucionário esquerdista a certas tendências
chauvinistas com a aparência de filosofia, filologia, movimento da força
de trabalho, situação económica da nação, república, etc. [...] Devemos
rejeitar energicamente as tentativas de dramatizar e generalizar certos
factos que, descontextualizados de todo o nosso desenvolvimento e
da nossa realidade, procuram utilizá-los para acções derrotistas, des-
moralizantes e, por vezes, chauvinistas. Devemos sistematicamente e
factualmente informar os nossos trabalhadores dessas tentativas, deve-
mos assinalar os seus elementos, os seus métodos, as suas verdadeiras
intenções e o significado dessas acções.» (J. Blažević, Vjesnik, 9 de Maio
de 1969, p. 2).
As reacções oficiais ao surgimento da «nova esquerda» jugoslava,
desde as do presidente da Jugoslávia às do presidente da Croácia, são
humoristicamente resumidas numa sátira publicada na primeira pági-

74
revolta na jugoslávia socialista

na do número de 13 de Maio do Student. «Muitos dos nossos opositores


declaram-se em prol da democracia, mas aquilo que eles pretendem
é qualquer coisa como uma democracia pura ou integral, ou um li-
bertarianismo. Na realidade dos factos, eles lutam pelas suas próprias
posições, tais como poderem falar e trabalhar de acordo com a sua pró-
pria vontade e da forma que acham justa. Rejeitamos todas as tentativas
dessas forças antidemocráticas; na nossa sociedade, deve ser claro para
toda a gente quem é responsável de quem [...]. Na luta contra esses opo-
sitores, não iremos empregar meios não-democráticos, a não ser que
os meios democráticos não mostrem dar os resultados convenientes.
Um excelente exemplo da aplicação de métodos democráticos de luta
é a nossa confrontação com as forças burocráticas. Todos sabemos que
no passado recente a burocracia era o nosso maior mal social. E onde
está agora essa burocracia? Derreteu-se como a neve. Sob a pressão dos
nossos mecanismos autogestionários e das nossas forças democráti-
cas, derreteu-se por si mesma por completo, automaticamente, e nem
sequer precisamos de fazer quaisquer mudanças nos funcionários ou
nas estruturas do nosso governo nacional, o que, aliás, não teria sido
coerente com a autogestão. Os opositores atacam as nossas grandes di-
ferenças sociais e chegam até a dizer que são injustificadas [...]. Mas a
classe trabalhadora, a força que lidera e governa a nossa sociedade, a
portadora de tendências progressistas e sujeito histórico, não se deve
tornar privilegiada à custa de outras categorias sociais; deve estar pre-
parada para se sacrificar em nome da futura construção do nosso siste-
ma. A classe trabalhadora está consciente disso e rejeita decididamente
todas as reivindicações por uma diminuição radical nas diferenças so-
ciais, porque estas, na sua essência, são reivindicações com vista a uma
igualização; e isso, mais do que tudo o resto, levaria a uma sociedade
de pessoas pobres. Mas o nosso objectivo é uma sociedade em que toda
a gente seja rica e receba segundo as suas necessidades [...]. O proble-
ma do desemprego é também constantemente atacado pelas forças ini-
migas. Os opositores ao nosso sistema defendem que não deveríamos
fazer tanto alvoroço sobre a criação de novos empregos (como se isso
fosse tão fácil como abrir janelas em Junho) e que os jovens formados
acelerariam a reforma económica [...] Na presente fase do nosso desen-
volvimento, não fomos capazes de criar mais empregos, mas criámos

75
Fredy Perlman

uma outra solução – abrimos as nossas fronteiras e permitimos aos


nossos trabalhadores livre emprego no estrangeiro. Obviamente, seria
bom que todos tivéssemos trabalho aqui, no nosso país. Até a Consti-
tuição o diz. Mas isso não pode ser harmonizado com a nova fase da
nossa reforma. No entanto, a luta pela reforma entrou na sua fase final
e conclusiva e as coisas irão melhorar significativamente. Na verdade,
mesmo agora, a nossa população não está assim tão mal. Anteriormen-
te, podia trabalhar apenas para um Estado, agora pode trabalhar para o
mundo inteiro. O que é um Estado comparado com o mundo inteiro?
Isto cria compreensão mútua e amizade [...]. Não pudemos, obviamen-
te, referir todos os inimigos do nosso sistema, tais como vários extre-
mistas, esquerdistas, direitistas, anarco-liberais, radicais, demagogos,
professores, dogmáticos, pretensos revolucionários (que vão ao ponto
de afirmar que a nossa revolução entrou em crise), anti-reformistas e
grupos informais […], unitários, folcloristas e muitos outros elemen-
tos. Todos eles representam potenciais viveiros de crise. Todos esses
grupos informais e extremistas devem ser energicamente isolados da
sociedade e, se possível, reeducados, para assim se evitar a sua activida-
de destrutiva.» (V. Teofilović, Student, 13 de Maio de 1969, p. 1).
A experiência jugoslava acrescenta novos elementos à experiência
do movimento revolucionário mundial. O aparecimento desses elemen-
tos tornou claro que na Jugoslávia a revolução socialista não é um facto
histórico do passado, mas uma luta de futuro. Esta luta foi iniciada, mas
não foi levada a cabo em parte nenhuma. «Pois, como escreveu Babeuf,
os dirigentes organizam uma revolução para poderem dirigir, mas uma
revolução autêntica só é possível a partir de baixo, como movimento
de massas. A sociedade, toda a sua espontânea actividade humana, er-
gue-se então como sujeito histórico e cria a identidade da política e a
vontade popular, que é a base para a eliminação da política como forma
de alienação humana.» (M. Vojnović, Student, 22 de Abril de 1969, p. 1).
Nesse sentido, a revolução não pode sequer ser concebida nos limites de
uma única universidade, de uma única fábrica, de um único estado-na-
ção. Além disso, a revolução não é a repetição de um acontecimento que
já teve lugar, algures, outrora; não é a reprodução de relações passadas,
é a criação de novas relações. Nas palavras de outro escritor jugoslavo,
«não é apenas um conflito entre produção e criação, mas, num sentido

76
revolta na jugoslávia socialista

amplo – e aqui tenho em mente tanto os países ocidentais como os do


Leste –, entre a rotina e a aventura.» (M. Krleža, Politika, 29 de Dezem-
bro de 1968, citado em Student, 7 de Janeiro de 1969).

[1969]

77
Dez Teses Sobre a Proliferação
dos Egocratas
I

O Egocrata – Mao, Stáline, Hitler, Kim Il-Sung – não é um acidente,


uma aberração ou uma irrupção de irracionalidade; é uma personifi-
cação das relações da ordem social existente.

II

O Egocrata é inicialmente um indivíduo, como toda a gente: silen-


ciado e impotente nesta sociedade sem comunidade ou comunicação,
vitimado pelo espectáculo, «o discurso ininterrupto que a ordem pre-
sente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso, o auto-retrato do
poder na época da sua gestão totalitária das condições de existência»
(Debord). Repelido pelo espectáculo, ele anseia pelo «ser humano
emancipado, um ser que é ao mesmo tempo um ser social e uma Ge-
meinwesen» (Camatte). Se o seu desejo fosse expresso na prática ‒ no
seu local de trabalho, na rua, em qualquer lugar onde o espectáculo o
priva da sua humanidade ‒, ele tornar-se-ia um rebelde.

III

O Egocrata não expressa na prática o seu desejo pela comunidade e


pela comunicação; transforma-o num Pensamento. Armado com esse

79
Fredy Perlman

Pensamento, ele continua silenciado e impotente, mas já não é como os


demais: é consciente, possui a Ideia. Para confirmar a sua diferença, para
assegurar que não se está a iludir, precisa de ser visto como diferente
pelos outros – esses outros que confirmam que ele é verdadeiramente
possuidor do Pensamento e possuidor do Verdadeiro Pensamento.

IV

O Egocrata encontra a «comunidade» e a «comunicação», não es-


magando os elementos do espectáculo ao seu alcance, mas rodeando-se
de indivíduos da mesma opinião, outros Egos, que reflectem entre si o
Pensamento Dourado e confirmam a sua validade como possuidores
d’Ele. Os Eleitos. Neste ponto, o Pensamento, se quiser continuar a
ser dourado, deve permanecer para sempre o mesmo: imaculado e
inflexível; a crítica e a revisão são sinónimos de traição. «Assim, só
poderá existir enquanto polémica com a realidade. Refuta tudo. Só
poderá sobreviver cristalizando-se, tornando-se cada vez mais to-
talitário.» (Camatte) Portanto, para continuar a reflectir e a confirmar
o Pensamento, o indivíduo deve deixar de pensar.

O objectivo inicial, o «ser humano emancipado», perde-se para a


prática ao ser relegado para a consciência do Egocrata, porque «a consciên-
cia torna-se ela própria o objectivo e reifica-se numa organização que
deve encarnar o objectivo» (Camatte). O grupo de mútuos admiradores
adopta um plano e um local de encontro; torna-se uma instituição. A
organização, que adquire a forma de uma célula bolchevique ou nazi,
dum clube de leitura socialista ou dum grupo de afinidade anarquista,
dependendo das circunstâncias locais e das preferências individuais,
«proporciona um terreno favorável à dominação informal dos propa-
gandistas e defensores da sua própria ideologia, especialistas que em
geral são tanto mais medíocres quanto a sua actividade intelectual se
reduz principalmente à repetição de umas quantas verdades definitivas.
O respeito ideológico pela unanimidade na decisão foi de maneira
geral favorável à incontrolada autoridade, na própria organização, de

80
dez teses sobre a proliferação dos egocratas

especialistas da liberdade» (escreveu Debord, descrevendo organi-


zações anarquistas). Rejeitando o espectáculo dominante ideologica-
mente, a organização dos especialistas da liberdade reproduz a relação
do espectáculo na sua prática interna.

VI

A organização que encarna o Pensamento vira-se para o mundo,


porque «o projecto dessa consciência é enquadrar a realidade no seu
conceito» (Camatte). O grupo torna-se militante. Propõe-se a estender
a toda a sociedade as relações internas da organização, podendo uma
das suas variantes resumir-se da seguinte forma: «Dentro do partido,
ninguém deverá ficar para trás quando a liderança der uma ordem para
avançar “ninguém deverá ir para a direita se a ordem for de ir para a es-
querda”.» (um líder revolucionário citado por M. Velli.) Neste ponto, o
conteúdo preciso do Pensamento é tão irrelevante para a prática como a
geografia do paraíso cristão, porque o objectivo é reduzido a um bastão:
serve como justificação para as práticas repressivas do grupo e como
instrumento de chantagem. Exemplos: «O mínimo desvio da ideologia
socialista significa o fortalecimento da ideologia burguesa.» (Lénine,
citado por M. Velli). «Quando certos “libertários” caluniosamente dei-
tam outros abaixo, questiono a sua maturidade e o seu compromisso
com a mudança social revolucionária.» (Um «anarquista» numa carta
à revista Fifth Estate.)

VII

A organização militante alarga-se através de métodos de conversão


e manipulação. A conversão é a técnica favorita dos princípios do bol-
chevismo e do anarquismo missionário iniciais: a tarefa explícita do
militante consiste em introduzir consciência na classe trabalhadora
(Lénine), em «levar aos trabalhadores as nossas ideias» (um «anarquis-
ta» na revista The Red Menace, de Toronto1). Mas a tarefa implícita do

1.  Editada pelo Libertarian Socialist Collective entre 1976 e 1980. (N. do t.)

81
Fredy Perlman

militante, e o resultado prático da sua actividade, consistem em influir


sobre a prática dos trabalhadores, não sobre o seu pensamento. A con-
versão é bem-sucedida se os trabalhadores, sejam quais forem as suas
ideias, pagarem quotas à organização e obedecerem aos seus apelos à
acção (greves, manifestações, etc.). O objectivo implícito do Egocra-
ta é estabelecer a sua hegemonia (e a da sua organização) sobre um
grande número de indivíduos, de se tornar líder de uma massa de se-
guidores. Este objectivo implícito torna-se cinicamente explícito quando
os militantes são nazis ou estalinistas (ou uma amálgama de ambos,
como o Partido Trabalhista dos Estados Unidos). A conversão dá lugar
à manipulação, mentindo abertamente. Neste modelo, o recrutamento
de seguidores é o objectivo explícito e a Ideia deixa de ser uma estrela
fixa, perfeita e imutável; a Ideia torna-se num simples meio para o fim
explícito; seja o que for que recrute mais seguidores é uma boa Ideia;
a Ideia torna-se uma colagem construída cinicamente, baseada nos
medos e ódios dos potenciais seguidores; a sua principal promessa é a
aniquilação de bodes expiatórios: «contra-revolucionários», «anarquis-
tas», «agentes da CIA», «judeus», etc. A diferença entre os manipula-
dores e os missionários é teórica; na prática, são contemporâneos que
estão em concorrência no mesmo campo social e pedem de emprésti-
mo as suas técnicas uns aos outros.

VIII

Para propagar a Ideia, assim como para converter ou manipular, o


Egocrata necessita de instrumentos, de meios de comunicação, e são
precisamente esses meios de comunicação que a sociedade do espectá-
culo providencia em profusão. Uma justificação para se voltarem para
esses média é dada da seguinte forma: «Os meios de comunicação são
actualmente um monopólio das classes dominantes que os desviam
para seu próprio benefício. Mas a sua estrutura permanece “funda-
mentalmente igualitária”, cabendo à prática revolucionária expor essa
potencialidade neles contida mas que é pervertida pela ordem capi-
talista: numa palavra, libertarem-nos...» (posição parafraseada por Bau-
drillard). A inicial rejeição do espectáculo, o anseio pela comunidade
e pela comunicação, foi substituído pela ânsia de exercer poder sobre

82
dez teses sobre a proliferação dos egocratas

esses mesmos instrumentos que aniquilam a comunidade e a comuni-


cação. A hesitação, ou uma súbita erupção crítica, são dominadas pela
chantagem organizacional: «Os leninistas vencerão, a não ser que nós
próprios aceitemos a responsabilidade de lutar para vencer [...]» (The
Red Menace. Um estalinista diria: «Os trotskistas vencerão...», etc.). A
partir daqui, vale tudo; todos os meios são bons se levarem ao objectivo;
e como limite extremo do absurdo, até as promoções e a publicidade, a
actividade e a linguagem do próprio Capital passam a ser meios revo-
lucionários justificados: «Concentramo-nos fortemente na distribuição
e promoção [...]. O nosso trabalho promocional é de grande escala e é
caro. Inclui uma ampla publicidade, correio promocional, catálogos, ex-
positores por todo o país, etc. Tudo isto custa uma enorme quantidade
de dinheiro e de energia, que é coberta por dinheiro gerado pela venda
de livros.» (Um «homem de negócios anarquista» numa carta à Fifth
Estate.) Será este homem de negócios anarquista um exemplo grotes-
co, por ser tão ridiculamente exagerado, ou fará ele solidamente parte
integrante da tradição ortodoxa da militância organizada? «Os grandes
bancos são o “aparelho de Estado” de que necessitamos para realizar o
socialismo e que tomamos já pronto do capitalismo; a nossa tarefa con-
siste aqui em meramente cortar aquilo que deforma do ponto de vista
capitalista este magnífico aparelho, em torná-lo ainda maior, ainda
mais democrático, ainda mais universal...» (Lénine, citado por M. Velli).

IX

Para o Egocrata, os meios de comunicação são um simples meio; o


objectivo é a hegemonia, fortalecer o poder da polícia secreta. «Pilo-
tos invisíveis no meio da tempestade popular, nós devemos dirigi-la,
não com um poder manifesto mas com a ditadura colectiva de todos
os aliados. Ditadura sem emblema, sem título, sem direito oficial, e
tanto mais poderosa quanto ela não terá nenhuma das aparências do
poder.» (Bakunine, citado por Debord). A ditadura colectiva de todos
rapidamente se torna o domínio do próprio Egocrata, porque, «Se os
burocratas, considerados no seu conjunto, decidem de tudo, a coesão
da sua própria classe só pode ser assegurada pela concentração do seu
poder terrorista numa única pessoa.» (Debord). Com o sucesso do em-

83
Fredy Perlman

preendimento do Egocrata, o estabelecimento da «ditadura sem direito


oficial», a comunicação não está apenas ausente a uma escala social;
qualquer tentativa local é deliberadamente liquidada pela polícia. Esta
situação não é uma «deformação» dos «objectivos puros» que a orga-
nização tinha inicialmente; está já prefigurada nos meios, nos instru-
mentos «fundamentalmente igualitários» usados para a vitória. «O que
caracteriza os meios de comunicação de massas é o facto de serem an-
ti-mediadores, intransitivos, o facto de produzirem uma não-comuni-
cação [...]. A televisão, só pela sua presença, é o controlo social em casa.
Não é necessário imaginar este controlo como o periscópio do regime
espiando a vida privada de cada um, porque a televisão já é melhor
do que isso: assegura que as pessoas não conversem mais umas com as
outras, que estejam definitivamente isoladas perante declarações sem
resposta.» (Baudrillard).

O projecto do Egocrata é supérfluo. Os meios de produção e de


comunicação capitalistas já reduzem os seres humanos a espectadores
silenciados e impotentes, vítimas passivas continuamente sujeitadas ao
«monólogo elogioso» da ordem existente. A revolução antitotalitária
requer, não um outro médium, mas a liquidação de todos os média, «a
liquidação de toda a sua estrutura actual, funcional assim como técni-
ca, da sua forma operacional, por assim dizer, que em toda a parte re-
flecte a sua forma social. No limite, obviamente, é o próprio conceito
de médium que desaparece e que deve desaparecer: a palavra troca-
da, a troca recíproca e simbólica, nega a noção e a função de médium,
de intermediário [...]. A reciprocidade surge através da destruição do
médium.» (Baudrillard).

[1977]

84
dez teses sobre a proliferação dos egocratas

Referências bibliográficas
Baudrillard, Jean, Pour une critique de l´économie politique du signe
(Paris, Gallimard, 1972).
Camatte, Jacques, The Wandering of Humanity (Detroit, Black &
Red, 1975). [Edição original: «Errance de l’humanité, conscience ré-
pressive, communisme», revista Invariance, nº 3, II série, 1973.]
Debord, Guy, Society of the Spectacle (Detroit, Black & Red, 1970,
1977). [Ed. port.: A Sociedade do Espectáculo, Lisboa, Antígona.]
Lefort, Claude, Un Homme en trop: Réflexions sur «L’Archipel de
Goulag» (Paris, Seuil, 1976).
Velli, Michael, Manual for Revolutionary Leaders (Detroit, Black &
Red, 1972).

85
O Progresso e a Energia Nuclear:
a Destruição do Continente Americano
e dos seus Povos
O envenenamento premeditado de seres humanos, de solos e de ou-
tros seres vivos só pela mais grosseira hipocrisia poderá ser considerado
um «acidente». Só os intencionalmente cegos poderão afirmar que esta
consequência do Progresso Técnico «não estava prevista».
O envenenamento e a deslocalização dos habitantes deste continen-
te por causa de «entidades superiores» poderá ter começado na Pensil-
vânia oriental, mas não durante as últimas semanas1.
Há duzentos e vinte anos atrás, na região de Three Mile Island, que
está a ser actualmente envenenada pela radiação, especuladores com

1.  Alusão ao acidente nuclear de Three Mile Island, perto de Harrisburg, capital da
Pensilvânia, cujo início ocorreu em 28 de Março de 1979 e levou à deslocalização de
um grande número de pessoas. Foi um dos mais graves dos muitos acidentes que têm
ocorrido em centrais nucleares. (N. do t.)

