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fredy perlman
Textos Subterrâneos
textosubterraneos@riseup.net
www.textosubterraneos.pt
Tradução: Textos Subterrâneos
Revisão: Júlio Henriques
Grafismo: Textos Subterrâneos
Impressão: VASP-DPS
primeira edição: setembro de 2015
depósito legal: 398085/15
Textos extraídos e traduzidos da edição Anything Can Happen, Phoenix Press, Londres, 1992.
Este livro está escrito em desacordo ortográfico. A sua reprodução é completamente
livre e pode ser descarregado em formato digital em www.textosubterraneos.pt
Fredy Perlman, uma praxis da resistência
«Os homens acorrentados às suas actividades do dia-a-dia
só podem libertar-se através das suas actividades do dia-
a-dia. O problema é que as actividades que acorrentam os
homens são historicamente determinadas e a sua repro-
dução requer uma mera repetição; ao passo que as activ-
idades que os podem libertar têm de ser projectadas, a sua
realização exige actos criativos.»1
1. Fredy Perlman, «The Revolutionary Project», Black & Red n.º 6 ½, Detroit, Outono
de 1969.
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2. Nota inicial do livro “The New Freedom”: Corporate Capitalism, Nova Iorque, 1961,
com um grande número de xilogravuras, a cores e a preto-e-branco, do seu amigo John
E. Ricklefs.
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entre aquilo que era proclamado (pelo SDS, por exemplo) e o que era
concretamente realizado, questões que surgem no ensaio de Fredy The
Reproduction of Daily Life, redigido no último Inverno que passou em
Kalamazoo e que parece ter sido o mais lido de todos os que publicou,
inclusive em português (foi editado em Lisboa, em 1975, pela Textos
Exemplares, com o título A Reprodução da Vida Quotidiana). O ensaio
já referido, «I Accuse this Liberal University of Terror and Violence»,
saiu no n.º 6 da B & R: «Os liberais não são “moderados”. Essa é a sua
auto-imagem. São extremistas, mas, ao contrário dos reaccionários, são
extremistas com boa consciência. Os seus instrumentos não são “ide-
ias”, são terror e violência. Mas, ao contrário dos linchadores, os libe-
rais desviam os olhos para continuarem a passar por inocentes.»
Em Abril de 1969, Fredy saiu de Kalamazoo e voltou à Europa, onde
ficou quatro meses, dando duas séries de palestras no Instituto Univer-
sitário de Estudos Europeus de Turim, designadamente sobre as ori-
gens sociais e económicas dos guetos nos Estados Unidos. Depois, num
pequeno Fiat, viajou com Lorraine até à Jugoslávia. Em Belgrado coli-
giu muita informação sobre os protestos sociais e a revolta estudantil ali
ocorridos em 1968, encontrando-se com dissidentes da universidade e
com amigos e antigos colegas. Esse material permitiu-lhe escrever, ainda
na Jugoslávia, o ensaio Revolt in Socialist Yugoslavia, editado em 1973.
Os Perlman aproveitaram a possibilidade de dispor de um carro
para visitar velhos amigos em Paris, Francoforte, Florença, Londres,
Amesterdão, Oslo, Copenhaga. Nesse momento, eram ainda grandes
as expectativas geradas pelas revoltas que haviam eclodido em vários
pontos do mundo.
Em Agosto de 1969, Fredy e Lorraine passaram a morar em Detroit,
em parte porque nesta cidade, graças aos motins ali ocorridos, as ren-
das eram bastante mais acessíveis do que em Nova Iorque ou São Fran-
cisco. Fredy estabeleceu rapidamente contacto com diversos militantes
ou grupos políticos que se opunham ao militarismo do governo e ao
racismo da sociedade, mas o colectivo de Detroit a que ficou mais liga-
do foi o grupo da revista Fifth Estate (que é hoje a mais antiga pub-
licação anarquista americana). Fundada em 1965 como publicação
underground, a partir de 1969 relacionou-se com a comunidade radical
de Detroit e Fredy passou a ser um seu activo colaborador, entre outras
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Quase todos os dados referidos neste artigo foram extraídos do brilhante livro de
Lorraine Perlman, Having Little, Being Much – A Chronicle of Fredy Perlman’s Fifty
Years, Black & Red, Detroit, 1989, que inclui oito páginas de fotografias.
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A reprodução da vida quotidiana
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Tudo Pode Acontecer
«Sejamos realistas, exijamos o impossível!»
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Os Acontecimentos
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nem pela falta de capacidade; são travados pela polícia. Talvez se inspi-
rem noutros lutadores que se organizaram contra a polícia: os cubanos,
os vietnamitas...
Em Turim e Paris, por exemplo, os estudantes ocuparam as suas uni-
versidades e formaram assembleias-gerais em que todos os estudantes to-
maram todas as decisões. Por outras palavras: os estudantes começaram
a gerir as suas próprias universidades. Não para terem melhores notas,
porque acabaram com os testes. Não para terem empregos com salários
mais altos e mais privilégios, porque começaram a discutir a abolição
dos privilégios e dos empregos com salários altos; começaram a discutir
o fim de uma sociedade em que tinham de se alienar. E nesse ponto, por
vezes pela primeira vez nas suas vidas, começaram a aprender.
