Sei sulla pagina 1di 3270

Anais do 5º Seminário Fluminense

de Pós-Graduandos em História
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
Organizadores: Kaori Kodama, Gisele Sanglard, Rômulo de Paula Andrade, Thiago de
Souza dos Reis, Camilla Leal, Giulia Accorsi e Renilson Beraldo.
Editora: Anpuh-Rio
Ano: 2018

Ficha catalográfica

Editor: Thiago de Souza dos Reis

Os autores são responsáveis pelas ideias expressas em seus textos.


ANPUH-RIO
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA SEÇÃO
REGIONAL DO RIO DE JANEIRO
Presidência
Conselho Diretor Nísia Trindade Lima
Presidente
Ricardo Figueiredo de Castro CASA DE OSWALDO CRUZ
(UFRJ)
Direção
Vice-presidente Paulo Elian dos Santos
Silvana Cristina Bandoli Vargas (Colégio Pedro II)
Secretário-geral Programa de Pós-Graduação em História das
Natalia dos Reis Cruz Ciências e da Saúde
(UFF)
Coordenação
Primeiro secretário Gisele Sanglard
Renata Torres Schittino
(UFF)
Segundo secretário
Dominichi Miranda de Sá
(Coc/Fiocruz)
Primeiro tesoureiro
Mauro Henrique de Barros Amoroso
(UERJ)
Segundo tesoureiro
Vivian Luiz Fonseca
(UERJ/CPDOC-FGV)

Conselho Consultivo:
Presidente
Márcia Maria Menendes Motta
(UFF)
Secretário
Rodrigo dos Santos Rainha
(UERJ/UNESA)
Relator
Andréa Casa Nova Maia
(UFRJ)

Conselho Fiscal
Presidente
Beatriz Kushnir
(AGCRJ)
Secretário
Gelson Rozentino de Almeida
(UERJ)
Relator
Norma Côrtes Gouveia de Melo
(UFRJ)

Secretaria Administrativa
Juceli Silva
Thiago Reis
5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História

COMISSÃO ORGANIZADORA

Discentes
Aden Assunção Lamounier (UFF)
André Alboretti (PROFHISTÓRIA/PUC-RJ)
Andreia Tamanini (PPGHIS/UFRJ)
Beatrice Rossotti (UNIRIO)
Daniel de Souza Sales Borges (UNIRIO)
Diego da Silva Ramos (FFP/UERJ)
Docentes Diego Santos Barbosa (UNIRIO)
Kaori Kodama (COC-Fiocruz) Elion de Souza Campos (PPGHIS/UFRJ)
Gisele Sanglard (COC-Fiocruz) Fernanda Pissurno (PPGHIS/UFRJ)
Romulo Andrade (COC-Fiocruz) Iohana Freitas (PUC-RJ)
Alexandre Luis M. Rocha (CPDOC/FGV) Isabella Furtado (PUC-RJ)
Márcia Chuva (UNIRIO) Jamile da Silva Neto (UNIRIO)
Marcos Bretas (PPGHIS/UFRJ) João Guilherme Ramos (CPDOC-FGV)
Líva Magalhães (UFF) Júlio Dória (PPGHIS/UFRJ)
Helenice Rocha (FFP/UERJ-São Gonçalo) Karina Ramos (PUC-RJ)
Fernando Rodrigues (UNIVERSO) Laíne Soares Mendes (UFRRJ)
Marta de Almeida (MAST) Laís Marcoje (PPGHIS/UFRJ)
Rebeca Gontijo (UFRRJ) Leda Agnes Simões (FFP/UERJ)
Regiane Mattos (PUC-Rio) Marcos André dos Ramos (PPGHC/UFRJ)
Thiago Reis (ANPUH-Rio) Max Oliveira (UFRRJ)
Natália Batista Peçanha (UFRRJ)
Peter Sana (FFP/UERJ)
Regiane Matos (CPDOC-FGV)
Tatiane Santos (UFRRJ)

COMISSÃO EXECUTIVA LOCAL

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz

Camilla Leal
Gisele Sanglard
Giulia Accorsi
Kaori Kodama
Renilson Beraldo
Romulo Andrade
Kaori Kodama
Gisele Sanglard
Rômulo de Paula Andrade
Thiago de Souza dos Reis
Camilla Leal
Giulia Accorsi
Renilson Beraldo
(Orgs)

Anais do 5º Seminário Fluminense


de Pós-Graduandos em História

Anpuh-Rio
Rio de Janeiro
2018
PROGRAMAÇÃO OFICIAL DO 5º SEMINÁRIO FLUMINENSE DE PÓS-
GRADUANDOS EM HISTÓRIA

Dia e
Mesas Título das mesas Títulos individuais resumidos Debatedores Sala
Hora

1. Ubirajara Sampaio
Bragança - "Messianismo
no Brasil: governo, Igreja
e latifundiários contra o
sítio Caldeirão do beato
José Lourenço"
2. Jessica Maria Marques
Rabello - "Nossa Senhora
01 da Aparecida: A Rainha do 17/10
Brasil - o processo de Jefferson Eduardo
Religiosidades
Cristãs e Ateísmo construção de uma dos Santos 10° andar
no Brasil identidade para o Brasil
(UFRJ) 13h-15h
para a Igreja Católica,
1904"
3. Danilo Monteiro Firmino
– “O ateísmo da
Associação Brasileira de
Ateus e Agnósticos
(ATEA): influências do
iluminismo e ‘neoateísmo’
na busca pela identidade
ateísta brasileira”

1. Marcos Felipe Vicente -


"Redefinições identitárias
na vila de Guarany - CE:
uma reflexão sobre o
significado de ser caboclo"
2. Dayane Menezes de
Oliveira Pereira -
02 "Crônicas Históricas de 20/10
História indígena: Fernando de Alva Ronald Raminelli
discursos, escritas e Ixtlilxóchitl: A escrita que 10º andar
significados evidencia os direitos (UFF)
políticos das elites 13h-15h
indígenas de Texcoco"
3. Tamires Santos Pereira -
"Políticas das Guerras
Justas e a conquista dos
territórios indígenas no
Vale do Rio Mucuri na
Primeira Metade do século
XIX"

1. José Geraldo dos Santos -


"Manoel Bomfim:
racialismo, mestiçagem e
índios"
03 2. Breno Sabino Leite de Maria Regina 18/10
Souza - "Uma coleção em Celestino de
História Indígena: Revista: a etnografia do
ensino e mediação Almeida
Museu Paulista de 401
Hermann von Ihering" (UFF) 15h-17h
3. Felipe Rocha de Borba
Braz - "A construção de
um material didático a
partir dos apontamentos
do relatório Figueiredo"
1. Karina Helena Ramos - "À
beira do fogo:
alimentação, identidades e
fluxos culturais em
Luanda (1940-1960)"
2. Benedito Carlos Costa
Barbosa - "A Companhia
04 Washington
de Comércio do Grão-Pará 19/10
Práticas de cura, e Maranhão: tráfico Nascimento
doenças e negreiro, doenças e 600
alimentação no mortalidades nas viagens (UERJ)
Mundo Atlântico atlânticas (1755-1778)" 13h-15h
3. Fernanda Ribeiro Rocha
Fagundes - “As práticas de
cura africanas, que
viajaram nas redes de
informações do Império
Ultramarino português:
final do século XVIII e
início do XIX"

1. Maria Gabriela de
Almeida Bernardino -
"Muito além da floresta: a
'aventura' de Francisco
Jaguaribe em pertencer ao
Escritório Central da
Comissão Rondon (1910-
1952)"
2. Renato da Silva Vicentini
- "René Ribeiro: a
05 trajetória do médico ao
antropólogo" Maria da Glória de
3. Sérgio Ribeiro de Almeida 17/10
Trajetórias e Oliveira (UFRRJ)
Marcondes - "Emílio
narrativas Rodrigué: um 402
biográficas psicoargonauta em 9h-11h
Salvador (1973-2000)"
4. Thaís Marcello de
Almeida - "Gênero e
História das Mulheres: a
trajetória acadêmica de
Ermelinda Lopes de
Vasconcellos na
Medicina"
5. Vanessa de Almeida
Moura - "Marialzira
Perestrello: relação entre
trajetória, Psicanálise e os
estudos de gêneros"

1. Rachel de Almeida Viana


- "Nas redes da
antropologia de Anthony
Leeds: sua construção a
06 partir de diferentes vozes"
2. Ana Paula Tavares 20/10
Teixeira - "A Segunda Ricardo Pimenta
Trajetórias do
Guerra e os irmãos 10º andar
Tempo Presente (IBICT)
Silberfeld: um breve 11h-13h
estudo sobre nome,
deslocamento e
identidade"
3. Gabriela Alves Miranda -
"Em plena Guerra Fria:
'Médicos brasileiros na
URSS': o relato de viagem
de Milton Lobato e sua
trajetória na militância
comunista"
4. Isabella Trindade Menezes
- "Pensando a formação de
jogadores como um
projeto familiar:
preliminares de narrativas
das mães de jogadores"

1. Diego Uliano Rocha -


"Panorama sobre a
imigração na República
Velha e a chegada dos
Finlandeses no Brasil"
2. Ticiana Santa Rita - "Artes
de curar em Iguassú: José
Entre viagens e Manoel e Joaquim Nery e
07 saberes o exercício da Farmácia 19/10
(1885 – 1937)" Heloisa Gesteira
401
3. Nara Maria de Paula (MAST/Unirio)
Tinoco - "A leitura de 9h-11h
bacharel e os processos de
ingresso na magistratura: o
caso de Francisco de
Sousa Guerra Araújo
Godinho (1785-1790)"
4. Renilson Beraldo -
"Viagens e encontros: a
ciência psiquiátrica em
trânsito (Paraná, 1930)"

1. Andrey Augusto Ribeiro


Santos - "'E se tudo que eu
puder ser for um cadáver
numa estrada iraquiana?':
uma análise sobre Guerra
ao Terror (2008)"
2. Guilherme Ferreira
Mariano Praça - "Cinema
Brasiliano: representações
08 dos debates sobre eugenia Monica Kornis 18/10
Cinema, Política e nos filmes O
Descobrimento do Brasil (CPDOC-FGV) 401
Diplomacia
(1937) e Argila (1942)" 9h-11h
3. Pablo Santos Ribeiro
Hernandez - "Walt Disney
e Orson Welles:
embaixadores da boa
vizinhança"
4. Renato Lopes Pessanha -
"O Nuevo Cine
Latinoamericano: uma
abordagem político-
estética"

1. Luiz Paulo da Silva Braga


- "A Telenovela Henrique Gusmão 19/10
História, Teatro e Saramandaia (1976) e o
09 Telenovelas nos Projeto Estético Político (UFRJ) 401
séculos XIX e XX de Dias Gomes"
2. Natasha Piedras - "O 15h-17h
Berço Do Herói: Dias
Gomes, teatro engajado e
censura"
3. Nádia Marcella Siqueira
Silva - "Martins Penna, o
teatro romântico e o ideal
de civilização
oitocentista"
4. Marcos André Pinto dos
Ramos "As telenovelas
como objeto e fonte
histórica"

1. Raphael Pavão Rodrigues


Coelho - "A discussão de
gênero no seio das forças
armadas: o caso de Maria
Quitéria"
2. Juliana Marques do
Nascimento - "Musas ou
heroínas? A construção da
figura da mulher militante
Imagens do na literatura 20/10
memorialística no pós- Livia Magalhães
Feminino - época
10 redemocratização" 402
moderna e (UFF)
3. Renata Lopes Marinho de
contemporânea Almeida - "A figura 13h-15h
feminina na França do
Século XVIII:
representação,
sociabilidade e trajetória"
4. Caio Cesar Soares Pereira
- “Feminino do samba:
Análises da representação
feminina no samba (1937-
1945)”

1. Julia Chequer - "Mulheres


na lavoura de cana-de-
açúcar"
2. Richard Kennedy
Nascimento Candido -
"Gênero e mundos do
trabalho: o caso das
trabalhadoras da fábrica de
roupas Amazonense e o 1o
de Maio de 1914 em
Manaus"
3. Isabelle Cristina S. Pires -
"Trabalho feminino em 16/10
História das fábricas de tecidos no
Mulheres: gênero, Renilda Barreto
11 Distrito Federal: questões 402
trabalho e sobre maternidade e (CEFET)
medicalização família (1899-1929)" 13h-15h
4. Paloma Gabriele Lobato -
“Falar sobre a mulher:
uma análise a partir de
teses de alunos da
Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro no final do
século XIX”
5. Larissa Velazquez de
Souza - "Humanização do
Parto no Brasil e
movimentos sociais: a
participação dos
movimentos de mulheres e
feministas em uma
perspectiva histórica"

1. Helen Miranda Nunes - "A


ditadura civil-militar e os
acordos nucleares Brasil-
EUA e Brasil-Alemanha
Ocidental"
2. Jorge Luis Gregorio de
Almeida - "Raízes,
conflitos e mudanças: a
participação da Academia
Militar das Agulhas
Negras no golpe militar de
1964" Paulo André Leira
História Militar: 3. Enio Martins - "Breves 18/10
Parente
narrativas e considerações sobre
12 ideologia nas Forças 10º andar
historiografia no pós (UNIRIO)
2ª Guerra Armadas entre 1961- 15h-17h
1964"
4. Sandro Gomes de Santos -
"Jacareacanga e
Aragarças: As revoltas
esquecidas na década de
1950 pela historiografia
brasileira"
5. Guilherme Leite Ribeiro -
"O impacto das frentes
parlamentares na crise
política do governo
presidencialista de João
Goulart"

1. Ronaldo Rodrigues
Coelho - "O Exército e o
Nacional
Desenvolvimentismo"
2. Antonio Modesto - "O fim
da aviação naval? tensões
político-militares nas
forças armadas no Estado
Novo"
3. Daniela Marques da Silva
- "A lei de promoções no 19/10
História Militar: Exército brasileiro de Vitor Izeckson
13 perspectivas 1850: o palco do debate 402
políticas parlamentar" (UFRJ)
4. Ricardo George Muller - 9h-11h
"A formação do Corpo de
Saúde da Armada segundo
a perspectiva comparada à
do Exército na Corte (1833
– 1890)"
5. Andressa Cristina de
Miranda do Carmo - "O
Golpe Civil-Militar de
1964 e o Impeachment do
governador Badger da
Silveira"

1. Antonio Carlos Higino da 17/10


Silva - “Do Embargo à Claudia Heynemann
História, Patrimônio Imperatriz à Criação do
14 10º andar
e Narrativas I Barão” (AN)
2. Iohana Brito de Freitas - 11h-13h
"Memórias da Escravidão
nas Fazendas Históricas
do Vale do Café"
3. Lorhan Lascolla de Sousa
- "Entre o ecletismo de
matriz francesa e uma arte
brasileira: Ernesto da
Cunha de Araújo Viana e a
valorização da arquitetura
colonial (1852-1920)"

1. Luana da Silva Oliveira -


"Folclore e patrimônio
imaterial no Rio de
Janeiro: reflexões a partir
da trajetória de Cáscia
Frade"
2. Jamile Silva Neto - "A
atuação de Rodrigo Melo
Franco de Andrade no
Conselho Consultivo do 18/10
História, Patrimônio SPHAN" Rui Aniceto
15 3. Letícia Freixo Pereira - "O 600
e Narrativas II (FFP/UERJ)
Museu da Imagem e do 11h-13h
Som do Rio de Janeiro e os
debates sobre a 'cultura
popular' brasileira das
décadas de 1960 e 1970"
4. Vandelir Camilo - "As
estratégias na criação de
um lugar de memória
religiosa Memorial
Cardeal Dom Lucas
Moreira Neves"

1. Gustavo Souza de Deus da


Silva - "Ngola Nzinga e a
Resistência à Colonização
Portuguesa"
2. Luciana Lucia da Silva -
"Interesses e expectativas
presentes no início das 20/10
História da África: relações entre os Silvio Lima
16 entre narrativas e portugueses e o reino do 402
resistências (UFF-Pádua)
Ndongo (século XVI)" 15h-17h
3. Giovanni Garcia
Mannarino - "Nação e
literatura na Nigéria: uma
análise a partir do
personagem Obi
Okonkwo de Chinua
Achebe"

1. Vanessa Alves Pinheiro -


"COOTRAM
(Cooperativa dos
Trabalhadores Autônomos
do Complexo de 16/10
Mundos do Manguinhos): uma Jean Rodrigues
17 Trabalho no Brasil proposta de Sales 402
Contemporâneo desenvolvimento
(UFRRJ) 15h-17h
econômico e social na
região de Manguinhos"
2. Fagno da Silva Soares -
"Escravidão
contemporânea no Brasil:
dilatações reflexivas e
conceituais entre trabalho
escravo e experiência
vivida"
3. Regiane Aparecida Costa
Nozaki - "Precisamos falar
sobre Mariana:
consequências da tragédia
da Samarco para o meio
ambiente e o mundo
trabalho"
4. Patrícia Costa de
Alcântara - "Soldados da
produção nas Juntas de
Conciliação: a batalha
institucional por direitos
em tempos de Guerra e
repressão"
5. Júlio Cézar Oliveira de
Souza - "A defesa de um
'capitalismo democrático'
pela ACRJ"

1. Pedro Henrique
Cavalcante de Medeiros -
"O discurso abolicionista
do presbiterianismo no
Brasil imperial"
2. Matheus Monteiro 19/10
Abolicionismos e Pedrosa - "O desmonte do Jonis Freire
18 antiescravismo no escravismo: Projetos 10º andar
Brasil oitocentista (UFF)
antiescravistas da década 15h-17h
de 1850 e o ambiente
internacional no início dos
anos de 1860"
3. Gabriel Santos Paixão -
“Protestantismo, Abolição
e imprensa evangélica”

1. Ramon Castellano Ferreira


- "Construções Alegóricas
e Dramatização da
Natureza n’O Guesa"
2. Mônica Meneses Carneiro
Corrêa - "História e Divina
Providência nos escritos
de Joaquim Caetano
Fernandes Pinheiro (1859-
1876)" Ana Carolina 19/10
História e Literatura 3. Andréa Camila de Faria
19 nos séculos XIX e Huguenin Pereira 10º andar
Fernandes - “'A fabricação
XX do imortal' e o projeto de (FFP-UERJ) 9h-11h
uma biografia intelectual
do poeta Antonio
Gonçalves Dias"
4. Raick de Jesus Souza -
"Aluísio de Azevedo e o
darwinismo"
5. Roberto Cesar Silva de
Azevedo - "Delírio, amor
e loucura em O filho do
pescador (1843)"

História e 1. Tatiana de Souza Castro - Marcos Bretas 20/10


20 criminalidade no "A população carioca e o 402
Rio de Janeiro acesso à justiça: os habeas- (UFRJ)
corpus originários no STF
(1920-1926)" 9h-11h
2. Avelina Addor - "O crime
organizado no rio de
janeiro: principais
facções"
3. Rodrigo Maia Monteiro -
"Elysio de Carvalho, o
Boletim Policial e o
Controle do Corpo no
início do Século XX no
Brasil (1907-1918)"
4. André Luís de Almeida
Patrasso - "A
criminalidade carioca nas
reflexões de Elysio de
Carvalho"
5. Natália Batista Peçanha -
"A criminalização do
serviço doméstico. Rio de
Janeiro (1880-1930)"

1. Rita de Kasia Andrade


Amaral - "Casa de
Correção da Corte entre o
congregate e separate
system: Os escravos nos
debates médicos sobre a
disciplina prisional"
2. Pedro Henrique Ferreira
Danese - "Terra de sangue:
crimes cometidos por
lavradores internados no
Manicômio Judiciário de 19/10
Medicina e Justiça: Barbacena" Allister Dias
21 saberes e 3. Rodolfo Souza Tavares - 402
institucionalização (FIOCRUZ)
"Discursos médicos sobre 11h-13h
a homossexualidade
masculina no Rio de
Janeiro e Bahia (1890-
1910): os olhares de José
Ricardo Pires de Almeida
e Domingos Firmino
Pinheiro"
4. Carine Neves Alves da
Silva - "Corpos e
comportamentos
desviantes nos discursos e
práticas médicas"

1. Vanessa Oliveira Benedito


- "Percepções da prisão:
análise sobre como é
percebida a convivência
entre presos políticos e
presos comuns
enquadrados na Lei de 18/10
Polícia, Poder e Segurança Nacional no Gonçalo Gonçalves
22 Instituto Penal Cândido 10º andar
Justiça no Brasil (UNIRIO)
Mendes entre 1969 e 9h-11h
1975"
2. Elizabeth Santos de Souza
- "'Lá no acervo da Casa da
Suplicação do Brasil': usos
e potencialidades do livro
expedição de ordens (1808
– 1833)"
3. Laura Oliveira Motta -
"Entre a ordem e o medo:
a utilização da Guarda
Nacional no policiamento
do Rio de Janeiro (1831-
1840)"
4. Joice de Souza Soares -
"Para além de uma
instituição: a polícia do
Antigo Regime e sua
[re]criação no Rio de
Janeiro oitocentista"

1. Cristiano da Silva Moreira


- "Para além da Marcha da
Vitória: Estudo de caso
sobre a 'Marcha da
Família' realizada no
município de Niterói em
maio de 1964"
2. Peter Sana - "Movimentos
sociais e Igreja na Baixada
Fluminense após o Golpe Alejandra Estevez 19/10
Igreja Católica e a Militar de 1964"
23 Ditadura Civil- (CPDOC) 10º andar
3. Fabiano Dias Azevedo -
Militar "A articulação entre 13h-15h
política e religiosidade no
pensamento de Frei Betto"
4. Bárbara Geromel
Campanholo - "O exílio
latino-americano no
Brasil: o papel
desempenhado pela Igreja
Católica através da
Arquidiocese do Rio de
Janeiro"

1. Caroline dos Santos Souza


- "O reaparecimento da
floresta dentro da favela: a
favela e a recuperação
ambiental executada pelo
Mutirão de
Reflorestamento (1986-
2009)"
2. Leonardo de Bem Lignani
- "A trajetória de
Waldemar Ferreira de
Almeida e a toxicologia de
agrotóxicos: ciência, Ana Maria de 16/10
A questão ambiental ambientalismo e agências Almeida
24 internacionais de saúde 401
no Brasil
(1939-1991)" (FFP-UERJ) 13h-15h
3. Vinicius Santos da Silva -
"Um Breve Levantamento
Documental e
Historiográfico sobre o
Envolvimento de
Instituições Imperiais no
Caso da Moléstia da Cana
na Província da Bahia
(1866-1872)"
4. Erika Marques de
Carvalho - “'Para
construir-se a
Transamazônica será
preciso sanear o ambiente
e curar o homem': as
políticas médico-sanitárias
do governo Médici na BR-
230 (1970-74)"
5. Vânia Regina Camara
Campelo - "História,
saúde e ambiente: o
controle do tabagismo
como problema
ambiental"

1. Aden Assunção
Lamounier - "Vozes
Dissonantes na Grande
Imprensa Carioca: José
Oiticica como colunista do
Correio da Manhã (1921-
1927)"
2. Bruno de Lino Mendes -
"Visões do jornal O Paiz
sobre a greve geral e a
insurreição anarquista de
1918"
3. Maria de Fátima de Morais 19/10
Imprensa e Pinho - “'Vem à cena o
Militância Felipe Ribeiro
25 célebre Padre Cícero': 600
Anarquista no Brasil Publicações do jornal (UFRRJ)
República anarquista e anticlerical A 11h-13h
Lanterna (SP)"
4. Bruno Corrêa de Sá e
Benevides - "O
anarquismo sem adjetivo:
a trajetória libertária de
Angelo Bandoni entre
propaganda e educação"
5. Carlos Rafael Dias -
"Liberdade, irreverência,
resistência e contestação: a
poesia libertária de Zé de
Matos e Patativa do
Assaré"

1. Juliene dalle Tardeli Cruz


- "O Meio Ambiente como
Patrimônio: percursos
históricos e o tombamento
do litoral fluminense"
2. Josefa Jandira Neto
Ferreira Dias -
"INQUICE: Indício
arqueológico de 20/10
Patrimônio, Territorialidade Banto no Camilla Agostini
26 Arqueologia e Território da Cidade do 600
Turismo Rio de Janeiro?" (UERJ)
3. Paula Cresciulo de 9h-11h
Almeida - "O Rio de
Janeiro se prepara para o
Turismo (1930-1935)"
4. Aiúba Ali Aiúba - "O
macuti como expressão da
identidade sociocultural da
Ilha de Moçambique: um
estudo dos bairros de
Litine e Esteu, 1991-2006"
1. Carolina de Toledo Braga
- "Viúvas nos anúncios de
jornal em meados do
Oitocentos na província de
Pernambuco (1842-1848)"
2. Ana Carolina de Azevedo 17/10
Escritos Femininos Guedes - "Metáfora e Magali Engel
27 e Representações da projetos literários com 600
Mulher Virginia Woolf (1910- (UERJ)
1941)" 13h-15h
3. Amanda Maia Vannucci -
"Palavra e revolução: a
produção literária de
Gioconda Belli na
Nicarágua sandinista
(1970-1990)"

1. Adriana de Souza
Carvalho - “Macau e a
ação jesuítica nos séculos
XVI e XVII: Identidade
territorial e práticas
culturais na China”
2. Rozely Menezes Vigas
Oliveira - “As ‘Aves
Ilustradas’ do Oriente: as
estruturas hierárquicas no
Convento de Santa
Mônica de Goa” 20/10
3. Daniela Rabelo Costa Silvia Patuzzi
28 600
Igreja, Mulheres e Ribeiro Paiva - “As (UFF)
Sociedade na Época procissões na Lisboa dos 11h-13h
Moderna séculos XVI e XVII:
Poder, Sociedade e
Cultura”
4. Luciana Nogueira da Silva
- “'Flores' para o Reino.
Relações de Vida e
Exemplaridade Feminina
em Agostinho de Santa
Maria (Portugal do século
XVIII)"

1. Diego Santos Barbosa -


"Uma breve análise sobre
irmandades religiosas no
Rio de Janeiro do século
XVIII: entre identidades e
devoções"
2. Glícia Caldas Gonçalves
da Silva - "Misteriosos
caminhos: religiosidades e 19/10
Religiosidade e práticas de curas populares Andre Nogueira
29 Práticas Afro- na Primeira República 600
Brasileira (FIOCRUZ)
(1890- 1920)" 9h-11h
3. Ione Maria do Carmo -
"Práticas culturais afro-
brasileiras e pertença
evangélica no quilombo da
Rasa"
4. Elaine Cristina Ventura
Ferreira - "Poder e
Narrativas: as abordagens
intelectuais acerca do
candomblé nagô e as
formas de apropriações
religiosas década (1930)"

1. Leda Agnes Simões de


Melo - "Os semiáridos
argentinos e brasileiros na
narrativa da imprensa
nacional: um estudo sobre
as secas do Ceará e de
Santiago del Estero (1932-
1937)"
2. Raimundo Alves Araújo -
"A província do Ceará
antes da afirmação do
Estado nacional (século
XIX)" 18/10
Memória, Narrativas 3. Rodrigo Sampaio Pinto - Maria Eliza
30 e Trajetórias dos "Fatores de atração e a Noronha de Sá 10º andar
Sertões construção de identidade:
(PUC-RIO) 13h-15h
Retirantes nordestinos em
Duque de Caxias (1940 –
1960)"
4. Ana Caroline Matias
Alencar - "A cultura
popular em verso relida
pelo Jornal do Sertão
(1970)"
5. Camila de Sousa Freire -
"História, Identidade e
Memória: o Instituto do
Ceará e a construção da
'Terra da Luz' (1884-
1956)"

1. Clarissa de Souza Oliveira


Godoy - "Produção ou
Reprodução? O diálogo
entre mídia e feminismos
no seriado Malu Mulher
(1979/1980)"
2. Camilla Leal - “'Uma nova
mulher': saúde e gênero
nas revistas Claudia e
Nova (1970-1979)" 18/10
3. Camila Carreira Alves Joelle Rouchou
31 Gênero e periódicos Baptista - "Coming out in 402
(FCRB)
america: a one magazine 11h-13h
na construção do
movimento LGBTQ
estadunidense (1953-
1968)"
4. Ingrid Souza Ladeira de
Souza - "O
anticlericalismo nas
páginas do periódico La
voz de la mujer (Buenos
Aires, (1986-1897)"

Espionagem e 1. Diego da Silva Ramos - "O


'Espião Nazista' Flávio Limoncic 19/10
Totalitarismo no
32 Raymundo Padilha" 10º andar
Contexto das (UNIRIO)
Grandes Guerras 2. Bruna Baliza dos Santos
Doimo - "Povo e Raça: a
questão racial por trás do 11h-13h
discurso sobre alemães
étnicos na obra de Adolf
Hitler"
3. Vinícius da Silva Ramos -
"O Estrangeiro e O
Esperado como retratos da
vida política de Plínio
Salgado"
4. Raquel Anne Lima de
Assis - "A resistência
contra ataca: os serviços
de espionagem anglo-
americano na ii guerra
mundial em perspectiva
comparada"

1. Carolina da Costa de
Carvalho - "Psicanalistas,
católicos e os manuais de
educação sexual (Brasil,
década de 1950)"
2. Ede Conceição Bispo 16/10
Cerqueira - "Em busca de Juliana Manzoni
Saberes Psi em uma 'Psiquiatria Latino-
33 401
Perspectiva Americana': Projetos e (FIOCRUZ)
propostas (1939-1970)" 15h-17h
3. Giulia Engel Accorsi -
"Unindo o físico e o
mental: a história da
paralisia geral progressiva
no Hospício Nacional de
Alienados (1883-1960)"

1. Adriana Branco Correia


Souto - "O Departamento
Nacional de Obras e
Saneamento e o problema
das 'Baixadas' no Estado
Gabriel Lopes
Rio de Janeiro, 1933-
Araújo 18/10
1960"
Saúde, Ciência e 2. Luiz Alves Araújo Neto -
34 Instituições sob o (FIOCRUZ) 402
"Prevenção do câncer no
Olhar da História Brasil: apontamentos 13h-15h
históricos e
historiográficos"
3. Katherine Nunes de
Azevedo - "A criação do
Ministério de Ciência e
Tecnologia e o Debate
Nacional de 1985"

1. Olivier Nicolas Ronald


François Bodart -
“Diplomacia do café e
pragmatismo: a política
externa brasileira nas 20/10
Diplomacia e Brasil mãos das forças políticas Rodrigo Goyena
35 como Estado-nação domésticas (1894-1905)" 401
2. Leonardo Vieira de (UNIRIO)
Oliveira - "O fardo 9h-11h
pacificador: as
intervenções joaninas na
Banda Oriental e o
discurso civilizatório do
Império"
3. Bruno Pereira de Lima
Aranha - "O problema
fronteiriço e as relações
Brasil-Argentina entre o
final do Império e o início
da República"
4. Luan Mendes de Medeiros
Siqueira - "Um tratado
definitivo? Uma breve
análise da convenção
preliminar de paz"
5. Lucas Alves Firme
Carneiro "A Rússia no
Brasil do início do século
XX: a expedição de 1914-
1915"

1. Matheus Pimentel da Silva


Topine - "Uma dança de
significados: o maxixe da
Casa Edison e a
construção social dos
gêneros musicais"
2. João Luiz Garcia
Guimarães - “'Efeitos da
Música': Terapia Musical 17/10
Culturas e e Cultura da Sensibilidade Daniel Pinha
36 sensibilidades no século XVIII (1750 - 600
(séculos XVIII-XX) 1789)" (UERJ)
3. Luiz Gustavo da Costa 15h-17h
Araújo - “Contemplando o
Monumento Contínuo:
reflexões sobre a obra do
Superstudio”
4. José Roberto Silvestre
Saiol - "Reconfigurando o
ofício do ilustrador:
automodelação em J. J.
Grandville"

1. Renata da Conceição
Aquino da Silva - "Ensino
de história e publicização
do mundo"
2. Renan Rubim Caldas - "O 19/10
antimovimento social Maria Aparecida
37 Ensino de História I 'Escola Sem Partido' e a Cabral 402
negação da produção de
(FFP-UERJ) 15h-17h
subjetividades nos espaços
públicos"
3. Diogo da Costa Salles - "O
Movimento 'Escola Sem
Partido' e as disputas pela
neutralidade da educação"

1. Valdenora de Oliveira
Rufino Owerney -
"Família Gonçalves Ricardo Cabral de
Martins: política, riqueza, 16/10
Famílias e Freitas
redes de sociabilidades e
38 sociabilidades no escravidão no vale do 600
(FIOCRUZ)
Brasil Oitocentista paraíba fluminense na 13h-15h
resende do século XIX"
2. Tiago de Castro Braga -
"Família e sociabilidades:
os Garcia de Mattos em
São Paulo do Muriahé na
segunda metade do século
XIX"
3. Vladimir Honorato de
Paula - "(...) 'para
principiarem suas vidas
(...)': um estudo das fontes
de pesquisa sobre a prática
do dote numa antiga vila
da província do Rio de
Janeiro (1835-1850)"

1. Cássio Ricardo Hipólito


da Silva Campos - “‘Um
órgão esdrúxulo’: a
comissão de urbanização
de Araruama no período
liberal democrático (1945-
1964)"
2. Luiza de Cavalcanti
Azeredo Ferreira - "O
PUB-Rio e a formação da
Secretaria Municipal de
Planejamento do RJ: o
federal e o local na política
carioca dos anos 1970"
3. José Luís Honorato Lessa
Urbanização e - "A modernização 16/10
discurso político no econômico-industrial do Lucia Silva
39 Rio de Janeiro na Estado do Rio de Janeiro 600
segunda metade do (UFRRJ)
nas falas do Amaral 15h-17h
século XX
Peixoto – uma análise
preliminar"
4. Rafael Navarro Costa -
“'Estado do Rio de Janeiro
no Governo Ernani do
Amaral Peixoto': uma
análise da construção da
memória política
amaralista (1951-1954)"
5. Nathalia Pacheco Heringer
- “Francisco Negrão de
Lima e as favelas da
Guanabara: entre o
discurso da urbanização e
a prática da remoção
(1965-1971)”

1. Guilherme dos Santos


Cavotti Marques - "Para o
bom acolher, reformas! A
Hospedaria de Imigrantes 17/10
Território e Anita Correia de
da Ilha das Flores entre os Lima Almeida
40 urbanização no Rio anos 1942-1952" 401
de Janeiro 2. Thiago Vinicius (UNIRIO) 9h-11h
Mantuano da Fonseca -
"Uma Jóia Encravada na
Mais Vasta e Bela Baía do
Hemisfério Sul A Ilha das
Enxadas Sob Domínio da
Família Lage (1823-
1882)"
3. Mariana Barbosa Carvalho
da Costa - "Dos negócios
da habitação à Rocinha:
ocupação e formação do
território durante as três
primeiras décadas do
século XX"
4. Marcus Vinicius Macri
Rodrigues - "'O bairro que
era nobre, hoje é um bairro
pobre, não passa de um
plebeu.' O impacto da
presença e da ausência da
Presidência da República
no bairro do Catete (RJ):
uma discussão sobre
capitalidade e
divertimento na região"
5. Mylene Soraya da Silva
Ferreira - "Rio de Janeiro:
Aspectos de sua
Modernidade"

1. Thiago Henrique Pereira


Ribeiro - "Ameaças aos
Deuses Egípcios em
Encantamentos: uma
proposta de análise e
compreensão"
2. Mariana Figueiredo
Virgolino - "Jogos
Vorazes: Areté, Tiranias e
Competições Atléticas na
Representações, 17/10
Grécia Antiga"
experiências e André Chevitarese
41 3. Cynthia Alves de Oliveira 600
práticas culturais do - "Tradições narrativas e (UFRJ)
Mundo Antigo 9h-11h
experiência pessoal em
Amiano Marcelino: uma
proposta de análise das
digressões
etnogeográficas nas Res
Gestae"
4. Fernanda Chamarelli de
Oliveira - “Candaces: o
lugar social da mulher no
reino Kush entre os
séculos II A.C e IV D.C”

1. Regiane Matos - “O
20/10
Americanismo e as
Intelectuais no Robert Wegner
42 dificuldades dos homens 402
Brasil das letras na (FIOCRUZ)
correspondência entre 11h-13h
Mário de Andrade (1893-
1945) e Francisco Curt
Lange (1903-1997)”
2. Antonio Maureni Vaz
Verçosa de Melo -
"Mapeando território:
atuação dos intelectuais na
Era Vargas no Piauí, 1930-
1945"
3. Ana Carolina Borges -
"Notas para um estudo de
controvérsias intelectuais:
o debate entre Caetano
Veloso e Roberto
Schwarz"
4. Antonio Helonis Borges
Brandão - "De movimento
cultural a cânone
brasileiro. As entidades
representativas dos poetas
e a institucionalização do
'popular' na literatura de
cordel"
5. Fabiana Rodrigues Dias -
“Literatura, pátria e nação:
Apontamentos acerca de
Gonçalves de Magalhães e
seu Ensaio sobre a História
da Literatura do Brasil”

1. Caroline Amorim Gil -


"Uma nova cidade e
velhas práticas – A difusão
de amas de leite na capital
republicana (1900-1910)"
2. Letícia Conde Moraes
Cosati - "Entre os
costumes coloniais e os
discursos modernizadores:
as amas de leite no
Discursos e políticos imaginário social" 17/10
sociais sobre 3. Lívia Freitas Pinto Silva Karoline Carula
43 infância e Soares - “'Futuro da nação 401
maternidade no (UERJ)
ou pequenas sementes do 13h-15h
Brasil
mal'? O cotidiano da
infância proletária nas
páginas da imprensa
carioca (1901-1907)"
4. Lidiane Monteiro Ribeiro
- "Continuidades e
descontinuidades da
política social materno-
infantil na Era Vargas: a
Campanha da Redenção
da Criança"

Escrita(s) da 1. Heliana de Jesus Machado


44 Francine Iegelski 17/10 401
História - "Os tempos do
movimento slow e as (UFF)
políticas do tempo no
15h-17h
regime presentista. Outros
tempos, novos desafios"
2. Daniel de Souza Sales
Borges - "Processo
histórico e experiência de
classe: uma abordagem
sobre a reforna agrária
chilena a partir de
Thompson (1967-1973)"
3. Raphael Rajão Ribeiro -
"Futebol de várzea: um
balanço da produção das
Ciências Humanas"

1. Cindye Esquivel Vieira -


"Uma problemática para o
historiador: as fontes
poéticas"
2. Marcela de Oliveira
Santos Silva - "Hitler
biografado: Aspectos
teóricos e Metodológicos
para a análise da escrita
biográfica"
3. Nathan Pereira Barbosa -
"O papel das biografias na
Eduardo Ferraz
construção, atualização, 18/10
Teoria e Felipe
apropriação e disputa da
45 Metodologia da memória do “Rei Pelé”: 402
(UERJ)
História algumas possibilidades de 9h-11h
pesquisa"
4. Juliana Timbó Martins -
"Charles Perrault e a
questão da esfera pública
durante a Querela dos
Antigos e dos Modernos"
5. Thayenne Roberta
Nascimento Paiva -
"L'honneur ou au travail?
Visões antagônicas entre
Diderot e Voltaire sobre a
República das Letras
francesa"

1. Tatiane Santos de Souza -


“Identidade e Memória: a
perspectiva de
Maimônides sobre as 17/10
conversões obrigatórias ao Yllan de Mattos
46 Mundos Ibéricos e Islã (séc. XVII)” 402
(UFRRJ)
Práticas Políticas 2. Natally Chris da Rocha 13h-15h
Menini - “Das prisões à
colônia: o degredo de
ciganos na América
Portuguesa”
3. André Luis Cardoso
Azoubel Zulli - “A
construção da polícia
portuguesa (1760-1807)”
4. Lorena Gouvêa de Araújo
"O feminino no estudo de
Huarochirí"

1. Jessica Gabrielle de Souza


- “Narrativas docentes:
Representações da
América Portuguesa e
usos do livro didático”
2. Eduarda Daudt da Silva -
17/10
“Narrativas históricas e
Ensino de Ynaê Santos
47 ficcionais em diálogo: o 401
Historiadores uso de literaturas africanas (CPDOC-FGV)
e suas contribuições ao 11-13h
ensino de história e à
aprendizagem temporal”
3. Leon Neves Guimarães -
“Tempo e Temporalidade
nas aulas de História para
o ensino médio”

1. Carlos Roberto Carvalho


Daróz - “Combatendo nas
páginas dos jornais - a
propaganda durante a
guerra civil paulista de
1932”
2. Leila Nascimento Santos
Braz - “A reação popular
ao afundamento dos
navios brasileiros em 1942
durante a Segunda Guerra,
segundo a imprensa”
3. Cláudio Márcio Lima
Prado - “Entre linotipos e
Maria Letícia 20/10
editoriais: o conflito
Imprensa e israelo-palestino e a guerra Corrêa
48 10º andar
Conflitos de opinião pública na
(UERJ) 9h-11h
mídia impressa brasileira -
Folha de São Paulo, O
Globo, Veja e Cadernos do
Terceiro Mundo - da
Guerra dos Seis Dias à
Primeira Intifada - 1967-
1987”
4. Ana Lucia Vaz - “Controle
da informação para além
da censura: análise da
cobertura das bombas no
Riocentro, 1981”
5. Felipe Castanho Ribeiro -
“O Distrito Federal em
guerra: mobilização do
front interno pelo Governo
Provisório durante a
Guerra de 1932”

1. Paulo Roberto Carneiro


Pontes - “Um Socialismo à
Carioca: análise do
conceito de ‘Progresso’
nas páginas do periódico O
Globo (1844)”
2. Cássia Regina da S.
Rodrigues de Souza -
“Manuais autoinstrutivos:
aspectos gerais: aspectos
gerais, circulação e
Silvia Carla Pereira
práticas de leitura nos 18/10
de Brito Fonseca
séculos XIX e XX”
49 Imprensa e Política 3. Gilciano Menezes Costa - 600
(UNIRIO)
“Republicanismo, 13h-15h
Abolição e Pós-Abolição
na Imprensa de Itaboraí
(1886-1918)”
4. Lourdes de Almeida
Barreto Belchior -
“Palavras impressas:
notícias sobre D.
Leopoldina nos jornais
brasileiros, início do
século XIX, momentos
anteriores à sua vinda para
o Brasil”

1. Igor Estevam Santos de


Oliveira - “Entre o popular
e a elite política, o
associativismo recreativo
de setores médios e
carnaval popular em Santa
Cruz (1880-1920)”
2. Daiana Maciel Areas - “O
discurso do Dono – Marca
jornalística do Correio da
Cláudio Antônio
Imprensa, cultura Manhã” 17/10
Santos Monteiro
popular e Sociedade 3. Maria Lúcia Bezerra da
50 Silva Alexandre - “Entre a 600
no Brasil (FFP-UERJ)
republicano Lavoura e a Locomotiva: 11h-13h
as transformações de uma
cidade a partir da imprensa
(Nova Iguaçu - 1957-
1961)”
4. Eduardo Emilio Maurell
Muller Neto - “O meu
samba está de luto: a
narrativa da imprensa
carioca sobre a morte dos
compositores populares
Sinhô e Noel Rosa”
5. Flávia Maria Zanon
Baptistini - “Livrarias,
memória e identidade: a
importação de livros no
Brasil e a trajetória da
Livraria Leonardo da
Vinci no Rio de Janeiro”

1. Júlio Cesar de Souza Dória


- “Associativismo negro
na virada do século: Rio de
Janeiro e o Pós-Abolição”
2. Caroline Moreira Vieira
Dantas - “Um cantor negro
nas ondas do rádio:
identidades e tensões
Estratégias e raciais (1926-1950)” 18/10
3. Geisimara Soares Matos - Álvaro Pereira do
experiências negras:
51 “Experiência negra no Nascimento 600
o pós-abolição no
pós-abolição: Eduardo (UFRRJ)
Brasil 9h-11h
Gonçalves Ribeiro, o
governador negro no
Amazonas (1862-1900)”
4. José Manuel Faria -
“Afirmação de uma
identidade negra das
páginas do periódico
Quilombo e a influência
dos ‘poetas da négritude’”

1. Dermeval Marins de
Freitas - “Estrutura de
Posse de Cativos no
distrito da Vila de Santo
Antônio de Sá (1797)”
2. Rubens da Mota Machado
- “A formação do vínculo
de Morgadio nos bens da
família Azeredo Coutinho
e as suas redes políticas”
3. Felipe Tito Cesar Neto -
Sociabilidades “Práticas de Bem Morrer e 20/10
Carlos Eduardo
negras e relações de Relações de Poder - Coutinho da Costa
52 Mariana, Minas Gerais (C. 901
poder no mundo
escravo 1742 - C. 1751)” (UFRRJ) 9h-11h
4. Carlos Jarenkow - “As
fugas de escravos no Rio
Grande do Sul - uma
análise a partir dos
inventários post-mortem
(séc. XIX)”
5. Amanda Bastos da Silva -
“As diversas faces de São
Domingos: conflitos,
possibilidades e
contradições (1789-
1815)”
1. Pedro Henrique
Guimarães Teixeira Alves
- “O crescimento dos
batistas brasileiros pela via
institucional (1882-1926)”
2. Idauro de Oliveira
20/10
Campos Júnior - “A Fé
Protestantismo no Paulo Cesar Gomes
53 Protestante no Brasil: 901
Brasil tipologias e inserção do (UFRJ)
Protestantismo no Brasil” 13h-15h
3. Érika Maria de Araújo
Pessanha - “Somos mais
de um milhão: as
estratégias de
evangelização de jovens
no youtube”

1. Flávia Silva Barros


Ximenes - “O bom vassalo
nasce no coração do rei:
Juan de Palafox e sua
visão de Monarquia”
2. Julio do Carmo Mouco -
“Transações e arrecadação
real no Pacífico Espanhol
(1526-1609): os autos de
bens de defuntos no 17/10
Mundo coloniais: translado Ístmico” Jorge Victor
54 3. Estevão Barbosa 402
Península Ibérica (UFRJ)
Damacena - “A 15h-17h
centralidade do Rio de
Janeiro na preservação do
Império Português no
século XVIII”
4. Michelle Samuel da Silva
- “Normas e práticas
políticas na capitania de
Pernambuco: governo
geral e poder local (século
XVII)”

1. Alessandro Mendonça dos


Reis - “Colonização
africana sim, tráfico de
escravos não: o debate
sobre a colonização
africana na província do
18/10
Tráfico e Rio de Janeiro, 1854 a
Thiago Campos
55 Escravismo no 1860” 10º andar
Brasil 2. Ingrid Silva Lucas - “O (UFF)
‘problema’ negro: 11h-13h
contexto e pensamento
varnhageniano em relação
à escravidão africana em
História Geral do Brasil”
3. João Marcos Mesquita -
“O comércio ilegal de
escravos através de
Manuel Pinto da Fonseca
(1835-1853)”
4. Juliana Santos de Lima -
“Tornar-se africano livre:
uma condição jurídica é
capaz de homogeneizar
um grupo?”

1. Vitor Hugo Monteiro


Franco - “Escravos da
Religião: família e
comunidade na Fazenda
São Bento do Iguaçu
(1817-1857)”
2. Fábio Francisco dos
16/10
Santos - “Batismo e
Mariana Muaze
56 Família escrava ilegitimidade na freguesia 10º andar
de Macaé nas primeiras (UNIRIO)
décadas do século XIX” 15h-17h
3. Janaína Christina Perrayon
Lopes - “Dos números aos
nomes: as testemunhas de
casamento de escravos e
forros da freguesia da
Candelária - RJ, c. 1750- c.
1850”

1. Leonardo Dallacqua de
Carvalho - “‘Bons intuitos
não bastam’: críticas de
Belisário Penna ao
republicanismo brasileiro”
2. Elion de Souza Campos -
Ideias republicanas “Discursos Federalistas no 20/10
no Brasil Brasil: os Paulo Terra
57 desenvolvimentos 600
oitocentista e (UFF)
Primeira República intelectuais de uma ideia 13h-15h
(1860-1914)”
3. Mariana Nunes de
Carvalho - “As diversas
repúblicas: discursos
republicanos circulantes
na imprensa de oposição
entre os anos 1875 e 1877”

1. Christiane de Roode
Torres - “Sistemas e redes
de atenção à saúde no
Brasil: seu processo de 19/10
construção e heranças
Políticas Públicas de Rômulo Andrade
58 político-institucionais 402
Saúde (1950-1990)” (FIOCRUZ) 13h-15h
2. Denis Guedes Jogas Junior
- “Construindo a
cartografia sul-americana
das leishmanioses:
circulação de saberes e
clivagens em perspectiva
transnacional”
3. Clarice Oliveira
Nepomuceno -
“Diplomacia Brasileira e
Saúde Global”
4. Fernando Moreira de Sá
Brito - “Um olhar sobre a
história da saúde
internacional no Brasil: as
ações do Ministério da
Saúde na segunda metade
do século XX”

1. Ricardo Cabral de Freitas -


“Antes da febre amarela:
os estudos sobre as febres
do Rio de Janeiro na
primeira metade do
Oitocentos”
2. Avohanne Isabelle Costa
de Araújo - “‘Velar pelo
Tania Pimenta 17/10
aformoseamento e
Vida urbana no saneamento’: ações de
59 (FIOCRUZ) 10º andar
Brasil imperial limpeza no espaço público
da Cidade do Natal, 9h-11h
segunda metade do século
XIX”
3. Mirian Cristina Siqueira
de Cristo - “Criação da
Freguesia de Nossa
Senhora Imaculada
Conceição do Porto das
Caxias (1844-1856)”

1. Fernanda Silva de Freitas -


“As políticas públicas de
saúde no Brasil: o saber
higienista e a loucura
feminina (1930-1940)”
2. Mônica Cristina de
Moraes - “Entre perdas e
ganhos: a administração
20/10
Ciência e assistência do Hospital Nacional de
Pedro Muñoz
60 psiquiátrica no Alienados e as 401
Brasil transformações da Seção- (FIOCRUZ)
lazareto” 11h-13h
3. Jeanine Ribeiro Claper -
“A institucionalização da
loucura no fim do século
XIX e início do XX: o
contexto da assistência ao
alienado na concepção da
colônia agrícola na cidade
do Rio de Janeiro”
1. Renata Soares da Costa
Santos - “Os hospitais do
Instituto Oswaldo Cruz:
experiências terapêuticas e
ensaios de protocolos
clínicos”
2. Filipe dos Santos Portugal
- “‘As funestas
consequências da Vacina’:
uma obra contra a vacina
18/10
História das doenças antivariólica no Império
Luiz Otávio
61 e Práticas Português no início do 402
terapêuticas XIX” (FIOCRUZ)
3. Eliza Teixeira de Toledo - 15h-17h
“‘Operando o cérebro’: a
psicocirurgia em
periódicos da grande
mídia no Brasil nas
décadas de 1940-1950”
4. Rodrigo Ramos Lima -
“Uma terapia esquecida: a
opoterapia e os debates
endocriminológicos -
1931-1938”

1. Reynaldo José Loio Alves


- “Anorexia Nervosa:
representação do corpo
anoréxico na abordagem
sociocultural da doença”
2. Eliza da Silva Vianna -
“‘Eu tinha um marido só’:
casamento como valor na
experiência de mulheres
soropositivas (1990)”
19/10
História das 3. Danielle Souza Fialho da
Flávio Edler
62 doenças: gênero e Silva - “A experiência da 401
sexualidade doença dos pacientes com (FIOCRUZ)
fibromialgia e síndrome 13h-15h
pós-poliomielite”
4. Ana Cláudia Teixeira de
Lima - “ Câncer Gay e o
Orgulho Gay: as
representações sociais da
AIDS e a organização da
comunidade gay em
resposta à doença na
cidade do Rio de Janeiro
(1990-2000)”

1. Ramon Feliphe Souza -


Circulação de “Do clima sadio ao sertão Marta Almeida 18/10
ideias, higienismo e doente: o discurso do
63 regionalismos: uma higienismo em (MAST/ 401
história da saúde no Diamantina no final do
Brasil República UNIRIO) 11h-13h
século XIX e início do
XX”
2. Romão Moura de Araújo -
“‘Não existe sequer um
simulacro’: a saúde
pública no estado do Piauí
entre as décadas de 1910 e
1920”
3. Laila Pedrosa da Silva -
“O Piauí nas exposições
do início do século XX:
circulação de ideias e
modernização”
4. Mariza Pinheiro Bezerra -
“‘A saudação da classe
médica maranhense ao
hóspede ilustre’: a
passagem de Oswaldo
Cruz por São Luís do
Maranhão (1905)”

1. Harumi Matsumoto - “A
institucionalização da
Policlínica de Botafogo
(1900-1935): a difusão do
modelo de dispensário
europeu na cidade do Rio
de Janeiro”
2. Lucas Lolli Vieira - “A
Corporação dos Médicos
Católicos e a assistência
aos trabalhadores pobres
16/10
em Belo Horizonte (1936-
História da Renato Franco 10º andar
64 1964)”
Assistência 3. Daiane Silveira Rossi - (UFF)
“Reflexões sobre os 13h-15h
pobres e os trabalhadores
do Hospital de Caridade de
Santa Maria/RS no início
do século XX”
4. Elizabete Vianna
Delamarque - “A
assistência à saúde na
capital da Província do Rio
de Janeiro: a Casa de
Saúde Niteroiense (1858-
1969)”

1. Luaia da Silva Rodrigues -


“O conservadorismo na
formação do Estado
Weder Ferreira 18/10
O processo de brasileiro: aproximações e
65 construção do afastamentos entre o (UFRRJ) 401
Estado Brasileiro pensamento político do
Marquês de Caravelas e de 13h-15h
Bernardo Pereira e de
Bernardo Pereira de
Vasconcelos”
2. Guilherme de Mattos
Gründling - “Política e
Sociabilidade no Século
XIX: a relação entre o
Visconde de Pelotas e o
Marquês do Herval”
3. Verônica Rocha da Silva -
“A Cultura Bandeirante
em meio as Brasilianas: a
obra Folclore dos
Bandeirantes como parte
da Coleção Documentos
Brasileiros (1946)”

1. Maicon Maurício
Vasconcelos Ferreira -
“Contra a Ditadura e pelo
Socialismo: A luta armada
em Pernambuco (1968-
1973)”
2. José Aírton de Farias - 19/10
“Pavilhão Sete:
experiências dos
militantes de esquerda
Militância e Dulce Pandolfi 11h-13h
66 armada nos cárceres 401
Democracia cearenses (1971-79)” (CPDOC-FGV)
3. Welton de Abreu Oliveira
- “As manifestações
estudantis e a questão da
democracia durante o ano
de 1977”
4. Adriana Maria Ribeiro -
“‘Pela revolução ele foi ao
Éden!’: a trajetória
militante de João Pedro de
Souza Neto”

1. Thatiane Piazza de Melo -


“Produção imagética
financiada pelo mecenato
urbano florentino, caso de
Giotto di Bondone”
2. Luiz José da Silva - "O Ana Paula Lopes
Gênero, 17/10
misticismo e a realidade de Pereira
religiosidade e
67 um futuro rei, através da 402
representações no Batalha de Ourique" (FFP-UERJ)
Mundo Medieval 3. Caio César Rodrigues - 11h-13h
“História, Literatura e
Ficção: uma proposta de
análise do discurso místico
feminino no Ocidente
medieval através de
Catarina de Siena"

1. Denilson Muniz de
Relatos de viagem e 20/10
Oliveira - “Miguel João Renata Moraes
vida cotidiana na Meyer: uma viagem entre (UERJ)
68 401
cidade no período dois mundos”
joanino 13h-15h
2. Domingas Caetana da
Silva Pantoja - “A cidade
do Rio de Janeiro e
Debret”
3. Denise Maria Couto
Gomes Porto - “O Brasil e
o Chile de Maria Graham:
entre rebeliões e
revoluções, paisagens,
representações e
cotidiano, os registros e
narrativas de uma viajante
inglesa na América do Sul,
1821-1822”
4. Maria de Fátima Cardoso
Gomes - “Gazeta do Rio
de Janeiro (1808-1822): a
importância da sessão de
Anúncios e Avisos para os
estudos contemporâneos
do dia a dia da Corte de D.
João VI”
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SUMÁRIO
Apresentação..................................................................................................................57
Vozes Dissonantes na Grande Imprensa Carioca: José Oiticica como colunista do Correio
da Manhã (1921-1927)
ADEN ASSUNÇÃO LAMOUNIER...............................................................................59

O Departamento Nacional de Obras e Saneamento e o problema das 'Baixadas' no Estado


Rio de Janeiro, 1933-1960.
ADRIANA BRANCO CORREIA SOUTO.....................................................................72

Macau e a ação jesuítica nos séculos XVI e XVII: Identidade territorial e práticas culturais
na China
ADRIANA DE SOUZA CARVALHO............................................................................82

Pela revolução ele foi ao Éden! A trajetória militante de João Pedro de Souza Neto
ADRIANA MARIA RIBEIRO........................................................................................95

O macuti como expressão da identidade sociocultural da Ilha de Moçambique: um estudo


dos bairros de Litine e Esteu, 1991-2006
AIÚBA ALI AIÚBA......................................................................................................105

Colonização africana sim, tráfico de escravos não: o debate sobre a colonização africana
na província do Rio de Janeiro, 1854 a 1860.
ALESSANDRO MENDONÇA DOS REIS...................................................................119

As diversas faces de São Domingos: conflitos, possibilidades e contradições. (1789-


1815.)
AMANDA BASTOS DA SILVA..................................................................................131

Palavra e revolução: a produção literária de Gioconda Belli na Nicarágua sandinista


(1970-1990)
AMANDA VANNUCCI...............................................................................................148

Notas para um estudo de controvérsias intelectuais: o debate entre Caetano Veloso e


Roberto Schwarz
ANA CAROLINA BORGES.........................................................................................158

Metáfora e projetos literários em Virginia Woolf (1910 – 1941)


ANA CAROLINA DE AZEVEDO GUEDES...............................................................167

A cultura popular em verso relida pelo Jornal do Sertão (1970)


ANA CAROLINE M. ALENCAR.................................................................................180

O Câncer Gay e o Orgulho Gay: as representações sociais da AIDS e a organização da


comunidade gay em resposta à doença na cidade do Rio de Janeiro (1990-2000)
ANA CLÁUDIA TEIXEIRA DE LIMA........................................................................191
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

36
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Controle da informação na imprensa carioca: o gatekeeper na cobertura das bombas do


Riocentro (1981)
ANA LUCIA VAZ.........................................................................................................203

A construção da Polícia portuguesa (1760 – 1807)


ANDRÉ LUIS CARDOSO AZOUBEL ZULLI............................................................217

A criminalidade carioca nas reflexões de Elysio de Carvalho


ANDRÉ LUÍS DE ALMEIDA PATRASSO.................................................................228

“A fabricação do imortal” e o projeto de uma biografia intelectual do poeta Antonio


Gonçalves Dias
ANDRÉA CAMILA DE FARIA FERNANDES...........................................................240

O Golpe Civil-Militar de 1964: e o Impeachment do governador Badger da Silveira


ANDRESSA CRISTINA DE MIRANDA DO CARMO...............................................254

“E se tudo que eu puder ser for um cadáver numa estrada iraquiana?”: uma análise sobre
Guerra ao Terror (2008)
ANDREY AUGUSTO RIBEIRO DOS SANTOS.........................................................267

“Do Embargo à Imperatriz à Criação do Barão”


ANTONIO CARLOS HIGINO DA SILVA..................................................................279

De movimento cultural a cânone brasileiro. As entidades representativas dos poetas e a


institucionalização do “popular” na literatura de cordel.
ANTONIO HELONIS BORGES BRANDÃO..............................................................294

Mapeando território: atuação dos intelectuais na Era Vargas no Piauí 1930-1945


ANTONIO MAURENI VAZ VERÇOSA DE MELO...................................................307

O fim da aviação naval? Tensões político-militares nas forças armadas no estado novo
ANTONIO MODESTO DOS SANTOS JUNIOR.........................................................321

O crime organizado no Rio de Janeiro: principais facções


AVELINA ADDOR......................................................................................................333

“Velar pelo aformoseamento e saneamento”: ações de limpeza no espaço público da


Cidade do Natal, segunda metade do século XIX
AVOHANNE ISABELLE COSTA DE ARAÚJO........................................................347

O exílio latino-americano no Brasil: o papel desempenhado pela Igreja Católica através


da Arquidiocese do Rio de Janeiro
BÁRBARA GEROMEL CAMPANHOLO...................................................................360

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

37
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão: tráfico negreiro, doenças e


mortalidades nas viagens atlânticas (1755-1778)
BENEDITO CARLOS COSTA BARBOSA.................................................................372

Uma coleção em Revista: a etnografia no Museu Paulista de Hermann von Ihering


BRENO SABINO LEITE DE SOUZA..........................................................................384

Povo e Raça: a questão racial por trás do discurso sobre alemães étnicos na obra de Adolf
Hitler
BRUNA BALIZA DOS S. DOIMO...............................................................................395

O anarquismo sem adjetivo: a trajetória libertária de Angelo Bandoni entre propaganda e


educação
BRUNO CORRÊA DE SÁ E BENEVIDES..................................................................406

O problema fronteiriço e as relações Brasil-Argentina entre o final do Império e o início


da República
BRUNO PEREIRA DE LIMA ARANHA.....................................................................418

História, Literatura e Ficção: uma proposta de análise do discurso místico feminino no


Ocidente medieval através de Catarina de Siena
CAIO CÉSAR RODRIGUES........................................................................................432

Feminino do samba: Análises da representação feminina no samba (1937-1945)


CAIO CESAR SOARES PEREIRA..............................................................................445

COMING OUT IN AMERICA: A ONE MAGAZINE na construção do movimento


LGBTQ estadunidense ( 1953-1968)
CAMILA CARREIRA ALVES BAPTISTA.................................................................458

História, Identidade e Memória: o Instituto do Ceará e a construção da “Terra da Luz”


(1884-1956)
CAMILA DE SOUSA FREIRE.....................................................................................470

Corpos e comportamentos desviantes nos discursos e práticas médicas


CARINE NEVES ALVES DA SILVA..........................................................................482

Fugas de escravos no Rio Grande de São Pedro: uma análise a partir dos inventários post-
mortem (século XIX)
CARLOS JARENKOW.................................................................................................495

Liberdade, irreverência, resistência e contestação: a poesia libertária de Zé de Matos e


Patativa do Assaré
CARLOS RAFAEL DIAS.............................................................................................510

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

38
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Combatendo nas páginas dos jornais: a propaganda durante a Guerra Civil Paulista de
1932
CARLOS ROBERTO CARVALHO DARÓZ...............................................................525

Psicanalistas, católicos e os manuais de educação sexual (Brasil, década de 1950)


CAROLINA DA COSTA DE CARVALHO.................................................................536

Viúvas nos anúncios de jornais em meados dos Oitocentos na província de Pernambuco


(1842-1848)
CAROLINA DE TOLEDO BRAGA.............................................................................546

Uma nova cidade e velhas práticas – A difusão de amas de leite na capital republicana
(1900-1910)
CAROLINE AMORIM GIL..........................................................................................559

Um cantor negro nas ondas do rádio: identidades e tensões raciais (1926-1950)


CAROLINE MOREIRA VIEIRA DANTAS.................................................................573

Manuais auto instrutivos: Aspectos gerais, circulação e práticas de leitura nos séculos
XVIII e XIX
CÁSSIA REGINA DA S. RODRIGUES DE SOUZA...................................................583

“Um órgão esdrúxulo”: a Comissão de Urbanização de Araruama no período liberal


democrático (1945-1964)
CÁSSIO RICARDO HIPÓLITO DA SILVA CAMPOS...............................................597

Sistemas e redes de atenção à saúde no Brasil: Seu processo de construção e heranças


político-institucionais (1950-1990)
CHRISTIANE DE ROODE TORRES...........................................................................611

Uma problemática para o historiador: as fontes poéticas


CINDYE ESQUIVEL VIEIRA......................................................................................623

Diplomacia brasileira e saúde


CLARICE OLIVEIRA NEPOMUCENO......................................................................635

Produção ou Reprodução? O diálogo entre mídia e feminismos no seriado Malu Mulher


(1979/1980)
CLARISSA GODOY.....................................................................................................646

Entre linotipos e editoriais: o conflito israelo-palestino e a guerra de opinião pública na


mídia impressa brasileira - Folha de São Paulo, O Globo, Veja e Cadernos do Terceiro
Mundo - da Guerra dos Seis Dias a Primeira Intifada - 1967/1987
CLÁUDIO MÁRCIO LIMA PRADO...........................................................................659

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

39
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para além da Marcha da Vitória: Estudo de caso sobre a “Marcha da Família” realizada
no município de Niterói em maio de 1964
CRISTIANO DA SILVA MOREIRA............................................................................673

Tradições narrativas e experiência pessoal em Amiano Marcelino: uma proposta de


análise das digressões etnogeográficas nas Res Gestae
CYNTHIA ALVES DE OLIVEIRA..............................................................................687

O discurso do Dono – Marca jornalística do Correio da Manhã


DAIANA MACIEL AREAS..........................................................................................697

Reflexões sobre os pobres e os trabalhadores do hospital de caridade de Santa Maria/RS


no início do século XX
DAIANE SILVEIRA ROSSI.........................................................................................707

Processo histórico e experiência de classe: uma abordagem sobre a reforma agrária


chilena a partir de Thompson (1967-1973)
DANIEL DE SOUZA SALES BORGES.......................................................................722

A lei de promoções no Exército brasileiro de 1850: o palco do debate parlamentar


DANIELA MARQUES DA SILVA..............................................................................733

As procissões na Lisboa dos séculos XVI e XVII: Poder, Sociedade e Cultura


DANIELA RABELO COSTA RIBEIRO PAIVA.........................................................747

A experiência da doença dos pacientes com fibromialgia e síndrome pós-poliomielite


DANIELLE SOUZA FIALHO DA SILVA...................................................................758

O ateísmo da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA): influências do


iluminismo e “neoateísmo” na busca pela identidade ateísta brasileira
DANILO MONTEIRO FIRMINO................................................................................772

Crônicas Históricas de Fernando de Alva Ixtlilxóchitl: a escrita que evidencia os direitos


políticos das elites indígenas de Texcoco
DAYANE MENEZES DE OLIVEIRA PEREIRA........................................................789

Construindo a cartografia sul-americana das leishmanioses: circulação de saberes e


clivagens em perspectiva transnacional
DENIS GUEDES JOGAS JUNIOR...............................................................................800

O Brasil e o Chile de Maria Graham: Entre rebeliões e revoluções, paisagens,


representações e cotidiano, os registros e narrativas de uma viajante inglesa na América
do Sul, 1821-1823
DENISE MARIA COUTO GOMES PORTO................................................................814

Estrutura de Posse de Cativos no distrito da Vila de Santo Antônio de Sá (1797)


DERMEVAL MARINS DE FREITAS..........................................................................828

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

40
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O “Espião Nazista” Raymundo Padilha


DIEGO DA SILVA RAMOS.........................................................................................841

Uma breve análise sobre irmandades religiosas no Rio de Janeiro do século XVIII: entre
identidades e devoções
DIEGO SANTOS BARBOSA.......................................................................................854

Panorama sobre a imigração na República Velha e a chegada dos Finlandeses no Brasil


DIEGO ULIANO ROCHA............................................................................................863

O Movimento “Escola Sem Partido” e as disputas pela neutralidade da educação


DIOGO DA COSTA SALLES.......................................................................................874

Em busca de uma “Psiquiatria Latino-Americana”: Projetos e propostas (1939-1970)


EDE C. B. CERQUEIRA...............................................................................................887

Narrativas históricas e ficcionais em diálogo: o uso de literaturas africanas e suas


contribuições ao ensino de história
EDUARDA DAUDT DA SILVA..................................................................................900

O meu samba está de luto: a narrativa da imprensa carioca sobre a morte dos compositores
populares Sinhô e Noel Rosa
EDUARDO EMILIO MAURELL MÜLLER NETO....................................................911

Poder e Narrativas: as abordagens intelectuais acerca do candomblé nagô e as formas de


apropriações religiosas década (1930)
ELAINE CRISTINA VENTURA FERREIRA..............................................................925

Apropriações, ressignificações e representações do federalismo no Brasil (1860-1902)


ELION DE SOUZA CAMPOS......................................................................................939

“Eu tinha um marido só”: Casamento como valor na experiência de mulheres


soropositivas (1990)
ELIZA DA SILVA VIANNA........................................................................................951

“Operando o cérebro”: a psicocirurgia em periódicos da grande mídia no Brasil nas


décadas de 1940 e 1950
ELIZA TEIXEIRA DE TOLEDO..................................................................................962

Assistência à saúde na capital da Província do Rio de Janeiro: a Casa de Saúde Niteroiense


(1858-1969)
ELIZABETE VIANNA DELAMARQUE....................................................................975

Breves considerações sobre ideologia nas forças armadas entre 1961-1964


ENIO VITERBO MARTINS.........................................................................................985

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

41
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Somos mais de um milhão: as estratégias de evangelização de jovens no Youtube


ÉRIKA MARIA DE ARAUJO PESSANHA...............................................................1000

“Para construir-se a Transamazônica será preciso sanear o ambiente e curar o homem”:


as políticas médico-sanitárias do governo Médici na BR-230 (1970-74)
ERIKA MARQUES DE CARVALHO........................................................................1013

A centralidade do Rio de Janeiro na preservação do império português no século XVIII


ESTEVÃO BARBOSA DAMACENA........................................................................1024

Literatura, pátria e nação: apontamentos acerca de Gonçalves de Magalhães e seu Ensaio


sobre a História da Literatura do Brasil
FABIANA DIAS.........................................................................................................1033

“A articulação entre religiosidade e política no pensamento de Frei Betto”


FABIANO DIAS AZEVEDO......................................................................................1045

Batismos e ilegitimidade na freguesia de Macaé nas primeiras décadas do século XIX


FABIO FRANCISCO DOS SANTOS.........................................................................1058

O Distrito Federal em guerra: mobilização do front interno pelo Governo Provisório


durante a Guerra de 1932
FELIPE CASTANHO RIBEIRO.................................................................................1069

A construção de um material didático a partir dos apontamentos do relatório Figueiredo


FELIPE ROCHA DE BORBA BRAZ.........................................................................1081

Práticas de Bem Morrer e Relações de Poder – Mariana, Minas Gerais (C. 1742 - C. 1751)
FELIPE TITO CESAR NETO.....................................................................................1093

Candaces: o lugar social da mulher no reino Kush entre os séculos II A.C e IV D.C
FERNANDA CHAMARELLI DE OLIVEIRA...........................................................1106

As práticas de cura africanas, que viajaram nas redes de informações do Império


Ultramarino Português: final do século XVIII e início do XIX
FERNANDA RIBEIRO ROCHA FAGUNDES..........................................................1120

As políticas públicas de saúde no Brasil: o saber higienista e a loucura feminina (1930-


1945)
FERNANDA SILVA DE FREITAS............................................................................1133

Um olhar sobre a história da saúde internacional no Brasil: as ações do ministério da


saúde na segunda metade do século XX
FERNANDO MOREIRA DE SÁ BRITO....................................................................1142

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

42
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“As Funestas consequências da Vacina”: Uma obra contra a vacina antivariólica no


Império Português no Início do XIX
FILLIPE DOS SANTOS PORTUGAL........................................................................1155

Livrarias, memória e identidade: A importação de livros no Brasil e a trajetória da Livraria


Leonardo da Vinci no Rio de Janeiro
FLÁVIA MARIA ZANON BAPTISTINI...................................................................1168

O bom vassalo nasce no coração do rei: Juan de Palafox e sua visão de Monarquia
FLAVIA SILVA BARROS XIMENES.......................................................................1182

Protestantismo, abolição e imprensa evangélica


GABRIEL SANTOS PAIXÃO....................................................................................1195

Em plena Guerra Fria, Médicos Brasileiros na URSS: o relato de viagem de Milton Lobato
e sua trajetória na militância comunista
GABRIELA ALVES MIRANDA................................................................................1208

Experiência negra no pós-abolição: Eduardo Gonçalves Ribeiro, o governador negro no


Amazonas (1862-1900)
GEISIMARA SOARES MATOS................................................................................1221

Republicanismo, abolição e pós-abolição na imprensa de Itaboraí (1886-1921)


GILCIANO MENEZES COSTA.................................................................................1234

Literatura e nação na Nigéria: uma análise a partir do personagem Obi Okonkwo de


Chinua Achebe
GIOVANNI GARCIA MANNARINO........................................................................1248

Unindo o físico e o mental: a história da paralisia geral progressiva no Hospício Nacional


de Alienados (1883-1960)
GIULIA ENGEL ACCORSI........................................................................................1259

Misteriosos caminhos: religiosidades e práticas de curas populares na Primeira República


(1890- 1920)
GLÍCIA CALDAS.......................................................................................................1272

Política e sociabilidade no século XIX: A relação entre o visconde de pelotas e o Marquês


do Herval
GUILHERME DE MATTOS GRÜNDLING..............................................................1284

Para o bom acolher, reformas! A Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores entre os
anos 1942-1952.
GUILHERME DOS S. C. MARQUES........................................................................1297

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

43
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Cinema Brasiliano: representações dos debates sobre eugenia nos filmes O


Descobrimento do Brasil (1937) e Argila (1942).
GUILHERME FERREIRA MARIANO PRAÇA........................................................1310

O impacto das frentes parlamentares na crise política do governo presidencialista de João


Goulart
GUILHERME LEITE RIBERO..................................................................................1323

Ngola Nzinga e a Resistência à Colonização Portuguesa


GUSTAVO SOUZA DE DEUS DA SILVA................................................................1337

A institucionalização da policlínica de Botafogo (1900-1935): a difusão do modelo de


dispensário europeu na cidade do Rio de Janeiro
HARUMI MATSUMOTO..........................................................................................1351

A ditadura civil-militar e os acordos nucleares Brasil-EUA e Brasil-Alemanha Ocidental


HELEN MIRANDA NUNES......................................................................................1364

Os tempos do movimento slow e as políticas do tempo no regime presentista. Outros


tempos, novos desafios
HELIANA DE JESUS MACHADO............................................................................1375

A Igreja Protestante no Brasil: História, tipologias e contribuições


IDAURO DE OLIVEIRA CAMPOS JÚNIOR............................................................1385

Entre o popular e a elite política, o associativismo recreativo de setores médios e carnaval


popular em Santa Cruz (1880-1920)
IGOR ESTEVAM SANTOS DE OLIVEIRA..............................................................1400

O “problema” negro: contexto e pensamento varnhageniano em relação à escravidão


africana em História Geral do Brasil
INGRID SILVA LUCAS.............................................................................................1410

O anticlericalismo nas páginas do periódico La voz de la mujer (Buenos Aires, 1986-


1897)
INGRID SOUZA LADEIRA DE SOUZA...................................................................1423

Memórias da escravidão nas fazendas históricas do Vale do Café


IOHANA BRITO DE FREITAS..................................................................................1435

Práticas culturais afro-brasileiras e pertença evangélica no quilombo da Rasa


IONE MARIA DO CARMO........................................................................................1448

Trabalho feminino em fábricas de tecidos no Distrito Federal: questões sobre maternidade


e família (1899-1929)
ISABELLE CRISTINA DA S. PIRES.........................................................................1458

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

44
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A atuação de Rodrigo Melo Franco de Andrade no Conselho Consultivo do SPHAN


JAMILE SILVA NETO...............................................................................................1470

Aldeia Imbuhy: as de identidades de uma comunidade de tradição pesqueira no interior


de um forte militar localizado em área da União
JAMYLLE DE ALMEIDA FERREIRA......................................................................1481

Dos números aos nomes: as testemunhas recorrentes nos casamentos escravos e forros da
Freguesia da Candelária (c.1750 c. 1850)
JANAINA CHRISTINA PERRAYON LOPES...........................................................1495

A institucionalização da loucura no fim do século XIX e início do XX: o contexto da


assistência ao alienado na concepção da colônia agrícola na cidade do Rio de Janeiro
JEANINE RIBEIRO CLAPER....................................................................................1509

Narrativas docentes: Representações da América Portuguesa e usos do livro didático


JESSICA GABRIELLE DE SOUZA...........................................................................1527

Nossa Senhora Aparecida: a rainha do Brasil – processo de construção de uma nova


identidade brasileira para a igreja católica
JESSICA MARIA M. RABELLO...............................................................................1538

“Efeitos da Música”: Terapia Musical e Cultura da Sensibilidade no século XVIII (1750


- 1789)
JOÃO LUIZ GARCIA GUIMARÃES.........................................................................1552

O comércio ilegal de escravos através de Manoel Pinto da Fonseca (1835-1853):


primeiros apontamentos
JOÃO MARCOS MESQUITA....................................................................................1565

Para além de uma instituição: a polícia do Antigo Regime e sua [re]criação no Rio de
Janeiro oitocentista
JOICE DE SOUZA SOARES......................................................................................1577

Raízes, conflitos e mudanças: a participação da Academia Militar das Agulhas Negras no


Golpe Militar de 1964
JORGE LUIS GREGORIO DE ALMEIDA................................................................1589

(Re)invenções de presos políticos num presídio da ditadura militar


JOSÉ AIRTON DE FARIAS.......................................................................................1600

Manoel Bomfim: racialismo, mestiçagem e índios


JOSÉ GERALDO DOS SANTOS...............................................................................1612

A modernização econômico-industrial do Estado do Rio de Janeiro nas falas de Amaral


Peixoto: uma análise preliminar
JOSÉ LUÍS HONORATO LESSA..............................................................................1626

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

45
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Afirmação de uma identidade negra nas páginas do periódico Quilombo e a influência


dos “poetas da négritude”
JOSÉ MANUEL FARIA..............................................................................................1636

Reconfigurando o ofício do ilustrador: automodelação em J. J. Grandville


JOSÉ ROBERTO SILVESTRE SAIOL......................................................................1646

INQUICE: Indício arqueológico de Territorialidade Banto no Território da Cidade do Rio


de Janeiro?
JOSEFA JANDIRA NETO FERREIRA DIAS............................................................1661

Mulheres na lavoura de cana-de-açúcar


JULIA CHEQUER......................................................................................................1676

Musas ou heroínas? A construção da figura da mulher militante na literatura


memorialística no pós-redemocratização
JULIANA MARQUES DO NASCIMENTO...............................................................1688

Tornar-se africano livre: uma condição jurídica é capaz de homogeneizar um grupo?


JULIANA SANTOS DE LIMA...................................................................................1701

Charles Perrault e a questão da esfera pública durante a Querela dos Antigos e dos
Modernos
JULIANA TIMBÓ MARTINS....................................................................................1715

O meio ambiente como patrimônio: percursos históricos e o tombamento do litoral


fluminense
JULIENE TARDELI...................................................................................................1728

A formação do campesinato negro no Rio de Janeiro no final do século XIX e início do


XX: o Sertão Carioca
JÚLIO CESAR DE SOUZA DÓRIA...........................................................................1741

A defesa de um capitalismo democrático pela ACRJ


JÚLIO CÉZAR OLIVEIRA DE SOUZA....................................................................1752

Alguns apontamentos sobre migrações nas regiões portuárias da América Espanhola: os


autos de bens de defuntos nas audiências ístmicas
JULIO DO CARMO MOUCO.....................................................................................1761

À beira do fogo: as identidades alimentárias e os fluxos culturais em Luanda (1940-1960)


KARINA HELENA RAMOS......................................................................................1774

A criação do Ministério de Ciência e Tecnologia e o Debate Nacional de 1985


KATHERINE NUNES DE AZEVEDO.......................................................................1787

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

46
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O Piauí nas exposições do início do século XX: circulação de ideias e modernização


LAILA PEDROSA DA SILVA...................................................................................1798

Humanização do Parto no Brasil e movimentos sociais: a participação dos movimentos


de mulheres e feministas em uma perspectiva histórica
LARISSA VELASQUEZ DE SOUZA........................................................................1811

Entre a ordem e o medo: a utilização da Guarda Nacional no policiamento do Rio de


Janeiro (1831-1840)
LAURA OLIVEIRA MOTTA.....................................................................................1825

Os semiáridos argentinos e brasileiros na narrativa da imprensa nacional: um estudo sobre


as secas do Ceará e de Santiago del Estero (1932-1937)
LEDA AGNES SIMÕES DE MELO...........................................................................1837

A reação popular ao afundamento dos navios brasileiros em 1942 durante a Segunda


Guerra, segundo imprensa
LEILA NASCIMENTO SANTOS BRAZ...................................................................1852

Tempo e temporalidade nas aulas de história: debate e proposta de atividade


LEON NEVES GUIMARÃES....................................................................................1865

"Bons intuitos não bastam": Críticas de Belisário Penna ao republicanismo brasileiro


LEONARDO DALLACQUA DE CARVALHO.........................................................1878

A trajetória de Waldemar Ferreira de Almeida e a toxicologia dos agrotóxicos: ciência,


ambientalismo e agências internacionais de saúde (1939-1991)
LEONARDO DE BEM LIGNANI..............................................................................1892

"O fardo pacificador”: as intervenções joaninas na Banda Oriental e o discurso


civilizatório do Império
LEONARDO VIEIRA DE OLIVEIRA.......................................................................1906

Entre os costumes coloniais e os discursos modernizadores: as amas de leite no imaginário


social (1870-1908)
LETÍCIA CONDE MORAES COSATI.......................................................................1921

O Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro e os debates sobre a “cultura popular”


brasileira das décadas de 1960 e 1970
LETÍCIA FREIXO PEREIRA.....................................................................................1931

Continuidades e descontinuidades da política social materno-infantil na Era Vargas: a


Campanha de Redenção da Criança
LIDIANE MONTEIRO RIBEIRO..............................................................................1945

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

47
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Futuro da nação ou pequenas sementes do mal”? O cotidiano da infância proletária nas


páginas da imprensa carioca (1901-1907)
LÍVIA FREITAS PINTO SILVA SOARES................................................................1959

O Feminino no escrito do Huarochirí


LORENA GOUVÊA DE ARAÚJO.............................................................................1972

Entre o ecletismo de matriz francesa e uma arte brasileira: Ernesto da Cunha de Araújo
Viana e a valorização da arquitetura colonial (1852-1920)
LORHAN LASCOLLA DE SOUZA...........................................................................1984

Palavras impressas: notícias sobre D. Leopoldina nos jornais brasileiros, início do século
XIX, momentos anteriores à sua vinda para o Brasil
LOURDES DE ALMEIDA BARRETO BELCHIOR.................................................1997

O conservadorismo na formação do Estado brasileiro: aproximações entre o pensamento


do Marquês de Caravelas e de Bernardo Pereira de Vasconcelos
LUAIA DA SILVA RODRIGUES..............................................................................2011

Um tratado definitivo? Uma breve análise da Convenção Preliminar de Paz


LUAN MENDES DE MEDEIROS SIQUEIRA..........................................................2026

Folclore e patrimônio imaterial no Rio de Janeiro: reflexões a partir da trajetória de Cáscia


Frade
LUANA DA SILVA OLIVEIRA.................................................................................2038

A Rússia no Brasil do início do século XX: a expedição de 1914-1915


LUCAS ALVES FIRME CARNEIRO........................................................................2052

A Corporação dos Médicos Católicos e a assistência aos trabalhadores pobres em Belo


Horizonte (1936-1964)
LUCAS LOLLI VIEIRA..............................................................................................2066

Interesses e expectativas presentes no início das relações entre os portugueses e o reino


do Ndongo (século XVI)
LUCIANA LUCIA DA SILVA...................................................................................2079

“Flores” para o Reino. Relações de vida e exemplaridade feminina em Agostinho de Santa


Maria (Portugal do século XVIII)
LUCIANA NOGUEIRA DA SILVA...........................................................................2093

Contemplando o Monumento Contínuo: Reflexões sobre a obra do Superstudio


LUIS GUSTAVO COSTA ARAÚJO..........................................................................2105

Prevenção do câncer no Brasil: apontamentos históricos e historiográficos


LUIZ ALVES DE ARAÚJO NETO............................................................................2120

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

48
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A Telenovela Saramandaia (1976) e o Projeto Estético Político de Dias Gomes


LUIZ PAULO DA SILVA BRAGA............................................................................2133

O PUB-Rio e a formação da Secretaria Municipal de Planejamento do RJ: o federal e o


local na política carioca dos anos 1970
LUIZA DE CAVALCANTI A. FERREIRA................................................................2147

Trato documental e escrita da História: algumas considerações


MAICON MAURICIO VASCONCELOS FERREIRA..............................................2162

Hitler biografado: aspectos teóricos e Metodológicos para a análise da escrita biográfica


MARCELA DE OLIVEIRA SANTOS SILVA...........................................................2174

As telenovelas como objeto e fonte histórica


MARCOS ANDRÉ PINTO DOS RAMOS..................................................................2184

Redefinições identitárias na Vila de Guarany-CE: uma reflexão sobre o significado de ser


caboclo
MARCOS FELIPE VICENTE.....................................................................................2195

“O bairro que era nobre, hoje é um bairro pobre, não passa de um plebeu”. O impacto da
presença e da ausência da Presidência da República no bairro do Catete (RJ): uma
discussão sobre capitalidade e divertimento na região
MARCUS VINÍCIUS MACRI RODRIGUES.............................................................2206

“Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822)”: a importância da seção de Anúncios e Avisos


para os estudos contemporâneos do dia a dia da Corte de D. João VI
MARIA DE FÁTIMA CARDOSO GOMES...............................................................2220

“Vem à cena o célebre Padre Cícero”: publicações do jornal anarquista e anticlerical A


Lanterna (SP)
MARIA DE FÁTIMA DE MORAIS PINHO..............................................................2229

Muito além da floresta: a “aventura” de Francisco Jaguaribe em pertencer ao Escritório


Central da Comissão Rondon (1910-1952)
MARIA GABRIELA BERNARDINO........................................................................2243

Entre a Lavoura e a Locomotiva: as transformações de uma cidade a partir da imprensa


(Nova Iguaçu, 1957-1961)
MARIA LÚCIA BEZERRA DA SILVA ALEXANDRE............................................2256

Dos negócios da habitação à Rocinha: ocupação e formação do território durante as três


primeiras décadas do século XX
MARIANA BARBOSA CARVALHO DA COSTA...................................................2267

Jogos Vorazes: Areté, Tiranias e Competições Atléticas na Grécia Antiga


MARIANA FIGUEIREDO VIRGOLINO..................................................................2277

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

49
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As diversas repúblicas: discursos republicanos circulantes na imprensa de oposição entre


os anos 1875 e 1877
MARIANA NUNES DE CARVALHO.......................................................................2290

“A saudação da classe médica maranhense ao hóspede ilustre”: a passagem de Oswaldo


Cruz por São Luís do Maranhão (1905)
MARIZA PINHEIRO BEZERRA...............................................................................2302

O desmonte do escravismo: projetos antiescravistas da década de 1850 e o ambiente


internacional no início dos anos de 1860
MATHEUS MONTEIRO PEDROSA.........................................................................2315

Uma dança de significados: os maxixes da Casa Edison e a construção social dos gêneros
musicais
MATHEUS PIMENTEL DA SILVA TOPINE...........................................................2328

Criação da Freguesia de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas (1844-
1856)
MIRIAN CRISTINA SIQUEIRA DE CRISTO...........................................................2340

Entre perdas e ganhos: a administração do Hospital Nacional de Alienados e as


transformações da Seção-Lazareto
MONICA CRISTINA DE MORAES..........................................................................2350

História e divina providência nos escritos de Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro (1859-
1876)
MÔNICA MENESES CARNEIRO CORRÊA............................................................2363

Rio de Janeiro: aspectos de sua Modernidade


MYLENE SORAYA S. FERREIRA...........................................................................2373

Martins Penna, o teatro romântico e o ideal de civilização oitocentista


NÁDIA MARCELLA SIQUEIRA SILVA..................................................................2383

A leitura de bacharel e os processos de ingresso na magistratura: o caso de Francisco de


Sousa Guerra Araújo Godinho (1785-1790)
NARA MARIA DE PAULA TINOCO........................................................................2397

A criminalização do serviço doméstico. Rio de Janeiro (1880-1930)


NATÁLIA BATISTA PEÇANHA..............................................................................2410

Das prisões à colônia: o degredo de ciganos na América Portuguesa


NATALLY CHRIS DA ROCHA MENINI.................................................................2425

O Berço do Herói: Dias Gomes, teatro engajado e censura


NATASHA PIEDRAS.................................................................................................2438

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

50
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Francisco Negrão de Lima e as favelas da Guanabara: entre o discurso da urbanização e


a prática da remoção (1965-1971)
NATHALIA PACHECO HERINGER........................................................................2450

O papel das biografias na construção, atualização, apropriação e disputa da Memória do


“Rei Pelé”: algumas possibilidades de pesquisa
NATHAN PEREIRA BARBOSA...............................................................................2463

Diplomacia do café e pragmatismo: a política externa brasileira nas mãos das forças
políticas domésticas (1894-1905)
OLIVIER BODART....................................................................................................2476

Walt Disney e Orson Welles: embaixadores da boa vizinhança


PABLO SANTOS RIBEIRO HERNANDEZ..............................................................2485

Falar sobre a mulher: uma análise a partir de teses de alunos da Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro no final do século XIX
PALOMA GABRIELE FERNANDES LOBATO.......................................................2496

Soldados da produção nas juntas de conciliação: a batalha institucional por direitos em


tempos de guerra e repressão
PATRÍCIA COSTA DE ALCÂNTARA.....................................................................2506

O Rio de Janeiro se prepara para o turismo (1930 – 1935)


PAULA CRESCIULO DE ALMEIDA........................................................................2518

Um socialismo à carioca: análise do conceito de “progresso” nas páginas de O Globo


(1844)
PAULO ROBERTO CARNEIRO PONTES...............................................................2530

O discurso abolicionista do presbiterianismo no Brasil Imperial


PEDRO HENRIQUE CAVALCANTE DE MEDEIROS............................................2542

Terra de sangue: crimes cometidos por lavradores internados no Manicômio Judiciário de


Barbacena
PEDRO HENRIQUE FERREIRA DANESE OLIVEIRA...........................................2555

O crescimento dos batistas brasileiros pela via institucional (1882-1926)


PEDRO HENRIQUE GUIMARÃES TEIXEIRA ALVES..........................................2570

Nas redes da antropologia de Anthony Leeds: sua construção a partir de diferentes vozes
RACHEL DE ALMEIDA VIANA..............................................................................2580

“Estado do Rio de Janeiro no governo Ernani do Amaral Peixoto”: uma análise da


construção da memória política amaralista (1951-1954)
RAFAEL NAVARRO COSTA...................................................................................2593

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

51
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Aluísio de Azevedo e o darwinismo


RAICK DE JESUS SOUZA.........................................................................................2604

A Província do Ceará antes da afirmação do Estado Nacional (século XIX)


RAIMUNDO ALVES DE ARAÚJO...........................................................................2613

Construções alegóricas e dramatização da natureza n’O Guesa


RAMON CASTELLANO FERREIRA.......................................................................2625

Do clima sadio ao sertão doente: o discurso do higienismo em Diamantina na virada do


século XIX para o XX
RAMON FELIPHE SOUZA........................................................................................2637

A discussão de gênero no seio das forças armadas: o caso Maria Quitéria


RAPHAEL PAVÃO RODRIGUES COELHO............................................................2649

Futebol de várzea: um balanço da produção das ciências humanas


RAPHAEL RAJÃO RIBEIRO....................................................................................2662

A resistência contra-ataca: os serviços de espionagem Anglo-Americano na II Guerra


Mundial em perspectiva comparada
RAQUEL ANNE LIMA DE ASSIS............................................................................2675

Precisamos falar sobre Mariana: consequências da tragédia da Samarco para o meio


ambiente e o mundo trabalho
REGIANE APARECIDA COSTA NOZAKI..............................................................2687

O americanismo na correspondência entre Mário de Andrade (1893-1945) e Francisco


Curt Lange (1903-1997)
REGIANE MATOS.....................................................................................................2700

O antimovimento social “Escola Sem Partido” e a negação da produção de subjetividades


nos espaços públicos
RENAN RUBIM CALDAS.........................................................................................2713

Ensino de história e publicização do mundo


RENATA DA CONCEIÇÃO AQUINO DA SILVA...................................................2725

A figura feminina na França do Século XVIII: representação, sociabilidade e trajetória


RENATA LOPES MARINHO DE ALMEIDA...........................................................2738

Os hospitais do Instituto Oswaldo Cruz: experiências terapêuticas e protocolos clínicos


no início do século XX
RENATA SOARES DA COSTA SANTOS................................................................2751

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

52
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

René Ribeiro: a trajetória do médico ao antropólogo


RENATO DA SILVA VICENTINI.............................................................................2762

O Nuevo Cine Latinoamericano: uma abordagem político-estética


RENATO LOPES PESSANHA...................................................................................2775

Viagens e encontros: a ciência psiquiátrica em trânsito (Paraná, 1930)


RENILSON BERALDO..............................................................................................2787

Anorexia Nervosa: representação do corpo anoréxico na abordagem sociocultural da


doença
REYNALDO JOSÉ LOIO ALVES.............................................................................2798

Antes da febre amarela: os estudos sobre as febres do Rio de Janeiro na primeira metade
do Oitocentos
RICARDO CABRAL DE FREITAS...........................................................................2811

A formação do Corpo de Saúde da Armada segundo a perspectiva comparada à do


Exército na Corte (1833 – 1890)
RICARDO GEORGE MULLER.................................................................................2824

Gênero e Mundos do Trabalho: o caso das trabalhadoras da Fábrica de Roupas


Amazonense e o Primeiro de Maio de 1914 em Manaus
RICHARD KENNEDY NASCIMENTO CANDIDO.................................................2834

Casa de Correção da Corte entre o congregate e separate system: os escravos nos debates
médicos sobre a disciplina prisional
RITA DE KASIA ANDRADE AMARAL....................................................................2847

Delírio, amor e loucura em O filho do pescador (1843)


ROBERTO CESAR SILVA DE AZEVEDO...............................................................2860

Discursos médicos sobre a homossexualidade masculina no Rio de Janeiro e Bahia (1890-


1910): os olhares de José Ricardo Pires de Almeida e Domingos Firmino Pinheiro
RODOLFO SOUZA TAVARES.................................................................................2873

Elysio de Carvalho, o Boletim Policial e o Controle do Corpo no início do Século XX no


Brasil (1907-1918)
RODRIGO MAIA MONTEIRO..................................................................................2885

Uma terapia esquecida: a Opoterapia e os debates endocriminológicos no Rio de Janeiro,


1931-1938
RODRIGO RAMOS LIMA.........................................................................................2898

Fatores de atração e a construção de identidade: Retirantes nordestinos em Duque de


Caxias (1940 – 1960)
RODRIGO SAMPAIO PINTO....................................................................................2911

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

53
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Não existe sequer um simulacro”: A saúde pública no estado do Piauí entre as décadas
de 1910 e 1920
ROMÃO MOURA DE ARAÚJO................................................................................2923

O Exército e o Nacional Desenvolvimentismo


RONALDO RODRIGUES COELHO.........................................................................2935

As “Aves Ilustradas” do Oriente: as estruturas hierárquicas no Convento de Santa Mônica


de Goa
ROZELY MENEZES VIGAS OLIVEIRA..................................................................2945

A Formação do Morgado de Marapicú


RUBENS DA MOTA MACHADO.............................................................................2957

Jacareacanga e Aragarças: as revoltas esquecidas na década de 1950 pela historiografia


brasileira
SANDRO GOMES DOS SANTOS.............................................................................2971

Emilio Rodrigué: os primeiros anos da trajetória de um psiconauta (1947-1973)


SÉRGIO RIBEIRO DE ALMEIDA MARCONDES...................................................2984

A política das guerras justas e a conquista dos territórios indígenas no Vale do Rio Mucuri
na primeira metade do século XIX
TAMIRES SANTOS PEREIRA..................................................................................2997

A população carioca e o acesso à justiça: os habeas-corpus originários no STF (1920-


1926)
TATIANA DE SOUZA CASTRO...............................................................................3009

Identidade e Memória: a perspectiva de Maimônides sobre as conversões obrigatórias ao


Islã
TATIANE SANTOS DE SOUZA...............................................................................3018

Gênero e história das mulheres: a trajetória acadêmica de Ermelinda Lopes de


Vasconcellos na medicina
THAÍS MARCELLO DE ALMEIDA.........................................................................3032

Produção imagética financiada pelo mecenato urbano florentino, caso de Giotto di


Bondone
THATIANE PIAZZA DE MELO................................................................................3045

L'honneur ou au travail? Visões antagônicas entre Diderot e Voltaire sobre a República


das Letras francesa
THAYENNE ROBERTA NASCIMENTO PAIVA....................................................3055

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

54
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ameaças aos deuses egípcios em encantamentos: uma proposta de análise e compreensão


THIAGO HENRIQUE PEREIRA RIBEIRO...............................................................3065

Uma joia encravada na mais vasta e bela baía do Hemisfério Sul: a Ilha das Enxadas sob
domínio da família Lage (1823-1882)
THIAGO VINÍCIUS MANTUANO DA FONSECA…………………………..……3077

Família e sociabilidades: os Garcia de Mattos em São Paulo do Muriahé na segunda


metade do século XIX
TIAGO DE CASTRO BRAGA...................................................................................3094

Artes de curar em Iguassú: José Manoel e Joaquim Nery e o exercício da farmácia (1885
– 1937)
TICIANA SANTA RITA.............................................................................................3111

Messianismo no Brasil: governo, igreja e latifundiários contra o Sítio Caldeirão do Beato


José Lourenço
UBIRAJARA SAMPAIO BRAGANÇA.....................................................................3121

Família Gonçalves Martins: política, riqueza, redes de sociabilidades e escravidão no


Vale do Paraíba fluminense na Resende do século XIX
VALDENORA DE OLIVEIRA RUFINO OWERNEY..............................................3131

As estratégias na criação de um lugar de memória religiosa: Memorial Cardeal Dom


Lucas Moreira Neves
VANDELIR CAMILO................................................................................................3142

COOTRAM (Cooperativa dos Trabalhadores Autônomos do Complexo de Manguinhos):


uma proposta de desenvolvimento econômico e social na região de Manguinhos.
VANÊSSA ALVES PINHEIRO..................................................................................3154

Marialzira Perestrello: relação entre trajetória, Psicanálise e os estudos de gêneros


VANESSA DE ALMEIDA MOURA..........................................................................3170

Percepções da prisão: análise sobre como é percebida a convivência entre presos políticos
e presos comuns enquadrados na Lei de Segurança Nacional no Instituto Penal Cândido
Mendes entre 1969 e 1975
VANESSA OLIVEIRA BENEDITO..........................................................................3181

História, saúde e ambiente: o controle do tabagismo como problema ambiental


VÂNIA REGINA CAMARA CAMPELO..................................................................3194

A Cultura Bandeirante em meio as Brasilianas: A obra Folclore dos Bandeirantes como


parte da Coleção Documentos Brasileiros (1946)
VERONICA ROCHA DA SILVA...............................................................................3206

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

55
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O Estrangeiro e O Esperado como retratos da vida política de Plínio Salgado


VINÍCIUS DA SILVA RAMOS..................................................................................3219

Um breve levantamento documental sobre o envolvimento de espaços institucionais


imperiais no caso da moléstia da cana da Província da Bahia (1866-1875)
VINICIUS SANTOS DA SILVA................................................................................3231

Escravos da Religião: família e comunidade na Fazenda São Bento do Iguaçu (1817-


1857)
VITOR HUGO MONTEIRO FRANCO......................................................................3243

Rompendo os limites do campus: universitários protestam nas ruas de São Paulo


WELTON DE ABREU OLIVEIRA............................................................................3257

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

56
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Apresentação

Entre 16 e 20 de outubro de 2017, aconteceu o V Seminário Fluminense de Pós-


Graduandos em História promovido pela Anpuh-Rio em parceria com o Programa de Pós-
Graduação em História das Ciências e da Saúde, nas dependências do PPGHCS na
Fiocruz. O Seminário Fluminense, que está na sua 5ª versão, é um evento anual que tem
contado com a participação de mestrandos e doutorandos de todos os Programas de Pós-
Graduação em História do estado.

A quinta edição teve como mote a “Marcha pela Ciência” e isso não foi por acaso.
Em abril daquele ano, iniciava-se a 1ª Marcha pela Ciência, que envolveu cerca de 610
cidades pelo mundo em prol da valorização da ciência. Manifestações ocorreram no Brasil
em diferentes cidades e no Rio de Janeiro defendendo a garantia de verbas para a
sobrevivência das atividades científicas no país, quando era anunciada a restrição dos
gastos com saúde e educação. A escolha da Marcha como tema para o cartaz do Seminário
se deu assim não apenas pela pertinência do momento e pela identificação com a
instituição que este ano acolheu o evento, mas também pela situação vivida internamente
pela própria área, em que se verificava de um lado o avanço das pesquisas históricas e de
outro, o cenário de ameaças a tais atividades. Neste cenário de cortes orçamentários para
as pesquisas no país, os historiadores participantes do evento, no entanto, vieram expor
em perspectivas as mais variadas e em diferentes estágios da pesquisa o rol de temas e
abordagens historiográficas que vêm sendo desenvolvidas no ambiente dos programas de
pós-graduação no estado.

Nesta edição, tivemos um número de participantes recorde com 269 trabalhos


inscritos, o que certamente expressa o crescimento da área, resultante da expansão do
ensino universitário e do desenvolvimento das pós-graduações nos últimos anos. Os pós-
graduandos tiveram a oportunidade de apresentar suas pesquisas, realizando trocas
acadêmicas frutíferas entre colegas e professores. Novas temáticas vêm despontando,
como é possível observar pelos temas das mesas e títulos dos trabalhos apresentados. Ao
todo, tivemos 68 mesas, cada uma com um professor debatedor, ao longo de 5 dias de
evento. O evento teve ainda como conferência de abertura a palestra do professor

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

57
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Fernando Penna (UFF), com o título "A formação do professor de história em contexto
de crise na educação", que ocorreu no dia 16 de outubro no Auditório do Museu da Vida,
na Fiocruz.

Desde 2015, o Seminário recebe o apoio institucional da ANPUH-Rio, a maior


agremiação de História do estado. O evento é de interesse para todos os profissionais da
área, uma vez que a partir da produção acadêmica realizada nos diferentes Programas
torna-se possível um melhor conhecimento do “estado da arte” das pesquisas atuais no
âmbito da História em suas variadas linhas historiográficas e temáticas.

Neste ano de 2017, o Seminário ainda abrigou conjuntamente a 4a Jornada do


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, bem como a VII
Jornada Discente do Programa de Pós-Graduação em História Política do Brasil
Contemporâneo do CPDOC/FGV, fazendo da ocasião uma atividade verdadeiramente
coletiva e no melhor espírito da boa produção acadêmica fluminense.

Agradecemos a todos que tornaram possível este evento, em particular, aos


discentes e aos professores de História de todas as instituições participantes; à comissão
organizadora, sobretudo aos alunos do PPGHCS, Camilla Leal, Giulia Accorsi e Renilson
Beraldo que foram incansáveis nas diversas tarefas que envolveram a produção do V
Seminário; a Thiago Reis, cuja expertise de anos à frente da Secretaria da Anpuh-Rio foi
fundamental; e à nossa secretaria acadêmica, nas figuras de Sandro Hilário, Claudia Cruz
e Paulo Chagas.

Rio de Janeiro, 11 dedezembro de 2018.

Kaori Kodama
Gisele Sanglard
Rômulo Andrade

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

58
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Vozes Dissonantes na Grande Imprensa Carioca: José Oiticica como colunista do


Correio da Manhã (1921-1927)

ADEN ASSUNÇÃO LAMOUNIER


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social
Universidade Federal Fluminense

Em 5 de setembro de 1925 o jornal Correio da Manhã saudava a volta de José


Oiticica como colaborador daquele periódico. Após 14 meses de afastamento devido a
sua prisão “por crime de opinião”, em 8 de julho de 1924, este “intelectual e agitador de
idéias”, voltava a publicar seus artigos naquelas páginas. Sendo isto, motivo de “immenso
jubilo” aos leitores e companheiros do informativo matutino (CORREIO DA MANHÃ,
3, 5/9/1925). Oiticica, “velho conhecido da polícia política [...], seria mais uma das
vítimas que, em virtude da rebelião dos ‘tenentes’, em 5 de julho de 1924, acabariam por
amargar a privação da liberdade em vários estabelecimentos prisionais do Rio de Janeiro”
(SAMIS, 2007, p.91).
Colaborador semanal do Correio da Manhã desde 1921, seus primeiros escritos
neste periódico datam da década anterior. Divulgando a necessidade de uma ruptura
sistêmica, pregava a anarquia como solução para os males sociais que afetavam a vida
dos homens. Foi justamente em uma tentativa de efetivação dos ideais ácratas, em 1918,
que este importante personagem do movimento operário brasileiro ganhou destaque nas
páginas do Correio da Manhã, quando acusado de ser um dos “líderes” do levante
anarquista insurrecional na Capital Federal. Mas, se em 1925 o matutino louvava-o pela
sua proficuidade intelectual, em 1918, o adjetivo a ele destinado era de “chefe dos
anarchistas que habitualmente pregam a desordem do regimen legal” (CORREIO DA
MANHÃ, 19/11/1918, p.1).
As ações em prol das causas sociais faziam de José Oiticica conhecido defensor e
propagador das ideias libertárias. Figura constante nos meios operários, divulgando e
sistematizando as bases da “sublime teoria”, era tido por muitos como grande intelectual
por possuir louvável manancial teórico, relacionado não só ao anarquismo, mas aos
campos das letras, direito, medicina, história, sociologia e filosofia.
O Correio da Manhã era um jornal de grande tiragem no Rio de Janeiro, em torno
de 40 mil. Considerado o mais lido entre a classe média, compunha a ala dos periódicos
entendidos como burgueses que, após as movimentações operárias de 1917 a 1920,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

59
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

influenciados pelos pensamentos liberais, afirmavam a necessidade de entender a relação


entre trabalhadores e industriais por um viés de debates político-ideológicos entre estes
grupos antagônicos (COUTINHO, 2006, p. 9).

Operário versus patrão sob o olhar da classe dominante: um novo paradigma para
a solução do conflito.

Segundo Coutinho (2006, p.4), um novo paradigma relacionado ao conflito capital


versus trabalho se fez devido as transformações sócio-políticas do início do século XX.
De tal forma que a resolução para os embates criados pela luta de classe passaria a prezar
o diálogo entre patrões e operários em detrimento do uso da força. Nesta conjuntura, os
jornais se tornaram um grande instrumento na construção deste projeto1.
Para realização deste plano, que intentava mediar as relações trabalhista, era
importante criar na consciência operária a noção que o crescimento da produção resultaria
na satisfação de seus anseios e melhoria da qualidade de vida. Para tanto, o sucesso deste
empreendimento dependia, também, da representação destes trabalhadores nas páginas
que tentavam incutir-lhes estes ideais liberais. Desse modo, os periódicos passaram a
reservar colunas aos defensores das questões sociais, mas com o intuito de ressignificar
seus brados e carregá-los de um caráter liberalizante.
No entanto, a democratização das páginas dos periódicos liberais acaba por abrir
espaço a pensadores como José Oiticica e outros anarquistas que divulgavam ideias
dissonantes ao intuito destes informativos (COUTINHO, 2008). Estes militantes, junto à
corrente sindicalista revolucionária2, percebiam a greve geral como a principal forma de
combate aos males do sistema capitalista. Mas, se este projeto liberal contribuiu para a
construção de novos lugares de manifestação das causas libertárias e sindicalistas
revolucionárias, consequentemente, reforçou a militância de outra vertente sindical. A
qual, coexistia e disputava território ideológico com os defensores da ação direta, desde

1
Entre os militantes das classes operárias, os periódicos proletários, desde o final do século XIX, eram
tidos como um dos principais veículos de denúncia e divulgação de ideias pró trabalhadores. Assim, entre
os sindicatos, era comum o incentivo à produção de jornais para mobilização da classe. Para saber mais
sobre a história da imprensa operária, ver: Cadernos da Comunição. Breve História da Imprensa Sindical
no Brasil. Secretaria Especial de Comunicação Social-PMRJ, 2005.
2
Inspirados na Confederação Geral do Trabalho francesa tinham como forma de luta, entre outros ditames,
a rejeição de intermediadores no conflito entre patrão e operário, condenavam a associação partidária.
(BATALHA, 2000, p.29)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

60
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

o início do século XX. Esta corrente, denominada por Batalha (2002, p.28) de
sindicalismo reformista, tinha na mediação, a partir de representantes do Estado e demais
autoridades, o principal meio de expressão de suas reinvindicações.3
Portanto o mesmo projeto liberal que amplia os mecanismos de divulgação das
ideias anarquistas, contribui para o crescimento da vertente reformista no movimento
operário. A qual, a partir de negociatas com um Estado que iniciava os anos de 1920 com
a lei de criminalização do movimento operário (BATALHA, 2000, p.56), vai galgando
sua aceitação como forma de luta em meio aos trabalhadores.
Nesta conjuntura de batalha ideológica dentro dos sindicatos as correntes
anarquista e sindicalista revolucionária vão perdendo o protagonismo para a solução
reformista. Ainda no início dos anos 1920, com a formação do Partido Comunista do
Brasil, em 1922, os libertários encontraram mais um opositor de ideias. Gestado no rastro
da Revolução Russa, ao menos no Rio de Janeiro, já nos primeiros anos, o PCB “se torna
uma ameaça aos seus concorrentes no meio operário”. (BATALHA, p.58)

Projeto Liberal, Estado, Sindicalismo Reformista e corrente maximalista no


movimento operário: a perda do protagonismo anarquista no meio proletário.

O contexto do início da segunda década do século XX trazia, como visto,


transformações aos embates entre capital e trabalho. Os industriais buscavam formas de
reduzir os déficits gerados pelo conflito de interesses das classes seguindo um viés de
intermediação. Sem deixar o uso da força de lado, tentavam desmobilizar os trabalhadores
adeptos do sindicalismo revolucionário. O Estado atuava sobre as questões operárias tanto
por meio de leis de censura e repressão como a promulgada em 19214, ou o estado de sítio
de 1922 prorrogado até 1926, fortalecendo os interesses patronais e comprometendo as
organização proletárias; quanto por meio de uma recente valorização de políticas
assistencialistas e mediadoras como A lei Eloy Chaves, de 1923, que estabelecia caixas

3
Segundo Batalha, apesar de não serem as únicas, as correntes do sindicalismo revolucionário e do
sindicalismo reformista, até o início dos anos de 1920, eram as mais representativas dentro do Movimento
Operário Brasileiro. Para saber mais, ver, BATALHA, Claudio. O Movimento Operário na Primeira
República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2000.
4
No artigo “A trajetória anarquista no Brasil na Primeira República”, de Edilene Toledo, encontra-se que
em 1921, foi promulgada no Brasil uma de lei de repressão e controle da imprensa que visando restringir a
ação da propaganda subversiva escrita ou verbal.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

61
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de aposentadoria e pensão dos ferroviários, e a criação do Conselho Nacional do Trabalho


(BATALHA, 2000, p.59). Esta via dupla de atuação estatal junto ao projeto liberal
acabava por proporcionar um crescimento na adesão às correntes reformista dispostas à
conciliação entre as partes envolvidas no conflito entre capital e trabalho. Compartilhando
desta ascensão em meio ao movimento operário, mas em menor grau, estavam as ideias
maximalistas russas que, beneficiadas pelo sucesso da Revolução Russa, em 1917,
buscavam dar novos nortes às formas de combate em prol dos operários.
Do crescente ganho das “ideias de Moscou” no movimento operário, resulta a
formação do PCB, em 1922. Este partido se inseria de forma cada vez mais intensa nos
sindicatos, transformando estes, sob as ordens de Lenin, em “correias de transmissão do
partido” (SECRETARIA ESPECIAL de COMUNICAÇÃO SOCIAL-PMRJ, 2005, p.5).
Assim, seja pela repressão estatal ao movimento operário, pelas tentativas
mediadoras do conflito entre capital e trabalho, ou, ainda, pela perda de espaço ideológico
para corrente sindicalista reformista ou para os comunistas, os militantes libertários foram
gradativamente deixando de ser “protagonistas frente às lutas dos oprimidos, [...] mas
nunca saíram de cena” (GRUPO de ESTUDOS do ANARQUISMO, 2004, 12).
Seguiriam na defesa do anarquismo como base teórica da revolução social. Para tanto,
continuar a doutrinação dos povos era essencial para o sucesso de seus anseios, e se
beneficiar da abertura dos jornais liberais às questões trabalhistas parecia ser um caminho
por eles eleito.

José Oiticica nas páginas de um jornal liberal: Um novo campo de luta anarquista?

As análises dos artigos de José Oiticica no periódico O Correio da Manhã, podem


reforçar a afirmativa de que estes militantes não saíram de cena após a perda de espaço
dentro do movimento operário. Se as ações estatais e as ideologias reformistas e
comunistas acabaram por diminuir a tiragem de periódicos de tendência anarquista,
alguns jornais liberais como o matutino carioca acima citado, abririam espaço aos brados
dos libertários.
A incoerência da participação de anarquistas em jornais reformistas poderia ser
contraditada pelos próprios vieses ácratas, os quais não pensavam a emancipação da
sociedade perante o capital baseada apenas na luta de classes, até porque, entendiam que

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

62
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

as classes não eram homogêneas. Para os militantes dessa ideologia “a luta contra o
Estado e o capitalismo deveria ser movida pela concepção que se tem de justiça, de
igualdade e de liberdade, e não pela posição ocupada em uma classe econômica”
(TOLEDO, 2007, p.64).
Dessa forma, as páginas de periódicos liberais serviriam a José Oiticica como mais
um campo de atuação. Era necessário atuar além dos muros das fábricas influenciando
todos os oprimidos. Com suas concepções de justiça social buscava conscientizar a
população de que os males do sistema capitalista atingiam mesmo os que não estavam
diretamente ligados ao processo de produção. Então, beneficiado pelo seu
reconhecimento no meio intelectual carioca, Oiticica levou às páginas do Correio da
Manhã, que também se beneficiava com a presença de intelectuais, suas críticas em
relação ao sistema político-econômico vigente.
A partir de 1921, na página 2 do matutino carioca, dissertando basicamente sobre
temas pertencentes às áreas da saúde, política nacional e internacional, economia
mundial, religião e educação, José Oiticica, unindo todo seu conhecimento erudito com
as demais experiências de vida, formula suas críticas em relação ao Estado, a Igreja e o
Capital.
Em seus artigos pregou a necessidade da ruptura sistêmica como meio de
transformação social. A sociedade livre surgiria da destruição total do regime vigente. Na
defesa desta máxima, se opôs a toda forma de teoria que se baseasse em uma organização
social centralista. Consequentemente, criticou os defensores do sindicalismo reformista e
do comunismo. Os primeiros, eram acusados de utilizar intermediadores, tanto os
representantes do Estado quanto outras autoridades, para conciliar os anseios patronais e
operário, e, também, de não condenarem a participação política. Já os comunistas, embora
compartilhassem de muitas das críticas apontadas pelos anarquistas, como a exploração
da sociedade capitalista, o militarismo e a religião, e a necessidade da defesa da educação
fora dos moldes estabelecidos pela burguesia, defendiam a participação política e não
visavam a destruição imediata do Estado.
A educação era tema comum entre militantes das causas sociais, devendo ser
realizada a partir dos interesses dos povos subjugados. Pois as intuições educacionais
governamentais eram utilizadas como mais “uma forma de domínio do Estado e da

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

63
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

burguesia sobre o operariado” (BILHÃO, 2008, p.75). A educação tradicional


argumentaria em favor, mesmo que a partir de um discurso de pretensa neutralidade, dos
valores das classes dominantes.

José Oiticica afirma que este ensino viciado, voltado para a defesa dos benefícios
da classe dominante, resultaria não só na manutenção da exploração do proletariado, mas
na carestia de vida de todos os que de forma indireta ou direta sofriam com as
arbitrariedades de um sistema burguês.
Em um artigo sobre a falta de saneamento básico na região nordeste do Brasil,
amparado nas conclusões do engenheiro Ralph H. Sopper, e na estratégia para solução de
tal problema elaborada pelo Dr. A. Vasconcelos, que via a solução a partir da instrução e
educação do povo, Oiticica afirma que o problema da falta de saneamento continuaria a
ser um martírio aos habitantes daquela região já que, “não se resolve o problema da
educação nacional quem vive atascado na politiquice soez, mais cuidando de intervenções
e briguinhas eleitoraes dos misteres à seu cargo” (OITICICA, Correio da Manhã,
05/04/1924, p.4). O receio dos estadistas em ver seu poder deslegitimado a partir da
instrução da população submeteria os últimos a uma qualidade de vida extremamente
precária.
Oiticica amplia as questões discutidas no âmbito sindical a um nível social. Se
existia necessidade de um ensino para além dos moldes oficiais devido à intencionalidade
do Estado em manter submissa a população, a ideia da instituição educacional
independente é reforçada com questão do saneamento básico. Certamente, a gradativa
perda de espaço dentro do movimento operário fez com que este militante e outros
anarquistas buscassem na organização de todos os oprimidos a saída para manutenção ou
resgate do protagonismo libertário perante a luta revolucionária.
Continuando sua cruzada contra o Estado a partir da questão educacional, em
artigo intitulado A Escola Primária, Oiticica aconselha Frota Pessoa, então secretário
geral da instrução pública, acabar com os Conselhos Municipais de Educação, já que estes
eram compostos por homens que não estavam preocupados com educação popular, mas,
apenas, com seus conchavos políticos. “Se os homens do Conselho são políticos,
politiqueiros e políticões, não seria o melhor começo da reforma educacional acabar com
tal Conselho?” (OITICICA, Correio da Manhã, 21/06/1924, p.4). Uma vez que, inserido

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

64
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

no jogo político nacional, seria impossível esperar deles medidas que visassem a melhoria
da instrução do povo.
Nota-se aqui, mais uma vez, a influência do pensamento libertário em seus artigos
publicados no Correio da Manhã, nos quais tentava conscientizar a população que “a
construção de uma nova ordem não se daria pela conquista e transformação das
instituições existentes, mas pela sua destruição” (COUTINHO, 2006, p.15). Desse modo,
a “reforma da educação” deveria iniciar pela “destruição dos Conselhos”.
Para tanto, conscientizar a população dos males do Estado e seu regime era de
suma importância. José Oiticica acreditava na influência que ele e outros militantes
exerciam sobre a população oprimida. Por consequência, pensava que o preparo e a
organização dos homens dependeriam da sistematização de ideias trazidas em seus textos.
A tarefa do militante das causas sociais deveria ser a conscientização sobre as
falácias de um sistema falido que iludia o povo trabalhador. Pois,

Já não ha remedio para a democracia. Regimen burguez capitalista


arrebenta por todas as juntas, como um tonel por todas as aduelas. Se o
regimen prestasse, o seu préstimo se aquilataria pelo poder de
resistencia á dissolução visível e crescente. Em vão se multiplicam leis,
regulamentos, posturas, códigos e constituições. O mundo se agita,
mais e mais fóra do direito e suas sancções vivemos dirigidos ou
coagidos pela força, pela fraude, pelo interesse, pela chicana, muito
mais que pela justiça. (OITICICA, Correio da Manhã, 24/06/1922, p.2)

Então, desconstruir a ideia de representação popular em um sistema de democracia


indireta seria necessário. Já que este teria sido infectado pelos interesses burgueses
servindo apenas à ordem capitalista. Insistir na manutenção ou reforma deste regime seria
um erro, visto que “A democracia, regimen do suffragio, do patriotismo e do dinheiro é e
será sempre o purgatório dos honestos” (OITICICA, Correio da Manhã, 24/06/1922, p.2).
Por conseguinte, a solução para tais problemas a partir de um projeto reformista não
livraria a sociedade dos males impostos a ela.
Contrariando os interesses do próprio Correio da Manhã, o qual, como já foi visto,
fazia parte do projeto de hegemonia burguesa, Oiticica busca trazer a seus leitores a
necessidade de uma ruptura total com a ordem instituída. Pois, as bases do sistema
democrático, nem mesmo o sufrágio universal, garantiriam um governo que representasse
a população. Em razão de que “os votos giram nas mãos de meia dúzia, são comprados,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

65
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

arrancados a força ou por suborno” (OITICICA, Correio da Manhã, 01/07/1922, p.2).


Portanto, em um sistema viciado, o cidadão não votaria livremente e o resultado deste
regime levaria,

a nação, naturalmente, ao latifundio, ao atravessamento, ao lórdismo, á


plutocracia, á oligarchia financeira, a concentração de todos os negocios
na mão de meia dúzia de aventureiros, á alta dos preços, á baixa dos
salarios, a deseducação moral, á ganancia do ouro, á miséria, á
perseguições, á immoralidade, ás minorias orgulhosas e á maioria
humilde, enfim á oppresão interna e a guerra externa.” (OITICICA,
Correio da Manhã, 01/07/1922, p.2)

Percebe-se que mesmo em jornais liberais, o libertário não deixava de denunciar


o que entendia como responsável pela carestia de vida da população. Para doutrinação do
povo aproximar as imposições do sistema capitalista às ações do governo brasileiro era
de sum a importância. Dessa maneira, dissertando sobre a atitude do senado em rasgar o
diploma do senador Irineu Machado, Oiticica afirma que “a lei suprema é a vontade do
governo, e não a popular” (OITICICA, Correio da Manhã, 24/05/1924, p.4). O povo só
teria suas vontades representadas quando eles próprios se representassem. Então, “para
golpear a politicalha brasileira, o meio único seria destruir de vez o parlamento, o sistema
eleitoral, a democracia do voto” (OITICICA, Correio da Manhã, 24/05/1924, p.4).
A necessidade deste tipo de denúncia, talvez, seguia-se por duas frentes de
combate, uma defensiva e outra de ataque: a primeira, pode ser entendida como defesa da
implantação da ideologia anarquista na solução dos problemas sociais percebidos no
território brasileiro. Desde o início do século XX, governantes e industriais na tentativa
de descaracterizar os pensamentos desta corrente libertária dentro das fronteiras
nacionais, afirmavam que a ideia ácrata não caberia ao povo brasileiro, pois, de origem
europeia, era uma “planta exótica” ao ambiente desta república. (O Paiz, 20/08/1906, p.1)
José Oiticica, ao denunciar as arbitrariedades do governo nacional, tendo como
solução os valores pregados pela anarquia, buscava comprovar que, mesmo que
estrangeiro, a utilização do pensamento ácrata na tentativa de solucionar os problemas
enfrentados pelo povo brasileiros era pertinente. No país existiria razão para o
anarquismo, visto que nosso sistema organizacional, assim como na Europa, privilegia
privilegia alguns em detrimento do restante da humanidade. Pensava como Lima Barreto,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

66
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que traz em artigo, publicado na Voz do Trabalhador, a defesa dos ideais ácratas como
teoria aplicável aos problemas nacionais. Pois, se os defensores do capitalismo afirmavam
o anarquismo ser uma ideia pertinente às questões europeias, deveriam aceitar, também,
a anarquia como solucionadora dos nossos males sociais nacionais, visto que,

O que caracteriza uma civilização são suas ideias, os seus preceitos, as


suas instituições e os seus sentimentos; e, por acazo, as ideias, os
preceitos, as instituições que governam a Europa, são diversos dos que
que nos governam? Absolutamente não [...]. (BARRETO Apud SAMIS,
2003, p.33)

Legitimar o anarquismo como bandeira de luta era essencial, ainda mais em um


contexto onde a ideia ia perdendo espaço para os fundamentos reformistas e marxistas-
leninistas no próprio campo de atuação. Ao defender a necessidade da destruição total do
parlamento, Oiticica, certamente, buscava atingir os partidários das correntes ideológica
reformista e PCBista, as quais, traziam em suas cartilhas a necessidade da participação
nas eleições para levar ao congresso os seus anseios.
A segunda frente de combate, a de ataque, se pautaria na crença que a partir da
aproximação da percepção dos problemas sociais gerados pelo capitalismo com o
cotidiano do povo brasileiro, denunciando as irregularidades da política nacional e os
interesses “politiqueiros”, a população, operária ou não, perceberia que era atingida
diretamente pelos interesses burgueses que assolavam suas vidas, e por isso deveriam se
levantar juntamente contra tal sistema.
As ideias anarquistas têm por base a derrocada das autoridades governamentais, o
fim da hierarquia, do centralismo. Preconizando uma organização horizontal, percebia na
verticalização defendida pelos capitalista um dos grandes problemas sociais. O povo
trabalhador, a despeito de serem a sustentação da pirâmide social, não gozam dos
privilégios que estão reservados aos que compõem o lado oposto desta estrutura. De tal
modo, tendo na hierarquização e centralização de poderes, os grandes inimigos, José
Oiticica lutava contra todos os órgãos que se refletiam esta fórmula organizacional. O
Estado e seus “braços”, a economia capitalista meritocrata, assim como a própria igreja
católica, não passariam incólumes às criticas deste militante.
Foi em um artigo sobre a instituição romana que, José Oiticica, iniciou um dos
seus mais célebres debates contra um representante do papado. Fazendo referência à

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

67
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

morte do cardeal Mercier, o anarquista, lembra a polêmica que se instaurou na cúpula


católica quando o jesuíta irlandês George Tyrrel se posicionou em apoio à necessidade da
reformulação da política papal. O cardeal, inspirado na encíclica de Pio X, a qual
“condemnava a profunda agitação libertatória do pensamento catholico”, escreveu, em
resposta às ideias do jesuíta, uma Carta Pastoral condenando os atos deste irlandês
(OITICICA, Correio da Manhã, 13/02/1926, p.4).
Ao elogiar a atitude de Tyrrel, seu questionamento à autoridade e à hierarquia
instalada na igreja católica Oiticica acabou por enfurecer Padre Franca. Este,
representante do tradicionalismo do vaticano, em artigo publicado no periódico O Jornal,
tece críticas à atitude do libertário tendo o chamado de “reles professorzinho de
grammática”, que não era gabaritado para escrever sobre coisas que estão além de sua
alçada (OITICICA, Correio da Manhã, 10/03/1926, p.2).
José Oiticica, a partir de então, inicia uma verdadeira batalha com este padre na
tentativa de tanto comprovar seu entendimento sobre a forma de regência da cúpula do
vaticano, quanto os “reais” sentidos da religião. Segundo este militante ácrata, a
representação divina não viria da hierarquização da instituição, e o exercício do
questionamento desta organização vertical seria muito proveitoso à especulação
intelectual. No esforço em conhecer, interrogar, a humanidade os fiéis encontrariam
formas melhores de servir às causas de Deus. (OITICICA, Correio da Manhã, 12/03/1926,
p.2). Buscando demonstrar como os dogmas papais iam contra o cristianismo puro
publicou treze artigos no Correio da Manhã versando sobre os problemas do despotismo
do Vaticano em detrimento às crenças dos fiéis. É possível observar nestes artigos que a
partir da polêmica criada com o padre Franca Oiticica também propaga seu anarquismo.
Ao explicar a diferença entre a religião e o despotismo romano revela sua luta contra
qualquer autoridade, pois ela sempre suprimiria a vontade do homem.
Ressaltar a diferença entre religião e despotismo romano era uma tática de luta.
Pois, segundo a historiografia do movimento operário, a relação de negação que as
ideologias libertárias mantinham com as crenças religiosas era um dos grandes problemas
para arregimentação de proletários às causas ácratas. Sendo assim, explicar que religião
era diferente das ordens do Vaticano poderia ser uma forma de tentar solucionar o
distanciamento dos trabalhadores e demais oprimidos das frentes de luta revolucionária.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

68
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Amparado nos ideais anarquistas, procura condenar esta organização por auxiliar na
submissão do homem incentivando-o a não contradizer as regras imposta. Dessa forma,
José Oiticica, pretende desautorizar a autoridade papal afirmando que servir ao Papa não
era servir a Deus. A representação divina deveria ser buscada a partir da “especulação
intelectual”, do conhecimento. Certamente, acreditava que o exercício mental gerado pela
indagação levaria a sociedade a encontrar as melhores formas de servirem às próprias
causas. Visto que passariam a indagar sobre toda e qualquer ordem exterior lhes imposta.
A polêmica com o padre Franca causou grande repercussão, podendo ter sido um
dos motivos que levaram o fim da colaboração permanente de José Oiticica ao periódico.
Possivelmente a política estatal repressiva levou a direção deste periódico a afastar de
suas páginas, ao menos por um tempo, as ideias daquele libertário. Assim, no ano de
1927, escreve seus derradeiros artigos como colunista permanente do Correio da Manhã.
Um dos últimos títulos a ser publicado é em denuncia a condenação à morte, nos E.U.A,
dos militantes ácratas italianos Sacco e Vanzetti. De forma mais direta que as
apresentadas em publicações anteriores, condenando as injustiças impingidas aos
“defensores da liberdade”, prega a necessidade de uma revolta popular visando a queda
do sistema, a qual, caso não ocorresse de forma imediata, deixaria às claras as “infâmias
de dos governos plutocratas” (OITICICA, Correio da Manhã, 23/04/1927, p.4).

Considerações Finais

O intuito deste artigo foi construir possíveis caminhos para o entendimento da


participação de José Oiticica, uma voz dissonante ao sistema capitalista, em jornais que
tinham como ideologia a prática modernizante. Dessarte, buscou-se perceber quais temas
eram tratados em seus artigos e como estes eram trabalhados naquelas páginas de uma
forma que continuassem a contribuir para a causa anarquista e, ao mesmo tempo, fossem
aceitos pela direção destes periódicos. José Oiticica, anarquista declarado, militante
fichado e preso pela polícia política, passa a atuar como colunista permanente de um
matutino que estaria inserido no projeto liberal da classe dominante.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

69
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Não objetivando esgotar esta temática, pretendeu-se aqui entender as relações


contextuais que proporcionaram a coexistência de ideias distantes nas mesmas páginas
deste informativo de grande tiragem

Documentação

“Editorial”. O Paiz, Rio de Janeiro, 20/08/1906, p.01

“ Sem título”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 05/09/1925, p.1

“Os graves acontecimentos de hontem”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro,19/11/1918,


p.1.

OITICICA, José. “Sacco e Vanzetti”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23/04/1927

_____________“Resposta a um Jesuíta II”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro,


12/03/1926

_____________“Resposta a um Jesuíta”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro,


10/03/1926

_____________ “Modernismo Catholico”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro,


13/02/1926

______________ “A escola Primária”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 21/06/1924

______________ “Basta”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24/05/1924.

______________ “Instruir para Sanear”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro,


05/04/1924.

______________ “Democracia”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 01/07/1922

______________ “Que Regimen”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro24/06/1922

______________. “O Momento Social”. Gil Blas, 16/ 05/1919.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

70
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Bibilografia

BATALHA, Claudio. O Movimento Operário na Primeira República. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar. 2000

BILHÃO, Isabel. Identidade e Trabalho: Uma História do Operariado Porto Alegrense


(1898-1920). Londrina: EDUEL, 2008.

COUTINHO, Eduardo Granja. “Imprensa e hegemonia na Primeira República: o


contraponto dissonante de José Oiticica”. Programa Nacional de Apoio à Pesquisa, Rio
de Janeiro, Fundação Biblioteca Nacional, 2006

________. “Processos contra-hegemônicos na imprensa carioca, 1889/1930” in:


COUTINHO, Eduardo Granja (org.) Comunicação e contra-hegemonia: processos
culturais e comunicacionais de contestação, pressão e resistência. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2008.

GRUPO de ESTUDOS do ANARQUISMO, “Sobre a coletânia”. In DEMINICIS,


Rafael Borges e REIS, Daniel Arão (org). História do Anarquismo no Brasil. Vol 1, Rio
de Janeiro, EduFF, 2006.

SAMIS, Alexandre. “Lima Barreto e a estratégia engajada”. In: Libertários, São Paulo,
Ed. Imaginário, nº 2, 2º semestre de 2003.

SAMIS, Alexandre. “Presenças Indômitas: José Oiticica e Domingos Passos”. In:


FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel Arão. A Formação das Tradições 1889-1945, (col.
As esquerdas no Brasil), vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
Secretaria Especial de Comunicação Social. “Breve história da imprensa sindical no
Brasil” Cadernos da Comunicação. Série Estudos, Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade
do Rio de Janeiro, 2005.

TOLEDO, Edilene. “A trajetória anarquista no Brasil na Primeira República”‖. In:


FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel Arão. As Formações das Tradições 1889-1945, (col.
As esquerdas no Brasil), vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

71
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O Departamento Nacional de Obras e Saneamento e o problema das 'Baixadas' no


Estado Rio de Janeiro, 1933-1960.

ADRIANA BRANCO CORREIA SOUTO


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde
Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ
Bolsista Fiocruz

A Baixada Fluminense é hoje a parte da região metropolitana do estado do Rio de


Janeiro. Sua ocupação acompanha o processo de colonização nacional. Contando com
longas vias fluviais a região foi amplamente explorada em diversos momentos da história
brasileira. Indígenas, europeus, sesmarias, engenhos de açúcar, café e portos para escoar
a produção, tiveram como cenário a Baixada Fluminense. O espaço por onde passaram as
estradas de ferro recebeu várias denominações: termo da cidade, recôncavo, baixada do
estado. A ação antrópica desviou os leitos dos rios, desmatou áreas para agricultura,
pecuária e consumo de lenha, praticou a “coivara”5. Neste processo o homem transformou
o ambiente e por ele foi transformado (MARTINEZ, 2011, p. 30).

Com uma geografia propícia a permanecer alagada a Baixada Fluminense é


composta de terras baixas e solo pantanoso, que sempre exigiu de seus habitantes um
esforço constante, tanto para vencer as limitações impostas pela natureza, como para se
adaptar ao preço cobrado pela alteração do ambiente. Seus moradores construíram pontes,
barragens, valas e valetas de escoamento, mas principalmente durante as precipitações do
verão, as águas a cada ano demoravam mais a escoar, criando novos espaços alagados.

No final do século XIX e início do XX, após longo período de exploração, com
cansaço das terras, a expulsão dos jesuítas, a diminuição do fluxo de mão de obra escrava,
a construção de ferrovias, dentre outros fatores, o cenário na região era de degradação
ambiental. O poder público identificava estas condições como insalubridade e descrevia

5
Coivara é basicamente um método rudimentar de rotação de áreas cultivadas, através de ciclos de queima,
abertura, plantio e do ‘repouso’ de sucessivos lotes de terras originalmente cobertas por florestas primárias
ou secundárias.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

72
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

a Baixada Fluminense como um espaço “paludoso e doente” que necessitava de


intervenção para ser recuperado.

Foi nesta intencionalidade que em 1883 foi concedida, ainda no Império, uma
concessão de estudos ao Major Rangel de Vasconcelos. O objetivo era investigar as
causas de “pirexias palustres com aspecto endêmico” nas zonas banhadas pelos rios
Meriti, Irajá, Pilar e Iguassu. Rangel de Vasconcelos conclui que “[...]seriam obras que o
Estado não dispunha de recursos suficientes para executar. ” (GÓES, 1934, p. 264), o
“laudo” emitido fez o projeto de “saneamento” das áreas alagadas no entorno da cidade
do Rio de Janeiro ser adiando. No entanto neste momento já podemos identificar o
interesse que a região despertava na administração pública.

Na república, duas Comissões Estaduais, 1894 e 1902 consecutivamente, foram


criadas para tentar combater o problema, porém a atuação prática foi mínima. A Comissão
de 1894 produziu mapas com estudos e divisão da planície do estado em seções 6 e sua
inovação foi considerar a devastação das matas e obras de engenharia (como pontes,
pontilhões e aterros) como potencializadores da insalubridade na região. No caso da
Comissão de 1902 sua relevância foi em identificar que as condições de insalubridade da
Baixada Fluminense demandavam uma nova racionalidade técnica para orientar a ação,
com o aumento tanto da área a ser saneada como do tempo previsto para esta atuação.

Em 1910, ainda se utilizando o discurso de terras não aproveitadas e doentes as


franjas da capital federal, se criou a Primeira Comissão Federal da Saneamento da
Baixada Fluminense. É importante lembrar que além do contexto político estadual
favorável, com a ascensão do primeiro presidente da república de origem fluminense,
Nilo Peçanha, ganhava força também “ o movimento sanitarista”7. (HOCHMAN, 1998,
p.3). Este movimento permeava os debates intelectuais e políticos, com a eleição das

6
A Segunda Comissão Federal legitimou esta espacialização em 1933 como 4 baixadas, onde a 1ª seção
(1896) foi transmutada em Baixada da Guanabara (que em 1933 seria tida como a mais importante); a 2ª
seção (1896) é a Baixada dos Goitacazes (1933); 3ª seção (1896), a Baixada de Araruama (1933) e a 4ª
seção (1896) a Baixada de Sepetiba (1933).
7
O movimento sanitarista entendia que a doença caracterizava a sociedade brasileira, desafiava suas elites
e as instituições políticas (especialmente, o federalismo e a autonomia dos estados), exigindo um aumento
da responsabilidade do poder público ao nível federal uma vez que a maioria dos estados não tinha
condições técnicas e financeiras para implementar políticas de saneamento e saúde pública. (HOCHMAN,
1998, p.3).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

73
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

doenças como principais limitadores ao desenvolvimento do cidadão e consequentemente


do país. (HOCHMAN; LIMA, 1996, p. 24, 25). As febres palustres8, dentro deste
contexto, ofereciam um importante limitador para o avanço, não somente social, como
econômico nos primeiros anos da república no Rio de Janeiro. Erradica-la, ao menos
controla-la, passa a ser essencial, para “[...] tornar o Brasil um país civilizado e alcançar
o seu ideal de ordem e progresso [...]” (SCHMACHTENBERG, 2005, p. 1), garantido
assim a saúde dos trabalhadores e mantendo os níveis de oferta de mão de obra, além de
melhorar a forma como o pais era visto no exterior. Desta forma os ambientes
políticos/econômicos/ideológicos/intelectuais favoreceram a implantação da Primeira
Comissão Federal em 1910.

Em 1916 a Primeira Comissão Federal foi extinta e suas principais realizações,


identificadas nas fontes do período como controversas: desde limpeza e desassoreamento
de rios a criação de novos espaços alagados. Um exemplo disto está registrado no relatório
da Segunda Comissão Federal (1933), onde o engenheiro chefe Hildebrando de Góes
descreve que poucas obras realizadas pela Primeira Comissão foram definitivas, salvo os
estudos (realizados em 1894/1900) e complementados pela comissão em 1910) e as obras
do canal do rio Estrela. No entanto não se pode deixar de observar que a maior parte
destas intervenções era composta de desassoreamento e retilinização de partes de alguns
rios, ou seja, obras que demandavam constante manutenção, assim quando estas foram
abandonadas pelo poder público, houve o agravamento das condições sanitárias. Desta
forma a contribuição desta Primeira Comissão Federal foi a ideia de que o estado do Rio
de Janeiro, como unidade federativa, seria incapaz de lutar contra a insalubridade na BF,
sem a intervenção federal.

A Segunda Comissão Federal de Saneamento da Baixada Fluminense (CFSBF) foi


criada em julho de 1933 durante o governo Vargas e incumbida de elaborar um relatório

8
Identificada no século XVIII como “mal aire”, impaludismo ou paludismo (do latim palus, pântano),
febres palustres ou paludosas, febres intermitentes, intoxicação telurica (do latim, tellus, a terra), febres
marématicas (do italiano maréma, terreno alagadiço á beira mar), febres perniciosas, febres de quina,
maleitas, etc, hoje sabemos se tratar de doença endêmica, resultado de uma ação do protozoário do gênero
Plasmodium, transmitida de uma pessoa para outra usando como transmissor a fêmea do mosquito
Anopheles de hábitos noturnos e que se desenvolve tanto na água doce (Anopheles darlingi), quanto na
água salobra (Anopheles aquasalis) (DORO, 2011, p. 1).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

74
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

fazendo levantamento de todos os estudos, concessões e comissões anteriores, com o


objetivo de informar ao engenheiro chefe Hildebrando Araújo de Góes e sua equipe as
condições em que se encontravam a região e construir um plano de ação. Esse
relatório/memorial contém 538 páginas divididas em 12 capítulos que rememoram a
história de ocupação e uso da Baixada Fluminense desde as doações de Sesmarias.

O capítulo dez deste documento foi dedicado a Malária e revela as concepções para
o combate a doença na região no início do século XX. A luta, segundo o relatório, deveria
se concentrar na extinção do mosquito transmissor durante o período larvário e uma das
medidas para tal, era aumentar a velocidade de escoamento das águas dos rios. “ É sabido
que para uma velocidade de 0,20 cm/s, as larvas não proliferam. [...] E onde não há
superfícies inundadas não há mosquito que transmita a malária” (GÓES, 1934, p. 515).
Esse trabalho continuo estaria a cargo da engenharia sanitária.

O interessante é que o discurso de eliminar a malária da Baixada Fluminense veio


acompanhado do uso agrícola do espaço saneado, sem fazer menção a possibilidade de
uso urbano da região. Dentro desta perspectiva do Brasil como grande celeiro (vocação
agrária), que foi construído o discurso oficial de liberação e ocupação definitiva da
Baixada no Rio de Janeiro. No entanto esse discurso deve ser questionado uma vez que a
proximidade com a cidade do Rio, as linhas férreas já estabelecidas e eletrificadas, os
projetos de grandes indústrias e a necessidade de habitação para contingente populacional
crescente, deixavam evidente que a região, uma vez liberada, tanto das águas estagnadas
como da malária, atrairia algo bem diferente de imensas plantações de arroz.9

Antes de serem criadas estruturas sanitárias, como o Serviço Nacional de Malária


em 1941, do Serviço Especial de Saúde Pública em 1942 e da atuação da Fundação
Rockefeller em fins da década de 1930 no Nordeste (HOCHMAN; MELLO; SANTOS,
2002, p. 234) o relatório da Comissão Federal de 1933 soube se utilizar do combate a
malária para legitimar sua ação na Baixada Fluminense.

9
“ Só a Baixada pôde produzir arroz em quantidade tanta quanta seja necessária para abastecer todo o Brazil.
” (RIO DE JANEIRO, 1902, p. 108). Fala do governador Quintino Bocayuva em Mensagem à Assembleia
Legislativa em 20 de setembro de 1902.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

75
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A doença, ligada as novas teorias em relação a condição do brasileiro, ganharam


visibilidade, conforme dito anteriormente, desde o início do movimento sanitarista e a
apropriação destas teorias fez parte da construção do relatório de 1934. Assim, sem fazer
relação com a degradação ambiental, como potencializadores da insalubridade na
Baixada, com os aterros para as estradas de ferro e rodovias, que criaram barreiras
artificiais para o escoamento das águas e sem explicitar a possibilidade de assentamento
urbano nas áreas liberadas, o relatório da comissão se apropriou de um tema da “moda”
no período para construir uma ideia de modelo de intervenção que coadunava com a
ampliação de terras cultiváveis, ou seja “ O combate às doenças infecciosas não era visto
como um problema humanitário ou científico, mas sim econômico.” (FARIA, 1995, p.
111).

A Segunda Comissão Federal de Saneamento da Baixada Fluminense (CFSBF) de


1933, foi transmutada, em 1936, na Diretoria do Saneamento da Baixada Fluminense
(DSBF). Esta diretoria foi precursora do Departamento Nacional de Obras de Saneamento
(DNOS) instituído pela Lei Nº 2.367 em 4 de julho de 1940. Este conjunto de políticas
públicas, capitaneadas pela união, foram responsáveis por obras de drenagem das áreas
alagadas, aterros, retificação de rios, construção de diques, represas e pontes que
liberaram novos espaços e possibilitaram a ocupação urbana da Baixada Fluminense no
estado do Rio de Janeiro.

A hipótese que permeia este projeto de pesquisa é que as intervenções da


Comissão, Diretoria e Departamento foram as responsáveis pela ocupação urbana da
região da BF, ao liberar o espaço através do dessecamento e drenagem. No entanto, essa
ocupação foi construída de forma periférica, subalterna e precária, devido a ausência de
investimentos na infraestrutura dos espaços saneados, o que pode ser verificado pela
diferenciação das obras na Baixada, quando comparadas com a atuação na capital federal.

Uma outra característica que perpassou a atuação da CFSBF, DSBF e do DNOS,


foi utilização do discurso de combate a malária e a insalubridade de forma geral, como
legitimador para as intervenções, mas antes que a malária pudesse ser declarada
definitivamente erradicada na região, na segunda metade do século XX, o espaço já estava
loteado e ocupado por uma população sem recursos financeiros, atraídos pelos preços

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

76
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

baixos dos lotes, possibilidade de autoconstrução e descumprimento das leis


habitacionais.

As intervenções apesar de estarem calcadas no ideário da modernização,


característico do governo varguista, onde dominar e sanear o espaço era imprescindível,
estas ações (Comissão, Diretoria e Departamento) podem ser vistas como uma opção do
Estado para viabilizar, subsidiariamente, ocupação de forma definitiva da região, objetivo
que também fazia parte do processo de saneamento da Baixada Fluminense.

Por fim, a CSBF, a DSBF e o DNOS foram políticas públicas aplicadas em


conformidade com sua temporalidade. E mais ainda caracterizaram uma construção
evidente do governo Vargas, a centralização e intervenções do alto para baixo. Este
caráter centralizador tem como fundo a figura não somente de Vargas, mas era parte do
pensamento intelectual e projeto político da época, segundo o qual o “destino do Brasil”
estaria diretamente ligado a um poder central e moderno.

Neste modelo centralizador, a perda da autonomia estadual para a União era


essencial, remodelando o regime federativo vigente até 1930. Desta forma, as políticas
públicas para o combate a problemas regionais ficaram submetidos ao poder central. No
estado do Rio de Janeiro, no caso da Comissão de saneamento não foi diferente.
(LAMARÃO, 2010, p. 49).

Assim as políticas públicas “necessárias” para a transformação da Baixada


Fluminense foram orientadas pela forma como o estado ansiava se apropriar do lugar.
Afinal, a Baixada por sua proximidade com o distrito federal, era considerada ao mesmo
tempo espaço importante e nocivo. Importante por conter um potencial de terras para
serem ocupadas e deletério pelas doenças endêmicas/insalubridade. A junção destes
fatores com a análise das políticas públicas que atuaram na região, significa identificar
como elas “[...] repercutem na economia e nas sociedades, [...] também explicar as inter-
relações entre Estado, política, economia e sociedade”. (SOUZA, 2006, p. 26). Essas
inter-relações podem conter antinomias dentre seus atores (sociedade, estado e
mercado/economia), como defendido por Claus Offe, na orientação/construção das
políticas públicas. Para o autor, nenhum dos componentes institucionais (Estado,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

77
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Mercado e Comunidade), podem ser deixados de fora na construção de políticas públicas


eficientes. (OFFE, 1999, p. 144).

Desta forma esta pesquisa pretende, ao analisar o processo de transformação da


Comissão em Diretoria e Departamento, identificar as forças políticas, locais, estaduais e
federais que as permearam, as obras realizadas, as escolhas dos engenheiros que as
executaram e os resultados efetivos no controle das doenças, buscando traçar uma história
das Políticas Públicas de Saúde na Baixada Fluminense.

Documentação

GÓES, H. A. Relatório apresentado pelo engenheiro chefe da Comissão de Saneamento


da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: S/E, 1934.

Bibliografia

ABREU, Mauricio. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO,


1997.

DORO, Mariana Ratti. Uma visão geral da Malária: ocorrência, manifestação, prevenção
e principais tratamentos. São Paulo: IQ-UNICAMP, 2011. Disponível em:
<http://gpquae.iqm.unicamp.br/textos/T6.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2016.

FARIA, Lina Rodrigues de. Os primeiros anos da reforma sanitária no Brasil e a atuação
da Fundação Rockefeller (1915-1920). Revista de Saúde Coletiva (PHYSIS), Rio de
Janeiro, vol.5, nº 1, 1995. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/physis/v5n1/06.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2016.

JAMESON, Frederic. O inconsciente político: narrativa como ato socialmente simbólico.


Tradução de Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Ática, 1992.

LAMARÃO, Sergio Tadeu de Niemeyer. Crise econômica e centralização política: o


Estado do Rio nos primeiros anos da EraVargas (1930-1937). Revista de História
Econômica & Economia Regional Aplicada – Vol. 5 Nº 8, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

78
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

LAVERAN, Alphonse. In: Encyclopedia Britannica Online. Alphonse Laveran. Londres,


2014. Disponível em: <http://global.britannica.com/biography/Alphonse-Laveran>.
Acesso em: 01 mar. 2016.

HELLER, Leo. Relação entre saúde e saneamento na perspectiva do desenvolvimento.


Ciênc. Saúde coletiva [online]. 1998, vol.3, n.2, pp.73-84. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81231998000200007>. Acesso em: 02 out. 2016.

HERSCHMANN, Micael M.; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder (Org.) (1994). A


invenção do Brasil moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

HOCHMAN, Gilberto. Logo ali, no final da avenida: Os sertões redefinidos pelo


movimento sanitarista da Primeira República. História, Ciências, Saúde Manguinhos, Rio
de Janeiro, vol. V (suplemento), 217-235 julho, 1998. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59701998000400012>.
Acesso em: 2 mar. 2015.

___________; LIMA, Nísia Trindade. Pouca saúde, muita saúva os males do Brasil são:
discurso higienista e interpretação do Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro,
v. 5, n. 2, p. 313-332, 2000. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/csc/v5n2/7098.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2016.

_____________; LIMA, Nísia Trindade. Condenado pela raça, absolvido pela medicina:
o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO, Marcos
Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (orgs). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ/CCBB, 1996.

_____________; MELLO, Maria Tereza de; SANTOS, Paulo Roberto Elian dos. A
malária em foto: imagens de campanhas e ações no Brasil da primeira metade do século
XX. Revista História, Ciências, Rio de Janeiro, Saúde, vol. 9 (suplemento):233-73, 2002.
Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v9s0/10.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2016.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

79
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

KROPF, Simone Petraglia. O saber para prever, a fim de prover – A engenharia de uma
Brasil moderno. In: HERSCHMANN, M. M.; PEREIRA, C. A. M. (Org.) (1994). A
invenção do Brasil moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

MARQUES, Eduardo Cesar. Da higiene à construção da cidade: O Estado e o saneamento


no Rio de Janeiro. História, Ciências, saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, Vol. II, n. 2,
p.51- 67, jul.-out. 1995. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
59701995000300004>. Acesso em: 10 ago. 2016.

MARTINEZ, Paulo Henrique. História ambiental: um olhar prospectivo. Cad. Pesq.


Cdhis, Uberlândia, v.24, n.1, jan. /Jun, 2011. Disponível em:
<http://www.seer.ufu.br/index.php/cdhis/article/view/14086/8021>. Acesso em: 10 jan.
2015.

OFFE, Claus. A Atual Transição da História e algumas Opções Básicas para as


Instituições da Sociedade. In: PEREIRA, L.C.B. WILHEIM, J. SOLA, L. org. Sociedade
e Estado em Transformação. São Paulo: UNESP, Brasília: ENAP,1999.

SANTOS, Leonardo Soares dos. Zona, sertão ou celeiro? A constituição do cinturão


verde da cidade do Rio de Janeiro e seus impasses, 1890 -1956. In: SANGLARD, Gisele;
ARAÚJO, Carlos Eduardo M. de; SIQUEIRA, José Jorge (orgs.). História Urbana:
memória, cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2013.

SCHMACHTENBERG, Ricardo. Sanear ou perecer: o movimento pelo saneamento dos


sertões e das cidades brasileiras. ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE
HISTÓRIA, Londrina, 2005. Disponível em: <http://anais.anpuh.org/?p=18160>. Acesso
em: 30 set. 2016.

SILVA, Lúcia. Sugestões de uso na sala de aula. In GARCIA, Graciela, SALES, Jean e
SILVA, Lúcia (orgs). Capítulos da História da Baixada Fluminense: ensino e pesquisa na
licenciatura de História do campus de Nova Iguaçu. Seropédica: EDUR, 2013.