87
Fredy Perlman

os nomes de Franklin, Morris, Washington e Hale ocultaram os seus


nomes por detrás de fachadas como a Vandalia Company e a Ohio
Company. Estas empresas tinham uma intenção: vender terra para ob-
ter lucro. Os indivíduos por detrás das companhias tinham um objec-
tivo: remover quaisquer obstáculos que se encontrassem no caminho
do livre desenvolvimento da obtenção de lucro, quer esses obstáculos
fossem seres humanos, culturas milenares, florestas, animais ou até rios
e montanhas. O seu objectivo era Civilizar este continente, introdu-
zindo nele um ciclo de actividades nunca antes postas em prática aqui:
Trabalho, Poupança, Investimento, Venda – o ciclo da reprodução e do
alargamento do Capital.
O principal obstáculo para esta actividade eram os seres humanos
que viviam neste continente há milénios e que, sem Lei, Governo ou
Igreja, desfrutavam do sol, dos rios, dos bosques, das diversas espé-
cies de plantas e animais e de si mesmos. Estes povos consideravam
a vida como um fim, não como um meio a ser posto ao serviço de
fins «mais altos». Não correram para a Civilização como as crianças
para um pote de doces, como os Franklins e os Washingtons esperavam
que eles fizessem. Pelo contrário. Eles desejavam muito pouco daquilo
que a Civilização tinha para oferecer. Desejavam algumas das armas,
e queriam-nas só para preservar a sua liberdade contra usurpações da
Civilização; preferiam a morte a uma vida reduzida a Trabalho, Pou-
pança, Investimento e Venda. Numa última tentativa desesperada para
empurrarem a Civilização e os seus Benefícios de volta para o mar de
onde tinham vindo, numa revolta agora recordada como o nome de um
automóvel, os seus guerreiros expulsaram os expropriadores de terras
e os seus soldados do Ontário, do Michigan, do Ohio e da Pensilvâ-
nia ocidental2. Devido a essa resistência intransigente, os Civilizadores
atribuíram-lhes o epíteto de Selvagens. Essa denominação deu aos Ci-
vilizadores uma permissão para exterminar sem hesitações ou escrúpu-

2.  Referência à Guerra de Pontiac (1763-1766), lançada na região dos Grandes Lagos
contra a política britânica de ocupação; a sua designação deriva do nome do líder ottawa
Pontiac, um dos mais destacados guerreiros índios desse período. A par de muitas
outras apropriações abusivas da mesma laia, o nome de Pontiac foi adoptado em 1926
como marca de automóveis da General Motors. (N. do t.)

88
o progresso e a energia nuclear: a destruição do continente americano e dos seus povos

los: «Enviem-lhes cobertores infestados com varíola», ordenou um dos


oficiais do exército encarregados da exterminação.
O Bicentenário da Independência Americana recentemente celebra-
do comemorou o dia em que, duzentos anos atrás, os expropriadores de
terras, especuladores e seus aliados decidiram acelerar a exterminação
da independência da região a oeste de Three Mile Island. O governo do
rei estava bastante longe para poder proteger os investimentos de forma
adequada e, de qualquer forma, era Feudal, não partilhando sempre os
objectivos dos especuladores; chegou mesmo ao ponto de fazer respei-
tar as fronteiras estabelecidas por tratados com os Selvagens. O que se
impunha, portanto, era um aparelho eficiente sob o controlo directo
dos expropriadores de terras e dedicado exclusivamente à prosperida-
de das suas empresas. As organizações informais de polícia fronteiriça
como os Paxton Boys eram eficientes para massacrar os habitantes tri-
bais de uma aldeia isolada como Conestoga. Mas essas formações fron-
teiriças eram pequenas e temporárias, e estavam tão dependentes do
consentimento activo de cada participante como os próprios guerreiros
tribais; por isso mesmo, não eram as organizações policiais mais apro-
priadas. Os especuladores aliaram-se a idealistas e sonhadores, e por
detrás de um estandarte onde estavam inscritas as palavras Liberdade,
Independência e Felicidade, tomaram nas suas mãos o poder governa-
mental, militar e policial.
Há um século e meio atrás, o eficiente aparelho pelo progresso do
Capital estava em alta rotação. As organizações militares e policiais,
baseadas na obediência e na submissão, e não no acordo explícito de
ninguém, estavam preparadas para a acção contra povos que tinham
resistido àquele tipo de regimentação durante dois mil anos ou mais. O
Congresso aprovou umas das partes mais explícitas da sua legislação: a
Lei de Deslocalização dos Índios. Em poucos anos, toda a resistência,
toda a actividade que não fosse a actividade do Capital, foi removida
da área que se estendia a oeste de Three Mile Island até ao Mississipi, e
a sul de Michigan até à Geórgia. O governo, tornando-se rapidamente
um dos mais poderosos do mundo, já não estava restringido ao envene-
namento com varíola ou ao massacre-surpresa de habitantes de aldeias;
pôs em prática a Deslocalização com uma criteriosa combinação de
Platitudes, Promessas e Polícia. Os povos das tribos livres remanescen-

89
Fredy Perlman

tes não podiam resistir a esta combinação sem a adoptarem, mas não
a podiam adoptar sem deixarem de ser livres. Escolheram permanecer
livres, e os últimos seres humanos livres entre Three Mile Island e o
Mississipi foram Deslocalizados.
À medida que os colonos se deslocavam para terras deliberadamen-
te desocupadas, onde o próprio ar que respiravam lhes transmitia um
travo da liberdade recentemente suprimida, transformavam grandes
bosques em réplicas alargadas do inferno que tinham deixado para
trás. O usufruto de trilhos e florestas cessou: as florestas foram queima-
das, os trilhos tornaram-se uma corrida de obstáculos que deviam ser
percorridos tão rapidamente quanto o Capital possibilitasse. A alegria
deixou de ser o objectivo da vida; a própria vida tornou-se um mero
meio; o seu fim era o lucro. A variedade de centenas de formas culturais
foi reduzida à uniformidade de uma única rotina: trabalho, poupança,
investimento, venda, todos os dias do nascer ao pôr-do-sol, e contagem
do dinheiro depois de anoitecer. Todas as antigas actividades, e dezenas
de outras novas, foram transformadas de fonte de prazer em fonte de
lucro. Milho, feijões e abóboras, as «três irmãs» respeitadas e amadas
pelos anteriores habitantes da região, tornaram-se simples mercado-
ria para vender em mercados; os seus semeadores e ceifeiros já não as
plantavam para as desfrutarem às refeições, em banquetes e festivais,
mas para as venderem para com isso obterem um lucro. O lazer da
horticultura foi substituído pelo trabalho duro da agricultura, os trilhos
davam lugar a ferrovias, caminhar foi suplantado pela locomoção de gi-
gantescas fornalhas sobre rodas movidas a carvão, as canoas foram var-
ridas por cidades flutuantes que não se detinham diante de quaisquer
obstáculos enchendo o ar de cinzas e de fumo negro. As «três irmãs»,
conjuntamente com a sua restante família, foram reduzidas a simples
mercadoria, assim como as árvores que se tornaram madeira, os ani-
mais que se tornaram carne, seguindo o mesmo caminho as viagens, as
canções, os mitos e os contos dos novos habitantes do continente.
E havia mesmo novos habitantes: primeiro às centenas, depois aos
milhares, e por fim aos milhões. Quando a importação de escravos em
sentido absoluto finalmente terminou, foram importados das decré-
pitas propriedades da Europa pós-feudal camponeses excedentes. Os
seus antepassados não haviam conhecido a liberdade durante tantas

90
o progresso e a energia nuclear: a destruição do continente americano e dos seus povos

gerações que a própria memória dela se perdera. Anteriormente cria-


dos de libré ou trabalhadores agrícolas nas propriedades de fidalgos
crescentemente mercantilistas, os recém-chegados vinham já prepara-
dos para querer aquilo que o Capital tinha precisamente para oferecer,
e a degradação da vida imposta pelo Capital era para eles liberdade em
comparação com o seu único quadro de referência. Investidores em
propriedade da terra venderam-lhes lotes, foram transportados para
esses lotes por investidores nos caminhos-de-ferro, equipados por in-
vestidores em equipamento para explorações agrícolas, financiados por
investidores bancários, mobilados e vestidos pelos mesmos interesses,
muitas vezes pelas mesmas Casas que lhes tinham fornecido tudo o
resto com uma taxa de lucro que nenhuma outra época teria consi-
derado «justa», escreveram com jactância aos parentes do seu país de
origem que se tinham transformado nos seus próprios senhores, que
eram agricultores livres, mas no fundo do estômago e no bater ausente
do coração sentiam a verdade: eram escravos de um senhor que era
ainda mais intratável, inumano e distante do que os seus antigos amos,
um senhor cujo poder letal, como o da radioactividade, podia ser sen-
tido mas não podia ser visto. Tinham-se tornado criados de libré do
Capital. (Quanto aos que acabaram como «operários» ou «trabalhado-
res não qualificados» nas fábricas que produziam os equipamentos e as
ferrovias, esses tinham pouco de que se gabar nas suas cartas; tinham
respirado um ar mais livre onde quer que tivessem começado.)
Um século depois do levantamento associado ao nome de Pontiac,
um século recheado da desesperada resistência dos sucessores de Pon-
tiac contra as contínuas usurpações do Capital, alguns dos agricultores
importados começaram a lutar contra a sua redução a servos do Capital
financeiro, dos caminhos-de-ferro e do equipamento. Os agricultores
populistas ansiavam por deter e meter na prisão os Rockefellers, Mor-
gans e Goulds directamente responsáveis pela sua degradação, mas a sua
revolta não passou de um vago eco das anteriores revoltas dos ottawas,
chippewas, delawares e potawatomis. Os agricultores viraram-se contra
as personalidades, mas continuaram a fazer parte da cultura responsável
pela sua degradação. Consequentemente, não conseguiram unir-se, ou
mesmo reconhecer como sua a resistência armada dos povos das planí-
cies, a última tentativa de impedir que todo o continente se transformas-

91
Fredy Perlman

se numa ilha do Capital ‒ luta essa derrotada pelos antigos métodos dos
assírios (e dos modernos socialistas soviéticos) de deportação em mas-
sa, campos de concentração, massacres de prisioneiros desarmados e
constante lavagem ao cérebro por mercenários militares e missionários.
Ainda que muitos deles fossem militantes e corajosos, os agriculto-
res em luta raramente colocavam o prazer e a vida acima do trabalho,
da poupança e do lucro, e o seu movimento descarrilou por completo
quando foi infiltrado por políticos radicais, que equipararam a necessi-
dade de uma nova vida ao desejo de um novo Líder. A forma de descar-
rilamento do movimento populista tornou-se a forma de existência do
movimento trabalhista durante o século que se seguiu. Os políticos que
cavaram a sepultura do populismo foram os precursores da infinita va-
riedade de seitas monásticas, modeladas organizacionalmente de acor-
do com a Ordem Jesuíta, mas com doutrinas e dogmas que derivavam
de um ou outro Livro comunista, socialista ou anarquista. Preparados
para saltar instantaneamente para qualquer situação em que as pessoas
começassem a lutar para reconquistar a sua própria humanidade, es-
magaram uma após outra qualquer potencial rebelião ao despejarem
a sua doutrina, a sua organização e a sua liderança sobre pessoas que
lutavam pela vida. Estes palhaços, para quem o essencial eram as suas
fuças e os seus discursos nas primeiras páginas dos jornais, acabaram
por se tornar capitalistas que levaram para o mercado a única mercado-
ria que tinham encurralado: o Trabalho.
Pouco depois da viragem para o presente século, com a resistência
efectiva definitivamente afastada, com uma pseudo-resistência que era
de facto um instrumento para a redução final da actividade humana a
uma mera variante do Capital, o aparelho eficiente destinado a gerar
lucros deixou de ter quaisquer obstáculos externos. Tinha ainda obstá-
culos internos; as diversas fracções do Capital, os Vanderbilts, os Goulds
e os Morgans, viraram continuamente as suas armas uns contra os ou-
tros e ameaçaram fazer ruir por dentro toda a estrutura. Rockefeller e
Morgan foram pioneiros na fusão, na combinação das várias fracções:
investidores endinheirados distribuíam o seu dinheiro pelas empresas
uns dos outros, os directores sentavam-se nos conselhos de adminis-
tração uns dos outros e todos ganhavam interesse pela progressão ili-
mitada de cada unidade de todo o aparelho. À excepção de raros impé-

92
o progresso e a energia nuclear: a destruição do continente americano e dos seus povos

rios pessoais e familiares sobreviventes, as empresas eram dirigidas por


simples mercenários, que se diferenciavam da restante mão-de-obra
principalmente devido ao tamanho das suas remunerações. A tarefa
dos directores consistia em ultrapassar todos os obstáculos, humanos
e naturais, com apenas uma limitação: o funcionamento eficiente das
outras empresas que constituíam colectivamente o Capital.
Há quarenta anos, as pesquisas das ciências físicas e químicas à
disposição do Capital levaram à descoberta de que a maior parte das
substâncias que se encontram acima e abaixo do solo não eram as úni-
cas que podiam ser exploradas em prol do lucro, verificando-se que os
núcleos «libertados» de certas substâncias eram eminentemente explo-
ráveis pelo Capital. A destruição da matéria ao nível atómico, primei-
ramente utilizada como a mais medonha arma até então forjada pelos
seres humanos, tornou-se a mais recente mercadoria. Por essa altura,
o pagamento de juros, as taxas de transporte e a aquisição de equipa-
mento pelos agricultores, assim como as árvores e os animais selva-
gens desaparecidos desde há muito, deixaram de ser interessantes como
fontes significativas de lucro. Companhias energéticas interligadas com
monopólios do urânio e do petróleo tornaram-se impérios mais pode-
rosos do que qualquer dos Estados que lhes serviam de mediadores.
Nos computadores desses impérios, a saúde e a vida de um número
«aceitável» de habitantes dos campos e das cidades foram contraba-
lançadas com o ganho ou a perda «aceitáveis» de lucros. As reacções
potencialmente populares a esses cálculos eram controladas por crite-
riosas combinações de platitudes, promessas e polícia.

***

‒ O envenenamento de pessoas na Pensilvânia oriental por radiações


que induzem cancro, causado por um sistema que dedica uma parte subs-
tancial da sua actividade à «defesa» de um ataque nuclear do estrangeiro.
‒ A contaminação da comida destinada a ser consumida pelos ha-
bitantes que continuam a viver neste continente e a destruição das ex-
pectativas dos agricultores que dedicaram zelosamente as suas vidas a
produzir a mercadoria que interessava ao Capital numa fase que termi-
nou há meio século.

93
Fredy Perlman

‒ A transformação de um continente anteriormente povoado por


seres humanos cujo objectivo na vida era desfrutar do ar, do sol, das ár-
vores, dos animais e dos outros, num literal campo de minas, utilizando
venenos letais e explosivos inéditos.
‒ A perspectiva de um continente coberto por intensos infernos,
com os seus altifalantes recitando as suas mensagens gravadas a uma
terra queimada: «Não há razões para reagir de forma exagerada; a situ-
ação está estabilizada; os dirigentes têm tudo controlado».
‒ Nada disto é acidental. É o estádio presente do progresso da Tec-
nologia, ou seja, do Capital, que Mary Wollstonecraft Shelley designou
com o nome de Frankenstein, considerado «neutro» pelos aspirantes
a directores, em pulgas para pôr as suas mãos «revolucionárias» nos
comandos. Ao longo de duzentos anos, o Capital desenvolveu-se des-
truindo a natureza, deslocalizando e destruindo seres humanos. O Ca-
pital encetou agora um ataque frontal lançado contra os seus próprios
empregados; os seus computadores começaram a calcular a dispensa-
bilidade dos que foram ensinados a pensar que são seus beneficiários.
Se os espíritos dos mortos pudessem renascer entre os vivos, os
guerreiros ottawa, chippewa e potawatomi poderiam retomar a luta
onde a deixaram há dois séculos atrás, ampliada pela força dos sioux,
dos dakota e dos nez percé, dos yana, dos medoc e das inúmeras tribos
cujas línguas já não são faladas. Uma tal força poderia capturar os cri-
minosos que de outra forma nunca compareceriam perante qualquer
tribunal. Os numerosos agentes do Capital poderiam então continuar a
praticar a sua rotina de trabalho-poupança-investimento-venda tortu-
rando-se uns aos outros com platitudes, promessas e polícia dentro de
centrais nucleares neutralizadas e desactivadas, do lado de lá das portas
de plutónio.

[1979]

94
O Anti-Semitismo e o Pogrom de Beirute
Escapar da morte numa câmara de gás ou num Pogrom, ou à prisão
num campo de concentração, poderá dar a um escritor sério e capaz,
como por exemplo Soljenitsine, uma compreensão profunda de muitos
dos elementos centrais da existência contemporânea, mas essa experi-
ência, em si mesma, não faz de Soljenitsine um pensador, um escritor
ou mesmo um crítico dos campos de concentração; não confere, em si
mesma, quaisquer poderes especiais. Noutra pessoa, essa experiência
poderá permanecer latente como uma potencialidade ou continuar a
ser sempre insignificante, ou poderá contribuir para transformar essa
pessoa num ogre. Resumindo, a experiência é uma parte indelével do
passado do indivíduo, mas não determina o seu futuro; o indivíduo
é livre de escolher o seu futuro; é livre, até, de optar por abolir a sua
liberdade, em cujo caso é uma escolha feita de má fé e que faz dele um
Salaud (o termo filosófico exacto de J. P. Sartre aplicado à pessoa que
faz uma tal escolha)1.
As minhas observações são pedidas de empréstimo a Sartre; gosta-
ria de as aplicar, não a Soljenitsine, mas a mim mesmo, como indivíduo
específico, e aos apoiantes americanos que torcem pelo Estado de Isra-
el, como escolha específica.

1.  Termo francês que se pode traduzir por «canalha». (N. do t.)

95
Fredy Perlman

***

Eu fui uma das três crianças retiradas pelos nossos velhos de um país
da Europa Central um mês antes de os nazis o terem invadido e come-
çado a perseguir ali os judeus. Só partiu uma parte da minha grande
família; a restante ficou e todos os seus membros foram detidos; todos
os meus primos, tias e avós morreram em campos de concentração nazis
ou em câmaras de gás, à excepção de dois tios, que adiante mencionarei.
Mais um mês e eu também teria sido um dos que foram submetidos
à exterminação científica de seres humanos racionalmente planeada, a
experiência central de tantas pessoas ocorrida numa época de grande
desenvolvimento da ciência e das forças produtivas, e não teria podido
escrever sobre isso.
Fui um dos que escapou. Passei a minha infância entre pessoas das
montanhas dos Andes que falavam a língua quíchua, mas não aprendi
esta língua e não perguntei a mim mesmo porquê; falava a um quíchua
numa língua estrangeira para ambos, a língua dos conquistadores. Não
tinha consciência de que era um refugiado nem de que os quíchuas
eram refugiados na sua própria terra; sabia tão pouco dos terrores ‒ das
expropriações, perseguições e pogroms, da aniquilação de uma antiga
cultura ‒ sofridos pelos seus antepassados como sabia dos terrores vi-
vidos pelos meus.
Para mim, os quíchuas eram generosos, hospitaleiros e sinceros, es-
perando eu que uma tia minha os respeitasse e gostasse deles, e não que
os enganasse e desprezasse chamando-lhes sujos e primitivos2.
As trapaças da minha tia foram o meu primeiro contacto com o que
é ter dois pesos e duas medidas, espoliar os de fora para enriquecer os
de dentro, com o adágio moral que diz: está tudo bem se formos nós
que o fizermos.
O desprezo demonstrado pela minha parente foi o meu primeiro
contacto com o racismo, o que atribuía a esta pessoa uma afinidade com
os pogromistas de que tinha escapado; ter fugido deles por um triz não

2.  O irmão e duas irmãs do pai de Fredy, por ele aconselhados, emigraram também,
com os respectivos cônjuges, semanas depois para a Bolívia e juntaram-se-lhes em
Cochabamba. (N. do t.)