Em Paris, jovens trabalhadores, inspirados pelo exemplo dos es-
tudantes, ocuparam uma fábrica de aviões e trancaram o director. Os
exemplos multiplicaram-se. Outros trabalhadores começaram a ocupar
as suas fábricas. Apesar do facto de durante toda a vida terem depen-
dido de alguém que tomasse as decisões por eles, alguns trabalhadores
criaram comités para discutirem a gestão da greve em conformidade
com as suas próprias condições e não com as do sindicato, deixando
todos os trabalhadores decidirem – e alguns trabalhadores criaram co-
missões para discutirem a autogestão das fábricas. Uma ideia em que
normalmente não faz sentido pensar, porque é absurda e impossível,
tinha-se tornado subitamente possível e passou a ser interessante, de-
safiante, fascinante. Os trabalhadores começaram mesmo a falar da
produção de bens simplesmente devido ao facto de as pessoas necessi-
tarem deles. Estes trabalhadores sabiam que era «falso pensar que a po-
pulação é contra serviços públicos gratuitos, que os agricultores são a
favor de um circuito comercial cheio de intermediários, que as pessoas
mal pagas estão satisfeitas, que os “gestores” estão orgulhosos dos seus
privilégios [...]»1. Alguns trabalhadores da indústria electrónica entre-
garam equipamento gratuitamente aos manifestantes que se protegiam
da polícia; alguns agricultores entregaram comida gratuitamente aos
trabalhadores em greve; e alguns trabalhadores da indústria do arma-
1. Mouvement du 22 Mars, Ce n´est qu´un début, continuons le combat, Paris, Maspero, 1968.
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2. Acrónimo, que podemos traduzir por Protestante Branco Anglo-Saxónico (White
Anglo-Saxon Protestant), utilizado para definir uma determinada classe social estado-
unidense descendente dos colonos britânicos que detém hegemonia política, económica
e social nos E.U.A. (N. do t.)
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A Reprodução da Vida Quotidiana
A actividade prática quotidiana dos homens tribais reproduz, ou per-
petua, uma tribo. Esta reprodução não é simplesmente física, mas tam-
bém social. Através das suas actividades diárias os homens tribais não
reproduzem simplesmente um grupo de seres humanos; reproduzem
uma tribo, nomeadamente, uma forma social particular em que este gru-
po de seres humanos realiza actividades específicas de uma forma especí-
fica. As actividades específicas dos homens tribais não são o resultado de
características «naturais» dos homens que as realizam, da mesma forma
que a produção de mel é um resultado da «natureza» da abelha. A vida
quotidiana praticada e perpetuada pelos homens tribais é uma reposta
social específica a condições materiais e históricas particulares.
A actividade quotidiana dos escravos reproduz a escravidão. Através
das suas actividades diárias, os escravos não se limitam a reproduz-
ir-se e a reproduzir os seus senhores fisicamente; reproduzem também
os instrumentos com os quais o senhor os reprime e os seus própri-
os hábitos de submissão à autoridade do senhor. Para os homens que
vivem numa sociedade esclavagista, a relação entre o senhor e o escravo
parece ser uma relação eterna e natural. Contudo, os homens não na-
scem senhores ou escravos. A escravatura é uma forma social específica
e os homens apenas se lhe submetem em condições materiais e históri-
cas muito particulares.
A actividade prática quotidiana dos trabalhadores assalariados re-
produz o trabalho assalariado e o capital. Através das suas actividades
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dinheiro. Pode vender a sua actividade viva por dinheiro, mas não pode
comprar a sua actividade viva por dinheiro.
As coisas que o trabalhador compra com o seu salário são, primeiro
que tudo, bens de consumo que possibilitam a sua sobrevivência, a re-
produção da sua força de trabalho para que possa continuar a vendê-
la; e essas coisas são espectáculos, objectos de admiração passiva. Ele
consome e admira os produtos da actividade humana passivamente.
Não existe no mundo como um agente activo que o transforma, mas
como um espectador indefeso e impotente; ele pode chamar a este esta-
do de admiração inofensiva «felicidade», e visto o trabalho ser penoso,
ele poderá desejar ser «feliz», isto é, inactivo, durante toda a sua vida
(condição parecida com a de ter nascido morto). As mercadorias, os
espectáculos, consomem-no; ele gasta energia viva em admiração pas-
siva; é consumido pelas coisas. Nesse sentido, quanto mais tem, menos
é. (Um indivíduo pode aguentar esta morte em vida através de uma
actividade criativa marginal; mas a população não pode, exceptuando
se abolir a forma capitalista de actividade prática, se abolir o trabalho
assalariado, desalienando assim a actividade criativa.)
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dizer, mas a vida é a sua própria; não pode ressuscitar os indivíduos que
depositaram a sua actividade viva no seu instrumento. O instrumen-
to poderá levá-lo a fazer mais num determinado período de tempo e,
nesse sentido, poderá aumentar a sua produtividade. Mas só o trabalho
vivo que é capaz de produzir pode ser produtivo.
Por exemplo, quando um trabalhador industrial maneja um torno
mecânico, ele utiliza produtos provenientes do trabalho de gerações de
físicos, inventores, engenheiros eléctricos, fabricantes de tornos. Ele é,
obviamente, mais produtivo que um artesão que cinzela o mesmo objecto
à mão. Mas o «Capital» à disposição do trabalhador industrial não é
de nenhuma forma mais «produtivo» que o «Capital» do artesão. Se
a actividade intelectual e manual de sucessivas gerações não tivesse
materializado o torno mecânico, ou seja, se o trabalhador industrial
tivesse que inventar o torno, a electricidade e o torno mecânico, levaria
inúmeras vidas a transformar um simples objecto num torno mecâni-
co, e nenhuma quantidade de Capital poderia aumentar a sua produ-
tividade acima da do artesão que cinzela o objecto à mão.
A noção de «produtividade do capital» e, particularmente, o cál-
culo detalhado dessa «produtividade», são invenções da «ciência» da
Economia, dessa religião da vida quotidiana capitalista que leva a ener-
gia das pessoas a adorar, admirar e lisonjear o principal fetiche da so-
ciedade capitalista. Os colegas medievais desses «cientistas» efectuaram
cálculos detalhados da altura e largura dos anjos no Céu, sem nunca
terem questionado que anjos ou Céu seriam e tomando como certa a
existência de ambos.