______, Lúcia Helena Pereira da. Saneamento e política na Baixada Fluminense: Nova
Iguaçu no início do século XX. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 48, n. 2,
2014. ISSN 2178-4582. Disponível em:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

80
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

<https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/view/2178-
4582.2014v48n2p263>. Acesso em: 10 set. 2016.

SOARES, Sérgio R. A.; BERNARDES, Ricardo S.; CORDEIRO NETTO, Oscar de M.


Relações entre saneamento, saúde pública e meio ambiente: elementos para formulação
de um modelo de planejamento em saneamento. Cad. Saúde Pública [online]. 2002,
vol.18, n.6. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2002000600026>.
Acesso em: 01 out 2016.

SOUTO, Adriana Branco Correia. As Comissões Federais de Saneamento da Baixada


Fluminense (1910/1933). Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Territorial).
Instituto de Ciências Sociais e Aplicadas, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Nova Iguaçu, RJ, 2016.

SOUZA, Celina. A Introdução Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Porto Alegre,
Sociologias, ano 8, nº 16, 2006. Disponível
em:<http://www.scielo.br/pdf/soc/n16/a03n16>. Acesso em: 12 ago. 2016.

SOUZA, Cezarina Maria Nobre. Relação saneamento-saúde-ambiente: os discursos


preventivista e da promoção da saúde. Saúde Soc. [online]. 2007, vol.16, n.3. Disponível
em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902007000300012>.
Acesso em: 01 out. 2016.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

81
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Macau e a ação jesuítica nos séculos XVI e XVII: Identidade territorial e


práticas culturais na China

ADRIANA DE SOUZA CARVALHO


UERJ-FFP

O processo de cristianização, a partir do século XVI, nos faz enveredar no que


para muitos autores é considerado como o primeiro esforço de modernidade e
globalização (entendida como o estreitamento das distâncias entre o continente europeu
e os demais espaços geográficos). Para tanto, tal projeto se alicerçou em referenciais
culturais de matriz europeia e ocidental que convergiam para o ideal de cristandade
universal. Serge Gruzinsk (2015) define como mundialização o encontro de civilizações
distintas, promovido pelo incremento das rotas comerciais no Atlântico. Assim, pensar os
processos de colonização e de cristianização, como duas faces de uma mesma moeda,
aproxima-nos de um campo fértil de práticas culturais e de representações sociais.

Os estudos sobre o jesuitismo contornam igualmente este ideal de universalidade,


já que para além da vocação missionária, havia também um esforço de levar a cabo o
projeto político da Igreja de Roma. Charles Boxer (2007) trabalha com o termo militante
para evidenciar as atuações da Companhia de Jesus imbricadas a própria história da Coroa
Portuguesa.

Serge Gruzinsk (1999)10 faz críticas contundentes a certa historiografia


eurocêntrica que privilegia o olhar do “eu” ocidental sobre o “outro” dos espaços
extraeuropeus. Seus trabalhos contribuem para um estudo das dinâmicas culturais,
colocando sob um mesmo plano sociedades distintas, como também valorizando as
práticas de assimilações e trocas culturais que se constroem a partir da convivência
social.11 O jesuitismo no Oriente potencializa estes quadros, em que mesmo em espaços
distintos há enfrentamentos similares das missões quanto ao estranhamento e a resistência
aos missionários do ocidente.

10
Não só em seu trabalho sobre A passagem do século, mas também quando discute o conceito de
mestiçagem cultural, na leitura de O pensamento mestiço (2001).
11
Para essa dinâmica das trocas culturais, ler Máquina de Gêneros de Alcir Pécora que discorre sobre o
pluralismo de valores, sem o predomínio do –eu- ou do –outro-.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

82
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A Companhia de Jesus foi fundada no período em que a Europa esteve no centro


das chamadas reformas religiosas que demandaram a necessidade da Igreja Católica
repensar as suas práticas e estratégias de atuação, não só na fronteira do que seria uma
discussão unicamente religiosa.12 Isso implicava, também, em avaliar as escolhas
territoriais dos espaços de atuação que seriam estratégicos ao projeto de missionação.

Em geral, a historiografia privilegia uma análise essencialmente cultural, aos


estudos dos projetos de missionação, pensando as estratégias de atuação dos padres em
função das diretrizes de conversão. Entretanto, há uma questão anterior a essa
problemática que nos possibilita pensar tais estratégias no campo do- espaço - de atuação.
Quais eram os critérios de escolha definidos pela Companhia de Jesus para fixação
das missões nos espaços europeus, como também nos quatro cantos do mundo?13 Os
jesuítas ficaram a frente de um projeto ambicioso de “controle das almas” nos novos
espaços anexados às Monarquias Católicas, como também àqueles que eram considerados
estratégicos às práticas comerciais das recentes Monarquias absolutistas.

A ideia de mundialização alarga estes espaços, cria – multiterritorialidades -14


que são múltiplos territórios sob um ideal de catequese, na intenção de fundar uma
identidade cristã. Assim, o território de atuação da Ordem jesuítica foi moldado nas
relações de poder que os padres construíram não só com os nativos, como também nas
tensões internas na própria Ordem. A circulação das cartas entre os padres que atuavam
em diferentes missões e com a Cúria em Roma pulsava na mesma intensidade quanto às
atuações dos padres nos diferentes espaços de atuação.

As efervescências culturais na Europa, fruto das influências renascentistas,


explicam a maior circulação de termos que dividiriam o mundo em dois opostos: ocidente
e oriente. Fato é que esta dicotomia ganhou força nos usos, sobretudo, através dos teóricos
iluministas que construíram um conjunto de modelos explicativos que valorizavam outros
hiatos, tais como: trevas/luz para discussão da Idade Média e da Modernidade,
respectivamente. Assim, termos reducionistas foram sendo incorporados às práticas

12
Sobre a Europa das reformas religiosas, ler Bossy (1990) A Cristandade no Ocidente.
13
A ideia de Globalização nos “quatro cantos do mundo” em Gruzinsk (2005).
14
Sobre estes aspectos teóricos, ver “territorialidade, multiterritorialidade: um debate” em
Haesbaert(1999).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

83
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

discursivas no campo das ciências humanas e que, sobretudo, a partir da década de


setenta, começam a ser cotejados a uma revisão conceitual.

Como a contribuição de Said (2007, p.29) que apresentou o oriente como uma
invenção do ocidente desde a antiguidade onde “o termo já remetia a ideia de episódios
romanescos, seres exóticos e experiências extraordinárias”. Um universo simbólico foi
erguido entorno de vocabulários que construíram uma tradição de pensamento e uma
materialidade que se firmou majoritariamente no ocidente. Entretanto – ocidente e oriente
– são duas categorias geográficas que se sustentam e se espelham.

Em decorrência dessa noção, o orientalismo abre um debate sobre o


desdobramento do conceito de território como campo simbólico, indo para além de uma
conceituação que o restrinja como um espaço definido e concreto; segundo Haesbaert
(2004); trata-se de considerá-lo como uma reapropriação dos espaços. Assim, a
historiografia legitimou o oriente como um campo de estudo, mas, interessa aqui observar
quais as relações de poder que se construíram a partir dessa categorização. Neste sentido,
possibilita pensar as multiterritorialidadades entorno do termo - oriente-, já que se
multiplicam os territórios a que se pode remetê-lo. Por outro lado, não há equivalência de
um campo de discussão para o ocidentalismo.

Para a Geografia, trabalhar os termos – território/espaço/ territorialidade - traz


aparente familiaridade, tal qual as discussões sobre –tempo e memória - para a História.
Decorre daí, a necessidade de pensarmos a partir de outras fronteiras de discussão. Há
uma historicidade do território15 que permite ampliar o universo de significação e
redimensionar o sentido do senso comum de concebê-lo como algo material e concreto.
Em outra perspectiva, o território pode ser também a construção simbólica de um espaço.

Os jesuítas redefiniram o Oriente, a partir de territórios que eram considerados


estratégicos em relação às rotas comerciais, sobretudo, no Oceano Índico. Mapearam
uma dinâmica de fixação que definiu a presença dos jesuítas na América, África e Ásia.
Território pressupõe espaço-vivido ou mesmo dominação e apropriação. No caso do
Oriente mais de apropriação, comparado às práticas adotadas na América Espanhola, por

15
Para a discussão dos diferentes usos conceituais de – território- ler FERREIRA (2014) Território,
territorialidade e seus múltiplos enfoques na ciência geográfica .

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

84
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

exemplo16. A chegada destes missionários na China17 deu-se por Macau, por sem
considerado um ponto estratégico de três rotas comerciais que ligavam o Oeste ao Leste,
a saber: uma delas via Goa, que ligava Macau a Lisboa; a segunda, ligando Macau a
Nagazaki e, ainda, Macau via Manila até o México (Nova Espanha).18

A atuação dos missionários na China foi demarcada em duas etapas distintas: a


primeira delas considerada periférica em razão das dificuldades geográficas para fixação
em solo chinês e, a outra etapa, demarcada por resultados mais profícuos da ação dos
jesuítas. O missionário Matteo Ricci, nomeado como Superior da missão chinesa ao final
do século XVI atuou nestas terras nos dois momentos.

Nos dez primeiros anos de atuação em que as constantes iniciativas dos jesuítas,
para adquirir a concessão imperial de fixação definitiva de uma missão do ocidente em
uma cidade no Império do Meio não foram suficientes para acabar com a tática dos
chineses em desarticular os padres quanto aos esforços iniciais que eram feitos em cada
cidade. Assim, cada expulsão ou suspensão de permanência, dentre outras possibilidades
de interpretação, pode ser tida como desterritorialização.19 Isso explica as muitas
mudanças de residência ao longo desta década, sempre em função do que a autoridade
chinesa determinava. Obviamente que essa instabilidade geográfica refletiu também na
ação de catequese propriamente dita, já que a cada nova fixação era necessário a
readequação aos hábitos daquela nova região, como também reconduzir os ritos de
hospitalidade na visitação à autoridade local, incluindo a importância de presenteá-los.

A tentativa de fundar uma identidade cristã era proporcional aos quadros de


resistência e estranhamentos dos chineses. Nessa luta de resistência, no entanto, cabia aos
jesuítas repensar os seus esforços de atuação. Com essas frequentes fragilidades

16
Ler Todorov (1999) o capítulo “ Tipologia das relações com outrem”.
17
Outras Ordens religiosas estiveram nesta região, em período anterior, mas nenhuma delas conseguiu
permissão imperial para fixarem-se em solo chinês, por isso os jesuítas são considerados a 1ª Ordem a
conseguir esta concessão, em 1582, para atuação em Zhaoqing.
18
A Bula Super Specula Militantis Ecclesiae, de janeiro de 1576, do Papa Gregório XIII, criou a Diocese
de Macau, com jurisdição sobre a China, Japão, Coréia e ilhas adjacentes, mas ficando sob a subordinação
do Bispo de Goa.
19
O conceito de desterritorialização é apresentado em Chelotti (2010) a partir de outra chave que não está
nas discussões mais comuns, no campo da Geografia: des-re-territorialização. O prefixo “re” cunhando a
ideia de que desterritorializar não é necessiariamente abandonar um espaço, mas construir “inúmeras
formas de territórios”.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

85
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

territoriais de fixação ficava aparente a dimensão política que pode ser cotejada também
no conceito de território. Territorialidade, sob o olhar das estratégias dos jesuítas, era um
componente de poder necessário para que as demais ações de missionação pudessem dar
frutos. A priori, o projeto de catequese na China dependeu inexoravelmente da conquista
de uma identidade territorial, como um espaço de pertencimento dos missionários que
passaram mais de dez anos, a margem dos espaços urbanos mais influentes do Império
Chinês.

Macau, no debate em torno do conceito de território não era só um ponto


geográfico para iniciar a catequese na China, se constituiu antes, como pluralidade
territorial em razão de sua vocação para entreposto comercial, com a presença de
diferentes povos, diferentes práticas culturais que lhe remetiam a ideia de um espaço-
tempo vivido, como destacado por Haesbaert (2004). Nesta lógica, território não é
unifuncional, tampouco padrão, ao contrário, sob esta perspectiva, ele ganha contornos
múltiplos, complexos e socialmente construídos pelas práticas sociais de diferentes
culturas que conviviam pelo mesmo interesse mercantil de comercializar.

A economia chinesa também dependia desse espaço de circulação que inspirava o


interesse europeu por ser o ponto de ligação com as três principais rotas comerciais, como
já indicado aqui. Essa dinâmica pode ser entendida pelo conceito de passeurs de Gruzinsk
(2005), com a concepção de que no trânsito entre rotas comerciais havia também
circulação de novas ideias e disseminação de diferentes saberes. Ali, a diversidade era
palpável através do encontro de diferentes nacionalidades, que na mesma lógica também
chegavam neste espaço desempenhando diferentes funções. Os chamados mediadores
culturais eram assim, comerciantes, letrados, cronistas e missionários; todos
compartilhando a percepção de território como espaço de dominação política também.

Aqui se explica o ponto de tensão entre este sentido simbólico de Macau no


contexto da sociedade chinesa. Se por um lado, dependiam exclusivamente do comércio
marítimo, para a chamada Rota da Seda no Oriente, por outro, deixavam a região com um
grau de vulnerabilidade permanente aos ataques piratas que iam de encontro a política de
controle e isolacionismo chinês. A chegada dos Portugueses representou um mesmo
interesse e esforço, por coibir estas práticas de pirataria, construindo uma aliança

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

86
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

alicerçada no ideal econômico de manter Macau como a ponte de ligação entre ocidente
e oriente, através do lucrativo comércio.

O Império do Meio, no século XVI, fez de Macau uma via de mão dupla: como
porta de saída da seda para diferentes rotas comerciais no ocidente e oriente e, em razão
da prosperidade econômica da Dinastia Ming, como porta de entrada para diferentes
produtos na China, oriundos de diversas regiões. A função de Macau, assim, foi
redimensionada como canal de distribuição de mercadorias para a Europa, Ásia, África e
América.

Seguindo a ordem do Padre Visitador e Vigário geral da Ásia Alessandro


Valignano, no primeiro ano em Macau, Matteo Ricci esteve acompanhado de cerca de
mais quatorze padres designados para outras missões na Ásia também. Começava, então,
a meta prioritária em conseguir junto às autoridades chinesas de Cantão, a autorização
para fixação de residência. Oficialmente, em 1593, o padre Ruggiere celebra a primeira
missa em solo chinês, após a concessão do Vice Rei, como também a permissão para
construção de uma residência em Zhaoqinq.20 Tais feitos estavam diretamente atrelados
ao legado de participação e convívio de outros jesuítas que circulavam em feiras de
comércio não só de Macau, atuando como intérpretes para intermediar as negociações
com os demais comerciantes, já que ali era espaço de múltiplas línguas e costumes. Eis
aqui, um ponto de contato entre práticas comerciais auxiliando aos projetos de
missionação.

A missão, nestes tempos, foi marcada por menos avanços e mais recuos em
decorrência das inúmeras contestações de renovação da permanência dos jesuítas em solo
chinês. Isso variava tanto quanto a troca de autoridades dos altos funcionários do Império
que arbitravam de forma diferenciada sobre a temática, sempre polêmica, de estrangeiros
missionários. Isso explica as muitas mudanças de residência ao longo destes dez anos,
sempre em função do que a autoridade chinesa determinava.

20
Esta concessão foi possível, porque Ruggiere já era conhecido em Cantão, por alguns comerciantes
chineses que o viam acompanhar comerciantes portugueses nas feiras de Cantão, como um intérprete para
as práticas comerciais.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

87
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Se Macau era reconhecidamente um território profícuo ao comércio, foi nele


também que os missionários iniciaram os primeiros movimentos para o que Chelotti
(2009) define como a reterritorialização de um espaço, neste caso a apropriação de um
espaço geográfico para construção de uma identidade cristã. Importam, nestes quadros,
as relações de poder que se construíram entorno da ideia de um território produzido para
ser campo simbólico das representações sociais e de um projeto de missionação no
Oriente. Será de Macau que os jesuítas irão partir para adquirir mobilidade em solo
chinês, para que pudessem difundir os ensinamentos do Ocidente e a fé cristã.

A pouca mobilidade geográfica que marcou as ações de catequese constitui-se


numa espécie de processo de desterritorialização que é o movimento, ainda que motivado
por decisão de autoridades chinesa, de abandonar um território. Aqui, como meio de
obediência e acato as decisões de transferência ou expulsão pelas quais os missionários
precisaram lidar, ao longo da presença dos jesuítas na China. Tal ideia de abandono deve
ser nuançada pela possibilidade de pensar os demais “múltiplos espaços territoriais” que
rapidamente eram construídos pelos jesuítas. Como um redimensionamento espacial e
não um “abandono de projeto de catequese”.

Neste movimento de troca geográfica da missão chinesa, nos permite apropriação


de outra ideia do campo simbólico21 que estes espaços se constituíam, já que
concretamente a cada mudança, não significava o fim ou anulação das ações já
empreendidas pelos missionários, ao contrário, aqui, importava saber que nas demais
fixações haveria igualmente um conjunto de representações simbólicas que pudessem
reorganizar as táticas e estratégias dos jesuítas com a plasticidade necessária para
minimizarem o estranhamento dos chineses daquela localidade quanto às primeiras
impressões em relação aos jesuítas.

Desse cenário rico de representações simbólicas, alicerçaram-se as estratégias de


catequese dos tempos de Ricci, como também dos demais missionários que lhe
precederam. A Companhia de Jesus, desde a primeira permissão para fixação em
Zhaoqinq conseguiu exclusividade de atuação por cerca de cinquenta anos, já que a partir
de 1630 outras Ordens Religiosas juntaram-se ao projeto de cristianização do Oriente.

21
Aqui, aproximando às discussões também sobre O poder simbólico no trabalho de Bourdieu (1998).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

88
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Pensar os espaços de atuação, nas múltiplas discussões sobre território é, de certa forma
compreender, segundo Haesbaert (1990, p.23) que ele “é, ao mesmo tempo, (...) funcional
e simbólico, pois as relações de poder têm no espaço um componente indissociável tanto
na realização de funções quanto na produção de significados”.

As dinâmicas de territorialização produziram um fluxo de comunicação que


montou uma identidade comum aos dois mundos distintos dos chineses e dos jesuítas.
Singularidade essa que permeou a história do projeto de missionação no Oriente,
especificamente na China.

De certo que compreender as diferenças entre espaço geográfico e espaço


simbólico nos aproxima da possibilidade de pensar a pluralidade cultural das relações
sociais que se constituem a partir da ação humana, no tempo. Em conferência proferida
em 1989, Pierre Bourdieu (1996, p.13), ao tratar dessa diferenciação, pontuou que se
“fosse japonês, não gostaria da maior parte das coisas que os não japoneses escrevem
sobre o Japão”. Isso para dar conta da discussão etnocêntrica do olhar para o “outro”. Na
mesma escala, podemos pensar no estranhamento que se configurou entre os chineses e
os jesuítas.

Há uma tipologia de territórios que tem interseção com a ideia de


multiterritorialidade. Segundo Fernandes (2009, p.9) “da tipologia nasce a
multiterritorialidade e são objetos distintos. As territorialidades são as representações dos
tipos de uso dos territórios”. Na referida tipologia é possível trabalhar, a partir de três
dimensões: uma jurídica, que diz respeito ao domínio de quem “controla”, aqui cabendo
entender a definição de Estado, província e mesmo das institucionais que irão regular este
espaço. Na segunda dimensão, um espaço considerado das práticas de convívio, segundo
o autor, onde se dão as relações sociais entre pessoas de um mesmo grupo. E, por fim, a
dimensão do espaço relacional, aqui, entendido como aquele em que se dão as trocas
culturais, a partir dos – usos- de cada território.

Estas escalas convergem para a ideia da construção de um espaço simbólico que


organiza os diferentes referenciais culturais e, novamente aplicando a missionação na
China, permite articular de que forma cada região, de espaço de convívio dos jesuítas, se
constituiu como - espaço simbólico- para a difusão de uma identidade cristã.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

89
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ricci procurou usar estes espaços como meio de difundir seus conhecimentos do
ocidente e, por relação de aproximação, com os ensinamentos da religião do “Senhor do
Céu”, como seria intitulada a religião ocidental, entre os letrados chineses. Nestas práticas
de convívio com os chineses, a missão cometeu um equívoco, ao produzir, por mais de
dez anos, referenciais de vestimenta e aspectos físicos que assemelhavam os jesuítas aos
bonzos22.

As relações sociais dos chineses estavam imbricadas à religião também, o que


exigia dos jesuítas a necessidade de adaptações não só em termos de produção textual de
catecismos e outros textos religiosos, em língua local, mas também a urgência em mudar
hábitos, atitudes, aspectos que contornavam as ações humanas em sociedade. Aqui,
importava, portanto, observar, o modo de se comportar, de falar, de se vestir; tudo que
pudesse minimizar o estranhamento imediato que existia para um chinês ao olhar um
padre jesuíta. Será, somente, a partir do deslocamento dos jesuítas do sul da China para
regiões mais próximas ao Imperador que se observam uma nova roupagem para as
práticas de atuação. Tais mudanças na aparência física, no que aqui estamos tomando por
segunda etapa de missionação, minimizaram o estranhamento dos chinas em relação aos
missionários, mas não foram suficientes para assegurar uma forma eficaz no
reconhecimento da sabedoria e conhecimento destes padres do ocidente.

Outras adequações foram feitas, ao longo do tempo em que Ricci divulgou a sua
técnica mnemônica, conseguindo alargar o campo interpretativo de suas discussões,
primeiro sobre temas relacionados aos exames que os chineses iriam prestar23 e, por
associação, numa segunda etapa, conversando sobre algumas passagens bíblicas e
explicando sobre temas centrais do Cristianismo aos letrados da sociedade chinesa.

Todas as redefinições estratégicas de atuação visavam combater o etnocentrismo


instaurado desde a vocação missionária da Ordem Jesuítica em difundir a fé cristã em
espaços extraeuropeus, ou mesmo de pensar a Companhia de Jesus com uma inclinação

22
Bonzos eram considerados aqueles que praticavam rituais de pagode, como também adivinhadores. Os
missionários eram considerados “bruxos feiticeiros do ocidente”. Em dicionários contemporâneos já é um
verbete para designar “dissimulado, hipócrita”.
23
Ricci consegue aproximar-se dos letrados chineses, através dos filhos destes funcionários, para os quais
lecionava sobre a sua técnica Mnemônica como método para recordar os conteúdos exigidos ao exame para
altos cargos burocráticos no Império chinês. Ler SPENCE (1986).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

90
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de forte mobilidade geográfica, em termos institucionais. A pretensão ocidental de aplicar


seus referenciais culturais aos “outros” de terras distantes, foi pouco a pouco ganhando
contornos de uma plasticidade cultural que rompia com a premissa de uma missionação
pensada de cima para baixo24.

Sob o olhar das trocas culturais, pensando o espaço de vivência entre os chineses
e os jesuítas, se por um lado os conhecimentos de Ricci sobre o funcionamento dos
relógios mecânicos suscitou interesse do Imperador Wanli, por outro, a base filosófica
chinesa presente nas três práticas religiosas (budismo, taoísmo e confucionismo) foi
motivo de readequação do modelo religioso pensado no Projeto de catequese e
alargamento da fé cristã.

Essa possibilidade de pensar o campo da história, a partir da ideia de cultura


histórica não é novo. A partir da década de setenta, os teóricos das ciências da humanidade
começam a alargar o campo de discussão da chamada história cultural. Assim, os dois
conceitos não se opõem, pois segundo Rüsen (1994, p.4) “la cultura historica se puede
definir como la articulación práctica y operante de la consciencia histórica en la vida de
uma sociedad”. Com esta verticalização do conceito, as experiências vividas a partir do
encontro de culturas distintas compõem um universo de discussão que vai além da
fronteira de uma análise discursiva e textual herdada do conceito de história cultural.25

Os conceitos que permeiam a ideia de cultura histórica, segundo Sanches Costa


(2013), não se restringem a uma definição unívoca, ao contrário, diferentes possibilidades
de trabalhar a cultura histórica como um campo de análise são operacionalizados em seu
trabalho. Sob a influência do Giro Linguístico, na década de oitenta, ele prioriza a
observação dos usos e das recepções usadas como mecanismos eficazes para a construção

24
Sobre a discussão dos modelos ocidentais serem aplicados aos “outros”, ler Goody (2013) que discute a
dicotomia ocidente e oriente pela chave do “roubo da história”, em referência a apropriação de alguns
saberes do Oriente.
25
Não cabe aqui uma discussão historiográfica sobre os usos da história cultural. Aqui, sob uma visão
panorâmica, bastaria pensar a escola Francesa há quatro gerações dos Annales que apresentou termos que
contribuíram aos esforços de uma discussão atual sobre cultura histórica, como história das mentalidades
(Marc Block e Lucien Febvre), História da cultura material (Fernand Braudel) e com novas concepções a
história das mentalidades de Jacques Le Goff e Emmanuel Ladurie. Ler Burke (2008).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

91
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de uma identidade em comum, aqui, pensada como a possibilidade de construção de uma


identidade cristã.

Nas práticas de missionação importava, portanto, as estratégias de convívio com


a cultura do “outro”. Todos os esforços de produção textual em língua local, como
também a necessidade de compreensão das práticas religiosas e culturais das regiões em
que estiveram mais atuantes; buscando aqui construir uma identidade comum entre visões
de mundo distintas, convergências que pudessem minimizar o estranhamento cultural
iminente.

Através da circulação das cartas entre a Ordem jesuítica fica evidenciado o


cuidado na descrição dos rituais, das práticas culturais e todos os detalhes que pudessem
“narrar” o olhar sobre o outro. Segundo Ginzurg (2001, p.22) em seu trabalho Olhos de
madeira: nove reflexões sobre a distância, o estranhamento é apontado como modo de
compreensão, alcançável se observar a realidade por posição periférica e marginal. Com
certo distanciamento, já que “nossos hábitos perceptivos tornaram gastos e repetitivos.
Para ver as coisas devemos, primeiramente, olhá-las, como se não tivessem nenhum
sentido”, como um esforço de anulação das representações simbólicas equivocadas. Os
jesuítas trabalharam com esta possibilidade de narrar aos padres que estavam distantes, o
ritmo de missionação que era instaurado nas missões não só na China, como também em
outros pontos estratégicos do Oriente, como padre Nobili na Índia e Francisco Xavier, no
Japão.

Nessa perspectiva, uma questão norteou este trabalho: o redimensionamento


territorial e os usos de estratégias de missionação, nos mais de vinte e cinco anos de
atuação de Ricci, foram suficientes para minimizar o estranhamento entre ocidente
e oriente? Indagação que ainda é um ponto de partida para muitas pesquisas e debates no
campo das ciências humanas, no tempo presente. E que parece não se esgotar.

Referências Bibliográficas:

BURKE, Peter. O que é história cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BOSSY, John. A Cristandade no Ocidente:1400-1700. Lisboa: Edições 70, 1990.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

92
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico.Rio de Janeiro: Bertrand, 1998.

____. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996

BOXER, Charles R.. O império marítimo português 1415 -1825. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002.

____. A Igreja militante e a expansão Ibérica 1440-1770.São Paulo: Companhia das


Letras, 2007

CHELOTTI, Marcelo Cervo. Reterritorialização e identidade territorial. Uberlândia:


Revista Sociedade e Natureza v.22, 2010

FERNANDES, Bernardo Mançano. Sobre tipologias de territórios. In: SAQUET,


Marcos Aurélio; SPOSITO, Eliseu Savério (Org.) Território e Territorialidades: teorias,
processos e conflitos. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

FERREIRA, Denilson Silva. Território, territorialidade e seus múltiplos enfoques na


ciência geográfica. Revista de geografia agrária. V.9. Universidade Federal do Pará, 2014

GOODY, Jack. Renascimentos: um ou muitos? São Paulo: Editora UNESP, 2011

____. O Roubo da história: como os europeus se apropriaram das ideias e invenções do


Oriente. São Paulo: Contexto, 2013.

GRUZINSKI, Serge. A passagem do século:1480-1520: As origens da Globalização. São


Paulo: Companhia das Letras, 1999.

_____. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

_____. Passeurs y elites “católicas” en las Cuatro Partes del Mundo. Los inicios
ibéricos de la mundialización (1580-1640). In: Passeurs, mediadores culturales y agentes
de la primera globalización en el Mundo Ibérico, siglos XVI-XIX. Scarlett O’Phelan &
Carmen Salazar-Soler (editoras). Lima: IFEA, 2005.

_____. A águia e o dragão: ambições europeias e mundialização no século XVI. São


Paulo: Companhia das Letras, 2015.

HAESBAERT, Rogério. Território e Multiterritorialidade: um debate. Niteroi: UFF,


Instituto de Geociências, Revista GEOgrafia, 1999.

_______. Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade. I Seminário Nacional sobre


Múltiplas Territorialidades, Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRGS, Curso
de Geografia da ULBRA e AGB-Porto Alegre, 2004.

LACOUTURE, Jean. Os jesuítas: os conquistadores. Porto Alegre. LPM Editora, 1994.

PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2001

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

93
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

RUSEN, Jörn. ¿Qué es la cultura histórica?: Reflexiones sobre una nueva manera de
abordar la historia.Traducción de F. Sánchez Costa e Ib Schumacher. [Versión castellana
inédita del texto original alemán en K. Füssmann, H.T. Grütter y J. Rüsen, eds.:
Historische Faszination. Geschichtskultur heute, 1994

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:


Companhia das Letras, 2007.

SÁNCHEZ-COSTA, Fernando: La fragua de la identidad. Memoria, conciencia


histórica y cultura histórica. En Sánchez-Costa, F. y Palos, Joan-Lluís: ‘A vueltas con el
pasado: historia, memoria y vida’. Edicions Universitat de Barcelona, Barcelona, 2013.

SAQUET, Marcos Aurélio. Por uma abordagem territorial. In: SPOSITO, Eliseu
Savério. (Org.) Território e Territorialidades: teorias, processos e conflitos. 1ª ed. São
Paulo: Expressão Popular, 2009.

SEABRA, Leonor. Macau e os jesuítas na China (séculos XVI e XVII). Disponível em:
file:///C:/Users/Adriana/Downloads/Macau%20e%20os%20jesu%C3%ADtas%20na%2
0China%20(s%C3%A9culos%20XVI%20e%20XVII)%20(1).pdf

SPENCE, Jonathan. O palácio da memória de Matteo Ricci. São Paulo: Companhia das
Letras, 1986.

TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: A questão do outro.São Paulo: Martins


Fontes, 1999.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

94
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Pela revolução ele foi ao Éden! A trajetória militante de João Pedro de Souza
Neto26

ADRIANA MARIA RIBEIRO


Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPHR) da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
Introdução

À primeira vista, o título do texto pode sugerir a ideia de que otermo “Éden”é uma
alusão ao “paraíso”. Não é isso! O Éden em questãonada tem a ver com o cenário bucólico
e harmonioso citado em Gênesis. Trata-se, na realidade, donome do bairro pobre,
desprovido de serviços básicos (saúde, saneamento, segurança e lazer), localizado no
município de São João de Meriti, na Baixada Fluminense27.Foi para lá que João Pedro de
Souza Neto mudou-se em 1977, pela causa revolucionária.Oriundo de um núcleo
familiar pecebista, desde cedo Souza Neto engajou-se na resistência à ditadura militar e
na defesa dos ideais socialistas. Inicialmente, aproximou-se do Partido Comunista
Brasileiro (PCB) no Mato Grosso do Sul, depois, no Rio de Janeiro, ingressou no
Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) nos anos 1960, e no Partido
Comunista do Brasil-Ala Vermelha (PCdoB-AV) nos anos 1970.

No momento em que ingressou na Ala28, a organização avançava na autocrítica


em relação à chamada “luta armada”29 e priorizavaa linha de massas30 como tática para

26
O tema debatido no Seminário é um desdobramento da pesquisa sobre a trajetória social e política do
Partido Comunista do Brasil-Ala Vermelha (PCdoB-AV), a qual vimos desenvolvendo desde 2011 junto
ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Inicialmente,
pesquisamos as experiências de inserção política do partido na Baixada Fluminense em meados dos anos
1970,as quais foram interpretadas na dissertaçãodefendida em 2013.(RIBEIRO, 2013). Desde 2014,
passamos a estudar a história nacional da organização em suas diferentes fases (“luta armada” e
“autocrítica”).
27
Região metropolitana do Rio de Janeiro, que engloba as cidades de Belford Roxo, Duque de Caxias,
Japeri, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Queimados e São João de Meriti. Cabe destacar que, no decorrer
da década de 1970, se constituíam como municípios apenas Duque de Caxias, Nilópolis, Nova Iguaçu e
São João de Meriti. As demais cidades integravam distritos de Nova Iguaçu.
28
Ala é o nome pelo qual o PCdoB-AV ficou conhecido.
29
Optamos por destacar o termo “luta armada” porque embora as organizações tenham feito significativo
uso de armas em ações de resistência à ditadura, na maioria das vezes, não ocorreu combates armados entre
esquerdistas e militares, como a denominação sugere.
30
Linha de massas – teoria que defende o pressuposto de quea deflagração e a vitória do processo
revolucionário dependem do apoio permanente dos operários e dos camponeses, cujas aspirações devem
ser identificadas e encampadas pelo partido.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

95
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

aproximar-se dos trabalhadores. Em um processo de “ida ao povo”, os militantes


deslocaram-se para fábricas, sindicatos e periferias urbanas.De modo semelhante às
experiências vivenciadas por outros militantes, Souza Netotrocou a vida confortável em
um bairro nobre por um modo de vida simples em uma área periférica da metrópole, a
fim de desenvolver naquela comunidade um trabalho político de base. Com esse trabalho,
desejava “despertar a consciência política nos moradores”, conforme nos
afirmou(SOUZA NETO, 2011).

Nesse breve texto, apresentaremos alguns aspectos da trajetóriadeSouza Neto,


buscando observar como sua vivênciapolítica impactou suas escolhas e seu modo de
vida.No que tange à sua trajetória, ela também nos ajudaa compreender as experiências
vivenciadas por outros militantes de esquerda, que no curso dos anos 1970 e início dos
anos 1980 buscaram inserção entre os trabalhadores, com o intuito de criar as condições
favoráveis para a instauração de uma “democracia popular”31 no Brasil.

Sobre a Ala e as táticaspara se inserir entre os trabalhadores (década de 1970)

Sobre a Ala, vale mencionar que se trata de um agrupamento marxista-leninista-


maoísta surgido em 1967, após uma cisão ocorrida no Partido Comunista do Brasil
(PCdoB). Inicialmente, a organização aderiu a bandeira da “luta armada” e realizou, no
final dos anos 1960, ações de expropriação32 e de propaganda revolucionária. No entanto,
em 1969, começou a discutir sobre a eficácia e o alcance social desse tipo de ação;
tornando-sepioneira no processo de autocrítica das organizações revolucionárias no
Brasil (RIBEIRO, 2013, p. 54).

Com a autocrítica, a Ala abandonou gradativamente as ações armadas e passou


adotar alternativas de luta voltadas para aproximar o partido dos trabalhadores.
Empenhados no trabalho de massa, no decorrer dos anos 1970, os militantes buscaram
inserção em fábricas, bairros operários, periferias urbanas e nos movimentos sociais de

31
O termo refere-se a uma fase de transição do capitalismo para o socialismo.
32
Ações de expropriação eram em sua maioria assaltos efetuados para financiar a guerrilha e sustentar o
funcionamento das organizações. As ações são assim denominadas por seu caráter político.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

96
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

base33, imbuídos da tarefa de conscientizar e de organizar politicamente os trabalhadores.


Entre as táticas de inserção adotadas pela Ala estava o “trabalho de fábrica”, o qual
implicava integração de quadros na produção fabril. Inserido na fábrica, o militante
deveria buscar comportar-se como operário, a fim de ganhar a confiança dos colegas de
trabalho e criar possibilidades para despertar neles a consciência de classe e mobilizá-los
para a luta política.Com o objetivo de apoiar o “trabalho de fábrica”, o militante deveria
mudar-se para um bairro operário ou periférico, onde poderia reforçar sua “identidade
operária” e estreitar laços de amizade com os trabalhadores e suas famílias (PARTIDO
COMUNISTA DO BRASIL-ALA VERMELHA, 1971, p. 03-04).

Pensado inicialmente como um ponto de apoio ao “trabalho de fábrica”, o ato de


morar nos bairros gerou outra tática de inserção: o “trabalho de bairro”. Ao longo da
década de 1970, essa tática seriareavaliada e emboracontinuasse integrada ao “trabalho
de fábrica”, no fim da década, deixaria de ser uma atividade política secundária para
tornar-se prioridade como tática de inserção do partido entre os trabalhadores, sobretudo
na Ala fluminense34.As atividades de integração nos bairros foram mencionadas em
diversos documentos, como por exemplo, no texto “Concepção e organização sobre o
trabalho de bairro”, de novembro de 1979, no qual a organização reconhece que “a
exploração da força de trabalho não se dá somente na fábrica, mas, nos bairros, nas
condições de vida do operário e de sua família” (PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL-
ALA VERMELHA, 1979, p. 01-02).

Éimportante destacar, que as mudanças no discurso sobre as inserções nos bairros


ocorreram durante a luta democrática no país, quando estavam em desenvolvimento
diversos movimentos sociais, entre eles o movimento de bairros. Possivelmente, a
dinâmica impressa pela natureza dos movimentos populares influenciou o
redimensionamento das formas de atuação política da Ala. Na Baixada Fluminense, por
exemplo, o movimento de bairro despontou com força e caracterizou-se pelo

33
Movimentos relacionados às mobilizações de trabalhadores e de cidadãos pobres para a reivindicação de
aspectos ligados às condições de vida, ao acesso aos serviços públicos e aos direitos sociais.
34
De acordo com a nossa pesquisa, após a autocrítica, a Ala passou a ter dois núcleos: a Ala paulista, a qual
tinha membros inseridos em sindicatos na região do ABCD Paulista e em Guarulhos, e a Ala fluminense,
relativa aos militantes da organização no Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro, identificamos a presença de
militantes na zona norte e na zona oeste carioca e em municípios da Baixada Fluminense.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

97
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

florescimento de associações de moradores. Atraída pela possiblidade de atuar no


movimento popular local, a partir de 1977, a Ala transferiu quadros para a região
(RIBEIRO, 2013, p. 90). Mobilizadasem especial pelo Movimento Amigos de Bairro de
Nova Iguaçu (MAB), surgido em 1974, a partir do trabalho conjunto de médicos
sanitaristas e de membros da diocese iguaçuana35,as associações funcionaram como um
dos principais canais na luta por direitos e por melhores condições de vida da população.

Diferentemente de outras localidades, como nos distritos industriais do ABCD


Paulista, onde militantes se inseriram em sindicatos com o intuito de participar do
movimento operário local, nos municípios da Baixada, os membros do partido
concentraram esforços no movimento de bairro, buscando atuar no processo de fundação
e de fortalecimento das associações de moradores (RIBEIRO, 2013). Vale dizer que,
naquela conjuntura, diferentes organizações clandestinas buscaram modos de inserção
nessas regiões, em função de serem áreas estratégicas para seus objetivos políticos: o
ABCD por abrigar um dos mais importantes complexos industriais do país e a Baixada
por caracterizar-se como um lugar de moradia de operários e camadas pobres. Nos dois
casos, significavam espaços de grande concentração de trabalhadores.

No que se refere especificamente às experiências vivenciadas por militantes da Ala


na Baixada Fluminense, é importante mencionar que os espaços ligados à Igreja
representaram um lugar privilegiado de sociabilidade, nos quais os membros do partido
buscaram atuar politicamente. A presença nesses espaços, bem como nas associações, foi
orientada pela direção regional, em função deles representarem a possibilidade de
participação política e de “cobertura legal”36 para as atividades do partido (PARTIDO
COMUNISTA DO BRASIL-ALA VERMELHA, 1978, p. 02).Na prática, estar nesses
espaços foi uma das principais estratégias utilizadas pelos militantes para integrar-se ao
movimento e ao cotidiano dos bairros37.

35
O incentivodo setor progressista da Igreja católica ao associativismo nos bairros foi essencial para o
fortalecimento desse tipo de ação coletiva, a exemplo das experiências verificadas na diocese de Nova
Iguaçu, sob a liderança de Dom Adriano Hypólito (SÓTENOS, 2013, p. 80).
36
A noção de cobertura legal passa por dois aspectos: o de escapar aos olhos da repressão e o de ter
legitimidade social e moral a partir da Igreja.
37
Ademais, durante a ditadura, dioceses e paróquias lideradas por padres e missionários adeptos ao
Cristianismo de Libertação funcionaram como uma espécie de “guarda-chuva” para a proteção e a atuação
política das esquerdas e de outros grupos perseguidos pelo regime militar.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

98
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Sobre João Pedro

João Pedro de Souza Neto nasceu em Campo Grande, Mato Grosso, em 17 de


outubro de 1946. Seu pai, Ary de Souza, era dentista e militante do PCB: aspectos que
possivelmente marcaram suas escolhas profissionais e políticas. Seu tio paterno também
era pecebista. No início da década de 1960, Souza Netoensaiou uma aproximação com o
PCBmato-grossense.No entanto, em 1964, poucos meses após o golpe civil-militar,
mudou-se para o Rio de Janeiro para tentar vaga no curso de Odontologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no qual ingressou no ano seguinte. No mesmo ano,
passou a militar no movimento estudantil e assumiu a vice-direção do Diretório
Acadêmico de seu curso. Em 1968, momento de recrudescimento da ditadura, engajou-
se no MR-8: um agrupamento da esquerda armada.

Em novembro de 1969 foi detido por agentes da Aeronáutica no Campus da UFRJ


na Praia Vermelha, sob a acusação de envolvimento no sequestro do Avião Caravele da
empresa Cruzeiro do Sul, ocorrido no dia 08 de outubro. Levado para interrogatório no I
Batalhão da Polícia do Exército, sede do DOI-Codi, situada no bairro da Tijuca, foi
barbaramente torturado e permaneceu detido por cinco dias. Acusado em Inquérito
Policial Militar, foi absolvido por falta de provas. No depoimento que nos concedeu,
ressaltou que não teve envolvimento na ação e que foi preso em função da amizade com
um dos jovens envolvido no sequestro da aeronave. Após a prisão, concluiu a graduação
e retornou à sua cidade natal, onde iniciou a profissão de dentista.

No início dos anos 1970, voltou à cidade do Rio de Janeiro, onde continuou sua
atividade profissional. Decepcionado com as lutas implementadas pela esquerda armada,
viveu uma breve fase de refluxo nas práticas políticas. Em1974, retomou a militância ao
ingressar na Ala.

João foi ao Éden!

Logo após seu ingresso na Ala, Souza Netopassou a discutir com a direção do
partido a possibilidade de deslocar-se para a Baixada Fluminense, onde assumiria a tarefa

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

99
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de aproximar-se dos movimentos sociais de base que floresciam na região. Em 1977,


trocou a residência e o consultório dentário no Flamengo, zona sul do Rio de Janeiro, pelo
bairro Éden, no município de São João de Meriti.

De acordo com o militante, a escolha pelos municípios da Baixada estava ligada à


forma como Ala via a região: local de moradia de milhares de trabalhadores no Rio de
Janeiro e de ascensão do movimento operário e de associações de bairro, nos quais os
membros do partido buscavam inserção. Também mencionou que no momento em que
se deslocou para a região, outros militantes deixaram as zonas sul e norte carioca para
estabelecerem-se nos municípios de São João de Meriti, de Duque de Caxias e de Nova
Iguaçu. Nos contou ainda sobre a ocorrência de resistências aos deslocamentos
sociogeográficos propostos pelo partido, ao citar casos em que indivíduos preferiram
permanecer em bairros nobres e atuar nas manifestações políticas organizadas pelos
setores da classe média (SOUZA NETO, 2011).

Sobre o processo de mudança, ressaltou as profundas alterações no seu modo de


vida, as quais a escolha implicava. Em seu relato, destacou que a maioria daqueles que
aceitaram o desafio de mudar para a periferia era jovem, com idade entre 21 e 28 anos,
“jovens que acreditavam fielmente na possibilidade de transformação da realidade
brasileira, na construção de um país baseado na democracia popular” (SOUZA NETO,
2011).

No período em que Souza Neto chegou à Baixada, a região possuía uma


população de aproximadamente dois milhões de habitantes. Os municípios mais
populosos eram respectivamente, Nova Iguaçu, Duque de Caxias e São João de Meriti38.
À época, a região apresentava estatísticas socioeconômicas alarmantes. Até 1980, cerca
de 60% dos domicílios não possuíam esgoto e água encanada39. Esses dados associados
aos altos índices de violência, sobretudo de homicídios, corroboravam para difundir a
visão socialmente construída de que a região se caracterizava pela pobreza e pela
violência. No entanto, em meio às dificuldades locais, parcela significativa da população
protagonizou importantes ações coletivas para superar as carências e exigir direitos, a

38
Censo Demográfico de 1980. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
39
Idem.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

100
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

exemplo do associativismo nos bairros, fatoque atraiu a atenção da Ala e de outras


organizações de esquerda para a localidade40.

No Éden, Souza Neto residiu em uma casa sem água encanada, situada numa rua
sem pavimentação e rede de esgoto. A iluminação do local era precária. O bairro não
contava com unidade de saúde e nas escolas públicas não havia vagas suficientes para
atender as demandas da localidade. No bairro, procurou agir como simples morador, a
fim de fazer amizades e aproximar-se daquela comunidade. Sua principal ação política
no bairro foi o incentivo à criação da associação de moradores.Também em Meriti, ajudou
a fundar associações nos bairros Vila Norma e São Mateus, nos quais as condições de
vida se assemelhavam aquelas encontradas no Éden.

Vislumbrando sua atuação política na Baixada, no mesmo ano em que migrou


para a região, prestou concurso para Ministério da Saúde, pleiteando as poucas vagas de
dentista destinadas aquela localidade. Aprovado, passou a exercer a função na rede
pública federal em Meriti.

Em 1979, casou-se e mudou-se com a companheira de partido Warley da Costa


para o bairro Vila Nova, em Nova Iguaçu. Inserido naquela comunidade, o casal
aproximou-se da paróquia local e em conjunto com membros da Igreja recorreu a formas
diversas de mobilização dos moradores, como a criação de cooperativas e o incentivo a
atividades culturais, também participouda criação da associação do bairro e atuou no
MAB. Com essas iniciativas, esperava mobilizar politicamente a comunidade e superar
as carências locais (COSTA, 2012).

No mesmo ano,Souza Neto articulou a criação doJornal da Baixada(JOB)41 e foi


uma das liderançasdo Movimento Pró-PT na Baixada Fluminense. Em 1980, ao lado de
outros militantes da Ala e de outros grupos de esquerda, de membros do setor progressista
da Igreja e de lideranças comunitárias, fundou o Partido dos Trabalhadores (PT) em
Meriti.Rememorou que após a criação do partido e, sobretudo a partir de 1985, quando o

40
Além da Ala, o MR-8, o PCdoB e o Movimento pela Emancipação do Proletariado (MEP) deslocaram
quadros para a Baixada em meados dos anos 1970.
41
O JOB foi idealizado por militantes da Ala fluminense, como parte da tática de inserção do partido entre
os trabalhadores. O periódico circulou entre maio de 1979 e fevereiro de 1980, nos municípios da Baixada
Fluminense. Seus principais locais de circulação foram associações de moradores, sindicatos e paróquias
onde havia militantes da Ala inseridos. Para aprofundamento sobre a história do jornal, ver RIBEIRO, 2013.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

101
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

processo de luta política transcorria dentro de estruturas legalizadas, a maioria


dosmilitantes da Ala regressou aos seus bairros e cidades de origem. Mas, Souza
Netooptou em permanecer morador na Baixada.

Engajado na luta em torno dos direitos democráticos, que então mobilizava o país,
criou vínculos de identidade com a população local, a partir dos quais passou a sentir-se
parte da comunidade na qual estava inserido.No decorrer das décadas de 1980 e 1990,
integrou as direções municipais do PT de Nova Iguaçu, deSão João de Meriti e do então
recém-criado município de Belford Roxo42. Nesse último, chegou a concorrer pelo
partidoao cargo de prefeito na primeira eleição municipal, ocorrida em 1992, mas foi
derrotado.

Familiarizado com os costumes locais e preservando laços afetivos e políticos na


região, Souza Netodecidiu ficar na Baixada, onde residiu com sua companheira de
organização e de vida Maria Fátima de Souza Silva até vir a falecer em fevereiro de 2014.

A respeito da rememoração que fez de sua inserção política na Baixada, notamos


que entrelaçou sua vivência a visões de mundo e a histórias de outros militantes, inclusive
daqueles que resistiram aos deslocamentos para as áreas periféricas da metrópole,
evidenciando o fato de que, mesmo seletiva e pertencente à esfera individual, a memória
é tecida e articulada a contextos e redes nos quais o sujeito se envolveu (HALBWACHS,
2013, p. 38). São esses aspectos que conferem à memória, também, uma dimensão
coletiva, porque, sem perder as particularidades das vivências individuais, tem como base
a inserção do indivíduo em um grupo no qual compartilha eventos e experiências.

Indagado sobre a avaliação que fazia do passado, Souza Netoenfatizou a


importância de atuar em uma organização revolucionária no momento em que vigorava
no país um regime autoritário. Valorizou a crença na revolução socialista, compartilhada
nas organizações em que passou nas décadas de 1960 e 1970. Com relação à aproximação
dos trabalhadores e às inserções nos bairros em áreas periféricas, afirmou que via essas
táticas como necessárias ao período histórico no qual foram implementadas.

42
O município surgiu em 1990, com o desmembramento de distritos de Nova Iguaçu.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

102
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Considerações finais

É difícil avaliar o quanto as experiências de inserção foram decisivas para o


projeto político da Ala. No entanto, parece-nos possível afirmar que elas impactaram
diretamente as trajetórias de vida daqueles que delas participaram, conforme o exemplo
de Souza Neto.

A respeito desses impactos, vimos como a experiência de inserção nos bairros


alterou seu modo de vida e redimensionou seus locais de atuação, inclusive
profissional.No período em que esteve inserido no “trabalho de bairro” na Baixada, o
militanteprecisou adotar hábitos de vida simples para aproximar-se dos trabalhadores.
Criou com eles vínculossociais e políticos ao participar nos movimentos populares.

A experiência de inserção marcou tão profundamentea trajetória de Souza Neto,


que após a democratização do país permaneceu morador e militante na Baixada. Para
reforçar os laços que teceu com a região, recorremos as suaspalavras: “Eu militei tanto,
mas tanto na Baixada que estou aqui até hoje. Posso dizer que todo meu círculo social
está aqui. Se eu me mudar, viro um peixe fora d’água” (SOUZA NETO, 2011).

Referências
Fontes
COSTA, Warley da. Entrevista concedida à autora. Belford Roxo, RJ, 12 de outubro de
2012.
PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL-ALA VERMELHA, Concepção e organização
sobre o trabalho de Bairro. Darf, AV, DDI-IV, documento 20, Aperj, novembro de 1979.
PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL-ALA VERMELHA, Relatório do Ativo. Darf,
AV, DDI-IV, documento 28, Aperj, 1978.
PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL-ALA VERMELHA, Boletim Interno, número 8.
Darf, AV, DDI-II, documento 08, Aperj, setembro de 1971.
SOUZA NETO, João Pedro de. Entrevista concedida à autora em 15 de julho de 2011.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

103
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Livros, artigos e dissertações


ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de; WEIS, Luiz. Carro-zero e pau-de-arara: o
cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. In: SCHWARCZ, Lilia K. M.
(org.). História da Vida Privada no Brasil. v. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
p. 319-410.
DELGADO, Lucília Neves. História Oral– memória, tempo, identidades. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
DOIMO, Ana Maria. A Vez e a Voz do Popular: movimentos sociais e participação
política no Brasil pós 70. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da história
oral. Rio de Janeiro, FGV, 1996.
FORTES, Alexandre e SALES, Jean (orgs.). A Baixada Fluminense e a Ditadura Militar:
Movimentos Sociais, Repressão e Poder Local. Curitiba: Editora Prismas, 2016.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São
Paulo: Centauro, 2013.
RIBEIRO, Adriana Maria. Todo comunista tem de ir aonde o povo está. As experiências
de inserção política da Ala Vermelha na Baixada Fluminense (RJ) na década de
1970.Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, Seropédica, RJ, 2013.
______ e SALES, Jean Rodrigues. “Da luta armada aos movimentos sociais: a trajetória
do Partido Comunista do Brasil-Ala Vermelha”. In: SALES, Jean Rodrigues (org.).
Guerrilha e Revolução. A luta armada contra a ditadura militar no Brasil. Rio de Janeiro,
Editora Lamparina, 2015.
SADER, Eder. Quando Novos Personagens Entraram em Cena: experiências e lutas dos
trabalhadores da Grande São Paulo 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SÓTENOS, Abner Francisco. O Surgimento do Movimento Amigos de Bairros de Nova
Iguaçu e a Comunidade de Informações no Período de Distensão Política (1974-1985).
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2013.
VINCENT, Gérard. Ser comunista? Uma maneira de ser. In: PROST, Antoine;
VINCENT, Gérard (org.). História da Vida Privada: da Primeira Guerra aos nossos dias.
v. 5. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 398-427.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

104
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O macuti como expressão da identidade sociocultural da Ilha de Moçambique: um


estudo dos bairros de Litine e Esteu, 1991-2006

AIÚBA ALI AIÚBA

Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura: PUC-Rio


Bolsista CAPES

I. Introdução
Uma nova perspectiva de se pensar a História Social trouxe consigo questionamentos
a essencialismos associados ao conceito de cultura que vigoravam na maneira como esta
Ciência Social era pensada e escrita, muitas vezes marcada por um caráter estático,
homogêneo e com fortes influências coloniais que culminava com uma hierarquização
das culturas. Neste contexto, nota-se uma avalanche de intelectuais que se preocupam em
abordar o que Peter Linebaugh e Marcus Rediker (LINEBAUGH & REDIKER, 2008,
p.15) na sua obra A hidra de muitas cabeças, consideram uma “história vista de baixo”,
em que dialogando com a antropologia valorizam os chamados “sujeitos subalternos” e
enfatizam o dinamismo e fluidez da cultura.

Para a presente reflexão, a discussão será realizada em torno do conceito de cultura


que privilegia as múltiplas identidades e a dimensão da experiência dos diferentes grupos
sociais nos processos de intercâmbios e conexões culturais (AMSELLE, 2001). Portanto,
importa perceber os contornos e principais impactos das atuais dinâmicas socioculturais
sobre o patrimônio cultural da Ilha de Moçambique – patrimônio mundial da humanidade
desde 1991 pela UNESCO.

Ao atravessar a ponte que liga a Ilha de Moçambique ao resto do continente – uma


ponte de 3,5 km de mão única – podemos cruzar com algumas pessoas pescando com fio
e anzol. Também avistamos barcos à vela que indicam a aproximação a uma estética
árabe/asiática e já começamos a sentir a proximidade com as águas do Índico, que
isolariam a pequena ilha não fosse por essa mesma ponte que acabamos de atravessar.

A paisagem arquitetônica da Ilha oferece imagens dos encontros de homens, mulheres


e suas culturas – africana, árabe, indianas, portuguesa – que tiveram lugar ali, bem como
do efeito do tempo (de transformação e destruição) sobre as construções que os

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

105
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

evidenciam. A divisão política e urbana entre «cidade de pedra e cal» e «cidade de


macuti43» (as quais aprofundarei mais adiante) também nos revela memórias de uma
segregação colonial – quando a primeira era o local dos brancos e a segunda dos
«indígenas».

Alguns desses bairros, como Litine e Esteu, encontram-se em uma área rebaixada da
cidade – oferecendo à vista um mar de telhados de macuti44. Antes de descer as escadas
que dão acesso ao bairro, é possível ter uma visão “de cima”, na qual vemos alimentos
como: mangas, piri-piri (pimenta), peixe, mandioca, de entre outros secando ao sol sobre
os telhados, placas de zinco que já substituem o macuti, e os labirínticos caminhos de
areia que ligam as casas e quintais umas às outras. Muitas pessoas circulam e fazem
atividades nesses espaços “fora da casa” – os quintais – que é o local de cozinhar, comer,
brincar, receber visitas, e até mesmo de dormir (varandas ou quintais) quando está muito
quente. Entrando nos bairros praticamente só se ouve conversas em emakhuwa (macua)45,
e as pessoas se saudando com o característico “salamaleico” (Saalam Aleikun) denotando
uma das maiores heranças daquele lugar: O islamismo – religião professada por quase a
totalidade dos.

Tendo em vista esta breve descrição do que seria uma paisagem da Ilha de
Moçambique46, e impulsionado pelas reflexões de Sanjay Subrahmanyan nas suas
abordagens das histórias conectadas e transnacionais que pressupõem um mundo com
fronteiras indenitárias flexíveis, no qual a circulação de pessoas, de ideias e de artefatos
é muito intensa e profundamente conectada, e por esta estar muito próxima dos eventos
por mim vividos ao longo das atividades desenvolvidas por uma pequena equipa de
pesquisadores do Centro de Estudos e Documentação da Ilha de Moçambique (CEDIM),
a qual faço parte, pretendo com este trabalho propor uma breve reflexão sobre os

43
Casas com cobertura vegetal de palha de coqueiro, segundo Report 1982-85, p.150:´´o modo de
construção mais corrente é pau-a-pique, com cobertura de quatro águas assente em bambu. Os tetos são
feitos em mangal ou bambu e rebocados. As paredes exteriores são rebocadas em argamassa de cal e caiadas
com cal pigmentada. As vedações dos quintais são feitas geralmente em bambu.
44
Nome dado a uma palha vegetal extraída do coqueiro usada na cobertura das casas na Ilha de Moçambique
usando técnicas tradicionais baseadas em saberes populares.
45
Macua é a língua com mais falantes em Moçambique, sobretudo na região norte. É a língua que se ouve
nas ruas, mercados, e estradas, no dia-a-dia. A língua oficial do país é o português.
46
Uma perspectiva da “cidade caminhada”, vivida – contrapondo a uma perspectiva “de cima” onde a
cidade é planejada, analisada, desenhada - como propõe Michel de Certeau em A Invenção do Cotidiano.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

106
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

processos de construção de identidades das populações da Ilha de Moçambique em torno


dos elementos que fazem parte das suas materialidades, ou do que poderíamos chamar de
sua «cultura material», particularmente da utilização das casas de macuti a partir da
compreensão das conexões e inter-relações entre as influências culturais de diferentes
regiões do mundo, contribuindo desta forma para uma desterritorialização e
desessencialização da cultura na Ilha de Moçambique.

Por um lado, a mundialização coloca em questão as fronteiras territoriais locais e


a relação entre lugares e identidades, pelo acesso maciço aos transportes e às
comunicações. Por outro, a circulação rápida das informações, das ideologias e das
imagens acarreta dissociações entre lugares e culturas. Nesse quadro, os sentimentos de
perda de identidade são compensados pela procura ou criação de novos contextos e
retóricas indenitárias. Híbrida ou mestiça, como se diz atualmente, entendo que a cultura
encontra-se assim mais dominada pela problemática da identidade, que se enuncia cada
vez mais como uma "identidade cultural".

Assim, para a empreitada que proponho, começarei por fazer uma alusão a ocupação
histórica e a organização social desse espaço e na sequência apresentarei de forma
sintética alguns pontos levantados por alguns intelectuais, nas sua abordagens sobre
análise da cultura e identidade cultural, que acho importantes para o que se pretende
debater e finalmente analisar as influências swahilis, europeias, asiáticas e suas conexões
culturais com as populações locais africanas na circulação de saberes, dos aspetos
arquitetônicos e dos materiais que formaram historicamente a construção em Macuti.

II. Ocupação Histórica da Ilha de Moçambique


Dada a sua localização geográfica no Oceano Índico, a Ilha de Moçambique tornou-
se, desde cedo, num ponto de convergência entre povos de origem africana, árabe, persa,
turca, indiana, europeia e mais tarde a América Latina marcaria sua presença através do
Brasil, tornando-se assim num importante centro comercial da costa e principalmente
num palco de troca de experiências entre estes povos.

O movimento de dispersão das primeiras comunidades agrícolas na África Austral e


Oriental, no início do Primeiro Milénio, deu origem às sociedades "Proto-Swahili". Estas
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

107
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

comunidades eram falantes de línguas Bantu, tendo-se estabelecido na costa oriental


Africana e adotado um modo de vida marítimo, onde desenvolviam uma indústria
artesanal distinta, caracterizada por olaria, tecelagem, produção de metais, marfim e
tratamento de pele, bem como o comércio local e com mercadores distantes
(ADAMOWICZ: 1987; DUARTE & MENESES: 1996).

A partir do século X, os mercadores árabes que demandavam as costas de "Sofala"


foram difundindo o islã entre as populações costeiras. Mais tarde, começaram a organizar-
se em pequenos núcleos Islamizados e/ou entrepostos comerciais espalhados ao longo da
costa oriental africana, estruturando-se em unidades político-administrativas sob a
designação de Xeicados e Sultanatos. Na província de Nampula, no norte de
Moçambique, formaram-se os Sultanatos de Angoche e Sancul, e Xeicados de
Quitangonha, de Sangage, e o Xeicado da Ilha de Moçambique, fundado por Hassani
Moussa M’Biki (de onde advém, provavelmente, o nome de Moçambique) por volta do
século XI.

A presença europeia teve lugar a partir do século XV, iniciada com a passagem
do navegador português Vasco da Gama em 1498, tendo atingido a costa moçambicana
na qual encontrou um território com um complexo sistema político, económico e social,
estruturado por povos que, não só habitavam aquela zona desde o século III d. C., assim
como também tinham contatos comerciais com árabes e outros povos asiáticos, como é o
caso dos indianos desde os finais do primeiro milénio, contatos esses que eram baseados
primeiramente na exploração do ouro, ferro e cobre da região, e mais tarde
desembocariam no que chamou de “tráfico negreiro”.

Em 1500, chegou à Ilha de Moçambique o famoso navegador Pedro Álvares


Cabral que rapidamente ordenou a Sancho de Tovar a exploração do sul da costa, em
especial a região de Sofala.

De acordo com a Revista Marítima Brasileira (1991, pag.387), em 1769 foi


decretada completa liberdade de comércio para os navios brasileiros em portos de
Moçambique, medida que se destinou a fomentar o comércio de escravos. Alguns anos
depois “frequentavam a negociação de Moçambique os mercadores da Bahia e Rio de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

108
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Janeiro estabelecendo ali casas de negócio, e delas expedindo navios para as ilhas
francesas com carga de escravatura e para os portos da Índia com marfim, ouro e búzio”.

Uma das casas estabelecidas foi a de António Lopes da Costa, na Ilha de


Moçambique, localmente conhecida por casa do Rio de Janeiro, comercializava, em geral,
escravos e mercadorias diversas. Neste comércio entravam vários produtos brasileiros
principalmente o açúcar, aguardente (cachaça), armas e pólvora. De Moçambique
exportavam-se para o mercado brasileiro, além de escravos, ébano (pau preto) e tecidos
da Índia. (op. cit, p.387).

III. Cultura e identidade cultural

De acordo com (GEERTZ: 2008, p.4), os fatos inovadores nascem e evoluem numa
reprodução espontânea e despercebida dos agentes culturais, e na maioria das vezes só
percebidos na análise extrínseca de um agente de fora da sociedade. Para ele, a cultura
não é nunca particular, mas sempre pública. Assim, entendo que os elementos que
constituem as teias propostas por Weber, não têm criadores identificáveis. A cultura
nunca é igual, é sempre uma recriação.

Geertz recupera o conceito de Max Weber, que afirma que o Homem é um ser
amarrado em teias de significados que ele mesmo teceu. A cultura é, portanto, uma ciência
interpretativa, em busca do significado. O comportamento é uma ação simbólica. O fluxo
do comportamento (ação social) faz com que as formas culturais se articulem. Para
(BARTH: 2000, p.129) “as diferenças de posição constituem o principal ímpeto da longa
conversação dentro das comunidades, através da qual as pessoas interpretam e
compartilham suas experiências e conseguem entender melhor suas próprias vidas e a de
outras pessoas”.

Na Ilha de Moçambique não terá sido diferente, pois como já me referi anteriormente,
esta pequena parcela de terra localizada no índico, há muito tempo que se tornou num
palco de troca de experiências. Importa salientar que neste processo de interação de
pessoas oriundas de vários quadrantes do mudo permite que haja um fluxo e partilha de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

109
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

saberes, um processo em que se baseia em ensinar e aprender uns com os outros através
da convivência ao longo do tempo.

A diversidade de atividades, assim como a mistura do novo com o velho em um


cenário cultural sincrético, permite questionar a linguagem do estruturalismo com sua
ênfase nas conexões e o pressuposto de uma coerência lógica generalizada. Para
(BARTH: 2000, p.111)., na medida em que “as realidades das pessoas são culturalmente
construídas […], o que os antropólogos chamam de cultura de fato torna-se fundamental
para entender a humanidade e os mundos habitados pelos seres humanos” Mas, em vez
de focar a análise no interior de universos fechados e de culturas distintivas, é preciso
explorar a variedade de fontes dos padrões culturais, que podem ser resultado de
processos sociais específicos.

É necessário, então, pensar-se a si próprio a partir de um olhar externo, até mesmo de


vários olhares cruzados. Desse ponto de vista, nos principais pontos de convergência de
pessoas de diversas origens, como aconteceu com Ilha na época e, atualmente os meios
urbanos podem ser fatores de encadeamento ou reforço dos processos indenitários. A
cidade multiplica os encontros de indivíduos que trazem consigo seus ditos
“pertencimentos étnicos”, suas “origens regionais” ou suas redes de “relações familiares
ou extrafamiliares”. Na cidade, mais que em outra parte, desenvolvem-se, na prática, os
relacionamentos entre identidades, e na teoria, a dimensão relacional da identidade. Por
sua vez, esses relacionamentos “trabalham”, alterando ou modificando, os referentes dos
pertencimentos (étnicos, regionais, faccionais etc.) das pessoas.

Assim sendo, o processo indenitário, enquanto dependente da relação com os outros


(sob a forma de encontros, conflitos, alianças etc.), torna “problemática” a cultura e, no
final das contas, passa por um processo de “transformação”. O mesmo ocorre com relação
à mudança em um mesmo contexto local.

Essa transformação atinge as mais variadas formas de ser e estar de uma pessoa
enquanto membro de uma determinada sociedade, desde os valores morais, os códigos de
conduta, as regras da vida social, até mesmo as línguas, a educação e outras formas
culturais que orientam a existência de cada um no mundo. Poderia apontar aqui várias

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

110
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

evidências para elucidar o meu argumento, mas vou cingir-me, por exemplo, à língua
macua (que é mais falada na Ilha, e já é bastante influenciada pelo árabe) na qual hoje,
algumas palavras são pronunciadas na língua portuguesa (língua oficial de Moçambique).
E não raras vezes, o tal fluxo verifica-se também no sentido contrário, palavras do
vocabulário macua são usadas quando se fala a língua portuguesa. Este “processo”, é
designado localmente por “aportuguezação” do macua e “macualização” do português.

Em uma situação de mudança social acelerada, como a que se vive em quase todas as
partes do mundo ao longo das últimas décadas mercê do acesso maciço aos transportes e
às comunicações que fazem com que haja uma circulação rápida das pessoas,
informações, das ideologias e das imagens acessíveis um pouco por toda parte, mesmo
se, obviamente, com graus de penetração diversos, os estatutos sociais se recompõem e
os indivíduos devem redefinir rapidamente sua posição. Nesse momento, a questão
indenitária torna-se uma questão de “ajuste”, simultaneamente social na sua definição e
individual em sua experiência. A relação do indivíduo consigo próprio ao mesmo tempo
em que com sua cultura e sua linhagem se torna então “problemática”.

Nesse contexto, em que várias escalas se misturam a própria criação cultural é tomada
por uma tensão do mesmo tipo: ela consiste em colocar em relação, por um lado,
imaginários locais que devem sempre acomodar a densidade dos lugares, de suas
sociabilidades, de suas memórias, e, por outro, as técnicas, os conjuntos de imagens e os
discursos da rede global que, por sua vez, circulam praticamente sem obstáculo,
despojados de todo enraizamento histórico.

IV. Conexões culturais e preservação de património cultural

Esta reflexão é tributária das discussões em torno de novas epistemologias, propostas


por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (SANTOS & MENESES, 2010),
permitindo a elaboração de narrativas historiográficas, constituídas a partir de diferentes
sujeitos e alternativas aos discursos dominantes.

Igualmente na área das ciências humanas, a temática do patrimônio cultural, material


e imaterial, tem-se firmado como importante campo de debate, ganhando destaque os

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

111
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

significados da valorização, da preservação do patrimônio e as tensões e disputas pela


consolidação de memórias e constituição de identidades de distintos grupos
socioculturais. Nesse âmbito tem-se colocado o grande desafio de proporcionar condições
para produção de um conhecimento crítico sobre esses processos.

Para (HARTOG: 2006, p.266), a memória de um povo é a essência do seu pensamento


sobre o patrimônio, pois ela funciona como identidade em busca de si mesma.

Sendo assim, importa recuperar que em 1991 a Ilha de Moçambique foi declarada
pela Unesco Patrimônio Cultural da Humanidade, tendo para esta distinção sido
considerada dois critérios, IV e VI. O critério (IV) elucida:

A cidade e as fortificações da Ilha de Moçambique são exemplos excepcionais


da arquitetura e técnicas de construção, onde as tradições locais, a influência
portuguesa e, até certo ponto, a influência árabe e indiana se amalgam. Alguns
materiais usados e a persistência dos princípios decorativos ilustram uma etapa
significativa na história humana. A tipologia da arquitetura tradicional do Macuti
demonstra a coexistência de dois diferentes estilos arquitetônicos ao longo do
tempo e no espaço (ICOMOS47 1991).

A Ilha de Moçambique possui uma arquitetura bastante rica que é exemplo


excepcional de uma dicotomia urbana resultante da diversidade cultural e interação entre
as pessoas de diferentes origens e culturas: Bantu, Swahili, Árabe, Persa, Indiana,
Europeia o que sem dúvida enaltece o carácter transnacional da pequena Ilha.

Os atributos da paisagem histórica e cultural da Ilha compreendem dois sistemas


urbanos: a Cidade de Pedra e Cal, de influência Árabe, Swahili e Europeia, e a Cidade de
Macuti, de influência Swahili e a arquitetura tradicional Africana (DNPC: 2010).

A parte norte, Cidade de Pedra e Cal, de raíz Swahili, mas com fortes influências
Árabes e Portuguesa possui uma estrutura e um desenho do edificado relativamente
homogéneo e ali vive uma parte relativamente pequena da população da Ilha, estando
uma parte dos edifícios em situação de abandono e/ou em ruínas e outra parte em
recuperação.

47
Sigla em língua inglesa que em português significa: Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios,
órgão da UNESCO.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

112
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A parte sul, Cidade de Macuti, também de origem Swahili e de construção


tradicional local, com valor de conjunto, em que o evidente interesse de cada edifício se
dilui por corresponder a um mesmo modelo que se repete ad infinitum (CESO-CI: 2009).

As razões para a sua “divisão” associam-se às formas como a ocupação portuguesa


se operou. Durante séculos, a presença portuguesa teve, contudo que coabitar com o
“outro”, primeiro árabes e populações islamizadas, indianos e por fim os concorrentes
europeus, já no século XVII. A economia da Ilha tornava-a atrativa e obrigava os seus
ocupantes a estratégias de convivência e de defesa. A construção da cidade colonial é
disso um reflexo. Retrata uma lógica defensiva quer perante o exterior, quer no espaço da
própria ilha.

Na cidade de pedra e Cal um conjunto de posturas camarárias obrigava os seus


moradores a uniformizar as suas habitações (cores, fachadas, condições higiénicas). Por
outro lado nenhum escravizado podia construir palhotas dentro da cidade, a não ser no
terreno do seu senhor e sob o seu controle. Em contrapartida, os negros livres podiam
construir palhotas noutras áreas, segundo as determinações das autoridades camarárias,
ou seja, na “Cidade de Macuti”. Aqui se procurava ordenar o espaço público; impedir
uma excessiva proximidade entre as casas e uniformizar o seu aspecto exterior (altura,
reboco das paredes, etc.).

Na cidade de Macuti foram-se instalando os escravizados e trabalhadores das


pedreiras de onde era extraída a pedra de coral aplicada na construção da cidade colonial.
Escravizados vindos do continente tornaram-se criados e rendeiros e que por isso
ganharam o direito de permanecer na ilha e de nela erguerem as suas tradicionais casas
de macuti.

Após a independência de Moçambique, em 1975 foi decretada a nacionalização


do parque imobiliário, dando direito aos cidadãos de ocuparem casas vagas. Na Ilha de
Moçambique, o abandono de grande parte das casas de pedra por parte dos portugueses
permitiu que as mesmas fossem ocupadas pelos habitantes da Cidade de Macuti. Mas a
sua ocupação nunca chegou a ser total e a progressiva degradação dos edifícios, acabou
por ditar o seu segundo abandono.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

113
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Hoje, a distribuição da população mantém-se, estruturalmente, quase a mesma. A


“cidade de Pedra e cal” com um pouco mais de 400 construções encontra-se em ruínas ou
em recuperação essencialmente para fins turísticos e provisão de serviços sociais básicos
oferecidos pelas autoridades. Os novos habitantes são uma pequena burguesia ligada aos
serviços, governo local e estrangeiros, pouco mais de 2000 habitantes. Os últimos, na
maioria europeus, ou de origem europeia, associam-se, sobretudo, às atividades turísticas.

A Cidade de Macuti é, pelo contrário, sobrepovoada. Erguem-se cerca de 1200


construções, assombradas pelos mesmos problemas da era colonial: deficiente
planeamento/saneamento, onde reside a grande maioria dos cerca de 17000 habitantes da
Ilha, mas também onde as relações sociais dos seus habitantes são mais coesas, onde se
trabalha, no pequeno comércio informal e na pesca, atividades que se afiguram como
sendo principais fontes económicas da Ilha de Moçambique atualmente, embora se
mantenha majoritariamente classificada, como vivendo em estado de “pobreza” (CESO-
CI :2009).

Também é aqui, na Cidade de Macuti onde a cultura imaterial – as tradições vivas


representadas pelas “folclóricas” manifestações culturais como o Tufo48, Maulide49, de
entre outras são destacados.

Atualmente, estas cidades (de Pedra e Cal e Macuti) refletem não só uma mistura
de saberes populares, como também um desenvolvimento urbano dentro de um continuum
cultural onde o desenho arquitetônico e as técnicas construtivas locais e exógenas foram
ajustados ao contexto social e do meio ambiente local.

Embora com construções de pau a pique majoritariamente cobertas com macuti, os


bairros apresentam igualmente habitações em pedra e cal ou alvenaria. De facto, a Cidade

48
Uma dança tradicional de origens árabes, ligada a religião muçulmana, que pode ser praticada em
cerimónias, festas e datas específicas do calendário islâmico e incorporou-se no litoral oriental de
Moçambique, maioritariamente na província nortenha de Nampula. É uma dança essencialmente feminina,
na qual os homens apenas participam como instrumentistas. Todavia, há casos em que os grupos são
compostos só por mulheres.
49
É uma demonstração da fé apresentada só por homens que cantam e dançam, e com uma espécie de
alfinete, navalhas, pregos grandes de aço ou ferro, espetos de ferro ou outros instrumentos afiados que se
dá o nome de “tupachi”, que penetram no corpo, perfurando a carne e que tem como admiração do público
esses dançarinos não sangram nem os corpos ficam com marcas das perfurações. Esta dança era
antigamente muito praticada nos casamentos islâmicos.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

114
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de Macuti já é majoritariamente de outras tipologias e o Macuti, como material de


construção, está em rápido desaparecimento devido a alguns fatores, nomeadamente:

1. A eclosão de uma doença (amarelecimento letal) que dizima os coqueiros de onde


é extraído o Macuti.
2. A crescente onda de substituição deste material por outros usados na cobertura
das casas, considerados modernos (como é o caso das chapas de zinco).
Em relação a este segundo aspeto, e que me parece mais complexo, por entender que
ao trocar o teto de Macuti por outro de chapas de zinco pode influenciar profundamente
no modo de vida das pessoas. Ainda constitui um desafio pensar em ações que devem
nortear a preservação do macuti. Para aferirmos a necessidade da sua preservação naquilo
que os arquitetos consideram “arquitetura vernacular” podemos tomar como exemplo o
clima que é predominantemente tropical húmido na Ilha, fazendo com que maior parte do
ano seja caracterizado por altas temperaturas. Nesta situação o macuti oferece melhor
conforto térmico às famílias, tornando as casas mais frescas e saudáveis em relação às
chapas de zinco que nestes casos transformam as casas em autênticos “fornos”.

O debate sobre o Macuti esteve presente em alguns eventos promovidos pela


Faculdade de Arquitetura e Planeamento Físico da Universidade Lúrio (UniLúrio),
através do Centro de Estudos e Documentação da Ilha de Moçambique (CEDIM) nos
quais tive oportunidade de participar, não como arquiteto, muito menos como planejador
físico, mas como um historiador curioso. E foi movido por essa curiosidade que comecei
a interessar-me em participar ativamente neste debate. Tomei a iniciativa de conversar
espontaneamente com as pessoas sobre o assunto, algumas delas sendo indicadas
justamente por serem mais idosas e conhecerem histórias “de antigamente”.

Ao indagar estas pessoas sobre a origem do coqueiro, para depois chegar ao Macuti,
fui informado que teria vindo “provavelmente” da Ásia, através dos indianos ou dos
árabes, numa outra conversa, o meu interlocutor disse que era mesmo uma planta local –
afirmando que faz parte da “nossa cultura”. Na verdade, parecia-me que não importava
tanto a proveniência exata do coqueiro, o certo é que o seu plantio na Ilha e um pouco por
todo país foi fomentado durante o período colonial. Para além de Macuti, o coqueiro

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

115
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

também produz madeira, coco (indispensável na gastronomia local), copra (polpa seca do
coco) que é usada no fabrico de sabão e óleo.

A meu ver estas considerações refletem bastante o contexto histórico e social da Ilha
de Moçambique, entreposto comercial, primeira capital do país, e ponto de confluência
de diversas culturas; gerando assim conexões, misturas, hibridismos, sendo a própria
“cultura swahili” um exemplo forte. Este dentro-e-fora constitutivo de qualquer formação
cultural, mas particularmente neste local, tem uma valorização acentuada no que vem de
fora como o “civilizado”. Este fator também pode ser percebido nas dimensões
arquitetônicas, sendo as “casas de macuti” parte desses elementos “endêmicos”.

Portanto, acredito que o Macuti passou a fazer parte da vida dos ilhéus pela facilidade
na aquisição e principalmente na sua composição para que seja usado no teto das casas
(arte que é de domínio de homens, mulheres e crianças). Importa referir que sua
relevância social não se restringe apenas a essa de “cobrir casas”, mas também é usado
para construção dos quintais, produção de cestos (usados na pesca), e mais importante
ainda associado à religião islâmica revela-se fundamental nos ritos funerários.

Considerações finais

Penso que esta reflexão pode ajudar-nos a descontruir alguns medos, pois revela,
de certa forma, que a miscelânea social pela convivência das várias pessoas através
“ligações históricas” ou, antes, para ser mais exato, as connected histories adotando a
expressão proposta por Subrahmanyam, corrobora para o enriquecimento das culturas.
Nesse quadro fica evidente a grande dúvida de como se pode conciliar a preservação
daquele património cultural e o desenvolvimento sustentável, questão esta na qual me
proponho a aprofundar na minha tese.
Perante o exposto e com vista a um estudo e aprofundamento do assunto, penso
que a presente reflexão poderá contribuir para o debate em torno das seguintes questões:
Que aspetos da identidade do macuti podem ainda ser preservados no contexto atual de
crescente tendência de uso de novas técnicas e materiais de construção modernos? Que

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

116
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ações emergenciais podem ser tomadas com vista a impedir o desaparecimento das casas
de macuti como identidade sociocultural na Ilha de Moçambique?
Certamente não esgotou a complexidade do estudo de caso apresentado, mas
quero acreditar que deu talvez a oportunidade de partilhar algumas das questões que esta
reflexão acarreta.

Referências Bibliográficas
ADAMOWICZ, L., 1987. Projecto CIPRIANA 1981-1985 - Contribuição para o
conhecimento arqueológico entre-os-rios Lúrio e Ligonha, província de Nampula.
Trabalhos de Arqueologia e Antropologia 5:47-144.

AMSELLE, J.L. Branchements: anthropologie de l'universalité des cultures. Paris,


Flammarion, 2001.

BARTH, Frederik 1989. "A analise da culturas nas sociedades complexas". 54(3-4): 120-
142.

CESO-CI 2009. Plano de Desenvolvimento Integrado da Ilha de Moçambique. Maputo:


BAD/MEC.

GEERTZ, Clifford. Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura.
In:_____. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. Cap. 1, p.
3-21.

DIRECÇÃO NACIONAL DO PATRIMÓNIO CULTURAL/República de Moçambique.


Manual de Conservação do Património Cultural Imóvel em Moçambique. Maputo: 2014;

LINEBAUGH, Peter e REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros,


escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.

HARTOG, François. Tempo e Patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, vol. 22, nº
36: p.261-273, Jul/Dez 2006. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/vh/v22n36/v22n36a02.pdf acesso 19 de Outubro de 2016.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

117
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MINISTÉRIO DA CULTURA- MOÇAMBIQUE. Plano de Gestão e Conservação da


Ilha de Moçambique, Maputo, 2010;
REVISTA MARÍTIMA BRASILEIRA, vol. 111, numero 1/3 Janeiro/Março 1991.
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=008567&pagfis=110992

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do


Sul. São. Paulo; Editora Cortez. 2010.

SUBRAHMANYAM, S. "Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of


Early Modern Eurasia". Modern Asian Studies, Vol. 31, No. 3, Jul. 1997, pp. 735-762;

UNESCO/ WORLD HERITAGE COMMITTEE: Nomination of Ilha de Moçambique for


inclusion in the world heritage list 1990-91.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

118
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Colonização Africana sim, Tráfico de Escravos não: o debate sobre a colonização


africana na província do rio de janeiro, 1854 a 1860.

ALESSANDRO MENDONÇA DOS REIS


Mestrando do PPG Stricto Sensu em História – Universo
Bolsista PROSUP/CAPES

A década de 1850 ainda era promissora para a produção do café, principalmente,


no Vale do Paraíba e isto se justifica segundo Rafael Marquese e Dale Tomich
(MARQUESE & TOMICH, 2015, p. 49) pela ampla oferta de terras e de trabalho nas
fazendas desta região. A colonização de europeus como trabalhadores livres nas lavouras
do país com o fim do tráfico de escravos, era projeto do governo imperial para suprir as
necessidades de mão de obra. Mesmo sendo a preferência do governo por colonos
europeus, tentou-se também em algumas oportunidades a vinda de chineses como opção
de mão de obra para substituir o escravo. Isto ocorreu mais precisamente entre 1854 e
1855 através do sistema de parcerias, conforme explica Maria Luiza Tucci Carneiro
(CARNEIRO, 2003). Quanto aos africanos, não se falava oficialmente sobre o assunto, o
qual era dado como resolvido após a promulgação da Lei Euzébio de Queiros. Todavia,
a necessidade de vigiar quanto a um possível retorno do tráfico e não esmorecer, fazia
parte dos planos do governo. A Inglaterra estava atenta e não iria deixar que finalmente
ocorrida a extinção do tráfico, esta atitude fracassasse, principalmente, porque a poderosa
nação tinha experiências anteriores desagradáveis quanto ao não cumprimento de tratados
e leis em sua integralidade por parte do Brasil a respeito do comércio de escravos. O
Tratado de 22 de janeiro de 1815 e a Lei de 7 de novembro de 1831 são bons exemplos
vividos pelos ingleses quanto a extinção do tráfico.
O debate na imprensa da capital do Império brasileiro direcionou as questões que
envolveram os rumos da escravidão sobre dois aspectos importantes: a necessidade de
braços para o trabalho na lavoura e quem substituiria o escravo no momento da transição
da mão de obra. O impacto do fim do comércio de escravos no primeiro momento,
vislumbrou uma provável falta desses braços e isto se acentuaria caso o governo não
colocasse em prática o quanto antes seu projeto de colonização. Portanto, interessa-nos

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

119
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

tratar do processo de colonização iniciado na década de 1850, principalmente no que diz


respeito aos discursos sobre a ideia de colonização africana debatido na imprensa.
A impressão de uma possível escravidão do colono africano era um fato que não
se poderia excluir. Afinal, o trato com o africano era praticamente um costume, uma
situação natural diante de uma sociedade forjada no escravismo. Um bom diagnóstico
para esta situação pode ser visto nas opiniões do deputado Tavares Bastos, do Partido
Liberal, acerca do africano livre no Brasil, onde ele chamava a atenção para as
dificuldades encontradas por essas pessoas em fazer valer sua condição. O deputado
publicou diversas cartas no periódico carioca Correio Mercantil, assinando sempre com
o pseudônimo Solitário, fazendo valer os seus posicionamentos e demonstrado suas ideias
a respeito da escravidão e todo tipo de assunto pertinente à política, economia e fatos
sociais sobre o futuro do Brasil (FILHO, 1978, p. 2-3). Uma verdadeira riqueza suas
análises. Contudo, como o fato em voga que tratamos é a questão da colonização,
trazemos o seguinte trecho da reflexão do deputado numa dessas cartas a respeito das
circunstâncias que envolveram o tema:

(...) Sei que, sobretudo, pesou para isso a conveniência que se tinha em
vistas de encher o país de trabalhadores adaptados ao seu clima. Sei que
se alegava como uma inépcia reexportar braços que já se possuíam, e
de cuja criminosa introdução não era o governo culpado. Eis aí a
linguagem do egoísmo! Não, direi eu sempre, devera-se ter cumprido a
lei por ser lei, e ainda porque a sua disposição era a melhor. Em primeiro
lugar, tratava-se do desempenho de um dever sagrado. Em segundo, não
era tão urgente a carência de braços, que os devêssemos obter por
estratagemas pérfidos. Em terceiro, era esse o meio de alimentar a
procura de braços africanos, e, portanto, o mesmo tráfico, pois que se
acostumava o país a ver no africano o criado, o servus, o trabalhador
para os ínfimos misteres. Em quarto lugar, essa tendência para o
trabalhador africano, ou a procura de seu serviço, aumentava na
proporção em que extinguia as primeiras tentativas de colonização
europeia, estabelecendo demais contra esta uma concorrência terrível.
E os fatos demonstraram e demonstram ainda que a emigração forçada
africana deteve e embaraçou a corrente espontânea, que começava a
romper, da emigração europeia. A sombra do braço do negro seria
sempre uma imagem repulsiva do trabalho livre. (...) (BASTOS, 1938,
p. 127)

O deputado se referia aos africanos apreendidos após a Lei Euzébio de Queiroz


entrar em vigor. A lei garantia que fossem empregados em trabalhos sobre a tutela do
governo até sua reexportação, conforme o Artigo 6º, mas, no entanto, em um país de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

120
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

mentalidade escravista se exercia todo empecilho para garantir o uso da mão de obra
africana, até mesmo se fosse preciso ignorar a legislação vigente, algo repugnante para
Tavares Bastos.
A possível ideia de uma colonização africana como projeto pode ser visto nas
formas como enxergamos os desdobramentos da escravidão. Uma dessas formas é o risco
de transformar o africano livre em escravro. Em “Cousas desta nossa boa terra”
publicada no dia 2 de abril de 1862 no jornal Diario do Rio de Janeiro e assinado apenas
como M.S., o autor num determinado trecho o autor relata que:

(...) O africano livre entregue a serviço de particulares ou de


estabelecimentos públicos, não passa de um verdadeiro escravo; os que
desfrutam seus serviços não caem na asneira de facilitar-lhes a
emancipação, e, como escravo que é de fato, não pode adquirir meios
pecuniários com que pague advogados e procuradores para tratarem de
sua emancipação. (...)

O caminho entre a colonização europeia e a africana gerou todo tipo de debate e


argumentações, e como vemos, mesmo no florescer da década de 1860 ainda era factível
discutir a ideia do uso do africano livre como mão de obra. Havia sempre o risco de se
abrir brecha para a volta do tráfico em um país onde a relação social de uma mentalidade
escravista ainda preservava suas forças na estrutura política e comercial. Portanto, na
visão de Sidney Chalhoub (CHALHOUB, 2012, p. 123-126), toda discussão entorno da
repressão do tráfico de escravos no mar e no desembarque que as leis de 1831 e 1850
abrangeram foi aprofundada, permitindo assim que a escravização legal por terra
continuasse a seguir seu rumo. Uma forma encontrada de prosseguir a antiga lógica que
se assentava no país em que a escravidão necessitava ainda de sua estrutura econômica
preservada.
Os motivos para este trabalho se originaram a partir dos discursos a favor e contra
da colonização europeia e africana encontrados nos periódicos da cidade do Rio de
Janeiro entre os anos 1854 a 1860. Jornais como A Pátria, Jornal do Commercio, O Paiz,
Diário do Rio de Janeiro, O Philantropo, O Correio da Tarde, Correio Mercantil, dentre
outros, continham em suas páginas debates a respeito do projeto de colonização europeia
promovido pelo governo e a ideia de colonização africana. O Paiz e A Patria,
principalmente esses, apareceram como defensores e difusores contumazes da

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

121
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

colonização africana. Em determinado momento da década de 1850 os dois discursos


ligaram-se provocando argumentações que se entrelaçaram depois da aprovação da Lei
Euzébio de Queiros e a Lei de Terras, desenvolvendo uma nova perspectiva na situação
do escravismo brasileiro. A situação a qual nos referimos diz respeito as necessidades da
introdução de braços que fizesse o mesmo trabalho do escravo nas lavouras das
províncias. Essa mão de obra teria que ser livre e paga, o que provocaria naquele momento
e cirscustâncias a trasição do trabalho escravo para o assalariado. O escravo passaria a
conviver com um trabalhador remunerado, um colono, vindo principalmente da Europa.
Márcia Motta analisando a relação de poder do fazendeiro dentro da estrutura
fundiária afirma que havia uma dinâmica de sociedade agrária senhorial. Isto permitiu
que os senhores de terras tivessem a tendência de desconsiderar qualquer política de
regularização fundiária (MOTTA, 1998, p. 213). A garantia da posse da terra significou
para os fazendeiros do Vale do Paraíba a continuidade do poder nobiliário que permitia a
continuidade hereditária do processo. A questão da mão de obra passava por sua vez
principalmente em não permitir com a introdução do colono europeu a quebra de tal base
que mantinham. O africano, mesmo como colono, pelos discursos parecia garantir a
permanência da hereditariedade da posse de terra. A Lei de Terras previa a introdução do
colono e em 1854 a Repartição Geral de Terras Públicas criou as condições para medir,
dividir, descrever as terras devolutas e fiscalizar a venda e distribuição com o intuito de
promover a colonização.50 A Repartição mexeu na estrutura fundiária e isso significou
abalo nas bases agrárias na questão da posse a terra (MOTTA, 1998, p. 159-187).
Para se ter noção quanto aos debates promovidos na época sobre a necessidade de
braços para a lavoura provocado pelo fim do tráfico de escravos, Emília Viotti da Costa
(COSTA, 2010, p. 107) afirma que desde a Independência com “a questão da
emancipação dos escravos, veio à baila o problema da necessidade de braços para a
lavoura”. Conclui que as classes senhoriais eram dependentes do trabalho escravo, e a
busca por mão de obra recaía sobre a estrangeira como alternativa. A pertinência de se

50
O Artigo 21 da Lei de Terras previa a criação da Repartição Geral de Terras Públicas em 1854 com a
finalidade destacada.
Em nosso entendimento, a Repartição promoveu um abalo na estrutura fundiária vigente, pois mexeu
justamente com um processo de longa duração de herança da terra. O poder atribuído à posse de terra
proporcionou ao fazendeiro uma força política que em sua visão, este não estava disposto em ceder de
acordo com as necessidades do país. Quando percebemos o discurso nos jornais a favor da colonização
africana, esta evidencia fica cada vez mais clara.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

122
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

procurar uma nova opção para o trabalho nas lavouras que, inclusive estava prevista em
lei através da colonização, denominou novas facetas utilizadas pelos fazendeiros com a
finalidade da produção agrícola através da mão de obra escrava ou livre. Em 18 de maio
de 1855, O deputado Sayão Lobato chamou a atenção para a crise vivida por causa da
escassez de braços afirmando o seguinte:

(...) É por certo de muita ponderação a circunstância da guerra europeia,


mas infelizmente não é para nós a principal causa que ameaça de um
futuro desastroso as finanças do país; essa está no interior: é o crítico
estado da nossa lavoura; é a progressiva falta de braços e o quase
nenhum suprimento de braços escravos que nos vão faltando por braços
livres. É por aí que a renda pública se vê ameaçada na sua principal
base, e isto resultará imediata e diretamente não só o desfalque da nossa
renda, como um grande vexame que cairá sobre toda população,
seguindo-se também necessariamente um grande aumento de despesa.
Sr. presidente, definhando a lavoura com falta de braços que roteiem as
terras, sendo ela a principal indústria do país, a fonte de toda nossa
riqueza particular e pública deve minguar necessariamente a renda.

O deputado demonstrava sua preocupação com a lavoura e a crise por braços, fala
recorrente entre os políticos e nos jornais. O foco da sua explanação demonstrava que se
nada fosse feito certamente as finanças do país sofreria um baque. A discussão estava
colocada quanto a urgência de se promover o projeto de colonização europeia que o
governo havia prometido, inclusive era algo garantido pela Lei de Terras no Artigo 18. O
passo de suprir a mão de obra não poderia ser transformado em frustação para os
proprietários de terras.
Emancipação e imigração estão intríssicamente relacionadas quando abordamos
este assunto. Outro quesito que está atrelado a este processo envolve as pressões inglesas
para o fim do tráfico. A partir do advento do Bill Aberdeen51 a pressão aumentou estando
constantemente presente na relação entre Brasil e Inglaterra, sendo encarado inclusive
como uma ameaça bastante factível, que segundo Tâmis Parron (PARRON, 2011, p. 219-
220), provocou efeitos internos e externos quanto à política da escravidão no país.
O debate sobre o fim do tráfico de escravos, necessariamente ocoreu com maior
intensidade e amplitude a partir de 1831 depois da aprovação da lei de 7 de novembro.

51
Lei decretada em 8 de agosto de 1845 pelo Parlamento britânico que autorizava à Real Marinha em
abordar navios suspeitos de tráfico de escravos tendo o poder de julgar e apreender, podendo inclusive
utiliza-los para uso da marinha britânica ou até mesmo afundá-los.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

123
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Isso ocorreu, conforme explica Alan Manchester (MANCHESTER, 1973, p. 2012), pelos
seguintes motivos: o governo foi impedido pela opinião popular que favorecia a
importação de negros e a Grã-Bretanha por sua natureza arbitrária nos métodos aplicados
para suprir o comércio de escravos promoveu o fracasso da intenção em facilitar a
situação na qual se encontrava o governo central que não podia demonstrar cooperação
com os ingleses, pois isto significaria submissão. Ele esclarece também que entre as
discussões parlamentares e diplomáticas, “eram feitos esforços para cessar o tráfico pela
propaganda e jornais do governo, e pela manutenção de navios de guerra ao longo da
costa.” Richard Graham (GRAHAM, 1973, p. 170) por sua vez afirma que por
reconhecimento da independência brasileira, em troca foi assinado o tratado de 1826 que
previa o término do tráfico em três anos após sua ratificação em 1827. Brasil e Inglaterra
continuariam imbricados mesmo depois do processo de independência.
As discussões sobre a grande consequência da extinção do tráfico de escravos, a
falta de braços para a lavoura, conforme preconizavam políticos e grandes fazendeiros,
prosseguia na Câmara dos Deputados e sendo intensificado nas décadas de 1840 e 1850.
Em nossa compreensão, a causa para isto está relacionada entre quatro fatores: as pressões
inglesas, a lei antitráfico Euzébio de Queiroz, a Lei de Terras e o comércio de escravos
interprovincial. As pressões inglesas não se afastavam dos olhos dos políticos. Tanto que
o Partido Liberal tinha como um dos seus objetivos o fim do tráfico de escravos em
virtude da “situação vexatória para a soberania nacional” como assegura Paula
Beiguelman (BEIGUELMAN, 1976, p. 92). A Inglaterra estava sempre por perto
incomodando.
Leslie Bethell (BETHELL, 2002) em seu livro A Abolição do Comércio Brasileiro
de Escravos: A Grã-Bretanha, o Brasil e a Questão do comércio de escravos, 1807-1869,
aborda as questões diplomáticas em face das pressões inglesas para o fim do tráfico. O
autor esclarece diversos pontos sobre as questões que envolveram a diplomacia entre
Brasil e Inglaterra para a supressão do comércio de escravos, principalmente no que diz
respeitos as pressões britânicas. A esse respeito, Tâmis Parron (PARRON, 2011, p. 230)
diz que para a entrada de africanos como colonos livres no Brasil, o ministro dos
Estrangeiros Limpo de Abreu, sugeriu a Grã-Bretanha um acordo que regulasse este tipo
de imigração. Contudo, a ideia foi rechaçada pelo representante inglês na corte. Este tipo

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

124
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de ação do ministro e a imediata recusa da Inglaterra, demonstra que as pressões britânicas


foram contundentes para evitar qualquer possibilidade de atividade do comércio de
escravos, principalmente porque o Bill Aberdeen de 1845 já estava em vigor como
instrumento combativo de repressão.
Os grupos sociais que mais se interessavam pela manutenção da atividade
escravista, eram os do Vale do Paraíba, de Campos dos Goytacazes, da Zona da Mata
mineira e do Recôncavo baiano (PARRON, 2011, p. 287). Tâmis Parron (PARRON,
2011, p. 287-288) argumenta que esses grupos de força política e econômica tinham boa
representatividade institucional e geralmente eram saquaremas e atuavam sobre três
grandes eixos: 1º- Blindar o parlamento contra as discussões sobre o cativeiro; 2º-
fomentar a imigração livre para obter fonte paralela e não excludente da mão de obra
barata; 3º- Assegurar os fluxos estratégicos de cativos, como o tráfico interprovincial, o
deslocamento dos escravos urbanos para o campo e o retorno dos que abalavam para as
repúblicas vizinhas, onde o cativeiro não gozava reconhecimento legal.
Dentro da visão econômica do processo, o declínio da lavoura cafeeira após a
abolição do tráfico proporcionou as condições para que a entrada de braços fosse algo
primordial com intuito de superar os momentos críticos. Era a condição sine qua non para
novamente alavancar a lavoura. Nas zonas cafeeiras a preferência foi se desenhando para
o africano, não se falava em escravos e sim como colonos, o europeu aparecia dentro de
uma visão crítica por não dar conta de um trabalho duro nas lavouras. Isto aparece de
maneira clara nos jornais da corte que defendiam africanos livres como colonos na
solução para a escassez de braços. Assim, o interesse neste processo se destacava em
permitir a continuidade da produção de riquezas proporcionadas pela produção agrícola.
No ano de 1853 o ministro dos Negócios Estrangeiros, Limpo de Abreu, alertava
e deonstrava a sua preocupação em discurso na Câmara dos Deputados quanto a uma
possível continuidade do tráfico de escravos caso o governo não fosse duro na execussão
da lei que o abolia. Isto vai ao encontro sobre o que publicou em 24 de setembro de 1857,
o jornal A Patria. O periódico tornou público a fala do jornalista Carlos Moura durante a
sessão de 18 de setembro da Assembleia Legislativa da Província do Rio de Janeiro sobre
suas ideias para um projeto de colonização africana. Ele afirmou que os africanos
africanos eram os mais apropriados para suprir a carência de mão de obra nas lavouras se

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

125
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

colocando assim a favor do projeto de colonização africana. A própria aptidão física do


africano em relação ao europeu, apareceu com um dos pontos fortes favoráeis em suas
idieas.52
Escravaria envelhecendo e com a renovação impedida por causa da abolição do
tráfico (MACHADO, 1993, p. 114), determinavam também que a busca por novas levas
de mão de obra adotassem o critério de olhar para a colonização de europeus como
solução, conforme preconiza também Robert Conrad (CONRAD, 1985, p. 188-189). No
entanto, o crescimento do tráfico interprovincial aliado ao discurso de colonização
africana parecia o mais viável. Era necessário alimentar as zonas cafeeiras com a
quantidade de braços escravos necessários para dar conta da produção.
O entendimento que o africano era o mais propício ao trabalho duro da lavoura
brasileira, pois se aclimatava e se adaptava com mais facilidade do que o europeu,
começou a ser usado como uma justificativa para a continuidade de seu uso, além do fato
de que o agricultor estava acostumado com no seu trato. Alguns periódicos, como o O
Paiz, A Pátria, Echo da Nação e A Revolução Pacífica defendiam a ideia de um projeto
de colonização africana. O Paiz, por exemplo, mantinha a coluna denominada
“Colonisação” em suas publicações de1860. Nela, promovia e sustentava as ideias para
tal projeto, além da defesa sistemática da agricultura como a grande produtora de riquezas
para o país. Endossando este discurso, o jornal em 24 de março de 1860 publicou seu
posicionamento a respeito do uso da mão de obra do africano na estrutura agrária
escravista do país com indagações e afirmações quanto a melhor solução. Era uma defesa
da colonização africana, afirmando que:

O principal elemento da grandeza do Brasil é sem contestação a


agricultura; sem ela o que seria este país? Sem fábricas e sem outra
indústria que possa produzir bastante para a permutação do que
recebemos do estrangeiro, o que seria feito do país? É a agricultura que
dá a vida, dá a grandeza, e constitui a riqueza da nossa pátria, a ela
cumpre, portanto, atender quanto antes e primeiro de tudo. De que
serviria ter boas instituições, marinha, exército; achar-nos constituídos
em nação livre independente se não poderíamos manter-nos à mingua
de recursos e da grande renda que dá agricultura? De que nos serviram
essas riquíssimas matas, esses imensos sertões, essas fertilíssimas
terras, se a não poderíamos cultivar e colher os produtos da lavoura?
52
Edição do jornal pode ser consultada em:
<memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=830330&PagFis=2810&Pesq=Colonisa%C3%A7%C3
%A3o%20africana>

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

126
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Triste tem sido a condição da agricultura, e mais triste será ainda, e


também a condição do país se lhe não acudirmos a tempo; se em breve
não for ela auxiliada com braços. Causa lástima o estado em que se
acham as fazendas da província do Rio de Janeiro; o desânimo levou a
ruína a grande parte delas; onde outrora reinou a abundância e a ventura
impera hoje a dor e a miséria por falta de braços, falta que se tornou
ainda mais sensível depois da terrível epidemia que assolou
principalmente os estabelecimentos agrícolas. Isto que dizemos não tem
nada de exagerado, são fatos que não podem ser contestados; são coisas
que ouvireis ao primeiro fazendeiro que encontrardes. (...) Quando se
extinguiu o tráfico, proclamou-se para contentar os agricultores, que um
bem entendido e estudado sistema de colonização substituiria os braços
africanos com grande vantagem para a agricultura do país. Declamou-
se contra o serviço do africano, que sendo bruto não podia entrar em
paralelo com o homem livre; até se fizeram cálculos do custo de cada
colono em relação ao africano e tiraram por conclusão que era mais
barato o colono e que produziria mais e melhor. (...)
Unamo-nos e reclamemos providências em prol da agricultura; venham
braços africanos e vamos demonstrando que eles são necessários e que
em nada afetam os interesses da civilização, antes pelo contrário são os
melhores elementos dela: parecerá aos utopistas esta nossa asserção um
paradoxo, mas nós iremos mostrando que o erro está da parte daqueles
que só enxergam vantagens na colonização europeia, porque se não
lembram que o Brasil deve tudo e o que é ao braço africano.

Os discursos e os quadros funcionais das redações dos periódicos assumidamente


abolicionistas eram compostos por intelectuais engajados na causa e tinham uma
entonação em suas publicações na defesa do movimento. Os jornais tornaram-se espaços
onde a escravidão e o escravo apareciam com frequência, afinal o jogo das palavras
impressas poderia influenciar o leitor, conforme entendem Marco Morel e Mariana
Barrros (MOREL & BARROS, 2003, p. 89)
A imprensa da corte refletia as ações deliberadas tanto na sociedade como na
política. A mentalidade escravista trazia nas tintas dos impressos periódicos o pensamento
de uma tradição escravocrata dos defensores deste processo, enquanto isso, por outro
lado, o crescimento de um movimento abolicionista agitava as páginas dos jornais,
principalmente depois de 1850. Neste raciocínio, Marialva Barbosa (BARBOSA, 2010,
p. 106) afirma que: “Pensar as formas como o mundo dos escravos está inserido nos
periódicos do século XIX é também se referir às suas imagens representadas nas
publicações.”

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

127
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O Paiz se intitulava um “órgão da lavoura”, criticando as pressões inglesas e


ponderando com periódicos a favor do projeto de colonização europeia. O duelo entre
colonização europeia como projeto do governo e ideia de colonização africana baseou-se
prioritrimaente na imprensa da corte. A defesa da colonização africana se sistemetizou
entorno do africano como colono livre, não havendo assim de forma clara e explícita do
seu aproveitamento como futuro esceavo. Porém, não era o que entenderam os periódicos
que defenderam o projeto de colonização europeia do governo. Na colonoziação africana
poderia morar um tráfico disfarçado, e este não era o caminho que niguem queria pagar
para ver, principalmente quanto se tinha como vigilate uma potência chamada Inglaterra.
A vontade era romper de vez com as mazelas da escravidão introduzindo colonos
europeus e tentar romper com o nesfasto passado da escravidão. Emília Viotti da Costa
(COSTA, 2010, p. 172) afirma que “a mudança de atitude em relação a terra correspondeu
à mudança de atitude em relação ao trabalho: escravidão e certas formas de servidão
foram substituídas pelo trabalho livre.” O que podemos compreender é que o momento
de transição na ordem escravista no Brasil proporcionou a dinâmica de discursos e
interesses, tanto na imprensa como no Parlamento. A política assumiu o lugar de
protagonista nos entraves que envolveram o debate sobre a colonização na década de
1850 e a impresa produziu os ecos do processo.

Documentação:

Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional: <bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-


digital/>
1- Periódicos – O Instincto e Diario do Rio (1840). O Correio da Tarde, O Paiz,
Jornal do Commercio, A Patria, Diario do Rio de Janeiro, O Philantropo, O
Regenerador, O Correio da Tarde, Echo da Nação e Correio Mercantil (1850-
1860). A Revolução Pacifica (1862).
2- Annaes do Parlamento Brasileiro - Câmara dos Deputados (1850-1860)

Lei 581 de 4 de setembro de 1850 – O Artigo 6° assim como a íntegra da lei


disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM581.htm>

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

128
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Artigo 21 da Lei de Terras que previa a criação da Repartição Geral de Terras


Públicas de 1854 disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-
1850.htm>
Lei n° 601 de 18 de setembro de 1850 – O Artigo 18 assim com a íntegra da lei
disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm>

Referências Bibliográficas:
ALBUQUERQUE, Manoel Maurício. Pequena História da Formação Social
Brasileira. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
ALVES, Andréia Firmino. O Parlamento Brasileiro: 1823-1850. Debates sobre o
tráfico de escravos e a escravidão. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Ciências
Humanas – Departamento de História da Universidade de Brasília. Brasília, 2008.
BASTOS, Aureliano Cândido Tavares. Cartas do Solitário. São Paulo:
Companhia Editorial Nacional, 1938.
BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil, 1800-1900. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2010.
BEIGUELMAN, Paula. A Formação do Povo no Complexo Cafeeiro: Aspectos
Políticos. São Paulo: Edusp.
BETHELL, Leslie. A Abolição do Comércio Brasileiro de Escravos: A Grã-
Bretanha, o Brasil e a Questão do comércio de escravos, 1807-1869. Brasília: Editora do
Senado, 2002.
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política – Volume 1 – 11º Edição. Brasília:
Editora UNB, 1998, p. 934.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. A imagem do imigrante indesejável. Revista
Seminários, São Paulo, v. 3, n. 3, p. , dezembro/2003.
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da ordem. Teatro das sombras. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
CHALHOUB, Sidney. A Força da Escravidão: Ilegalidade e costume no Brasil
oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
CALMON, Pedro. História Social do Brasil: Espírito da Sociedade Imperial –
Volume II. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

129
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CONRAD, Robert Edgard. Tumbeiros: Tráfico de escravos para o Brasil.


Brasiliense: São Paulo, 1985.
COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia. São Paulo: Editora UNESP.
FILHO, Evaristo de Morais. As ideias fundamentais de Tavares Bastos. Rio de
Janeiro: Difel, 1978.
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: Uma história do tráfico de escravos
entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GRAHAM, Richard. Grã-Bretanha e o início da modernização no Brasil: 1850-
1914. São Paulo: Brasilense, 1973.
MACHADO, Humberto Fernandes. Escravos, Senhores e Café: A crise
Cafeicultura Escravista do Vale do Paraíba Fluminense, 1860-1888. Niterói: Cromos,
1993.
MANCHESTER, Alan K. Preeminência Inglesa no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1973.
MARQUESE, Rafael & TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a
formação do mercado mundial do café no século XIX. In: MUAZE, Mariana & SALLES,
Ricardo (Org.) O Vale do Paraíba e o Império do Brasil: nos quadros da Segunda
Escravidão. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015, p. 49.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2011.
MOREL, Marco & BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, imagem e poder: o
surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à
terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura - Arquivo Público do Rio
de Janeiro, 1988.
PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

130
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As diversas faces de São Domingos: conflitos, possibilidades e contradições.


(1789-1815.)
AMANDA BASTOS DA SILVA
Mestranda Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF)

A revolução de São Domingos:


Em 1789, São Domingos lucrava mais que todas as outras colônias juntas de sua
metrópole, a França. O antropólogo Sidney Mintz destaca que a região possuía o mais
diversificado, tecnológico e bem fortificado sistema escravista do Novo Mundo. Eram
pioneiros na produção de café, melhoraram a cana usada para fazer o açúcar e
desenvolveram um elaborado sistema de irrigação. Tratava-se da “pérola das Antilhas”,
a colônia mais invejada e cobiçada. (MINTZ, 1989, p. 40.).
Elevados números não vieram sem intensa exploração. Os escravos trabalhavam
e viviam em péssimas condições. Precisavam conviver com o medo, o excesso de trabalho
e a desnutrição. Em agosto de 1791 alguns desses indivíduos se reuniram na floresta de
Bois Caïman. O líder foi um escravo chamado Dutty Boukman e os relatos destacam que
ele estava inspirado. Falou sobre deus e vingança, enfatizou a necessidade de serem livres
e respeitarem as tradições. Cânticos e práticas do vodu foram realizados e ao final a
tradição oral comenta que eles mataram um porco para selar o movimento (FERRER,
2014, p. 17.).
De início, essas lutas não almejavam separar a metrópole da colônia, mas nem por
isso eram menos políticas. Os acontecimentos em São Domingos não possuem
precedência. A revolução acentuou as tensões do iluminismo, inverteu os princípios dos
Direitos do Homem e redefiniu o significado de liberdade. A revolução Americana e a
Francesa associavam a liberdade aos direitos de propriedade. São Domingos extinguiu
esses direitos. A luta pela emancipação e autonomia distinguiu o conflito não só de outros
burgueses, mas também de todas as outras revoltas e rebeliões escravas que aconteceram
no Novo Mundo (FICK, 2004, pp. 359-361.).
Não demorou até que a França enviasse reforços. Emissários percorreram os
Estados Unidos, Jamaica e Cuba em busca de ajuda; qualquer recurso que pudesse conter
o movimento era válido. Ao mesmo tempo, por mais temerosos que estivessem e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

131
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pessimistas que fossem; ninguém acreditava que São Domingos triunfaria. Em finais de
1791, poucos imaginavam que a revolta escrava se tornaria o que hoje conhecemos como
a história do Haiti (FICK, 2004, p. 39.).
De qualquer forma, a revolução produziu efeitos. Em abril de 1792, a França
decretou igualdade entre homens livres de todas as cores. Em agosto de 1793, comissários
coloniais estabeleceram o fim da escravidão em São Domingos. Pouco depois a metrópole
fez o mesmo e afirmou que todos os homens que viviam nas colônias, independente da
cor, eram cidadãos franceses. De início a lei se aplicava a São Domingos, mas em 1795
a Convenção estendeu o decreto a todo o território francês (BLACKBURN, 2007, p.
161.). A França acreditava que conseguiria atrair os negros e afastá-los de invasores. As
medidas eram um avanço, mas também uma tentativa de subjugar os rebeldes e mantê-
los contidos até que a revolução se esvaísse.
Desde Boukman, o movimento conheceu outros líderes e provavelmente
Toussaint Bréda, ou Louverture, foi o mais famoso. Ao longo dos dez anos e meio em
que esteve no poder, Toussaint estabeleceu o controle sobre toda a ilha, negociou tratados
com a Grã Bretanha e os Estados Unidos e estruturou um grande e bem disciplinado
exército. Mostrou-se particularmente interessado em Napoleão Bonaparte. Escrevia
cartas a ele. Tratava-o como igual. Dizia-se inspirado em seus ideais (JAMES, 2000, p.
232.). Pelo menos até o imperador retomar a escravidão nas colônias francesas e
recrudescer a ofensiva contra São Domingos. Louverture caiu. Bonaparte tentou. Mas em
01 de janeiro de 1804 São Domingos se converteu no independente Haiti.
O novo país caribenho estava rodeado de colônias europeias intensamente
atreladas à escravidão. São Domingos deixou um espaço econômico em aberto e algumas
regiões emergiram como substitutas. Em paralelo, novas discussões cresciam e ganhavam
profundidade. O abolicionismo anglo-americano adquiria força e a segunda escravidão se
estruturava. A seguir, o texto analisará dois grupos de fontes que contribuíram a essas
questões e trouxeram à tona as suas complexidades.

Marcus Rainsford: São Domingos e o abolicionismo anglo-americano.


Marcus Rainsford foi um soldado britânico que em 1799 esteve em São Domingos
a trabalho. Nos anos seguintes publicou dois livros sobre a viagem: A memoir of

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

132
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

transactions that took place in St. Domingo, in the spring, sem ilustrações, de 1802 e An
historical account of the Black empire of Hayti: comprehending a view of the principal
transactions in the revolution of Saint Domingo, e as suas nove imagens, de 1805.
O primeiro deles é extremamente pessoal. Constitui-se de um relato de 31 páginas
sobre a estadia de Marcus Rainsford em São Domingos. Rainsford se descreve como um
simples soldado e afirma que os leitores não devem esperar muito dos escritos vindos de
sua pena. No entanto, acrescenta possuir uma preocupação genuína. Está disposto a
desmistificar São Domingos e combater preconceitos (RAINSFORD, 1802, p. 8.). Ao
menos em teoria. De acordo com Rainsford, falava-se sobre São Domingos: muitos
alarmes, conjecturas e crises de ansiedade. O autor se sentia no dever moral de negar essas
questões. O movimento era legítimo e não existiam razões para a Grã Bretanha se sentir
temerosa.
Nesse contexto, o principal responsável pelas benesses foi Toussaint. Rainsford
descreve-o como um indivíduo humilde, inteligente e capaz. Em meio à destruição da
guerra, Toussaint brilhava e conduzia negros e estrangeiros com perspicácia. Durante três
semanas a estadia do soldado britânico foi estável. Conversou e divertiu-se com
Toussaint, constatou que o povo de São Domingos era precioso e mesmo em meio à
revolução, se sentiu seguro (RAINSFORD, 1802, p. 14.).
No entanto, em 1798 a Grã Bretanha fora expulsa da ilha e Rainsford, por mais
pacífico e interessado que estivesse, era persona non grata. Recomendaram que ele
fingisse ser americano e por um tempo funcionou, mas acabou descoberto. Faltavam
passaportes e outros documentos que comprovassem a sua nacionalidade. Após rápido
julgamento, o britânico foi condenado à morte; acusaram-no de ser espião. Contudo, em
uma virada na história, Toussaint em pessoa decidiu dar uma segunda chance à Rainsford.
Anulou a pena de morte e determinou que o soldado não voltasse à ilha sem os papeis
necessários. (RAINSFORD, 1802, p. 30.). Rainsford estava salvo e Toussaint mostrara a
sua grandiosidade: havia a necessidade de um segundo livro.
Para o autor, a segunda obra, agora em 544 páginas e 09 litografias, era
indispensável. Reafirmando o seu primeiro texto, Rainsford destaca que os eventos em
São Domingos eram grandiosos e provavelmente alterariam a história da humanidade. No
entanto, as falhas da sociedade iluminista, os preconceitos frequentes e medos infundados

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

133
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

nublavam a compreensão geral. Daí a importância de seus relatos; por mais falhos e
parciais que fossem, eram genuínos (RAINSFORD, 1805, p. 40.).
Negros foram capazes de repelir os seus inimigos com vigor, em seu próprio país.
Rainsford afirmava compreender a questão, dizia-se cônscio das consequências e apto a
tratar do assunto. O soldado comenta que outros textos antes do seu foram produzidos,
mas faltava cautela e embasamento (RAINSFORD, 1805, p. 44.). Para suprir essa falta e
evitar que o movimento fosse creditado em outra época, por pessoas não contemporâneas
aos fatos, o britânico apressou-se a escrever o relato de 1802. Três anos depois, com mais
tempo e discernimento “encontrar-se-á uma versão sucinta e confiável, na qual a
impolidez da crueldade e os erros da injustiça são expostos, preferencialmente que
qualquer preconceito ou hábito nacional” (RAINSFORD, 1805, p. 48.).
Sobre as ilustrações, Rainsford é enfático: "A mera descrição não transmite com
a mesma força do que quando acompanhada por ilustrações gráficas dos horrores que
impressionarão a mente do público” (RAINSFORD, 1805, p. 48.). O britânico estava
determinado a difundir a revolução e as experiências que vivenciara e é compreensível o
uso de imagens em um contexto com altos índices de analfabetismo e desinteresse pelo
tema. A quem não pudesse ou quisesse enfrentar as 544 páginas, havia as litografias. Ao
todo Rainsford utilizou nove, esse artigo enfocará duas. Naturalmente, nenhuma delas
significa o retrato fiel da realidade. Trata-se de representações e apropriações feitas pelo
autor com porções da verdade. Nem por isso menos válidas à análise. (PLAZA, 1987, p.
48.).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

134
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Figura 01.

Na imagem denominada “Toussaint Louverture”, Toussaint segura uma espada e


papéis, provavelmente planos de batalha (RAINSFORD, 1805, p. 25.). Ao fundo,
soldados negros, um acampamento e fortificações. Não existem imagens de Toussaint
produzidas em vida e essa foi baseada na descrição oral de Rainsford. De acordo com o
britânico, Toussaint era uma pessoa viril, de estatura acima da média e semblante
marcante. O seu uniforme era uma espécie de casaco azul, com uma capa vermelha sobre
os ombros, punhos vermelhos, oito linhas de renda sobre os braços e um par de medalhas
de ouro, colete vermelho e calças, botas de cano curto, chapéu redondo com uma pena
vermelha e um cocar. A espada completava o equipamento (RAINSFORD, 1805, p. 308.).
O letramento de Toussaint era outra característica muito retratada e não é a toa que possui
os papeis ao lado da arma.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

135
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Figura 02.

Na imagem intitulada “O autor quando sob sentença de morte aliviada por uma
mulher de cor benevolente” Marcus Rainsford, atrás das grades, recebe comida de uma
mulher negra carregando uma cesta. Nos detalhes temos um forte em uma colina, um
campanário, palmeiras e grilhões (RAINSFORD, 1802, p. 27.). O evento foi destacado
por Rainsford nos dois livros. Sentia-se extremamente grato pela mulher que lhe deu um
pouco de conforto em momento tão difícil. Nunca soube o seu nome, mas jamais se
esqueceu dela.
Rainsford desejava elencar os pontos positivos da população de São Domingos.
Ao seu modo. A começar, hospedou-se no Hotel da República, edifício elegante e bem
organizado. Exceto pela pele predominantemente negra, não notou grandes diferenças de
uma hospedagem europeia. No local em que fez as suas refeições, foi tratado com
cordialidade e educação e sentiu-se como em um café londrino. No campo das artes,
assistiu a uma encenação de Molière com precisão idêntica aos franceses. (RAINSFORD,
1805, p. 280.). Quando disse que combateria preconceitos, Rainsford o fez de forma

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

136
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

segura. Não se propôs a esmiuçar a cultura africana em São Domingos, a construção do


créole, ou as influências que negros deram aos homens brancos.
Nesse ponto de vista, os negros eram tão gentis, estáveis e obedientes que
dificilmente se rebelariam por conta própria. Para Rainsford, os escravos poderiam ser
felizes em São Domingos. O clima era agradável, estavam bem vestidos e alguns
possuíam pequenas plantações ou criavam galinhas, porcos e até cavalos. No entanto, os
colonos não hesitaram em explorá-los e tratá-los como a classe mais ordinária de seres
humanos. Os franceses não eram necessariamente maus, mas consideravam a sua estadia
na ilha provisória, estavam ali para fazer ou reconstruir fortunas. Não havia tempo para
desenvolver laços. Como consequência, o espírito revolucionário cresceu e se consolidou
ao longo dos anos (RAINSFORD, 1805, p. 122.).
Novamente Rainsford mostrou-se reticente em quebrar padrões europeus. Os
negros, obedientes e submissos, iniciaram o movimento devido à incompetência francesa.
Não porque desejaram e podiam, porque jamais seriam felizes com a liberdade cerceada.
Para o autor, o tráfico e a escravidão eram possibilidades plausíveis. Bastava que os
senhores não se excedessem e nem abusassem do poder que possuíam. Diante de um
cenário negativo e já desgastado, a abolição emergia com um caminho que, ao menos
para Rainsford, deveria ser percorrido com cuidado. (RAINSFORD, 1805, p. 160.).
A ideia era comum. O movimento abolicionista estava extremamente atrelado ao
contexto em que se inseria, possuía objetivos diversos e iniciativas não coordenadas
(TEMPERLEY, 1987, pp. 229-257.). Os primeiros impulsos para mudança giravam mais
em torno de melhorias que na abolição do tráfico e emancipação da escravatura.
Rainsford, inclusive, acreditava que a Grã Bretanha com as suas fábricas possuía formas
de trabalho tão virulentas quanto o escravismo das colônias (RAINSFORD, 1805, p.
160.).
Além disso, havia os fatores econômicos como possíveis embargadores. Em 1807,
ano de fim do tráfico, a Grã Bretanha era a maior potência europeia e as suas colônias
rendiam altos lucros. Em meados de 1815, nem Cuba ou Brasil ultrapassaram a liderança
da Grã Bretanha na produção de açúcar e café. A ascensão da indústria também não
funcionou como justificativa, havia a plena capacidade dos dois sistemas conviverem. E
conviviam. (DRESCHER, 1974, pp. 414-435.). Os próprios abolicionistas reconheciam

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

137
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que o escravismo era altamente lucrativo. Rainsford afirma que em termos estritamente
econômicos, não havia motivos para abolir o tráfico ou emancipar escravos
(RAINSFORD, 1805, p. 160.).
De acordo com o historiador Christopher Brown, a campanha antiescravista
britânica precisava de alguns elementos para se desenvolver. A começar, a escravidão
deveria ser considerada um erro moral. Em seguida, esse erro precisava receber cunho
político, atrair interesse sustentado e se tornar fonte de preocupação. Nesse contexto, os
interessados (políticos, grupos religiosos, filantropos) deveriam estruturar as novas
inquietações. Finalmente, o confronto com o sistema escravista tinha de ser problema
pessoal e coletivo, prioridade para além dos protestos iniciais, sustentada em uma
organização coerente e institucional (BROWN, 2007, p. 36.).
A conjuntura estava diretamente atrelada à Revolução Americana. O conflito não
causou o abolicionismo britânico, mas influenciou significativamente o caráter moral das
instituições coloniais e práticas imperiais. O escravismo foi repensado, transformou-se
em símbolo e fonte de auto-exame. Ambos os abolicionismos foram organizados em
bases reformistas, com participação de comunidades religiosas e direcionados à ação
legislativa, além de promoverem debates públicos e participação popular (BROWN,
2007, p. 27.).
A Grã Bretanha era uma grande potência, provavelmente a maior, mas não era a
única nação do mundo. Não havia poder dentro ou fora da lei que fizesse com que a Grã
Bretanha pudesse abolir o tráfico em todo o globo. Aliás, até o último momento havia
dúvidas se o tráfico se tornaria ilegal na Grã Bretanha. Em concomitância aos projetos
abolicionistas, desenvolveu-se a chamada segunda escravidão.

Jean Louis Dubroca: São Domingos e a segunda escravidão.


A revolução de São Domingos devastou economicamente a colônia e outras
regiões emergiram como substitutas no contexto da segunda escravidão. De acordo com
Dale Tomich, os interesses da Grã Bretanha prevaleceram à medida que a hegemonia da
região, a economia-mundo e a Revolução Industrial se mostraram capazes de reestruturar
as necessidades e solidificar essa nova escravidão. Nesse contexto, o desenvolvimento da
classe média, o aumento do número de trabalhadores e a procura por novas matérias

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

138
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

primas consolidaram o açúcar, o café e o algodão como bens primordiais (TOMICH,


2011, pp. 83-89.). Enquanto os antigos centros escravistas declinavam, Cuba, Brasil e o
Sul em dos Estados Unidos ascendiam. Além disso, o historiador Tâmis Parron estruturou
a necessidade de se pensar além do ponto de vista econômico. Parron acredita que em
adição à hegemonia britânica, é preciso compreender as ações de senhores e escravos, a
dimensão política e os fatores culturais (PARRON, 2015, p. 14.).
Entre a primeira e a segunda escravidão existem semelhanças e descontinuidades.
A primeira escravidão associava-se aos sistemas da Espanha, Portugal, Países-Baixos,
Grã Bretanha e França. Possuiu caráter colonial, mercantil e atrelado ao tráfico de
escravos e a plantation. A sua estrutura era um acontecimento inédito. Impérios
marítimos europeus compravam seres humanos no continente africano para utilizá-los
como mão de obra nas Américas. Era pouco diversificada, concentrada no trabalho braçal
e racial dos africanos. Em colônias mais bem sucedidas, como São Domingos, o número
de escravos era maior que de homens brancos (BLACKBURN, 2016, p. 14.).
A segunda escravidão negava esse status de colônia, seja de forma efetiva, como
no caso dos Estados Unidos ou por meio de aspirações, como Brasil e Cuba. Apresentava
um regime mais autônomo, que reivindicava soberania e era capaz de suportar
movimentos revolucionários, além de atender às demandas do pós-colonialismo.
Certamente precisava de um Estado que a amparasse, mas não que a controlasse.
Provavelmente era mais moderna e produtiva, definitivamente não era mais humana.
Ambos os modelos utilizaram cativos a partir de critérios étnicos, lançaram mão do
trabalho forçado e trataram os escravos como mercadorias que poderiam ser compradas
e vendidas (BLACKBURN, 2016, p. 19.).
No tocante à pesquisa, o caso cubano é de extrema importância. Cuba possuía
escravos antes de São Domingos organizar a sua Revolução. No entanto, até finais do
século XVII a colônia era mais uma sociedade com escravos que uma sociedade de
escravos. Com a queda econômica de São Domingos, o cenário tomou novas proporções.
Plantadores cubanos compreenderam que o espaço deixado por São Domingos, em breve
Haiti, não poderia ser desperdiçado e trabalharam para expandir a escravidão e o açúcar
(FERRER, 2014, p. 30).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

139
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Desde 1780, os plantadores de Havana enviaram petições ao rei solicitando a


abertura do comércio de escravos. Destacavam o potencial de Cuba e a possibilidade de
a Espanha competir diretamente com Portugal e Inglaterra. O crioulo e advogado
Francisco Arango y Parreño viajou à Madri e tornou-se uma espécie de porta-voz da
causa. As iniciativas surtiram efeito. O império espanhol comprometeu-se a reestruturar
a região e o açúcar, bem como a escravidão cresceram a olhos vistos (FERRER, 2014, p.
33.).
Em 1789 a metrópole julgou necessário o estabelecimento de um código negro, a
fim de organizar os direitos e deveres dos escravos e seus senhores. A ideia de impor
limites de acesso aos negros não foi bem recebida e ainda que o decreto nitidamente
privilegiasse os colonos, acabou abolido em 1794. O rei pediu que o espírito do código
permanecesse. Até 1791, São Domingos emergiu como um exemplo. A próxima e
próspera colônia era um esquema a ser imitado e, quem sabe, superado. Quando a rebelião
de escravos tornou-se evidente, os senhores mudaram de posicionamento, mas notaram
que o vácuo econômico deixado parecia tão bom quanto uma ajuda divina (FERRER,
2014, pp. 34-37.).
Pouco depois, compreenderam que a situação era mais complexa. Em novembro
do mesmo ano, relatos da revolução já estavam difundidos e a suposta benção ganhou
ares de maldição. E se os horrores de São Domingos se repetissem em Cuba? Arango
estava otimista. Acreditava a revolução não se estenderia e por mais intensa que
parecesse, tratar-se-ia de um momento breve para Cuba ampliar as suas produções e se
manter em alta quando a França recuperasse a colônia. Nesse ponto de vista, era válido
seguir os passos de São Domingos em relação ao colonialismo, o açúcar e a escravidão,
mas tomar cuidado com as convulsões e conter a iminência do Haiti (FERRER, 2014, p.
41.). Ao longo dos anos, outras medidas foram tomadas por Arango e seus companheiros.
Por exemplo, tornou-se necessário vigiar os territórios cubanos mais afastados, realizar
contagens da população e, na medida do possível, exigir relatórios mensais dos colonos
sobre a mão de obra escrava (FERRER, 2014, p. 43.).
Na teoria, havia até dúvidas se os escravos de fato iniciaram a revolução. Relatos
afirmavam que os verdadeiros líderes eram mulatos ou brancos rebeldes e os escravos
meros seguidores. Na prática, várias restrições foram elaboradas ou reafirmadas. Desde a

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

140
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Revolução Francesa as autoridades espanholas em Cuba confiscavam jornais, panfletos e


cartas vindos da França que poderiam incutir o espírito revolucionário. Em meio ao caos
de São Domingos, a coroa passou a se preocupar também com a procedência dos negros
vindos do tráfico (FERRER, 2014, p. 56.).
Traficantes e colonos asseguravam que os escravos vinham diretamente da
África. Na verdade, não era fácil saber a real origem dos negros e os navios poderiam vir
com indivíduos que presenciaram ou até participaram da Revolução de São Domingos.
Ao longo dos 13 anos de movimento, a Espanha ordenou e revogou leis que proibiam os
escravos franceses em seus territórios. Nunca foi simples. Os decretos demoravam a
chegar, nem sempre eram obedecidos e muitas vezes os lucros faziam valer os riscos
(FERRER, 2014, p. 56.).
Paralelamente, em 1802, Napoleão Bonaparte decidiu retomar o controle de São
Domingos. Extinguiu a relação amistosa que vinha levando com Toussaint, restabeleceu
a escravidão nas colônias e... Contratou o escritor francês Jean Louis Dubroca para
desmoralizar os principais líderes do movimento revolucionário. A encomenda se
consolidou em duas obras: La vie de Toussaint Louverture, de 1802, sem ilustrações, e
La vie de Jean Jacques Dessalines, de 1806, com 10 litografias.
Curiosamente, os livros foram lançados primeiro em espanhol, na famosa editora
Mariano Zúñiga y Ontiveros. Meses depois elas foram lançadas em outros idiomas:
francês, inglês, alemão e holandês. As justificativas remetiam à facilidade na publicação
imediata das obras (MORA, 1993, pp. 52-74.). De forma consciente, ou não, alguns
elementos vieram à tona quando esses textos e imagens propagandísticos passaram a
circular pela Espanha e suas colônias.
Segundo Dubroca, não havia como a Europa permanecer indiferente ao que
acontecia em outras nações. A questão se esclareceria após todos tomarem conhecimento
dos tenebrosos acontecimentos em São Domingos. De acordo com o autor, a desunião
dos brancos da ilha fez com que os negros se apoderassem dela. A partir de então, agiram
com as próprias mãos, em meio a uma crueldade sem precedentes (DUBROCA, 1806, p.
1.).
Na primeira obra Toussaint é deslegitimado em cerca de 64 páginas. De acordo
com Dubroca, o negro era um exímio cavaleiro, dedicado ao movimento e pouco

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

141
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

suscetível a distrações (DUBROCA, 1802, p. 62.). Os únicos elogios convertiam-se nos


principais defeitos. Aparentemente, Toussaint utilizava essas habilidades para cometer
crimes e traições, matar seres humanos se assim julgasse conveniente. Além disso,
deturpava os ensinamentos do catolicismo; vivia cercado de sacerdotes, mas não hesitava
em trocar o altar pela carnificina. Dizia-se letrado, integrado à cultura europeia, mas mal
falava o francês e muitos dos seus textos eram escritos pelos seus comissários
(DUBROCA, 1802, p. 63.).
As acusações a Jean Jacques Dessalines eram tão ou mais intensas. Em 140
páginas o africano é descrito como um ser atroz, coberto de sangue humano e destituído
dos costumes da civilização europeia. Nos parcos momentos pacíficos com os homens
brancos, Dessalines não hesitou em matar os negros, separar mães dos filhos e estuprar
mulheres. Ainda que não possuísse intelectualidade, era movido por ambição e
juntamente à Toussaint promoveu a pior sucessão de eventos da história da humanidade
(DUBROCA, 1806, p. 18.).
As litografias consolidavam o cenário e traziam à tona a brutalidade da revolução.
Imagens gráficas foram valorizadas, com assassinatos, decapitações e desmembramentos.
Não se tratam de documentos neutros. Segundo Peter Burke: “Imagens não devem ser
consideradas simples reflexos de suas épocas e lugares, mas sim extensões dos contextos
sociais em que elas foram produzidas e, como tal, devem ser submetidas a uma minuciosa
análise, principalmente de seus conteúdos subjetivos.” (BURKE, 2004, pp. 11-25.). O
artigo abordará duas das dez imagens de Dubroca.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

142
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Figura 03.

Nessa imagem, Dessalines é descrito como Desalines. O líder é representado em


um acampamento francês e possui a espada em uma mão e a cabeça de uma mulher branca
na outra. Como Toussaint, usa um uniforme. Na lateral, há uma mão cortada
(DUBROCA, 1806, p. 32.). A figura não representa uma cena específica do livro, mas
conota o caráter extremado de Dessalines. Além disso, constitui-se de um eficiente
símbolo anti-abolicionista ao retratar o famoso Dessalines como um ser virulento e sem
escrúpulos.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

143
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Figura 04.

Essa imagem denomina-se “Foi morta e destroçada no campo essa infeliz por
haver resistido aos desejos dos brutais negros e o filho azulado de fome buscando o peito
de sua mãe”. (DESSALINES, 1806, p. 72.). O corpo em primeiro plano está aos pedaços.
Os olhos, na cabeça decapitada, direcionam-se para o céu. A saia e a blusa estão fora do
lugar, revelando partes descobertas do corpo. A mulher teria sido violentada? Dessalines
pouco antes foi descrito como estuprador. Um bebê morto tenta se alimentar no torso de
sua mãe.
Segundo Dubroca, os colonos foram descuidados, mas os únicos responsáveis
pelo caos de São Domingos eram os negros. Incivilizados, violentos e rebeldes. A solução
não estava em melhorar as condições de vida dos escravos. Muito menos no fim do tráfico
ou da escravidão. Os homens brancos deveriam intensificar a repressão, extinguir as
possibilidades de organização negra e divulgar as atrocidades que ocorreram em São
Domingos. É sabido que a França não recuperou São Domingos, mas os textos de
Dubroca mantiveram-se úteis a outros cenários, como o cubano. Os livros e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

144
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

principalmente as imagens serviram para assustar as elites e seus colonos, além de


demonstrar os perigos das ideias revolucionárias. Até pelo menos 1815, as obras de
Dubroca foram prioridade de publicação na editora do império espanhol (MORA, 1993,
pp. 52-74.).

Conclusão:
É difícil precisar se Marcus Rainsford e Jean Louis Dubroca possuíam consciência
do lugar de suas obras. Alguma noção é provável. Rainsford relacionava-se ao
abolicionismo e Dubroca foi contratado por Napoleão Bonaparte. Além disso, ambos
escreveram textos de fôlego e mostraram-se determinados a disseminar suas respectivas
mensagens. Em certa medida opostas, de vez em quando complementares.
Ao mesmo tempo, se hoje é relativamente possível estruturar o abolicionismo
anglo-americano, os conceitos de primeira e segunda escravidão e a ascensão de Cuba
enquanto colônia, Rainsford e Dubroca foram contemporâneos a essas questões. Por mais
engajados que estivessem ao período de seus livros, não havia como saber que o tráfico
britânico findaria pouco depois, que a segunda escravidão se consolidaria ao longo do
século XIX e Cuba se tornaria a “pérola” que fora São Domingos.
À indiscutível parcialidade desses autores, somam-se uma série de dúvidas e
imprecisões. Não por isso Rainsford e Dubroca são menos válidos como fonte de
pesquisa. Cabe ao historiador assimilar e ordenar esses processos em pesquisas
acadêmicas e seminários temáticos, em que adições de qualidade são sempre bem-vindas
e necessárias.

Documentação:
DUBROCA, Jean Louis. La vie de Toussaint Louverture. Londres: John Carter Brown
Library, 1802.
DUBROCA, Jean Louis. La vie de Jean Jacques Dessalines. London: John Carter Brown
Library, 1806.
RAINSFORD, Marcus. A memoir of transactions that took place in St. Domingo, in the
spring. London: John Carter Brown Library, 1802.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

145
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

RAINSFORD, Marcus. An historical account of the Black empire of Hayti:


comprehending a view of the principal transactions in the revolution of Saint Domingo.
London: John Carter Brown Library, 1805.

Bibliografia:
BLACKBURN, Robin. The American Crucible: Slavery, Emancipation And Human
Rights. New York: Verso, 2007.
BLACKBURN, Robin. Por que a segunda escravidão? In: MARQUESE, Rafael.
SALLES, Ricardo. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX. Cuba Brasil e
Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 13-55.
BROWN, Christopher. Moral Capital. North Carolina: The University of North Carolina
Press, 2006.
BURKE, Peter. Testemunha ocular. História e imagem. São Paulo: Edusc, 2004.
DRESCHER, Seymour. Le “déclin” du système esclavagiste britannique et l’abolition
de la traite. Annales. Histoire, Sciences Sociales, Paris, v. 31, n. 2, mar.-abr., 1976, pp.
414-435.
FERRER, Ada. Freedom’s mirror: Cuba and Haiti in the Age of Revolution. New York:
Cambridge University Prress, 2014.
FICK, Carolyn. Para uma (re)definição de liberdade: a Revolução no Haiti e os
paradigmas da Liberdade e Igualdade. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v. 26, n. 2,
2004, pp. 209-445.
JAMES, C.L.R. Os jacobinos Negros. São Paulo: Editora Boitempo, 2010.
MORA, Arturo Soberón. Felipe de Zuñiga y Ontiveros, un impresor ilustrado de la
Nueva España. TEMPUS: Revista de História de la Facultad de Filosofia y Letras,
Ciudad de Mexico, v. 10, n. 1, 1993, pp. 52-74.
MINTZ, Sidney. Caribbean transformations. New York: Columbia University Press,
1989.
PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil
e Cuba, 1787-1846. São Paulo: USP, 2015.
PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

146
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

TEMPERLEY, Howard. Eric Williams and Abolition: The Birth of a New Orthodoxy.
In: SOLOW, Barbara L.; ENGERMAN, Stanley L. British Capitalism and Caribbean
Slavery. The legacy of Eric Williams. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, pp.
229-257.
TOMICH, Dale. Pelo o prisma da escravidão. São Paulo: Edusp, 2011.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

147
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Palavra e revolução
A produção literária de gioconda belli na nicarágua sandinista (1970-1990)

AMANDA VANNUCCI53
PPGH–Programa de Pós-Graduação em História
UFF- Universidade Federal Fluminense

Introdução

A proposta da pesquisa de mestrado é investigar a trajetória política da escritora


nicaraguense Gioconda Belli durante o período da Revolução Sandinista (1970-1990). Nesse
sentido, se procura analisar de que maneiras suas experiências políticas dialogam com sua
produção literária. As fontes primárias que serão utilizadas nesse trabalho correspondem a uma
seleção de obras da escritora que trazem referências a temática da Revolução Sandinista.

Foi elencado para este artigo, uma breve análise do livro de memórias El país bajo mi
piel: memorias de amor y de guerra. Na primeira parte, abordarei o contexto político da
Nicarágua e criação da Frente Sandinista de Libertação Nacional- FSLN. Já na segunda será
apresentada a experiência e trajetória política de Belli e por fim, sublinharemos a importância
da visão crítica da escritora que militou no projeto sandinista.

¡Patria libre vencer o morir! – O processo revolucionário na Nicarágua

Diferentes processos revolucionários de inspiração socialistas, anarquistas e comunistas,


marcaram fortemente a história das Américas. Na Nicarágua, sob o signo desses ideais e da luta
do mártir Augusto César Sandino os jovens universitários Carlos Fonseca, Tomás Borge e Silvio
Mayorga fundaram a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) em 1961. O objetivo
deles era derrubar a ditadura da família Somoza que controlou o país por mais de três décadas,
entre 1935 e 1979. (ZIMMERMANN, 2005, p.45-46.)

Desde o processo de independência, em meados do século XIX, a história da Nicarágua


foi profundamente marcada por uma série de invasões estrangeiras, sobretudo dos Estados
Unidos. Tais intervenções se justificam, por diversos aspectos, um deles pela posição geográfica
estratégica que esse pequeno país da América Central ocupa. Seu território é repleto de istmos e
canais fluviais capazes de estabelecer um importante fluxo de mercadorias na América Central e
Caribe. Durante o governo de José Zelaya, em 1910, o então presidente decidiu impor certos

53
Mestranda do Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Sob orientação da
Professora Doutora Elisa de Campos Borges. Email: amandavannucci@id.uff.br

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

148
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

limites às aspirações estadunidenses. Como reação, os Estados Unidos realizam uma intervenção
militar, através dos marines54. Essa medida acarretou em uma guerra civil que se estendeu por
todo o país. (ZIMMERMANN,2005, p.28)

É nesse contexto que surge a figura do “General de hombres libres”, Augusto César
Sandino, primeira liderança do movimento de resistência à ocupação e ingerência estadunidense
na Nicarágua. Sandino atuou ativamente durante a guerra civil, usava táticas clássicas de guerrilha
e conseguiu considerável apoio da população. Portanto, devido à intensa mobilização desse líder
e seu exército guerrilheiro, o governo nicaraguense criou sua Guarda Nacional, com o intuito de
estabelecer a ordem interna utilizando a repressão. Durante a guerra civil, entre a década de 1910
a 1930, marcado por uma profunda instabilidade política, diversos presidentes exerceram por
pouco tempo seus respectivos mandatos. Devido aos conflitos políticos com então presidente
Sacasa, os Estados Unidos apoiam a candidatura de Anastasio Somoza García como liderança da
Guarda Nacional, e o então candidato vence com ampla vantagem. Após o golpe, as investidas
repressoras prosseguiram. Em 24 de fevereiro de 1934, Sandino foi assassinado pela Guarda
Nacional, momento este que coincide com a ascensão de Somoza ao poder. A Nicarágua se
converteu assim em um protetorado da política externa estadunidense e inaugurando uma das
mais longas e repressivas ditaduras latino-americanas.

(ZIMMERMANN,2005, p.75)

Nos anos 1960 e 1970, os universitários da FSLN começam a ler livros recém-publicados
que resgatam a história de vida e luta de Sandino. Assim essa politização por parte dos estudantes,
somado ao sentimento de indignação produzidos pela repressão da ditadura Somoza, fortalecem
a luta do grupo revolucionário. Dessa forma, evocar o símbolo representante da luta anti-
intervencionista de décadas e séculos passados corroborava para estabelecer uma coesão entre a
FSLN e um histórico de lutas identificado com a libertação nacional. (MACIEL,2013,p.48)

A importância de Sandino na história da revolução que leva seu nome


não vem somente porque ele foi seu primeiro combatente, mas
também porque foi seu primeiro sonhador. A história da revolução
popular nicaraguense começa com o sonho de um artesão de
Niquinohomo, que em algumas décadas chegou a ser o sonho de todo
um povo (...). Um sonho evidentemente impossível se se pensar que
sua realização implicava a derrota do imperialismo. No entanto,
Sandino lançou-se nesta tarefa com seu pequeno exército louco,

54
O termo refere-se ao Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos (United States Marine Corps –
USMC). Tal aparato militar possui um extenso histórico de intervenções na América Latina.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

149
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

totalmente seguro do triunfo. (GIRARDI, Giulio apud


GOLDENBERG,1987, p.43)
Além da luta armada, uma das principais estratégias para a construção e consolidação
desse movimento de oposição à ditadura, segundo Carlos Fonseca - um dos líderes da FSLN -,
relacionava-se com a formação política do partido e difusão de novos valores culturais.
Construindo, assim, uma nova identidade nacional baseada nos valores e ideais sandinistas a fim
de garantir um compromisso ideológico com a revolução (PALAZÓN,2008,p.11). Nesse
sentido, a formação da FSLN se articulou com movimentos do cenário político e cultural da
Nicarágua dos princípios dos anos 1960 que iam além da luta armada. Essas manifestações eram
em suma, lideradas por universitários e artistas que confrontavam os valores culturais
dominantes e de uma parte do movimento vanguardista que não vinculava sua arte com as
problemáticas do país (BELLI,2010, p.15). Nesse contexto que se insere a renomada escritora
Gioconda Belli.

Gioconda Belli: literatura e revolução

Gioconda Belli nasceu em Manágua, capital de seu país em 1948, no seio de uma
família da elite nicaraguense. Longa parte de sua formação esteve restrita a uma educação
católica em colégios da Espanha e dos Estados Unidos. No final dos anos 1960, após graduar-
se em publicidade e jornalismo na Espanha, retorna para o seu país de origem. (BELLI,2010,
p.15). Belli inicia sua produção literária através das publicações no jornal La Prensa Literária
na qual se destaca sua grande sensibilidade poética feminina. Concomitante à isso, ingressa nas
fileiras da FSLN e, por conseguinte, a literatura e a revolução tornaram-se partes constituintes
da sua relação com o mundo. As obras de Belli ganharam projeção no âmbito internacional em
1978, quando venceu o prêmio Casa de las Americas, no ramo da poesia com a obra Línea de
fuego.(BELLI,2010,p.213) Seus livros foram traduzidos e publicados sobretudo nos Estados
Unidos e na Europa.

Uma série de acontecimentos no ano de 1972, marcam a trajetória de Gioconda Belli e


seu comprometimento com a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Entre eles o
terremoto que devastou três quartos da cidade de Manágua e que deixou um saldo em torno de
vinte mil mortos. Nesse momento, houve também o arrefecimento das arbitrariedades
promovidas pelo governo do então presidente Anastácio Somoza, como por exemplo, decreto
da lei marcial, estado de sítio e o furto de recursos da ajuda humanitária internacional.

Quando trabalhava na agência de publicidade Publisa, Belli conheceu Bosco, o Poeta,


este a apresentou a diversos artistas com os quais a escritora estabelece laços de amizade.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

150
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Através dele a escritora também conheceu obras que influenciaram sua formação política, como
Marx, Giap, Sartre, Camus e Chomsky.(BELLI,2010,p.107-108) Em decorrência desses laços
sociais, Belli conhece o integrante da FSLN, Camilo Ortega, que a convida para participar
das atividades clandestinas da organização. Como já mencionamos, Belli entra em contato com
uma geração de intelectuais que discutem a função política da literatura e do intelectual. Assim,
nesse contexto de intensos debates e efervescência cultural, Belli integra o Grupo Gradas55
(1973-1975), que teve um papel importante na denúncia do regime somozista. Além desses
artistas, durante o período do exílio (1974-1979) devido a perseguição política da ditadura, Belli
amplia seus contatos através da Rede de Solidariedade para Nicarágua. Assim, estabelece
relações com intelectuais de enorme prestígio no México e na Costa Rica, como Efraín Huerta,
José Luis Cuevas e Elena Poniatowska.(BELLI,2010,p.167) Essa experiência marcou
profundamente as suas interpretações sobre os posicionamentos políticos da FSLN, bem como
do papel do intelectual. Belli viveu intensamente o engajamento intelectual e tomou posição nos
combates, participando significativamente das discussões em torno da Revolução Sandinista.
Dirigiu e coordenou tarefas políticas através do movimento de solidariedade à causa sandinista,
no México e na Costa Rica. A trajetória política de Gioconda Belli é de suma importância para
a compreensão do processo revolucionário sandinista, visto que sua militância e engajamento
intelectual se estenderam para além do âmbito da luta armada, também se manifestou na direção
do novo governo sandinista, denominada Junta de Gobierno de Reconstrucción Nacional
(JGRN), ocupou cargos no setor de comunicação da Junta de Governo de Reconstrução Nacional
(JGRN), e na Comissão Executiva da campanha eleitoral, como correspondente
internacional.(BELLI,2010,p.50)

El país bajo mi piel: uma análise crítica da Revolução Sandinista

Através de um texto que mescla lembranças e subjetividades, Gioconda Belli narra


sua memória autobiográfica, El país bajo mi piel, obra publicada pela primeira vez no
ano de 2001. O registro autobiográfico de Belli não obedece uma ordem cronológica,

55
O Grupo Gradas (1973-1975) foi uma organização de diversos artistas vinculados com a arte e que
haviam desenvolvido iniciativas de renovação estética e compromisso político, como a Frente Ventana
e Generación Traicionada. Pintores, escritores, poetas e músicos como Gioconda Belli, Rosario Murillo e
Carlos Mejía Godoy, integraram esse grupo que tinham por objetivo promover a literatura engajada, a
difusão do teatro de rua e a nova canção latino-americana. Dessa forma, a FSLN combinava suas ações
militares na montanha com as atividades culturais de resistência no espaço público e urbano em Manágua,
capital da Nicarágua.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

151
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

constrói seu próprio destino através do florescer das lembranças. Apesar disso o livro é
dividido em 4 partes intituladas 1) Habitante de un pequeño país, 2) En el exilio, 3) El
regreso a Nicaragua, e por último, 4) Otra vida. Sendo assim, a autora destaca que sua
necessidade em escrever suas memórias vincula-se justamente por ter sido participante
de uma luta armada do seu país para libertá-lo de uma das ditaduras mais longas e
repressivas da América Latina. (BELLI,2010,p.11)
A obra alcança uma temporalidade bastante extensa, entre a Nicarágua sob a
ditadura Somoza e a pós revolucionária. Nessa longa duração suas memórias são
profundamente marcadas por uma performance estética e emocional, onde a autora
analisa através de uma retrospectiva suas experiências e busca construir um sentido para
suas recordações. Nesse sentido:

O arquivamento do eu não é uma prática neutra; é muitas vezes a única


ocasião de um indivíduo se fazer ver tal como ele se vê e tal como
desejaria ser visto. Arquivar a própria vida, é simbolicamente preparar
o próprio processo: reunir as peças necessárias para a própria defesa,
organizá-las para refutar a representação que os outros têm de nós.
Arquivar a própria vida é desafiar a ordem das coisas: a justiça dos
homens assim como o trabalho do tempo.(ARTIÈRES,1998,P.31)
Dessa forma, o “arquivamento do eu” nos possibilita decifrar os caminhos
percorridos pela memória, permeado pelo entrelaçamento dos acontecimentos da vida
pessoal e da militância política. Revelando através dessas experiências um capítulo
importante da história política e social nicaraguense, o processo revolucionário
sandinista. Notamos assim, que o ato de rememorar está indissoluvelmente ligado aos
sentimentos e emoções, sobretudo quando envolvem experiências políticas traumáticas,
que é o caso de Belli que passou pela clandestinidade, o risco de prisão, de morte,
principalmente em ações práticas e do exílio. Assim, o empenho para recompor essas
histórias de vida perpassa as experiências individuais e coletivas do passado.