96
o anti-semitismo e o pogrom de beirute

a levou a tornar-se crítica dos pogromistas; a experiência provavelmente


não contribuiu em nada para a sua personalidade, nem sequer a sua
identificação com os conquistadores, identificação essa partilhada pelos
europeus que não tinham partilhado a experiência dos meus familiares
de terem escapado por um triz a um campo de concentração. Já antes
da experiência dos meus familiares, os oprimidos camponeses europeus
emigrados para as Américas tinham-se identificado com os conquista-
dores que ali levaram a cabo uma opressão mais cruel dos não-europeus.
A minha parente chegou a fazer uso da sua experiência anos depois,
quando decidiu ser apoiante do Estado de Israel, ao mesmo tempo que
não renunciava ao desprezo a que votava os quíchuas; pelo contrário,
aplicou depois esse desprezo a pessoas noutras partes do mundo, a pes-
soas que nunca tinha conhecido e com quem nunca tinha estado. Mas
nessa altura eu não estava preocupado com o carácter das suas opções;
estava mais preocupado com os chocolates que ela me dava.

***

Na adolescência fui levado para a América, que era sinónimo de


Nova Iorque mesmo para pessoas que já se encontrassem na América
entre os quíchuas; era sinónimo de muito mais, como aos poucos eu
iria aprendendo.
Pouco depois da minha chegada à América, no meu país de origem,
na Europa Central, o poder de Estado foi tomado por uma bando de
igualitaristas bem organizados que pensavam que podiam conseguir a
emancipação universal ocupando cargos de Estado e tornando-se po-
lícias, e o novo Estado de Israel bateu-se com sucesso na sua primeira
guerra e transformou uma população autóctone de semitas em refu-
giados internos, como os quíchuas, e em refugiados exilados, como os
judeus da Europa Central. Deveria ter perguntado a mim mesmo por
que razão os refugiados semitas e os refugiados europeus que se diziam
semitas, dois povos com tanto em comum, não se uniram contra os
opressores comuns, mas estava demasiado ocupado a tentar encontrar
o meu caminho na América.
Através de um amigo da escola primária que os meus pais tinham
na conta de arruaceiro, e através dos meus próprios pais, fui lentamente

97
Fredy Perlman

ficando a saber que a América era um lugar onde toda a gente queria
estar, algo como um Paraíso, mas um Paraíso que continuava a ser inal-
cançável mesmo depois de termos entrado na América. A América era
uma terra de empregados e operários fabris, mas nem o trabalho admi-
nistrativo nem o trabalho fabril eram a América. O meu amigo arrua-
ceiro resumiu-o de forma bastante simples: havia otários e vigaristas, e
uma pessoa tinha de ser idiota para se tornar otário. Os meus pais eram
menos explícitos; diziam: estuda com afinco. A motivação implícita era
esta: Deus te livre de vires a ser empregado de escritório ou operário
fabril! Aprende a ser outra coisa: especialista ou director. Na altura não
sabia que esses outros apelos eram também os da América, e que apesar
de cada degrau alcançado o Paraíso permanecia tão inalcançável como
antes. Eu não sabia que a satisfação do especialista, ou mesmo do em-
pregado ou operário, provinha, não da plenitude da sua própria vida,
mas da rejeição desta, da identificação com o grande processo que esta-
va a ter lugar fora dele, o desenfreado processo de destruição industrial.
Os resultados desse processo podiam ser vistos em filmes e jornais, mas
ainda não na televisão, que em breve levaria esse processo para casa de
toda a gente; a satisfação era a do voyeur, do mirone. Naquela altura
não sabia que esse processo era o sinónimo mais concreto de América.
Uma vez na América, a minha experiência de ter escapado por um
triz a um campo de concentração nazi era inútil; essa experiência não
me podia ajudar a subir a escada rumo ao Paraíso, podendo até preju-
dicar-me; a minha subida apressada poderia ser muito abrandada ou
mesmo interrompida por completo se procurasse sentir empatia pela
condição de recluso de um campo de trabalho em que me poderia ter
tornado, pois poderia ter compreendido o que tornava a perspectiva do
trabalho fabril tão terrível; diferia da outra condição por nela não haver
câmaras de gás e porque o operário passava dentro da fábrica apenas os
seus dias da semana.
Não era o único para quem a experiência na Europa Central de
nada servia. Os meus familiares também não precisaram dela. Durante
essa década conheci um dos meus dois tios que sobreviveram a um
campo de concentração nazi. Uma vez na América, nem sequer esse
meu tio teve necessidade de fazer uso da sua experiência; não queria
senão esquecer o Pogrom e tudo o que lhe estivesse associado; que-

98
o anti-semitismo e o pogrom de beirute

ria apenas subir os degraus da América; queria parecer, soar e actuar


como os outros americanos. Os meus pais tinham exactamente a mes-
ma atitude. Disseram-me que o meu outro tio sobrevivera aos campos
de concentração e fora para Israel, onde um carro o atropelara pouco
depois de chegar.
Não senti interesse pelo Estado de Israel ao longo dessa década, em-
bora ouvisse falar dele. Os meus familiares falavam com um certo orgu-
lho da existência de um Estado com polícia judaica, um exército judaico,
juízes e directores de fábricas judaicos, ou seja, de um Estado totalmen-
te diferente da Alemanha nazi e igual à América. Os meus familiares,
independentemente das suas situações pessoais, identificavam-se com
os polícias judeus e não com os judeus policiados, com os donos das
fábricas e não com os trabalhadores judeus, com vigaristas judeus e não
com os judeus vigarizados, identificação compreensível entre pessoas
que desejavam esquecer a sua confrontação com os campos de trabalho.
Mas nenhum deles queria ir para lá; já se encontravam na América.
Os meus familiares fizeram donativos, de má vontade, para a causa
sionista e ficaram perplexos ‒ todos excepto a minha parente racista
‒ com o inqualificável entusiasmo, da segunda à enésima geração de
americanos, por haver um Estado distante com polícias, professores e
administradores judeus, porque essas pessoas já eram policias, profes-
sores e administradores na América. A minha parente racista compre-
endeu em que se baseava esse entusiasmo: era na solidariedade racial.
Mas na altura eu não tinha consciência disso. Não era um aluno bri-
lhante do ensino secundário e pensava que a solidariedade racial era
algo que se circunscrevia aos nazis, africâneres e sulistas americanos.
Começava a familiarizar-me com os traços dos nazis que quase me
tinham capturado: o racismo que reduzia os seres humanos às suas li-
gações genealógicas ao longo de cinco ou seis gerações, as cruzadas
nacionalistas que consideravam o resto da humanidade como um obs-
táculo, a Gleichschaltung que acabou com a liberdade de escolha do
indivíduo, a eficiência tecnológica que fazia dos pequenos humanos
mera forragem para grandes máquinas, o militarismo agressor que
confrontava batalhões de cavalaria com muralhas de tanques e infligia
cem vezes mais perdas do que as que sofria, a paranóia oficial que re-
tratava o inimigo, habitantes de vilas e aldeias mal armados, como uma

99
Fredy Perlman

conspiração quase omnipotente de cósmico alcance. Mas não percebi


que essas características tinham algo a ver com a América e com Israel.

***

Só durante a minha década seguinte, como estudante universitário


americano com um ligeiro interesse por história e filosofia, comecei a
adquirir um conhecimento superficial sobre Israel e o sionismo, não por-
que estivesse particularmente interessado nesses assuntos, mas porque se
incluíam nas minhas leituras. Não me sentia hostil nem simpatizante; era
indiferente; a minha experiência como refugiado continuava a ser inútil.
Mas não continuei a ser indiferente a Israel ou ao sionismo. Essa foi
a década da espectacular captura e julgamento israelita do bom alemão
Eichmann, e da espectacular invasão israelita de vastas partes do Egipto,
Síria e Jordânia numa Blitzkrieg de seis dias, uma década em que Israel
era notícia para toda a gente, não apenas para refugiados.
O obediente Eichmann não me inspirava quaisquer pensamentos
fora do vulgar, excepto a ideia de que aquele homem não podia ser tão
excepcional, visto eu já ter conhecido pessoas como ele na América.
Mas algumas das minhas leituras fizeram com que começasse a pensar
no racismo sionista dos meus familiares.
Fiquei a saber que certos povos, como os antigos hebreus, acádios,
árabes, fenícios e etíopes, provinham todos da terra de Sem (a Penín-
sula Arábica) e que todos falavam a sua língua, sendo isso o que os
tornava semitas. Fiquei a saber que a religião judaica teve origem entre
os semitas no antigo Estado levantino da Judeia, que a religião cristã
teve origem entre os semitas nas antigas cidades levantinas de Nazaré e
Jerusalém, que a religião maometana teve origem entre os semitas nas
antigas cidades árabes de Meca e Medina, e que nos últimos 1300 anos
a região chamada Palestina tinha sido um lugar sagrado para os islami-
tas semitas que viviam ali e nas regiões circundantes.
Fiquei também a saber que as religiões dos judeus europeus e ame-
ricanos, como as religiões dos cristãos europeus e americanos, foram
elaboradas durante quase dois mil anos por europeus e, mais recente-
mente, por americanos.
Se os judeus europeus e americanos eram semitas devido à sua re-

100
o anti-semitismo e o pogrom de beirute

ligião, então os cristãos europeus e americanos também eram semitas,


noção que normalmente era considerada absurda.
Se os judeus eram semitas devido à linguagem do seu Livro Sagra-
do, então todos os cristãos europeus e americanos eram gregos ou ita-
lianos, outra noção quase tão evidentemente absurda.
Comecei a suspeitar que a única ligação dos meus familiares sionis-
tas ao Sião no Levante era uma ligação genealógica traçada, não desde
há mais de seis gerações, mas desde há mais de sessenta gerações. Mas
eu fora levado a considerar esse cálculo racial como uma peculiaridade
dos nazis, dos africâneres e dos sulistas americanos.
Fiquei apreensivo. Pensei que seguramente era mais do que isso;
seguramente, os que afirmavam descender das vítimas de todo aquele
racismo não eram portadores de um racismo dez vezes mais completo.
Sabia pouco a respeito do movimento sionista, mas o suficiente para
começar a sentir repugnância. Sabia que o movimento tivera original-
mente duas alas, podendo compreender uma delas, a socialista, porque
começava a identificar-me com as vítimas da opressão, não por discer-
nimentos obtidos a partir da minha própria experiência, mas bebidos
em livros acessíveis também a outras pessoas; a outra ala do sionismo
era incompreensível para mim.
Os sionistas igualitários ou de esquerda, tal como eu então os com-
preendi, não queriam ser assimilados pelos Estados europeus que os
perseguiam, alguns por pensarem que nunca o poderiam ser, outros
por se sentirem repelidos pela Europa e pela América industrializadas.
O Messias, o seu movimento, iria livrar Israel do exílio e guiá-lo até ao
Sião, para algo completamente diferente, para um Paraíso sem otários
nem vigaristas. Alguns, ainda mais metaforicamente, esperavam que o
Messias livrasse os oprimidos dos seus opressores, e se isso não fosse
possível em todo o lado, pelo menos que fosse possível numa Utopia
igualitária milenarista localizada numa região do Império Otomano,
encontrando-se eles preparados para se juntarem aos habitantes islâ-
micos do Sião contra os opressores otomanos, levantinos e britânicos.
Partilhavam esse sonho com os milenaristas cristãos que há mais de um
milénio andavam a tentar encontrar o Sião numa ou noutra região da
Europa; ambos tinham as mesmas raízes, mas creio que os sionistas de
esquerda herdaram o seu milenarismo dos cristãos.

101
Fredy Perlman

Os sionistas igualitários eram arrogantes pensando que os islamitas


habitantes do Sião acolheriam os esquerdistas europeus como liberta-
dores, e eram tão ingénuos como os igualitários que tomaram o poder
de Estado no meu país natal, pensando que o milénio começaria logo
que ocupassem os cargos estatais e se tornassem polícias. Mas tanto
quanto eu podia compreender, não eram racistas.
Os outros sionistas, a direita, que na altura em que cheguei à uni-
versidade tinham suplantado a esquerda, pelo menos na América, eram
explicitamente racistas e assimilacionistas; queriam um Estado domi-
nado por uma Raça, sempre muito mal disfarçado de religião, um Esta-
do que não fosse algo completamente diferente, mas exactamente igual
à América e aos outros Estados com assento na Família das Nações.
Não conseguia compreender tais coisas, pois parecia-me que esses sio-
nistas, que incluíam estadistas, industrializadores e tecnocratas, não só
eram racistas como também conversos.
Os primeiros conversos eram judeus que na Espanha do século XV,
para escaparem à perseguição, descobriram que o tão esperado Messias
judeu já tinha chegado, um milénio e meio antes, na pessoa do profeta
judeu Jesus, o crucificado. Alguns desses conversos juntaram-se depois
à Inquisição e perseguiram judeus que ainda não tinham feito uma tal
descoberta.
Os conversos modernos não se tinham tornado católicos; o catoli-
cismo não era o credo dominante no século XX; esse credo era a Ciên-
cia e a Tecnologia.
Eu pensava que Jesus tinha pelo menos defendido, mesmo que se
tratasse apenas de relíquias, algumas das características da antiga co-
munidade humana, ao passo que a Ciência e a Tecnologia não defen-
diam nada de humano; destruíram a cultura, a natureza e a comunida-
de humana.
Parecia lamentável que as especificidades, desde há muito tempo
preservadas e cuidadosamente guardadas, de uma minoria cultural
que se recusara a ser absorvida, fossem destruídas pela descoberta de
que o Estado tecnocrático era o Messias e o Processo Industrial o tão
aguardado milénio. Isso tornou toda a trajectória sem sentido. O sonho
destes conversos racistas era para mim repulsivo.

102
o anti-semitismo e o pogrom de beirute

***

Só na década seguinte, quando já tinha mais de trinta anos, a minha pro-


ximidade com o Pogrom nazi começou a ter significado para mim. Essa
transvaloração da minha anterior experiência aconteceu de repente e foi
causada, a bem dizer, por um encontro fortuito, encontro esse em que
havia, também por acaso, uma estranha referência ao Estado de Israel.
Foi na década em que a América travou uma guerra de extermínio
contra um povo e uma cultura antiga do Extremo Oriente.
Estava por acaso de visita aos meus familiares americanizados
quando a minha tia andina se encontrou com eles pela primeira vez
desde que se tinham separado. Era a minha tia que respeitava o povo
que falava quíchua, mas não o bastante para aprender a sua língua, e
que ficara entre eles quando os outros partiram.
A conversa entre os meus familiares transformou-se em reflexões
piedosas sobre o meu tio que fora para Israel e morrera atropelado por
um carro depois de ter sobrevivido aos campos de concentração nazis.
A minha tia andina, perplexa com o que estava a ouvir, perguntou-
-lhes se tinham todos enlouquecido. A história sobre o acidente auto-
móvel fora contada às crianças tantas vezes que os adultos acabaram
por acreditar nela.
O homem não morreu num acidente! gritou ela. Suicidou-se! So-
breviveu aos campos de concentração porque o tinham empregado
como técnico na aplicação da ciência química ao funcionamento das
câmaras de gás. Tinha depois cometido o erro de emigrar para Israel,
onde a sua colaboração com os nazis se tornou do conhecimento pú-
blico. Provavelmente não pôde suportar os olhares acusatórios; e talvez
temesse uma retaliação.
A minha primeira reacção a essa revelação foi de repulsa por um ser
humano susceptível de estar tão moralmente degradado que chegara ao
ponto de gasear os seus próprios familiares e companheiros de cativei-
ro. Mas quanto mais pensava nele, mais admitia que havia pelo menos
um pingo de integridade moral no seu último acto autodestrutivo; esse
acto não o tornava um paradigma moral, mas contrastava nitidamente
com as acções de pessoas que não tinham sequer um pingo de integri-
dade moral, pessoas que regressavam do Extremo Oriente e defendiam

103
Fredy Perlman

as suas acções, gabando-se até das atrocidades anormais que tinham


infligido a outros seres humanos.
E perguntei a mim mesmo quem seriam realmente os outros, os
puros que tinham exposto e julgado Eichmann, o alemão obediente.
Não sabia nada sobre as pessoas que viviam em Israel e não conhe-
cia nenhum israelita, mas estava cada vez mais ciente dos americanos
que apoiavam ruidosamente o Estado de Israel, não dos sionistas de
esquerda que se encontravam entre eles, mas dos outros, dos amigos
racistas dos meus familiares. Os esquerdistas tinham desaparecido por
completo num obscuro limbo sectário onde nenhum estranho podia
penetrar, num limbo que tresandava quase tanto como o mantido pe-
los herdeiros dos Messias Lénine e Stáline, com seitas divididas pela
existência do Estado israelita, variando entre as que reivindicavam que
a tomada do poder em Israel era tudo quanto era necessário para trans-
formar aquele Estado numa comunidade igualitária, e as que reivindi-
cavam que o actual Estado de Israel já era uma comunidade igualitária.
Mas os sionistas de esquerda gritavam apenas entre eles.
Foram os outros que geraram todo o alarido, que gritaram a toda a
gente. E estes eram explícitos sobre aquilo que admiravam no Estado
de Israel: defendiam-no, gabavam-no, e nada tinha que ver com o igua-
litarismo da ala em dificuldades. O que eles admiravam era o seguinte:
– a cruzada nacionalista que considerava os humanos que o rodea-
vam como meros obstáculos ao seu florescimento;
– a potência industrial da Raça que conseguira desnaturar o deserto
e fazê-lo florescer;
– a eficiência dos seres humanos transformados em pilotos de gran-
des tanques e de jactos incrivelmente precisos;
– a sofisticação tecnológica dos próprios instrumentos de morte,
infinitamente superiores aos dos nazis;
– a espectacularmente empreendedora polícia secreta, dotada de
uma perícia certamente não inferior, para um Estado tão pequeno, à da
CIA, do KGB ou da Gestapo;
– o militarismo agressivo, que utilizava as mais recentes invenções
da Ciência mortífera contra uma variegada colecção de armas, e infligia
cem ou mil vezes mais perdas do que as que sofria.
Esta última jactância, que expressava a moralidade de reclamar cen-

104
o anti-semitismo e o pogrom de beirute

tenas de olhos por um olho e milhares de dentes por um dente, parecia


particularmente repulsiva na boca de apoiantes de um Estado teocrá-
tico onde uma elite ética afirmava dar orientação de inspiração divina
em questões morais; mas isto só poderá surpreender os desinformados
sobre as teocracias da História.
Durante a década em questão, o racismo (o anti-semitismo, para ser
mais preciso) dos admiradores do Estado de Israel tornou-se virulento.
Os expropriados semitas de Sião deixaram de ser considerados seres hu-
manos; eram árabes retrógrados; só os que se tornaram bons israelitas
assimilados podiam ser considerados humanos; os outros eram primiti-
vos imundos. E os primitivos, segundo reza a definição dada há alguns
séculos pelos conquistadores, não só não tinham direito de resistir à
humilhação, expropriação e miséria, como não tinham direito a exis-
tir; eles só esbanjavam recursos naturais, não sabiam o que fazer com
as preciosas dádivas de Deus! Só os eleitos por Deus sabiam utilizar as
dádivas do Grande Pai, só eles sabiam exactamente o que fazer com elas.
Contudo, à medida que insistiam no atraso dos expropriados, os
apoiantes tornaram-se paranóicos e apresentaram a patética resistência
dos expropriados como uma vasta conspiração, de incalculável poder e
de alcance quase cósmico.
A expressão de Sartre mauvaise foi3 é demasiado fraca para caracte-
rizar a postura adoptada por estas pessoas, mas não é minha preocupa-
ção forjar uma outra expressão.