O resultado da actividade vendida do trabalhador é um produto que
não lhe pertence. Esse produto é uma encarnação do seu trabalho, a
materialização de uma parte da sua vida, um receptáculo que contém
a sua actividade viva, mas que não é dele; é-lhe tão estranho como o
seu trabalho. Não foi ele que decidiu fazê-lo, e quando fica feito, não
dispõe dele. Se o quiser, tem de o comprar. Aquilo que ele fez não foi
simplesmente um produto com certas propriedades úteis; para isso não
precisaria de ter vendido o seu trabalho a um capitalista em troca de
um salário; precisaria apenas de escolher os materiais necessários e as
ferramentas disponíveis, precisaria apenas de modelar os materiais ten-
do em conta os seus objectivos e apenas limitado pelos seus conheci-
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Revolta na Jugoslávia Socialista
«Os hereges são sempre mais perigosos que os inimigos», concluiu
um filósofo jugoslavo depois de analisar a repressão dos intelectuais
marxistas pelo regime marxista da Polónia (S. Stojanović, Student, Bel-
grado, 9 de Abril de 1968, p. 7).
Na Jugoslávia, onde a «autogestão dos trabalhadores» se tornou a
ideologia oficial, uma nova luta pelo controlo popular expôs a lacuna
entre a ideologia oficial e as relações sociais que afirma descrever. Os
heréticos que expuseram esta lacuna foram temporariamente isolados;
a sua luta foi momentaneamente suprimida. A ideologia da «autoges-
tão» continua a servir de máscara a uma burocracia comercial tecno-
crata que tem concentrado com sucesso a riqueza e o poder criados
pela população trabalhadora jugoslava. Contudo, mesmo que de forma
isolada e parcial alguém lhe tire a máscara, isso arruina a sua eficácia: a
«elite» governante da Jugoslávia foi denunciada; as suas proclamações
«marxistas» foram reveladas como mitos que, uma vez revelados, dei-
xam de servir para justificar a sua governação.
Em Junho de 1968, o fosso entre a teoria e a prática, entre as procla-
mações oficiais e as relações sociais, foi denunciado pela prática, pela
actividade social: os estudantes começaram a organizar-se em manifes-
tações e em assembleias-gerais, e o regime que proclama a autogestão
reagiu a este exemplo raro de auto-organização popular acabando com
ele através da repressão policial e da imprensa.
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ciais da luta são deixados nas mãos dos grupos sociais contra os quais
os estudantes se tinham revoltado. Aquilo que anteriormente fora um
apêndice, tornava-se agora a única parte do programa sobre a qual os
estudantes devem agir: «a reforma universitária». Assim, a revolta con-
tra a elite administrativa foi cinicamente transformada no seu oposto:
a universidade deve adaptar-se a estar ao serviço das necessidades do
sistema de relações sociais dominante; os estudantes devem ser forma-
dos para servir mais eficazmente a elite administrativa.
Ao mesmo tempo que a «organização dos estudantes» inicia a «luta»
pela reforma universitária, os estudantes, que tinham começado a or-
ganizar-se para lutarem por objectivos bastante diferentes, tornaram-se
mais uma vez passivos e politicamente indiferentes. «Junho foi caracte-
rizado pelo início de uma consciência entre os estudantes; o período
depois de Junho tem, de muitas formas, as características do período
de antes de Junho, o que pode explicar-se pela reacção inadequada da
sociedade aos acontecimentos de Junho e com vista aos objectivos ex-
pressos durante esse mês.» (Student, 13 de Maio de 1969, p. 4).
A luta pela subversão do statu quo foi desviada da sua insanidade;
foi convertida em realista; foi transformada numa luta para servir o
statu quo. Durante essa luta, em que os estudantes não se envolvem
porque «a sua organização» assumiu a tarefa de a gerir por eles, não
há reuniões, assembleias-gerais ou qualquer outra forma de auto-orga-
nização. Porque os estudantes não lutaram por uma «reforma univer-
sitária» antes de Junho ou durante este mês, nem foram recuperados
para essa «luta» depois de Junho. De facto, foi sobretudo o «porta-voz
dos estudantes» que foi recuperado, porque aquilo que era conhecido
antes de Junho é ainda conhecido depois de Junho: «O melhoramento
da universidade só faz sentido se se basear no axioma de que as trans-
formações da universidade dependem das transformações da socieda-
de. A presente condição da universidade reflecte, em maior ou menor
grau, a condição da sociedade. À luz deste facto, não faz sentido afirmar
que discutimos sobre problemas sociais gerais durante bastante tempo
e que chegou o momento de focarmos a nossa atenção na reforma da
universidade.» (B. Jakšić, Susret, 9 de Fevereiro de 1969).
O conteúdo da «reforma universitária» é definido pelo reitor da
Universidade de Belgrado. Na sua formulação, publicada no Student
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meio ano depois dos acontecimentos de Junho, o reitor até inclui «ob-
jectivos» contra os quais os estudantes lutaram explicitamente, tais
como a sua separação da classe trabalhadora em troca de recompensas
e a sua compulsiva integração não apenas na tecnocracia, mas também
nas forças armadas: «A luta para melhorar a posição material da uni-
versidade e dos estudantes é a nossa tarefa constante [...] Uma das ques-
tões-chave do actual trabalho na universidade é a luta imprescindível
contra todas as formas de derrotismo e demagogia. A nossa universida-
de, e particularmente a nossa juventude estudantil, são e continuarão a
ser a defesa entusiasta e segura da nossa pátria socialista. A organização
sistemática para a construção do poder defensivo do nosso país contra
qualquer agressor, seja de onde for que tente atacar-nos, deve ser a ta-
refa constante, rápida e eficiente de todos nós.» (D. Ivanović, Student,
15 de Outubro de 1968, p. 4). Estes comentários foram precedidos por
declarações longas e bastante abstractas alardeando que «a autogestão
é o conteúdo da reforma universitária.» Os comentários mais explícitos
atrás citados tornam claro aquilo que o reitor entende como «conteú-
do» da «autogestão».