Podemos delimitar as lembranças de Belli em três etapas diferentes: antes dos anos
1970, suas memórias de infância, os anos da revolução de 1970-1979 e por fim os anos
depois da Revolução Sandinista de 1980 a 1990. Através da narrativa Belli expressa seu
passado e suas recordações pessoais que mais impactaram e formaram parte da sua
identidade. Segundo Belli, a atmosfera da revolução permeou sua vida ainda em tenra
idade. Apesar da sua família ser formada por setores da elite não aliada aos Somoza, isso

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

152
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

não significava que eram próximos aos movimentos revolucionários. Segundo a autora,
em sua classe social não se falavam sobre os sandinistas, estes eram respeitados, porém
temidos. Considerados perigosos, subversivos, comunistas, que operavam na
clandestinidade. (BELLI,2010,p.47)
Logo na introdução da obra, dois aspectos fundamentais são abordados na
construção identitária de Belli: sua relação com a Nicarágua e seu sexo. “Dos cosas que
yo no decidí, dicieron mi vida: el país donde nací y el sexo con que el que vine al mundo”
(BELLI,2010,p.11). Dessa forma, a trajetória da vida é construída a partir desses dois
elementos. Gioconda Belli atribui sua militância aos questionamentos de valores e papéis
desempenhados pelo sexo feminino na sociedade. Ela pertence a uma geração de
mulheres que assumiram uma postura desafiadora e subverteram aos papéis tradicionais de
gênero e romperam as barreiras de uma sociedade patriarcal. Ao analisar a construção de
Belli enquanto mulher e militante, percebe-se que a adesão à militância política
representou uma transformação radical em sua vida. Além disso, deixa transparecer essas
inquietações entre ser mulher e revolucionária e questiona atitudes machistas arraigadas,
que por vezes tentavam impedi-la de participar em atividades de lideranças, impondo um
trabalho de retaguarda. Também busca se libertar de um casamento sufocante, já como
guerrilheira libertar seu país de uma ditadura “no sé en qué orden sucedieron las cosas,
si fue primero la poesía o la conspiración,” (BELLI,2010,p.56) já que sua poesia era
inspirada no mundo da guerrilha. Na obra, a autora também retrata a ruptura com a família,
o sofrimento emocional em viver longe das filhas e dos pais para seguir a luta
revolucionária, a experiência do exílio e ser perseguida pela Guarda Nacional.

A posição ocupada por Belli na FSLN era em suma de apoio logístico na


organização. Sua primeira ação foi como correio secreto, mas também atuou no transporte
de clandestinos, organizações de reuniões em sua casa. A classe social privilegiada de
Belli permitia que transitasse por diferentes espaços sem levantar suspeitas e argumenta
que: “la dictadura prefería amedrentarme y no capturarme. Capturar personas como yo
era aceptar que el Sandinismo no era una secta oscura de delincuentes” (BELLI,2010,
p.94).Mesmo assim, órgãos repressivos armaram um cerco ao seu redor. Em 1975, a
ligação de Belli como sandinista foi descoberta e após sofrer ameaças deixou o país e foi
para o México.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

153
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Belli relembra que no princípio de julho de 1979, o avanço revolucionário era


incontrolável, como nas cidades de León, Masaya, Matagalpa, Estelí começaram uma
insurreição feroz. A vitória da FLSN teve múltiplos significados para Belli. Naquele
momento pode ter a sua liberdade, voltar para sua família, viu a solidariedade do povo
com os revolucionários, injetou vigor para reconstruir seu país. Relata os gritos de
felicidades para Nicarágua entoando pelas ruas o lema “¡Patria Libre o Morir!”. Após a
euforia da vitória, Belli relata a situação caótica vivida no país, os saques aos carros e
casas abandonadas pelos apoiadores de Somoza.

No entanto, argumenta que após o triunfo da revolução nem tudo foram flores,
“en vez de maná del cielo, llovieron balas; en vez de cantar en coro, los nicaragüenses
nos dividimos; en vez de abundancia, hubo escasez” (BELLI,2010,p.12). Por
conseguinte, os sonhos gerados pela Revolução Sandinista deram lugar a muitas
incertezas, visto a realidade difícil provocada pelos danos da guerra. A luta pelo poder
dentro da FSLN, a guerra contra revolucionária financiada pelo presidente estadunidense
Ronald Reagan, foram alguns dos fatores que corroboraram para deteriorar ainda mais a
situação sócio econômica vivida pelo país, cessando assim os sonhos revolucionários.
Entretanto a autora avalia que todas as suas alegrias e tristeza vividas durante o processo
revolucionário foram importantes, já que escreve essas memórias em defesa dessa
felicidade pela qual a vida e até a morte valem a pena. (BELLI,2010, p.13)

Nesse sentido, Belli valoriza os acontecimentos pós revolucionários e os interpreta


baseando-se em suas experiências. Observamos assim que a memória é viva, uma
construção/reconstrução realizada no tempo presente a partir das vivências do passado,
um elemento constituinte do sentimento de identidade, individual como também coletivo
(POLLACK,1992, p.204). Dessa forma, amplia a análise histórica na medida em que
resgata, constrói e reconstrói este passado a partir da das intenções do presente.

Considerações finais

Gioconda Belli narra sua vida como mulher, sandinista e ao mesmo tempo como
integrante de uma família da elite nicaraguense. Essas identidades refletem o novo
modelo de vida onde muitas situações se entrelaçam dentro de espaço público como

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

154
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

privado, onde uma pluralidade de vozes integra o texto autobiográfico. Dessa forma, se
caracteriza pela sua intertextualidade por um lado há o relato de uma trajetória individual,
singular e por outro, o relato de uma história revolucionária, coletiva.

Após o triunfo da Revolução Sandinista em 19 de julho de 1979, viveu-se na


Nicarágua um conturbado processo de reconstrução do país. As utopias sandinistas
encontraram um grande entrave: a guerra contrarrevolucionária conhecida como la
Contra. A esperança de continuar os ideais revolucionários que tem suas bases
alicerçadas na figura do herói nacional Augusto César Sandino foram desaparecendo e
teve como desdobramento a derrota da FSLN nas urnas nas eleições de 1990. Nesse
contexto, Belli rompe com o partido devido às contradições políticas e associa-se ao
partido Movimento Renovador Sandinista (MRS).

Pensar a memória da Revolução Sandinista a partir da perspectiva de uma


mulher que atuou neste processo supõe, portanto, reconhecer que o exercício do
pensamento e agência está distribuído por toda parte. Visto que, não são excluídas a
heterogeneidade de classes, de culturas e os sujeitos marginais em suas diferentes
posições na hierarquia das estruturas sociais que atuaram nesse processo. Na
autobiografia de Belli se entrelaçam memórias da esfera da vida pessoal com a social,
tendo como ponto fundamental os acontecimentos que marcaram a história da Nicarágua.
acionar, a partir do presente, o sentido que os indivíduos dão a sua própria história. Para
Pollack, a memória é um fenômeno individual, seletivo e constituinte do sentimento de
identidade, que se constrói e reconstrói a partir da narrativa, linguagem e identidade
individual e coletiva.

Notamos que através da memória de Gioconda é possível analisar sua trajetória,


compreender os dilemas, conflitos e incertezas presentes no contexto no qual a autora
estava inserida. Ademais percebemos que o engajamento transcende a fronteira da escrita
literária e se efetiva também no exercício da luta armada e de cargos políticos. O
engajamento está vinculado a preocupações da escritora em disputar ideias, opiniões e
propostas políticas para pensar possíveis soluções para o desenvolvimento econômico, a
emancipação das classes populares e pela soberania nacional. Ademais, o fato de Belli ter
escrito essas memórias já se pressupõe a importância que a teve FSLN teve em sua vida

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

155
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

e para a história do seu país. Como ela mesma afirma “No podría vivir si no creyera que
la imaginación puede crear nuevas realidades.”

Fontes

BELLI, Gioconda. El país bajo mi piel. Buenos Aires: Seix Barral, 2010

. A mulher habitada. São Paulo: Record, 2000.

. O olho da mulher. Trad: Silvio Diego; Revisão da tradução,


notas e prólogo: Bethania Guerra de Lemos. Diamantina: Arte Desemboque, 2012.

Bibliografia

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Revista Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, v.11, n.º 21, 1998. p.31

BELLI, Gioconda. El país bajo mi piel. Buenos Aires: Seix Barral, 2010.

. A mulher habitada. São Paulo: Record, 2000.


. O olho da mulher. Trad: Silvio Diego; Revisão da tradução,
notas e prólogo: Bethania Guerra de Lemos. Diamantina: Arte Desemboque, 2012.
.Sofía de los presagios. Buenos Aires: Emecé, 1997
. Waslala. Memorial del futuro Emecé: Buenos Aires, 1998
CHAGUACEDA, Armando; FELICIANO, Héctor Cruz . Los intelectuales públicos y el
Frente Sandinista en Nicaragua: presencia, desencuentros y actualidad (1990-2012).
Revista Cahiers des Amériques latines, França, n. 74, ano 2014. Disponível em:
http://cal.revues.org/3021 Acesso em: 20/042015.
GEMA, . Palazón Sáez, Polémicas culturales, compromiso intelectual y revolución en
Nicaragua .In: Revista L'Ordinaire des Amériques, França,2008, nº 211,p.14. Acesso em:
22/12/2016. Disponível em: http://orda.revues.org/2534

GOLDENBERG, Mirian. Nicarágua, Nicaraguita: um povo em armas constrói a


democracia. RJ. Editora Revan,1987.

MACIEL, Fred. Da montanha ao quartel: atuação e influência do Exército Popular


Sandinista na Nicarágua. 2013,180 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Ciências

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

156
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista ―Júlio de Mesquita Filho‖,


Franca, 2013.

POLLACK, Michael. Memória, Esquecimento, Silencio. Revista Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

_____________. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5,


n. 10, p. 200-212, 1992.

ZIMMERMANN, Matilde. A Revolução Nicaraguense. São Paulo, UNESP, 2005.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

157
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Notas para um estudo de controvérsias intelectuais: o debate entre Caetano Veloso


e Roberto Schwarz
ANA CAROLINA BORGES
PPGHPBC/CPDOC/FGV – bolsista CAPES

Analisar trajetórias intelectuais não é fácil. A tarefa se complica ainda mais


quando os pensadores em questão são vivos e ativos na produção de conhecimento – é
preciso ter muito cuidado para não realizar julgamentos apressados que correm o risco de
serem imprecisos. Este trabalho busca, portanto, aceitar o desafio de analisar a produção
de Caetano Veloso e Roberto Schwarz através, claro, de um viés crítico, porém,
respeitando os limites que se impõe numa argumentação desse tipo.
É importante dizer que algumas proposições desse texto são apenas hipóteses e
necessitam de um estudo mais aprofundado para a elaboração de alguma conclusão
legítima. Portando, o que se apresenta aqui é uma composição ensaística, introdutória e
ainda com questões em aberto. Vale lembrar que esse trabalho nasceu como a
reformulação de um projeto de mestrado – em andamento – que pretende estudar a obra
das figuras citadas especialmente no que diz respeito ao período da ditadura militar.
Dito isso, passemos para a apresentação dos personagens em questão: Caetano
Veloso e Roberto Schwarz. Um é cantor/compositor e o outro, crítico literário/acadêmico.
Dois expoentes em suas áreas que passaram pela ditadura militar brasileira e se
posicionaram contra o regime. Entretanto, apesar desse ponto (fundamental) em comum,
Caetano e Schwarz não poderiam ser mais diferentes: enquanto um propunha, via
movimento tropicalista, uma revolução estética, o outro discutia a revolução no sentido
clássico proposto por Marx56. As visões sobre os sentidos e rumos da produção artística
não poderiam ser mais diferentes pois, enquanto Caetano queria combinar tudo, Schwarz
queria definições claras e precisas.

56
Refiro-me ao grupo do seminário de estudo de O Capital, segundo o próprio Schwarz, em entrevista à
FAPESP: “No núcleo inicial estavam Ruth e Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Fernando Novais,
Paul Singer e Giannotti. Os alunos mais assíduos eram Leôncio Martins Rodrigues, Francisco Weffort,
Gabriel Bollaffi, Michael Löwy, Bento Prado e eu.”
Entrevista disponível em:
http://revistapesquisa.fapesp.br/2004/04/01/um-critico-na-periferia-do-capitalismo/
Acessado em 10/08/2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

158
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Esse embate, personificado nas figuras do músico e do crítico, era um ponto


central nos debates culturais dos anos 1960 e que voltou à tona recentemente, em 2012,
quando Schwarz publicou um ensaio, intitulado Verdade Tropical: um percurso de nosso
tempo, uma crítica tardia ao livro autobiográfico de Caetano, Verdade Tropical. No texto,
é como se Schwarz encontrasse seu passado para dizer que suas desconfianças estavam
certas e Caetano teria provado isso, segundo o acadêmico, fazendo uma versão
apaziguada do passado violento da ditadura.
Entretanto, a crítica de 2012 só foi surpresa para a autora que agora escreve essas
linhas (na época estava nos primeiros semestres da graduação em História da UERJ e não
sabia quem era Roberto Schwarz) pois, para qualquer estudioso da área, trava-se de um
debate iniciado nos anos 1960. Sendo assim, minhas próximas palavras serão uma
tentativa de traçar uma genealogia desse embate de ideias entre Caetano e Schwarz que
servem para situar o leitor e organizar a autora.
Ao apresentarem para o público, em 1967, no III Festival da Música Popular
Brasileira, as canções Alegria, Alegria e Domingo no Parque, Caetano Veloso e Gilberto
Gil, respectivamente, lançaram as bases do movimento tropicalista que iria alcançar seu
auge no disco-manifesto de 1968, Tropicália ou Panis et Circencis.

Assim, Alegria, Alegria apresenta uma das marcas que iriam definir a
atividade dos tropicalistas: uma relação entre fruição estética e crítica
social, em que esta se desloca do tema para os processos construtivos.
Na linha da modernidade, esta tendência cool das canções tropicalistas
trata o social sem o pathos então vigente. Nesta primeira música
tropicalista, surpreende-se – no procedimento de enumeração caótica e
de colagem, tanto na letra quanto no arranjo – indicações certeiras do
processo de desconstrução a que o tropicalismo vai submeter a tradição
musical, a ideologia do desenvolvimento e o nacionalismo populista.
(FAVARETTO, 2007, p. 21)

Sendo assim, o movimento tropicalista vinha para mudar em definitivo a música


e a cultura brasileira. No entanto, essa mudança acompanhava – influenciando e sendo
influenciada – a transformação do público consumidor dessa produção. A nova audiência,
formada por “jovens, universitários, de esquerda” (NAPOLITANO, 2001, p. 104) queria
uma arte que fosse engajada, comprometida com o combate à ditadura militar do Brasil.
Contudo, o tropicalismo não escapou da lógica mercadológica que, em teoria, combatia:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

159
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No caso do Tropicalismo, a incorporação de elementos do "mau-gosto"


buscava provocar o estranhamento do público diante das canções de
mercado, como foi dito várias vezes, sobretudo por Caetano Veloso.
Mas o tiro saiu pela culatra. Ao invés da "implosão" do público, tal
como havia ocorrido com o "tropicalismo" teatral, o que acabou
ocorrendo foi uma nova ampliação da faixa de consumidores da MPB.
A força do mercado acabou por incorporar o Tropicalismo, lembrado
até hoje como um momento de renovação da canção brasileira, por
incorporar a linguagem pop e abrir caminho para uma audiência de
canções brasileiras "modernas" entre os adeptos da contracultura jovem
e radical, surgida a partir de 1968. Na festa de arromba da MPB sempre
tinha espaço para mais alguém, desde que ungido pelo gosto elástico da
classe média brasileira, que transformou a sigla em sinônimo de "bom
gosto" e reconhecimento cultural. (NAPOLITANO, 2001, p. 121)

Todavia, Roberto Schwarz, ainda em 1970, formulava que a proposta tropicalista


não foi incorporada pelo mercado, ela seria, desde sua concepção, mercadológica:

Sobre o fundo ambíguo da modernização, é incerta a divisa entre


sensibilidade e oportunismo, entre crítica e integração. Uma
ambiguidade análoga aparece na conjugação de crítica social violenta e
comercialismo atirado, cujos resultados podem facilmente ser
conformistas, mas podem também, quando ironizam o seu aspecto
duvidoso, reter a figura mais íntima e dura das contradições da
produção intelectual presente. Aliás, a julgar pela indignação da direita
(o que não é tudo), o lado irreverente, escandaloso e comercial parece
ter tido, entre nós, mais peso político que o lado político deliberado.
Qual o lugar social do tropicalismo? [...] Mais ou menos, sabemos assim
a quem fala este estilo [refere-se aos universitários]; mas não sabemos
ainda o que ele diz. (SCHWARZ, 2014, p. 25-26)

Em pleno século XXI, talvez seja difícil entender o tom pejorativo dado a
característica “comercial” da tropicália, no entanto, nos anos 1960/70, esse debate estava
em plena ebulição. Vivia-se a Guerra Fria e a ideia de uma revolução socialista era
debatida como possibilidade real. Vale lembrar o local de origem da formação de
Schwarz: Universidade de São Paulo (USP), uma das primeiras universidades a debater
O Capital e berço de um dos movimentos estudantis mais combativos da ditadura militar.
Em outras palavras, apenas a possibilidade de uma arte que estivesse à serviço do capital
e não da revolução soava quase como uma ofensa para o público de “jovens,
universitários, de esquerda” e seus teóricos marxistas como Schwarz.
No entanto, a perspectiva de Napolitano é interessante porque, a longo prazo, os
criticados tropicalistas tornaram-se mesmo símbolos de resistência contra o modelo

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

160
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

antigo e tradicional de música e, em última instância, de sociedade. Portanto, não se trata


de um simples embate entre o tropicalismo ser comercial ou não (em última análise, todas
as formas de arte que cobravam ingresso o eram), a questão vai além: trata-se de um
debate entre o que seria uma arte genuinamente brasileira supostamente imune as
influências externas de EUA/Europa e a proposta tropicalista que misturava antropofágica
e abertamente tudo: de guitarras elétricas à pandeiros.
Infelizmente, em 1968, o AI-5 acabou com qualquer debate. Caetano e Gil foram
presos e enviados para o exílio. Pouco depois Schwarz se auto exilou com a justificativa
de estudar no exterior. A ditadura chegava ao seu momento mais repressor e os debates
de antes pareciam todos menores visto as prisões, torturas e exílios. Os anos passaram, os
artistas voltaram, o crítico voltou e no ano de seu retorno (1978), republicou o ensaio, já
citado, Cultura e política, 1964-1969, no qual tecia duras críticas ao tropicalismo.
Menciono essa republicação pois, há uma nota explicativa antes do texto que vale ser
citada:
As páginas que seguem foram escritas entre 1969 e 70. No principal,
como o leitor facilmente notará, o seu prognóstico estava errado, o que
não as recomenda. Do resto, acredito - até segunda ordem - que alguma
coisa se aproveita. A tentação de reescrever as passagens que a
realidade e os anos desmentiram naturalmente existe. Mas para que
substituir os equívocos daquela época pelas opiniões de hoje, que
podem não estar menos equivocadas? Elas por elas, o equívoco dos
contemporâneos é sempre mais vivo. Sobretudo porque a análise social
no caso tinha menos intenção de ciência que de reter e explicar uma
experiência feita, entre pessoal e de geração, do momento histórico. Era
antes a tentativa de assumir literariamente, na medida de minhas forças,
a atualidade de então. Assim, quando se diz “agora”, são observações,
erros e alternativas daqueles anos que têm a palavra. O leitor verá que
o tempo passou e não passou. (SCHWARZ, 2014, p. 7)

Toda a dureza das palavras dos anos 1960 é quebrada com essa nota. Schwarz não
explicita nenhuma passagem específica, porém, relativiza sua própria análise feita no
calor do momento. É importante registrar que essa nota existe para lembrarmos que
nenhuma análise é eterna, intelectuais estão constantemente revisitando suas produções a
fim de darem mais precisão ao trabalho. As controvérsias de Caetano e Schwarz, em
realidade, podem fazer parte de um processo de produção e revisão contínuo que emerge
a partir de determinados contextos: ditadura, exílio, retorno, democracia, Comissão da
Verdade.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

161
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para uma melhor fluidez das ideias, seguirei nessa linha do tempo imaginária,
agora pulando para o ano de 1997 e o lançamento de Verdade Tropical, a autobiografia
de Caetano Veloso. Ainda não foi possível localizar toda a repercussão do livro na época,
porém, foi fácil mapear que os principais suplementos culturais57 deram destaque para a
publicação. O cantor faz um apanhado geral de sua vida e carreira dando destaque aos
anos da ditadura, explicando de forma mais pormenorizada o movimento tropicalista e,
principalmente, fazendo análises da produção cultural brasileira do período. Passados 15
anos, em 2012, foi publicado o ensaio Verdade Tropical: um percurso de nosso tempo, e
todo o debate sobre a responsabilidade e comprometimento do artista em relação ao seu
tempo histórico foi trazido à tona novamente.
Schwarz elogia a prosa de Caetano e toda sua habilidade artística como escritor,
ele chega a declarar ter gostado muito do livro como literatura e que as duas primeiras
partes da obra são um romance de ideias excelente (SCHWARZ, 2012, p. 52), no entanto,
não poupa críticas ao conteúdo analítico daquilo que é “além de uma biografia de artista,
[...] uma história do tropicalismo e uma crônica da geração à volta de 1964” (SCHWARZ,
2012, p. 52). Em outras palavras, para Schwarz, Caetano escreve muito bem quando fala
de arte ou se utiliza de recursos literários, entretanto, quando faz uma análise social ou
histórica erra perigosamente chegando ao extremo de apaziguar os danos causados pela
ditadura. Segue um trecho da crítica:

Em passagens tortuosas e difíceis de tragar, a ditadura que pôs na cadeia


o próprio artista, os seus melhores amigos e professores, sem falar no
estrago geral causado, é tratada com complacência, por ser ela também
parte do Brasil – o que é uma verdade óbvia, mas não uma justificação.
O sentimento muito vivo dos conflitos, que confere ao livro a
envergadura excepcional, coexiste como desejo acrítico de conciliação,
que empurra para o conformismo e para o kitsch. (SCHWARZ, 2012,
p. 57)

O crítico literário continua:

São retificações morais discutíveis, de uma equidistância obviamente


enviesada, que em todo caso passavam longe das realidades brutas da
ditatura [...] Leal ao valor estético de sua rebeldia naquele período,
Caetano o valoriza ao máximo. Por outro lado, comprometido também
com a vitória da nova situação, para a qual o capitalismo é

57
Suplementos dos jornais O Globo, Folha de São Paulo e Estado de S. Paulo

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

162
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

inquestionável, o memorialista compartilha pontos de vista e o discurso


dos vencedores da Guerra Fria. Constrangedora, a renúncia à
negatividade tem ela mesma valor de documento de época. Assim, a
melhor maneira de aproveitar este livro incomum talvez inclua uma
leitura a contrapelo, de modo a fazer dele uma dramatização histórica:
de um lado o interesse e a verdade, as promessas e as deficiências do
impulso derrotado; do outro, o horizonte rebaixado e inglório do capital
vitorioso. (SCHWARZ, 2012, p. 109-110)

Nota-se que o incômodo de Schwarz se coloca precisamente nas partes em que


Caetano, segundo ele, narra a ditadura militar de forma mais branda. E aqui mais uma vez
se faz necessário localizar no tempo as escritas: em 1997 temos um projeto de
neoliberalismo em curso e, na presidência, Fernando Henrique Cardoso (ironicamente,
ex-colega de Schwarz no seminário de O Capital, na USP); já em 2012 temos a recém-
instauração da Comissão Nacional da Verdade e, na presidência, Dilma Rousseff, ex-
militante torturada durante a ditadura. São dois momentos muito distintos, são dois
“Brasis” completamente diferentes e isso pode ser fundamental para a defesa ou não de
posicionamentos políticos.
Fato é que uma antiga ferida da esquerda estava aberta: de um lado a
experimentação e o “pode tudo” e de outro a cobrança de uma clareza e linearidade que
nunca seria possível para um tropicalista. Contudo, o tropicalista em questão não é mais
um menino rebelde que poucos conhecem, ele se tornou um dos nomes mais conhecidos
da música brasileira, suas falas têm repercussão publica, sua produção é também dirigida
a jornais e outros meios literários. Em suma, o que Schwarz percebeu é que Caetano
tornou-se um intérprete do Brasil, devendo, portanto, responder como tal.
A questão é complexa e por ora deixo em aberto os pontos de vista de cada autor:
se Schwarz tem razão ao pedir cuidado no trato da memória das vítimas não amenizando
o período (nem o sofrimento delas), Caetano também tem uma justificativa plausível
quando reivindica que seu livro é um relato pessoal, de um ex-prisineiro do regime.
Dito isso, passemos agora para uma ampliação do argumento: quando a crítica de
Schwarz foi publicada em 2012, como já foi dito, isso reascendeu antigos debates que

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

163
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

geraram novas produções acadêmicas58 além de entrevistas59 com os envolvidos. Um dos


textos mais interessantes a respeito é o do professor Pedro Meira Monteiro, da
Universidade de Princeton (EUA):

Mas o que fazer com um futuro quando ele decepciona? E a quem ele
decepciona? [...] Ou então, no embate entre duas visões de mundo tão
diversas, talvez possamos ver o desdobramento de uma velha tensão no
interior das esquerdas, para as quais as ideias de revolução,
transformação, povo e intelectual são ainda centrais. [...] Provocativo,
o texto [de Schwarz] funciona também como um acerto de contas
geracional, como se perguntasse: o que você fazia e dizia enquanto
outros sofriam sob a ditadura? [...] Para compreender o confronto entre
Schwarz e Caetano, é preciso entender que o crítico espera de alguém
que se alinhe à esquerda mais que uma simples fidelidade partidária ou
de princípios. Com suas marcas de exclusão, o mercado desfazia os nós
de uma utopia costurada na imaginação da esquerda, e Schwarz se
incomoda especialmente com o momento em que Caetano,
supostamente cego “ao jogo dos conflitos e das alianças de classe”, teria
se deixado encantar pelo Brasil em plena ditadura, numa indesculpável
“conversão ao mito”. Onde o crítico espera um artista alerta, encontra
alguém que teria desertado, deixando de lado a promessa de um futuro
sonhado desde antes do golpe – numa referência ao esquentamento da
agenda de esquerda no início dos anos 1960, em especial no período
João Goulart. (MONTEIRO, 2012, p. 7-9)

As visões de Brasil de Caetano e Schwarz não poderiam ser mais diferentes


justamente porque eles vêm de formações diferentes, enquanto um preza pelo aumento
das possibilidades aglutinando tudo que for possível, o outro cobra ações retilíneas,
engajamento e comprometimento através de um ideal de intelectual crítico. Como dito no
início desse trabalho, ainda não é possível realizar uma conclusão satisfatória pois trata-
se de um projeto em construção, por isso também a opção por um texto em um formato
ensaístico. O que se pode dizer por enquanto é que a polêmica está em aberto, talvez
tenhamos algumas respostas em outubro do presente ano, pois Caetano anunciou que

58
Especialmente a análise de Milton Ohata para a Revista Piauí e a do professor João Cezar de Castro
Rocha para o jornal O Estado de São Paulo. Ambas disponíveis online:
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-69/questoes-politico-culturais/progresso-a-moda-brasileira
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,memorias-obliquas-de-um-intelectual-imp-,866463
Acessado em 10/08/2017.
59
A primeira entrevista é de Caetano Veloso para Paulo Werneck e a segunda, concedida por Roberto
Schwarz a Flávio Moura. Ambas disponíveis online:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/37126-caetano-veloso-e-os-elegantes-uspianos.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/38446-cortina-de-fumaca.shtml
Acessado em 10/08/2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

164
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

relançará Verdade Tropical em uma edição comemorativa de 20 anos na qual constará


um texto novo de análise do Brasil de 1997 a 2017. Ainda não sabemos se as críticas de
Schwarz serão respondidas ou incorporadas, porém sabemos que o cantor as leva em
consideração: em uma passagem de Verdade Tropical, Caetano menciona que leu o
ensaio Cultura e política 1964-1969, afirmando que “seria uma honra para mim que o
tropicalismo recebesse tanta e tão tenra atenção de um pensador naturalmente tão pouco
identificado com nossa sensibilidade” (VELOSO, 1997, p. 450), pode-se perceber uma
fina ironia ao falar da falta de sensibilidade acadêmica, no entanto, a melhor parte é a que
vem a seguir: “mas sua redução da ‘alegoria’ tropicalista ao choque entre o arcaico e o
moderno, embora revelasse aspectos até então impensados, resultava finalmente
empobrecedora” (VELOSO, 1997, p. 450). Pode-se dizer muito a respeito das
controvérsias entre Caetano e Schwarz, mas, definitivamente, nunca será possível dizer
que eles se ignoram.

Referências Bibliográficas
ALAMBERT. Francisco. A realidade tropical. Revista IEB, São Paulo, n° 54,
2012 set./mar. p. 139-150.
CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo:
Editora 34, 2010.
CEVASCO, Maria Elisa e OHATA, Milton. Um crítico na periferia do
capitalismo: reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
DUNN, Christopher. Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da
contracultura brasileira. Tradução de Cristina Yamagami. São Paulo: Editora UNESP,
2009.
FAVARETTO, Celso. Tropicália, alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê Editorial,
2007.
FISCHER, Luís Augusto. Reféns da modernistolatria. Disponível em:
<http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-80/questoes-de-literatura-cultura/refens-da-
modernistolatria> Acessado em 10/08/2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

165
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

HERMETO, Miriam. Canção popular brasileira e ensino de história: palavras,


sons e tantos sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e
desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.
MONTEIRO, Pedro Meira. O que é isso, Caetano? Revolução, culpa e desejo.
Revista Serrote, Rio de Janeiro, n° 12, Instituto Moreira Salles, novembro de 2012.
NAPOLITANO, Marcos. A arte engajada e seus públicos (1955-1968). Revista
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n° 28, 2001, p. 103-124.
NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980).
São Paulo: Contexto, 2017.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC
à era da TV. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
ROCHA, João Cezar de Castro. Memórias oblíquas de um intelectual. Disponível
em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,memorias-obliquas-de-um-intelectual-
imp-,866463 >. Acessado em: 10/07/2016.
SCHWARZ, Roberto. “Cultura e política, 1964-1969: Alguns esquemas”. In: As
ideias fora do lugar: ensaios selecionados. São Paulo: Penguin Classics Companhia das
Letras, 2014, p.47-64.
SCHWARZ, Roberto. “Sobre a leitura de Marx no Brasil”. In: Nós que amávamos
tanto O Capital: leituras de Marx no Brasil. Roberto Schwarz [et al.]. 1ª ed. São Paulo:
Boitempo, 2017.
SCHWARZ, Roberto. “Verdade Tropical: um percurso de nosso tempo”. In:
Martinha versus Lucrécia: ensaios e entrevistas. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Referência audiovisual
MACHADO, Marcelo. Tropicália. Documentário, Imagem Filmes: 2012, 89 min.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

166
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Metáfora e projetos literários em Virginia Woolf (1910 – 1941)


ANA CAROLINA DE AZEVEDO GUEDES
Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

Virginia Woolf (1882 – 1941) é uma das autoras inglesas do século XX de maior
vulto, tendo sido retomada nas discussões em torno do feminismo. Destaca-se assim sua
capacidade de mobilizar recursos discursivos na criação de um texto que envolvesse
leitores e autores a manterem seu interesse na obra.

Seus escritos apresentam diferentes possibilidades de representação nela e na


criação de uma imageria própria que pudesse instrumentalizar a reflexão aqui proposta.
O vigor analítico presente em sua fortuna crítica abre novos caminhos para diferentes
oportunidades interpretativas, o que nos leva a propor o estabelecimento entre as obras
uma relação que respondesse às questões propostas pela própria autora.

Ocorreu-me que o quero fazer agora é impregnar todos os átomos. Ou


seja, eliminar o excesso, a inércia, o supérfluo: conceber a totalidade do
momento; o que quer que ele contenha. Digamos que o momento seja
uma combinação de pensamento; sensação; a voz do mar. Excesso,
inércia surgem da inclusão de coisas que não pertencem ao momento;
esta pavorosa tarefa narrativa do realista: que vai do almoço ao jantar:
ela é falsa, irreal, puramente convencional. Porque dar acesso à
literatura ao que não é poesia – com o que quero dizer saturá-la? Não é
por isso que os romancistas me causam ressentimento – o fato de nada
selecionarem? Os poetas logram o que desejam pela simplificação:
praticamente excluem tudo. Quero praticamente incluir tudo; mas
saturar. (WOOLF, 1989, p.167)

Compreender e apreender o real é o projeto de Woolf. Para isso utiliza-se de


diferentes artifícios narrativos e de técnicas que imergiriam o leitor dentro do espaço ali
apresentado. A criação de uma imageria em torno de sua literatura é uma das formas de
representar o real. O termo aparece como possibilidade de análise para a obra de Virginia
Woolf em estudos de Herbert Marder sobre o que chama de “fase tardia” da autora, no
qual sua capacidade criativa teria alcançado seu ápice. Para isso, mobiliza diferentes
trechos do diário de Woolf já com 50 anos, no qual “sua imageria submarina se
harmonizava com seus estados mutáveis, o fantasista e o poético”.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

167
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Isto posto, apresenta-se aqui uma proposta de definição do que seria essa imageria
presente nas obras de Virginia Woolf. São os conjuntos de metáforas apresentados de
forma recorrente a fim de criar uma representação mimética do período que a escritora
viveu. Pondo como mímesis, o conceito revisto por Luiz Costa Lima em que a mesma
não seria imitação e sim uma representação que suporia semelhança (reconhecimento) e
diferença (estranhamento). No caso de Woolf, a imageria da água é a que se mostra como
saída escolhida, mas aqui toma a forma de um projeto de escrita estabelecido a partir de
seus ensaios.

O projeto literário que aqui se propõe parte da escrita de Jacobs Room (1922),
livro de caráter assumidamente experimental. Podemos afirmar que existe uma
categorização dos livros de Virginia Woolf, entre antes e depois de Mrs. Dalloway,
quanto à abordagem da escrita e um aperfeiçoamento da técnica do fluxo de consciência60.
Nas obras anteriores ao Mrs. Dalloway, a forma ainda jogava com aspectos já
experimentados na literatura inglesa, com alterações sutis sendo Night and Day sua obra61
mais “tradicional”, efeito buscado pela autora.

O livro [Mrs. Dalloway], seria o resultado deliberado de um método. A


autora, foi dito, insatisfeita com a forma da arte da ficção em voga,
estava determinada a mendigar uma forma, toma-la emprestada ou até
mesmo criar uma outra de sua própria lavra. (WOOLF, 2012, p. 30)
A imageria como possibilidade de compreensão dos romances de Virginia Woolf
no sentido de atribuir unicidade à mesma, perpassa ao mesmo tempo sua história pessoal
e a compreensão de individuo na sociedade inglesa. Se exclui a justificação das obras por
sua biografia, mas não se separa obra e criadora de forma determinante, algo descartado
pela própria autora, e por esta que vos escreve por não acreditar na separação completa
dos “eus” (um “eu escritor”, um “eu crítico”, um “eu individuo”, etc).

Wolfgang Iser nos propõe pensar a mímesis, estabelecendo-a como uma


representação, uma performance que se formaria através da formação e combinação de

60
Fluxo de consciência como sendo uma técnica na qual se entremeiam os pensamentos da personagem e
põe em segundo plano os acontecimentos do romance.
61
Evito utilizar o termo “romance” para as obras de Woolf, por não conseguir adequar suas obras a nenhum
dos gêneros propostos anteriormente.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

168
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

signos que permitiriam chegar a uma forma similar ao imaginado. Neste sentido, o jogo
do texto seria responsável pela representação mimética, pela performance.

Quanto mais a mímesis se funda no procedimento baseado na


representação, mais qualidades performativas se tornam necessárias
para sua exploração. A performance precisa compensar o que o conceito
clássico de mímesis perdeu desde que sua conexão com uma ordem
cósmica e sua relação intrínseca com o objeto nobre de representação
passaram a ser questionadas. (ISER, 2013, p.387)
Logo, o conceito de mímesis como imitação da natureza que seria sua primeira
acepção não se sustenta, já que ela realiza o que é realizado pela natureza. Sendo ela
representação, seu objetivo é o homem, que capaz de sua technée obtém uma performance
que extrapolaria o que foi posto pela natureza, estabelecendo uma semelhança e uma
diferença alcançável apenas pelo humano.

Paul Ricoeur propõe a mímesis como lúdica, como um processo que se dividiria
em três fases: mímesis 1 (o ato de leitura, onde ocorre a pré-figuração), mímesis 2 (onde
o leitor procede com a configuração do que foi lido) e mímesis 3 (onde após a mediado e
compreendido, a narrativa se reconfigura). Na perspectiva de Ricoeur, o leitor conduz
todas as fases do processo de leitura, não reproduzindo a imitação, mas produzindo uma
ressignificação para o que foi proposto no ato de leitura.

Ao analisar Mrs. Dalloway, Ricoeur estabelece que o leitor tem acesso às


experiências que as personagens tem sobre o tempo que a voz narrativa quer comunicar
ao leitor, utilizando o fluxo de consciência para acessar os que passa em algum dia de
Junho de 1923. Possuindo uma estrutura narrativa simples, a intriga se constitui entre o
dia de Clarissa Dalloway e Septimus Warren Smith, e se encerra na festa que a
personagem organiza ao longo do dia e onde chega a noticia da morte de Septimus. Os
jogos de temporalidade são o ponto de análise a que Ricoeur se propõe, mas fazendo uma
elipse podemos apontar que a mímesis se prefigura no ato de leitura, e segue seu caminho
até a mímesis 3 onde se realiza como configuração, após ser “adaptada” pelo leitor.
Alguns autores não se referem à mímesis 2 por ser um salto feito de forma quase que
simultânea ao terceiro ato, mas a sua existência é a referencia do ponto de realização
narrativa da mesma.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

169
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Aristóteles na Poética, estabelece que a imitação é o caminho onde se poderia


adquirir os primeiros conhecimentos, sendo natural do homem imitar. Logo, as imitações
perfeitas seriam as que mais dariam prazer ao homem e mais se aproximariam à catarse.
A noção da mímesis não é definida de forma declarada, se atribui a separação entre ação
e significado, a tragédia é a narrativa das ações elevadas dos homens de forma coesa e
embelezada. A falta da definição clara do que é a mímesis abre diferentes interpretações,
inclusive a defesa da imitação e a condenação do termo ao ostracismo.

Outro autor que trabalha o conceito é Erich Auerbach, em “Mímesis: a


representação da realidade na literatura ocidental”, no qual destacamos o ultimo
capítulo que se refere a um trecho de “Ao Farol” de Virginia Woolf, no qual a técnica de
fluxo de consciência se presentifica quando do episódio da tessitura da meia marrom para
o filho do faroleiro. Os acontecimentos ocorrem de forma exterior à narrativa, não
interferindo no ato de tecer. Existe uma presença “fantasmagórica” que fala, mas que a
voz não se atribui a personagem ou ao narrador, apresentando-se como uma atribuição de
outra pessoa sobre a protagonista da cena. Auerbach afirma então que “o escritor, como
narrador de fatos objetivos, desaparece quase que completamente; quase tudo o que é dito
aparece como reflexo na consciência das personagens do romance”. (AUERBACH, 2007,
P. 481)

A posição da autora frente à realidade apresentada é diferente, já que não é apenas


a subjetividade de uma das personagens que se apresenta, mas vários na tentativa de
construir uma realidade objetiva, na busca de uma verdade ou de um real construído
acionando essas diferentes perspectivas.

O que ocorre dentro de Mrs. Ramsay não tem em si nada de enigmático;


são as representações, por assim dizer normais, que surgem de sua vida
quotidiana – o seu segredo está por baixo delas, e só no instante do salto
da janela aberta para as palavras da criada suíça, acontece algo que
levanta um pouco o véu.(AUERBACH, 2007, p. 484)
É apenas no descortinar é que as representações possibilitam o acesso ao que
acontece no desenrolar da trama, em tudo o que acontece de periférico. Essa moderna
representação do tempo é a que poderá informar sobre o século XX, as novas formas de
narrar o acontecimento não pelo fato, mas pelos reflexos e sentidos que este vai gerar,
partindo-se do principio de que o fato não pode ser apreendido de forma “verdadeira”, o

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

170
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que “realmente aconteceu” não chega à narrativa, sendo repleto com representações sobre
o mesmo.

A mímesis referida ao longo deste texto é a trabalhada por Luiz Costa Lima por
ser a que mais se aproxima da proposta de Virginia Woolf em sua escrita. Compreendo a
mímesis como uma pré-identificação do desejo ao se tornar representação, onde o agente
ao realizar a representação de outro, no que se refere à representação-efeito, busca
alteridade na recepção junto a uma tonalidade que pode ser mais ou menos intensa e que
influirá diretamente no seu reconhecimento.

Tomando a mímesis não como imitatio, mas como uma correlação entre
semelhança e diferença como dito anteriormente, ela é capaz de lançar o sujeito para fora
de si. A complexidade dos estudos em torno da mímesis é um dos pontos de dificuldade
na definição do conceito, mas tomando por premissa os escritos de Luiz Costa Lima em
“Mímesis: desafio ao pensamento”, o mímema pode se apresentar como mímesis de
produção e mímesis de representação.

Ambas partem da mesma conjunção, mas diferem quanto ao seu caráter receptivo,
no qual na segunda existe uma plurivocidade de sentidos que se desenvolvem em
território comum e capaz de criar reconhecimento imediato. Na mímesis de produção, o
enunciado precisa ser posto em movimento, no qual o enredo se desenvolve ao longo do
desenrolar da narrativa, e onde o leitor tem sua capacidade de percepção desafiada a
compreender a dinâmica desenvolvida no texto. Logo,

O diferencial da mímesis da produção está na transformação das


referências com que a obra é recebida em referencias que nela mesma
se constituem, transformação portanto efetuada pela própria linguagem,
ajudada pela memória do leitor que a atualiza. (LIMA, 2000, p. 322)
Ela rompe com as expectativas do leitor, que terá que resignificar constantemente
o sentido do texto. Uma análise mais detida da obra de Virginia Woolf permite criar
relações entre seu processo de escrita e o processo mimético proposto por Costa Lima.
Tomemos a seguinte frase de Woolf:

Mas não; com poucas exceções a literatura faz tudo o que pode para
sustentar que sua preocupação é com a mente; que o corpo é uma placa
de vidro liso, pela qual passa o olhar direto e claro da alma, e que o
corpo, exceto no que toca a uma ou duas paixões, como o desejo e a

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

171
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ambição é nulo, negligenciável e não existente. Mas justamente é o


contrário é que é a verdade.(WOOLF, 2014, p. 185)
A construção da narrativa que se inicia com uma analogia da doença como tema
primevo da literatura passa à concepção de corpo que é ativo no processo de leitura, e que
é pensado quando escolhemos uma obra dentre tantas. O corpo como uma placa onde a
alma pode ser vista através de sua transparência é uma das metáforas da qual Virginia
Woolf se utiliza, no que afirma ser sua escrita poética. O corpo não é mais que o
receptáculo que deve estar em plena forma, para que a mente possa apreender o que está
presente na narrativa.

Se relembrarmos o que foi dito sobre o projeto woolfiano, o alcance do real aqui
proposto é feito através de metáforas. A dificuldade de apreensão de um acontecimento
como a morte de Septimus e a necessidade de Clarissa Dalloway em atribuir sentido ao
acontecimento a faz recorrer, de forma imediata, à linguagem metafórica:

A morte é um ato de rebeldia. A morte era uma tentativa de se


comunicar; pois as pessoas sentiam a possibilidade de atingir o centro,
o qual, misteriosamente, lhe escapava; a intimidade virava separação; o
arrebatamento extinguia-se, ficava-se só. Havia um abraço na morte.
(WOOLF, 2012, p. 186)
A presença da morte em meio ao evento de sua festa faz com que Mrs. Dalloway
encontre uma forma de transformar o acontecimento em algo com o qual pudesse lidar de
forma breve e menos impactante, e ao mesmo tempo atribuir para si mesma algum
significado para o ocorrido. Podemos afirmar que o mesmo pode-se dizer sobre a
concepção da ficção como a autora gostaria que fosse feita e como o mundo seria
perceptível e traduzível.

O real a que se busca apreender encontra-se encapsulado na categoria de imitação,


quando o que se busca é o aguçamento dos sentidos de seu leitor, a construção de meios
de acessar o leitor a um processo de criação e produção de si, ampliando a capacidade da
obra.

A imageria submarina em Virginia Woolf

Temos estabelecido o que se compreende a imageria como caminho por onde o


processo mimético de Virginia Woolf poderá caminhar para ensejo aqui um novo
movimento. A metáfora tem sido evitada durante boa parte dos estudos como sendo algo
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

172
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

figurativo ou decorativo, algo menor bom o suficiente para obter o reconhecimento do


outro do que se diz. Ela possui a capacidade de presentificar um problema vital, como
lidar com um individuo que não tem acesso a todo o seu ser, mas que é cotidianamente
condicionado a manter-se autoconsciente.

O sujeito cartesiano, autoconsciente, atribui ao ato de pensar como a certeza da


sua existência, no conhecimento de si mesmo. O estabelecimento de uma critica a este
sujeito em Hume põe o homem como fenômeno em si mesmo, sempre que se apreende
ele o faz como representação. Se seguirmos pela via de Blumemberg, no qual o SUM é
definido por sua intencionalidade, por uma consciência intencional, a produção de
metáforas que mobilizem o mar seria uma forma de preencher o vazio estabelecido entre
tempo e consciência, ou entre evento e linguagem.

A mímesis então é o esboço do conceito no qual a metáfora tem espaço para


fantasmatizar o evento. Ela acontece quando tomamos a noção de auréola conceitual com
maior ou menor presença da metáfora, o que tornaria a natureza do ficcional no texto de
Virginia Woolf como espaço de realizações literárias e de interpretações sobre o período
de conflito vivido. O sistema que se apresenta nos romances seria uma forma de observar
e estabelecer relações com o real, sem restringir o texto à apenas uma dimensão. A
imageria então mobiliza dos contornos do real presentes na semelhança da mímesis em
sua relação com o phantasma, mas apenas no intuito no qual ela deseja se realizar, no
sentido de mobilizar diferentes escalas miméticas ou tonalidades miméticas diferentes e
os referenciais presentes no imaginário, como consequência da existência da imageria e
não como causa.

Então, de modo objetivo, a imageria seria um efeito poético, por conta de sua
relação com rela baseada no lastro necessário para a produção de sentido, mas irrealizado
já que a mímesis, como compreendida por Luiz Costa Lima, é um fenômeno criador de
um novo real irrealizado. A imageria, para além do conjunto de metáforas, seria o
catalizador da estrutura de escrita de Woolf, onde há, a partir de uma metáfora, o
deslocamento de vários elementos miméticos.

Quando atribuímos à imageria o sentido de conjunto de metáforas, se põe a


questão que estas não são escolhidas a esmo. Estão presentes na literatura de Virginia

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

173
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Woolf de forma a obter a maior proximidade possível com o “real”, que se tornaria a base
da construção de metáforas sobre o mesmo, como contornos definidores no caminho de
atribuição de sentido. Como conjunto de metáforas possibilitam a compreensão das obras
como construtoras de sentido, para além de uma mera cópia do passado. Atribuem assim
formas de compreensão de passado e presente, apostando na captação do leitor de atribuir
significado ao que está sendo narrado.

As metáforas mobilizadas buscam criar sentidos e sensações que alcancem a


transposição do leitor para a situação que se desenrola na narrativa, algo no qual os
escritores se esmeram desde o seu primeiro esforço mimético. No entanto, as imagens
produzidas por Woolf pretender estabelecer a narrativa dentro de um projeto, no qual as
aguas teriam movimentos se assemelhariam às ações humanas, ou que as tornassem parte
das obras, figurando como personagens.

A distância do olho para a mente, o hiato e a linguagem.

Essas distâncias são as que se dispõe a frente do historiador no momento de sua


reflexão. Como ver a verdade, o vivido? O jogo do olho e da mente é um dos mais
intrincados, se pensarmos no que nosso olho está educado a ver e a desver. Encarar a
beleza de forma a alcançar um êxtase e, ao mesmo tempo, desver a miséria e a morte. As
inquietudes frente a isso nos levam a diferentes caminhos, mas opto por realizar uma
pequena experiência na qual tenho refletido de forma mais contundente.

Virginia Woolf, personagem que permeia minhas reflexões, encaminha-se no dia


29 de Junho de 1927 para Richmond na expectativa de observar um eclipse que não era
visto há 203 anos. Cuida assim de criar um grupo junto a seu marido a fim de iniciar uma
viagem para que pudessem ver o fenômeno com céu claro e com o mínimo de nuvens.
Essa experiência é relatada no dia seguinte em seu diário, com o objetivo de preservar o
máximo possível do vivido, e que mais tarde se tornaria um texto publicado em revista.
Ela narra em uma das entradas de seu diário62, no dia 30 de Junho:

62
O material que pude obter na língua original foi mantida a fim de garantir a integridade do texto, que
sofreria alterações na tradução no qual se perderia parte do que foi narrado. Além disso, esta entrada não
foi contemplada na única tradução para o português feita de enxertos do diário de Virginia Woolf por José
Antonio Antunes, publicado em 1989.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

174
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

We saw rays coming through the bottom of the clouds. Then, for a
moment we saw the sun, sweeping – it seemed to be sailing at a great
pace & clear in a gap; we had out our smoked glasses; we saw it
crescent, burning red; next moment it had sailed fast into the cloud
again; only the red streamers came from it; then only a golden haze,
such as one has often seen. The moments were passing. I thought how
we were like very old people, in the birth of the world – druids on
Stonehenge: (this idea came more vividly in the first pale light
though).(WOOLF, 2015, p. 765)
É um acontecimento que reverberará na obra de Woolf em diferentes formas,
inclusive no romance que estava sendo elaborado naquele momento, Orlando. No
capítulo II, Orlando assiste uma encenação de Otelo, sendo tocado pela descrição da
morte por estrangulamento de Desdêmona pela mão do protagonista, enredado nas
mentiras contados por Iago. Orlando se imagina no lugar de Otelo, com suas mãos em
torno do pescoço de Sasha, a princesa moscovita com a qual deseja fugir.

The frenzy of the Moor seemed to him his own frenzy, and when the
Moor suffocated the woman in her bed it was Sasha he killed with his
own hands. At last the play was ended. All had grown dark. The tears
streamed down his face. Looking up into the sky there was nothing but
darkness there too. Ruin and death, he thought, cover all. The life of
man ends in the grave. Worms devour us. (WOOLF, 2007, p. 426)
O eclipse em Virginia Woolf, então, se multiplica em diferentes pontos de criação
ficcional, fazendo com que a mesma busque em outros autores uma experiência similar
ou um modo de narrar o acontecimento astronômico. A necessidade de plasmar a
experiência vivida durante o eclipse a faz registrar o ocorrido e, tempos depois, escrever
um conto sob o título “O sol e o peixe”, publicado em 03 de Fevereiro de 1928. Woolf
cria uma série de metáforas que estabeleceriam pontes entre o acontecimento e o leitor,
abrindo assim uma nova visão sobre o evento.

Ou, talvez seja melhor, tivéssemos abandonado as estreitas marcas e


etiquetas da individualidade. Estávamos alinhados em silhueta contra o
céu e tínhamos a aparência de estátuas postadas em destaque na crista
do mundo. Éramos muito, muito velhos; éramos homens e mulheres do
mundo primevo vindos para saudar a aurora. Essa deve ter sido a
impressão causada pelos adoradores de Stonehenge em meio a tufos de
grama e blocos de pedra. (WOOLF, 2015, p. 104)
Se analisássemos puramente o fazer ficcional de Woolf poderíamos dizer que o
diário foi uma experimentação precursora do que se realiza no conto, sendo ele um desses
espaços de criação literária, mas não creio que seja tão simples assim. Existe outra

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

175
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

forma de narrar o evento que se difere do campo do res ficte, que são os registros
científicos feitos pelos astrônomos.

The shadow of the moon, in the words of Dr. E. H. Rayner, ‘a slightly


conical cylinder about 240.000 miles long’, first touched land at
Carnigan Bay 5 h 23 m, GMT. The narrow but of totality, only about
28 miles wide, swepts across England in a line to include parts of North
Wales, Lancashire and Yorkshire. (SEELY, 1927, p. 328)
Esse registro é sobre o mesmo evento narrado por Virginia Woolf, sob a pretensão
de ser uma narrativa cientifica - factual do ocorrido, publicado em uma revista
especializada. São dois tipos de histórias particulares de dois indivíduos que
experimentaram o evento de formas distintas, mas nenhum é “falso” ou possui mais
“verdade” que o outro. Constituem-se por terem objetivos diferentes e não se superpõem.

Refletindo sobre os escritos de Reinhart Koselleck e os enxertos que foram


escolhidos para essa reflexão podemos observar a criação de metáforas e conceitos sobre
um sintoma, são duas caracterização de um evento ocorrido e não uma determinação.
Então, sob esse olhar possuímos uma visão matemática do que significa o eclipse total: a
cobertura completa do Sol pela Lua, até o ponto onde a mais tênue atmosfera da estrela
(sua Corona) seria visível. Possuímos também a caraterização de nossa escritora: “O Sol
tinha que correr através das nuvens e alcançar a meta, que era uma delicada transparência
situada à sua direita, antes que os sagrados segundos chegassem ao fim. Ele partiu. Era a
derrota do Sol, e isso era tudo”.

Retornando à questão que iniciou essa reflexão: como caracterizar o hiato entre
evento e linguagem? Existe um hiato entre palavra e evento como necessidade e a sua
sobreposição cairia no idealismo. É um problema sem solução. Se nenhuma experiência
pode ser verbalizada, ela busca na narrativa poética e na narrativa cientifica saídas, por
isso, as duas narrativas sobre o eclipse são válidas. As duas nos abrem caminhos de
reconhecimento sobre o ocorrido, mas nenhuma sintetiza em si o ocorrido.

Podemos daí derivar que nenhuma articulação verbal, seja qual for seu
modo e seu nível, nunca alcança o que realmente se consuma na
história. A história, com efeito, nunca se consuma sem a linguagem,
mas, ao mesmo tempo, ela é sempre, para mais ou para menos, diversa
na linguagem. (KOSELLECK, 2015, p.10)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

176
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Dentro dessa discussão o historiador busca a centralidade do pêndulo da verdade


que oscila entre res fictae e res factae, como apontado por Koselleck, tendo em si a
capacidade de criar uma realidade histórica, uma ficção fática. Como estudiosa de
Virginia Woolf e possuindo dela dois tipos de narrativa (a pessoal e a ficcional, as quais
se permeiam mutuamente), posso (e devo) buscar a res fictae do ocorrido para assim
elaborar a minha narrativa sobre o eclipse. Não escolhendo entre o registro astronômico
e o pessoal ou categorizando entre verdades e mentiras, mas percebendo o limiar que
permite a criação porosa entre os dois campos.

Sabemos que este fenômeno ocorreu e que foi visto apenas uma vez por aqueles
indivíduos criando uma atmosfera de deslumbramento e inédito, de não saber se o Sol
retornaria. Estamos conscientes também que as nuvens encobriram parte do eclipse
diminuindo o tempo em que foi visível aos seus observadores. Esses componentes estão
presente nos relatos astronômicos. Mas o conto, classificado pelos tradutores no Brasil
como prosa poética, nos revela o ponto de vista da mulher que se vê diante da terra fria
abandonada pelo Sol e pela vida, e que por não compreender totalmente o ocorrido, busca
nas experiências do cotidiano uma forma de absorver e traduzir o ocorrido. O olho cria
uma nova imagem que registra na mente o efeito do visto, “após a destruição, calma; após
a ruína, firmeza – essa talvez seja a lógica do olho” (WOOLF, 2015, p. 107).

A metáfora criada da corrida do Sol com as nuvens sob a forma de cães


avermelhados é a criação da mente para o que o olho viu. No hiato entre o eclipse e a
linguagem se fizeram três narrativas: a da NASA (matemática, que põe o evento dentro
de uma série de eclipses totais iniciada em 1639 e que terminará em 3009); a de Virginia
Woolf (ficcional, no qual o evento a levou à experiência de criação do mundo, de ser uma
das estátuas do Stonehenge) e minha como historiadora, que aqui se apresenta:

O eclipse de 29 de Junho de 1927 impressionou a população que


aguardava ansiosamente nos campos de North Yorkshire. No
amanhecer deste dia, uniram-se ingleses de diferentes campos do país,
incluindo astrônomos e escritores a fim de observar um fenômeno
único. Durante 24 segundos, o céu tornou-se negro ficando visível
apenas a camada de circunferência do Sol. Segundo registros de ambos
os campos literário e cientifico, os que ali se encontravam expressavam
um misto de deslumbramento e medo frente ao desaparecimento,
mesmo que breve, do Sol que sempre ali estivera, tornando-os por um
momento indivíduos iguais frente à força da natureza.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

177
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nesse sentido, apresentados os tipos de narrativas elaboradas a partir de um


evento, afirmo que o hiato é campo de possibilidades onde se desenvolvem narrativas do
campo factual, do campo ficcional e do campo histórico (no que Koselleck propõe como
ficção fática). No entanto, acredito que o historiador sempre se aproximará mais do campo
do ficcional quando se propõe a falar sobre a experiência humana, por ser um tipo de
narrativa que privilegia o humano em uma variedade de aspectos. Seja na elaboração de
mecanismos de criação onde a apresentação de uma situação dada causa reconhecimento
e um dado de estranhamento (como no campo mimético), seja na capacidade de conexão
entre o vivido e o narrado.

Esse é o valor dos estudos históricos quando mobiliza o literário. A capacidade de


plasmar um momento e narrá-lo a ponto de conseguir colocar o individuo no meio do
campo em que se desenrola um fenômeno astronômico e ao mesmo tempo passar o horror
da criação do mundo e do inesperado. A compreensão de que a História é um ambiente
onde a porosidade é um componente benéfico em sua criação é um dos pontos mais
importante para mim nos estudos de Koselleck e de Hayden White. O homem, por sua
necessidade de experimentação e de reconhecimento, vai buscar na metáfora e no campo
do ficcional elementos de reconhecimento e estranhamento afim de auxiliar no
desenvolvimento de sua percepção de mundo. O leitor de Virginia Woolf de 1928
experimentou o eclipse de forma factual, podendo dizer o que fazia ou vestia no momento
em que o Sol desapareceu, mas o leitor de “O Sol e Peixe” também experimentou o eclipse
na capacidade de compreender o sentimento de diminuição humana frente à força da
natureza e da percepção de que nada poderia descrever o que ali foi vivido.

Referências Bibliográficas:
KOSELLECK, Reinhart. Ficção e Realidade histórica. (Tradução disponibilizada por
Luiz Costa Lima) P. 10

SEELY, S. Total eclipse of June 29, 1927. Journal of the Royal Astronomical Society.
Volume 21, P. 328.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

178
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

WOOLF, Virginia. “Orlando” In Selected Works of Virginia Woolf. Londres:


Wordsworth Editions Limited, 2007.

WOOLF, Virginia. “O Sol e o Peixe” In O Sol e o Peixe: Prosas Poéticas. Belo


Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

WOOLF, Virginia. Virginia Woolf: Complete Works. Versão de Janeiro de 2015. Ebook
Kindle.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

179
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A cultura popular em verso relida pelo Jornal do Sertão (1970)

ANA CAROLINE M. ALENCAR


Programa de Pós-Graduação em História – UNIRIO
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES

Durante a década de 1960, no Brasil, foram elaboradas inúmeras propostas de


renovação da cinematografia nacional. O que se convencionou chamar de Cinema Novo
brasileiro adquiriu espessura e clareza neste momento, havendo diversos cineastas e
movimentos cinematográficos se empenhado para a realização dessa proposição de um
cinema nacional que se distinguisse do modelo hollywoodiano, adotasse uma perspectiva
mais sensível em relação aos problemas sociais concernentes ao Brasil e se ocupasse de
questões relativas à formação da nação e do povo brasileiro, tema sobre o qual gerações
de intelectuais desde o século XIX haviam buscado oferecer respostas63.
Um exemplo de movimento cinematográfico que assumiu e formulou de maneira
nítida essa tarefa de oferecer continuidade ao trabalho dos principais intérpretes do Brasil
foi o posteriormente denominado como “Caravana Farkas”. A primeira reunião de
cineastas em torno da figura de Thomaz Farkas ocorreu em 1964 com a realização do
filme Brasil verdade (1968), composto por quatro documentários em média metragem
filmados durante os anos de 1964 e 1965 e dirigidos por Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares,
Maurice Capovilla e Manuel Horácio Gimenez.
Em janeiro de 1967, Thomaz Farkas, Geraldo Sarno e Paulo Rufino viajaram em
uma Rural Willys pelo interior do Nordeste (SARNO, 2006, p. 194). Foram guiados por
um trabalho de pesquisa anterior, sustentado pelos estudos que Sarno já vinha
desenvolvendo no interior do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de
São Paulo (USP), sobre cultura popular nordestina. As despesas ficaram por conta das

63
Sobre o Cinema Novo Brasileiro, ver os livros, indicados na seção “Referências bibliográficas”, de José
Carlos Avellar, A ponte clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, García Espinosa, Sanjínes, Alea –
teorias de cinema na América Latina, de Jean-Claude Bernardet, Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre
o cinema brasileiro de 1958 a 1966 e Historiografia clássica do cinema brasileiro: metodologia e
pedagogia, de Jean-Claude Bernardet e Maria Rita Galvão, O nacional e o popular na cultura brasileira:
Cinema, de Marcelo Ridenti, Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV, de
Ismail Xavier, Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal, Cinema
brasileiro moderno e Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome, e de Mariana Villaça, Cinema
cubano: revolução e política cultural.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

180
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

produtoras de Sarno, a Saruê Filmes Ltda, e de Farkas, a Thomaz Farkas Documentários,


Cinema e Televisão. O resultado da viagem foram quase três mil pés de negativo de
imagem em 16mm, mais de mil fotografias e trinta rolos de fita magnética (SARNO,
2006, p. 28-29). O IEB atuou como colaborador, mas apenas uma ínfima parte dos gastos
foi coberta pelo instituto. O que não obstou o prosseguimento do projeto.
Em 1969, uma nova viagem foi realizada. Mais uma vez um cuidadoso trabalho
de pesquisa prévia foi feito, havendo sido repartidas as funções entre os membros da
equipe e as regiões a serem estudadas por cada um. O grupo nesse momento havia
crescido. Contava, então, com a presença, além da de Sarno e Farkas, com a de Sérgio
Muniz, Paulo Gil Soares, Edgardo Pallero, Affonso Beato, Lauro Escorel e Sidnei Paiva
Lopes.
No total, dezenove documentários foram elaborados com o material registrado
durante essas duas viagens. Os filmes resultantes têm duração de por volta de dez
minutos, sendo apenas um deles em média metragem, e versam sobre temas como
literatura oral, produção e economia, artesanato e religião. Dentre eles, nove foram
dirigidos por Geraldo Sarno: A cantoria (1970), Casa de farinha (1970), Jornal do sertão
(1970), O engenho (1970), Os imaginários (1970), Padre Cícero (1971), Região: Cariri
(1970), Vitalino/Lampião (1969), Viva Cariri! (1970).
O presente trabalho integra a pesquisa mais ampla que venho desenvolvendo no
mestrado, cujo objetivo primeiro é o de, por meio do exame desses nove filmes, analisar
o modo pelo qual Geraldo Sarno teria reelaborado em seus escritos e em sua produção
cinematográfica ideias fortemente presentes nas obras de intérpretes do Brasil, como
Euclides da Cunha e Luís da Câmara Cascudo, e da maneira como o contato com
professores do Instituto de Estudos Brasileiros lhe teria fornecido, além do suporte
institucional para a realização dos documentários, um conjunto de temas e uma maneira
específica de compreender a região Nordeste do Brasil.
Em uma entrevista concedida por Geraldo Sarno ao Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), o cineasta baiano
sublinha a importância de dois professores: a do então diretor do IEB, José Aderaldo
Castello, e a do cuiabano estudioso da literatura popular brasileira, a quem foi apresentado
por Castello, Manoel Cavalcanti Proença. Ao exame da colaboração deste último

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

181
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

professor para a realização, por Geraldo Sarno, de seus documentários se dedica este
artigo. Para tanto, analisarei aspectos do livro Literatura popular em verso, composto por
Cavalcanti Proença, para, em um momento posterior, identificar a releitura feita desses
aspectos na obra cinematográfica de Sarno.
A convite de Castello, Cavalcanti Proença, esteve no IEB, por ocasião de um
seminário sobre sertão e Nordeste. Neste momento, Sarno já havia proposto a viagem
pelo interior do Nordeste a Thomaz Farkas e a Paulo Rufino. O contato com professores
como Antonio Candido, Maria Isaura Pereira de Queiroz e, em especial, Cavalcanti
Proença, todos presentes no seminário, foi fundamental para os rumos do projeto sobre
cultura popular no Nordeste que Sarno já desenvolvia. Na entrevista já mencionada, o
cineasta baiano conta que, após assistir a toda fala de Proença no seminário, o
acompanhou, caminhando ao lado dele, até o hotel a que se dirigia. Ao contar-lhe sobre
a viagem que pretendia fazer, o professor começou a lhe fornecer informações sobre
locais que ele deveria visitar e cantadores ainda vivos que deveria ouvir por conta da sua
fundamental importância para a região (SARNO, 2015, p. 20). O apreço de Sarno por
Cavalcanti Proença foi frisado em diversos escritos do cineasta (SARNO, 2006, p. 28),
inclusive o filme A cantoria, filmado durante a segunda viagem feita por Sarno e pelos
outros integrantes da Caravana Farkas, foi dedicado a Proença.
Nascido na cidade de Cuiabá, em 1905, Manoel Cavalcanti Proença foi biólogo,
militar, crítico literário, professor de Língua Portuguesa e escritor. Até o ano de 1945,
percorreu, como sargento de cavalaria, várias cidades do interior do Brasil. A sua
transferência para o Nordeste, em 1924, com o objetivo de integrar corpos destacados
responsáveis pela perseguição da Coluna Prestes, teria sido, como ele mesmo a definiu,
o seu “primeiro grande banho de brasilidade (PROENÇA, 1982, p. XI)”. Em 1945, foi
nomeado professor interino de Português do Colégio Militar do Rio de Janeiro. Seguindo
esta trilha, algum tempo depois veio a fundar e a dirigir o Departamento de Língua
Portuguesa da Academia Militar das Agulhas Negras. A partir de então, de 1945 em
diante, sua carreira como docente e estudioso das letras se consolidou e adquiriu
ramificações.
Antônio Houaiss, em seu prefácio ao livro Estudos Literários, composto por
ensaios e artigos esparsos escritos por Cavalcanti Proença e organizados por Houaiss,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

182
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

divide a obra do literato cuiabano em seis vertentes: estudos zoológicos; trabalhos com
finalidades estritamente didáticas, compostos a partir da sua larga experiência como
professor de Língua Portuguesa; estudos de crítica literária, estilística, artística, de autores
e suas obras, publicados em periódicos, ou na forma de prefácios, introduções,
apresentações, em que o grau de aprofundamento foi diverso, de acordo com a finalidade
do escrito, mas em que a qualidade foi uniformemente mantida; obra de ficção,
subdividida em romanesca, novelística e contística; edições críticas de autores brasileiros,
como colaborador ou como editor-crítico único, nas quais se sobressaem as produzidas
no interior da Comissão Machado de Assis e da Casa de Rui Barbosa; ensaística de
circunstância, jornalística, conferencística, identificada com os aspectos já apontados ou
com estudos filológicos (PROENÇA, 1982, p. XIII-XIV).
Resultante da sua atuação como pesquisador da Casa de Rui Barbosa, ocupado,
nesta ocasião, com o estabelecimento de textos da literatura de cordel produzida por
artistas populares do Nordeste, foi publicado, em 1964, o livro Literatura popular em
verso: antologia. No seu prefácio à reedição desta obra, publicada em 1986, Thiers
Martins Moreira, então diretor de pesquisas da Casa de Rui Barbosa, anuncia ser a
antologia composta não por obras-primas, mas por estórias representativas de várias
constantes ou de agrupamentos a partir dos quais o fato literário adquiriu corpo e se fez
expressão de uma sensibilidade coletiva. Denuncia a falta de preocupação das pesquisas
eruditas e acadêmicas com esta literatura, que apenas em casos raros, como nas obras de
Luís da Câmara Cascudo, Leonardo Mota e Gustavo Barroso, teria rompido seu
isolamento nas camadas socialmente consideradas inferiores e conseguido atingir o
campo de observação ou de estudos críticos de preocupação documental (PROENÇA,
1986, p. 23).
Afirma, ademais, ter sido o temor de que, por força de tal isolamento, se
perdessem os documentos desta criação, muitas vezes anônima, o responsável pela
catalogação e pela aquisição de uma coleção própria por parte do Centro de Pesquisas da
Casa de Rui Barbosa. Justifica, deste modo, o seu chamado aos estudiosos da literatura e
da sociedade brasileira para que se ocupassem deste conjunto documental. Por esta
literatura ser uma rica fonte para a História e para a Sociologia e por ela manifestar a
fixação do aspecto brasileiro na língua portuguesa, constituindo-se como território

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

183
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

frutífero para os estudos da linguagem, as pesquisas eruditas deveriam atentar para a sua
importância. O tratamento poético e narrativo deveria ser dado a esta literatura, uma vez
que seus trovadores, conscientes de sua arte, das regras e da ética da criação artística que
impregna a “atmosfera literária de seu mundo”, revelariam nas suas estrofes guardadas
pela memória popular a sua agudeza e a sua maestria nas artes do verso, o virtuosismo
nas técnicas poéticas, que remeteriam às sutilezas formais da lírica provençal ou galego-
portuguesa (PROENÇA, 1986, p. 23-24).
Estas reflexões de Thiers Martins Moreira são linhas de pensamento que foram
desenvolvidas por Manoel Cavalcanti Proença na sua introdução à antologia. Nesta seção
do livro, o crítico literário define a partir da ideia de catacrese o conceito de antologia que
teria guiado a elaboração da obra, ou seja, a sua finalidade seria a de exprimir uma
apresentação geral dos poemas populares, buscando relacioná-la aos variados tipos e
gêneros já conhecidos. Por seu turno, a literatura oral em verso poderia ser distinguida
por duas linhas: a folclórica, transmitida oralmente, não sujeita à voga, já tornada anônima
pelo esquecimento dos seus autores e transformada em patrimônio coletivo; a popular,
transmitida por meios técnicos, como a impressão, sujeita à moda, que não é anônima,
porém possui as características da poesia folclórica.
Após a definição dos limites do material que compõe o livro, Cavalcanti Proença
tece considerações sobre os autores dos poemas. Então denominados “trovadores”, graças
à elasticidade do nome, eles seriam um estágio evolutivo dos cantadores, que as condições
do país viriam tornando obsoletos. Ainda segundo ele, o autor de folhetos de poesia
popular estaria vinculado à tradição portuguesa, remetendo-se o poema narrativo de hoje
aos romances-velhos, cantados a princípio monorrimicamente, mas que, ao longo do
tempo, se foram libertando da música (PROENÇA, 1986, p. 27-28).
Sobre a linguagem destes poemas, Proença define três possibilidades para a
criação destas estórias narradas: elas poderiam ser invenção do autor, folclóricas, ou
poderiam originar-se da leitura feita pelo poeta que a põe em versos. Deste modo, o poema
seria composto primeiro oralmente para depois ser escrito pelo autor, ou ditado para outra
pessoa que o escreveria. A análise dos desajustes entre os vocábulos e o metro, dos
problemas de métrica que surgem e das soluções apresentadas pelos autores permitiria
documentar aspectos próprios da prosódia nordestina, sendo assim de grande valia o

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

184
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

estudo desta variação regional da língua (PROENÇA, 1986, p. 28). De modo a examinar
as aproximações já mencionadas entre a poética dos cantadores e a linha tradicional dos
antigos textos portugueses, bem como as suas diferenças, o professor coteja poemas
representativos destes dois casos literários (PROENÇA, 1986, p. 33).
Apesar de os assuntos tratados nos poemas serem imensamente variados, Proença
sinaliza para o tratamento em comum que ofereceriam os poetas à temática de suas
composições. Seguiriam a lição da transplantação de atividades culturais: “devem
adaptar-se ao nosso modo de ser, sob a pena de se perderem (PROENÇA, 1986, p. 29)”.
Duas características gerais desta literatura popular em verso também são sublinhadas. O
primeiro dos aspectos seria a organização da estória a partir da repetição de motivos
combinados. O segundo seria o traço social de equilíbrio, que recompensa todo ato justo,
faz triunfar a bondade e vinga o que foi feito de cruel com o heroi. Este traço
compensatório seria capaz de tornar populares até mesmo as narrativas de escritores
cultos versadas por estes trovadores (PROENÇA, 1986, p. 29-30).
Ao tratar da relação existente entre o poeta e seu público, Cavalcanti Proença
afirma ser o poeta popular tanto mais importante para seus leitores e ouvintes, quanto
menos original se mostrasse, quanto menos se contrapusesse às fórmulas tradicionais, e
quanto maior fosse o seu acúmulo de materiais e técnicas provenientes da tradição. Além
disso, este trovador não poderia viver exclusivamente de sua produção poética.
Trabalharia em qualquer atividade, mas viveria é para a sua poesia. Sobre o tema, cita um
artigo de Renato Almeida escrito por ocasião da morte do mestre Vitalino, no qual
defende ser o artista folclórico sempre um continuador. Movido pela corrente de seu meio
e localizando-se sua obra no interior da temática de sua gente, o artista folk, ainda de
acordo com Almeida, nunca representaria uma individualidade, sua imaginação não se
elevaria acima do nível da do copista. Somente folclorizar-se-ia aquilo que o povo
aceitasse e tornasse seu, uma vez que as mãos seriam do artista, mas a arte seria do povo
(PROENÇA, 1986, p. 30-31).
Esta concepção de arte popular ressoa em filmes realizados por Geraldo Sarno
durante as viagens feitas com os integrantes da Caravana Farkas. O filme Jornal do sertão
já se incia com dois cantadores, Lourival Batista e Severino Pinto, cantando versos de um
poema em dez pés a quadrão que sintetiza essa concepção de arte: “quem pra isso não

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

185
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

nasceu/ não pode cantar repente.” O narrador do filme, então, ganha a deixa que precisava
para tratar do ofício do repentista e inicia sua definição da literatura popular em verso.
Como pode ser percebido, no filme é empregado o termo formulado por Cavalcanti
Proença para se referir aos poemas populares e para denominar sua antologia. Esse
compartilhamento de um determinado vocabulário entre o professor cuiabano e o
narrador do filme concorre para a aproximação das próprias definições de arte popular
estabelecidas no filme.
Do mesmo modo que no livro de Cavalcanti Proença, no filme é frisada a
obediência do artista às normas tradicionais. Seguir o modelo é sempre o imperativo que
regeria as composições, restringindo o espaço da criação puramente individual e apartada
das preferências do público. Concordam com a ideia de que seriam as estórias organizadas
a partir da repetição de motivos combinados. Para além disso, no filme é oferecida uma
lista de temas sobre os quais o poema poderia versar: gestas medievais da tradição ibérica;
gestas do cangaço; romances moralizantes; aventuras de herois pícaros; comentário e
crítica de acontecimentos atuais.
Dois desses temas já haviam sido frisados por Cavalcanti Proença no prefácio
escrito para o seu livro. A herança ibérica da poesia popular nordestina é destacada com
constância pelo professor e fundamenta suas concepções sobre a literatura popular. A
importância deste aspecto é tão grande na economia do livro que leva o crítico literário a
realizar um rigoroso e extenso exame comparativo entre os poemas dos cantadores
sertanejos e os dos portugueses antigos. Além desse tema, o traço moralizante dessa
poesia também já havia sido sublinhado por Proença como aspecto social compensatório
para a aspereza da vida no sertão.
Relacionada à compreensão de arte popular expressa no livro de Cavalcanti
Proença e no filme de Geraldo Sarno, se faz notar nos dois a preocupação quanto às
condições de vida dos cantadores. A modernização das regiões interioranas nordestinas,
de acordo com o narrador de Jornal do sertão, estaria obrigando a literatura popular em
verso a refluir para antigos redutos ou a adaptar-se aos novos valores urbanos de modo a
disputar o mercado existente. São exemplos de redutos, oferecidos pela estrutura narrativa
do filme, a cantoria nas feiras, as emboladas realizadas pelos cantadores de côco, os
desafios entre dois mestres organizados em fazendas.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

186
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A poesia popular estaria refluindo, por conta da modernização mencionada, para


as profissões improvisadas que assumem a miséria. O tipo do cego cantador, presente em
tantas histórias populares, é personagem freqüente das feiras nordestinas, registrado em
diversos momentos pela câmera do documentarista. Exemplo dessa figura são as três
irmãs que cantam juntas, sendo uma delas responsável pela caixa de dinheiro e por contar
qual o valor das notas que estão sendo depositadas. Esta sequência não poderia passar
desapercebida quando da montagem do filme, justamente pelo reforço argumentativo que
oferecia ao que estava sendo dito pelo narrador em voz over.
Ademais, é uma preocupação perceptível em filmes como Os imaginários e A
cantoria, outros dois documentários realizados por Geraldo Sarno nessa mesma época, a
das ocupações paralelas assumidas por estes artistas populares. Provavelmente este
aspecto da vida dos artistas era mencionado por conta da questão mais geral que
perpassava os documentários de Sarno: o estado, naquele momento, das manifestações da
cultura popular nordestina. Com seu número de consumidores cada vez mais reduzido, os
artistas necessitavam, para sobreviver, realizar trabalhos diversos, como o de caiar
paredes, exemplo de ocupação exercida pelo xilógrafo Walderêdo, um dos protagonistas
de Os imaginários. Talvez o que motivasse o exame do estado das manifestações culturais
nordestinas fosse o risco da obsolescência destes artistas, caso indicado por Cavalcanti
Proença do cantador, “que as condições de vida, atuais no país, vão tornando obsoletos
(PROENÇA, 1986, p. 27).”
A necessidade de adaptação às mudanças já estava presente como traço da poesia
popular no escrito de Cavalcanti Proença e reaparece, adquirindo uma conotação e uma
força renovadas, no filme de Geraldo Sarno. De acordo com Proença, seguindo a regra da
transplantação cultural em sua escolha temática, os poetas populares deveriam moldar-se
ao modo de ser predominante na sua região sob a pena de se perderem. Em Jornal do
sertão, a necessidade de adaptação adquire o sentido pejorativo de perda da autenticidade.
Essa sutil inclinação sofrida pela mesma ideia poderia ser explicada pela reinterpretação
feita por Sarno de um dos motes de Os sertões: o de que o isolamento do sertanejo o teria
libertado de uma adaptação dolorosa a um estágio superior de civilização e o haveria
protegido dos vícios advindos dos meios adiantados. Neste raciocínio Euclides da Cunha
sustentou seu elogio aos “rudes patrícios dos sertões”, libertos, ao contrário do mestiço

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

187
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

do litoral, das exigências de uma cultura importada (CUNHA, 2016, p. 113). Também
dessa argumentação Euclides faria brotar sua tese de que no sertão residiria o “cerne da
uma nacionalidade”, a “rocha viva da nossa raça” (CUNHA, 2016, p. 536).
Geraldo Sarno se apropria das teses de Euclides da Cunha para a construção da
estrutura narrativa de seu filme. A voz over anuncia não resistir o folheto de cordel à
desintegração do mundo ao qual pertence. Os novos meios de comunicação, cujo objetivo
seria a formação de um mercado nacional único, estariam rompendo o isolamento do
Nordeste. Essa penetração do rádio, da televisão e das estradas seria preocupante, uma
vez que impediria o cumprimento das funções sociais de expressar a tradição e de divulgar
valores éticos e sociais de uma sociedade fechada, características do folheto de cordel.
Ao passo que isso é dito, a câmera passeia por vários folhetos de cordel expostos na feira
de Caruaru, e termina por exibir um conjunto de folhetos com capas coloridas e modernas,
impressos no Sudeste.
O documentário finaliza tratando novamente dessa questão da adaptação. O
narrador reitera a ideia já lançada de que novos padrões de comportamento estariam sendo
incorporados por conta do consumo dos produtos industrializados do Sul e da penetração
dos meios de comunicação mais modernos. Como recurso para não desaparecer a
literatura oral acaba por se ajustar às “novas necessidades de seu meio social”. Quando
isso não ocorresse, ela refluiria para as regiões mais distantes do interior nordestino. Sobre
esses redutos, diz:

Aí pode-se ainda encontrar, numa fazenda de pé de serra, o improviso


dos cantadores como a mais eficiente e por vezes única forma de
comunicação cultural elaborada. É o jornal versado que até ele chega
de quando em vez na forma de versos improvisados, afugentando vagas
inquietações e dando-lhes quase a certeza de que as coisas não mudaram
tanto assim (JORNAL do sertão, 1970, 11 min.).

Localizada nas regiões mais escondidas do Nordeste, a literatura popular em verso


estaria em luta pelo estabelecimento do espaço necessário para a sua sobrevivência. A
que se adaptasse, perderia em termos de autenticidade, a que se isolasse, teria o seu tempo
de sobrevida contado, mas permaneceria intocada. E a função do artista não poderia ser
outra que não a de, antes do desaparecimento iminente dessa expressão cultural percebida
como produto de uma sociedade fechada, capturá-la, resguardá-la, registrá-la. A

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

188
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

realização dessa tarefa, a que tantas gerações da intelectualidade brasileira se propuseram,


seria fundamental para a definição da nossa nacionalidade e era compreendida como a
finalidade primeira do cinema documentário feito no país.

Documentação:
JORNAL do sertão. Direção: Geraldo Sarno, Produção: Thomaz Farkas e Saruê Filmes
Ltda. Brasil: Videofilmes, 2009, 1 dvd.
PROENÇA, Manoel Cavalcanti. Estudos literários. Prefácio de Antônio Houaiss
Houaiss; nota de Ivan Cavalcanti Proença. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.
__________(org.). Literatura popular em verso: antologia. Seleção, introdução e
comentários de Manoel Cavalcanti Proença. 2. ed., Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo; Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1986.
SARNO, Geraldo. Cadernos do sertão. Salvador: Núcleo de Cinema e Audiovisual,
2006.
__________. “Cinema Direto”. Revista IEB, São Paulo, n. 1, 1966, p. 171-173.
__________. Geraldo Sarno (depoimento, 2015). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 2015.
36 pp.
__________.“Quatro notas (e um depoimento) sobre o documentário”. Revista Filme
Cultura, Rio de Janeiro, n. 44, abr.-ago, 1984, p. 61-64.

Referências bibliográficas:
AVELLAR, José Carlos. A ponte clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, García
Espinosa, Sanjínes, Alea – teorias de cinema na América Latina. Rio de Janeiro/ São
Paulo: Editora 34, Edusp, 1995.
BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema
brasileiro de 1958 a 1966. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
__________; GALVÃO, Maria Rita. O nacional e o popular na cultura brasileira:
Cinema. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
__________. Historiografia clássica do cinema brasileiro: metodologia e pedagogia.
São Paulo: ANNABLUME, 1995.
CALDEIRA, João Ricardo de Castro. IEB: origens e significados: uma análise do
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. São Paulo: Oficina do

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

189
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Livro Rubens Borba de Moraes, Imprensa Oficial do Estado, 2002. (Memória


Brasileira; 33)
D`ALMEIDA, Alfredo Dias. A construção do “outro” nos documentários de Geraldo
Sarno e Jorge Prelorán. 2008. 257 f. Tese – Programa de Pós-Graduação em Integração
da América Latina – PROLAM, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008.
RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era
da TV. 2 ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
SOUZA, Ricardo Luiz de. Identidade nacional e modernização na historiografia
brasileira: o diálogo entre Romero, Euclides, Cascudo e Freyre. 2006. 421 f. Tese -
Programa de PósGraduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006.
XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema
marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
__________. XAVIER, Ismail. Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra,
2001. (Coleção Leitura).
__________. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 2 ed. rev. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
__________. Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify,
2007.
VILLAÇA, Mariana. Cinema cubano: revolução e política cultural. São Paulo:
Alameda, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

190
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O Câncer Gay e o Orgulho Gay: as representações sociais da AIDS e a organização


da comunidade gay64 em resposta à doença na cidade do Rio de Janeiro
(1990-2000)

ANA CLÁUDIA TEIXEIRA DE LIMA


Programa de História das Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz)
CAPES

“A doença é a zona noturna da vida, uma cidadania mais onerosa.


Todos que nascem tem dupla cidadania, no reino dos sãos e no reino dos doentes. Apesar de
todos preferirmos só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde nos vemos obrigados, pelo
menos por um período, a nos identificarmos como cidadãos desse outro lugar.”
(Susan Sontag)

“Eram mil a sentir que a vida refugia do ato de viver


e agora circulava sobre toda ruína”
(Carlos Drummond de Andrade)

Em 1978, no ensaio intitulado “Doença como metáfora”, a escritora e crítica de


arte Susan Sontag analisou as fantasias sentimentais ou punitivas engendradas na ocasião
em que um indivíduo emigra e passa a viver no reino da doença (SONTAG, 2007, p.11).
O objeto central da reflexão não é a enfermidade física em si, mas o seu emprego como
figura ou metáfora. Tal uso, em muitos casos, torna a experiência da enfermidade ainda
mais complexa e dolorosa. Essas metáforas podem imputar culpas e castigos ao enfermo,
responsabilizando-o pela situação, assim como estigmatizam o doente e a doença.
A autora reconhece que é praticamente impossível residir no reino dos doentes
“sem ter sido previamente influenciado pelas metáforas lúgubres com as quais ele foi
pintado” (SONTAG, 2007, p.11). Todavia, o texto é um convite a encarar a doença sob
outro prisma. Defrontar-se perante ela de uma forma distinta do modo habitual. Isto é,
encará-la de maneira isenta do pensamento metafórico que carrega e que está introjetado

64
Desde a 1ª Conferência Nacional GLBT realizada em Brasília de 5 a 8 de junho de 2008, a sigla
oficialmente usada no Brasil é LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, transexuais e transgêneros).
Ela representa não apenas os grupos que a compõe, mas todos os indivíduos de sexualidades minoritárias e
os que manifestam identidade de gênero divergente da designada no nascimento. Como destaca James
Green em "Ditadura e Homossexualidade: repressão, resistência e a busca da verdade", a sigla LGBT é
mais contemporânea e representa um avanço na formulação do movimento. Por isso, em um trabalho, cujo
recorte temporal está delimitado na última décadas do século XX, seria anacrônico reportar-se a esses
grupos utilizando-a, pois são percepções identitárias que ainda estavam sendo construídas. Via de regra, o
termo "gay/homossexual" acoplava esses indivíduos de sexualidades e identidades de gênero minoritárias;
e é dessa forma que ele será utilizado nesse trabalho, ou seja, em seu sentido mais amplo.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

191
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

e manifestando-se de diversas formas na sociedade. Esvaziar o significado das metáforas


e dos mitos, bem como dissolve-los, é a forma mais saudável de se estar doente.
Sontag entrecruza os usos metafóricos da Tuberculose e do Câncer, duas doenças
específicas - incompreensíveis e misteriosas. A partir da análise desses dois casos, ela
conclui que as doenças são usadas como metáforas: na projeção de sentimentos sobre o
mal; como adjetivos predatórios, cruéis e implacáveis; para categorizar o que é visto como
moral e socialmente errado; sobre o que é ter força, fraqueza e energia; e a respeito de
sentimentos como sensibilidade, tristeza e impotência (SONTAG, 2007, p. 57).
Em contrapartida, como uma das consequências da enfermidade, o doente recebia
uma série de estigmas baseados em teorias psicológicas e padrões morais. Essas metáforas
não são construídas de forma “natural”, assim como não estão isentas de influências.
Longe disso, elas são produzidas, utilizadas e ganham significados a partir de padrões e
discursos morais, sociais, políticos e econômicos.
Dez anos após escrever esse ensaio, em 1988, Susan Sontag propôs uma nova
reflexão acerca de uma doença e as suas respectivas metáforas. Entre o final de 80 e o
começo de 81, cinco jovens do sexo masculino, residentes em Los Angeles (EUA), foram
acometidos coincidentemente por doenças conhecidas como oportunistas, quer dizer, as
que se instalam em situações de baixa imunidade. Eles não conheciam-se, mas tinham em
comum uma identidade, todos definiram-se como homossexuais.
A doença era desconhecida no campo da medicina até o início dos anos de 1980.
Ela foi nomeada, em 1982, como Acquired Immunodeficiency Syndrome, mas ficou
popularmente conhecida pela sigla AIDS. Em português, Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida, também identificada pelo acrônimo SIDA. Em “A AIDS e as suas metáforas”,
Sontag analisa as representações e metáforas constituídas e configuradas acerca dessa
enfermidade. Com status de terrível e de origem desconhecida, ela somava adjetivos que
ensejavam a metaforização (SONTAG, 2007, p. 90).
Os primeiros casos de AIDS nos EUA foram utilizados como base para considerar
a doença como um mal que afetava um grupo perigoso de pessoas “diferentes”
(SONTAG, 2007, p. 99). Uma forma de punir uma comunidade específica de indivíduos
com práticas licenciosas: homossexuais masculinos. Além desses, os usuários de drogas

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

192
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

injetáveis. Grupos que estavam, respectivamente, a margem da moralidade e da


legalidade.
Nem a contaminação “involuntária” dos hemofílicos foi capaz de suavizar essas
representações. Supostamente, o que produzia a AIDS, tal como a causa da contaminação,
era o comportamento anormal, perigoso, a irresponsabilidade e a delinquência. O doente
tinha uma sexualidade divergente ou vício em drogas ilícitas (SONTAG, 2007, p. 98). A
imagem icônica que prevaleceu, aos menos nesses primeiros anos, é a de que a
enfermidade não escolhia a vítima aleatoriamente, mas grupos específicos e pré-
determinados:

Ao contrário do câncer, entendido como uma doença provocada pelos


hábitos do indivíduo (e que revela algo a respeito dele), a AIDS é
concebida de maneira pré-moderna (com relação à metaforização das
doenças) como uma doença provocada pelo indivíduo enquanto tal e
enquanto membro de algum ‘grupo de risco’ – essa categoria
burocrática, aparentemente neutra, que também ressuscita a ideia
arcaica de uma comunidade poluída para a qual a doença significa uma
condenação (SONTAG, 2007, p. 114).

Muitas dessas representações referentes aos “grupos de risco” que floreavam o


imaginário acerca da AIDS, nos anos 80, aparecem no filme Clube de Compras Dallas.65
A obra cinematográfica conta a história de Ron Woodroof,66 um eletricista nascido no
Texas (EUA) que foi surpreendido com o diagnóstico de HIV, em 1985. Ron era
heterossexual, não usava drogas injetáveis e nem era hemofílico. Como era possível estar
contaminado visto que não integrava sequer um desses grupos de pessoas “diferentes”
atingidos pela enfermidade?
Em um misto de transtorno e incredulidade, Ron afirmou veemente a equipe
médica que não era “veado”. “Trocaram meu sangue com o de uma bichinha”, proferiu.
Para ele, essa era a única possibilidade imaginável para o diagnóstico. A sua incapacidade
(de conceber a viabilidade do diagnóstico) deve-se, em grande parte, a distinção entre os
transmissores potenciais (as pessoas diferentes) e “a ‘população em geral’: heterossexuais

65
DALLAS Buyers Clubs. Direção: Jean-Marc Vallée. Produção: Robbie Brenner e Rachel Winter. EUA:
Focus Features, 2013, 1 DVD.
66
O roteiro da obra cinematográfica é baseado na vida de Ronald Dickson "Ron" Woodroof (1950-1992).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

193
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

brancos que não usavam drogas injetáveis e nem mantinham relações sexuais com
pessoas que o faziam” (SONTAG, 2007, p. 99).
Nos anos 80, as representações associadas a AIDS por Ron são as que
prevaleceram nos EUA e foram exportadas para muitos países. Como ressalta Sontag, a
doença é concebida como algo de “pessoas ‘diferentes’” (SONTAG, 2007, p. 99). Sempre
o outro, o “estranho”, o indivíduo com práticas sexuais “anormais”, o viciado em drogas
injetáveis.
Muitas dessas são essas as identidades sociais que representavam o indivíduo que
tinha a probabilidade de ingressar no reino dos portadores de HIV e dos doentes de AIDS.
Elas eram um tipo de passaporte para o reino da AIDS, o carimbo para uma viagem apenas
de ida, sem regresso. Uma vez que ao adentrar nesse reino, a nova cidadania tornava-se
definitiva posto que a contaminação configurava um estado permanente.
No Brasil, os primeiros casos da doença foram detectados na cidade de São Paulo,
em 1983. Dois homossexuais masculinos; um deles esteve por diversas vezes nos EUA,
o outro jamais havia saído do país. Assim como nos EUA, as primeiras ocorrências
acometeram homens homossexuais (NASCIMENTO, 2005, p. 90). Em sua tese de
doutorado, um estudo comparado entre duas pestes do século XX no Brasil, a tuberculose
e a AIDS, Dilene Raimundo do Nascimento ressalta que:

Quando surgiram os primeiros casos de AIDS no Brasil, observou-se


imediatamente a categorização criada, principalmente, nos EUA:
tratava-se de uma síndrome de imunodeficiência adquirida causada
pelo vírus HIV, que, com seu tropismo predominante para as células
do sistema imunológico, seria responsável por disfunções da resposta
imune, permitindo a instalação de doenças oportunistas que tomariam
uma evolução grave. Homossexuais masculinos, usuários de drogas
injetáveis e hemofílicos constituiriam os grupos de risco
(NASCIMENTO, 2005, p. 85-86).

Com o advento da AIDS no Brasil, no início dos anos 80, os acometidos pela
doença enfrentaram diversos problemas como, por exemplo, a discriminação. Ademais,
o descaso do próprio governo federal que no primeiro momento não reconheceu a
gravidade da situação e sequer ofereceu o devido tratamento médico aos doentes.
Segundo a autora, no Brasil, a AIDS tornou-se cada vez mais uma expressão de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

194
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

condenação à morte de homossexuais masculinos, de usuários de drogas injetáveis e de


hemofílicos.
Contudo, nesse momento, esses sujeitos tornaram-se ativistas e atores de sua
própria causa. Organizados em ONGs, constituíram um grupo de pressão que exigia reais
investimentos no tratamento da AIDS e, também, a participação ativa na elaboração de
políticas públicas para a doença. Nessa conjuntura específica, destaca-se a atuação da
ABIA (1986). O Grupo Pela Vidda (1989), por sua vez, tinha como eixo principal de
atuação o “viver com HIV ou com AIDS”. Uma nova perspectiva, em um período no qual
a doença já não era mais sinônimo de morte.
Similarmente, foi criada, na cidade do Rio de Janeiro, uma ONG voltada
exclusivamente para atender a população gay acometida pela doença. Em 1993, o Grupo
Arco-Íris (GAI) foi fundado em resposta à epidemia de AIDS e a discriminação contra os
gays/homossexuais (Carta de Apresentação do Grupo Arco-Íris, 2016). Além disso, entre
as atividades do grupo destacavam-se as reuniões de convivência e os atos em prol de
uma cidadania efetiva para esses sujeitos e direitos civis igualitários. É justamente nesse
contexto, a partir dos anos 80 e 90, que o então intitulado movimento Gay começou a
institucionalizar-se.
Um passo fundamental nessa direção foi a criação, em 1995, da atualmente
denominada ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais
e Travestis). Fundada como o apoio de 31 grupos, essa associação luta pela promoção da
livre orientação sexual, pela liberdade, justiça social, democracia, pluralidade e
diversidade de gêneros, constituindo-se hoje como uma rede nacional com 308
organizações afiliadas, a maior rede LGBT da América Latina (Carta de Apresentação da
ABGLT, 2014).
Segundo James N. Green em “Ditadura e homossexualidades: repressão,
resistência e a busca da verdade”, a Ditadura Civil Militar (1964-1985) atrasou em
décadas a organização e a institucionalização do movimento gay no Brasil (GREEN,
2014, p. 21). Embora, entre 1964 e 1973, a sociabilidade gay no país tenha conquistado
espaços como boates e casas noturnas em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo e a
militância tenha se organizado em grupos de atuação, o regime também impossibilitou

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

195
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

qualquer forma de manifestação pública desses sujeitos como, por exemplo, as Paradas
do Orgulho Gay que já aconteciam em alguns países ocidentais.
Conforme Júlio Assis Simões e Regina Facchini ressaltam em “Na trilha do arco-
íris: do movimento homossexual ao LGBT”, no Brasil, a partir dos anos 1980, a AIDS e
as primeiras epidemias da doença foram grandes desafios para o ativismo pela
homossexualidade. Mas, ao mesmo tempo, ela também exigiu uma resposta desse grupo
de indivíduos à sociedade e dessa forma contribuiu para a organização do próprio
movimento gay (FACCHINI e SIMOES, 2009, p. 129).
A AIDS, ou o Câncer Gay/Peste Gay, colocou esses sujeitos em evidência mais
do que nunca e serviu como um grande aprendizado político. De fato, só a partir do início
dos anos 90, o movimento passou a se organizar institucionalmente e como um grupo de
pressão. Além da criação e do estabelecimento do Grupo Arco-Íris, foram organizadas as
primeiras Paradas do Orgulho Gay, atualmente chamadas de Paradas do Orgulho LGBT,
as maiores manifestações públicas da comunidade.
No presente trabalho, a doença e a experiência de estar doente são apreendidas
como fenômenos socioculturais que possuem significados e representações. Como frisa
Claudine Herzlich, essas representações sociais da doença não são e nem dizem respeito
a reflexos do real, mas, com efeito, são construções, uma forma de entendimento e de
compreensão. Elas são formas e tentativas de tornar tal experiência inteligível
(HERZLICH, 2005).
Por isso, nesse trabalho, a doença e a experiência de estar doente são apreendidas
como fenômenos socioculturais que possuem significados, representações e metáforas. A
experiência da AIDS fomentou uma série de representações, significados e efeitos sobre
a vida em sociedade de gays, tanto como foi um aprendizado político para esse grupo. Ela
exigiu uma resposta desse grupo ao significados, representações e metáforas que lhes
foram conferidos.
Os jornais evidenciam muitas das representações sociais da AIDS. No dia 12 de
junho de 1983, o Jornal do Brasil destacou: “Brasil já regista dois casos de ‘Câncer-Gay’”
(Jornal do Brasil 12/06/1983 p. 1). No artigo, a médica Valéria Petri que cuidou dos dois
primeiros casos (dois homossexuais masculinos) afirma que é necessário tomar cuidado

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

196
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

com a implicação moral que essas duas primeiras experiências podiam causar. Ela
discorda que a doença seja uma punição aos gays e lembra que:

não são apenas os homossexuais que podem contrair esse vírus, mas
qualquer pessoa que tenha uma resistência de imunologia diminuída,
independente da opção sexual. É lógico que os que tenham uma
atividade sexual promíscua estão mais sujeitos a contraí-la. (Jornal
do Brasil 12/06/1983 p. 26 ‘grifos meus’).

Em meio a culpabilidade dos gays pela moléstia, a fala da médica é sóbria ao


discordar da imagem da doença como um castigo especificamente voltado para esse
grupo. Todavia, ela classifica tal prática sexual como promíscua. O que evidencia a carga
negativa e o caráter de anormalidade conferidos particularmente a essa sexualidade;
identificada e julgada como prática antinatural, especialmente após o advento do
Cristianismo (FOUCAULT, 2013, p. 33).
Os discursos sobre a AIDS, suas metáforas, representações e as configurações dos
“grupos de risco” não estão isentos de uma dimensão moral. A própria terminologia
empregada para se referir a doença diz muito sobre isso. Embora, a nomeação AIDS já
estivesse vigente desde 1982, termos como “Peste Gay” e “Câncer Gay” continuaram
sendo usados.
Quando o agente causador foi identificado, o Jornal do Brasil informou: “Vírus
pequeno causa Câncer Gay” (Jornal do Brasil 21/06/1983 p. 12). Esses conceitos que
tornam uma determinada realidade inteligível (KOSSELECK, 1982, p. 134) estão
carregados de representações e percepções socioculturais da AIDS, pois essas
nomenclaturas relacionam diretamente a doença com os gays. Essas construções de forma
alguma são discursos neutros, nelas aparecem concepções do mundo social e de valores.
(CHARTIER, 1990, p. 16-17).
Entretanto, a experiência da AIDS também proporcionou novas formas de
organização que se desdobraram em lutas contra o preconceito com relação a esses
indivíduos e as suas práticas. A formação, em 1993, da ONG Grupo Arco-Íris (GAI)
destinada à atender a população gay acometida pela doença e, também, promover
qualidade de vida, direitos civis e cidadania para esse grupo, é uma forma de resistências

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

197
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

e respostas da comunidade gay da cidade do Rio de Janeiro à culpabilização e aos


estigmas que lhes foram imputados com o advento da AIDS:

O Grupo Arco Íris foi criado no inicio da década de 1990 a partir do


sonho de um grupo de amigos em resposta a epidemia de AIDS e a
discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais
– LGBT, sua fundação data exatamente do dia 21 de maio de 1993 no
Rio de Janeiro.
Somos uma organização não governamental, sem fins lucrativos, cuja
missão é promover qualidade de vida, direitos humanos e cidadania ao
público de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais –
LGBT. (GRUPO ARCO-IRIS, 2016)

Em 1995, o Rio de Janeiro sediou um importante evento: a 17º Convenção


Mundial da Associação Internacional de Gays e Lésbicas (ILGA), a primeira vez que o
encontro foi realizado em um país da América do Sul. No dia do encerramento, 25 de
junho de 1995, foi realizada uma manifestação na avenida Atlântica entre o Copacabana
Palace e o Posto Seis. Como destaca o jornal O Globo:

Cerca de 500 gays e lésbicas participaram de uma passeata ontem na


praia de Copacabana para mostrar a sua bandeira; um pavilhão de 124
metros de comprimento por nove de largura com as cores do arco-íris,
um dos símbolos do movimento homossexual. Eles protestaram contra
a discriminação sofrida por gays e lésbicas. (O Globo 26/05/1995 p.
12)

Esse evento, que aparece sobre o nome de protesto e marcha na reportagem, é


considerado a primeira Parada do Orgulho Gay realizada no Brasil. Desde a primeira
edição até os dias atuais, uma das principais bandeiras é a desconstrução da ideia de que
a comunidade LGBT foi a geradora, portadora e propagadora da AIDS. A realização das
primeiras Paradas do Orgulho Gay, com início em 1994, cuja principal pauta era informar
e reforçar a necessidade da prevenção da Aids e das demais DSTs, assim como denunciar
discriminações de toda e qualquer origem.

Segundo Luiz Mott, no documento produzido em 2004 e intitulado “ABC das


Paradas Gays: Cartilha com informações úteis de como potencializar as Paradas GLTBS”,
entre os objetivos das Paradas desde a primeiras estão: denunciar discriminações e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

198
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

transmitir informações e reforçar junto aos participantes da parada a


necessidade da prevenção da Aids e DST (MOTT, 2004):

1.Promover a visibilidade massiva de GLT a fim de mostrar à


sociedade global o poder de arregimentação deste segmento
populacional enquanto cidadãos e massa potencial de eleitores e
consumidores. 2. Reforçar a autoestima individual dos
participantes enquanto homossexuais que devem ter seus direitos
de cidadania plenamente respeitados. 3. Funcionar como ritual de
iniciação para que novos homossexuais se assumam, estimulando
aos enrustidos “sair da gaveta”. 4. Mostrar à sociedade global a
existência da diversidade sexual da comunidade homossexual e
estimular o respeito à livre orientação sexual, papel de gênero e
estilo de vida. 5. Selar a solidariedade do movimento homossexual
organizado e da comunidade homossexual com outras minorias
sociais, entidades de classe e representantes de diferentes setores
do poder, fazendo das paradas vitrine e espaço de visibilidade para
futuros candidatos GLS a cargos políticos previamente apoiados
pelos grupos locais do movimento homossexual e comprometidos
com suas bandeiras de luta. 6. Arregimentar novos militantes para
se associarem aos diversos grupos do movimento homossexual
organizado. 7. Denunciar à população em geral e à mídia as
diferentes manifestações de homofobia que pesam sobre a
comunidade homossexual, transmitindo aos participantes da
parada informações sobre autodefesa contra discriminações e
como enfrentar e se proteger da violência antihomossexual.
8.Transmitir informações e reforçar junto aos participantes da
parada a necessidade da prevenção da Aids e DST (MOTT, 2004).

Nos dois últimos anos do século, 1999 e 2000, a Parada do Rio começou a aparecer
timidamente em reportagens dos jornais, inclusive, em notas que anunciaram o evento
com um tom convidativo. O Jornal do Brasil chama de “Onda Rosa” ao informar que a
“Avenida Atlântica será coberta hoje à tarde por purpurina” (Jornal do Brasil 04/07/1999
p. 6). Em 2000, o mesmo jornal novamente comunica em tonalidade cativante e
convidativa: “Anime-se: amanhã é o dia da Parada Gay carioca” (Jornal do Brasil
01/07/2000 p. 3).
É interessante observar a consolidação do papel político da Parada LGBT do Rio
de Janeiro ao longo dos anos 90 e, principalmente, a partir dos anos 2000. Entretanto, as
Paradas ou eventos similares com pautas em comum e o mesmo cunho de reivindicações
também se espalharam por todo o país, o auge aconteceu no ano de 2014. De acordo com
o calendário anual da ABGLT, nesse ano, foram realizados, em 19 estados e no Distrito

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

199
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Federal, 104 eventos, tais como Caminhadas, Marchas e Paradas. Algumas, inclusive, em
parceria com outras minorias (Calendário da ABGLT, 2014).
Os objetivos principais foram: evidenciar a diversidade sexual e de identidades de
gênero; denunciar a descriminação; reivindicar respeito, igualdade, cidadania, inclusão e
Políticas Públicas eficazes no combate à homofobia, à lesbifobia, à transfobia e na
prevenção da AIDS e demais DST’s (Calendário da ABGLT, 2014). No Rio de Janeiro,
o Grupo Arco Íris ainda organiza a principal Parada da cidade, a de Copacabana, e o
combate a AIDS e a muitos de seus estigmas ainda figuram como uma pauta
imprescindível.
A relação da experiência da AIDS para o gays, a constituição do Grupo Arco-Íris
e a organização das primeiras Paradas Gays do Rio evidenciam que a doença também
mobiliza indivíduos para atuar em causa própria e agir diante de determinada realidade
social. Mas não apenas isso, evidencia também o protagonismo político e social de um
grupo que por muito tempo foi, e ainda é, marginalizado. Esse deslocamento em direção
ao que antes era considerado periférico, deve-se, especialmente, ao movimento que
Beatriz Sarlo chamou de guinada subjetiva:

Há décadas o olhar de muitos historiadores e cientistas sociais


inspirados no etnográfico deslocou-se para a bruxaria, a loucura, a
festa, a literatura popular, as estratégias do cotidiano, buscando o
detalhe excepcional, o vestígio daquilo que se opõe à normalização e
as subjetividades que se distinguem por uma anomalia (o louco, o
criminoso, a iludida, a possessa, a bruxa), porque apresentam uma
refutação às imposições do poder material ou simbólico. (SARLO,
2007, p. 15-16).

Referências Bibliográficas:

Anais:

1ª Conferência Nacional GLBT- Brasília (2008).

Cartas de apresentação:

Carta de Apresentação da ABGLT. Disponível online:


<http://www.abglt.org.br/port/cartaprinc.php>. Acesso em 27 de outubro, 2014.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

200
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Carta de Apresentação do GRUPO ARCO-IRIS. Disponível online: <http://www.arco-


iris.org.br/o-grupo/>. Acesso em 29 de setembro, 2016.

Jornais:

Jornal do Brasil. “Brasil já regista dois casos de ‘Câncer-Gay’”, 12/06/1983 p. 1

_____________ Entrevista com a médica Valéria Petri. 12/06/1983, p. 26

______________“Vírus pequeno causa Câncer Gay”. 21/06/1983, p. 12

_______________Informes JB. 04/07/1999, p. 6

_______________Informes JB/ Caderno B. 01/07/2000, p. 3

O Globo. “Passeata reúne cerca de 500 em Copacabana”. 26/05/1995, p. 12

Bibliografia:

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de


Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003.

CAMARGO JUNIOR, K. R. De. "As Ciências da AIDS e a AIDS das ciências: o discurso
médico e a construção da AIDS". In: História, Ciências, Saúde - Manguinhos. Rio de
Janeiro: 1(1):35-60, Jul.-Out., 1994.
CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1990.
FACCHINI, Regina. SIMÕES, Júlio Assim. Na trilha do arco-íris: Do movimento
homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. 23ª ed. Rio de


Janeiro: Graal, 2013.

GRMEK, M. O enigma do aparecimento da AIDS. In: Estudos Avançados. São Paulo:


vol.9, no.24, Mai.-Ago,. 1995
GREEN, James N. QUINALHA, Renan. Ditadura e homossexualidades: repressão,
resistência e a busca da verdade. São Carlos: EdufsCar, 2014.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 9ª ed. Rio de Janeiro: DP&A,


2004.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: Presentismo e experiências do tempo.
Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

201
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

HERZLICH, Claudine. “A problemática da representação social e sua utilidade no campo


da doença”. In: Physis: Rev. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, 15(Suplemento): 57-70,
2005.
KOSSELECK, Reinhart. “UMA HISTÓRIA DOS CONCEITOS: problemas teóricos e
práticos”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5, n 10, 1882.
LACQUER, Tomas. Inventando o Sexo: Corpo e Gênero dos Gregos a Freud. Rio de
Janeiro: Relume Dumará. Cap. 5, “A Descoberta dos Sexos”, p. 189-240.

MOTT, Luiz. ABC das Paradas Gays: Cartilha com informações úteis
de como potencializar as Paradas GLTBS (2004).

NASCIMENTO, Dilene Raimundo do. “As Pestes do Século XX: tuberculose e AIDS no
Brasil, uma história comparada”. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.

PARKER, Richard. A Construção da Solidariedade: AIDS, Sexualidade e Política no


Brasil. Rio de Janeiro: ABIA; IMS-UERJ; Relume Dumará, 1994.

POLLAK, Michael Os Homossexuais e a Aids: Sociologia de uma Epidemia. São Paulo:


Estação Liberdade, 1990.
SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

SONTAG, Susan. Doença como metáfora/A AIDS e suas metáforas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.

SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo:
Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
______________.Tempo Presente: notas sobre a mudança de uma cultura. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2005.
TRONCA, Italo A. As máscaras do medo: Lepra e AIDS. Campinas: Editora da Unicamp,
2000.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

202
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Controle da informação na imprensa carioca:


o gatekeeper na cobertura das bombas do Riocentro (1981)

ANA LUCIA VAZ


Programa de Pós-Graduação em História
UFRRJ

Introdução

Este artigo é parte de uma pesquisa sobre o papel desempenhado pela imprensa
carioca67 no período da transição política brasileira que encerrou o regime de governos
militares. Não sob um ponto de vista retrospectivo – que significaria avaliar a influência
da imprensa no processo de democratização do país –, mas perguntando sobre os sentidos
que os veículos constroem a respeito do processo político e seus atores, com atenção
especial para a construção da representação da própria imprensa como ator.

De acordo com o conceito de gatekeeper68, o processo de produção jornalística


envolve diversos mecanismos de controle e seleção, que não se limitam à repressão do
Estado ou à imposição dos interesses empresariais. No trabalho cotidiano do jornalista, a
seleção das fontes e o tratamento das informações obtidas é o resultado de um complexo
sistema de pressões, interesses e procedimentos técnicos que compõem uma espécie de
cultura profissional69.

Através da análise da cobertura jornalística (exclusivamente o trabalho de


reportagem) realizada pelos dois principais veículos cariocas da época – Jornal do Brasil
e O Globo – sobre o episódio que ficou conhecido como Caso Riocentro, este artigo
pretende, através dos sentidos construídos nos textos analisados, identificar indícios de
procedimentos profissionais que participam dos sistemas de controle da informação.

67
Ao tratar a imprensa como unidade, não estou me referindo ao conjunto dos veículos de comunicação
que divulgam notícias, mas a uma instituição que configura o campo do jornalismo, isto é o campo de
conhecimento definido pelo trabalho de produção da notícia. Neste sentido, não há um papel a ser
desempenhado pelo campo, mas papéis desempenhados dentro do campo da imprensa.
68
O conceito de gatekepper se refere à distribuição do poder e responsabilidade internos às redações, no
processo de seleção das informações que serão transformadas em notícias. (TRAQUINA, 2004 e WOLF,
1994)
69
O conceito de “cultura profissional”, aqui, pretende se aproximar do habitus, como definido por Pierre
Bourdieu: “indica a disposição incorporada, quase postural” de um “agente em ação” (1989, p61). O
jornalista pensado como o agente do campo da imprensa.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

203
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Não se pretende identificar a posição do jornal, mas alguns procedimentos que


constroem ideias-chave, importantes para o trabalho de enquadramento da memória sobre
o regime militar e, principalmente, sobre o papel da imprensa neste período.

Como explica Michel Pollak:

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das


interpretações do passado que quer salvaguardar, se integra, como
vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar
sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de
tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs,
famílias, nações etc. (1992, p.9)

O objetivo de perguntar sobre procedimentos e seus efeitos nos sistemas de


controle da informação é superar uma dicotomia comum às narrativas sobre a atuação da
imprensa no período da ditadura militar, em geral polarizada entre resistentes ou
colaboradores. Por trás desta dicotomia está uma percepção da imprensa, como agente
social, baseada na tensão entre censura e liberdade.

1. Colaboradores ou resistentes

Beatriz Kushnir enfrentou um mito, em sua tese de doutorado Cães de Guarda:


jornalistas e censores do AI-5 até a Constituição de 1988: “examinar para desmistificar
tanto a noção generalizante de que os jornalistas combateram o arbítrio, como também a
percepção de que o censor é antes de tudo um bilontra” (2001: 24).

Para a autora, “a batalha da comunicação reescreveu para si um perfil”. E se


colocou na parcela dos “heroicos e resistentes” (Idem) que enfrentaram a ditadura.

As reflexões neste campo têm se debruçado mais fortemente sobre a


resistência, sobre o burlar o “não dizer”. Por esse raciocínio, criou-se
um duelo, em que o censor é um tirano, um algoz, ou é um
incompetente, um despreparado intelectualmente para a função. Já o
jornalista é descrito como o que realizava pequenos ou grandes atos
heroicos, de desafiar esse opressor. (2001: 36)

Já Alzira Alves de Abreu avalia que “as análises, quando se ocupam da mídia, em
geral só dão conta da autocensura e da subordinação da mídia às determinações dos

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

204
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

militares.” (2005, p.75). A autora defende que os jornais não tiveram comportamento
homogêneo e que uns cederam à censura, enquanto outros “usaram fórmulas criativas
para denunciar a repressão e a falta de liberdade”.

Marialva Barbosa (2010), ao contrário, critica o que ela considera ser uma
“idealização na forma de perceber a atuação da imprensa durante períodos de exceção”
(p.187), que torna predominante “o discurso de que a imprensa luta bravamente – de
maneira indiscriminada e genérica – contra a ação da censura”. Mas Barbosa concorda
com Abreu sobre a heterogeneidade da atuação da imprensa em relação à censura.

Como uma empresa que procura aferir lucros e ganhos simbólicos, a


imprensa se defronta entre a construção de um discurso que a coloca
num lugar heroico e a sua própria sobrevivência no mercado jornalístico
e de bens simbólicos. (2010:187)

O próprio interesse econômico pode ser percebido como fator de pressões


contraditórias. Por um lado, a censura esvazia os jornais de temas relevantes e polêmicos,
comprometendo seu poder atrativo para o consumidor. Por outro lado, a colaboração com
o governo era recompensada com generosas verbas publicitárias e financiamentos. Sem
contar os possíveis prejuízos resultantes da pressão do Estado sobre os anunciantes ou da
apreensão da publicação.

Embora reconheça que não há homogeneidade, Barbosa identifica uma tendência


à acomodação em função dos interesses econômicos. “Claro que há vozes discordantes,
como enfatiza Kucinski (2002), mas essas são pontuais e, de maneira alguma, se
constituem como um movimento de imprensa” (2010: 196).

Bernardo Kucinski (2002) conta a história da imprensa alternativa, segundo ele


uma imprensa que se colocou claramente na oposição ao regime militar. Em 1977, a
imprensa alternativa chegou a uma tiragem superior à da imprensa que ele chama de
hegemônica. Mas desapareceu no início da década de 1980 (1991: 117). Entre as causas
elencadas pelo autor está a abertura de espaço de atuação profissional na grande imprensa,
que busca recuperar seu valor jornalístico incorporando linguagens e profissionais do
campo alternativo.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

205
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Com variações de enfoque, Abreu, Barbosa e Kucinski utilizam o mesmo fio


condutor de sentido: Mais colaboracionistas ou resistentes, a relação com a censura é
central na interpretação da imprensa no período.

Kushnir tenta desmistificar esta dicotomia. A historiadora entrevistou censores e


jornalistas e enfrentou um mito fundamental na construção da memória da imprensa
brasileira, ao demonstrar como jornalistas se envolveram com a polícia e policiais com o
jornalismo. Sua pesquisa traça o perfil da redação do jornal Folha da Tarde, do Grupo
Folha, que se tornou, após o AI-5, uma espécie de diário oficial do DOI-CODI. Kushnir
mostra que a carreira de censor foi a opção profissional de muitos jornalistas. A riqueza
de dados, depoimentos e documentos levantados pela pesquisadora permite descrever e
demonstrar as diversas formas e graus de colaboração entre veículos de comunicação e
censura, tendo os jornalistas, muitas vezes, o papel de intermediários.

Kushnir, porém, não chega a romper com o eixo resistência-colaboração, pois


acaba por avaliar os veículos apoiada numa ideologia simplificada, que diz que o papel
da imprensa é “fiscalizar o poder, buscar a verdade dos fatos e fomentar o espírito crítico”
(235). A comparação da atuação de um veículo com um princípio abstrato e sem raízes
na realidade das redações, cria a percepção distorcida de que o afastamento deste
princípio é consequência deste ou daquele fator ou contexto histórico.

A historiografia que trata da censura à imprensa no regime militar se concentra no


período de vigência do AI-5, como os trabalhos de Maria Aparecida Aquino (1999) e
Paolo Marconi (1980). Alguns pesquisadores, como Kushnir, incluem a década de 1980
no longo período de censura à imprensa, até ser tornada ilegal pela Constituição de 1988.
Mas a pesquisa de Kushnir está concentrado na década de 1970. Os anos 1980 aparecem
como um rescaldo dos anos 1970, com fatos pontuais.

Em períodos de forte repressão, como o vivido durante a vigência do AI-5, tentar


enxergar os sistemas de controle internos à dinâmica da redação pode se tornar tão difícil
quanto perceber a luz de uma vela acesa sob um refletor. São sistemas sutis, facilmente
ofuscados pela repressão explícita. Por isso, este estudo concentra-se no período
imediatamente posterior.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

206
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

2. Análise dos jornais

2.1. Metodologia

A análise aqui apresentada se baseia na leitura dos jornais O Globo e Jornal do


Brasil, nos 4 primeiros dias imediatamente após a explosão das bombas (Jornais de 1 de
maio a 4 de maio). Na tabulação anexa, estão apenas os jornais de 2 a 4 de maio. As
publicações de 1 de maio não foram incluídas na tabela, por se tratar de uma situação de
produção especial70 que poderia provocar distorção nos resultados gerais.

As explosões das bombas ocorreram entre 21h e 22h, horário em que os jornais já
estão fechados. Para publicar alguma informação ainda no dia 1 de maio, os dois veículos
precisaram produzir outros clichês71, tarde da noite, o último de cada um fechado no meio
da madrugada, com textos produzidos por redatores ou editores na redação, com
informações passadas pelos repórteres por rádio ou telefone. O resultado completo da
apuração daquela madrugada foi publicado no dia 2 de maio, repetindo e aprofundando o
que já havia sido publicado na edição de 1/5.

As coberturas realizadas por Jornal do Brasil e O Globo seguem padrões bastante


semelhantes. O Globo dá mais crédito às fontes do governo e das forças armadas,
enquanto no Jornal do Brasil se evidencia maior compromisso com as fontes da oposição
parlamentar, em especial PP e PMDB. Como isso, O Globo tem mais acesso às
informações oficiais72.

Na análise que se segue, privilegiou-se dois aspectos da produção narrativa das


reportagens: 1) a seleção e tratamento das fontes (conteúdo atribuído a elas na matéria);
2) a exposição do jornalista como personagem da narrativa.

70
A apuração realizada na madrugada de 30 de abril para 1º de maio termina após o fechamento do jornal
do dia 1º. A cobertura completa só será publicada no dia 2 de maio e repetirá tudo o que se disse no dia 1º.
71
Reimpressões da mesma edição, com acréscimos. O prazo do primeiro clichê é restrito em função dos
malotes que precisam sair para outras cidades e para assinantes.
72
Após encerrado o IPM, O Globo teve acesso privilegiado ao relatório final, por exemplo. Luarlindo
Ernesto cobria a madrugada no JB, no dia 17 de julho, quando o motorista chegou na sede do JB com a
edição do Globo com o “Relatório final do IPM sobre as explosões do Riocentro”, “exclusivo”. Luarlindo
conseguiu incluir, no segundo clichê do JB, a informação. “A gente copiou até os erros de português do O
Globo”, conta rindo.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

207
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para uma sistematização dos conteúdos que permitissem algum nível de


objetividade no tratamento das matérias, as fontes utilizadas pelos jornais foram
tabuladas, identificando dia, veículo e conteúdo esquemático da informação fornecida.
As matérias tabuladas, citadas neste texto, serão identificadas pela linha em que aparecem
na tabela. As fontes foram classificadas em três categorias, em função do tipo de
informação que fornece ou deveria fornecer, segundo o veículo:

Análise política (43 fontes) – avaliação das repercussões políticas do episódio

Coleta de dados (42 fontes) – técnicos e testemunhas

Disputa de versão (11 fontes) – caracterização do papel dos militares envolvidos no


episódio. As que, além da caracterização fazem análise política ficaram na categoria
anterior.

Não classificadas: (5 fontes) – a fonte não falou e o texto não informa o que se
esperava dela.

2.2. Fatos e primeiros relatos

Quinta-feira, 30 abril, 1981 – Entre 21h e 22h, duas bombas explodem nas
instalações do Riocentro, Zona Oeste do Rio de Janeiro, enquanto ocorria um show em
comemoração ao dia do trabalhador, promovido pelo Cebrad (Centro Brasil
Democrático). A primeira, dentro de um Puma no estacionamento, mata o sargento
Guilherme Pereira do Rosário e fere gravemente o capitão Wilson Luiz Chaves Machado,
ambos lotados no DOI-CODI. A segunda bomba explode próxima à casa de força.

Sexta-feira, 1º maio, 1981 – O comandante do I Exército, General Gentil


Marcondes Filho, assina portaria ordenando a instauração de Inquérito Policial Militar
(IPM), “com a possível urgência”, para investigação dos “fatos que deram origem à morte
do Sgt Guilherme Pereira do Rosário e ferimentos graves no Capitão Wilson Luiz Chaves
Machado, ambos deste Exército, no momento em que se encontravam em missão de
serviço no Riocentro” (IPM 28/81 – Fl.5).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

208
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

1º maio, 1981 - O Globo e Jornal do Brasil dão chamada de primeira página para
o episódio. JB, na cabeça da página, com foto do Puma com o corpo do sargento
estraçalhado dentro. Globo, apenas duas pequenas colunas no pé, à direita. Na matéria
interna, a foto do Globo é da parte do carro que foi preservada, com a legenda: “A frente
e a traseira do Puma ficaram intactas após a explosão”. A solução um pouco estranha (a
legenda reforça a sensação de que a foto não diz nada de importante), ficou ainda mais
patética diante da capa do concorrente. Qual o objetivo de mostrar ou esconder o corpo
do sargento? Luis Mário Gazzaneo, subeditor de geral do JB, na época, explica:

Quando cheguei lá estavam fechando a primeira. Aí eu vi que não tinha


foto. Paulo Henrique73, não vai dar foto do carro?! O Paulo Henrique se
virou pra mim e disse: Gazzaneo, o JB não dá presunto na primeira
página74. Aí eu falei pra ele: Paulo Henrique, esse não é um presunto!
Esse é o nosso Aldo Moro! Aí ele se tocou.75

A diferença entre O Globo e Jornal do Brasil, neste episódio, pode ter sido menos
uma questão de linha editorial, mais uma questão de procedimento. Segundo Luarlindo
Ernesto, “O Globo é meio colégio interno, né? Cheio de normas, portarias e decretos. JB
é muito mais liberal.”76

José Sérgio Rocha e Osvaldo Maneschi concordam que o jornalista, no Globo,


desfrutava de menos autonomia77. Uma vez furado pelo concorrente (ou talvez com tempo
para articular uma decisão de cúpula sobre a foto, na edição de 2 de maio, O Globo
transforma a foto do Puma com o cadáver do sargento em vinheta78 que acompanhará
toda a cobertura do caso. Na edição de 3/5, sob o pretexto de mostrar o perito que

73
Paulo Henrique Amorim, editor-chefe do Jornal do Brasil, na época.
74
No início dos anos 1980, os três jornais mais vendidos no Rio de Janeiro eram Jornal do Brasil, O Globo
e O Dia. O Dia era conhecido por seu perfil sanguinolento e sensacionalista. A política editorial de “não
dar presunto na capa” era um cuidado para diferenciar-se dos jornais considerados sensacionalistas, que, se
dizia, “se espremer sai sangue”.
75
Entrevista em vídeo, realizada por José Sérgio Cunha em 2010.
76
Repórter policial que trabalhou no Jornal do Brasil e no O Globo nos anos 80. Entrevista concedida à
autora em 26/05/2017
77
Redatores do JB em 1980, que também trabalharam no O Globo nesta década. Entrevista concedida à
autora em 21/07/2017
78
Imagem que serve como identificadora de um tema que merece destaque e que se espera tenha muitas
suítes (continuação, nos dias seguintes). Deliberadamente ou não, a escolha é estratégica, pois a longo
prazo, a imagem ficará associada, na memória do leitor, a O Globo, muito mais que ao Jornal do Brasil.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

209
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

informou sobre a segunda bomba dentro do Puma, O Globo publicou a foto ampliada do
“presunto” na página 2079.

2.3. Fontes80 autorizadas

No dia seguinte à explosão (01/05/81), o Ministro da Justiça concede entrevista


aos jornais (linha 4). Além dele, o comandante do I Exército, General Gentil Marcondes
Filho (linha 1), e o Sercretário de Segurança do Rio de Janeiro, General Waldyr Muniz
(linha 2) são ouvidos (02/05/81). A partir do dia 2 de maio, os representantes das forças
armadas no Rio de Janeiro não falam mais com os jornalistas. A disputa de versão se
estabelece com base nas notas oficiais do I Exército.

Há uma extensa coleta de declarações de autoridades do Poder Executivo, das


forças armadas e de parlamentares. OAB, ABI e CNBB também são ouvidas
repetidamente. As demais fontes – policiais e peritos, parentes, amigos e vizinhos, dois
militares envolvidos no funeral do sargento, médicos do Hospital Miguel Couto – são
procuradas apenas para a coleta de dados, em alguns casos para desmentir as autoridades
do Exército.

Entre as análises políticas oferecidas pelas fontes, uma das afirmações mais
repetidas é a de que o episódio não ameaça a abertura política (13 de 43). Outras (3 de
43) afirmam que ameaça. Há, ainda dez fontes que apontam o governo ou o presidente
como alvo, mas afirmam, em algum momento, o compromisso do governo ou do
presidente com a abertura ou com a democracia. Pode-se avaliar que, indiretamente, vêm
a abertura como alvo. Podemos deduzir que o acontecimento envolve o processo de
abertura em 26 das 43 declarações colhidas.

Há um universo restrito de fontes, limitando a percepção da realidade apresentada.


Apenas pessoas com cargos dentro do sistema político de Brasília81 são chamadas a
avaliar as repercussões políticas, tendendo a uma análise conservadora.

79
O perito está diante do cadáver.
80
O termo “fonte”, nesta pesquisa, está sendo utilizada no sentido dado no campo do jornalista. Ou seja, a
pessoa ou documento de onde foi retirada a informação.
81
Exceção para CNBB, OAB e ABI, que cumprem papel de representantes da sociedade civil.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

210
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A abertura, que todos os políticos – e também o povo – apoiam é tratada como


objetivo principal. A abertura depende do compromisso do governo, mas principalmente
do presidente (18 declarações personificam o governo na figura do presidente). Nenhuma
declaração contradiz a imagem de que o presidente, o governo, a oposição e o desejo do
povo são mais fortes que o terrorismo.82

2.4. Off the record83

Grande parte das informações publicadas diariamente pelos jornais não têm suas
fontes mencionadas. A informação tende a ser recebida pelo leitor como relato do repórter
que testemunhou ou apurou e conferiu a informação.

No dia 1 de maio, O Globo informa que “uma segunda bomba foi desativada por
peritos da Polícia dentro do Puma.” (p.9 da publicação) e o Jornal do Brasil afirma: “O
Puma estava cheio de bombas” (p.2), todos os dois sem citar fontes. A frase faz parte do
texto que descreve a cena pós-explosão, levando o leitor a tomar o fato como
testemunhado pelo repórter.

Nas edições de 2 de maio, o secretário de Segurança e o Comandante do I Exército


negam a existência de outra bomba no Puma. Nota do I Exército afirma que os militares
foram “vitimados no atentado” (linha 3 da tabela).

Na mesma edição, aparece a descrição do perito que deu a informação sobre a


bomba, ainda sem nome. A outra fonte é o delegado da 16ª DP: “O Delegado Petrônio
Romano Henrique informara, na madrugada de ontem, que havia sido recolhida uma bomba no
Puma. (...) À noite, porém, ele desmentiu essa informação.” (linha 26). No segundo clichê do dia
2 de maio, o Jornal do Brasil inclui, na página 7, a foto do perito84. O Globo publica a imagem do
perito no dia 3 de maio.

82
A tabulação anexa apresenta deficiências de sistematização dos dados, mas permite um primeiro olhar
sobre o universo discursivo. Um terço das fontes são comuns aos dois veículos (32) e suas declarações,
com diferentes ênfases, se repetem. A maior parte das variações diz respeito a representantes das mesmas
instituições. Ou seja, cerca de metade das fontes são iguais ou semelhantes.
83
“Fora da gravação”, ao pé da letra – ou simplesmente “em off”, no jargão jornalístico – quer dizer: fonte
protegida pelo sigilo profissional.
84
“Eu ainda não sabia, mas tinha feito uma foto importante: aquela em que aparece claramente o detetive
inspetor Humberto Guimarães, que tinha falado aos repórteres sobre a outra bomba. Nos dias seguintes,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

211
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A guerra está declarada. Nova nota do I Exército, divulgada nas edições de 3 de


maio, afirma que havia apenas as duas bombas que explodiram e denuncia “interpretações
malévolas” sobre o episódio. A nota atribui tais interpretações à tentativa de desacreditar
os “órgãos de segurança”, o que “sempre foi meta buscada por elementos ou organizações
subversivas”.

Em contrapartida, os repórteres buscam informações com policiais e peritos, que


só falam “em off”. Talvez os mesmos que deram as informações iniciais, reproduzidas
sem referência à fonte. Mas, a partir do momento em que existe uma guerra de versões, é
preciso qualificar a fonte para dar credibilidade à informação. Qualificar a fonte sem
identificá-la cumpre também a função secundária de explicitar um sistema de censura em
funcionamento que ameaça as fontes. Para destacar esse efeito de censura, os jornalistas
também procuram e expõem as fontes oficiais que se recusam a falar.

Na edição de 2 de maio, o JB destaca, na primeira página, o silêncio dos ministros


da Aeronáutica e do Exército (linhas 6 e 7), do delegado Borges Forte, do Departamento
de Polícia Política e Social (linha 26) e dos amigos e vizinhos do capitão, dos parentes,
amigos e vizinhos do sargento, além de militares envolvidos no funeral do sargento
(linhas 41 a 44). O Delegado da 16ª Delegacia de Polícia Civil, Petrônio Romano
Henrique, a viúva do sargento, D. Sueli, e policiais do Departamento Geral de
Investigações Especiais oferecem alguma informação, mas recusam outras. O delegado
Petrônio Romano, depois de informar sobre a bomba desativada, ao deixar o
estacionamento “negou-se a dar informações sobre as explosões” (linhas 26). O delegado
Borges Forte “nada revelava” (linha 27) e D. Sueli só fala até perceber que estava
conversando com jornalistas. As aspas atribuídas a ela na capa do JB de 2 de maio são
explicitas: “me proibiram de falar” (linha 39).

Ainda na edição de 2 de maio, os dois jornais participam de entrevista com o


Minstro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel (linha 4)85. Os dois jornais se utilizam de fontes
não identificadas para dar informações sobre o clima político em Brasília. No Globo, a

quando todas as informações oficiais contestavam a existência dessa segunda bomba dentro do Puma, nós
nos lembramos das fotos. Pegamos todos os contatos daquela madrugada e reconhecemos o perito.”
Depoimento do fotógrafo do JB Vidal Trindade, publicado por Belisa Ribeiro (1999: 95).
85
O Globo também colhe declaração do Ministro do Trabalho, Murilo Macedo (linha 8)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

212
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

informação aparece na página 2, numa coluna não assinada, intitulada “Política hoje
amanhã”86, sem que o texto explicite que se trata de fonte off the record. Ele informa que
“o presidente João Figueiredo reafirmou que os atentados terroristas não impedirão o
prosseguimento da abertura política nem afetarão a realização de eleições no próximo
ano”. O fato do texto estar sem aspas é suficiente para saber que não foi uma fala
diretamente ouvida pelo repórter.

No Jornal do Brasil, matéria de duas colunas circundadas por uma linha, no centro
da página 9, com o título “No Comando, constrangida surpresa”, descreve o clima entre
os comandantes militares do governo, com declarações entre aspas de uma fonte “em
off”, “que por deveres da função, manteve contato com diversas pessoas durante todo o
dia” (linha 8).

Chama a atenção o fato de que esta fonte diz tudo aquilo que todas as demais
fontes se recusam a dizer aos repórteres: que as bombas estavam sendo colocadas por
militares e que isso pode significar o fio da meada para desmascarar o sistema de terror,
além de “arrebentar com a credibilidades dos serviços secretos” e acelerar o desmonte do
CODI.

O uso de fonte off the record sem nenhuma qualificação específica87, para
informações de caráter avaliativo, é incomum no texto jornalístico. Trata-se de
informação difícil de ser contestada pelos envolvidos. E a fonte pode ser escolhida a dedo,
para dizer o que o repórter quer ouvir. Ou inventada. Segundo Antero Martins88,

Como todo mundo trabalhava em off, os milicos faziam o quê? Os


milicos davam informação pra gente colocar no jornal em off, e ninguém
sabia quem era quem. Eu descobri o seguinte: a gente podia bolar o off
que interessava. A gente começou a colocar em off coisa que a gente
queria que passasse, que era rigorosamente invenção.89

86
Nesta análise, textos de opinião, como editoriais e colunas assinadas foram desprezadas. A coluna
“Política hoje e manhã” foi considerada porque não é assinada e seu formato é de narrativa factual.
87
Diferente de um perito, policial, um vizinho etc.
88
Repórter da sucursal carioca do Estado de São Paulo na época das bombas. Ganhou o Prêmio Esso e
Vladmir Herzog por reportagens sobre o caso do Riocentro, em 1981.
89
Entrevista à autora em 09/05/2017

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

213
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

2.5. Os guerreiros da informação

Os jornalistas conseguiram a maior parte das informações relevantes sobre as


explosões nas primeiras 24 horas. Depois, as matérias são alimentadas por repercussões
políticas, informações técnicas de fontes não identificadas (mais de 25% das fontes não
têm seus nomes revelados. Detalhes técnicos que confirmam a versão inicial da imprensa,
escassas declarações oficiais do I Exército (sempre por notas) e informações sobre fontes
que recusam falar, autoridades que fogem e descrições sobre o cerceamento dos
jornalistas. Exemplos:

Pela primeira vez, desde a abertura política, o Departamento de Polícia


Política e Social e o Departamento de Polícia Técnica fecharam as
portas, impedindo o acesso de jornalistas a informações sobre as
bombas que explodiram no Riocentro." / "Os repórteres que queriam
falar com o titular do órgão, delegado Borges Forte, eram barrados por
um policial que se mantinha atrás das grades, depois das 12h de
ontem."/ “Por duas vezes, na parte da manhã, o delegado Borges Forte
foi chamado pelo diretor do Departamento Geral de Investigações
Especiais, delegado Newton Costa. Na rua, parado pelos repórteres, ele
nada dizia.(JB, 2/5, p.9)

O general Waldyr Muniz não foi ontem à Secretaria de Segurança.


Nenhum de seus auxiliares diretos foi encontrado. A Assessoria de
Comunicação Social estava fechada e, como não havia funcionários na
recepção, os soldados da PM de serviço no saguão do andar térreo não
permitiram que jornalistas entrassem no prédio. (O Globo, 3/5, p.20)

O repórter busca fontes que não atendem, faz perguntas que ficam sem resposta,
busca informações que não encontra. O silêncio revelado oferece – deliberadamente ou
não – uma imagem unidirecional da atividade jornalística. O jornalista é o que avança em
busca da informação, enfrentando os sistemas de poder que impõem limites à circulação
da informação. Característica da narrativa jornalística, enfatizada em períodos de
repressão, essa exposição reforça a associação da instituição imprensa à noção de
liberdade, no polo oposto ao da censura.

Considerações finais

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

214
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Se analisarmos atentamente a cobertura das bombas do Riocentro nas páginas do


Jornal do Brasil e O Globo perceberemos indícios do sistema de seleção e exclusão
realizado pelos jornalistas: o universo restrito de fontes ouvidas e os lugares
predeterminados para suas falas. Trata-se de procedimentos técnicos, que envolvem a
seleção de fontes e a avaliação sobre quais informações cada fonte tem autoridade para
oferecer.

Uma análise aprofundada destes aspectos de construção narrativa, através da


leitura dos jornais e da entrevista com jornalistas, pode nos ajudar a compreender os
complexos sistemas de controle da informação que, a cada momento histórico operam de
maneira diversa, mas não desaparecem, seja lá qual for o sistema político. Esta
observação também pode nos ajudar a superar, não só a dicotomia entre jornalistas e
censores, mas também entre veículos progressistas e conservadores, ou entre imprensa
alternativa e hegemônica, compreendendo suas especificidades e interrelações.

Fontes historiográficas
Entrevistas
Luarlindo Ernesto – 26 de maio de 2017
José Sérgio Rocha e Osvaldo Maneschi – 21 de julho de 2017
Belisa Ribeiro – 27 de julho de 2017
Antero Luiz Martins – 9 de agosto de 2017

Vídeos
Entrevista com Luis Mario Gazzaneo realizada por José Sérgio Rocha, em 2010.
Dispoível em://www.youtube.com/watch?v=BS6lDx62O6I - Capturado em 13/7/17
Documentário Rede Globo Memória sobre Atentado no Riocentro em:
http://memoriaglobo.globo.com Capturado em 10/8/2017

Documentos
Inquérito Policial Militar 28/81. Disponível em: www.dhnet.org.br/ - Capturado em:
27/12/16

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

215
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Jornais
Jornal do Brasil, de 1 a 4 de maio de 1981
O Globo, de 1 a 4 de maio de 1981

Bibliografia
ABRAMO, Cláudio. A Regra do Jogo: O jornalismo e a ética do marceneiro. São
Paulo: Schwarcz, 1988.
ABREU, Alzira, LATTMAN-WELTMAN, Fernando. Uma instituição ausente nos
estudos de transição: a mídia brasileira. p.67-101, em: ABREU, Alzira (org). A
democratização no Brasil: atores e contextos. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
ARBEX, José. Showrnalismo: a notícia como espetáculo. São Paulo: Casa Amarela,
2002.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

KUCINSKI, Bernardo. A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo


brasileiro. São Paulo: Perseu Abramo, 1998.

KUSHNIR, BEATRIZ. Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à


Constituição de 1988. Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, 2001.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Em: Revista Estudos Históricos.


Rio de Janeiro, vol.2, n.3, p3-15, 1989.

RIBEIRO, Jorge Cláudio. Sempre Alerta: Condições e contradições do trabalho


Jornalístico. São Paulo: Brasiliense, 1994.

RIBEIRO, Belisa. Bomba no Riocentro: o fim de uma farsa. Rio de Janeiro: Sisal,
1999.
TRAQUINA, N. Teorias do Jornalismo. Florianópolis: Insular, 2004
WOLF, M. Teorias da Comunicação. Lisboa: Presença, 1994

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

216
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A construção da Polícia portuguesa (1760 – 1807)

ANDRÉ LUIS CARDOSO AZOUBEL ZULLI


PPGH – UNIRIO

O ano de 1755 representou um importante momento da história portuguesa, em


parte pela destruição da cidade Lisboa em decorrência do terremoto, e por outro lado,
resultou na nomeação pelo rei Dom Jose I de Sebastião de Carvalho e Melo, o futuro
Conde de Oeiras e depois marquês de Pombal, para o cargo de Secretário dos Negócios
do Reino após passar cinco anos como Secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra
(FRANCO, 2007, p. 5).
Como Secretário do Reino o Conde de Oeiras deu prosseguimento e intensificou
suas reformas que objetivavam dar centralidade ao poder real. É na esteira destas reformas
que em 1760 foi promulgado o Alvará que criou o cargo de intendente geral de Polícia da
Corte e do Reino.

Em 25 de junho de 1760, como argumento de que a “justiça


contenciosa” e a “polícia” são incompatíveis, e tomando como exemplo
as reformas europeias, foi criado o cargo de Intendente Geral de Polícia
com “ampla e ilimitada jurisdição na matéria da mesma Polícia sobre
todos os Ministros Criminais e Civis”, gozando do privilégio de
desembargador do Paço com competências para, sobre todos os delitos,
preparar os processos e deferir sobre os mesmos. Só em casos
excepcionais seriam revistos pela Casa da Suplicação, podendo,
inclusive, a polícia instaurar simples processos verbais, “sem limitação
de tempo e sem testemunhas” até se apurar a verdade de fato, mesmo
contra a “opinião dos Doutores Juristas, as quais são entre si tão
diversas como costumam ser os juízos dos homens”. (SUBTIL, 2013,
p. 305)

É neste contexto de criação da organização policial moderna em Portugal a partir


da segunda metade do século XVIII que este trabalho se insere. O objetivo aqui é analisar
a partir da legislação portuguesa e da bibliografia especializada o processo de construção
das instituições policiais lusitanas – Intendência Geral de Polícia e Guarda Real de Polícia
- e que foram posteriormente à fuga da Família Real adaptadas para a realidade carioca.
Em nossa argumentação também pretendemos apresentar nosso entendimento do que seja
Polícia para assim justificar nossa interpretação de que este tipo de instituição surge e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

217
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

começa a amadurecer em Portugal a partir de 1760 com o cargo de intendente geral de


Polícia.
Tanto o intendente, quanto a futura Guarda Real de Polícia foram criadas sob
inspiração das instituições francesas, respeitando as diferenças socioculturais de cada
reino (COTTA, 2009, p. 3). Caberia ao intendente de Polícia agir como um coordenador
da atividade judicial portuguesa, garantindo a plena execução das leis anteriormente
promulgadas, assim como a precisa interpretação das determinações reais e reservando a
função policial ostensiva aos comissários de Polícia e posteriormente à Guarda Real de
Polícia da Corte (CARREIRA, 2012, p. 348).
Se hoje quando falamos Polícia a primeira coisa que vem a nossa mente são as
instituições de segurança pública que recebem este nome, por exemplo, Polícia Militar e
Polícia Civil, no século XVIII seu sentido era mais amplo, mais especificamente segundo
o dicionário de vocábulos portugueses e latinos produzido pelo Padre Raphael Bluteau
em 1720 Polícia era definida como:

A boa ordem que se observa, & as leis que a prudência estabeleceu para
a sociedade humana nas Cidades, Repúblicas, & c. Divide-se em Polícia
civil, & militar. Com a primeira se governam os Cidadãos, & com a
segunda os soldados. Nem uma, nem outra polícia se acha nos povos, a
que chamamos Bárbaros, como v.g. o Gentio do Brasil, do qual diz o P.
Simão de Vasconcellos nas noticias, que deu daquele Estado.
(BLUTEAU, Padre Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino, 1720)

Neste primeiro momento, que detalharemos mais a frente, o intendente de Polícia


e suas atribuições seguiam mais de perto a definição de 1720, num sentido de observação
da lei e manutenção da boa ordem. Porém, a intendência de Polícia teve dois momentos
com o primeiro sendo este de controle das pessoas que poderiam representar uma ameaça
para tranquilidade pública, e um segundo momento no qual as funções da Intendência e
seus poderes foram ampliados. (FARIA, 2007, p. 27) Isso levou a instituição a se
aproximar do caso francês e da nova definição de Polícia do dicionário do padre Raphael
Bluteau reformado e acrescentado por Antonio de Moraes Silva produzido às vésperas da
Revolução Francesa.

O governo, e administração interna da Repúb. Principalmente no que


respeita às comodidades, i. e. limpeza, aceio, fartura de viveres, e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

218
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

vestiaria; e à segurança dos Cidadãos. § No tratamento decente; cultura,


adorno, urbanidade dos cidadãos, no falar, no termo, na boa maneira.
(BLUTEAU, Padre Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino, 1720)

Diferentemente do sentido de Polícia, o termo ordem parece se manter igual neste


período, o qual era definido como harmonia do corpo social, desta forma, a sociedade
lusitana da segunda metade do século XVIII entendia o conflito como uma enfermidade
da sociedade que deveria ser combatida (COTTA, 2012, p. 51).
Dentro do primeiro momento da história do intendente de Polícia em que o Alvará
de 1760 se insere, podemos afirmar que o documento legal tinha dois objetivos principais,
um explícito no corpo do texto e outro implícito nas entrelinhas. O primeiro, de caráter
explícito, é a plena execução das legislações e ordenações régias que os magistrados têm
falhado em coloca-las em práticas e, ainda neste primeiro objetivo, através de um
magistrado que tivesse poder sobre todos os demais, impedir diferentes interpretações das
leis que iam contra os interesses da Coroa, o que é dito no texto introdutório do Alvará e
estabelecido como função do intendente no artigo vinte do dito Alvará. O segundo
objetivo consistia no controle de todas as pessoas que adentrassem e saíssem das
fronteiras do reino, súditos e estrangeiros, de seus afazeres quando fora do seu local de
residência, qualidade dos que alugam ou se hospedavam em imóvel alheio e um especial
controle sobre os que entrassem na Corte.
No que diz respeito ao segundo objetivo do Alvará, podemos identificar a entrada
de Portugal num processo que levou Foucault a caracterizar o século XIX como Idade do
controle social. Este tipo de Estado que vinha surgindo na Europa se deu por meio do que
se chamou de panoptismo, uma metodologia aplicada pelo governo segundo a qual é
preciso saber para poder governar. Elemento este que para nós define o que seja a Polícia
e as características de sua atuação (FOUCAULT, 2002, p. 86).
A partir da transposição dos princípios de vigilância e construção de saberes
contidos na obra de Bentham, O Panóptico90, para a relação do Estado com a sociedade,

90
O Panóptico consistiria de um edifício circular com uma torre no centro, no anel maior estariam às celas,
onde no caso de uma prisão estariam os prisioneiros, mas seu projeto serviria a diversas instituições como
escolas e hospitais. No centro desta torre haveria um vigia que através da luz que atravessava as celas podia
observar todos os internos rapidamente e que graças a um esquema de venezianas não poderia ser visto
pelos presos, assim como canos que saiam das celas para a torre permitiam ao guarda se comunicar e corrigir
infrações assim que as mesmas fossem cometidas, contudo os demais presos não conseguiriam ouviriam o
que o vigia falava se não fosse diretamente com eles. (Bentham, 2008, p. 20)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

219
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

a monarquia portuguesa objetivava exercer uma política de Estado que Foucault


denominou como panoptismo, ou seja, coletar informações sobre os indivíduos através
de um “vidro espelhado”, ou seja, observar sem indicar que se observa, sendo este “vidro
espelhado” os procedimentos burocráticos e administrativos que impõem a concessão de
dados, por sua vez a compilação e esquematização de tais informações na forma de
mapas, estatísticas, tabelas, entre outras formas, constitui a produção de saberes sobre
aqueles que se quer controlar, resultando na construção de relações de poder
(FOUCAULT, 2013, p. 186).
Entre estes mecanismos de controle um deles era o de utilizar dos próprios
indivíduos para exercer o poder do Estado. Tal mecanismo pode ser encontrado nos
artigos doze e dezessete do Alvará de 1760. Respectivamente, o primeiro artigo
determinava que vendeiros, taberneiros, estalajadeiros e todos os demais
estabelecimentos que hospedavam pessoas deveriam manter um registro diário dos nomes
dos hóspedes, seu lugar de origem, profissão, número e qualidade das pessoas em sua
companhia e assim como das pessoas que o visitaram, devendo entregar ao ministro
criminal do bairro. O segundo artigo garantia a toda pessoa particular “inspirada pelo zelo
do bem comum” direito de inquerir a posse do bilhete de entrada e permanecendo
suspeito, o particular poderia leva-lo ao respectivo magistrado, convocando, se
necessário, pessoas suficientes para conduzi-lo.
Estes dois artigos trazem um aspecto implícito interessante, de que qualquer
pessoa se tornava um agente do Estado em potencial, desta forma, uma vagabundo, um
ladrão ou qualquer outra pessoa que pensassem em cometer um ato ilícito teria sempre a
preocupação de que sua condição marginal poderia chegar aos ouvidos do Estado,
fazendo com que este método tivesse um duplo sentido, o primeiro de vigilância sobre os
delinquentes e o segundo de pressão para que tais pessoas mudassem seus
comportamentos.
Com exceção de um Aviso de 7 de Julho de 1760 no qual são estabelecidos
procedimentos mais rígidos para o controle daqueles que se dirigiam à Corte, mandando
registrar as feições do rosto, altura e qualquer outro sinal corporal que identifique a
pessoa, não identificamos nenhuma outra legislação de importância significativa nos
vinte primeiros anos de funcionamento do cargo de intendente de Polícia.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

220
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A grande transformação se iniciou em 1780, quando a rainha, Dona Maria I, três


anos após a morte do rei Dom Jose I e da demissão de Pombal, reforma o cargo de
intendente de Polícia por meio do Alvará de 1780 e nomeia Diogo Inácio de Pina Manique
para a função. Homem que ficou conhecido por sua caça aos vagabundos e criminosos,
“Aliás, ninguém melhor do que Manique encarnou esse espírito ao perseguir
obsessivamente todos os suspeitos de libertinos ou de mações” (LOUSADA, 1998, p.
227).
O Alvará de 1780 era uma forma de tentar dar uma nova vida ao cargo de
intendente, uma vez que seu objetivo ao ser criado era combater os altos níveis de
criminalidade que Lisboa vivenciava, o que foi agravado pelo terremoto de 1755. Os
entulhos decorrentes de prédios e casas destruídas, assim como das obras de reconstrução
inacabadas permaneceram obstruindo as ruas por muitos anos, tendo relatos de 1790 que
ainda descreviam ruas obstruídas com lama, terra e pedregulhos, ambiente esse que
favorecia a ação de criminosos. Tal contexto e demora para a reconstrução resultou na
multiplicação de barracas dos desabrigados pela cidade (CARREIRA, 2012, p. 351).