***

Sobrevivi até aos meus quarenta anos em parte devido ao facto de a


América ainda não se ter exterminado a si mesma e ao resto da huma-
nidade com os seus potentes incineradores e venenos com que minava4,
ou melhor, contaminava, a sua própria terra e as terras de outros povos.
Esta década conjugou o que anteriormente pensara não ser conju-
gável; conjugou uma enxurrada de revelações sobre o Holocausto, sob

3.  Má-fé, em português. (N. do t.)

4.  Minar, no sentido de colocar minas explosivas, tornando a terra letal.

105
Fredy Perlman

a forma de filmes, peças de teatro, livros e artigos, com o Pogrom per-


petrado pelo Estado de Israel contra os semitas levantinos em Beirute.5
As revelações só aludiram ligeiramente ao Holocausto no Vietna-
me; talvez tenham de passar duas gerações para que essa obscenidade
seja exposta. As revelações foram quase todas sobre o Holocausto a que
escapei por um triz em criança.
Pessoas que não compreendem a liberdade humana poderão pen-
sar que essas terríveis revelações poderiam ter apenas um efeito, virar
as pessoas contra os perpetradores dessas atrocidades, fazer as pessoas
sentir empatia pelas vítimas, contribuir para a vontade de abolir qual-
quer possibilidade de vir a repetir-se uma perseguição tão desumani-
zante e a sangue-frio. Mas, para o bem ou para o mal, tais experiên-
cias, pessoalmente vividas ou conhecidas através de revelações, não são
senão o campo em que a liberdade humana plana como uma ave de
rapina. As revelações sobre o Pogrom de há quarenta anos têem-se até
tornado justificações para o Pogrom de agora.
Pogrom é uma palavra russa que costumava aplicar-se, num passa-
do que agora parece quase benigno, a motins de homens armados de
cacetes contra aldeões parcamente armados e que tinham característi-
cas culturais diferentes; quanto mais o Estado estivesse envolvido nesses
motins, mais hediondo era o Pogrom. Os atacantes, esmagadoramente
mais fortes, projectavam o seu agressivo carácter de arruaceiros sobre as
suas vítimas mais fracas, convencendo-se de que eram ricas, poderosas,
estavam bem armadas e aliadas ao Diabo. Os atacantes também projec-
tavam a sua violência sobre as suas vítimas fabricando histórias sobre
a brutalidade das vítimas a partir de detalhes retirados do seu próprio
reportório de proezas. Na Rússia do século XIX, um Pogrom era con-
siderado particularmente violento se fossem mortas cinquenta pessoas.
As estatísticas passaram por uma completa metamorfose no século
XX, quando o Estado se tornou o maior arruaceiro. As estatísticas dos
Pogromes dos modernos Estados alemão, russo e turco são conhecidas;
as do Vietname e de Beirute ainda não são públicas.

5.  Esta afirmação, escrita em meados de Agosto, referia-se à invasão do Líbano pelo
Estado de Israel e não ainda ao Pogrom, no sentido estrito do século XIX, perpetrado
em Setembro (16 a 18 de Setembro de 1982, para ser exacto).

106
o anti-semitismo e o pogrom de beirute

Beirute e os seus habitantes já tinham sido assolados pela presença


do violento movimento de resistência dos refugiados que haviam sido
expropriados e expulsos de Sião; se as baixas desses confrontos fossem
também acrescentadas ao número de mortos causados pelo envolvi-
mento directo do Estado de Israel no motim – mas fico-me por aqui;
não quero entrar no jogo dos números.
O truque de declarar guerra à resistência armada e atacar depois
os desarmados familiares dos resistentes, assim como a população cir-
cundante, com os produtos mais macabros da Ciência da Morte, não é
novo. Os pioneiros americanos foram também pioneiros nisso; torna-
ram-no uma prática normal para declarar guerra aos guerreiros indí-
genas e para matar e queimar depois aldeias onde só havia mulheres e
crianças. Isto já é guerra moderna, que conhecemos como guerra con-
tra populações civis; chamou-se-lhe também, mais francamente, homi-
cídio em massa ou genocídio.
Talvez eu não devesse ficar surpreendido que os perpetradores de
um Pogrom se façam passar por vítimas, neste caso por vítimas do Ho-
locausto.
Herman Melville compreendeu há já mais de um século, na sua aná-
lise da metafísica do ódio aos índios, que aqueles que fizeram da caça e
matança dos povos indígenas deste continente a sua profissão a tempo
inteiro, sempre se fizeram passar, mesmo aos seus próprios olhos, por
vítimas da caça ao homem.
O uso que os nazis fizeram da Conspiração Judaica Internacional
é mais bem conhecido: ao longo de todo o tempo em que cometeram
atrocidades inacreditáveis, os nazis consideraram-se a eles próprios
como os perseguidos.
É como se a experiência de ser vítima isentasse da solidariedade
humana, como se desse poderes especiais e licença para matar.
Talvez não devesse ficar surpreendido, mas não posso deixar de
ficar zangado, porque essa postura é a de um Salaud, é a postura de
quem nega a liberdade humana, de quem nega que é ele que escolhe
ser assassino. A experiência, quer seja vivida pessoalmente ou obtida
através de revelações, não explica nem determina nada; não é mais do
que um falso álibi.
Melville analisou a integridade moral do odiador de índios.

107
Fredy Perlman

Estou a falar de pogromistas modernos e, mais estritamente, de


apoiantes de Pogromes. Estou a falar de pessoas que pessoalmente não
mataram cinquenta seres humanos, nem cinco nem sequer um só.
Estou a falar da América, onde se procura uma completa imersão no
Paraíso evitando ao mesmo tempo qualquer contacto com o seu trabalho
sujo, onde apenas uma minoria se encontra ainda envolvida na realiza-
ção desse trabalho sujo, onde a grande maioria das pessoas são − a tempo
inteiro − voyeurs, mirones, adeptos ou como se lhes quiser chamar.
Entre os voyeurs, concentro-me nos dos Holocaustos e dos Pogro-
mes. Tenho de continuar a fazer referência àquilo que se encontra no
ecrã porque é aquilo que está a ser visto. Mas a minha preocupação é
com o observador, com aquele que faz de si um voyeur, especificamente
um voyeur de Holocaustos, um adepto de esquadrões da morte.
Basta dizermos a um deles as palavras Beirute e Pogrom na mesma
frase que ele vomitará toda a moralidade que traz dentro: não vomi-
tará muito.
A resposta mais provável que nos dará é uma risada imbecil ou uma
gargalhada cínica.
Lembro-me do meu tio, daquele que não foi atropelado por um carro,
que teve, pelo menos, um pingo de integridade moral para ver aquilo que
outros viram e rejeitá-lo, e contraponho-o à pessoa que nada vê ou que
cinicamente defende aquilo que vê, que cinicamente aceita ser o que é.
Se for um intelectual, um adepto, responderá o exacto equivalente
do sorriso idiota ou da gargalhada cínica, mas com palavras; irá bom-
bardear-nos com sofismas, meias verdades e mentiras descaradas, para
ele perfeitamente evidentes quando as profere.
Não é um idealista aluado e ingénuo, é um materialista com os pés
bem assentes na terra e completamente focalizado na propriedade, sem
quaisquer ilusões sobre o que constitui a expropriação daquilo a que
ele chama Bens Imobiliários. Contudo, este proprietário irá começar a
dizer-nos que o Sião levantino é terra judaica e apontará para um Título
com dois mil anos.
Chama louco a Hitler por este ter reivindicado a região dos Sudetas
como terra alemã porque rejeita inteiramente as leis que a tornariam
parte da Alemanha. Os tratados de paz internacionais fazem parte das
suas regras, mas não as expropriações violentas.

108
o anti-semitismo e o pogrom de beirute

Apesar disso, saca de repente de uma série de leis que, se realmen-


te as aceitasse, pulverizariam por completo o edifício da Propriedade
Imobiliária. Se ele realmente acatasse essas leis, estaria a vender terre-
nos em Gdansk a cassubianos retornados do exílio, regiões no Michi-
gan, Wisconsin e Minnesota a ojibwas para que estes se reapropriassem
da sua terra natal, propriedades no Irão, Iraque e em grande parte da
Turquia aos parses indianos retornados a casa, e teria ainda de arrendar
partes do próprio Sião aos chineses descendentes dos cristãos nestoria-
nos e a muitos outros ainda.
Tais argumentos têm mais afinidade com a risada imbecil do que
com a gargalhada cínica.
Se a gargalhada cínica fosse traduzida em palavras, diria: Nós (eles
dizem sempre Nós) conquistámos os primitivos, expropriando-os e ex-
pulsando-os; os expropriados continuam a resistir, mas entretanto Nós
obtivemos duas gerações que não têm outra pátria senão o Sião; sendo
Realistas, sabemos que podemos acabar com a resistência de uma vez
para sempre exterminando os expropriados.
Um tal cinismo, sem pingo de integridade moral, poderá ser rea-
lista, mas poderá também tornar-se naquilo a que C. W. Mills chamou
Realismo Chanfrado, porque a resistência poderá sobreviver e aumen-
tar, e poderá durar tanto como a irlandesa.
Há ainda outra resposta, a do arruaceiro de cacete na mão da Liga
de Defesa que pensa que o facto de não envergar camisa castanha o
torna irreconhecível.
Este cerra os punhos ou aperta bem o cacete e grita: Traidor!
Esta é a resposta mais ominosa, por declarar que Nós somos um clube
a que todos são bem-vindos mas em que a filiação de alguns é obrigatória.
Empregada dessa forma, a palavra Traidor não significa anti-semita,
visto ser dirigida às pessoas que se identificam com o sofrimento dos
actuais semitas. A palavra Traidor não significa pogromista, visto ser
dirigida às pessoas que ainda empatizam com as vítimas do Pogrom.
Este termo é um dos poucos componentes do vocabulário de um racis-
ta ao longo dos tempos; significa: Traidor à Raça.
E chego assim ao único elemento que o novo anti-semita ainda não
tinha partilhado com o antigo anti-semita: Gleichschaltung, a «sincro-
nização» totalitária de toda a actividade e expressão política. A Raça

109
Fredy Perlman

toda tem de marchar ao mesmo ritmo, ao som do mesmo rufo de tam-


bor: todos devem obedecer.
A singularidade do condenado Eichmann reduz-se a uma diferença
no ritual das férias.
Parece-me que esses ineptos não preservam as tradições de uma
cultura perseguida. São conversos, mas não ao catolicismo de Fernan-
do e Isabel; são conversos à prática política do Führer.
O longo exílio terminou; o refugiado perseguido retornou final-
mente a Sião, mas tão dilacerado que se tornou irreconhecível, per-
deu-se a si próprio por completo; regressa como anti-semita, como
pogromista, como assassino de massas; as épocas de exílio e sofrimen-
to estão ainda incluídas na sua maquilhagem, mas apenas como auto-
justificações e como repertório de horrores a impor aos primitivos e
mesmo à própria Terra.

***

Penso que acabei de mostrar que a experiência do Holocausto, em si


mesma, quer tenha sido vivida ou observada, não faz de um indivíduo um
crítico de Pogromes, e que também não confere poderes especiais ou dá a
alguém licença para matar ou para se converter num assassino de massas.
Mas nem sequer toquei na grande questão que tudo isto levanta:
poderei começar a explicar por que é que alguém escolhe ser um assas-
sino de massas?
Penso que poderei começar a dar uma resposta. Correndo o risco
de plagiar o retrato feito por Sartre do antigo anti-semita, posso, pelo
menos, apontar um ou dois dos elementos que se encontram no campo
de escolha do novo anti-semita.
Poderia começar por denotar que o novo anti-semita não é assim
tão diferente de qualquer outro espectador de televisão, e que ver televi-
são está algo próximo do cerne da escolha (incluo os jornais e os filmes
na abreviação «contar-uma-visão»6).

6. No original , tell-a-vision, jogo de palavras que o autor adopta para criticar a
unilateralidade dos meios de comunicação de massas. (N. do t.)

110
o anti-semitismo e o pogrom de beirute

Aquilo que o espectador vê no ecrã são alguns dos feitos «interessan-


tes», peneirados e censurados, do conjunto monstruoso em que ele tem
um papel trivial mas diário. A actividade principal mas nem sempre te-
levisionada deste vasto conjunto é o trabalho industrial e administrativo,
o trabalho forçado, ou simplesmente o trabalho, o Arbeit que macht frei7.
Soljenitsine, nos vários volumes do seu Arquipélago Gulag, expôs
uma profunda análise do que esse Arbeit faz à vida interior e exterior de
um indivíduo humano; ainda está por fazer uma profunda análise com-
parativa da administração que «sincroniza» a actividade, as instituições
de formação que produzem os Eichmann e os químicos que aplicam
meio racionais à perpetração dos fins irracionais dos seus superiores.
Não posso resumir as descobertas de Soljenitsine; os seus livros têm
de ser lidos. Resumidamente, posso apenas dizer que a parte da vida dis-
pendida no Arbeit, a trivialidade da existência num mercado de produ-
tos enquanto vendedor ou comprador, trabalhador ou cliente, deixa um
indivíduo sem laços familiares, comunidade ou sentido: desumaniza-o,
esvazia-o; deposita apenas dentro dele as trivialidades que maquilham
o seu exterior. E este indivíduo deixa de ter a centralidade, o significado
e a autonomia que as antigas comunidades, que já não existem, davam
a todos os seus membros. Já nem sequer tem a falsa centralidade dada
pelas religiões que preservavam uma memória das antigas qualidades
enquanto reconciliavam as pessoas com mundos onde essas qualidades
estavam ausentes. Até mesmo as religiões foram esvaziadas, reduzidas a
rituais vazios que já há muito tempo perderam o seu sentido.
O vazio está sempre presente. É como a fome: dói. E, no entanto,
nada parece preenchê-lo.
Ah, mas há qualquer coisa que o preenche ou parece preencher.
Poderá ser serradura e não queijo ralado, mas dá ao estômago a ilusão
de que foi alimentado; poderá ser uma completa renúncia à autonomia,
uma auto-aniquilação, mas cria a ilusão da auto-satisfação, da reapro-
priação da autonomia perdida.
Esse qualquer coisa é a Visão Contada que pode ser visualizada nas
horas livres, e, preferivelmente, a toda a hora.

7.  «O trabalho liberta»: mote afixado à entrada dos campos de trabalho escravo nazis.

111
Fredy Perlman

Escolhendo ser um voyeur, o indivíduo pode ver tudo aquilo que


já não é.
Todas as capacidades individuais que ele já não possui, possui-as
Isso. E Isso possui ainda mais capacidades; possui capacidades que ne-
nhum indivíduo alguma vez teve; possui a capacidade de transformar
desertos em florestas e florestas em desertos; possui a capacidade de
aniquilar povos e culturas que sobreviveram desde o início dos tempos
e de não deixar vestígios da sua existência; possui até a capacidade de
ressuscitar povos e culturas desaparecidos e dar-lhes vida eterna no ar
condicionado dos museus.
Caso o leitor ainda não tenha adivinhado, Isso é o conjunto tecnoló-
gico, o processo industrial, o Messias chamado Progresso. É a América.
O indivíduo privado de sentido escolhe dar o último salto para a
insignificância ao identificar-se com o próprio processo que o despoja.
Transforma-se em Nós, os explorados que se identificam com o explo-
rador. Daí em diante, as suas capacidades são as Nossas capacidades, as
capacidades do conjunto, as capacidades da aliança dos trabalhadores
com os seus próprios patrões conhecida como a Nação Desenvolvida.
O indivíduo incapacitado torna-se num comutador essencial do Deus
omnipotente, omnisciente, omnipresente, o computador central; unifi-
ca-se com a máquina.
A sua imersão transforma-se numa orgia durante as cruzadas con-
tra os que ainda se encontram fora da máquina: árvores intocadas,
lobos, primitivos.
Durante tais cruzadas, ele transforma-se num dos últimos pionei-
ros; atravessando os séculos, dá as mãos aos conquistadores da parte sul
e aos pioneiros da parte norte deste duplo continente; dá as mãos aos
odiadores de índios, descobridores e cruzados; sente, por fim, a Amé-
rica a correr-lhe nas veias, a América que já estava a fermentar nos cal-
deirões dos alquimistas europeus ainda antes de Colombo (o converso)
ter tido contacto com os caribenhos, Raleigh com os algonquinos e
Cartier com os iroqueses; ele dá o coupe de grace ao que restava da sua
humanidade ao identificar-se com o processo exterminador da cultura,
da natureza e da humanidade.
Se continuasse, chegaria provavelmente a resultados já descober-
tos por Wilhelm Reich no seu estudo sobre a psicologia de massas do

112
o anti-semitismo e o pogrom de beirute

fascismo. Irrita-me que um novo fascismo opte por usar entre as suas
justificações a experiência das vítimas do anterior fascismo.

[1982]

113
114
A Contínua Atracção do Nacionalismo
O nacionalismo foi declarado morto por diversas vezes durante o
presente século XX:
– depois da Primeira Guerra Mundial, quando os últimos impérios
da Europa, o austríaco e o turco, foram divididos em nações autode-
terminadas e nenhum nacionalista ficou privado de nação, à excepção
dos sionistas;
– depois do golpe de estado bolchevique, quando se dizia que as
lutas burguesas pela autodeterminação haviam sido doravante suplan-
tadas pelas dos trabalhadores, que não tinham pátria;
– depois da derrota militar da Itália fascista e da Alemanha nacio-
nal-socialista, quando o genocídio, corolário do nacionalismo, foi exi-
bido para todos verem, quando se pensou que o nacionalismo como
crença e prática tinha caído definitivamente em descrédito.
Contudo, quarenta anos depois da derrota militar dos fascistas e
dos nacional-socialistas, podemos ver que o nacionalismo não só so-
breviveu como renasceu, passou por um revivalismo. O nacionalismo
foi ressuscitado não só pela chamada direita, mas também, principal-
mente, pela chamada esquerda. Depois da guerra nacional-socialista, o
nacionalismo deixou de ficar circunscrito aos conservadores, tornan-
do-se crença e prática de revolucionários e comprovando-se como úni-
ca crença revolucionária que realmente funcionou.
Os esquerdistas ou revolucionários nacionalistas insistem em que o
seu nacionalismo nada tem em comum com o nacionalismo dos fascis-

115
Fredy Perlman

tas e dos nacional-socialistas, que o deles é um nacionalismo dos opri-


midos que proporciona uma libertação tanto pessoal como cultural. As
reivindicações dos nacionalistas revolucionários têm sido difundidas
pelo mundo pelas duas instituições hierárquicas mais antigas que so-
breviveram até ao nosso tempo: o Estado chinês e, mais recentemente,
a Igreja católica. Actualmente, o nacionalismo tem sido apontado como
estratégia, ciência e teologia de libertação, como realização do ditado
iluminista de que o conhecimento é poder, como resposta comprovada
à pergunta «Que Fazer?».
Para desafiar essas reivindicações e vê-las no seu contexto, tenho de
perguntar o que é o nacionalismo – não apenas o novo nacionalismo
revolucionário, mas também o antigo nacionalismo conservador. Não
posso começar por definir o termo, porque nacionalismo não é uma
palavra com uma definição estática: é um termo que abarca uma sequência
de diferentes experiências históricas. Começo por dar um breve esboço
de algumas dessas experiências.