Uma vez que os estudantes não se lançam com ardor na «luta» pela
reforma universitária, a tarefa é deixada aos especialistas que estão
interessados nisso, os professores e os funcionários académicos. «Os
principais tópicos de conversação de um grande número de professores
e dos seus colegas são os automóveis, as casas de férias e a vida fácil. Es-
ses são também os principais tópicos de conversação da elite social tão
incisivamente criticada nos escritos desses académicos, que não com-
preendem que são parte integral e significativa dessa elite.» (B. Jakšić,
Susret, 19 de Fevereiro de 1969).
Sob o título de reforma universitária, um dos principais economistas
(oficiais) da Jugoslávia defende uma utopia burocrática com elementos
de magia. O mesmo economista que, alguns anos antes, enfatizara as
«balanças de produção nacional» aritméticas desenvolvidas pelos «en-
genheiros sociais» soviéticos para aplicação em seres humanos por uma
burocracia de Estado, defende agora «a aplicação da Teoria Geral de Sis-
temas para a análise de sistemas sociais concretos». Esta Teoria Geral
de Sistemas é a mais recente descoberta científica de «sistemas sociais
desenvolvidos e progressistas» – como os Estados Unidos. Devido a esse
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dez teses sobre a proliferação dos egocratas
Referências bibliográficas
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(Paris, Gallimard, 1972).
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Red, 1975). [Edição original: «Errance de l’humanité, conscience ré-
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Debord, Guy, Society of the Spectacle (Detroit, Black & Red, 1970,
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Lefort, Claude, Un Homme en trop: Réflexions sur «L’Archipel de
Goulag» (Paris, Seuil, 1976).
Velli, Michael, Manual for Revolutionary Leaders (Detroit, Black &
Red, 1972).
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O Progresso e a Energia Nuclear:
a Destruição do Continente Americano
e dos seus Povos
O envenenamento premeditado de seres humanos, de solos e de ou-
tros seres vivos só pela mais grosseira hipocrisia poderá ser considerado
um «acidente». Só os intencionalmente cegos poderão afirmar que esta
consequência do Progresso Técnico «não estava prevista».
O envenenamento e a deslocalização dos habitantes deste continen-
te por causa de «entidades superiores» poderá ter começado na Pensil-
vânia oriental, mas não durante as últimas semanas1.
Há duzentos e vinte anos atrás, na região de Three Mile Island, que
está a ser actualmente envenenada pela radiação, especuladores com
1. Alusão ao acidente nuclear de Three Mile Island, perto de Harrisburg, capital da
Pensilvânia, cujo início ocorreu em 28 de Março de 1979 e levou à deslocalização de
um grande número de pessoas. Foi um dos mais graves dos muitos acidentes que têm
ocorrido em centrais nucleares. (N. do t.)
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2. Referência à Guerra de Pontiac (1763-1766), lançada na região dos Grandes Lagos
contra a política britânica de ocupação; a sua designação deriva do nome do líder ottawa
Pontiac, um dos mais destacados guerreiros índios desse período. A par de muitas
outras apropriações abusivas da mesma laia, o nome de Pontiac foi adoptado em 1926
como marca de automóveis da General Motors. (N. do t.)
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tes não podiam resistir a esta combinação sem a adoptarem, mas não
a podiam adoptar sem deixarem de ser livres. Escolheram permanecer
livres, e os últimos seres humanos livres entre Three Mile Island e o
Mississipi foram Deslocalizados.
À medida que os colonos se deslocavam para terras deliberadamen-
te desocupadas, onde o próprio ar que respiravam lhes transmitia um
travo da liberdade recentemente suprimida, transformavam grandes
bosques em réplicas alargadas do inferno que tinham deixado para
trás. O usufruto de trilhos e florestas cessou: as florestas foram queima-
das, os trilhos tornaram-se uma corrida de obstáculos que deviam ser
percorridos tão rapidamente quanto o Capital possibilitasse. A alegria
deixou de ser o objectivo da vida; a própria vida tornou-se um mero
meio; o seu fim era o lucro. A variedade de centenas de formas culturais
foi reduzida à uniformidade de uma única rotina: trabalho, poupança,
investimento, venda, todos os dias do nascer ao pôr-do-sol, e contagem
do dinheiro depois de anoitecer. Todas as antigas actividades, e dezenas
de outras novas, foram transformadas de fonte de prazer em fonte de
lucro. Milho, feijões e abóboras, as «três irmãs» respeitadas e amadas
pelos anteriores habitantes da região, tornaram-se simples mercado-
ria para vender em mercados; os seus semeadores e ceifeiros já não as
plantavam para as desfrutarem às refeições, em banquetes e festivais,
mas para as venderem para com isso obterem um lucro. O lazer da
horticultura foi substituído pelo trabalho duro da agricultura, os trilhos
davam lugar a ferrovias, caminhar foi suplantado pela locomoção de gi-
gantescas fornalhas sobre rodas movidas a carvão, as canoas foram var-
ridas por cidades flutuantes que não se detinham diante de quaisquer
obstáculos enchendo o ar de cinzas e de fumo negro. As «três irmãs»,
conjuntamente com a sua restante família, foram reduzidas a simples
mercadoria, assim como as árvores que se tornaram madeira, os ani-
mais que se tornaram carne, seguindo o mesmo caminho as viagens, as
canções, os mitos e os contos dos novos habitantes do continente.
E havia mesmo novos habitantes: primeiro às centenas, depois aos
milhares, e por fim aos milhões. Quando a importação de escravos em
sentido absoluto finalmente terminou, foram importados das decré-
pitas propriedades da Europa pós-feudal camponeses excedentes. Os
seus antepassados não haviam conhecido a liberdade durante tantas
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se numa ilha do Capital ‒ luta essa derrotada pelos antigos métodos dos
assírios (e dos modernos socialistas soviéticos) de deportação em mas-
sa, campos de concentração, massacres de prisioneiros desarmados e
constante lavagem ao cérebro por mercenários militares e missionários.