A acumulação das barracas gerava, inevitavelmente, promiscuidade,


sujidade e cheiros nauseabundos constituindo, por isso, uma ameaça
para a saúde pública. A permanência (por vários anos ou décadas) dos
entulhos nos espaços públicos proporcionava, por sua vez, a
acumulação de lixos domésticos e (ou) dificultava o escoamento das
águas residuais, o que contribuía para a putrefacção do(s) ar(es) e
potenciava o aparecimento de surtos pestíferos. (CARREIRA, 2012, p.
351-352)

A partir do Alvará de 1780 o intendente passava a compor o Conselho real,


diferentemente de 1760 quando o intendente deveria ser nomeado entre os membros do
Conselho. O intendente a partir deste Alvará ganhava poderes de Polícia para prender
criminosos conhecidos e ganhava poder para sentenciar os condenados, com exceção de
penas de tempo mais dilatado91, nestes casos, deveria o intendente reportar o caso por
meio da Secretaria de Negócios do Reino.

91
O Alvará de 1780 não especifica o que seja uma pena de tempo mais dilatado, tendo duas possibilidades
a partir da nossa interpretação, uma de que fossem as penas para os crimes mais graves e que portanto
deveriam ser aplicadas pelos magistrados da respectiva jurisdição ou poderiam ser penas para os crimes
com agravantes e que a situação exigia uma análise mais detida sobre qual penalidade deveria ser aplicada.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

221
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A trajetória de ascensão do intendente dentro da administração real se deu durante


vinte e um anos, resultado não só dos interesses reais, mas também da capacidade política
de Pina Manique de se comunicar com a monarquia dentro do jogo político e social
português de finais da modernidade.

A nomeação de Pina Manique para o cargo de Intendente Geral


decorreu do facto de a rainha entender que a eficácia da instituição
policial dependeria não só do alargamento das suas competências, mas
também das qualidades pessoais e profissionais de quem a dirigisse,
qualidades que eram reconhecidas naquele magistrado, rotulado como
experiente, “meticuloso e perfeccionista” (CARREIRA, 2012, p. 353).

Por meio da legislação podemos analisar como o intendente nestes anos foi
expandindo sua esfera de atuação na administração régia para além da questão jurídica.
Algumas destas legislações são bem representativas deste quadro, por exemplo, dois
editais, um de maio de 1780 e outro de novembro de 1785, em que ambos tratam sobre a
ordem para saírem da Corte todos os mendigos que não fossem naturais da cidade, de
forma a não sobrecarregar os serviço de caridade e a concessão de esmolas, o edital de
1785 vai um pouco além e interfere em ações individuais proibindo que homens, em
decorrência de seu estado de pobreza, exerçam atividades femininas para ganhar seu
sustento.
Outra norma legal e de relevância foi o poder dado pelo Decreto de maio de 1781
de suspender as devassas depois que uma confusão com os ministros criminais do Bairro
permitiu a saída de pessoas presas por conta da devassa.
Além do que foi possível encontrar nas legislações a bibliografia nos mostra
outras mudanças decorrentes da atuação de Pina Manique. Ficou a cargo do intendente a
obrigatoriedade da inspeção sanitária das prostitutas, a regulamentação da oferta de
trabalho para os indigentes, a organização das estatísticas das mortes violentas e o estudo
da criminalidade e o plano de construção de cemitérios públicos (GRAÇA. 2000, p. 33).
Sendo assim, a Intendência vai deixando cada vez mais de ser “um órgão de vigilância
complementar do aparelho de justiça.” (LOUSADA, 1998, p. 227) para se tornar
responsável por diversas questões como a iluminação pública, abastecimento da cidade,
segurança, Justiça, entre outras coisas.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

222
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Estas e tantas outras mudanças em relação ao intendente foram importantes,


contudo as duas de maior relevância se deram no ano de 1801. A primeira ocorreu em
novembro, por meio do decreto de 18 de novembro de 1801 o intendente ganhou uma
Secretaria própria e, por conseguinte alçando o lugar de Secretário de Estado, não mais
se reportando ao Secretário de Negócios do Reino. A importância do chefe desta nova
Secretaria se demonstra também pelo seu salário, passando de 1:600$000 reis por ano,
para 8:400$000 reis.
A segunda grande mudança era uma reivindicação do intendente de Polícia desde
1793, a criação de uma força policial ostensiva, para o serviço da Intendência, a Guarda
Real de Polícia da Corte, substituindo os quadrilheiros civis e os comissários de Polícia
(LOUSADA, 1998, p. 228).
Por influência da experiência francesa, em dezembro de 1801 o regente Dom João
VI mandou criar uma força policial armada, permanente, uniformizada e organizada
militarmente, recebendo suas ordens da Intendência e tendo sua disciplina supervisionada
pelo General de Armas da Província. O decreto de 10 de dezembro de 1801 estabelecia
que:

Sendo muito conveniente, não só para a segurança, e tranquilidade da


Cidade de Lisboa, Capital dos meus vastos Domínios, mas para que na
mesma a ordem da Polícia receba uma nova consolidação, que a
imitação das outras grandes capitais se estabeleça um Corpo
permanente, o qual vigie na conservação da ordem, e tranquilidade
pública, e que obedeça, no que toca à disciplina Militar, ao General das
Armas da Província, e no que toca ao exercício das suas funções, ao
Intendente Geral da Polícia: Hei por bem criar uma Guarda Real da
Polícia de Lisboa, de pé, e de cavalo, para vigiar na Cidade de Lisboa
[...]

Se a Guarda Real de Polícia foi criada por inspiração da experiência francesa, os


princípios que norteariam suas ações eram opostos, segundo a Declaração do Direitos do
Homem e do Cidadão em seu “Art. 12º. A garantia dos direitos do homem e do cidadão
necessita de uma força pública. Esta força é, pois, instituída para fruição por todos, e não
para utilidade particular daqueles a quem é confiada.” No caso português esta nova força
policial foi concebida para garantir a centralidade decisória da monarquia e perseguir os
criminosos.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

223
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os soldados e oficiais Inferiores que comporiam a Guarda Real seriam


selecionados entre os membros do Exército, cabendo aos coronéis de cada Companhia
selecionar os homens de melhor morigeração e conduta de até trinta anos para fazer parte
desta força policial ostensiva. A exigência de serem homens de até trinta anos acreditamos
ser para evitar uma constante rotatividade dos quadros policiais uma vez que a expectativa
de vida de um homem europeu na época era, segundo Zanden (2014), de 36 anos.
Por mais que tenha um sentido óbvio por de trás da exigência de serem militares
de boa morigeração e conduta, outro mais contextual deve ser destacado. Uma vez que
esta força policial além de cumprir mandado de prisão teria como atribuição patrulhar as
ruas de Lisboa permanentemente, seus soldados e Inferiores deveriam demonstrar um
domínio mínimo das formas de tratamento respectivas a cada estrato social. A harmonia
do corpo social, que definia o sentido de ordem, dependia do Estado garantir os
respectivos privilégios e formas de tratamento que cada estrato demandava. Desta forma,
sendo a Guarda Real de Polícia uma instituição estatal, a ignorância de tais elementos
pelos policiais não seria algo tolerável.
A Guarda Real de Polícia se inseriu como mais um instrumento da monarquia
portuguesa para exercer uma política de governo de estilo Panóptico, como definimos
anteriormente. Além de que os homens da Guarda Real poderiam fortalecer a aplicação
das normas jurídicas do Alvará de 1760 e das demais legislações. Sua forma de agir
acrescentava mais uma peça nesta política, pois se sua patrulha deveria ser constante, o
decreto de 10 de dezembro de 1801 determinava que os soldados de Infantaria e de
Cavalaria deveriam se manter em silêncio e escondidas para ouvir quaisquer planos de
ações criminosas e assim poder surpreender os mesmos.
A Guarda Real de Polícia rapidamente observou um expressivo crescimento de
seu contingente. Quando esta foi criada, a mesma estava autorizada a possuir um número
total de 632 homens, com oito Companhias de Infantaria, quatro de Cavalaria e o Estado
Maior. No ano seguinte, por meio do decreto de 26 de maio de 1802, este número passava
para 801. Com o decreto de 12 de outubro de 1805a criação de duas novas companhias
de Infantaria e a aumento de praças em cada uma delas, assim como nas de cavalaria, esse
número pulou para 1241.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

224
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Dentre as mudanças que observamos na Guarda Real de Polícia a última delas que
vale destaque é o aviso dentro do Repertório de ordens-do-dia do Exército no qual a
Guarda Real de Polícia passava a ser parte do Exército, deixando de ser uma força policial
organizada militarmente para se tornarem tropas de primeira linha. (COTTA, 2012, p. 64)
Não sabemos definir a razão desta alteração, contudo, acreditamos que uma
possível resposta para esse caso seja o clima de instabilidade político militar vivenciado
na Europa com a expansão napoleônica, pois, se ocorresse uma invasão ao reino e um
risco real do avanço das tropas inimigas na Corte, a cidade teria um contingente
militarmente treinado para auxiliar na defesa e se necessário ganhar tempo para uma
evacuação da família real.
Em 1807 com a invasão francesa a Portugal o processo de lapidação desta
organização policial lusitana termina, fazendo com que no ano seguinte ao estabelecer a
Corte no Rio de Janeiro o príncipe regente, Dom João VI, copiasse esta estrutura na
América Portuguesa e aqui ela passou a se desenvolver de acordo com as características
contextuais respectivas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

França. Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão. Biblioteca Virtual de Direitos


Humanos da USP. Disponível em: <
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-
cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-
1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html > Acesso em:
27/06/2017.

Portugal. Alvará de 1760. Cria o Lugar de Intendente Geral de Polícia da Corte de Reino
e estabelece suas responsabilidades. Coleção da Legislação Portuguesa 1750 a 1762,
Lisboa. Disponível em: < http://purl.pt/17387/4/1754614_PDF/1754614_PDF_24-C-
R0150/1754614_0000_1-b_t24-C-R0150.pdf > Acesso em: 10/08/2015.

Portugal. Alvará de 15 de janeiro de 1780. Amplia os poderes e a jurisdição do Intendente


geral de polícia. Coleção da Legislação Portuguesa 1775 a 1790, Lisboa. Disponível
em: <
http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=109&id_normas=33
987&accao=ver > Acesso em: 30/11/2015.

Portugal. Edital de 17 de maio de 1780. Trata sobre a saída dos mendigos portugueses e
estrangeiros da Corte e manda que retornem para seus locais de origem. Coleção da
Legislação Portuguesa Suplemento à Legislação de 1763 a 1790, Lisboa. Disponível

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

225
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

em: <
http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/index.php?menu=consulta&id_partes=108&id_n
ormas=33321&accao=ver > Acesso em: 25/06/2017.

Portugal. Decreto de 4 de maio de 1781. Da ao intendente de Polícia na Corte o poder por


meio dos ministros dos Bairros de retirar as Devassas. Coleção da Legislação
Portuguesa Suplemento à Legislação de 1763 a 1790, Lisboa. Disponível em: <
http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/index.php?menu=consulta&id_partes=109&id_n
ormas=34051&accao=ver > Acesso em: 25/06/2017.

Portugal. Edital de 8 de novembro de 1785. Trata sobre os mendigos e da proibição do


exercício de ofícios de natureza feminina. Coleção da Legislação Portuguesa
Suplemento à Legislação de 1763 a 1790, Lisboa. Disponível em: <
http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/index.php?menu=consulta&id_partes=109&acca
o=ver&pagina=412 > Acesso em: 25/06/2017.

Portugal. Decreto de 18 de novembro de 1801. Cria a Secretaria de Polícia da Corte e do


Reino. Coleção da Legislação Portuguesa, Legislação de 1791 a 1801, Lisboa.
Disponível em: <
http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/index.php?menu=consulta&id_partes=110&id_n
ormas=35713&accao=ver > Acesso em: 25/06/2017.

Portugal. Decreto de 10 de dezembro de 1801. Cria a Guarda Real de Polícia de Lisboa e


lhe da regulamento. Coleção da Legislação Portuguesa 1791 a 1801, Lisboa Disponível
em: <
http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=110&accao=ver&pa
gina=796 > Acesso em: 01/12/2015.

Portugal. Decreto de 26 de maio de 1802. Amplia o quadro de praças da Guarda Real de


Polícia de Lisboa. Legislação Régia. Disponível em: <
http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/11/24/p106 > Acesso em: 30/06/2017.

Portugal. Decreto de 12 de outubro de 1805. Cria mais duas companhias de Infantaria


para a Guarda Real de Polícia da Corte de Lisboa. Legislação Régia. Disponível em: <
http://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/11/24/p411 > Acesso em: 30/06/2017.

BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Belo Horizonte: autêntica, 2008.

BLUTEAU, Padre Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino. 1720.

BLUTEAU, Padre Raphael; SILVA, Antonio de Moraes. Vocabulário Portuguez &


Latino. 1789.

CARREIRA, Adélia Maria Caldas. Lisboa de 1731 a 1833: Da desordem à ordem no


espaço urbano. 2012. Lisboa. Universidade Nova Lisboa. Tese de doutorado.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

226
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

COTTA, Francis Albert. OLHARES SOBRE A POLÍCIA NO BRASIL: A


CONSTRUÇÃO DA ORDEM IMPERIAL NUMA SOCIEDADE MESTIÇA.
Uberlândia: Fênix – Revista de História e Estudos Culturais vol. 6 n.2 06/2009.

COTTA, Francis Albert. Matrizes do sistema policial brasileiro. Belo Horizonte:


Crisálida, 2012.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2013.

FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2002.

FRANCO, Sandra Aparecida Pires. Reformas Pombalinas e o Iluminismo em


Portugal. Londrina: Fênix - Revista de História e Estudos Culturais Vol. 4 No 4 2007.

GRAÇA, Luis. Saúde e terror no antigo regime. Disponível em: <


http://www.ensp.unl.pt/luis.graca/textos33.html > Acesso em: 30/11/2015 .

LOUSADA, Maria Alexandre. A CIDADE VIGIADA: a Polícia e a Cidade de Lisboa


no início do século XIX. Coimbra. Cadernos de Geografia. No 17. 1998. Disponível em:
<
http://www.uc.pt/fluc/depgeo/Cadernos_Geografia/Numeros_publicados/CadGeo17/arti
go35 > Acesso em: 30/11/2015.

SUBTIL, José. O DIREITO DE POLÍCIA NAS VÉSPERAS DO ESTADO LIBERAL


EM PORTUGAL. In: FONSECA. Ricardo Marcelo (org.). AS FORMAS DO DIREITO
ORDEM, RAZÃO E DECISÃO. Curitiba: Juruá, 2013.

ZANDEN, Jan Luiten van (org.). How Was Life?: Global well-being since 1820. OECD
Publishing, 2014. Disponível em: < https://www.keepeek.com//Digital-Asset-
Management/oecd/economics/how-was-life_9789264214262-en#page4 > Acesso em:
10/07/2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

227
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A criminalidade carioca nas reflexões de Elysio de Carvalho

ANDRÉ LUÍS DE ALMEIDA PATRASSO


Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde – FIOCRUZ
Bolsista de Doutorado CAPES

Introdução

Os problemas relativos ao aumento da criminalidade nos centros urbanos e a


necessidade de conhecimento sobre o comportamento desviante – aspectos observados
enquanto formas de rompimento do contrato social – suscitaram o estabelecimento de
algumas controvérsias no campo do direito e do trabalho policial. Por um lado, havia
aqueles pensadores que concentravam suas atenções na constante busca por traços
criminosos e potencialmente transgressores na constituição orgânica do ser humano, ou
seja, compartilhavam da ideia de que certas pessoas poderiam estar mais propensas do
que outras a cometerem determinados atos delituosos. Por outro lado, alguns intelectuais
do crime buscavam ampliar sua análise e, por isso, além de características individuais,
consideravam as influências perniciosas do meio ambiente aspectos fundamentais para o
potencial desenvolvimento de impulsos criminosos. O surgimento da criminologia, isto
é, o crime analisado sob a ótica do conhecimento científico, está associado a essas
discussões, que visavam elaborar teorias e empreender políticas de prevenção e combate
ao crime, de modo que as múltiplas manifestações da atividade antissocial pudessem ser
identificadas, contidas e depuradas cientificamente.
Em meio a um ambiente de inovações e controvérsias, as reflexões sobre o crime
e o criminoso foram se constituindo gradualmente em variados campos de discussão
intelectual. Entretanto, esses debates – que se tornavam cada vez mais difundidos entre
juristas, médicos e estadistas – acabavam excedendo à delimitação lógica de seus objetos
centrais, possibilitando revelar elementos e recursos que poderiam ser utilizados para a
reconstrução de valores e ideias sobre questões mais amplas, como, por exemplo, os
ideais de sociedade e nação. Desse modo, a atividade delituosa passava a ser analisada e
caracterizada como aspecto indissociável da realidade social, relacionando-se à questão
espacial e a novos paradigmas científicos (CANCELLI, 2001, pp. 24-31). Na cidade do
Rio de Janeiro, durante as duas primeiras décadas do século XX, a constatação da

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

228
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

necessidade de uma polícia científica em oposição a uma polícia predominantemente


repressiva está associada à possibilidade de se pensar a sociedade brasileira e a nação
republicana através de diferentes perspectivas, dentre elas, a criminalidade, ainda que,
ideologicamente, o pensamento policial carioca fosse marcado pela pluralidade e
heterogeneidade na adoção de teorias criminológicas e no emprego de técnicas de
investigação criminal e padrões de policiamento urbano (NEDER, 1997, pp. 114-115).
Nessas circunstâncias, é fundamental destacar o estabelecimento de relações de
correspondência entre as discussões de temática essencialmente criminais e as questões
de natureza político-social mais amplas ocorridas no interior do espaço de atuação da
instituição policial do Rio de Janeiro no início do século XX. A proclamação do regime
republicano e as transformações da sociedade carioca favoreceram o desenvolvimento de
novas estratégias de prevenção e combate ao crime, o que acabou culminando com o
processo de progressivas reformas policiais na capital federal. Sendo assim, é possível
perceber que, junto ao reconhecimento da necessidade de formação profissional de
agentes de segurança pública e funcionários técnicos da instituição policial, o trabalho da
polícia carioca deveria propor-se a contribuir, através de sua missão civilizadora, com as
demandas por progresso e modernização do país (CARVALHO, 1913, pp. 2-3). Dessa
forma, Edmond Locard, diretor do Laboratório de Polícia de Lyon, na França, destacou,
em 1913, que a iniciativa da polícia do Rio de Janeiro em criar uma escola de formação
profissional para seus integrantes seria exemplar de modo que os elementos necessários
à identificação de indivíduos que não se encontravam comprometidos com o
desenvolvimento da sociedade brasileira pudessem ser fornecidos de maneira eficaz
(LOCARD, 1913, p. 7).
A busca pela compreensão da natureza criminosa ou contraventora de alguns
indivíduos, a fim de que novas direções políticas pudessem ser tomadas no sentido de se
estruturar uma sociedade mais segura, era cada vez mais recorrente nas pautas de
discussão nos meios policial e jurídico. Todavia, de acordo com Sérgio Carrara, a partir
de meados do século XIX, a medicina passou a inserir-se de maneira incisiva no campo
do direito através da participação de médicos em debates antes realizados apenas por
juristas, o que pôde contribuir para a possibilidade de deslocamento do foco de analise
das atividades antissociais enquanto fatos – delitos, crimes e contravenções – para colocá-

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

229
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

lo com maior ênfase sobre aqueles indivíduos considerados transgressores. O


desenvolvimento de saberes médicos a respeito dos delinquentes acabou culminando com
o surgimento de novas reflexões, teorias e instituições que visavam à identificação e –
caso fosse possível – a correção e regeneração desses indivíduos. Dessa maneira, a
procura persistente por traços individuais ou coletivos que pudessem indicar certas
inclinações à atividade criminosa, ainda que fossem ocultas, foi tornando-se uma prática
cada vez mais especializada e relevante para os trabalhos da polícia e da justiça
(CARRARA, 1990, pp. 84-85).

O surgimento da criminologia: o crime como objeto de ciências

Os principais objetivos da criminologia centravam-se na produção de imagens e


representações acerca da transgressão e na definição dos aspectos intoleráveis à realidade
de determinadas organizações sociais. Desse modo, com olhares mais voltados ao
indivíduo, o crime passava a ser analisado por alguns intelectuais a partir de outras
dimensões, tendo como referência diversos estudos e teorias que procuraram, ao longo
do século XIX, compreender os elementos capazes de constituir o comportamento
desviante. Com isso, de maneira geral, pode-se dizer que o surgimento da criminologia
está associado à possibilidade de sistematizar cientificamente os aspectos inerentes à
prática das atividades antissociais, como, por exemplo, delitos, contravenções e crimes
(DARMON, 1991, pp. 39-41). Nessas circunstâncias, algumas discussões puderam ser
mais bem articuladas e, como aponta Sérgio Carrara, a questão da consciência acabava
sendo o principal ponto de encontro entre as distintas correntes do estudo criminológico,
pois, acreditava-se que somente a compreensão da consciência – ou até mesmo a
verificação de sua ausência – seria capaz de orientar os intelectuais do crime no processo
de definição das medidas a serem tomadas em relação a determinados assuntos
institucionais, como é o caso da delimitação da responsabilidade criminal dos indivíduos
e da elaboração de estratégias de defesa social (CARRARA, 1990, pp. 84-85).
Uma das principais referências ao processo de organização e consolidação do
pensamento criminológico foi concebida em 1876, com a publicação de O homem
criminoso, de Cesare Lombroso. O médico italiano Cesare Lombroso, desde muito cedo,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

230
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

teve sua trajetória acadêmica e profissional influenciada por diversas teorias, dentre elas,
o materialismo, o positivismo e o evolucionismo e, nessa conjuntura, através de seus
trabalhos, pretendia elaborar um sistema de controle científico da criminalidade. De
acordo com Marcos César Alvarez, em suas análises criminológicas, Lombroso
manifestava-se como defensor da ideia de que o comportamento humano seria
determinado biologicamente e, desse modo, com base em grande volume de dados
antropométricos, acabou construindo uma teoria de natureza organicista e evolucionista,
em que criminosos e contraventores apareciam como tipos atávicos, ou seja, indivíduos
que obrigatoriamente reproduziriam suas propensões à atividade antissocial através de
características físicas e psicológicas. Dessa maneira, segundo Lombroso, somente por
meio do estudo acerca dessas características peculiares inscritas na mente e no corpo dos
indivíduos – valendo-se principalmente de estigmas anatômicos – seria possível a
médicos, juristas e à polícia a possibilidade de identificação daquelas pessoas que
hereditariamente estariam destinadas à prática de atividades delituosas e desviantes
(ALVAREZ, 2002, pp. 678-679).
A teoria de convergência biológica defendida pela antropologia criminal de
Lombroso nas últimas décadas do século XIX foi capaz de reunir grande quantidade de
adeptos na Itália, fazendo com que seus conceitos se tornassem conhecidos sob a
denominação de Escola Italiana. Entretanto, o objetivo de se constituir um sistema
científico de controle criminal não se desenvolvia de modo unilateral e, dessa forma,
outros pensadores, através de diferentes métodos e procedimentos, buscavam elaborar
novas maneiras de se compreender a natureza criminosa do indivíduo. Na Europa, embora
os intelectuais do crime apresentassem, de modo geral, preocupações bastante similares,
alguns embates teóricos acabaram surgindo e as ideias formuladas pela Escola Italiana
tornaram-se alvo de intensas críticas por meio de publicações em periódicos
especializados e debates em congressos temáticos. De acordo com Ruth Harris, o
desenvolvimento de novas correntes criminológicas no continente europeu representava
a possibilidade de elaboração de teorias alternativas às ideias biológicas de Lombroso,
que, já a partir da década de 1880, começavam a ser criticadas por alguns intelectuais do
crime, que as compreendiam como ideias deterministas e reducionistas (HARRIS, 1993,
pp. 94-96).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

231
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Uma das principais correntes do pensamento criminológico que se tornou


conhecida na Europa por criticar determinados conceitos da Escola Italiana, mas,
também por propor novas orientações ao enquadramento científico do indivíduo
criminoso foi concebida, a partir de meados da década de 1880, por professores do curso
de medicina legal da Faculdade de Lyon, na França, sendo seu principal representante
Alexandre Lacassagne. Através da atuação de seus divulgadores, a Escola Francesa,
como ficou conhecida, acabou desenvolvendo uma série de críticas à perspectiva
puramente biológica de Lombroso, concentrando suas percepções sobre a atividade
antissocial em argumentações mais voltadas à relação do indivíduo criminoso com o
ambiente social. De acordo com Pierre Darmon, Lacassagne posicionava-se contra a
prática do reconhecimento do indivíduo criminoso apenas por meio de suas medidas
antropométricas, pois, acreditava que os resultados dos procedimentos estipulados por
Lombroso em sua teoria não passavam de mera especulação, já que muitos dos caracteres
supostamente responsáveis pela determinação da propensão à atividade criminosa
também poderiam ser encontrados em pessoas honestas (DARMON, 1991, pp. 89-92).
O desenvolvimento de uma sociologia criminal na França fez com que muitos
intelectuais do crime voltassem suas atenções ao meio social, uma vez que consideravam
o espaço como potencial unidade de formação de indivíduos antissociais. De acordo com
Ruth Harris, a análise da criminalidade através da orientação ambientalista tornou-se
parte também de uma retórica medicalizada – marcada pelo entusiasmo da bacteriologia
entre fins do século XIX e o início do século XX –, que relacionava a criminologia e a
higiene pública e associava a ocorrência de patologias biológicas a questões da dinâmica
social, sobretudo urbanas. A incorporação de expressões da microbiologia às discussões
de natureza criminológica procurava caracterizar o criminoso em meio às condições de
desenvolvimento dos micróbios causadores de doenças e, desse modo, o indivíduo
transgressor constituiria uma espécie de “hospedeiro” do micróbio do crime, capaz de
prejudicar o funcionamento do corpo social e até mesmo de contaminar outros indivíduos
com suas práticas. Através das metáforas da doença e do micróbio, pensadores da Escola
Francesa procuravam redefinir ações políticas que geralmente se concentravam com
maior atenção na figura do infrator, distanciando-se do ambiente que o produzia e,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

232
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

portanto, reconhecendo a ausência de projetos de reorganização social e urbana


(HARRIS, 1993, pp. 110-115).
As iniciativas de elaboração de métodos objetivos – baseados em procedimentos
racionais e científicos – a fim de que a criminalidade pudesse ser avaliada, caracterizada
e combatida teve como resultado o surgimento da criminologia. Inicialmente, as ideias de
Cesare Lombroso procuravam explicar a atividade criminosa através de aspectos
relacionados à constituição biológica e psicológica do indivíduo, atribuindo a
características físicas e mentais os principais estigmas de sua propensão às práticas
antissociais. Entretanto, alguns pensadores franceses, sobretudo médicos, afirmavam que
a origem da atividade transgressora não se encontrava apenas no indivíduo delinquente,
mas também na relação que comumente se constituía entre infratores e o ambiente que os
formava, ou seja, era necessário ressaltar a influência que o meio social poderia exercer
junto ao desenvolvimento da criminalidade. O estabelecimento de escolas ou correntes
de pensamento criminológico tornou-se evidente através da criação de periódicos
científicos e da realização de congressos temáticos, o que proporcionou grande volume
de trocas e resistências, fazendo da criminologia um campo de conhecimento marcado
pela heterogeneidade e interdisciplinaridade, elementos que se manifestariam no
desenvolvimento de suas ideias no Brasil e, mais especificamente, no Rio de Janeiro.

História natural dos malfeitores: Elysio de Carvalho e a criminalidade carioca

A introdução de conceitos da criminologia pretendia reproduzir no Brasil o


gradativo processo de constituição de saberes capazes de identificar e classificar os
principais aspectos envolvidos na gênese da atividade antissocial e criminosa. De acordo
com Marcos César Alvarez, a recepção de teorias criminológicas no país articulou-se
primeiramente em torno de juristas, mais especificamente entre professores da Faculdade
de Direito do Recife. Em fins do século XIX, os juristas João Vieira de Araújo e Tobias
Barreto – ambos integrantes da Faculdade de Direito do Recife – publicaram alguns
trabalhos enfatizando que as questões inerentes à criminalidade deveriam ser analisadas
a partir de elementos filosóficos mais modernos, tendo como referência as ideias advindas
da criminologia europeia, que buscavam identificar e caracterizar as práticas

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

233
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

transgressoras através de técnicas e procedimentos científicos. Ao longo das primeiras


décadas do regime republicano, além de juristas, alguns médicos, como Nina Rodrigues
e Afranio Peixoto, também procuraram debater e difundir novas abordagens sobre a
criminalidade brasileira, o que não se dava de modo rudimentar ou através de simples
importação de ideias. A apropriação de ideias diversificadas por intelectuais brasileiros
manifestava-se, por exemplo, através de associações entre diferentes correntes do
pensamento criminológico e também da justaposição de autores e teorias (ALVAREZ,
2002, pp. 683-687).
A recepção de teorias criminológicas no Brasil, marcada pela diversidade
intelectual, mas, também pela conciliação de ideias, acabou resultando no
desenvolvimento de complexas reflexões acerca do crime e do criminoso e, dessa
maneira, tanto aspectos biológicos como também sociais eram levados em consideração
nos diversos estudos e trabalhos elaborados por juristas, médicos e integrantes da
instituição policial. No Rio de Janeiro, por exemplo, as profundas transformações sociais
e demográficas, ocorridas na cidade entre fins do século XIX e o início do século XX,
puderam contribuir efetivamente para o estabelecimento de relações mais diretas entre a
atividade criminal e o ambiente urbano carioca, fazendo com que muitos intelectuais do
crime procurassem desenvolver ideias e teorias da criminologia relativas à realidade
social da então capital do país (CANCELLI, 2001, pp. 33-34). Nessas circunstâncias,
destaca-se a participação de Elysio de Carvalho, diretor do Gabinete de Identificação e
de Estatística entre os anos de 1911 e 1915 e também da – por ele idealizada – Escola de
Polícia do Rio de Janeiro, inaugurada em 1912. De acordo com Carvalho, as sociedades
deveriam procurar conhecer melhor seus criminosos e as causas determinantes de sua
criminalidade, de modo que fosse possível à instituição policial corrigir, atenuar e
diminuir a produção de delitos e demais infrações nos limites estabelecidos por cada um
dos fatores de sua deflagração, pois, segundo ele, somente o conhecimento desses
aspectos poderia constituir terreno sólido para a instituição das bases necessárias à prática
da defesa social (CARVALHO, 1912, pp. 5-6).
Com a criação da Escola de Polícia do Rio de Janeiro, Elysio de Carvalho buscava
prover a instituição policial carioca de um contato mais intenso com as diversas reflexões
existentes sobre a natureza criminosa e antissocial do indivíduo e, através de artigos

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

234
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

publicados no Boletim Policial ou até mesmo em livros, divulgava suas ideias e buscava
frequentemente se comunicar com pensadores e especialistas estrangeiros. De acordo
com Carvalho, as informações oriundas da criminologia, sendo debatidas entre
integrantes da polícia, juristas e médicos, seriam capazes de elevar a análise dos delitos e
das penas de um patamar de mera especulação ao estabelecimento de noções
verdadeiramente científicas, positivas e práticas. Diante desse quadro, o estudo científico
da transgressão e da delinquência não permitiria considerar o crime uma entidade jurídica
abstrata e, por isso, as expressões infringentes e violadoras de criminosos e contraventores
deveriam ser encaradas de maneira conjugada, como efeitos de patologia individual em
suas formas atávicas e de patologia social em suas formas evolutivas (CARVALHO,
1912, pp. 6-7).
Uma das principais referências utilizadas por Elysio de Carvalho – a fim de
delimitar metodologicamente suas ideias e doutrinas – é a obra Sociologia Criminal, do
jurista italiano Enrico Ferri, a qual considerava admirável devido à sua capacidade em
apresentar concepções modernas da criminologia e também pelo emprego de
fundamentos estatísticos na caracterização de elementos da etiologia criminal.
Representante da chamada Escola Italiana, Enrico Ferri tornou-se conhecido por
defender os preceitos biológicos de Cesare Lombroso, considerando, todavia, que o
processo de origem da atividade delituosa seria, com efeito, resultado de uma lógica
bastante complexa, tornando-se evidente apenas junto às condições do meio e da vida
social. Ao longo de suas publicações, Elysio de Carvalho revelava-se profundamente
atento às discussões empreendidas por intelectuais brasileiros e estrangeiros e, partir de
então, procurava conciliar em suas análises diferentes correntes do pensamento
criminológico, argumentando que o caráter unilateral de determinados pensadores
poderia prejudicar o desenvolvimento de algumas reflexões mais amplas acerca da
evolução da criminalidade (CARVALHO, 1912, pp. 7-9).
Em seu trabalho intitulado A fisionomia da criminalidade carioca, de 1913, Elysio
de Carvalho concluía que a atividade criminosa no Rio de Janeiro crescia
vertiginosamente em suas mais variadas formas e aparências. Ademais, o diretor da
Escola de Polícia procurava contextualizar as especificidades da criminalidade carioca e,
para isso, lançava mão de argumentos referentes às transformações econômico-sociais

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

235
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pelas quais atravessava a capital do país naquele período. Desse modo, afirmava, por
exemplo, que o Rio de Janeiro, como qualquer outra grande cidade aberta à concorrência
universal de negócios e pessoas, costumava receber, através de suas correntes
imigratórias, grande quantidade de delinquentes egressos de prisões de outras localidades
e reincidentes. Assim, considerava a delinquência estrangeira um dos aspectos
fundamentais para o aumento da criminalidade no Rio de Janeiro, considerando a
imigração com destino ao Brasil fenômeno de “péssima qualidade”, pois, em sua maioria,
os estrangeiros que desembarcavam no porto da cidade seriam provenientes de países cuja
criminalidade seria essencialmente violenta, bárbara e atávica, como, por exemplo,
Portugal, Itália e Espanha. Além disso, atribuía, sem maiores explicações, às condições
sociológicas da capital e à influência do alcoolismo as amplas condições de desequilíbrio
nos coeficientes criminais da cidade do Rio de Janeiro (CARVALHO, 1913, p. 109).
Para Elysio de Carvalho, a compreensão do mundo dos malfeitores estaria
intimamente relacionada às transformações responsáveis por modificar radicalmente o
modo de vida da humanidade, o que acabaria levando o mundo aos mais novos limiares
da modernidade. Em seus apontamentos referentes à História natural dos malfeitores –
uma das disciplinas do currículo da Escola de Polícia –, Elysio de Carvalho considerava
que as sucessivas descobertas científicas, a rápida difusão de ideias e conhecimentos, a
dinâmica do progresso industrial e as facilidades alcançadas por meio de avanços nos
âmbitos da comunicação e do transporte talvez pudessem representar ao mundo as mais
importantes obras do progresso humano e institucional daquela conjuntura específica.
Entretanto, de acordo com suas ideias, as obras da modernidade poderiam
indiferentemente favorecer o bem e também o mal, uma vez que a ciência, apesar de suas
frequentes conquistas e inúmeras aplicações visando melhorar as condições de vida das
pessoas, poderia também disponibilizar suas ferramentas e recursos para que indivíduos
transgressores as utilizassem a fim de aperfeiçoarem suas técnicas e procedimentos
criminosos. Sendo assim, em razão desse contexto marcado pela ampla possibilidade de
recursos, seria fundamental à instituição policial carioca a capacidade de aparelhar-se, da
mesma forma, com mecanismos de atuação modernos e científicos, constituindo-se
igualmente sábia, precisa e perspicaz (CARVALHO, 1913, pp. 142-143).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

236
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O conhecimento do mundo dos malfeitores e dos modos de trabalho das diferentes


classes de criminosos constituiria, de acordo com Elysio de Carvalho, um dos mais
importantes estudos a se empreender, não apenas para a polícia, mas para toda a sociedade
civil, que deveria atentar-se cada vez mais para seus artifícios e mecanismos de atuação
criminal. Nessas circunstâncias, é fundamental destacar que uma das principais diretrizes
de estudos utilizadas pelo diretor da Escola de Polícia do Rio de Janeiro em seu curso era
a constante busca pela especialização do criminoso através do exercício de associações,
que poderiam articular tanto elementos individuais como também sociais. Em relação à
ocorrência de roubos e furtos na cidade do Rio de Janeiro, Elysio de Carvalho procurou
esclarecer em seus apontamentos que para certos indivíduos chegarem à posição de
ladrões especialistas seria necessário que possuíssem ou desenvolvessem algumas
características específicas, como, por exemplo, frieza, coragem, agilidade e destreza com
as mãos, sendo que, ao mesmo tempo, deveriam portar uma estrutura congênita
apropriada, que contasse com dedos longos e finos. Para que pudesse explicitar suas
ideias com maior clareza, apresentou o caso de Bexiga Fraga, por ele chamado de “célebre
gatuno” e que havia sido preso em flagrante enquanto tentava furtar um relógio em meio
a uma viagem de bonde. Já na delegacia, após ser detido, Bexiga Fraga teria se
prontificado a demonstrar ao delegado em que consistia seu método de subtração de
objetos, prevenindo a todos que, em pouco instantes, iria roubá-lo propositalmente. De
acordo com o relato, passados apenas cinco minutos, o delegado procurava conferir a
hora, porém não encontrava seu relógio, que havia sido “batido” por Fraga sem que
ninguém pudesse perceber seus movimentos (CARVALHO, 1913, pp. 147-148).
A tese defendida por Elysio de Carvalho em sua disciplina História natural dos
malfeitores baseava-se na ideia de que a criminalidade evoluía conforme o progresso e a
modernização das sociedades, ou seja, diante desse quadro, as práticas transgressoras se
transformariam, tornando-se menos violentas e mais inteligentes. Nesse sentido, seria
fundamental à instituição policial a compreensão dos mais variados aspectos referentes
ao mundo dos criminosos, sendo necessário conhecer seus métodos de trabalho e suas
especialidades, mas, também suas características mais peculiares, como, por exemplo,
seus termos e suas marcas. Em seus apontamentos, Elysio de Carvalho procurou
demonstrar que a utilização de gírias específicas convertia-se, para os criminosos, em

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

237
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

armas de defesa por associação, visando principalmente não serem compreendidos pelas
autoridades quando fossem detidos. Sendo assim, seguem-se alguns exemplos de gírias
utilizadas por criminosos no Rio de Janeiro no início do século XX: afanar, que queria
dizer roubar ou furtar, berrante significava revólver, chafra seria nome dado ao policial
de rua e majorengo quando se referiam ao delegado de polícia. Outro aspecto relevante
para os estudos realizados pelo diretor da Escola de Polícia era o uso da tatuagem por
criminosos, vagabundos e prostitutas, o que, segundo ele, não se tratava de uma prática
com relação direta à criminalidade, seria, porém algo resultante de um determinado meio
que, segundo sua exposição, poderia representar autênticos sinais degenerativos
(CARVALHO, 1913, pp. 152-155).
Para fins de conclusão, é importante destacar que o fluxo de ideias e teorias que
se desenvolviam no Brasil na passagem do século XIX para o século XX pôde
proporcionar aos intelectuais brasileiros o estabelecimento de novas reflexões, como, por
exemplo, as discussões acerca da natureza antissocial e criminosa do indivíduo. Esses
debates, que podiam ocorrer em ambientes profissionais distintos – entre médicos, juristas
e integrantes da instituição policial –, tomavam como pano de fundo os conceitos
provenientes da criminologia europeia. Elysio de Carvalho, durante seu período como
funcionário da polícia carioca, procurou articular essas discussões, tendo como campo a
realidade social da capital do país e, em vista disso, foi responsável pela produção de
inúmeros artigos e livros sobre a temática criminal. Nessas circunstâncias, em seu curso
de criminalística pela Escola de Polícia, Elysio de Carvalho, entre outras matérias,
considerava a História natural dos malfeitores uma das disciplinas mais importantes do
currículo de formação dos agentes de segurança pública da polícia do Rio de Janeiro
devido à possibilidade de reflexão sobre argumentos e teorias criminológicas
heterogêneas, permitindo a associação de elementos individuais e sociais à gênese do
crime, aspecto este que marcou decisivamente sua atuação como intelectual.

Documentação

CARVALHO, Elysio. A Escola de Polícia do Rio de Janeiro. Boletim Policial, Rio de


Janeiro, ano VI, ns. 1, 2 e 3, 1912.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

238
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CARVALHO, Elysio. História natural dos malfeitores – notas e crônicas. Boletim


Policial, Rio de Janeiro, ano VII, n. 4, 1913.

CARVALHO, Elysio. A fisionomia da criminalidade carioca. Boletim Policial, Rio de


Janeiro, ano VII, n. 5, 1913.

CARVALHO, Elysio. História natural dos malfeitores – apontamentos. Boletim


Policial, Rio de Janeiro, ano VII, n. 6, 1913.

CARVALHO, Elysio. A polícia científica no Brasil – o serviço de identificação do Rio


de Janeiro. Boletim Policial, Rio de Janeiro, ano VII, n. 6, 1913.

CARVALHO, Elysio. A delinquência dos estrangeiros. Boletim Policial, Rio de Janeiro,


ano VII, n. 7, 1913.

LOCARD, Edmond. A Escola de Polícia do Rio de Janeiro (com prefácio do professor


Elysio de Carvalho). Biblioteca do “Boletim Policial”, Imprensa Nacional, 1913.

Referências bibliográficas

ALVAREZ, Marcos César. A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os


desiguais. Dados, Rio de Janeiro, v. 45, n. 4, 2002, pp. 677-704.

BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 19
CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei (1889-1930). Brasília:
Humanidades, 2001.

CARRARA, Sérgio. A sciência e doutrina da identificação no Brasil: ou do controle do


eu no templo da técnica. Revista Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, 1990,
pp. 82-105.

DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na belle époque: a medicalização do crime.


São Paulo: Paz e Terra, 1991.

HARRIS, Ruth. Assassinato e loucura: medicina, leis e sociedade no fin de siècle. Rio
de Janeiro: Rocco, 1993.

NEDER, Gizlene. Cidade, identidade e exclusão social. Tempo, Rio de Janeiro, v. 2, n.


3, 1997, pp. 106-134.

NYE, Robert. Crime, madness and politics in modern France: the medical concept
of national decline. Princeton: Princeton University Press, 1984.

VELHO, Gilberto. Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana. Rio


de Janeiro: Zahar, 2013.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

239
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“A fabricação do imortal” e o projeto de uma biografia intelectual do poeta Antonio


Gonçalves Dias

ANDRÉA CAMILA DE FARIA FERNANDES92

Nascido na cidade maranhense de Caxias em agosto de 1823, Gonçalves Dias quis


“fazer seu nome” e para isso buscou realizar seu projeto de tornar-se o maior poeta do
Brasil. Alcançando seu objetivo, através do reconhecimento obtido já na publicação de
sua primeira obra93, sua imagem de ícone nacional foi aos poucos construída através da
vinculação de sua vida e de sua obra à pátria e às referências de simbolização da nação.
Uma vez posicionado no pantheon nacional como representante do que era
essencialmente brasileiro, sua memória foi sendo naturalizada e incorporada à memória
cultural nacional. E sem dúvida não há maior expressão dessa naturalização do que a
difusão dos versos da famosa Canção do Exílio.

Como afirma Maria Helena Rouanet, os versos “Nosso céu tem mais estrelas,/
Nossas várzeas têm mais flores,/ Nossos bosques têm mais vida,/ Nossas vidas mais
amores” foram tão eficazes em proclamar a diferença entre o eu e o outro, o nacional e o
estrangeiro – a polaridade norteadora da construção de identidade (nacionalidade) no
romantismo – que além de serem reproduzidos por vários outros poetas românticos,
acabaram se institucionalizando de vez na letra do Hino Nacional (ROUANET in JOBIM,
1999, 22-23).

Todavia, os procedimentos dessa institucionalização tornam-se relativamente


curiosos e instigantes se pensarmos que esse poema foi escrito em Coimbra, em julho de
184394, quando Gonçalves Dias era ainda um jovem de 19 anos, distante de sua terra natal
já há quatro anos. Aliás, quando nos referimos à sua terra natal precisamos deixar claro
que não estamos nos referindo ao Brasil, esta unidade nacional tão evocada, mas a uma
região específica, no caso, o Maranhão, ou em menor escala, a Caxias, sua terra natal.

92
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Bolsista CAPES/DS. Pesquisadora no Núcleo de Estudos Sobre Biografia, História, Ensino e
Subjetividades NUBHES-UERJ.
93
Os Primeiros Cantos são publicados originalmente em 1846 pela editora Laemmert.
94
Segundo a datação publicada nos Primeiros Cantos.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

240
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ao partir para Coimbra em 1838 o jovem Gonçalves Dias não conhecia mais do
que Caxias, o sítio de Boa Vista, onde nascera, e a capital da província, São Luiz (cf
PEREIRA, 1943). Uma parte do Maranhão era o máximo de “Brasil” que ele conhecia.
Aliás, o próprio poeta ao publicar sua Canção fez questão de ressaltar: “Quando eu
compuz esta canção, ou como melhor se chame, tinha apenas visto algumas das
Províncias do Norte do Brasil” (DIAS, 1846). Esta simples nota nos faz pensar que talvez
aquele que é o poema nacional por excelência, conhecido nos quatro cantos do país,
incessantemente reproduzido nos manuais didáticos, não seja exatamente nacional, mas
antes, regional, ou como nos interessa investigar, fruto de inquietações outras, não
necessariamente pensadas e produzidas, naqueles idos da década de 1830, para
representar o Brasil e os brasileiros.

Não devemos com isso, contudo, retirar Gonçalves Dias de sua posição no
pantheon nacional. O que importa é problematizar essa figuração, entendê-la como uma
construção, como mais uma das muitas construções de memória que são responsáveis por
criar uma identidade comum. Nesse caso, nos parece que a propagação e ressignificação
de Canção do Exílio como poema nacional por excelência se deu sem que se levasse em
conta enraizamentos e pertencimentos locais que o informaram, ou talvez,
desconsiderando-se propositalmente essa característica a fim de torná-lo um símbolo que
bem representasse o sentimento nativista que se queria construir, nosso nacionalismo.
Nesse caso, talvez sem que Gonçalves Dias planejasse, seu poema foi alçado ao posto de
canção nacional e seu autor, por conseguinte, ao de cantor da pátria, de iniciador da
literatura brasileira, numa construção de memória e de referências para a história literária
que merecem ser problematizadas.

Se por um lado a institucionalização de Canção do Exílio como canção nacional


não nos parece ação proposital de Gonçalves Dias, devemos ressaltar, por outro, que
Gonçalves Dias se encarregou de moldar sua memória e perpetuá-la de diversas outras
formas, e a nota biográfica escrita por ele a pedido do francês Ferdinand Denis é um dos
melhores exemplos disso. Ao tratar de seu nascimento o poeta escreveu:

As províncias do norte do Brasil foram as que mais tarde


aderiram à independência do Império. Caxias, então

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

241
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

chamada Aldeias Altas no Maranhão, foi a derradeira. A


independência foi ali proclamada depois de uma luta
sustentada com denodo por um bravo oficial português que
ali se fizera forte. Isto teve lugar à (sic) 1° de Agosto de
1823. Nasci a 10 de Agosto desse ano. (DIAS apud
PEREIRA, 1943, 09)

Em certa medida, ao relembrar, narrar e reelaborar sua trajetória de vida,


Gonçalves Dias buscava para si mesmo ilações entre seu nascimento e a independência
do que veio a ser o Império do Brasil.

Segundo Joël Candau, não podemos recordar um acontecimento do passado sem


que o futuro desse passado venha a ser integrado à lembrança (CANDAU, 2011, 66), isto
é, lembrar uma história é redimensioná-la e significá-la à luz das questões do tempo
presente daquele que relembra o já vivido, pois “o tempo da lembrança não é o passado,
mas ‘o futuro já passado do passado’” (IDEM). Nesse sentido, toda recordação é, segundo
o autor, tributária da natureza do acontecimento memorizado, do contexto passado desse
acontecimento e também daquele momento de recordação (CANDAU, 2011, 71). Em
suas palavras,

O narrador parece colocar em ordem e tornar coerente os


acontecimentos de sua vida que julga significativos no momento
mesmo da narrativa: restituições, ajustes, invenções,
modificações, simplificações, “sublimações”, esquematizações,
esquecimentos, censuras, resistências, não ditos, recusas, “vida
sonhada”, ancoragens, interpretações e reinterpretações
constituem a trama desse ato de memória que é sempre uma
excelente ilustração das estratégias identitárias que operam em
toda narrativa. (IDEM)

Recuperar uma lembrança, especialmente uma lembrança autobiográfica é criar


uma memória, uma identidade, e esse movimento nos permite vislumbrar algumas das
estratégias de criação identitária, mesmo que nem sempre elas estejam perfeitamente às
claras ou pareçam deliberadas.

No caso de Gonçalves Dias é sintomático que o poeta, ao escrever a referida nota


autobiográfica, tenha relacionado diretamente seu nascimento ao “nascimento” da pátria,
na menção à consolidação da independência com a rendição do Maranhão ao governo do

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

242
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Rio de Janeiro, em agosto de 1823. Certamente, para o menino que nascia a 10 de agosto
daquele ano, o fato de que se instaurava um país, a partir do rompimento da condição
colonial, e de que sua província natal havia resistido a essa mudança, não era questão
significativa, aliás, muito provavelmente nenhuma questão que não dissesse respeito aos
cuidados maternos requisitados por um bebê recém-nascido o era.

De toda forma, para o homem de letras que já desfrutava de reconhecimento em


1846, quando da publicação de seus Primeiros Cantos, como o maior poeta do Brasil,
membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, atuando em projetos de
(re)construção da nação, estabelecer a relação entre seu nascimento e o da nação brasileira
significava criar para si próprio uma identidade e uma origem singular. Nas palavras da
biógrafa Lucia Miguel Pereira, tal nota autobiográfica é:

importantíssima, pelo que diz, e pelo que omite. Mais ainda


pelo que omite do que pelo que diz. Com efeito, ligando o
seu nascimento aos sucessos políticos, patenteia Gonçalves
Dias que foi profundamente marcado por eles. Que o fato
de nascer com a independência da sua província influiu no
seu feitio, na direção que imprimiu à sua obra. Do contrário
não mencionaria a coincidência nessa concisa informação,
em que mais nada adiantou sobre a sua vida particular.
(PEREIRA, 1943, 09)

Para Marcia de Almeida Gonçalves, ao estabelecer esta relação, Gonçalves Dias,


mais do que um pertencimento, firmava um compromisso de representar por meio de sua
vida particular – e aqui entendemos também por meio de sua obra – a comunidade
imaginada, sentida e significada como nação (GONÇALVES, 2009b, 428).

De alguma maneira, podemos dizer então, que Gonçalves Dias decidira


proclamar-se como brasileiro desde o nascimento, identificando-se ao Brasil cuja imagem
ajudava a divulgar e (re)construir, num exercício onde o presente e o futuro pesavam
decisivamente sobre a memória do passado. Ele era brasileiro desde o nascimento,
mesmo que ser brasileiro naquele momento ainda fosse algo em construção.

Operações complexas, a reconstrução de um passado e a conseqüente construção


de sua memória, demonstram alguns dos objetivos não diretamente anunciados e
reveladores desses movimentos. Movimentos que, no caso das narrativas pessoais,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

243
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

buscam tornar estável, verossímil e previsível os projetos que norteiam ou nortearam a


vida daquele indivíduo. Nesse sentido, como afirma Candau, “todo aquele que recorda
domestica o passado e, sobretudo, dele se apropria, incorpora e coloca sua marca em uma
espécie de selo memorial que atua como significante da identidade” (CANDAU, 2011,
74). Assim ao relacionar diretamente seu nascimento ao nascimento da pátria, Gonçalves
Dias procurou criar para si uma identidade que o vinculava diretamente ao seu objetivo,
ao seu projeto de vida.

Não nos cabe discutir o talento de Gonçalves Dias. Mas será que o poeta receberia
o mesmo reconhecimento se seus amigos não tivessem se empenhado em divulgar seu
trabalho? Será que ele seria tão aclamado se seus Primeiros Cantos não tivessem chegado
às mãos do letrado português Alexandre Herculano, impressionando-o a tal ponto de
escrever um artigo exaltando a poesia de Gonçalves Dias e estabelecendo o fim da história
literária portuguesa e o nascimento da brasileira? Parece-nos que não.

Ao anunciar, em artigo publicado na Revista Universal Lisboense95, a partir do


livro de Gonçalves Dias o surgimento da literatura brasileira e a morte da literatura
portuguesa, Herculano significou definitivamente o poeta maranhense como o iniciador
da “verdadeira” literatura brasileira, estabelecendo a imagem de Gonçalves Dias que seria
depois perpetuada por seus biógrafos e críticos literários.

Para José Henrique de Paula Borralho

A repercussão do artigo de Alexandre Herculano nos


jornais do Império foi imediata e pesou decisivamente para
a visibilidade e dizibilidade do cantor timbirense e de sua
utilização pelo Império brasileiro dentro do projeto criador
da nação. (BORRALHO, 2009, 208)

Num momento em que a nação se construía e se firmava, receber a declaração de


independência literária pelas mãos de um dos mais aclamados homens de letras da antiga
metrópole certamente se revestia de um aspecto mais do que simbólico, havia no ato uma
dimensão política. Com a exaltação de Gonçalves Dias feita por Herculano, o Império

95
Artigo intitulado “Futuro Literário de Portugal e do Brasil”, publicado no tomo 7 da Revista Universal
Lisboense (1847-1848)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

244
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Brasileiro não era mais apenas independente politicamente, ganhara o aval para ser
autônomo em sua literatura e história. E não seriam justamente essas duas esferas entre
as principais responsáveis pela construção da nação, nos termo de instituir e significar
uma autêntica cultura nacional?

Gonçalves Dias parecia ter plena consciência da importância que essa


“aprovação” possuía, prova disso foi que ao organizar, em 1857, uma publicação que
reunia seus Primeiros, Segundos e Últimos Cantos – intitulada Cantos – precedeu-a pelo
artigo de Herculano, num claro recurso de (re)afirmação de sua obra e de sua imagem.

Assim o poeta foi firmando sua imagem de literato, mas mais do que isso, firmou
também sua imagem de poeta nacional, criando e recriando sua memória a cada novo
escrito ou publicação, fixando seu nome na memória da nação.

Ainda segundo Joël Candau, “‘fazer o nome’ é agir para a posteridade, ter a
esperança estéril de não desaparecer no esquecimento” (CANDAU, 2011, 69), e essa
busca requer o esforço de fazer escolhas, de jogar luz sobre os aspectos que se quer
exaltados e jogar na penumbra aqueles que podem dificultar seu “sucesso”. Nesse sentido
é curioso pensar que nessa mesma edição dos Cantos, onde procurou dar destaque às
palavras de Herculano sobre sua obra e sobre futuro da literatura brasileira, Gonçalves
Dias tenha deixado de republicar a nota que pontuava a famosa Canção do Exílio como
fruto da inspiração de um jovem que quase nada conhecia de Brasil, o que, como já
dissemos, acabava insinuando para o poema outras marcas de pertencimento – local,
regional – e não a que viabilizasse diretamente a exaltação nacional.

Importante ter em mente, como ressalta Joël Candau, que o trabalho da memória
nunca é um ato individual. Em suas palavras,

A forma do relato, que especifica o ato de rememoração,


“se ajusta imediatamente às condições coletivas de sua
expressão”, o sentimento do passado se modifica em função
da sociedade. (...) Muitas de nossas lembranças existem
porque encontramos eco a elas (CANDAU, 2011, 77)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

245
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nesse sentido, argumentamos que, se Gonçalves Dias se fixou na memória


nacional como letrado a ser reverenciado, não foi apenas pelo sucesso de seu projeto de
fazer seu nome. Tal projeto muito pouco teria valido se a memória que procurou criar de
si não encontrasse eco na memória social. Dessa forma, seu projeto foi vitorioso porque
ao criar-se como brasileiro, sua voz ressoava junto ao projeto nacional, garantindo-lhe
posição de destaque perpetuada entre os nomes ilustres do país.

Nesse sentido, é interessante notar que sua imagem foi sendo criada e recriada nas
tramas que configuraram aquilo que veio a ser entendido como identidade brasileira. Se
em um momento inicial ele mesmo lançou as bases dessa apropriação, dizendo que
nascera junto com a pátria, o movimento que se seguiu foi muito maior que ele, e seus
biógrafos se encarregaram de fixá-lo no pantheon nacional e a “memória social e cultural”
acabou por eternizá-lo.

Marisa Lajolo, nesse sentido, apontou que:

Livros escolares, por exemplo, gostam de frisar que o poeta


nasceu no mesmo ano em que a província do Maranhão (de
forte influencia portuguesa) reconhece a independência do
Brasil.
Confirmando o que parece ser lido como uma
predisposição astrológica de Gonçalves Dias para a
expressão de sentimento patriótico, outros textos apontam
(corretamente) que ele era filho do branco João Manuel
Gonçalves Dias, português, e de Vicência Mendes Ferreira,
mestiça de índio e negro. Ou seja, o poeta sai dessas
biografias com uma vida sob medida para alimentar
interpretações bem intencionadas de coincidências: sua
mestiçagem e o ano de seu nascimento não poucas vezes
são convocados para explicar a gênese de certas passagens
de sua poesia, como o saudosismo patriótico da Canção do
exílio ou o lamento épico do Canto do Piaga.
Ao fim e ao cabo, tais leituras endossam, com menos
ou com mais satisfação, a velha e ingênua idéia de que vida
e obra constituem espelhos límpidos, cristalinos, sem
distorções. (LAJOLO, 2005, 61-62)

As biografias do poeta proliferaram desde sua morte em 1864, sem que possamos
identificar nos inúmeros textos, dos mais diferentes autores, grandes diferenças na
apresentação do biografado. Gonçalves Dias, em todas as obras publicadas e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

246
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

referenciadas à sua memória, teve uma vida sob medida para explicar sua obra, como
aponta Lajolo. Nesse sentido, esses textos devem ser lidos como resultados de estratégias
de fixação da memória do poeta e assim, devem ser problematizados.

Especialmente quando verificamos que houve um esforço deliberado do poeta em


construir e fixar essa memória, e a já citada nota autobiográfica é o melhor exemplo disso,
mas também porque tornar-se um nome de destaque em nosso cenário literário era um
objetivo declarado de Gonçalves Dias. Em carta recuperada pela biógrafa Lúcia Miguel
Pereira ele declarava: “Todo o meu empenho, digo-te muito em segredo e todo cheio de
vergonha, é ser o Primeiro Poeta do Brasil, e, se houver tempo, o primeiro literato” (DIAS
apud PEREIRA, 1943, 85). Daí nosso interesse em identificar através de que mecanismos
e estratégias esse projeto se tornou possível a partir dos esforços empreendidos por
Gonçalves Dias e quais as instâncias que se encarregaram de fixar e perpetuar a memória
que de alguma forma foi criada e moldada por ele.

Uma biografia no campo da nova história intelectual

(...) todo grande pensador é, em parte, autobiografia de sua


época. Sua influência origina-se do fato dele ter expressado
de maneira peculiarmente magistral, uma porção
significativa de suas esperanças e temores. (LASKI apud
HAHN, 07)

Ao escolhermos mapear a “fabricação” de Gonçalves Dias através da construção


de uma biografia intelectual optamos por, de alguma forma, deixar de lado os pormenores
de sua vida pessoal para destacar os aspectos que ligam a sua vida e a sua construção
identitária à construção de nossa identidade nacional. Nesse sentido, ao recuperar aqui as
palavras de Harold Laski, podemos dizer que a consagração da memória de Gonçalves
Dias pode nos dizer muito sobre as imagens de Brasil e de brasileiro que se pretendeu
exaltar. Sendo nosso objetivo, de uma maneira geral, pensar sobre essas significações que
cercam a figura do poeta maranhense, podemos situar nosso trabalho no campo dos
estudos da chamada nova história intelectual.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

247
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nesse caminho estamos preocupados em investigar os contextos nos quais


Gonçalves Dias se inseriu e que instituíram sua criação como referência canonizada para
as letras nacionais, na perspectiva de compreender as relações entre a sua formação como
sujeito/autor e o contexto social que o formou e o permitiu existir. Para tanto estamos
tomando por base a noção de contexto formulada por Skinner. Em suas palavras:

El “contexto” fue erróneamente considerado como


determinante de lo que se dice. Más bien cabe considerarlo
como marco último para ayudar a decir qué significados
convencionalmente reconocibles, em uma sociedad de tal
tipo, podia haberle sido posible a alguien intentar
comunicar. (SKINNER apud PALTI, 2012,30).

Elias Palti, de quem recuperamos as ponderações de Skinner, afirma que para esse
autor o contexto é um conjunto de convenções que condicionam as categorias de
afirmações disponíveis a um determinado autor, não significando que um autor seja
necessariamente prisioneiro destas convenções (PALTI, 2012,30). Nesse sentido, vale
dizer que não entendemos que Gonçalves Dias estivesse preso às convenções de seu
tempo, mas sim que, sem dúvida, suas ações foram indubitavelmente marcadas por elas,
seja na recusa, seja na aceitação destas convenções.

E se, nas palavras de Palti, “El objetivo último de la história intelectual sería, pues,
entender no qué dijo cada autor, sino cómo fue possible para este decir lo que dijo em um
contexto determinado” (PALTI, 2007, 300), cabe ressaltar que nosso interesse é pensar a
produção literária de Gonçalves Dias nos contextos em que se instituíram os usos e re-
significações dessa produção para a construção de sua memória e de suas identidades
autorais.

Uma vez que o poeta já está estabelecido em um lugar canônico, nos importa
pensar mais nas estratégias e práticas que estabeleceram este cânone, do que na recepção
de suas obras no momento das respectivas publicações, a não ser nos casos em que essa
recepção veio a ser mobilizada como referência para os processos de reificação de suas
identidades autorais.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

248
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Também não será possível para nós problematizar o projeto pessoal de Gonçalves
Dias sem, ao mesmo tempo, pensar sobre os projetos de criação da nação que estavam
sendo debatidos e postos em prática no momento mesmo de sua institucionalização
enquanto autor canônico de nossa literatura.

Tendo isso em mente, vale ressaltar que a “canonização” de um autor também faz
parte do complexo sistema de eleição de símbolos nacionais desenvolvidos pelos mais
diferentes projetos de criação nacional. Como aponta Armelle Enders,

O grande homem torna-se por vezes tão alegórico


que se junta aos emblemas nacionais devidamente
repertoriados, como os hinos ou as bandeiras, e sua ação
histórica acaba por escapar a qualquer exame crítico. (...) A
adoção de alguma figura “nacional” pelo grande público
tem, aliás, uma história comparável à das bandeiras e dos
hinos. Assim como estes, os heróis são fruto de uma
circulação entre as iniciativas individuais, a adesão popular,
a cultura erudita e o poder político. No entanto, eles são
muito mais complexos, em virtude de sua mobilidade e
capacidade para fixar as emoções coletivas. (ENDERS,
2014,21)

Dessa forma, ao considerarmos a postulação de Gonçalves Dias como autor


canônico como parte de um rito de elaboração de símbolos nacionais, temos em mente
que houve nesse processo toda uma construção de memória que tem muito a nos dizer,
tanto no que foi selecionado para ser lembrado, quanto no que foi esquecido. Nesse
sentido a narrativa biográfica visa reconstruir o caminho dessas escolhas, identificando
os momentos em que se estabelecem e os motivos que as orientam. A biografia aqui, não
visa ser um “retrato em papel e letras” de Gonçalves Dias, mas sim uma exposição
narrativa e problematizadora dos meandros de sua construção.

Intitulada provisóriamente de “A fabricação do imortal”96, a biografia intelectual


que pretendemos construir, pretende oferecer assim, não só uma reconstrução da biografia

96
Vale pontuar que ao escolhermos o título “A fabricação do imortal” temos em mente problematizar as
estratégias de criação de memória que envolveram a fixação do poeta maranhense no imaginário nacional.
Nesse sentido, o trabalho de Regina Abreu – “A Fabricação do Imortal”– sobre a construção da memória
de Miguel Calmon e o trabalho de Peter Burke – “A Fabricação do Rei” – sobre Luís XIV, foram
referenciais não só para a escolha do título do projeto mas, principalmente para a construção do próprio

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

249
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

do poeta maranhense Gonçalves Dias, ou uma mera recuperação de suas obras, mas,
sobretudo, uma recuperação dos contextos políticos e sociais que permitiram que ele se
tornasse esse nome de destaque em nosso cenário letrado, dos projetos de identidade que
o cercaram e abraçaram permitindo sua adoção como ícone referencial, das estratégias de
construção de si empreendidas por ele e que serviram de base para as biografias que se
seguiram e, de maneira geral, uma tentativa de mapear e reconstruir uma parte dos
processos de construção daquilo que se convencionou chamar identidade brasileira.

Referências:
Fontes:

CORRESPONDENCIA ativa de Gonçalves Dias. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de


Janeiro, v.84, 1964. (impressão de 1971).

CORRESPONDENCIA passiva de Gonçalves Dias. Anais da Biblioteca Nacional. Rio


de Janeiro, v.91, 1971.

DIAS, A. Gonçalves. Primeiros Cantos. Rio de Janeiro: Laemmert, 1846. Disponível em


Brasiliana Digital: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00634200. Acesso em
26 jun 2010, 09

DIAS, A. Obras póstumas de A. Gonçalves Dias. São Luiz do Maranhão: Belarmino de


Mattos, 1868. v. 1.

DIAS, A. Gonçalves. Poesia e prosa completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998.

LEAL, Antônio Henriques. Pantheon maranhense: ensaios biográficos dos maranhenses


ilustres já falecidos, t.1. 2. ed. Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1987.

MACEDO, Joaquim Manuel de. Gonçalves Dias. In: ______. Rio de Janeiro:
Typographia e Lithographia do Imperial Instituto Artistico, 1876.

______. Discurso. RIHGB, Rio de Janeiro, t.27, 1864.

PEREIRA, Lúcia Miguel. A vida de Gonçalves Dias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943.

objeto. Aqui, como nesses trabalhos, a opção pelo termo “fabricação” não visa o desmonte ou a
desinstitucionalização da figura ilustre, no caso, Gonçalves Dias, mas sim a compreensão de que houve um
processo multifacetado de construção de memória e imagem.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

250
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Bibliografia:

ABREU, Regina. A Fabricação do Imortal: memória, história e estratégias de


consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996.

ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio


de Janeiro: EDUERJ, 2010.

BORRALHO, José Henrique de P. A Athenas equinocial: a fundação de um Maranhão


no Império brasileiro. 2009. Tese (doutorado em História) - Departamento de História,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.

BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luis XIV. Trad.
Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.

DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009.

ENDERS, Armelle. Os vultos da nação: fábrica de heróis e formação dos brasileiros. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2014.

FARIA, Andréa Camila. Gonçalves Dias na Amazônia: o olhar de um romântico.


Trabalho de Conclusão de curso – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2008.

FARIA, Andréa Camila. “O santo comércio da amizade”: política, literatura e


sociabilidade na trajetória de Gonçalves Dias. Dissertação (mestrado). Orientadora:
Marcia de Almeida Gonçalves. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas. 2011.

GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da história: a título de prólogo. In:
GOMES, A. de C. (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

GONÇALVES, Marcia de Almeida. Em terreno movediço: biografia e história na obra


de Otávio Tarquínio de Sousa. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009a.

GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Histórias de gênios e heróis: indivíduo e nação no


Romantismo brasileiro”. GRINBERG, Keila ; SALLES, Ricardo (Org). In: ______. O
Brasil imperial 1831-1889. v.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009b.

GONÇALVES, Marcia de Almeida. “Mestiço, pobre, nevropata: biografia e modernidade


no Machado de Assis de Lúcia Miguel Pereira”. In: GOMES, Angela de Castro;
SCHMIDT, Benito Bisso (Org). Memória e narrativas (auto) biográficas. Rio de Janeiro:
FGV, 2009c.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

251
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

GONTIJO, Rebeca. Paulo amigo: amizade, mecenato e ofício do historiador nas cartas de
Capistrano de Abreu. In: GOMES, A. de C. (Org.). Escrita de si, escrita da história. Rio
de Janeiro: FGV, 2004.

GONTIJO, Rebeca. O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao


historiador. 2006. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006.

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o instituto


histórico e geográfico brasileiro e o projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, n.1, 1988.

HAHN, Fábio André. História Intelectual: Uma nova perspectiva (Parte 1). In: História
e-história.
http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=professores&id=37#_edn1, p. 7.
Acesso em 21 out 2016.

HAHN, Fábio André. História Intelectual: Uma nova perspectiva (Parte 2). In: História
e-história. http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=professores&id=36, p. 3.
Acesso 21 out 2016.

JOBIM, José Luís (org.). Introdução ao romantismo. Rio de Janeiro: UERJ, 1999.

LAJOLO, Marisa. O preço da leitura: Gonçalves Dias e a profissionalização de um


escritor brasileiro oitocentista. In: ABREU, Márcia; SCHAPOCHNIK, Nelson (Org).
Cultura letrada no Brasil: objetos e praticas. São Paulo, SP: Fapesp, 2005.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte:


Ed. UFMG, 2008.

LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de


Moraes (org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.

LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (Org). Jogos de
escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998.

Loriga, Sabina. O pequeno x: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

PALTI, Elías José. Giro lingüístico e história intelectual. 1ª Ed. 1ª reimp. Bernal:
Universidad Nacional de Quilmes, 2012, 30.

PALTI, Elías José. La nueva historia intelectual y sus repercusiones em América Latina.
In: História Unisinos. http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/5908, p.
300. Acesso 21 out 2016.

REVEL, Jacques. A biografia como problema historiográfico. In: Historia e


Historiografia: exercícios críticos. Curitiba: Ed. UFPR, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

252
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SILVA, Ricardo. História intelectual e teoria política. In: Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v.
17 , n. 34 , p. 301-318, out. 2009.

SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história
política. Rio de Janeiro: FGV, 2003.

SKINNER, Quentin. “Significação e compreensão na história das idéias”. In: Visões da


Política. Lisboa: Difel, 2005

VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio


de Janeiro: Zahar, 1994.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

253
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O Golpe Civil-Militar de 1964: e o Impeachment do governador Badger da Silveira

ANDRESSA CRISTINA DE MIRANDA DO CARMO


PPGH-UFF

No dia primeiro de abril de 1964, após fazer um pronunciamento a favor de Jango


e contra o golpe, na “Rede da Legalidade”97, na Rádio Nacional (Jornal do Brasil,
“Duvidosa ainda a permanência de Badger à frente do Governo”, 05/04/64.), o
governador fluminense Badger da Silveira foi preso no Palácio do Ingá, em Niterói (sede
do governo do antigo estado do Rio de janeiro), por membros do autointitulado
“Comando Revolucionário Civil”, chefiado pelo tabelião Antônio Schueler (Jornal do
Brasil, “Estado do Rio nega que o levante da PM fosse para depor Paulo Torres”,
29/12/64).
Após recusar a intimação de renúncia do cargo de governador, Badger e sua
esposa foram retirados do Palácio do Ingá sob escolta de soldados da Marinha do Brasil
e levados para a Diretoria do Arsenal da Marinha (Jornal do Brasil, “Badger prêso em
Palácio”, 02/04/64). Schueler durante vinte quatro horas auto intitulou-se Interventor do
estado do Rio (Jornal do Brasil, “Estado do Rio nega que o levante da PM fosse para
depor Paulo Torres”, 29/12/64).

O Sr. Badger foi prêso no momento em que seus assessores transmitiam


por telefone notícias aos jornais desmentindo que o Vice-Governador
João Batista da Costa assumiria o Gôverno, e informando que o General
Oromar Osório, no comando da 1ª DI, em comunicação pessoal com o
Sr. Badger Silveira, havia-lhe comunicado que o considerava o titular
legitimo do Governo do Estado. Informaram também os assessores que
o general Oromar Osório afirmou não haver realmente ordem de
comando militar no Estado do Rio naquele sentido e que desautorizava
qualquer tentativa para substituí-lo. (Jornal do Brasil, “Estado do Rio
nega que o levante da PM fosse para depor Paulo Torres”, 29/12/64)

Depois de 15 horas preso na Escola Naval, o governador Badger da Silveira foi


solto e retornou às suas atividades no Palácio do Ingá, acompanhado do novo Comandante

97
Segundo os historiadores Jorge Ferreira e Angela de Castro Gomes, Brizola reeditou a Rede da
Legalidade, formando novamente uma cadeia de rádios defendendo o governo de Goulart e a democracia,
durante o golpe de 1964. (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 357)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

254
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

da 1ª Infantaria Divisionária, General Manuel Rodrigues Lisboa. Segundo reportagem do


Jornal do Brasil, do dia 03/04/64:

Os Secretários de Energia, Heleno Nunes, e Agricultura, Atanagildo


Ferraz, informaram que a permanência do Sr. Badger da Silveira à
frente do Governo do Estado foi garantida por sua posição
anticomunista demonstrada por diversas vezes, dentre elas, quando
discordou da posição adotada pelo Deputado Leonel Brizola, durante a
Convenção Nacional do PTB, e quando condenou o manifesto lançado
pela CGT, após o discurso que o senhor ex-presidente João Goulart fêz
para os sargentos, na Guanabara. (Jornal do Brasil. “Badger reassume
o Gôverno depois de 15 horas de prisão”, 03/04/64)

Como podemos observar o retorno do governador petebista só foi possível depois


que o mesmo assegurou as Forças Armadas de que não estava vinculado às ideias
comunistas e de aceitar as exigências do Alto Comando Militar, como passar a Secretaria
de Segurança ao Coronel Hugo de Sá Campello Filho, por determinação do Ministério da
Guerra (Jornal do Brasil, “Badger afirma que sua luta continua a mesma”, 05/04/64).
Contudo, veremos que o governo Badger durou apenas um mês após essa primeira prisão.
Logo depois de sua liberação, já estava sendo proposta, na Assembleia Legislativa
Fluminense, a abertura do processo de impeachment contra o mandato de Silveira (Jornal
do Brasil, “Assembléia Legislativa sob custódia de tropas”, 04/04/64). Em vista disso, o
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) mobilizou suas forças na Assembleia para evitar o
impedimento de Badger:

Para evitar a medida e não querendo ser colhido de surpresa, o PTB,


através dos seus 15 representantes, está em vigília [...]. Os deputados se
revezam e cada um deles fica acordado duas horas. O PSD voltou a
reafirmar, pela palavra de seu líder, Deputado Togo de Barros, que é
contrário ao impeachment e não vê necessidade da medida, alegando
que o Sr. Badger Silveira nunca foi comunista, “como a UDN pretende
caracterizá-lo”. (Jornal do Brasil, “Batista da Costa continua
articulando o impedimento do Governador fluminense”, 05/04/64)

O governador visando atenuar as denúncias feitas contra sua postura política


trabalhista, libera através da assessoria do Palácio do Ingá a seguinte nota oficial, no dia
08/04/64:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

255
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O Governador Badger Silveira, com o propósito de evitar quaisquer


explorações de sua posição política, passada e futura esclarece:
Manifestou-se sempre a favor das reformas, inconformado como os
políticos brasileiros de todas as correntes e partidos, com a estrutura
social injusta e desumana.Entendeu, em todos os momentos de sua
pregação, que elas deveriam executar dentro da lei, da ordem, da paz e
da democracia, jamais como veículos de comunização, mas sim como
medidas capazes de evitar justamente processos antidemocráticos, que
permitissem condições sociais para conflagrações revolucionárias
extremistas. [...] Coerente com esses princípios se mantém e os
propugna, convicto de que o povo não quer o comunismo, mas
democracia em suas formas mais puras e mais elevadas. De acordo com
os recursos que dispunha, na eventualidade histórica, combateu a
comunização da Pátria, como comprovam os reiterados ataques
recebidos na campanha eleitoral, quando recusou o apoio de
comunistas, e posteriormente dos representantes dos vermelhos na
Assembléia Legislativa. Reafirma como sempre seu propósito de lutar,
em linha de absoluta coerência política com os eu passado e sua vida de
homem público, e em paz com sua consciência, no sentido de colocar o
Partido Trabalhista Brasileiro, de acordo coma pregação do Presidente
Vargas, na posição que deve caber ao mesmo, no quadro nacional, de
partido democrata e anti-comunista, escoadouro legítimo das aspirações
justas e patrióticas dos trabalhadores do Brasil. (Jornal do Brasil,
“Badger desfaz explorações”, 09/04/64)

Vemos, portanto, que após o golpe civil-militar o governador fluminense buscou


reforçar seu legado político anticomunista, resgatando a imagem de Vargas, durante o
governo democrático (1951-1954), para legitimar-se como defensor da democracia e
opositor das ideias comunistas. Nesse último mês de governo, Badger mobilizou suas
forças políticas para manutenção de seu mandato ameaçado pelas propostas de
impeachment as quais num primeiro momento foram barradas com o apoio do Partido
Social Democrático (PSD).
Paralelamente, Badger dialogou com as forças golpistas, parabenizando (Última
hora, “Badger (firme no Ingá) felicita Castelo Branco”. 13/04/1964) e comparecendo à
posse do general-ditador Humberto Castelo Branco em Brasília (Última hora, “Badger
vai a posse de Castelo Branco”, 14/04/1964); E aceitando o convite do governador de
Minas Gerais Magalhães Pinto para participar das comemorações do feriado de
Tiradentes, em Ouro Preto, comemoração essa que também teve a presença de Castelo
Branco e do governador de Goiás Mauro Borges. (Última hora, Estado do Rio: Badger,
23/04/1964)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

256
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

É exatamente nesse contexto turbulento de oposição à permanência de Badger no


governo que as mulheres fluminenses anticomunistas se organizaram. A Liga
Democrática Feminina Fluminense distribuiu um manifesto no qual acusava o governador
Badger da Silveira de manter relações com “elementos comunistas” e de ter mandado
prender o padre Menceslau Valiukevicius (Tribuna da Imprensa, “Liga Feminina Exige:
Interventor Federal”, 17/04/64), membro do Comando Revolucionário Civil (Jornal do
Brasil, “Consagração encerra amanhã festa iniciada dia 18 em louvor de N. S. das
Graças”, 26/11/67).
Dessa forma, podemos inferir que a Igreja, as mulheres fluminenses das direitas e
os membros desse autointitulado “comando revolucionário” tinham relações, sobretudo,
porque em 1966, fiéis da Igreja Nossa Senhora de Fátima, do bairro São Gonçalo, em
Niterói, carregavam uma faixa com os seguintes dizeres “Liga Feminina Fluminense –
Schueler e Padre Menceslau”, saudando o General Costa e Silva. (Tribuna da Imprensa,
“Costa e Silva: Voltei mais Candidato”, 18/02/66)
Por sua vez, a LDFF se opôs a organizar à Marcha da Família com Deus pela
Liberdade em Niterói, até a saída de Badger do governo estadual ser concretizada. Ao
mesmo tempo, o manifesto convocava as mulheres “revolucionárias de 64” a se
mobilizarem contra Badger:

Pedimos a colaboração de todos os setores democráticos femininos do


Brasil, para auxiliarem esta nossa luta, que não haverá de terminar, até
vermos a aplicação da Revolução vitoriosa no Estado do Rio, para o
que pedimos a imediata Intervenção Federal, de acordo com o Ato
Institucional. Nêste sentido estamos enviando as nossas irmãs
brasileiras democráticas, membros femininos de nossa liga, para o
apoio precioso, contando desde vários dias com a CAMDE, que
inclusive já esteve com o Ministro de Guerra, pedindo tal medida.
Solicitamos que enviem telegramas aos srs. Presidente da República,
ministros das Fôrças Armadas e presidente do Conselho Nacional de
Segurança. (Tribuna da Imprensa, “Liga Feminina Exige: Interventor
Federal”, 17/04/64)

Podemos observar que a organização feminina carioca Campanha da Mulher pela


Democracia também estava mobilizada contra Badger da Silveira e sua permanência no
governo. Diante disso, a União Democrática Nacional (UDN) fluminense, capitalizando

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

257
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

as ações das entidades cívicas femininas anticomunistas, continuou forçando a abertura


do processo de impedimento do governador petebista, lastimando:

[...] que a tranquilidade pública restabelecida em todo território


nacional não tenha ainda atingido o Estado do Rio de Janeiro em face
da permanência à frente do Executivo estadual do Sr. Badger da
Silveira, comprovadamente comprometido com a infiltração comunista
e com o movimento subversivo estimulado pelo presidente deposto.
(Jornal do Brasil, “UDN do Est. do Rio dá seu apoio à revolução”,
21/04/64)

Foi nessa conjuntura que a Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi
realizada em Niterói, no dia 23/04/64, a mesma foi organizada pela Igreja da Divina
Providência, com a participação do Arcebispo D. Antônio de Almeida Morais Júnior
(Jornal do Brasil, “Vinte mil pessoas vão à Marcha da Família realizada em Niterói”,
24/04/64), primeiro arcebispo de Niterói (Correio da manhã, “Gôverno e povo nas
manifestações ao primeiro arcebispo de Niterói”, 23/08/1960). Anteriormente, D.
Antônio tinha feito parte da comitiva que acompanhou Badger na posse de Castelo
Branco, em Brasília (Última Hora, “Badger hoje em Brasília: Muda secretariado na
volta”, 15/04/1964).
No dia seguinte à marcha, foi realizada a reunião de fundação oficial da CAMDE-
Niterói, a qual também contou com a presença do arcebispo. A presidente do núcleo
niteroiense da CAMDE era a senhora Maria José de Souza Cid, professora da rede pública
de ensino do estado do Rio. (Jornal do Brasil, “Vinte mil pessoas vão à Marcha da Família
realizada em Niterói”, 24/04/64)
As associações femininas aparecem no cenário ideologicamente polarizado
brasileiro, no início da década de 1960, como agentes de radicalização política
identificadas com os valores e as ideias das direitas no Brasil. Tendo em vista isso,
compartilhavam uma cultura política baseada no cristianismo, em defesa do que elas
entendiam ser uma “democracia-cristã”; e de uma cultura política autoritária e
anticomunista que defendia a propriedade privada e a manutenção do liberalismo político
e econômico.
As mulheres que formaram essas organizações femininas agiram a partir de uma
relação paradoxal, pois ao passo que no âmbito público atuaram como agentes políticas

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

258
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

na “linha de frente” da mobilização popular contra o anticomunismo, elas manifestaram-


se politicamente enfatizando suas raízes como mulheres do lar, a partir de seus papeis
como filhas, mães e esposas, uma vez que, toda sua luta é legitimada por um discurso de
âmbito privado o qual exaltava a luta em prol da manutenção de suas famílias e de todas
famílias brasileiras contra a ameaça da “comunização” do Brasil. (SIMÕES, 1985, p. 53)
Nesse contexto, o principal objetivo das entidades cívicas femininas, em Niterói,
era destituir Badger da Silveira do cargo de governador, visto que essas senhoras
antagonizavam com as ideias reformistas e trabalhistas do PTB. Além disso, Badger foi
um importante aliado político do presidente João Goulart (1961-1964), sendo um dos
oradores do comício da Central do Brasil, do dia 13 de março de 1964 (Última Hora,
“Jango: Rever a Constituição para as reformas”, 14/03/1964), organizado pelos
trabalhadores e por forças do governo em prol das reformas de base. Na visão das
associações femininas fluminenses, Silveira e Goulart eram responsáveis pela
disseminação das ideias comunistas e anticristãs, no antigo estado do Rio de Janeiro.

Impeachment de Badger da Silveira

No dia primeiro de maio de 1964, a abertura do processo de impeachment de


Badger foi aceito na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. De acordo com
o Jornal do Brasil, o estopim para o pedido de impedimento de Badger ser aceito, foi o
desentendimento do governador com o Comandante da 1ª Infantaria Divisionária,
General Manuel Rodrigues Lisboa. A rixa foi causada, porque o comandante da ID-1
indicou o Major do Exército José Bismarck de Sousa para assumir o comando da Polícia
Militar fluminense, mas o governador vetou a indicação (Jornal do Brasil, “Assembléia
fluminense vota impedimento de Badger”, 01/05/64). Segundo o jornal Diário Carioca,
Badger não aceitou a indicação, porque Bismarck de Sousa era membro do Comando
Revolucionário Civil e foi um dos oficiais que o prendeu no início de abril (Diário
Carioca, Badger: “Cair de pé”, 01/05/1964).
Constatamos, dessa forma, que o cargo de governador do estado do Rio estava
assegurado para Badger até o ponto que ele cumprisse as exigências do novo governo
golpista, mesmo com as pressões civis das entidades cívicas femininas e de alguns

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

259
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

políticos fluminenses, os quais batalhavam para que as resoluções da “Revolução de 64”


também fossem aplicadas à Badger. Só após o governador contrariar o Comando Militar
Fluminense, que o seu impeachment passou na Assembleia Legislativa. Paralelamente,
Silveira solicitou uma licença (Jornal do Brasil, “Assembléia decide entre licença e
impedimento de Badger da Silveira”, 01/05/64).
Em um mês, o Palácio do Ingá foi cercado novamente por militares e Badger da
Silveira foi deposto do cargo de governador do estado do Rio de Janeiro. Através do Ato
Institucional I, que previa a cassação de mandatos políticos considerados subversivos,
Silveira foi cassado por dez anos e perdeu seus direitos políticos.
Badger passou quatro horas e meia, em sua residência em São Francisco, sob
custódia do Exército, depondo para o Inquérito Policial Militar (Jornal do Brasil, “Cinco
militares cotados para o Palácio do Ingá”, 04/05/64). Segundo o Jornal do Brasil:

Os Srs. Badger Silveira e João Batista da Costa acusavam-se


mutuamente de comunistas, comprometidos com as esquerdas, o
primeiro fazendo profissão de fé democrática e anticomunista,
acusando o Vice-governador de ter recebido, na sua campanha, o apoio
dos comunistas; o segundo, denunciando as ligações do Governador do
Estado com o Gôverno deposto, incentivando a votação do seu
impedimento e responsabilizando-o através do noticiário, pelos
materiais subversivos apreendidos no Estado. Acabaram ambos
envolvidos através da imprensa, como beneficiários do dinheiro
estrangeiro destinado à subversão, o que apressaram em esclarecer,
desmentindo e negando, e ameaçados, os dois de impedimento. (Jornal
do Brasil, “Ato Institucional acabou com lutas políticas fluminenses”,
12/04/64)

Essa disputa entre o governador petebista e o vice udenista acabou levando o


impedimento de ambos, pois o vice-governador João Batista da Costa também foi
impedido de assumir o governo estadual (Jornal do Brasil, “Vice impedido vem ao rio
informar o PSD”, 03/05/64), assim, assumindo provisoriamente o Deputado Cordolino
Ambrósio, presidente da Assembleia Legislativa Fluminense (Jornal do Brasil, “Cansaço
de Badger não o deixa sair à janela”, 03/05/64). A partir de votação indireta, o General
Paulo Francisco Torres (1964-1966) foi nomeado governador do estado do Rio, com o
apoio dos partidos PSD e UDN (Jornal do Brasil, “Torres assume sozinho”, 06/05/64).
Após a deposição de Badger da Silveira, as marchas da Família com Deus pela
Liberdade se espalharam pela capital fluminense comemorando a vitória plena da
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

260
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Revolução de 64”, representada na figura do novo governador fluminense, o General


Paulo Torres, o qual juntamente com sua família compareceu as marchas (Jornal do
Brasil, “Marcha com Deus é também por Torres”, 10/05/64).
Dois meses depois do impeachment e da cassação dos direitos políticos de Badger,
o jornal Tribuna da Imprensa publicou um dossiê sobre o ex-governador declarando que
o mesmo seria enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Dentre as acusações estavam:
Incitação da greve dos marítimos do Grupo Carreteiro que levou a eclosão da Revolta das
Barcas, em 1953; Posse ilegal do governo fluminense devido à consanguinidade com o
ex-governador Roberto Silveira; Beneficiamento e corrupção através do jogo do bicho;

Comparecimento e apoio ao comício subversivo de 13 de março de


1964 na Central do Brasil, incentivando o povo fluminense a
comparecer em massa, inclusive fornecendo transportes em veículos do
Estado e das barcas e decretando ponto facultativo nas repartições
estaduais. [...] Atuação, decida, contra o movimento revolucionário de
31 de março de 64, discursando através da chamada “rede da
legalidade” de propriedade do sr. Leonel Brizola, chamando vários
militares de “gorilas”. (ARQUIVO NACIONAL, FUNDO CAMDE,
Tribuna da Imprensa, Dossiê mostra Badger rico, amigo de Jango e
agitador comunista, 06/07/64)

Vemos, portanto, que grupos anticomunistas após o golpe criaram um imaginário


entorno da figura do ex-governador Badger da Silveira, sendo apontado pelo jornal
Tribuna da Imprensa como “rico, amigo de Goulart e agitador comunista”. Além disso,
podemos observar a agência política das entidades cívicas femininas, as quais juntamente
com outros grupos ideológicos, Igreja, UDN e o Comando Revolucionário Civil, atuaram
como agentes radicalizadores contra o governo Badger.
Após seus direitos políticos serem cassados, Badger se afastou da vida pública.
Badger da Silveira foi o último governo democraticamente eleito do antigo estado do Rio
de Janeiro. Durante a ditadura civil-militar, no governo do ditador-general Ernesto Geisel
(1974-1979), efetiva-se a fusão do estado do Rio com o estado da Guanabara, levando às
configurações políticas e administrativas as quais vemos hoje.
Deste modo, Niterói deixou de ser a capital do estado e tornou-se um município
do novo estado do Rio de Janeiro, no qual a capital ficou na antiga região do estado da
Guanabara, consolidando a política carioca frente à política fluminense e comprovando o

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

261
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

receio de parte da população fluminense, principalmente, políticos e empresários, que


enxergavam a fusão como uma ceifadora de liberdade política e econômica,
respectivamente. (FERREIRA, 1997, p. 97)
Conforme os historiadores Marieta Ferreira e Mário Grynszpan, a discussão sobre
a fusão do estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro durante a ditadura civil-
militar não se deu sem altercações, posto que essa ideia remontava desde a Proclamação
da República, em 1889. A criação do estado da Guanabara na década de 1960 atenua as
discussões sobre a fusão, contudo, o debate retorna no início dos anos de 1970, alegando
“que a fusão traria progresso e bem-estar não apenas para as populações dos dois estados,
mas também em nível nacional, através da criação de um novo pólo dinâmico de
desenvolvimento”. (FERREIRA; GRYNSZPAN, 1994, pp. 15-16). Por fim, a fusão foi
aprovada e sancionada através da Lei Complementar n° 20, de julho de 1974 e colocada
em vigor em 1975.

Fontes

ARQUIVO NACIONAL, FUNDO CAMDE, Tribuna da Imprensa, Dossiê mostra


Badger rico, amigo de Jango e agitador comunista, 06/07/64. IN: Cartão, textos e recortes
de jornais sobre subversão, especialmente no governo de João Goulart III, pág.7

Correio da manhã, Gôverno e povo nas manifestações ao primeiro arcebispo de Niterói,


23/08/1960. Cód.: TRB00020.0171. Edição 20678 (1). Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/089842_07/8944> Acesso em: 12/08/2017

Diário Carioca, Badger: “Cair de pé”, 01/05/1964.Hemeroteca Digital da Biblioteca


Nacional.Cód.: TRB00322.0072. Edição 11079. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/093092_05/16486> Acesso em: 15/05/2017

Diocese de Leiria-Fátima, “Irmãs Missionárias de Nossa Senhora de Fátima”, 22/09/15.


Disponível em: <http://www.leiria-
fatima.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=9673:irmas-missionarias-
de-nossa-senhora-de-fatima&catid=79&Itemid=671>. Acesso em: 12/03/2018

Jornal do Brasil, Assembléia decide entre licença e impedimento de Badger da Silveira,


01/05/64. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02437.0172. Edição
00102 (3). Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=52676>
Acesso em: 20/06/2016

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

262
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Jornal do Brasil, Assembléia fluminense vota impedimento de Badger, 01/05/64.


Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02437.0172. Edição 00102 (3).
Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=52674>
Acesso em: 20/06/2016

Jornal do Brasil, Assembléia Legislativa sob custódia de tropas, 04/04/64. Hemeroteca


Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02437.0172. Edição 00079 (1). Disponível em:
< http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=51643>
Acesso 20/06/16

Jornal do Brasil, Ato Institucional acabou com lutas políticas fluminenses, 12/04/64.
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB00354.0072. Edição 00086 (1).
Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=51922>
Acesso em: 20/06/2016

Jornal do Brasil, Badger afirma que sua luta continua a mesma, 05/04/64. Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02437.0172. Edição 00080 (4). Disponível em:
< http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=51666>
Acesso 20/06/16

Jornal do Brasil, Badger desfaz explorações, 09/04/64. Hemeroteca Digital da Biblioteca


Nacional. Cód.: TRB02437.0172. Edição 00083 (3). Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=51818>
Acesso em: 20/06/16

Jornal do Brasil, Badger prêso em Palácio, 02/04/64. Hemeroteca Digital da Biblioteca


Nacional. Cód.: TRB00354.0072. Edição 00077 (1). Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=51610>
Acesso em: 15/06/2016

Jornal do Brasil, Batista da Costa continua articulando o impedimento do Governador


fluminense, 05/04/64. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Cód.:
TRB02437.0172. Edição 00080 (4). Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=51677>
Acesso em: 20/06/16

Jornal do Brasil, Cansaço de Badger não o deixa sair à janela, 03/05/64. Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02437.0172. Edição 00103 (5). Disponível em:
< http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=52716>
Acesso em: 20/06/2016

Jornal do Brasil, Cinco militares cotados para o Palácio do Ingá, 04/05/64. Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02437.0172. Edição 00103 (5). Disponível em:
< http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=52712>
Acesso em: 20/06/2016

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

263
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Jornal do Brasil, Consagração encerra amanhã festa iniciada dia 18 em louvor de N. S.


das Graças, 26/11/67. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Cód.:
TRB00354.0072. Edição 00201 (1). Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=107659>
Acesso em: 04/07/16

Jornal do Brasil, Duvidosa ainda a permanência de Badger à frente do Governo, 05/04/64.


Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB00354.0072. Edição 00080 (4).
Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=51683>
Acesso 20/06/16

Jornal do Brasil, Estado do Rio nega que o levante da PM fosse para depor Paulo Torres,
29/12/64. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB00354.0072. Edição
00306 (1). Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=62720>
Acesso em: 15/06/2016

Jornal do Brasil, Marcha com Deus é também por Torres, 10/05/64. Hemeroteca Digital
da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02437.0172. Edição 00109 (1). Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=53011>
Acesso em: 20/06/16

Jornal do Brasil, Torres assume sozinho, 06/05/64. Hemeroteca Digital da Biblioteca


Nacional. Cód.: TRB02437.0172. Edição 00105 (2). Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=52860>.
Acesso em: 20/06/2016

Jornal do Brasil, UDN do Est. do Rio dá seu apoio à revolução, 21/04/64. Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02437.0172. Edição 00093 (5). Disponível em:
< http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=52288>
Acesso em: 20/06/16

Jornal do Brasil, Vice impedido vem ao rio informar o PSD, 03/05/64. Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02437.0172. Edição 00103 (5). Disponível em:
< http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=52716>
Acesso em: 20/06/2016

Jornal do Brasil, Vinte mil pessoas vão à Marcha da Família realizada em Niterói,
24/04/64. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02437.0172. Edição
00096 (1). Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=52400>
Acesso em: 20/06/16

Jornal do Brasil, Vinte mil pessoas vão à Marcha da Família realizada em Niterói,
24/04/64. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02437.0172. Edição

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

264
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

00096 (1). Disponível em: <


http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_08&PagFis=52400>
Acesso em: 20/06/16

Jornal do Brasil. Badger reassume o Gôverno depois de 15 horas de prisão, 03/04/64.


Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB00354.0072. Edição 00078 (3).
Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_08&PagFis=51624>
Acesso em: 15/06/16

Tribuna da Imprensa, Costa e Silva: Voltei mais Candidato, 18/02/66. Hemeroteca Digital
da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02484.0172. Edição 04890 (1). Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=154083_02&PagFis=23655>
Acesso em: 22/06/16

Tribuna da Imprensa, Liga Feminina Exige: Interventor Federal, 17/04/64. Hemeroteca


Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02484.0172. Edição 04327. Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=154083_02&PagFis=16048>
Acesso em: 30/05/2016

Tribuna da Imprensa, Liga Feminina Exige: Interventor Federal, 17/04/64. Hemeroteca


Digital da Biblioteca Nacional. Cód.: TRB02484.0172. Edição 04327. Disponível em: <
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=154083_02&PagFis=16048>
Acesso em: 30/05/2016

Última Hora, Badger hoje em Brasília: Muda secretariado na volta, 15/04/1964. Cód.:
TRB00334.0072. Edição 01277. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/386030/99032> Acesso em: 12/08/17

Última hora, Badger vai a posse de Castelo Branco, 14/04/1964. Cód.: TRB00334.0072.
Edição 01276. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=386030&pagfis=98981> Acesso
em: 13/04/17

Última hora, Estado do Rio: Badger, 23/04/1964. Cód.: TRB00334.0072. Edição 01282.
Disponível em:
<http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=386030&pagfis=99258> Acesso
em: 13/04/17

Última Hora, Jango: Rever a Constituição para as reformas, 14/03/1964. Hemeroteca


Digital da Biblioteca Nacional. Cód.:TRB00334.0072.Edição 04304.Disponível
em:<http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=386030&pagfis=98056>
Acesso em: 10/07/17

Última hora, Badger (firme no Ingá)felicita Castelo Branco. 13/04/1964. Cód.:


TRB00334.0072. Edição 01275. Disponível em:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

265
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

<http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=386030&pagfis=98931> Acesso
em: 13/04/17

Referências bibliográficas

BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o udenismo: a ambiguidades do


liberalismo brasileiro, 1945-1965. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

CORDEIRO, Janaína Martins. Direitas em movimento: a campanha da mulher pela


democracia e a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2009.

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964).


São Paulo: Marco Zero, 1989.

FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. 1964: O golpe que derrubou um


presidente pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura militar no Brasil. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

FERREIRA, Marieta de Moraes. Niterói Poder: a cidade como centro político. IN:
MARTINS, Ismênia; KNAUSS, P. (Org). Cidade Múltipla: temas de História de Niterói.
Niterói, RJ: Niterói Livros, 1997. P. 73-100.

_______; GRYNSZPAN, Mário. A volta do filho pródigo ao lar paterno? Revista


Brasileira de História, São Paulo, v.14, nº 28, 1994. Disponível em: <
http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/526.pdf>. Acesso em: 12/03/2018

MENDES, Ricardo Antônio Souza. As direitas e o anticomunismo no Brasil. Disponível


em: <http://www.ufjf.br/locus/files/2010/02/As-direitas-e-o-anticomunismo-no-
Brasil.pdf> Acesso em: 20/04/2015

REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro:
Zahar, 2000.

SIMÕES, Solange de Deus. DEUS PÁTRIA E FAMÍLIA: As mulheres no golpe de 1964.


Petrópolis: Vozes, 1985.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

266
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“E se tudo que eu puder ser for um cadáver numa estrada iraquiana?”: uma
análise sobre Guerra ao Terror (2008)

ANDREY AUGUSTO RIBEIRO DOS SANTOS


Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC/UFRJ)
Bolsista CAPES

Introdução

Neste trabalho pretendemos fazer uma análise de como a Guerra do Iraque (2003-
2011) aparece no filme Guerra ao Terror, ou The Hurt Locker no original em inglês. Este
é uma produção que busca mostrar, em muitos momentos adotando o formato de
documentário, o cotidiano da unidade Bravo, um esquadrão anti-bombas norte-americano
em ação na ocupação do Iraque. JT Sanborn (Anthony Mackie), Owen Eldridge (Brian
Geraghty) e Matt Thompson (Guy Pearce) integram o esquadrão inicialmente, entretanto,
um erro faz com que Thompson morra devido a uma explosão. Em seu lugar é enviado o
sargento William James (Jeremy Renner), que possui um imenso sangue frio em ação, o
que acaba gerando atritos entre ele e a equipe, que o considera irresponsável.
Dirigido por Kathryn Bigelow e com um roteiro baseado nas experiências do
roteirista Mark Boal ao lado de um esquadrão anti-bombas, este filme teve um custo
estimado em 15 milhões de dólares, com um retorno de 14 milhões aos seus produtores.
Apesar destas cifras, Guerra ao Terror foi indicado e venceu várias premiações
importantes no meio cinematográfico. Ele concorreu a nove categorias do Oscar,
vencendo seis: melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro original, melhor edição,
melhor mixagem de som e melhor edição de som. Com isto se tornou o vencedor em
entrega de prêmios desta edição, batendo fortes candidatos como Avatar (2009), de James
Cameron. Além disto, também foi indicado a três categorias no Globo de Ouro, duas no
SAG Awards e a oito no BAFTA, das quais levou seis.
Algumas de suas premiações chamam a atenção, como a primeira vez que uma
mulher levou a estatueta de melhor diretor no Oscar e primeiro filme de guerra pós-Vietnã
a ganhar a categoria de melhor fotografia. Porém, graças ao seu baixo lucro é a produção
vencedora do título de melhor filme com a menor bilheteria desde que estes números

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

267
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

começaram a ser registrados. No Brasil foi lançado diretamente em DVD em 2009, mas
após as várias premiações foi relançado nos cinemas em 2010.
Além disto, recebeu críticas negativas de setores militares. Para estes o filme
mostrou uma representação irrealística da guerra, possuindo erros relacionados a
uniformes e equipamentos fora do padrão utilizado na época, além de mostrar um retrato
desrespeitoso dos soldados, principalmente do pessoal de dispositivos de armas
explosivas.
Levando em conta que esta produção surge num momento no qual a invasão do
Iraque; assim como a imagem do governo que a empreendeu, liderado por George W.
Bush; está com a popularidade baixa frente à população do país cremos que ele pode nos
mostrar algumas percepções sobre a forma como esta ação militar estava sendo enxergada
por esta sociedade neste momento. Assim, através desta análise buscaremos enxergar tais
aspectos presentes na película.

Partindo para a análise

Podemos dizer que para entender como se deu a Guerra do Iraque é necessário
voltar aos atentados de 11 de setembro de 2001. Apesar deste acontecimento ter sido
inegavelmente uma grande atrocidade, ele se tornou um evento histórico em maior parte
graças a direção para onde as armas estavam apontadas do que devido as dimensões da
catástrofe, nada incomuns se comparadas a alguns atentados passados. No entanto, o
último ataque ocorrido no território nacional dos EUA havia ocorrido em 1814, por mãos
britânicas, isto aumentou a importância do ocorrido (CHOMSKY, 2002).
A resposta aos atentados mostrou uma primeira reação estatal contra o terrorismo,
a chamada Guerra ao Terror. Porém, esta foi planejada às pressas, buscando mostrar para
a opinião pública norte-americana que o governo não estava ocioso frente aos autores do
ataque, o resultado disto foi uma ação equivocada. As guerras no Afeganistão e no Iraque
nos mostraram dois momentos de uma guerra clássica entre Estados, a qual não seria a
maneira correta para combater uma organização terrorista.
No Afeganistão o ataque teve amplo apoio internacional e resultados dúbios. O
regime Talibã, acusado de hospedar a Al-Qaeda foi derrubado; a Al-Qaeda desorganizada

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

268
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

e fragmentada e um governo afegão de unidade nacional foi constituído. No entanto,


Osama Bin Laden não foi capturado, a Al-Qaeda transferiu suas atividades para outros
países e o regime afegão estabelecido necessitava das forças de coalizão para se manter
(ZHEBIT, 2009, p. 41).
Já no conflito contra o Iraque a Guerra ao Terror teve seu objetivo desvirtuado,
graças a erros voluntários e acidentais. Esta acabou sendo uma extensão do conflito
ocorrido em 1991, utilizando o pretexto da busca por armas de destruição em massa e por
Bin Laden para derrubar o regime de Saddam Hussein. Ao contrário do conflito no
Afeganistão o ímpeto para esta guerra gerou cautela de outros países em apoiá-lo, graças
aos aparentes pretextos criados pelos EUA para encobrir tendências hegemônicas. Esta
impressão parece ter sido correta, já que testemunhas afirmaram, após o conflito, que o
país já havia destruído seu arsenal químico, não possuía programa nuclear e não abrigava
a Al-Qaeda (ZHEBIT, 2009, p. 45).
Assim, os EUA, tentando encobrir de maneira muito ruim seus interesses sobre
reservas de petróleo iraquianas, criou motivos para invadir o Iraque, apesar das
advertências de vários Estados. No fim, mesmo obtendo sucesso em sua primeira fase a
Guerra do Iraque foi um grande fiasco, desembocando numa clássica guerra de libertação
comparada ao Vietnã. Para muitos este empreendimento apenas desviou recursos da luta
principal e ajudou grupos terroristas, que fugiram para outros países (SILVA, 2009, p.
20).
É durante este conflito que a história contada em Guerra ao Terror ocorre,
tentando mostrá-lo do ponto de vista dos soldados norte-americanos, focando no stress e
no sofrimento que estes passaram neste empreendimento. O título do filme em inglês, The
Hurt Locker, já deixa este aspecto bem claro. A palavra Locker faria referência a um
armário com fechadura ou cadeado, um espaço reduzido onde alguém é preso e hurt
significa dor ou sofrimento. Assim, Hurt Locker seria uma gíria referente a uma situação
envolvendo dor ou problemas, um período de grande sofrimento físico e emocional da
qual uma pessoa não consegue ou não pode sair e seria uma clara referência a situação
dos soldados no conflito.
Há também algumas lembranças trazidas sobre a Guerra do Vietnã, desde a
expressão utilizada no título, que pode ser rastreada até este conflito, até o fato desta

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

269
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

produção ter sido a primeira a ganhar a categoria de melhor fotografia após o término
desta guerra. Isto se deve ao grande receio em torno da chamada Síndrome do Vietnã nos
EUA, relacionada ao grande número de baixas num confronto militar, e ao fato de que a
Guerra do Iraque deveria ter sido o modelo de nova guerra a ser seguido por este país no
século XXI, alicerçado numa poderosa ação terrestre baseada em alta tecnologia e na ação
de tropas de elite, que buscava justamente superar tal síndrome (SILVA, 2014, p. 270-
272).
Esta nova doutrina militar acreditava que, devido aos seus imensos recursos
técnicos, os EUA não precisariam de um grande contingente humano no Iraque como o
necessário em conflitos anteriores. Assim, a chamada Doutrina Rumsfeld, ignorando os
comandos militares, foi posta em ação, exigindo uma guerra rápida, barata e com
nenhuma baixa norte-americana. Esta doutrina buscava superar a MAD98, que limitava a
capacidade dos EUA de assegurar seus interesses devido aos altos custos de uma guerra
nos moldes tradicionais, mesmo sendo a nação mais poderosa do mundo.
Tentando superar esta limitação e reaver sua ação de liberdade política e militar
em qualquer parte do planeta os objetivos dos EUA na Guerra do Iraque, fazendo uso da
Doutrina Rumsfeld eram: exercer sua capacidade readquirida de agir sem necessidade de
consentimento prévio em fóruns internacionais; superar a Síndrome do Vietnã; ganhar
acesso a fontes de energia fóssil presentes na região; abrir caminho para uma
reconfiguração estratégica do Oriente Médio; propor uma potencialização da Revolução
Tecnológica em assuntos militares que desse a ele ao menos 25 anos a frente de
adversários e concorrentes e por fim implantar uma nova doutrina militar baseada no
“Espanto e Pavor”, uma maneira de infligir um dano maciço sobre o adversário através
do uso de alta tecnologia, fazendo com que este se rendesse imediatamente. (SILVA,
2014, p 270-272).
Porém, o uso intensivo de tecnologia não conseguiu assegurar o sucesso desta
empreitada militar, dando aos EUA uma grande derrota política ao fim do conflito. No
filme podemos ver uma referência a isto na cena da morte de Thompson. Logo no inicio

98
Abreviação de Mutual Assured Destruction, ou Destruição Mútua Assegurada em português. Termo
criado durante a Guerra Fria e que se refere a condição criada pela hostilidade entre dois Estados que
possuem arsenal nuclear, na qual tais países tem que levar em conta que o uso deste tipo de arma por um
dos beligerantes acabaria por destruir ambos, atacante e defensor.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

270
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

da história podemos ver a unidade Bravo sendo chamada para desarmar uma suposta
bomba num bairro iraquiano. O plano inicialmente era utilizar um robô para que a carga
fosse desabilitada sem riscos para as vidas dos soldados, que não precisariam se
aproximar do explosivo e correr o perigo de morrer, graças a constante possibilidade do
resistente que plantou a carga estar próximo, esperando o momento para acioná-la e
assassinar os soldados.
Porém, a máquina, aparentemente muito frágil, não chega nem perto de cumprir
seu objetivo. Assim, é necessário que Thompson tente desarmar a bomba na forma
tradicional. Na sequência, um resistente iraquiano acaba detonando a bomba e o soldado
morre devido aos ferimentos causados pela explosão. O recado que esta cena deixa é o de
como o imenso arsenal altamente tecnológico norte-americano acabou sendo de muito
pouca serventia neste conflito, um diálogo entre os personagens Sanborn e Thompson
deixa um pouco mais claro:

Sanborn: O reboque (máquina que os ajudaria a desarmar a bomba


remotamente) está com problemas.
Thompson: Você construiu aquilo?
Sanborn (ironicamente): Não, foi o exército dos Estados Unidos.
Thompson: Tudo bem, acho que vou lá. (BIGELOW, 2008, 04 min).

Ou seja, no fim, apesar de toda a tecnologia e recursos disponíveis, o sacrifício do


soldado ainda foi inevitável.
Esta cena, assim como todas as cenas nas quais a unidade trabalha para desarmar
uma bomba, também deixa explícito o sentimento de insegurança e desconfiança dos
soldados para com os iraquianos. Isto se deve ao fato de que, para eles, qualquer pessoa
próxima ao local de uma bomba poderia ser um potencial resistente, observando de uma
distância segura em meio aos civis e esperando o momento certo para detonar os
explosivos e assassiná-los.
Como ocorrido no Vietnã os Estados Unidos cometeram graves erros na Guerra
do Iraque, fazendo uma série de avaliações equivocadas como as do sentimento nacional
iraquiano, da força de coesão do islamismo e das consequências do caos causado pela
queda do governo iraquiano, assim como o saque de Bagdá e os abusos na prisão de Abu
Graib. Além disto, não foram capazes de avaliar o ressentimento antiocidental presente

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

271
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

na população local, assim, imaginaram que haveria uma adesão simples aos valores
considerados supremos pela administração Bush. No entanto, isto não ocorreu e na
verdade deu-se início a um movimento de resistência, que ofereceu grandes problemas às
forças de ocupação.
Como em qualquer guerra assimétrica a resistência iraquiana tentou produzir
insegurança, fazendo com que a violência no país tornasse sua reconstrução impossível.
Assim, reconhecendo sua inferioridade militar frente às tropas norte-americanas tentou
atacar o centro de gravidade do seu sistema político-militar. Para isto executaram um
grande número de ações pontuais, com retiradas rápidas, evitando o combate aberto, onde
a superioridade tecnológica norte-americana seria esmagadora (SILVA, 2009, p. 23).
Seus objetivos eram causar o maior número possível de baixas, evitar a
reconstrução econômica do país e causar um grande gasto financeiro para os americanos,
fazendo assim com que a população nos EUA exigisse uma retirada, mesmo sem derrota
militar. Esta estratégia deu certo, como fica aparente na queda dos níveis de popularidade
do Governo Bush com o decorrer do conflito.
A violência atingia principalmente estrangeiros, mas os iraquianos também
sofriam com ela e houve uma piora após as eleições em 2005, quando a estratégia evoluiu
para uma total inviabilização do sistema. Como resultado os americanos se viram
obrigados a manter a ocupação e se expor a perdas pesadas, tendo como únicas saídas
uma retirada humilhante ou a negociação com a insurgência (SILVA, 2009, p. 23).
Guerra ao Terror acerta em mostrar como era esta situação para os soldados
presentes na ocupação, tensão e desconfiança estão sempre presentes quando se trata dos
civis iraquianos. Uma cena em especial mostra o quanto esta desconfiança contribui para
a sobrevivência dos soldados. Numa das sequências na qual a unidade Bravo é chamada
para inspecionar um possível depósito utilizado por resistentes para a produção de
explosivos o Coronel Cambridge (Christian Camargo), um soldado com pouca
experiência em campo e que atuava mais como psicólogo do exército resolve acompanha-
los, cumprindo uma promessa feita a Eldridge.
Ao chegar no local, James e os outros cuidam da inspeção do prédio enquanto
Cambridge afasta os civis. A falta de experiência em campo por parte do coronel se faz
presente, já que ao contrário de todos os soldados até este momento no filme ele tenta

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

272
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

fazer com que alguns senhores iraquianos saiam do local de maneira muito educada. Isto
vai ocorrendo como pano de fundo enquanto o filme mostra as ações da unidade, e no
fim, depois de tentar durante muito tempo conversar com os senhores, Cambridge acaba
apelando para a truculência e expulsa os cidadãos, um pouco antes da unidade se retirar.
Assim que os civis se afastam, o coronel Cambridge, aparentemente sem nem perceber,
morre numa explosão causada por uma bomba aparentemente deixada pelas pessoas com
as quais tentou conversar (BIGELOW, 2008, 82 min).
Aqui o filme deixa um claro recado, qualquer iraquiano pode ser um inimigo. É
justamente sobre isso que pesam as críticas sobre a representação deste povo no filme.
Na tentativa de passar esta sensação de perigo onipresente os personagens que
representam este povo são retratados de maneira extremamente pobre, quase sem falas
traduzidas, sempre como pessoas indefesas que o exército norte-americano tem que salvar
ou como rebeldes terroristas. O único personagem próximo de ser uma exceção seria
Beckham (Christopher Sayegh), um menino que vende dvds perto da base onde a unidade
Bravo fica hospedada e se torna amigo de James.
Apesar desta representação pobre do povo do Iraque, também pudemos identificar
cenas que demonstram truculência ou violência desnecessária por parte de soldados norte-
americanos para com os nativos, supostamente justificadas pela insegurança causada pela
resistência. Numa delas, durante uma operação para desarmar uma carga de explosivos
um taxista iraquiano, aparentemente desorientado, rompe o bloqueio montado no local de
forma abrupta. Após alguns momentos de tensão, com várias armas apontadas para si o
motorista recua, quando é arrancado de dentro do carro e tratado de maneira
extremamente violenta. Uma frase proferida por James ao ver esta cena pode traduzir seu
significado para nós: “Bom, se ele não era um insurgente, agora com certeza é”
(BIGELOW, 2008, 19 min).
Em outra cena, ocorrida durante a tentativa de desarmar uma bomba próxima a
uma escola, um membro da resistência iraquiana é alvejado enquanto tentava balear os
integrantes das forças norte-americanas. Os soldados o socorrem ainda com vida, porém,
o Coronel Reed (David Morse) se aproxima e indaga:

Reed: O que tem aí?


Soldado: O tiro perfurou o peito, mas ele está estável.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

273
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Reed: Ele não vai aguentar.


Soldado: Vamos partir em 15 minutos. O ferimento não é fatal, senhor.
Reed: Ele não vai aguentar (BIGELOW, 2008, 33 min).

Logo após este diálogo o coronel dá as costas para o local e ouvem-se tiros, o que
deixa a entender que o insurgente foi executado. Ao mostrar um oficial condenando um
insurgente a morte a diretora obviamente traz um questionamento sobre a autoridade
moral destes personagens e à forma como a violência atingiu também os iraquianos,
resistentes ou não.
Além disto, o filme também investe pesadamente em demonstrar situações
extremas as quais os soldados são submetidos. É o exemplo da sequência na qual a
unidade Bravo passa horas num confronto estático com rebeldes, na qual, graças ao
formato documentário, a exaustão sentida pelos soldados fica bem transmitida ao
espectador (BIGELOW, 2008, 55 min). Outro exemplo é quando até o aparentemente
inatingível James desaba ao encontrar o corpo de um menino que estava sendo preparado
para se tornar um “cadáver-bomba”. Achando se tratar de Beckham, este é um dos únicos
momentos do filme no qual o personagem se mostra emocionalmente alterado
(BIGELOW, 2008, 81 min).
Podemos ver como toda esta situação afeta os soldados através dos personagens
principais. James visivelmente é viciado na adrenalina causada pela guerra, o que o faz
ter pouco cuidado com a própria vida, como fica claro durante o filme. Ele chega até a
criar afeto pelas coisas que poderiam tê-lo matado, como nos mostra uma cena na qual
seus companheiros acham uma caixa onde ele guarda pedaços de grande parte dos 873
dispositivos que ele conseguiu desarmar com sucesso (BIGELOW, 2008, 69 min).
Isto também fica claro quando ele volta para casa e se mostra nitidamente
deslocado fora do campo de batalha. Durante esta sequência, enquanto conversa com seu
filho recém-nascido ele se expressa sobre o quê e quantas coisas ama na vida, deixando a
entender que a adrenalina do campo de guerra é uma delas (BIGELOW, 2008, 123 min).
Provavelmente é para este personagem que uma citação feita no inicio do filme se dirige:
“A emoção da batalha costuma ser um vício forte e letal, pois a guerra é uma droga”.
Já Eldridge não consegue lidar com o perigo de morte constante. Durante várias
cenas ele toca no assunto, sempre deixando claro como este sentimento o incomoda
profundamente, podemos ver isto através de suas reações no decorrer da história e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

274
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

tentaremos demonstrar aqui através de dois diálogos. O primeiro ocorre com o Coronel
Cambridge, que visita Eldridge logo após a morte de Thompson:

Eldridge: Ei, é o senhor “seja tudo o que puder ser”. O que está
rolando?
Cambridge: Nada demais, como vai?
Eldridge: Vou bem. Mas tenho uma dúvida sobre esse lance de “seja
tudo o que puder ser”. E se tudo que eu puder ser é um cadáver numa
estrada iraquiana? Acho que é lógico, isto é uma guerra. As pessoas
morrem o tempo todo. Por que não eu? (BIGELOW, 2008, 27 min)

Em outra cena Cambridge o aborda para saber como ele está lidando com a morte
recente de Thompson e sua substituição. Aqui já está óbvio que Eldridge estava sob
constante observação psicológica, o que atesta seus traumas com a guerra.

Cambridge: Owen.
Eldridge: Oi, senhor.
Cambridge: Como vai?
Eldridge: Vou bem. Ótimo.
Cambridge: Qual é o problema? (Se referindo a um carro no qual o
soldado está aparentemente efetuando um reparo)
Eldridge: O freio está chiando. Não confio nos mecânicos
por aqui, sabe?
Cambridge: Como vai você?
Eldridge: Bem. Só quero checar o óleo. É. É bom dormir, comer bem.
Estou me sentindo muito bem, doutor.
Cambridge: É bom saber. Então está se dando bem com os outros
soldados da sua unidade?
Eldridge (em tom sarcástico): Sim, minha equipe é ótima. Meu líder
é inspirador.
Cambridge: Está sendo sarcástico, soldado?
Eldridge (ainda em tom irônico): Não. Ele vai me fazer morrer. Quase
morri ontem. Pelo menos vou morrer cumprindo meu dever, orgulhoso
e forte (BIGELOW, 2008, 47 min).

Dos três personagens principais Sanborn parece ser o mais centrado, apesar de
tudo. Porém, numa cena ocorrida logo após ele e James terem fugido por muito pouco de
uma explosão, devido a uma bomba acoplada ao corpo de um homem que afirmava ter
desistido de cometer um atentado e que James não conseguiu desarmar, ele também
demonstra, aos prantos, como o stress do conflito o faz se sentir. Segue o diálogo:

James: Você está bem?

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

275
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Sanborn: Ah, cara. Eu odeio este lugar.


James: Aqui. Tome um gole (Oferecendo suco).
Sanborn: Não estou pronto para morrer, James.
James: Você não vai morrer aqui, irmão.
Sanborn: Mais 5 centímetros. O estilhaço pega em mim, corta meu
pescoço. Eu sangro feito um porco na areia. Ninguém vai dar a mínima.
Meus pais vão ligar, mas eles não contam. Quem mais? Nem tenho um
filho.
James: Vai ter bastante tempo para isso, amigo.
Sanborn: Não, cara. Sabe? Já chega. Quero um filho. Quero ter um
menino, Will. Como você consegue? Assumir o risco?
James: Eu não sei. Eu só... Acho que não penso nisso.
Sanborn: Mas você sabe que todas as vezes que põe o traje, todas as
vezes que saímos é vida ou morte. Você joga os dados e lida com o
resultado. Sabe disso, não?
James: Sim. Sim, eu sei. Mas eu não sei o porquê. É. Eu não sei, JT.
Sabe por que sou do jeito que sou?
Sanborn: Não, eu não sei (BIGELOW, 2008, 118 min).

O medo no desabafo de Sanborn demonstra a falta de propósito que ele vê na


guerra em que está presente, pela qual não acha válido dar a vida. Assim, a pergunta que
esta produção tenta levar ao espectador, que assistia o filme e acompanhava o
desenvolvimento do conflito real, é: para que serve todo este sofrimento?

Considerações finais

Levando em conta o momento no qual Guerra ao Terror aparece - no qual os


EUA passam por um agravamento da crise de liderança em face ao mundo, colecionam
decepções na condução das guerras no Iraque e no Afeganistão, sofriam com a
emergência de uma crise financeira e especulativa e onde a administração Bush perdia
força e substância - cremos poder afirmar que o filme traz uma dura crítica ao
empreendimento que tentou alavancar uma investida imperialista dos EUA sobre o
Oriente Médio, a Guerra do Iraque.
Neste momento as expectativas de melhoria para o conflito não correspondiam a
realidade, Na verdade, em 2007 os EUA haviam enfrentado o pior ano na guerra, como
pode ser visto através dos números das baixas norte-americanas no conflito. A tentativa
de revolucionar a maneira de fazer guerra, impondo superioridade através do uso de
tecnologia e poupança de poder humano, se mostrou frustrada devido, principalmente, a

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

276
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

baixa organização e grande mobilidade do inimigo, o que classificaria este conflito como
uma guerra assimétrica (SILVA, 2009, p. 33)
Assim, o filme tenta mostrar ao espectador o quanto esta guerra serviu apenas para
desperdiçar as vidas, tanto dos soldados americanos quanto dos iraquianos. Para isto
investe em demonstrar o cotidiano altamente estressante destes personagens, tentando
fazer com que quem assiste se pergunte sobre os motivos pelos quais aquelas pessoas
estão se sacrificando, e se estes são válidos.

Fonte

The Hurt Locker. Direção: Kathryn Bigelow. Produção: Greg Shapiro, Kathryn
Bigelow, Mark Boal, Nicolas Chartier. Estados Unidos: 2008.

Referências bibliográficas

CHOMSKY, Noam. A nova guerra contra o terror. Traduzido por Carlos Afonso
Malferrari. Revista Estudos Avançados, São Paulo, v.16, n.44, jan/abr de 2002.
Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142002000100002&lng=en&nrm=iso#back>. Último acesso em 01 de Fevereiro de
2017 às 00:02.

_________________. Poder e Terrorismo. Rio de Janeiro: Record, 2005.

FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.


Guerra ao Terror (Filme 2008). Visualizado em http://www.adorocinema.com/filmes/filme-
123021/. Último acesso em 17 de Agosto de 2017 às 22:20.
Guerra ao Terror. Visualizado em http://www.imdb.com/title/tt0887912/. Último acesso em 21
de Março de 2017 às 02:14.

HOBSBAWM, Eric J. Globalização, Democracia e Terrorismo. São Paulo: Companhia


das Letras, 2007.

ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz
e Terra, 2010.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Guerra do Iraque (2003). In: SILVA, Francisco
Carlos Teixeira da; MEDEIROS, Sabrina; VIANNA, Alexandre Martins. (Orgs.)
Enciclopédia de Guerras e Revoluções – A época da Guerra Fria (1945-1991) e da
Nova Ordem Mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.

_______________________________. Os EUA e a guerra contra o terrorismo (2001-


2008). In: ZHEBIT, Alexander; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (orgs.).
Neoterrorismo: reflexões e glossário. Rio de Janeiro: Gramma, 2009.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

277
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

VISACRO, Alessandro. Guerra irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de


resistência ao longo da história. São Paulo: Contexto, 2009.

ZHEBIT, Alexander. A construção da estratégia global antiterrorista. In: ZHEBIT,


Alexander; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (orgs.). Neoterrorismo: reflexões e
glossário. Rio de Janeiro: Gramma, 2009.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

278
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Do Embargo à Imperatriz à Criação do Barão”

ANTONIO CARLOS HIGINO DA SILVA


Programa de Pos-Gradução em História Comparada
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Docas Dom Pedro II: Desafios da modernização no Brasil Imperial.


A partir do armazém (Armazém nº 5) que restou na avenida Barão de Tefé número
75 é possível confirmar, mesmo que parcialmente, a localização da Docas Dom Pedro II99
no Bairro da Saúde. Todavia sabe-se que a localização da doca não se restringiu ao bairro
da Saúde e que seu decreto100 de concessão estendia esse direito ao bairro da Gamboa.
Contudo o projeto não se implementou integralmente e a doca não atingiu o tamanho
desejado. Desta maneira, pretende-se recuperar especificidades das alterações ocorridas
a fim de resgatar a memória da localidade em questão. Para tal será realizado o
cruzamento de fontes (mapas, jornais, memória sobre o projeto), acreditando que novos
questionamentos surgirão contribuindo para a constituição de dados acerca de outros
aspectos (nomes, instituições, atores...) aqui analisados.

Google Maps 2017 [Av. Barão de Tefé 75] Disponível em: https://www.google.com.br/maps

Verde – Barão de Tefé


Azul – Rua Sacadura Cabral (antes Rua da Saúde)
Amarelo – Rua Argemiro Bulcão (antes beco da Pedra do Sal)
Vermelho – Rua Anibal Falcão
Roxo – Rua Coelho e Castro

99
Por uma questão de praticidade a partir deste momento sera usada a sigla DDPII.
100
Decreto 4492 de 30 de março de 1870.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

279
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nos dias de hoje o Armazém nº 5 limita-se pela rua Argemiro Bulcão a leste e
pela Praça Jornal do Commercio/Cais da Imperatriz a oeste. Ao sul encontra-se a Coelho
e Castro. Esse armazém se tornou uma estrutura central no sistema de armazenagem da
DDPII após alterações no projeto original. Mas ao observar o mapa101 de 1867 que foi
anexado a petição de 13 de dezembro do mesmo ano com o objetivo de solicitar a
concessão da DDPII nota-se a sua ausência, assim como, da atual rua Coelho e Castro. O
surgimento dessa nova rua e do Armazém nº 5 é um fator essencial na compreensão das
disputas pela localidade durante a implementação do projeto da companhia. Já a rua
Anibal Falcão que começa na rua Sacadura Cabral e termina na rua Coelho e Castro não
foi encontrada em plantas ou decretos da DDPII, mas também será analisada por meio de
outras documentações no intuito de estabelecer uma possível relação entre o seu
surgimento e a companhia. Sendo assim, a partir dessas três alterações serão investigados
os processos decorridos nessas transformações a fim de elucidar suas motivações,
consequências e atores envolvidos.
Primeiramente, no que se refere a rua Coelho e Castro pode-se dizer que seu
surgimento foi a última alteração imposta pelo poder público a DDPII antes da data
prevista para a inauguração das obras, 15 de setembro de 1871. O decreto de nº 4783 de
6 de setembro de 1871 aprovou alterações na planta de 1867 criando a rua hoje conhecida
como Coelho e Castro. Nota-se que a data do decreto é anterior a inauguração. Isso posto,
a criação da nova rua não representou uma surpresa no que se refere a cerimônia de
inauguração das obras. Mas ao observar a data do decreto pode-se deduzir que esta
intervenção a nove dias do início dos trabalhos pode ter representado uma vitória na
defesa dos interesses dos proprietários de estabelecimentos localizados na rua da Saúde
entre o beco da Pedra do Sal e a Praça Municipal/Largo da Imperatriz 102. Pois esses
proprietários não aceitaram a proposta inicial do projeto que previa a construção de um
muro de 2,5 m de altura que separaria seus estabelecimentos do acesso à baía. A
companhia era acusada de monopólio nas páginas do Jornal do Commercio por impedir
o funcionamento dos estabelecimentos ou pelas desapropriações que faria.

101
Ver Mapa de 1867 na paG 13
102
Por uma questão de praticidade a partir de agora será usada apenas a nomenclatura Largo da Imperatriz
para referir-se a esta localidade.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

280
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A substituição do muro de 2,5 m de altura pela construção da rua Coelho e Castro


é altamente significativo no contexto das disputas estabelecidas durante o processo de
implementação da companhia. Contudo há um aspecto de menor relevância que não pode
passar despercebido. A grafia do nome da rua em questão apresenta duplicidade. Na
atualidade o nome da rua é grafado Coelho e Castro e justifica-se esse nome dado a ela
porque as terras que deram origem a rua pertenciam a Coelho e Castro. Entretanto na
planta que foi anexada ao decreto nº 4783 criando esta mesma rua encontra-se escrito
Coelho de Castro.

Planta das Docas Dom Pedro II. 1871. Planta da 5ª Seção. Acervo da Superintendência do Patrimônio da
União SPU/RJ

Por considerar que compõe parte do objetivo deste trabalho a recuperação da memória
desta localidade será aberto um parêntesis para verificar a correta grafia do nome dessa
rua e o motivo de possuir este homenageado.
Foi por meio do decreto nº 1165 do executivo municipal de 31 de outubro de 1917
que se oficializou Coelho e Castro como o nome atual da rua. Esse decreto é composto
por dois artigos, mas uma série de considerações foram escritas antes deles.
O tom das considerações redigidas nesse decreto evidencia que a iniciativa
municipal em organizar os logradouros da cidade estava diretamente ligada a um elevado

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

281
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

grau de desordem existente na identificação destes nomes. As declarações de que existe


uma anarchia prejudicial ao município e aos municipes, que há nomes tradicionalmente
conhecidos que o povo repete a cada instante mudados por outro que só existem nas
placas cuja inscripção ninguém enuncia e, enfim, que não existe uma relação official dos
logradouros publicos da Cidade com a respectiva nomenclatura official definitivamente
acceita são elementos significativos para acreditar que 46 anos após o decreto de criação
da rua Coelho de Castro sua memória estivesse perdida.103
Uma memória publicada por Rebouças na Revista do Instituto Polytechnico no
ano de 1876, quando confrontada as considerações do decreto 1165 de 1917, contribui
para sustentar a argumentação da perda da memória do nome da rua e de seu
homenageado. Conforme as informações contidas neste artigo a homenagem é realizada
ao Dr José Machado Coelho de Castro, ex-inspector da alfândega e, naquele momento,
diretor do Banco do Brasil. Tal honraria se deveu ao fato do senhor Coelho de Castro ser
o primeiro acionista da DDPII e um dos principais patronos da empresa.
Sendo assim, a grafia correta do nome da rua é Coelho de Castro. O motivo da
homenagem não se relaciona a posse das terras que deram origem a rua, mas sim a
contribuição do homenageado enquanto acionista e patrono da DDPII.
A localização da rua Aníbal Falcão ao ser confrontada com o mapa de 1867 e com
a planta de 1871 demonstra estar situada quase no meio do antigo quarteirão que ficava
compreendido entre o beco da Pedra do Sal e o Largo da Imperatriz. Este posicionamento
será relevante para as demais descrições deste local.
Durante a obra de construção da DDPII foram arrendados trapiches a fim de
prover renda aos acionistas e pagar os custos da construção. Foram três os trapiches
arrendados: Pedra do Sal, Portas e Bastos104. Todos situavam-se na Rua da Saúde. Mas o
Pedra do Sal e o Portas estavam entre o beco da Pedra do Sal e o Largo da Imperatriz, ou
seja, no trecho que agora é analisado. Ao observar o mapa de 1867 vê-se que entre os
trapiches Pedra do Sal (Rua da Saúde 76 a 82) e o Portas (Rua da Saúde 98 e 100) havia
cinco depósitos e quatro estaleiros os quais não foram desapropriados e nem arrendados
ao menos até 20 de dezembro de 1871 conforme se verificará logo a seguir.

103
Notação 19. 1. 1. Legislação: Decretos Executivos. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
104
Conforme Almanak Laemmert 1872

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

282
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nessa data, segundo Delmiro José da Costa, ou seja, após o início das obras de
estacaria da DDPII, houve um acordo entre Rebouças e ele para que o estaleiro que
utilizava não fosse interditado pelas estacas. Sua solicitação justifica-se pelo futuro
lançamento de um vapor da Companhia de Transporte Marítimos que seria realizado por
meio deste estaleiro até o fim de janeiro de 1872.
No entanto, por meio de publicação do Jornal do Commercio105, Delmiro queixa-
se de uma quebra de acordo, pois as estacas foram lançadas desde o trapiche Pedra do Sal
até o Portas impossibilitando o lançamento do vapor a partir do estaleiro que se situava
na rua da Saúde 88. Considerando que os trapiches Pedra do Sal e Portas estavam por ela
arrendados, que segundo denúncia anônima ao Jormal do Commercio os
estabelecimentos da rua da Saúde entre os números 88 e 94 pertenciam a sogra de José
Machado Coelho de Castro e foram comprados pela DDPII por valores exorbitantes106,
que o estaleiro ao ter sua saída interditada pelas estacas foi altamente prejudicado e que
nos anos seguintes a 1872 as atividades de estaleiro e construção naval desenvolvidas por
Delmiro José da Costa foram transferidas para um novo endereço (Rua da Saúde, 184)
deduz-se que gradativamente a companhia impusera sua hegemonia no local. Pois ao
considerar que a companhia permaneceu usando os trapiches Pedra do Sal e Portas até o
seu arrendamento em 1877, ou seja, mesmo após a inauguração do Armazém nº 5, é ao
menos razoável concluir que essa estratégia conferiu considerável supremacia a DDPII
naquele espaço.
Exite ainda um dado que ratifica a hipótese que se pretende confirmar atinente a
essa localização. Em 1876, Rebouças confirma a aquisição pela DDPII de um terreno

quasi no meio do quarteirão da rua da Saúde, situado entre a praça Municipal


e a rua da Pedra do Sal […] com uma frente para a rua da Saúde e outra para a
nova rua Coelho de Castro [...] Projecta ahi construir o engenheiro André
Rebouças um vasto edifficio107

o qual teria o propósito de servir como entreposto central para preparação e armazenagem
de café. A descrição desse novo terreno da companhia coincide com aquela dos estaleiros
apontados na denúncia anônima já citada.

105
Dezembro de 1871
106
Jornal do Commercio Setembro de 1871.
107
Revista do Instituto Polytechnico 1876.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

283
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No entanto, a construção do entreposto de café neste terreno não se realizou, pois


a proibição de embarque de café pela companhia foi uma constante durante sua existência
proporcionando situações críticas. Após a saída de Rebouças da gerência da DDPII
encontramos o último, mas não menos significante registro sobre a localidade analisada.
Em seu diário no dia 12 de dezembro de 1878 a Câmara Municipal havia votado que se
denominasse rua André Rebouças aquela que liga a Rua da Saúde á fachada central do
Armazém nº5 da Docas de D. Pedro II.
Sendo assim, a rua que hoje é conhecida como Aníbal Falcão teria sido
inicialmente uma área composta por quatro estaleiros pertencentes a sogra de José
Machado Coelho de Castro. A impossibilidade de Delmiro da Costa em realizar suas
atividades o levou a transferir-se para outro local e somado a isso houve a aquisição pela
companhia destes terrenos com a finalidade de que fosse construído um entreposto de
café. Mas devido as disputas pelo armazenamento deste produto e pelas dificuldades
sofridas pela companhia o entreposto acabou não sendo realizado. Enfim, no ano de 1878
quando a companhia já havia sido arrendada pelo poder público este espaço que não foi
utilizado para o fim pretendido se destinou a criação de uma rua denominada André
Rebouças.
Finalmente, quanto ao Armazém nº 5, pode-se constatar que ele não seria o
armazém principal da DDPII. Na verdade, a ideia inicial foi de realizar um grande
armazém no Largo da Imperatriz que se chamaria Armazém Central. No entanto, o uso
deste logradouro público por parte do projeto de Rebouças se constituiu em uma questão
litigiosa que deixou vestígios no diário do engenheiro e no jornal da época. Nestas
diferentes fontes (jornal e diário) não fica evidente o motivo da perda do Largo da
Imperatriz e fica ainda mais confuso quando se considera que o projeto já havia recebido
parecer favorável da Câmara Municipal em março de 1868. Entende-se assim que a
inauguração realizada em 15 de setembro de 1871 não possuía impedimentos para o uso
do Largo da Imperatriz. Todavia isso não inibiu a Câmara Municipal de embargar a obra
no dia de sua inauguração diante de vários membros da corte incluindo a Princesa Isabel
em sua primeira aparição pública como Regente do Império.
Contudo o que teria ocorrido entre março de 1868 e setembro de 1871 que levou
a Câmara Municipal a apresentar um embargo a DDPII no dia da sua inauguração?

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

284
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Embora ainda não se possa precisar porque o Largo da Imperatriz, mesmo após o parecer
favorável de março de 1868, se tornou uma arena de disputa entre a Câmara Municipal e
a DDPII; alguns elementos presentes nos dados levantados podem ajudar a elucidar,
mesmo que parcialmente, essa questão.
A narrativa do Jornal do Commercio no dia seguinte a inauguração as obras da
DDPII é marcada pela grandiosidade do evento. Entre os convidados estão importantes
pessoas da corte imperial, ministros e diretores da DDPII. O Largo da Imperatriz estava
adornado, havia um palanque onde foi realizado um discurso inaugural para a obra e um
malhete de ouro foi entregue ao Conde d'Eu pelo engenheiro André Rebouças. No Largo,
além da mesa imperial, havia três mesas de 50 talheres cada uma franqueada aos
convidados.
O uso do Largo da Imperatriz era uma questão primordial no projeto original, pois
neste local se instalaria o Armazém Central da DDPII que remeteria os demais
estabelecimentos da rua da Saúde a um significativo isolamento das atividades
comerciais. Nesta circunstância não se vislumbrava a mínima hipótese para construção
do Armazém nº 5 como pode ser constatado pelo lançamento da primeira pedra na
cerimônia de inaugurção das obras no Largo da Imperatriz.
Durante as intervenções das obras do projeto Porto Maravilha realizado com
objetivo revitalizar a zona portuária do Rio de Janeiro para as olimpíadas de 2016 foram
realizadas escavações acompanhadas de supervisão arqueológica. Entre os seus achados
de cultura material foi encontrada a primeira pedra da DDPII.
A descrição e análise desta descoberta arqueológica foi realizada em abril de 2016
em artigo publicado nos Anais do Museu Paulista:

Por razões técnicas da obra, foi feito um desvio para dentro da área da praça,
tendo essa nova trincheira alcançado 28,40 m de comprimento, 1,50 m de
largura e 1,0 m de profundidade. No decorrer dessa escavação, foi encontrado
um grande bloco retangular de granito finamente lavrado, em frente ao nº 105
da av. Barão de Tefé e junto ao meio-fio da Praça Jornal do Commercio, a 2,50
m de profundidade. Sobre o bloco de granito lavrado, foram incrustadas as
iniciais DDPII, em mármore preto e branco; e no alto, à esquerda, a data 15-
09-1871. No centro do bloco, um recorte quadrado na pedra, medindo 0,35 x
0,35 m, sinalizava a existência de um compartimento interno, selado por uma
tira de metal para impedir sua abertura. O bloco foi progressivamente escavado
à toda volta, de modo a ser exposto em sua totalidade, e também para verificar
se a peça estava isolada ou associada a alguma estrutura. Após a sua exposição
total, foi constatado que não havia outras evidências senão o bloco, cabendo
então proceder a sua identificação.[...] Após rápida investigação, foi verificado

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

285
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que se tratava da pedra fundamental do edifício das Docas D. Pedro II, situado
na quadra seguinte da Av. Barão de Tefé, próximo ao Cais da Imperatriz, a
cerca de 60 m do local do achado. Essa grande distância é pouco usual, já que
pedras fundamentais são em geral colocadas acima das fundações de uma
construção, e não tão afastadas dela. Por ora é desconhecida a razão desse
distanciamento, que pode ter sido decorrente de um açodamento em lançá-la,
ainda que fora do lugar de praxe.(LIMA, SENE, SOUZA, 2016. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
47142016000100299#aff1 )

Embora a razão do distanciamento seja desconhecida pelos produtores do artigo fica


evidente que a descrição técnica do achado não deixa dúvida que a pedra se encontrava
distante do futuro local do Armazém nº 5, que não havia outras evidências naquela
localidade senão o bloco e que ela se achava no que era o cerne do Largo da Imperatriz.
Essas informações somadas as evidências documentais referentes ao projeto original da
DDPII explicam a instalação da pedra no local onde ela foi encontrada, assim como,
confirmam que até a data da inauguração da obra não se esperava que tantas intervenções
por parte do poder público fossem acontecer.

Isso mantém ainda incógnita a motivação do embargo ao Largo da Imperatriz.


Mas se o seu motivo é ainda desconhecido, suas consequências não são. A primeira delas
aconteceu ainda durante o embargo, pois no dia seguinte a inauguração das obras alguns
funcionários foram presos ao tentar dar prosseguimento aos trabalhos. A soltura dos
funcionários só ocorreu no dia 20 de setembro. E a segunda consequência ocorreu após a
queda do embargo, pois embora tenha possibilitado o início das obras no dia 27 de
novembro de 1871, interditou o uso do Largo da Imperatriz a DDPII.

A autorização para enfim dar início as obras em novembro de 1871 não


representou uma retomada nos planos idealizados por Rebouças, pois foi necessário
realizar uma reconfiguração no projeto da DDPII. Essa nova intervenção do poder público
retirando o Largo da Imperatriz foi acompanhada da autorização da criação, em área de
aterro, de um espaço proporcional ao que foi perdido. Nesse lugar se instalou o Armazém
nº 5 e a rua Coelho de Castro. Mas a concepção do até então inexistente Armazém nº 5
só ocorreria durante viagem realizada para a Europa entre novembro e dezembro de 1872
em parceria do engenheiro Louis Barret responsável pelas docas de Marselha.
A partida para Europa e Estados Unidos mescla trabalho e turismo durante onze
meses. Nesse período Rebouças busca novas soluções para as adversidades que se

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

286
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

iniciaram com o embargo do Largo da Imperatriz, mas que precisavam se resolver na área
de aterro que foi criada e que hoje conhecemos por Barão de Tefé 75.

Docas ou Monopólio de Trapiches?

No ambiente privado, dentre os atores sociais indicados nas descrições expostas


até momento pode-se destacar a figura de Antonio Gomes de Mattos e Mariano Procópio
Ferreira Lage. Esse último, engenheiro, mineiro da cidade de Barbacena, atuou no projeto
da primeira estrada pavimentada do país, foi sócio de Rebouças nas companhias das
Docas da Alfândega e de Dom Pedro II e também participou da Estrada de Ferro Dom
Pedro II a fim de explorar o serviço de integração entre a Central e a estação portuária
por meio da Empresa Metropolitana. Sua versatilidade o colocou em direta oposição a
Rebouças, segundo as descrições biográficas estudadas.
Os meios utilizados para se apresentar como detentor do direito de propriedade
intelectual, pressuposto imprescindível das ideias liberais, são os mais variados.
Rebouças apela para a lembrança da sua publicação intitulada Estudos de Portos do Mar
de maio de1862 publicada na Gazeta Mercantil e no Diário Oficial, afirma que a EFDPII
era dirigida por Bento Sobragy em 1867 quando iniciou os estudos da DDPII, ou seja,
antes de Procópio, Bulhões e Bicalho terem parte na administração da estrada de ferro.
Por fim, apresenta duras críticas técnicas e financeiras ao projeto, reafirma que o direito
de prioridade é o direito de prioridade, que esse direito cabia a DDPII patenteado pelas
publicações realizadas no Diário Oficial de maio de 1862, mas reconhece a perda da
concessão desde março de 1870.
A resposta de Bicalho, sócio de Mariano Procópio, pautou-se também na
comprovação do direito de propriedade e sua narrativa procurou atestar a anterioridade
de sua ideia. Afirmava que por circunstâncias econômicas o projeto não foi realizado
anteriormente e que isso não se relacionava a qualquer desconhecimento ou desinteresse
em realizar tal projeto. Reforçou as vantagens do projeto lembrando que entre os
peticionários, embora não citados por Rebouças, estavam o Barão de Mauá, o Barão da
Lagoa e Ferreira Lage. Enfim, reconheceu ironicamente que a discussão no jornal seria
importante para evitar dúvidas acerca da Empresa Metropolitana e que assim,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

287
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

consequentemente, não seria embargada quando sua concepção se tornasse uma


realidade.
Rebouças rebateu indicando que se houvesse além da DDPII outra concessionária
esta seria a Companhia Locomotora, pois sua petição datava de 1861. E dessa forma os
antagonistas seguem apresentando documentos e fatos para justificar seu direito de
prioridade sobre a concessão. No intervalo dessas publicações apareceram textos
menores, uns anônimos e outros não, se posicionando diante da celeuma. Dentre esses
destaca-se um texto em francês assinado por M.M. que no intuito de conferir originalidade
ao projeto de Rebouças atesta que sua carreira de engenheiro de Docas foi planejada desde
sua chegada ao Rio de Janeiro em 1846 com oito anos de idade. Os planos citados nessa
narrativa teriam sido orquestrados pelo médico de suas majestades, o Dr. Meirelles, e pelo
seu amigo, o Conselheiro Antonio Rebouças.
Bicalho apresentou documentos para comprovar que o planejamento do ramal de
ligação era mais antigo que o planos de Rebouças. Também sustentou que a concessão da
Locomotora era provisória e complementar não sendo concorrente com o percurso
proposto pela Metropolitana.
Assim os opositores se sustentaram nas páginas do jornal até o dia 28 de setembro
de 1871 quando Rebouças republicou em português um texto que antes havia sido
publicado em francês para rebater críticas de Bicalho. Entretanto, não houve nova
publicação para responder as últimas indagações acerca da provisoriedade da Locomotora
e nem da anterioridade do ramal de ligação. Todavia, ao recorrer a compilação do diário
e as notas autobiográficas de Rebouças nesta data encontra-se:

O Barão da Lagôa encontrando-me na Praça do Commercio ás 11 ¹/2 , depois


da Assembléa Geral, disse-me que o Barão de Mauá me esperava no seu
Banco. Efetivamente lá compareci e o Barão de Mauá comunicou-me que fazia
esforços para conseguir um acordo entre as Dócas de D. Pedro e a empreza
metropolitana. Disse-lhe que não repugnava a esse acordo, uma vez
abandonada as idéas de monopolio de comercio de café do Mariano Procópio
ás quais o Barão de Mauá impediu que fossem consignadas na petição do
Governo. (FLORA E VERÍSSIMO, 1938:196)

A interminável busca pela origem do direito de propriedade entre Bicalho e


Rebouças, no recorte selecionado, pareceu terminar com um silêncio de Rebouças nas
páginas do jornal. Na solução apresentada fora das páginas da imprensa o monopólio que
a DDPII não conseguiu, também não foi cedido para outro. Enfim, é verdade, que nem a

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

288
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

DDPII e nem a Metropolitana conseguiram a concessão tão desejada, mas isso é um outro
assunto. O mais significativo é que de fato a ideia de prioridade remonta a um ideal de
propriedade de cunho monopolista entre os opositores.
Já o engenheiro citado por Santos, na verdade, chama-se Antonio Gomes de
Mattos Júnior e é filho de Antonio Gomes de Mattos comendador estabelecido no
município de Maricá, figura relevante do partido liberal, possuidor de mais de duzentas
braças de terras e major aposentado sem remuneração pelo Ministério da Guerra em 20
de outubro de 1855.
Antonio Gomes de Mattos Júnior tem sua formação em engenharia realizada na
Marinha e em 1850 é Guarda Marinha. Em 1855 vai estudar na Europa especializando-se
em máquinas a vapor. Retorna em 1856 e nesse mesmo ano começa a trabalhar no Arsenal
de Guerra, função que exerceria até 1863, no entanto, a partir do ano de 1859 em
concomitância com a atividade de engenheiro da Companhia Brasileira de Paquetes à
Vapor (CBPV).
No ano de 1864, não mais como diretor das oficinas de máquinas do Arsenal de
Guerra, recebe a condecoração de oficial da Ordem da Rosa pelos bons serviços prestados
naquela função. Sua trajetória segue na CBPV até 1867 quando tornou-se sócio e gerente
das oficinas de Jonh Maylor na Rua da Saúde nº 136. Neste momento os destinos de
Rebouças e Gomes de Mattos Júnior se encontraram definitivamente.
A contar do mesmo ano os engenheiros se estabeleceram no Valongo, hoje Saúde,
a fim de constituírem, como empreendedores, projetos muito ambiciosos. Os planos de
Rebouças já foram apresentados. Entretanto, quanto a Gomes de Mattos Júnior, depois de
ter chefiado as oficinas de máquinas do Arsenal de Guerra e ter sido engenheiro da CBPV
lançou-se em dois novos empreendimentos. O primeiro deles é o estabelecimento de uma
sociedade com as oficinas de John Maylor em 1867 e o outro ocorre em 1873 quando
assume a função de secretário da Companhia de Navegação Transatlântica que tem seu
escritório na rua Visconde de Inhaúma 26.
Foi no desenvolver dessas duas últimas atividades que os confrontos se
intensificaram entre Rebouças e Gomes de Mattos Júnior. nas páginas do Jornal do
Commercio. Desde o dia seguinte a inauguração das obras. Primeiramente atuou de forma
anônima apresentando todo tipo de crítica ao projeto. Seus artigos apresentavam desde

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

289
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

contestações ao discurso de inaugural da DDPII e aos detalhes técnicos mais precisos até
as movimentações de ações da companhia. Pois enquanto engenheiro e empresário deu-
se o direito de analisar tudo que representasse uma ameaça aos seus interesses e uma
fragilidade da DDPII. Dessa forma se colocou como representante dos proprietários dos
estabelecimentos que seriam desapropriados, deu apoio ao embargo da Câmara as obras,
se tornou um crítico ferrenho às alterações que propuseram a construção de molhes
perpendiculares em madeira ou ferro e realizou uma petição solicitando outro embargo a
obra para submeter a alteração do projeto (molhes de ferro) a uma avaliação por uma
comissão de engenheiros. Sua última publicação se deu no dia que Rebouças embarcou
em sua segunda viagem para a Europa. Neste artigo considerou encerrada as discussões
e embora a comissão de engenheiros tenha sido organizada para analisar a obra, não
conseguiu o novo embargo pretendido. Por entender que os direitos dos proprietários
estavam confirmados considerou que este era o ponto final do embate.
Por fim, como parte processo de levantamento de dados da pesquisa em
andamento sabe-se que os apontamentos anida não são conclusivos. Mas se espera que o
presente trabalho possa ter contruibuído no aprofundado de aspectos relevantes à lógica
de funcionamento do porto e da cidade durante o Segundo Reinado. Sendo assim,
evidenciando minúcias dos mecanismos de disputas pelo espaço portuário e pelas formas
de geri-lo.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

290
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Planta das Docas Dom Pedro II 1867. Acervo da Superintendência o Patrimônio da União SPU/RJ

FONTES PRIMÁRIAS

Almanak Laemmert. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Coleção de Leis do Império do Brasil. Ano1871,

Jornal do Commercio. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Mapa das Docas Dom Pedro II 1867. Fonte: Acervo da Secretaria do Patrimônio da União
SPU/RJ. Ministério da Fazenda

Notação 19. 1. 1. Legislação: Decretos Executivos. Decreto nº 1165 de 31 de Outubro de


1917. Fonte: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

Planta da 5ª Seção das Docas Dom Pedro II 1871. Acervo da Superintendência do


Patrimônio da União SPU/RJ. Ministério da Fazenda.