Segundo uma falácia comum (e manipulável), o imperialismo é


relativamente recente, consistindo na colonização do mundo inteiro
como última etapa do capitalismo. Este diagnóstico aponta para um re-
médio explícito: o nacionalismo é proposto como o antídoto do impe-
rialismo; afirma-se que as guerras de libertação nacional podem acabar
com o império capitalista.
Este diagnóstico tem um objectivo, mas não descreve qualquer
acontecimento ou situação. Aproximamo-nos da verdade quando vira-
mos esta concepção do avesso e dizemos que o imperialismo foi a pri-
meira etapa do capitalismo, que o mundo foi posteriormente coloniza-
do por Estados-nação e que o nacionalismo é a etapa dominante, actual
e (esperemos) final do capitalismo. Os factos sobre este caso não foram
descobertos ontem; são tão familiares como a falácia que os nega.
Tem sido conveniente, por várias boas razões, esquecer que até aos
séculos mais recentes os poderes dominantes da Eurásia não eram Es-
tados-nação mas impérios. Um Império Celestial governado pela di-
nastia Ming, um Império Islâmico governado pela dinastia otomana
e um Império Católico governado pela dinastia de Habsburgo com-
petiam entre si pela posse do mundo conhecido. Dos três, os católi-

116
a contínua atracção do nacionalismo

cos não foram os primeiros imperialistas, foram os últimos. O Império


Celestial dos Ming governou a maior parte da Ásia oriental e já tinha
enviado grandes frotas comerciais pelos mares um século antes de os
católicos transoceânicos terem invadido o México.
Os celebrantes da façanha católica esquecem-se de que entre 1420 e
1430 o burocrata da China imperial Cheng Ho comandou expedições
navais de 70 000 homens e navegou não apenas até às vizinhas Malá-
sia, Indonésia e Ceilão, mas até portos tão longínquos como o Golfo
Pérsico, o Mar Vermelho e África. Os celebrantes dos conquistadores
católicos também depreciam os feitos imperiais dos otomanos, que
conquistaram tudo menos as regiões mais ocidentais do antigo Império
Romano, dominaram o Norte de África, a Arábia, o Médio Oriente e
parte da Europa, controlaram o Mediterrâneo e estiveram às portas de
Viena. Os católicos imperiais estabeleceram-se no Ocidente, para além
das fronteiras do mundo conhecido, para escaparem a esse cerco.
Ainda assim, foram os católicos imperiais que «descobriram a Amé-
rica», e o seu genocídio destrutivo e a pilhagem decorrente da sua «des-
coberta» mudaram o equilíbrio de forças entre os impérios da Eurásia.
Teriam os chineses ou turcos imperiais sido menos letais se tivessem
«descoberto a América»? Todos os três impérios encaravam os estran-
geiros como sub-humanos e, por isso mesmo, como presas legítimas.
Os chineses consideravam os outros como bárbaros; os muçulmanos e
católicos consideravam os outros como infiéis. A palavra infiel não é tão
brutal como a palavra bárbaro, porque o infiel deixa de ser uma presa
legítima e torna-se um verdadeiro ser humano pelo simples acto de se
converter à verdadeira fé, ao passo que o bárbaro continua a ser uma
presa até ser assimilado pelo civilizador.
A palavra infiel, e a moralidade que está por detrás dela, entrou em
conflito com a prática dos invasores católicos. A contradição entre a
profissão de fé e os actos praticados foi descoberta por um crítico bas-
tante precoce, o frade Bartolomé de Las Casas, tendo este notado que
as cerimónias de conversão eram pretextos para separar e exterminar
os inconversos e que os próprios conversos não eram tratados como
iguais, mas como escravos.
As críticas de Las Casas não fizeram mais do que embaraçar a Igreja
católica e o imperador. Foram publicadas leis e enviados investigadores,

117
Fredy Perlman

mas com poucos resultados, porque os dois objectivos das expedições


católicas, a conversão e a pilhagem, eram contraditórios. A maioria dos
clérigos conformou-se com salvar o ouro e condenar as almas. O im-
perador católico dependia cada vez mais da riqueza das pilhagens para
pagar os gastos da casa real, do exército e das frotas que transportavam
as pilhagens.
As pilhagens continuavam a ter prioridade em relação às conver-
sões, mas os católicos continuavam a sentir-se embaraçados. A sua
ideologia não se adequava em nada à sua prática. Os católicos fizeram
muitas das suas conquistas à custa dos astecas e dos incas, que descre-
veram como impérios com instituições parecidas às do Império dos
Habsburgo e com práticas religiosas tão demoníacas como as dos seus
inimigos oficiais, o império infiel dos turcos otomanos. Mas os católi-
cos não tiraram grande proveito das guerras de extermínio contra co-
munidades que não tinham imperadores nem exércitos regulares. Tais
façanhas, ainda que perpetradas regularmente, entravam em conflito
com a sua ideologia e eram tudo menos heróicas.
A contradição entre a profissão de fé dos invasores e os seus actos não
foi resolvida pelos católicos imperiais. Foi resolvida pelos prenúncios de
uma nova forma social, o Estado-nação. Dois prenúncios surgiram no
mesmo ano, 1561, quando um dos aventureiros ultramarinos do impera-
dor proclamou a sua independência do império e vários dos banqueiros
e fornecedores do imperador iniciaram uma guerra de independência.
O aventureiro ultramarino, Lope de Aguirre, não conseguiu mobili-
zar apoios e foi executado.
Os banqueiros e fornecedores do imperador mobilizaram os habi-
tantes de várias regiões imperiais e conseguiram separar essas regiões
do império (regiões que ficaram mais tarde conhecidas como Holanda).
Estes dois acontecimentos não eram ainda lutas de libertação nacio-
nal. Eram prenúncios do que estava para vir. Eram também lembran-
ças do passado. No antigo Império Romano, a guarda pretoriana tinha
como missão proteger o imperador; os guardas começaram a assumir
cada vez mais as funções do imperador e acabaram por exercer o poder
do imperador. No Império Árabe islâmico, o califa tinha contratado
guardas pessoais turcos para protegerem a sua pessoa; os guardas tur-
cos, como os pretorianos tinham anteriormente feito, assumiram cada

118
a contínua atracção do nacionalismo

vez mais as funções do califa e acabaram por tomar conta do palácio e


do governo imperial.
Lope de Aguirre e os nobres holandeses não eram a guarda pessoal
do monarca Habsburgo, mas o aventureiro colonial andino e as casas
comerciais e financeiras holandesas exerciam funções imperiais impor-
tantes. Estes rebeldes, como os anteriores guardas romanos e turcos,
queriam libertar-se da indignidade espiritual e do jugo material de ser-
vidão ao imperador; já detinham os poderes do imperador; para eles, o
imperador não passava de um parasita.
O aventureiro colonial Aguirre era manifestamente um rebelde
inepto; o seu momento ainda não tinha chegado.
Os nobres holandeses não eram ineptos e o seu momento já tinha
chegado. Não derrubaram o império; racionalizaram-no. As casas co-
merciais e financeiras holandesas já detinham muita da riqueza do
Novo Mundo; tinham-na recebido como pagamento por terem aprovi-
sionado as frotas, os exércitos e a casa real do imperador. Partiam agora
para pilhar colónias em seu próprio nome e para seu próprio benefício,
sem estarem amarrados a um soberano parasita. E uma vez que não
eram católicos, mas protestantes calvinistas, não os embaraçava uma
qualquer contradição entre profissões de fé e actos. Não tinham a pre-
tensão de salvar almas. O seu calvinismo dizia-lhes que um Deus ines-
crutável tinha salvo ou condenado todas as almas no início dos tempos
e nenhum sacerdote holandês poderia alterar os desígnios de Deus.
Os holandeses não eram cruzados; limitavam-se a pilhagens sem
heroísmo, sérias e de tipo comercial, calculadas e regularizadas; as fro-
tas saqueadoras regressavam sempre na data prevista. O facto de as víti-
mas do saque serem infiéis tornou-se menos importante do que o facto
de não serem holandesas.
Os eurasiáticos ocidentais, precursores do nacionalismo, inventa-
ram a palavra selvagens. Esta palavra era sinónimo da palavra bárbaros
do Império Celestial eurasiático. Ambas designavam seres humanos
como presas legítimas.

Durante os dois séculos seguintes, as invasões, subjugações e ex-


propriações iniciadas pelos Habsburgo foram imitadas por outras casas
reais europeias.

119
Fredy Perlman

Vistos através das lentes dos historiadores nacionalistas, os primei-


ros colonizadores, assim como os seus posteriores imitadores, pare-
ciam nações: Espanha, Holanda, Inglaterra, França. Mas de um ponto
de vista estratégico situado no passado, os poderes colonizadores são
os Habsburgo, os Tudor, os Stuart, os Bourbon, os Orange – ou seja,
dinastias idênticas às famílias dinásticas que tinham guerreado por
riqueza e poder desde a queda do Império Romano do Ocidente. Os
invasores podem ser encarados de ambos os pontos de vista, porque
estava a ocorrer uma transição. Essas entidades já não eram simples
Estados feudais, mas também não eram ainda verdadeiras nações; já
possuíam alguns dos atributos, mas ainda não todos, de um Estado-na-
ção. O mais notável elemento em falta era o exército nacional. Os Tudor
e os Bourbon já manipulavam o anglicismo e o francesismo dos seus
súbditos, especialmente durante as guerras contra os súbditos de outras
monarquias. Mas nem os escoceses nem os irlandeses, nem os córsicos
nem os provençais, foram recrutados para lutar e morrer por «amor ao
seu país». A guerra era um fardo feudal oneroso, uma corveia; os úni-
cos voluntários eram aventureiros que sonhavam com ouro; os únicos
patriotas eram os patriotas do Eldorado.
Os princípios do que viria a ser a crença nacionalista não atraíram
as dinastias reinantes, que estavam apegadas aos seus próprios prin-
cípios já experimentados e testados. Os novos princípios atraíram os
principais servidores das dinastias, os seus agiotas, abastecedores de
especiarias, fornecedores militares e saqueadores de colónias. Essas
pessoas, como Lope de Aguirre e os nobres holandeses, como os an-
teriores guardas romanos e turcos, exerciam funções-chave, ainda que
continuassem a ser serventuários. Muitos, senão mesmo a sua maior
parte, ardiam do desejo de se livrarem da indignidade e do jugo, de
se livrarem do soberano parasita, para continuarem a explorar compa-
triotas e a pilhar as colónias em seu próprio nome e para seu benefício.
Essas pessoas, mais tarde conhecidas como burguesia ou classe mé-
dia, ficaram ricas e poderosas desde os tempos em que as primeiras
frotas foram enviadas para oeste. Uma parcela da sua riqueza provi-
nha das colónias pilhadas, como pagamento por serviços que vendiam
ao imperador; essa soma de riqueza seria mais tarde conhecida como
acumulação primitiva de capital. Outra parte da sua riqueza provinha

120
a contínua atracção do nacionalismo

da pilhagem dos seus próprios compatriotas e vizinhos através de um


método mais tarde conhecido como capitalismo; o método não era de
todo novo, mas tornou-se bastante difundido depois de as classes mé-
dias terem açambarcado a prata e o ouro do Novo Mundo.
Essas classes médias exerciam funções importantes, mas ainda não
tinham tido a experiência de exercer o poder político central. Em In-
glaterra derrubaram um monarca e proclamaram uma república, mas,
temendo que as energias populares que mobilizaram contra as classes
mais altas se virassem contra elas, logo restauraram outro monarca da
mesma casa dinástica.
O nacionalismo só se conseguiu afirmar no final do século XVIII,
quando duas explosões, com treze anos de intervalo, inverteram a po-
sição relativa das duas classes mais altas e alteraram para sempre a geo-
grafia política do globo. Em 1776, mercadores coloniais e aventureiros
reconstituíram a façanha de Aguirre proclamando a sua independência
da dinastia ultramarina governante, superaram o seu antecessor mobi-
lizando outros colonos e conseguiram separar-se do Império Britânico
da dinastia de Hanôver. E em 1789, instruídos mercadores e escribas
superaram os seus precursores holandeses mobilizando, não apenas
umas poucas províncias isoladas, mas toda a população, derrubando
e chacinando o monarca Bourbon no poder e substituindo os vínculos
feudais por vínculos nacionais. Estes dois acontecimentos marcaram o
fim de uma era. Daí em diante, mesmo as dinastias sobreviventes tor-
naram-se rápida ou gradualmente nacionalistas e os restantes Estados
reais adquiriram cada vez mais atributos de Estados-nação.

As duas revoluções do século XVIII foram muito diferentes e con-


tribuíram com elementos diferentes e até conflituosos para a crença e
a prática do nacionalismo. Não pretendo analisar esses acontecimentos
aqui, mas apenas lembrar ao leitor alguns dos seus elementos.
Ambas as rebeliões conseguiram quebrar os vínculos de vassalagem
a uma casa monárquica e ambas tiveram como resultado a institui-
ção de Estados-nação capitalistas, mas entre uma e outra havia pouco
em comum. Os principais animadores de ambas as revoltas estavam
familiarizados com as doutrinas racionalistas do Iluminismo, mas os
auto-intitulados americanos limitaram-se aos problemas políticos, em

121
Fredy Perlman

grande parte ao problema de instituirem uma maquinaria de Estado


que pudesse pegar naquilo que o rei Jorge deixara. Muitos dos france-
ses foram bem mais longe; levantaram o problema de reestruturarem
não apenas o Estado, mas toda a sociedade; desafiaram não apenas os
vínculos entre o súbdito e o monarca, mas também entre o senhor e
o escravo, vínculo esse que continuou a ser sagrado para os america-
nos. Ambos os grupos estavam, sem sombra de dúvida, familiarizados
com a observação de Jean-Jacques Rousseau de que os seres humanos
nasciam livres mas estavam em toda a parte agrilhoados; os franceses,
porém, compreendiam mais profundamente esses grilhões e fizeram
um grande esforço para os quebrar.
Tão influenciados pelas doutrinas racionalistas como o próprio
Rousseau havia sido, os revolucionários franceses tentaram aplicar a
razão social ao ambiente humano da mesma forma que a razão natu-
ral, ou ciência, começava a ser aplicada ao ambiente natural. Rousseau
trabalhara sentado à sua secretária; tentara instituir a justiça social no
papel, confiando os assuntos humanos a uma entidade que encarnasse
a vontade geral. Os revolucionários agitaram-se para instituir a justiça
social não apenas no papel, mas entre seres humanos mobilizados e
armados, muitos deles enraivecidos e na sua maioria pobres.
A entidade abstracta de Rousseau tomou a forma concreta de um
Comité de Salvação Pública (ou de Saúde Pública), organização policial
que se considerava a si mesma como a encarnação da vontade geral. Os
virtuosos membros do comité aplicaram conscientemente as descober-
tas da razão aos assuntos humanos. Consideravam-se os cirurgiões da
nação. Esculpiam as suas obsessões pessoais na sociedade recorrendo
à lâmina do Estado.
A aplicação da ciência ao ambiente adquiriu a forma do terror siste-
mático. O instrumento da Razão e da Justiça foi a guilhotina.
O Terror decapitou os antigos governantes e depois virou-se para os
revolucionários.
O medo estimulou uma reacção que varreu o Terror assim como a
Justiça. A mobilizada energia de patriotas sedentos de sangue foi envia-
da para fora, para impor pela força o Iluminismo aos estrangeiros, para
expandir a nação e transformá-la num império. O abastecimento das
forças armadas nacionais era bem mais lucrativo do que o abastecimen-

122
a contínua atracção do nacionalismo

to das forças armadas feudais alguma vez fora, e antigos revolucionários


tornaram-se membros ricos e poderosos da classe média, que era agora
a classe mais alta, a classe governante. O terror e as guerras deixaram um
legado fatídico à crença e à prática dos nacionalismos posteriores.
O legado da Revolução Americana foi completamente diferente. Os
americanos estavam menos preocupados com a justiça e mais preocu-
pados com a propriedade.
Os colonos invasores da costa nordeste do continente precisavam
tanto de Jorge de Hanôver como Lope de Aguirre precisou de Felipe de
Habsburgo. Ou melhor, os ricos e poderosos entre os colonos precisa-
vam dos dispositivos do rei Jorge para protegerem a sua riqueza, mas
não para a obterem. Se conseguissem organizar um aparelho repressivo
próprio, não precisariam do rei Jorge para nada.
Confiantes na sua capacidade de pôr de pé um dispositivo próprio,
os colonos esclavagistas, os agiotas de terras, os exportadores de produ-
tos e os banqueiros acharam que os impostos e os decretos do rei eram
intoleráveis. O decreto mais intolerável do rei foi ter proibido tempo-
rariamente incursões não autorizadas às terras dos habitantes autócto-
nes do continente; os conselheiros do rei tinham em vista as peles de
animais fornecidas por caçadores indígenas; os revolucionários agiotas
tinham em vista as terras dos caçadores.
Ao contrário de Aguirre, os federados colonos do Norte consegui-
ram estabelecer o seu próprio aparelho repressivo independente e fize-
ram-no instigando um mínimo de desejo de justiça; o seu objectivo era
derrubar o poder do rei, não o deles. Em vez de confiarem excessiva-
mente noutros colonos menos afortunados ou nos ocupantes de regiões
remotas, para não falar dos seus escravos, estes revolucionários confia-
ram em mercenários e na ajuda indispensável do monarca Bourbon, que
seria derrubado uns anos mais tarde por revolucionários mais virtuosos.
Ao contrário dos franceses, os colonizadores norte-americanos que-
braram os vínculos tradicionais de vassalagem e de obrigação feudal,
mas apenas para os substituíram gradualmente por vínculos de patrio-
tismo e nacionalidade. Não eram bem uma nação; a sua relutante mo-
bilização das zonas rurais coloniais não os levara a fundirem-se numa
nação, e aquela subjacente população, dividida em diversas línguas, cul-
turas e camadas sociais, resistiu a essa fusão. O novo aparelho repressivo

123
Fredy Perlman

não fora experimentado nem testado e não impunha uma total lealdade
à população subjacente, que ainda não era patriótica. Algo mais era ne-
cessário. Os esclavagistas que tinham derrubado o rei temiam que os
seus escravos pudessem também derrubá-los a eles, seus senhores; a in-
surreição no Haiti tornou esse receio real. E ainda que tivessem deixado
de temer serem empurrados para o mar pelos habitantes indígenas do
continente, os comerciantes e especuladores preocupavam-se com a ca-
pacidade de se estenderem para o interior do continente.
Os colonos invasores americanos recorreram a um instrumento que
não era, como a guilhotina, uma nova invenção, mas que era igualmente
letal. Este instrumento seria mais tarde chamado Racismo e seria incor-
porado na prática nacionalista. O racismo, como os ulteriores produtos
das práticas americanas, era um princípio pragmático; o mais importan-
te não era o seu conteúdo; o que importava era que funcionasse.
Os seres humanos mobilizados em função do seu mais baixo e super-
ficial denominador comum, reagiram. Pessoas que tinham abandonado
as suas aldeias e famílias, que esqueciam as suas línguas e perdiam as suas
culturas, que se encontravam completamente despojadas da sua sociabi-
lidade, foram manipuladas para considerarem a sua cor de pele como
substituto de tudo aquilo que haviam perdido. Tornaram-se orgulhosas
de algo que não era uma façanha pessoal nem sequer, como a língua,
uma aquisição pessoal. Foram fundidas numa nação de homens bran-
cos. (As mulheres e as crianças brancas existiam apenas como vítimas
escalpeladas, como provas da bestialidade da presa caçada.) A extensão
desse despojamento é revelada pelas insignificâncias que os homens
brancos partilhavam entre si: sangue branco, ideias brancas e pertença
a uma raça branca. Devedores, posseiros e servos, enquanto homens
brancos, tinham tudo em comum com banqueiros, especuladores e pro-
prietários de plantações, e nada em comum com os peles-vermelhas, os
peles-negras ou os peles-amarelas. Amalgamados entre si com base em
semelhante princípio, podiam também ser mobilizados por ele, transfor-
mando-se numa turba branca, linchadora e «caçadora de índios».
O racismo fora inicialmente um entre vários métodos de mobiliza-
ção de exércitos coloniais e, embora tenha sido explorado na América
mais inteiramente do que nunca, não suplantava os outros métodos,
completava-os. As vítimas dos pioneiros invasores eram ainda descritas