Ainda que muitos deles fossem militantes e corajosos, os agriculto-
res em luta raramente colocavam o prazer e a vida acima do trabalho,
da poupança e do lucro, e o seu movimento descarrilou por completo
quando foi infiltrado por políticos radicais, que equipararam a necessi-
dade de uma nova vida ao desejo de um novo Líder. A forma de descar-
rilamento do movimento populista tornou-se a forma de existência do
movimento trabalhista durante o século que se seguiu. Os políticos que
cavaram a sepultura do populismo foram os precursores da infinita va-
riedade de seitas monásticas, modeladas organizacionalmente de acor-
do com a Ordem Jesuíta, mas com doutrinas e dogmas que derivavam
de um ou outro Livro comunista, socialista ou anarquista. Preparados
para saltar instantaneamente para qualquer situação em que as pessoas
começassem a lutar para reconquistar a sua própria humanidade, es-
magaram uma após outra qualquer potencial rebelião ao despejarem
a sua doutrina, a sua organização e a sua liderança sobre pessoas que
lutavam pela vida. Estes palhaços, para quem o essencial eram as suas
fuças e os seus discursos nas primeiras páginas dos jornais, acabaram
por se tornar capitalistas que levaram para o mercado a única mercado-
ria que tinham encurralado: o Trabalho.
Pouco depois da viragem para o presente século, com a resistência
efectiva definitivamente afastada, com uma pseudo-resistência que era
de facto um instrumento para a redução final da actividade humana a
uma mera variante do Capital, o aparelho eficiente destinado a gerar
lucros deixou de ter quaisquer obstáculos externos. Tinha ainda obstá-
culos internos; as diversas fracções do Capital, os Vanderbilts, os Goulds
e os Morgans, viraram continuamente as suas armas uns contra os ou-
tros e ameaçaram fazer ruir por dentro toda a estrutura. Rockefeller e
Morgan foram pioneiros na fusão, na combinação das várias fracções:
investidores endinheirados distribuíam o seu dinheiro pelas empresas
uns dos outros, os directores sentavam-se nos conselhos de adminis-
tração uns dos outros e todos ganhavam interesse pela progressão ili-
mitada de cada unidade de todo o aparelho. À excepção de raros impé-
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O Anti-Semitismo e o Pogrom de Beirute
Escapar da morte numa câmara de gás ou num Pogrom, ou à prisão
num campo de concentração, poderá dar a um escritor sério e capaz,
como por exemplo Soljenitsine, uma compreensão profunda de muitos
dos elementos centrais da existência contemporânea, mas essa experi-
ência, em si mesma, não faz de Soljenitsine um pensador, um escritor
ou mesmo um crítico dos campos de concentração; não confere, em si
mesma, quaisquer poderes especiais. Noutra pessoa, essa experiência
poderá permanecer latente como uma potencialidade ou continuar a
ser sempre insignificante, ou poderá contribuir para transformar essa
pessoa num ogre. Resumindo, a experiência é uma parte indelével do
passado do indivíduo, mas não determina o seu futuro; o indivíduo
é livre de escolher o seu futuro; é livre, até, de optar por abolir a sua
liberdade, em cujo caso é uma escolha feita de má fé e que faz dele um
Salaud (o termo filosófico exacto de J. P. Sartre aplicado à pessoa que
faz uma tal escolha)1.
As minhas observações são pedidas de empréstimo a Sartre; gosta-
ria de as aplicar, não a Soljenitsine, mas a mim mesmo, como indivíduo
específico, e aos apoiantes americanos que torcem pelo Estado de Isra-
el, como escolha específica.
1. Termo francês que se pode traduzir por «canalha». (N. do t.)
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Eu fui uma das três crianças retiradas pelos nossos velhos de um país
da Europa Central um mês antes de os nazis o terem invadido e come-
çado a perseguir ali os judeus. Só partiu uma parte da minha grande
família; a restante ficou e todos os seus membros foram detidos; todos
os meus primos, tias e avós morreram em campos de concentração nazis
ou em câmaras de gás, à excepção de dois tios, que adiante mencionarei.
Mais um mês e eu também teria sido um dos que foram submetidos
à exterminação científica de seres humanos racionalmente planeada, a
experiência central de tantas pessoas ocorrida numa época de grande
desenvolvimento da ciência e das forças produtivas, e não teria podido
escrever sobre isso.
Fui um dos que escapou. Passei a minha infância entre pessoas das
montanhas dos Andes que falavam a língua quíchua, mas não aprendi
esta língua e não perguntei a mim mesmo porquê; falava a um quíchua
numa língua estrangeira para ambos, a língua dos conquistadores. Não
tinha consciência de que era um refugiado nem de que os quíchuas
eram refugiados na sua própria terra; sabia tão pouco dos terrores ‒ das
expropriações, perseguições e pogroms, da aniquilação de uma antiga
cultura ‒ sofridos pelos seus antepassados como sabia dos terrores vi-
vidos pelos meus.
Para mim, os quíchuas eram generosos, hospitaleiros e sinceros, es-
perando eu que uma tia minha os respeitasse e gostasse deles, e não que
os enganasse e desprezasse chamando-lhes sujos e primitivos2.
As trapaças da minha tia foram o meu primeiro contacto com o que
é ter dois pesos e duas medidas, espoliar os de fora para enriquecer os
de dentro, com o adágio moral que diz: está tudo bem se formos nós
que o fizermos.
O desprezo demonstrado pela minha parente foi o meu primeiro
contacto com o racismo, o que atribuía a esta pessoa uma afinidade com
os pogromistas de que tinha escapado; ter fugido deles por um triz não
2. O irmão e duas irmãs do pai de Fredy, por ele aconselhados, emigraram também,
com os respectivos cônjuges, semanas depois para a Bolívia e juntaram-se-lhes em
Cochabamba. (N. do t.)