REBOUÇAS, A. Melhoramento do Porto do Rio de Janeiro. Organisação da Companhia


das Docas de D. Pedro II. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1869. Disponível em
<http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or1451407/or1451407.
html> Acesso em 12 03 2015 10:37

REBOUÇAS, A. Obras Hydraulicas: Noticias sobre a organisação da companhia Docas

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

291
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Dom Pedro II. Revista do Instituto Polytechnico, 1876. Disponível em


<http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or1451407/or1451407.
html> Acesso em 12 03 2015 10:37

Revista de Engenharia. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Revista do Instituto Polytechnico. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

REFERÊNCIAS

CARVALHO, M. A. R. de. O Quinto século.. André Rebouças e a Construção do Brasil.


Rio de Janeiro: Revan: IUPERJ-UCAM, 1998.

CRUZ, M. C. V. e. O porto do Rio de Janeiro no século XIX: Uma realidade de muitas


faces, 1999. Disponível em <http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_livres/artg8-
7.pdf> Acesso em 03 05 2015

FLORA, A. e VERÍSSIMO, I. J. Diário e Notas Autobiográficas. Rio de Janeiro: Editora


José Olympio, 1938.

GRINBERG, K. Liberata a lei da ambiguidade. Ações de liberdade da Corte de apelação


do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Editora Relume Delumara, 1994.

_____. o Fiador dos brasileiros. Cidadania, escravidão e direito civil no tempo de


Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002

HONORATO, C. T. O polvo e o porto. São Paulo: Hucitec, 1996.


LAMARÃO, S. T. de N.. Dos Trapiches ao Porto. Um estudo sobre a área portuária do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Divisão de Editoração, 2006.

LIMA, T. A.; SENE, G. M.; SOUZA, M. A. T. de. Em busca do Cais do Valongo, Rio de
Janeiro, Século XIX, 2016. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
47142016000100299#aff1 , acesso em 21 de abril de 2017.

PESSANHA, A. S. Da Abolição da Escravatura à Abolição da Miséria: a vida e as idéias


de André Rebouças. Rio de Janeiro: Quartet, 2005.

PIÑEIRO, T. L. A Política dos Negociantes e o Porto do Rio de Janeiro no século XIX.


Disponível em
<http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300890045_ARQUIVO_Negocian
tesePortodoRJ.pdf> Acesso em 02 05 2015

REBOUÇAS, A. Companhia das docas de dom Pedro II nas enseadas da Saúde e da


Gamboa no porto do Rio de Janeiro: publicação dos documentos que precederão e
motivarão sua organização. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger, 1871.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

292
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SANTOS, S. M. G. dos. André Rebouças e o seu tempo. Rio de Janeiro: Sindicato


Nacional dos Editores de Livros, 1985

TRINDADE, A. D. André Rebouças: Da engenharia civil à engenharia social.


Campinas: UNICAMP, 2004.

VERÍSSIMO, I. J. André Rebouças através de sua auto-biografia. Rio de Janeiro: Editora


José Olympio, 1939.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

293
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

De movimento cultural a cânone brasileiro. As entidades representativas dos


poetas e a institucionalização do “popular” na literatura de cordel.
ANTONIO HELONIS BORGES BRANDÃO
Doutorando em História – PPGH / UFF

Considerações iniciais

O cordel brasileiro em sua trajetória de mais de 100 anos já tem uma história de
produção consolidada e vem se firmando como gênero literário, dispondo de um cânone
poético e modelo editorial bem definido.
Desde que foram impressos os primeiros folhetos, ao do final do XIX, pelo
reconhecido precursor, o paraibano Leandro Gomes de Barros108, é possível verificar um
movimento contínuo de estabelecimento deste cânone literário, bem como um crescente
interesse como objeto de estudo, do que desde o seu nascedouro foi associado à chamada
poesia popular.
Esse caráter de poesia “popular”, como “expressão espontânea da alma nacional”
(ORTINZ, 1985, p. 22), teria sido inventado ainda no século XVIII, pelos escritores
românticos.
Posteriormente, seria reinventada pelos folcloristas, em meados do XIX, sob
outros critérios, de cunho evolucionista e cientificista (ORTINZ, 1985), principalmente
nas regiões periféricas ao capitalismo emergente no continente europeu e em oposição ao
poder centralizado do estado nacional vigente (BURKE, 1998).
Em seu nascedouro os estudos folclóricos buscavam recolher e identificar os usos,
costumes, folguedos, práticas e expressões da sabedoria popular, tendo como referências
a ancestralidade e origem imemorial, decorrente dos traços definidores de uma oralidade

108
O Paraibano de Patos, Leandro Gomes de Barros (1864-1918), é considerado o inventor do modelo
editorial, quando em 1893, ou pouco antes, passa a publicar narrativas, histórias, pelejas e romances em
folhetos de versos, na cidade do Recife, em Pernambuco. Ver: LITERATURA Popular em Verso:
Antologia. Leandro Gomes de Barros. Rio de Janeiro: MEC\FCRB\UFPB, 1977.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

294
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

impessoal e perdida, com raízes fincadas no meio rural, e como autêntica expressão do
que chamavam de “alma nacional”.109
O programa estabelecido pelos folcloristas terá uma forte influência nos estudos
das práticas e tradições populares, notadamente no tipo de poesia impressa em folhetos,
característica da linguagem e modelo editorial inventado por Leandro Gomes de Barros.
O que nos parece relevante, e fonte de incongruências que serão levantadas e
discutidas aqui, é que desde o surgimento do modelo editorial do que chamaremos de
cordel brasileiro, ao final do XIX, ele é referenciado também como objeto de estudo dos
intelectuais como parte de uma tradição: a da poesia e da cultura popular.
Uma matriz de estudos do cordel se estabelecerá desde então, e chega até os nossos
dias exercendo influência como modelo de análise e constituição deste objeto.
Assim, após os seus inventores, o interesse pelos folhetos de versos terá
continuidade nas reportagens dos jornalistas, seus difusores a partir dos anos 40, bem
como nos radialistas, cineastas, teatrólogos, enfim nos mass media e no meio artístico.
Um exemplo é o do escritor e Jornalista Orígenes Lessa 110, que em meados dos
anos 50, no Rio de Janeiro, será um grande difusor do cordel entre um novo público
consumidor, o das classes médias nas grandes cidades do Sudeste brasileiro.
Também o meio acadêmico e universitário, que aqui situamos por volta de 1955,
quando dos primeiros estudos de caráter sociológico e institucional, como o de Renato
Carneiro Campos111, que pulverizado em diversas abordagens, pouco-a-pouco se
distanciará da perspectiva do folclorista.
Utilizando-o como fonte de informação e pesquisa, o mundo da academia fará
uma análise de cunho científico e com metodologias múltiplas para analisar o cordel como
objeto de estudo de várias ciências, notadamente na Crítica Literária, Sociologia, História,

109
Sobre uma genealogia crítica do conceito de cultura popular a partir da Europa, que foi replicado no
Brasil, o estudo pioneiro de Renato Ortinz nos faz refletir sobre a construção da identidade nacional a partir
do discurso de intelectuais. Ver: ORTINZ, Renato. Românticos e Folcloristas. São Paulo: PUC, 1985.
110
Este autor trata dos folhetos nordestinos sob o ponto de vista do jornalista e o divulgaria amplamente, o
que chamava então de “literatura popular em verso”, entre um público consumidor distinto do que consumia
o cordel até então. Ver: LESSA, Orígenes. “Literatura Popular em Verso”. Anhembi. São Paulo: 21, (61):
68-87, dez. 1955.
111
O estudo de Renato Carneiro Campos inaugura, sob o ponto de vista das Ciências Sociais, um tipo de
abordagem a respeito dos “folhetos populares” Ver: CAMPOS, Renato Carneiro. “Folhetos populares na
Zona dos engenhos de Pernambuco”. Boletim do Instituto Joaquim Nabuco, Recife, 4, 1955.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

295
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Semiótica, Pedagogia, só para citar algumas das perspectivas e abordagens possíveis para
estudar o cordel.
Por fim, os próprios poetas também estarão se posicionando neste campo de
embates, onde quase sempre estiveram a reboque como objeto de análise e estudo, mas
não como protagonistas de sua própria história na constituição de uma consciência
autoral, muitas vezes reproduzindo a ideia falseada de poesia distinta ou menor.
Assim, um movimento de organização dos poetas da literatura de cordel surgiria
a partir de 1955112, a princípio na esteira de reivindicar melhores condições de trabalho,
direitos e reconhecimento da categoria como classe organizada. Depois, o movimento
ganharia contornos de luta pelo reconhecimento enquanto arte, de valor estético, como
parte importante da cultura brasileira, constituído verdadeiro cânone de um gênero
literário rico e único.
No contexto de afirmação de um campo intelectual no Brasil, o dos estudos
culturais, e no embate que se estabelece entre os ideais folcloristas e a nova realidade
advinda da consolidação das Ciências Sociais no Brasil, que teremos aqui a possibilidade
de fazer uma leitura também do ponto de vista da história intelectual.
Por outro lado uma consciência autoral e de classe dos autores, que produzem e
estão na linha de frente da divulgação e circulação do modelo editorial, será fortemente
influenciada pelos que estão também interessados em utilizá-lo, estudá-lo ou divulgá-lo.
Assim, nos utilizaremos também do cabedal teórico da história do livro e das
práticas de leitura, nos usos, práticas e apropriação culturais (CHARTIER, 1990), para
entendermos os usos diferenciados da literatura de cordel na construção do seu ideário de
gênero literário, quase sempre dado, naturalizado, como “popular”.
No processo de sua construção como cânone e gênero literário, sempre associado
à chamada cultura popular, o nosso objeto de estudo será apresentado aqui em dois
movimentos: o da tradição inventada e constituída pelos estudiosos, folcloristas,

112
O I Congresso Nacional de Trovadores e Violeiros foi realizado em Salvador, no ano de 1955.
Organizado pelo poeta alagoano Rodolfo Coelho Cavalcante foi a primeira tentativa de organização da
classe. Sobre o mesmo, ver: CURRAN, Mark. A presença de Rodolfo Coelho Cavalcante na moderna
literatura de cordel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: FCRB, 1987.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

296
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

jornalistas e meio universitário; e a da organização e institucionalização em associações


e academia por parte dos autores, os poetas de cordel.

A tradição dos estudos folcloristas definido o “popular” no cordel

Os folcloristas introduziram no Brasil o estudo da chamada poesia popular como


estratégia para consolidação de uma pretensa identidade nacional, tendo no mito das três
raças constituidoras do povo brasileiro a sua principal linha de desenvolvimento, espécie
de corolário para que iniciassem o seu mapeamento e catalogação.
Em Portugal, Theóphilo Braga113 representava esta corrente de estudiosos e que
passou a exercer influência sobre Silvio Romero114, seu principal interlocutor por aqui
(ORTINZ, 1985), que desta forma introduziria os estudos folclóricos de matriz europeia
com as mesmas características de afirmação do estado nacional, a partir das raízes e
expressões culturais do povo, em seus traços de oralidade, ruralidade, ancestralidade,
autenticidade e originalidade, definindo esta mesma identidade nacional.
Este programa foi desenvolvido ao final do XIX, sob as bases do evolucionismo
e do positivismo reinantes, que introduziria o viés cientificista para compreensão da
identidade nacional, pois segundo Romero “Nós possuímos uma poesia popular
especificamente brasileira, que, se não se presta a bordadura de sublimidades dos românticos, tem
contudo enorme interesse para a ciência” (ROMERO, 1977 p.32).
A partir daí podemos mapear o desenvolvimento de uma tradição de estudos que
seguiram as indicações deste programa: da necessidade de se mapear as nossas raízes, na
poesia e no cancioneiro popular.

113
Theóphilo Braga (1843-1924), poeta, ensaísta e folclorista português, também considerado o introdutor
do Positivismo em Portugal. É a principal referência para o estudo do folclore português, exercendo forte
influência entre os primeiros estudiosos do folclore no Brasil. Ver: BRAGA, Theóphilo.O povo português
nos seus costumes, crenças e tradições. Lisboa: Livraria Ferreira Editora, 1885.
114
Silvio Romero (1851-1914), sergipano de Lagarto, teve grande destaque como escritor e crítico literário
na cidade do Rio de Janeiro. Foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras e introduziu todo um
programa de estudos folclóricos no Brasil, a partir da publicação de uma série de artigos na Revista
Brasileira, entre os anos de 1879 e 1880, que depois seriam reunidos em livro publicado em 1888 pela
Tipografia Laemert. Ver: ROMERO, Silvio. Estudos sobre a poesia popular do Brasil. Petrópolis: Vozes,
1977.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

297
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No entanto, o próprio termo literatura de cordel, que inicialmente foi associado


aos romances portugueses e com uma tradição de circulação e de um formato difundido
em vários locais da Europa (BURKE, 1998), foi utilizado de uma forma inapropriada
pelos continuadores de Romero, quando se referindo a outro, o modelo editorial
nordestino.
Esta tese foi reforçada pela utilização do termo pelo próprio Romero, o que
influenciaria e induziria ao erro os que posteriormente estudariam os folhetos nordestinos,
pois trás na sua utilização uma incongruência que causaria confusão e reproduziria uma
visão distorcida sobre algo que ainda não existia quando da publicação deste estudo. 115
No pequeno texto do capítulo intitulado “As modinhas e lundus. Literatura de
cordel, o Peregrino da América, o ciclo provável dos bandeirantes”, este autor vai fazer a
associação problemática e que trará consequências danosas da reprodução sem crítica
pelo simples argumento de autoridade, quando diz “A literatura ambulante e de cordel no
Brasil é a mesma de Portugal” (ROMERO, 1977, p. 257).
Esta associação, espécie de continuidade e origem portuguesa de algo totalmente
diferente, foi reproduzida fortemente, apressadamente, sem uma análise comparativa que
somente seria feita muito recentemente.
Esta hipótese foi contradita em tese inovadora desenvolvida pela historiadora
Márcia Abreu “Diferentemente da literatura de cordel portuguesa, que não possui
uniformidade, a literatura de folhetos produzida no Nordeste do Brasil é bastante
codificada” (ABREU, 2000, p. 73).
Referenda-se, portanto, uma nova noção, de que esta produção iniciada em Recife
é totalmente outra. Diferentemente da que fora apregoada por Silvio Romero e que
reproduziria inconsistências que permanecem até hoje.
Os primeiros estudos sobre a poesia popular, que incluíam os folhetos publicados
a partir do Recife e de João Pessoa, irão seguir a abordagem folclorística, de cunho mais

115
Sob este ponto de vista o que ele chama de literatura de cordel não são os folhetos que seriam produzidos
aqui pelo pioneiro, Leandro Gomes de Barros, entre 1889 e 1993 aproximadamente, mas os romances
portugueses, quase sempre em prosa, que eram vendidos nas principais cidades do império quando da
publicação deste seu estudo, entre 1879 e 1880, portanto antes do surgimento da literatura de folhetos
nordestina.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

298
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

literário, como podemos verificar em autores da época116 que registravam em seus escritos
o que chamavam de folhetos de versos populares.
Depois, outro padrão se estabelecerá. Nesta nova corrente, que terá em Amadeu
Amaral117 e Mário de Andrade118 as duas linhas mestras, o que se buscará é, cada vez
mais, estabelecer em bases científicas, em um método rigoroso de mapear os usos,
práticas e formas da identidade cultural na diversidade das expressões populares.
Podemos afirmar que as duas correntes, primeiro a literária, depois a de caráter
mais antropológica e científica, foram responsáveis por mapear, catalogar e classificar a
produção e a temática dos folhetos, quase sempre se atendo ao conteúdo e à origem
imemorial, de aspecto rural, quase nunca à forma poética e ao formato editorial.
Se os estudiosos documentaram o objeto cultural cordel, também reproduzirem
uma série de imprecisões que influenciariam todos os estudos posteriores, e que chegaram
aos nossos dias como verdades incontestáveis, como a já apregoada e quase incontestável
origem portuguesa, ou vinculando-a como parte de uma oralidade imemoriável, com
raízes medievais e originária dos cantadores e repentistas .
Assim, identifica-se uma pesquisa minuciosa de especialistas e uma tradição de
intelectuais, a dos folcloristas, com ênfase na pesquisa da chamada cultura do povo,
constituindo verdadeiro movimento em torno do campo da cultura popular.
Os jornalistas serão continuadores e difusores dessa tradição. Desde os anos 40 vêm
apresentando-a ao grande público e tornando-a conhecida em todo o Brasil, através das
ondas do rádio e da impressa escrita, jornais e revistas de circulação nacional (CURRAN,
1994). Desta forma, documentando e reproduzindo em uma dimensão nacional o teor,
forma e formato dessa literatura e dando uma visibilidade maior à figura dos autores, bem

116
Publicado orginalmente em 1903, o estudo de Rodrigues de Carvalho já faz referências a produção e
venda de folhetos no Nordeste. Outros dois autores, que publicaram seus livros no mesmo ano, em 1921,
também são referências importantes no estudo da poesia popular do Nordeste. Ver: CARVALHO,
Rodrigues de. Cancioneiro do Norte. Rio de Janeiro: INL, 1967; MOTA, Leonardo. Cantadores. Rio de
Janeiro: Livraria editora Cátedra, 1978; BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1949.
117
Esse autor inova quando apregoa ser necessário estudos mais elaborados, com o devido rigor do método
científico, quando na condução da pesquisa folclórica. Ver: AMARAL, Amadeu. Tradições populares.
São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948.
118
Embora tenha uma produção voltada para as expressões musicais, este autor vai conduzir pesquisas de
campo em que apregoa uma relação de interação entre a produção dos poetas populares e dos literatas. Ver:
ANDRADE, Mário de. O baile das quatro artes. São Paulo: Martins, 1963.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

299
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

como dos diversos meios que dispunham e utilizavam para divulgarem os seus temas,
seja nos grandes centros ou pelas feiras do interior nordestino.
O grande interesse pelo cordel como objeto de pesquisa também teria forte
acolhida na universidade brasileira119, mas inicialmente ele também esteve associado à
instituições fora da universidade, em um misto de estudos folcloristas com pretensões à
cientificidade.
A Fundação Casa de Rui Barbosa120, por exemplo, é reconhecidamente a
instituição que implantou o primeiro grande programa de recolhimento e constituição de
acervo, catalogação, publicação de antologias, reconhecimento de autoria e estudos
sistemáticos que se estendem até os dias de hoje.
O estudo seminal de Rodolfo Vilhena121 “Projeto e Missão: o movimento
folclórico brasileiro (1947-1964)” fará uma análise acurada e profunda dos embates e
lutas por representação desses intelectuais, reverberando na importância dada a busca pela
institucionalização de um intenso programa dos folcloristas, que entre outras coisas
queriam estabelecer uma amplitude dos seus estudos no âmbito de cada estado, criar
museus e arquivos do folclore, bem como se inserir como campo de estudo na
universidade recém-criada.
Segundo este autor, no entanto, a universidade brasileira irá impedir ao Folclore
o caráter de disciplina particular no âmbito das Ciências Sociais, a partir da recusa, a
partir da Escola Paulista de Sociologia que tinha como principais representantes Roger
Batisde e Florestan Fernandes, o que acabou por delimitar um campo cultural e intelectual
com o folclore de fora (VILHENA, 1997).

119
A Universidade de São Paulo será uma das primeiras a desenvolver um programa de pesquisa sobre a
literatura de cordel e a constituir um acervo. Outras instituições universitárias que têm desenvolvido
programas permanentes são a Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Federal da Paraíba,
Universidade Federal de Pernambuco e a Universidade Federal do Ceará, só para citar algumas das mais
importantes.
120
O programa editorial da Fundação Casa de Rui Barbosa inicia-se em 1961, com a publicação de um
catálogo do que intitulou de “Literatura Popular em Verso”. O mesmo teve prosseguimento com a
antologia, de 1963, e uma série de estudos, a partir de 1973. Ver: LITERATURA Popular em Verso:
Catálogo. Rio de Janeiro: FCRB, 1961. LITERATURA Popular em Verso. Antologia. Rio de Janeiro:
MEC\FCRB, 1964. LITERATURA Popular em Verso: Estudos. Rio de Janeiro: FCRB, 1973.
121
VILHENA, Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro:
FUNARTE\FGF, 1997.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

300
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A abordagem científica, com origem na universidade, utilizará de vez o termo


literatura de cordel, expressão bem mais recente e amplamente difundida após ser adotada
pelos estudiosos da academia em meados dos anos 60, especialmente depois que
Raymond Cantel, professor da Universidade Sorbonne, também a adotou (CURRAN,
1987, p. 115).
O objeto desta pesquisa, nas suas variadas apropriações, será intitulado
simplesmente de cordel brasileiro, distinguindo-o da literatura de cordel portuguesa na
forma e formato, pois modelo editorial inventado mesmo por aqui, na sua produção,
circulação e consumo, pois “o cordel não é folclore anônimo, tem data e local onde
nasceu” (LUCIANO, 2012, p. 08).
Desta forma, no que se refere à naturalização, idealização e institucionalização do
“popular” nos moldes pensados a partir dos folcloristas, reverberará um novo campo de
estudo. Nele o cordel brasileiro terá um grande destaque, como objeto de pesquisa na área
mais ampla da chamada cultura popular. Em um constante embate por representações nas
suas práticas e usos diferenciados, o que influenciaria fortemente outros segmentos de
intelectuais e os próprios poetas.

A organização dos poetas e a institucionalização do cordel como cânone “popular”

A partir dos que estudaram o cordel é que situaremos os poetas, pois também
reproduziriam amplamente as formas e fórmulas como foram representados: inicialmente
pelos folcloristas, posteriormente difundidas pelos jornalistas e estudiosos do meio
universitário e acadêmico.
A consciência autoral se revelará quase sempre sobre a ótica do outro, como parte
do que foi inventado como “popular” e a partir de uma lógica imposta, que muitas vezes
os representavam como incultos, conservadores, analfabetos ou semianalfabetos
(CAMPOS, 1955).
Por outro lado, uma das falsas ideias que se reproduziu, juntamente com a da
origem portuguesa, é a que associa o cordel a uma origem imemorial de uma oralidade
perdida, tendo uma herança mais próxima aos cantadores, emboladores e no improviso
dos repentistas.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

301
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Na verdade, o que se podemos afirmar sem sobressaltos é que o folheto se originou


no manuscrito, na poesia escrita, pensada e posteriormente publicada (LUCIANO, 2012).
Nosso interesse aqui é o de mapear as apropriações do cordel, seus usos
diferenciados, ao mesmo tempo refletir sobre um dado que lhe impingiram em seu
nascedouro, difícil de ser desatrelado nas suas intensões: o de ser uma poesia adjetivada
como de aspecto “popular”.
Assim, achamos ser perfeitamente possível historicizá-la como algo mutável, em
constante transformação, mesmo quando estabelecida e presa em conceitos inventados,
ou quando atrelada em instituições, criadas numa tentativa de organização dos seus
próprios autores, os que hoje são intitulados de cordelistas.
A mais antiga referência de um estudo que aborda os folhetos, intitulando-o de
literatura de cordel, é o do folclorista alagoano Theo Brandão, provavelmente se
referendando no modelo de Romero, de uma origem europeia e na continuidade desta
tradição por aqui. Sob o título “As inundações de Alagoas na Literatura de Cordel”
(BRANDÃO, 1949), este estudo pode ser considerado o início do uso do termo em
referência aos folhetos de feira de produção notadamente nordestina, posteriormente
tornando-se termo corrente entre os próprios autores.
A institucionalização e organização dos poetas surgiriam a partir de meados dos
anos 50, num movimente de organização dos poetas de bancada, escritores de folhetos,
ou trovadores populares, como comumente eram chamados especificamente na Bahia
(CURRAN, 1987, p.20).
Através dos esforços de algumas lideranças, principalmente de Rodolfo Coelho
Cavalcante, que estaria à frente da criação da intitulada Associação Nacional dos
Trovadores e Violeiros (ANTV), surgiria uma das primeiras entidades a reunir e lutar
pelos interesses de uma categoria que emergiria em sua primeira tentativa de organização
(CURRAN, 1987, p.34).
Esta entidade seria referendada no I Congresso Brasileiro de Trovadores e
Violeiros, acontecido em Salvador no ano de 1955, que congregaria representantes de
diversos estados e contando também com o apoio de políticos e a presença de diversos
dos estudiosos, folcloristas e jornalistas, entusiastas dessa expressão popular (CURRAN,
1987, p.39).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

302
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Segundo nos fala o próprio Rodolfo Coelho Cavalcanti a inspiração para


realização do congresso veio dos intelectuais (CURRAN, 1987, p.35) e a organização em
uma instituição era uma necessidade diante de situações vividas por estes poetas.
O movimento de institucionalização e organização dos poetas, no entanto, no seu
primeiro momento não teve o êxito esperado.
Somente a partir de uma política cultural fruto de um crescente interesse pelas
expressões do folclore e preservação do patrimônio, bem como das expressões típicas
regionais, foi possível uma valoração da literatura de cordel, onde a própria universidade
também vai contribuir, conforme já dito anteriormente.
Após o refluxo na organização dos poetas da literatura de cordel, desde que fora
criada a ANTV, em meados da década de 70 haverá um novo impulso, com uma contínua
valoração a partir do crescente número de estudiosos na academia, um novo público
consumidor e difusor, bem como uma série de políticas públicas de valorização do
patrimônio cultural e folclórico, incentivado pelo Instituto Nacional do folclore (INF) ou
pela crescente campanha de valorização do típico, do patrimônio cultural como
mercadoria e referência do turismo emergente no Nordeste. 122
Assim, políticas públicas de valorização do patrimônio material e imaterial, nova
faixa de público consumidor nos grandes centros e metrópoles fora do Nordeste, um
interesse crescente da universidade pelo objeto de estudo cordel, intensa circulação da
temática do cordel no mass media (rádio, jornal, cinema e televisão), dentre outros fatores,
faz com que a década de 70 seja de explosão nos variados usos da linguagem do cordel.
Estes usos diferenciados do cordel, quase sempre como uma espécie de modelo
da expressão cultural própria ao “popular”, já vinham sendo utilizados e foram se
construindo em variadas acepções: seja como parte de uma tradição ancestral da
linguagem oral e expressão da ruralidade cada vez mais em vias de se perder, a exemplo
dos folcloristas; como uma expressão cultural do migrante nordestino pobre ao chegar
aos grandes centros do país, como muitas vezes os pintaram os jornalistas e cineastas; um

122
A historiadora Ana Amélia Rodrigues de Oliveira desenvolveu tese em que discute a noção de cultura
popular forjando a noção de cearensidade e cultura cearense em diversos áreas da sociedade, como o
turismo, no patrimônio material e imaterial, na publicidade, dentre outros. OLIVEIRA, Ana Amélia
Rodrigues de. Em busca do Ceará: a conveniência da cultura popular na figuração da cultura cearense
(1948-1983). 2015. 296 f. Tese (Doutorado em História). Fortaleza: Universidade Federal do Ceará.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

303
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

interessante e pertinente objeto de estudos sobre a cultura das classes mais baixas da
sociedade, como comumente foram retratados pela academia; ou ainda um rico
depositório das expressões mais autênticas de uma identidade regional, de uma linguagem
regionalizada utilizada como fins de propaganda e publicidade, que aproxima pela
referência identitária.
O cordel torna-se, assim, linguagem de múltiplas funções, usos e utilidades.
Quando aos poetas, o que se sobressai é uma crescente tentativa de organização, diante
de todos esses usos sem que ele seja o real beneficiário desta supervalorização.
Podemos mapear algumas destas instituições no Nordeste e fora dele e perceber
que o movimento tinha um caráter que rompia fronteiras locais ou mesmo regionais, pois
alguns desses cordelistas, como ficarão consagrados, migrarão para os grandes centros do
Sudeste, grandes capitais nordestinas ou mesmo para o Distrito Federal.
Na capital federal aconteceria o 1º. Congresso Nacional dos Poetas e Trovadores
Repentistas e Escritores da Literatura de Cordel, entre 16 e 18 de junho de 1978, conforme
retratado em um cordel da autoria de Homero do Rêgo Barros – o trovador de Olinda e
Recife, que na contracapa de folheto produzido para o evento informava ser a publicação
“registrada na Ordem Brasileira da Literatura de Cordel – Salvador –Brasil” (BARROS,
1978, p. ).
Outras instituições existirão, de caráter nacional ou mesmo regionalizadas, tais
como Casa de Cultura São Saruê, fundada em 27\09\1974 no Rio de Janeiro; a Cordelbrás,
fundada em 09\09\1981 no Rio de Janeiro; a Academia Brasileira do Cordel (ABC) criada
em Fortaleza no ano de 1980; o Centro Cultural dos Cordelistas do Nordeste
(CECORDEL), agosto de 1987 em Fortaleza; a Academia Brasileira da Literatura de
Cordel (ABLC) fundada em 07\09\88 no Rio de Janeiro; só para citar algumas, em um
movimento contínuo de organização e reivindicação por um espaço que se estende até os
dias de hoje.
Desta forma, se os próprios autores estarão participando dessa construção,
refletindo os atributos e certos de fazerem poesia popular, passam a se organizar em
associações e organizações, como uma forma de demarcarem suas posições e
reivindicarem os seus direitos enquanto classe.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

304
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Assim, o movimento de institucionalização e organização dos autores de cordel


deu-se também sob a ótica e reivindicação do “popular”, atraindo a atenção dos mesmos
que o inventaram, os seus estudiosos, na maioria das vezes aliados e difusores dessa
construção.
Se antes sob o manto sagrado do “popular” o cordel brasileiro alcançou ampla
difusão no Brasil e no mundo, não dá mais para reproduzir um paradigma constituído no
século XIX, de um “popular” calcado numa oralidade constituída de uma tradição
imemorial e expressão da “alma nacional”.
Assim agora são os próprios autores que têm buscado refletir sobre a construção
do cânone e trajetória histórica do cordel como gênero literário bem brasileiro, para tanto
se faz necessário uma genealogia dos usos, das práticas, dos termos utilizados para
intitulá-la e em que sentido isso se fez, e nas variadas apropriações dos que reproduziram
este modelo até os dias de hoje.

Referências bibliográficas

ABREU, Márcia. História de cordéis e folhetos. Campinas: Mercado de Letras, 1999.


AMARAL, Amadeu. Tradições populares. São Paulo: Instituto Progresso Editorial,
1948.
ANDRADE, Mário de. O baile das quatro artes. São Paulo: Martins, 1963.
BARROS, Homero do Rêgo. 1º. Congresso Nacional dos Poetas e trovadores
repentistas e escritores da literatura de cordel em Brasília – DF, nos dias 16, 17 e 18-
1978. Recife: s\ed., 1978.
BARROSO, Gustavo. Ao som da viola. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1949.
BRAGA, Theóphilo. O povo português nos seus costumes, crenças e tradições.
Lisboa: Livraria Ferreira Editora, 1885.
BRANDÃO, Theo. As inundações da Alagoas na literatura de cordel. Maceió: s\ed.,
1949.
BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia. das letras, 1998.
CARVALHO, Rodrigues de. Cancioneiro do Norte. Rio de Janeiro: INL, 1967;

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

305
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel,


1990.
CURRAN, Mark J. A presença de Rodolfo Coelho Cavalcante na moderna literatura
de cordel. Rio de janeiro: Nova Fronteira: FCRB, 1987.
FERNANDES, Florestan. O folclore em questão. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
LITERATURA Popular em Verso: Catálogo. Rio de Janeiro: FCRB, 1961.
LITERATURA Popular em Verso. Antologia. Rio de Janeiro: MEC\FCRB, 1964.
LITERATURA Popular em Verso: Estudos. Rio de Janeiro: FCRB, 1973.
LITERATURA Popular em Verso: Antologia. Leandro Gomes de Barros. Rio de Janeiro:
MEC\FCRB\UFPB, 1977.
LESSA, Orígenes. “Literatura popular em verso”. Anhembi. São Paulo: 21, (61): 68-87,
dez. 1955.
LUCIANO, Aderaldo. História crítica do cordel brasileiro. Rio de Janeiro: Edições
Adaga; São Paulo: Luzeiro, 2012.
MOTA, Leonardo. Cantadores. Rio de Janeiro: Livraria Editora Cátedra, 1978.
OLIVEIRA, Ana Amélia Rodrigues de. Em busca do Ceará: a conveniência da cultura
popular na figuração da cultura cearense (1948-1983). 2015. 296 f. Tese (Doutorado em
História). Fortaleza: Universidade Federal do Ceará.
ORTIZ, Renato. Cultura Popular. Romântico e Folcloristas. São Paulo: PUC, 1985.
ROMERO, Silvio. Estudos sobre a poesia popular do Brasil. Petrópolis: Vozes\Governo
do Estado de Sergipe, 1977.
VILHENA, Luis Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-
1964). Rio de Janeiro: FUNARTE\FGV, 1997.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

306
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Mapeando território: atuação dos intelectuais na Era Vargas no Piauí 1930-1945

ANTONIO MAURENI VAZ VERÇOSA DE MELO


Doutorando em História Social pela UERJ/FFP

O Brasil vivenciou grandes mudanças a partir do processo revolucionário


promovido pela Revolução de 1930, que criou novas articulações para o cenário do País.
Assinalamos que desde os anos 20, ocorria discursões sobre os problemas que permeavam
o Brasil na República Velha. A intelectualidade123 tinha conhecimento e compreendia o
que estava acontecendo em outros cenários, a exemplo, a Europa. A Revolução de 1930
não foi um marco na história das ideias, todavia, reconhecemos que a mesma criou
espaços que possibilitaram discutir propostas profundas, capazes de traduzir as ações do
governo, e ao mesmo tempo, criar ambientes que absorvessem os intelectuais para que os
mesmos pudessem atuar em vários cenários, como na imprensa, espaço natural deste
grupo, ambiente de veiculação dos seus pensamentos.
Os intelectuais pós-30, almejavam está à frente do processo, não só ocupando
posições no universo das letras, mas inserindo-se em locais centrais no ambiente
administrativo do governo. Essas ações múltiplas destes sujeitos foram essenciais para o
período inaugurado pelo processo revolucionário. O período da Era Vargas, de 1930 a
1945, tornou-se perfeito para esse grupo, assumiram posições estratégicas na esfera
política, recepções e construções dos discursos do novo regime.
A presença dos intelectuais no cenário do Estado não é uma abordagem nova, é
uma relação que se reconfigura com o próprio desenvolvimento da história. Na Era
Vargas observamos pela historiografia produzida no período, que esta relação não só foi
vasta, como intensa. Esta intensidade atingiu seu auge no decorrer da implantação do
Estado Novo em 1937, que vigorou até a saída de Vargas do poder, em 1945. Regime
este, que nas diretrizes de Vargas deu condições para o Brasil alcançar dimensões
importantes, tanto no cenário interno, quanto externo.

123
O conceito de intelectual utilizado no presente artigo é o trabalhado por Norberto Bobbio em seu
capitulo: Os intelectuais.p.114-121. In: BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder - dúvidas e opções
dos homens de cultua na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora Unesp.1997.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

307
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A presença de indivíduos que buscavam não somente interpretar o passado, mas,


sobretudo compreender os anseios do povo do presente getulista, ao mesmo tempo,
informar a população e trabalhar para essa implantação do projeto nacionalista de Getúlio
Vargas, era essencial. Esses sujeitos foram os intelectuais, aqui entendidos como
personagens, não só com um capital científico, com suas interpretações sobre as visões
do mundo e demais fenômenos, bem como, sobre o passado e as transformações do
presente. Indivíduos que possuíam uma bagagem de conhecimento e que podiam a partir
das suas ações ideológicas, e de seus locais de inserção, promover e contribuir com as
mudanças no cenário de atraso, identificado pelo governo Vargas. O capital simbólico
dos intelectuais se identificava no campo da sociedade, mostravam-se com um ar de
respeitabilidade e confiança, quando ao mesmo tempo, possuíam a mobilidade dentro de
vários campos na configuração da sociedade brasileira do período (BOURDIEU, 2007).
Após a chegada ao poder, Getúlio Vargas buscou iniciar um período de
pacificação política e acomodações do processo revolucionário. O governo provisório de
Getúlio Vargas, promoveu um amplo e árduo debate para articular e acalmar os ânimos
políticos e encontrar soluções para os problemas sociais existentes no País. Um outro
elemento das discussões, era criar articulações fortes no seio da política, para assim se
manter no poder, implantar e promover a plataforma política idealizada pelo movimento
e seus intelectuais como: Francisco Campos, Gustavo Capanema, Alberto Torres,
Oliveira Viana, Azevedo do Amaral, Lourival Fontes e outros.
Outro ponto importante que envolvia as questões políticas do período era buscar
um equilíbrio entre os tenentes e as oligarquias, fato que os articuladores e colaboradores
de Vargas não esqueceram. A própria escolha de interventores, na maioria militares,
buscava respeitar colaboradores locais com o projeto. Esta estratégia política tinha como
resultado, diminuir o clima de tensão inicial e reduzir as restas políticas com as
oligarquias existentes. Um governo que buscou criar um ministério homogêneo,
organizando os estados, nomeando interventores do próprio meio político interno,
evitando trazer elementos externos a sociedade e assim estabilizar as agitações iniciais de
qualquer movimento revolucionário, pois era fundamental esta articulação política para
implantação do projeto de cunho nacional.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

308
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No caso do Piauí, temos a nomeação inicial de Humberto de Areia Leão124, que


ficou por pouco tempo e depois foi substituído por um dos líderes da Revolução de 1930
no Piauí, Joaquim Vaz da Costa125, que governou por menos de um dia, deixando o poder
voluntariamente. Esse quadro político nos estados, fez com que Getúlio Vargas,
politicamente, buscasse apoio dos tenentes em uma relação de proximidade constante.
No Piauí, o reflexo foi imediato com a nomeação de Joaquim Lemos Cunha126,
que na época era comandante do 25º Batalhão de Caçadores em Teresina. Durante o seu
governo buscou consolidar os ideais da chamada Revolução de 1930, que no momento
posterior ao movimento, caracterizou-se como um período de muita agitação política não
somente no Piauí, mas em todo o Brasil, comprovado pelas dificuldades identificadas
pelos os indicados a princípios para assumir os cargos de interventores, ou seja, Lemos
Cunha agiu como um pacificador dos atritos políticos locais.
Podemos apontar que no caso do Piauí os laços entre os intelectuais e o Estado
foram firmados ainda sob a poeira do processo revolucionário de 1930 e durante o curto
governo de Lemos Cunha, que promoveu a instalação da Faculdade de Direito em 18 de
abril de 1931, a instituição tão almejada pelos círculos intelectuais do Estado. Podemos
confirmar no trecho sobre a memória histórica desta Faculdade de Direito, escrito por um
intelectual contemporâneo do movimento e um dos fundadores e articuladores para a
criação da referida faculdade, Higino Cunha127.

Era uma antiga aspiração da elite128 intellectual do Piauhy. Desde o


advento da Republica no Brasil, que decretou a autonomia dos Estados,
atribuindo-lhes a faculdade de criar e dirigir institutos de ensino
secundário e superior, oficiais e particulares equiparados, algumas
unidades da Federação se apressaram em utilizar a nova regalia
constitucional. [...] A ideia pairava no ar, dispersa e fluctante, á espera
da sazão propicia para se lançada ao solo e germinar. Intensificou-a
revolução de 1930. Mesmo no meio da confusão reinante nos primeiros

124
Piauiense e falecido no Rio de Janeiro, Comandante da Marinha, governou por pouco tempo de
4/10/1930 a 29/01/1931.
125
Um dos líderes da Revolução de 1930 no Piauí. Magistrado. Governou apenas um dia 29/01/1931.
126
Governou o Piauí de 29/01/1931 a 21/05/1931, militar de formação, foi designado a ser interventor do
Piauí, faleceu em Niterói (RJ), em 1940.
127
Higino Cicero Cunha. Advogado, jornalista, professor. Teve uma vida professional e literária muito rica,
colaborou e fundou vários jornais e revistas no período.
128
No presente artigo foi preservado a caligrafia original dos documentos pesquisados, para preservar
identidade do documento.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

309
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

meses, ela não deixou de vogar no espaço como um astro erradio em


busca do seu centro de gravitação. Heráclito Sousa e Leopoldo Cunha
deram-lhe ingresso nas columnas do Estado do Piauhy e fácil foi
conquistar apoio indispensavel dos interventores federaes capitão
Joaquim Lemos Cunha e Landry Salles Gonçalves, [...] (CUNHA,1935,
p. 2).

Analisando o fragmento, observamos que o momento pós 30, foi favorável para
as aspirações dos intelectuais, pois o período inicial da República, regime esperado com
grande motivação, não foi palco de grandes transformações para a sociedade. Todavia, o
período denominado de República Velha (1889-1930), promoveu a consolidação de
estruturas arcaicas aos interesses liberais, e ao mesmo tempo, ajudou a fortalecer os
grupos conservadores agrários no poder, promovendo um cenário estático para as
mudanças estruturais idealizadas pelos republicanos. Portanto, o rompimento era uma
condição sine qua non para os grandes avanços no País no campo das ideias que
implementaram estas transformações em cursos.
O sucessor de Joaquim Lemos Cunha foi outro militar, Landry Salles
Gonçalves129, que governou o Piauí de 1931 a 1935. Durante sua interventória foi
realizada uma série de obras e mudanças administrativas, entre elas: reforma da justiça,
construção de prédios escolares e expansão do correio aéreo nacional. Estas ações
reformistas tinham também como objetivo buscar uma aproximação com a sociedade
civil. Até mesmo a própria Faculdade de Direito, recebeu não apenas apoio administrativo
na sua instalação e regularização, mas ajuda financeira por parte do Estado. Essa relação
foi de grande proximidade, como pode ser visto no próprio trecho escrito por Higino
Cunha, na citação anterior.
A participação dos intelectuais na educação foi intensa no Estado, tanto exercendo
cargos públicos, a exemplo de Martins Napoleão130, que ocupou na interventória de
Landry Salles, o cargo de Diretor Geral de Instrução Pública, buscando implementar esta
pasta, promoveu a ampliação de matrículas e a construção dos novos espaços físicos
escolares, tanto na capital, como nos municípios. O número de matrículas é um dado
interessante para compreender este avanço nos discursos do governo e dos intelectuais.

129
Militar nomeado pelo Presidente da República, foi interventor de 21/05/1931 a 3/05/1935.
130
Benedito Martins Napoleão do Rego. Professor, ensaísta, poeta, jornalistas, advogado. Pertenceu a
Academia Piauiense de Letras. Colaborou com vários jornais e revistas.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

310
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Pois o sistema escolar tornou-se um foco de ações de civismo, remodelação e ações


pedagógicas do estado no sentido de plantar e divulgar a semente das mudanças oriundas
do novo momento inaugurado com a chegada de Vargas ao poder. Os intelectuais,
investido no papel de professores, diretores, administradores e outros, foram os
operadores destas transformações no ambiente educacional.

Elevação de matrículas: 1930-1935


1930 1931 1932 1933 1934 1935
7.397 11.101 14.922 16.054 20.638 26.000
Fonte: Relatório do Interventor. Cap. Landry S. Gonçalves.1931-1935. p.32.

Observamos pelo quadro uma elevação significativa do aumento de matrícula


após o governo Vargas no Piauí. Em cinco anos de governo o número de matriculados
triplicou. Isto, demonstra como o meio educacional foi uma ferramenta importante na
promoção varguista. Os serviços de Martins Napoleão também seriam reconhecidos pela
sociedade. Segue um trecho do editorial da revista Seleta131, de 1934, em relação à
atuação de Martins Napoleão na Educação.

Figura inconfundível de homem de letras, com largos e eficientes


serviços prestados á causa da instrução pública, a cuja Diretória Geral,
deu maior ilustre possível quando da sua atuação naquele departamento,
o prof. Martins Napoleão tem todo direito as nossas homenagens
cívicas, dado o cunho de elegância patriótica com que se há sobressaído
na vida pública, atraindo dessa maneira, em torno da sua
individualidade, o maior número de amigos e admiradores (REVISTA
SELETA, 1934, p. 01).

Os interventores se cercaram de indivíduos pela qual a sociedade reconheceu


suas ações, principalmente no campo da vida pública. Estes sujeitos que tinham ampla
circularidade cultural no estado era fundamental para o novo regime. A partir de 1935 o
Piauí tem um novo governante, Leônidas de Castro Melo132, eleito pelos deputados

131
Revista que circulou nos anos trinta no Piauí, de edição mensal e de cunho literário, que trazia em seu
corpo a vida política e social.
132
Médico, professor. Governou o Piauí de 1935 a 1945. No primeiro momento como governador eleito
pela assembleia de 1935 a 1937, depois com interventor.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

311
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

estaduais, momento este em que o Piauí é assinalado com grande presença da ideologia
varguista no governo.
Na mensagem governamental apresentada à assembleia em primeiro de junho
de 1936, o governador Leônidas Melo, fazia uma explanação do seu primeiro ano de
governo demonstrando sua interação com o projeto nacional na busca de levar o Estado
ao progresso, projeto este de Getúlio Vargas para todo o Brasil. Uma citação da
mensagem ilustra bem esta consonância entre o governo estadual e o federal.

Senhôres deputados: Com imensa satisfação posso dizer-vos que o


programa governamental que tracei a mim mesmo, [...], plataforma do
Governo venho cumprindo integralmente: - a vida administrativa do
Piauhy e a sua situação de invejável prosperidade não soffreram o mais
leve abalo [...] (PIAUÍ. MENSAGEM DO GOVERANADOR
LEÔNIDAS DE CASTRO MELO, 1936, p. 04).

Observamos que a mensagem em sua apresentação aos deputados, à abertura


do ano legislativo, trouxe a informação de um estado sanado economicamente e trilhando
grande prosperidade no projeto nacional varguista, onde nada poderia trazer um
retrocesso ao projeto ora iniciado. A prova disso é que na mesma mensagem, são
explanadas as ações em todos os setores e a ampla política social, tanto na capital como
no interior do Estado.
Na mesma mensagem, as dificuldades ao comunismo também foram
enfrentadas pelo Estado com a aplicação de leis de segurança e a intervenção da polícia
no sentido de reprimir esta expansão ideológica no território do Piauí, bem como, evitar
perder o controle administrativo neste contexto. Na mensagem de Governo de 1936, é
colocada uma ampla explanação sobre a ação do Estado na repressão a este movimento,
em trecho da referida mensagem onde classifica o movimento comunista, como sendo um
sistema que, “[...]. Em uma palavra: escraviza o homem ao Estado, brutalizando-o” (p.
39), ou seja, seria um retrocesso brutal a aceitação e a divulgação do comunismo,
pensamento este que teria que ser combatido não somente pelos governantes, mas pelos
intelectuais que se dedicavam na construção dos discursos de um Estado forte e
humanizado.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

312
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Sobre o perigo comunista, os intelectuais do período também se pronunciaram.


Na Revista da Academia Piauiense de Letras (APL), de dezembro de 1936, em uma
conferência com o título “O Estudante na Comunidade Brasílica”, traz a importância do
civismo, da educação e da presença do Estado na sociedade. Edson Cunha133 se
pronunciou que:

[...] A situação das gerações novas soffreu profundas modificações em


todos os países civilizados, notadamente nos da Europa Velha, gasta,
cançada. O socialismo foi à tábua de salvação encontrada e a que se
procuram agarrar todas as actividades collectivas do momento que
atravessamos (CUNHA, 1936, p. 78-79).

Logo, o cenário para instalação do Estado Novo começava a se delinear,


exigindo dos governantes novas posturas, pois algumas práticas políticas não
desapareceram e as necessidades politicas diante de novas configurações internacionais e
nacionais exigiam do governo federal e dos estados, ações diferenciadas que só poderiam
ser aplicadas diante de um novo regime, mais forte e centralizado, para colocar em
práticas as mudanças que não foram possíveis no momento anterior, por situações
adversas, principalmente pelas configurações políticas.
Os intelectuais começaram a se manifestar, como podemos observar, na mesma
edição anteriormente citada revista da APL, na conferência realizada pelo acadêmico
Christiano Castello Branco134, na Semana Militar, em 1º de setembro de 1936, onde o
intelectual menciona a necessidade de transformações urgentes. Analisamos o fragmento
de sua conferência, intitulada “Civismo...”.

Contra esse estado de coisas, contra a deturpação extensiva do regimen,


fez-se, com derreamento de sangue, e esperanças, alviçarreiras do povo,
a Revolução de 1930. [...]. Infelizmente, o retumbante movimento
revolucionário não surtiu o efeito desejado. Delle nos ficaram apenas a
melhoria no systema eleitoral, um funcionalismo maior do poder
judiciário, e garantias amplas ao funcionalismo publico. [...]. Passado a
vibração patriótica dos primeiros meses. [...] voltou quase tudo ao

133
Edison da Paz Cunha. Formado em Direito pela Faculdade de Direito do Recife. Desenvolveu atividade
profissionais na advocacia, imprensa e magistério.
134
Nasceu em Teresina em 1892 e faleceu no Rio de Janeiro em 1983. Formado em Direito, foi Juiz e
Desembargador no Piauí. Colaborou com diversos jornais e revistas.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

313
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

antigo estado. Nem podia deixar de voltar, dada à insuficiência


manifesta da educação moral e cívica do nosso povo, em todas as
camadas (CASTELLO BRANCO, 1936, p. 92).

Portanto, o Estado Novo surgiu a partir do conjunto de transformações, entre


elas temos: o aumento das tensões, os conflitos políticos e sociais, oriundos do cenário
urbano e industrial. O meio urbano passava pelo crescimento populacional e as políticas
públicas, tanto na educação, saúde e no trabalho, exigiam novas medidas governamentais,
bem como, a onda comunista a qual ameaçava com ideologias contrária ao varguismo.
Logo, a defesa do papel do Estado pela modernização era essencial.
O Estado Novo foi implantado em 10 de novembro de 1937, com a articulação
política de vários intelectuais, entre eles, Francisco Campos, que buscou adesão de Plinio
Salgado, líder da Ação Integralista. Ao mesmo tempo, o Plano Cohen, serviu de pano de
fundo político para o golpe, que “[...] provocou uma torrente de apoio a Getúlio Vargas,
com manifestações do clero, do empresariado e até de intelectuais e estudantes”
(LAMOUNIER, 1988, p. 73).
No novo regime implantado, os intelectuais desempenharam uma função
primordial e pedagógica, preocupando-se com a difusão das ideias do regime. Educar de
acordo com os princípios do novo momento e tornar os sujeitos, um representante da
consciência nacional. A imprensa local noticiou o momento com grande expectativa de
novos horizontes e a escolha de Leônidas Melo como interventor do Estado Novo, no
Piauí, representando assim uma figura em que no território piauiense teve uma
consonância com o projeto nacional em que poderia implementar as mudanças locais
necessárias, bem como, continuando o que o mesmo já vinha fazendo como governador
eleito, e agora como Interventor Federal, escolhido por Vargas. Sobre este momento
temos:

O Novo Regime. [...]. Com o golpe vigoroso vibrado a 10 de novembro


do anno próximo passado pelo Sr. Getúlio Vargas contra os extremistas
apavorantes que nos rondavam os erros e baixezas da politicagem que
sempre conduziu o Brasil á categoria bastarda [...]. Novos horizontes se
abriram com perspectiva segura de que desta vez uma trajetória [...] que
tanto almejamos e da exploração das nossas riquezas [...]. No que
concerne ao nosso Piauhy, que é o que de perto nos interessa a escolha
do Sr. Dr. Leônidas de Castro Mello para o cargo de Interventor
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

314
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Federal, feita pelo Getúlio Vargas, não podia ser melhor. [...], eis ahi
duas figuras máscula do momento a que o Almanch Piauhyense135 rende
as suas homenagens (ALMANACH PIAUHYENSE, 1938, p. 128-
129).

A instalação do Estado Novo tinha na ótica dos intelectuais, o momento de


recondução do Brasil e de suas instituições para os trilhos do progresso, pois com as
características do novo regime, as forças contrárias seriam afastadas do caminho. No
Piauí, a escolha do governador eleito e agora interventor, foi algo acertado, pois traria
continuidade das ações iniciadas no primeiro governo, e as devidas correções não
operacionalizadas no pós 30, em que tiveram as condições propícias agora no Estado
Novo, principalmente o poder central exercendo ações centralizadas em consonância com
os estados.
A Academia Piauiense de Letras recebeu do governo de Leônidas Melo grande
apoio, não somente econômico, como de ordem administrativa. Ajuda esta, que se
configurou em ação financeira oficial, com subsídios constantes para sua sobrevivência,
na publicação da produção da APL. Várias publicações da revista da APL e livros dos
seus acadêmicos tiveram a colaboração da gráfica oficial e do Departamento Estadual de
Imprensa e Propaganda (DEIP), como também a liberação de prédios públicos para os
eventos e reuniões da Academia, pois a mesma não contava com sede própria.
Os intelectuais piauienses estavam plenamente integrados com as políticas do
Estado Novo, pois o Congresso de Brasilidade iniciada em 1941, em todo o território
nacional, teve no Piauí o seu segundo ano de instalação em 1942. Tendo como um de seus
colaboradores e palestrante, Martins Napoleão, que na sua fala, promoveu uma reflexão
sobre a unidade da cultura brasileira, texto publicado na revista da Academia Piauiense
de Letras, que representava uma palestra no Segundo Congresso de Brasilidade em
Teresina no ano de 1942, na qual ele exaltava a qualidade de Getúlio Vargas como
responsável pela eliminação de fatores que poderiam prejudicar a nossa vocação para a
unidade.

135
Almanaque que circulou no Piauí, com notícias políticas, sociais, econômicas e culturais sobre direção
do jornalista Antonio Lemos nesta última fase.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

315
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

[...] é justiça dize-lo [...], encontrou novos motivos de vitalidade e ação


no Sr. Getúlio Vargas, o homem que, por ser um mestre consumado de
psicologia para o povo, com uma acuidade genial que os séculos
apontarão, poude torna-se o redutor de antinomia e o anulador de crises,
no desempenho de sua profunda vocação para unidade (REVISTA DA
APL,1943, p. 108).

Martins Napoleão, discutiu em sua palestra a existência de uma unidade cultural


no Brasil e se a mesma teria um caráter forte. Tudo isso, resultado da ação política e da
personalidade de Getúlio Vargas, como um líder que interpretava e compreendia o
pensamento do povo brasileiro, os seus anseios e as suas angústias, buscando conduzi-los
para o progresso, eliminando as dificuldades que se apresentavam no decorrer do
percurso, prejudicavam a unidade do povo. Os intelectuais tiveram o papel de interprete,
instruindo e conduzindo o povo nesse anseio almejado por Vargas. No Piauí, os
intelectuais contribuíram na construção de um discurso local em conexão com o nacional,
como podemos refletir nos discursos dos intelectuais já mencionados no texto.
Outros intelectuais participaram de forma indireta, ou seja, não ocuparam cargos
públicos, mas escreveram sobre as temáticas inerentes ao contexto getulista, entre eles
temos: Cunha e Silva136, que teve um artigo publicado na revista Zodíaco137, com título
“Síntese da formação racial, social e política do Brasil”, destacava que:

[...] liberalismo político que, [...] empolgou a civilização política do séc.


XX, em países como Brasil, estava condenado ao completo fracasso.
Veio à revolução de 30, Getúlio Vargas, no poder, [...] Inteligente e
arguto, no entanto, nunca se prendeu às formulas restrita de sistemas de
governo, foi governado o país com os olhos fitos nas suas necessidades
mais imperiosas e, já antevendo os perigos duma campanha sucessória,
em 10 de novembro de 1937, quebrou os laços podres da velha
democracia liberal e, com o apoio decidido das classes armadas, criou
o Estado Novo [...] Regime que naturalmente possuem falhas e defeitos,
como todas as formas de governo do mundo os possuem, [...] há de
alcançar [...] perfeita grandeza e da mais notável civilização (REVISTA
ZODIÁCO, 03/05/1944, p. 35).

136
Jornalista, professor, membro da Academia Piauiense de Letras. Teve uma intensa atividade no
magistério e no campo literário, colaborando com vários jornais e revistas do período.
137
Órgão oficial do Centro Cultural – Lima Rebelo do Ginásio Dr. Demóstenes Avelino.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

316
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As ações políticas de Getúlio Vargas eram vistas como necessárias para o


desenvolvimento do Brasil, assim como, o caminho para alcançar uma política ampla com
a participação do povo nesta nova ordem. Os intelectuais, estavam de uma forma ou de
outra, construindo a ideologia do novo regime e dando validade as ações do governo
Vargas, ou seja, “[...] Todos os intelectuais são chamados a cooperar espontaneamente,
já que há identidade de interesse” (VELLOSO, 1999, p. 93).
Esta identidade de interesses foram campos que no Estado Novo se ampliaram,
principalmente por que os intelectuais como grupo que tem o poder da palavra e da
escrita, legitimaram a política do Estado Novo, com suas exposições pessoais e coletivas
nas publicações do período, como também, nas festividades cívicas, onde tiveram uma
ampla atuação deste grupo, ou seja, o modo de ser deste novo intelectual, ao qual não
poderia mais consistir apenas na sua eloquência, motor exterior dos afetos e das paixões,
como também, ativamente na vida prática, atuando como construtor, organizador,
idealizador e colaborador da vida cotidiana, onde não ocupavam apenas uma atividade de
bom orador e escritor. Logo, o apoio deste grupo era de suma importância para respaldar
as ações governamentais, como podemos verificar no fragmento a seguir:

[...] o Estado buscou o apoio da intelectualidade porque cabia ao


intelectual à função social estratégica de ser o intérprete da brasilidade;
tarefa que, por suas aptidões específicas, só ele poderia realizar. O
regime demonstrar reconhecer a liberdade do intelectual, amparando-o
política e institucionalmente, solicitando sua cooperação na
administração pública e em inúmeros outros empreendimentos
(NASCIMENTO, 2002, p. 85).

No Piauí, percebemos que durante o Estado Novo suas práticas intelectuais


tiveram um campo fértil pela sua contribuição, formando novos cidadãos, valorizando as
raízes e conhecedores do mundo simbólico, como podemos perceber nos textos
anteriores.

Considerações finais

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

317
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os intelectuais tiveram uma posição privilegiada na sociedade que foi reconhecida


pelo poder de suas palavras, com traços importantes na construção de um projeto de
caráter nacional. Os intelectuais do Piauí conseguiram difundir ideias propagadas pelo
processo revolucionário de 1930. Alguns ocupando cargos públicos, outros não. Todavia,
ambos colaboram, interpretando e construindo discursos para a sociedade.
Assim sendo, os intelectuais de expressão nacional que estavam à frente do projeto
nacional de Getúlio Vargas, tiveram apoio essencial nos intelectuais locais para poderem
corresponder com a consonância de ideologia da implantação da política do período, pois
para um projeto nacionalista tão amplo como foi o getulismo, precisava contar com
colaboradores locais para sua execução.
No Piauí não foi diferente, houve também a atuação dos intelectuais piauiense que
contribuíram na construção dos discursos que legitimaram as ideias e os projetos de
Vargas para o Brasil, principalmente durante a implantação do Estado Novo em 1937.
Momento este que observamos uma interação mais profunda com o projeto e um
engajamento maior dos intelectuais. Estes homens de letras interpretaram discursos e
construíram outros. Foram essenciais na construção da imagem, da fala e da ação do
varguismo no Estado do Piauí, criando um clima de legitimação e salvação.

Fontes
ALMANACH PIAUHYENSE. Teresina: Graphica Excelsior, 1938.

PIAUÍ. Mensagem – Governador Dr. Leônidas de Castro Mello de 1935.Teresina:


Imprensa Oficcial,1936.

PIAUÍ. Relatório da Diretória Geral da Instrução Pública do Estado do Piauí. 1932.

PIAUÍ. Relatório do Interventor Federal Cap. Landry Salles Gonçalves. 1931-1935.


Teresina: Imprensa Official, 1935.

REVISTA DA ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS – súmula histórica. Teresina:


Tipografia Popular, 1940.

REVISTA DA ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS. Teresina: DEIP, Dez.1944.

REVISTA SELETA. Ano I/Nº. 111. Agosto de 1934.

REVISTA ZODIÁCO. Ano 9. Nº 9. 03/05/1944.


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

318
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. Dúvidas e opções dos homens de cultua


na sociedade contemporânea. São Paulo: Editora Unesp,1997.

BOURDIEU, Pierre. Economias as trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

BRANCO, Christiano Castello. Civismo.... p. 88-96. In: Revista Academia Piauhyense


de Letras. Teresina: Imprensa Oficcial, Ano XIX. Nº 15. Dez.1936.

CUNHA, Edson. O Estudante na Comunidade Brasílica.p.71-87. In: Revista Academia


Piauhyense de Letras. Teresina: Imprensa Oficcial, Ano XIX. nº 15. Dez.1936.

CUNHA, Higino. Memória Histórica da Faculdade de Direito do Piauhy.p.2-8. In:


Revista Acadêmica: Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Piauí. Teresina, Ano
I, nº 1, maio/1935.

CUNHA e SILVA. Síntese da formação racial, social e política do Brasil. p. 35 - 38. In:
REVISTA ZODIÁCO, Ano 2. Nº 7. 3 de maio/1944.

FERRERIA, Jorge & DELGADO, Lucília de Almeida Neves. (Orgs.). O tempo do


nacional-estatismo – do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. 5ªed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

GOULART, Silvana. Sob a Verdade Oficial – Ideologia, propaganda e censura no Estado


Novo. São Paulo: Editora Marco Zero/CNPq, 1990.

LAMOUNIER, Bolívar. Os grandes líderes – Getúlio. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

LAHUERTA, Milton. Os intelectuais e os 20: moderno, modernismo, modernização. In:


LORENZO, Helena Carvalho de; COSTA, Wilma Peres da. A década de 1920 e as
origens do Brasil moderno. São Paulo: Editora UNESP, 1997. p. 93-132.

MELO, Leônidas de Castro. Trechos do meu caminho - “memórias” a feição de


autobiografia. Teresina: Comepi,1976.

MICELI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920- 1945). São Paulo: Difel,
1979.

NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A cidade sob o fogo: modernização e violência


policial em Teresina (1937-1945). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves,
2002.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

319
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

OLIVEIRA, Lúcia Lippi. VELLOSO, Monica P.; GOMES, Ângela Maria Castro (Ogrs.).
Estado Novo – Ideologia e Poder. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1982.

VELLOSO, Mônica Pimenta. Uma configuração do campo intelectual. In: PANDOLFI.


Dulce. (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1999.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

320
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O fim da aviação naval? Tensões político-militares nas forças armadas no estado novo

ANTONIO MODESTO DOS SANTOS JUNIOR


Universidade Salgado de Oliveira

A aviação militar brasileira até o final da década de 1930 estava dividida entre a
aviação naval e a aviação militar, respectivamente, sob a égide da Marinha e do Exército.
A idealização do Ministério da Aeronáutica se processou em um contexto de
reorganização das Forças Armadas para fortalecer as ações do Estado Novo, projeto de
poder liderado por Getúlio Vargas, apoiado pelas camadas intermediárias da população e
pelos militares que temiam a implantação do comunismo no país.
A instauração do Estado Novo no Brasil é contemporânea, e em certa medida,
subsidiária de regimes que se proliferaram na Europa, a exemplo do nazismo na
Alemanha, do fascismo na Itália, do salazarismo em Portugal e do franquismo na Espanha
que instalaram governos autoritários com repercussões dramáticas na história da
humanidade. A centralidade do Estado Novo concentrou no Poder Executivo da Nação
brasileira a tomada de decisões que antes eram partilhadas com os estados e o Poder
Legislativo, anulando assim o princípio do federalismo, algo característico da Primeira
República.
O historiador Fernando Rodrigues (2008, p. 24) apresenta que durante o Estado
Novo a interação política foi incapaz de resolver o problema da hegemonia, buscando
assim a solução para o autoritarismo. Naquele momento as formas de Estado burguês e
democrático não satisfaziam [...] “as necessidades do capital doméstico estrangeiro”
(RODRIGUES, 2008, p. 25).
Ao tentar entender as relações de poder entre os militares e civis durante o regime
do Estado Novo, faz-se necessário uma abordagem acerca das instituições militares.
Rodrigues (2008, p. 35) destaca que este regime foi apoiado pelo Exército que tinha como
objetivo centralizar o poder político do Estado138 buscando assim compatibilizar as forças
sociais em conflito.
O brasilianista Thomas Skidmore (1969, p. 53) afirma que o presidente Getúlio

138
Para Poulantzas o “Estado é o lugar de organização estratégica da classe dominante em sua relação com
as classes dominadas. É um lugar e um centro de exercício do poder, mas que não possui poder próprio.”
(POULANTZAS, 1985, p. 169).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

321
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Vargas apoiou o seu poder político nas Forças Armadas, entretanto sua decisão de criar
uma nova instituição militar, além das duas que até então existia, não apenas criou mais
um ministério militar, mas causou profundas mudanças naqueles existentes. De forma,
que além de subtrair todo o aparato relativo ao meio aéreo para a criação de uma força
aérea única, fomentou um intenso conflito entre a Marinha e a recém-criada Aeronáutica.
(FALCONI, 2009, p. 12).
As Forças Armadas até o final dos anos 1930 eram compostas pela Marinha e pelo
Exército e vinham desempenhando papel incisivo na política brasileira139 desde o fim da
Monarquia.
“Em 1941, acompanhando o processo que já vinha acontecendo na Europa desde
1918, referente as mudanças nas Forças Armadas, o Brasil cria também a sua aviação
única.” (FALCONI, 2009, p. 35). É fundamental, o entendimento de como ficou a
situação política das Forças Armadas com a criação do Ministério da Aeronáutica, quais
as tensões de poder com essa fragmentação, e quais foram as mudanças conjunturais
nestas instituições. E porque a Marinha iniciou uma forte campanha questionando que
todo seu aparato aéreo fosse devolvido. Estas iniciativas da Marinha podem ser vistas
explicitamente nos relatórios ministeriais.
A criação do Ministério da Aeronáutica pelo Decreto-Lei n° 2.691 é questionada
pela Marinha nos relatórios do ministro da pasta ao presidente da República:

Com a criação do Ministério da Aeronáutica, todas essas instalações e


todo o material de aviação e bem assim todo o pessoal especializado e
avultado número de oficiais e praças do pessoal subalterno não
especializadas, passaram para aquele Ministério com grande prejuízo
para os serviços navais. (RELATÓRIO DOS SERVIÇOS DO
MINISTÉRIO DA MARINHA, 1941)

139
Em 1889, a alta cúpula do Exército pôs fim a Monarquia, expulsando o imperador D. Pedro II do país,
e proclamando assim a República, um movimento eminentemente elitista que ocorreu sem luta e sem a
participação direta das camadas populares. Em 1892 grupo de altos oficiais da Marinha exigiu a imediata
convocação dos eleitores para a escolha dos governantes deflagrando assim a Revolta da Armada, que
refletia o descontentamento do pequeno prestígio político da Marinha em comparação ao do Exército. No
movimento encontravam-se também jovens oficiais e muitos monarquistas. Em 1920, se deflagrou
o Tenentismo, movimento político-militar, que compôs uma série de rebeliões de jovens oficiais de baixa
e média patente do Exército, os quais demonstravam descontentamento com a situação política do país, os
revoltosos propunham reformas na estrutura de poder do país, entre as quais se destacam o fim do voto
aberto (fim do voto de cabresto), instituição do voto secreto e a reforma na educação pública. Os principais
movimentos foram: A Revolta dos 18 do Forte de Copacabana em 1922, Revolução de 1924: a chamada
Comuna de Manaus e a Coluna Prestes.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

322
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A deliberação do presidente Getúlio Vargas em instituir o Ministério da


Aeronáutica unificando as aviações naval e militar, como ocorreu nos países europeus
não foi algo recebido de forma unânime entre a alta cúpula da Marinha. Com a instauração
do Estado Novo, essa decisão ficou a cargo unicamente do presidente da República, pois
naquele momento se tinha um Congresso neutralizado pela amplitude do regime de
exceção que se encontrava o país e Getúlio Vargas ao propor um "Estado Novo",
propunha também "Forças Armadas novas".
É válido destacar a Campanha Nacional de Aviação, que teve um importante papel
para o desenvolvimento da aeronáutica no Brasil. Esta ideia nasceu em Porto Alegre no
final de 1940 com a participação do periódico local, O Diário de Notícias140 que iniciou
uma campanha para angariar fundos, visando a aquisição de um avião de treinamento. A
campanha em questão contou com o apoio dos Diários Associados, fundado por Assis
Chateaubriand, e que até então era aliado do presidente Getúlio Vargas. Os artigos
publicados nos impressos que circulavam no Rio de Janeiro nas décadas de 1930 e 1940:
O Cruzeiro, O Jornal, Correio da Manhã e Jornal do Comércio destacavam a
preocupação do Estado com a aviação, pois esta atividade proporcionava segurança e
estabilidade em tempos de guerra. Esta ideia é reforçada pela historiadora Raquel Ferreira
(2012, p. 76) ao afirmar que os artigos fomentavam a inquietação do Estado com a
construção de aviões e a formação de pilotos.
Na esteira das campanhas desta época, o jornal A Noite difundiu uma propaganda
chamada Asas e Ases para o Brasil, lançada na sede do Aeroclube do Brasil tendo como
objetivo promover a formação de monitores e pilotos civis.
Entretanto, o ministro Aristides Guillem (1935-1945) defendia que a aviação do
Brasil nasceu na Marinha e deveria pertencer unicamente aquela instituição. Em seu
relatório de 1942 ele apresenta o avanço da aviação, que se desenvolveu passando das
instalações modestas na Ilha das Enxadas para as vastas instalações na Ponta do Galeão,
na Ilha do Governador. Esse ministro observa ainda que a aviação naval estava

140
Jornal, que funcionou como divulgador da Revolução de 1930, sendo considerado um dos principais
formadores de jornalistas de sua época em sua área de abrangência. Beneficiou-se do fornecimento de
imagens da Agência Meridional de Notícias, criada no Rio de Janeiro em 1931 por Assis Chateaubriand.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

323
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“progredindo sempre com a aquisição de novo material, sofria, contudo, uma


desorientação por falta de uma diretriz firme e mais ainda, pelo espírito esportivo do seu
pessoal” (Relatório dos Serviços do Ministério da Marinha em 1942).
Inicialmente na Marinha, a Aviação Naval foi constituída como especialidade, que podia
ser adotada tanto pelos oficiais do Corpo da Armada, quanto pelos maquinistas. Em 1932, o
ministro Protogénes Guimarães (1931-1935) reorganizou o Corpo de oficiais da Marinha141, onde
se manteve em um corpo único os oficiais da Armada e os Engenheiros Maquinistas Navais.
Foram estabelecidas as classes anexas da Armada que eram divididas em Corpo de Aviação
Naval, Corpo de Engenheiros Navais, Corpo de Saúde Naval, Corpo de Comissários da Armada
e Corpo de patrões-mores da Armada e ainda criados o Corpo de Contadores Navais (Decreto n°
21.099, de 25 de fevereiro de 1932) e Corpo de Fuzileiros Navais (Decreto nº 21.106, de 29 de
Fevereiro de 1932) respectivamente, o primeiro constituído dos militares honorários da Diretoria
de Fazenda e o segundo formado pelos militares oriundos do antigo Regimento Naval.
Em 1925, a Administração Naval se preocupou com o pessoal subalterno da
aviação, (Decreto nº 16.998, de 12 de Agosto de 1925) reorganizou seus quadros
dividindo-os em três categorias: suboficiais, inferiores e marinheiros, desta maneira,
reestruturaram as bases do Serviço Geral de Aviação Naval, realizando a inserção de
suboficiais, auxiliares-artífices e praticantes-artífices de aviação na Marinha. Desde 1916
já existia a Escola de Aviação Naval (Decreto 12.167, de 23 de agosto de 1916) na Ilha
das Enxadas, que sediava a Base da Aviação Naval. Esta base inicialmente tinha como
objetivo preparar oficiais do Corpo da Armada para serem pilotos de Aviação Naval e
preparar civis para a Reserva Naval Aérea, eram ministrados os cursos de Piloto Aviador;
Mecânicos Navais de Aviação e de Marinheiros Especialistas de Aviação (Aviso 1727,
de 26 de março de 1919) essa escola teve a sua extinção com a criação da Escola de
Especialistas do Ministério da Aeronáutica (Decreto-Lei n° 3.141 de 25 de março de
1941).
O ministro Protógenes Guimarães cria o Corpo de Aviação em 1931, sendo
referendado pelo decreto presidencial número 20.765 que, inclusive, comportava neste
novo corpo: oficiais e pessoal subalterno.
Em 1935 foi criado um novo regulamento, para a aviação naval e dividiu o pessoal

141

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

324
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

da seguinte forma: ativa e reserva, oficiais e praças. Os oficiais se formariam nas


seguintes especializações, consideradas superiores: armamento; comunicações e
meteorologia; e engenharia aeronáutica (motores e estrutura), e os praças seguiriam as
especialidades subalternas: motores (e caldeira); estrutura (montagem, carpintaria e
caldeiraria); armamento; e serviços gerais.
Ainda na gestão do Ministro Protógenes Guimarães foi criada a Reserva Aérea
Naval (Decreto 22.998, de 27 de julho de 1933), para solucionar as faltas de pessoal
qualificadas em voo e foi dividida entre o pessoal navegante e o pessoal técnico. Em 1935
foi publicado o decreto 299, que regulamentava a Força Aérea da Marinha e instituía as
flotilhas aéreas de bombardeio, de observação e de patrulha. Essa gestão foi marcada pela
reorganização da Aviação Naval para atender as necessidades da Marinha na defesa aérea
do litoral brasileiro. E também caracterizada pela reestruturação das seguintes unidades
aéreas: Primeira Flotilha de Observação, Primeira Flotilha de Bombardeio e Patrulha e
Primeira Flotilha de Aviões de Esclarecimento e Bombardeio (Aviso do Ministro da
Marinha n 2.894 de 10 de novembro de 1932).
O ministro Protogénes Guimarães em seu relatório apresentado em 1935 ao
presidente Getúlio Vargas pedia atenção especial ao governo federal para a Aviação
Naval, argumentando que "a extensão territorial do Brasil é muito grande se fazendo
necessário, investimentos para o campo da aviação para aumentar a eficácia na defesa
deste imenso território” (Relatório dos Serviços do Ministério da Marinha em 1935).
Após a criação do Ministério da Aeronáutica a receita orçamentária do Ministério
da Marinha teve um leve declínio no ano de 1941, no entanto, no ano seguinte a Marinha
teve um relativo aumento em sua dotação orçamentária (CAMINHA, p. 112). Em seu
relatório encaminhado ao presidente Getúlio Vargas em 1940, o Ministro da Marinha
Vice-Almirante Aristides Guillem já havia transmitido ao conhecimento do Chefe da
Nação o que ele denominou de necessidade urgente de recursos orçamentários e chamou
a atenção para decadência naval que segundo o ministro chegou ao quase [...] “completo
aniquilamento dos elementos bélicos da Marinha.” (Relatório dos Serviços do Ministério
da Marinha em 1940).
O ministro Aristides Guillem, no ano de 1942, continuou levando ao
conhecimento do presidente da República através dos relatórios da sua pasta as
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

325
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

dificuldades financeiras acarretadas ao Ministério da Marinha com a criação do


Ministério da Aeronáutica. Esse ministro cita ainda neste mesmo relatório que grande
parte dos benefícios realizados na Marinha naquele ano ocorreu com o auxílio de recursos
orçamentários oriundos do fundo naval, o qual foi criado pelo decreto 20.923 no ano de
1932 e tinha como finalidade a renovação do material flutuante da Marinha de Guerra.
A insatisfação do Ministro da Marinha com a perda de pessoal e material para a
Aeronáutica continuou sendo expressa nos seus relatórios dos anos que seguiram a
criação do novo ministério militar. O ministro Aristides Guilhem no seu relatório de 1942
chama atenção para a composição da esquadra com diversas forças-tarefa e enfatiza que
a guerra no mar só pode ser travada com eficiência pelas Esquadras integrais. Isto é, forças
ligeiras, submarinas e aéreas. (Relatório dos Serviços do Ministério da Marinha em 1942).
Ele relata que essas forças auxiliares, consideradas subsidiárias eram indispensáveis na
maioria das situações de guerra.
Na busca do entendimento da decisão de Vargas em criar mais um ministério
militar, estudaremos sob a perspectiva do autoritarismo vigente no Estado Novo e cabe
aqui apresentar o que compreendemos com este conceito, utilizando assim a teoria
abordada por Mario Stopino (1994, p. 94), quando o autor trata do autoritarismo nos
sistemas políticos. Para ele os regimes autoritários são aqueles que pautam a autoridade
governamental, concentrando o poder político nas mãos de uma só pessoa ou um só órgão
e as instituições destinadas a representar a autoridade são aniquiladas ou esvaziadas.
Neste sentido, o autoritarismo pode ser entendido como uma manifestação degenerativa
da autoridade, onde se impõe a obediência e se oprime a liberdade daqueles que estão
abaixo do poder.
Stopino (1994, p. 96) define que autoritarismo é um conceito que assim “como
"ditadura" e "totalitarismo" foram usados em contraposição a "democracia"”. O autor
observa que o conceito de autoritarismo foi criado originariamente para descrever os
indivíduos de personalidade fascista, e neste sentido o getulismo seria subsidiário de
regimes fascistas que se instalaram pela Europa.
A criação do Ministério da Aeronáutica surgiu em um momento que Getúlio Vargas via
as Forças Armadas como instituições estratégicas para sua consolidação no poder. O historiador
estadunidense, estudioso contemporâneo do Exército brasileiro, Frank McCann (1995, p. 44)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

326
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

destaca que as instituições militares eram instrumentos para derrubar os caciques políticos da
época. Neste sentido Rouquié (1978, p. 93) conceitua que as Forças Armadas além de ser uma
organização coercitiva são também burocracias nas quais são aplicados os mecanismos formais
de contrapoder e autoridade central.
Miliband (1972, p. 162) cita os regimes de Mussolini na Itália e Hitler na
Alemanha, em que ambos chegaram ao poder sob o auxílio dos militares, entretanto
subjugaram estes militares depois que estavam no poder. Neste aspecto é válido destacar
a conceituação que Stopino (1994, p. 1259) nos apresenta sobre totalitarismo, que de
acordo com a filosofa política Hannan Arendt, o “terror” é a característica marcante do
totalitarismo. Baseado nesses pressupostos, entendemos que, os regimes de Mussolini e
Vargas podem ser excluídos desta conceituação, sendo considerados como regimes
autoritários, de modo que na Itália e no Brasil não houve os elementos constitutivos do
totalitarismo, como nos regimes de Stalin na Rússia e de Hitler na Alemanha.
Huttington (1996, p. 136) observa que Hitler rebaixou o poder dos militares ao
exonerar o Comandante em Chefe das Forças Armadas, onde ele próprio assumiu o
comando, concentrando os postos de chefe de Estado e de Ministro da Guerra.
Na Alemanha também foi criada uma Força Aérea única a Luftwaffe, a qual de
acordo com Huttington (1996, p. 137) apoderou-se das unidades antiaéreas pertencentes
ao Exército. Neste aspecto, pode-se observar que os líderes ditadores usavam o apoio
militar para atingir o poder e depois buscavam subjugar os militares, como Getúlio Vargas
fez no Brasil ao criar mais um ministério militar. Nesta perspectiva McCann (1995, p.
184) destaca que no começo de 1941, Vargas se empenhou em limitar o poder do Exército
que vinha buscando a criação do Ministério da Aeronáutica, sob o seu comando.
Nesta perspectiva McCann (1995, p. 184) salienta que a Marinha se mostrava
insatisfeita, e na tentativa de resolver essa “querela” entre as instituições militares Vargas
nomeia o magistrado Salgado Filho, buscando assim satisfazer a Marinha e enfraquecer
o Exército. A nomeação de um civil gerou protestos do Exército, e de acordo com o autor
os generais redigiram um manifesto e enviaram pelo General Pinto a Vargas que mesmo
enfrentando resistência manteve o civil na pasta. O Ministro da Guerra de início não quis
entregar os aviões do Exército, mas no fim acabou cedendo. McCann (1995, p. 185)
destaca que o general Góes Monteiro mais tarde comentaria que Getúlio buscava “manter

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

327
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

as Forças Armadas enfraquecidas ou fracionadas, agindo com relação a elas como se


fossem um corpo político ou um partido” e pretendia ao criar a Aeronáutica fragilizar as
instituições militares, e finalizava dizendo que Vargas com essa atitude deu um passo
errado que no final ia lhe custar caro.
Hutington (1996, p.89) elucida as relações entre o estadista e os militares e observa
que embora não possam ser definidas com precisão é possível enunciar alguns dos
princípios que devem regular. Para o autor na política o militar tem que ser neutro e assim
como a guerra serve aos fins da política, a profissão militar serve aos fins do Estado e ao
estadista cabe reconhecer a integridade da profissão como matéria específica. A ideia
defendida por Huntington de que o profissionalismo do militar os afasta da política é
refutada por outros autores e neste sentido McCann (1999, p. 14) observa que o regime
militar no Brasil de 1964 a 1985 foi “apoiado pelas Forças Armadas mais profissionais
da história brasileira”.
Ao propormos entender as mudanças estruturais das Forças Armadas durante o
Estado Novo escolhemos dialogar com autores que abordaram o período e destacaram o
papel das instituições militares na tomada de poder pelo estadista Getúlio Vargas. Esta
historiografia elucida o cenário político brasileiro na década de 1930 e 1940, momentos
em que pautamos a nossa pesquisa.
McCann (1995, p. 43) assinala que Getúlio Vargas buscou a adesão das
instituições militares, que eram vistas por políticos e chefes militares cormo a maneira
mais segura de colocar um fim na confusão política e anarquia militar. O autor destaca
ainda que a Marinha naquele período possuía uma esquadra defasada com “uma obsoleta
coleção de submarinos rangentes e envelhecidos cruzadores” (McCann, 1995, p.44) e
confiava na permanência de Getúlio Vargas no poder visando obter recursos financeiros
para a aquisição de equipamentos que esta instituição necessitava.
De acordo com McCann (1995, p. 44) a “Marinha não era um centro de decisões”.
Esta instituição buscava articulação com o Exército para a obtenção de uma melhor frota
naval, apoiando a permanência de Getúlio Vargas no poder. Na década de 1930 a Marinha
vinha passando por dificuldades e dependia dos estaleiros estrangeiros para manter sua

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

328
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

frota, pois a construção do seu último grande navio142 em estaleiro nacional ocorreu no
final do século XIX. Por sua vez, o Exército também se encontrava em situação similar,
mantinha entre o seu material bélico, armas francesas e alemãs datadas muito antes da
Primeira Grande Guerra Mundial. Sendo assim, McCann (1995) destaca que no momento
em que os generais Eurico Gaspar Dutra e Pedro Aurélio de Góis Monteiro foram pedir
o apoio da Marinha na instauração do Estado Novo tiveram a seguinte resposta do
Ministro Aristides Guilhem: “[...] tal como em 1889 e 1930 a Marinha ficará ao lado do
Exército” (MCCANN, 1995, p. 44).
Com a implantação do Estado Novo as relações entre Vargas e os militares se
consolidaram, e a Marinha como em outros momentos da história se aliou ao Exército e apoiou a
implantação do regime.
Para entender as mudanças estruturais nas Forças Armadas, faz-se necessário
compreender a participação política dos militares no Estado Novo, no momento da
criação do Ministério da Aeronáutica. Conforme Rodrigues (2008, p. 26) com a chegada
de Getúlio Vargas a presidência da República, os oficiais que participaram da Revolução
de 1922, além de serem anistiados, alcançaram altos postos na hierarquia militar. Outro
caso é do general Góis Monteiro que participou da Revolução de 1930 e foi “sendo
promovido com interstício mínimo, galgando todos os postos até o de General-de-
Divisão.” (RODRIGUES, 2008, p. 27). Já na Marinha também houve quem se
beneficiasse neste aspecto, como o oficial Hercolino Cascardo que foi nomeado
interventor do Rio Grande do Norte em 1931 e o Vice-Almirante Protógenes Guimarães
que voltou para ativa e foi promovido a oficial-general, sendo nomeado Ministro da
Marinha em 1931.
O nosso trabalho pretende contribuir para a historiografia estudando a
participação da Marinha na política, que observamos ser pouco citada pelos historiadores
militares, a resistência na criação da Aeronáutica nos dá subsídios para entendermos as
relações institucionais da Marinha no Estado Novo.

142
De acordo com a relação de navios incorporados a Armada, o Cruzador-protegido Tamandaré foi
construído no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro e incorporado em 1895. Até 1930 apenas se obteve a
construção de outro navio de pequeno porte o Monitor Pernambuco incorporado em 1910. (CAMINHA,
1989, p.112).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

329
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

FONTES

Diretoria Do Patrimônio Histórico E Documentação Da Marinha

Leis, decretos, regulamentos, anuários.

Almanaque de Oficiais da Marinha, de 1930 a 1945.

Relatórios do Ministro da Marinha, de 1941 a 1954.

Criação das Escolas de Aviação e Submergíveis. Decreto 12.167, de 23 de agosto de


1916.

Regulamento para o pessoal subalterno do serviço geral de Aviação Naval. Decreto nº


16.998, de 12 de Agosto de 1925.

Estatuto da Aviação Militar do Exército. Decreto 17.818, de 2 de junho de 1927.

Regulamento para Aviação Naval de 1928. Decreto 232, de 31 de dezembro de 1928.

Criação do Corpo de Aviação da Marinha. Decreto 20.765 de 14 de dezembro de 1931

Criação das Divisões de Patrulha Aviso do Ministro da Marinha n 2.894 de 10 de


novembro de 1932.

Criação do Fundo Naval. Decreto nº 20.923, de 8 de Janeiro de 1932.

Criação do quadro de Contadores Navais Decreto nº 21.066, de 19 de Fevereiro de 1932.

Reorganização dos quadros de oficiais da Armada. Decreto 21.099 de 25 de fevereiro de


1932.

Criação do Corpo de Fuzileiros Navais. Decreto nº 21.106, de 29 de Fevereiro de 1932

Criação da Reserva Naval Aérea de Segunda Categoria Decreto 22.998, de 27 de julho


de 1933.

Criação do Ministério da Aeronáutica (Decreto-Lei n° 2.691 de 20 de janeiro de 1941).

Criação da Escola de Especialistas de Aeronáutica. Decreto-Lei n° 3.141 de 25 de março


de 1941.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

330
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BOBBIO, Norberto. Dicionário de política I. In BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI,


Matteucci; PASQUINO, Pasquino. Dicionário de Política, v. 1. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1998.

CAMINHA, Herick Marques. História Administrativa do Brasil; organização e


administração do Ministério da Marinha na República. Brasília – Rio de Janeiro:
Fundação Centro de Formação do Servidor Público. Serviço de Documentação da
Marinha, 1989.

CARNOY, Martin. Estado e teoria política. Campinas, SP: Papirus, 1986.

CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. 2. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

COELHO, Edmundo Campos Em busca de identidade: o Exército e a política


brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2000.

FALCONI, Paulo Gustavo. Aviação naval brasileira: rivalidades e debates (1941-


2001) – Franca: UNESP, 2009, Tese de Doutorado.

FERREIRA, Raquel França dos Santos. Dossiê guerras, conflitos e tensões uma
história da campanha nacional da aviação (1940-1949): o Brasil em busca do seu
‘Brevêt. 2012. Disponível em www..uff.br/cantareira visualizado em 20/11/2016.

GOMES, Ângela de Castro. Autoritarismo e corporativismo no Brasil: o legado de


Vargas. Revista USP, n. 65, p. 105-119, março/maio 2005.

HUNTINGTON, Samuel O Soldado e o Estado - Teoria e Política Entre Civis e


Militares. Rio de Janeiro: Bibliex, 1996.

LAVENÉRE-WANDERLEY, Nelson. História da Força Aérea Brasileira. Rio de


Janeiro: Gráfica Brasileira, 1975.

LINHARES, Antonio Pereira. Aviação Naval Brasileira 1916-1941. 2. ed. Rio de


Janeiro: SENAI, 2001.

MCCANN, Frank D. A aliança Brasil-Estados Unidos, 1937-1945. Rio de Janeiro:


Biblioteca do Exército, 1995.

MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e economia do Brasil: opções de


desenvolvimento. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

MILIBAND, Ralph. O Estado na sociedade capitalista. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

331
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Edições Graal,


1980.

RODRIGUES, Fernando da Silva. Uma carreira: as formas de acesso à Escola de


Formação de Oficiais do Exército Brasileiro no período de 1905 a 1946. Tese de
Doutorado. Rio de Janeiro: UERJ, 2008.

ROUQUIÉ, Alain. O Estado Militar na América Latina. São Paulo: Alfa-Omega, 1984.

SKIDMORE Thomas. Brasil de Getúlio a Castelo. 2. ed. Uberaba: Editora SAGA, 1969.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

332
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O crime organizado no Rio de Janeiro: principais facções

AVELINA ADDOR
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ

A omissão do Estado permitiu a formação e desenvolvimento do chamado Poder


Paralelo, que tem várias vertentes; todavia, este estudo será focado nas milícias e nas
facções criminosas, assim como no surgimento e interferência das UPP´s neste processo.
As milícias são formadas por grupos paramilitares, entre eles policiais,
bombeiros, vigilantes e agentes penitenciários, entre outros representantes do Estado, o
que constitui um sério agravante. As práticas por eles exercidas são consideradas
violentas, invadindo favelas, impondo leis e códigos próprios sob o “falso” argumento de
segurança.
É importante entender a dinâmica das facções que dominam as favelas. Os
políticos e a mídia costumam evitar o uso dos nomes Comando Vermelho (CV), Falange
Jacaré, Terceiro Comando, Amigos dos Amigos (ADA), Terceiro Comando Puro (TCP)
e Primeiro Comando da Capital (PCC). Isto se dá, aparentemente por acreditar que a
divulgação das nomenclaturas daria legitimidade aos grupos. O foco, porém, será na
atuação do Comando Vermelho (CV), em função do seu pioneirismo e organização
comprovada através de documentos e fontes em geral.
A pesquisa fará também um estudo de caso no Morro de Dona Marta, Botafogo
Zona Sul do Rio de Janeiro, onde foi implantada a primeira UPP (Unidade de Polícia
Pacificadora, em 19 de dezembro de 2008); comparando-a com a comunidade de Rio das
Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde as milícias continuam atuando
ostensivamente, apesar das inúmeras tentativas de contê-las, por parte de setores da
sociedade civil organizada e do Poder Público. Comparar as milícias com as UPP´s
sempre me pareceu um desafio estimulante. Na medida em que a criação das UPP´s corre
em paralelo à existência das milícias e das facções criminosas, não há do meu ponto de
vista, como escapar às comparações.
Segundo a Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (DRACO), os milicianos
já estenderam suas atividades a Municípios da Baixada Fluminense. Para garantir o
domínio territorial, os grupos empregam táticas semelhantes às usadas pelos traficantes,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

333
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

atacando redutos de grupos rivais.


As milícias começaram a atuar em Rio das Pedras, em Jacarepaguá, na década de
1990. Inicialmente, o grupo era formado por moradores que deixaram para trás suas casas
em favelas como a Rocinha, fugindo do tráfico. Com o decorrer dos anos, as milícias se
estruturaram e passaram a expulsar os traficantes de algumas favelas. Em troca da
segurança, cobravam taxas dos moradores. Os serviços estenderam-se sendo que
atualmente elas dominam o transporte alternativo, a utilização de TV à cabo (o chamado
gato net), distribuição de gás, entre outros.
Os grupos disputam entre si o controle de certas áreas e, na esteira do poder
territorial, veio o poder político. A milícia de Rio das Pedras conseguiu eleger o vereador
Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho, assassinado em 10 junho de 2009. Em Campo
Grande, outro reduto das milícias, foram eleitos os policiais Jerônimo Guimarães, o
Jerominho (vereador) e seu irmão Natalino Guimarães (deputado). Ambos foram
condenados em março de 2009 por envolvimento com a milícia e estão presos aguardando
julgamento143. Para o deputado Marcelo Freixo, que presidiu a Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) das Milícias na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
(ALERJ), essas organizações criminosas representam uma grande afronta ao Estado
Democrático de Direito. O referido deputado, em entrevista concedida ao repórter
Marcelo Moutinho, em março de 2009 para Revista Tribuna do Advogado, faz o seguinte
alerta: “as milícias são o embrião da máfia. As condições que levam ao aparecimento das
milícias como a compra de votos, clientelismo, a corrupção e o projeto de poder não são
uma exclusividade do Rio de Janeiro. Esses ingredientes são encontrados em vários
pontos do país. As milícias controlam vidas e votos”. Em outra entrevista concedida ao
jornalista Denis Russo Burgierman em 21 de dezembro de 2011, afirma que cerca de 90%
dos deputados estaduais tem ligações com centros sociais (Instituições que provem
serviços que deveriam ser papel do estado em comunidades carentes), e que geralmente
são o braço comunitário do poder mafioso das milícias. Freixo declara que, qualquer
polícia do mundo, para avançar, como aconteceu na Irlanda em 2001, tem três pontos

143
Em outubro de 2011, o julgamento de milicianos integrantes da “Liga da Justiça” é adiado pela Juíza do
4° Tribunal do Júri, Elizabeth Machado Louro. (http://radioitaperunafm.com/site/2011/10/18/julgamento-
de-milicianos-integrantes-da-liga-da-justica-e-adiado/).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

334
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

fundamentais:
- O primeiro é a aproximação com a comunidade, o que a UPP garante;
- O segundo é a valorização salarial e a formação (os salários dos nossos policiais
são absurdamente baixos e a formação dos mesmos é precária);
- O outro ponto é que o controle sobre as policias é praticamente inexistente e a
atuação das corregedorias e ouvidorias é lamentável.
O braço econômico de milicianos e traficantes é cada vez mais forte. Conforme
mostrou a série de reportagens Favela S.A. do jornal O Globo na primeira quinzena de
junho de 2009, policiais e empresários dos setores estimavam o faturamento de apenas
três atividades desses grupos em pelo menos 280 milhões de reais ao ano. Somente com
a distribuição clandestina de sinal de TV a cabo, a gato net, a estimativa é que as milícias
faturassem R$120 milhões ao ano. Com um baixo investimento em equipamentos, são
cobradas mensalidades entre R$40 e R$110 dos moradores, além de uma taxa de
instalação que pode chegar a R$100.
Dentre as atividades controladas pelas milicianos estão o transporte alternativo,
como vans e mototáxi, e a distribuição e venda de botijões de gás. O principal braço
armado da quadrilha de Natalino e Jerônimo Guimarães (condenados a mais de dez anos
de cadeia) é o ex-PM e ex-fuzileiro, Ricardo Teixeira da Cruz, o Batman, que cumpre
pena no Presídio Federal de Catanduvas (PR). Para ser efetuada a prisão de Batman, a
polícia contou com a ajuda do ex-sargento da PM e também chefe da milícia de Campo
Grande, Francisco César de Oliveira, o Chico Bala, foragido da Justiça e considerado
rival e inimigo de Batman. Vale lembrar que Batman era considerado a principal liderança
do grupo paramilitar conhecido como Os Caras do Posto (o grupo se concentrava em um
posto de gasolina Texaco, na rua Guarujá no bairro de Cosmos zona oeste do Rio de
Janeiro), embrião da Liga da Justiça criada entre 1995 e 1996. Esse fato é um dos mais
marcantes, em relação ao crescente poder das milícias, pois as pessoas envolvidas são
consideradas a elite dos milicianos, já que possuem atuação política e poder econômico.
É necessário que o poder público redefina seu papel perante a sociedade, pois, ao manter
a exclusão e acentuar as desigualdades, abriu mão da soberania sobre vasto território,
perdendo também legitimidade sobre a vida de significativa parcela da população.
A relevância desta pesquisa, para o campo da História, repousa, inicialmente, na
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

335
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

investigação da trajetória de grupos paramilitares, facções criminosas e UPP´s, dos quais


buscarei analisar sua organização, crescimento e sofisticação na prestação de serviços,
bem como a sua relação de cumplicidade e aceitação nas comunidades em que atuam.
Isso só confirma que o crime organizado está por trás destas atividades. Outro ponto
bastante importante é o transporte coletivo no Rio de Janeiro, pressionado por fortes
demandas, a despeito das intervenções do Poder Público (Estado e Município). O
problema não pode ser somente abordado no âmbito da política de transportes e sim pelo
seu viés da criminalidade.
Proponho também neste estudo, uma verificação das ligações dos grupos
paramilitares, com a face mais conhecida do crime organizado: o tráfico de drogas, extra
e intramuros, e suas respectivas formas de atuação. Na presente pesquisa pretende-se
enfatizar o que foi modificado com a criação e atuação das UPP´s (Unidades de Polícia
Pacificadora) na comunidade carioca do morro Dona Marta em 2008.
A pesquisa fará uma comparação relacionando a atuação das milícias, antes e
depois da implantação das UPP´s. O crescimento de ações criminosas em áreas
consideradas pacificadas do Rio é sinal de que, mesmo asfixiadas pelo programa das
UPP´s, muitas quadrilhas continuam ativas. Com as unidades policiais sob ataque do
crime organizado, cabe investigar de que forma estes grupos (as facções citadas
anteriormente) continuam sendo abastecidos com armas e se organizando, a ponto de
voltar a atuar em áreas aparentemente já sob controle do poder público.
No início da década de 1970, quando participava de grupos ligados à defesa dos
Direitos Humanos e da Anistia, tive oportunidade de entrar em contato com presos
políticos144, no Complexo Penitenciário Frei Caneca. Em 1984, portanto, anos depois, esse
contato foi reforçado em função da minha participação no I Encontro de Educadores e
Professores no Sistema Penitenciário145.

144
Presos que foram enquadrados pela Lei de Segurança Nacional, Artigo 27, Decreto-Lei 898/69
(EMENTA: Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo
e julgamento e dá outras providências). Na época da Ditadura os presos políticos eram equiparados aos
presos comuns, pois isto lhes tirava alguns direitos, entre eles um dos mais fundamentais: o do Habeas
Corpus.
145
Encontro planejado pela Secretaria Estadual de Educação, sendo aceito e aprovado pela Secretaria
Estadual de Justiça com o objetivo de promover uma reciclagem entre professores da rede estadual do Rio
de janeiro que lecionavam em escolas prisionais.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

336
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Alguns autores se constituem como ponto de referência para qualquer estudo que
se proponha a analisar a temática da violência e da criminalidade. Podemos destacar a
antropóloga Alba Zaluar, o cientista político Edmundo Coelho e o sociólogo José Ricardo
Ramalho. Em A Máquina e a Revolta, Alba Zaluar desenvolve como temática a
identificação de Bandidos e Vagabundos, cujos conceitos serão trabalhados
posteriormente.
A tradução mais completa deste fenômeno expressa-se nas facções do crime
organizado que atuam em favelas e áreas periféricas das grandes cidades. Geralmente
ligados ao tráfico de drogas, esses grupos imprimem às suas ações algum tipo de apelo
social. Falam em nome dos oprimidos, promovem atividades assistencialistas, arvoram-
se em protetores das comunidades, combinando em última análise, criminalidade com
discurso social.
Estudos realizados nas últimas décadas sobre o Comando Vermelho podem ser
observados através da leitura de algumas obras, tais como: Quatrocentos contra um: uma
história do Comando Vermelho (1991), de autoria de William da Silva Lima146.
Outros materiais de pesquisa são os livros do jornalista Carlos Amorim: Comando
Vermelho: a história secreta do crime organizado e CV e PCC - A irmandade do crime;
Assalto ao poder – o crime organizado.
Foi constatado, pelos repórteres Aline Ribeiro e Hudson Corrêa, da Revista Época
(de 26/06/17), que o PCC tem mais de vinte e seis mil integrantes no país, presentes nos
vinte e sete Estados da Federação. Conforme a mesma fonte, esta facção que domina os
presídios, se fortaleceu no país inteiro, faturando cerca de 240 milhões por ano, de acordo
com estimativa de promotores do Ministério Público do Estado de São Paulo, com a venda
de drogas e tráfico de armas. O PCC mantém ainda negócios ilegais em oito países da
América do Sul.
Os livros de Luiz Eduardo Soares, foram extremamente importantes para a
realização deste projeto: em Meu Casaco de General, relata os quinhentos dias em que
esteve à frente da Secretaria de Segurança Pública no Rio de Janeiro, encarando um
enorme desafio no combate à criminalidade; em Elite da Tropa, elaborado junto a

146
Apelidado de Professor e considerado um dos fundadores do CV, que após cumprir pena de mais de 25
anos, obteve em maio de 2007 direito à visita domiciliar no dia das mães e não mais retornou a Bangu III..
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

337
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Rodrigo Pimentel e André Batista analisa a violência vista sob o olhar da própria polícia.
Consideramos ser necessário, então, um olhar contemporâneo relacionado à
questão da violência urbana na cidade do Rio de Janeiro e planejamento estratégico,
buscando novos paradigmas de gestão (caso da Colômbia na última década), com ênfase
no estudo das milícias. As práticas por elas exercidas são consideradas violentas,
invadindo favelas, impondo leis e códigos próprios sob o falso argumento de segurança.
Tendo como marco fundamental a História Comparada, os objetos de pesquisa
deste projeto, centrado na cidade do Rio de Janeiro, serão: as facções criminosas:
Comando Vermelho (CV), Terceiro Comando, Amigos dos Amigos (ADA), Terceiro
Comando Puro (TCP) e Primeiro Comando da Capital (PCC)]; a milícia (comunidade do
Rio das Pedras); e a UPP (morro Dona Marta, localizada na Zona Sul).
Os relatórios do Conselho da Comunidade da Comarca do Rio de Janeiro
(COMERJ), criado pelos Artigos 80 e 81 da Lei de Execução Penal 7.210147 que visam
oferecer aos presos os Direitos Humanos básicos e as condições de salubridade das
unidades prisionais, permitindo assim garantir a total integridade dos mesmos. Estes
documentos foram fundamentais para a construção contínua entre a pesquisa por meio de
livros e de coleta de dados e de entrevistas feitas com personagens relevantes na História
do crime organizado, tanto nas suas origens, como atualmente. Como resultado disso,
foram realizadas várias visitas, principalmente, às unidades Bangu I (Laércio da Costa
Pellegrino) e Bangu III (Dr. Serrano Neves).
Foi consultado também o Decreto Lei n° 898 de 29 de setembro de 1969 [Todos
os presos são iguais], que determinava que os presos políticos fossem equiparados aos
presos comuns, pois isto lhes tirava alguns direitos, sendo o principal: o do Habeas
Corpus.
Durante visitas realizadas ao antigo Fórum de Campinho (Madureira-RJ) foram
pesquisados cerca de 10 volumes do total de 78, dos Autos do Processo da Operação
Mosaico. Esta uniu as polícias civis, militares e federais no combate ao Jogo do Bicho,
tendo sido comandada pelo juiz (atualmente desembargador aposentado) Alberto Motta
Moraes.

147
Lei N° 7.210, de 11 de julho de 1984, sancionada pela Presidência da República.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

338
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Consta também no acervo um Aviso impresso em papel distribuído aos


comerciantes e empresários do Estado do Rio de Janeiro (enviado pela facção Comando
Vermelho - Rogério Lemgruber em 24 de fevereiro de 2003) contendo ameaças àqueles
que desobedecessem às ordens de fechamento do comércio por 24 horas. No mesmo é
relatado o abuso de poder por parte dos políticos e da polícia que invadiam as favelas,
implantando o terror. Há também um documento datilografado e assinado por vários
componentes do Comando Vermelho, entre eles, o traficante Rogério Lemgruber, em que
é mencionada a principal filosofia do grupo como sendo “PAZ, JUSTIÇA E
LIBERDADE”; o mesmo direcionado a todos os componentes da facção criminosa.148
Será pesquisado ainda todo o material relativo à Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) das Milícias, presidida pelo então deputado Estadual Marcelo Freixo.
Dados, levantados em investigações realizadas no Instituto Pereira Passos, no
Instituto Brasileiro de Pesquisas Estatísticas (IBGE) e também feitas pela Delegacia de
Repressão ao Crime Organizado (DRACO), afirmam que na capital, das 1071 favelas
existentes no Rio de Janeiro, elas, as milícias atuam em duzentas (200) comunidades, ou
seja, em 20,6% das favelas da cidade.
Pretendo utilizar também as ferramentas da História Oral para realizar as
seguintes entrevistas: Delegado Cláudio Ferraz, titular da Delegacia de Repressão ao
Crime Organizado (DRACO), que comandou a operação que prendeu o cabo Juracy
Alvez Prudêncio, o Jura, acusado de chefiar o maior grupo miliciano da Baixada
Fluminense; com o Juiz Alexandre Abraão da primeira Vara Criminal de Bangu, que
condenou o ex-inspetor da Polícia Civil e miliciano Odnei Fernandes da Silva e Davi
Liberato de Araújo, acusados de comandar as agressões a uma equipe do Jornal O Dia,
em 14/05/2008 na Favela do Batam, em Realengo, Zona Oeste; Ilona Szabo, co-
fundadora e diretora-executiva do Instituto Igarapé que realiza pesquisas de novas
tecnologias e influencia políticas públicas em segurança, justiça e desenvolvimento.
Outras entrevistas poderão ser definidas posteriormente.
Já foram realizadas as seguintes entrevistas com:

148
Segurança, tráfico e milícias no Rio de Janeiro. Relatório da Organização Justiça Global, com o apoio
da Fundação Heinrich Böll. 2008 – Reportagem “Uma quadrilha de 11 mil”. Repórteres Marcelle Ribeiro
e Sérgio Roxo. Jornal O Globo. Seção “País”, p. 03. Data: 12/10/2013.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

339
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Desembargador Alberto Motta Moraes (o principal articulador da Operação


Mosaico, que uniu as polícias civis, militares e federais, no combate ao jogo do bicho e
suas ramificações criminosas)
Delegado da Polícia Federal Walterson Botelho;
Delegado Aluísio Russo (ex-diretor do Departamento do Sistema Penitenciário –
DESIPE, ex-titular da Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis;
Promotor Avelino Gomes Moreira Neto (ex-diretor do DESIPE);
Jornalista e Escritor José Louzeiro (tem livros importantes na área da
criminalidade – principalmente Lúcio Flávio: o passageiro da agonia (1983);
Advogado e ex-preso político Raimundo Teixeira Mendes;
Traficante integrante do Comando Vermelho (CV) Vinícius Santos da Silva,
vulgo “Bocão” (na POLINTER na presença de um policial armado com uma escopeta);
“Tom Zé” (Antonio José Pereira, traficante e dono do morro Pavão-Pavãozinho
em Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro; no final dos anos 1990 – foi realizada em sua
fortaleza revestida com portas de aço maciço, porões com arsenal e mercadorias; na
ocasião portava uma metralhadora UZI, israelense, da qual segundo o próprio só se
separava em ocasiões muito especiais – (CV);
José Ribeiro Neto, integrante do CV na área da Penha, zona norte do Rio de
Janeiro, mais conhecido como “Dentinho”;
João Felipe Damasceno Feitosa, Agente de Segurança Penitenciária do Presídio
Ary Franco em Água Santa;
André Borges, ex-preso comum, ex-preso político e Jornalista;
Darcy da Silva, mais conhecido como “Cy do Acari”, chefe do tráfico na
localidade de mesmo nome (realizada na presença de um policial armado e do chefe de
segurança do Presídio, Coronel Francisco Spargoli da Rocha – apesar da entrevista ter
sido previamente agendada com a direção do presídio e com o traficante, o mesmo negou-
se a conceder a mesma, alegando que poderia ser prejudicado com seu depoimento.
Declarou que poderia dar a entrevista caso seu advogado Dr. Ézio Lopes autorizasse;
forneceu na mesma hora um endereço na Avenida Presidente Vargas, centro do Rio de
Janeiro que se verificou posteriormente ser inexistente. Vale lembrar que o advogado se
“Cy” na época defendia também o inspetor escolar, Urubatan de Lemos, detido com 320
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

340
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

gramas de cocaína, na Escola Estadual Professor Clóvis Monteiro em Bonsucesso.

REFERÊNCIAS

BANDEIRA, Antonio Rangel; BOURGOIS, Josephine. Armas de fogo: Proteção ou


risco? 1ª ed. Rio de Janeiro: Viva Rio, 2005.
BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: Violência, justiça, segurança pública e direitos
humanos no Brasil de hoje. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
BOM MEIHY, José Carlos Sebe. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 1998.
BONDER, Nilton. O crime descompensa: Um ensaio místico sobre a impunidade. 1ª ed.
Rio de Janeiro: Imago, 1992.
BRUSCHINI, Vito. O chefão dos chefões. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: A produção do "Espaço Criminalizado"
no Rio de Janeiro. 1ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
CANDIAGO, Fausto C. Delinquência no Brasil: Verdades e soluções. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Regional Ltda, 1984.
CENTRO CATÓLICO DE INTELECTUAIS FRANCESES. A violência. Rio de Janeiro:
Ludes, 1967.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1 Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2001.
COELHO, Edmundo Campos. A oficina do diabo: Crise e conflitos no Sistema
Penitenciário do Rio de Janeiro. 1ª ed. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo Ltda; IUPERJ,
1987.
CORBISIER, Roland. Raízes da violência. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1991.
COSTA, Flávio Moreira da (Org.). Os 100 melhores contos de crime e mistério da
literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
COUTINHO, C. N. et al. O manifesto comunista 150 anos depois: Karl Marx e
Friedrich Engels. 1ª ed. Rio de Janeiro e São Paulo: Contraponto e Fundação Perseu
Abramo, 1998.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

341
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia do dilema


brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
DA MATTA, Roberto; SOÁREZ, Elena. Águias, burros e borboletas: Um estudo
antropológico do jogo do bicho. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque: A medicalização do crime.
1ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800. 3ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. 2ª ed. São Paulo: Ideias e Letras,
2004.
DOSSE, François. A História em migalhas: Dos Annales à nova história. Bauru:
EDUSC, 2003.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor; tradução de Luis Claudio de Castro. Biblioteca folha clássicos
da literatura universal 5: Crime e castigo. Rio de Janeiro e São Paulo: Ediouro
Publicações e Publifolha, 1998.
FALCONE, Giovanni; PADOVANI, com Marcela; tradução de Luis de Paula. Coisas da
Cosa Nostra: A máfia vista pelo seu pior inimigo. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
FERNANDES, Rubem César. Brasil: As armas e as vítimas. Rio de Janeiro: 7 Letras
Viva Rio, 2005.
FILHO, Aziz; FILHO Francisco Alves. Paraíso armado: Interpretações da violência no
Rio de Janeiro. 1ª ed. São Paulo: Garçoni, 2003.
FILHO, João Alamy. O caso dos irmãos Naves: O erro judiciário de Araguari. 1ª ed.
São Paulo: Círculo do Livro, 1979.
FILHO, João António Ferreira. Leão de Chácara. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975.
FILHO, João António Ferreira. Malagueta, perus e bacanaço. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1975.
FISCHER, Tania. Gestão contemporânea: Cidades estratégicas e organizações locais.
2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
FOUCAULT, Michel; tradução de Roberto Machado. Microfísica do poder. 5ª ed. Rio
de Janeiro: Graal, 1985.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

342
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

FOUCAULT, Michel; tradução de Ligia M. Pondé Vassalo. Vigiar e punir: Nascimento


da Prisão. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 1988.
GARLAND, David. Punishment and modern society: A study in social theory.
Chicago: University of Chicago Press, 1996.
GLENNY, Misha. McMáfia: Crime sem fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.
GRECO, Rogério; MONTEIRO, André; BETINI, Eduardo Maia. A retomada do
Complexo do Alemão. Niterói: Impetus, 2014.
GREGORI, Maria Filomena; SILVA, Cátia Aida. Meninos de rua: E instituições tramas,
disputas e desmanche. São Paulo: Contexto, 2000.
GUDEL, Leonardo. Sangue azul: Morte e corrupção na PM do Rio. 1ª ed. São Paulo:
Geração Editorial, 2009.
GUIMARÃES, Maria Eloisa. Escola, galeras e narcotráfico. 2ª ed. Rio de Janeiro:
UFRJ, 2003.
GUIMARÃES, Marília. Nesta terra, nesse instante. 1ª ed. Rio de Janeiro:
Ebendinger,2000.
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos anos de periferia: Uma contribuição ao
estudo da política internacional. 5ª ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.
HERIVEL, Tara; tradução de Livia Maria Medeiros, Renato Gomes Rocha e Victor de
Macedo. Quem lucra com as prisões: O negócio do grande encarceramento. Rio de
Janeiro: Revan, 2013.
HUGGINS, M. K. et al. Operários da violência: Policiais torturadores e assassinos
reconstroem as atrocidades brasileiras. Brasília: UNB, 2006.
HUGGINS, Martha K.; HARITOS-FATOUROS, Mika; ZIMBARDO, Philip G.
Violence workers: Police torturers and murderers reconstruct Brazilian atrocities.
Califórnia: University of Califórnia Press, 2002.
HUZAK, Iolanda; AZEVEDO, Jô. Crianças de fibra. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1994.
JOANIDES, Hiroito de Moraes. Boca do lixo. 2ª ed. São Paulo: Populares, 1977.
JR., José Arbex; TOGNOLLI, Claudio Julio. O século do crime. 2ª ed. São Paulo:
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

343
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Boitempo, 2004.
KARAM, Maria Lucia. De crimes, penas e fantasias. 1ª ed. Niterói: Luan Editora Ltda,
1992.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: UNICAMP Ed., 1990.
LEAL, César Barros. A delinquência juvenil: Seus fatores exógenos e prevenção. Rio
de Janeiro: Aide Editora, 1998.
LEIRNER, Piero De Camargo. Meia volta volver: Um estudo antropológico sobre a
hierarquia militar. 1ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
LEITE, Ligia Costa. A magia dos invencíveis: Os meninos de rua na Escola Tia Ciata.
Petrópolis: Vozes, 1991.
LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos vivos. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.
LETKEMANN, Peter. Crime as work. Englewood Cliffs: Prentice-Hall Inc., 1973.
LIMA, Renato Sérgio de; PAULA, Liana de. Segurança pública e violência: O Estado
está cumprindo o seu papel? São Paulo: Contexto, 2006.
LINS, Claudia. A máfia da inocência: Os caminhos da impunidade. Rio de Janeiro:
Garamond Ltda, 2004.
MAGALHÃES, Mário. O Narcotráfico: Folha explica. São Paulo: Publifolha, 2000.
MAGALHÃES, Mário. Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo. 1ª ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
MARKUN, Paulo; RODRIGUES, Ernesto. A máfia manda flores: Mariel, o fim de um
mito. 1ª ed. São Paulo: Global, 1981.
MARQUES, João Benedito De Azevedo. Marginalização: Menor e criminalidade. São
Paulo: McGraw-Hill do Brasil Ltda, 1976.
MAYER, Hans; tradução de Carlos Almeida Pereira. Os marginalizados. Rio de Janeiro:
Guanabara S.A, 1989.
MENEZES, Raimundo de. Crimes e criminosos celebres. 2ª ed. São Paulo: Livraria
Martins, 1962.
MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos: A acumulação social da
violência no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto Universitário
de Pesquisa do Rio de Janeiro, 1999.
MIR, Luís. Guerra civil: Estado e trauma. São Paulo: Geração Editorial, 2004.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

344
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MOTTA, Nelson. Bandidos e mocinhas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.


NEIMAN, Susan; tradução de Fernanda Abreu. O mal no pensamento moderno: Uma
história alternativa da filosofia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.
NETO, Otávio Cruz; MOREIRA, Marcelo Rasga; SUCENA, Luis Fernando Mazzei.
Nem soldados nem inocentes: Juventude e tráfico de drogas no Rio de Janeiro. 1ª ed.
Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2001.
OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: Um paradoxo social. Santa Catarina: UFSC Ed.,
1984.
PAOLI, Maria Célia; et all. Violência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982.
PINHEIRO, Paulo Sérgio; MENDÉZ. Juan E.; O´DONEIL, Guillermo. Democracia,
violência e injustiça: O não estado de Direito na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2000.
PLATT, Damian; NEATE, Patrick. Cultura é a nossa arma: Afroreggae nas favelas do
Rio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
PROST, Antoine; tradução de Guilherme Freitas Teixeira. Sobre a história. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Autêntica, 1996.
RESENDE, Beatriz. Cocaína: Literatura e outros companheiros de ilusão. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra. 2006.
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e criminalidade: Estudo e análise da Justiça no
Rio de Janeiro (1900-1930). Rio de Janeiro: editora UFRJ, 1995.
RIBEIRO, Aline; CORRÊA, Hudson. A segunda guerra do Paraguai. Época, Rio de
Janeiro, n. 992, p. 60-69, jun. 2017.
ROBINSON, Jeffrey; tradução de Ricardo Inojosa. A globalização do crime. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2001.
ROCHA, Raul Paulo da; PALLUCH, Miklós. Soldados do papel. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2007.
SENDEREY, Israel Drapkin; tradução de Ester Kosovski. Imprensa e criminalidade.
São Paulo: José Bushatsky. 1983.
SENTO-SÉ, João Trajano. Prevenção da violência: O papel das cidades. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira - FAPERJ, 2005.
SILVA, Jorge da. Controle da criminalidade e segurança pública na nova ordem
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

345
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1990.


SOARES, Glaucio Ary Dillon; MIRANDA, Dayie; BORGES, Doriam. As vítimas
ocultas na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
SOARES, Luiz Eduardo. Meu Casaco de General: Quinhentos dias no front da
segurança pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SOARES, Luiz Eduardo, BATISTA, André e PIMENTEL, Rodrigo. Elite da Tropa. Rio
de Janeiro: Ed. Objetiva, 2006.
SOARES, Luiz Eduardo; FERRAZ, Claudio; BATISTA, André; PIMENTEL, Rodrigo.
Elite da Tropa 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.
SOARES, Luiz Eduardo. Tudo ou nada: A história do brasileiro preso em Londres por
associação ao tráfico com duas toneladas de cocaína. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2012.
SOARES, Simone Simões Ferreira. O Jogo do Bicho: A saga de um fato social brasileiro.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993
SOREL, Georges; tradução de Paulo Neves. Reflexões sobre a violência. São Paulo:
Martins Fontes, 1992.
THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
THOMPSON, Paul; A voz do passado: História oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
VERANI, Sergio. Assassinatos em nome da lei: Uma prática ideológica do Direito
Penal. Rio de Janeiro: Aldebarã,1996.
WACQUANT, Loïc; tradução de André Telles. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos.
2ªed. Rio de Janeiro: Revan. 2003.
ZIEFLER, Jean; tradução de Clovis Marques. Senhores do crime. Rio de Janeiro:
Record, 2003.
ZIZEK, Slavoj; tradução de Vera Ribeiro. O mais sublime dos histéricos: Hegel com
Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

346
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Velar pelo aformoseamento e saneamento”: ações de limpeza no espaço público


da Cidade do Natal, segunda metade do século XIX

AVOHANNE ISABELLE COSTA DE ARAÚJO


PPGHCS – COC/Fiocruz

Cidade do Natal na segunda metade do século XIX

Capital da Província do Rio Grande do Norte, a Cidade do Natal sofria com a


constante falta de salubridade, limpeza pública e epidemias. A Cidade do Natal, no
período estudado, além dos povoados esparsos em seu entorno, era dividida em dois
bairros:149 Cidade Alta e Ribeira.150 Para a presente discussão, levar-se-á em consideração
apenas os dois bairros mencionados, pois são sobre eles que as medidas de salubridade se
debruçaram com maior frequência, nas ações da Câmara Municipal, dos médicos e dos
Presidentes de Província.
A Cidade Alta teve sua origem no período colonial, quando Jerônimo de
Albuquerque procurou “o alto elevado e firme” (FERREIRA, 2008: 143) para dar início
à ocupação do território do que seria a Cidade do Natal, medida que tinha a princípio um
sentido estratégico, muito comum na colonização de espaços inóspitos. Não por acaso
seria o logradouro onde se construiriam as edificações-ícones do sentido urbano colonial
e, posteriormente, das vilas e capitais do império brasileiro. Era neste bairro, onde
ficavam os principais prédios da administração pública, como a Câmara Municipal e a

149
A palavra bairro aparece na documentação administrativa provincial, os Relatórios de Presidentes de
Província do Rio Grande do Norte, um deles de: RELATÓRIO apresentado a Assembleia Legislativa
Provincial do Rio Grande do Norte pelo Exm. Primeiro vice-presidente da Província João Carlos Wanderley
no dia 3 de maio de 1850. Saúde pública, reflexões: p. 11. Nos Dicionários da Língua Brasileira de Luiz
Maria da Silva Pinto e Antonio Moraes Silva, a palavra bairro é definida como “parte de huma cidade que
se divide em certas ruas.” PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por Luiz Maria
da Silva Pinto, natural da Provincia de Goyaz. Na Typographia de Silva, 1832. p. 135. E SILVA, Antonio
Moraes. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta
segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES SILVA. Lisboa:
Typographia Lacerdina, 1813. p. 158.
150
De acordo com FERREIRA, et. all, “duas outras regiões da cidade eram ocupadas, porém não faziam
parte do núcleo central urbano: as Rocas, então povoado de pescadores situado após a Ribeira em direção
ao Forte dos Reis Magos, e o Passo da Pátria, localizado em uma área ribeirinha contígua à Cidade Alta.”
FERREIRA, Ângela Lúcia, et all. Uma cidade sã e bela: a trajetória do saneamento de Natal – 1850 a
1969. Natal: IAB/RN; CREA/RN, 2008. p. 48.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

347
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Cadeia Pública (ambas funcionando no mesmo edifício), o Palácio do Governo, a


Assembleia Provincial, a Tesouraria da Fazenda e a Tesouraria Provincial.
Por sua vez, o bairro conhecido por Ribeira tornou-se um lugar definido
basicamente pelas atividades comerciais e alfandegárias, devido às atividades portuárias.
Após 1850, este sentido seria impresso definitivamente em seu ordenamento urbano,
quando “construíram-se os prédios de pedra-e-cal na Rua do Comércio, alvoroço da venda
e compra de açúcar e algodão” (CASCUDO, 1999: 152). O logradouro recebeu este
nome, “porque a Praça Augusto Severo era uma campina alagada pelas marés do Potengi.
[...] O terreno era quase todo ensopado, pantanoso, enlodado. Apenas alguns trechos
ficavam a descoberto nas marés altas de janeiro” (CASCUDO, 1999: 149-150). Devido a
essa característica, a Ribeira sofria reiteradas vezes com as enfermidades endêmicas e
epidêmicas, em grande parte propagadas através do cotidiano do porto e das péssimas
condições sanitárias do lugar.
O alagamento que ocorria constantemente na Ribeira, em razão de represar as
águas do Rio Potengi e da maré, e principalmente em períodos chuvosos, fazia com que
os dois bairros ficassem quase seccionados, devido às dificuldades de acesso nessas
quadras invernosas (FERREIRA, 2008: 48) e a formação de lagoas entre os dois barros
causando, de acordo com os médicos da época, miasmas mortíferos e febres
intermitentes151 na população que morava do outro lado do rio.
A frequente enunciação dos miasmas nas falas dos presidentes de província e
médicos do partido público justificava qualquer origem de enfermidades que apareciam
na cidade. Os gases liberados por matérias orgânicas em decomposição, em terrenos
alagadiços do Rio Potengi e da Ribeira, eram identificados facilmente como focos das
doenças existentes na Cidade do Natal. Os hábitos dos moradores de Natal eram quesitos
também lembrados e denunciados pelas autoridades provinciais e municipais, como
responsáveis diretos pela proliferação de doenças, segundo já mencionado. Luiz da

151
São chamadas de febres intermitentes as que, ao aparecerem, cessam e tornam a aparecer
sucessivamente, por intervalos mais ou menos longos. Chernoviz ainda acrescenta que as causas da febre
intermitente estão ligadas às exalações pantanosas e que o frio úmido e prolongado, e a habitação em lugares
baixos são pré-requisitos para a manifestação deste tipo de febre, o que confirma, portanto, a explicação do
médico do partido público à respeito dos prejuízos que a lagoa causava na população ribeirinha.
CHERNOVIZ, Pedro. L. Napoleão. Febre intermitente. In: Dicionário de Medicina Popular – vol. 1. 6ª
ed. Paris: A. Roger & F. Chernoviz. 1890. p. 1092-1093
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

348
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Câmara Cascudo comenta que os costumes da população eram “primitivos, simples,


rústicos” e que “os porcos fossavam e andavam livremente pelas ruas da cidade” (1999:
307). Neste sentido, ele acabava por reproduzir um discurso que era difundido por
autoridades provinciais e municipais do século XIX, ao tomar os costumes da população
como primitivos. Também para aqueles gestores públicos e médicos, tais hábitos
depunham contra o ideal de civilização e de progresso.
Neste sentido, a ideia é perceber que "o discurso regulador e normativo de saúde
se apresentou, assim, articulado ao conjunto de mecanismos e técnicas cujo fim último
foi obter das classes subalternas uma conduta racional e permeável às iniciativas estatais
frente à doença” (COSTA, 1985: 14). Isso significa que todo o combate dos costumes
populares não se dava apenas com o intuito de instruir a população de que isso era
prejudicial à saúde. Na verdade, a estratégia era regulamentar, controlar e punir (COSTA,
1985) estas atitudes nos moldes dos discursos de higiene e salubridade, propostos pelo
ideal sanitário de manter a limpeza na cidade, pelo bem de todos.
Por outro lado, as próprias condições climáticas da Cidade do Natal foram
fundamentais na tomada de decisões das autoridades provinciais e municipais. O médico
do partido público ressaltava, em 1850, que o clima, terrenos e ventos não causavam, por
si sós, as doenças endêmicas (RIO GRANDE DO NORTE, 1850). Para essa matriz de
pensamento miasmático, conhecer as condições climáticas, assim como a direção dos
ventos, era fundamental. Neste sentido, as autoridades provinciais vão atribuir valorações
espaciais aos dois principais bairros da cidade, conforme será esclarecido adiante. Não
era à toa que a preocupação com as dunas, o rio, a qualidade da água e dos pântanos eram
temas recorrentes nos discursos dos Presidentes de Província, em seus relatórios para
abonar as intervenções realizadas na Cidade do Natal (FERREIRA, 2008).
Consoante ao que será exposto no próximo tópico deste artigo, a Cidade do Natal
passou por medidas que contemplavam a limpeza pública com o intuito de distanciar o
“mal” da cidade. Todas essas medidas fazem parte do arsenal do pensamento higienista
dos Oitocentos. São princípios que podem ser discutidos em vários flancos que articulam
o público e o privado, como a criação da legislação urbanística e a promoção de hábitos
corporais higiênicos, determinados pelas posturas municipais. Ambas as estratégias que
configuravam atitudes normativas e repressivas, neste espaço público em que os diversos
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

349
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sujeitos (autoridades provinciais, municipais, médicos e população) se relacionam


(ARRAIS, 2004), através de ações que visavam diminuir a sujeira e os surtos epidêmicos
existentes na cidade.

Ações de limpeza pública na Cidade do Natal

A Cidade do Natal era caracterizada nas falas dos Presidentes de Província como
péssima em termos de salubridade pública. Além disso, em seus discursos, os espaços de
proliferação de doenças já estavam praticamente identificados. Mesmo com esses
terríveis predicados, a Cidade do Natal dispunha de alguma vantagem no quesito das
condições climáticas. O Vice-Presidente João Carlos Wanderley, ao discursar sobre as
condições de saúde da Província do Rio Grande do Norte, expôs no final do seu relatório
as reflexões do médico do partido público encarregado de cuidar da saúde da população
de toda a província.

Esta Cidade vantajosamente situada muitos metros a cima da superficie


do mar, circumstancia que faz ser menos intenso o calor, apesar de sua
latitude constantemente lavada pelos ventos, que sopram diariamente
de terra para o mar, e vice-versa, e bafejada quando cresce temperatura
pela briza do Oeste, que refresca o ar e o purifica, possue um clima
saudavel, que não favorece o desenvolvimento de epidemias, que em
outros climas menos felices deterioram a saude, e aniquilão a vida. A
epidemia da bexiga, que ultimamente grassou nesta Cidade, nada prova
contra a bondade do seu clima (RIO GRANDE DO NORTE, 1850: 11).

O discurso, ancorado nos atributos geo-climáticos, faz uma classificação dos


valores espaciais.152 Tanto as mazelas quanto as boas condições climáticas estão muito
bem definidas e representadas espacialmente através das categorias de alto e baixo. O
logradouro denominado Ribeira, parte baixa da Cidade do Natal, era onde se concentrava
a miséria e a pobreza aliada a uma alimentação escassa da população, favorecendo ainda

152
O geógrafo Yi-fu Tuan menciona que, em muitas culturas, os valores espaciais alto e baixo tem
conotações positivas e negativas. O geógrafo nos mostra que nestes valores espaciais a concepção que
predomina é a de que o alto está relacionado a palavras como “superior”, “excelso” e “grande”. Não é à toa
que os principais prédios de uma cidade se destacam na paisagem urbana em sua parte mais alta. Já baixo
é equivalente a palavras como “inferior” e “pequeno”. Vide Espaço e lugar, 1983, p. 42.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

350
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

mais os riscos de propagação de doenças. Já a parte alta era onde, em termos de saúde, os
bons ares permitiam melhor bem-estar aos que nela habitavam.
Assim, os discursos dos médicos presentes nas falas e relatórios dos Presidentes
de Província são fundamentais para explorar os significados que estes profissionais
atribuem a cada canto da Cidade do Natal, seja nomeando-os e classificando-os como
saudáveis, salubres, ou, ao contrário, como insalubres. Isso é uma forma também de
analisar como a cidade é representada nas falas técnicas e políticas, consolidando e
tensionando os saberes que eram difundidos sobre as cidades no século XIX (FERREIRA,
2008).
Desse modo, a preocupação com a higiene e limpeza da cidade fez com que
autoridades provinciais e municipais tomassem as providências necessárias para tornar a
Cidade do Natal a mais salubre possível. Tanto o meio ambiente como a cidade, em si,
além das condições sociais de seus moradores, eram fatores que importavam
(FERREIRA, 2008) na hora de pôr em ação essas medidas, preocupação que não passaria
com facilidade da denúncia do problema para sua executiva resolução.
Neste sentido, a necessidade legislativa de manter as vias públicas limpas se
expressava nas Posturas Municipais da Cidade do Natal.153 Nas posturas de 8 de fevereiro
de 1853, sob o título de Dos defferentes objetos que incomodam e prejudicam ao público,
os dois artigos dizem respeito a essa discussão:

Art. 1°. Ninguem poderá criar cabras, e porcos nas ruas desta cidade
sob pena de lhe serem tomados e vendidos em salão, entregando-se aos
seus donos o excedente de 10$000 reis, ficando todo o seu produto até
esta quantia aplicada em beneficio do cofre da câmara municipal,
depois de didusidas [sic] as despesas sendo desde já abulido o costume
de se espancar ou matar as cabras e porcos a cacete, ou com qualquer
outro instrumento, devendo serem pegados à laço ou à mão, embora
córrão para casa de seus donos, que serão obrigados à intregalos, ou a
pagar a multa de 8$000 reis (POSTURAS, 1853: 1).

153
As Posturas Municipais eram expedidas pela instituição camarária com a função de registrar, de forma
escrita, o ordenamento urbano servindo de instrumento legal para o controle do espaço público e dos que
nele viviam. Além disso, estes códigos ditavam regras com o objetivo de nortear a conduta dos moradores.
TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. O poder municipal e as casas de câmara e cadeia: semelhanças e
especificidades do caso potiguar. Natal: EDUFRN, 2012. p. 57.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

351
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Essas Posturas demonstram o que as autoridades municipais consideravam como


práticas que iam contra os ideais de higiene pública, principalmente a conduta dos
moradores que costumavam criar os animais soltos, pois os animais, ao fazerem as suas
necessidades fisiológicas nas vias públicas, sujavam a cidade. Ainda referente à criação
desordenada de animais, o Presidente da Província do Rio Grande do Norte, Antonio
Bernardo de Passos, enviou para a Câmara de Natal uma correspondência,154 na qual
aprovava, em 1854, artigo que instituía que os porcos e cabras encontrados soltos nas ruas
da cidade seriam apreendidos “e levados a presença de qualquer autoridade policial.
Depois seriam arrematados em leilão à posta da mesma autoridade, sem formalidade de
processo, e o seu produto pertenceria metade ao apreensor e a outra à Municipalidade”
(CORRESPONDÊNCIA, 1854). Com algumas diferenças em relação ao artigo em que a
correspondência do Presidente faz menção, na postura de 1853, sobre os animais soltos,
levados para serem arrematados em leilão, determinava-se que a metade do valor
arrecadado seria destinada ao apreensor e a outra à municipalidade, diferente da postura
anterior em que o valor arrematado era dividido entre o dono do animal e a câmara,
mostrando que a aprovação desse novo artigo aplicou uma pena mais rígida àqueles que
insistissem em criá-los e mantê-los soltos nas ruas.
Para reforço na limpeza pública, o Presidente de Província Antonio Francisco
Pereira de Carvalho ordenou que a tesouraria provincial colocasse à disposição da Câmara
Municipal de Natal, a quantia de cinquenta mil reis, destinados “as despesas com o aceio
das ruas desta Capital, e abertura de outras” (CORRESPONDÊNCIA, 1853). A
instituição camarária também requisitou, através de um ofício enviado ao mesmo
presidente, que disponibilizasse ferramentas para a limpeza pública, à qual a autoridade
provincial respondeu que a tesouraria da Fazenda entregasse “ao fiscal dessa câmara,
Justiniano Alvares de Quintal, quatro pás, seis enxadas e quatro machados”
(CORRESPONDÊNCIA, 1853).

154
As correspondências ativas eram cartas expedidas pelos Presidentes de Província do Rio Grande do
Norte aos vereadores da Câmara Municipal da Cidade do Natal. Nesta documentação, os Presidentes
registram a aprovação de artigos a serem adicionados aos Códigos de Posturas, propostos pela câmara
municipal, dados referentes à regulamentação de funcionamento de lojas e boticas, apreensão de animais
soltos nas ruas, o arruamento, fiscalização da qualidade do leite, dentre outros assuntos de interesse da
Câmara Municipal da Cidade do Natal.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

352
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O problema da limpeza pública não estava somente relacionado ao ambiente


urbano em si, mas também à forma como essa situação era gerenciada. Nesse sentido, o
Presidente de Província, José Bento da Cunha Figueiredo Junior, dedicou em seu relatório
um tópico relacionado à limpeza das ruas natalenses. Seu discurso revela que existiam
problemas práticos para que a Câmara Municipal conseguisse gerenciar a contento o
espaço público.

O estado da mor parte das ruas da cidade reclama algum melhoramento


que a respectiva câmara municipal dificilmente poderá fazer, sendo tão
deficiente a sua renda. Em certos lugares convém destruir matos, e
n’outros entulhar barrancos feitos pelas águas pluviais; nivelar ao
menos quanto for possível os lugares de maior transito, e reparar o
pequeno calçamento que existe.
Apesar das minhas recomendações de imundícias, e promovendo-se a
fiel execução das posturas municipais que obrigam os proprietários a
ter limpas as fachadas de suas casas, creio que nenhum resultado
vantajoso se conseguirá em quanto a diretoria das obras não puder fazer
o serviço necessário, aproveitando os presos mediante um salário
módico, que não me é lícito autorizar presentemente.
Já tive de chamar a atenção da câmara e da polícia para a observância
do art. 5° das posturas de abril de 1853 e art. 43 das de 2 de junho
daquele ano, que proíbem a construção de casas de palha, capim ou
junco nas ruas da capital, assim como não permitem que elas sejam
reedificadas ou reparadas.
Não tenho deixado de fazer sentir a necessidade de uma vigilância
incessante afim de que os fiscais desenvolvam a precisa atividade
reprimindo as amiudadas infrações das posturas municipais (RIO
GRANDE DO NORTE, 1861: 18).

A novidade que o referido presidente mencionou e que ainda não havia aparecido
nos discursos anteriores diz respeito às pessoas que eram designadas a fazer a limpeza
das ruas. O presidente sugeria que esta tarefa fosse exercida pelos presos da cadeia. Além
dos presos da cadeia, a limpeza pública também ficaria a cargo da população que migrava
para a Cidade do Natal, fugindo da seca.
Por fim, o presidente ainda chama a atenção da Câmara Municipal para o fato da
mesma não cumprir com uma legislação própria de seu interesse, que eram as Posturas
Municipais. Informa que, mesmo havendo essa legislação, ainda aconteciam práticas que
eram contrárias ao que regia este documento e que cabia à Câmara tomar as providências

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

353
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

necessárias para isso. Ou seja, mais uma vez, evidencia-se a persistência de discussão de
atribuições entre autoridades provinciais e municipais.
As autoridades provinciais não são as únicas a se queixarem dos deveres da
Câmara Municipal. O Inspetor de Saúde Pública, Henrique Leopoldo Soares da Câmara,
alertou que inspecionaria com eficiência as vias públicas, verificando o cumprimento das
medidas estabelecidas pela instituição camarária, se tinham sido realizadas em relação à
limpeza das ruas e quintais, assim como do matadouro público, “tão cheio de imundícies
que o constituem um verdadeiro fóco de infecção, nocivo à saúde dos que principalmente
habitam as suas imediações” (RELATÓRIO, 1870: 2). Por seu turno, o chefe de polícia,
Joaquim Tavares da Costa Miranda, ao discursar sobre saúde pública, também fez duras
críticas ao trabalho da Câmara Municipal da Cidade do Natal. Em 1878, mencionou que
incumbiu a instituição camarária de “velar pela limpeza, aformoseamento e saneamento
de seu município, mas desde que esse dever foi esquecido pelos vereadores”
(RELATÓRIO, 1879: 5).
Não bastasse isso, essas autoridades acabavam por atribuir muitos desses
problemas à população da cidade, principalmente a mais pobre. Portanto, no discurso não
predominava apenas a sujeira, no sentido literal da palavra, mas também a sujeira
produzida socialmente, aquela que a população mais pobre praticava com seus atos
considerados ilícitos.
Além disso, os habitantes considerados ociosos são vistos pelas autoridades como
aqueles que carregavam muitos males, dentre eles a epidemia. No relatório do Vice-
Presidente Medeiros Murta, o mesmo afirmava que eram desses habitantes que saíam os
criminosos e “que ofereciam mais abundante ceifa as epidemias; pois que desconhecendo
todos os gozos da civilização vive na maior miséria, mal agasalhada, alimentada e vestida
e destarte predisposta para as enfermidades” (RIO GRANDE DO NORTE, 1862: 4).
Pensando numa solução para tirar essa população da ociosidade, o chefe de polícia,
Joaquim Tavares da Costa Miranda, propôs ao Vice-Presidente de Província Manoel
Januario Bezerra Montenegro que a pusesse para trabalhar na limpeza pública da cidade,
pois tiraria uma leva de retirantes da ociosidade, “mal de todos os vícios e productora de
todos os crimes,” pois, consequentemente, esta população seria movida pelo “mau

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

354
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

instincto, excitao pela tortura da fome, ou pelas machinações de um espírito rude de


desocupado de qualquer labor quotidiano” (RELATÓRIO, 1878: 5).
Em resposta, o referido Vice-Presidente afirmou que esses ociosos ficariam
encarregados de limpar as ruas da cidade, mas a instituição camarária seria a responsável
por conservar “esse melhoramento tão útil a salubridade pública” (RELATÓRIO, 1878:
18). A situação dessa população se agravava em períodos de seca, pois, no entendimento
das autoridades, todas as moléstias que apareciam nesses períodos “tinha sua principal
rasão de ser no facto da aglomeração de milhares de pessoas privadas dos meios
ordinários da vida, sem alimentação regular, sem asseio e sem abrigo” (RELATÓRIO,
1879: 6).
Muito provavelmente, boa parte dos melhoramentos que aconteceram na Cidade
do Natal foram fruto das mãos dos indigentes que vinham do interior da Província,
fugindo da seca. Como a cidade começou a ter problemas devido à população migrante,
os Presidentes de Província exploraram essa mão de obra nas obras de melhoramento
urbano e sanitário da cidade, com a justificativa de livrá-los dos perigos causados pelo
ócio. Neste sentido, no ano de 1880, Rodrigo Lobato Marcondes Machado mencionava
em seu relatório que o calçamento construído para melhorar o acesso entre a Cidade Alta
e a Ribeira foi feito pelos indigentes,155 assim como a construção do cais que tinha a
função de impedir que as casas fossem invadidas pelas águas do Rio Potengi
(RELATÓRIO, 1880). O trabalho era bastante intenso, pois, além dessas construções, os
indigentes eram os responsáveis por preparar a cal, fazer os tijolos, as telhas e cortar a
madeira, tudo isso para que, no fim do dia ou da semana, recebesse “ração de gêneros
superior à dos outros” (RELATÓRIO, 1880: 14).
Os arraigados costumes da população que habitava a Cidade do Natal ainda eram
vistos pelas autoridades provinciais como prejudiciais à saúde pública. A Cidade Alta,
considerada pelo discurso médico como o bairro mais salubre e de condições climáticas
favoráveis à saúde, não escapou a estes costumes. Como relatou o chefe de polícia

155
O termo indigentes aparece no discurso da referida autoridade provincial. RELATORIO com que o Exm.
Sr. Doutor Rodrigo Lobato Marcondes Machado passou a administração da Provincia ao seu sucessor, o
Exm. Sr. Dr. Alarico José Furtado em 1° de maio de 1880. Socorros públicos, p. 14.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

355
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Joaquim Tavares da Costa Miranda, as condições de insalubridade do referido bairro


estavam semelhantes ao que ocorria na Ribeira, pois as ruas estavam cheias de lixo.

[...] Nas praças mais importantes, faziam despejos à noite, e defecavam


durante o dia abrigados sob um docel de verdura, que por toda parte
pululavam: lugares havia em que a exalação era tão fétida de modo a
encommodar aos transeuntes: em certas áreas haviam arbustos da altura
de dois metros; à noite agachados sob estas capoeiras se ostentava a
libertinagem, asqueirosa e sórdida (RELATORIO, 1878: 5).

Eram hábitos que a população praticava costumeiramente, mas que, na visão dos
administradores públicos, eram prejudiciais à saúde pública. Além disso, neste discurso,
torna-se perceptível também a sensibilidade com que era percebida esta prática. Os odores
já acusavam que aquela prática prejudicava os ares. Portanto, é o olfato quem detecta a
qualidade do fluido. Faz-se necessário regrar a conduta da população, procurando renovar
o ar, tendo o olfato como um excelente indicador de sua qualidade (CORBIN, 1987). A
espacialidade dos corpos, para Alain Corbin (1987), é definida pela medida das exalações.
A intolerância sensorial é quem rege os espaçamentos necessários, atribuindo lugares com
o intuito de destruir essa confusão olfativa que, no nosso caso, reinou no espaço público,
com a prática da defecação.
As Posturas discutidas permitem ter uma noção do que, aos olhos do Estado, era
necessário para tornar a Cidade do Natal salubre e ordenada, o que “impõe um
policiamento sanitário capaz de estabelecer normas reguladoras” (CORBIN, 1987: 133).
Nem sempre essas posturas eram seguidas à risca pela população. Como bem explicou
Juliana Souza, “[...] o objetivo das posturas era regular as questões de caráter local, mas,
na prática, tratava-se do conjunto de leis que mais diretamente incidia sobre a vida da
população da cidade” (SOUZA, 2007: p. 32). Além disso, essas demandas prescritas nas
legislações da Cidade do Natal não advêm de reclamações ou solicitações da população,
mas eram produzidas na instituição camarária e pelas autoridades provinciais, de acordo
com os saberes médicos difundidos.

Considerações finais

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

356
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os saberes e ações empreendidos, tanto pelos médicos quanto pelas autoridades


provinciais e municipais, no que diz respeito à limpeza pública da cidade, fornecem
elementos para que seja pensada uma nova forma de vida saudável, mudando o
ordenamento da cidade. Com o intuito de constituir uma cidade higienizada, seria
necessário erradicar antigos hábitos e reorganizar os espaços em função da técnica, da
higiene e da norma.
As relações empreendidas no espaço público entre a população e os
administradores políticos da câmara e da província, nos mostram que estas ações
causavam tensões, resistências em meio aos anseios e desejos destas autoridades em
tornar a Cidade do Natal salubre, de acordo com os saberes vigente na segunda metade
do século XIX. Portanto, todas as ações discutidas nos mostram que havia sempre uma
grande distância entre vontade e gesto.

Bibliografia

ARRAIS, Raimundo. O Pântano e o Riacho: a formação do espaço público no Recife


do século XIX. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2004.

CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. Natal: RN Econômico,


1999.

CHERNOVIZ, Pedro. L. Napoleão. Dicionário de Medicina Popular – vol. 1. 6ª ed.


Paris: A. Roger& F.Chernoviz. 1890.

CORBIN, Alain. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

COSTA, Nilson do Rosário. Lutas urbanas e controle sanitário: origens das políticas
de saúde no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985.

FERREIRA, Ângela Lúcia, et all. Uma cidade sã e bela: a trajetória do saneamento de


Natal – 1850 a 1969. Natal: IAB/RN; CREA/RN, 2008.

SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte imperial: enfrentamentos


e negociações na regulação do comércio de gêneros (1840-1889). 2007. 235f. Tese
(doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

357
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

TUAN, Yi-Fu. Corpo, relações pessoais e valores espaciais. Espaço e lugar: a


perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983. p. 39-57.

TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. O poder municipal e as casas de câmara e cadeia:


semelhanças e especificidades do caso potiguar. Natal: EDUFRN, 2012.

Fontes

CORRESPONDÊNCIA ativa, Presidente de Província. N. 182, 19 de setembro de 1853.

CORRESPONDÊNCIA ativa, Presidente de Província. N. 186, 21 de setembro de 1853.

CORRESPONDÊNCIA ATIVA, Presidente de Província Antonio Bernardo de Passos,


n° 298. Artigo 2°. 2 de setembro de 1854.

FALLA com que o exm. sr. doutor Rodrigo Lobato Marcondes Machado, presidente da
provincia, abrio a 2.a sessão da Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte
em 27 de outubro de 1879. [Natal] Typ. do Correio do Natal

POSTURAS da Câmara Municipal da Cidade do Natal, 1853. Título 1.° dos defferentes
objetos que incomodam e prejudicam ao publico.

RELATÓRIO apresentado a Assembleia Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte


pelo Exm. Primeiro vice-presidente da Província João Carlos Wanderley no dia 3 de maio
de 1850.

RELATORIO apresentado a Assemblea Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte


pelo presidente, o dr. Antonio Bernardo de Passos, no anno de 1856. Salubridade publica,
p. 12. Pernambuco, Typ. de M.F. de Faria, 1856.

RELATORIO que o Exm. Sr. Dr. José Bento da Cunha Figueiredo Junior, presidente da
provincia do Rio Grande do Norte, apresentou á respectiva Assembléa Legislativa
Provincial na sessão ordinaria de 1861.

RELATÓRIO apresentado á Assemblea Legislativa do Rio Grande do Norte pelo exm.


sr. doutor Silvino Elvidio Carneiro da Cunha em 5 de outubro de 1870. Recife, Typ. do
Jornal do Recife, 1870. Annexo D: Relatório do Dr. Inspector da saude publica (Henrique
Leopoldo Soares da Camara).

RELATORIO com que installou a Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do


Norte no dia 4 de dezembro de 1878 o 1° Vice-Presidente, o Exm. Sr. Dr. Manoel Januario
Bezerra Montenegro. Pernambuco, Typ. do Jornal do Recife, 1879. Relatorio do Dr.
Chefe de policia, Joaquim Tavares da Costa Miranda, saúde publica.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

358
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

RELATORIO com que o Exm. Sr. Doutor Rodrigo Lobato Marcondes Machado passou
a administração da Provincia ao seu sucessor, o Exm. Sr. Dr. Alarico José Furtado em 1°
de maio de 1880.

RIO Grande do Norte (Província) Vice-Presidente Medeiros Murta S/título ... 26 maio
1862.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

359
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O exílio latino-americano no Brasil: o papel desempenhado pela Igreja Católica


através da Arquidiocese do Rio de Janeiro

BÁRBARA GEROMEL CAMPANHOLO


PPGH/UFF

Introdução

A história da América Latina aparece atravessada por uma sucessão de exílios.


Desde a década de 1950, com a experiência autoritária protagonizada por Alfredo
Stroessner, no Paraguai, o continente assistiu o desfecho de uma sequência de golpes e a
ascensão de ditaduras. Em 1964 era a vez do Brasil. A década de 1970 se caracterizou
pela derrocada em cadeia de regimes democráticos: a Bolívia em 1971; o Uruguai em
junho de 1873; o Chile em setembro do mesmo ano; e a Argentina em março de 1976.
A violência institucionalizada pelos novos governos através de suas forças de
repressão perseguiu, prendeu, torturou e matou. O constante e crescente clima de
insegurança, marcado pelas graves violações aos direitos humanos, conduziu a fuga e
abandono do país de origem. O exílio surgia como possibilidade de escapar à barbárie
generalizada.
Em intenso fluxo de partidas e chegadas, muitos foram os destinos. Dentre os
motivos para escolha figuram desde a ausência de recursos e documentos para o
empreendimento de viagens mais longas, até o desejo de permanecer próximo ao lar e aos
familiares, a proximidade cultural e a possibilidade imediata de uma retomada da luta
revolucionária. Nesse quadro de amplas possibilidades e motivações, o Brasil figurou
como um dos destinos. Mesmo sob a vigência de uma ditadura, muitos exilados
atravessaram as fronteiras para salvaguardar suas vidas no Brasil e, uma vez aqui, estudar
as novas possibilidades de ação.
Com isso em mente, o presente trabalho se debruça sobre a problemática dos
exilados/refugiados156 latino-americanos que chegaram ao Brasil, sobretudo a partir de

156
Há toda uma problemática envolvendo as duas categorias e sobre a qual cabe mencionar a importância
assumida pela percepção exilada do indivíduo sobre si mesmo, e que muitas vezes se sobrepõe ao aspecto
jurídico presente na classificação enquanto refugiado. Além disso, é preciso dizer que o Estado brasileiro
não reconhecia como refugiados os estrangeiros latino-americanos que aqui chegavam e reclamavam junto
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

360
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

meados da década de 1970. Estima-se em 20 mil o número de refugiados sul-americanos


no país nesse período (MOREIRA, 2005, p. 65-66). Discute esse movimento de partidas
e chegadas ao país, em fluxo que se estende significativamente até o início da década de
1980, através das ações de solidariedade e acolhimento desempenhadas pela Igreja
Católica por meio da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Busca, ainda, compreender a
realidade política por eles encontrada e o tratamento dado a questão pelo governo
brasileiro.