124
a contínua atracção do nacionalismo

como infiéis, como pagãs. Mas os pioneiros, a exemplo dos anteriores


holandeses, eram predominantemente cristãos protestantes e viam o
paganismo como algo que tinha de ser punido, e não remediado. As ví-
timas também continuavam a ser designadas como selvagens, canibais
e primitivas, mas esses termos também deixaram de ser diagnósticos
de condições que poderiam ser remediadas e tenderam a tornar-se si-
nónimos de não-branco, condição que não poderia ser remediada. O
racismo era uma ideologia que assentava perfeitamente na prática da
escravatura e do extermínio.
A atitude das turbas linchadoras e o conluio contra vítimas defini-
das como inferiores atraíam brigões cuja humanidade estava atrofiada
e que não tinham qualquer noção de jogo limpo. Mas essa atitude não
atraía toda a gente. Os homens de negócios americanos, meio vigaristas
e burlões, tinham sempre algo a oferecer a toda a gente. Para os nume-
rosos São Jorges com alguma noção de honra e uma grande sede de
heroísmo, o inimigo era retratado de forma um pouco diferente; para
esses, existiam nações tão ricas e poderosas como as suas nas florestas
transmontanas e nas margens dos Grandes Lagos.
Os celebrantes dos feitos heróicos dos espanhóis imperiais encon-
traram impérios no centro do México e no topo da cordilheira dos An-
des. Os celebrantes dos heróis nacionalistas americanos encontraram
nações; transformaram resistências desesperadas de aldeões anárqui-
cos em conspirações internacionais orquestradas por arcontes militares
como o general Pontiac e o general Tecumseh; povoaram as florestas
com líderes nacionais terríveis, oficiais eficientes e exércitos com inú-
meros militares patriotas; projectaram as suas próprias estruturas re-
pressivas naquilo que não conheciam; viram uma cópia exacta de si
mesmos com todas as cores invertidas – algo como o negativo de uma
fotografia. O inimigo tornava-se, assim, igual em estrutura, poder e ob-
jectivos. A guerra contra um inimigo desse tipo não era apenas justa;
era de extrema necessidade, uma questão de vida ou morte. Os outros
atributos do inimigo – o paganismo, a selvajaria, o canibalismo – tor-
navam ainda mais urgente a missão de expropriar, escravizar e extermi-
nar, e esses feitos ainda mais heróicos.
O repertório do programa nacionalista estava agora mais ou menos
completo. Esta afirmação pode confundir o leitor que não consegue

125
Fredy Perlman

ainda vislumbrar no terreno «verdadeiras nações». Os Estados Unidos


eram ainda um conjunto multilingue, multi-religioso e multicultural
de «etnias», e a nação francesa tinha transbordado as suas fronteiras e
convertera-se num Império Napoleónico. O leitor poderá estar a tentar
aplicar uma definição de nação como um território organizado compos-
to por pessoas que partilham uma língua, religião e costumes comuns,
ou, pelo menos, uma destas três coisas. Mas tal definição, clara, pronta
e estática, não é uma descrição do fenómeno, é a sua apologia, uma jus-
tificação. O fenómeno não era uma definição estática, era um processo
dinâmico. A língua, religião e costumes comuns, como o sangue branco
dos colonizadores americanos, eram simples pretextos, instrumentos
para mobilizar exércitos. A culminação do processo não foi a consa-
gração das semelhanças, foi um despojamento, a perda total de línguas,
religiões e costumes; os habitantes da nova nação falavam a língua do
capital, pregavam no altar do Estado e limitavam os seus costumes aos
que eram permitidos pela polícia nacional.

O nacionalismo é o oposto do imperialismo somente no âmbito das


definições. Na prática, o nacionalismo foi uma metodologia para dirigir
o império do capital.
O contínuo crescimento do capital, frequentemente referido como
progresso material, desenvolvimento económico ou industrialização,
era a principal actividade das classes médias, da chamada burguesia,
porque o que eles detinham era capital, era a sua propriedade; as classes
mais altas possuíam terras.
A descoberta de novos mundos de abundância enriqueceu imen-
samente essas classes médias, mas também as tornou vulneráveis. Os
reis e os nobres, que inicialmente acumularam a riqueza pilhada no
Novo Mundo, ressentiram-se da perda de quase todos os despojos para
os seus mercadores da classe média. Era inevitável. A riqueza não sur-
gia pronta a ser utilizada; os mercadores forneciam o rei com coisas
que ele podia utilizar em troca dos tesouros pilhados. Ainda assim, os
monarcas que se viam mais pobres à medida que os seus mercadores
se tornavam mais ricos, não hesitavam em utilizar os seus servos arma-
dos para pilharem os mercadores ricos. Consequentemente, as classes
médias sofreram danos constantes sob o Antigo Regime – danos à sua

126
a contínua atracção do nacionalismo

propriedade. O exército do rei e a polícia não eram protectores de con-


fiança da propriedade da classe média, e os poderosos mercadores, que
já exploravam o negócio do império, tomaram medidas para acabar
com essa instabilidade; e tomaram também conta da política. Pode-
riam ter contratado exércitos privados, e fizeram-no várias vezes. Mas
logo que surgiram no horizonte instrumentos para mobilizar exércitos
nacionais e forças de polícia nacional, os prejudicados homens de ne-
gócios fizeram uso deles. A principal virtude das forças armadas nacio-
nais é garantir que o servo patriota lute ao lado do seu senhor contra o
servo de um senhor inimigo.
A estabilidade assegurada por um aparelho repressivo nacional deu
aos proprietários algo como uma estufa onde o seu capital podia crescer,
aumentar, multiplicar-se. O termo «crescimento», e os seus corolários,
provêm do próprio vocabulário dos capitalistas. Estas pessoas pensam
numa unidade de capital como se se tratasse de um grão ou semente que
investem em solo fértil. Na Primavera vêem uma planta crescer de cada
semente. No Verão colhem de cada planta tantas sementes que, depois
de pagarem pelo solo, pela luz do sol e pela chuva, ficam ainda com mais
sementes do que tinham anteriormente. No ano seguinte alargam o seu
terreno e todo o campo é gradualmente melhorado. Na realidade, os
«grãos» iniciais são dinheiro; a luz do sol e a chuva são as energias dis-
pendidas pelos trabalhadores; as plantas são fábricas, oficinas e minas, a
colheita é mercadoria, pedaços de mundo transformados; e o excedente
ou grãos adicionais, os lucros, são emolumentos que o capitalista arre-
cada para si em vez de os dividir pelos trabalhadores.
O processo como um todo consiste na transformação de substân-
cias naturais em artigos ou mercadorias comercializáveis e na reclusão
de trabalhadores assalariados em fábricas de processamento.
O casamento do Capital com a Ciência foi responsável pelo grande
salto em frente para o que vivemos hoje em dia. Cientistas investiga-
dores descobriram os componentes em que o ambiente natural podia
ser decomposto; investidores apostaram nos vários métodos de de-
composição; cientistas de ciência aplicada ou gestores fizeram com que
os trabalhadores assalariados a seu cargo levassem o projecto avante.
Cientistas sociais procuraram formas de tornar os trabalhadores me-
nos humanos, mais eficientes, mais parecidos com máquinas. Graças

127
Fredy Perlman

à ciência, os capitalistas foram capazes de transformar grande parte do


ambiente natural num mundo processado, num artifício, e de reduzir a
maioria dos seres humanos a zeladores desse artifício.
O processo de produção capitalista foi analisado e criticado por
muitos filósofos e poetas, mais notavelmente por Karl Marx1, que, com
as suas críticas, estimulou, e continua a estimular, os movimentos so-
ciais militantes. Mas Marx tinha um ponto cego importante; foi sobre
esse ponto cego que a maioria dos seus discípulos e muitos militantes
que não eram seus discípulos construíram as suas plataformas. Marx
era um apoiante entusiasta da luta burguesa pela libertação dos víncu-
los feudais – naquele tempo, quem não o era? Ele que observou que as
ideias predominantes de uma época eram as ideias da classe governan-
te, partilhava muitas das ideias da recém-fortalecida classe média. Era
um entusiasta do Iluminismo, do racionalismo, do progresso material.
Foi Marx que perspicazmente mostrou que o trabalhador, de cada vez
que reproduzia a sua força de trabalho, em cada instante que dedicava
à tarefa que lhe era atribuída, aumentava o aparelho material e social
que o desumanizava. O mesmo Marx, todavia, era um entusiasta da
aplicação da ciência à produção.
Marx fez uma análise aprofundada do processo de produção como
exploração do trabalho, mas fez apenas comentários superficiais e re-
lutantes sobre a condição prévia para a produção capitalista, sobre o
capital inicial que tornou o processo possível2. Sem o capital inicial,
não poderiam ter existido investimentos, produção, nenhum grande
salto em frente. Essa condição prévia foi analisada pelo antigo marxis-
ta soviético de nacionalidade russa Preobrajenski, que utilizou várias
ideias da marxista polaca Rosa Luxemburg para formular a sua teoria
sobre a acumulação primitiva3. Ao empregar essa expressão, acumu-

1.  O subtítulo do primeiro volume d’O Capital é A Critique of Political Economy: The
Process of Capitalist Production (editado por Charles H. Kerr & Co., 1906; reeditado
por Random House, Nova Iorque). Edição portuguesa: O Capital – Crítica da Economia
Política, Edições Avante, Lisboa, 1991 e sqq.

2.  Ibidem, pp. 784-850, VIII capítulo, «The So-Called Primitive Accumulation».

3. I. Preobrajenski, The New Economics (Moscovo, 1926; a tradução inglesa foi

128
a contínua atracção do nacionalismo

lação primitiva, Preobrajenski referia-se à base do edifício capitalista,


à sua fundação, à sua condição prévia. Essa condição prévia não pode
surgir do próprio processo de produção capitalista se esse processo não
estiver já em curso. É necessário, e assim acontece, que provenha de
fora do processo de produção. Provém das colónias pilhadas. Provém
da expropriação e do extermínio das populações das colónias. Ante-
riormente, quando não existiam colónias ultramarinas, o primeiro ca-
pital, a condição prévia para a produção capitalista, fora extorquido nas
colónias internas, aos camponeses saqueados que viram as suas terras
delimitadas e as suas colheitas requisitadas, aos judeus e muçulmanos
expulsos cujos bens foram expropriados.
A acumulação primitiva ou preliminar de capital não é algo que
tenha acontecido uma vez, num passado distante, e nunca depois. É
algo que continua a acompanhar o processo de produção capitalista e é
sua parte integrante. O processo descrito por Marx é responsável pelos
lucros regulares e esperados; o processo descrito por Preobrajenski é
responsável pelos impulsos, pelas fortunas e pelos grandes saltos em
frente. Os lucros regulares são destruídos periodicamente por crises
endémicas ao sistema; e a única cura conhecida para as crises são novas
injecções de capital preliminar. Sem uma contínua acumulação primi-
tiva de capital, o processo de produção pararia; cada crise tenderia a
tornar-se permanente.
O genocídio, a exterminação racionalmente calculada de popula-
ções humanas designadas como presas legítimas, não foi uma aber-
ração surgida numa pretensamente pacífica marcha do progresso. O
genocídio tem sido uma condição prévia desse progresso. É por isso
que as forças armadas nacionais foram indispensáveis aos detentores
do capital. Essas forças não só protegeram os proprietários do capital
da ira insurrecional dos seus próprios trabalhadores explorados, como
também capturaram o santo graal, a lanterna mágica, o capital prelimi-
nar, ao derrubarem os portões de estrangeiros resistentes ou não resis-
tentes, ao pilharem, deportarem e assassinarem.

publicada pela Clarendon Press, Oxford, 1965), livro que anunciou a fatídica «lei de
acumulação primitiva socialista».

129
Fredy Perlman

As pegadas dos exércitos nacionais são os traços da marcha do pro-


gresso. Esses exércitos patrióticos foram, e ainda são, a sétima maravilha
do mundo. Neles, o lobo encontra-se ao lado do cordeiro e a aranha ao
lado da mosca. Neles, trabalhadores explorados foram comparsas dos
exploradores, camponeses endividados foram comparsas dos seus cre-
dores, burlados foram companheiros de burlões, numa camaradagem
estimulada, não pelo amor mas pelo ódio – ódio a potenciais fontes de
capital preliminar designadas como infiéis, selvagens, raças inferiores.
Comunidades humanas, tão variegadas nos seus modos e crenças
como os pássaros na sua plumagem, foram invadidas, espoliadas e,
por fim, exterminadas de formas inimagináveis. As roupas e os arte-
factos das comunidades desaparecidas foram reunidos como troféus e
exibidos em museus como traços adicionais da marcha do progresso;
as crenças e os modos extintos tornaram-se curiosidades de mais uma
das muitas ciências dos invasores. Os campos, florestas e animais ex-
propriados foram acumulados como fontes de riqueza, como capital
preliminar, como condição prévia para o processo de produção que iria
converter os campos em explorações agrícolas, as árvores em madeira,
os animais em chapéus, os minerais em munições, os sobreviventes hu-
manos em mão-de-obra barata. O genocídio foi, e ainda é, a condição
prévia, a pedra angular e o trabalho de base dos complexos militares
industriais, dos ambientes processados, do mundo dos escritórios e dos
parques de estacionamento.

O nacionalismo estava tão perfeitamente adaptado à sua dupla ta-


refa, a domesticação dos trabalhadores e a espoliação dos estrangeiros,
que atraía toda a gente – toda a gente, ou seja, quem detinha ou aspira-
va a deter uma porção de capital.
Ao longo do século XIX, especialmente durante a sua segunda me-
tade, qualquer detentor de capital investível descobriu que tinha raízes
entre os seus conterrâneos mobilizáveis que falavam a sua língua ma-
terna e adoravam os seus deuses pátrios. O fervor desse tipo de nacio-
nalista era cinicamente transparente, visto ele ser o compatriota que já
não tinha raízes entre os parentes do seu pai e da sua mãe: encontrou a
salvação nas suas poupanças, rezou aos seus investimentos e falou a lín-
gua da contabilidade de custos. Mas tinha aprendido com americanos

130
a contínua atracção do nacionalismo

e franceses que, embora não pudesse mobilizar os seus conterrâneos


como empregados, clientes e consumidores leais, podia mobilizá-los
como italianos, gregos e alemães leais, como católicos, ortodoxos e pro-
testantes leais. Línguas, religiões e costumes tornaram-se materiais de
consolidação para a construção de Estados-nação.
Os materiais de consolidação eram meios, não eram fins. O ob-
jectivo das entidades nacionais não consistia em desenvolver línguas,
religiões ou costumes, mas sim em desenvolver economias nacionais,
transformar os conterrâneos em trabalhadores e soldados, transformar
o país natal em minas e fábricas, transformar as propriedades dinásti-
cas em empresas capitalistas. Sem o capital, não podia haver munições
ou suprimentos, exército nacional ou nação.
Poupanças e investimentos, estudos de mercado e contabilidade de
custos, as obsessões das antigas classes médias racionalistas, tornaram-
-se as obsessões reinantes. Estas obsessões racionalistas tornaram-se
não apenas soberanas, mas também exclusivas. Indivíduos que tives-
sem outras obsessões, que fossem irracionais, eram postos em mani-
cómios e asilos.
As nações eram em geral monoteístas, mas já não necessitavam de o
ser; os antigos deus ou deuses tinham perdido a sua importância, excepto
como materiais de consolidação. Como as nações eram mono-obsessi-
vas, se o monoteísmo servia a obsessão reinante, também era mobilizado.
A Primeira Guerra Mundial marcou o fim de uma fase do processo
de nacionalização, a fase que começara com as revoluções americana
e francesa, a fase que fora anunciada muito antes com a declaração de
Aguirre e a revolta dos nobres holandeses. Na realidade, a causa dessa
guerra foram as reivindicações em conflito das antigas nações e das re-
cém-constituídas. A Alemanha, a Itália e o Japão, assim como a Grécia,
a Sérvia e a colonial América Latina, tinham-se já apropriado da maior
parte dos atributos dos seus antecessores nacionalistas, tinham-se tor-
nado impérios, monarquias e repúblicas nacionais, e os mais poderosos
dos recém-chegados ambicionavam apropriar-se do principal atributo
que faltava, o império colonial. Durante essa guerra, todos os com-
ponentes mobilizáveis dos dois impérios dinásticos remanescentes, o
Otomano e o de Habsburgo, constituíram-se em nações. Quando bur-
guesias com línguas e religiões diferentes, como as turcas e as arménias,

131
Fredy Perlman

reivindicaram o mesmo território, as mais fracas foram tratadas como


os denominados índios americanos; foram exterminadas. A Soberania
Nacional e o Genocídio eram – e ainda são – corolários.
A língua e a religião comum parecem ser corolários da nacionali-
dade, mas apenas devido a uma ilusão de óptica. Como materiais de
consolidação, as línguas e as religiões foram utilizadas quando serviam
esse propósito e descartadas quando não serviam. Nem a multilingue
Suíça nem a multi-religiosa Jugoslávia foram banidas da família das
nações. A forma dos narizes e a cor do cabelo poderiam também ter
sido utilizadas para mobilizar patriotas – e foram-no mais tarde. Os
patrimónios, raízes e semelhanças partilhados tinham de satisfazer um
único critério, o critério da razão pragmática de estilo americano: fun-
cionavam? Se funcionassem, seriam utilizados. Os traços comuns eram
importantes, não por causa do seu teor cultural, histórico ou filosófico,
mas por serem úteis para organizar uma polícia que protegesse a pro-
priedade nacional e para mobilizar um exército saqueador das colónias.
Assim que uma nação era constituída, os seres humanos que vi-
viam no território nacional, mas que não possuíam os traços nacionais,
podiam ser transformados em colónias internas, ou seja, em fontes de
capital preliminar. Sem capital preliminar, nenhuma nação se poderia
transformar numa grande nação e as nações que aspirassem à grande-
za, mas que carecessem de colónias ultramarinas adequadas, poderiam
recorrer à pilhagem, extermínio e expropriação dos seus compatriotas
que não possuíssem as características nacionais.

A constituição de Estados-nação foi acolhida com eufórico entu-


siasmo pelos poetas assim como pelos camponeses, que pensavam que
as suas musas ou os seus deuses tinham, por fim, descido à terra. Os
principais desmancha-prazeres entre as bandeiras ondulantes e os con-
fetes esvoaçantes eram os antigos governantes, os colonizados e os dis-
cípulos de Karl Marx.
Os depostos e os colonizados não estavam entusiasmados por
razões óbvias.
Os discípulos de Marx não estavam entusiasmados porque tinham
aprendido com o seu mestre que a libertação nacional significava explo-
ração nacional, que o governo nacional era o comité executivo da classe

132
a contínua atracção do nacionalismo

capitalista nacional, que a nação não tinha mais a oferecer aos trabalha-
dores do que grilhões. Estes estrategas dos trabalhadores, que não eram
eles próprios trabalhadores, mas tão burgueses como os governantes ca-
pitalistas, proclamaram que os trabalhadores não tinham pátria e orga-
nizaram-se numa Internacional. Esta Internacional dividiu-se em três e
cada Internacional aproximou-se cada vez mais do ponto cego de Marx.
A I Internacional foi levada a cabo por alguém que tinha sido tra-
dutor de Marx para o russo e que era, então, seu antagonista, Bakunine,
inveterado rebelde que fora um fervoroso nacionalista até conhecer,
com Marx, o que era a exploração. Bakunine e os seus companheiros,
rebeldes a todas as autoridades, também se rebelaram contra a auto-
ridade de Marx; suspeitaram que Marx estava a tentar transformar a
Internacional num Estado tão repressivo como os Estados feudais e na-
cionais em conjunto. Bakunine e os seus seguidores eram inequívocos
na sua rejeição de todos os Estados, mas eram ambíguos a respeito da
empresa capitalista. Ainda mais do que Marx, glorificavam a ciência,
celebravam o progresso material e saudavam a industrialização. Sendo
rebeldes, consideravam qualquer luta uma boa luta, mas a melhor de
todas era a luta contra os antigos inimigos da burguesia, a luta contra os
latifundiários feudais e a Igreja católica. Daí que a Internacional baku-
ninista tenha florescido em países como a Espanha, onde a burguesia
não tinha completado a sua luta pela independência mas, ao invés, se
aliara aos barões feudais e à Igreja para se proteger dos operários e dos
camponeses insurgentes. Os bakuninistas lutaram para completar a
revolução burguesa sem a burguesia e contra esta. Denominavam-se
anarquistas e desdenhavam de todos os Estados, mas não se deram ao
trabalho de explicar como iriam obter a indústria preliminar ou sub-
sequente, o progresso e a ciência, ou seja, o capital, sem exército nem
polícia. Nunca lhes foi dada uma verdadeira oportunidade de resolver
a sua contradição na prática, e os bakuninistas de agora ainda não a
resolveram, nem se deram ainda conta de que existe uma contradição
entre anarquia e indústria.
A II Internacional, menos rebelde do que a primeira, rapidamente
chegou a um acordo com o capital e também com o Estado. Solidamen-
te enraizados no ponto cego de Marx, os preconizadores desta orga-
nização não ficaram enredados em qualquer contradição bakuninista.