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ficando a saber que a América era um lugar onde toda a gente queria
estar, algo como um Paraíso, mas um Paraíso que continuava a ser inal-
cançável mesmo depois de termos entrado na América. A América era
uma terra de empregados e operários fabris, mas nem o trabalho admi-
nistrativo nem o trabalho fabril eram a América. O meu amigo arrua-
ceiro resumiu-o de forma bastante simples: havia otários e vigaristas, e
uma pessoa tinha de ser idiota para se tornar otário. Os meus pais eram
menos explícitos; diziam: estuda com afinco. A motivação implícita era
esta: Deus te livre de vires a ser empregado de escritório ou operário
fabril! Aprende a ser outra coisa: especialista ou director. Na altura não
sabia que esses outros apelos eram também os da América, e que apesar
de cada degrau alcançado o Paraíso permanecia tão inalcançável como
antes. Eu não sabia que a satisfação do especialista, ou mesmo do em-
pregado ou operário, provinha, não da plenitude da sua própria vida,
mas da rejeição desta, da identificação com o grande processo que esta-
va a ter lugar fora dele, o desenfreado processo de destruição industrial.
Os resultados desse processo podiam ser vistos em filmes e jornais, mas
ainda não na televisão, que em breve levaria esse processo para casa de
toda a gente; a satisfação era a do voyeur, do mirone. Naquela altura
não sabia que esse processo era o sinónimo mais concreto de América.
Uma vez na América, a minha experiência de ter escapado por um
triz a um campo de concentração nazi era inútil; essa experiência não
me podia ajudar a subir a escada rumo ao Paraíso, podendo até preju-
dicar-me; a minha subida apressada poderia ser muito abrandada ou
mesmo interrompida por completo se procurasse sentir empatia pela
condição de recluso de um campo de trabalho em que me poderia ter
tornado, pois poderia ter compreendido o que tornava a perspectiva do
trabalho fabril tão terrível; diferia da outra condição por nela não haver
câmaras de gás e porque o operário passava dentro da fábrica apenas os
seus dias da semana.
Não era o único para quem a experiência na Europa Central de
nada servia. Os meus familiares também não precisaram dela. Durante
essa década conheci um dos meus dois tios que sobreviveram a um
campo de concentração nazi. Uma vez na América, nem sequer esse
meu tio teve necessidade de fazer uso da sua experiência; não queria
senão esquecer o Pogrom e tudo o que lhe estivesse associado; que-
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5. Esta afirmação, escrita em meados de Agosto, referia-se à invasão do Líbano pelo
Estado de Israel e não ainda ao Pogrom, no sentido estrito do século XIX, perpetrado
em Setembro (16 a 18 de Setembro de 1982, para ser exacto).
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6. No original , tell-a-vision, jogo de palavras que o autor adopta para criticar a
unilateralidade dos meios de comunicação de massas. (N. do t.)
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7. «O trabalho liberta»: mote afixado à entrada dos campos de trabalho escravo nazis.
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fascismo. Irrita-me que um novo fascismo opte por usar entre as suas
justificações a experiência das vítimas do anterior fascismo.
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O nacionalismo foi declarado morto por diversas vezes durante o
presente século XX:
– depois da Primeira Guerra Mundial, quando os últimos impérios
da Europa, o austríaco e o turco, foram divididos em nações autode-
terminadas e nenhum nacionalista ficou privado de nação, à excepção
dos sionistas;
– depois do golpe de estado bolchevique, quando se dizia que as
lutas burguesas pela autodeterminação haviam sido doravante suplan-
tadas pelas dos trabalhadores, que não tinham pátria;
– depois da derrota militar da Itália fascista e da Alemanha nacio-
nal-socialista, quando o genocídio, corolário do nacionalismo, foi exi-
bido para todos verem, quando se pensou que o nacionalismo como
crença e prática tinha caído definitivamente em descrédito.
Contudo, quarenta anos depois da derrota militar dos fascistas e
dos nacional-socialistas, podemos ver que o nacionalismo não só so-
breviveu como renasceu, passou por um revivalismo. O nacionalismo
foi ressuscitado não só pela chamada direita, mas também, principal-
mente, pela chamada esquerda. Depois da guerra nacional-socialista, o
nacionalismo deixou de ficar circunscrito aos conservadores, tornan-
do-se crença e prática de revolucionários e comprovando-se como úni-
ca crença revolucionária que realmente funcionou.
Os esquerdistas ou revolucionários nacionalistas insistem em que o
seu nacionalismo nada tem em comum com o nacionalismo dos fascis-
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não fora experimentado nem testado e não impunha uma total lealdade
à população subjacente, que ainda não era patriótica. Algo mais era ne-
cessário. Os esclavagistas que tinham derrubado o rei temiam que os
seus escravos pudessem também derrubá-los a eles, seus senhores; a in-
surreição no Haiti tornou esse receio real. E ainda que tivessem deixado
de temer serem empurrados para o mar pelos habitantes indígenas do
continente, os comerciantes e especuladores preocupavam-se com a ca-
pacidade de se estenderem para o interior do continente.
Os colonos invasores americanos recorreram a um instrumento que
não era, como a guilhotina, uma nova invenção, mas que era igualmente
letal. Este instrumento seria mais tarde chamado Racismo e seria incor-
porado na prática nacionalista. O racismo, como os ulteriores produtos
das práticas americanas, era um princípio pragmático; o mais importan-
te não era o seu conteúdo; o que importava era que funcionasse.
Os seres humanos mobilizados em função do seu mais baixo e super-
ficial denominador comum, reagiram. Pessoas que tinham abandonado
as suas aldeias e famílias, que esqueciam as suas línguas e perdiam as suas
culturas, que se encontravam completamente despojadas da sua sociabi-
lidade, foram manipuladas para considerarem a sua cor de pele como
substituto de tudo aquilo que haviam perdido. Tornaram-se orgulhosas
de algo que não era uma façanha pessoal nem sequer, como a língua,
uma aquisição pessoal. Foram fundidas numa nação de homens bran-
cos. (As mulheres e as crianças brancas existiam apenas como vítimas
escalpeladas, como provas da bestialidade da presa caçada.) A extensão
desse despojamento é revelada pelas insignificâncias que os homens
brancos partilhavam entre si: sangue branco, ideias brancas e pertença
a uma raça branca. Devedores, posseiros e servos, enquanto homens
brancos, tinham tudo em comum com banqueiros, especuladores e pro-
prietários de plantações, e nada em comum com os peles-vermelhas, os
peles-negras ou os peles-amarelas. Amalgamados entre si com base em
semelhante princípio, podiam também ser mobilizados por ele, transfor-
mando-se numa turba branca, linchadora e «caçadora de índios».