O exílio na história e a experiência latino-americana

O exílio, compreendido dentro do amplo espectro dos deslocamentos humanos,


esteve presente na história da humanidade desde os seus primórdios. Como bem coloca
Pablo Yankelevich (2011, p. 11), “Desde a bíblica expulsão do paraíso até o atual conflito
em Dafur, a história poderia ser relatada como uma inesgotável sucessão de desterros”
Não conformando, contudo, uma categoria jurídica, sua apreensão aparece condicionada
à literatura, onde os exemplos são vastos (ROLLEMBERG, 1999, p. 37). Desde a
mitologia, passando pelas narrativas bíblicas, até as trajetórias mais próximas à realidade
contemporânea, são inúmeras as personagens atravessadas pela experiência exiliar.
O século XX, contudo, redimensiona os deslocamentos humanos. Marcado pela
ocorrência de duas Guerras Mundiais, além de muitos conflitos emergentes do contexto
polarizado da Guerra Fria e dos processos de descolonização africana, os fluxos
migratórios assumem um caráter emergencial, obrigando o desenvolvimento de políticas
que garantissem a acolha e a proteção dos indivíduos forçados a deixar seus países pela
violência e insegurança a que estavam submetidos.157

às agências da ONU no país tal status, sendo por elas assim reconhecidos, e ao fato de que nem todos que
aqui chegaram recorrerem a tal mecanismo.
157
Sob forte influência das atrocidades cometidas no âmbito da Segunda Guerra Mundial, e suas
consequências mais imediatas, foi criado pela Assembleia Geral da ONU, em 14 de dezembro de 1950, o
Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) com o objetivo de “proteger e assistir às
vítimas de perseguição, da violência e da intolerância”. Uma das resoluções da Assembleia Geral foi a
convocação de uma Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas, realizada em Genebra em 1951,
cujo objetivo era a redação de uma Convenção que regulasse o status dos refugiados. Em suma, a
convenção estabelece os instrumentos legais internacionais relativos aos refugiados e codifica seus direitos
a nível internacional. Ao abranger eventos ocorridos apenas antes de 1º de janeiro de 1951 e diante da
necessidade imposta pela conjuntura mundial, marcada por novos conflitos e fluxos crescentes de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

361
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Pensando especificamente a relação entre os deslocamentos forçados e os


governos autoritários, e tendo como centro de análise a América Latina, Pablo
Yankelevich (2011, p. 14) sugere uma ressignificação do exílio se considerado dentro do
contexto dos regimes inaugurados com as ditaduras militares latino-americanas a partir
da década de 1960. Essa ressignificação sustenta-se, principalmente, pelo fato de tais
regimes fazerem do exílio um acontecimento político e demográfico único na história do
continente. Afinal, ainda que a prática do desterro estivesse presente desde a fundação
dos Estados Nacionais latino-americanos, ou seja, remontada ao século XIX – quando
grandes líderes e figuras públicas de renome tem suas vidas atravessadas pela experiência
exiliar –, àquele tempo, esta não se estendia às sociedades em que estavam inseridos tais
indivíduos. Ou seja, ficava restrito a um pequeno círculo encabeçado por dirigentes e
intelectuais. O que acontece a partir da década de 1960 é grandes ondas de exilados,
levando a pensar o exílio como um acontecimento em massa.
Essa ideia é corroborada por Luis Roniger que, ao chamar a atenção para o
alargamento dos grupos conduzidos ao exílio por suas discordâncias e consequente
mobilização contra governos e regimes instituídos, sobretudo no século XX, explicita sua
instrumentalização dizendo que o fenômeno “tem sido um dos mecanismos centrais de
dominação e de exclusão forjados pelas elites políticas latino-americanas a fim de se
manterem no poder” (RONINGER, 2010, p. 92). Tal prática remonta, segundo o autor,
ao período colonial, quando “as autoridades se valeram da transferência e da expulsão de
indivíduos como parte de suas políticas de povoamento e defesa e, de forma paralela,
como mecanismo de controle social, dirigido a inadaptados sociais, marginais, criminosos
ou rebeldes” (RONINGER, 2010, p. 93).
Compreender o exílio como um mecanismo de exclusão adotado pelo Estado
implica pensá-lo como o resultado das políticas repressivas levadas a cabo pelos regimes

refugiados, um Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados foi preparado e submetido à Assembleia
Geral das Nações Unidas em 1966, entrando em vigor em 4 de outubro de 1967. O Protocolo confirmava
as provisões da Convenção de 1951 para todos os refugiados enquadrados em sua definição, mas não
prevendo o limite de datas e de espaço geográfico. Cf. ALTO Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados. Breve histórico do ACNUR. ACNUR. Disponível em:
<http://www.acnur.org/t3/portugues/informacao-geral/breve-historico-do-acnur/>. Acesso em: 13 de
março de 2016; Cf. ALTO Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. O que é a Convenção de
1951?. ACNUR. Disponível em: <http://www.acnur.org/t3/portugues/informacao-geral/o-que-e-a-
convencao-de-1951/>. Acesso em: 13 de março de 2016.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

362
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

autoritários e que, como aponta Teresa Cristina Schneider (2011, p. 19), encontra seu
essência na Doutrina de Segurança Nacional (DSN). Concebida nos Estados Unidos
dentro do contexto da Guerra Fria e levada aos demais países do continente como forma
de contenção da influência soviética na região, sobretudo a partir da Revolução Cubana,
em 1959, a DSN baseia-se na existência de uma “guerra interna”, que para ser vencida
demanda do Estado e de seu corpo social um esforço articulado e absoluto.
Conforme coloca Enrique Padrós (2008, p. 144), o ponto de partida para a
compreensão da DSN reside na importância atribuída à unidade política, que encontra sua
forma melhor acabada no modelo de “nação”. Neste sentido, qualquer elemento que tenda
a uma fratura desta unidade, como a ideia de divisão em classes da sociedade, norteadora
de muitas das disputas sociais, é rechaçada e combatida, justamente por constituir um
risco aos interesses nacionais. A defesa da nação em detrimento de qualquer ideologia
que represente uma ameaça à ordem vigente está no cerne da Doutrina de Segurança
Nacional.
A materialização das ações empreendidas a partir do Estado, cujo objetivo era a
desarticulação e eliminação dos grupos promotores da contestação da ordem vigente,
garantindo assim a manutenção do status quo, ocorre a partir da opção pela contra-
insurgência. Em suma, tratava-se da estratégia adotada para o enfrentamento da “guerra
interna”. Para a consecução de seus propósitos, o recurso à violência, utilizada de maneira
escalonar, consciente e cada vez mais sofisticada contra os “inimigos da nação”,
extrapolou os limites coercitivos constitucionais, configurando uma situação de
terrorismo de Estado praticado contra a sociedade (PADRÓS, 2008, p. 148-150). Em
contexto de violência institucionalizada, a fuga do país de origem significava a luta pela
sobrevivência.
No Uruguai, a instalação da ditadura militar, em junho de 1973, acentuou o
movimento de partidas iniciado já ao final da década anterior, quando da chegada ao
poder de Pacheco Areco e sua anunciada “guerra aos comunistas”. O número de exilados
uruguaios alcançou o expoente de 300 mil (MARIANO, 2003, p. 102 e 204, apud
MARQUES, 2011, p. 33). O Chile, que recebera grande número de exilados em função
dos regimes autoritários instalados nos países vizinhos, sobretudo pela experiência
chilena inaugurada desde a chegada do socialista Salvador Allende à presidência,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

363
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

produziu, aproximadamente, 200 mil exilados após o golpe de 11 de setembro de 1973


(OÑOTE, 2005, p. 5 apud MARQUES, 2011, p. 35). Para o caso argentino, onde se
identifica dois importantes fluxos de saída do país – o primeiro com a “Revolução
Argentina”, protagonizada pelo general Onganía, e o segundo antes mesmo de desfechado
o golpe em março de 1976 – estima-se um número entre 140 mil e 300 mil exilados
(SOSENSKI, 2005, p. 382, apud MARQUES, 2011, p. 34).

O exílio/refúgio latino-americano na agenda da ditadura brasileira

A presença de estrangeiros não é novidade em um país como o Brasil, que tem a


sua história atravessada por inúmeras chegadas. Desde a colonização, passando pelo
processo de imigração, até a acolhida de refugiados provenientes do redimensionamento
assumido pelos deslocamentos humanos próprio do século XX, é notória a comparência
de indivíduos de diversas nacionalidades em nosso território.
A chegada dos exilados latino-americanos ao Brasil coincide com o movimento
correspondente de partida de inúmeros brasileiros aos caminhos do exílio. Além disso, o
país compartilhava o status quo de seus vizinhos do Cone Sul e integrava a rede de
repressão colaborativa materializada pela Operação Condor. Nesse sentido, qualquer
atitude com vistas ao tratamento da questão imposta pela presença dos grupos
estrangeiros exigia cautela.
Aqueles que aqui chegavam enfrentavam de imediato alguns entraves ao seu
estabelecimento. O Brasil, quando de sua adesão à Convenção Relativa ao Estatuto dos
Refugiados, elaborado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas, em 1951, optou pela
chamada “reserva geográfica”, que significava o reconhecimento do status de refugiado
apenas a pessoas de origem europeia. Esta era uma das duas interpretações possíveis para
o texto e que ficava facultado ao “Estado-parte” escolher (BERTINO, 2005, p. 59-61). A
manutenção da referida reserva impossibilitava o acolhimento de latino-americanos,
enquanto refugiados. Para lidar com o grande contingente que adentrava o perímetro
nacional, o Brasil concedia-lhes apenas o “visto de turista”, que permitia a estadia
provisória por 90 dias, até que se organizasse o reassentamento em um terceiro país. De
acordo com Julia Bertino (2005, p. 65-66), a decisão de manter a reserva e permitir a
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

364
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

estadia provisória, foi um acordo entre o governo brasileiro e o ACNUR, que tinha por
missão reassentar aproximadamente 20 mil sul-americanos.158 Nesse sentido, ficava
evidente a impossibilidade de permanecer no país.
Ainda que já houvesse casos de latino-americanos no Brasil, como reflexo das
ditaduras recém-instauradas no continente, a pesquisa aponta para um maior fluxo desses
exilados a partir de 1976. O número de exilados/refugiados que a partir daí cruzam as
fronteiras nacionais alarmou as autoridades brasileiras e impôs a discussão do tema à
esfera do governo. Uma das providências tomadas foi a criação de uma “Grupo Informal”
composto por representantes do Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Justiça,
e o Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional e que tinha por objetivo
conhecer e analisar o problema, por si só evidencia da preocupação que a presença dos
estrangeiros trazia.
Dentre as conclusões e sugestões embasadas no exame realizado pelo Grupo, a
preocupação com o monitoramento constante que deveria haver sobre os indivíduos
torna-se notória. Esta deveria ocorrer a partir da “organização de um fichário completo
de todas as pessoas que se colocaram sob a proteção do ACNUR, valendo-se de dados
que o próprio ACNUR consentiu fornecer”; além disso, não se descartava um aumento
de controle e fiscalização “sobre aqueles que representassem uma margem maior de
risco”; por fim revelava ser “ainda avaliação do Grupo Informal que a tolerância e boa-
vontade não são inesgotáveis e podem encontrar proximamente seus limites” (Fundo:
DSI/MJ; série: MCP; Processo 0986).
Outros pontos permitem apreender a consciência do caráter político da questão e
da preocupação com a repercussão negativa que a problemática poderia assumir:

A avaliação do Grupo Informal é de que a situação requer vigilância de


modo a evitar que ganhe repercussão política e jornalística, nacional e
internacional desfavoráveis. O reconhecimento da natureza política do
problema se sobrepõe a aplicação automática de qualquer forma de
determinismo jurídico”; “A atual linha de ação adotada baseia-se na
‘condução política e não apenas estritamente jurídica – do tema

158
A partir da bibliografia consultada, o início das ações do Acnur aparece datado em 1977, quando se
estabelece seu escritório na cidade do Rio de Janeiro. (BERTINO, 2005, p. 65-66; QUADRAT, 2008, p.
6).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

365
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

assentada em duas premissas maiores: a) a de exercer o máximo de


pressão para a partida dos indivíduos em questão, e b) a de exercer o
máximo de vigilância durante a permanência no Brasil”. (Fundo:
DSI/MJ; série: MCP; Processo 0986).

A solidariedade em rede e o papel da Arquidiocese do Rio de Janeiro

Como já mencionado, a onda de golpes e governos autoritários que varreu a


América Latina durante as décadas de 1970 e 1980 teve sua correspondente nas ondas de
pessoas deslocadas e em trânsito pelo continente e o restante do mundo. Em cenário de
marcada insegurança e violência, aqueles que fugiam de seus países buscando escapar a
essa realidade e salvaguardar suas vidas puderam contar, contudo, com a solidariedade
manifesta tanto em gestos isolados de indivíduos desconhecidos, como na atividade
consistente de grupos bem organizados. Fosse na saída ou na chegada, despontaram ações
que se chocavam com o contexto imposto pelas ditaduras. A emergência de tais ações em
momento de tamanha opressão e bestialidade corroboram a proposição trazida por João
Bosco Hora Góis (apud QUADRAT, 2008, p. 5) sobre o “aspecto reativo” da
solidariedade ante situações limites; situações, em suas palavras “em que a violência se
institucionaliza de forma a deixar pouco espaço para a sua contestação.”.
Instituições religiosas e sociedade civil trabalharam de forma articulada através
de organizações empenhadas na luta pelos direitos humanos (QUADRAT, 2008;
CATOGGIO, 2014). No Brasil, assumem papel de destaque a Cáritas Arquidiocesana do
Rio de Janeiro, a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, o Clamor e o Movimento de
Justiça e Direitos Humanos (MDH), criado no Rio Grande do Sul. Guardadas as
especificidades de cada um, esses diversos grupos ajudaram a conformar uma importante
rede de solidariedade que não se restringiu ao território nacional. A cooperação entre
organizações na América Latina, na Europa e outras organizações mundiais, permite que
atribuamos um caráter internacional às redes de solidariedade e de luta pelos direitos
humanos. Essa consciência permite, ainda, que sejam traçados paralelos com a
colaboração exercida pelos regimes autoritários e seus órgãos de informação, como
aponta Samantha Quadrat (2008, p. 15):

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

366
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Quase ao mesmo tempo em que testemunhamos o ápice da colaboração


à perseguição política entre as forças de repressão dos países do Cone
Sul – o Plano Condor –, foi possível assistir à criação de laços de
solidariedade entre organizações de direitos humanos. Madres e
Abuelas de Plaza de Mayo e SERPAJ em suas várias representações
mantinham permanente contato com o CLAMOR. O que nos levar a
pensar que se tínhamos uma operação internacionalista de repressão,
como a Condor, havia também a sua equivalente na defesa dos direitos
humanos. (QUADRAT, 2008, p. 15).

No Brasil, muitas das organizações voltadas para a defesa dos direitos humanos
surgem vinculadas à Igreja Católica. A instituição, cujo histórico revela laços estreitos
com o Estado e que atuou como legitimadora do golpe civil-militar ocorrido em 1964,
assume, na década de 1970, centralidade na luta pela defesa dos direitos humanos. Apesar
da liderança atribuída à Arquidiocese de São Paulo de dom Paulo Evaristo Arns, Kenneth
Serbin (2001, p. 321) atenta para a concentração de importantes grupos no Rio de Janeiro,
fato que caracterizaria a cidade como “um tipo de central dos direitos humanos”.
Dentre esses grupos estava a Arquidiocese do Rio de Janeiro. Sob o comando de
dom Eugênio de Araújo Sales, a instituição atestaria sua importância na defesa dos
direitos humanos atendendo tanto às vitimas da ditadura brasileira, como aquelas que
cruzavam as fronteiras fugidas dos regimes autoritários instalados em seus próprios
países.
No que diz respeito a ação desenvolvida com exilados latino-americanos das
ditaduras vizinhas, a Arquidiocese do Rio de Janeiro assume uma posição pioneira no
atendimento a grupos de refugiados, inclusive com a ciência da governo brasileiro. Já em
1974 e 1975, desenvolvia ações pontuais de auxílio àqueles que chegavam ao Palácio São
Joaquim, na Glória, residência e escritório do arcebispo. Em trânsito pela cidade, essas
pessoas recorriam a Arquidiocese com pouco ou nenhum recurso, de modo que tais ações
consistiam na ajuda para que se pagasse um hotel para passar a noite, ou garantissem
alguma refeição (Entrevista com Cândido Feliciano da Ponte Neto, no dia 04/07/2017,
Rio de Janeiro, Brasil).
Situações como essa aumentavam dia após dia e nesse contexto um caso
específico tornou-se emblemático. Em abril de 1976, um grupo de cinco chilenos chega
ao Palácio munido de uma carta do Vicariato da Solidariedade do Chile. A carta relatava

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

367
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

a perseguição que os jovens sofriam no Chile e o risco que corriam caso ali
permanecessem. Estes pretendiam permanecer no Rio até que conseguissem um país onde
pudessem obter refúgio e pediam a ajuda da entidade para encontrar tal país e uma
maneira de lá chegarem (SALES, 2010, p. 63). A carta foi encaminhada por Cândido
Feliciano da Ponte Neto a dom Eugênio. Cândido era o responsável pela Cáritas e relatou
ao cardeal a crescente dos casos de chilenos, uruguaios e argentinos que ali chegavam em
busca de auxílio e comentou a realidade dramática que seus países atravessavam em
função da opressão generalizada. Após a conversa, dom Eugênio pediu que Cândido
prestasse a assistência ao grupo e que retornasse no dia seguinte Entrevista com Cândido
Feliciano da Ponte Neto, no dia 04/07/2017, Rio de Janeiro, Brasil. Dom Eugênio
comenta o drama pessoal que enfrentou ante tal situação:

Disse que ia rezar e pensar. No meu gabinete tinha um crucifixo grande


e rezei um pouco em pé. Pela lei do país, não podia fazer nada, não
podia dar proteção a refugiados políticos, receber Montoneros e
Tupamaros. Por outro lado, como um pastor, tinha o dever e a obrigação
de atender, dentro das minhas possibilidades, a situação tão precária na
qual eles se encontravam. Como brasileiro, não poderia assumir
responsabilidades outras, principalmente envolvendo outros países.
Mas, também, não podia me omitir como pastor. Esse era meu drama.
Tudo girou em torno disso. Não houve qualquer motivação política.
(SALES, 2010, p. 64).

A partir daquele momento, depois de meditada decisão, dom Eugênio decidiu que
a Arquidiocese do Rio de Janeiro, começaria a desenvolver um trabalho mais consistente
de atendimento aos refugiados das ditaduras latino-americanas. Este passaria a ocorrer
via Cáritas Arquidiocesana e a Cândido foi outorgada a missão de coordenar os novos
trabalhos que a instituição assumira naquele abril de 1976. Este recorreu à Comissão de
Justiça e Paz – Seção Brasileira, que tinha a sua frente pessoas como Marina Bandeira e
Cândido Mendes, e à Cáritas Brasileira para saber como poderia proceder. Juntos
chegaram aos PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e daí ao
ACNUR, que logo iniciou sua ação no Rio de Janeiro – ainda que não se reconhecesse
oficialmente sua presença no Brasil –, contribuindo, sobretudo, para o reassentamento
dos refugiados em um terceiro país.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

368
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A notícia de que a Cáritas do Rio de Janeiro tinham um trabalho em convênio com


o ACNUR se espalhava. Em pouco tempo multiplicou-se os refugiados que chegavam à
“Rua da Glória, 446”, endereço do Palácio São Joaquim. O atendimento aos refugiados
ocorria nos jardins do Palácio. Ali foi montado um escritório e também um posto médico.
A equipe articulada por Cândido contava com assistentes sociais, psicólogos, médicos e
dentistas. Para abrigar o crescente número de refugiados foram alugados mais de 70
apartamentos. O empreendimento inicial dessas ações ocorreu através dos recursos da
própria Arquidiocese. Mais tarde, recursos foram também fornecidos pelo Conselho
Mundial de Igrejas e pelo ACNUR.
Num fluxo contínuo que se estenderia até 1982, estima-se que passaram cerca de
5 mil refugiados pelos jardins do Palácio. (SALES, 2010, p. 62)

Considerações finais

A opção pelo exílio decorre da impossibilidade de se permanecer no país de


origem, sobretudo pelo sentimento de insegurança, cuja origem encontra-se em cenário
de latente arbitrariedade, opressão e violência. No contexto da emergência das ditaduras
latino-americanas, sobretudo durante a década de 1970, a repressão institucionalizada
extensiva a grande parte da população conduziu a uma situação limite, onde exílio surge
como meio único de sobreviver. Tal realidade condicionou grandes ondas de exilados que
se dispersaram pelo continente e pelo restante do mundo.
O Brasil, mesmo vivendo uma ditadura, tornou-se destino de muitos. A
impossibilidade de aqui permanecer devido a não concessão do status de refugiado pelo
governo brasileiro fazia do país um ponto de parada até o reassentamento em um terceiro
Estado. A presença dos exilados perturbava a alta cúpula do regime, que logo se
organizou de modo a garantir a compreensão da situação em curso e a proposição de
estratégias para lidar com o problema.
Simultaneamente a ascensão de regimes autoritários na América Latina,
assistimos a criação de grupos e organizações engajadas na luta pela defesa dos direitos
humanos que prestavam assistência às vítimas, diretas e indiretas, da repressão e
denunciavam às violações cometidas pelos governos ditatoriais. O trabalho articulado
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

369
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

desses grupos formou uma verdadeira rede de solidariedade internacional e que ia


encontro à perseguição e repressão coordenadas da Operação Condor.
A Arquidiocese do Rio de Janeiro integrava essa rede de solidariedade, sobretudo
com suas ações voltadas ao atendimento dos refugiados latino-americanos que aqui
chegavam e que se davam via Cáritas Arquidiocesana. Prestando um importante serviço
de assistência – médica, psicológica e jurídica – a entidade contribuiu para o
reassentamento de um expressivo número de refugiados das ditaduras do Cone Sul.

Fontes
Arquivo Nacional (Rio de Janeiro). Fundo: “Divisão de Segurança e Informação” do
Ministério da Justiça. Série: Movimentos Contestatórios.

Entrevista com Cândido Feliciano da Ponte Neto, em 04 de julho de 2017, Rio de Janeiro,
Brasil.

Bibliografia

ALTO Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Breve histórico do ACNUR.
ACNUR. Disponível em: <http://www.acnur.org/t3/portugues/informacao-geral/breve-
historico-do-acnur/>. Acesso em: 13 de março de 2016

_______________. O que é a Convenção de 1951?. ACNUR. Disponível em:


<http://www.acnur.org/t3/portugues/informacao-geral/o-que-e-a-convencao-de-1951/>.
Acesso em: 13 de março de 2016.

BARRETO, Luiz Paulo Teles Ferreira. A Lei Brasileira de Refúgio – sua história. In:
BARRETO, Luiz Paulo Teles Ferreira (org.). Refúgio no Brasil: a proteção brasileira aos
refugiados e seu impacto nas Américas. Brasília: ACNUR, Ministério da Justiça, 2010,
p. 10-21.

CÂMARA, Fernando. A Arquidiocese do Rio de Janeiro e seus bispos. Revista do


Instituto do Ceará, p. 25-40, 2009.

CATOGGIO, María Soledad. La trama religiosa de las redes humanitarias y del activismo
transnacional en las dictaduras del Cono Sur de América Latina. In: JENSEN, Silvina,
LASTRA, Soledad (orgs.). Exilios: militancia y represión: nuevas fuentes y nuevos
abordajes de los destierros de la Argentina de los años setenta. La Plata: EDULP, 2014,
p. 187-213.

GOMES, Paulo César. Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira (1971-1980):


a visão da espionagem. Rio de janeiro: Record, 2014.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

370
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MARQUES, Teresa Cristina Schneider. Militância política e solidariedade


transnacionais: A trajetória política dos exilados brasileiros no Chile e na França (1968-
1979). Tese de Doutorado. Programa de Pós Graduação em Ciência Política da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011.

MILESE, Irmã Rosita, ANDRADE, William César de. Atores e ações por uma Lei de
Refugiados no Brasil. In: BARRETO, Luiz Paulo Teles Ferreira (org.). Refúgio no Brasil:
a proteção brasileira aos refugiados e seu impacto nas Américas. Brasília: ACNUR,
Ministério da Justiça, 2010, p. 22-47.

MOREIRA, Julia Bertino. A Problemática dos Refugiados na América Latina e no Brasil.


In: http://www.usp.br/prolam/downloads/2005_2_3.pdf (Consultado em 02 de junho de
2016)

PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: segurança nacional e terrorismo de


Estado nas ditaduras latino-americanas. In: FICO, Carlos; FERREIRA, Marieta de
Moraes, ARAÚJO, Maria Paula; QUADRAT, Samantha (orgs.). Ditadura e Democracia
na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008,

QUADRAT, Samantha Viz. Solidariedade no exílio: os laços entre argentinos e


brasileiros. In: IV Jornada de Trabajo sobre Historia Reciente, 2008, Rosario – Argentina:
Facultad de Humanidades y Artes de la Universidad Nacional de Rosario, 2008.

ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999

RONINGER, Luis. Exílio massivo, inclusão e exclusão política no século XX. Dados –
Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 53, no 1, 2010, pp. 91 a 123.

SALES, Dom Eugênio; ARNS, Dom Paulo Evaristo. A história não contada do refúgio
no Brasil antes da Lei nº 9.474/97. In: BARRETO, Luiz Paulo Teles Ferreira (org.).
Refúgio no Brasil: a proteção brasileira aos refugiados e seu impacto nas Américas.
Brasília: ACNUR, Ministério da Justiça, 2010, p. 60-69.

SERBIN, Kenneth P. Diálogos na sombra. Bispos e militares, tortura e justiça social na


ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

SZNAJDER, Mario. Os exílios latino-americanos. In: QUADRAT, Samantha (org.).


Caminhos Cruzados: história e memória dos exílios latino-americanos no século XX. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 65-90.

YANKELEVICH, Pablo. Estudar o exílio. In: QUADRAT, Samantha (org.). Caminhos


Cruzados: história e memória dos exílios latino-americanos no século XX. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2011, p. 11-30.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

371
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão: tráfico negreiro, doenças e


mortalidades nas viagens atlânticas (1755-1778)

BENEDITO CARLOS COSTA BARBOSA


PPGHCS – Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ-RJ

1. Introdução

O tráfico negreiro tornou-se uma atividade regular para a Amazônia na segunda


metade do século XVIII com a criação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e
Maranhão (CGCGPM) que visava movimentar o comércio por meio da venda de escravos
africanos e compra de gêneros da terra, no estado do Grão-Pará e Maranhão159. Ao longo
das atividades comerciais, muitas mortes de cativos ocorreram no trajeto África-Pará,
desde os barracões da companhia até o porto de desembarque, motivadas por variados
fatores, sobretudo as doenças infectocontagiosas, como a varíola (bexigas) que em
diversos momentos se propagou na região amazônica de maneira epidêmica. Dessa
maneira, as embarcações da companhia não trouxeram apenas mão de obra para o
crescimento da região amazônica, trouxeram também doenças que adentraram as
capitanias por meio dos africanos escravizados e provocou a mortandade generalizada em
quase todas as viagens.
Este artigo busca analisar a tríade (doenças, mortes e tráfico negreiro) no percurso
das viagens transatlânticas ao Pará, no contexto da CGCGPM (1755-1778)160. A análise
baseia-se nos documentos161 arquivistas – compilados nas obras (As epidemias no
Pará,1975; As Companhias pombalinas, 1983 e A presença africana na Amazônia
Colonial, 1990) - pertencentes à capitania do Pará e Lisboa que relatam aspectos acerca
de mortalidade escrava, comércio negreiro e varíola. The Trans-Atlantic Slave Trade
Data-base162 tornou importante também para traçar uma estimativa, embora fragmentada,

159
A região amazônica a partir da segunda metade do século XVIII compreendia ao estado do Grão-Pará e
Maranhão (1751-1772) com capital em Belém.
160
A discussão deste artigo faz parte de uma pesquisa que ainda está em andamento, que busca estudar a
varíola no Grão-Pará no período de 1755-1808.
161
Com o intuito de melhorar a compreensão da leitura das fontes, procurei atualizar a grafia de todos os
trechos documentais citados ao longo do artigo.
162
Disponível no site www.slavevoyages.org
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

372
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

da mortandade de escravos no contexto da CGCGPM, pois dispõe de fichas individuais


das embarcações (armação, nação e proprietários; datas da viagem; capitão e tripulação;
números de escravos; características dos escravos).

2. O tráfico negreiro para o Grão-Pará


A CGCGPM foi criada em 1755 e constituía uma das medidas da política
pombalina163 na segunda metade do século XVIII que visava reerguer a economia da
região amazônica que se encontrava decadente por fatores de ordem socioeconômica
como a falta de braços164 que atrapalhava o crescimento da agricultura e outras atividades
que dependiam da mão de obra escrava, questão importante para a continuação da
colonização da região (DIAS, 1970: 164 e 169). Essa Companhia de Comércio, segundo
José Maia Bezerra Neto, pretendia estimular a agricultura, baseada na mão de obra
escrava negra fornecendo subsídios como créditos, facilidades nos transportes e na
regularização dos escravos negros à região amazônica (BEZERRA NETO, 2001: 26).
Assim, a CGCGPM impulsionou a introdução de escravos nas capitanias do Grão-
Pará e do Maranhão em quantidades significativas em relação aos anos anteriores165. No
entendimento de Manuel Nunes Dias, “o tráfico de escravos seria encarado pela empresa
pombalina como um negócio vital, porquanto, suposta a liberdade do índio, seriam os
negros africanos que cultivariam os gêneros tropicais que os navios da sociedade
mercantil haviam de transportar de S. Luiz e de Belém para Lisboa” (DIAS, 1970: 459).
Por isso, a criação de uma Companhia de comércio, na compreensão de Francisco Xavier
de Mendonça Furtado, seria “o único meio de arrancar o Estado do abatimento em que se
encontrava”. Além do que “a empresa solucionaria o grave problema da escassez
crescente de mão-de-obra, com a introdução de escravos que seriam fornecidos aos
lavradores em justas condições” (DIAS, 1970: 200).

163
Sebastião José de Carvalho e Melo - Marques de Pombal (1750-1777) - ocupou o cargo de primeiro
ministro no reinado de D. José I.
164
Um dos problemas que afetava a carência de mão de obra diz respeito às epidemias, como mostra Manuel
Nunes Dias “as epidemias ceifavam vidas preciosas, despovoando o Estado de braços” (DIAS, 1970: 166).
165
Para maiores informações sobre o comércio negreiro na Amazônia colonial para período anterior a
CGCGPM ver: (CHAMBOULEYRON, 2006; BARBOSA, 2009).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

373
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A CGCGPM tinha 42 embarcações de variados tipos e tonelagens166, mas de vez


em quando fretava outras que também colaboravam nos serviços: transportavam
mercadorias, gêneros e escravos africanos para as capitanias do Pará e Maranhão
(CARREIRA, 1988: 97). Essas embarcações traficaram escravos de diversas regiões e
portos africanos, como mostra o mapa abaixo: Senegâmbia e Costa Atlântica (Bissau e
Cacheu); África Centro-ocidental (Luanda e Benguela). Durante o período do monopólio
da CGCGPM, Bissau e Cacheu foram os portos que mais exportaram escravos para a
Capitania do Grão-Pará.
Além do comércio de escravos da costa africana, o Grão-Pará manteve relações
comerciais com outras as regiões do Brasil, especialmente São Luiz. Pará e Maranhão
formavam o estado do Grão-Pará e Maranhão. Mesmo após a separação político-
administrativa, continuaram mantendo contatos comerciais e experiências coloniais
parecidas: epidemias de varíola, falta de mão de obra, crise econômica. Com relação ao
comércio negreiro, algumas embarcações ancoravam primeiramente em São Luiz e
depois rumavam ao Grão-Pará ou vice-versa. Nesse jogo das embarcações entre São Luiz
e Belém, não raramente embarcavam e desembarcavam escravos doentes em ambos os
portos amazônicos.

Itinerário do Comércio negreiro para o Grão-Pará

166
Os tipos de embarcações eram as seguintes: “2 naus de guerra, oferecidas pela Coroa; 4 naus mercantes;
9 galeras; 5 corvetas; 7 bergantins; 1 lancha do alto; 8 chalupas; 2 escunas; 4 lambotes. (CARREIRA, 1988:
97)
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

374
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Fonte: GIL; et al, 2016: 35.

Durante mais de vinte anos a CGCGPM (1755-1778) atuou na região amazônica.


Teve a exclusividade na venda de escravos e na compra dos produtos e gêneros da terra
exportados para a Europa; dinamizou, dessa maneira, o comércio nas capitanias do Grão-
Pará e Maranhão. Essa Companhia, segundo José Maia Bezerra Neto, trouxe 14.749
escravos para o Grão-Pará, desembarcados no porto de Belém (BEZERRA NETO, 2001:
111)167. Esse número, certamente, não corresponde ao número de escravos embarcados
nos portos africanos. Sempre existia disparidade entre os números, principalmente pelas
mortes de escravos ao longo das viagens marítimas.

3. Doenças e mortalidades nas viagens atlânticas

167
O autor baseia-se nos dados de Vicente Salles, Manuel Nunes Dias e Anaíza Vergolino-Henry & Arthur
Napoleão Figueiredo,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

375
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As mortes de escravos no contexto do comércio negreiro começava ainda nos


barracões da CGCGPM e se estendiam até os portos de desembarque na Amazônia. A
condição de escravizados associados aos longos dias em alto mar, a deficiente
alimentação servida aos escravos e o péssimo estado das embarcações, sem dúvida,
contribuíram para o adoecimento e mortandade na travessia do Atlântico. Algumas áreas
da Costa africana sofreram com problemas socioeconômicos e ambientais (secas, guerras,
fomes e epidemias) que influenciaram as mortes e a disseminação de doenças entre os
negros traficados, sobretudo os saídos dos portos de Angola que apresentavam alto índice
de mortes nas viagens (CURTO & GERVAIS, 2002: 122).
Esses casos são visíveis com algumas embarcações chegadas a região paraense.
Em 1759, o navio Nossa Senhora da Conceição saiu de Angola com 500 escravos, mas
no transcorrer da viagem morreram 122, vítimas não apenas de doenças, mas de outros
fatores. Os sobreviventes, segundo o governador do Pará, Mello e Castro “todos vieram
com febres, e tão magros, que mais pareciam esqueletos que pessoas viventes”. Em
setembro de 1760, em carta Manoel de Mello de Castro para Francisco Xavier de
Mendonça Furtado comunica sobre “a urgentíssima necessidade que há de pretos neste
Estado”, para o crescimento das lavouras no Grão-Pará. Conta “que há poucos dias
chegou a este porto um navio que veio de Bissau com duzentos, e oito pretos, e logo que
estes desembarcaram se venderam todos dentro em duas horas com dinheiro a vista”. O
governador ao relatar sobre a venda dos escravos, entrados na capitania paraense,
argumenta que, “poucos pretos [...] morreram nesta viagem, que os preços fossem mais
moderados, [...] porque [...] o número dos mortos [foi] muito menor que nos outros
navios”. Pela carta do governador, pode-se inferir que as mortes de escravos nas viagens
faziam parte do cotidiano do comércio negreiro, como subscreve “dos poucos pretos que
morreram nesta viagem”. Além disso, o pequeno número de mortos, serviu para justificar
o pedido de redução do valor da venda. Para o governador, apesar das mortes, não houve
grandes prejuízos com a escravatura, pelo contrário, ao questionar mortes, preços e
despesa, concluiu que os escravos foram vendidos por um valor alto (Anais da BAPP,
Tomo XI, 1969: 336-337).
No mesmo ano, vindo de Cacheu, no norte da África, um navio que teve parte da
tripulação morta, como argumenta Manuel Bernardo de Mello de Castro, em carta de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

376
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

fevereiro de 1760. O governador relata que recebeu a notícia que estava ancorado no mar
das Salinas “um navio que vindo com pretos de Cacheu lhe tinha morrido o capitão, que
também era prático e várias pessoas de sua equipagem”. Diante da situação, argumenta o
governador “mandei por pronta uma canoa com equipação competente de índios, alguns
soldados, que entendiam de mareação [...] irem ao sítio em que se achava o navio e o
conduzirem para este Porto”. O navio chegou ao porto de Belém com cento e quarenta
escravos que foram todos vendidos em uma tarde com dinheiro à vista. Segundo o
governador, “este navio foi na pior estação para aquela Costa, porque chegou a ela na
força da Carreirada por cuja razão experimentaram a morte q’ se disse na sua equipagem,
e todos padeceram graves e perigosas moléstias” (VERGOLINO-HENRY &
FIGUEIREDO, 1990: 224).
Por ser frequente no percurso das viagens atlânticas, a morte de escravos
preocupava os comerciantes e autoridades coloniais envolvidos no negócio negreiro. As
observações de bons tratos certamente eram repassadas para os capitães e donos das
embarcações que transportavam escravos da costa africana ao Pará, como ocorreu com o
Navio São Sebastião na sua viagem para Bissau. Uma carta ao capitão José da Silva Costa,
chamava atenção “aos escravos que transportar o dito navio fará V.M. dar bom
tratamento, para se evitarem as mortandades que do contrário resultam”, igualmente “fará
cuidadosamente praticar uma perfeita, e inalterável união, e harmonia entre todas as
pessoas da equipagem do mesmo navio”. Essas observações eram “para que não haja
entre elas a mínima dissenção; para o que será conveniente V.M. com suavidade as advirta
da exacção com que devem cumprir as suas obrigações” (CARREIRA, 1983: 358).
Desde os primeiros anos da atuação da CGCGPM tem-se notícias de mortes de
escravos nas viagens ao Pará. Essas mortes aumentaram ao passo que os navios da
CGCGPM intensificaram o comércio às capitanias amazônicas. Muitas embarcações
fundearam no porto de Belém para vender escravos em particular aos senhores da lavoura,
fábricas de madeira e outras atividades que dependiam da mão de obra escrava, posto que
nesse contexto, o índio estava privado do trabalho escravo168. Em 1764, “fundeou em
Belém o navio São Lazaro, comandado por Gaspar dos Reis com 408 negros de Angola,

168
O Diretório consistiu em um conjunto de leis destinadas a orientar o cotidiano dos indígenas nas aldeias
(DOMINGUES: 2000).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

377
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

tendo morrido em viagem 143. Em dois dias venderam-se todos estes escravos”. Em
novembro, o navio Nossa Senhora da Conceição, “trouxe ao Pará, 268 negros quando
recebera na África 450. Cento e oitenta e dois infelizes sucumbiram durante a viagem”
(VIANNA, 1975: 36). No ano de 1765, aportou o navio Nossa Senhora do Cabo,
proveniente de Angola, que transportou 700 escravos, sendo que 35 faleceram na viagem
e 635 desembarcaram e foram vendidos no Pará (AHU, Pará, Cx. 58, D. 5203).
Três anos depois duas embarcações da Companhia ancoraram no porto de Belém.
Na primeira embarcação “constava a leva 194 escravos, mas, ao chegar do interior da
Angola a Bissago, tinham morrido 34; durante a travessia faleceram mais 35, e já nesta
cidade 2, totalizando 71 mortos. Na segunda, a “corveta São Francisco Xavier, que
chegou a Belém em [...] 1767, tendo embarcado 189 pretos. Destes 11 morreram em
viagens e 12 na casa da administração da companhia nesta cidade”. Do restante,
“venderam-se logo 53 a dinheiro e 124 a credito”. Anos depois, em janeiro de 1778, “na
sua viagem [...], a corveta São Pedro Gonçalves embarcou 120 negros e chegou aqui com
73; morreram 47” (VIANNA, 1975: 37).
Outros casos são registrados The Trans-Atlantic Slave Trade Data-base que
mostram o número de mortos nas embarcações fundeadas no percurso da viagem ao Pará.
Entre as quais cito algumas que apresentam um número alto de mortos. Com relação aos
escravos saídos de Luanda, em 1757, a galera Santana e São Joaquim, perdeu 129; 1758,
a galera São Luiz Rei da França, perdeu 124 escravos; 1759, a galera Nossa Senhora da
Conceição perdeu 132 escravos; 1762, a galera Nossa Senhora Madre Deus registra 160
mortos; 1764, o corsário São Lázaro registra 143 mortos e em 1764, a galera Nossa
Senhora da Conceição, registra 180 mortos.
Segundo The Trans-Atlantic Slave Trade Data-base, no período de atuação da
CGCGPM, morreram 1722 escravos em viagens para o Grão-Pará. Os provenientes da
África Centro-Ocidental sobressaíram com as maiores taxas de mortalidades,
principalmente, os escravos saídos do porto de Luanda tornavam as maiores vítimas das
mortes ao longo das viagens atlânticas. Luanda apresentava (1.205) 70% dos óbitos,
seguida por Bissau, (263) 15%, Benguela, (143) 8% e Cacheu, (111) 7%. Somando as
porcentagens de Luanda e Benguela, como mostra o gráfico abaixo, percebemos que, o
número aumenta para 78% das mortes de escravos provindos da África Centro-ocidental,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

378
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

especialmente dos portos de Angola. Apesar das mortes concentrarem nos portos
angolanos, Bissau e Cacheu constituíram os portos mais importantes no comércio
negreiro entre o Grão-Pará e a Costa africana, pois os portugueses mantinham o controle
sobre a região, enquanto para os portos de Angola, de acordo com Joseph Miller, somente
no início do século XIX (MILLER, 1999: 13).

Óbitos de escravos – 1755-1778

Fonte: The Trans-Atlantic Slave Trade Data-base

O número de escravos mortos, certamente, foi superior ao apresentado na The


Trans-Atlantic Slave Trade Data-base, posto que, a base nem sempre mostra o número
de mortos. Na maioria das viagens aparece uma grande disparidade entre o número de
escravos embarcados e desembarcados, que sem dúvida, não corresponde somente a
mortalidade. Diversos problemas podiam acarretar a redução no número de escravos, mas
sem dúvida, as mortes tornaram predominante no decorrer das viagens negreiras,
principalmente provocadas pelas doenças infectocontagiosas como a varíola que vitimou
muitos escravos na travessia do atlântico. Segundo Antônio Carreira, no período de 1761

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

379
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

a 1772 com exceção de alguns anos169, houve 1.308 escravos mortos vítimas de epidemias
de varíola (CARREIRA, 1988: 131-132).
As embarcações que viajavam com um número de escravos superior ao permitido,
geralmente corriam risco de contágio nas viagem. Acerca da superlotação, uma
correspondência do governador do Pará para Lisboa, em agosto de 1759, dava
conhecimento de que uma das causas da mortandade de escravos, depois da varíola, era
superlotação das embarcações: “a segunda causa foi o carregarem o navio com maior
lotação do que lhe compete, vindo por esta forma sumamente apertados; de sorte que
ainda não tivessem tantas doenças, bastaria só esta causa para matar a muitos”
(CARREIRA, 1969: 127).
Outro fator que certamente contribuiu para o adoecimento e a mortandade de
escravos corresponde ao tempo de viagens das embarcações. The Trans-Atlantic Slave
Trade Data-base, nem sempre divulga a duração da viagem em dias: desde o porto de
origem ao porto de desembarque. Poucas fichas de registros mostram o tempo de duração
das embarcações. Algumas embarcações provenientes de Angola com destino ao Pará
levavam muitos dias no percurso entre o porto de saída e o porto de entrada, duravam em
torno de cinco a seis meses. Em 1759, a galera Nossa Senhora da Conceição faz um
percurso de 215 dias, equivalendo sete meses de viagem. Em 1764, o corsário São Lázaro,
fez um percurso de 173 dias, equivalente a mais de cinco meses. Em 1765, a galera Nossa
Senhora do Cabo, traçou um trajeto de 181 dias, que corresponde a mais de seis meses.
As demoradas viagens nas embarcações ou mesmo nos portos de embarques associados
a diversos outros fatores consequência do processo de escravidão - sem dúvida -
comprometeram o seu estado de saúde dos escravos. Os escravos que sobreviviam a
travessia atlântica ao desembarcarem no porto de Belém tornavam ameaças de contágio,
principalmente da varíola que durante vários anos em que vigorou a CGCGPM se
propagou de maneira epidêmica tanto nas viagens, quanto na região do Grão-Pará
(NUNES PEREIRA, 1952; REIS, 1961; MACLACHLAN, 1974; CARREIRA, 1983;
CHAMBOULEYRON, 2006; SÁ, 2008).

169
Com exceção dos anos 1763 a 1766 e 1769 e 1771. Esses números não referem-se somente ao Grão-
Pará e ao Maranhão (CARREIRA, 1988: 131-132).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

380
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

4. Considerações Finais

Durante os anos em que a CGCGPM atuou no comércio negreiro para a


Amazônia, muitos escravos morreram na travessia do atlântico, principalmente os saídos
de portos de Angola, como Luanda. Essas mortalidades estavam relacionadas a vários
fatores como, muitos dias no alto mar, péssimas condições das embarcações (infectas,
apertadas e imundas), carente alimentação e outros fatores que afetavam diretamente a
saúde, sem dúvida contribuíam para a proliferação de inúmeros males entre os cativos,
em muitos casos levando a morte. Algumas doenças contagiosas se alastraram no Grão-
Pará, se desdobrando em grandes epidemias na região amazônica, como a varíola que na
segunda metade do século XVIII irrompeu várias vezes, certamente, devido a ineficaz
fiscalização no porto de Belém.
A CGCGPM, portanto, não trouxe somente mão de obra escrava para as lavouras
e engenhos da região amazônica, em particular para o Grão-Pará, trouxe também doenças
que atacavam os escravos desde os portos de embarques até o desembarque e
contribuíram constantemente para a mortandade de escravos. Dessa maneira, durante
mais de vinte anos que essa empresa atuou no negócio negreiro, muitos africanos na
condição de escravizados saídos de distintas áreas do continente africano, pereceram as
longas viagens, motivadas, sobretudo, por doenças, como a varíola que se propagou de
maneira epidêmica em vários momentos na região amazônica.

5. Fontes

5.1. Arquivista

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Pará, Cx. 58, D. 5203

5.2. Impressas

Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará - ABAPP

CARREIRA, António. As Companhias pombalinas de Grão-Pará, Maranhão,


Pernambuco e Paraíba. 2 ed. Lisboa, Ed. Presença, 1983.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

381
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

VERGOLINO-HENRY, Anaíza e FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A presença Africana


na Amazônia colonial: uma notícia histórica. Belém: APEP, 1990.

VIANNA, Arthur. As epidemias no Pará. 2ª edição. Belém/PA: UFPA, 1975.

5.3. Eletrônica

The Trans-Atlantic Slave Trade Database (www.slavevoyages.org)

6. Referências Bibliográficas

ALDEN, Dauril & MILLER, Joseph. Out of Africa: The slave trade and the transmission
of smallpox to Brazil, 1560-1831. Journal of Interdisciplinary History, vol. XVIII, nº 2
(1987), 195-244.

BARBOSA, Benedito Carlos Costa. Em outras margens do Atlântico: tráfico negreiro


para o Estado do Maranhão e Grão-Pará (1707-1750). Dissertação de Mestrado –
Universidade Federal do Pará, Belém, 2009.

BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão negra no Grão-Pará / séculos XVII-XIX.


Belém: Paka-Tatu, 2001.

CHAMBOULEYRON, Rafael. “Escravos do Atlântico equatorial: tráfico negreiro para


o Estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII)”. Revista Brasileira
de História, São Paulo, vol. 26, nº 52, 79-114 (2006).

CARREIRA, Antônio. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. Volume I - O


comércio monopolista: Portugal-África-Brasil na segunda metade do século XVIII. São
Paulo: Editora Nacional, 1988.

___ A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. Volume II - O comércio


intercontinental Portugal-África-Brasil na segunda metade do século XVIII. São Paulo:
Editora Nacional, 1988.

CURTO, José C, GERVAIS, Raymond R. “A dinâmica demográfica de Luanda no


contexto do tráfico de escravos do Atlântico sul, 1781-1844”, Topoi, Rio de Janeiro,
março 2002, pp. 85-138.

DIAS, Manuel Nunes. Fomento e Mercantilismo: A Companhia Geral do Grão-Pará e


Maranhão (1775-1778). Belém, UFPA, 1970.

DOMINGUÊS, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Lisboa: CNCDP, 2000.

GIL, Tiago Luís [et al]. Atlas Histórico da América Lusa. Porto Alegre: Ladeira Livros,
2016: 35.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

382
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MACLACHLAN, Colin. “African slave trade and economic development in Amazonia,


1700-1800”. In: TOPLIN, Robert Brent (org.). Slavery and race relations in Latin
America. Westport: Greenwood Press, 1974, pp. 112-45.

MILLER, Joseph C. “A economia política do Tráfico Angolano de Escravos no século


XVIII” In: PANTOJA, Selma & SARAIVA, José Flávio Sombra (orgs.) Angola e Brasil
nas rotas do Atlântico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

PEREIRA, Manuel Nunes. “A introdução do negro na Amazônia”. Boletim Geográfico –


IBGE, vol. 7, nº 77 (1949), pp. 509-15.

___. “Negros escravos na Amazônia”. Anais do X Congresso Brasileiro de Geografia.


Rio de Janeiro: Conselho Nacional de Geografia, 1952, vol. 3, pp. 153-85.

REIS, Arthur Cezar Ferreira. “O negro na empresa colonial dos portugueses na


Amazônia”. Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos. Lisboa:
Comissão Executiva das Comemorações da Morte do Infante Dom Henrique, vol. V, II
parte, 1961, pp. 347-353.

SÁ, Magali Romero. “A ‘peste branca’ nos navios negreiros: epidemias de varíola na
Amazônia colonial e os primeiros esforços de imunização”. Anais do III Congresso
Internacional de Psicopatologia Fundamental. Rio de Janeiro:, UFF, 2008.

SALLES, Vicente. O negro no Pará, sob o regime de escravidão. 3ª edição, ver. Ampl.
Belém: IAP; Programa Raízes, 2005.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

383
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Uma coleção em Revista: a etnografia no Museu Paulista de Hermann von Ihering

BRENO SABINO LEITE DE SOUZA


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde - Casa de
Oswaldo Cruz/FIOCRUZ- RJ
Bolsista CAPES

Este trabalho apresenta algumas considerações sobre as publicações etnográficas


presentes na Revista do Museu Paulista. Tal proposta insere-se num projeto maior de
pesquisa sobre as coleções etnográficas no Museu Paulista sob organização de Hermann
von Ihering (1850-1930), Afonso de Taunay (1876-1958) e Herbert Baldus (1899-1970),
entre 1895 e 1963. Este projeto provisoriamente denominado Entre sertões, vitrines e
revistas: a trajetória da coleção etnográfica do Museu Paulista (1895-1963) está em fase
de desenvolvimento no curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em História
das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC) - FIOCRUZ.

A direção do Museu Paulista foi um cargo marcante na história da instituição. Tanto


Hermann von Ihering, quanto Afonso de Taunay mantiveram um controle sobre as
atividades desenvolvidas que representou em larga medida suas próprias práticas
intelectuais. O primeiro dedicado à História Natural, o segundo à História. Esse quadro
sofreu relativa alteração a partir de 1946, quando Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982)
assumiu a direção substituindo Taunay e delegou as funções sobre a coleção etnográfica
e a reorganização da Revista ao Etnólogo do museu: Herbert Baldus. Com o intuito de
compreender a trajetória da coleção etnográfica do museu no período mencionado é
necessário observar a atuação de Ihering e a forma como estruturou o Museu Paulista,
dando destaque às coleções, à revista e construindo uma agenda de pesquisa etnográfica.

Entre os anos de 1895 e 1916, período correspondente a direção de Hermann von


Ihering, a Revista do Museu Paulista veio a lume 8 vezes. Contendo artigos científicos,
relatórios de atividades do museu, indicações bibliográficas e informações sobre parcerias
com outras instituições brasileiras e estrangeiras, podemos afirmar que a publicação
serviu como meio de propaganda dos trabalhos desenvolvidos pela instituição e pelo
principal cientista do Museu Paulista: seu diretor.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

384
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A presença marcante da figura de Hermann von Ihering tornou-se uma característica


peculiar dessa publicação, evidenciada pela estampa na página inicial da Revista contendo
uma imagem do Monumento do Ipiranga, o nome de seu diretor e uma listagem de todas
as instituições científicas as quais era associado ao redor do mundo. Em suma, as
informações presentes na Revista não podem ser dissociadas da atuação de Ihering e do
caráter personalista que imprimiu à publicação e ao museu no período em que esteve à
frente de suas atividades.

Fundado no ano anterior ao início das publicações (1894), o Museu Paulista foi
pensado como uma proposta de educação para o estado de São Paulo, em consonância
com o projeto republicano paulista de construção de uma nova identidade regional que se
desenhava em fins do século XIX, e deveria ocupar o grandioso prédio construído em
1890 como monumento do Ipiranga. Dentre as diversas possibilidades discutidas, como
demonstrou Ana de Alencar Alves (2001), a ocupação por uma coleção científica
adquirida pelo Estado e sob guarda da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo
(CGGSP) foi a opção escolhida. Para tanto, Ihering foi contratado pela CGGSP e
conjuntamente com seu diretor Orville Derby (1851-1915) organizou as coleções
recebidas e estruturou o futuro Museu Paulista (LOPES; FIGUERÔA, 2003).

Portanto, o Museu Paulista foi concebido como um local pautado na conformação de


coleções e com uma preocupação pedagógica para as mesmas. No discurso de
inauguração da instituição transcrito na Revista, Ihering justificou a existência do museu
fundamentado nessas duas dimensões. De um lado, as ciências naturais deveriam ser
sustentadas pelas coleções, que cumpririam o papel de prova e consequentemente
conferiam cientificidade às pesquisas realizadas no museu. De outro lado, o fazer
científico e as coleções deveriam ser compartilhados com a população, cumprindo um
papel de divulgação científica. Para tanto, o diretor implementou o método de separação
das coleções proposta por George Brown Goode, e empregada no Museu Nacional dos
Estados Unidos, que consistia na elaboração de coleções para exposições separadamente
daquelas que serviriam para a produção de ciência. Essa proposta evidenciava a
relevância que o público deveria receber da instituição, uma vez que as coleções expostas
deveriam seguir critérios que facilitassem o acesso de um público leigo ao conhecimento
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

385
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

científico. Os objetos eram escolhidos por características estéticas e científicas, deveriam


ser bonitos e chamativos, ao mesmo tempo que instrutivos e possibilitassem a educação
científica dos visitantes (IHERING, 1895a,p. 20-21).

O número inaugural da Revista do Museu Paulista é exemplar do tratamento que


seria dado ao colecionismo e à dimensão pedagógica das ciências naturais. Além de
discutir a separação das coleções e os critérios de exposição dos materiais, Hermann von
Ihering também discutiu o papel que os objetos deveriam possuir de forma mais ampla
no desenvolvimento da ciência brasileira. Exemplo disto pode ser observado na ênfase
dada à necessidade de produzir obras científicas atualizadas, a partir da formação de
coleções nos moldes propostos pelo Museu Paulista, para utilização de professores e
estudantes do ensino básico ou no destaque dado pelo diretor ao lugar que um museu
preencheria na ausência de universidades no país. O discurso de inauguração do museu,
transcrito na Revista, realizado diante de uma seleta plateia composta por membros da
elite política e empresarial paulista, e testemunhado por representantes dos jornais de São
Paulo, colocou o Museu Paulista como um importante elemento na ambição paulista de
protagonismo dentro da federação. Argumentou Ihering que uma instituição como aquela
seria encontrada apenas em Belém do Pará, onde os trabalhos de Emílio Goeldi (1859-
1917) possuiriam a mesma envergadura que o que se propunha a desenvolver. Discurso
que consequentemente colocava o Museu Nacional do Rio de Janeiro em uma posição
secundária. Podemos deduzir que Ihering construía uma narrativa que justificava a
existência da instituição e sua relevância dentro do cenário intelectual nacional, a partir
da utilidade pedagógica do museu e do rigor científico nas ciências naturais, ambas
características sustentadas pelas coleções cientificamente coletadas, organizadas,
expostas e estudadas.(IHERING, 1895a, p. 22-24)

É importante salientar que foi estabelecida uma relação intrínseca entre o Museu
Paulista, as ciências naturais e a formação de coleções durante o período sob direção de
Hermann von Ihering. Relação que sofreria alterações após a mudança de direção da
instituição a partir de 1917, quando Afonso de Taunay implementou gradativamente um
novo modelo para o museu centrado na História. As áreas de maior abrangência dessas
coleções eram a Zoologia e a Botânica, mais próximas das especialidades e interesses de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

386
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ihering, mas houve espaço para formação de uma coleção etnográfica significativa,
pensada neste contexto como ramo das ciências naturais, representando a história natural
do homem no continente.

A relação entre coleções, ciências naturais e museus não era uma exclusividade do
Museu Paulista, podendo ser observada em instituições congêneres como o Museu
Nacional (KEULLER, 2012) e o Museu Paraense (SANJAD, 2010), fundados
respectivamente em 1818 e 1866 e, em certa medida, até mesmo na coleção particular
que daria origem ao Museu Paulista, conhecida como Museu Sertório (CARVALHO,
2014). No entanto, a centralidade concebida às coleções e à construção simbólica do papel
do Museu e do fazer científico na instituição em torno dessas coleções foi uma
característica instaurada por Hermann von Ihering em São Paulo. A Revista
desempenhou, neste contexto, a função de expor as diversas facetas que uma coleção
desempenhava no museu, desde a coleta até a produção de artigos científicos, passando
pela exposição. Neste trabalho focaremos na coleção etnográfica e como ela foi
apresentada nas páginas da Revista do Museu Paulista neste período.

No primeiro número da Revista é evidente a preocupação de Ihering com a área


antropológica, neste exemplar encontra-se o artigo A Civilisação Prehistorica do Brazil
Meridional (IHERING, 1895b), trabalho dividido em alguns tópicos que acompanhariam
sua trajetória no Museu Paulista. É importante salientar que a coleção que originou o
museu era proveniente de um colecionador particular, conhecido como Coronel Sertório,
portanto, o material de origem da instituição não teve interferência de seu diretor em sua
constituição. No entanto, além de ser o responsável pela sua organização, a partir da
inauguração do museu seria o encarregado dos materiais que entrariam no Ipiranga. Esse
dado é importante, pois, a coleção etnográfica que foi ampliada ao longo de duas décadas
seguiu os parâmetros estabelecidos por Ihering. Esse artigo em particular demonstra as
principais preocupações do autor que se desdobrariam em pesquisas posteriores. Em
primeiro lugar, o estudo da arqueologia do Rio Grande do Sul que representava uma
especialidade científica ora com certa autonomia, ora como ciência auxiliar para a coleta
etnográfica e a formulação de uma teoria antropológica. Em segundo lugar, o destaque
aos Coroados, posteriormente também designados pelo autor como Caingangues ou
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

387
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Kaingangs, população que ocupou os territórios de São Paulo, Paraná, Santa Catarina,
Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina. Por fim, a conexão que Hermann von Ihering
realizou entre antropologia e territorialidade ao fazer um estudo comparativo entre suas
pesquisas no Rio Grande do Sul com os existentes sobre São Paulo e Argentina,
apresentando aquele que se tornaria seu grande objeto de pesquisa em antropologia: as
populações que ocuparam o espaço geográfico meridional da América do Sul.

Apesar de ao longo dos anos adquirir objetos oriundos dos mais variados locais do
Brasil e de algumas outras regiões do mundo, o projeto científico que orientava os estudos
realizados no museu era delimitado por essa região meridional. O que não significou um
contrassenso para um museu que se pretendia internacional e, para tanto, deveria construir
uma coleção com a maior amplitude possível. Também é necessário relembrar que as
coleções deveriam cumprir duas funções: servirem para serem expostas e para o
desenvolvimento de estudos. Ao observarmos o conjunto dos artigos publicados na
Revista do Museu Paulista detectamos uma ampla preferência pelo tema das populações
meridionais, com exceções feitas aos Mundurucús e aos Botocudos.

Mesmo nesses artigos, no entanto, Hermann von Ihering não deixou de lado o objeto
científico por excelência do Museu Paulista. Ao analisar as cabeças mumificadas pelos
Mundurucús do Pará comparou com práticas de natureza similar entre os indígenas
brasileiros, sul-americanos e norte-americanos. Se o escalpamento era uma prática dos
“belicosos indígenas da América do Norte, parece ter sido raro na América Meridional”
(IHERING, 1907, p. 179), em compensação, argumentava o autor, alguns grupos
indígenas brasileiros mumificavam cabeças de inimigos. O mote deste artigo é este:
realizar a partir do caso dos Mundurucús uma comparação dessas práticas entre os
indígenas brasileiros e em todo o território da América do Sul. Mais uma vez as coleções
foram postas em primeiro plano, pois, serviram como condução da análise comparativa
de Ihering duas dessas cabeças mumificadas que foram adquiridas junto ao Sr. Estellita
Alvares (IHERING, 1907, p. 180). Caso semelhante encontramos no estudo sobre os
Botocudos do Rio Doce, cujo texto escrito por Ihering é baseado nos trabalhos
desenvolvidos pelo naturalista-viajante do Museu Paulista Ernesto Garbe e seu assistente
Walter Garbe, que realizaram explorações à região do Rio Doce entre 1906 e 1909.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

388
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(IHERING, 1911, p. 38) As primeiras incursões se limitaram à coleta de materiais


zoológicos e botânicos mas, posteriormente, em 1909, Walter Garbe retornou à região
exclusivamente para pesquisar os Botocudos. Desta viagem Garbe realizou uma série
fotográfica, coletou a cabeça de uma mulher botocudo e recolheu alguns objetos para o
museu.

Ademais, é possível observar a construção desse objeto de pesquisa antropológico do


Museu Paulista. As populações indígenas que ocupavam o Oeste do estado e se
espalhavam pelo sul do país, chegando aos vizinhos como Argentina, foram
sistematicamente alvo de pesquisas. Para além da contribuição pessoal de seu diretor, a
Revista publicou artigos de outros pesquisadores ligados ao tema como Telêmaco Borba,
Theodoro Sampaio e Benigno F. Martinez. Um olhar geral sobre essas publicações é
interessante para demonstrar o escopo dessa temática na Revista:

Ano Volume Título Autor


1895 1 A Civilisação prehistorica do Brazil H. Von Ihering
Meridiona
1897 2 A Nação Guaianã da Capitania de São Theodoro Sampaio
Vicente
1900 4 Archeologia Rio Grandense I. M. Paldaof
1904 6 Os Guayanãs e Caingangs de S. Paulo H. Von Ihering
1904 6 Os Índios Guayanãs Benigno Martinez
1904 6 Observações sobre os indigenas do Estado do Telêmaco Borba
Paraná
1904 6 Breves noticias sobre uns objectos Rev. Pª A. Schupp
interessantes feitos pelos indígenas do Brazil
1904 6 Algumas notas e informações sobre a situação Benedito Calixto
dos sambaquis de Itanhaen e de Santos
1904 6 Archeologia comparativa do Brazil H. Von Ihering
1907 7 Os índios Patos e o nome da Lagoa dos Patos H. Von Ihering
1907 7 As cabeças mumificadas pelos indios H. Von Ihering
Mundurucús

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

389
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

1907 7 A Anthropologia do Estado de S. Paulo H. Von Ihering


1911 8 Os Botucudos do Rio Doce H. Von Ihering
1911 8 A questão dos Índios do Brazil H. Von Ihering

O argumento que pretendo sustentar é que o Museu Paulista instituiu-se como local
por excelência no período para o estudo dessas populações, especialmente os Kaingang.
Embora o número de artigos seja relativamente baixo em comparação à Zoologia e
Botânica, a constância do tema e a participação de outros pesquisadores sedimentaram
um objeto de pesquisa que extrapolou a direção de Ihering e o ano de 1916. Os artigos a
respeito dessas populações continuaram recorrentes até, ao menos, a década de 1960 -
alcance máximo da pesquisa de doutorado em andamento - e acompanharam as
transformações institucionais e conceituais pelas quais o Museu Paulista atravessou ao
longo de décadas. Porém, ao mesmo tempo que delimitou um objeto de pesquisa
específico, não deixou de construir uma coleção ampla sobre as populações indígenas
brasileiras e algumas de outros países. Estabelecendo intercâmbios com outras
instituições e tecendo uma rede de coletores de objetos com este intuito.

Essa delimitação de pesquisa sobre as populações indígenas meridionais, se


desdobrou em uma atuação efetiva no território paulista. Nascente da Comissão
Geográfica e Geológica de São Paulo, as relações entre as duas instituições se
aprofundaram ao longo dos anos. Designada para realizar a exploração do território Oeste
do estado, representado como selvagem e desocupado, a CGGSP enfrentou no início do
século XX grupos Kaingangs que resistiram à abertura de um picadão realizado pelos
homens da exploração. Do conflito, uma série de objetos como flechas, crânios e
utensílios diários foram coletados e encaminhados para o Museu Paulista. Material que
resultou em artigo de Hermann von Iheirng publicado na Revista, no qual tece
comentários sobre esse grupo indígena:

Os atuais índios do Estado de S. Paulo não representam um elemento


de trabalho e de progresso. Como também nos outros Estados do Brasil,
não se pode esperar trabalho sério e continuado dos índios civilizados e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

390
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

como os Caingangs são um empecilho para a colonização das regiões


do sertão que habitam, parece que não há outro meio de que se possa
lançar mão, se não o seu extermínio.(IHERING, 1907, p. 215)

O vínculo do Museu Paulista com a política indigenista republicana não se limitou


ao episódio da CGGSP. A criação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de
Trabalhadores Nacionais, em 1910 - posteriormente apenas Serviço de Proteção ao Índio
(SPI) - possibilitou a visitação recorrente de pesquisadores do museu aos postos indígenas
de São Paulo e dos estados ao sul do país. Essa relação tem início no episódio conhecido
como Pacificação Kaingang em 1912 e permanece durante as administrações seguintes.
Portanto, as atividades científicas do Museu Paulista não podem ser vistas separadamente
dos movimentos políticos e sociais que a cercavam, como por exemplo a expansão para
Oeste do estado. Mesmo a coleta de exemplares animais e vegetais estão inseridos nesse
movimento e quando observamos o material etnográfico essa característica é acentuada.

Não foi, no entanto, uma exclusividade do Museu Paulista a vinculação entre


produção do conhecimento e movimento de domínio sobre outras culturas. Se refletirmos
sobre as caracterização realizada por James Clifford, ao apontar que a etnografia é “uma
atividade híbrida”, simultaneamente “escrita”, “colecionamento”, “collage modernista”,
“poder imperal” e “crítica subversiva” (CLIFFORD, 1998, p. 22), podemos aferir
algumas dessas características na produção de Hermann von Ihering e do Museu Paulista.
Obviamente, Clifford está conceituando uma geração posterior de antropólogos que a
partir da década de 1920 construiu o fazer moderno da antropologia profissional na
Europa. Porém, a escrita, o colecionamento e o poder imperial estão presentes desde a
geração dos naturalistas viajantes que desenvolveram os estudos etnográficos desse
período predecessor à profissionalização. Uma característica que se difere da apresentada
por Clifford diz respeito ao poder imperial, uma vez que sociedades fora do eixo europeu
empreenderam um movimento interno de poder e controle sobre as populações indígenas.
São Paulo, a exemplo da Argentina e dos Estados Unidos, para citarmos os casos mais
conhecidos, realizou uma conexão entre produção do conhecimento científico e uma
espécie de colonialismo rumo ao seu próprio interior. Paralelamente, o desenvolvimento
da antropologia possui movimento semelhante, onde uma cultura observava as demais a
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

391
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

partir dessa demarcação de diferença. Sociedades como as americanas, demarcaram tal


diferença entre civilização e primitivismo dentro de suas fronteiras. Coube, por extensão
à instituições como o Museu Paulista a representação de certos territórios como
primitivos, como bem apontou Lúcio Menezes ao discorrer sobre a Arqueologia brasileira
- incluindo Hermann von Ihering nessa análise - diz o autor: “servia-lhes para narrar e
representar o passado indígena, mas simultaneamente, guarnecia um arcabouço de
registros sobre a permanência, no Brasil, de um território primitivo que deveria ser
“pacificado”. (FERREIRA, 2010, p. 27)

A Revista do Museu Paulista cumpriu todos esses papéis para os estudos etnográficos
desenvolvidos na instituição. Ao lado dos artigos que definiram um objeto antropológico
que permaneceria mesmo após a saída de Hermann von Ihering, houve espaço ainda para
outros aspectos como a formação das coleções nos relatórios anuais veiculados em suas
páginas. Ali, é possível observar uma dinâmica diferente da estática presente nos artigos
e percebemos aspectos da trajetória de construção das coleções do museu. De sua coleta,
da formação de redes de vendedores, de intercâmbios entre instituições e das relações
políticas e culturas que permearam esse processo. Nas revistas, embora de forma parcial,
as peças ganham vivacidade e consequentemente mais questionamentos são possíveis. As
flechas, machados e crânios que serviram como objetos de pesquisa também possuem
uma trajetória, da sua função utilitária até a transformação em semióforo. (POMIAN,
1984, p. 71-72)

Documentação:

Revista do Museu Paulista 1895-1911

IHERING, Hermann von. Historia do Monumento da Ypiranga e do Museu Paulista. In.


Revista do Museu Paulista, vol. I, 1895a, pp. 9-32.

A Civilisação prehistorica do Brazil Meridional.In. Revista do Museu Paulista, vol I,


1895b, pp. 33-61.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

392
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As cabeças mumificadas pelos indios Mundurucús. In. Revista do Museu Paulista, vol.
7, 1907, pp. 179-201.

______. Antropologia do Estado de São Paulo. In. Revista do Museu Paulista, vol. VII,
1907, pp. 202-257.

Referências:

ALVES, Ana Maria de Alencar. O Ipiranga apropriado: ciência, política e poder (o


Museu Paulista, 1893-1922). São Paulo: História Social USP/ Humanitas, 2001.

CARVALHO, Paula. O Museu Sertório: uma coleção particular em São Paulo no final
do século XIX (primeiro acervo do Museu Paulista). Anais do Museu Paulista. São Paulo.
N. Sér. v.22. n.2. p. 105-152. jul.- dez. 2014.

CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: GONÇALVES, José Reginaldo


Santos (Org.). A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 1998.

FERREIRA, Lúcio Menezes. Território Primitivo: a Institucionalização da Arqueologia


no Brasil. Porto Alegre: ediPUCRS, 2010.

KEULLER, Adriana T. Os estudos físicos de antropologia no Museu Nacional do Rio de


Janeiro: cientistas, objetos, ideias, e instrumentos (1876-1939). São Paulo: Humanitas,
2012.

LOPES, Maria Margaret; FIGUEIRÔA, Silvia. A criação do Museu Paulista na


correspondência de Hermann von Ihering (1850-1930). Anais do Museu Paulista
(Impresso), São Paulo, v. 10/11, p. 23-35, 2003.

POMIAN, Krzysztof. Colecção. In: Enciclopédia Einaudi. V. 1. Lisboa: Imprensa


Nacional Casa da Moeda, 1984.

SANJAD, Nelson. A Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o Império e a


República, 1866-1907. Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

393
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

394
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Povo e Raça: a questão racial por trás do discurso sobre alemães étnicos na obra de
Adolf Hitler

BRUNA BALIZA DOS S. DOIMO


Bolsista CAPES, Mestranda do Programa de Pós-graduação em História
UFRRJ

Introdução

A política de expansão territorial ocupa um lugar importante no discurso dos


líderes nazistas, mesmo antes da chegada do partido ao poder.170 E em 1933, quando o
partido chega ao governo na Alemanha, esses projetos são colocados em prática, a partir
da invasão à Áustria em1938.171 Tal política possuía dois objetivos, a anexação de
territórios, justificada pela necessidade de espaço vital (Lebensraum) para o
desenvolvimento o povo alemão, e a reincorporação de territórios e suas populações, que
para eles, seriam racialmente alemães, mas que até então estavam foram das fronteiras
do Estado alemão.(STEINHART, 2015. p.01) O que nos é fulcral neste trabalho não é a
ação política posta em prática pelo regime nazista, mas a lógica que justificava essa
expansão, em especial a questão que envolve a população alemã fora do Reich, os alemães

170
Podemos encontrar as intenções expansionistas em diversos textos base do partido nazista, como por
exemplo, no programa de 25 pontos, lançado em 1920, quando ainda era o Partido dos Trabalhadores
Alemães (DAP). A proposta de expansão territorial está presente no terceiro ponto do programa, “Exigimos
terra e território (colônias) para a manutenção do nosso povo e da liquidação da nossa população
excedente.” Também podemos encontrar em diversas passagens do livro Mein Kampf, do líder do partido
Adolf Hitler, as pretensões para a ampliação territorial alemã. Como na seguinte passagem, “Por
conseguinte, a única possibilidade que a Alemanha tinha de uma política territorial sólida era adquirir um
novo território na própria Europa. (...) deveria ser principalmente ao custo da Rússia, e mais uma vez o
novo Império Alemão deveria ter começado em sua marcha ao longo da mesma estrada que anteriormente
foi pisada pelos Cavaleiros Teutônicos, desta vez para adquirir solo para o arado alemão por meio da espada
alemã e assim fornecer a nação com seu pão diário.” Ver Programa do Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães. Disponível em <http://www.historia.uff.br/nec/sites/default/files/Fonte_3_0.pdf>.
Acesso em Jul. 2017, e HITLER, Adolf. Mein Kampf. Hurst and Blackett LTD, 1939, p.119.
171
Em março de 1938, após manobras que garantiram representação nazista no governo austríaco, Hitler
invade a Áustria, chegando à capital Viena, sem que um tiro fosse disparado. A anexação austríaca foi
chamada de Anschluss, e foi apenas o primeiro movimento de anexação empreendido pelo governo nazista
alemão. No mesmo ano, Hitler comanda a ocupação de uma região fronteiriça da Tchecoslováquia com
uma concentração de cerca de três milhões de “alemães étnicos” conhecida como Sudetolândia. O que após
negociações políticas internacionais, que envolveram a Inglaterra, França, Itália e Alemanha, foi cedida à
Hitler. Um ano depois, as tropas alemães tomariam toda a Tchecoslováquia, após pressão do governo
alemão sob o governo tcheco. Ver STACKELBERG, Roderick. A Alemanha de Hitler: origens,
interpretações, legados. Imago, 2002.p.238-244.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

395
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

étnicos.

A fim de delimitar nosso objeto, os alemães étnicos, devemos situá-lo em seu


lugar de construção, os discursos nacionalistas alemães.172 Falar de “nacionalismo
alemão” é falar de diversos discursos que buscam definir, legitimar e padronizar aquilo
que é para eles a “Nação Alemã” e “os alemães”. Desde finais do século XVIII há
correntes que, não delimitam, mas, de alguma forma já pensam sobre uma “unidade
nacional alemã”. Desde suas primeiras manifestações até o governo nazista há
consideráveis transformações desses “nacionalismos”. Porém, um elemento pode ser
visto como pedra angular entre esses discursos, pois esteve presente em suas mais
diversas representações, o Volk.173.

O lugar do Volk no nacionalismo alemão

Volk é um termo chave para se pensar no nacionalismo propagado por grupos de


extrema direita, que defenderam uma Nação baseada em uma comunidade racial
(Volksgemeinschaft). Esse pertencimento se pautava em dois elementos que estavam
inseparavelmente relacionados. O primeiro deles é o fator biológico-racial, que se
manifesta em “características físicas, intelectuais e psicológicas típicas do ‘ser alemão’.”
(MORAES, 2017, p.281).

Quando falamos de fator biológico-racial, nos referimos a uma concepção


amplamente difundida no século XIX na Europa, o racismo. A ideia de que a humanidade
estava dividida em grupos distintos, e que entre esses grupos havia uma hierarquia é
imemorial. E se fundamenta na concepção de que no topo estariam os indivíduos
superiores e na base aqueles inferiores. Tal lógica justificava a subjugação de um grupo

172
“não se pode [...] deixar de lado a ideia de que observar o fenômeno nacionalista na Alemanha é observar
campos políticos diversos significando que ‘nacionalismo alemão’ deve ser declinado no plural.” Ver
MORAES, L.E. S. Os Nacionalismos Alemães: do Liberalismo ao Nacionalismo Excludente. In: A
experiência nacional: identidades e conceitos de nação da África, Ásia, Europa e nas Américas.
LIMONIC, Flávio, MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (org.) - 1º ed.- Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2017. P.279
173
Volk é um termo de múltiplas traduções, sendo comumente definido como “Povo”, mas também pode
ser encontrado com o sentido de “nação”. Segundo o historiador Luís Edmundo Moraes é um conceito que
“define pertencimento a um grupo de descendência [...] um conceito que expressa pertencimento por
herança e pela partilha de determinados atributos considerados definidores do grupo.”. MORAES, Ibidem,
p. 281-282
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

396
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

por outro, pautada na ideia de superioridade. Porém, foi na modernidade que surgiu o
fenômeno que mais tarde seria conhecido como racismo. Como explica Zygmunt
Bauman, o racismo se apresenta como um produto da modernidade, pois, “como
concepção de mundo e, mais importante, como instrumento mais efetivo de prática
política, o racismo é impensável sem o avanço da ciência moderna, das tecnologias
modernas, e das formas modernas de poder estatal.” (BAUMAN, 1998, p.83) Michael
Wieviorka em “O Racismo: uma introdução” vai nos apontar para diversas facetas do
racismo, a que destacamos aqui, o racismo científico. Nele as “raças” são associadas “a
atributos biológicos e naturais e atributos culturais, pode ser objeto de teorização
científica.” (WIEVIORKA, 2007, p.19) Outro fator importante sobre o pensamento racial
é a reflexão sobre o tema com a ascensão das nações. Autores como Hanna Arendt não
vê o racismo uma expressão exacerbada de nacionalismo, pelo contrário, a autora nos
mostra que muitas vezes, este pode “destruir a estrutura politica da nação”. Arednt vai
afirmar ainda que o racismo como doutrina de Estado é posto em prática só na Alemanha,
todavia, as ideias propagadas por este encontravam simpatizantes em todos os países.
Assim, afirma a autora, “o racismo não era arma nova nem secreta, embora nunca antes
houvesse sido usada com tão meticulosa coerência”. (ARENDT, 2013, p.188)

O outro elemento é a questão cultural (Kultur174), e nesse sentindo a língua tem


um papel central (MORAES, 2010). Segundo o sociólogo alemão Norbert Elias, “Kultur
dá ênfase especial a diferenças nacionais e à identidade particular de grupos.[...] Kultur
reflete a consciência de si mesma de uma nação que teve de buscar e constituir incessante
e novamente suas fronteiras, tanto no sentido político como espiritual, e repetidas vezes
perguntar a si mesma: "Qual é, realmente, nossa identidade?". Ou seja, segundo ele, o
termo é central para a definição do “que era realmente o alemão.[...]”, no século XX.
(ELIAS,1994,p.25)

174
O conceito de Kultur é extremamente denso, e assim não é uma tarefa simples tentar formular uma
tradução. Pois, ao atribui-lo uma palavra, como cultura, por exemplo, acaba-se por esvaziar suas
peculiaridades que só são compreensíveis com uma palavra no alemão. Kultur muitas vezes encontra-se
associada a ideia de civilização, não podendo ser esgotada também por este conceito. Ver ELIAS, Norbert.
Da Sociogênese dos Conceitos de "Civilização" e "Cultura" In: O processo civilizador, Trad. Edmund
Jephcott, Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1994.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

397
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Essas ideias estão situadas em um campo mais amplo de nacionalismos que


entendem o pertencimento à nação a partir de critérios étnicos e não cívicos.175 Isto
significa dizer, de modo geral, que esse pertencimento não está pautado em uma linha
voluntarista176. O que define esse pertencimento é a raça, que por sua vez é definida por
uma questão natural, orgânica. Discutiremos mais a frente como esse pertencimento a
raça é formulado por Hitler. Discorrer sobre essa questão é central para que possamos
compreender a lógica por trás da política externa nazista, em especial no caso dos
"alemães étnicos” 177
.
Hitler e seu Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP),
eram defensores dessas teorias, mas não eram os únicos. Esses fundamentos estavam na
base também do nacionalismo völksich, que dizia respeito a uma corrente do nacionalismo
alemão cujo programa se fundamentava em teorias raciais. Empregavam o “darwinismo
social” para explicar os embates entre os diferentes grupos da sociedade como uma “luta
racial”. Defendiam ainda a eugenia, ou “higiene racial”178, e uma política imperialista por
parte do Estado. Segundo Roderick Stackelberg, “procuravam conquistar o apoio de
massa para a causa conservadora, através dos apelos quase populistas à solidariedade
racial e nacional.” (STACKELBERG, 2002. p.77)

175
Quando falamos de nacionalismo cívico, falamos de uma corrente que “encara a nação como uma
comunidade de cidadãos iguais, portadores de direitos iguais, unidos por meio de uma ligação patriótica a
um conjunto de valores e práticas políticas compartilhadas”. Já o nacionalismo étnico dá mais ênfase na
descendência comum e semelhanças culturais. Assim, essa corrente está mais pautada em elementos pré-
existentes aos indivíduos, àquilo que lhe é herdado, e não depende da sua escolha, “línguas, religião,
costumes e tradições”. “O nacionalismo étnico alega que as conexões mais profundas de um indivíduo são
herdadas, e não escolhidas; portanto, a adesão à nação não é uma questão de vontade. Ela só pode ser
adquirida por nascimento, através do sangue.” (Ignatieff, 1994 apud ÖZKIRIMLI,2005). Para uma leitura
mais aprofunda sobre nacionalismo cívico e étnico, ver ÖZKIRIMLI, Umut. “What is Nationalism?” In:
Contemporary debates on nationalism: A critical engagement. New York: Palgrave Macmillan, 2005.
p.13-33.
176
A ideia de que o que compõe a nação é a vontade do grupo de se manter unido como um povo, nas
palavras de Ernest Renan “A existência de uma nação é [...] um plebiscito de todos os dias”. Segundo
Özkirimli, voluntarismo é uma das formas de se designar o nacionalismo cívico. Ver RENAN, Ernest. O
que é uma nação. Revista Aulas: Unicamp, São Paulo, v. 4, 1997. P.19. e ÖZKIRIMLI, Op. Cit. p.22.
177
A própria forma de se compreender cidadania e os direitos dos cidadãos para o Nacional Socialismo está
ligada a questões raciais, como podemos observar no quarto ponto do programa de 25 pontos do partido,
“Somente aqueles que são nossos compatriotas podem se tornar cidadãos. Somente aqueles que têm sangue
alemão, independentemente de credo, podem ser nossos compatriotas. Daí nenhum judeu pode ser um
compatriota”. Disponível em < http://www.historyplace.com/worldwar2/riseofhitler/25points.htm>.
Acesso em 20 de set. 2016.
178
“Ciência de melhorar uma raça ou grupo populacional através de práticas seletivas de reprodução”.
STALCKELBERG, Op. Cit., p.78.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

398
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Hitler também defendeu, em suas palavras, um “nacionalismo baseado na


concepção de Volk” (HITLER, 1939, p.23), mas não enquadra seu discurso como
völkisch, ou melhor dizendo, não no sentido que este estava sendo usado pelos partidos
políticos até então.179 Entre os representantes do völkisch, destaca-se o movimento
Pangermânico, que é seu grande representante ideológico, e acaba sendo o mais debatido
e também o mais criticado por Hitler em sua obra. Mesmo com muitos elementos comuns
entre as ideias pregadas pelo Movimento Pangermânico e aquelas defendidas pelo líder
nazista,180 nos importam aqui as divergências, em especial, as que estão fundadas na
forma com que Hitler entende a questão do pertencimento ao grupo nacional.

Podemos apontar que a principal divergência entre Hitler e os grupos


pangermânicos era a questão da germanização. Segundo o autor, os defensores desse
processo viam na miscigenação, ou na imposição cultural - por exemplo, o emprego da
língua alemã - a chave para o desenvolvimento da raça, pois assim era possível tornar
alemães (“germanizar”) indivíduos que não eram racialmente alemães. Porém, Hitler
ataca duramente essa hipótese.

Durante o último século era lamentável entre aqueles que


testemunharam, como [...] a palavra “Germanização” foi usada
frivolamente, embora a prática era frequentemente bem intencionada.
[...]. Mesmo nos ciclos Pan-Germanicos, ouve-se a opinião expressa
que a germanização dos eslavos austríacos poderia ser muito bem
sucedida, se o governo estivesse disposto a cooperar. [...] O que eles
entendiam por germanização era um processo de forçar outras pessoas
a falar a língua alemã.[...] tal processo de germanização é na realidade
a desgermanização; Pois mesmo que todas as diferenças notáveis e
visíveis entre os diversos povos pudessem ser superadas e finalmente
aniquiladas pelo uso de uma linguagem comum, isso produziria um
processo de bastardização que, neste caso, não significaria a

179
Para ele, o problema de enquadrar o movimento nacional-socialista como völkisch, é que este termo
seria demasiado vago, assim deixaria espaço para múltiplas interpretações. Quando um discurso político se
baseia em um conceito tão amplo, a tendência é que se rompa a solidariedade entre as “forças combatentes”,
“Essa solidariedade não pode ser mantida se cada membro individual puder definir por si mesmo o que
acredita e o que está disposto a fazer”. HITLER, Op. Cit.,p.299.
180
Há diversas passagens em que o autor reafirma muitos dos pontos defendidos nos grupos pangermânicos,
como por exemplo, quanto a visão do movimento sobre política externa. Hitler, tal como o pangermanismo,
também defenderá uma política expansionista e bélica. Para o autor, quando uma nação se restringe em
ocupar um limite territorial pequeno, terá que empreender políticas no sentido de limitar o crescimento de
sua população. Enquanto as que investem em um projeto expansionista, podem permitir a sua população e
território expandirem sem restrições. Deste modo, a política externa de um estado völkisch tem “o dever de
assegurar a existência da raça incorporada neste Estado”. HITLER, Op. Cit., p.491.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

399
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

germanização, mas a aniquilação do elemento germânico.( HITLER,


1939, p.302-303)
Em sua obra, o autor não disserta muito sobre o assunto, a palavra germanização
só aparece em doze passagens do texto e, em muitos casos, como este, sobre
desgermanização. No caso da passagem supracitada, a tentativa de germanizar um
determinado grupo, os eslavos, acabaria por Desgermanizar o grupo de alemães. O
processo de desgermanização consiste, para o autor, na degeneração dos elementos
germânicos. Este pode ocorrer de múltiplas formas, sendo consciente ou inconsciente. No
“Minha Luta”, Hitler cita o caso onde o governo Austríaco, ao aprovar o sufrágio
universal tomava o caminho da desgermanização do Estado (HITLER, 1939, p.70). Outro
exemplo de desgermanização dado pelo autor é da Casa Habsburgo, que, segundo ele,
queria eslavizar a Áustria. Para isso foram empreendidas diversas políticas, como a
transferência de padres eslavos, nesse caso específico de nacionalidade checa, para
paróquias “puramente alemãs”. (HITLER, 1939, p.95)

Ou seja, para Hitler falar de desgermanização é falar de um processo que não é só


possível, mas que foi posto em prática em diversas ocasiões, até mesmo como política de
Estado. Já o processo inverso, para o autor seria inviável, daí como vimos sua crítica
àqueles partidos que defendiam “politicas de germanização”. Para entendermos as
divergências entre Hitler e as outras correntes nacionalistas quanto essa questão,
precisamos entender a forma que ele compreende o pertencimento a raça.

A concepção racial de Hitler no Minha Luta

Em seu livro “Minha Luta”, Hitler discorre sobre a existência das raças, as
diferenças entre estas, e a hierarquia que as permeiam. Esta divisão em raças, segundo
ele, também se aplica para espécie humana. Hitler vai entender que as características de
cada raça vão ditar as diferenças entre os grupos humanos, tanto as físicas, quanto
comportamentais e culturais. Cada raça possui características inerentes a si, as quais não
podem ser transmitidas ou ensinadas as demais, porque o pertencimento a esta está ligado
a uma questão biológica. Os elementos raciais são levados no sangue de cada indivíduo,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

400
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

e é “exclusivamente pelo laço de sangue que os membros de uma raça estão ligados.”
(HITLER, 1939, p.244). O autor defende que as raças devem se manter puras, ou seja,
não deve haver mistura de sangue. “O vigor ou declínio humano depende do sangue. [...]
Um povo que não consegue preservar a pureza do seu sangue racial destrói assim a
unidade da alma da nação em todas as suas manifestações.” (HITLER, 1939, p.26), e
assim, a mácula do sangue é responsável por todo o declínio de um povo, e
consequentemente de sua nação.

Em sua fala Hitler afirma que as raças existentes no mundo são separadas
hierarquicamente em três grupos, e só um seria responsável pela “criação de cultura”, as
demais ou a reproduz, ou a destrói. No topo da hierarquia está a raça ariana. (HITLER,
1939, p.226). Sendo a raça uma questão consanguínea, fica claro que não há
possibilidades, para o autor, de melhora racial, a partir da mistura de diferentes raças.
Assim não há como transformar não alemães em alemães, ou nas palavras do autor,
germanizar um indivíduo. (HITLER,1939,p.224) Falar sobre as possibilidades, ou no
caso, a impossibilidade de germanização é fundamental para discutirmos até que ponto a
lógica racial estava por trás das propostas da forma de se definir aqueles que eram
genuinamente alemães no exterior, e compreender as propostas sugeridas para essa
população, que estão na base da politica externa nazista.

Os alemães étnicos

Como vimos até aqui, segundo o pensamento Hitlerista, ser alemão está
relacionado ao pertencimento a raça ariana, e assim, ao local de nascimento
propriamente dito não interfere na identidade alemã. Ou seja, nem todos os indivíduos
nascidos em território alemão serão considerados genuinamente alemães, da mesma
forma podemos encontrar indivíduos racialmente alemães fora das fronteiras do Estado.
E se olharmos para o local de produção da obra de Hitler, veremos que havia um grupo
grande de pessoas classificada como alemães fora da Alemanha.

A ideia de uma população de origem alemã que se encontra fora das fronteiras do

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

401
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Reich deve também ser analisada a partir do contexto das divisões dos Estados nacionais
depois da Primeira Guerra, pois, nesse período, muitos deles tiveram suas fronteiras
definidas por tratados e plebiscitos. Por isso, era comum encontramos populações com
distintas identidades étnicas em um mesmo território. Anna M. Cienciala aponta que após
as novas divisões, havia cerca de um milhão de alemães que ficaram em territórios
poloneses, e dois milhões de poloneses em território alemão.181 Eric Steinhart chama
atenção para as dezenas de milhares de germanófonos que haviam se mudado para o
Império Russo no começo do século XIX. (STEINHART, 2015. p.02) E Doris L. Bergen
afirma que segundo os especialistas alemães havia, até os anos 1930, trinta milhões de
Volksdeutchen fora das fronteiras do Reich, e desses, pelo menos dez milhões estariam
no leste europeu: Polónia, Estados Bálticos, Ucrânia, Hungria e Roménia. (BERGEN,
2005, p.267) E foi essa população de origem germânica uma das principais justificativa
usada pelo governo Nazista para a invasão de territórios no leste europeu. (BERGEN,
2005, p.267)

Os Nazistas não foram os primeiros a pensar a respeito dos alemães étnicos fora
do Reich. Steinhart afirma que esse elemento está presente em muitos discursos
pangermanistas, e durante a República Weimar já assume um papel de destaque 182, pois
para muitos no governo esta população era a chave para a reconquista de territórios
perdidos após a Grande Guerra. Mas, o governo Nazista deu ênfase a esta questão a nível
político, criando um escritório específico para gerir os assuntos referentes a essa
população, o Volksdeutsche Mittelstelle (Escritório central de alemães étnicos), também
conhecido como VoMi, que era responsável pelos alemães étnicos. (STEINHART, 2015.
p.03)

Nesse sentido a conquista da parte oriental da Europa, incluindo a União

181
Ainda segundo a autora, a Alemanha nunca aceitou perder seus territórios orientais, e mais do que uma
questão de união do seu “povo”, estavam por trás questões uma questão econômica. Do ponto de vista
étnico, suas reinvindicações eram válidas apenas em relação à região de Danzig, uma vez que em Posen, a
grande maioria era de origem polonesa. CIENCIALA, Anna M., Poland and the Western Powers 1938-
1939: A Stady in the Independence of Eastern and Western Europe. Londres: Routledge & Kegan Paul,
Toronto: University of Toronto Press, 1968. p.02.
182
Segundo o autor, o governo alemão, durante a República Weimar, subsidiou esses alemães étnicos, e
protegeu diplomaticamente sua autonomia linguística e cultural. STEINHART, Op. Cit. p.03.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

402
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Soviética, era fundamental para os planos hegemônicos nazistas. A política de impulso


para o leste (Drang nach Osten) tinha como objetivo o domínio de terras eslavas para o
estabelecimento de “assentamentos alemães”. (MORAES, 2017, p.297) Hitler antes
mesmo de tomar o poder já afirmava que seus planos para a política externa incluíam
“revogação” do Tratado de Versalhes, com a reconquista dos territórios perdidos no
oriente.183 E os alemães étnicos tinham um papel chave nessa política expansionista.
Segundo Bergen, essa população foi usada como forma de legitimar o assassinato de
milhões de pessoas, na busca por Espaço Vital. Pois, com o extermínio da população não-
alemã local (eslavos e judeus), os alemães étnicos deviam herdar as casas e posses das
pessoas que eram entendidas pelos nazistas como “vida inútil”. Ao mesmo tempo, a ideia
de alemães “puros” que foram presos fora das fronteiras do Reich e obrigados a sofrer
sob as regras estrangeiras forneceu a Hitler um pretexto para invadir o leste europeu.
Bergen afirma ainda que esse grupo foi essencial para constituir a “Nova ordem” que os
nazistas pretendiam instalar na Europa. (BERGEN, 2005, p.269)

Conclusão

Desta forma, podemos perceber que os alemães étnicos foram peça fundamental
utilizada pelo discurso nazista a fim de justificar suas pretensões para a política externa
alemã. Assim, tentamos observar nesse trabalho em que medida tanto a noção do que é
ser alemão étnico, e por tanto a definição do grupo de alemães étnicos no exterior
(Volksdetschen), quanto a melhor estratégia política para lidar com esse grupo pode ser
observada a partir da análise do discurso propagado pelo líder nazista, mesmo antes de
assumir o poder com o NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei), em
1933.

183
O tratado é duramente atacado, e visto por muitos alemães como uma grande humilhação. Segundo
Stackelberg, o tratado é um meio termo entre os agressivos interesses francês em enfraquecer o máximo
possível a Alemanha e o principio de autodeterminação. Em questões de território, a Alemanha foi obrigada
a devolver a Alsácia e a Lorena para à França, e perde boa parte do seu território leste. A partir de antigas
possessões alemãs foi “recriada” a Polônia, que agora tinha acesso ao mar. À Polônia foi concedida ainda
parte da Silésia. Ver STACKELBERG, Op. Cit..p.102.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

403
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Documentação

25 Points of the Nazi Party. Disponível em< http://www.va-


holocaust.com/documents/25Points.pdf >.Acesso em 20 de set. 2016
HITLER, Adolf, Mein Kampf. Hurst and Blackett LTD, 1939
Bibliografia

ARENDT, Hannah. Imperialismo. In: As Origens do Totalitarismo. Editora Companhia


das Letras, 2013.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade, racismo e extermínio II, In: Modernidade e
holocausto. Trad. Marcus Penchel, Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BERGEN, Doris L., Tenuousness and Tenacity: The Volksdeutschen of Eastern Europe,
World War II, and the Holocaust. In: The Heimat Abrod. Krista O’Donnell,
Renate Bridenthal, Nancy Reagin, (Org.), University of Michigan Press, 2005
CIENCIALA, Anna M., Poland and the Western Powers 1938-1939: A Stady in the
Independence of Eastern and Western Europe. Londres: Routledge & Kegan
Paul, Toronto: University of Toronto Press, 1968.
ELIAS, Norbert. Da Sociogênese dos Conceitos de "Civilização" e "Cultura", In: O
processo civilizador, Trad. Edmund Jephcott, Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed, 1994.
MORAES, Luís Edmundo de Souza. Os Nacionalismos Alemães: do Liberalismo ao
Nacionalismo Excludente. In: A experiência nacional: identidades e conceitos
de nação da África, Ásia, Europa e nas Américas. LIMONIC, Flávio,
MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (org.) - 1º ed.- Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2017.
______., Racismo e Higiene Racial no Nacional-Socialismo: Recusa da Modernidade?.
In: Tradições e Modernidades. AARÃO, D.R., MATTOS, H., OLIVEIRA, J.P.,
MORAES, L.E.S., RIDENTI, M.(org) Rio de Janeiro, Editora FVG, 2010.
ÖZKIRIMLI, Umut. “What is Nationalism?” In: Contemporary debates on
nationalism: A critical engagement. New York: Palgrave Macmillan, 2005.
RENAN, Ernest. O que é uma nação. Revista Aulas: Unicamp, São Paulo, v. 4, 1997.
STACKELBERG, Roderick. A Alemanha de Hitler: origens, interpretações, legados.
Trad. A. B. Pinheiro de Lemos, Rio de Janeiro: Imago, 2002.
STEINHART, Eric C. Introduction, In: The Holocaust and the Germanization of Ukraine.
Cambridge University Press, 2015

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

404
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

WIEVIORKA, Michel; PEREIRA, Miguel Serras. O Racismo: Uma Introdução. Trad.


Fany Kon. São Paulo: Perspectiva, 2007.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

405
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O anarquismo sem adjetivo: a trajetória libertária de Angelo Bandoni entre


propaganda e educação

BRUNO CORRÊA DE SÁ E BENEVIDES


Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), bolsista CAPES

Germinando o anarquismo – Itália


Angelo Bandoni, nasceu em 2 de julho de 1868 em Bastia, uma cidade localizada
ao norte da ilha da Córsega na região do mar Mediterrâneo. A ilha da Córsega, até o ano
de 1769, sofreu grande influência política de diversos reinos, principalmente os italianos
ainda não unificados, quando a partir desta data passou a pertencer ao domínio da França
(REY, 2008: 5). Essa informação possui grande relevância, na medida em que demonstra
ser Bandoni francês de nascimento, mas de cultura italiana.
Apesar de ter nascido na Córsega, Bandoni tinha origem italiana por parte materna
e paterna, pois ambos eram de Livorno. Pelo tempo que viveu em Bastia, é bem provável
que fosse bilíngue, sendo conhecedor tanto do francês (talvez o corso) quanto do italiano.
Após o nascimento de Angelo, a família Bandoni viveu na ilha francesa por mais 18 anos,
quando ele, seu pai (Giovanni Bandoni) e seu irmão migraram em direção à Itália.
De Bastia, a família Bandoni chega à cidade de La Spezia e se estabelecendo na
região no ano de 1886. A trajetória de Angelo na Itália é um conjunto de “idas e vindas”.
No momento em que aporta na península itálica, o anarquismo estava fervilhando e sofria
intensa repressão por parte das autoridades italianas. No final do século XIX, o país era
possuidor de uma massa trabalhadora ainda predominantemente agrária e artesã, que
passava por grandes dificuldades e uma miséria crescente. O processo de industrialização
na região norte do país e as periódicas crises econômicas geraram um expurgo de
proletariados desempregados provocando uma profunda desigualdade social e entre
regiões (Sobre a Itália na segunda metade do XIX, ver: BIONDI, 2011: 39-40 e
HOBSBAWM, 2013: 183-184, para uma compreensão do universo proletário neste
mesmo período).
Tais condições favoreceram o desenvolvimento do movimento anarquista,
sobretudo nas regiões da Toscana (seu berço), Firenze, Prato, Livorno, Massa, Carrara e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

406
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

dali foram ampliando o seu raio de propagação por toda a península até 1898 (LEVY,
1999: 7), quando experimentou o seu processo de enfraquecimento em razão de uma
intensa repressão. Fator preponderante no desenvolvimento dos ideais libertários foi a
passagem de Bakunin na Itália entre os anos de 1864 a 1867, cujos ensinamentos
colaboravam na formação de dois dos maiores expoentes do anarquismo italiano – Errico
Malatesta e Carlo Cafieiro (PERNICONE, 1993: 3-4).
Segundo Carlo Romani, uma das características essenciais do proletário italiano
do final século XIX foi o estabelecimento de um nexo entre o pensamento e a ação, onde
a camada mais baixa do proletariado, os braccianti (trabalhadores, jornaleiros ou boia-
fria), em “contato com um discurso teórico do socialismo, apropriou-se gradativamente
das premissas teóricas anarquistas rejeitando, porém, as práticas de luta da pequena
burguesia”. Ainda segundo o autor, o modelo de reação adotado por esse novo
contingente anarquista contra a “exploração de quem os dominava passou a ser
sistemática: a realização de furtos campestres e o incremento dos bandos armados”
(ROMANI, 2002: 32). Essa perspectiva justifica

os incêndios e os atos de sabotagem como fazendo parte de uma ação


coletiva coordenada e não mais somente de práticas individuais
movidas pela fome e desespero. É dessa união entre as práticas isoladas
adotadas pelos braccianti, com a teoria que sustenta o discurso libertário
de ação direta, que surge um embrião socialista não legalitário entre
estas camadas despossuídas da população (ROMANI, 2002: 32).

Por consequência, duas vertentes do anarquismo na Itália se desenvolveram. O


individualismo, aqui incluídos os insurrecionalistas, já desde a década de 1870 quando da
perseguição aos trabalhadores internacionalistas após o fim da Comuna de Paris, e o
chamado anarco-comunismo, a partir da concepção originária de Kropotkin e muito
defendido por Malatesta desde seu regresso da Argentina ao final da década de 1880.
Como a corrente individualista foi mais forte até quase o final do dezenove, percebe-se
certa proximidade de Angelo Bandoni com esta vertente, tendo em vista algumas de ações
à época de sua estadia na Itália. E que ações foram essas?
O jovem Bandoni não tinha endereço e nem destino certo, transitando por distintos
lugares da costa tirrênica norte italiana. Todos esses sítios inclusive sob grande influência

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

407
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

do anarquismo. Depois de registrar a sua primeira aparição em La Spezia (1886), os


registros policiais apontam que havia sido preso na comuna de Lucca (1887), na região
da Toscana, por contrabando de moeda falsa permanecendo privado de sua liberdade até
final de 1890. Tendo cumprido a sua pena, Bandoni retorna pela segunda vez à La Spezia.
No mesmo ano que foi posto em liberdade, Bandoni foi condenado a cinco anos
de reclusão por furto, roubo e uso de documento falso. Só que desta vez cumpriu pena na
Argélia, colônia administrada pelo Estado da França, já que era francês nato. Em 1895,
após ter saído da prisão, retorna pela terceira vez a La Spezia, ocasião em que foi
novamente preso (por nove meses) e foi definitivamente expulso da Itália. Entre os anos
de 1895 a 1900 há divergências nos registros policiais. Uma versão menciona que durante
este período migrou clandestinamente para a Argentina, retornando à Itália anos depois.
A segunda versão diz que veio para o Brasil e posteriormente retorna à comuna de La
Spezia.
Apesar de tal divergência, cabe chamar a atenção para o grande número de delitos
praticados por Bandoni. Na história do anarquismo, tanto na Itália quanto em
determinadas ocasiões no Brasil, era comum ao militante anarquista, sobretudo quando
adepto da vertente individualista, valer-se da prática do furto justificado como ação em
prol de uma sociedade “na qual será abolido o privilégio da propriedade privada”
(ROMANI, 2002: 40-42).
Em maio de 1898, uma forte onda de repressão assolou os anarquistas. Com a
deflagração da revolta contra o aumento do pão, as forças do rei Umberto I acertaram o
cerne do movimento libertário na tentativa de reprimir os “subversivos”. Desta forma,
iniciou-se uma sequência de expulsões e prisões por todo o país. Além disso, foi
necessário empurrar essa massa proletária para um lugar distante e amenizar as tensões
internas, o que foi providenciado pelo governo italiano através da imigração em massa
para a América (LEVY, 1999: 6). Foi exatamente nesse contexto conflitante e de grande
repressão, que Bandoni teve a sua expulsão decretada.
Segundo as informações policiais da prefeitura de Livorno, Bandoni era um
sedicente professore, ou seja, que dizia ser professor apesar de não ser ou não ter a
formação, contudo é uma questão embaraçosa entender como e onde aprendeu a ler e a
rabiscar as primeiras letras do alfabeto.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

408
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Durante o período em viveu na Itália, possivelmente Angelo Bandoni tenha tenha


aprendido a ler e a escrever sob uma série de tentativas e erros. Por meio de periódicos e
panfletos que circulavam entre a massa proletária, beneficiando-se, ainda, do contato com
outros ácratas alfabetizados e adquirindo um conhecimento sobre cultura geral em
enciclopédia e livros clássicos de escritores libertários, pouco a pouco foi forjando-se
como anarquista.
Esse primeiro contato com a escrita e a leitura que possivelmente ocorreu durante
os anos em que transitou por diferentes regiões do norte da Itália, somado a um
oportunismo, visto que no Brasil encontrou solo fértil e pouco explorado, serão encarados
aqui como elementos que determinarão sua ação anarquista como editor e educador neste
país.

Ação libertária no Brasil


No dia 05 de maio de 1900, Angelo Bandoni aportou no porto de Santos, no Estado
de São Paulo, a bordo do vapor Città di Genova. Veio sozinho em busca de novos rumos
na América. Tinha apenas 30 anos e do Brasil jamais se mudou, permanecendo no país
por mais de 45 anos.
Diferente de inúmeros outros imigrantes de origem italiana que penetraram no
solo brasileiro, Bandoni não veio “fazer a América” em busca de novas oportunidades de
trabalho e prosperidade (TETI, 2001: 576). Teria vindo, então, ajudar na disseminação da
anarquia nos trópicos, já que o movimento estava em franca expansão? Bem, talvez. O
mais certo é que o Brasil serviu de refúgio, pois já havia sido condenado à pena de prisão
pela justiça francesa e italiana, sendo inclusive expulso da Itália. Sem rumo e sem direção,
o jeito foi apostar no continente americano.
Quando chegou ao país, residiu em uma área rural na zona oeste do Estado de São
Paulo, Água Virtuosa (ANTONIOLI, 2004). Possivelmente nesse momento deve ter
trabalhado no campo como colono agrícola, fenômeno muito comum junto aos italianos
recém-chegados ao país no final do oitocentos. Em um segundo momento, muda o local
de sua residência para o centro urbano paulistano, mais especificamente no bairro do Bom
Retiro (região onde abrigou grande quantidade de imigrantes italianos).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

409
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A escravidão havia sido recentemente abolida (1888) e a República acabara de ser


proclamada (1889) quando adentrou ao país. O parque industrial nacional ainda era muito
incipiente e se restringia ao Estado de São Paulo e Rio de Janeiro. Quer dizer, o
movimento de trabalhadores operários ainda estava germinando. Portador de certo capital
libertário adquirido no exterior, assim como diversos militantes, Bandoni contribuirá
ativamente na formação da massa trabalhadora organizada, sobretudo propagando as
ideias anarquistas.
As suas ações libertárias tiveram maior ênfase na propaganda e na informação dos
trabalhadores. As práticas mais “subversivas”, aquelas cometidas no estrangeiro, haviam
sido deixadas para trás. Entrava em cena agora um novo Bandoni, mais intelectualizado
e maduro. Tanto é assim, que durante o período em que esteve no Brasil, escreveu em
diversos periódicos e também foi responsável pelas edições de alguns outros que
ganharam notabilidade. Além disso, realizou conferências, organizou escolas e ainda teve
tempo para escrever poesias.
A título de conhecimento, cabe realizar um breve panorama cronológico dos seus
escritos. Sua ação anarquista como articulista é intensa desde os meses em que pôs os pés
em solo brasileiro. Em novembro de 1900 assina alguns artigos no periódico Palestra
Social, cuja direção pertencia ao anarquista Tobia Boni. No ano seguinte, em maio de
1901, realizou a sua primeira conferência no Brasil, Ragio e Amore. Naquele mesmo ano,
atua na formação de Circolo Educativo Libertario Germinal, o qual realiza no dia 21 de
julho a conferência La Protesta Umana, que inclusive veio a ser publicado como o seu
primeiro opúsculo. Produto do círculo libertário Germinal, em fevereiro de 1902, Bandoni
funda um periódico com o mesmo título, exercendo a sua direção até a edição de n.11,
quando Duilio Bernardoni o substitui nessa função. Bandoni volta a dirigir o periódico (a
partir da edição n. 1 do ano III) até março de 1904, quando finalmente o jornal deixa de
circular.
Em outubro de 1902, Bandoni reaparece como redator do suplemento do periódico
Germinal – La Gogna, que possuiu apenas um único número. Em novembro do mesmo
ano realiza uma terceira conferência em homenagem aos Mártires de Chicago, o que
segundo consta, contou com participação de cerca de oitenta expectadores. Dessa
conferência, resultou a publicação de um segundo opúsculo, I Martiri di Chicago. Depois
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

410
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

dessa segunda conferência, Bandoni ainda realizou mais três outras: Quatro fasi dela
Protesta Umana, Pro e Contra L’esistenza di Dio e, por fim, Egoismo e Altruismo.
Algumas delas são propagandeadas nas páginas do famoso jornal O Amigo do Povo do
anarquista Neno Vasco.
A partir de 1904, contribuiu recorrentemente nas páginas do implacável jornal
editado por seu grande companheiro de luta Oreste Ristori, o La Battaglia (ROMANI,
2002: 177). Neste grupo, Bandoni passou a escrever ao lado de anarquistas que tiveram
grande atuação na imprensa libertária. Além do próprio Ristori, teve contato com o antigo
amigo Duilio Bernardoni, Tobia Boni, Alessandro Cerchiai e Gigi Damiani. Quando o La
Battaglia chegou a seus momentos finais (1912), passa a ser editado sob outro nome – La
Barricata, o qual teve sobrevida até outubro de 1913. Bandoni também participou como
redator em algumas edições.
Em julho de 1913, faz presença no periódico organizado pelo anarquista
Alessandro Cerchiai, La Propaganda Libertaria. Dois anos depois, em 1915, Bandoni
organizou o periódico Guerra Sociale, que ousaria fazer às vezes do La Battaglia de
Ristori. Foi diretor-responsável até a edição de n. 16, quando Gigi Damiani assume a
direção. Este jornal durou até o ano de 1917 e teve papel crucial na organização da greve
geral de São Paulo em 1917. No ano de 1919, editou o jornal Alba Rossa, contribuindo
até a edição de n. 11. O jornal teve breve duração, intercalada por sucessivas interrupções,
encerrando as suas atividades definitivamente em 1934. Bandoni havia deixado o Alba
Rossa em 1919 para dar prosseguimento ao seu antigo periódico – o Germinal!, que
encerra no mesmo ano. Seu último escrito que se tem conhecimento é o quarto opúsculo
intitulado, La Fatalità Storica dela Rivoluzione Sociale, publicado em 1921.

“Antiorganizador”?
De acordo com uma historiografia sobre o anarquismo desenvolvida até a década
de 1980, as correntes anarquistas dividem-se, grosso modo, em individualistas e
associacionistas. Enquanto os “primeiros, genericamente, rejeitavam toda e qualquer
forma de organização política como instrumento de ação”, os segundos entendiam ser
crucial “a existência de uma estrutura organizativa mínima dentro da sociedade, sem que
esta implicasse em relações de autoridade e hierarquia” (ROMANI, 2002: 40-42).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

411
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No tocante às tendências associativas do anarquismo, podemos localizar duas


correntes que passaram a ser conhecidas como anarco-comunista, com forte aproximação
aos aportes teóricos de Kropotkin e Malatesta; e uma segunda que utilizava a organização
sindical como tática de luta, e foram muito influentes no Brasil, especialmente no Rio de
Janeiro, onde editaram o periódico A Voz do Trabalhador. Em São Paulo, a forte tradição
italiana no movimento anarquista e a divisão no país de origem entre anarquistas nos
sindicatos, tese defendida por Malatesta e Luigi Fabri, e sindicalistas revolucionários,
prática rechaçada pelos anarquistas italianos até 1912, ano de fundação da USI, Unione
Sindacale Italiana, devido à ascendência do PSI (Partido Socialista Italiano) sobre esses
sindicalistas, repercutiram no debate paulista sobre a organização ou não dos anarquistas
dentro dos sindicatos. Basicamente, a principal diferença entre esses dois grupos diz
respeito às suas concepções acerca da pertinência da função dos sindicatos para o
desenvolvimento de um processo revolucionário (ANTONIOLI, 2014. Ver o posfácio de
René Berthier).
Em que pese tais considerações, há um esforço dos especialistas, tal qual um
naturalista-botânico do século XVIII habilidoso na arte da taxonomia, em catalogar os
militantes em vertentes, e dessa tendência classificatória as ações de Bandoni não ficariam
de fora. Isabelle Felice, por exemplo, definiu “o professor” como um antiorganizador
clássico em razão da sua constante crítica em relação ao “aspecto negativo da organização
operária” (FELICI, 1994: 134). Tem razão a autora, pois o próprio Bandoni, em seu jornal
Germinal defendeu que “estruturadas como estão, as organizações [sindicais] não podem
resultar em nada de concreto, pois as reuniões acontecem com pouca frequência e
raramente leva a qualquer debate sério” (Germinal, a. I, n. 16, 4 outubro de 1901).
Em razão de tais críticas tal perspectiva poderia levar a um julgamento precipitado
ao tentar definir Angelo Bandoni como sendo um anarquista avesso a qualquer forma de
organização, e por vezes individualista. Entretanto, uma análise de sua ação anarquista
revela um afastamento exclusivamente em relação às organizações verticais e
centralizadas, como sindicatos (Guerra Sociale, n. 6, 27 de novembro de 1915, p. 4),
partidos e outras que tendem à centralização sem, contudo, rejeitar uma organização
mínima dentro do movimento operário.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

412
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Deste modo, por diversas vezes o encontramos envolvido na formação de círculos


e de escolas libertárias, realizando inclusive solicitações burocráticas perante a
Administração Pública para a concessão de licença de funcionamento dessas
organizações. Tais percepções contribuíram para repensar essa imagem antiorganizadora
de Angelo Bandoni modelada pela historiografia. Por outro lado, também rejeitamos a
posição que identifica as suas críticas às organizações sindicais como elemento que o
ligasse ao insurrecionalismo defendido por Luigi Galleani (VAN DER WALT;
SCHMIDT: 2009), posto que o antissindicalismo de Bandoni é mais um reflexo da
desconfiança gerada pela experiência sindical italiana (lugar hegemonizado inicialmente
no fim do século XIX pelo socialismo reformista) do que propriamente uma aproximação
às ideias galleanistas.
Pensando nisso é que o termo antiorganizador utilizado neste tópico e
supostamente atribuído ao Bandoni foi grafado com aspas, possibilitando repensar a sua
posição entre os libertários. Classificar Angelo Bandoni, ou qualquer outro ácrata, dentro
de uma vertente de maneira rígida, inexorável e até mesmo teleológica dentro de sua
trajetória no movimento proletário é, no mínimo, arriscado, principalmente se o próprio
militante não buscou realizar uma tarefa de auto adjetivação. Com base nessa perspectiva,
acredita-se que a melhor descrição de Angelo Bandoni seja a de um “anarquista sem
adjetivos”, na medida em que o próprio Bandoni não definiu rigidamente a sua posição
dentro do anarquismo, apesar das críticas feitas às organizações sindicais.
Durante a sua vivência no Brasil, como dito, Bandoni tendeu a assumir uma
posição não muito bem definida dentro do anarquismo. Neste sentido, inúmeras vezes se
declarou contrário à tese que dizia ser obrigatória a organização dos anarquistas em torno
de uma organização sindical (o que o aproximaria para uma vertente anti-
organizaconista). Contudo, em seus textos, verificam-se fortes traços do comunismo
anárquico malatestiniano, na medida em que prosseguiu como um grande defensor da
solidariedade anárquica, defendendo que o anarquismo do ponto de vista econômico
deveria seguir as bases do comunismo (ou seja, uma tendência mais comunitária), e, no
plano político, necessitaria trilhar pelos ideais libertários (La Battaglia, n. 11, 4 de
Setembro de 1904, p. 2 e 3).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

413
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Diante disso, a posição de Bandoni dentro do movimento libertário implica


realizar uma distinção entre aqueles contrários aos sindicatos, mas que não eram adeptos
integralmente do individualismo italiano (seguidores, por exemplo, de Luigi Galleani, e
que serão denominados insurrecionalistas).

“O Professor”
Além de grande articulista, Bandoni também tem sido reconhecido por suas ações
no campo da educação libertária. A sua prática pedagógica, que vai se aperfeiçoando e se
profissionalizando com o decorrer do tempo de estadia no Brasil, ganhou
reconhecimento, inclusive, no interior da comunidade italiana a qual fez parte.
Após ter-se deslocado do interior paulista em direção ao centro urbano da capital
paulistana, Bandoni passa a ser reconhecido pela alcunha: o professor, tamanho o seu
vínculo com a arte do ensino (GATTAI, 1994: 132). Essa experiência pedagógica foi
sendo adquirida na prática cotidiana e na aplicação de um método específico baseado em
suas leituras.
Já nos primeiros anos de Brasil, o professor desenvolveu algumas, se não a
primeira, experiências de escolas inspiradas nas concepções libertárias. Foi no então
bairro em que residia – Bom Retiro – que fundou a Escola Libertária Germinal. A notícia
sobre a escola reverberou pela imprensa anarquista, que inclusive passou a noticiar
informações que revelam alguns detalhes de seu funcionamento e localização (O Amigo
do Povo, n. 63, de 26/1/1904).
O objetivo das escolas adeptas às concepções libertárias era ocupar um espaço
onde o poder público ainda não atuava, já que a educação pública, nos primeiros anos da
república, resumia-se a algumas “escolas existentes nas áreas burguesas da cidade que
dificilmente conseguiam ser frequentadas pelos filhos dos operários” (ROMANI, 2002:
179). Agindo em outra zona onde ação Estatal era omissa, a Igreja oferecia o seu ensino
clerical pago para a parcela restante da burguesia (CODELLO, 2007: 232).
Entretanto, não se tratou de qualquer modelo educacional. Reinava entre o
proletariado adeptos dos ideais libertários a educação racional. Este modelo por sua vez
representou um ensino de caráter científico, empírico, onde os anarquistas “concebiam a
escola como uma comunidade que deveria estar organizada segundo os valores
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

414
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

fundamentais de uma sociedade libertária” (GALLO, 2012: 10). Ou seja, igualdade,


liberdade, solidariedade, anticlericalismo e antiestatal deveriam ser os pilares da
comunidade escolar. Além disso, as escolas racionais caminharam na vanguarda e
inovaram implementando modelos de ensino que possibilitavam o convívio de crianças
de sexos diferentes na mesma sala de aula.

Momentos Finais
Os últimos momentos da vida de Bandoni não são precisos. Os seus artigos vão
pouco a pouco desaparecendo das páginas da imprensa anarquista remanescente. As suas
pegadas somem, mas alguns de seus rastros ainda são encontrados até meados da década
de 1940. Permanece morando no mesmo bairro (Bom Retiro) com a sua esposa. O local
de seu falecimento também é desconhecido. Ao que se sabe, não morreu como um mártir
como tantos outros anarquistas (ANTONIOLI, 2004). Provável que tenha deixado a vida
pelo avançar da idade, o corpo cansado e vencido pela velhice, mas com a mente convicta
de seu anarquismo.
Os anos 1940 no Brasil foram exigentes com os libertários. Encontravam-se
espremidos; de um lado o trabalhismo varguista e a repressão do Estado Novo; do outro,
o comunismo ganhava terreno entre a classe proletária. Diante desta realidade, certamente
a sua trajetória e seus escritos à época não foram reconhecidos por seus pares e caíram no
esquecimento dos frios dados estatísticos. Assim, acabou não sendo lembrado nem pelos
anarquistas organizados que sobraram, nem pela atual escrita da história (ou
historiografia) sobre o respectivo tema.

Referências
Jornais
Alba Rossa, ano I, n. 7, 8 de março de 1919.
O Amigo do Povo, n. 63, de 26 janeiro de 1904.
Germinal, ano I, n. 10, 13 de julho de 1902.
La Battaglia, n. 137, de 15 de setembro de 1907.
Guerra Sociale, n. 6, 27 de novembro de 1915.

Documentos Consultados

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

415
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Archivio Centrale dello Stato Roma, Casellario Politico Pentrale (cpc). Bandoni Angelo,
b. 305, f. 75150.
Arquivo Nacional, Serviços de polícia marítima, aérea e de fronteiras dos estados.
Recadastramento de estrangeiros, São Paulo, 14-12-1944.
Arquivo Nacional. Serviços de polícia marítima, aérea e de fronteiras dos estados.
Relação de passageiros do vapor città di genova, Santos, 09-05-1900.
Départamento de la haute-Corse. Etat civil. Registre d’état civile: naissances, Bastia, 2 e
225, 1868.

Bibliografia
ANTONIOLI, Maurizio. Bakounine, Entre syndicalisme revolutionnaire et anarchisme.
Paris: Ed. Noir et rouge, 2014.
______ et al. Dizionario biografico degli anarchici italiani. 2 volumes. Pisa: BFS, 2004.
BIONDI, Luigi. Classe e nação. Trabalhadores e socialistas italianos em São Paulo,
1890-1920. Campinas: Ed. Unicamp, 2011.
CODELLO, Francesco. “A boa educação”: Experiências libertárias e teorias anarquistas
na Europa, de Godwin a Neill. Vol. 1: a teoria. São Paulo: Imaginário, 2007.
FELICI, Isabelle. Les italiens dans le mouvement anarchiste au Bresil: 1890-1920. Tese
(doutorado) - Universitè de la Sorbonne Nouvelle-Paris III. Paris, 1994.
GALLO, Sílvio. Anarquismo e educação libertária: os desafios para uma pedagogia
libertária hoje. Revista de Ciências Sociais, n. 36, p. 169-186, abril de 2012.
GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. Memórias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record,
1994.
HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios (1875-1914). 16ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2013.
LEVY, Carl. Gramsci and the Anarchist. New York: Berg, 1999.
PERNICONE, Nunzio. Italian Anarchism, 1864-1892. New Jersey: Princeton Legacy
Library, 1993.
REY, Didier. Historique des migrations en Corse depuis 1789. In: PESTEIL, Ph (Org.).
Histoire et mémoires des immigrations en région Corse. Corte: Université de Corse –
Pascal Paoli, 2008
ROMANI, Carlo. Oreste Ristori. Uma aventura anarquista. São Paulo: Annablume, 2002.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

416
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

TETI, Vito. Emigrazione, alimentazione, culture popolari. In: BEVILACQUA, Piero; DE


CLEMENTI, Andreina; FRANZINA, Emilio (a cura di). Storia dell’emigrazione
italiana: partenze. Roma: Donzelli Editore, 2001.
VAN DER WALT, Lucien; SCHMIDT, Michael. Black Flame. The revolutionary class
politics of Anarchism and Syndicalism. Oakland (CA): AK Press, 2009.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

417
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O problema fronteiriço e as relações Brasil-Argentina entre o final do Império e o


início da República

BRUNO PEREIRA DE LIMA ARANHA 184


Doutorando em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(UNIRIO)

O Brasil e a América Latina


Durante o século XIX, em meio ao contexto da emergência das novas nações
americanas, o Brasil era um caso peculiar em meio aos seus vizinhos. Era a única nação
independente da América onde a monarquia continuou vigente após o fim do domínio das
185
coroas europeias. Outro fator peculiar era que a dinastía reinante no país era uma
continuação da linhagem europeia dos Habsburgos e dos Braganças. Sendo assim, o
Brasil era visto por seus vizinhos como um tipo de continuidade do imperialismo europeu,
considerado como uma possível ameaça às nações independentes do continente.
Simón Bolívar, em seu ideário de construção de uma grande nação sul-americana,
não enxergava o Brasil como parte desse projeto. Para ele, a nação imperial representava
os interesses da Santa Aliança, uma coligação que defendia os intereses das monarquías
europeias, capaz até mesmo de recolonizar as nações americanas libertadas do domínio
europeu. O fato de o Império Brasileiro possuir fronteiras com todas as nações hispânicas
representava uma ameça, um perigo real de expansão sobre seus territórios. (ALEIXO,
1983, p. 12)
O plano de unificação das nações hispânicas de Bolívar não deu resultado. Anos
depois, em 1850, o intelectual e político argentino Domingo Faustino Sarmiento planteou
um projeto de nação – que igualmente não deu resultado efetivo - onde haveria uma
releitura do antigo Vice Reino do Prata, onde seria adotado um regime republicano. Para
ele, somente a configuração de uma grande nação platina, composta pela Argentina,

184
Este texto é parte de uma pesquisa, ainda em desenvolvimento, realizada em conjunto com Maximiliano
Zuccarino da Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires-Argentina,o qual registro
meus profundos agradecimentos.
185
O México foi o único outro caso onde existiram dois breves períodos de governos monárquicos: 1821-
1823 (Imperador Agustín de Iturbide) e 1863-1867 (Maximiliano I). O segundo e último imperador
pertencia à Dinastidas dos Habsburgos, a mesma que reinou no Brasil durante 67 anos. O caso brasileiro
foi único na América no que se refere a um Império de tamanha longetividade temporal.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

418
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Uruguai, Bolívia e Paraguai, poderia fazer frente ao Império Brasileiro (SARMIENTO,


1850, p. 18)

O Brasil torna-se República


Após um período de 67 anos sob um sistema monárquico, o Brasil tornou-se uma
República em 1889. Tratava-se um novo projeto de nação, mas que no que tocante à sua
Política Exterior, não deixou de aspirar às pretensões imperialistas do período
monárquico. O maior símbolo dessa continuidade é que o Barão do Rio Branco, Ministro
das Relações Exteriores de quatro governos republicanos, era uma monarquista convicto,
tendo, inclusive, sido nomeado conselheiro do Império por Dom Pedro II nas vésperas do
Golpe Republicano. O diplomata também evocava a República como uma continuidade
da “civilização” do Império, herdeiro das tradições europeias, em contraposição as
“repúblicas bárbaras” do lado castelhano do continente, resultado da fragmentação e
“barbárie” do antigo Império Espanhol. O Barão usou esse argumento para justificar o
alinhamento brasileiro com os Estados Unidos, "o Império do Norte", em contraposição
a uma possível aliança com os países vizinhos atrasados. (MELLO e SILVA, 1995, p, 97-
98)
No que respeitava a sua política exterior, o Barão do Rio Branco planteava uma
posição de potencia regional para o Brasil. Reconhecia a liderança dos Estados Unidos a
nível continental, e, mediante uma aliança com esta nação, buscava assegurar uma
liderança para o Brasil a nível sul-americano. Parte desta política girava em torno da
consolidação das fronteiras da nação. O Barão alcançou o posto de Ministro das Relações
Exteriores após atuar como advogado da delegação brasileira em duas vitórias no tocante
a dois litigios fronteiricos: em 1895 com a Argentina (questão de Misiones) e em 1900
com a França (questão das Guianas).
O maior nome da diplomacia brasileira era intimamente ligado às maiores figuras
do período monárquico, no entanto, essa não era a posição de grande parte da classe
militar que apoiou o Golpe Militar em 1889, muito pelo contrário, olhavam para a
Monarquia como um passado de atraso a ser superado. A tarefa de assegurar as fronteiras
e de consolidar a “grandeza” do Brasil estaria nas mãos dos jovens republicanos e não
mais do Império, cujo projeto teria sido falho.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

419
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Resulta importante lembrar que, a questão da ocupação das fronteiras, também foi
um tema importante para o governo imperial. Em 1857, Jerônimo Francisco Coelho,
Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Guerra do Império, lançou a ideia de
uma “colonização militar” para ocupar esses espaços “vazios” de fronteira com os antigos
domínios castelhanos. A fundação de colônias militares foi parte de um amplo projeto, de
modo que na década de 1850 foram criadas 21 colônias militares, espalhadas de norte a
sul do Brasil. Na região sul, na parte limítrofe à Argentina, foram criadas as seguintes
colônias militares: Chopim (1859), Alto Uruguai (1879), Chapecó (1882) e Iguaçu
(1889). (NUNES, 2012, p. 1)
A Argentina respondeu o Império com a criação do Território Nacional de
Misiones, um território controlado diretamente por Buenos Air, localizado exatamente na
área de litígio fronteiriço com o Brasil (MONIZ BANDEIRA, 2004, p. 44). Sendo assim,
o olhar sobre a fronteira resulta num problema chave para entender os fatores internos
que influenciaram na política exterior brasileira em relação à Argentina entre o final do
Império e o início do período republicano. Segundo Rubén Perina, as relações exteriores
de uma nação somente podem ser entendidas a partir de seus fatores internos. (PERINA,
1988). No caso brasileiro, ocupar os espaços “vazios” internos do país era de fundamental
importancia para que o problema “externo” não resultasse em uma possível ameaça. Ou
seja, tratava-se da possibilidade de um avanço das nações vizinhas sobre territórios que
os republicanos defendiam que fossem essencialmente brasileiros.
Nesse sentido, não se tratava apenas de um litígio de fronteira com outros países.
Era um proceso de um contínuo avanço da ocupação do território brasileiro no sentido
oeste, uma vasta região que ainda carecia de uma presença efetica do Estado, sendo um
processo semelhante ao da ocupação do oeste dos Estados Unidos durante o século XIX.
Nesse caso, partindo dos pressupostos de Frederick Jackson Turner, a fronteira não é
simplesmente uma linha demarcatória, trata-se de um processo onde ocorre todo uma
problemática de ocupação da terra. (TURNER, 1893)
No caso brasileiro, o avanço desta fronteira interna fatalmente iria chocar-se com
a fronteira externa. No que tocava as questões fronteiriças com a Argentina, os limites
ainda não estavam definidos durante o início da República brasileira. Portanto, para os
militares, ocupar as vastas regiões da região sudoeste do país, significava assegurar os
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

420
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

intereses brasileiros ante uma possível cobiça argentina de dominar o territorio ligitioso,
considerando de vital importância para o novo governo brasileiro.
Levando em conta os fatores internos que influenciaram na política exterior
brasileira do período, cabe perguntar: Quem eram os jovens militares que sustentaram
apoio ao novo governo Republicano?
Para responder a essa questão, é importante apontar para a existência da Escola
Militar da Praia Vernelha, no Rio de Janeiro, então capital do país. Instituição criada em
1857, ainda no período imperial. Passou a ser conhecida como “Tabernáculo da Ciência”
nos anos que antecederam o início da República, justamente porque era nesse espaço que
seus alunos tomaram contato com as ideias científicas de vanguarda, oriundas da Europa.
Tratava-se de um conjunto eclético de ideias cientificistas que iam do positivismo ao
evolucionismo. (ABREU, 1998, p. 71)
O diferencial desta escola residia na valorização do ideal meritocático. Poderia
ingresar nela, qualquer cidadão maior de 16 anos que sabia ler, escrever e efetuar as quatro
operações. Isso já não ocorria nas outras escolas destinadas à “aristocracia de berço”, essa
“sociedade de corte” (ELIAS, 2001) consistía em um modelo onde somente pessoas com
um grande capital social herdado poderia ter acesso às carreiras mais tradicionais, como
era o caso das faculdades de direito. (ABREU, 1998, p.51-52, 67 e 71)
O caso da Escola Militar estava ligado a um contexto não somente nacional, se
tratava de uma demanda global que tocava a modernização dos exércitos. Nesse aspecto,
ganhou importancia as funções técnicas como a do engenheiro, profissão que ganharia
muito prestígio dentro do ambiente militar no final do século XIX. A problemática de
demarcação de fronteiras, atividade importantíssima para os Estados modernos da época,
estava ligada diretamente à atuação dos engenheiros militares. (ABREU, 1998, p. 92)
No entanto, essa era uma área rejeitada pelos bacharéis em direito, o que acarretou
seu preenchimento por pessoas que não fossem de origem “nobre”. Essa geração de
jovens militares se opunha à Sociedade de Corte brasileira, a qual conformava um grupo
relativamente homogêneo por ter uma formação jurídica realizada nas duas principais
escolas de direito do país, localizadas em São Paulo e Olinda. (ABREU, 1998, p. 45)
Muitos alunos da Escola Militar eram oriundos do interior do país. No geral, não
possuíam origem “nobre”, mas enxergavam a Instituição como uma maneira de conseguir
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

421
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

algum tipo de inserção ou alguma oportunidade de conquistar algum trabalho de


relevância na capital. Isso tampouco significava que eram efetivamente parte da elite
militar que estava descontente com o Império. O que cabe salientar é a importância deste
grupo na sustentação ao processo que culminou com a queda do imperador e com a
consequente Proclamação da República.
Esses jovens militares se encarregariam de dar prosseguimento à tarefa de avançar
efetivamente as fronteiras do Estado brasileiro. No caso desta pesquisa, nosso enfoque é
a questão referente à fronteira com a Argentina, localizada entre o oeste dos estados
brasileiros do Paraná e Santa Catarina e o nordeste da província argentina de Misiones.

José Maria de Brito: um militar rumo à fronteira


Em meio à transição entre Monarquia e República, várias expedições e viagens
foram patrocinadas pelo governo brasileiro, em busca de maiores informações e relatos
sobre a área de fronteira entre Brasil e Argentina, ainda pouco explorada, e que, de acordo
com a mentalidade da época, era passível de desenvolvimento econômico. As extensas
áreas dotadas de erva-mate, a paisagem natural e uma vasta área apta para a colonização
chamaram a atenção desses viajantes. Dentra a variada gama de relatos dos viajantes que
se dirigiram para a região, selecionamos para análise, o relato do militar José Maria de
Brito, intitulado Descoberta de Foz do Iguaçu e fundação da Colônia Militar.
O militar era natural do estado do Piauí, mudou-se para a capital do país para
estudar na Escola Militar da Praia Vermelha, o que influenciou diretamente em sua adesão
à causa republicana. Foi membro da Comissão Estratégica de Guarapuava, criada em
1888 pelo Ministério da Guerra do Império com a finalidade de ocupar a região de
fronteira com a Argentina. Essa Comissão foi responsável por fundar a Colônia Militar
do Iguaçu em 1889, localizada na fronteira com a Argentina e com o Paraguai. Cabe
salientar que nessa área, onde o rio Iguaçu desemboca no Paraná (por isso o nome Foz do
Iguaçu), a fronteira já estava delimitada. A área que era objeto de litígio, situava-se a 80
km a leste de colônia.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

422
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Mapa argentino datado de 1882 onde o então Território Nacional de Misiones incluía as áreas a
leste dos rios San Antonio e Pepirí Guazú, equivalentes atualmente às partes oeste dos estados do
Paraná e de Santa Catarina.

Outro ponto importante a enfatizar é que o relato se trata de uma memoria póstuma
sobre os aconteceimento ocorriodos na época. Embora fosse lançado pela primeira vez
em 1938, ainda carregava um teor altamanente influenciado pelo contexto da mudança de
regime no Brasil. O autor teceu pesadas críticas à Monarquia e exaltou o “dever
republicano” de ocupar a fronteira com a Argentina. Para ele, tratava-se de uma nova
política exterior que corrigiria os erros do governo anterior.
O fato de utilizar o termo “descoberta” no título da obra denota o quanto
acreditava estar realizando um tipo de releitura do colonialismo e dos “descobrimentos”
dentro do contexto de seu tempo, seria uma espécie de colonialismo interno praticado
pelas novas nações americanas que buscavam integrar os seus cantos recônditos de
fronteira ao sistema capitalista, o que pode estar associado à própria expansão do

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

423
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

capitalismo e do neocolonialismo praticado pelas nações europeias na África e na Ásia.


(ZUSMAN, 2010) (SERJE, 2005)
Brito se autodenominava como um dos “descobridores” da região, projetava uma
centralidade - baseada no Rio de Janeiro - em relação a uma periferia – região de Iguaçu-
a ser conquistada de maneira efetiva pelo Estado brasileiro. Se o projeto imperial havia
cessado, caberia ao governo republicano levar adiante tal empreitada, sendo assim,
julgava-se um representante nato desse projeto:
Depois (…) da descoberta 186 e fundação da Colônia Militar da Foz do
Iguaçu, é tempo de escrevermos algo sobre estes acontecimentos (…)
O principal móvel que me anima o sentimento, publicando este trabalho
nao é outro senão o de prestar mais um serviço ao meu país (…)
(BRITO, 2005, p. 23-24)

O primeiro capítulo intitulado A Fronteira no fim do Império faz uma


contextualização da área fronteiriça nos momentos prévios à expedição. Se o título já
denota o quanto o final da Monarquia estava próximo, a tônica principal do texto vai no
sentido de atribuir aos militares republicanos o papel de levar adiante o projeto de ocupar
a fronteira e fazer frente à Argentina “por ser um ponto estratégico (…) bem como a
fundação de uma Colônia Militar e a construção de um forte, com capacidade suficiente
para opor obstáculos a nações estrangeiras que (..) tentassem invadir o nosso território.
(BRITO, 2005, p. 29)
Na visão do autor, era essa uma preocupação exclusiva do Ministério da Guerra,
e não necessariamente do governo imperial. Eram os militares que pressionavam o
imperador a desenvolver políticas em relação à fronteira: “(…) cogitavam de influenciar
junto ao Governo Imperial, para fazer estacionar uma flotilha da Marinha Nacional, nas
águas brasileiras, no Majestoso Paraná, a fim de melhor fiscalizar os intereses brasileiros
na região.” (BRITO, 2005, p. 29) Não obtendo éxito nessa questão, o próprio imperador
foi alvo de críticas por parte do militares, conforme aponta Brito: “(…) Pedro II (…) e
especialmente a malfadada política, protelaram a ideia nascente até cair no esquecimento

186
Grifo nosso.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

424
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(…) a ideia da descoberta da Foz do Iguaçu continuou de lado; desapareceu mesmo das
conversas usuais.” (BRITO, 2005, p. 29-30 e 34)
Há que aclarar, uma vez mais, que o relato foi escrito tempos após a queda da
Monarquia, portanto, era um espaço livre para o autor legitimar historicamente o golpe
que findou o Império e estabeleceu a República. Essa é a tônica de todo o primeiro
capítulo da obra, é somente a partir do capítulo seguinte que Brito relata os
acontecimentos da expedição da qual fez parte como sargento. Ainda assim, não deixou
de tecer críticas ao império e enaltecer a Repúbica, que, segundo ele, foi a responsável
por levar o progresso à região. É uma narrativa fortemente influenciada pelo positivismo
característico da época e que influenciou fortemente a classe militar brasileira. O fato de
destacar o tenente da expedição, José Joaquim Firmino, como um eficiente engenheiro,
nos revela uma conotação simbólica de oposição entre a nova classe republicana, que
seria vinculada ao progresso, e a antiga nobreza imperial dos bacharéis:

Em 7 meses e días conseguiu o intrépido tenente Firmino efetuar a


descoberta de tão desejada quão necessária Foz do Iguaçu, que
comodíssimo de uns e a política de outros não haviam permitido antes!
(…) se este fato (ou descoberta) houvesse se realizado em outra época,
quantos zeros acrescentar à direita do total supra? E por quantos meses
seriam necessários multiplicar o número dos que foram empregados no
grande feito?
(…) não houve político que se interesase pela descoberta da Foz do
Iguaçu. Foi preciso a intervenção de oficiais do Exército, para se
realizar o acontecimento que nos ocupamos!
(…) César venceu em combates cruentos, com a espada em punho, ao
passo que Firmino venceu em combates incruentos, com o instrumento
de engenharia na mão, fato nobilitante (BRITO, 2005, p. 48-49 e 55)

Vimos até agora como o contexto da ascenção dos militares provocou uma ruptura
na política brasileira com a mudança do regime de governo. Através do relato de Brito,
detectamos o discurso dos republicanos de menosprezar tudo o que era relacionado à
Monarquia. O autor tinha a intenção clara de transmitir uma mensagem que colocava o
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

425
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

regime republicano como o verdadeiro pioneiro de uma política de efetiva ocupação da


fronteira. Tal afirmação é passível de uma análise crítica, no enatanto, não é nossa
preocupação realizar algo nesse sentido, mas cabe aclarar, conforme já foi visto, que foi
o Império que iniciou tal política através da implementação das colônias militares por
toda a fronteira oeste brasileira, incluindo as quatro que foram construídas junto à
fronteira com a Argentina.
Viajantes argentinos que se dirigiram à Misiones, durante o final do século XIX
atentaram para esse fato. Lamentavam que seu governo não realizasse a mesma política
fronteiriça. É o caso de Juan Bautista Ambrosetti, que registrou o seguinte relato quando
visitou a Colônia Militar do Alto Uruguai:

La Colonia Militar fué fundada por iniciativa del Baron del San Jacob,
Coronel Diniz Dias, quien se empeño con el Gobierno Imperial, siendo
decretada su fundacion en 1879.
El fin de esta Colonia no fuè simplemente la Agricultura, sino mas bien
politico bajo el punto de la Estratejia Militar, segun ellos, pero yo no
veo qué importancia
estratégica puede tener, cuando cerca no hay poblaciones, la Costa
Argentina
desierta é inaccesible (…)
El único beneficio que reporta esa Colonia es empezar á poblar la región
del Alto
Uruguay, honor indiscutible que corresponde á los Brasileros; no por la
prioridad,
sino por la forma que lo han hecho. (AMBROSETTI, 1892, pp. 65-66)

Outro viajante argentino, Florencio de Basaldúa, seguiu essa mesma tônica, o


projeto de ocupação da fronteira, por parte do governo brasileiro, seria um exemplo a ser
seguido pela Argentina, cuja fronteira, todavia, seguia deserta de povoamento e de
civilização:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

426
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Una línea de vapores brazileros navega todo el Alto Ú-guazú, desde


Curitiba, ciudad capital de la província do Paraná, hasta las cercanias
del rio Oiarbide que hoy décimos San Antonio-guazú, donde existen
otras cataratas. El ejemplo progresista de los brazileros merece ser
imitado por los argentinos, cerrando el circuito froterizo con vapores
que testimonien la civilización argentina en las puertas mismas del
desierto. (BASALDÚA, 1901, p. 171)

Voltando ao relato de Brito, nos cabe perguntar: qual era a sua visão a respeito da
presença argentina na fronteira?
O militar revela uma posição contrária ao dos viajantes do país vizinho. Para ele,
eram os argentinos que se faziam presente na fronteira e que tiravam proveito econômico
da região. Outro dado importante, apresentando pelo autor brasileiro, é que as
comunicações entre a costa marítima brasileira e a região de Iguaçu tinha que passar
obrigatoriamente por território argentino. Para realizar uma viagem do Rio de Janeiro até
a Colônia do Iguaçu, era necessário ir por mar até Buenos Aires, em seguida, subir o rio
Paraná até chegar em território brasileiro. O centro urbano mais importante da região era
a cidade de Posadas, capital do então Território Nacional de Misiones. Não existia até
então uma rota terrestre direta entre o litoral brasileiro e a fronteira oeste paranaense. As
comunicações entre Iguaçu e a capital eram realizadas via Posadas: “A partir dessa data
foi possível o tenente Firmino se comunicar com o Chefe da Comissão, via Pozadas,
República Argentina” (BRITO,2005, p. 55)
A preocupação com a presença argentina em territorio brasileiro foi relatada pelo
militar no momento em que chegou a Iguaçu: “Por ocasião da descoberta da foz do Iguaçu
o território brasileiro já era habitado. Existiam no mesmo 324 almas, assim descritas:
brasileiros 9: franceses, 5; (…) argentinos, 95 (…)” (BRITO,2005, p. 57) Logo,
concluímos que a “descoberta” era somente por parte da expedição militar brasileira, já
que a ocupação do espaço já era realizada pelos argentinos, e muito antes pelas etnias
indígenas dos Guaranis e dos Kaingangs.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

427
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O discurso em relação aos argentinos fica ainda mais agresivo quando vem à tona
a questão da exploração da erva-mate. Tratava-se de uma denúncia de um problema que
o novo governo republicano teria que resolver:

Há poucos anos existiam mais de 20 portos na costa brasileira:


atualmente apenas 7, até Mendes! Os demais desapareceram não só por
serem ocupados clandestinamente por estrangeiros, em sua maioria
argentinos (…), que fizeram com o objetivo de explorar as matas
brasileiras somente, como devido à questão da erva-mate na Argentina.
De fato! Estes estrangeiros exploram as mesmas matas por espaço de
36 anos mais ou menos e não deixaram o menor benefício! Como
demonstração de sua passagem deixaram a devastação! Do solo pátrio
apossararam-se, legislaram, impuseram o seu jugo (…) Governavam
com prepotencia e obedeciam com subserviência! Extraíram erva-mate
e madeira transportaram-nas para seus países (…) (BRITO, 2005, p. 80)

Tendo em conta tal contexto, Brito não deixou de enfatizar que, com a ascenção
do novo governo republicano, a fronteira já não estaria mais abandonda. A partir desse
momento, existiria ali, de fato, uma autoridade brasileira. O momento foi registrado
apenas sete días apenas após a proclamação da República, realizada pelo Marechal
Deodoro da Fonseca. Enquando ocorria a mudança de regime, a expedição chegava até a
Foz do Iguaçu:

(…) atingimos a foz do Iguaçu a 22 de Novembro de 1889, dia em que


completamos 69 dias de viagem!
No dia 23 o 1º tenente Vice-Diretor públicou a orden do dia sob n º 1.
Tomou as providências necessárias para que a população iguaçuense e
as repúblicas vizinhas tivessem conhecimento que na foz do Iguaçu já
havia autoridade constituída para os efeitos legais (…)
Eis a verdade histórica. (BRITO, 2005, p. 78-79)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

428
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Por se tratar de um relato póstumo, escrito quarenta anos após a expedição, o


militar salientou, na conclusão da obra, que o governo republicano logrou ter êxito no que
tocava o desenvolvimento da fronteira. Em sua visão, já não existia mais o “problema
argentino”, naquela altura já existiam caminhos que ligavam a região a outros pontos do
Brasil, não havendo mais a dependencia de importar produtos argentinos via Posadas:

Devido ainda ao Governo Federal, nós (…) do oeste paranaense


conhecemos a Aviação, a maior maravilha do século, obra de um
brasileiro – o genial Santos Dumont.
Como sinal de progresso, observamos mais que no período de 1931 a
esta data estabeleceram 12 casas comerciais, 2 máquinas para descascar
arroz, uma para fabricar gelo (…) possui edificios notáveis, como o
Quartel da Companhia do Exército Nacional (…) atestado evidente do
progresso de um povo.
Graças aos agricultores (…) não importamos mais cereais da República
Argentina, conforme acontecia efetivamente antes daquele era.
(BRITO, 2005, p. 90-91)

De certa maneira, o relato do militar reflete algo sobre as relações entre Brasil e
Argentina durante o final do século XIX. O problema do litígio fronteiriço foi resolvido
em 1895, através de uma arbitragem internacional sob o auspício do presidente dos
Estados Unidos, Stephan Grover Cleveland, que arbitrou em favor do Brasil, assinando o
Tratado de Palmas, estabelecendo assim a linha de fronteira que perdura até os dias de
hoje.
Por fim, Brito enfatizou que já não existem mais inimigos na fronteira, no entanto,
citando o militar Floriano Peixoto, segundo presidente da Republica Brasileira (1891-
1894), registrou que sempre é necessário desconfiar de quem está do outro da fronteira:

(…) Do lado do Iguaçu é povoado até os Saltos de S. Maria (…) pela


sua cofiguração geográfica (…) serve de atalaia – contra alguma
investida estrangeira que porventura surgir… Não temos inimigos na
costa, é certo, mas não debemos desprezar o dilema do insigne

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

429
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Marechal de Ferro” – Floriano Peixoto: “Confiar desconfiando


sempre”. (BRITO, 2005, p. 88-89)

Tal afirmação reflete sobre como a problemática do avanço das fronteiras internas
acabou refletindo nas questões externas com o país vizinho. A ocupação da região
fronteiriça poderia desembocar na estabilidade das relações com a Argentina. Era uma
questão de legitimar a presença estatal em um território já arbitrado a favor do Brasil, mas
que ainda carecia de uma ocupação formal, daí resultava a preocupação do então novo
regime republicano. Podemos concluir que a mudança de regime político não mudou a
tônica da problemática imperial de ocupar os espaços internos de seu território, ela apenas
foi potencializada no sentido de garantir os interesses brasileiros na Bacia do Prata.

Bibliografia
ABREU, Regina, O enigma de Os Sertões, Rio de Janeiro: Funarte/Rocco, 1998.
ALEIXO, José Carlos Brandi, “Simón Bolivar e o Brasil”, en Síntese: Revista de
Filosofia, Belo Horizonte, Volume 10, Número 29, pp. 29-35, 1983.
AMBROSETTI, Juan B., Misiones Argentinas y Brasileras por el Alto Uruguay, La Plata:
Talleres de Publicaciones del Museo,1892.
BASALDÚA, Florencio de, Pasado - Presente - Porvenir del Territorio Nacional de
Misiones, La Plata, 1901.
BRITO, José Maria de, Descoberta de Foz do Iguaçu e a fundação da Colônia Militar,
Foz do Iguaçu; Travessa dos Editores, 2005.
ELIAS, Norbert, A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da
aristocracia da corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
MELLO E SILVA, Alexandra de, “O Brasil no continente e no mundo: atores e imagens
na política externa brasileira contemporânea”, em Estudos Históricos, vol. 8, nº 15, Rio
de Janeiro, pp. 95-118, 1995.
MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto, Argentina, Brasil y Estados Unidos. De la Triple
Alianza al Mercosur. Conflicto e integración en América del Sur, Buenos Aires: Grupo
Editorial Norma, 2004.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

430
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

NUNES, Francivaldo Alves, “Aspectos da Colonização Militar no Norte do Império:


Povoamento, segurança, defesa do território e conflitos”, in Revista Brasileira de História
Militar, n. 7, Rio de Janeiro, abril 2012.
PERINA, Rubén, “El estudio de la política exterior y las relaciones internacionales”, in
RUSSELLRoberto: PERINA, Rubén (Orgs) Argentina en el mundo (1973-1983), Buenos
Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1988.
SARMIENTO, Domingo Faustino, Arjiropolis o la Capital de los Estados Confederados
del Rio de la Plata, Santiago: Imprenta de Julio Belin, 1850.
SERJE, Margarita, El revés de la nación, Territorios salvajes, fronteras y tierra de nadie.
Bogotá: Universidad de Los Andes, 2005.
TURNER, Frederick Jackson, “O significado da fronteira na História Americana”. In:
KNAUSS, Paulo (org.), Oeste Americano, Niterói: Editora da UFF, 2004, pp. 23-54.
ZUSMAN, Perla, La alteridad de la nación. La formación del Territorio del Noroeste del
Río Ohio de los Estados Unidos (1787) y de los Territorios Nacionales en Argentina
(1884), en Doc. Anàl. Geogr. vol. 56/3, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

431
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

História, Literatura e Ficção: uma proposta de análise do discurso místico


feminino no Ocidente medieval através de Catarina de Siena

CAIO CÉSAR RODRIGUES


Programa de pós-graduação em História – UFRRJ
Mestrando bolsista CAPES

Introdução

Catarina de Siena pertencia a Ordem Terceira dos Irmãos e Irmãs da Penitência


de São Domingos. A Ordem Terceira era um ramo destinado aos leigos que seguiam as
orientações do eixo principal dos Dominicanos, que diferentemente dos franciscanos não
formularam uma nova regra, mas adotaram a regra agostiniana como modelo.

Catarina ditou missivas à papas, cardeais, arcebispos, bispos, sacerdotes, monges


e monjas, religiosos e religiosas. Bem como à leigos: reis e rainhas, governantes,
senadores, magistrados, embaixadores, comandantes militares, médicos, juízes,
advogados, tabeliães, estudiosos, artistas, familiares, casais, viúvas, encarcerados,
prostitutas, comerciantes e discípulos. Seus conteúdos iam desde a orientação para se
alcançar a vita apostolica (BOLTON, 1990, p.24), conselhos sobre a vida matrimonial,
palpites sobre como deveriam ser dirigidas as ordens religiosas à articulação política para
apaziguamento de conflitos entre os reinos e repúblicas italianas com os estados
pontifícios, conflitos entre famílias nobres e o retorno do papado à Roma.
Por alguns de seus contemporâneos, Catarina de Siena foi vista com admiração.
Uma mulher inspirada pelo sagrado através de uma relação pessoal com sua deidade e,
por outros, foi vista com suspeita e desconfiança, uma mulher que ameaçaria a ortodoxia
da Igreja (CÁPUA, 1947). Estes opostos constituem a linha tênue que colocaria o
misticismo experimentado por Catarina entre a heresia e a ortodoxia. Isto posto, uma
questão fundamental é colocada. O que seria a “mística”? Longe de fornecer uma resposta
fechada, sigo a elucidar a perspectiva que julgo validar a mística como objeto de pesquisa
válido para a História.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

432
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Linguagem mística em Catarina de Siena

A palavra “mística” vem do grego mytikos, que etimologicamente deriva da raiz


verbal myéo, que significa “fechar” (CARUANA, 2003, p.704). Quando falamos de
misticismo somos conduzidos a compreendê-lo como uma experiência que se contrapõe
ao normativo, ao institucional. A linguagem alegórica e transcendental da mística, muitas
vezes lida pelo fabuloso, como o mito, parte da deficiência da linguagem em expressar a
experiência com o sagrado, o que projeta a necessidade de uma linguagem que
transgrediria a linguagem religiosa tradicional para dar conta do experimentado que
careceria de símbolos diferenciados e estranhos ao comum.