133
Fredy Perlman

Era para eles óbvio que a exploração e a pilhagem eram condições ne-
cessárias para o progresso material e reconciliaram-se realisticamente
com aquilo que era inevitável. Reivindicavam apenas uma maior par-
te dos lucros para os trabalhadores e cargos na administração política
para eles próprios, como representantes dos trabalhadores. Como os
bons sindicalistas que os precederam e como os que se lhes seguiram,
os adeptos socialistas sentiam-se embaraçados com «a questão colo-
nial», mas o seu embaraço, como o de Felipe de Habsburgo, dava-lhes
apenas má consciência. A seu tempo, os socialistas imperiais alemães,
os socialistas monárquicos holandeses e os socialistas republicanos
franceses deixaram até de ser internacionalistas.
A III Internacional não só chegou a acordo com o capital e o Estado
como os tornou seu objectivo. Esta Internacional não era formada por
intelectuais rebeldes ou dissidentes, foi criada por um Estado, o Estado
russo, depois de o Partido Bolchevique se ter instalado nas funções
desse Estado. A principal actividade desta Internacional era dar a co-
nhecer os feitos do renovado Estado russo, do seu partido governante
e do seu fundador, o homem que adoptara o nome de Lénine. Os feitos
desse partido e do seu fundador foram de facto grandiosos, mas quem
os dava a conhecer fez o seu melhor para ocultar o que de mais gran-
dioso havia neles.

A Primeira Guerra Mundial deixou dois vastos impérios num di-


lema. O Império Celestial da China, o Estado mais antigo do mundo,
e o Império dos Czares, uma operação muito mais recente, oscilaram
tremulamente entre a perspectiva de se tornarem Estados-nação e a
sua decomposição em pequenas unidades, como tinham feito os seus
homólogos Otomano e de Habsburgo.
Lénine resolveu esse dilema na Rússia. Mas é possível tal coisa?
Marx observara que um único indivíduo não poderia mudar as cir-
cunstâncias; poderia apenas tirar proveito delas. Tinha provavelmente
razão. A notável façanha de Lénine não foi ter mudado as circunstân-
cias, mas ter tirado proveito delas de forma extraordinária. A façanha
foi monumental no seu oportunismo.

134
a contínua atracção do nacionalismo

Lénine era um burguês russo que imprecou contra a fraqueza e a


incompetência da burguesia russa4. Entusiasta do desenvolvimento ca-
pitalista, fervoroso admirador do progresso de estilo americano, não fez
causa comum com aqueles contra os quais imprecava mas sim com os
seus inimigos, os discípulos anticapitalistas de Marx. Tirou proveito do
ponto cego de Marx para transformar a crítica de Marx do processo de
produção capitalista num manual para desenvolver o capital, num guia
de «como fazer». Os estudos de Marx sobre a exploração e a pauperiza-
ção tornaram-se alimento para os esfomeados, uma cornucópia, um vir-
tual corno de abundância. Os homens de negócio americanos já tinham
publicitado a urina como água de nascente, mas nenhum vigarista ame-
ricano tinha alguma vez conseguido uma inversão de tal magnitude.
As circunstâncias não foram alteradas. Cada passo da inversão foi
levado a cabo com as circunstâncias disponíveis, com métodos expe-
rimentados e testados. Os compatriotas russos não podiam ser mobi-
lizados com base na sua russianidade, ortodoxia ou cor de pele, mas
podiam ser, e foram, mobilizados com base na sua exploração, opressão
e séculos de sofrimento sob o despotismo dos czares. A opressão e a
exploração tornaram-se materiais de consolidação. O longo sofrimento
sob os czares foi utilizado da mesma forma e com o mesmo objectivo
que o escalpe de mulheres e crianças brancas fora utilizado pelos ame-
ricanos; foi utilizado para organizar as pessoas em unidades de comba-
te, em embriões do exército e da polícia nacional.
A apresentação do ditador e do comité central do Partido como
uma ditadura do proletariado libertado parecia ser algo novo, mas mes-
mo isso só era novo nas palavras utilizadas. Era algo tão antigo como
os Faraós e os Lugales dos antigos Egipto e Mesopotâmia, que haviam

4. Ver V. I. Lenin, The Development of Capitalism in Russia (Moscovo: Progress


Publishers, 1964; 1ª ed. 1899). Cito da página 599: «Se [...] comparamos a presente
rapidez do desenvolvimento com aquilo que poderia ser alcançado com o nível geral
da técnica e da cultura existente hoje em dia, o presente ritmo de desenvolvimento
do capitalismo na Rússia deve ser verdadeiramente considerado como lento. E não
pode deixar de o ser, já que em nenhum país capitalista existiu alguma vez uma
tão abundante sobrevivência de antigas instituições que são incompatíveis com o
capitalismo, que atrasam o seu desenvolvimento e que pioram incomensuravelmente
a condição dos produtores...»

135
Fredy Perlman

sido escolhidos pelo deus para dirigir o povo, que tinham encarnado
o povo nos seus próprios diálogos com o deus. Era um artifício expe-
rimentado e testado pelos governantes. Mesmo que os antigos prece-
dentes tivessem sido temporariamente esquecidos, um precedente mais
recente fora fornecido pelo Comité Francês de Salvação Pública, que se
apresentara como a encarnação da vontade geral da nação.
O objectivo, o comunismo, o derrube e a supressão do capitalismo,
também parecia ser algo novo, parecia ser uma mudança de circuns-
tâncias. Mas só a palavra era nova. O objectivo do ditador do prole-
tariado continuava a ser o progresso de estilo americano, o desenvol-
vimento capitalista, a electrificação, o transporte rápido de massas, a
ciência, a transformação do ambiente natural. O objectivo era o capita-
lismo que a fraca e incompetente burguesia russa não tinha conseguido
desenvolver. Com O Capital de Marx como sua luz e guia, o ditador e o
seu Partido iriam desenvolver o capitalismo na Rússia; serviriam como
substitutos da burguesia e usariam o poder do Estado não apenas para
policiar o processo, mas também para o lançar e gerir.
Lénine não viveu o tempo suficiente para poder demonstrar o seu
virtuosismo como director-geral do capital russo, mas o seu sucessor,
Stáline, demonstrou amplamente os poderes da máquina que tinha
sido criada. O primeiro passo foi a acumulação primitiva de capital.
Se Marx não tinha sido muito claro em relação a isso, fora-o Ievguéni
Preobrajenski. Preobrajenski foi preso, mas a sua descrição dos méto-
dos experimentados e testados para a obtenção de capital preliminar
foi aplicada em toda a Rússia. O capital preliminar dos ingleses, ameri-
canos, belgas e de outros capitalistas era proveniente das pilhagens nas
colónias ultramarinas. A Rússia não tinha colónias ultramarinas. Mas
essa carência não era obstáculo. Toda a zona rural russa foi transforma-
da numa colónia.
As primeiras fontes de capital preliminar foram os kulaks, campo-
neses que tinham algo que valia a pena ser pilhado. Essa acção teve
tanto sucesso que foi também aplicada aos restantes camponeses, com
a expectativa racional de que pequenas quantidades pilhadas a muita
gente poderiam render uma soma substancial.
Os camponeses não foram os únicos colonizados. A antiga classe
governante tinha já sido completamente expropriada de todas as suas

136
a contínua atracção do nacionalismo

riquezas e propriedades, mas ainda foram encontradas outras fontes de


capital preliminar. Com a totalidade do poder de Estado concentrado
nas suas mãos, os ditadores depressa descobriram que podiam fabricar
fontes de acumulação primitiva. Empresários de sucesso, operários e
camponeses insatisfeitos, militantes de organizações rivais e até mesmo
desiludidos membros do Partido podiam ser designados como contra-
-revolucionários, capturados, expropriados e enviados para campos de
trabalho. As deportações, execuções em massa e expropriações dos an-
teriores colonizadores foram revividas na Rússia.
Os anteriores colonizadores, por serem pioneiros, tinham passado
por experiências e erros. Os ditadores russos não tiveram que passar
por isso. Nessa altura, já tinham sido experimentados e testados todos
os métodos para a obtenção de capital preliminar, que podiam agora
ser aplicados cientificamente. O capital russo desenvolveu-se num am-
biente completamente controlado, numa estufa; cada estratégia, cada
variável, era controlada pela polícia nacional. As funções que tinham
sido deixadas à sorte ou a outros organismos em ambientes menos con-
trolados acabaram por ser controladas pela polícia na estufa russa. O
facto de os colonizados não se encontrarem fora mas dentro do ter-
ritório e de não estarem, por isso, sujeitos a conquista mas a captura,
aumentou ainda mais o papel e a dimensão da polícia. A seu tempo, a
omnipotente e omnipresente polícia tornou-se a emanação e encarna-
ção visível do proletariado, e o comunismo tornou-se um sinónimo de
organização policial e de controlo totalitário.

As expectativas de Lénine não foram, contudo, completamente con-


cretizadas pela estufa russa. A polícia enquanto capitalista fez mara-
vilhas para obter capital preliminar de contra-revolucionários expro-
priados, mas não se saiu tão bem na gestão do processo de produção
capitalista. Pode ser ainda demasiado cedo para o afirmarmos, mas até
à data esta polícia burocrata tem sido neste papel tão incompetente
como a burguesia contra a qual Lénine imprecou, ou ainda mais; a sua
capacidade de descobrir ainda mais fontes de capital preliminar parece
ser tudo o que a manteve à tona de água.
A atracção por este tipo de aparelho também não esteve à altura das
expectativas de Lénine. O aparelho policial leninista não atraiu homens

137
Fredy Perlman

de negócios ou políticos oficiais; não se mostrou recomendável como


método superior de gestão do processo de produção. Atraiu uma classe
social algo diferente, que tentarei descrever resumidamente, e mostrou-
-se recomendável a esta classe, em primeiro lugar como método para
tomar o poder nacional e, acessoriamente, como método de acumula-
ção primitiva de capital.
Os herdeiros de Lénine e Stáline não foram propriamente guardas
pretorianos, detentores de poder económico e político em nome e em
proveito de um monarca supérfluo; foram pretorianos substitutos, es-
tudantes do poder económico e político sem esperanças de nem sequer
poderem alcançar níveis intermédios de poder. O modelo leninista ofe-
receu a essa gente a perspectiva de saltarem por cima dos níveis inter-
médios directamente para o palácio central.
Os herdeiros de Lénine eram funcionários e pequenos oficiais, pes-
soas como Mussolini, Mao Tsé-Tung e Hitler, pessoas que, como o pró-
prio Lénine, imprecaram contra as suas burguesias fracas e incompeten-
tes por não terem sido capazes de instaurar a grandeza das suas nações.
(Não incluo os sionistas entre os herdeiros de Lénine porque per-
tencem a uma geração anterior. Foram contemporâneos de Lénine
que descobriram, talvez independentemente, o poder da perseguição
e do sofrimento como materiais de consolidação para a mobilização
de um exército e de uma polícia nacional. Os sionistas deram outras
contribuições próprias. O seu tratamento como nação de uma popula-
ção religiosa dispersa, a sua imposição de um Estado-nação capitalista
como principal objectivo e a sua redução de uma herança religiosa a
uma herança racial, contribuíram com elementos significativos para a
metodologia nacionalista, e estes elementos viriam a ter consequências
fatídicas quando foram aplicados a uma população judaica, nem toda
ela sionista, por uma população consolidada como «raça alemã».)
Mussolini, Mao Tsé-Tung e Hitler passaram por cima da cortina
de slôganes e viram os feitos de Lénine e Stáline como eles eram de
facto: métodos eficazes para obter e manter o poder de Estado. Os três
reduziram a metodologia à sua essência. O primeiro passo seria reunir
estudantes do poder com uma opinião idêntica e formar o núcleo da
organização policial, uma vestimenta chamada, no seguimento de Lé-
nine, o Partido. O passo seguinte seria recrutar uma base popular, tro-

138
a contínua atracção do nacionalismo

pas disponíveis e fornecedores de tropas. O terceiro passo seria tomar


posse do aparelho de Estado, instalar um teórico na função de Duce,
Presidente ou Führer, distribuir as funções policiais e de gestão pela
elite ou pelos funcionários e pôr a base popular a trabalhar. O quarto
passo seria assegurar o capital preliminar necessário para restaurar ou
lançar um complexo militar-industrial capaz de sustentar o líder nacio-
nal e os seus funcionários, a polícia, o exército e os gestores industriais;
sem este capital, não poderia haver armas, poder ou nação.
Os herdeiros de Lénine e Stáline aprimoraram a metodologia nas
suas acções de recrutamento minimizando a exploração capitalista e
concentrando-se na opressão nacional. Falar de exploração já não cum-
pria o objectivo e na verdade tinha-se tornado constrangedor, já que
era óbvio para todos, especialmente para os trabalhadores assalariados,
que os triunfantes revolucionários não tinham posto fim ao trabalho
assalariado mas aumentado o campo de acção.
Tão pragmáticos como homens de negócios americanos, os novos
revolucionários não falaram de libertação do trabalho assalariado, mas
de libertação nacional5. Este tipo de libertação não era um sonho de
utópicos românticos, era precisamente o que era possível no mundo
existente; para isso se realizar, era apenas necessário tirar proveito das
circunstâncias já existentes. A libertação nacional consistia em libertar
das cadeias da impotência o presidente nacional e a polícia nacional;
a tomada de posse do presidente e o estabelecimento da polícia não
eram quimeras, eram componentes de uma estratégia experimentada e
testada, de uma ciência.
Os partidos Fascista e Nacional-Socialista foram os primeiros a pro-
var que a estratégia funcionava, que a façanha do Partido Bolchevique
podia de facto ser repetida. Os presidentes nacionais e o seu pessoal
instalaram-se no poder e começaram a obter o capital preliminar ne-

5.  Ou de libertação do Estado: «O nosso mito é a nação, o nosso mito é a grandeza da


nação»; «É o Estado que cria a nação, conferindo vontade e, nesse sentido, uma verdadeira
vida a um povo que toma consciência da sua unidade moral»; «A máxima liberdade
coincide sempre com a força máxima do Estado»; «Tudo pelo Estado; nada contra o
Estado; nada fora do Estado». De Che cosa è il fascismo e La dottrina del fascismo, citado
por G. H. Sabine, A History of Political Theory (Nova Iorque, 1955), pp. 872-878.

139
Fredy Perlman

cessário para a grandeza nacional. Os fascistas introduziram-se numa


das últimas regiões invioladas de África e usurparam-na como os pri-
meiros industrializadores tinham usurpado os seus impérios coloniais.
Os nacional-socialistas fizeram dos judeus o seu alvo, uma população
interna que fazia parte de uma «Alemanha unificada» desde há tanto
tempo quanto os outros alemães, transformando-os em fonte primária
de acumulação primitiva, porque muitos dos judeus, como muitos dos
kulaks de Stáline, tinham bens que valia a pena pilhar.
Os sionistas já tinham precedido os nacional-socialistas ao reduzi-
rem uma religião a uma raça, e os nacional-socialistas poderiam olhar
para o passado dos pioneiros americanos para procurar formas de ins-
trumentalizar o racismo. A elite de Hitler só precisava de traduzir o
acervo da pesquisa racista americana para equipar os seus institutos
científicos com amplas bibliotecas. Os nacional-socialistas lidaram
com os judeus quase da mesma forma que os americanos tinham ante-
riormente lidado com a população indígena da América do Norte, sal-
vo que os nacional-socialistas utilizaram uma tecnologia mais recente
e muito mais poderosa para deportar, expropriar e exterminar seres
humanos. Nisto, porém, os mais recentes exterminadores não eram
inovadores: limitaram-se a aproveitar as circunstâncias ao seu alcance.
Aos fascistas e nacional-socialistas juntaram-se os construtores do
Império Japonês que temiam que a decomposição do Império Celestial
se tornasse uma fonte de capital preliminar para a Rússia ou para os in-
dustrializadores revolucionários chineses. Formando um Eixo, os três
blocos começaram a transformar os continentes em fontes de acumula-
ção primitiva de capital. Não foram incomodados por outras nações até
terem começado a invadir colónias e territórios de poderes capitalistas
estabelecidos. A redução a presas colonizadas de capitalistas já esta-
belecidos poderia ser praticada internamente, onde era sempre legal,
porque eram os governantes das nações que estabeleciam as suas leis –
e já tinha sido praticada internamente por leninistas e estalinistas. Mas
tal prática significaria uma mudança nas circunstâncias e não pôde ser
levada a cabo no estrangeiro sem provocar uma guerra mundial. Os
poderes do Eixo foram longe demais e perderam.
Depois da guerra, muita gente razoável diria que os objectivos do
Eixo eram irracionais e que Hitler era um lunático. Contudo, essa

140
a contínua atracção do nacionalismo

mesma gente razoável considerava homens como George Washington


e Thomas Jefferson sensatos e racionais, apesar de esses homens terem
concebido e iniciado a conquista de um vasto continente e a deporta-
ção e extermínio da sua população, numa altura em que um projecto
dessa envergadura era muito menos viável do que o projecto do Eixo6.
É verdade que as tecnologias, assim como as ciências física, química,
biológica e sociais, utilizadas por Washington e Jefferson, eram bem
diferentes das utilizadas pelos nacional-socialistas. Mas se saber é po-
der, se era racional para os anteriores pioneiros mutilar e matar com
pólvora no tempo das carruagens de tracção a cavalo, por que seria
irracional para os nacional-socialistas mutilar e matar com explosivos
de alta potência, gás e agentes químicos no tempo dos mísseis, subma-
rinos e autoestradas?
Os nazis, no entanto, estavam ainda mais orientados para a ciên-
cia do que os americanos. No seu tempo, eram sinónimo de eficiência
científica para grande parte do mundo. Tinham ficheiros a respeito de
tudo, classificavam e reclassificavam as suas descobertas e publicavam-
-nas em revistas científicas. Entre eles, o próprio racismo não era pro-
priedade de agitadores de fronteira, mas de institutos bem dotados.
Muita gente razoável parece equiparar a loucura ao fracasso. Não
seria a primeira vez. Muitos chamaram lunático a Napoleão quando
ficou preso ou no exílio, mas quando reemergiu como imperador, essas
mesmas pessoas falaram dele com respeito, e até com reverência. A pri-
são e o exílio não são apenas encarados como remédios para a loucura,
são-no também como seus sintomas. O fracasso é insensatez.