O racismo fora inicialmente um entre vários métodos de mobiliza-
ção de exércitos coloniais e, embora tenha sido explorado na América
mais inteiramente do que nunca, não suplantava os outros métodos,
completava-os. As vítimas dos pioneiros invasores eram ainda descritas
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1. O subtítulo do primeiro volume d’O Capital é A Critique of Political Economy: The
Process of Capitalist Production (editado por Charles H. Kerr & Co., 1906; reeditado
por Random House, Nova Iorque). Edição portuguesa: O Capital – Crítica da Economia
Política, Edições Avante, Lisboa, 1991 e sqq.
2. Ibidem, pp. 784-850, VIII capítulo, «The So-Called Primitive Accumulation».
3. I. Preobrajenski, The New Economics (Moscovo, 1926; a tradução inglesa foi
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publicada pela Clarendon Press, Oxford, 1965), livro que anunciou a fatídica «lei de
acumulação primitiva socialista».
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capitalista nacional, que a nação não tinha mais a oferecer aos trabalha-
dores do que grilhões. Estes estrategas dos trabalhadores, que não eram
eles próprios trabalhadores, mas tão burgueses como os governantes ca-
pitalistas, proclamaram que os trabalhadores não tinham pátria e orga-
nizaram-se numa Internacional. Esta Internacional dividiu-se em três e
cada Internacional aproximou-se cada vez mais do ponto cego de Marx.
A I Internacional foi levada a cabo por alguém que tinha sido tra-
dutor de Marx para o russo e que era, então, seu antagonista, Bakunine,
inveterado rebelde que fora um fervoroso nacionalista até conhecer,
com Marx, o que era a exploração. Bakunine e os seus companheiros,
rebeldes a todas as autoridades, também se rebelaram contra a auto-
ridade de Marx; suspeitaram que Marx estava a tentar transformar a
Internacional num Estado tão repressivo como os Estados feudais e na-
cionais em conjunto. Bakunine e os seus seguidores eram inequívocos
na sua rejeição de todos os Estados, mas eram ambíguos a respeito da
empresa capitalista. Ainda mais do que Marx, glorificavam a ciência,
celebravam o progresso material e saudavam a industrialização. Sendo
rebeldes, consideravam qualquer luta uma boa luta, mas a melhor de
todas era a luta contra os antigos inimigos da burguesia, a luta contra os
latifundiários feudais e a Igreja católica. Daí que a Internacional baku-
ninista tenha florescido em países como a Espanha, onde a burguesia
não tinha completado a sua luta pela independência mas, ao invés, se
aliara aos barões feudais e à Igreja para se proteger dos operários e dos
camponeses insurgentes. Os bakuninistas lutaram para completar a
revolução burguesa sem a burguesia e contra esta. Denominavam-se
anarquistas e desdenhavam de todos os Estados, mas não se deram ao
trabalho de explicar como iriam obter a indústria preliminar ou sub-
sequente, o progresso e a ciência, ou seja, o capital, sem exército nem
polícia. Nunca lhes foi dada uma verdadeira oportunidade de resolver
a sua contradição na prática, e os bakuninistas de agora ainda não a
resolveram, nem se deram ainda conta de que existe uma contradição
entre anarquia e indústria.
A II Internacional, menos rebelde do que a primeira, rapidamente
chegou a um acordo com o capital e também com o Estado. Solidamen-
te enraizados no ponto cego de Marx, os preconizadores desta orga-
nização não ficaram enredados em qualquer contradição bakuninista.
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Era para eles óbvio que a exploração e a pilhagem eram condições ne-
cessárias para o progresso material e reconciliaram-se realisticamente
com aquilo que era inevitável. Reivindicavam apenas uma maior par-
te dos lucros para os trabalhadores e cargos na administração política
para eles próprios, como representantes dos trabalhadores. Como os
bons sindicalistas que os precederam e como os que se lhes seguiram,
os adeptos socialistas sentiam-se embaraçados com «a questão colo-
nial», mas o seu embaraço, como o de Felipe de Habsburgo, dava-lhes
apenas má consciência. A seu tempo, os socialistas imperiais alemães,
os socialistas monárquicos holandeses e os socialistas republicanos
franceses deixaram até de ser internacionalistas.
A III Internacional não só chegou a acordo com o capital e o Estado
como os tornou seu objectivo. Esta Internacional não era formada por
intelectuais rebeldes ou dissidentes, foi criada por um Estado, o Estado
russo, depois de o Partido Bolchevique se ter instalado nas funções
desse Estado. A principal actividade desta Internacional era dar a co-
nhecer os feitos do renovado Estado russo, do seu partido governante
e do seu fundador, o homem que adoptara o nome de Lénine. Os feitos
desse partido e do seu fundador foram de facto grandiosos, mas quem
os dava a conhecer fez o seu melhor para ocultar o que de mais gran-
dioso havia neles.
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sido escolhidos pelo deus para dirigir o povo, que tinham encarnado
o povo nos seus próprios diálogos com o deus. Era um artifício expe-
rimentado e testado pelos governantes. Mesmo que os antigos prece-
dentes tivessem sido temporariamente esquecidos, um precedente mais
recente fora fornecido pelo Comité Francês de Salvação Pública, que se
apresentara como a encarnação da vontade geral da nação.