Segundo Ernst Cassirer, para além de mera ilusão e fraude, o uso alegórico e
fabuloso, no caso da linguagem religiosa mística, revela a “sombra que a linguagem
projeta sobre o pensamento” (CASSIER, 2011, p.19), da necessidade do pensar em
cristalizar suas percepções. Todavia, o mito, a mística, tudo que envolva uma relação do
Ser com o sagrado, seria colocado em uma categoria adversa, ao que Cassirer chamou de
“realismo ingênuo” (CASSIER, 2011, p.19). Este “realismo ingênuo” consideraria a
realidade das coisas o que seria dado e tangível inerente ao homem. Tudo o mais seria um
modelo sensorial, uma simples cópia, “idealização, medida pela simples ‘verdade’
daquilo que se quer apresentar, não passa de distorção subjetiva e desfiguração”
(CASSIER, 2011, p.19). Segundo Cassirer, “qualquer processo de ‘enformação’
espiritual implica a mesma distorção violenta, o mesmo abandono da essência da
realidade objetiva e das realidades da vivência” (CASSIER, 2011, p.22), porque seria
considerado pejorativamente como processos incapazes de captar o que seria considerado
realidade.

O termo “mística” que conhecemos seria fruto do debate dos homens da Igreja no
“século da mística”, o século XVII. No entanto, sua conceituação foi dada pelo
“testemunho dos próprios místicos” (VAZ, 1994, p.10). Foram esses os primeiros a
teorizarem a própria experiência. No fim da Idade Média vemos os primeiros esforços
para a sistematização didática da mística cristã ocidental, como os tratados De Mystica

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

433
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Theologia de Thomas Gallus e Hugo Balma, no século XIII; Henri Herp, no século XIV
e Jean Gerson, entre os séculos XIV-XV, com a obra De Mystica Theologia Pratica. Estes
manuais tinham por finalidade orientar os clérigos sobre a natureza da mística e as
maneiras de reconhecer os desvios da práxis ortodoxa. Anteriormente, a palavra “mística”
estava despida de particularidade aparecendo nos textos antigos e medievais – isso
quando aparecia -, “sempre como adjetivo, jamais como substantivo” (VAZ, 1994, p.10).

Para Michel de Certeau, essas práticas adjetivas que a palavra “mística” conforme
aparecia na linguagem cristã – “rosa mística”, “jardim místico”, etc -, se reuniram num
campo próprio levando ao surgimento da “mística” enquanto substantivo. Segundo
Certeau, a “mística” seria “una proliferación léxica en un campo religioso” (CERTEAU,
1982, p.94) que constituiu no fim do século XVI uma nova ciência, um modus loquendi,
que “produce sus discursos, especifica sus procedimientos, articula itinerarios o
‘experiencias’ proprias y trata de aislar su objeto” (CERTEAU, 1982, p.94). Assim, a
mística seria o resultado da congruência do modus loquendi com o modus operandi, ou
seja, seria a palavra colocada em prática, vivida nos corpos. Bem como, seria a ação, a
vivência dos corpos verbalizada.

Segundo Marco Vannini, a vivência e a conceituação da mística abririam espaços


para a radical marginalização do mundo cristão, ou seja, a mística por ficar fora da vida
terrena e comum, bem como da vida religiosa tradicional do fiel, da ritualística cotidiana,
colocar-se-ia no âmbito do excepcional, do sobrenatural (VANNINI, 2005, p.12), tornar-
se-ia o extraordinário. Sendo uma alternativa à objetividade da religiosidade fortemente
controlada pelo magistério da Igreja, que sempre buscou controlar todas as áreas da vida
humana. A mística como fenômeno totalizante, segundo o filosofo, Henrique Claudio de
Lima Vaz, integraria “todos os aspectos da complexa realidade humana” através do
encontro com o “outro Absoluto”, sobretudo “nas situações limites da existência e diante
da qual tem lugar a experiência do Sagrado” (VAZ, 1994, p.11).

Tomando por base a teoria de Rudolf Otto, Lima Vaz defende que dentro da esfera
do sagrado a mística marcadamente anularia a distância entre “sujeito e objeto pela
manifestação do Outro Absoluto como tremendum” (VAZ, 1994, p.12). Para Lima Vaz,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

434
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

a mística seria a experiência do Absoluto como fascinosum, ou seja, a suavização do


encontro com o Absoluto (tremendum) geralmente dominado pelo sentimento de temor e
medo, substituindo-os pelos sentimentos de alivio, salvação, atração e encanto. Lima Vaz
ressalta que a mística enquanto fascinium buscaria uma quase identidade com o Absoluto,
ao ponto de transformar radicalmente a existência do místico e sua relação com a
sociedade (VAZ, 1994, p.12).

Muitos homens e muitas mulheres foram condenados a terríveis penas, até mesmo
a capital, por pregarem uma mística que não caminhava com a tradição apostólica e da
Igreja. Considerada “santidade da desordem” (CANTARELA, 2012), a mística de fato se
contrapõe muitas vezes às instituições, grande parte disso pela a linguagem adotada que
a colocou em uma posição de suspeição.
Grandes místicos, como mestre Eckhart de Hochheim, Johannes Tauler e
Marguerite Porete foram acusados pela ortodoxia da Igreja de difundirem uma mística
perigosa e herética, tais casos nos mostram o quão plural era a espiritualidade na Idade
Média, até mesmo na elite religiosa. Contudo, seria um equívoco considerarmos a mística
como um fenômeno que essencialmente buscaria romper com as tradições e os dogmas.
Não necessariamente o místico almejaria romper com a religião reinante, como toda
experiência humana seria “uma experiência interpretada, realizada em um contexto
histórico-cultural particular, de modo que eles vivenciam o mesmo Deus. Mas não têm a
mesma experiência” (SOUZA, 2012, p.681). Todo ser humano nasce dentro de uma
tradição que condicionará sua relação com a natureza, às outras pessoas e com Deus. Os
homens e mulheres que na Idade Média buscavam novas formas de se relacionar com o
sagrado, vivenciando suas experiências a partir dos símbolos e da linguagem disponíveis
dentro da tradição histórica de sua sociedade, “que não é criada, mas apreendida”
(SOUZA, 2012, p.682).

Como afirma Carlos Frederico Barboza de Souza, cientista da religião, não existe
mística pura, mas sim a mística de um sistema religioso (SOUZA, 2012, p.683). Destarte,
Mestre Eckhart, Marguerite Porete ou Catarina de Siena, não buscaram estabelecer uma
nova religião, mas a partir de suas experiências reformarem suas instituições. De fato, do
esquema semântico “místico-mística-mistério” (VAZ, 1994, p.13) a linguagem mística
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

435
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

se estruturou diferente da comumente experimentada e compartilhada, e em alguns casos


poderia ter ameaçado o monopólio da Igreja, mas atestar que o objetivo essencial da
mística seria corromper a tradição é um equívoco muito tentador, para não dizer
simplório. O elemento da linguagem, que faz da mística um “dado antropológico
original”, principalmente ao estudo do medievo, seria por nos fornecer mais um discurso
que buscou conceber o homem ontológico (VAZ, 1994, p.14), ou seja, a concepção de
uma natureza comum inerente a todos e a cada um dos seres. Concepção que determinou
a visão do mundo e do outro a partir da construção contemplativa de si mesmo.

A consciência religiosa no Ocidente na Baixa Idade Média passou por


transformações de natureza, ordem e categoria em níveis diferentes nas regiões da
Europa. Segundo André Vauchez, a historiografia pode traçar um panorama da
efervescência da devoção laica sob “duas certezas fundamentais [...]: só se chega a Deus
por seu Filho crucificado, e, para conquistar a salvação, é preciso assemelhar-se ao
Cristo” (VAUCHEZ, 1995, p.179). Em busca de uma religiosidade ativa no mundo, mas
não no mundo, frente à passividade litúrgica, os leigos viram no sofrimento de Cristo o
espelho a ser seguido para admoestar as incertezas e os desejos de salvação.

Numa sociedade que se considerava membro ativo do corpus mysticum de Cristo,


deveriam se assemelhar a ele tanto pela santidade – em seu formato tradicional dos bons
exemplos e da vida de virtudes -, quanto pela dor, pelo flagelo do corpo e pela pobreza
evangélica, como forma de se aproximarem ao corpo exaurido do Cristo sofredor.
Segundo Catarina de Siena:

A pessoa não procura Deus e a virtude evitando os sofrimentos, mas


pelo caminho da cruz, seguindo os passos de Cristo [...] suportando
fome, sede, perseguição, perturbações do mundo, do demônio e da
carne. [...] A pessoa procura imitar Jesus e nem aceitaria alcançar a
virtude, se não fosse possível, sem sofrimento, para poder assemelhar-
se a Cristo crucificado (CATARINA DE SIENA, 2005, p.1282-1283).
Para Ozment Steven, historiador norte-americano, uma característica básica e
final do misticismo cristão seria sua extrema ligação com o princípio da semelhança. Este
elemento marcou os escritos místicos das mais diferentes naturezas, com o fato de que
por meio de uma prática de contemplação, oração, jejum e mortificações o fiel alcançaria

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

436
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

uma união com Deus. Ser como Deus, de maneira a “abolir sua individualidade finita e
pecadora, para pensar como Deus pensa e quer, para chegar ao ponto em que Deus seria
tanto o sujeito quanto o objeto de sua mente, para ser, em suma, onde tudo o que é e se
sabe é Deus” (OZMENT, 1981, p.117-118).

Os discursos místicos são vistos pela ortodoxia da Igreja como práticas


transgressoras do saber e da experiência do sagrado, pois teologicamente, Deus já havia
falado e se revelado através das escrituras e nada mais necessitaria ser dito. A
transgressão, aqui me restrinjo ao misticismo feminino, segundo a historiadora Maria
Simone Marinho Nogueira, ocorreu em três esferas: a primeira seria uma transgressão de
gênero, porque a divindade supostamente falaria pelas mulheres que ao longo da história
foram desqualificadas intelectualmente e religiosamente pela tradição e pela Patrística
como incapazes de interpretar o sagrado. Segunda transgressão seria contra a ortodoxia
da Igreja, criticando explicitamente ou veladamente os dogmas e os hábitos dos seus
ministros; por fim, transgrediria os limites da relação entre o humano e o divino
(NOGUEIRA, 2015, p.7). Esta última transgressão se deu pelo aniquilamento do “eu”,
daquilo que os escritores medievais entendiam como natureza e vontade humana e a
erotização do sagrado, constituindo as bases discursivas da retórica da espiritualidade da
mística feminina.

Segundo Catarina de Siena, aniquilar o “eu” significaria tomar conhecimento de


si para se esvaziar e se preencher da deidade. O conhecer a si, para a santa sienense,
levaria a conhecer a Deus e se ver e ser em Deus: “é desse conhecimento que nasce o
santíssimo desprezo de si, capaz de nos unir à suprema, eterna e primeira verdade,
conscientes de que somos a máxima mentira e operadores do nada” (CATARINA DE
SIENA, 2005, p.103).

Para Sofia B. Gajano, os santos construiriam espaços para vivência de sua


excepcionalidade, sua santidade, podendo ser lugares físicos como templos, desertos e a
floresta, e ora, como Catarina, construindo no plano espiritual “em que misturam o real e
o imaginário, o natural e o sobrenatural, o físico e o psíquico” (GAJANO, 2006, p.455).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

437
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Quando o sagrado, algo inalcançável seria alcançado, tocado por corpos que
mesmo criados a imagem e semelhança de sua deidade, carregam a marca do pecado.
Catarina encontraria Deus em seu coração, ao ponto de trocar de coração com sua
deidade. Ela sentiria o que sua deidade sente: alegria, dor, sofrimento e dentre outros
sentimentos fortemente humanizados. Ao mesmo passo que vemos a divinização de
Catarina, bem como as qualidades divinas humanizadas, pois “el místico asume en su
cuerpo el lugar y el límite simbólico de su experiencia que consiste en abrir un espacio
sin el cual ya no puede vivir” (RENZO, 2012, p.163). Podemos também observar, através
dos escritos de Catarina, o papel importante dado pela mística feminina à eucaristia, de
maneira a constituir em alguns casos como único alimento diário. A eucaristia representa
o ápice pelo qual a natureza humana e a natureza divina mutuamente se completam:
“Filha querida, considera como é grande a pessoa que recebeu o pão da vida, o alimento
dos anjos, com as devidas disposições. Ela permanece em mim e eu nela, como peixe no
mar e o mar no peixe” (CATARINA DE SENA, 1984, p.112).

Através de uma nova interpretação histórica, no qual as mulheres são colocadas


como sujeitos históricos, a cientista da religião Lieve Troch, adverte que a palavra
“mística” nos associa a uma experiência tipicamente feminina, “isto torna evidente a
importância das mulheres para a reavaliação e definição da vida religiosa nesse período”
(TROCH, 2013, p.3). Segundo Troch, as mulheres místicas obtiveram espaço e
notoriedade no plano cultural e político em suas sociedades, devido os conflitos internos
e movimentos alternativos que devastaram o poder masculino da Igreja. Troch observou
que o adjetivo “mística” dado às mulheres seria uma maneira dos homens da Igreja
colocarem o que elas teriam a dizer abaixo de um saber que elas, devido a sua natureza,
eram incapazes de interpretar.

Curiosamente, entretanto, o que elas proclamam não é geralmente


definido como teologia, mas como mística. As mulheres desejam
afirmar, com seu estilo próprio de falar, uma maneira distinta da religião
proveniente da teologia clássica e querem dar a sua opinião em
discussões teológicas. No entanto, os homens – para garantir a sua
própria definição teológica – classificam estereotipadamente a teologia
das mulheres como „mística‟. (TROCH, 2013, p.3).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

438
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Todavia, para Troch, o reconhecimento da mística enquanto reformulação


teológica da divindade foi encarada com cautela e desconfiança. Em meio a este
panorama, as mulheres obtiveram voz e autoridade através do discurso místico, pois não
seria, a exemplo, o sujeito Catarina a falar, mas seu Deus falando por ela (TROCH, 2013,
p.4). Neste sentido, a visão, na opinião de Troch, seria um conceito estratégico que
garantiria a “voz teológica feminina uma dimensão divina e, consequentemente, sua
autoridade. As mulheres querem afirmar que sua voz não é o resultado de uma emoção
descontrolada, mas que vem do próprio Deus” (TROCH, 2013, p.4).

Para Michel de Certeau a linguagem seria caminho para a intersubjetividade, e o


místico seria o criador de sua própria maneira de falar, de uma prática e de uma técnica
linguística. Certeau identificou duas práticas ligadas à literatura mística: “una sustración
(extática) operada por la sedución Del Outro, y una virtuosidad (técnica) para hacer
conferir a las palabras lo que no puede decir” (CERTEAU, 1982, p.43). A combinação
êxtase/visão/arrebatamento com a retórica permitiu que a “locura de Cristo”187
encontrasse “un instrumento linguístico para dar lugar a una teoría ‘moderna’, la
mística” (CERTEAU, 1982, p.43).

Para as mulheres o discurso místico lhes permitiu contestar a voz dominante da


ortodoxia apanágio dos homens da Igreja, pois sua voz não seria “o resultado de uma
emoção descontrolada, mas que vem do próprio Deus” (TROCH, 2013, p.4), uma forma
de expressão teológica que influenciaria a Igreja e o mundo.

Uma proposta de análise do discurso místico feminino

O pesquisador que deseja compreender seu conteúdo deve considerar a realidade


sociocultural da experiência para assim ter a capacidade de traduzir os signos construídos

187
A “locura de Cristo” que Certeau se refere trata de uma tradição “que traza una locura en las orillas del
cristianismo” seria uma sentença dada a um ascetismo considerado escandaloso, pautado na pobreza
extrema, aversão e estranhamento às coisas ditas do mundo. Foram homens e mulheres humilhados,
desprezados e marginalizados socialmente, considerados “idiotas”. Em sua opinião, os místicos seria a
forma primitiva dos “loucos por Cristo”: “se trata de una desviación hacia otro país, donde la loca (la
mujer que se pierde) y el loco (el hombre que se ríe) crean el desafio de um desatado”. CERTEAU, Michel.
Op. cit., p.45-46. No oriente, o termo “locura de Cristo” obteve uma dimensão mais aprofundada Cf.:
LARCHEE, J. C. Healing of mental illnesses: The experience of first centuries in the christian East.
Translated from French into Russian. Moscow. Publishing House of Sretensky Monastery, 2007.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

439
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pelas experiências, mudanças e, no caso particular da mística, a incompreensão


enfrentada pelos místicos por seus contemporâneos.

A mística encaixa-se numa perspectiva histórica certeauriana que buscou voltar-


se paras as ausências criadas pelas escolhas do fazer historiográficos. Uma história que
se preocupa com as ausências “dos simbolismos, do abandono e da desproteção, a partir
das figuras infantis, do corpo feminino, dos iletrados, enfim, dos ausentes da história”
(REIS, 2005, p.7). A experiência mística, segundo Michel de Certeau, seria uma
reinvenção ficcional da realidade religiosa, sendo o não dizer ou fazer incutindo ao
sagrado experiências cotidianas implicando um distanciamento das experiências e do
controle eclesial. Para Michel de Certeau, a mística é “a unidade de uma reação moderna
e profana ante as instituições sagradas” (CERTEAU, 1982. p.363).

Primeiramente devemos compreender as fontes místicas não como textos a serem


lidos e interpretados em seus conteúdos. Analisamos estas fontes enquanto “obra”, como
proposta por Paul Zumthor (ZUMTHOR, 2000). Queremos destacar os elementos que
estão para além do escrito e que o compõe, nunca desvinculando do social, dos meios de
produção e de difusão, bem como, dos atores188 que os produziram.

Segundo ponto é nunca encarar as fontes místicas como um reflexo direto da visão
de mundo dos atores que as produziram ou do social na qual se inserem. Paradoxalmente,
muito bem destaco por Dominique Maingueneau, nossas fontes, enquanto discursos,
devem ser analisadas como experiência social. Ou seja, precisamos admitir não serem
“uma máscara do ‘real’, mas uma de suas formas, estando este real investido pelo
discurso”. Não encararemos os discursos e a “realidade” a partir de uma relação exterior
entre si, colocando os discursos como um “teatro de sombras”. Mas, cientes que é por
meio dos vestígios, da instância de enunciação, que se acessa a uma parte do passado. E
este acesso é só mais um, entre o conjunto múltiplo de discursos que compõe o social
(MAINGUENEAU, 1997. p.34-35).

188
Acreditamos que o termo melhor se encaixa para Idade Média do que autor.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

440
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para Andrea Cristina Lopes Frazão da Silva, somente pelo estudo do enunciado e
de sua transmissão que “é possível verificar como o discurso ganha/produz sentido”.
Ademais, para a metodologia aqui destacada, é imprescindível levar em conta a
organização social e os elementos extralinguísticos aos discursos relacionando com o
enunciado. Posto isso, iremos: “verificar quem enunciou, para quem, de que forma, por
que meios, quando, quais eram as relações de força no momento da enunciação e por que
esta relação foi estabelecida para alcançar o seu sentido” (FRAZÃO DA SILVA, 2002,
p. 3-4).

Em terceiro, se faz necessário analisar a natureza, estrutura e forma das fontes


místicas. Verificando a datação, a estrutura narrativa e o gênero de escrita, se houve
modificações na revisão ou na edição e na tradução por parte dos editores. Neste sentido,
é preciso destacar a peculiaridade das nossas fontes: são traduções por traduções. Catarina
de Siena teve que traduzir em palavra oral o que lhe foi “revelado”, e ditar aos seus
secretários. Estes secretários traduziam a palavra falada para a palavra escrita em
vernáculo189, o que neste processo signos poderiam ter sidos perdidos ou acrescidos para
dar sentido ao enunciado. Posteriormente, para maior circulação dos escritos foram
traduzidos para o latim190, neste processo também poderiam ter ocorrido alguma
modificação dos signos para adequação da língua.

189
O Diálogo e suas cartas foram escritas em italiano. Durante a Idade Média o domínio do latim foi muito
restrito entre os leigos e os clérigos – nem todo clérigo era versado na escrita e leitura do latim. Seus escritos
foram posteriormente organizados e traduzidos em latim. Cf.: CHAUNU, P. O tempo das Reformas (1250-
1550): a crise da Cristandade. Lisboa: Edições 70, 1993, p.55-56. Observa-se também um crescente
aumento na produção em língua vernáculo nos decênios finais da Idade Média. A cultura letrada composta
entre os que dominavam ou não o latim, no período circunscritos passou a ser subdividida entre os eruditos,
que dominavam o latim, e os populares, que escreviam e liam em vernáculo. Cf.: VERGER, Jacques.
Homens e saber na Idade Média. Bauru: Edusc, 1999.
190
Os principais responsáveis pela tradução em latim e pela divulgação das cartas e do “livro”, foram:
Raimundo de Cápua, manuscritos localizados na Oxford Bodleian Library e no Archivio Generale
dell'Ordine dei Predicatori – Roma; Stefano Maconi, encontrados na Biblioteca Trivulziana – Milão, na
Biblioteca Universitaria – Torino, na Universiteitsbibliotheek – Utrecht e na Bibliothèque Mazarine – Paris;
também importante tradutor para o latim é Cristoforo Di Gano Guidini, com manuscritos conservados na
Biblioteca Nazionale Marciana – Veneza, na Biblioteca Comunale degli Intronati – Siena e na Biblioteca
Nacional de España – Madri. Fonte: < http://www.centrostudicateriniani.it/it/biblioteca/2015-04-16-10-23-
33/scritti-cateriniani>
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

441
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Conclusão

A proposta destacada, ao longo deste artigo, foi de examinar a linguagem mística


na construção do imaginário ocidental medieval de sociedade, destacamos que, as
linguagens são caracterizadas pela continuidade e transformação. Ou seja, mesmo quando
são alteradas e utilizadas em um contexto específico, estas são capazes de sobreviver aos
contextos seguintes e impor sobre os “atores políticos” deste novo contexto “[...] as
restrições para as quais a inovação e a modificação serão necessárias” (POCOCK, 2003,
p. 30).

Dessa maneira, o texto é capaz de preservar as enunciações do autor “de forma


rígida e literal” e ao chegar a contextos subsequentes suscita respostas que embora
“radicais, deturpadoras e anacrônicas” não teriam sido, efetivamente, elaboradas se não
tivessem atuado sobre os atores de tal época subjacente191. Portanto, a linguagem seria
capaz de determinar o que “nela pode ser dito”, mas também, como em uma via de mão
dupla, a mesma pode ser alterada pelo que “nela é dito” (POCOCK, 2003, p. 65).

Utilizando-se dos meios possíveis a uma mulher na Idade Média, ditada e


orientada pelos homens da Igreja, Catarina escreveu a governantes, reis, rainhas, clérigos
e ao papa. A autoridade com que escrevia, às vezes, exigindo que suas demandas fossem
supridas, pautou-se no lugar que a linguagem mística se estrutura: não um discurso que
partia dela, ou sua vontade, mas era o próprio Deus que falava por ela. A linguagem
mística concedeu-lhe autoridade e proeminência e, ao mesmo tempo, que lhe causou
desconfiança entre os mais céticos. Mesmo sendo considerado um discurso inferiorizado
perante o discurso teológico, Catarina sendo leiga conseguiu se manter ao longo do seu
apostolado dentro da ortodoxia da Igreja.

191
Diferente do que alguns críticos do “contextualismo linguístico” afirmam há distintas ênfases na
abordagem de Skinner e Pocock, enquanto o primeiro preocupa-se na compreensão das “intenções” do
autor em sua “ação linguística”, o segundo se interessa pelas “linguagens” e “discursos” que conferem
significação a um texto. Ver: SILVA, Ricardo. O Contextualismo Linguístico na História do Pensamento
Político: Quentin Skinner e o Debate Metodológico Contemporâneo. DADOS- Revista de Ciências Sociais,
v. 53, n. 2, 2010, p. 327.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

442
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Documentação

CATARINA DE SENA. O Diálogo. Tradução de João Alves Basílio. São Paulo: Paulus,
1984.

CATARINA DE SENA. Cartas Completas. Tradução de João Alves Basílio. São Paulo:
Paulus, 2005.
CÁPUA, Raimundo da. Vida de Santa Catalina de Siena. Buenos Aires: Espasa-Calpe,
1947.

Referencial Bibliográfico

BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1990.
CANTARELA, Antonio Geraldo. Dossiê: Místicas religiosas e seculares. Horizonte:
Belo Horizonte, v.10, n.27, p. 673-677, jul/set. 2012 – ISSN 2175-5841.

CARUANA, E.; BORRIELO, L.; DEL GENIO, M. R.; SUFF, N. (orgs.). Dicionário de
Mística. São Paulo: Paulus Ed., 2003.

CASSIER, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 2011.

CERTEAU, Michel de. La fábula mística siglos XVI-VII. Paris: Gallimard, 1982.

FRAZÃO DA SILVA. Andréia Cristina Lopes. Reflexões metodológicas sobre a análise


do discurso em perspectiva histórica: paternidade, maternidade, santidade e gênero.
Cronos: Revista de História, Pedro Leopoldo, n. 6, 194-223, 2002. ISSN 1518-8620.

GAJANO, Sofia Boesch. Santidade. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude


(org.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2006.

HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. Braga (Portugal): Ulisseia, 1996.

LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

MAINGUENEAU. Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. São Paulo:


Pontes, 1997.

NOGUEIRA, Maria Simone Marinho. Mística feminina – escrita e transgressão. Revista


Graphos, vol. 17, n° 2, 2015.

OZMENT, Stevens. The Age of Reform, 1250-1550: An Intellectual and Religious


History of Late Medieval and Reformation Europe. New Haven, CT: Yale University
Press, 1981.
POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

443
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

REIS, Gustavo Soldati. As tramas heterológicas: trajetórias místicas em Michel de


Certeau. Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015.
RENZO, Gabriela María di. El lenguagem místico en santa Catalina de Siena. Revista
Teologia, Buenos Aires, tomo XLIX, nº109, DEZ/2012.

SOUZA, Carlos Frederico Barboza de. Novas fronteiras epistemológicas: o interesse


acadêmico pela Mística. Horizonte, Belo Horizonte, v.10, n.27, pp. 678-683. jul/set.
2012.

TROCH, Lieve. Mística feminina na Idade Média: historiografia feminista e


descolonização das paisagens medievais. Revista Graphos, Paraíba, v.15, n.1,2013.

VANNINI, Marco. Introdução à Mística. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

VAUCHEZ, Andre. A espiritualidade da Idade Media Ocidental: Sec. VIII-XIII. Lisboa:


Estampa, 1995.

VAZ, H.C. de Lima.Mística e política: a experiência mística na tradição ocidental. In:


BINGEMER, Maria C. Lucchetti; BARTHOLO Jr., Roberto dos Santos. Mística e
Política. São Paulo, Edições Loyola, 1994.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

444
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Feminino do samba: Análises da representação feminina no samba (1937-1945)

CAIO CESAR SOARES PEREIRA

Mestrando no programa de pós-graduação de História UNIVERSO –


Universidade Salgado de Oliveira.

O presente trabalho pretende investigar a representação feminina na sociedade


carioca durante os anos em que se instalará no Brasil o “Estado Novo” de Getúlio Vargas
de 1937 a 1945, utilizando sambas da mesma época cujo tema principal seja a
feminilidade presente no Rio de Janeiro. A participação feminina no mundo do samba,
durante a época estudada, caracterizava-se pela presença de grandes intérpretes como, por
exemplo: Aracy de Almeida, Dircinha Batista, Aurora Miranda. Entretanto o quadro de
compositoras de sambas é um tanto reduzido, mesmo com a progressista presença de
Amélia Pires como umas das compositoras da escola de samba Unidos da Tijuca desde
1933(LOPES; SIMAS; 2015; p.71). Iremos então analisar sambas produzidos por homens
que retratam em suas letras aspectos de sua vivência cotidiana ou idealizada.

O recorte temporal trata-se do período em que o Brasil estava sob o comando da


ditadura do “estado novo” de Getúlio Vargas. Tal escolha deve-se ao processo social que
corresponde a um maior acesso a obtenção do rádio levando a um crescimento
profissional radiofônico no Brasil (DINIZ;2012; p.58), que trouxe novos compositores e
intérpretes para o âmbito da música popular brasileira, como Cyro Monteiro, Lupicínio
Rodrigues, Risadinha, Jamelão e entre outros. O recorte escolhido procura tratar também
de uma mudança social devido ao processo contínuo de expansão populacional nas áreas
urbanas e o aumento da população alfabetizada (SKIDMORE; 2015; p.65) (Fato do qual
exige uma análise mais profunda).

Ao analisar a condição feminina no imaginário dos compositores de sambas na


época, a música popular brasileira revela-se um retrato de uma sociedade patriarcal, de
divisões de trabalhos por gêneros aparentes em suas letras de samba, entretanto, segundo
a historiadora Maria Izilda Santos de Matos não podemos classificar a música popular
brasileira como um completo reflexo da sociedade estudada, e sim uma representação

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

445
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

presente em um processo interno de influências bilaterais, não necessariamente impondo


modelos ou perfis (MATOS; 1997; p.31).

Apoiada pela medicina social durante a Belle Époque (1890 a 1920), a divisão do
trabalho por gênero era justificada por “características biológicas” do homem e da mulher,
considerando o sexo feminino como frágil, sentimental, com vocação para o serviço do
lar e materno (PEREIRA; 2014; p.63).

Amor romântico sim, mas domesticado! Nada de paixões, que violem


as leis da moral e da ordem. O amor só seria aceitável se não rompesse
com os moldes convencionais de felicidade ligada ao casamento legal
e a prole legitima. A abnegação poderia fazer parte do amor feminino,
o deslize passional nunca. (BASSANEZI, 2004, p. 618)

Nos sambas de sucesso durante os anos em que se seguia o Estado Novo, o


idealismo da “mulher perfeita” era presente em diversos sambas do tipo, letras em que o
compositor busca a sua companheira ideal em uma sociedade patriarcal, sempre a
descrevendo como uma mulher que se dedicara ao trabalho do lar e a subordinação sexual
ao seu companheiro. No samba “Resignação” de Geraldo Pereira em parceria com Arnô
Provenzano, a mulher “modelo” de uma sociedade machista queixa-se pela frequente falta
de fidelidade do marido:

Quem é que lava roupa pra você dançar?

Quem é que não marca pra hora pra você chegar?

Quem é que sofre com resignação

Quando você traz a gola do terno suja de batom?

Mas ontem você faltou com respeito para mim

Trazendo um lenço manchado de carmim

Não vá dizer que a dama dançou em bolso

Pois não é possível

Nem tão pouco meu rosto você limpou

É preciso mudar de pensar

Porque a minha paciência pode se esgotar


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

446
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Presente no samba a figura do marido infiel era justificada pela medicina social,
em que qualificava o homem como o provedor do trabalho no qual traria o sustento
familiar, provedor de uma racionalidade sem características emocionais e de uma
sexualidade sem freios. Como descrito por Rachel Soihet, durante o final do século XIX
Cesare Lembroso, um conceituado médico criminalista, afirmava que o adultério deveria
apenas afetar as mulheres, já que não teria uma predisposição para tal ato, defendia a tese
de que mulheres adúlteras deveriam ser afastadas do convívio social, por não
apresentarem características de uma mulher normal, sendo comparadas às prostitutas
despidas de sentimentos. Tal característica é apresentada fortemente no samba “Lágrimas
de um homem” do compositor J. Cascata:

Lágrimas de homem são sentidas


e as das mulheres, fingidas
pois não concebem o alcance
que elas tem
são lágrimas sinceras, derramadas interiormente
que calam fundo na gente.
traduzindo a saudade de alguém.
Amor dei-te tudo em quantidade
eu dei-te um nome, dei-te um lar
e satisfiz a tua vaidade
trabalhava tanto
tudo que pedias eu te dava
e no entanto, na surdina
procurando minha ruína, me enganava
(e como um tolo eu trabalhava e te ajudava)

Se eu choro, as minhas lágrimas são sentidas,

Quanto fui tolo, crendo nessas tuas juras,

Tão fingidas,

Nunca mais

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

447
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Um carinho meu terás,

Já não te considero,

És migalha, és mulher, e nada mais.

Em sua última colocação, o autor retratando a mulher com indiferença, o mesmo


ignora o fato de que a mulher é um agente social e não somente um padrão biológico
ditado pela medicina da época. A subversão da mulher apresentada pelo autor, é
demonstrada através de uma mulher inteligente, desprovida de sentimentos e possuidora
de um anseio por liberdade, atitude condenável na época como dito antes, tais
características não seriam uma postura de uma mulher que se encontrava em plena
sanidade mental. Uma mulher solitária, que valorizava a sua liberdade não deveria estar
em convívio social, segundo a medicina das primeiras décadas do século XX que em
alguns casos utilizavam-se de artifícios psiquiátricos com um intuito “civilizatório”
(CUNHA; 1989; p.p. 123-124).

Durante os anos em que o estado novo de Getúlio Vargas se fazia presente no


Brasil, nota-se ao analisarmos os sambas produzidos naquela época que os costumes
patriarcais ainda detinham de forte presença na sociedade brasileira. Para chegarmos a
uma melhor compreensão, iremos exemplificar sobre as tradições de uma escola de samba
visando-a como uma organização social, a manutenção dessas tradições como a bandeira
da escola, os títulos, os grandes sambas, o modo de execução de sua bateria, na qual a
velha guarda é encarregada da conservação dessas tradições (LOPES; SIMAS; 2015;
p.295), transmitidas de forma oral em sambas ou ensinamentos para membros iniciantes
das agremiações carnavalescas.

Voltaremos então para o conceito exposto pela historiadora Maria Izilda Santos
de Matos em relação à uma circularidade na qual se encontra a música popular brasileira.
O samba não reflete a sociedade carioca em si, seria uma troca de comportamentos e
perfis e não uma imposição, entretanto, o samba como produto de um grande alcance
transmite (oralmente) como também aceita a presença em seu discurso de características
machistas. Ao mesmo tempo tais costumes patriarcais são transmitidos dentro do

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

448
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ambiente familiar na educação das crianças, como também em outras relações sociais,
como por exemplo, o ambiente de trabalho ou na própria vizinhança (THOMPSON;
2015; p.20-21). O que nos revela a circularidade exposta anteriormente, a representação
de um comportamento social no samba a ser aceita, ou não, por um determinado grupo
de ouvintes.

Em 1942 o samba “Ai, que saudades da Amélia” de Ataulfo Alves, revela-se um


grande sucesso, letra na qual descreve Amélia como a mulher caseira, de pouca vaidade
e sem nenhuma ambição. O samba, que é famoso ainda nos dias de hoje, nos evidencia o
tamanho do grupo social a aceitar o discurso do autor, mesmo alguns ouvintes que
poderiam interpretar a letra como uma gozação ou como um exemplo a ser seguido. Em
contraponto, outro samba de Ataulfo Alves revelava a libertinagem da mulher amada, que
nada parecia com Amélia, o samba “Oh! Seu Oscar” de Ataulfo contando com a parceria
de Wilson Batista:

Cheguei cansado do trabalho

Logo a vizinha me falou:

- Oh! seu Oscar

Tá fazendo meia hora

Que sua mulher foi-se embora

E um bilhete deixou

O bilhete assim dizia:

"Não posso mais

Eu quero é viver na orgia"

Fiz tudo para ter seu bem-estar

Até no cais do porto eu fui parar

Martirizando o meu corpo noite e dia

Mas tudo em vão

Ela é, da orgia.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

449
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Não é raro encontrar discursos semelhantes nos sambas daquela época. Em


concordância com Cilene Margarete Pereira em seu estudo192 sobre a oposição feminina
ao modelo social paternalista das décadas de 1930 e 1940. A canção trata de um embate
entre os personagens do gênero feminino e masculino em relação do que seria a felicidade
para uma mulher. O personagem de Oscar acredita que o bem-estar de sua mulher seria
uma vida voltada para o lar e usufruindo do sustento conquistado pelo seu companheiro,
sustento no qual o mesmo martiriza o seu corpo, transformando a narrativa em um
protesto contra a ingratidão da sua companheira.

O nome “Oscar” tem um significado maior nesta canção, os compositores que


eram frequentadores assíduos do café e bar “Café Nice”, local de grande fama durante as
décadas de 1930 e 40, sendo frequentado por grandes personalidades como, por exemplo,
Noel Rosa e o jornalista Mario Filho. Naquele ambiente o nome “Oscar” seria uma gíria
para referir-se a um homem ingênuo, facilmente enganado, um otário (PEREIRA; 2014;
p.62). Além de um embate a canção também nos narra um homem ridicularizado pelos
sambistas.

Como no samba de Ataulfo, outros sambistas também iriam apresentar seu


personagem masculino bem semelhante ao “Oscar”. Geraldo Pereira em parceria com
Augusto Garcez escreveu o samba “Lembras-te daquela zinha?” interpretado por Roberto
Paiva:

Tu sabes que aquela Zinha


Que há muito tempo foi minha
Um dia sem ter razão me abandonou
Eu, por gostar muito dela
Fiz uma casa pra ela
Fiquei tão cheio de vida
Mas tudo acabou

Escreva o que eu digo


Se um dia ela voltar
Eu juro que hei de lhe perdoar
Vou lhe pedir, meu amigo

192
PEREIRA,Cilene Margarete. “Não posso mais: eu quero viver na orgia”: malandragem feminina e
rejeição do trabalho em sambas nas décadas de 1930 e 40. Crítica cultural – Critic, Palhoça,SC, v.9,
n.1,p.57-69;2014;
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

450
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Não grite e cale o meu ato


Eu sei onde é que me aperta o sapato

Os autores retratam um homem apaixonado e pré-dispostos a perdoar sua antiga


companheira que o abandonou sem uma razão aparente. A notável semelhança entre o
personagem apresentado na canção de Geraldo Pereira com a imagem de “Oscar” descrita
anteriormente por Ataulfo em seu samba trata-se de uma narrativa na qual o homem e o
lar seriam vítimas de um caráter libertino por parte de uma mulher desapegada de
qualquer moralidade ditada pela sociedade da época.

Por outro lado, quando os papéis são trocados, a mulher é apresentada de outra
forma, tendo a história dos personagens com uma conclusão diferente da que
normalmente é apresentada no caso em que a mulher abandona o lar. Cantada por Aracy
de Almeida o samba “Oh! Dona Inês” expõe uma realidade na qual as mulheres são
totalmente dependentes de seus maridos:

Eu já mandei bilhete

Eu já mandei recado

Até meu samba, serviu-me de advogado

Sempre a mesma resposta, que ate já sei de co

Ele mandou me dizer “Oh! Dona Inês, viver sozinho é melhor”

Quatro meses já passaram que eu não vejo meu João

A empregada foi embora, arranjou outro patrão

Meu sapato já furou, meu vestido envelheceu

Ele não sabe até hoje o amor que perdeu

O samba nos remete a entender que a mulher abandonada caracteriza-se por sua
insistência em reatar seu relacionamento com “João”, denotado na segunda parte do
samba, que seria então o provedor de toda a renda do lar e da protagonista a qual narra o
samba. A diferença entre os dois discursos, os dois apresentados por uma visão masculina
reproduzidas por seu compositor, compreende-se que uma mulher abandonada pelo

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

451
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

companheiro poderia se sentir desprotegida e o homem apenas livre. Casos diferentes são
exibidos em diversos sambas da época como, por exemplo, o samba de 1944 “Carta fatal”
de Geraldo Pereira e Ary Monteiro, em que a mulher refere-se que o seu casamento deve
acabar usando como argumento a boêmia do marido, considerado pela medicina social
um “desvio social” a ser combatido (CUNHA;1989; p.126-127), entretanto o estopim da
separação seria uma carta na qual o remetente seria uma outra mulher:

Agora nossa amizade

Tem que terminar

Pois você só chega

Na hora de eu me levantar

E a razão de tanta demora

Não me diz porque

Eu só posso desconfiar de você

Vou embora amanhã

Seja o que Deus quiser

Achei em seu bolso uma carta de mulher

Até parece brinquedo

O que dizia a carta

“Filhinho, você vem cedo A sua ausência me mata

Por isso não vou brigar

Prefiro a separação

E a mim não interessa justificação

Outros sambas expressam uma temática parecida durante toda história do samba,
como por exemplo, “Dente por dente” de Daniel Santos interpretado por Beth Carvalho,
“A loba” de Juninho Peralta e Paulinho Rezende interpretado por Alcione e “Dona
encrenca” de Barbeirinho do Jacarezinho e Marcos Diniz interpretado por Zeca
Pagodinho. A semelhança desses sambas é que a mulher que sofreu o adultério toma a
iniciativa para uma discussão ou um término definitivo. Quando a iniciativa descrita no

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

452
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

samba é promovida por um homem, a abordagem e a conclusão, como já expostas antes,


não é a mesma.

A falta do trabalho masculino seria outra temática recorrente nos sambas


contemporâneos do Estado Novo, como afirma a Constituição Federal que legitimou o
Estado Novo em 1937, o trabalho é um dever social, não um direito193. Diversos sambas
tratavam do tema um deles seria “ Inimigo do batente” de Wilson Batista e Germano
Augusto interpretado por Dircinnha Batista:

Eu já não posso mais!

A minha vida não é brincadeira

Estou me esmilinguindo igual a sabão na mão da lavadeira

Se ele ficasse em casa ouvia a vizinhança toda falando

Só por me ver lá no tanque

Lesco-lesco, lesco-lesco

Me acabando

Se lhe arranjo um trabalho

Ele vai de manhã, de tarde pede as contas

E eu já estou cansada de dar murro em faca de ponta

Ele disse pra mim que está esperando ser presidente

Tirar patente no sindicato dos inimigos do batente

[...]Ele tem muita bossa e compôs um samba e que é de abafar

É de amargar

Eu não posso mais

Em nome da forra, vou desguiar

A divisão social do trabalho fica clara na colocação presente no samba “Se ele
ficasse em casa ouvia a vizinhança toda falando...”, durante o Estado Novo a
malandragem era combatida pelo DIP e também não tinha boa fama na sociedade carioca

193
Como escrito no Artigo 136 da Constituição Brasileira de 1937.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

453
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(SOIHET p.139), o homem segundo a biologia em que se baseava a medicina da época,


caracterizava-se por sua força de trabalho para o sustento do lar, interligando o trabalho
individual do homem com a ideia de uma construção coletiva de um progresso da nação.

A imagem da mulher subversiva a moralidade familiar imposta na época estaria


no imaginário dos compositores de sambas durante décadas após o fim do estado novo.
Um dos estilos conhecidos seria o samba-canção, alcançando grande fama durante a
década de 1950(DINIZ;2012; p.148), conhecidos como sambas de “dor de cotovelo”, ou
como diria o sociólogo e compositor Nei Lopes “Samba de andamento lento, melodia
romântica e letra romântica”, em relação a tal estilo do samba de Ary Barroso “Foi ela”
intitula inteiramente a culpa do sofrimento do compositor na mulher que o abandonou,
tornando a mesma na vilã da história contada em sua composição. O samba-canção não
somente demonstra a “dor de cotovelo” como já era uma velha conhecida da música
popular brasileira, mas traria frequentemente a “mulher ingrata” em suas composições.

Em contraponto um número variado de canções com a temática da “mulher ideal”


também estaria presente na música popular brasileira nos anos posteriores ao estado novo,
um exemplo seria “Responsabilidade” de Paulinho da viola gravado em 1965, na qual o
idealismo do compositor se torna uma regra a ser seguida, afirmando que ainda contaria
com o apoio da sociedade:

Se meu paletó não estiver legal

Se na minha camisa faltar um botão

Você vai ser responsabilizada

E muita gente vai me dar razão

E vão dizer que você

Não é mulher para se confiar

Que tem talento mas que joga fora

E justamente dentro do meu lar

Você vive dizendo

Que o trabalho envelhece a pessoa

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

454
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nao é motivo pra viver a toa

Sempre deixando tudo pra depois

Se algum dia eu cismar

Que para mim você não serve mais

Mando você pra casa dos seus pais

E arranjo outra para o meu amor

Ainda existe no atual discurso do samba tradições paternalistas, ainda que


tenhamos um maior acesso à informação, a música popular brasileira caminha em passos
singelos, a transferência de tradições no próprio ambiente do samba é de fundamental
importância, entretanto, nos surge um questionamento: Em uma nação onde a pluralidade
cultural seja uma das principais características, em que tradição a nossa cultura deve se
apegar?

Fontes documentais:
ALVES, Ataulfo; LAGO, Mario. Ai! Que saudade da Amélia; Samba interpretado por
Ataulfo Alves, lançado em 1942 pela gravadora Odeon;

ALVES, Ataulfo; BATISTA, Wilson; Oh! Seu Oscar; Samba interpretado por Cyro
Monteiro, lançado em 1939 pela gravadora RCA-Victor;

AUGUSTO, Germano; BATISTA, Wilson. Inimigo do batente. Interpretado por Dircinha


Batista; Lançado em 1939 pela gravadora Odeon

BATISTA, Wilson; PINTO, Marino. Oh! Dona Inês. Samba interpretado por Aracy de
Almeida; Lançado em 1940 pela gravadora RCA Victor;

CASCATA,J. (NUNES, Álvaro). Lágrimas de um homem. Samba interpretado por


Orlando Silva; Lançado em 1941 pela gravadora RCA Victor;

MONTEIRO, Ary; PEREIRA, Geraldo. Carta fatal. Interpretado por Odete Amaral;
Lançado em 1944 pela gravadora Odeon;
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

455
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

PEREIRA, Geraldo; PROVENZANO, Arnô. Resignação. Samba interpretado por Odete


Amaral; Lançado em 1943 pela gravadora Odeon;

PEREIRA, Geraldo; GARCEZ, Augusto. Lembras-te daquela zinha?. Samba


interpretado por Roberto Paiva; Lançado em 1941 pela gravadora RCA Victor;

VIOLA, Paulinho. Responsabilidade. Interpretado por Paulinho da Viola; Lançado em


1965 pela gravadora MusiDisc.

Bibliografia:

BASSANEZI, Carla. Mulheres nos anos dourados. In: DEL PRIORE, Mary. História das
mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

BERCITO; Sonia de Deus Rodrigues. O Brasil na década de 1940. São Paulo: Ática,
1999.

BERCITO, Sonia de Deus Rodrigues. Nos tempos de Getúlio: da revolução de 30 ao fim


do estado novo. São Paulo: Atual, 1990.

BURKE, Peter; O que é história cultural(i); Rio de Janeiro: ZAHAR, 2008.

CABRAL, Sergio. Escolas de samba do Rio de Janeiro. São Paulo: Lazuli, 2011.

COSTA, Haroldo. Salgueiro Academia de samba. Rio de Janeiro: Editora Records, 1984.

CUNHA, Diogo; DINIZ, André. República cantada: do choro ao funk. A história do


Brasil através da música. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2014.

CUNHA, Maria Clementina Pereira. Loucura, gênero feminino: As mulheres do Juquery


na São Paulo do início do século XX. Revista brasileira de história; São Paulo; v.9; n.18;
pp.121-144; Agos /setem; 1989;

DIAS, Maria Odilia Silva. Hermenêutica do quotidiano na historiografia


contemporânea. Projeto História: revista do programa de estudos pós-graduandos de
história e do departamento de história da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ;
São Paulo; v.17; n.17;pp.223 - 258 Novembro; 1998;

DINIZ,André.Almanaque do samba – a história do samba, o que ouvir, o que ler, onde


curtir. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2012.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

456
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MATOS,Maria Izilda Santos de; Dolores Duran Experiências Boemias em Copacabana


nos Anos 50;São Paulo: Bertrand Brasil, 1997.

PEREIRA, Cilene Margarete. “Não posso mais: eu quero é viver na orgia”:


malandragem feminina e rejeição do trabalho em sambas das décadas de 1930 e 40.
Crítica Cultural – Critic, Palhoça, Santa Catarina, v. 9, n. 1, pp. 57-69, jan./jun. 2014;

SIMAS, Luiz Antonio; LOPES, Nei. Dicionário da história social do samba. Rio de
Janeiro: Civilização brasileira, 2015.

SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORE,
Mary. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

SOIHET, Rachel. Subversão pelo riso – estudos sobre o carnaval carioca da belle époque
ao tempo Vargas. São Paulo: Edufu, 2008.

TINHORÃO, José Ramos. História da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34,
1998;

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular


tradicional. São Paulo: Companhia das letras, 2015.

SKIDMORE, Thomas Elliot. Brasil: de Getúlio a Castello. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

457
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

COMING OUT IN AMERICA: A ONE MAGAZINE na construção do movimento


LGBTQ estadunidense ( 1953-1968)

CAMILA CARREIRA ALVES BAPTISTA


Universidade Federal Fluminense

Durante os anos de 1950 o estado da Califórnia, nos Estados Unidos, viveu o


surgimento e o crescimento do movimento homophile – a união de gays e lésbica que
com o objetivo de incentivar a cultura ou a organização política homossexual levou ao
surgimento e construção de diversos grupos e instrumentos de luta política por
visibilidade e direitos civis.
O aparecimento de diversas formas de organização, mas principalmente os
folhetins e jornais impressos que circulavam pelos bares, livrarias e pequenos
estabelecimentos comerciais merecem destaque para essa articulação e desenvolvimento
do movimento LGBTQ e a noção de uma identidade queer.
Por muitos anos a questão homossexual era entendida como algo de foro íntimo e
pessoal, um problema a ser carregado pelo indivíduo, e não era pensada como identidade
e parte de uma coletividade.
O tabu da discussão sobre homossexualidade- além das alegações se esse
comportamento poderia ser considerado patologia ou ato criminoso – dificultava a
formação do sentimento de pertencimento à um grupo de minorias ( D’EMILIO, 1998).
Porém o início do movimento homophile na década de 1950, diminui esse “isolamento”
que foi imposto à gays e lésbicas através da perseguição e descriminação por parte da
sociedade e do Estado. Com a mobilização nos espaços públicos e privados, além da
criação de mídias próprias e organizações de combate a descriminação e pela luta de
direitos civis, o movimento LGBTQ toma forma através de grupos políticos e atuantes na
sociedade. Entretenimento, em suas mais variadas formas, sempre foi um meio de
expressão e formação da comunidade LGBTQ estadunidense ( BRONSKY , 2011).
O que começou como publicações voltadas para recreação e divulgação cultural,
como o caso dos impressos de Vice Versa escrito por Lisa Ben194 – a primeira revista

194
Edythe Eyde, escritora e compositora, em 1947 toma a inciativa de produzir o folhetim Vice Versa e
distribuí-lo pelos bares lésbicos de Los Angeles. De acordo com Eyde, a ideia era encontrar encontras outras
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

458
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

lésbica (homophile) no pós-Segunda Guerra Mundial -, torna-se um canal de diálogo e de


informações sobre a vida homossexual. A existência dessas mídias alternativas mostrava
para todos aqueles que se sentiam isolados, ou culpados de seus desejos, que existiam
outros como eles.
Na cidade de Los Angeles, a revista ONE MAGAZINE – A homossexual Point of
View ganhou destaque entre o público homossexual por sua abordagem ao tema da
sexualidade desviante. Através do trabalho de Dale Jennings, Don Slater , Martin Block
e Donald W. Cory – participantes da Mattachine Society - a revista tem seu primeiro
exemplar publicado no ano de 1953.
Apresentando um design inovador para os padrões da época das imprensas
alternativas gay e lésbicas – os exemplares de Vice Versa apresentavam uma formatação
e confecção mais simples e rudimentares e de poucos exemplares – a revista ONE trazia
como conteúdo notícias do cotidiano de Los Angeles e a proposta inicial de pensar um
movimento social de união homophile de caráter internacional através de exemplos de
países como Alemanha.
A ONE também utilizará de meios acadêmicos e científicos para legitimar-se
diante do público homossexual, como por exemplo a coluna semanal da Doutora Blanche
M. Baker195 Toward Understanding, onde a psiquiatra respondia dúvida dos leitores à
cerca da homossexualidade.
Com publicação de artigos e pesquisas vindas de correspondentes europeus, os
editores procuravam estabelecer um embasamento científico para a figura do
homossexual. Uma seção, aberta aos leitores, indicava que a revista estava disposta a
publicar anúncio de pesquisadores que estivem a procura de fontes ou ajuda para conduzir
suas pesquisas sobre homoafetividade.

mulheres que, assim como ela, sentiam-se isoladas na cidade de Los Angeles, criando um canal de
comunicação e produção de poesias e canções que falassem sobre a sexualidade lésbica.
195
A Doutora Blanche M. Baker trabalhou como consultora especialista na ONE Inc. – grupo editorial e
político responsável pela publicação da ONE MAGAZINE- no departamento de Serviço Social entre 1955
e 1958. Em 1958 ela recebe o convite para escrever a coluna Toward Understanding cuja abordagem
variava de possíveis causas da homossexualidade, casamento gay, gays no exército etc. Blanche M Baker
trabalhara como colunista colaboradora até 1960, ano de sua morte.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

459
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Outra postura defendida pela ONE era o casamento homossexual. Por anos a
revista publicou editoriais que questionavam se não seria possível pensar uma união
estável, tal como nos relacionamentos heteronormativos.
Em menos de 8 meses de criação, com publicações mensais, a ONE já atraia a
atenção do governo norte-americano, sendo investigada, inclusive, pelo FBI. Contudo, as
investigações não foram adiante e a perseguição ao material impresso e de seus editores
deu-se pelos Correios.
Numa época em que a grande mídia se referia a gays e lésbicas como
“pervertidos” ou “degenerados”, e que a maioria das notícias encontradas nas páginas dos
jornais tinha como objetivo reforçar a visão negativa que se tinha a respeito da
homossexualidade, a publicação de impressos que defendiam imagem homossexual
serviu como forma de resistência para a comunidade gay e lésbica. Ações violentas
policiais, assassinatos e agressões eram o cotidiano dessa população. E a constante
propaganda em veicular os homossexuais à pedofilia, estupro, assassinato e prostituição
também serão recorrentes nas páginas dos grandes jornais.
Cabe ressaltar, que as mídias impressas não serão a única forma de expressão
dessa identidade gay e lésbica, mas os espaços frequentados por esses indivíduos também
representam e constroem essa identidade e luta política. Porém o surgimento dessas
revistas, em particular a ONE MAGAZINE – cuja tiragem alcançava os 5.000 exemplares
nos primeiros anos de publicação - é uma mudança na forma de se pensar e perceber essa
identidade e a mobilização desses indivíduos.
O nascimento da mídia impressa gay proporcionará algo até então não vivenciado
por esses homens e mulheres, o direito de expressarem suas opiniões sobre eles próprios
e o espaço para terem suas vozes ouvidas. Numa época em que relações homossexuais
eram não apenas um tabu na sociedade americana, mas passíveis de punição legal, a
existência de um canal de aberto de comunicações representaria uma grande mudança em
suas vidas.
A violência fazia parte do cotidiano desses indivíduos, e a invisibilidade frente à
sociedade na qual estavam inseridos demonstrava com clareza o sentimento de desprezo
que era direcionado a esses homens e mulheres. A criação de se seu próprio espaço de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

460
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

diálogo e debate será a resposta dos homossexuais às constantes agressões e a


invisibilidade imposta pela sociedade e suas mídias. (STREITMATTER, 1998.)
Jim Kepner, um importante jornalista homophile da década de 1950, dizia que o
ato de rebeldia dos homossexuais começava no momento em que nasciam. Diante de uma
sociedade que negava sua existência, e perseguia aqueles que ousassem levantar suas
vozes contra a moral, gays e lésbicas se tornavam, nessa perspectiva, rebeldes natos-,
inclusive aqueles que se recusavam a aceitar essa identidade.
Quando Kepner defendeu ser a identidade rebelde inerente ao homossexual em
seu artigo The Importance of Being Different, em março de 1954 para revista ONE, o
ativista também se referia à necessidade de lutar e provar que, de fato, os homossexuais
eram diferentes daquele padrão imaginário que sociedade tentava forçá-los a se encaixar.
O conformismo com os padrões heterossexuais apenas levaria à manutenção de um
sistema que os excluiria. Era preciso se fazerem visíveis e lutar contra a privação de suas
liberdades e perseguição dos indivíduos homossexuais.
Nesse sentido, é possível compreender a aproximação dos movimentos homophile
que se iniciam na mesma década do referido artigo – somente após a década de 1960 esses
indivíduos adotaram a auto-identificação como gays ou lésbicas e, posteriormente a sigla
LGBT- com os demais movimentos de dissenso da sociedade norte-americana.
Não apenas a população gay e lésbica irá se beneficiar das conquistas adquiridas
pelo movimento, principalmente quando falamos do alargamento da compreensão
jurídica sobre Liberdade de Expressão e o direito à felicidade, ambos expressos da
Constituição norte-americana.
A busca pela visibilidade de suas identidades e causas políticas virá através da
mídia impressa que, apesar do início tímido e conturbado, se tornará uma das principais
armas contra a perseguição da sociedade e do Estado às lésbicas e aos gays norte-
americanos entre as décadas de 1950 e 1970.
A ausência da liberdade pessoal será questionada pela revista ONE uma vez que
os próprios ideais de formação da sociedade norte-americana se baseiam nessa concepção
de liberdade. Não há como exigir e acreditar em liberdade- e consequentemente direitos
- para o coletivo, ou seja, para a nação, se o indivíduo não pode exercê-la de fato.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

461
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para os editores, mas também para parte do público leitor, então, seria necessário
o reconhecimento dos homossexuais como americanos - mas também como indivíduos
pertencentes a um grupo que se opõe às concepções do padrão das relações sociais e
possuem o direito de se distinguirem. Aqui, a hipótese da união entre o imaginário de ser
americano, e o de ser homossexual, tem seu início.
A reivindicação por outro princípio da Constituição, “a busca da felicidade” - o
que é algo absolutamente de foro íntimo e, portanto, individual- será uma perspectiva
sempre assumida como parte da identidade americana no imaginário coletivo (BIGSBY,
2006) e também fará parte da formação desse discurso.
Podemos presumir então que identidade homossexual estará atrelada à identidade
americana. Apesar do desejo de serem reconhecidos como diferentes –seja rejeitando a
ideia de uma heteronormatividade como base das relações sociais, ou identificando-se
como uma variável desse modelo - esse movimento não irá reivindicar a separação do ser
americano, como parte do movimento negro faria posteriormente, mas a apropriação
desse conceito imaginário a partir do uso de ideais primários sobre a formação da nação
norte-americana; nesse sentido a ideia de Liberdade estará nos principais discursos dos
radicais da The New Left.
Como observado por Michael Kazin (KAZIN, 2011), a Nova Esquerda- esse
movimento que se desenha sob diversas correntes de pensamento e grupos políticos se
mostra bastante influente em todas as camadas da sociedade norte-americana- será
responsável por mudanças profundas nas relações sociais e políticas dos Estados Unidos,
principalmente por se tratar de um movimento sem características partidárias ou formação
sob uma única legenda.
Será nesse contexto que radicais questionarão as bases imaginárias das relações
sociais, e os entraves que essas promoviam no reconhecimento e conquista das liberdades
individuais e coletivas, que o movimento homophile irá procurar formas de se fazer
visível em todas as esferas políticas e sociais.
O fato de atualmente a imprensa lésbica e gay representar uma indústria
multimilionária, assim como os demais seguimentos do mercado voltados a esse público,
como aponta Bob Ostertag em seu trabalho People’s Movement, People’s Press (2006),

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

462
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

não diminui seu caráter político e as dificuldades que esses jornalistas e ativistas
enfrentaram- e ainda enfrentam- à época.
Ainda que já em 1968 o jornal Los Angeles Advocate (The Advocate, como seria
chamado em 1969), atraísse a atenção de investidores que desejavam anunciar seus
produtos nas páginas das revistas devido ao alto número de exemplares vendidos
mensalmente- cerca de 23,000 após um ano de existência. - não seria apenas o caráter
comercial que chamaria a atenção para esse crescente movimento social e político.
A impressa se situa num campo socialmente produzido de disputas, como afirma
Marta Emisia Jacinto Barbosa ( Sobre História: Imprensa e Memória. 2006). Sendo assim,
é preciso pensar quais eram as ideias defendidas por esses editores da revista e com quais
dialogavam ou discordavam dentro da comunidade LGBTQ dos anos de 1953 a 1968, e
também com a sociedade estadunidense. E como esses discursos sofrem mudanças com
o passar dos anos.
É preciso pensar, também, como se deram as trocas de informações, opiniões e
interação entre os editores e seu público leitor, principalmente nas mudanças que ocorrem
no discurso e no formato da revista.
Após o recebimento de cartas criticando a pouca participação feminina, a linha
editorial sofre mudanças, e passa-se a incluir artigos escritos por jornalistas femininas,
reportagens que também tratavam sobre o preconceito e luta por direitos das lésbicas e
adição ao quadro de funcionários de Joan Corbin ( Eve Elloree), Irma Wolf (Ann Carrl
Reid), Stella Rush ( Sten Russell), Helen Sandoz ( Helen Sanders), e Betty Perdue (
Geraldine Jackson)196.
Outro caso dessa interação do público leitor com a revista é no ano de 1954,
quando a revista precisa passar por uma mudança brusca em seu formato editorial para se
manter em circulação.
Os leitores enviaram inúmeras cartas com reclamações e questionando a ausência
de algumas seções já consolidadas; como a de contos e poemas enviados por leitores ou

196
O uso de pseudônimos será uma prática comum na época para evitar identificação de leitores,
colaboradores e editores dessas mídias LGBTQ impressas. Em relatos pessoais, concedidos em entrevista
para Streimatter, os ativistas relembram das consequências de serem descobertos. Uma prática comum do
Estado ao descobrir a identidade e gays e lésbica era o de comunicar aos empregadores e colegas de trabalho
das práticas sexuais e afetivas desses indivíduos, acarretando a demissão e o ostracismo.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

463
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de autoria de colaboradores da revista (alguns contos publicados ao longo das edições


apresentavam conteúdo considerado erótico); e a seção anúncios pessoais onde os leitores
enviam seus pedidos à procuravam por parceiros/amigos.
Com a manchete de “You Can’t Print it!” , em Outubro de 1954, a ONE informa
aos seus leitores das mudanças que ocorreram e o motivo por detrás delas: apesar da
liberdade dada à circulação das publicações heterossexuais, quando as imagens ou
palavras retratam a mesma situação com pessoas do mesmo sexo, a publicação se torna,
aos olhos dos órgãos estatais, imoral. Por isso, aconselhados por seus advogados, a revista
adota a postura de autocensura.
Em 1954 o senador Republicano Alexander Wiley de Wisconsin, primeiro homem
do Congresso a perseguir abertamente a imprensa gay, pressiona o diretor geral dos
Correios Americanos, Aurthur Summerfield, para retirar a revista ONE de circulação.
Baseado nas alegações do senador, e nos relatórios produzidos pelo a FBI, de que
a publicação seria obscena e imoral, a revista dessa vez é levada à julgamento por infringir
a lei que proibia o envio desse tipo de material pelos correios. Após perder em duas
instancias a ONE garante sua vitória em 1958, estendendo o direito de Liberdade de
Imprensa e Liberdade de Expressão às publicações impressas homoafetivas.
A visibilidade através das revistas e periódicos será fundamental para mobilização
do movimento homophile nesse período. Não apenas a revista ONE irá reivindicar para
si o trabalho da construção da identidade homossexual. Outras duas grandes revistas
contemporâneas à ONE – The Mattachine Review e The Ladder- irão disputar espaço no
cenário político-cultural gay e lésbico.
Nesse sentido, é importante lembrar que cada uma dessas publicações alternativas
teria sua própria linha editorial e que, por vezes, a condução desse debate e a
representação da identidade e realidade homossexual seriam distintas e até opostas.
A The Mattachine Review - nascida em repostas à dissidência dos criadores da
ONE do grupo Mattachine Society - adotará o discurso apenas para o homossexual
masculino, de tom conservador. Para os editores, a aceitação da homoafetividade
aconteceria apenas quando os homossexuais passassem a exercer um comportamento
semelhante ao da heteronormatividade branca.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

464
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A revista The Ladder, por sua vez, surgirá em meio as reuniões do grupo Daughter
of Bilitis que, sentindo-se invisível em meio as discussões e publicações homophiles,
decide criar uma revista voltada ao público lésbico. O nome “The Ladder” é uma crítica
a invisibilidade da mulher na formação do movimento. Para as idealizadoras da revista as
mulheres estavam sendo utilizadas como “escadas” – ferramenta - para a ascensão e
conquista masculina por visibilidade na sociedade estadunidense e liderança do
movimento político.
Com isso, as disputas ideológicas, e pela liderança desse movimento, tornam-se
acirradas sobre a figura do homossexual e qual seria sua identidade.
Porém, a luta contra o preconceito sexual e de gênero esbarra em questões
sensíveis além da moralidade e ética branca cristã-ocidental. E no combate as
representações caricatas e preconceituosas advindas da sociedade, o movimento LGBTQ
reforça e investe em uma identidade padronizada que serve para encaixar seus membros
dentro de um conceito de respeitabilidade.

A mídia, nesse caso, entra como um espaço de construção e desconstrução da


identidade homoafetiva, ou seja, tem como função pedagógica197 de conceber a figura do
homossexual e da homossexualidade.
Mas apesar das diferenças no que se entendia por homossexualidade e ser
homossexual, por vezes as revistas encontravam consenso entre si, principalmente quanto
à política de perseguição implementada pelo Macarthismo, no que ficou conhecido, de
acordo com John D’Emilio ( 1998) como Lavender Scare. Centenas de americanos terão
suas vidas reviradas e perderão seus empregos baseados em medidas de “segurança
nacional” que visavam proteger a nação americana da ameaça Vermelha.
Após o aumento das tensões entre União Soviética e o Estados Unidos, o governo
norte-americano adota medidas de combate ao comunismo dentro do território nacional.

197
Anderson Ferrari em seu artigo para a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
(ANPEd) de 2006, “Bicha Banheirão”e o “Homossexual Militante”: Grupos Gays, Educação e
Construção do sujeito Homossexual, relaciona as interações de homossexuais com os locais onde
frequentam e a formação das identidades homoafetivas, e como os grupos dominantes irão tomar para si a
função pedagógica de construir não apenas o movimento político, como também a figura do homossexual
aceitável.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

465
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O “Red Scare”, ou Perigo Vermelho, foi responsável pela disseminação das ideias anti-
comunistas e a perseguição àqueles que defendiam e militavam a favor desse sistema.
O medo de um ataque interno levou o governo americano a vigiar centenas de
cidadãos baseados na hipótese de serem comunistas ou suscetíveis aos avanços e
artimanhas dos “vermelhos”. O senador Joseph McCarthy, então, liderou a perseguição
aos espiões e traidores da pátria que colocavam em risco a segurança nacional.
A perseguição aos homossexuais no interior do governo tornou-se acirrada tendo
em vista a possível ameaça que esses indivíduos representavam para os Estado Unidos.
A alegação de que gays e lésbicas poderiam facilmente ser chantageados devido suas
“condutas pervertidas e seus desvios morais” deu início à caça às bruxas dentro, e fora,
do serviço público americano.
Não será apenas o Comunismo que servirá como álibi para a demissão e caça aos
homossexuais nos ambientes de trabalho público e também privado; também serão
acusados de crimes contra a moralidade e comportamento transviado. Encontrando o
respaldo na sociedade conservadora e nas leis aprovadas pelo Senado de segurança
nacional- além das já existentes que condenavam sodomia e “práticas” homossexuais- o
Governo associa à figura do homossexual o fim da nação americana. Foram demitidos
mais homossexuais dos cargos públicos do que comunistas.( D’EMILIO, 1998.)

CONCLUSÃO

A luta política e por liberdade através das publicações da imprensa gay nos
Estados Unidos, no início da década de 1950, apesar de seu início na costa oeste
estadunidense, alcançará outros estados e cidades. A própria revista ONE irá circular para
além da cidade de Los Angeles, e será citada pelo The New York Times por sua vitória
na Suprema Corte.
A ONE Inc. também criará o ONE Institute Quarterly: Homophile Studies dando
início aos estudos de sexualidade - o que posteriormente chamaremos de estudos queer.
A realização anual de eventos para pensar a homossexualidade e suas várias identidades
contemplará pesquisadores de diversas áreas das ciências com o desafio de definir a

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

466
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

homossexualidade na sociedade contemporânea e como combater a exclusão e


discriminação.
Porém, a luta contra o preconceito sexual e de gênero esbarra em questões
sensíveis além da moralidade e ética branca cristã-ocidental. E no combate as
representações caricatas e preconceituosas advindas da sociedade, o movimento LGBTQ
reforça e investe em uma identidade padronizada que serve para encaixar seus membros
dentro de um conceito de respeitabilidade.
Essa idealização do homossexual ideal, ou o aceitável dentro do imaginário social,
pode ser utilizado para garantir direitos civis a alguns membros do movimento LGBTQ,
mas a perseguição, ou perda de direitos, para aqueles que não se encaixam no padrão
estabelecido ou até mesmo para outras minorias, como imigrantes. ( PUAR, 2015).
As próprias revistas do período de 1950 a 1970 citadas ao longo desse trabalho
não irão pensar, por exemplo, as questões de transgêneros. Tampouco pensar a identidade
homossexual como ligado, também, às questões de raça e a classe. A exclusão de homens
pobres, imigrantes, ou a invisibilidade lésbica, poderão ser percebidos nos discursos que
tentam criar a imagem do homossexual aos ideais imaginados do ser americano.
Contudo, apesar dessas questões conflituosas, que merecem melhor analise e
atenção, podemos pensar esse início do movimento LGBTQ como o precursor de causas
maiores como a conquista do direito ao casamento civil e o fim da política no exército do
“Don’t Ask, Don’t Tell198”.
Por isso, é preciso repensar o início do movimento político LGBTQ estadunidense
para além da Revolta de Stonewall apenas. Não se pode negar da importância que esse
episódio representou na vida de milhares homossexuais, e como os desdobramentos dessa
revolta trouxeram novas pautas e organizações políticas para o movimento LGBTQ.
Porém as mobilizações iniciais com o movimento homophile que se articularam
por meio de revistas, folhetins e grupos de discussão, para formar uma comunidade gay
e lésbica e tirá-los do isolamento, não pode ser ignorado na história de lutas desses grupos
e como eles irão influenciar as gerações futuras.

198
A política de discriminação e proibição de homossexuais nas forças armadas estadunidenses que foi
revogada em 2010 pelo presidente Barack Obama.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

467
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Com a conquista jurídica da revista ONE, em 1958, novas revistas surgem a partir
da década de 1960. Com isso, novas vozes encontraram seu lugar na composição desse
movimento político e cultural, transformando esse movimento num caldeirão de
identidades em busca de reconhecimento de direitos civis, visibilidade e pertencimento à
nação norte américa.

Bibliografia:

ANDERSON, Benedict: Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a


difusão do nascionalismo.Trad. Denise Bottman. São Paulo. Cia das Letras, 2008.
BARBOSA, Marta E. Jacinto. Sobre História: imprensa e memória. In. MACIEL,
Laura Antune; ALMEIDA, Paulo Roberto; KHOURY, Yara Aun. ( Orgs) Outras
Histórias,: Memória e Linguagem. São Paulo. Editora Olho d’Água. 2006
BERUTTI, Eliane Borges. Gays, lésbicas, transgenders: o caminho do arco-íris na
cultura norte-americana .Rio de Janeiro. EdUERJ. 2010.
BIGSBY, Christopher: Modern American Culture. New York. Cambridge University
Press, 2006.
BLASIUS, Mark (org); PHELAN, Shane (org).We are everywhere: a historical
sourcebook of gay and lesbian politics. p. 323-340, Roytledge, 1997
BRONSKY, Michael. Queer History of the United States. Boston. Beacon Press.2011
CHAUNCEY, George. Gay New York: Gender, Urban Culture, and the Making of the
Gay Male World, 1890-1940. New York: Basic Books, 1994).
D’EMILIO, John. Making Trouble: Essays on Gay History, Politics and the University.
New York. Routledge.1992
______. Sexual Politics, Sexual Communities: Second Edition- The making of a
Homosexual Minority in The United States 1940-1970. University of Chigado
Press.1998.
ESKRIDGE Jr, William N. Privancy Jurisprudence and the apartheid of the closet,
1946-1961.In: MASON LADD LECTURE. 1996. Florida. Florida State University Law
Review.1997. ( Disponível em:
http://www.law.fsu.edu/journals/lawreview/frames/244/eskrtxt.html#heading1)
FERRARI, Anderson. “Bicha Banheirão”e o “Homossexual Militante” : Grupos gays,
Educação e Construção do Sujeito Homossexual. In: Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação. Caxambu. 2006
FONER, Eric . The Story o f American Freedom. W. W. Norton & Company September
17, 1999
GOSSE,Van.The Movements of The New Left, 1950-1975. A Brief History with
Documents. New York. Palgrave Macmillan.2005.
KATZ, Jonathan N. Gay American history: lesbians and gay men in the U.S.A. : a
documentary history. New York.Meridian.1992.
KAZIN, Michael. American Dreamers: How the Left Changed a Nation. New York.
Vintage Books. 2011.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

468
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

KEPNER, James (Jim). Rough News, Daring Views: 1950’s Pioneer Gay Press
Journalism. Binghamton, New York. Harrington Park Press, 1998.
LOFTIN, Craig M.(Editor). Letters to ONE: Gay and Lesbian Voices from the 1950s
and 1960s .New York.State University of New York Press .2012
MCRUER,Robert. Queer America In: BIGSBY, Christopher (Org.) The Cambridge
Companion to Modern American Culture. Cambridge University Press. 2006.
OSTERTAG, Bob. People’s Movements, People’s Press: The Journalism of Social
Justice Movements, Beacon Press, Boston 2006.
PUAR, Jasbir K. Homonacionalismo como Moisaco: Viangens,Viriais ,Sexualidades
Afetivas. Revista Lusófona de Estudos Culturais. Vol. 3, n. 1. 2015. pp.-297-318.
STREITMATTER,Rodger. Unespeakable: The Rise of the Gays And Lesbian Press in
America. Massachusetts. Faber and Faber.1995.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

469
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

História, Identidade e Memória: o Instituto do Ceará e a construção da


“Terra da Luz” (1884-1956)

CAMILA DE SOUSA FREIRE


Programa de Pós graduação em História Social - FFP/UERJ
Bolsista FAPERJ

O trabalho em questão tem por objetivo perceber como o movimento abolicionista


cearense, que ocorreu entre 1881 e 1884, e que culminou com a libertação de todos os
escravos naquela província em 1884, foi tratado posteriormente pelo Instituto Histórico,
Geográfico e Antropológico do Ceará, já na primeira metade do século XX. Pensamos
como esse acontecimento contribuiu para fortalecer a identidade regional no Ceará ao
mesmo tempo em que contribuía para a escrita da história nacional, empreendida pelo
IHGB. Analisamos ainda a relação entre centro e periferia e o conceito de alteridade nas
trocas entre o Ceará e o Rio de Janeiro, a partir da relação entre as duas instituições já
mencionadas e pela forma como a libertação dos escravos naquela província foi vista
pelas demais províncias do Império. A questão da formação de uma identidade regional
que contribuísse para uma identidade nacional também ganha importância, assim como a
relação entre história e memória na escrita da história. Buscamos perceber ainda em que
medida a mudança ocorrida no movimento abolicionista cearense, inicialmente visto
como radical por seus contemporâneos, e que adquire um caráter mais emancipador ao
final – fato inclusive muito destacado pelos próprios abolicionistas como motivo de
orgulho – contribuiu para que a libertação dos escravos no Ceará em 1884 fosse vista
como um exemplo pelas demais províncias. Entendemos ser importante também uma
análise do contexto de formação das identidades nacionais e da própria ideia de nação, no
qual está inserida a fundação dos dois institutos e a própria história que buscavam
escrever.
É na década de 1880, em um período de transição da monarquia para a República,
que é fundado o Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará, em 1887. Este
é criado como instituição congênere ao IHGB, de caráter científico e cultural, com o
objetivo de tornar conhecidas a História e a Geografia da província, bem como seus
aspectos antropológicos, que contribuíram para a formação da identidade regional e
também para a identidade nacional. Seus fundadores foram homens abastados da capital
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

470
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

cearense, entre eles políticos, médicos e jornalistas (BARCELOS, 2016, p.111). Este
seguirá as mesmas características do IHGB, de valorização do documento como indicador
da verdade histórica, o que legitimaria a nacionalidade. Estes institutos seriam marcados
pela influência, além do Iluminismo, do Romantismo, como nos fala Francisco Falcon:
(...) associou as ideias de povo e nação como constitutivas de uma
mesma identidade coletiva manifesta na língua, na história e na cultura
comuns. Identificada como alma ou espírito nacional, a realidade
intrínseca de cada povo-nação representa uma individualidade histórica
irredutível. A história será sempre, então, a história dessas realidades
únicas, que tem no Estado sua expressão política. Caberá então ao
Estado-nação o lugar de honra no campo da historiografia do
Oitocentos. [grifo no original]. (FALCON, 1997, p. 103)

O Instituto do Ceará foi fundado em um contexto onde agremiações como esta


eram caracterizadas por suas práticas intelectuais e políticas, ou seja, imbuídas de um
caráter científico, também se interessavam e interferiam politicamente em seu meio social
através de suas produções. Gleudson Passos Cardoso aborda em seu trabalho os
movimentos intelectuais que ocorreram no Ceará entre 1873 e 1904, focalizando
principalmente nas organizações e movimentos literários. Este nos mostra o contexto de
efervescência intelectual pelo qual passava o Ceará naquele momento, principalmente em
Fortaleza. Lá eram pensados modelos de Estado e nação no período de fim da monarquia
e das décadas iniciais do regime republicano. Acreditamos que o Instituto do Ceará esteja
inserido neste contexto a partir de 1887, como instituição que legitimaria a identidade
regional cearense a partir do uso da memória daquele acontecimento na escrita da História
da província. Gleudson Cardoso (2000) defende que houve nesses espaços letrados a
construção de um “ideário ilustrado cearense para o Estado e Nação brasileiros diante da
transição política” (CARDOSO, 2000, p. 10). Ideário fundamentado em três bases: a
chegada das ideias eurocêntricas que norteavam o progresso rumo à civilização e que
conquistavam espaço entre os intelectuais cearenses naquele período; as secas, que foram
interpretadas como uma fase evolutiva, dentro dos conceitos evolucionistas também em
voga naquele momento; e a libertação dos escravos em 1884, tida pelos intelectuais da
Mocidade Cearense199 como uma conquista institucional perante o restante do país.

199
Movimento letrado ocorrido no Ceará na década de 1870 e que deu origem a agremiações, clubes e
sociedades literárias.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

471
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Assim, cria-se a imagem do cearense forte, que supera todas as adversidades do


meio e que apesar das dificuldades ainda se preocupou com seus semelhantes, no caso os
cativos, possuindo por isso uma personalidade especial (CARDOSO, 2000, p. 12).
Imagem esta que foi fortalecida pelo Instituto do Ceará, como se pode constatar em seus
artigos que tratam da abolição, onde se afirma que logo após a seca de 1877 a 1879, após
muito sofrimento, o cearense teria se engajado na luta pela libertação dos escravos,
mostrando sua abnegação e coragem. Aspectos enfatizados inclusive pelos próprios
abolicionistas em 1884, como veremos mais adiante. Gleudson Cardoso aborda ainda as
questões políticas que ocorreriam no Ceará naquele momento de transição que o país
passava, onde as oligarquias que então detinham o poder político buscavam meios de se
adaptar aos novos rumos tomados no país. Esses órgãos literários teriam servido a esses
objetivos na medida em que, através de sua produção, buscavam inserir a população no
novo contexto que se formava, fazendo crer que o país adentrava na modernidade,
alcançando finalmente a civilização e o progresso, ideais caros à República. Ao mesmo
tempo em que os órgãos de imprensa, cada um deles propriedade de um chefe oligárquico,
mantinham o mesmo objetivo. É neste contexto que buscamos situar o Instituto do Ceará.
Este, com o objetivo de tornar conhecida a história da província e a produção
destes intelectuais neste sentido, fundou sua própria revista, a Revista do Instituto do
Ceará, em 1887, no mesmo ano da fundação do Instituto. A revista é remetida, desde sua
fundação, para instituições brasileiras e de diversos países, como França, Alemanha,
Portugal, Espanha, Estados Unidos, Argentina, Peru, Chile, México, entre outros. No
Brasil, era enviada para institutos de diversas províncias, como Pará, Rio Grande do
Norte, Paraíba, Recife, Sergipe, Espírito Santo, Curitiba, Rio de Janeiro, entre outros. No
Rio de Janeiro, a revista era enviada para instituições como o IHGB, o Museu Nacional,
o Arquivo Público Nacional, a Biblioteca Nacional, entre outros. Dessa forma, podemos
perceber os contatos mantidos pelo Instituto do Ceará com os demais institutos do
Império, em relações de trocas intelectuais constantes.
Nos artigos analisados da Revista podemos perceber um claro trabalho de
fortalecimento de uma memória coletiva regional que mostrasse o quanto o Ceará teria
contribuído para a história nacional. Fica clara também a busca pelo reconhecimento de
seus supostos feitos e pelo olhar das outras províncias e de outros países, desejo este
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

472
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

presente desde o momento em que o movimento abolicionista se desenrolava, e que


adentra o período republicano, como exemplificamos, na tentativa de cooperação na
escrita da história nacional. Tzvetan Todorov (2014) nos esclarece sobre a busca por
reconhecimento através do olhar do outro, aspectos muito presentes nos discursos dos
abolicionistas cearenses e dos membros do Instituto. Para ele, o reconhecimento é uma
condição inerente à própria existência do ser humano, confirmando-a a partir do outro.
Sendo assim, toda coexistência em sociedade é uma constante busca por reconhecimento.
É o que percebemos na relação do Ceará com o restante do país, principalmente com o
Rio de Janeiro, tanto em 1884 quanto nas primeiras décadas da República, pois o Rio de
Janeiro era considerado o centro econômico e político do país. Reconhecimento que já
era pretendido desde o momento em que se desenrolava o movimento abolicionista.
Naquele momento, os próprios abolicionistas cearenses já viam aquele movimento como
pioneiro e como algo que ficaria marcado para a posteridade, como se pode ver nos
trechos destacados a seguir, presentes no jornal Libertador, órgão da Sociedade Cearense
Libertadora, importante associação abolicionista daquela província, nos quais procurava-
se destacar a importância daquele evento para a história do país:
(...) Fadado para as conquistas da liberdade e da luz, o Ceará
collocando-se na vanguarda do movimento emancipador, tem dado ao
paiz e ao mundo, os exemplos mais edificantes de patriotismo e
abnegação, provando ao mesmo tempo, que é simplesmente loucura
resistir áidéa. (LIBERTADOR, 1883, p. 2)

Podemos perceber uma formação identitária inicialmente no próprio movimento


abolicionista, forjando a ideia do Ceará como “Terra da Luz”, alcunha dada por José do
Patrocínio, no sentido de que iluminaria as outras províncias a partir do seu exemplo,
alcançando todo o país. Como já destacamos, nesta identidade, forjada naquele momento,
e na memória que esses abolicionistas queriam deixar para a posteridade está a ideia de
que o Ceará, apesar de ser uma província pobre, já estaria, pela suposta abnegação de seu
povo, “fadado” a esta conquista, como vemos no trecho acima, bem como às glórias e
honras advindas da mesma. Buscaram também, ao final, destacar que em sua atuação não
houve derramamento de sangue ou perturbação da ordem social e, por isso, poderiam ser
tomados como exemplo pelas demais províncias do Império. Além disso, eles estavam
contribuindo para uma causa civilizatória e patriótica, encaminhando o Brasil para o rol

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

473
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

dos países civilizados. Esta era a memória que desejavam que fosse preservada, e que
será efetivada pelo Instituto do Ceará. Segundo Michael Pollak (1989), a função da
memória é:
(...) a de definir e reforçar o sentimento de pertencimento e as fronteiras
sociais entre as coletividades, além de manter a coesão dos grupos e
instituições. Essas tentativas são mais ou menos conscientes e
obedecem a uma interpretação do passado que dá sua diretriz.
(POLLAK, 1989, p. 7)

Sua função é então a de dar coesão e identidade a um grupo. Pollak nos diz ainda
que a memória, coletiva ou individual, é formada por acontecimentos, identificação com
certo período histórico (ou memória herdada), personagens e lugares e que todos esses
aspectos são comuns ao grupo. Logo, a memória constitui a identidade, sendo construída,
forjada e seletiva. Ao abordar a questão da memória nacional ele diz que: “A memória
organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e
são comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados
na memória de um povo” (POLLAK, 1992, p. 204). Não são todas as memórias do grupo
que fazem parte da história nacional, mas algumas são selecionadas em detrimento de
outras no momento em que a nacionalidade é forjada. Essas memórias são também
disputadas por grupos políticos e podem inclusive valorizar determinados grupos frente
à sociedade em geral. Benedict Anderson (2008) fala sobre essa manipulação da memória
a serviço da formação da nacionalidade. Para ele “a essência de uma nação consiste em
que todos os indivíduos tenham muitas coisas em comum, e também que todos tenham
esquecido muitas coisas.” (ANDERSON, 2008, p. 272). É o que vemos acontecer com o
Ceará no contexto analisado. Buscou-se a formação de uma identidade a partir da
memória de seu movimento abolicionista para que o Ceará fosse valorizado diante das
demais províncias do Império e das nações ditas civilizadas. O papel de fortalecer essa
identidade coube, em grande parte, ao Instituto do Ceará, em contribuição com o IHGB,
tanto no período monárquico quanto no republicano. Este por sua vez escreveria uma
história legitimadora da nação.
Alguns personagens também foram utilizados para a formação de uma identidade
cearense, destacando-se a atuação destes no movimento abolicionista ou seu trabalho em
favor da emancipação dos escravos, como Francisco José do Nascimento e Pedro Pereira

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

474
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

da Silva Guimarães, por exemplo. Francisco José do Nascimento se tornou o grande herói
da greve dos jangadeiros, movimento ocorrido no porto de Fortaleza, quando os
jangadeiros, responsáveis pelo transporte dos escravos até os navios, negaram-se a fazê-
lo, sob o grito de “no porto do Ceará não embarcam mais escravos!”, nos dias 27, 30 e 31
de janeiro de 1881. Naquele momento, Francisco do Nascimento era prático-mor, posto
mais alto entre os jangadeiros e, sendo o líder da greve, foi exaltado após a abolição na
província e até hoje é conhecido como o Dragão do Mar. Já o Dr. Pedro Pereira da Silva
Guimarães teve sua figura resgatada no contexto do movimento abolicionista, por ter sido
um dos primeiros deputados a defender um projeto de lei pela emancipação dos escravos
recém nascidos. Este é de 1850 e embora não tenha sido aprovado, é tido pela
historiografia cearense como precursor da Lei do Ventre Livre, além de ter defendido o
fim da separação de escravos casados por venda. No momento do movimento
abolicionista a atuação de Pedro Guimarães é resgatada na tentativa de legitimar o
pioneirismo da província do Ceará, que mais uma vez teria saído na frente pela resolução
da libertação dos escravos.
Anne-Marie Thiesse (1995) se propõe em seu trabalho a pensar o regionalismo na
França durante a Terceira República (1870-1940). Ela procura demonstrar como, durante
esse período, o regionalismo foi utilizado para demonstrar ao mesmo tempo a diversidade
e a união da França, onde a diversidade compunha a nacionalidade. Assim, o regionalismo
não foi construído em oposição ao nacional, mas para completar e corrigir o centralismo
excessivo em Paris, que começou a ser contestado em meados do século XIX. Dessa
forma, Thiesse destaca que “o regionalismo, portanto, desempenha na história francesa
um papel de consolidação da identidade nacional, relegado com frequência ao segundo
plano, mas subitamente colocado em evidência nos períodos de crise intensa” (THIESSE,
1995, p. 5). Crise que naquele momento tinha como principais motivos este centralismo
político e econômico em Paris, visto como um desequilíbrio; e a derrota francesa para a
Alemanha na Guerra Franco-prussiana em 1870, que levou dirigentes e intelectuais a
buscarem novos elementos que demonstrassem a excelência francesa. Essa grandeza
consistia em sua diversidade, que fazia da França um país “abençoado pela natureza” e
“o resumo ideal de toda a Europa” (THIESSE, 1995, p. 6).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

475
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Assim, o patriotismo consistia em “conhecer, amar e avivar” (THIESSE, 1995, p.


7) a diversidade francesa. Ela destaca que a escola teria importante papel neste sentido,
já que era ali que as crianças primeiramente aprendiam sobre a “pequena pátria”, a região,
para depois aprender sobre a “grande pátria”, a nação, onde a região estaria inserida,
contribuindo para a sua unidade. Ela destaca o surgimento de Sociedades Regionalistas a
partir do início do século XX, assim como museus de folclore, festivais de danças
folclóricas e uma importante produção literária, de grande êxito entre o público, entre os
anos de 1900-1930. Ela cita ainda a Exposição Internacional de Artes e Técnicas,
realizada em Paris em 1937, onde os países tiveram oportunidade de expressar sua
identidade nacional e seus projetos políticos, tendo a França como tema de sua seção o
regionalismo.
Dessa forma, a autora nos mostra como na França, o regionalismo atuou
fortemente como elemento de consenso da consciência nacional, sendo utilizado no
sentido de união. Propunha-se ainda como agente da paz social e superação dos conflitos,
sendo utilizado em momentos de crise, onde cada região possuía sua identidade própria,
iguais em direitos, que se complementavam no todo nacional. O que não foi diferente do
que aconteceu no Brasil, onde buscava-se uma hegemonia diante da diversidade do país
na composição da nacionalidade. No que diz respeito à escrita da história, que é nosso
objeto principal, vemos como o IHGB buscou a cooperação das regiões, que a partir de
suas histórias peculiares, contribuiria para a história e identidade nacional, ao mesmo
tempo que fortaleciam suas próprias identidades regionais, como no caso do Ceará.
Pierre Bourdieu (1989) afirma que nas lutas pela identidade regional, deseja-se os
meios de divisão pelos quais se formam, se reconhecem e se legitimam os grupos. Essa
divisão legítima consiste no “ato de autoridade” de “circunscrever a região, o território”
e de “impor a definição (...) legítima, conhecida e reconhecida, das fronteiras e do
território, em suma, o princípio de di-visão legítima do mundo social.” (BOURDIEU,
1989, p. 114). Pois, nas lutas regionais, os grupos são estigmatizados e essas divisões
territoriais e sociais são arbitrárias, impostas por aqueles que possuem “autoridade”, que
consiste em se afirmar uma verdade, que gera reconhecimento, produzindo “a existência
daquilo que se enuncia” (BOURIDEU, 1989, p 114). Assim, a figura de autoridade – que
podemos dizer ser o centro, dentro da perspectiva adotada por Ginzburg, que discutiremos
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

476
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

adiante – impõe todas essas características à região ao afirmar “com autoridade, quer
dizer, à vista de todos e em nome de todos, publicamente e oficialmente, ele subtrai-as ao
arbitrário, sanciona-as, santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir como dignas de
existir, como conformes à natureza das coisas (...)” (BOURDIEU, 1989, p. 114). Assim,
é justamente essa autoridade que os grupos regionais buscam subverter, e pegar pra si,
para poder caracterizar sua própria identidade.
Ele fala ainda sobre o discurso regionalista, que ele diz ser performativo, tendo
em vista “impor como legítima uma nova definição de fronteiras e dar a conhecer e fazer
reconhecer a região assim delimitada” (BOURDIEU, 1989, p. 116), em oposição a uma
definição dominante já existente. A eficácia do discurso performativo consiste na
autoridade de quem o enuncia. O discurso produz o que está enunciando, mas quem
anuncia deve estar imbuído de autoridade para tanto. Aqui é importante destacar também
a abordagem do autor sobre o papel do discurso científico para legitimar determinadas
classificações. Pensamos ser interessante observar o Instituto do Ceará sob este prisma,
como um lugar de autoridade para emitir estes discursos científicos, já que este pode ser
importante para atrair o reconhecimento para a região. O que é justamente o objetivo do
Instituto do Ceará. Para Bourdieu, “qualquer enunciado sobre a região funciona como um
argumento que contribui – tanto mais largamente quanto mais largamente é reconhecido
– para favorecer ou desfavorecer o acesso da região ao reconhecimento e por este meio à
existência” (BOURDIEU, 1989, p. 120), já que o reconhecimento confere existência, de
acordo com Todorov, como já vimos. Bourdieu também adota esse ponto de vista ao dizer
que nas lutas regionais os agentes colocam toda sua vitalidade, todo seu “ser social”
(BOURDIEU, 1989, p. 124), já que o valor do indivíduo se reduz à sua identidade. Eles
colocam em jogo o que entendem por “nós” em oposição aos “outros” (BOURDIEU,
1989, p. 124).
Assim, a luta regional teria como objetivo a “reapropriação coletiva deste poder
sobre os princípios de construção e de avaliação da sua própria identidade
(...)”(BOURDIEU, 1989, p. 125). Para tanto, eles se utilizam até mesmo dos estigmas que
lhes são impostos em seus discursos por reconhecimento. O estigma confere as
determinantes simbólicas e seus “fundamentos econômicos e sociais” que se tornam os
“princípios de unificação do grupo e pontos de apoio objetivos da ação de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

477
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

mobilização”(BOURDIEU, 1989, p. 125). É o que também vemos ocorrer no caso do


Ceará, que utiliza o estigma de província pobre, castigada pelas secas, para alcançar
reconhecimento na medida em que, apesar dessas características adversas do meio,
conseguira um feito considerado tão glorioso como ser a primeira província do Brasil a
libertar todos os escravos. A luta regionalista seria também uma “resposta à
estigmatização que produz o território” (BOURDIEU, 1989, p. 126). Se a região não fosse
um “espaço estigmatizado”, ou seja, uma província definida pela distância econômica e
social em relação ao centro, privada do capital material e simbólico, que se concentra
também no centro; não poderia reivindicar uma existência. Aqueles que fazem parte da
região estigmatizada lutam justamente porque esta “existe como unidade negativamente
definida pela dominação simbólica e econômica (...)”(BOURDIEU, 1989, p. 126).
Nesse sentido, buscamos analisar a relação entre o Ceará e o Rio de Janeiro a partir
da relação entre centro e periferia, abordada por Carlo Ginzburg (1989). Este analisa a
história da arte italiana, onde Roma era considerada o centro, atraindo artistas de diversas
províncias da Itália, impondo as técnicas e estilos de arte a serem seguidos pelos demais.
Logo, o centro é caracterizado pela imposição de modelos e como um lugar de atração,
dominando política e culturalmente as periferias. Porém, essa relação entre o centro e as
periferias é conflituosa, fluida e passível de transformações. Apesar de o Rio de Janeiro
ter se caracterizado como centro, por ser então a Corte e a partir de suas atividades
econômicas e culturais, principalmente com o desenvolvimento da atividade cafeeira, que
se tornou o pilar da economia nacional; e o Ceará, como uma província pobre e fustigada
pelas secas, caracterizada como periferia, vemos que estas definições mudam durante o
movimento abolicionista, com o Ceará se tornando o centro das atenções nacionais.
Inclusive era constantemente notícia na imprensa da Corte (MACHADO, 2014).
A notícia da abolição dos escravos do Ceará, que seria formalizada em uma
cerimônia no dia 25 de Março de 1884, causou grande comoção no Rio de Janeiro, onde
houve comemorações por meses, sendo o ponto alto a visita do jangadeiro Francisco José
do Nascimento, o Dragão do Mar (FERREIRA, 2010). Nesse momento, o Ceará estava
literalmente no centro das atenções, no centro do Império, demonstrando essa inversão
da relação entre centro e periferia. Assim, foi nesse momento que se consolidou a imagem
da Terra da Luz. Segundo Angela Alonso, “se cristalizava o esquema interpretativo da
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

478
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Terra da Luz contra as trevas da escravidão” (ALONSO, 2015, posição 3160). Imagem
fortalecida posteriormente pelo Instituto do Ceará, como vemos em um artigo da Revista
do Instituto do Ceará no qual o autor diz que “O lustro que vai de 1880 a 1884 é o
qüinqüênio de nosso esplendor histórico e foi nele que o Ceará conquistou a antonomásia
de Terra da Luz” (MOTA, 1984, p. 227). Em outro artigo, Alba Valdez, após destacar a
vergonha que os cearenses sentiam pela escravidão e como superaram as adversidades
naturais para lutar por seu fim, afirma que “aconteceu que naquelle dia 25 de março, para
sempre memorável, o sol offuscante dos trópicos saudava a primeira terra brasileira onde
todos eram livres, a qual um negro de genio por justos motivos cognominou – Terra da
Luz” (VALDEZ, 1984, p. 244).
Dessa forma, diante dos exemplos citados, podemos perceber o trabalho
empreendido por aquele Instituto na tentativa de formação de uma identidade a partir da
memória da abolição dos escravos em 1884. Inclusive alguns associados do Instituto do
Ceará estiveram diretamente envolvidos no movimento abolicionista naquela província,
como, por exemplo, o Barão de Studart, Antonio Bezerra de Menezes, Rodolpho Teophilo
e o padre João Augusto da Frota. Estes buscaram levar a memória daqueles
acontecimentos para o Instituto do Ceará, que atuou diretamente junto ao IHGB e a outras
instituições do Rio de Janeiro a fim de lhe conferir um lugar na história nacional. Assim,
vemos como foi empreendido o trabalho do Instituto do Ceará em relação à história da
abolição dos escravos naquela província, consolidando-a no momento de reconstrução da
nacionalidade brasileira, já nos últimos anos da Monarquia e no início da República. Uma
história que contaria com elementos da memória coletiva construída sobre a abolição e,
ao mesmo tempo, contribui para sua consolidação.

FONTES:

Jornal Libertador:
Libertador, nº 159, 1883.
Revista do Instituto do Ceará:
MOTA, Leonardo. O dia do Ceará. Revista do Isntituto do Ceará. Fortaleza: Edições
Universidade Federal do Ceará, 1984.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

479
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

VALDEZ, Alba. Uma data cearense. Revista do Isntituto do Ceará. Fortaleza: Edições
Universidade Federal do Ceará, 1984.

BIBLIOGRAFIA:

ALONSO, Angela. Flores, Votos e Balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-


88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do
nacionalismo.São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BOURDIEU, Pierre. “A identidade e a representação: elementos para uma reflexão crítica
sobre a ideia de região”. In: O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil,
1989, pp. 107-132.
CARDOSO, Gleudson Passos. As Repúblicas das letras cearenses: literatura, imprensa
e política (1873-1904). Dissertação de Mestrado. Pontíficia Universidade Católica de São
Paulo, 2000.
FALCON, Francisco. “História e poder”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS,
Ronaldo (Orgs). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro:
Campus, 1997, pp. 97-138.
FERREIRA, Lusirene Celestino França. Nas asas da Imprensa: A repercussão da
abolição da escravatura na província do Ceará nos periódicos do Rio de Janeiro (1884-
1885). Dissertação de Mestrado. São João del-Rei – UFSJ. 2010.
GINZBURG, Carlo. “História da arte italiana”. In: GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO,
Enrico; PONI; Carlo (Orgs). A Micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 1989.
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
n. 1, p. 5-27, 1988.
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal.Da Escola Platina ao Silogeu: Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007.
MACHADO, Humberto fernandes. Palavras e Brados: José do patrocínio e a Imprensa
abolicionista do Rio de Janeiro. Niterói: Editora da UFF, 2014.
POLLAK, Michael. “Memória e Identidade Social”. Estudos Históricos, RJ, vol 5, n. 10, 1992,pp.
200-212.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

480
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

______. “Memória, Esquecimento, Silêncio”.Estudos Históricos, RJ, vol.2, n.3,1989,pp. 3-15.


SILVA, Ana Paula Barcelos Ribeiro da. “‘Nem História nem mesmo Chronica’: escrita
da história, identidade e integração nacional no intercâmbio entre o IHGB e o Instituto do
Ceará (1889-1931)”. R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177(471): 101-124, abr./jun. 2016, p.
111.
TODOROV, Tzvetan. A vida em comum: Ensaio de Antropologia Geral. São Paulo:
Editora Unesp, 2014.
THIESSE, Anne-Marie. “’La Petit Patrieenclosedansla grande’: regionalismo e
identidade nacional na França durante a Terceira República (1870-1940)”. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15, 1995, p. 3-16.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

481
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Corpos e comportamentos desviantes nos discursos e práticas médicas

CARINE NEVES ALVES DA SILVA


Doutoranda do Programa em História das Ciências e da Saúde da
Casa de Oswaldo Cruz – Bolsista Fiocruz.

Introdução

Neste artigo, adotamos a compreensão das doenças como entidades biológicas,


objetos multifacetados e fenômenos históricos socialmente construídos e negociados por
diversos atores e instituições médico-científicas e não médico-científicas em múltiplas
dimensões da existência humana. A doença, apesar de não ser apenas social, é atravessada
pela coletividade em todas suas dimensões; o corpo, seguindo a mesma linha de
pensamento, também não é algo dado, mesmo biologicamente, na medida em que ele
recebe múltiplas e circunstanciadas inscrições. A medicina, por seu turno, é apreendida
como uma atividade sociocognitiva produzida na interface entre o indivíduo e a ordem
social.
Segundo Rosenberg (1992), na medicina ocidental, uma doença para existir
enquanto um fenômeno social reclama determinado consenso e um processo de nomeação
(ROSENBERG, 1992, p. XIII). Neste sentido, muitos comportamentos sociais foram
classificados como doenças a despeito de possuírem uma base somática obscura ou
inexistente e implicaram, assim como outros “diagnósticos acordados”, não só em
terapêuticas particulares, mas em um ordenamento social consequente. Para o autor, a
doença é tanto um objeto como uma espécie de ator, pois, uma vez enquadrada, ela passa
a enquadrar a própria sociedade.
No início do século XIX, uma visão ontológica da doença se tornaria
preponderante em relação a uma visão fisiológica do adoecer. Nesta última, a doença não
existiria para além do doente, sendo, portanto, um fenômeno de caráter idiossincrático, o
qual devia ser apreendido por uma série de variáveis. Na perspectiva ontológica

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

482
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(universalista), a doença é um ente, existe por si só, tem uma causa, um decurso e uma
narrativa específica em detrimento do doente, em suma, sua própria ontologia.
A Psiquiatria europeia do século XIX e início do XX, notadamente o modelo
neuropsiquiátrico germânico, a partir de uma perspectiva ontológica e anatomoclínica,
passava a defender a ideia de que a doença psiquiátrica era orgânica, ou seja, tinha um
sítio específico (ainda que oculto), uma causa objetiva e um potencial evolutivo. Esta
inferência está relacionada à emergência da concepção de degenerescência do psiquiatra
franco-austríaco Augustin Morel200 (1857), na qual a doença é apreendida a partir de uma
etiologia e não por meio de uma sintomatologia eminentemente “moral” como era na
escola francesa de Pinel e Esquirol. Morel definia as degenerescências como desvios
patológicos de caráter hereditário, que podiam ter origem física ou moral. Os processos
de degeneração nervosa desencadeavam-se tanto em função de intoxicações diversas
como de distúrbios psíquicos oriundos de comportamentos anormais, perversos
(PORTOCARRERO, 2002, p. 49-50). Deste modo, esses comportamentos deviam ser
acompanhados longitudinalmente, como é balizado pelo psiquiatra alemão Émil
Kraepelin (1856-1926), a fim de se compreender e mesmo prevenir o surgimento das
próprias patologias. Tais pressupostos provocaram um experimentalismo no campo
psiquiátrico, o qual colocava em jogo o próprio estatuto de cientificidade dessa disciplina
e, concomitantemente, sua própria capacidade de disciplinarização e normalização dos
sujeitos no novo contexto do igualitarismo moderno.
Novas matrizes espaciais e temporais históricas marcadas, por um lado, por
processos de urbanização e de industrialização e de modernizações do Estado e da ciência,
e, por outro, por movimentos sociais variados, inclusive, em prol da emancipação
feminina, desenhavam um quadro de acirradas lutas pelo poder. O longo século XIX
implicaria a criação de novas possibilidades de relação de gênero e de divisão sexual do
trabalho, que, tradicionalmente, reservariam à mulher o espaço privado e, ao homem, o
público.

200
A teoria da degenerescência foi apresentada por Bénedict-Augustin Morel (1809-1873) no Traité des
dégénérescences psysiques, intelectuelles et morales de l´espèce humaine et des causes qui produisent ces
variétés maladives publicado em 1857.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

483
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Diferença sexual, reprodução e maternidade

Segundo Laqueur (2001), na verdade, desde o início do século XVIII, atestar as


diferenças organicamente fazia parte de um projeto político. O autor aponta que a
construção da diferença sexual incomensurável no âmbito do modelo dos dois sexos não
resultou de novas descobertas, mas, ao contrário, se estabeleceu a despeito do surgimento
de fatos biológicos como os ligados à embriogênese. Além do mais, para o autor, o
modelo dos dois sexos é, assim como o galênico do sexo único, fundamentalmente,
produto da cultura: construído por uma linguagem científica inseparável da de gênero
(LAQUEUR, 2001, p. 193).
Deste modo, a ciência não toca a natureza da diferença sexual, mas produz essa
diferença através de suas próprias proposições, interpretações e representações ideais
estéticas. A questão não é simplesmente o que e como se vê – aquilo que se revela
(estável) –, mas, sobretudo, o que e como se olha e ainda se deseja e se consegue
apresentar (instável). O poder do gênero, no qual se pautara o modelo do sexo único,
entrava em colapso na nova ordem social e os “fatos” do sexo biológico deveriam
reorganizar o mundo. Na verdade, é possível apreender nos dois modelos o desejo de
representar a mulher como um ser mais inferior em relação ao homem para explicar e
justificar seu lugar social subalterno.
Na filosofia isomorfista, a mulher era representada como um homem
internalizado. Até mesmo as nomenclaturas no que tange aos órgãos reprodutivos eram
entrelaçadas; ovários eram testículos ou pedras femininas. Mas a biologia “científica” não
demoraria em desatar esses nós e as genitálias, de modo especial, desnudariam a nova
diferença incomensurável. O campo de batalha havia se descolocado para o sexo
biológico e a ciência significaria os gêneros através dos corpos. No caso da mulher, esta
passou a ser qualificada de modo quase sempre negativo pelos seus órgãos reprodutivos,
precisamente por ser, praticamente, reduzida aos seus ovários (LAQUEUR, 2001, p. 189-
190).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

484
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A grande função desse órgão na vida da mulher firmava-se, na verdade, em


direção a sua própria extirpação. A ovariotomia bilateral, retirada cirúrgica de ovários
histologicamente normais, desde o seu surgimento no início dos anos de 1870, tornou-se
célebre na cura de uma variedade de ‘patologias comportamentais’, como a “histeria,
desejos sexuais excessivos e dores mais banais, cujas origens não podiam ser encontradas
em outro lugar” (LAQUEUR, 2001, p. 213-214). O autor aponta que, em última instância,
extirpar os órgãos femininos seria um modo de se exorcizar os demônios orgânicos “que
ocasionavam um comportamento vulgar” (LAQUEUR, 2001, p. 215). Laqueur salienta
ainda que, até meados do século XIX, havia pouca evidência disponível acerca da função
do ovário na fisiologia reprodutiva das mulheres. Mesmo assim, eram ruidosas as crenças
sobre a sua autodeterminação na vida da mulher: ela seria governada por seus ovários.
É interessante perceber que a criação da diferença incomensurabilidade entre os
sexos, “consagrada” pelo conhecimento anatômico, ao deslocar a ideia de imperfeição e
tecer a noção de anormalidade, abria, de modo significativo, espaços para o poder
médico-científico realizar intervenções terapêuticas, “correções”.
Fabíola Rohden (2001) analisa a construção da diferença entre homens e
mulheres, a partir da criação da moderna medicina da mulher ou ginecologia, em meados
do século XIX, no Brasil, debruçando-se sobre um amplo conjunto de fontes médicas,
especialmente teses, forjadas entre as décadas de 1830 e 1940. Nesta época, em um
contexto de ameaça à ordem estabelecida pela redefinição do papel da mulher na
sociedade, a ginecologia se consolidaria no Brasil com base na noção de que a mulher é
eminentemente reservada à função sexual/reprodutiva e fisiologicamente patológica,
diferentemente do homem. A andrologia, por seu turno, vista como a ciência “dos
problemas sexuais masculinos”, aguardaria a luta contra a sífilis e outras doenças
venéreas para ser gestada.
Rodhen assinala que “apesar de natural, biológica e pré-determinada, a diferença
mostrava-se também instável e passível de ameaças”, por isso os médicos precisavam
garantir o rumo “natural” dos acontecimentos (RODHEN, 2001, p. 15). Nesse contexto,
as desordens femininas foram apreendidas como tentativas de rompimento de uma
legítima separação de papéis, especialmente, no tocante à equação mulher-reprodução.
Desde o século XIX, os médicos discutiam a respeito da origem de determinadas
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

485
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

perturbações mentais e nervosas femininas. Alienistas e neurologistas, por exemplo,


acreditavam que a sede de tais distúrbios seria o sistema nervoso. Já os ginecologistas
presumiam que tinham início nos órgãos reprodutivos.
As desordens femininas, desencadeadas por desvios de ordem física ou psíquica,
manifestavam a necessidade de se prever, especialmente, a instabilidade de uma diferença
sexual em relação à mulher. Neste sentido, a ginecologia justificava e ainda prescrevia os
diferentes papéis sociais, tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres, deixando
patente seu conteúdo de gênero. Para a autora, os médicos brasileiros, “imersos em um
determinado contexto social fortemente marcado por uma hierarquia entre os gêneros que
se baseava na distinção entre as esferas privada e pública e na oposição entre natureza e
cultura” (RODHEN, 2001, p. 227-228), buscaram compreender, medicalizar e
normatizar, sobretudo, os corpos e os comportamentos das mulheres, atuando pela
manutenção da hierarquia de gêneros na sociedade.
Em paridade com essa discussão, Costa explica que o papel da mulher na família,
ao longo da primeira metade do século XIX, seria redefinido através de um duplo
movimento. Primeiramente, a higiene, no contexto de urbanização, retira a mulher do
confinamento doméstico, denunciando a figura da “mulher de alcova”201 e do “patriarca
colonial” (o poder do patriarca). Em seguida, a reintroduz na família, convenientemente,
convertida ao amor filial e ao consumo de serviços médicos. Este seria o momento da
condenação da prostituta e da “mulher mundana” e, por conseguinte, da fabricação e
promoção das criaturas médicas do pai e da mãe higiênicos (pai provedor e mãe amorosa).
Dessa forma, a figura da “mãe higiênica” nasce, pela visão do autor, a partir de um duplo
movimento histórico: pela emancipação feminina do poder patriarcal e, ao mesmo tempo,
pela “colonização” da mulher pelo poder médico.
Costa salienta inclusive que para que o pai higiênico, completamente privado do
mandonismo senhorial, pudesse aceitar os encargos da nova paternidade, “foi-lhe
oferecida de uma compensação: o machismo”, sendo a esposa considerada como a única
propriedade privada. Deste modo, a redução da mulher ao papel de mãe e esposa devotada
representaria esse pacto entre o pai e o poder médico. Além disso, o machismo era uma

201
O termo diz respeito à condição das mulheres à época que eram rotineiramente enclausuradas no
ambiente doméstico.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

486
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

maneira de promover socialmente o ideal da mulher-mãe, sendo utilizado como “bastião


da estabilidade conjugal e como agente auxiliar na redução da mulher ao papel de mãe”
(COSTA, 1983, p. 254).
Freire (2006), a partir da análise do processo de difusão da maternidade científica
em revistas femininas da década de 1920, argumenta que médicos puericultores e mães
se beneficiaram da “maternidade científica” e que, em aliança, os primeiros teriam
logrado legitimar seu campo de conhecimento e as últimas teriam forjado um novo papel
social feminino. Segundo a autora, a conformação da maternidade científica teve uma
dimensão potencialmente emancipadora para muitas mulheres das classes média e alta
urbanas, à medida que puderam valer-se da maternidade “como instrumento de ação
política, para obtenção de melhorias concretas em sua condição”. Por esta via teriam
logrado tanto medidas de proteção específicas como acesso a educação e a atividades
filantrópica e profissional (FREIRE, 2006, p. 312).
A nosso ver, entretanto, a concepção de maternidade científica não deixou de
reatualizar o lugar e o papel sociais da mulher no casamento, na reprodução e na
maternidade. Aliás, a transformação da atividade maternal em função sanitária não só deu
novo ímpeto a separação dos papéis de gênero como também pesou física e
psicologicamente sobre as mulheres, agora além do instinto maternal a mulher tinha a
técnica para cuidar das crianças. Deste modo, ainda que a maternidade científica, e em
certa medida a higiênica, levasse determinadas mulheres a novos espaços públicos
específicos e que seu uso por mulheres encarnadas pudesse ocorrer de maneira criativa e
positiva, em ambos os casos as mulheres inseriam-se e alargavam seus espaços na arena
pública, sobretudo, como mães e donas de casa, ou seja, atuavam dentro de uma
determinada ordem social. Além disso, a maternidade científica abria caminho para a
estigmatização da maioria das mulheres alheias ao novo arsenal técnico-científico da
puericultura.
A medicina modernizava-se, assim, forjando tanto noções de saúde e doença como
também padrões de masculinidade e feminilidade. Através da maternidade, a medicina
regenera a mulher, normaliza-a.

Prostitutas e homossexuais
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

487
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Philippa Levine202 (1994) mostra a conexão entre as doenças sexualmente


transmissíveis e o sistema político imperial na Índia britânica, após a rebelião de 1857.
Para isso, a autora busca tecer uma comparação entre as leis destinadas a controlar a
prostituição e conter as doenças venéreas – especialmente a sífilis e a gonorreia –,
diretamente associadas às mulheres, entre os militares britânicos no solo indiano e as suas
homólogas aprovadas na Grã-Bretanha. Segundo a autora, a Lei geral de Acantonamentos
(1864) e a Lei das Doenças contagiosas indianas (1868) eram, em geral, muito mais
coercivas e irrestritas do que os três Atos de Doenças Contagiosas britânicos (1864, 1866
e 1869). No Reino Unido, eles eram exclusivamente militares; na Índia, estendiam-se à
população urbana nativa nas cidades. Neste sentido, Levine salienta sua utilização na
própria prática colonial, em uma política de raça e também de gênero.
Não era permitido à grande maioria da tropa na Índia, formada por homens
brancos, jovens e solteiros, se casar e as relações de concubinato com mulheres locais
também eram reprovadas. Assim, um estoque de prostitutas registradas, inspecionadas e,
muitas vezes, alojadas no perímetro dos quartéis em áreas de bordéis regimentais, foi
posto ao alcance dos soldados europeus (LEVINE, 1994, p. 584). Segundo a autora, a
disponibilização dessas mulheres para esses soldados era central na “política sexual de
manutenção do império”, que sublinhava a necessidade de salvaguadar a
heterossexualidade da tropa a serviço do domínio imperial. O que fica evidente, nessa
discussão, proposta por Levine, é que o medo da homossexualidade masculina permearia,
tacitamente, todo esse debate sobre a prostituição.
A questão da cor – raça – da prostituta era igualmente crucial para a manutenção
do poder europeu. Neste sentido, a mera existência da prostituição europeia, a
possibilidade eventual de mulheres brancas servirem sexualmente homens asiáticos,
subvertia o ordenamento social do próprio domínio colonial (LEVINE, 1994, p. 593). Na
Índia, não apenas a raça, mas também o gênero tornava-se fundamental como categoria
organizadora de poder.

202
As traduções de Levine (1994) são nossas.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

488
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As tropas europeias apresentavam taxas de admissão venérea muito mais altas do


que as dos indianos, e isto foi lido como resultante do fato de a doença tropical ser mais
virulenta do que a européia e afetar, de modo mais cruel, a constituição mais ‘civilizada’
dos europeus (LEVINE, 1994, p. 590-593). Os europeus relacionavam ainda as suas altas
taxas da aflição venérea à incapacidade de lidar com prostituição clandestina, uma vez
que todas as mulheres indianas seriam objetos sexuais imanentes, prostituíveis, e, assim,
vigorosas fontes de contaminação de doença venérea. Levine destaca que a doença
venérea era a “doença secreta” e que carregava consigo ainda um motivo para isso: levar
os homens brancos, desconhecedores dos conhecimentos locais, que se entregavam às
prostitutas clandestinas, à própria ruína. A doença veneréa trazia também vergonha e seu
encobrimento levava a uma doença ainda mais grave, como era o caso da sífilis terciária.
No final da década de 1880, os dois atos indianos de 1864 e 1868, assim como
regulamentos similares na Grã-Bretanha e em outras de suas colônias, foram abolidos.
Mas, segundo Levine, a vida das mulheres indianas seguia constrangida pelo mesmo tipo
de discurso, o qual chegaria ao século XX de modo surpreendentemente estático.
A representação da mulher indiana como desviante serviria não só para subjugar
seus corpos, mas para circunscrever a própria masculinidade e superioridade racial da
tropa europeia, que deveria ser controlada a favor dos empreendimentos militar e colonial.
Levine conclui que a Índia foi “metastatizada em um organismo de definição de impureza
através da feminilidade. O sexo tropical, como as doenças tropicais, era uma entidade
ulcerante não controlada pelos costumes ocidentais e maligna” (LEVINE, 1994, p. 602).
Assim, buscava-se responsabilizar o próprio Oriente perigoso e misterioso pelos lapsos
morais dos britânicos e, ao mesmo tempo, construir o discurso de um Ocidente sob ameça,
contudo, encarregado de uma missão civilizatória que justificaria a imposição do domínio
colonial.
Numa outra perspectiva e abordagem, Jennifer Terry203 (1995) analisa o lugar
central do corpo nas construções científicas acerca das origens da homossexualidade,
especificamente, entre 1869204 e a publicação dos relatórios Alfred Kinsey (1894-1956)

203
As traduções de Terry (1995) são nossas.
204
Quando pela primeira vez, através do olhar do médico alemão Karl Westphal (1833-1890), a ciência
registraria a homossexualidade como uma condição enraizada no corpo (TERRY, 1995, p. 131).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

489
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sobre os comportamentos sexuais do macho e da fêmea humanos no período pós-segunda


Guerra Mundial. A autora traça uma história da pesquisa científica sobre o corpo
homossexual informada, pelo menos, por quatro grandes constructos: o das explicações
constitucionais do século XIX, das abordagens psicanalíticas e psicogênicas ou
ambientais, das pesquisas malogradas da “Variação Sexual” e, por último, da análise
empírica e rigorosa realizada por Kinsey.
Os primeiros discursos médico-científico entendiam que o desejo homossexual,
em geral, visto como patológico, estava de algum modo enraizado na constituição dos
corpos. Segundo Terry, esta abordagem apresentou dois modelos distintos que, no
entanto, se sobrepuseram: o modelo da degeneração e o da inversão sexual. Este último
trouxe a ideia de que os homossexuais, devido a um desvio, foram constituídos enquanto
um terceiro sexo situado entre homens e mulheres (TERRY, 1995, p. 131).
Terry explica que, nos anos 1920, as ideias dos médicos Magnus Hirschfeld
(1868-1935) e Sigmund Freud (1856-1939) sublinhariam a homossexualidade como
resultante de “variações biológicas e psíquicas aleatórias e até benignas entre as pessoas”
(TERRY, 1995, p. 136). O pensamento de Freud sobre as origens psicogênicas da
homossexualidade enfraquecem ou, pelo menos, desafiam o determinismo biológico da
maioria das teorias constitucionais. De 1935 a 1941, uma pesquisa realizada em Nova
York, envolvendo a sondagem dos corpos e experiências de uma dezena de milhares de
“variantes sexuais” masculinos e femininos (homossexuais), patrocinada pelo Committee
for the Study of Sex Variants (CSSV), objetivava revelar o corpo variante de sexo típico
ou composto por meio de estatísticas e a partir de um modelo de variância erguido sob
um sistema binário (subdividido em graus relativos de masculinidade e feminilidade).
Terry destaca que, neste estudo, o qual envolvia também entrevistas psiquiátricas, o corpo
é transformado em uma fonte de evidência física sobre o desvio a partir de “uma espécie
de escopofilia científica” sendo apreendido como superfícies ou zonas onde práticas
perversas deixariam suas marcas (TERRY, 1995, p. 140).
O fundador da CSSV, o ginecologista e obstetra americano Dr. Robert Dickinson
(1861-1950), preocupado, especialmente, com o papel do lesbianismo no malogro do
casamento heterossexual, buscaria, de modo meticuloso, evidências de desvios
congênitos e também de práticas sexuais desviantes nas genitais das mulheres (Ibid. p.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

490
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

139-140). A autora relata que Dickinsons, juntamente com seu assistente, o Dr. Moench,
não apenas sondou, mediu e registrou graficamente as genitálias femininas, mas
reconfigurou o próprio corpo feminino em territórios destacando peitos, vaginas, clitóris
e lábios. Para esses médicos, as marcas nessas áreas denunciariam o lesbianismo: “os
genitais tornaram-se índices de caráter moral” (TERRY, 1995, p. 143), especialmente no
caso dos corpos negros. No entanto, ao fim deste estudo, os pesquisadores concluiriam
que todos os achados ginecológicos característicos das variantes do sexo feminino, como
hipertrofia do prepúcio e do tamanho do clitóris, poderiam, de fato, resultar de qualquer
prática que não a heterossexual realizada, exclusivamente, na “posição ‘missionária’”
(TERRY, 1995, p. 146).
Terry destaca ainda que Dickinson e também vários membros importantes do
CSSV foram filiados a instituições de eugenia. Os discursos eugênicos, do contexto
urbano americano dos anos de 1930, salientavam a necessidade de se desencorajar
relações sexuais e raciais desviantes e incentivam a heterossexualidade da classe média
branca e sua “reprodução patriótica”. Segundo a autora, “o estudo da variação sexual foi
tanto um esforço para construir e manter a heterossexualidade higiênica como para
investigar a homossexualidade” (TERRY, 1995, p. 153).
O objetivo de traçar o corpo variante de sexo mostrou-se irrealizável e o modelo
de variância terminou sendo homogeneizado por uma concepção oposta do que era ser
macho e fêmea. No final da pesquisa, ao invés de se poder delimitar, sanitariamente, o
corpo heterossexual ‘normal’ ou não marcado, o que se viu foi um atenuamento das
fronteiras entre heterossexuais e “homossexuais”.
A pesquisa de Kinsey, partindo de uma variabilidade estimada no comportamento
sexual real, pode perceber através de numerosas evidências que os comportamentos
homossexuais não eram raros, podendo envolver, inclusive, a metade da população
masculina total. Nas décadas de 1940 e 1950, a publicação dos seus relatórios
desencadearam um pavor na sociedade civil e política estadunidense em relação ao que
seria essa ameaça invisível e onipresente dos “invertidos” e desferiu ainda um golpe nos
estudos constitucionais, biológicos (TERRY, 1995, p. 154-159).
No entanto, no final do século XX, sob a pressão, especialmente, do surgimento
da epidemia de AIDS, uma “biologia da homossexualidade” reclamaria, novamente, o
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

491
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

corpo para fundamentar, cientificamente, uma diferença irredutível entre homossexuais e


heterossexuais (TERRY, 1995, p. 161-162). A autora salienta que, ao longo deste período,
o corpo serviu à encarnação da homossexualidade de duas maneiras distintas, mas
justapostas: como local dos seus germes e/ou sinais. Um tipo homossexual distinto,
psicologicamente, mas, sobretudo, biologicamente, se mostra crucial, politicamente, e
uma ciência mais uma vez deslocada da realidade fenomenológica segue sua busca do
tipo homossexual fundamental e inerentemente diferente do sujeito “normal”.
É interessante perceber que diferente da mulher – inscrita “cientificamente” por
uma natureza animalesca ligada ao seu papel na reprodução ou à sua imanência sexual –
o homem que não é, fundamentalmente, um problema biológico tem se construído e se
legitimado, culturalmente, à medida que inscreve os seus outros (inferiores e desviantes).
Assim, um universo político e científico dominado por homens desenvolve para si a
imagem de “normal” através da construção de um ethos masculino específico (superior,
branco, heterossexual, ocidental, burguês e civilizatório). O resultado desse imaginário é
o poder de inscrever legitimadamente os outros. A construção discursiva dos corpos e dos
comportamentos da mulher, da prostituta e do homossexual como patológicos foi
instrumentalizada por esse ideal de masculinidade e ao mesmo tempo essa materialidade
desviante participava, substancialmente, da própria representação e revalidação sociais
daquele ideal. A questão que parece central é que o próprio modelo de masculinidade tem
se construído, em grande medida, “fora do corpo masculino”, mas sobre os corpos e
comportamentos femininos ou daqueles identificados com esses, como os dos
homossexuais masculinos.

Considerações finais

A história sexual e de gênero certamente possui muitas descontinuidades desde o


século XVIII, porém um aspecto impressionante são suas continuidades e sua capacidade
de intervir na sexualidade, nas condições de fala e nas possibilidades políticas,
especialmente, das mulheres. Não queremos elevar tais inscrições ao status de categorias
explicativas universais, mas sublinhá-las como símbolos culturais resistentes, elásticos e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

492
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

poderosos. Além do mais, tais “molduras” revelam-se duradouras, sobretudo, por terem
respaldos científicos e envolver interesses políticos e sociais.
A história dos corpos e comportamentos desviantes não diz respeito apenas a uma
forma de ver o mundo, mas, sobretudo, de representá-lo e organizá-lo, a qual demanda
imaginários científicos relativos ao que é superior, moderno em oposição ao que é
inferior, atrasado e mórbido. A história sexual e de gênero é altamente política e, nesta a
conexão entre corpos, comportamentos e papéis sociais é, especialmente, imbricada e, em
última instância, fruto de variados processos históricos e culturais. Deste modo, os
discursos e práticas médico-científicas e sociais que buscam “iluminar”, patologizar e
sanear os corpos e os comportamentos e ainda distinguir e delimitar diferentes categorias
de indivíduos não se mantêm inalterados. Neste sentido, ante as “ameaças” que se
perfilam no horizonte, dispor corpos desviantes versus corpos modelares se presta, em
especial, à reprodução – e à naturalização – de formas de dominação social.
Na relação médico-paciente, em especial, o sujeito desviante não é simplesmente
alvo de um saber-poder médico. Os discursos e as práticas médicas, portanto, não incidem
sobre um vazio, ainda que o corpo do paciente seja objetificado, esquadrinhado,
disciplinado, etc. Tratam-se, sobretudo, de percepções e ações recíprocas (dialógicas) em
relação ao outro no mundo. O homem e mulher “normais” não são construídos,
exclusivamente, por meio da força. Por essa via, é importante salientar, assim, que não se
trata apenas de constrangimentos, mas, também, de valores e expectativas sociais
compartilhadas, neste quadro, em torno dos papéis de gênero. A governabilidade
instituída pelos padrões de masculinidade corresponde não apenas ao governo do Estado,
mas também ao governo de si dos indivíduos, uma vez que os dispositivos e discursos de
poder encontram-se internalizados, imiscuídos em processos de subjetivação. O
enquadramento da doença/desvio forja-se, assim, historicamente no encontro entre
diferentes sujeitos encarnados, na interface entre diferentes arsenais cognitivos e
interesses, entre normatização e outras práticas sociais.

Bibliografia

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

493
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Graal,
1983.

FREIRE, Maria Martha de Luna. Mulheres, mães e médicos: discurso maternalista em


revistas femininas (Rio de Janeiro e São Paulo, década de 1920). Tese (Doutorado) – Casa
de Oswaldo Cruz/ Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2006.

LACQUEUR, Tomas. Inventando o Sexo: Corpo e Gênero dos Gregos a Freud. Rio de
Janeiro: Relume Dumará. Cap. 5, “A Descoberta dos Sexos”, p. 189-240.

LEVINE, Philippa. Venereal disease, prostitution and the politics of empire: the case of
British India. Journal of History of Sexuality v. 4, n. 4, 1994, p. 579-602.

PORTOCARRERO, Vera. Arquivos da loucura: Juliano Moreira e a descontinuidade


histórica da psiquiatria [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002, p. 41-64.

ROHDEN, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio
de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001.

ROSENBERG, Charles. “Introduction: Framing disease: Illness, society and history”, in


ROSENBERG, Charles; GOLDEN, Janet (Eds), Framing Disease - Studies in Cultural
History. New Brunswick, Rutgers University Press, 1992, pp. xiii-xxvi

TERRY, Jennifer. “Anxious slippages between ‘us’ and ‘them’: A brief history of the
scientific search for homosexual bodies,” In TERRY, Jennifer; URLA, Jacqueline (Eds.)
Deviant Bodies: Critical Perspectives on Difference in Science and Popular Culture.
Bloomington: Indiana University Press, 1995, p. 129-169.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

494
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Fugas de escravos no Rio Grande de São Pedro: uma análise a partir dos
inventários post-ortem (século XIX)

CARLOS JARENKOW
Mestrando em História Social na UNIRIO
Bolsista Capes

Os inventários post mortem205 são fontes riquíssimas para estudo e compreensão


da escravidão brasileira, como diversos trabalhos já demonstraram (ZARTH, 2002;
OSÓRIO, 1999; SALLES, 2008). Apesar disso, a questão da fuga foi pouco explorada
através deles. Mas por que estudar os escravos fugidos inventariados? Analisar as fugas
contribui para compreendermos melhor o funcionamento do sistema escravista sulino,
principalmente a partir dde 1846, onde passou a existir uma região escravista (Brasil) e
outra livre (Uruguai). Fugir – ou não, passava a ter diferentes significados e impactos na
vida daquelas pessoas, fossem escravos, senhores ou autoridades. A fuga, somada a
abolição do país vizinho, poderia significar reajustes sociais naquela sociedade de
fronteira, tanto do lado uruguaio como brasileiro.

Através dos inventários, podemos mapear a frequência destas fugas por


localidade, período e tamanho da escravaria. Para podermos investigar a questão das
fugas com maior precisão, temos antes que compreender espacial e temporalmente a fonte
que temos em mãos. Em primeiro lugar, procuraremos realizar uma contextualização –
ainda que bastante breve – a respeito da escravidão em quatro recortes temporais
diferentes dentro da província. Esta análise servirá para pensarmos a frequência das fugas
a partir de diferentes períodos. Em segundo lugar, realizaremos um levantamento geral
dos inventários, compreendendo as estruturas de posse de escravos na província ao longo
do século XIX. A partir dele, poderemos quantificar o número de senhores que
inventariam fugidos e compara-los com aquels que não informaram para buscar responder
algumas questões como: fugia-se muito ou pouco na província? O fato das fugas
impactarem e tensionarem as relações escravistas na região se dava pelo seu alto índice –

205
A fonte utilizadafoi publicada pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Todos os dados, gráficos e
tabelas se remetem à este catálogo: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Administração e dos Recursos
Humanos. Departamento de Arquivo Público. Documentos da Escravidão: inventários: o escravo
deixado como herança. Coordenação: Bruno Stelmach Pessi. Porto Alegre: Companhia Rio-Grandense de
Artes Gráficas (CORAG), 2010, 4 v.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

495
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ou, pelo fato de serem esporádicas? Em quarto lugar, buscaremos analisar o período e as
regiões nas quais estes fugitivos foram informados, buscando compreender o impacto da
abolição da escravidão na Banda Oriental, bem como fazer uma comparação entre o
número de fugidos informados na região de fronteira e em regiões mais afastadas dela.

***

Nossa primeira periodização compreende os anos de 1800 até 1834. O início do


século XIX é marcado por uma constante expansão escravista da província. Segundo os
dados levantados por Gabriel Aladrén (ALADRÉN, 2012, p. 50-65), ainda no século
XVIII temos o “arranque incial” da economia charqueadora na província. Entre 1788 e
1800 foram importados anualmente, em média, 331 cativos. O arranque inicial foi
seguido por um forte crescimento: entre 1802 e 1810 a média de importação foi de 789
escravos por ano e, entre 1811 e 1824, surpreendentes 1.901,5 cativos anualmente, o auge
do tráfico negreiro para o Rio Grande do Sul. A desordem causada pelas guerras de
independência assolaram as produções de charque, couro e trigo vindas de Montevidéu e
Buenos Aires. Dessa forma, estancieiros do Brasil meridional aproveitaram a
oportunidade para expandir seus negócios e, devido à participação portuguesa na guerra,
suas terras.

Nossa segunda periodização compreende o período do início da Guerra dos


Farrapos em 1835 e um ano após seu término em 1846. Após o “boom” da economia
sulina e o constante aumento de cativos na região, o período de guerra trouxe uma
desestabilização relativa para a província. Ainda que tenha havido uma forte
desaceleração da importação de escravos pelo Rio Grande do Sul após 1831, a população
escrava no início do conflito era formada por 260.000 homens livres (72,3%) e 100.000
escravos (27,7%) (CARVALHO, 2013, p. 45). Ou seja, a população era relativamente
alta e a escravidão bastante necessária para a economica da região. O contexto da
“Farroupilha” pode ser considerado como “favorável” para os cativos sulinos, visto que,
os mesmos, poderiam se inserir no contexto da guerra como soldado ou o momento de
tensão social para investir em um projeto de fuga (CARVALHO, 2013).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

496
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O período que compreende entre 1847 e 1871 é extremamente importante dentro


da nossa análise. A segunda metade do século XIX é marcada por acontecimentos que a
curto, médio e longo prazo influenciaram as relações escravistas sulinas. Em 13 de julho
de 1839 o Uruguai assinou com a Inglaterra um tratado de fim do tráfico de escravos.
Ainda assim, vale lembrar que no mesmo ano eclodia a Guerra Grande, com a disputa
entre blancos (federalistas) e colorados (unitários), sendo os últimos mais favoráveis à
escravidão – adquirindo apoio dos brasileiros, consequentemente. Diante disto, o decreto
do fim do tráfico assinado com os ingleses entrara em vigor apenas 1842. No mesmo ano,
Fructuoso Rivera, uma importante liderança dos blancos decretou o fim da abolição
“definitiva” da escravidão. A data é comumente utilizada comumente como a divisão
entre Brasil “escravista” e Uruguai “liberto”. Porém, Thompson Flores chama atenção
para o caso de que o território blanco correspondia apenas Montevidéo, sendo que, grande
parte do território uruguaio – incluindo a extensa fronteira com a província do Rio Grande
do Sul, era dominada pelos colorados e a escravidão continuava a vigorar (FLORES,
2014, p. 229). O governo de Cerrito (colorados) declarou a abolição apenas em 26 de
outubro de 1846.

O recorte que compreende 1846 e 1871 também é marcado pela proibição


definitiva do tráfico transatlântico para o Brasil, após a lei Eusébio de Queirós em 1850.
A supressão, em âmbito nacional, trouxe efeitos grande efeitos para a escravidão:
aumento do preço dos cativos, aumento do tráfico interno, tensionamento das relações
entre senhores e escravos, dentre outras questões. No Rio Grande do Sul não foi diferente.
Ainda que não tenha tido um efeito direto logo após o fim do tráfico, a província começou
a perder cativos em algumas regiões para o sudeste cafeeiro. Os casos de redução de
pessoas de cor à escravidão passaram a ser recorrentes com a reconfiguração do tráfico
em todo país, mas na província sulina os casos envolviam muito mais do que mera
redução de pessoas de cor à escravidão: envolvia, assim como as fugas do além fronteira
– questões diplomáticas, principalmente com a Banda Oriental.

Nosso último recorte é marcado pelo declínio na escravidão, principalmente na


província sulina, e também pelo aumento da campanha abolicionista, principalmente no

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

497
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

âmbito nacional na década de 1880. Esse período marca a perda brusca de cativos da
região sul para a região sudeste.

***

Através do catálogo do APERS, investigamos 16.170 inventários entre 1800 e


1888 em 55 localidades diferentes dentro da província. Neles foram arrolados 109.945
cativos. É preciso lembrar o leitor, neste caso, duas coisas: os presentes inventários são
de diferentes senhores, porém, os cativos – muito provavelmente – se repetiram ao longo
da contagem (herdeiros, compra e venda, etc.); além disto, os inventários arrolados, ainda
que sejam a grande maioria, não correspondem à totalidade, visto que existem outros
inventários que não foram catalogados pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul:

TABELA 1: NUMERO DE INVENTÁRIOS E ESCRAVOS ARROLADOS


PERÍODO NÚMERO DE INVENTÁRIOS NÚMERO DE
ESCRAVOS
1800 - 1888 16.170 109.945

Utilizando-se dos dados disponíveis, podemos fazer algumas perguntas. A


primeira delas é: qual era a estrutura de posse destes proprietários no Rio Grande do Sul?
Utilizando como referência o trabalho de Ricardo Salles, temos: Miniproprietários (1 a 4
cativos); Pequenos Proprietários (5 a 19 cativos); Médios Proprietários (20 a 49 cativos);
Grandes Proprietários (50 a 99 cativos); e Megaproprietários (100 ou mais cativos)
(SALLES, 2008):

TABELA 2: TAMANHO DAS ESCRAVARIAS (1800-1888)


Ano 1a4 5 a 19 20 a 49 50 a 99 100 ou mais Inventários
1888-1800 8.411 6.905 735 100 19 16.170
Percentual 52,01% 42,70% 4,54% 0,61% 0,01% 100%

Através do levantamento conseguimos visualizar que grande parte – a imensa


maioria, na verdade – de senhores de escravos era formada por micro e pequenos
proprietários, chegando a surpreendentes 94,71% dos inventários! Os números reforçam
dados que já haviam sido levantados por Helen Osório e Paulo Zarth (OSÓRIO, 1999;

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

498
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ZARTH, 2002), que já haviam percebido grande participação de pequenos proprietários


de escravos nos mais diversos setores da economia e não apenas na região das
charqueadas, como parte da historiografia havia afirmado. Ainda assim, podemos
verificar, que a grande maioria era formada por microproprietários, ou seja de 1 a 4
cativos, chegando à 52,01% dos inventariados. Os médios, grandes e megaproprietários
correspondiam a pouco mais de 5% do total, um número bastante baixo, mas significativo
em termos econômicos. Podemos ver como a riqueza estava extremamente concentrada
nas mãos destes grandes proprietários. Apenas em 19 inventários temos escravarias acima
de 100 cativos ao longo de todo século XIX escravista. Os grandes proprietários também
eram raridade e nem sequer chegaram a 1% dos inventários totais.

Qual era a proporção de cativos por estes inventários? Utilizando o caso de


Vassouras, por exemplo – de dinâmica econômica completamente distinta da província
sulina – Ricardo Salles encontrou, analisando os inventários post-mortem entre 1821 e
1880 que, ainda que os megaproprietários representassem 9% da população, detinham
mais de 48% do total de cativos, enquanto 55% total dos inventários eram compostos por
micro e pequenos proprietários, que detinham apenas 12% da população escrava total
(SALLES, 2008, pp. 156-157). Será que teríamos um cenário parecido na província do
Rio Grande do Sul?

TABELA 6: PERCENTUAL DE ESCRAVOS PELO TAMANHO DA ESCRAVARIA


POR PERÍODO
Ano 1a4 5 a 19 20 a 49 50 a 99 100 ou mais Escravos
1888-1800 19.115 61.408 20.413 6.429 2.580 109.945
Percentual 17% 56% 19% 6% 2% 100%

Comparativamente com o caso de Vassouras, temos um cenário totalmente distinto. Os


megaproprietários, ao longo do período, detinham apenas 2% do total de escravos
inventariados, o menor percentual entre todos os perfis possíveis. Grandes e médios
proprietários detinham, juntos, 25% dos escravos, um quarto do total. Já, os pequenos
proprietários eram a maioria e detiveram ao longo do século XIX escravista, 56% dos
escravos inventariados. Mas o que isto quer dizer?

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

499
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Em primeiro lugar, a comparação com o caso trabalhado por Salles, mostra que,
mesmo em períodos parecidos, os números são bastante distintos, reforçando a
importância da economia do café para o Brasil, que abastecia o mercado mundial do
gênero. A província do Rio Grande de São Pedro, por outro lado, possuía pequenos
plantéis de escravos, com um percentual populacional distribuído nestas pequenas
escravarias. Sendo assim, através da presente comparação, buscamos mostrar que o Rio
Grande do Sul, para além de suas peculiaridades da “fronteira” e da “belicosidade”,
também possuía uma estrutura escravista bastante distinta da do Rio de Janeiro. Ainda
que o “peso” da economia central do café e que grande parte dos cativos, principalmente
no século XIX, encontravam-se na região sudeste, a escravidão vigorava em outras
regiões do país, mas de maneira distinta. Mas o que isto pode trazer de interessante para
pensarmos as fugas? Diferentes realidades regionais – não só no Rio grande do Sul, como
em outras províncias – tinham um peso muito grande no estabelecimento das relações
sociais entre livres, libertos, escravos e autoridades.

Dos 16.170 inventários levantados em nossa pesquisa, apenas 394 deles (2,4%,
aproximadamente), ao longo de quase um século inteiro, tiveram referências sobre
escravos fugidos. O número é bastante baixo e, por consequência, já nos leva a uma
conclusão: fugia-se muito pouco na província sulina. Evidente – precisamos sempre
lembrar –, os inventários não constituem a única fonte de análise das fugas e nem todos
inventariantes arrolaram os foragidos. Apesar disto, precisamos levar em consideração
algumas questões a respeito: manter-se foragido era extremamente difícil. Tomar a
decisão de fugir poderia colocar em risco anos de negociações com o senhor, além de
significar o rompimento de relações afetivas que envolviam desde amigos até familiares.
Fugir, não era, definitivamente, uma decisão simples.

TABELA 7: INVENTÁRIOS x INVENTÁRIOS COM FUGIDOS POR PERÍODO

Total de Inventários
Período Porcentagem
Inventários com Fugidos
1800-1834 2.652 72 2,7%
1835-1846 1.375 50 3,6%
1847-1871 7.255 143 2,0%
1872-1888 4.888 129 2,6%
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

500
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

TOTAL 16.170 394 2,4%

Diversos são os trabalhos que mostram o impacto das fugas na província (PETIZ,
2006; ARAÚJO 2007; CARVALHO, 2013). O baixo índice, portanto, não significa que
elas não impactassem as relações escravistas, muito pelo contrário, elas podem nos
mostrar justamente o transtorno que era para um senhor ter um cativo foragido, visto que,
o mesmo não estava acostumado, por assim dizer, com este tipo de situação e as suas
consequências: atraso na produção, tempo para procurá-lo, recompensas para capitães do
mato e gastos com anúncios em jornais. Para completar, as fugas pela fronteira – que já
ocorriam desde o final do século XVIII – passaram a envolver questões diplomáticas mais
sérias após o fim da escravidão nos países vizinhos, principalmente na Banda Oriental do
Uruguai, após a abolição da escravidão em 1846, como já explicitamos.

Analisando o período da Guerra dos Farrapos, entre 1835 até 1846, temos o
menor número de índices de fuga, mas o maior percentual: 3,8%. O período de guerra
muito provavelmente contribuiu para este aumento. Apesar disto, temos que ter em mente
também que muitos inventários podem ter sido deixados para serem feitos após o fim da
guerra, visto que, administrativamente, a província estava desestabilizada. Ainda assim,
não impediu que 1.298 inventários com escravos tivessem sido produzidos no período.
Os demais períodos mantém um padrão do quadro geral, com uma porcentagem de
fugidos informados abaixo de 3%.

Analisando as fugas através dos demais recortes percebemos que a porcentagem


de escravos declarados foragidos não passou de 3%. Ainda assim, é interessante notarmos
que o número de inventários com escravos fugidos aumentou muito na segunda metade
do século XIX. Em um dos recortes, entre a abolição da escravidão no Uruguai e a Lei do
Ventre Livre, temos o maior número de ocorrências: 143 inventários (36% do total de
inventários informados). Em contrapartida, este recorte é também o que apresenta o
menor percentual de cativos foragidos, apenas 2% do total. Isto nos permite concluir que
se o baixo índice de fugas poderia significar um maior transtorno para os senhores e
autoridades, este período pode ser considerado crucial. Ele pode nos levar a crer que
houve um aumento da vigilância tanto pelos senhores, após o fim do tráfico, como
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

501
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

também das próprias autoridades que não desejavam passar por transtornos diplomáticos
com a República Oriental do Uruguai. Além disso, muitos senhores devem ter passado
por negociações dentro da atividade produtiva, para evitar a perda de seus escravos,
principalmente em um momento de alta dos seus preços.

Se o número de inventários já é baixo, o número total de escravos inventariados


é ainda menor. Apenas 0,6% (664) dos 109.945 escravos arrolados foram dados como
fugidos por seus senhores, o que reforça ainda mais nosso argumento da baixa proporção
de cativos foragidos durante o século XIX na província de São Pedro:

TABELA 8: ESCRAVOS INVENTARIADOS x INVENTÁRIOS COM FUGIDOS POR


PERÍODO
Total de Cativos Porcentagem
Período
Escravos Fugidos
1800-1834 20.480 128 0,6%
1835-1846 11.577 113 1,0%
1847-1871 51.909 249 0,5%
1872-1888 25.979 171 0,6%
TOTAL 109.945 664 0,6%

A tabela nos mostra um cenário bastante parecido com a de inventários, ainda que em
proporções mais baixas. O único destaque a ser feito é, novamente, a maior porcentagem
de cativos fugidos durante a “Farroupilha” (1%) e o maior índice de foragidos no terceiro
recorte (1846-71) com 249 fujões.

Outra pergunta que podemos fazer é: inventariava-se mais fugidos em


escravarias menores ou maiores? E, a partir disto, podemos dizer onde se fugia mais?

TABELA 9: TAMANHO DAS ESCRAVARIAS POR INVENTÁRIOS LEVANTADOS


NÚMERO TOTAL DE NÚMERO DE
ESCRAVOS ESCRAVARIAS INVENTÁRIOS
PORCENTAGEM

1a4 8.411 96 1,1%


5 a 19 6.905 200 2,8%
20 a 49 735 67 9,1%

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

502
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

50 a 99 100 22 22%
100 ou mais 19 5 26,3%
Total 16.170 390 2,4%

Percebemos que o número de senhores que declararam escravos foragidos é maior,


principalmente, nas pequenas escravarias, ou seja, de 5 até 19 cativos, representando 51%
do número total de inventários com fugidos. Apesar disso, não podemos afirmar que se
fugia mais em pequenas escravarias do que em maiores. Colocando, lado a lado, o
percentual total de inventários em relação número que constam os fugidos, percebemos
que a probabilidade de haver um cativo foragido em um plantel acima de 20 escravos, era
maior. Ainda que tenhamos apenas dezenove megaproprietários, em cinco deles (26,4%)
tivemos escravos fugidos.

Outra questão bastante importante de se levar em conta, é o baixo índice de fugas


entre os microproprietários, com apenas 1,1%. Na teoria, poderíamos acreditar que estes
seriam os mais interessados em reaver os cativos foragidos. Ainda que tenhamos apenas
cinco casos entre os megaproprietários, é bem provável que nos demias inventários a
informação possa ter sido omissa por não haver necessidade, devido ao vasto plantel, de
reaver escravos foragidos. Já, entre os microproprietários, a necessidade e vontade dos
herdeiros em buscar reaver um cativo foragido poderia ser muito maior. Dessa forma,
podemos aferir que quanto menor a escravaria, maior seria a dificuldade da fuga. É
curioso ressaltar também que, em 14 casos, apenas um escravo foi inventariado e o
mesmo foi dado como fugido.

Continuando a análise a partir do tamanho das escravarias e do número de


escravos inventariados nelas é possível ver também que o número de cativos foragidos
em escravarias menores é muito maior do que em escravarias de médio e grande porte,
conforme a tabela:

TABELA 10: ESCRAVOS FUGIDOS POR TAMANHO DE ESCRAVARIAS

Tamanho das Número de Escravos Número de Escravos Percentual


Escravarias Arrolados Fugidos dos Fugidos

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

503
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

1a4 19.115 105 0,54%


5 a 19 61.408 286 0,46%
20 a 49 20.413 153 0,75%
50 a 99 6.429 83 1,3%
100 ou mais 2.580 34 1,3%
TOTAL 109.945 661 0,6%

Dos 394 inventários arrolados, 95 (24%) possuíam mais de um escravo foragido.


Como já mencionamos, o projeto de fuga era extremamente arriscado e contar com uma
parceria ao longo do percurso poderia ajudar tanto para a execução do plano de fuga como
para a vida após ela. Ainda assim, devemos relevar um pouco este dado. O fato de haver
mais de um escravo foragido no inventário não caracteriza que a fuga foi coletiva, visto
que, elas podem ter ocorrido em períodos diferentes.

TABELA 11: ESCRAVARIAS COM FUGIDOS X ESCRAVARIAS COM MAIS DE UM


FUGIDO

Tamanho das Total de Escravarias com


Percentual
Escravarias Escravarias mais de um fugido
1a4 96 6 6%
5 a 19 200 45 22%
20 a 49 67 25 37%
50 a 99 22 14 64%
100 ou mais 5 5 100%
Total 394 95 24%

Percebe-se que, quanto maior a escravaria, maior a probabilidade de haver mais


de um cativo foragido. Isto pode significar duas coisas: uma maior probabilidade de fugas,
devido, justamente o fato de a escravaria possuir um maior número de escravos; ou uma
maior facilidade de se fugir em conjunto em escravarias de grande porte. Como em
diversos casos não temos com clareza o momento da fuga, acreditamos que isso se dá por
uma mera questão de probabilidade: quanto mais escravos, uma maior probabilidade de
haver cativos que fogem. Além do mais, o fluxo de entrada e saída de escravos em
escravarias maiores, deveria ser muito mais constante do que em escravarias menores.
Outra questão bastante importante, é verificar que em todos os casos em que houve um
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

504
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

escravo foragido entre os megaproprietários, havia mais de um fugido, o que colabora,


mais uma vez, uma maior facilidade de se fugir em escravarias grandes.

***

Entramos agora em um ponto bastante importante da nossa análise: para onde se


fugia? Para podermos pensar a fuga pela fronteira, temos que ver se ocorreram em
localidades próximas à Banda Oriental ou não. Além disto, como já mencionamos, a partir
de 1846, com a abolição definitiva da escravidão uruguaia, houve um maior interesse dos
cativos na busca da liberdade no território vizinho. Isto não significa que não houvesse
fugas para a Banda Oriental antes de 1846, porém, houve um crescimento natural delas
para a região. Este crescimento, evidentemente, também trouxe maiores preocupações
para autoridades e estancieiros.

Compreendemos que a fronteira pode ser manejada pelos seus habitantes.


Escravos atuaram buscando a liberdade cruzando a fronteira, logo, poderiam ter
conhecimento dos limites jurídicos que separavam o Estado brasileiro do uruguaio,
mesmo estando em um contexto desfavorável. Isto se torna claro quando temos, de um
lado uma monarquia que depende muito da mão-de-obra escrava e do outro uma república
onde a escravidão já foi abolida. Sendo assim, devemos ficar atentos às localidades e as
datas onde as fugas ocorreram, podendo pressupor se rumaram para o Estado vizinho ou
não, principalmente na segunda metade dos oitocentos (FLORES, 2014).

Mas qual a quantidade de fugidos em localidades próximas, ou não, da fronteira?