6. «[...] a extensão gradual das nossas colónias irá de certeza levar o selvagem, tal
como o lobo, a retirarem-se; são ambos animais de rapina, embora difiram na forma.»
(George Washington em 1783). «[...] se alguma vez formos constrangidos a desenterrar
o machado de guerra contra qualquer tribo, não o enterraremos até que essa tribo seja
exterminada ou expulsa […]» (Thomas Jefferson em 1807). «[...] os massacres cruéis
que cometeram sobre as mulheres e as crianças quando as nossas fronteiras foram
atacadas de surpresa, obriga-nos a persegui-los até os exterminarmos, ou a expulsá-los
para lugares fora do nosso alcance.» (Thomas Jefferson em 1813). Citado por Richard
Drinnon em Facing West: The Metaphysics of Indian-Hating and Empire Building
(Nova Iorque: New American Library, 1980), pp. 65, 96 e 98.

141
Fredy Perlman

Mao Tsé-Tung, o terceiro pioneiro nacional-socialista (ou nacional-


-comunista; a segunda palavra deixa de ter importância, por não passar
de uma relíquia histórica; a expressão «fascista de esquerda» também
serviria, mas tem ainda menos significado do que as expressões nacio-
nalistas), conseguiu fazer com o Império Celestial o mesmo que Lénine
tinha feito com o Império dos Czares. O aparelho burocrático mais ve-
lho do mundo não foi dividido em pequenas unidades nem em coló-
nias de outros industrializadores; reemergiu, bastante mudado, como
uma República Popular, como um farol para as «nações oprimidas».
O Presidente e os seus funcionários seguiram os passos de uma
longa linhagem de antecessores e transformaram o Império Celestial
numa vasta fonte de capital preliminar, completada com purgas, perse-
guições e, consequentemente, com grandes saltos em frente.
A fase seguinte, o lançamento do processo de produção capitalista,
foi levada a cabo segundo o modelo russo, nomeadamente através da
polícia nacional. Isso não funcionou melhor na China do que na Rússia.
Manifestamente, a função empresarial deve ser confiada a vigaristas ou
trapaceiros que sejam capazes de atrair outras pessoas e a polícia não
costuma inspirar a confiança necessária. Mas isso foi menos impor-
tante para os maoístas do que tinha sido para os leninistas. O proces-
so de produção capitalista continua a ser importante, pelo menos tão
importante quanto as campanhas regulares pela acumulação primitiva,
já que sem capital não existe poder, não existe nação. Mas os maoístas
reivindicaram cada vez menos o seu modelo como método superior de
industrialização e nisso foram mais modestos que os russos, tendo fi-
cado menos decepcionados com os resultados da sua polícia industrial.
O modelo maoísta apresenta-se aos agentes e estudantes de segu-
rança por todo o mundo como uma metodologia de poder experimen-
tada e testada, como uma estratégia científica de libertação nacional.
Em geral conhecida como o Pensamento de Mao Tsé-Tung7, esta ciên-
cia propõe aos aspirantes a presidentes e aos quadros a expectativa de
um poder sem precedentes sobre os seres vivos, as actividades humanas

7. Facilmente acessível como Citações do Presidente Mao (Pequim: Departamento


Político do Exército de Libertação do Povo, 1966).

142
a contínua atracção do nacionalismo

e mesmo sobre as ideias. O papa e os padres da Igreja Católica, com to-


das as suas inquisições e confissões, nunca detiveram tanto poder, não
porque o tivessem rejeitado, mas porque não tinham os instrumentos
disponibilizados pela ciência e pela tecnologia modernas.
A libertação da nação é a última fase da eliminação dos parasitas.
O capitalismo já antes tinha livrado a natureza de parasitas e reduzido
a maior parte da restante natureza a matérias-primas para as indús-
trias de transformação. O nacional-socialismo ou social-nacionalismo
moderno mantém também a perspectiva de eliminar os parasitas da
sociedade humana. Geralmente, os parasitas humanos são fontes de ca-
pital preliminar, mas o capital não é sempre «material», pode também
ser cultural ou «espiritual». Os modos, os mitos, a poesia e a música
dos povos são liquidados como algo inevitável; alguma da música e dos
costumes da antiga «cultura popular» ressurgem subsequentemente,
transformados e embalados, como elementos do espectáculo nacio-
nal, como decorações para as campanhas de acumulação nacionais; os
modos e os mitos tornam-se matérias-primas para transformação por
uma ou várias das «ciências humanas». É liquidado até mesmo o inútil
ressentimento dos trabalhadores para com o seu trabalho assalariado
alienado. Quando a nação é libertada, o trabalho assalariado deixa de
ser um fardo oneroso e torna-se uma obrigação nacional que deve ser
levada a cabo com alegria. Os reclusos de uma nação totalmente li-
bertada lêem o Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de Orwell como um
estudo antropológico, como descrição de uma época anterior.
Já não é possível satirizar este estado de coisas. Cada sátira pode tor-
nar-se uma bíblia para mais uma frente de libertação nacional8. Cada

8.  A Black & Red tentou satirizar esta situação há mais de dez anos com a publicação de
um falso Manual para Líderes Revolucionários, um guia de «como fazer» em que o autor,
Michael Velli, propôs fazer pelo príncipe revolucionário moderno o que Maquiavel
tinha proposto fazer pelo príncipe feudal. Este falso «Manual» fundiu o Pensamento
de Mao Tsé-Tung com o Pensamento de Lénine, Stáline, Mussolini, Hitler e dos seus
seguidores modernos, propondo receitas terríveis para a preparação de organizações
revolucionárias e para a obtenção do poder total. Desconcertantemente, pelo menos
metade dos pedidos deste «Manual» veio de aspirantes a libertadores nacionais, sendo
possível que algumas das actuais versões da metafísica nacionalista contenham fórmulas
propostas por Michael Velli.

143
Fredy Perlman

satirista corre o risco de se tornar o fundador de uma nova religião, um


Buda, um Zarathustra, um Jesus, um Maomé ou um Marx. Cada reve-
lação das devastações do sistema dominante, cada crítica do funciona-
mento do sistema, torna-se forragem para os cavalos dos libertadores,
materiais de consolidação para construtores de exércitos. O Pensamento
de Mao Tsé-Tung, nas suas numerosas versões e revisões, é uma ciência
total e uma teologia total; é física social e metafísica cósmica. O Comité
de Salvação Nacional francês afirmou ter encarnado a vontade geral so-
mente da nação francesa. As revisões do Pensamento de Mao Tsé-Tung
afirmam ter encarnado a vontade geral de todos os oprimidos do mundo.
As constantes revisões deste Pensamento são necessárias porque
as suas formulações iniciais não eram aplicáveis a todas ou, de facto,
a qualquer uma das populações colonizadas do mundo. Nenhum dos
colonizados do mundo partilhava a herança chinesa de ter sustentado
um aparelho de Estado durante os últimos dois mil anos. Poucos dos
oprimidos do mundo tinham alguma vez possuído quaisquer dos atri-
butos de uma nação no passado recente ou distante. O Pensamento teve
de ser adaptado a povos cujos antepassados viveram sem presidente,
exércitos ou polícia, sem processos de produção capitalista, e que, por
isso, não tinham necessidade de capital preliminar.
Essas revisões eram feitas enriquecendo o Pensamento inicial com
empréstimos de Mussolini, Hitler e do Estado sionista de Israel. A teo-
ria de Mussolini sobre a realização da nação no Estado foi um princípio
fundamental. Todos os grupos de povos, fossem pequenos ou grandes,
industriais ou não industriais, concentrados ou dispersos, eram vistos
como nações, não devido ao seu passado, mas devido à sua aura, à sua
potencialidade, uma potencialidade embutida nas suas frentes de liber-
tação nacional. Outro princípio fundamental, formulado por Hitler (e
pelos sionistas), foi o tratamento da nação como entidade racial. Os
quadros eram recrutados entre pessoas despojadas dos parentescos e
dos costumes dos seus antepassados, não sendo pois possível distinguir
os libertadores dos opressores em termos de linguagem, crenças, cos-
tumes ou armas; o único material de consolidação que os unia entre si
e à massa de que faziam parte era o material de consolidação que tinha
unido os servos brancos aos patrões brancos na fronteira americana; o
«vínculo racial» dava identidades a quem não tinha identidade, paren-

144
a contínua atracção do nacionalismo

tesco a quem não tinha parentes, comunidade a quem tinha perdido a


sua comunidade; era o último vínculo dos culturalmente despojados.

O pensamento revisto poderia agora ser aplicado aos africanos


como também aos navajos, aos apaches e também aos palestinianos9.
Os empréstimos obtidos junto de Mussolini, de Hitler e dos sionistas
são criteriosamente encobertos, porque Mussolini e Hitler não conse-
guiram manter o poder que tinham conquistado e porque os sionistas
vitoriosos transformaram o seu Estado no polícia mundial contra todas
as outras frentes de libertação nacional. Tem de ser atribuído mais cré-
dito a Lénine, Stáline e Mao Tsé-Tung do que estes merecem.
Os modelos revistos e universalmente aplicáveis funcionam quase
da mesma forma que os originais, mas mais subtilmente; a libertação
nacional tornou-se uma ciência aplicada; o aparelho tem sido testado
frequentemente; as numerosas falhas nos originais foram entretanto
corrigidas. Tudo o que é necessário para fazer andar o aparelho é um
piloto, uma correia de transmissão e combustível.
O piloto é, obviamente, o próprio teórico ou o seu discípulo mais
próximo. A correia de transmissão é o estado-maior, a organização,
também conhecida como o Partido ou o partido comunista. Este par-
tido comunista com c minúsculo é exactamente aquilo que popular-
mente se crê. É o núcleo da organização policial que purga e que será
ele próprio purgado quando o líder se tornar líder nacional e precisar

9. Não estou a exagerar. Tenho à minha frente um grosso panfleto intitulado The
Mythology of the White Proletariat: A Short Course for Understanding Babylon, de
J. Sakai (Chicago: Morningstar Press, 1983). Como aplicação do Pensamento de Mao
Tsé-Tung à história americana, é o trabalho maoísta mais sensível que já vi. O autor
documenta e descreve, algumas vezes vividamente, a opressão dos escravos africanos
na América, as deportações e exterminações dos indígenas do continente americano,
a exploração racista dos chineses, o aprisionamento de nipo-americanos em campos
de concentração. O autor mobiliza todas essas experiências de terror absoluto, não
para encarar formas de suplantar o poder que as perpetrou, mas para apelar às vítimas
para que reproduzam o mesmo sistema entre elas próprias. Polvilhado de fotografias e
citações dos presidentes Lénine, Stáline, Mao Tsé-Tung e Ho Chi Minh, este trabalho
não tenta esconder ou disfarçar os seus objectivos repressivos; apela a que os africanos,
tal como os navajos, apaches e também palestinianos, organizem um partido, tomem o
poder de Estado e liquidem os parasitas.

145
Fredy Perlman

de rever novamente o Pensamento invariável, à medida que se vai adap-


tando à família das nações ou, pelo menos, à família dos banqueiros,
fornecedores de munições e investidores. Quanto ao combustível: a na-
ção oprimida, as massas sofredoras, o povo libertado é e continuará a
ser o combustível.
O líder e os oficiais não provêm do exterior; não são agitadores es-
trangeiros. São produtos integrais do processo de produção capitalista.
Este processo de produção tem sido acompanhado invariavelmente
pelo racismo. O racismo não é uma componente necessária da produ-
ção, mas tem sido (de alguma forma) uma componente necessária do
processo de acumulação primitiva de capital e tem quase sempre feito
parte do processo de produção.
As nações industrializadas têm adquirido o seu capital preliminar
expropriando, deportando, perseguindo e segregando, se não mesmo
exterminando, povos designados como presas legítimas. Foram desfei-
tos parentescos, foram destruídos ambientes, foram extirpados modos
culturais e orientações.
Os descendentes dos sobreviventes de tais massacres têm sorte se
conseguirem preservar as mais simples relíquias, as mais ténues som-
bras das culturas dos seus antepassados. Muitos dos descendentes não
conservam nem sombras; estão completamente despojados; vão traba-
lhar; fazem aumentar cada vez mais o aparelho que destruiu a cultura
dos seus antepassados. E no mundo do trabalho são relegados para as
margens, para os trabalhos mais desagradáveis e mais mal pagos. E isto
leva-os à loucura. Um embalador de supermercado, por exemplo, po-
derá saber mais sobre estoques e requisições do que o seu gerente e
saber que o racismo é a única razão que o leva a não ser gerente e o
gerente a não ser embalador. Um segurança poderá saber que a única
razão que o impede de ser chefe de polícia é o racismo. É entre pessoas
que perderam todas as suas raízes, que ambicionam ser gerentes de su-
permercado e chefes de polícia, que a frente de libertação nacional se
arreiga; é aí que o líder e os oficiais são formados.
O nacionalismo continua a atrair os despojados porque outras
perspectivas parecem ser mais sombrias. A cultura dos antepassados
foi destruída; por isso, de acordo com padrões pragmáticos, falhou; os
únicos antepassados que sobreviveram foram os que se acomodaram

146
a contínua atracção do nacionalismo

ao sistema do invasor, sobrevivendo nos arredores de lixeiras. As várias


utopias de poetas e sonhadores e as numerosas «mitologias do proleta-
riado» também falharam; não se comprovaram na prática; não foram
mais do que fogo de vista, quimeras, promessas; o proletariado real tem
sido tão racista como os patrões e a polícia.
O embalador e o segurança perderam o contacto com a cultura an-
cestral; as quimeras e as utopias não lhes interessam, são de facto re-
pudiadas com o mesmo desdém que o homem de negócios sente pelos
poetas, vagabundos e sonhadores. O nacionalismo oferece-lhes algo de
concreto, algo que tem sido experimentado e testado e que funciona.
Não existe razão concebível para que os descendentes dos perseguidos
continuem a sê-lo quando o nacionalismo lhes oferece a perspectiva de
se tornarem perseguidores. Familiares próximos e distantes de vítimas
podem tornar-se um Estado-nação racista; podem eles próprios arre-
banhar pessoas em campos de concentração, mandar noutras pessoas
à vontade, perpetrar uma guerra genocida contra elas, adquirir capital
preliminar expropriando-as. E se os «familiares raciais» das vítimas de
Hitler podem fazê-lo, também o poderão as vítimas directas ou indi-
rectas de Washington, Jackson, Reagan ou Begin.
Qualquer população oprimida pode tornar-se uma nação, um nega-
tivo fotográfico da nação opressora, um lugar onde o antigo embalador
é o gerente de supermercado, onde o antigo segurança é chefe de polícia.
Ao aplicar a estratégia rectificada, cada segurança poderá seguir o prece-
dente dos antigos guardas pretorianos de Roma. A polícia de segurança
de uma companhia mineira estrangeira pode autoproclamar-se uma re-
pública, libertar as pessoas e continuar a libertá-las até que estas não te-
nham mais nada a fazer senão rezar que a libertação acabe. Mesmo antes
da tomada do poder, um bando pode chamar-se a si próprio uma frente
e oferecer a pessoas pobres fortemente tributadas e constantemente po-
liciadas algo de que ainda sentem falta: uma organização de recolha de
contributos e um esquadrão de ataque, ou seja, colectores de impostos e
uma polícia do próprio povo. Dessa forma, as pessoas podem ser liber-
tadas dos traços dos seus antepassados vitimizados; as relíquias que ain-
da sobrevivem dos tempos pré-industriais e das culturas não-capitalistas
podem, por fim, ser definitivamente extirpadas.
A ideia de que uma compreensão do genocídio, de que uma memó-

147
Fredy Perlman

ria dos holocaustos só pode levar as pessoas a quererem desmantelar o


sistema, é errada. A contínua atracção que o nacionalismo exerce su-
gere que é mais verdade o oposto, ou seja, que uma compreensão do
genocídio levou as pessoas a mobilizarem exércitos genocidas, que a
memória de holocaustos levou as pessoas a perpetrarem holocaustos.
Os sensíveis poetas que recordaram a perda, os investigadores que a
documentaram, têm sido como os puros cientistas que descobriram a
estrutura do átomo. Os cientistas da ciência aplicada usaram a desco-
berta para dividir o núcleo do átomo, para produzir armas que podem
dividir todos os núcleos do átomo; os nacionalistas usaram a poesia
para dividir e fundir as populações humanas, para mobilizar exércitos
genocidas, para perpetrar novos holocaustos.
Os puros cientistas, os poetas e os investigadores, consideram-se ino-
centes no que toca aos campos devastados e aos corpos carbonizados.
Serão inocentes?
Parece-me que pelo menos uma das considerações de Marx é ver-
dadeira: cada minuto dedicado ao processo de produção capitalista,
cada ideia que contribua para o sistema industrial, aumenta cada vez
mais um poder que é inimigo da natureza, da cultura, da vida. A ciên-
cia aplicada não é uma coisa estranha; é parte integral do processo de
produção capitalista. O nacionalismo não provém do exterior. É um
produto do processo de produção capitalista, como os agente químicos
que envenenam os lagos, o ar, os animais e as pessoas, como as centrais
nucleares que radioactivam os micro-ambientes em preparação para a
radioactivação do macro-ambiente.
Como post-scriptum gostaria de responder a uma pergunta antes
de esta ser feita. A pergunta é: «Não achas que um descendente de pes-
soas oprimidas estará melhor como gerente de supermercado ou chefe
de polícia?» A minha resposta é outra pergunta: Que director de um
campo de concentração, carrasco ou torturador não é descendente de
pessoas oprimidas?

[1984]

148
índice

Fredy Perlman, uma praxis da resistência


Júlio Henriques 5

Tudo Pode Acontecer 17


A Reprodução da Vida Quotidiana 29
Revolta na Jugoslávia Socialista 53
Dez Teses Sobre a Proliferação
dos Egocratas 79
O Progresso e a Energia Nuclear: a Destruição
do Continente Americano e dos seus Povos 87
O Anti-Semitismo e o Pogrom de Beirute 95
A Contínua Atracção do Nacionalismo 115
já publicados

ai ferri corti. confronto mortal com o existente, os seus


defensores e os seus falsos críticos
2015 | 70 pgs | 11x18 cm
A insurreição é a rápida emergência de uma banalidade:
nenhum poder pode manter-se sem a servidão voluntária
de quem o tolera. Nada melhor que a revolta para revelar
que quem faz funcionar a máquina assassina da exploração
são os próprios explorados. A interrupção alargada e
selvagem da actividade social remove de uma só vez o
manto da ideologia e faz aparecer as verdadeiras relações
de força: o Estado mostra para que existe – a organização
política da passividade.

Desesperar
Pedro García Olivo
2014 | 196 pgs | 11,3x17 cm
Só o desespero nos liberta da mentira interior; só ele nos
devolve à realidade árida, nua, quase cadáver, de uma condição
humana alheia ao menor brilho e à transcendência mais
insignificante. Instrumento de liquidação sumária de todas as
Quimeras, poderíamos definir o desespero como um abrir de
olhos sem cobardia perante o fantasma do que acreditamos
ser; um reconhecimento frio e sossegado da nossa pequenez
imunda, da nossa insignificância de ruído ténue no meio
de uma noite qualquer, da nossa impotência de coisa inútil
embalada pelos ventos mais comuns.

Flores Silvestres.
Uma Antologia de Abele Rizieri Ferrari
2013 | 320 pgs | 13x18 cm
Abele Rizieri Ferrari, mais conhecido pelo pseudónimo
de Renzo Novatore, foi um poeta da anarquia que
viveu alguns dos anos mais turbulentos de uma Itália
revolucionária e pré-fascista Esta antologia espelha o
seu pensamento individualista radical nos antípodas
de qualquer concepção anarquista tradicional e que o
tornaram «maldito» mesmo entre os seus.

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