O objectivo, o comunismo, o derrube e a supressão do capitalismo,
também parecia ser algo novo, parecia ser uma mudança de circuns-
tâncias. Mas só a palavra era nova. O objectivo do ditador do prole-
tariado continuava a ser o progresso de estilo americano, o desenvol-
vimento capitalista, a electrificação, o transporte rápido de massas, a
ciência, a transformação do ambiente natural. O objectivo era o capita-
lismo que a fraca e incompetente burguesia russa não tinha conseguido
desenvolver. Com O Capital de Marx como sua luz e guia, o ditador e o
seu Partido iriam desenvolver o capitalismo na Rússia; serviriam como
substitutos da burguesia e usariam o poder do Estado não apenas para
policiar o processo, mas também para o lançar e gerir.
Lénine não viveu o tempo suficiente para poder demonstrar o seu
virtuosismo como director-geral do capital russo, mas o seu sucessor,
Stáline, demonstrou amplamente os poderes da máquina que tinha
sido criada. O primeiro passo foi a acumulação primitiva de capital.
Se Marx não tinha sido muito claro em relação a isso, fora-o Ievguéni
Preobrajenski. Preobrajenski foi preso, mas a sua descrição dos méto-
dos experimentados e testados para a obtenção de capital preliminar
foi aplicada em toda a Rússia. O capital preliminar dos ingleses, ameri-
canos, belgas e de outros capitalistas era proveniente das pilhagens nas
colónias ultramarinas. A Rússia não tinha colónias ultramarinas. Mas
essa carência não era obstáculo. Toda a zona rural russa foi transforma-
da numa colónia.
As primeiras fontes de capital preliminar foram os kulaks, campo-
neses que tinham algo que valia a pena ser pilhado. Essa acção teve
tanto sucesso que foi também aplicada aos restantes camponeses, com
a expectativa racional de que pequenas quantidades pilhadas a muita
gente poderiam render uma soma substancial.
Os camponeses não foram os únicos colonizados. A antiga classe
governante tinha já sido completamente expropriada de todas as suas
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6. «[...] a extensão gradual das nossas colónias irá de certeza levar o selvagem, tal
como o lobo, a retirarem-se; são ambos animais de rapina, embora difiram na forma.»
(George Washington em 1783). «[...] se alguma vez formos constrangidos a desenterrar
o machado de guerra contra qualquer tribo, não o enterraremos até que essa tribo seja
exterminada ou expulsa […]» (Thomas Jefferson em 1807). «[...] os massacres cruéis
que cometeram sobre as mulheres e as crianças quando as nossas fronteiras foram
atacadas de surpresa, obriga-nos a persegui-los até os exterminarmos, ou a expulsá-los
para lugares fora do nosso alcance.» (Thomas Jefferson em 1813). Citado por Richard
Drinnon em Facing West: The Metaphysics of Indian-Hating and Empire Building
(Nova Iorque: New American Library, 1980), pp. 65, 96 e 98.
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8. A Black & Red tentou satirizar esta situação há mais de dez anos com a publicação de
um falso Manual para Líderes Revolucionários, um guia de «como fazer» em que o autor,
Michael Velli, propôs fazer pelo príncipe revolucionário moderno o que Maquiavel
tinha proposto fazer pelo príncipe feudal. Este falso «Manual» fundiu o Pensamento
de Mao Tsé-Tung com o Pensamento de Lénine, Stáline, Mussolini, Hitler e dos seus
seguidores modernos, propondo receitas terríveis para a preparação de organizações
revolucionárias e para a obtenção do poder total. Desconcertantemente, pelo menos
metade dos pedidos deste «Manual» veio de aspirantes a libertadores nacionais, sendo
possível que algumas das actuais versões da metafísica nacionalista contenham fórmulas
propostas por Michael Velli.
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9. Não estou a exagerar. Tenho à minha frente um grosso panfleto intitulado The
Mythology of the White Proletariat: A Short Course for Understanding Babylon, de
J. Sakai (Chicago: Morningstar Press, 1983). Como aplicação do Pensamento de Mao
Tsé-Tung à história americana, é o trabalho maoísta mais sensível que já vi. O autor
documenta e descreve, algumas vezes vividamente, a opressão dos escravos africanos
na América, as deportações e exterminações dos indígenas do continente americano,
a exploração racista dos chineses, o aprisionamento de nipo-americanos em campos
de concentração. O autor mobiliza todas essas experiências de terror absoluto, não
para encarar formas de suplantar o poder que as perpetrou, mas para apelar às vítimas
para que reproduzam o mesmo sistema entre elas próprias. Polvilhado de fotografias e
citações dos presidentes Lénine, Stáline, Mao Tsé-Tung e Ho Chi Minh, este trabalho
não tenta esconder ou disfarçar os seus objectivos repressivos; apela a que os africanos,
tal como os navajos, apaches e também palestinianos, organizem um partido, tomem o
poder de Estado e liquidem os parasitas.
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índice
Desesperar
Pedro García Olivo
2014 | 196 pgs | 11,3x17 cm
Só o desespero nos liberta da mentira interior; só ele nos
devolve à realidade árida, nua, quase cadáver, de uma condição
humana alheia ao menor brilho e à transcendência mais
insignificante. Instrumento de liquidação sumária de todas as
Quimeras, poderíamos definir o desespero como um abrir de
olhos sem cobardia perante o fantasma do que acreditamos
ser; um reconhecimento frio e sossegado da nossa pequenez
imunda, da nossa insignificância de ruído ténue no meio
de uma noite qualquer, da nossa impotência de coisa inútil
embalada pelos ventos mais comuns.
Flores Silvestres.
Uma Antologia de Abele Rizieri Ferrari
2013 | 320 pgs | 13x18 cm
Abele Rizieri Ferrari, mais conhecido pelo pseudónimo
de Renzo Novatore, foi um poeta da anarquia que
viveu alguns dos anos mais turbulentos de uma Itália
revolucionária e pré-fascista Esta antologia espelha o
seu pensamento individualista radical nos antípodas
de qualquer concepção anarquista tradicional e que o
tornaram «maldito» mesmo entre os seus.