O destino mais provável dos fugidos da fronteira oeste era o Uruguai, principalmente após
1846. Enfatizando, porém, que esta era uma grande possibilidade, mas nada impedia que
estes escravos se mantivessem foragidos nas matas, formassem quilombos ou partissem
para outras fazendas em outras localidades. Estamos apenas trabalhando com uma
hipótese mais plausível206. Por exemplo: a distância de Porto Alegre para a fronteira
uruguaia é muito maior do que Uruguaiana; Rio Grande e Pelotas também são municípios

206
Consideramos localidades fronteiriças: Alegrete, Arroio Grande, Bagé, Cruz Alta, Dom Pedrito, Herval,
Itaqui, Jaguarão, Livramento, Quaraí, Rosário do Sul, Santa Vitória do Palmar, Santana do Livramento,
Santo Ângelo, São Borja, São Francisco de Assis, São Gabriel, Uruguaiana.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

505
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

muito mais distantes do que Bagé e Jaguarão. Dessa forma, se compararmos os escravos
inventariados como fugidos em cidades fronteiriças ou não, temos o seguinte quadro:

TABELA 13: ESCRAVOS DECLARADOS FORAGIDOS EM CIDADES FRONTEIRIÇAS E NÃO


FRONTEIRIÇAS

Localidades Escravos Porcentagem


Fronteiriças 419 64%
Não Fronteiriças 242 36%
Total 661 100%

Verificamos que as fugas em cidade não fronteiriças representam quase o dobro das
incidências nas fronteiras. As maiores incidências de fuga ocorreram na região leste do
estado, próximas ao litoral, em municípios como Pelotas (91), Porto Alegre (85) e Rio
Grande (93). Ainda assim, é mister ressaltar que a expansão da escravidão na fronteira,
bem como a própria burocratização (criação de comarcas, jurisdições e organizações
políticas) destas localidades se deu em grande medida na década de 1840, diferente de
outros municípios como Porto Alegre que, desde o início do século já possuíam estes
aparatos administrativos. Por isso devemos ficar sempre atentos às temporalidades e é
neste ponto que nos propomos a analisar agora. Afirmamos anteriormente que
acreditamos que a abolição no Uruguai contribuiu para o aumento das fugas na província.
É possível tentarmos verificar esta possibilidade, realizando um recorte entre a incidência
das fugas antes e depois de 1846, conforme a tabela abaixo:

TABELA 14: ESCRAVOS DADOS COMO FORAGIDOS, ANTES E DEPOIS DE 1846

PERÍODO ESCRAVOS PORCENTAGEM


Antes de 1846 241 36%
Após 1846 420 64%
TOTAL 661 100%

O quadro mostra que mais da metade das fugas (64%) ocorreu após a abolição no
Uruguai. Este número é bastante interessante e, logo de início, nos leva a crer que a
abolição, muito provavelmente, contribuiu para o aumento da incidência de foragidos.
Mas e por localidade? Será que as fugas aumentaram apenas nos municípios de fronteira?

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

506
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ou tiveram um aumento significativo em regiões mais distantes? Vejamos no quadro


abaixo, a fuga de escravos nas cidades mais próximas da fronteira:

TABELA 15: ESCRAVOS DADOS COMO FORAGIDOS EM LOCALIDADES DE FRONTEIRA POR


PERÍODO

PERÍODO ESCRAVOS PORCENTAGEM


Antes de 1846 32 13%
Após 1846 210 87%
TOTAL 242 100%

O número é bastante significativo. Verificamos que quase 90% dos casos


ocorreram após a data de 1846. Um olhar desatento poderia nos colocar direto para a
conclusão de que a abolição uruguaia influenciou – e muito – a fuga de escravos nessas
regiões. Apesar de o número ser extremamente alto, precisamos entender que diversas
localidades passaram a ter inventários produzidos apenas no final da primeira metade do
século XIX, ou até somente na segunda metade. Por exemplo, o município de Alegrete,
um dos que mais apresenta escravos foragidos (20), teve como ano incial de análise 1820;
já em São Gabriel, município que também pode ser considerado próximo à fronteira, teve
seu ano inicial em 1845 – quase no início do nosso recorte – e apresentou 27 foragidos.
Ainda assim, não podemos negar que existe uma diferença bastante considerável entre
antes e depois da abolição em 1846. Olhando para o outro lado do estado temos um
panorama bastante distinto:

TABELA 16: ESCRAVOS DADOS COMO FORAGIDOS EM LOCALIDADES NÃO SÃO PRÓXIMAS À
FRONTEIRA

PERÍODO ESCRAVOS PORCENTAGEM


Antes de 1846 209 50,1%
Após 1846 210 49,9%
TOTAL 419 100%

É possível ver que em cidades não fronteiriças o arrolamento de escravos foragidos nos
inventários por período é praticamente a mesma, o que nos faz pensar que a frequência
das fugas pode ter sido muito parecida tanto na segunda, quanto na primeira metade do

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

507
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

século XIX. Apesar disto, devemos levar em consideração que municípios como Pelotas
e Porto Alegre passaram a produzir inventários desde o século XVIII, diferente de outras
regiões da fronteira, o que pode ajudar a explicar a semelhança antes e após 1846. É
curioso também notar que o número de fugas após 1846 permanece o mesmo tanto nas
cidades de fronteira como fora dela. O que mostra que, tanto no leste quanto no oeste do
Estado, herdeiros ainda tinham alguma esperança e interesse em partilhar escravos
foragidos.

A princípio, a análise dos inventários post-mortem nos ajuda a compreender o


impacto da abolição uruguaia na província sulina. Fazendo sempre as ressalvas
necessárias, podemos ver que grande parte dos cativos fugiram após 1846. Na região da
fronteira, tivemos poucos casos na primeira metade. O que nos leva a crer que a abolição
uruguaia influenciou o projeto de liberdade daquelas pessoas.

***

O presente trabalho procurou abordar, de uma maneira mais ampla, a questão


dos escravos foragidos a partir dos inventários post-mortem produzidos entre os anos de
1800 e 1888. O levantamento, em primeiro lugar, serviu como base para nos mostrar a
baixa incidência de escravos que fugiram ao longo do século, o que pode ser explicado,
principalmente, pela dificuldade de se fugir e pelo controle senhorial exercido na região.
Porém, de maneira alguma, ainda que a incidência tenha sido baixa, devamos relevar o
impacto destes que fugiram, visto que, por ser um fenômeno pouco comum, causava
transtornos aos senhores e autoridades. Além disso, buscamos também mostrar como a
abolição Uruguaia pode ter influenciado – e muito – no aumento destas fugas,
principalmente na região de fronteira.

DOCUMENTAÇÃO/FONTES:

RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos.


Departamento de Arquivo Público. Documentos da Escravidão: inventários: o
escravo deixado como herança. Coordenação: Bruno Stelmach Pessi. Porto Alegre:
Companhia Rio-Grandense de Artes Gráficas (CORAG), 2010, 4 v.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

508
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALADRÉN, Gabriel. Sem Respeitar Fé, Nem Tratados: escravidão e guerra na


formação histórica da fronteira sul do Brasil (Rio Grande de São Pedro, c. 1777-1835).
Niterói: UFF/PPGHIS, 2012. (Tese de Doutorado).

ARAÚJO, Thiago Leitão de. Escravidão Fronteira e Liberdade: políticas de domínio,


trabalho e luta em um contexto agropecuário (Vila da Cruz Alta, província do Rio Grande
de São Pedro, 1834-1884). Porto Alegre: PPGHIST/UFRGS, 2008.

CARVALHO, Daniela Vallandro de. Fronteiras da Liberdade: Experiências Escravas


de Recrutamento, Guerra e Escravidão: Rio Grande de São Pedro, c. 1835-1850. Rio de
Janeiro: URJ/PPGHIS, 2013. (Tese de Doutorado).

FLORES, Mariana Flores da Cunha Thompson. Crimes de fronteira: a criminalidade na


fronteira meridional do Brasil (1845-1889). EDIPUCRS, 2014.

OSÓRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da


Estremadura Portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Niterói:
UFF-PPGH, 1999. (Tese de Doutorado).

PETIZ, Silmei Sant’Anna. Buscando a liberdade: as fugas de escravos da província de


São Pedro para o além-fronteira (1815-1851). Passo Fundo: Editora da UPF, 2006.

SALLES, Ricardo. E o Vale era o Escravo: Vassouras, século XIX. Senhores e escravos
no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século
XIX. Ijuí: Unijuí, 2002.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

509
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Liberdade, irreverência, resistência e contestação: a poesia libertária de Zé de


Matos e Patativa do Assaré

CARLOS RAFAEL DIAS


PPGH – UFF

O Cariri cearense207 do início do século XX era um espaço essencialmente agrário


e de relações de produção dominantes. Este contexto, típico de estruturas concentradoras
de renda por conta, principalmente, do monopólio da propriedade fundiária e onde
prepondera a ausência ou omissão do Estado no tocante a efetivação de políticas públicas,
favoreceu o desenvolvimento do clientelismo político e econômico, travado entre dois
extremos: de um lado, os latifundiários que, além da posse da terra, detinham, pelo
monopólio da força, o exercício da violência; e, do outro, a grande massa de miseráveis
sem-terra que, na ausência ou fragilidade de instituições oficiais para apelar por proteção
e justiça, era submetida pelos ditames daqueles potentados. Por sua vez, os laços de
clientelismo se sustentavam em compromissos recíprocos mantidos entre as partes, onde
o lado mais forte é dispensador de proteção política e jurídica, além da subsistência ou
suporte econômico, em troca de apoio eleitoral e prestação de serviço da outra parte, que
tanto podia ser em atividades produtivas como em força de defesa e ataque. Este último
mecanismo vem a ser a base de sustentação da chamada capangagem ou jagunçada. Não
é de surpreender, portanto, que o Cariri tenha sido um terreno fértil para o
desenvolvimento do coronelismo, fenômeno que, a despeito de ter se esboçado já no
período colonial, virou realidade no Império e consolidou-se na chamada República
Velha.
Nesta realidade, de profundas polaridades econômicas e sociais e de carências
materiais decorrentes do isolamento geográfico e de comunicação, desenvolveu-se um
modus de vida permeado de elementos de criatividade e resistência, elaborados pelas
camadas dominadas, não só do ponto de vista da cultura material, produtora de artefatos
e engenhos de sobrevivência, mas também da cultura simbólica que se manifesta nos
saberes mais abstratos, com destaque para a cantoria, a dança e a produção de versos.

207
Região localizada no extremo sul do Ceará, assim chamada para diferenciar-se de uma região mais antiga
existente na Paraíba. Doravante, será tratada por Cariri.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

510
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A cultura sertaneja pode ser abordada a partir de várias vertentes, a exemplo das
ricas e diversificadas manifestações artísticas e literárias, com destaque para o cordel. Um
dos motivos dessa preeminência exercida pela literatura de cordel é a força da oralidade,
fomentadora de um repertório diversificado de narrativas, e de grande influência na
formação de gerações de bardos menestréis que se fazem presentes na história regional.
Além disso, o Cariri, especificamente o Juazeiro do Norte, é um dos polos regionais de
produção de folhetos de cordel. Esse posto está relacionado diretamente à condição desta
cidade, e em extensão o Cariri, como ‘palco’ de “uma trama de acontecimentos que
possibilitaram o surgimento de práticas e saberes marcados pela singularidade” (MELO,
2010: 22). Dentre estes acontecimentos, relacionados à religiosidade popular que se
manifesta fortemente na região, destacam-se os chamados ‘milagres do Juazeiro’,
protagonizados pelo hoje lendário padre Cícero Romão Batista208.
Contudo, não é apenas a influência do imaginário religioso e de elementos do
fantástico e do maravilhoso que vão marcar a produção dos poetas carirenses. A verve
social, com a crítica, o questionamento e a contestação também vai se desenvolver
fortemente e já (e por isso mesmo) naquele contexto ao mesmo tempo opressivo e
esperançoso das primeiras décadas do século XX. É o que veremos com a obra dos poetas
Zé de Matos e Patativa do Assaré.

ZÉ DE MATOS, O “FORMIDÁVEL E BRONCO RAPSODO CARIRIENSE” 209


(SOUSA, 2000: 22) - O período decorrido entre a última década do século XIX e as
primeiras do século XX foi uma época bastante conturbada no Cariri, notadamente por
conta da questão religiosa de Juazeiro e seus polêmicos e incisivos desdobramentos. Uma
decorrência dessa atribulada conjuntura foi a intensificação da rivalidade entre Crato e
Juazeiro, motivada pela ascensão econômica desta última e seu desejo de emancipação
política, o que veio a ocorrer em 1911. Mais do que uma simples disputa política, esta

208
Sobre o padre Cícero e acontecimentos a ele relacionados, a exemplo da chamada questão sociorreligiosa
do Juazeiro, ver o livro Milagre em Joaseiro, do autor norte-americano Ralph Della Cava, obra considerada
um marco da historiografia sobre o sacerdote juazeirense.
209
Este epíteto, utilizado por um contemporâneo do poeta, membro da elite regional, demonstra bem o
sentimento paradoxal que busca explicar o fenômeno representado por uma pessoa sem instrução formal
ter a habilidade de compor versos que foram preservados, a despeito de serem, a princípio, veiculados
somente pela oralidade.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

511
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

rivalidade gerou um verdadeiro conflito de identidades entre as duas cidades. Neste


embate, o Crato buscou reforçar a sua representação de “Cidade da Cultura”, espaço culto,
letrado, civilizado e, portanto, digno da missão de ser centro difusor dos legítimos valores
morais e éticos, em oposição ao Juazeiro, que passou a ser tachado como um antro de
promiscuidade e fanatismo, portanto, um locus de barbárie210. Neste contexto,
precisamente na década de 1920, a autoridades políticas cratenses promovem uma
verdadeira ‘cruzada” contra o saber popular, chegando ao cúmulo de proibir apresentação
dos artistas populares em espaços públicos por considerarem suas performances indignas
à apreciação de um visitante (SEMEÃO e GOMES, 2012: 4).
Pelo quadro acima descrito fica patente o desconforto, para dizer o mínimo, de ser
um poeta popular no Cariri naquele tempo, e principalmente um poeta cuja verve voltava-
se justamente para a crítica social. Foi exatamente com esse ofício, o de poeta, que Zé de
Matos fez o seu nome ser registrado nas crônicas locais. E isso por conta da força e da
qualidade de sua obra satírica, contundente e ácida, dirigida à oficialidade que lhe era um
algoz. A descrição que lhe faz o escritor J. Flávio Vieira, na apresentação da peça teatral
de sua autoria A Terrível Peleja de Zé de Matos com o Bicho Babau nas ruas do Crato, é
sintomática da condição ao mesmo tempo maldita e genial deste poeta:

Pouco se sabe sobre o poeta cratense Zé de Matos. Se o Brasil já tem


uma amnésia natural para com seus artistas eruditos, que dizer dos
poetas populares? Empregando apenas os teatrais (mas fugazes)
recursos da oralidade, o grosso de suas obras se perde na voragem do
tempo. Por outro lado, o que fica é de uma riqueza inigualável: foi
carregado de boca em boca [...] por sucessivas gerações, como um
verdadeiro brado contra a inexorabilidade do tempo, o esmaecimento
da memória do povo, o estilhaçamento da nossa herança nordestina. O
pouco que sobrou da poética circunstancial do nosso Zé de Matos é
suficiente para demonstrar, categoricamente, a grandeza da sua arte.
Nela estão presentes o anarquismo, a irreverência, a picardia, a
iconoclastia, tão marcantes, ainda hoje, nos filhos genéticos ou adotivos
da Cidade de Frei Carlos Maria de Ferrara211 (VIEIRA, 2004?: 5-6).

210
Essa tachação ocorreu principalmente no contexto da questão religiosa que permeou e sucedeu os
inquéritos sobre os chamados “fatos extraordinários de Juazeiro”, instaurados pela Bispado do Ceará para
investigar o suposto milagre de transformação de hóstias em sangue, ocorrido em 1889.
211
Frei Carlos Maria de Ferrara, religioso da Ordem dos Capuchinhos, foi o primeiro diretor da Missão do
Miranda, aldeamento indígena que funcionou no século XVIII e que deu origem à cidade do Crato.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

512
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nenhum documento primário, tipo um registro de nascimento ou uma certidão de


óbito, pelo que consta, restou de Zé de Matos. Talvez, por isso, o lugar em que nasceu
seja objeto de polêmica. Geralmente tido como filho do Crato, há quem reivindique que
sua naturalidade seja barbalhense. Porém, independentemente do local de nascimento,
tudo indica que Zé de Matos, honrando as estirpes dos poetas libertários, não tinha
endereço fixo. Pelo menos é o que sugere este cronista:

Zé de Matos dispensa comentários. Foi uma referência como poeta e


repentista em toda a Região do Cariri. O que estou a fazer, aqui, é
reivindicar a naturalidade, dizer, com muita honra, que Zé de Matos era
de Barbalha. Eu sei que o poeta é universal, não tem pátria e sei,
também, que a família Matos é de todo o Ceará, mas justiça deva ser
feita: ele saía pelo mundo, mas sempre retornava à terra da rapadura, o
único lugar onde ele não precisava pedir esmola. [...] Por onde andava,
ele ia espalhando seus versos e repentes. Eles estão por todo o sertão
(FREITAS, 2002: 87).

Se era barbalhense, Zé de Matos, com sua veia mordaz e ferina não teria poupado
nem mesmo o seu pretenso ‘torrão natal”, que, inclusive, é enaltecida nas crônicas oficiais
como uma cidade aristocrática. Certa feita, elogiando um poeta nascido em Barbalha,
disse:

O Luiz Dantas Quesado,


Poeta bom que não falha,
O Luiz é o único home
Quinda existe na Barbalha

Terra que só tem um homem,


Procuro outra e não vejo
Quem diz que Barbalha é terra
Diz também que merda é queijo
(Apud VIEIRA, 2004?: 29-30).

Do pouco que ficou preservado de sua obra, ao que parece produzida de


improviso, à maneira dos repentistas tão comuns no sertão nordestino, boa parte refere-
se a desacatos ou insultos desferidos contra atitudes que o poeta julgava mesquinhas ou
egoístas, a exemplo de um diálogo em verso mantido com outro poeta e mestre da

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

513
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

rapadura de um engenho localizado no Crato, de nome Luís Quintiliano, de quem Zé de


Matos era velho conhecido:

- Amigo Quintiliano,
Eu sou da raça tapuia.
Para adoçar-me a guela
Bote-me mel nesta cuia!
(Apud SOUSA, 2000: 29)

Diante da negativa ao seu pedido, Zé de Matos foi tomar satisfação com o


proprietário do engenho:

- Senhor dono deste engenho,


Agora fui desfeitado.
O Luís Quintiliano
É cabra muito safado!

No tempo da seca grande


Eu conheci este ingrato,
Preso, cumprindo sentença
Na cadeia lá do Crato.

E só não morreu de fome


Porque eu lhe socorri.
Matei, para êle comer,
Os ratos do Cariri.

Mas hoje, no seu engenho,


Já tendo barriga cheia
Não se lembra do amigo
Nem do tempo da cadeia!

Da beira desta fornaia


Não vou de cuia vazia
Poeta que não trabaia
Se vale da poesia.

Tenho fome, não lhe engano,


Me valha, “seu” coronel.
E mande o Quintiliano
Encher-me a cuia de mel.
(Idem: 30-31)

Sem data conhecida de nascimento e de falecimento - sabe-se apenas que viveu


entre os finais do século XIX e início do XX (VIEIRA, 2004?: 7), e impreciso lugar de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

514
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

nascimento, de moradia e de morte, - de Zé de Matos não temos nem uma imagem que
pudesse ficar para a posteridade, quer seja uma simples fotografia ou um desenho sequer.
De sua aparência física, coletamos esta descrição de um contemporâneo seu:

Conheci pessoalmente, quando criança, José de Matos. Se eu fosse


pintor, ou se ao menos tivesse jeito para pintura, poderia, ainda hoje,
reproduzir fielmente sua figura. Era um caboclo: genuíno caboclo, sem
mistura ou mescla de outro sangue, a meu ver. Tipo meão, cheio, tórax
larguíssimo, cara larga, venta chata, cabeça bem proporcionada, olhos
pequenos, vivíssimos, e a voz cheia, retumbante (Idem: 5).

Vejamos, pois, como o próprio se definia, mesmo que as informações não sejam
explicitamente sobre o cotidiano que vivia, mas metáforas que expressam a liberdade
inerente aos imaginativos poetas populares:

Eu me chamo Zé de Mato
Tirador de economia
Baixa no chão é buraco
Gancho de pau é furquia
Peguei no rabo da cobra
Soltei na perna da jia
Na boca de quem não presta
Quem é bom não tem valia

Eu me chamo Zé de Mato
E sou do mato, José
Sou filho do Cariri
Duvide lá quem quiser
Quando chego em tua casa
Venho ardendo como brasa
E vou da sala à cozinha
Boto meu chapéu num torno
Porque teu pai é um corno
E tua mãe é feme212 minha.

[...]

Entre o berço e o caixão,


Quase não há diferença,
Acalanto e incelença
Cabem na mesma canção.
Mas quem sabe minha história,

212
Corruptela para a palavra fêmea.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

515
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Tem presente na memória,


Queu não sou um uma visão.
Vivo nos versos nas rimas
E relampejo nas crinas
Do corisco e do trovão.
(Idem: 19-20).

Além de poeta, sabe-se que Zé de Matos, era um trabalhador de engenho de


rapadura, atividade econômica tradicional muito comum no Cariri. Derivado da
complementaridade entre a cultura canavieira e a pecuária, atividades tidas como
‘civilizadoras’ do Nordeste brasileiro, o engenho de rapadura é considerado um dos
principais alavancadores da economia caririense e catalizador de um processo que teria
dado feições próprias à cultura da região.
O fabrico da rapadura movimenta uma verdadeira rede de trabalhadores divididos
em atividades especializadas que se sincronizam para movimentar o engenho. Dentre os
trabalhadores das atividades mais tradicionais e também essenciais, destacam-se o
cambiteiro, o metedor de cana e o mestre da rapadura.
Qual seria a função de Zé de Matos no mundo de trabalho da rapadura?
Ratificando o quase anonimato no qual se revestiu a sua vida privada, há controvérsias a
esse respeito. Alguns relatos o nomeiam mestre da rapadura; outros de mestre de fornalha
(na verdade, metedor de fogo, uma função mais modesta), apesar de que a função mais
compatível com sua lira satírica e desabusada fosse a de cambiteiro, pois segundo
Figueiredo Filho (2010: 39), o cambiteiro é a “alma danada, afoita, alegre e barulhenta
do trabalho do engenho [...]. É o homem que está sempre com a boca cheia de nomes
feios”.
Talvez, Zé de Matos fosse uma exceção. Uma exceção que se estende ao seu ofício
de poeta não laureado, não letrado, não enquadrado, em suma, nos ditames da ordem e da
pretensa superioridade dos valores civilizados, tal como, na sua época, as elites da região
procuravam impor através de representações onde a produção literária erudita era
estratégica.
Mas, se, normalmente, é a oficialidade, através de suas instituições, que
consagram as obras de arte, como e por que a poesia de Zé de Matos, mesmo “nadando
contra todas as correntes” tornou-se conhecida e ainda hoje permanece viva? Claro que

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

516
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pela sua força e qualidade, mas também pelas mãos invisíveis do destino que colocam em
cena outras mãos, estas visíveis, a exemplo das mãos de escritores e jornalistas, como o
cratense José Carvalho de Brito, que conheceu na infância o poeta e dedicou-lhe parte do
seu livro O caboclo do Pará e o matuto cearense, escrito quando residia em Belém,
capital do Pará. Por sinal, este livro também lançou para o mundo intelectual da literatura
outro poeta, também caririense, também ‘matuto’, também genial, irreverente e libertário:
Patativa do Assaré.

PATATIVA DO ASSARÉ, O POETA DO POVO - Tal como um besouro que desafia


as leis da natureza e consegue voar, Patativa do Assaré213, nascido Antonio Gonçalves da
Silva, em 1909, no Sítio Serra de Santana, município de Assaré,- desafiou as leis sociais
e mesmo com pouca instrução, pelos paradigmas da educação formal, ficou conhecido e
foi reconhecido, ainda em vida, para além das fronteiras nacionais. Para isso, teve seus
poemas publicados em livros, sendo que Cante lá que eu canto, filosofia de um trovador
nordestino, editado pela editora Vozes, se revelou um sucesso editorial e tornou-se um
clássico da literatura popular regional. Sua performance poética e musical foi registrada
também em discos, além de ter canções de sua autoria gravadas por nomes de expressão
da música brasileira, a exemplo de Luiz Gonzaga e Raimundo Fagner. Suas obra e vida
foram enfocadas em dezenas de estudos acadêmicos, além de render inúmeras biografias.
Foi agraciado por várias universidades brasileiras com o título de doutor honoris causa e
objeto de estudo da cadeira de Literatura Popular Universal de uma das mais tradicionais
universidades do mundo, a Universidade de Sorbonne, da França. Recebeu diversas
comendas oficiais, a exemplo da Medalha da Abolição (1987), concedida pelo Governo
do Ceará, e o Prêmio Ministério da Cultura (1998), na categoria Cultura Popular, honraria
que lhe foi entregue pessoalmente pelo então presidente da República Fernando Henrique
Cardoso.
A despeito da consagração, oficial e espontânea, como poeta popular e militante
social, Patativa gostava de se definir como “poeta matuto” ou “poeta agricultor”

213
O apelido foi-lhe dado em alusão a um pequeno pássaro canoro típico do Nordeste, acrescentando o
nome da sua cidade natal. Patativa, na sua mocidade, foi também violeiro, autor de repentes e apreciador
de cantoria.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

517
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(FEITOSA, 2003: 208), o que implica um contexto específico na seara da literatura. A


poesia dita ‘matuta’ (que se ‘opõe’ ao estilo erudito) é caracterizada normalmente pela
oralidade, além da performance e do ritmo, elementos integrantes do jogo narrativo da
poesia de Patativa. No entanto, o que dá uma identidade incontestável à sua obra é o
conteúdo existencial que nela transborda e que consegue traduzir o mundo sertanejo. Sua
poesia tem o gosto da terra e dos costumes do sertão, da vida e do sentir sertanejo, o que
inclui prazeres e mazelas, sonhos e pesadelos, diversão e trabalho, alegria e dor, vida e
morte, polos alternados de uma gangorra que reflete a necessidade de engajamento em
uma causa premente. Patativa é o “Poeta do Povo 214”, de sua luta, temores e esperança,
opressão e resistência; e sua poesia, no que pese a suavidade do lirismo, é um discurso
afiado e cru, meio de libertação, aplicado como arma ou instrumento diante das
vicissitudes contrárias.
A propósito, o “poeta de Assaré” viveu uma sucessão de percalços típicos da vida
de um sertanejo nordestino, principalmente se nascido no umbral do século XX, na região
do Cariri. Época de desmandos perpetrados pelos poderosos latifundiários coronéis, onde
a injustiça social era disfarçada, muitas vezes, por eufemismos como ‘destino’ e ‘vontade
divina’. Nascer no Cariri, tido como um “oásis” em meio a imenso deserto, nem sempre
era um bálsamo para as adversidades. Senão, vejamos:

Na verdade, a região não é toda banhada pelas águas, sendo que a maior
parte de seu território é composta das chamadas “terras secas”, de
maneira que nem todos os solos eram propícios para a agricultura de
gêneros alimentícios. Mas a representação como um oásis reforçava tal
percepção.
[...]
O que é preciso ser levado em conta na análise é a operação política
desenvolvida pela classe senhorial, através de seus discursos, bem
como de suas práticas de dominação sobre os trabalhadores, além da
apropriação dos recursos naturais (REIS JUNIOR, 2015: 2).

Não obstante, o município de Assaré, cenário de toda a existência de Patativa, é o


portal que liga o oásis do Cariri ao sertão seco da região dos Inhamuns. Portanto, um
lugar constantemente ameaçado pelas secas periódicas e comuns a todo o semiárido

214
Poeta do Povo é uma expressão bastante usada para identificar o poeta de Assaré.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

518
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

nordestino, que além das agruras decorrentes da escassez de chuva, é um fenômeno


potencializado negativamente tanto pela manipulação de interesse político como pela
secular estrutura socioeconômica excludente e injusta, decorrente da concentração
fundiária e de renda.
Não bastassem as agruras de ordem coletiva, Patativa sofreu alguns padecimentos
na esfera particular. Aos quatro anos de idade perdeu a visão de um olho, acometido de
uma doença conhecida no sertão por ‘dor-d’olhos’. Aos oito, com o falecimento do pai,
agricultor e pequeno proprietário, passou a ajudar o irmão mais velho a sustentar a família
que passava por extremas dificuldades. A dura, mas sábia, lida na roça foi o meio para
isso. Já adulto, quando visitava Fortaleza, a capital cearense, foi atropelado por um
automóvel, o que lhe trouxe graves consequências: fraturou uma das pernas e passou mais
de um ano em um hospital. Mesmo assim, ficou-lhe uma sequela para sempre, pois tinha
dificuldade para se locomover, já que não pode mais articular a perna traumatizada. Por
fim, no final da vida, perdeu plenamente a visão. Não obstante, Patativa manteve-se
sempre conformado. Não o conformismo que resulta da alienação, mas como um sinal de
sabedoria e de consciência dos limites da própria natureza humana, como o próprio
esclarece:

Eu me conformo com tudo aquilo que vem pela parte natural. Eu não
me conformo é com aquilo que vem pela parte do artificial, como
perseguição, opressão, essas coisas que não pertencem aí à natureza,
pertencem à maldade dos homens mesmo, viu? A isso aí eu não me
conformo, não! Mas essa outra parte, não, purque [sic] eu olho para a
vida como realmente a vida é e, por isso, eu sou conformado... (Apud
CARVALHO, 2000: 54).

Na verdade, a sabedoria é extensiva ao mundo rural, pela sua proximidade com a


natureza, mas também pelas possibilidades de estratégias de sobrevivência em meio aos
infortúnios geralmente intrínsecos à existência do homem pobre da zona rural. Entretanto,
a relação de Patativa com o meio não se limitou ao sentimento de telurismo, mas,
principalmente, como fator desenvolvedor de uma aguda consciência de pertencimento a
uma coletividade e de identificação com um território que se manifesta a partir de
representações diversas e de imaginários. Neste universo, o sertão e o Nordeste são

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

519
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

referências centrais, até mais do que o próprio Cariri. Entretanto, Patativa deixou claro
que não vestia a carapuça regionalista sob a perspectiva determinista. Em uma de suas
mais conhecidas poesias, diz:
Nunca diga, nordestino
Que Deus lhe deu um destino
Causador do padecer
Nunca diga que é o pecado
Que lhe deixa fracassado
Sem condições de viver

[...]

Não é Deus quem nos castiga,


Nem é a seca que obriga
Sofrermos dura sentença!
Não somos nordestinados
Nós somos injustiçados
Tratados com indiferença!
(ASSARÉ, 1988: 25)

Sertão e Nordeste são compreendidos e experimentados, no discurso poético de


Patativa, como espaços de tensão e disputa, por conta de uma marginalização que se
explica na construção cultural de um campo de oposição entre os valores da civilização e
da barbárie, dois polos pretensamente distintos e excludentes. Essa construção vai
repercutir especificamente na literatura, através das várias escolas que se desenvolveram
a partir de meados do século XIX e início do século seguinte, do romantismo ao
modernismo, passando pelo naturalismo e pelo realismo. Neste sentido, como uma reação
a essa condição, o sertão e o Nordeste são também projetados no imaginário, enquanto
espaços onde as utopias vicejam.
Na obra de Patativa, tanto o realismo como o imaginário estão presentes, em
versos ora bucólicos ora graves, que falam tanto da beleza como das injustiças. Uma
poesia que nomina um de seus mais conhecidos livros, Cante lá que eu canto cá, é um
exemplo de sua percepção de espaços antípodas que simbolicamente representam os
binômios litoral-sertão, Sul-Nordeste e campo-cidade que, por sua vez, são
eufemisticamente substitutos da relação binária civilização-barbárie. Nela, o poeta faz
uma defesa eloquente do etnoconhecimento, demarcando uma fronteira entre os valores,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

520
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

saberes e sentidos dos mundos rural e urbano, como um alerta para o próprio absurdo
desta separação:

Poeta, cantô de rua,


Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua,
Que eu canto o sertão que é meu.

[...]

Repare que a minha vida


É deferente da sua.
A sua rima pulida
Nasceu no salão da rua.
Já eu sou bem deferente,
Meu verso é como a simente
Que nasce inriba do chão;
Não tenho estudo nem arte,
A minha rima faz parte
Das obra da criação.
(ASSARÉ, 2011: 25-27)

A filosofia do “poeta matuto”, como Patativa gostava de se definir, é a sua própria


existência, impregnada de valores, práticas e saberes que servem de meios para a
superação do sofrimento e da injustiça que são inerentes à vida do sertanejo. Nas palavras
de Nascimento (2010: 66), “a visão de mundo, construída por Patativa, resulta da leitura
de sua realidade social”, o que vem a comprovar a máxima do educador Paulo Freire de
que “a leitura da palavra é precedida de uma leitura de mundo” (Idem).
Patativa fez sua ‘leitura’ do mundo usando não somente a visão, mas também
outros sentidos, como a audição. Na sua infância, marcada pela intensa relação com o
mundo rural sertanejo, ele gostava de ouvir o canto dos pássaros. “Cada passarinho com
a sua voz, com a sua canção diferente” (Idem: 60-61), como o próprio relata o que bem
pode ser chamado de rito de iniciação no universo do canto. Esse processo de fascínio
que antecedeu o seu “batismo” no mundo da poesia se completou com um evento narrado
em seguida:

Quando eu tinha oito anos que nem era alfabetizado ainda, foi quando
eu vi pela primeira vez uma mulher ler um folheto de cordel... coisa que
nunca tinha assistido, então fiquei maravilhado com quilo, com aquela

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

521
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

linguagem bonita! Aquelas rimas combinando umas com a outras,


aquela beleza de expressão! Tudo aquilo me deixou como que
encantado, então, daquele dia, daquele momento em diante eu pude
conhecer que poderia reproduzir, também em versos, qualquer coisa
que eu quisesse e dali continuei sempre procurando quem tinha cordel
para ler pra mim (Apud NASCIMENTO, Idem: 61).

O que, talvez, Patativa ainda não poderia supor naquele momento era que a sua
poesia seria não apenas um meio de deleite, mas, como diz um repetido, mas necessário
chavão, um instrumento de conscientização para a organização do povo e sua luta para
obtenção de direitos e conquistas e, consequentemente, por um mundo melhor, mais justo
e solidário. Também, não tinha ainda noção de quão perigoso seria a opção que marcaria
sua poesia em tom de crítica, contestação e irreverência. Decerto, teve um vislumbre disso
quando, certa vez, chegou a ser preso por conta de uma crítica que fizera às recorrentes
ausências do prefeito de sua municipalidade. O episódio originou-se por conta da
necessidade do poeta de resolver algumas questões relacionadas a documentos que
dependiam da assinatura do prefeito. Só que este dificilmente aparecia na Prefeitura para
dar expediente. Patativa, aborrecido por sempre encontrar a “Prefeitura sem prefeito”,
glosou este mote:

Nesta vida atroz e dura


Tudo pode acontecer,
Muito breve há de se ver
Prefeito sem prefeitura.
Vejo que alguém me censura
E não fica satisfeito,
Porém eu ando sem jeito,
Sem esperança e sem fé
Por ver no meu Assaré
Prefeitura sem prefeito.
(ASSARÉ, 2006: 25)

Por conta destes versos, visto como impropérios por um subserviente delegado,
Patativa foi preso por desacato a autoridade. Mas como bom poeta, ele não perdeu sua
inspiração nem o bom humor. Ao perceber que na cadeia onde estava detido tinha
coincidentemente uma patativa presa em uma gaiola, ele disparou o seguinte verso:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

522
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Patativa descontente,
Nessa gaiola cativa,
Embora bem diferente,
Eu também sou patativa.

Linda avezinha pequena,


Temos o mesmo desgosto,
Sofremos a mesma pena,
Embora em sentido oposto.

Meu sofrer e teu penar


Clamam a divina lei.
Tu, presa para cantar,
Eu, preso porque cantei.
(Idem)

Patativa construiu uma obra rica e profícua na sua longa e sábia existência. Morreu
aos 93 anos, em 2002, na sua Assaré querida, causando comoção nos seus amigos,
conhecidos e admiradores, e provocando grande repercussão na mídia. Sua poesia
libertária e destemida continua na ordem do dia, sendo objeto de estudos acadêmicos e
inspiração para os movimentos sociais em suas lutas, não só dos trabalhadores do campo,
mas de todos os segmentos que são vítimas de injustiças, mas que anseiam por um mundo
melhor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSARÉ, Patativa do. Ispinho e fulô. Fortaleza: Secretaria de Cultura, Turismo e


Desporto/Imprensa Oficial do Ceará, 1988.

________. Coleção melhores poemas. São Paulo: Global, 2006.

________. Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino. Petrópolis,


Vozes, 2011.

CARVALHO, Gilmar de. Patativa, poeta pássaro do Assaré. Fortaleza: Editora Inside
Brasil Ltda., 2000.

FEITOSA, José Tadeu. A trajetória de um canto. São Paulo: Escrituras Editora, 2003.

FIGUEIREDO FILHO, José de. Engenho de rapadura do Cariri. Fortaleza, Edições UFC
/ Coedição Secult /Edições URCA, 2010.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

523
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

FREITAS, Tércio de. A ressurreição de Zé Bonzinho. Brasília, Thesaurus Editora, 2002.

MELO, Rosilene Alves. Arcanos do verso: trajetórias da literatura de cordel. Rio de


Janeiro: 7Letras, 2010.

NASCIMENTO, Maria Eliza Freitas do. Sentido, memória e identidade no discurso


poético de Patativa do Assaré. Recife: Bagaço, 2010.

REIS JUNIOR, Darlan de Oliveira. Uma história rural: riqueza, pobreza e injustiça
social nos sertões do Ceará (segunda metade do século XIX). In: Anais do XXVIII
Simpósio Nacional de História, Florianópolis, julho de 2015.

SEMEÃO, Jane; GOMES, A. D. Folclore: patrimônio e memória identitária caririense


(1953-1980). In: Anais do XIII Encontro Estadual de História do Ceará, Sobral, CE, 2012.

SOUSA, Oswaldo Alves de. Tipos e ditos populares do Crato de ontem e de hoje e outros
temas. Crato: [s.n], 2000.

VIEIRA, J. Flávio. A Terrível Peleja de Zé de Matos com o Bicho Babau nas ruas do
Crato. [S.l.: s.n.], [2004?].

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

524
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Combatendo nas páginas dos jornais:


a propaganda durante a Guerra Civil paulista de 1932

CARLOS ROBERTO CARVALHO DARÓZ


PPGH – Universidade Salgado de Oliveira

INTRODUÇÃO

Como em todos os processos históricos, a guerra civil travada em São Paulo em


1932 foi o resultado de um conjunto de eventos que envolveram diferentes sujeitos
históricos, além das estruturas políticas do Brasil no primeiro terço do século XX,
particularmente a partir da década de 1920.
Sendo os jornais de maior circulação na capital federal e na capital paulista,
respectivamente, o Correio da Manhã e o Estado de S. Paulo não poderiam ficar à
margem dos acontecimentos. Com expressiva tiragem e elevada capacidade de
circulação, os jornais constituíam-se em importantes veículos de propaganda e
mobilização.
Em São Paulo, o jornal de Júlio Mesquita Filho desempenharia papel central,
trabalhando para aglutinar a opinião pública em torno dos ideais constitucionalistas. Em
nome do “sacrifício” representado pelo MMDC215, eram convocados os bravos paulistas,
trabalhadores e “herdeiros” do espírito bandeirante.
No Rio de Janeiro, o diário dirigido por Paulo Bittencourt daria voz ao Governo
Provisório e, embora com menor ênfase do que seu concorrente paulista, apoiaria as
forças governamentais e os grupos políticos alinhados com Getúlio Vargas. O periódico
daria ao conflito uma feição nacional, apresentando para seus leitores uma luta de todo o
Brasil contra o estado paulista rebelado.
Os jornais chamariam para a luta e procurariam manter elevado o moral dos
soldados durante os meses de conflito, mesmo que para isso omitissem dados e

215
No dia 23 de maio de 1932, quatro manifestantes paulistas foram mortos em um confronto contra
membros da Legião Revolucionária, liderada por Miguel Costa. As mortes em praça pública serviram para
eliminar as poucas diferenças partidárias que ainda persistiam e para aglutinar a sociedade paulista. A sigla
formada pelas iniciais de Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo, os nomes dos estudantes mortos, se tornou
sinônimo do sacrifício por São Paulo.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

525
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

informações. Um embate de palavras, ideias e informações seria desencadeado em suas


páginas, transformadas em verdadeiras trincheiras de papel.

O COMBATE NAS PÁGINAS DOS JORNAIS – A PROPAGANDA DE GUERRA

A tecnologia disponível para a edição de jornais no princípio do século XX


possibilitava a disseminação de informações de forma relativamente rápida e era capaz
de alcançar um grande público, o que abriu espaço para a construção da propaganda. A
partir da Guerra da Crimeia (1853-1856) e da Guerra Civil Americana (1861-1865),
primeiros conflitos cobertos por jornalistas presencialmente nos campos de batalha, as
autoridades começaram a tentar controlar o fluxo de informações durante todo o tempo
de guerra, com o objetivo de assegurar o apoio da população.216
Nessa perspectiva, censura e propaganda caminham juntas nos jornais, porém
em sentido contrário. Enquanto a primeira procura ocultar os fatos negativos ou
prejudiciais, como derrotas, retiradas, prisioneiros, massacres, dentre outros, a segunda
busca exaltar as conquistas, os sucessos, os avanços, as ações bem sucedidas e as vitórias.
Tais fatores crescem de importância quando se trata de guerras civis ou revoluções. Os
jornais são publicados na mesma língua dos oponentes e de suas populações e a
informação está mais ou menos disponível para circulação.
Durante o movimento de 1932, tanto O Estado de S. Paulo como o Correio da
Manhã estiveram sujeitos aos órgãos censores, embora o chefe do órgão em São Paulo
fosse o próprio editor do diário paulista, Plínio Barreto. Da mesma forma, ambos os
periódicos fizeram uso da propaganda de guerra, cada qual ao seu modo, no intuito de
manter o apoio da sociedade e o moral das tropas.
Além de veicularem os manifestos iniciais buscando adesões e avocando
lealdades, os jornais se constituíram em terreno fértil para defender posicionamentos e
desqualificar o adversário. Nesse sentido, as páginas do Correio da Manhã e de O Estado
de S. Paulo figuraram como verdadeiras trincheiras ideológicas onde o embate de
vontades ocorreu ao longo de todo o movimento.

216
PADDOCK, Troy. World War I and propaganda. Boston: Brill, 2014, p.7.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

526
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nos primeiros dias da revolução, o periódico carioca apresentou sua visão sobre
os acontecimentos em São Paulo, reduzindo-o a uma mera disputa política balizada por
interesses escusos. Para o jornal,

[...] o movimento que alarmou a nação, mergulhando-a na desordem,


parece não encontrar outra justificativa senão essa que lhe emprestam
os políticos de ofício, isto é, a necessidade de se substituir homens de
governo por outros homens que querem governar. Domina o
facciosismo e prevalece o rancor. A cobiça se assanha.217

Na mesma linha de pensamento, para desqualificar os paulistas, o Clube 3 de


Outubro, organização controlada pelos “tenentes”, fez publicar um comunicado
denunciando o caráter reacionário do movimento e lembrando as iniquidades da Primeira
República: “Eles visam a reconquista das posições de que o povo os arrancou [...].
Querem de novo a corrupção, a compra de consciências, a submissão das massas
populares à sua vontade e aos seus apetites insaciáveis.”218
Em sentido contrário, O Estado de S. Paulo esforçou-se para defender a causa
paulista e contestar as críticas e a propaganda negativa veiculada pela imprensa do Rio
de Janeiro. O jornal publicou, na íntegra, um pronunciamento feito à rádio Cruzeiro do
Sul pelo dr. Jorge Americano, professor da Faculdade de Medicina de São Paulo
rebatendo as acusações do Governo Provisório: “[...] algumas palavras tendentes a
desfazer, fora de São Paulo, as informações falsas espalhadas pelo governo federal sobre
a situação do movimento constitucionalista [...].”219 Uma das colocações da propaganda
federal que mais aborrecia as lideranças paulistas era a de que o movimento tinha caráter
separatista, ou, menos frequentemente, comunista: “Na linguagem da ditadura o
movimento de S. Paulo ou é separatista, ou é comunista. [...] O perigo do comunismo, se
existe, foi criado pela ditadura e seus comparsas.”220

217
ACORDO e patriotismo. Correio da Manhã, n.11.531, Rio de Janeiro, 13 jul. 1932, p.4.
218
COMUNICADO do Clube 3 de Outubro. Correio da Manhã, n.11.537, Rio de Janeiro, 20 jul. 1932, p.4.
219
AO POVO brasileiro. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 jul. 1932, p.1.
220
NOTAS e informações. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 4 set. 1932, p.3.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

527
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Constantemente o diário paulista publicava editoriais rechaçando as notícias


veiculadas na capital federal e defendendo a legitimidade do movimento, como este do
início de agosto:

A ditadura adotou para sua propaganda o sistema de duchas alternadas.


Depois das ameaças aterrorizantes de há dois dias, tivemos ontem uma
pregação quase untuosa por via aérea. Tudo isso é inútil. Com duchas
frias ou com duchas quentes, a ditadura não conseguirá alterar o ânimo
do povo.221

Consoante com o binômio censura–propaganda, os jornais procuraram ocultar


as falhas dos governos e tropas dos quais eram porta-vozes e deram grande destaque às
ações negativas perpetradas pelos adversários, expondo suas fraquezas e revelando
supostos crimes. Dessa forma, uma série de pautas negativas, sempre com foco nos
oponentes, fizeram-se presentes nas páginas da imprensa.
Um documento redigido pelo general Góes Monteiro, comandante federal no
Setor Leste, veio a público no Correio da Manhã, dando conta que “[...] revoltosos
levantaram bandeira branca, para receber nossas tropas com rajadas de metralhadoras.
Além deste procedimento, hostilizaram transporte de feridos por nossos padioleiros.”222
Crítica semelhante foi feita em editorial por Plínio Barreto, procurando lançar para o outro
lado o mau comportamento no campo de batalha: “Protestos veementes provocam [...] os
ataques da aviação [federal] a comboios da Cruz Vermelha, proeza que ainda anteontem
se observou nas imediações do rio Atibaia [...].”223
Ainda fazendo propaganda com base nas ações de combate, em agosto o Correio
da Manhã trouxe a público duas notícias que se destacam pelo objetivo implícito de
assinalar a fraqueza moral das forças constitucionalistas. Segundo o jornal, dois
prisioneiros de guerra paulistas capturados no Setor Sul “declararam ter ouvido em
Itapetininga que os elementos remanescentes do Batalhão Patriótico Floriano Peixoto se

221
NOTAS e informações. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 7 ago. 1932, p.5.
222
ENTRE a bandeira branca e a metralha. Correio da Manhã, n.11.536, Rio de Janeiro, 19 jul. 1932, p.2.
223
NOTAS e informações. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 18 set. 1932, p.3.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

528
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

haviam revoltado contra o seu comandante [...] assassinando-o, por considerarem-no


militarmente incapaz” (grifo nosso).224
Em 10 de agosto, o jornal noticiou o suicídio de um oficial constitucionalista em
plena trincheira no Setor Leste, o capitão Odoljan Galvão, nos seguintes termos:

A certa altura, o capitão Galvão [...] pronunciou em altas vozes,


violentíssimo discurso contra os federais, que continuaram quietos, por
perceberem que se tratava de uma alucinação. No auge do entusiasmo,
mas já pronunciando orações sem nexo, o capitão Odoljan Galvão sacou
um revólver e, levando-o ao ouvido, fez a arma detonar.225

Embora tivessem a intenção de destacar as mazelas do exército paulista, observa-


se que a primeira notícia baseou-se em boatos não confirmados (“declararam ter
ouvido...”) e a segunda não passou de uma tragédia pessoal, que ceifou a vida de um
oficial atormentado, situações nada fora do comum em uma guerra de atrito.
Em setembro a aviação federal lançou uma série de ataques a bomba contra
Campinas, provocando a morte de um menino e provocando a ira entre a sociedade
paulista.226 Refletindo a indignação coletiva, O Estado de S. Paulo manifestou a repulsa
dos paulistas aos “inomináveis atos de selvageria da aviação ditatorial.”227 Os jornais da
semana em que ocorreram os bombardeios registraram os protestos de diversas entidades,
com o Instituto da ordem dos Advogados de São Paulo, Associação Comercial, Federação
dos Escoteiros, dentre outras.228
Em tempo de guerra, poucas coisas são mais desmoralizantes para o soldado do
que ver ou ter notícia da captura e aprisionamento de seus companheiros. O Correio da
Manhã esmerou-se em utilizar esse fator psicológico como propaganda, estampando,
sempre em primeira página, notícias como: “Chegou ontem mais uma leva de

224
A HISTÓRIA de um motim no Batalhão Floriano Peixoto. Correio da Manhã, n.11.554, Rio de Janeiro,
9 ago. 1932, p.4.
225
O EXÉRCITO de Leste prosseguindo a ofensiva. Correio da Manhã, n.11.555, Rio de Janeiro, 10 ago.
1932, p.1.
226
DARÓZ, Carlos. Um céu cinzento: a história da aviação na Revolução de 1932. Recife: EDUFPE, 2013,
p.172.
227
OS INOMINÁVEIS atos de selvageria da aviação ditatorial. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 20 set.
1932, p.1.
228
O BOMBARDEIO de Campinas. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 20 set. 1932, p.1.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

529
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

prisioneiros”229, “chegaram do Paraná vários oficiais prisioneiros”230, ou, ainda,


“comboiado por um navio de guerra, chegou ontem a esta capital o paquete ‘Campos’,
trazendo setecentos prisioneiros feitos em Buri e Capela da Ribeira”.231 Reforçando tal
atitude, o jornal publicou na edição de 26 de agosto uma fotografia, também na capa,
mostrando dezenas de prisioneiros de guerra paulistas em um campo de internamento em
Ponta Grossa (Figura 1)

Figura 1 – Prisioneiros de guerra paulistas em Ponta Grossa

Fonte: Correio da Manhã, n.11.569, Rio de Janeiro, 26 ago. 1932, p.1

Na mesma medida em que os aspectos negativos da campanha deveriam ser


ocultados ou atribuídos ao adversário, quando as operações corriam bem era necessário
exaltar os feitos das tropas e, se possível, evidenciar atos de heroísmo e coragem. O
Estado de S. Paulo, em diversas oportunidades, deu destaque às ações bem sucedidas e
aos feitos de seus soldados, como “distinguiram-se especialmente nesse combate o

229
CHEGOU ontem mais uma leva de prisioneiros. Correio da Manhã, n.11.551, Rio de Janeiro, 5 ago.
1932, p.1.
230
CHEGARAM do Paraná vários oficiais prisioneiros. Correio da Manhã, n.11.557, Rio de Janeiro, 12
ago. 1932, p.1.
231
COMBOIADO por um navio de guerra, chegou ontem a esta capital o paquete ‘Campos’, trazendo
setecentos prisioneiros feitos em Buri e Capela da Ribeira Correio da Manhã, n.11.563, Rio de Janeiro, 19
ago. 1932, p.1.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

530
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Batalhão Borba Gato, que, então, recebeu o seu batismo de fogo”232, ou “acaba de
regressar o trem blindado, depois de haver posto em fuga as tropas da ditadura [...] as
trincheiras ficaram juncadas de cadáveres [...].”233 No dia 7 de setembro, um comunicado
do jornal exaltou uma ação coordenada por um dos mais destacados soldados paulistas, o
major da FPSP Romão Gomes:

Somente em São José do Rio Pardo realizou-se uma brilhante operação


de guerra dirigida pelo major Romão Gomes. Devido às manobras
inteligentes, precisas e firmes, [...] as tropas ditatoriais foram postas em
debandada, deixando no campo da luta quatro mortos e cinco feridos.
Doze prisioneiros, 20 fuzis e 6.000 cartuchos.234

No Rio de Janeiro, o Correio da Manhã também noticiava o que dava certo na


campanha, celebrando os sucessos coletivos e individuais, como a ação da coluna do
general João Francisco que, em primeira pessoa, relatou; “Tomamos primeiro a ponte
sobre a estrada de rodagem, enquanto nossa cavalaria cortava a retirada do inimigo, que
defendia a ponte da estrada de ferro. Até agora não tivemos mortos.”235 Um feito um
tanto inusitado e marcado pela coragem de um soldado comum, ocorrido nas
proximidades de Silveiras, também mereceu destaque no noticiário:

O músico do 2º BI [batalhão de infantaria] da Brigada Gaúcha, Manoel


Dias, quando como padioleiro colocava o cadáver de um companheiro
na respectiva padiola, foi alvejado por uma metralhadora paulista.
Procurando defender-se, fugiu inadvertidamente para o campo paulista.
Quando compreendeu que estava em terreno adversário, ocultou-se
num ribeiro, ficando somente com a cabeça de fora. Ali passou dois dias
e conseguiu ontem regressar ao 2º BI, depois de fazer observações
valiosas.236

232
COMUNICADO das 18 horas. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 ago. 1932, p.1.
233
BRILHANTE feito das forças constitucionalistas no setor de Eleutério. O Estado de S. Paulo, São Paulo,
7 ago. 1932, p.1.
234
COMUNICADO das 24 horas. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 7 set. 1932, p.1.
235
A AÇÃO da coluna João Francisco. Correio da Manhã, n.11.552, Rio de Janeiro, 6 ago. 1932, p.3.
236
O GENERAL Góes Monteiro em inspeção aos setores mineiros. Correio da Manhã, n.11.568, Rio de
Janeiro, 25 ago. 1932, p.1.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

531
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A divulgação de feitos notáveis como este contribuía para a elevação do moral


dos soldados em campanha, e o jornal carioca não perdeu a oportunidade para demonstrar
o espírito de luta dos soldados federais: “[...] no setor de Uberaba, os soldados
demonstraram fortaleza de ânimo [...] os soldados do 4º BI, atravessando o rio Grande,
cantavam canções patrióticas indiferentes ao tiroteio do adversário.”237
O uso dos jornais como instrumentos de propaganda de guerra levou os editores
e repórteres, muitas vezes a se utilizarem de eufemismos ou meias-verdades para
cobrirem acontecimentos que eram desfavoráveis à sua causa, resultando em notícias
dissociadas da realidade.
No dia 12 de setembro de 1932, as forças do Exército Leste, comandadas pelo
general Góes Monteiro, ocuparam a cidade de Cruzeiro, importante posição paulista
localizada no coração do Vale do Paraíba que abria o caminho para a capital paulista.
Enquanto o Correio da Manhã divulgou a notícia de forma direta – “Numa arrancada
violenta, todas as forças combinadas ocuparam Lavrinhas, o Túnel da Mantiqueira e
Cruzeiro.”238 –, O Estado de S. Paulo precisou realizar um verdadeiro malabarismo
jornalístico para ocultar a derrota constrangedora de seus leitores. No dia 13, com a
manchete de capa assinalada foi “Energia e bravura do soldado constitucionalista”239, a
edição do diário nada publicou a respeito, silenciando sobre o fato. No dia seguinte, em
um breve e discreto comunicado, o jornal disfarçou a derrota afirmando que “ontem, dia
12, no Setor do Vale do Paraíba, retraiu-se a linha de Pinheiros – Silveiras, para outra de
menor extensão, próxima da anterior.”240
Outra oportunidade em que notícias contrastaram com a realidade se produziu
na última semana da revolução, quando uma esquadrilha de três aviões constitucionalistas
atacou, de surpresa, os navios da Divisão Naval que bloqueavam o porto de Santos. O
cruzador Rio Grande do Sul abriu fogo contra as aeronaves e conseguiu abater uma delas,
perdendo a vida o piloto e o observador.241 No dia seguinte, o Correio da Manhã, após

237
O MORAL da tropa federal em Minas. Correio da Manhã, n.11.590, Rio de Janeiro, 20 set. 1932, p.4.
238
O EXÉRCITO de Leste completou os seus anunciados sucessos da véspera. Correio da Manhã,
n.11.585, Rio de Janeiro, 14 set. 1932, p.1.
239
ENERGIA e bravura do soldado constitucionalista. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 13 set. 1932, p.1.
240
COMUNICADO das 24 horas. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14 set. 1932, p.1.
241
DARÓZ, Carlos. Um céu cinzento ..., p.177.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

532
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

receber informações do Ministério da Marinha, publicou que “os meios de defesa da 1ª


divisão [naval] [...] entraram incontinenti em ação abatendo logo um dos aparelhos que
teve o motor atingido, caindo na água em chamas.”242 O Estado de S. Paulo utilizou-se
de uma meia-verdade, atribuindo a morte dos aviadores a um desastre aéreo: “pereceram
num desastre os aviadores João Gomes Júnior e Mário Bittencourt.”243
O profundo engajamento do jornal O Estado de S. Paulo na propaganda de
guerra pode ser mensurado pela análise das manchetes de primeira página, que,
contrastando com a sobriedade dos títulos praticados pelo Correio da Manhã
(invariavelmente “Os acontecimentos de São Paulo”), eram sempre redigidas de forma a
engrandecer o exército constitucionalista e, sempre que possível, faziam referências à
causa “da lei” e “da liberdade”. Assim, mesmo quando, a partir do mês de agosto, o
movimento começou a dar mostras inequívocas de fracasso, o jornal paulista estampava
em sua primeira página manchetes como: “As hostes da ditadura estão em franca retirada
no Paraná”244, “Em todas as frentes é excelente o ânimo dos soldados da lei” 245, “Os
soldados da lei e da liberdade ampliam e consolidam as posições conquistadas”246 ou “O
denodo dos soldados da lei anula os desesperados esforços dos ditatoriais”247. Em
setembro, quando a situação das forças constitucionalistas já se apresentava crítica, as
manchetes evocativas continuaram, distanciando-se cada vez mais da realidade dos
campos de batalha: “Excelente situação das forças constitucionalistas”248, “É magnífica a
situação militar do exército constitucionalista”249, ou “O exército da lei é uma barreira
inexpugnável”.250

CONSIDERAÇÕES FINAIS

242
A DIVISÃO naval atacada por aviões paulistas. Correio da Manhã, n.11.595, Rio de Janeiro, 25 set.
1932, p.3.
243
A MORTE de dois heróis. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 25 set. 1932, p.1. O jornal publicou o nome
do piloto, José Ângelo Gomes Ribeiro, incorretamente, provavelmente por tê-lo confundido com seu pai,
general João Gomes, à época comandante da 1ª Região Militar no Rio de Janeiro.
244
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 7 ago. 1932, p.1
245
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 13 ago. 1932, p.1
246
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 ago. 1932, p.1
247
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 ago. 1932, p.1
248
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 set. 1932, p.1
249
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 set. 1932, p.1
250
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 24 set. 1932, p.1
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

533
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Analisando em retrospecto, é possível verificar que os dois jornais objeto do


presente estudo representaram grupos políticos específicos, participaram, cada qual a seu
modo, da mobilização da sociedade e contribuíram com o esforço de guerra.
Embora fosse favorável a algumas ideias defendidas pelos paulistas, o Correio
da Manhã fez de suas páginas uma trincheira do Governo Provisório. Mantendo
basicamente sua estruturação de tempo de paz, continuou a veicular notícias
internacionais, culturais e sociais, em paralelo com o noticiário de guerra que,
frequentemente, consumia de três a cinco páginas. Com manchetes sóbrias, deu
publicidade a ofícios, telegramas e outros documentos oficiais, e não trouxe muitos
editoriais de opinião. O jornal não empreendeu campanhas de mobilização, tendo em
vista que o Governo Provisório, em que pese suas carências, não as realizou.
Sob o aspecto estrutural e gráfico, a primeira página foi reservada às notícias do
conflito, geralmente, ilustrada por fotografias. Mesmo submetido à censura e praticando
a propaganda de guerra, na cobertura do conflito o Correio da Manhã contou com um
enviado especial à frente de combate, que atuou junto ao Destacamento de Exército Leste
do general Góes Monteiro. Suas reportagens aproximaram o combate dos leitores e
apresentaram, em cores vivas, a crueza da guerra.
O Estado de S. Paulo ocupou a trincheira oposta durante a revolução. Como
seus dirigentes, Júlio de Mesquita Filho e Plínio Barreto, estavam diretamente ligados ao
movimento constitucionalista, o jornal se converteu em verdadeiro instrumento de
motivação, propaganda e mobilização. Seu tamanho foi reduzido para 4-5 páginas, em
média, nas quais a prioridade de publicação eram as campanhas de mobilização e a
prestação de contas à sociedade paulista. Diversas cruzadas foram apoiadas pelo
periódico e se converteram em colunas regulares, como a do “ouro para a vitória”,
“capacete de aço”, “armas e munições”, “pão de guerra”, “milícia civil MMDC”, “correio
militar”, entre outras, nas quais eram publicadas as listas de doadores e donativos. Com
a proibição de circular no Rio de Janeiro e o consequente fechamento de sua sucursal
naquela cidade, a coluna “notícias do Rio” foi descontinuada e, quando produzida,
dependeu de viajantes e informantes. Diariamente, nas páginas interiores, era publicado
o editorial “notas e informações”, normalmente redigido pelo próprio chefe de redação
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

534
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Plínio Barreto, no qual era feita a defesa e a legitimação do movimento, além de ataques
ao Governo Provisório e a mobilização de segmentos da sociedade.
A atualização das notícias relativas às operações militares foi assegurada com a
publicação de três comunicados diários (11, 18 e 21 horas), que resumiam, na primeira
página, as ações de combate. Por entender que não deveria oferecer informação valiosa
para o inimigo, o periódico quase nunca divulgou o informou sobre o movimento de
tropas, no entanto, facilitado pelo censor do movimento ser seu próprio redator-chefe,
praticou intensamente a propaganda de guerra e foi um dos responsáveis por São Paulo,
mesmo isolado, ter resistido por três meses contra todo o aparato bélico do Governo
Provisório.
Cada qual a seu modo, os jornais utilizaram sua capacidade de penetração e
circulação na sociedade, e, com suas propagandas, procuraram influenciar no resultado
do conflito, tornando-se instrumentos do esforço de guerra.

FONTES PRIMÁRIAS:
- Arquivo do Jornal O Estado de S. Paulo
- Biblioteca Nacional – Jornal Correio da Manhã

BIBLIOGRAFIA:
CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932: a causa paulista. São Paulo:
Brasiliense, 1981.
CAPELATO, Maria Helena; PRADO, Maria Lígia. O bravo matutino - imprensa e
ideologia: o jornal O Estado de São Paulo. São Paulo: Alfa-Omega, 1980.
DARÓZ, Carlos. Um céu cinzento: a história da aviação na Revolução de 1932. Recife:
EDUFPE, 2013.
HILTON, Stanley. 1932: a guerra civil brasileira. São Paulo: Nova Fronteira, 1982.
LUCA, Tânia Regina. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006, pp.111-153.
LUCA, Tânia Regina; MARTINS, Ana Luíza (orgs.). História da imprensa no Brasil.
São Paulo: Contexto, 2008.
PADDOCK, Troy. World War I and propaganda. Boston: Brill, 2014.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

535
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Psicanalistas, católicos e os manuais de educação sexual (Brasil, década de 1950)

CAROLINA DA COSTA DE CARVALHO


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde COC/Fiocruz
Bolsista CAPES

O trabalho se propõe a apresentar algumas reflexões em torno das diferentes


leituras sobre a educação sexual durante a década de 1950 no Brasil, a fim de
compreender como a diversidade de discursos a respeito do sexo contribuiu para a
formação de uma cultura sexual no país. O esforço de produzir uma pedagogia do sexo
elegia a educação sexual como instrumento poderoso na conformação de uma sexualidade
cuja normalidade era circunscrita em padrões biológicos e heteronormativos, além de
moralizada segundo princípios religiosos. Isso mobilizou não apenas médicos e
educadores, como também psicanalistas, sexólogos, católicos, higienistas, eugenistas e
psiquiatras (Felicio, 2012; Chucailo, 2015), contribuindo para uma vasta produção de
publicações sobre o assunto, em especial livros e artigos publicados em revistas e jornais,
que tinham um público leigo como alvo.
Ainda assim, há poucos estudos historiográficos sobre esse tema, em especial
análises que considerem, para além do debate sobre a institucionalização e as discussões
teóricas, a circulação desses saberes e sua apropriação por leigos (Nunes; Silva, 1999;
Carrara; Russo, 2002). Dentro desse escopo da educação sexual, busca-se compreender
dois discursos que se destacam nesse cenário: a psicanálise e o catolicismo a partir do
interesse compartilhado pela leitura e sua valorização enquanto suporte de divulgação
para leigos e da hipótese de que seus respectivos modelos de educação sexual não eram
totalmente antagônicos, mas sim marcados por pontos de aproximação e ambiguidades.
Ainda que questionasse o sexo como pecado, a psicanálise defendia uma
sexualidade “normal” também circunscrita no casamento e na reprodução e dava uma
roupagem patológica a comportamentos considerados pecaminosos para os católicos,
como a homossexualidade e a masturbação. Em contrapartida, há uma resposta da Igreja
Católica ao avanço de explicações “modernas” consideradas imorais e obscenas,
passando então a versar cada vez mais sobre o sexo, a fim de instruir jovens e pais cristãos
contra as iniciações “pervertidas” nos assuntos do amor. Os manuais de educação sexual

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

536
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

assumiam caráter de instrução catequética e se dedicavam à formação da juventude cristã,


tratando de assuntos como namoro, casamento e castidade, a fim de instruir tanto jovens
cuja vocação era o casamento quanto pais preocupados em dar uma boa educação a seus
filhos e filhas. Essa pedagogia moral e religiosa se dava através de anúncios e seções de
aconselhamento em revista, que atuavam como “confessionários discursivos” (Dalmolin,
2012, p. 81).
Enquanto “matriz geral que rege a produção do discurso verdadeiro sobre o sexo”
(Foucault, 2017, p. 70), a confissão se apresentava como o mecanismo pelo qual a
educação sexual visava normatizar as condutas sexuais de modo a circunscrevê-las em
um padrão “normal”, seja através da medicalização das perversões sexuais, seja através
da moralização do sexo. Apesar de sua origem no cristianismo, a confissão da sexualidade
foi apropriada por outros discursos, com especial destaque para os médicos, que
disputavam a autoridade de confessores. A penitência religiosa dava lugar ao diagnóstico
e, em alguns casos, à cura – não mais da alma, mas do corpo dos sujeitos. Deste modo, a
narrativa de si assume um papel fundamental à análise aqui pretendida, pois é a partir
desse exame de si realizado através da confissão que a pedagogia do sexo atua. Os livros
de educação sexual eram indicados nas seções de consulta e de aconselhamento dos
leitores como método terapêutico e/ou pedagógico, visando a um só tempo conformar
uma sexualidade normal e corrigir práticas consideradas desviantes ou imorais.
No entanto, tão importante quanto compreender o que é dito sobre a sexualidade
e de que maneira tais discursos normatizam o sexo, é acessar como ocorre a recepção
desses discursos por um público leigo não especializado, que não pertence às
comunidades científicas tampouco a ordens religiosas. Daí a importante de refletir sobre
os mediadores, responsáveis pela divulgação e pela tradução de saberes médicos ou
teológicos para uma linguagem didática e esclarecida que possibilitassem a leitura desses
conhecimentos.
As considerações de Roger Chartier (2002, 2011) a respeito das apropriações e
dos usos que perpassam as práticas de leitura são fundamentais para a investigação, uma
vez que se propõe a compreender a recepção da literatura sobre educação sexual por um
público leigo. Muitas vezes os livros eram indicados como terapêutica e solução aos
problemas narrados nas cartas enviadas pelos leitores a seções de aconselhamento em
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

537
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

revistas. Isso implica em considerar o sujeito não como um efeito do discurso, tal como
proposto por Foucault, mas sim produtor de próprias versões de si, uma vez que as
experiências individuais interferiam de forma relevante na consideração do que era
considerado saudável e normal, tornando a apropriação de modelos universalistas e
normativos mais fluidos e negociáveis. Uma vez que tais discursos eram ressignificados
no processo de apropriação pelos indivíduos, isso permitia múltiplas acomodações desses
saberes, não apenas na adequação às normas, mas também linhas de fuga às mesmas.
Um episódio em especial se destaca como ponto de partida para algumas das
questões aqui colocadas. Em 1940, o psicanalista Gastão Pereira da Silva251 publicou uma
resenha intitulada “Um aspecto religioso da psicanálise” na revista literária Dom
Casmurro. O texto tinha como finalidade anunciar uma futura publicação homônima (que
nunca ganhou materialidade) sobre as relações entre religião e psicanálise, apontando que
a doutrina freudiana não era incompatível com os postulados religiosos. Acusava que a
psicanálise era “mal interpretada” pelos católicos, que se recusavam a admitir que fossem
leitores de Freud. A fim de ilustrar que a psicanálise e a religião tinham mais pontos em
comum do que seus adeptos gostavam de reconhecer, Gastão citava a obra Educação
sexual para pais e educadores, escrito pelo padre Álvaro Negromonte252 e publicado pela
primeira vez no ano anterior pela editora José Olympio.
O livro foi muito bem recebido não só entre católicos – o prefácio foi escrito por
Dom Hélder Câmara, então assistente eclesiástico do Secretariado Nacional de Educação
da Ação Católica e técnico do Ministério da Educação e Saúde Pública – mas também na
grande imprensa. Gastão elogiava a “ousadia” e o pioneirismo de um padre em escrever
sobre educação sexual, afirmando que as páginas de seu livro “estão cheias de
ensinamentos psicanalíticos, muito embora seu autor não se confesse adepto da doutrina

251
Gastão Pereira da Silva (1898-1987) foi um psicanalista carioca dedicado à divulgação da psicanálise
para leigos. Para tanto, usava uma carta escrita pelo próprio Freud como chancela de seus esforços em
popularizar a doutrina. Colaborou nas revistas Dom Casmurro, O Malho, Vamos Ler!, Carioca e Seleções
Sexuais, em programas radiofônicos e promoveu cursos de autoanálise, além de ter publicado mais de 50
livros, como Para Compreender Freud, Vícios da Imaginação e Conhece-te pelos sonhos (Marcondes,
2015).
252
Monsenhor Álvaro Negromonte (1901-1964) foi um sacerdote católico pernambucano e se destacou
pelo engajamento com a divulgação de manuais católicos como instrumentos de formação religiosa e
educativa, com especial destaque para a coleção de catecismos composta de 14 volumes e publicada pela
José Olympio Editora a partir de 1937 (Orlando, 2008). Além disso, escreveu artigos para revistas católicas
e não católicas, como Seleções Sexuais.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

538
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de Freud”. Endossava também que as considerações católicas sobre castidade e


sexualidade sadia não eram muito diferentes do que os psicanalistas propunham, pois “a
psicanálise nada mais é do que isto: educação sexual”. A confissão era outro ponto de
semelhança, embora fosse necessário considerar, no caso da psicanálise, “a sua doutrina
e seu método” (Silva, 21/01/1940, p. 7).
As explanações de Gastão e seus elogios a um livro católico de educação sexual
demonstram, ainda que de forma breve, que as relações entre psicanálise e religião eram
mais complexas do que polarizadas. Além disso, tanto Gastão Pereira da Silva quanto
monsenhor Álvaro Negromonte são personagens importantes para a discussão pública
sobre a educação sexual, em especial sua circulação entre um público leigo. Enquanto
“intelectuais mediadores”, isto é, de “homens da produção de conhecimentos e
comunicação de ideias” (Gomes; Hansen, 2016, p. 10), tais personagens são estratégicos
nos projetos de divulgação nos quais estavam engajados, contribuindo para pensar as
estratégias lançadas por psicanalistas e católicos na divulgação da educação sexual.
O interesse pela década de 1950 se justifica por algumas questões importantes,
tanto do ponto de vista da análise desses suportes de divulgação quanto do ponto de vista
institucional, além de ser pouco abordado quando comparado às décadas anteriores
(DeNipoti, 1999; Reis, 2006; Augusto, 2015). Do ponto de vista institucional, duas
informações são importantes: a criação do primeiro curso de psicologia do Brasil, em
1952, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e a
institucionalização oficial da psicanálise enquanto especialidade médico-científica
mediante reconhecimento da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro pela International
Psychoanalytical Association (IPA), em 1955. Isso contribui para pensar tanto o processo
de autonomização da psicanálise quanto as interações entre católicos e psicanalistas,
sobretudo no que diz respeito à “educação das almas”.
A criação dos primeiros cursos brasileiros de psicologia em universidades
católicas pode ser interpretada como uma forma de manter o objetivo cristão de cuidar
das almas, a exemplo da posterior introdução da psicologia na formação vocacional dos
padres (Jacó-Vilela; Rocha, 2014, p. 124). Além disso, o reconhecimento da psicanálise
como explicação científica aos problemas individuais traz à tona os conflitos por
autoridade sobre os problemas do “eu”, uma vez que surgia em cena um especialista para
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

539
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ouvir a intimidade e as angústias individuais e disputar autoridade com um padre ou uma


pessoa próxima: o psicanalista. Esse caráter de “autoajuda psicanalítica-sexológica”
buscava divulgar a doutrina e popularizar a prática da análise enquanto terapêutica no
cuidado de si (Russo, 2002, p. 59). Em outras palavras, o divã passava a disputar com o
confessionário.
Apesar da diversificação dos meios de comunicação de massa nesse período, com
destaque para a popularização do rádio e da televisão, a imprensa foi o veículo mais
utilizado na divulgação de tais ideais e, consequentemente, onde os conflitos se revelam
mais aparentes. O mercado editorial de livros sobre educação sexual crescia
consideravelmente desde a primeira metade do século XX, com lançamento de coleções
e bibliotecas científicas publicadas por editoras como Civilização Brasileira e Companhia
Editora Nacional. Além de Gastão Pereira da Silva e do monsenhor Álvaro Negromonte,
destacam-se os sexólogos José de Albuquerque e Hernani de Irajá e os médicos Antônio
Austregésilo e Julio Porto-Carrero (Carrara; Russo, 2002, p. 281). A divulgação desse
tipo de literatura para um público leigo se dava principalmente a partir de periódicos e, a
fim de pensar seu alcance, algumas revistas se destacam pelo interesse e incentivo à
participação dos leitores em seções de correspondência: as revistas ilustradas sobre sexo
Seleções Sexuais e Ciência & Sexualidade e os periódicos católicos Lar Católico e A
Família Cristã.
Publicadas no Rio de Janeiro e dirigidas por Edgard de Abreu, Seleções Sexuais
(1952-1957) e Ciência & Sexualidade (1953-1957) eram revistas ilustradas que tratavam
sobre o amor, o sexo e a sexualidade e indicadas para maiores de 18 anos. Diferente dos
periódicos médicos, que tinham circulação restrita a médicos e especialistas, tais
publicações eram voltadas para um público leigo e, para tanto, contaram com a
colaboração de educadores, pedagogos, higienistas e “homens de ciência” dedicados à
missão de esclarecer os problemas sexuais e amorosos de seus leitores e superar os tabus
e preconceitos relacionados à sexualidade através da educação sexual. Além de trechos
de livros e de artigos médicos traduzidos, crônicas e fotografias de esculturas greco-
romanas e corpus nus, também tinham seções de consultas ao público leitor nas quais
eram dados conselhos relativos à regulação da vida sexual, como “Confidências” e “Carta

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

540
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

aberta”, ambas assinadas por Gastão Pereira da Silva. Destinada a leitores de ambos os
sexos, tinham como objetivo atuar como consultório médico em revista:

Envie-nos o seu “caso”, relatando sem constrangimento, o que se passa


de singular em sua “vida sexual”, tal como se estivesse no
confessionário ou diante de um médico. Para cada caso daremos um
conselho, uma orientação segura, através da palavra autorizada de um
especialista no assunto. Com isso, completaremos nossa missão
educativa (“Confidências”, Seleções Sexuais, 1952, ano I, n. 3, p. 22).

As cartas enviadas para Seleções Sexuais também eram respondidas em Ciência


& Sexualidade, na seção “Consultório: clínica sexual”. Desta forma, é possível considerar
que tais revistas formavam uma rede discursiva engajada com a instrução sexual,
importante para pensar o processo de divulgação dos saberes científicos sobre a
sexualidade à margem de veículos tradicionalmente utilizados por médicos e
especialistas, como os periódicos médicos. Ainda que pautada em um conhecimento
científico especializado, as consultas em revista ressaltavam a importância das
particularidades dos casos recebidos, permitindo acessar uma dimensão importante do
processo de apropriação desses saberes por leigos: a subjetividade.
Ao tratar de temas ainda considerados tabus pela sociedade, não é de surpreender
que tenham sido acusadas de obscenas e pornográficas. Através da imprensa de grande
circulação, é possível conhecer que Seleções Sexuais e Ciência & Sexualidade não apenas
foram censuradas, mas também incineradas e seus proprietários, processados. Essa
atitude “em defesa da fé e da moral” conservadora teve repercussão em todo o país,
mobilizando médicos, juristas e eclesiásticos que acusavam esse tipo de publicação de
estimular os problemas de ordem sexual em seus leitores, e não de instruí-los (Correio da
Manhã, 09/05/1957, n. 19667, p. 4).
Aí entram os impressos católicos, pois estes atuavam justamente na evangelização
e na instrução de seus leitores contra ideias más sugestionadas e imorais. Tanto o jornal
Lar Católico quanto a revista A Família Cristã eram publicados por congregações
religiosas dedicadas à missão de evangelizar através da imprensa. Inaugurado em 1898,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

541
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

o Lar Católico era publicado em Juiz de Fora pela Congregação do Verbo Divino253, que
se tornou responsável pela revista a partir de 1912, data que marca sua segunda fase, até
o fim de sua circulação em 1986. Já A Família Cristã teve seu primeiro número publicado
em 1934, pela Pia Sociedade Filhas de São Paulo254, e até hoje se encontra em circulação,
sendo uma das maiores publicações católicas do país (Dalmolin, 2012). Além de
evangelizar, tais impressos buscavam informar seus leitores com assuntos
contemporâneos, atualidades e orientação religiosa, com destaque para as seções
“Intercâmbio com as leitoras”, “Carta dos leitores” e “Opinião do leitor”. Dedicadas aos
esclarecimentos dos dogmas religiosos e à orientação dos leitores em sua vida prática,
forneciam ainda modelos de conduta a seus leitores, que frequentemente escreviam
narrando suas dúvidas sobre a doutrina católica, os sacramentos católicos, superstições e,
claro, educação sexual.
Desta forma, a imprensa se demonstra como principal fonte para pensar tais
questões, uma vez que os meios de comunicação de massa foram utilizados como
instrumentos de divulgação científica e de pedagogia católica. Ao atuarem como veículos
difusores de novos hábitos, aspirações e valores (Luca, 2005, p. 120), pretende-se
verificar como tais impressos contribuíram para a conformação de uma “cultura sexual”
brasileira a partir da discussão sobre a educação sexual e da circulação de saberes sobre
o tema.
A troca de correspondências incentivada pelas revistas e publicadas em seções de
aconselhamento, em especial, se apresenta como um recurso metodológico importante
para refletir sobre a circulação dos manuais de educação sexual e seu alcance entre leigos,
uma vez que possibilitam identificar as publicações consideradas mais relevantes, seus
usos e traçar um perfil de quem consumia esse tipo de literatura – homens e mulheres,
jovens e adultos/as, solteiros/as e casados/as. Através das cartas, os leitores se sentiam

253
A Congregação do Verbo Divino é uma ordem religiosa fundada pelo padre alemão Arnaldo Janssen
(1837-1909) em 1895, Styel (Holanda). Os primeiros padres verbitas chegaram no Brasil pouco tempo
depois e se estabeleceram em Juiz de Fora (Lucena, 2011, p. 71).
254
A Sociedade Pia das Filhas de São Paulo é uma congregação religiosa fundada em 1915 pelo padre
italiano Tiago Alberione, que buscava na época incentivar a participação feminina nas ações missionários
da Igreja. As primeiras irmãs paulinas chegaram no Brasil em 1931, na cidade de São Paulo (Dalmolin,
2012, p. 49). Assim como os padres verbitas, tem a imprensa como instrumento missionário e hoje são
responsáveis pela maior editora católica do país, a Paulus.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

542
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

confortáveis e seguros para “desabafar, confessar, o que mesmo a um médico de nossa


confiança sentiríamos verdadeiro vexame” (Curioso, 1954, p. 21), estabelecendo uma
relação de confiança com os conselheiros ao tratar de seus problemas íntimos e tirar
dúvidas sobre os assuntos do amor e do sexo, do próprio corpo, dos seus relacionamentos.
Mais do que se preocupar com os comportamentos sexuais reais, este trabalho
busca traçar alguns caminhos possíveis que permitam identificar as práticas de leitura dos
leigos, isto é, as formas pelas quais homens e mulheres leigos tinham acesso aos manuais
de educação sexual e a partir desta reflexão demonstrar que as propostas de uma educação
sexual para leigos, bem como sua apropriação por estes, ocorriam entre o consultório e o
confessionário, tornando mais complexas e ambíguas as relações entre ciência e religião.

Referências bibliográficas

AUGUSTO, Viviane Oliveira. Uma contribuição à historiografia da educação sexual


no Brasil: análise de três obras de Antonio Austregésilo (1923, 1928 e 1939). 2015.
140 f. Dissertação (Mestrado em Educação Escolar) – Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista. Araraquara, 2015.

CARRARA, Sérgio; RUSSO, Jane. A psicanálise e a sexologia no Rio de Janeiro de


entreguerras: entre a ciência e a auto-ajuda. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v.
9, n. 2, p. 273–290, maio-ago. 2002.

CENSURA. Correio da Manhã, 09/05/1957, n. 19667, p. 4.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2ª ed. Lisboa:


Difel, 2002.

______. (org.). Práticas da leitura. 5ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.

CHUCAILO, Vanessa Cristina. “O sexo à luz da verdade e da sciencia”: um estudo


sobre os discursos de educação sexual e sexualidade no jornal O Comércio de Porto
União/SC (1933-1941). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual do
Centro Oeste (UNICENTRO). Irati, PR, 2015.

CURIOSO. “Consultório (clínica sexual)”. Ciência & Sexualidade, 1954, ano I, n. 13,
p. 21-26.

DALMOLIN, Aline. O discurso sobre aborto em revistas católicas brasileiras:


Rainha e Família Cristã (1980-1990). 2012. 224 f. Tese (Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Comunicação) – Unidade Acadêmica de Pesquisa e Pós-Graduação,
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, 2012.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

543
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

DENIPOTI, Cláudio. Páginas de prazer: a sexualidade através da leitura no início do


século. Campinas: Editora da UNICAMP, 1999.

FELICIO, Leandro Alves. A moralização do sexo: os debates sobre a educação sexual


para o Projeto de Nação Brasileira na I Conferência Nacional de Educação, 1927.
2012. 155f. Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de
Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 2012.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 4ª ed. Rio de


Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.

GOMES, Angela de Castro; HANSEN, Patricia Santos. Intelectuais mediadores:


práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

JACÓ-VILELA, A. M.; ROCHA, L. F. D. DA. Uma perspectiva católica da Psicologia


no Brasil: análise de artigos da revista “A Ordem”. Psicologia em Pesquisa, v. 8, n. 1, p.
115–126, 2014.

LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla
(org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.

LUCENA, Paola Lili. “Nenhum lar sem o lar católico!”: discursos e vivências sobre
gênero, família e sexualidade no jornal Lar Católico (1954-1986). 2011. 355 f.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora,
2011.

MARCONDES, Sérgio Ribeiro de Almeida. “Nós, os charlatães”: Gastão Pereira da


Silva e a divulgação da psicanálise em O Malho (1936-1944). Dissertação (Mestrado
em História das Ciências e da Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz.
Rio de Janeiro, 2015.

NEGROMONTE, Mons. Álvaro. A educação sexual (para pais e educadores). Rio de


Janeiro: José Olympio, 1939.

NUNES, César; SILVA, Edna. Sexualidade e educação: elementos teóricos e marcos


historiográficos da educação sexual no Brasil. In: LOMBARDI, J. C. (org.) Pesquisa em
educação: história, filosofia e temas transversais. Campinas: Autores Associados,
1999, p. 161-175.

ORLANDO, Evelyn de Almeida. Por uma civilização cristã: a Coleção Monsenhor


Álvaro Negromonte e a pedagogia do catecismo (1937-1965). Dissertação (Mestrado
em Educação)—São Cristóvão: Universidade Federal de Sergipe, 2008.

REIS, Giselle Volpato dos. Sexologia e educação sexual no Brasil nas décadas de 1920-
1950: um estudo sobre a obra de José de Albuquerque. 2006. 92f. Dissertação (Mestrado
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

544
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

em Educação Escolar) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras.


Araraquara, 2006.

RUSSO, Jane. O mundo psi no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

SILVA, Gastão Pereira da. Um aspecto religioso da psicanálise. Dom Casmurro,


20/01/1940, ano III, n. 134, p. 7.

______. “Confidências”. Seleções Sexuais, 1952, ano I, n. 3, p. 22.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

545
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Viúvas nos anúncios de jornais em meados dos Oitocentos na província de


Pernambuco (1842-1848)

CAROLINA DE TOLEDO BRAGA


Mestranda em História Social/PPGH-UFF
Bolsista CAPES

A proposta deste artigo é explorar algumas possibilidades de pesquisa em anúncios de


jornais para estudos sobre trabalho feminino no século XIX. Vou utilizar como exemplo os
periódicos Diário Novo e Diário de Pernambuco – folhas em circulação diária entre os anos de
1842-1848 em Pernambuco. A ideia é problematizar as fontes que usarei na minha dissertação de
mestrado, na qual estou estudando uma parcela de mulheres em estado de viuvez que viveram em
meados dos Oitocentos na província, aquelas que anunciavam nos jornais. O foco será nas
participações delas no mundo do trabalho e nas suas lutas pela sobrevivência. Vou analisar o
fenômeno da viuvez feminina no século XIX tanto nas classes mais abastadas da
sociedade como nas classes pobres, mais especificamente entre as trabalhadoras.

Na dissertação, pretendo analisar como se constitui o protagonismo feminino


diante da viuvez e como se procede a quebra da normatização dos papéis sociais nessas
situações. A intenção é entender as estratégias de sobrevivência, com foco no mundo do trabalho,
das mulheres sozinhas no contexto provincial de rebuliço político, às vésperas da insurreição
praieira. As viúvas são, assim, uma espécie de filtro de representação das mulheres sozinhas. A
ideia é pensar nelas como participantes ativas na vida pública e na economia da cidade. Elas
conviviam com outras mulheres sozinhas que também eram chefes de famílias, mas que não
carregavam a respeitabilidade do “título” de viúva.

A condição social de viúva é adquirida de forma não natural. Nesse trabalho as “viúvas”
não serão entendidas como um grupo natural, nem homogêneo dentro da sociedade recifense.
Com a morte dos maridos, as viúvas se tornariam tutoras dos bens e dos filhos, muitas
vezes, mantendo não só a unidade doméstica, mas o resguardo dos bens herdados.
Herança essa que podia ser apenas um acúmulo das dívidas adquiridas pelo “seu casal”,
nos termo da época.

Em contraponto às mulheres casadas, as viúvas estavam associadas a um estado de


solidão e desamparo. As regras e comportamentos sociais impostos à elas deviam, na

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

546
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

verdade, variar de acordo com a condição social. Os próprios valores de casamento e


organização da família nos meios senhoriais não se estendiam aos lugares mais pobres,
repletos de homens e mulheres com pouca ou nenhuma propriedade.

Entender o papel das viúvas no mundo do trabalho do Recife oitocentista é buscar


as estratégias de sobrevivência delas e como estavam inseridas na vida econômica da
cidade. Antes de se tornarem viúvas, algumas dessas mulheres já trabalhavam. Na tarefa
de suprir a vida material da família, após a morte do marido, elas não estavam sozinhas.
Eram amparadas por comadres, compadres e até parentes próximos, formando relações
de solidariedade.

Na tentativa de reivindicar o lugar das mulheres nas narrativas históricas, para


colocar as mulheres como participantes ativas da história, a pesquisa está inserida no
campo da história social, usando o gênero como categoria de análise histórica. Dessa
forma, estou estabelecendo um diálogo com autoras/es que situam estudos diretamente
ligados ao problema central da pesquisa.

A questão essencial levantada por Joan Scott255, ao propor o gênero como


categoria de análise, é que precisamos atentar para a necessidade de olhar não só para as
mulheres, mas analisar também a situação delas em relação aos homens. Vale lembrar
que quando os arranjos sociais são construídos, as diferenças anatômicas entre os sexos
são levadas em conta. E, acrescento aqui, a inevitabilidade de relacionar as mulheres com
as instituições masculinas presentes no Recife na primeira metade do século XIX.

A minha proposta é colocar essa pesquisa no campo dos estudos sobre as mulheres
no Recife oitocentista. Ao estudar as estratégias de sobrevivência das viúvas e como elas
estavam inseridas no mundo do trabalho feminino também vou estar investigando o

255
A análise dos estudos de gênero somada a prática feminista confrontam a distribuição de poder existente.
É interpretar o mundo, enquanto tenta mudá-lo. É uma nova forma de pensar a história. “Need to examine
gender concretly ans in context and to consider it a historical phenomenon produced, reproduced, and
transformed in different situations” SCOTT, Joan Wallach. Gender and the politics of history. New York:
Columbia University Press, 1988, p.6.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

547
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

cotidiano das mulheres da época. Mulheres que assumiam papeis ditos como masculinos:
eram chefes de família e protagonistas de relações sociais e econômicas256.

Breve intervalo sobre o Recife da década 1840

O Recife passava, na primeira metade do século XIX, por um processo de


expansão demográfica e mercantil, ou seja, na cidade a população aumentava, assim como
o comércio. As ruas foram transformadas em palcos de manifestações políticas. Não
faltam registros na historiografia atual de que os conflitos oitocentistas foram marcados
pela violência, deixando sempre um alto número de mortos.

Era um tempo de inúmeras revoltas em todo o país. De acordo com Marcelo


Basile, foi na década anterior o início da consagração do espaço público como arena de
luta dos mais diversos grupos políticos, “marcando a emergência de novas formas de ação
política”, ou seja, revoltas, motins, protestos257. A província de Pernambuco foi palco de
intenso rebuliço de movimentos populares. No Recife, entra em curso o movimento
praieiro. Houve quebra-quebra e mata-marinheiros, além do levante armado de 1849258.
De acordo com Marcus Carvalho, também houve participação da população pobre na
revolta praieira, principalmente dos trabalhadores livres urbanos - tendo como motivo
ideológico a nacionalização do comércio a retalhos.

256
Não eram apenas as viúvas as mulheres chefes de família no século XIX. Algumas mulheres, como as
brancas pobres, nunca chegaram a se casar e eram chefes de família. Outro exemplo são as forras. Sobre o
assunto ver: SAMARA, Eni de Mesquita. Mulheres chefes de domicílio: uma análise comparativa no Brasil
do século XIX. Anuário del IEHS, Vil Tandil, 1992; FARIA, Sheila de Castro. Mulheres forras – riqueza e
estigma social. Revista Tempo da UFF, n. 9, v.5, 2000; SILVA, Maciel Henrique. Ser doméstica em Recife
e Salvador na segunda metade do século XIX: honra e sobrevivência. Revista de História Social da
Unicamp, n.13, 2007.
257
Sobre o assunto ver: BASILE, Marcelo.O laboratório da nação: a era regencial (1834-1840). In:
GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo (orgs). O Brasil Imperial vol. II. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009.
258
Marcus Carvalho e Bruno Câmara explicam que "entre 1844 e 1848, ocorreram cerca de sete mata-
marinheiros que refletiam o clima difícil e propenso a todo tipo de desordens." (p. 31) Segundo Câmara,
os mata-marinheiros eram manifestações de rua. O alvo principal dos manifestantes eram os portugueses
moradores do Recife. O motivo, a intensa concorrência entre trabalhadores nacionais e estrangeiros (livres
e libertos) no comércio da cidade "afloraram rivalidades raciais e tensões sociais de toda ordem." Sobre o
assunto ver: CÂMARA, Bruno. Trabalho livre no Brasil Imperial: o caso dos caixeiros de comércio na
época da Insurreição Praieira. Recife: 2005. Dissertação (mestrado). CARVALHO, Marcus J. M. de.
CÂMARA, Bruno. A insurreição praieira. Almack Brasiliense, n.8 (2008).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

548
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Entre 1837 e 1844, o presidente de Pernambuco era Francisco do Rego Barros,


mais conhecido como o Barão da Boa Vista, cuja meta era modernizar a cidade, seguindo
o modelo parisiense – isso, claro, sem mexer nos dois alicerces do sistema, a escravidão
e a grande propriedade. O Recife desta época está, então, passando por uma série de obras
modernizadoras.

É no dia primeiro de agosto de 1842 a primeira publicação do jornal Diário Novo.


O jornal é publicado pela Typografia Imparcial, e se auto proclama uma folha diária para
“representar o pensamento actual do commercio” com o objetivo de “quebrar o
monopólio da imprensa.”259 Duas folhas passam a circular todos os dias (exceto domingos
e dias santos) na província. A outra é o Diário de Pernambuco (nessa época em circulação
há 12 anos).

Em 1845, a ascensão de um gabinete ministerial liberal na corte leva as lideranças


praieiras à administração da província. É inaugurado, então, o chamado quinquênio
liberal. Antônio Pinto Chichorro da Gama foi o mais duradouro dentre os presidentes
praieiros (11 julho 1845 até 26 abril 1848). A queda dos liberais na corte em 1848 refletiu
na província, derrubou a administração praieira. Quando foram demitidos dos cargos de
poder, os praieiros armaram-se. No Recife, faltava emprego para a população livre e
pobre e aumentava o “roubo de escravos”, ou seja, muitos cativos se deixavam roubar
para mudar de senhor ou para não ter mais senhor. Resumindo, a agitação urbana era
crescente. Foi a época dos grandes mata-marinheiros. O povo tomava as ruas, saqueava
as lojas dos estrangeiros e espancava quem se intrometesse – principalmente se fossem
portugueses. A guerrilha no interior durou mais de um ano, na mesma localidade onde
havia acontecido a Cabanada, a Mata do Catucá. Nos anos de 1848 e 1849 aconteceram
os levantes armados.

Os anos seguintes foram de intensa repressão policial aos praieiros. Também


houve perseguição ao Diário Novo, que havia se tornado o periódico de comunicação
oficial do Partido Nacional de Pernambuco (praieiro) e no período da revolta servira como

259
Diário Novo, n.1, ano I (1842), Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

549
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

informativo das atividades das tropas rebeldes. O Diário Novo fechou em 1849 e reabriu
em 1852. Em novembro do mesmo ano fechou as portas de vez.

Mulheres e os silêncios da história

A história das mulheres recifenses, assim como em várias outras regiões e países, ainda
está sendo escrita. São poucas as pesquisas sobre o dia a dia das mulheres comuns que viveram
na primeira metade dos Oitocentos. Estudar as mulheres que moravam no Recife é voltar o olhar
também para as experiências femininas vividas no mundo Atlântico. Ao adentrar nos estudos
sobre a vida cotidiana dessas mulheres é possível sair com mais perguntas do que respostas. As
questões vão desde os lugares onde elas frequentavam, até qual o papel delas na sociedade ou
qual a influência das instituições masculinas na vida delas.

Um dos desafios de escrever a história das mulheres, para além da escassa


bibliografia, é o ambiente. Os estudos precisam abranger a esfera privada e a vida
doméstica e familiar. Somando esses fatores à vida pública, situação legal e econômica,
os papéis desempenhados de acordo com a região do país ou do estado. Para June
Hahner260, não há fórmula que possa explicar adequadamente ou resumir a diversidade
da vida das mulheres no Brasil.

Outro desafio são os arquivos. Os arquivos privilegiam a cena pública e são


escritos por homens, calando as mulheres. Michelle Perrot adverte que a divisão das
esferas pública e privada não correspondem a divisão dos sexos, mas, nos Oitocentos, o
mundo político e econômico é reservado aos homens261. Livros de lar, inventários, diários
e cartas são os documentos mais comumente usados por historiadoras ao redor do mundo
na construção da história das mulheres. Porém, essa documentação é frequentemente
destruída (rasgada, queimada, perdida etc).

260
HAHNER, June. A mulher no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
261
Para a autora, a cidade do século XIX é um espaço sexuado. As mulheres burguesas (brancas, no caso)
figuram como ornamento da moda e as mulheres do povo são faladas apenas quando subversivas, por meio
de denúncias e queixas. PERROT, Michelle. Práticas da memória feminina. Revista Brasileira de História:
São Paulo, v.9, n. 18 (1989), p. 9-18.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

550
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No entanto, não estamos falando de documentos pessoais. Nos jornais, ao ler os


anúncios fica claro que as mulheres estavam presentes no cotidiano, na economia e no
vai e vem da cidade. Ao entender a imprensa como prática social, inserida na sociedade
como espaço de debate público, condensando e construindo múltiplas redes de poder, é
interessante perceber que as mulheres não estão nas entrelinhas. Estão anunciando os
próprios trabalhos, os próprios negócios (desde escolas de meninas a livrarias e lojas de
“fasendas”) comprando e vendendo mercadorias e escravizados/as. Elas não estavam nas
entrelinhas, mas estavam predominante nas últimas páginas, nas seções dos anúncios. É
grande o número de trabalhos de historiadores que usam como fonte os anúncios de
jornais pernambucanos. No entanto, apesar de caminhar em ritmo crescente, ainda são
escassos os trabalhos sobre o mundo do trabalho feminino e as mulheres sozinhas no
século XIX no Brasil, notavelmente no Recife.

Acontece que é recente o interesse de historiadoras e historiadores em inserir as


mulheres com sujeitos ativos na história262. Como bem nos lembra Silvia Hunold Lara263,
são os objetivos da nossa pesquisa histórica que guiam a seleção dos documentos. Marc
Bloch, no início do século passado, já nos apontava o fato de serem as questões do
presente a influência para as perguntas que colocamos sobre as nossas evidências. Nas
palavras de Thompsom264: o discurso histórico disciplinado é um diálogo entre conceitos
e evidências interrogadas. Se todo/a historiador/a é um produto do seu tempo, também
temos valores, esperanças e expectativas para o futuro. Acrescento aqui uma pergunta
levantada pelo antropólogo caribenho David Scott: “what story of the past is being linked
to what demand in the present and what imagination of the future?” Nesse sentido, ao

262
A história das mulheres e das relações de gênero nasce com um caráter político, entre historiadoras
feministas, influenciadas em sua maioria pelo Movimento Feminista de segunda onda, nas décadas de 1970
e 1980. De acordo com a narrativa em ondas, a primeira onda do feminismo tem início no final do século
XIX e vai até a metade do século XX. O foco são os movimentos sufragistas e a luta pelos direitos políticos,
sociais e econômicos. Algumas autoras consideram que a segunda onda inicia na década de 1960. TILLY,
Louise A. Gênero, história das mulheres e história social. Campinas: Cadernos Pagu, 1994, p. 29-62.
263
LARA, Silvia Hunold. Os documentos textuais e as fontes do conhecimento histórico. Revista
Anos 90, Porto Alegre, v.15, n.28, p. 17-39, dez/2008.
264
THOMPSON, Edward Palmer. "Intervalo: A Lógica Histórica". In: A miséria da teoria ou um planetário
de erros. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1981.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

551
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

interrogar as evidências com uma perspectiva do gênero como categoria de análise, será
possível encontrar as mulheres. Ao menos nos anúncios de jornal.

A ideia aqui é pensarmos uma abordagem que tenha como eixo central de análise tratar
das possibilidades abertas à compreensão das relações sociais no período a partir da valorização
dos fragmentos de histórias de vida (os anúncios propriamente ditos). Isso, levando em conta a
imprevisibilidade da política ao enfatizar a experiência humana.

Para tal, façamos como Richard Price nos propõe e abracemos os vestígios que
nos foram deixados pelo passado, com todas as suas complexidades epistemológicas (e
aceitando seu caráter construído), dando o nosso melhor para reapresentá-los com
franqueza. Afinal, as verdade históricas e etnográficas são sempre parciais. “A história
depende, em parte, da imaginação, assim como a memória coletiva depende, em parte, de
eventos passados.”265 Ou, nas palavras de Thompson, aceitando que o conhecimento
histórico é provisório, incompleto e seletivo. Além de limitado e definido pelas perguntas
feitas às evidências, portanto, só são “verdadeiros” dentro de um campo definido assim.

Ainda antes de chegamos aos jornais, um adendo. Os documentos nos quais


aparecem as mulheres geralmente eram ditados e interpretados pelos “donos da palavra
escrita”, na expressão de Suely Almeida. Ainda de acordo com a autora, para traçar as
histórias das mulheres pernambucanas, principalmente as de “cor”, é necessário vasculhar
os aquivos e ler os indícios deixados na documentação266. A questão não é só colocar as
mulheres na história, mas conectá-las aos problemas analíticos do período proposto.

Seguindo o ritmo de historicizar os jornais, a ideia é inseri-los no movimento da


sociedade no sentido não de destrinchar sua suposta autonomia em relação à sociedade,
mas sim a forma como a imprensa constrói ou representa a relação com a realidade social.
Antes, vale pontuar dois aspectos: primeiro, os documentos não existem para registrar a

265
Price diz que para compreender o “discurso” (a memória coletiva e os modos pelos quais se atribui
sentido a figuras) devemos, ao mesmo tempo, considerar o “evento” (a demografia e a etnicidade ao logo
do tempo, a sociologia e a economia de determinados regimes e assim por diante). E para compreender o
“evento” ou a “história” devemos também considerar o “discurso” e a ideologia. PRICE, Richard. O
Milagre da crioulização: retrospectiva. Estud. afro-asiát. [online]. 2003, vol.25, n.3, pp.383-419.
266
ALMEIDA, Suely. Histórias de gente sem qualidade: mulheres de cor na capitania de Pernambuco no
século XVIII. In: CABRAL, Flávio José Gomes e COSTA, Robson. (orgs). História da Escravidão em
Pernambuco. Recife: Editora UFPE, 2012.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

552
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

história. Segundo, os jornais, tais quais qualquer tipo de documento transformado em


fonte, são evidências históricas objetivamente determinadas, ou seja, estão situados no
processo histórico. Assim sendo, precisam ser devidamente interrogados. Nas palavras de
Silvia Lara: “Trata-se de inventar fontes: interrogar os textos de tal modo que sejam
capazes de fornecer informações sobre ações humanas no passado.”267

Em um interessante texto publicado na revista Projeto História, Heloísa Cruz e Maria do


Rosário Peixoto268 propõem a análise da imprensa como fonte e objeto de pesquisa. De acordo
com as autoras, é preciso pensar a imprensa problematizando as articulações do periódico com
movimentos gerais e contextos específicos. E, além disso, articular a análise de qualquer
publicação ao campo de lutas sociais no interior do qual este de constitui e atua. Assim será
possível inserir a pesquisa no campo da história social. Os próximos parágrafos são um exercício
do percurso de análise proposto pelas autoras.

O roteiro proposto pelas autoras tem módulos de análise diversos. Todos colocam ênfase
na leitura e problematização da própria publicação selecionada na pesquisa, isso para apreender
a historicidade da publicação e da conjuntura. O primeiro passo é identificar o periódico. O
segundo, pensar o projeto gráfico editorial voltando-se para as formas de produção e distribuição
de conteúdo. Depois, conduzir a investigação sobre o projeto editoral do jornal, indagando sobre
posições e articulações do periódico naquele tempo histórico determinado.

Durante o primeiro semestre do curso de mestrado reuni quatro anos de anúncios dos dois
jornais (Diário Novo e Diário de Pernambuco). Como o cenário brasileiro de gestação do Estado
Nacional era de intensas disputas políticas, o que refletiu na província, me vi com a necessidade
de fazer o roteiro não apenas por periódico, mas também por ano. Esse passo metodológico está
me ajudando a compreender a atuação dos jornais frente as pautas sociais e políticas do período.
E a encarar as publicações não como estacionadas dentro de categorias estáticas. Por exemplo, o
Diário Novo só é um jornal de oposição enquanto a presidência da província é conservadora.
Quando os praieiros assumem esse cargo de chefia, o jornal passa a figurar como oficial.
Inclusive, a tipografia na qual é impressa a folha também passa a imprimir os relatórios de

267
LARA, Silvia Hunold. Os documentos textuais e as fontes do conhecimento histórico. Revista Anos 90,
Porto Alegre, v.15, n. 28, p.17-39, 2008.
268
Heloísa de Faria Cruz e Maria do Rosário da Cunha Peixoto em “Na oficina do historiador: conversas
sobre história e imprensa.” São Paulo: Revista Projeto História, n 35, julho/dezembro 2007..
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

553
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

presidente de província. Apesar disso, continua sempre reafirmando a própria posição enquanto
jornal liberal e “folha diária que represente o pensamento actual do commercio.”269

O Diário Novo era publicado em todos os dias que não “fossem de guarda”, ou seja, de
segunda a sexta, fora os feriados de santo. As quatro páginas jornal eram dividas em quatro
colunas e divido em algumas seções. Na parte superior da capa aparecia: Advertência, Partida
dos Correios terrestres, câmbios, dias da semana, Exterior, parte official, O Diario Novo. Essa
última era uma espécie de artigo que expressava a opinião do jornal sobre assuntos diversos
(notavelmente políticos) e não era assinada. Já as se seções eram: Correspondência, Publicações
Literárias, Theatro, Movimento do Porto, Avisos Marítimos, Vendas, Compras, Escravos
Fugidos, Variedades, Avisos Diversos. As únicas colunas fixas e assinadas eram as
Correspondências. Em 1842, ainda não havia iconografia na folha e os anúncios estavam
localizados nas últimas páginas, geralmente 3 e 4. As assinaturas custavam “2$000 = por
semestre. 3$800 = por ano 7$000.”270 Até o dia 16 de setembro de 1844 os anúncios eram
publicados gratuitamente. A partir de 17, “Publicão-se gratis os annuncios dos assignantes e dos
que o não o forem a 60rs por linha.” Era vendido avulso na “loja de livros da Rua do Collegio
D.7”, a “80rs”.

A folha impressa na Typ. Imparcial de L. I. R. Roma (Luís Ignácio Ribeiro Roma), que
ficava localizada na Rua da Praia, tinha como campanha geral “quebrar o monopólio da
imprensa”, tendo em vista que surgiu enquanto só havia um periódico diário na província, o Diário
de Pernambuco.

O Diário de Pernambuco também se publicava “em todos os dias que não for
santificados”. Na capa, abaixo do título, o periódico estampava uma quote: "Tudo agora depende
de nós mesmos: da nossa prudencia, moderação, e energia: continuemos como principiamos, e
seremos apontados com admiracão entre as Nacões mais vultas. (Proclamação da Assembleia
Geral do brasil.)" Ainda na capa: Partidas dos correios terrestres, dias da semana, Preamar,
Cambios, Phases da lua no mez. As primeiras páginas eram ocupadas pelas seções: Pernambuco,

269
Diário Novo, Prospecto (1842, n.1). Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
270
Os preços da época, claro, eram muito diferentes dos atuais. Em tabela de preços publicada pelo Diário
de Pernambuco no dia primeiro de março de 1841, o azeite de peixe custava $750 réis por grama e a carne
de charque 20$000 por barn (barn é uma medida de área, equivalente a 10−28 m²), por exemplo. Para se ter
ideia, um escravo custava pouco mais de 300$000 réis, na década de 1840 no Recife. Ou seja, era caro
manter meninas na escola. Sobre o assunto ver: VERGOLINO, José Raimundo Oliveira. NOGUÉROI, Luiz
Palo Ferreira. VERSIANI, Flávio Rabelo. RESENDE, Guilherme. Preços De Escravos E Produtividade
Do Trabalho Cativo: Pernambuco E Rio Grande Do Sul, Século Xix. ANPEC: 3 (História Econômica),
2013.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

554
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Governo da Província, Parte Official, Commando das Armas, Tribunal da relação. Nas outras
páginas do jornal, as outras seções eram Avizos Diversos, Avizos marítimos, Escravos Fugidos,
Compras, Vendas, Movimentos do Porto, Folhetim. Também apenas as Correspondências eram
assinadas, além de uma parte chamada Diário de Pernambuco, geralmente expressava o
posicionamento do jornal sobre algum tema. Para os anúncios, páginas 3 e 4.

O jornal era impresso na Typ. de M. F. de Farias, localizada na “Rua das Cruzes D.3” e
também era vendido avulso na Praca da Independência, na lojas de livros números 37 e 38. A
assinatura custava “tres mil reis por quartel pagos adiantados. O annuncios dos assignantes são
grátis e os dos que não forem á razão de 80 reis por linha. ” Em 1842, o jornal publica a seguinte
notícia: "O credito do nosso periódico tem-se firmado principalmente em suas doutrinas: por que
o Diario de Pernambuco sempre amigo das liberdades patrias, nunca sympatizou com extremos,
e sempre há sustentado doutrinas tendentes a manter a ordem pública, e a firmar o Throno
Constitucional do Imperio Brazileiro." (1842, n.1)

Nos anos de 1843 e 1844 não há grandes mudanças observadas nos jornais de
acordo com os roteiros propostos pelas autoras271. O ano de 1845 é o de ascensão das
lideranças praieiras nos cargos de poder da província. No dia 11 de julho, Chicorro da
Gama é nomeado presidente da província. É notável que na primeira página do Diário
Novo passa a figurar uma “Parte Official”, na qual são dadas notícias do governo, além
da afirmação recorrente de que “nada há nas províncias que tire a tranquilidade
pública”272. Também são noticiados as demissões nos cargos de chefia da província e
troca de autoridades locais273. É a hora do Diário de Pernambuco criticar a então atua
presidência da província. Também há artigos que reclamam do partido vencedor das
eleições (liberal) e diz que o Diário vai “continuar do caminho da ordem e das leis.”274
Os anos de 1846 e 1847 também não são de notáveis mudanças no posicionamento
político dos jornais. Diferente, claro, de 1848 (afinal, o ano da insurreição).

Os exemplares do Diário Novo de 1848 estão em péssimo estado, muito


mutilados. É importante ressaltar a dificuldade que estou tendo em encontrar os

271
Há mudanças de preços das assinaturas e ambos passam a ter iconografias na parte dos anúncios.
272
Diário Novo (1845, n.213). Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
273
Diário Novo (1845, n.214 e 215). Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
274
Diário de Pernambuco, Prospecto (1845, n.55). Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

555
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

exemplares do jornal de 1849 - praticamente não há edições atualmente nos arquivos


pernambucanos. A Praieira explode no Diário Novo em 7 de novembro de 1848, a partir
de então, a folha passa a dar notícias oficiais sobre os rebeldes275. Em um dos últimos
exemplares do ano é retratada a morte do dono da tipografia onde era feito o periódico,
Luiz Ignácio Ribeiro Roma276. Nas páginas do Diário de Pernambuco, fica clara a
“ameaça a paz” dos rebeldes praieiros e a necessidade da “ordem”.

Para focarmos nas viúvas, me parece haver uma pergunta central: Quem aparece
como viúva e em que tipo de notícia? Elas estão principalmente na seção de Avisos
Diversos, as últimas páginas dos jornais, reservadas ao anúncios. Em ambas as folhas,
estão nos anúncios de emprego, comunicando os próprios serviços ou procurando outras
trabalhadoras/es livres ou escravizadas/os. Também anunciam aos credores quando são
inventariantes dos maridos mortos. As seções de compra, vendas, aluguéis e leilões
também estão cheias de viúvas anunciantes, compondo, inclusive, firmas de lojas (seja de
livros, “fasendas”, padarias ou boticas). Apesar de não serem anunciantes, também
aparecem na Parte Official dos periódicos, geralmente quando eram divulgados os apelos
do Tribunal da Relação. E, no Diário de Pernambuco, na parte de Commando das Armas.
Nesse caso, essas mulheres aparecem quando pedem dispensa para os filhos, por serem
“único arrimo” de “mãi” viúva. Também há alguns folhetins, variedades e publicações
literárias com personagens viúvas, ou falando sobre viuvez.

Esse artigo é uma primeira experiência de localizar as fontes que serão usadas na
minha dissertação no tempo histórico e período político, não perdendo de vista situar a
imprensa como participante ativa da sociedade da qual era contemporânea. A pesquisa
ainda está em estágio inicial, sinto-me tentada a apontar os anúncios de jornal como ótima
fonte para pesquisadoras/es que estejam interessadas em estudar o mundo do trabalho
feminino nos Oitocentos. Espero que com esse artigo, tenha conseguido mostrar como é
amplo o leque de possibilidades para estudar as mulheres trabalhadoras oitocentistas

275
Diário Novo (1845, n.241, 242, 249). Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
276
Diário Novo (1845, n.274, 277). Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

556
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

usando a documentação da imprensa. Nos quais poderemos perceber e mostrar que elas
estavam presentes no dia a dia das cidades e, porque não dizer, aquecendo a economia.

FONTES

Diário Novo (1842-1848)

Diário de Pernambuco (1842-1848)

Disponíveis da Hemeroteca da Biblioteca Nacional.

REFERÊNCIAS

CABRAL, Flávio José Gomes e COSTA, Robson. (orgs). História da Escravidão em


Pernambuco. Recife: Editora UFPE, 2012
CARVALHO, Marcus J. M. de. De portas adentro e de portas afora: trabalho doméstico
e escravidão no Recife, 1822-1850. Revista Afro-Ásia, 29/30 (2003), págs 41-78.

CRUZ, Heloísa de Faria Cruz e PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do


historiador: conversas sobre história e imprensa. São Paulo: Revista Projeto História, n
35, julho/dezembro 2007.

DIAS, Maria Odila L. S. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995. (p. 80-116)

EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança: indústria açucareira em Pernambuco


(1840 – 1910). Campinas: Paz e Terra, 1977.

GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e Obediência: criadas e seus patrões no Rio de


Janeiro 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
LARA, Silvia Hunold. Os documentos textuais e as fontes do conhecimento histórico.
Revista Anos 90, Porto Alegre, v.15, n. 28, p.17-39, 2008.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

557
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

PRICE, Richard. O Milagre da crioulização: retrospectiva. Estud. afro-asiát. [online].


2003, vol.25, n.3, pp.383-419.

SCOTT, David. Preface: Debt, redress. In: Smal Axe: 43, March/2014.

SCOTT, Joan Wallach. Gender and the politics of history. New York: Columbia
University Press, 1988, p. 25.

SILVA, Maciel Henrique Carneiro da. Pretas de honra: trabalho, cotidiano e


representações de vendeiras e criadas no Recife do Século XIX (1840-1870). Recife : O
Autor, 2004. Dissertação (mestrado)

THOMPSON, Edward Palmer. "Intervalo: A Lógica Histórica". In: A miséria da teoria


ou um planetário de erros. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1981.

TILLY, Louise A. Gênero, história das mulheres e história social. Campinas: Cadernos
Pagu, 1994, p. 29-62.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

558
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Uma nova cidade e velhas práticas – A difusão de amas de leite na capital


republicana (1900-1910)

CAROLINE AMORIM GIL


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde/COC Fiocruz

Ao longo da Primeira República a alimentação infantil esteve baseada em quatro


meios principais: o aleitamento materno, o aleitamento mercenário, o leite de vaca e as
farinhas lácteas. O trabalho apresentado corresponde à parte da pesquisa de mestrado, que
buscará abordar a presença de amas de leite na cidade do Rio de Janeiro como atividade
que se mantém viva após a abolição da escravidão (1888) - como um meio importante de
rendimento familiar. Pelo menos até o fim da primeira década do século XX, foi
expressivo o número de mulheres que se dispunham ao serviço. A venda de leite seria
outro problema urbano, alimento há muito considerado adulterado, ou ‘envenenado’ e
causador de grandes males a saúde da população. Neste estudo abordaremos o leite
humano, mais especificamente a ama de leite - que integra as discussões médicas em
torno da redução da mortalidade infantil.
Na primeira parte do texto buscaremos demarcar a função social da ama,
retomando a historiografia a fim de compreender sua interferência tanto na estrutura
urbana quanto nas concepções médicas vigentes.
Na segunda parte apresentaremos a demarcação da oferta e procura do leite
mercenário pela cidade do Rio de Janeiro - com base em anúncios publicados no Jornal
do Brasil277, entre 1900 e 1910. Seguiremos com um breve apanhado da cidade em
transformação na tentativa de localizar as zonas de demanda do leite mercenário, ou a

277
O grande veículo de circulação de anúncios de fins do século XIX e início do século XX foi o Jornal do
Commercio, contudo quando começamos esta pesquisa ele ainda não estava digitalizado para consulta na
Biblioteca Nacional, o que tornava inviável um estudo quantitativo e qualitativo das amas de leite. Tendo
trabalhado na graduação a busca por amas no Jornal Correio da Manhã devido a relação de seu fundador
como benemérito de uma instituição de proteção à infância, o Ipai, o Jornal do Brasil apareceu como um
periódico que para o mesmo recorte temporal nos trazia um número seis vezes maior de ocorrências,
contando com 2.771 aparições do termo “ama de leite”. Criado em 1891 por Rodolpho Dantas, no mesmo
ano da Constituição que estabeleceria as bases do regime republicano no país, o Jornal do Brasil contaria
com uma gama de personalidades atuantes na monarquia como Joaquim Nabuco e o Barão do Rio Branco
(BAHIA, Juarez. História da Imprensa Brasileira. Rio de Janeiro, vol.1. 2009). Seu primeiro número iria
apontar para a instabilidade que vivia o país “quando velhas são chamadas instituições ainda de ontem”
(Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 09 Abril, 1891), apesar do descontentamento garantia trabalhar para
contribuir com a pátria.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

559
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

atividade remunerada de aleitamento realizada por mulheres com ou sem atestado


médico, que criavam em suas casas ou trabalhavam na casa de terceiros, amamentado
crianças.
Deste modo, projetamos tecer um pedaço do quadro da prática alimentar da
criança vigente no decorrer da Primeira República – mais especificamente entre 1900 e
1910. Período em que verificamos a criação de instituições destinadas à proteção
infantil278 e uma intensa preocupação médica em combater a mortalidade no primeiro ano
de vida. As amas, assim como a indústria de leite, estariam em ascensão, em oposição
tanto ao controle médico e à vigilância sanitária, quanto à modernidade preconizada pela
reforma urbana e sanitária em curso.

A função social das mães de leite – fronteiras demarcadas

A ama é descrita no dicionário como uma “mulher que amamenta filho alheio.”
(MICHAELIS, 1998, p.120) E, não diverge da atividade presente na sociedade carioca
Oitocentista relatada por Elisabeth Carneiro:

Corpos de mulheres geralmente africanas ou delas descendentes, no


período etário que possibilita a lactação e que, como propriedades que
eram, foram nomeadas em razão da possibilidade de usufruto do
trabalho compulsório em relação a outros corpos – proprietários,
locadores, locatários-, na pratica do aleitamento classificado pelo saber
medico que nascia como “mercenário. (CARNEIRO, 2006, p. 15-16)

De acordo com Maria Luiza Marcílio, desde “o século XI, o uso de amas de leite
mercenário difundiu-se pela Europa Ocidental” (MARCÍLIO, 1998, p. 54). E seria figura
central na prática da assistência aos enjeitados:

No sistema hospitalar de assistência às crianças abandonadas uma


personagem fundamental era a de ama de criação mercenária. Sem essa
figura, nenhuma assistência à primeira infância poderia ter sido feita e
organizada antes do século XX, a era de Pasteur e da difusão da
amamentação artificial (MARCÍLIO, 1998, p.65).

278
Cabe ressaltar ao menos três instituições criadas no período, conduzidas e mantidas pela sociedade civil.
A saber: o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de Janeiro – Ipai (1899), criado e dirigido
pelo médico Arthur Moncorvo Filho; a Policlínica de Botafogo (1900), dirigida por Luiz Barbosa; e a
Policlínica das Crianças (1909), dirigida pelo médico Antônio Fernandes Figueira.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

560
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os sistemas europeus de proteção à infância utilizavam amas de duas formas na


alimentação dos enjeitados: internas, em menor número, e externas, que amamentavam e
criavam as crianças fora da instituição. O serviço é apresentado como precário quanto aos
rendimentos, sendo as amas consideradas parte das classes mais baixas da sociedade, o
que não, necessariamente, se verifica no século XX.

O salário das amas-de-leite sempre foi absolutamente irrisório. As de


amas-de-leite tinham um salario um pouco maior que as de amas-secas.
Em quase toda parte, as amas deixavam de receber qualquer estipendio
a partir do momento em que a criança atingia certa idade, geralmente
sete anos. (...)
Em geral as amas eram provenientes das categorias mais baixas, mais
carentes e mais ignorantes da sociedade. Não possuíam princípios de
higiene nem orientações sobre alimentação infantil ou cuidado com o
bebê. A maioria era composta de camponesas casadas e que viviam,
muitas vezes, longe da sede da Roda dos Expostos (MARCÍLIO, 1998,
p. 66).

Em estudo sobre as Casas de Expostos279 do Rio de Janeiro e de Salvador, no


século XVIII, Renato Venâncio indica que a utilização de amas internas, a partir de 1844,
foi revolucionária, pois a criança deixava de receber leite artificial nas primeiras 24 horas
de internação. As Santas Casas contrataram regularmente, até próximo à abolição, amas
para tempo integral na Roda. A crítica às mercenárias seria pelo baixo número de
contratação, em meados do século XIX quando a Roda recebia anualmente 600 crianças
tinha apenas entre 15 e 16 amas de leite (VENÂNCIO, 1999, p. 57).
Se para a manutenção da Roda o uso de amas mercenárias foi essencial, no pós-
abolição a ama deixa de ser um serviço compulsório, tornando-se um meio de sustento
familiar da mulher parida. Não somente da mulher liberta, mas da imigrante e
principalmente daquela que havia acabado de dar a luz e não dispunha de recursos para o
sustento. Entre 1900 e 1909 o Jornal do Brasil conta com mais de dois mil anúncios de

279
Criada na Europa na Idade Média e trazida para o Brasil mediante a colonização portuguesa, a Roda dos
Expostos se caracterizava como instituição que continha uma esfera cilíndrica para o recebimento do
enjeitado. Assegurando que a criança abandonada não morresse sem o sacramento do batismo.
(MARCÍLIO, 1998)
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

561
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

famílias que procuravam ou ofertavam amas - o que indica uma difusão na sociedade da
prática considerada secular.
A virada do século representa a efervescência das mudanças sanitárias e políticas
na capital da República, momento de propagação do credo higienista e combate das zonas
de miasmas. Ambiente de mudanças urbanas, reordenamento dos espaços, especulação
imobiliária e retirada das classes populares das áreas centrais. Verifica-se a tentativa de
extinguir as moradias consideradas insalubres marcadas pelo compartilhamento dos
espaços e pouca circulação de ar, seria o pobre o objeto da reforma, o bem maior estaria
a cargo de um renovo nos hábitos correntes. E, dentre eles não podemos esquecer a ama
mercenária. (NEEDELL, 1993; CHALHOUB, 1996; BENCHIMOL, 2003).
A historiografia tradicional, que emerge dos anos de 1980, expressaria o contexto
político vivenciado na cidade como

um espaço de opressão, lugar de ação de um consórcio espúrio entre o


grande capital atuante na especulação imobiliária e o poder arbitrário
do Estado em detrimento das camadas populares da cidade.
(AZEVEDO, 2015, p. 152).

De acordo com André Azevedo esses autores não diferenciaram os distintos


projetos de reformulação urbana ocorridos na cidade entre 1902 e 1906, classificando-os
como um único projeto, de caráter burguês, genericamente denominado “Reforma
Passos”. Mas as transformações teriam ao menos dois âmbitos: o governo federal ficaria
responsável pela reforma do porto e o alargamento de ruas como a Avenida Central, atual
Avenida Rio Branco. E, o governo municipal encarregado de tarefas como canalização
de ruas e reforma de praças públicas. Enquanto a reforma federal seria marcada pela
burguesia cafeicultora e engenheiros norteados pela noção de progresso. De outro lado, a
Reforma municipal comandada pelo prefeito Pereira Passos, oriundo da engenharia
imperial, estaria voltada aos serviços públicos, vinculado à ideia de civilização.
(AZEVEDO, 2015, p. 157).
A reforma Passos, para Azevedo, foi conservadora, não teria buscado expulsar as
classes populares da área central, como defende a historiografia tradicional, mas
estimulado o seu uso de modo conservador.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

562
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ao lado das reformas urbanas em curso estaria uma reforma médica/sanitária


preocupada especificamente com a infância e levada a cabo por médicos, higienistas e a
própria sociedade civil. Para além das ações dos pediatras Fernandes Figueira 280 e
Moncorvo Filho281, seus discípulos, alunos282 da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, estariam envolvidos na escrita de trabalhos responsáveis por problematizar o
maior causador da mortalidade no primeiro ano de vida: a alimentação. Afora a
supremacia indiscutível do leite materno, incomparável ao de vaca e às farinhas lácteas
pelo seu teor de gordura, caseína e outros componentes, a ama mercenária também seria
um problema suscitado pelos alunos, em estudos que extrapolam os primeiros anos do
século XX, sinalizando a permanência do problema.
Para Pythagoras Barbosa Lima o dever dos médicos, higienistas, puericultores e
legisladores era fazer com que a indústria de leite se restringisse e fosse fiscalizada por
lei. Segundo o aluno, o aleitamento mercenário havia decrescido em países da Europa e
nos Estados Unidos, enquanto na Argentina e no Brasil acreditava que o trabalho
feminino nas fábricas e manufaturas, não estando mais sujeita às exigências dos empregos
domésticos, havia contribuído para sua diminuição. E, citando o renomado médico
deixava escapar que a indústria mercenária não teria fim. “Segundo Marfan a indústria de
amas de leite nunca se extinguirá, poderão os seus casos restringir-se á porcentagem
natural, que segundo ele é de 15%.” (LIMA, 1914, p.11)
Alerta que nos países em que a ama era regulamentada a fiscalização se baseava
no exame de sangue, não sendo eficazes aqueles realizados por instituições de proteção à
infância, justamente por não terem um parecer baseado no sangue. Por outro lado,
advertia para a alta mortalidade entre os filhos das nutrizes nos locais sem fiscalização.
Dos males o menor seria ao menos o controle:

280
Médico que dirigiu a Policlínica das Crianças do Rio de Janeiro (1909) esteve à frente de ações em
defesa do aleitamento, na condução de alunos da FMRJ na escrita de trabalhos em favor do leite materno.
Na década de 1920 seria escolhido pelo Departamento Nacional de Saúde Pública para dirigir a Inspetoria
de Higiene Infantil. Vale mencionar: FIGUEIRA,1905; FIGUEIRA, 1908; FIGUEIRA, 1926.
281
Médico responsável pela criação e direção do Instituto de Proteção e Assistência à Infância do Rio de
Janeiro – Ipai (1899), com trabalho voltado ao cuidado da infância pobre e educação das mães. Presença
constante em congressos e no debate com seus pares. Vale mencionar: MONCORVO FILHO, 1908;
MONCORVO FILHO, 1909.
282
A FMRJ conta com teses de conclusão de curso de alunos orientados por Fernandes Figueira e /ou
Moncorvo Filho. Dentre elas vale destacar: Siqueira, 1912; Almeida, 1913; Lima, 1914; Galvão, 1916.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

563
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

E na verdade, por maiores que sejam os malefícios provenientes de uma


regulamentação do aleitamento mercenário, eles não poderão se igualar
aqueles que provém da sua não fiscalização; salvo, quando aquela não
tiver em mira, mui particularmente, a proteção do filho da nutriz.
Portanto, á uma fiscalização viciosa é preferível não tê-la. (LIMA,
1914, p. IV).

Sócrates Pinheiro seria mais específico em seu estudo, ao alertar como deveria ser
realizado o exame das amas alegava que o interrogatório do médico feito à mulher
examinada não tinha valor - pois todas buscavam o salário e por isso a resposta era sempre
positiva sobre gozar de boa saúde. O médico deveria fazer perguntas precisas relativas a
existência de sintomas de modo que a examinada não pudesse averiguar o potencial das
respostas, além de exame no filho da candidata. (PINHEIRO, 1919, p.52-53) O
procedimento médico deveria fiscalizar seios, leite, corpo, dentes, amídalas, pulmões,
coração, aparelho digestivo, região hipogástrica, sistema nervoso e sangue - como já
sugeria seu colega de profissão, Lima. (PINHEIRO, 1919, p.53.) Uma boa ama era
considerada aquela entre 20 e 30 anos, que já tivesse aleitado uma criança e que seu filho
estivesse em bom estado de saúde.

Não discutiremos aqui se o aleitamento por uma ama de leite deve


desaparecer da sociedade; se o médico tem o dever de lutar em favor do
aleitamento materno, ele não pode praticamente é abster-se da
obrigação de examinar uma mulher que lhe é apresentada como tendo
de aleitar uma criança.
Ele poderá, aproveitando-se d’este exame, dar alguns conselhos a esta
mulher sobre o modo de amamentar o seu próprio filho. (PINHEIRO,
1919, p. 51).

O Caminho das amas de Leite – freguesias, distritos e a expansão urbana

Nosso estudo conta com uma metodologia de amostragem do serviço de amas a


fim de compreender a extensão da atividade antes e após a Reforma Urbana ocorrida entre
1902 e 1906. Trabalhando assim com o ano de 1900, que antecede o início das obras,
1903 que marca o começo das reformas, 1906 e 1909 que indicam o término e o período
posterior às transformações. Os números não revelam somente a venda do leite, o termo

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

564
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

‘ama de leite’ aparece no jornal como título de peças teatrais, marchas carnavalescas,
notícias e anúncios.
Nos dias 22 e 23 de Fevereiro de 1903 a ama de leite daria nome a um carro
alegórico do Clube dos Destemidos, que satirizava a fiscalização do leite imposta pela
prefeitura. O Jornal do Brasil informa que no carro alegórico que representava a higiene
estaria uma ama amamentando o diretor da higiene, no período em questão Oswaldo Cruz
ocupava o cargo de Diretor Geral da Saúde Pública (1903-1909) e Luiz Barbosa delegado
da higiene municipal no 1º Distrito Sanitário. Assim descreve o jornal:

Clube dos destemidos E' hoje que os alegres rapazes, que compõem o
elegante Club dos Destemidos, saem à rua, com o seu luxuoso e artístico
préstito, caprichosamente organizado e estando destinado às mais
ruidosas e festivas manifestações de simpatia, pelas ruas por onde
passar.(...) Mais carros com fantasias e um carro de critica, com o
seguinte dístico: A higiene defensiva e agressiva. Representa uma
grande ama de leite, amamentando conhecido diretor higiênico.
(JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, 22 Fev.1903).

No dia seguinte o desfile ainda estaria nas primeiras páginas do jornal, mais uma
vez a reação popular às ações da higiene pública estaria na ordem dos fatos, com um carro
que ironizava a venda de leite pela cidade, tendo em vista a proibição realizada pela
prefeitura ao tráfego de vacas e pelo maior controle na assepsia dos estábulos e venda do
leite, mais uma vez a ama de leite é suscita amamentando o diretor da higiene.

Clube dos Destemidos Terceiro Carro - Dolce Farniente- engraçado


ilusão ao ato da Prefeitura proibindo aos vaqueiros andarem com as
vacas pelas ruas. (...) A guarda de honra desse carro era composta de 28
músicos do 9º regimento de cavalaria. Vestidos de vaqueiros, tendo à
cabeça as respectivas latas de leite. (...) Quinto carro. - A higiene na
defensiva e agressiva - Era de muito espirito este carro, que provocou
gerais aplausos e ruidosa hilaridade. Representava enorme ama de leite,
amamentando um robusto pimpolho, caricatura de certo diretor de
higiene (...) (JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, 23 Fev. 1903).

Os anúncios poderiam trazer um pequeno trecho indicando o motivo para que


algumas mulheres se prestassem ao serviço, ou a necessidade da família requisitante. Em
setembro de 1909 uma família que se intitulava como pobre, na rua Dr. Eulhoes, no

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

565
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Encantado, dizia precisar de uma ama com leite entre cinco e seis meses, não importando
a cor. "Precisa-se de uma ama de leite de 5 a 6 meses, para casa de família pobre, não se
faz questão de cor; quem estiver nas condições dirigir-se à rua. Dr. Eulhões n. 17,
encantado". (JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 19 Set.1900) Nota-se ser uma
localidade mais afastada da área central, cujo acesso seria possível somente com a
expansão da linha férrea para arrabaldes mais longínquos a partir de meados do século
XIX (ABREU, 1982).
Na oferta de serviços de leite uma variedade de mulheres se apresentavam no
jornal para expor anúncios, vale destacar a pouca idade do leite, como nos mostra o
anúncio da portuguesa com oito dias, residente na General Pedra: "Aluga-se uma ama de
leite, com leite de oito dias, portuguesa; na rua General Severiano n.8, avenida, quarto
n.10."(JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 27 mar, 1903) Ou, a ama recém chegada
da Europa que dizia ser pessoa séria, assim descrita "Aluga-se uma ama de leite de poucos
meses, chegada há pouco da Europa, pessoa séria, idade 20 anos, quem precisar dirija-se
à rua Barão de Guaratiba n.34. A."( JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 27 mai. 1903)
Outras teriam 45 ou mesmo 15 dias de parida e estariam na imprensa ofertando trabalho
"Aluga-se uma ama de leite com leite de 45 dias, trata-se na rua da Harmonia n.39,
sobrado." (JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 03 Set 1903) "Aluga-se uma ama de
leite de 15 dias, conduta afiançada; na rua Vieira n.8, estação Dr. Frontin" (JORNAL DO
BRASIL, Rio de Janeiro, 06 Fev 1906).
Mulheres recém-chegadas ao Brasil, recém-paridas, ‘senhoras de família’,
‘mulher casada’ e todas tinham em comum a amamentação mercenária. O ano de 1900
contou apenas com 45 anúncios, uma média de pouco mais de três por mês. Este padrão
iria sofrer um salto enorme nos anos seguintes como nos apresenta o gráfico abaixo:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

566
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Fonte: Jornal do Brasil (hemerotecadigital.bn)

Como pode ser observado ocorre um salto de 45 ocorrências do termo -


ressaltando que não podermos considerar todas as aparições como expressão de anúncios
– para 438 aparições, em 1903, exatamente no início da reestruturação da cidade.
Indicando a presença diária de amas na imprensa, ao passo que somente até o fim de junho
de 1906 foram encontradas 371 eventos. Conduzindo-nos para uma crescente do exercício
da amamentação mercenária.
Neste trabalho nos concentraremos no ano de 1900, entre os meses de janeiro e
dezembro, que conta com 44 anúncios, dos quais 4 não foram identificados e/ou não
informavam a localização. Dentro deste quantitativo é sabida a repetição dos anunciantes,
o que não percebemos como um problema na contagem da localização, pois a mesma não
se repete apenas quantitativamente, mas indica a pré-disposição do anunciante em pagar
pela sua permanência. Por vezes permitindo a identificação de uma mulher que fica meses
em busca de um emprego ou a dificuldade de uma família em encontrar uma ama que
atendesse as necessidades requeridas. Chama atenção a proximidade entre oferta e
procura, sendo 24 anúncios de mulheres que se colocavam ao serviço da venda de leite,
tendo em contrapartida 20 anunciantes em busca de ama. A relação entre esses índices
sugere, ao menos inicialmente, uma compatibilidade entre oferta e procura que estaria
assim distribuída pela cidade:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

567
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Fonte: Jornal do Brasil (Hemerotecadigital.bn)

O serviço estava concentrado na área central, fosse pela oferta ou procura e


seguido pela Cidade Nova, área reconhecida como ambiente fabril pela proximidade com
São Cristóvão. Temos também a presença de amas em direção a uma cidade que se
expandia graças às linhas de bonde para as chácaras do Catete e Botafogo. Santo Cristo,
São Cristóvão, Andaraí e Catumbi aparecem modestamente, despontando como área
fabril e não pode esquecer ter sido São Cristóvão o berço da época áurea do império, há
muito já dispunha de canalização e redes de esgoto que funcionariam como um chamariz
para a indústria têxtil. (ABREU, 1982).
Mais discretamente também aparece a Estação de Sampaio, de Piedade e o
Encantado, áreas que sem a extensão da linha férrea seriam inviáveis o deslocamento.
Temos a requisição e ofertas de amas partindo de localidades distantes, vindo ao centro
para expor um anúncio nos jornais e se submetendo a arcar com os custos de contratação,
o que sugere no mínimo duas suposições: o serviço de leite mercenário era muito barato
e acessível aos custos de vida do período, que ainda carece de pesquisa neste estudo, ou

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

568
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

as famílias de localidades distantes eram endinheiradas e podiam dispor do pagamento de


uma ama.
A cidade manteve por muito tempo a tradicional divisão administrativa herdada
da colonização portuguesa: as freguesias, que se confundem com as sedes paroquiais – a
organização civil e eclesiástica juntas. Assim, contava com 21 freguesias entre as
primeiras estavam Candelária (1634), Irajá (1644) e Jacarepaguá (1661). As mais tardias
se desenvolveram ao longo do século XX, como São Cristóvão (1856), Espírito Santo
(1865), Engenho Novo e Gávea (ambos em 1873) (NORONHA SANTOS, 1965).
O crescimento da malha de transportes influenciaria não apenas o deslocamento,
mas a sua forma de ocupação. As freguesias centrais viveriam o adensamento urbano das
classes populares que buscavam proximidade com os locais de trabalho. A partir de 1870
seria introduzido o bonde de burro e o trem a vapor. Bondes e trens passavam a circular
sincronicamente. As demarcações territoriais indicam as freguesias da Candelária, São
José e as chácaras da Glória e Catete como os locais das classes dirigentes. Enquanto os
populares se adensavam nas freguesias de Santa Rita e Santana que dariam origem aos
atuais bairros da Saúde, Santo Cristo e Gamboa. Já as freguesias distantes da corte
denominadas rurais eram as fornecedoras de gêneros alimentícios, enquanto as fazendas
mais próximas das freguesias urbanas aos poucos foram transformadas em chácaras.
(NORONHA SANTOS, 1965)
Se os bondes foram responsáveis pelos deslocamentos entre as freguesias urbanas,
os trens seriam pela circulação entre as freguesias rurais. Maurício de Abreu apontou que
a ocupação do subúrbio foi linear, seguindo a via ferroviária e aos poucos as ruas
secundarias começaram a surgir. Estas estações vão se configurar como espaços de
referência na busca por amas de leite. O alcance da ama nas classes populares, ao mesmo
tempo em que os médicos se engajavam na campanha pelo aleitamento materno e que a
indústria oferecia uma gama variada de farinhas para consumo da criança, mostra como
foi árduo o trabalho destes médicos.

Considerações finais

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

569
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As considerações realizadas traduzem percepções parciais, de uma pesquisa em


andamento, podemos indicar e presença de amas dentre as classes populares, mas ainda
carece melhor definir seu deslocamento na cidade. E assim, ao mapear as áreas de procura
e oferta da ama almejamos compreender os projetos médicos para à infância que estavam
em curso.
Carneiro aponta uma interferência médica na vida dos cidadãos e a medicina como
reguladora da vida social. As amas de leite do século XX nos traz à tona a necessidade de
uma nova reflexão – até que ponto o saber médico estaria acima das práticas culturais.
Que há uma iniciativa moralizadora para que a mulher assumisse seu papel social “ser
verdadeiramente mãe” (CARNEIRO, 2006, p. 32) não discordamos, mas a efetivação
deste objetivo deixa dúvidas.
Se a discussão sobre o leite mercenário iria acabar, ou seria reduzida com a difusão
do leite industrializado, como sugere Marcílio, em 1931 ainda é possível encontrar teses
problematizando sua ocorrência:

A alimentação artificial, na maioria das vezes, é instituída por


obstáculos de ordem social.
Como consequência de erros e preconceitos do meio ou da luta
desumana pela vida, muitas mães negam ao filho o próprio leite. As
mães ricas, por conceito criminoso do luxo ou interpretação errada do
modernismo. As mães pobres, por serem obrigadas a trabalhar o dia
todo, principalmente nas grandes cidades, onde a indústria progride e a
luta pela vida afasta a mãe de seu filho, arrasta-a para junto das
máquinas, fazendo progredir também a mortalidade infantil.
(ROSSETO,1931, p. 45-46)

O aluno Rodrigues prescreveria, em 1922, que para a escolha da boa nutriz dois
aspectos seriam primordiais: boa saúde e bom leite, sobretudo, com cuidados acerca da
sífilis e da tuberculose acompanhado do exame clínico destas mulheres, e de seus filhos,
compreendidos como meio mais seguro para verificar o estado da mulher que o alimenta.
Tais serviços de fiscalização podem ser encontrados sob a direção do professor Fernando
Magalhães na maternidade do Rio de janeiro, situada em Laranjeiras, entre os anos de
1915 e 1918. De acordo com o aluno quando a maternidade foi passada ao patrimônio
nacional, o serviço já bem desenvolvido foi deixado de lado. E assinala que não sendo
um regulamentado os valores cobrados ficariam a cargo do proveito das amas
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

570
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nestas condições foi e está sujeito o aleitamento mercenário não


regulamentado a explorações, que por parte das amas que muito
naturalmente procuram tirar com o comercio de seu leite o maior
proveito possível, que por parte dos pais da criança que as solicitam as
vezes por luxo e comodidade. (RODRIGUES, 1922,15)

As teses indicam que entre as décadas de 1920 e 1930 o serviço de leite mercenário
seguiria presente e vigente na sociedade carioca. A continuidade da pesquisa iluminará
melhor a expansão da procura por amas para os subúrbios, a possibilidade da crescente
busca do serviço pelos populares e a atuação médica.

Referências Bibliográficas

Documentos/Fontes

LIMA, Pythagoras J. Barbosa. O aleitamento mercenário e sua fiscalização. Rio de


Janeiro: OfficinaTypographica da Escola Gerson, 1914.

PINHEIRO,Socrates Ariosto Carino. O aleitamento da criança durante o primeiro anno.


Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1919.

RODRIGUES, José Furtado. O aleitamento mercenário (a proposito do exame de


puérperas e nutrizes)- cadeira de clinica obstétrica. Rio de Janeiro, Pap. E Typ. Queiroz-
Rua da Quitanda. 1922.

ROSSETO, Mario. Contribuição ao estudo da funcção mammaria na gravidez e no


puerperio. Rio de Janeiro: Typog. Jornal do Commercio, 1931.

JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro. 1900-1909 (hemerotecadigital.bn)

Bibliografia

ABREU, Mauricio de. Evolução urbana do Rio de Janeiro.2ª Edição, Rio de janeiro:
Jorge Zahar, 1982.

AZEVEDO, André Nunes de. A Reforma Pereira Passos: Uma tentativa de integração
Conservadora. Tempos Históricos, vol.19, 2015.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

571
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BENCHIMOL, Jaime. Reforma Urbana e Revolta da Vacina na Cidade do Rio de Janeiro.


IN: O tempo do Liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de
1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. (O Brasil Republicano; v.1.)

GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio. Rio de Janeiro, Lacerda Ed. 2000.

CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Procura-se “Preta, com muito bom leite, prendada
e carinhosa”: Uma cartografia das amas-de-leite na sociedade carioca (1850-1888).
Brasília, Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, 2006. (Tese de
doutorado) 419p.

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo,
Companhia das Letras, 1996.
MARCÍLIO, Luiza Maria. História social da criança abandonada. São Paulo, Editora
HUCITEC, 1998.

MICHAELIS: Moderno dicionário da língua portuguesa/ São Paulo: Companhia


Melhoramentos 1998.

NEEDELL, J. D. Belle Époque Tropical – sociedade e cultura da elite no Rio de Janeiro


na virada do século. São Paulo: Cia. das Letras; 1993.

SANTOS, Noronha. As freguesias do Rio Antigo. Rio de Janeiro, Edições O Cruzeiro,


1965

VENANCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas: Assistência à crianças de camadas


populares no Rio de Janeiro e em Salvador – Séculos XVIII e XIX. Campinas, São Paulo:
Papirus, 1999.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

572
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Um cantor negro nas ondas do rádio: identidades e tensões raciais (1926-1950)

CAROLINE MOREIRA VIEIRA DANTAS


PPGHS /UERJ-FFP/Capes

Patricio Teixeira Chaves nasceu em 17 de março de 1893 e faleceu em 09 de


outubro de 1972 no Rio de Janeiro. Foi cantor, compositor, violinista e professor de
violão. Gravou músicas por diferentes empresas fonográficas e atuou em estações de rádio
entre as décadas de 1920 e 1950. Em entrevista concedida aos 73 anos de idade, informou
como local de nascimento a região da Praça Onze. Contou que não conheceu seus pais e
que foi criado por uma família nos arredores do bairro do Estácio, vivendo “sempre
naquela zona ali”. Suas primeiras manifestações musicais se deram ainda quando era um
menino, tocando violão e cantando. Participava de grupos carnavalescos e promovia junto
com amigos serenatas no bairro de Vila Isabel e na região da Praça Onze (Entrevista de
Patrício Teixeira, 01/12/1966).
Ao longo da sua vida, atuou no carnaval, no teatro, como professor de canto e
violão, compositor e chegou a publicar um método de violão. Porém, o seu destaque
profissional aconteceu na fonografia e, principalmente, no rádio, onde ganhou fama e
sucesso. As gravadoras de discos já vinham se relacionando com as musicalidades
populares desde o início do século XX, possibilitando o aumento da circulação social
deste produto cultural e tornando conhecidos muitos artistas (VIEIRA, 2010). O
desenvolvimento do rádio ao longo da década de 1920 e sua consolidação a partir da
década de 1930 contribuíram para esse processo de ampliação do raio de alcance das
músicas populares. Assim, os dois campos, fonografia e radiofonia, se configuraram
como mecanismos de difusão social das canções e também como possibilidades de
atuação profissional para alguns músicos.
Nesse ínterim, a atuação do músico Patrício Teixeira foi emblemática e,
justamente por isso, sua trajetória profissional foi escolhida como fio condutor. O
presente artigo reflete sobre sua inserção na radiofonia como cantor e violinista, cuja
carreira teve início no mesmo período do surgimento do setor, na década de 1920,
alcançando sucesso e prestígio social, principalmente nas décadas de 1930 e 1940. Neste
período, a irradiação de canções populares conferiu impulso à carreira de alguns músicos.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

573
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O rádio teve início nos anos de 1920, crescendo ao longo da década de 1930 e
alcançando seu auge nos anos 1940 e 1950. Agiu como difusor de músicas e informações
(ORTIZ, 1994, p. 38). Representou uma oportunidade de trabalho para músicos, mesmo
que poucos, e um aumento do número de ouvintes de gêneros musicais populares. Assim,
exerceu influência sobre o fenômeno das músicas populares, colaborando para sua
divulgação. Contudo, essa problemática não foi suficientemente analisada do ponto de
vista dos sujeitos envolvidos diretamente nesse processo, em especial, os músicos negros.
O primeiro registro na programação radiofônica divulgada na imprensa da atuação
de Patricio Teixeira foi em 1926. Contou que, estava em casa e que recebeu um
telefonema do presidente da Sociedade Rádio Clube do Brasil, “o doutor” Rocha
Miranda. Mesmo com o tratamento formal, afirmou que tinha alguma intimidade com ele,
pois era professor de violão da sua mulher. Nesta ligação, fora convidado para cantar na
emissora, que se localizava no Largo do Machado. Contou: “Chegando lá, peguei o violão
e comecei a cantar, cantar, cantar e fui ficando, ficando lá e assim cantei durante uns três
ou quatro meses” (Entrevista de Patrício Teixeira, 01/12/1966). Na verdade, foram pelo
menos três anos, pois há registros em periódicos de sua atuação de 1926 a 1929.
Assim, o convite para o ingresso na radiofonia teria surgido a partir do ensino do
violão, atividade que possibilitava sua movimentação por vários espaços da cidade,
incluindo, casas das elites cariocas. Sua atuação na Rádio Clube logo repercutiu no jornal
Correio da Manhã que se referiu ao músico como o “popular Patricio”, cujo repertório
“irradiado semanalmente” tinha “alcançado um sucesso inexcedível” (Correio da Manhã,
26/09/1926, p. 11).
A estação divulgou na sua programação enviada à imprensa escrita as primeiras
apresentações do cantor em 1926 como “Audição de canções e modinhas regionais pelo
Sr. Patricio Teixeira”, veiculada no turno da noite, que costumava ser de grande audiência
(Gazeta de Notícias, 22/12/1926, p. 4; 29/12/1926, p. 4). Em entrevista dada à imprensa
em 1951, o músico contou:

acabei radicando-me no rádio. Depois da Rádio Clube atuei na Rádio


Sociedade e depois passei a cantar na Mayrink Veiga. Trabalhava
nessas três emissoras ao mesmo tempo. Somente em 1932 quando o
Cesar Ladeira ingressou na Mayrink, fui contratado com exclusividade,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

574
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

[recebendo] Cr 50,00 de ‘cachet’. E desde 1932 me encontro aqui na


Mayrink” (Revista do Rádio, 29/05/1951, p. 44).283

As pesquisas nos periódicos ratificam esta informação de que ele atuou


simultaneamente na Rádio Clube do Brasil, na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro e na
Rádio Mayrink Veiga. Patricio não mencionou, mas também teve passagens pela Rádio
Educadora do Brasil no mesmo período. Sendo assim, Patricio atuou nas quatro estações
pioneiras da cidade.
Na Rádio Mayrink Veiga, Patricio permaneceu por um período mais longo, com
contrato assinado de 1932 até a década de 1950, mas já atuava na emissora desde o final
da década de 1920. No período que corresponde ao auge do seu sucesso artístico, o músico
cantava nesta estação.284 Assim, seu ingresso representou um ganho de popularidade,
afinal esta tinha objetivos comerciais definidos e era irradiada para muitas localidades do
país. Para que se possa ter uma ideia do alcance territorial, a estação possuía uma revista
impressa chamada Pranove, cujas edições visavam o público ouvinte, pois repercutia a
sua programação e o seu elenco de artistas e locutores. Essa revista possuía assinantes em
Alagoas, Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Paraíba, Paraná,
Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Santa
Catarina, São Paulo e Sergipe. Os estados com o maior número de assinantes eram Minas
Gerais, São Paulo e Distrito Federal, que na ocasião era o Rio de Janeiro (Pranóve, nº2,
julho de 1938, pp. 18-19).
A Mayrink Veiga foi líder de audiência na década de 1930 e a partir da década
seguinte disputava audiência com as estações Tupi, Tamoio e Nacional (AZEVEDO,
2002, p. 17). Uma das razões para o sucesso da Rádio Mayrink Veiga estava na sua
programação amplamente pautada no humor e nas músicas populares, o que indica que
Patricio, assim como os demais cantores que lá atuaram, colaboraram decisivamente para
o sucesso da emissora. É preciso destacar o fato de que quando ele assinou contrato de
exclusividade com a estação em 1932, já era um cantor conhecido, inclusive fora do
estado do Rio de Janeiro.

283
Ele falou a quantia em cruzeiro, mas naquele momento, 1932, a moeda ainda era réis.
284
A delimitação temporal do auge do seu sucesso foi feita observando os comentários na imprensa e as
suas entrevistas.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

575
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Há registros, na imprensa paulista de passagens de Patricio Teixeira naquela


cidade no final da década de 1920. Nas suas entrevistas, ele se referiu a essas viagens,
cuja finalidade seria se apresentar cantando ao violão, como “excursões” que se iniciaram
após a sua entrada no rádio em 1926. Afirmou que “ia para São Paulo e [noutros] lugares,
cantar” (Entrevista de Patrício Teixeira, 01/12/1966).
Pelo que os jornais indicaram, Patricio fez uma temporada em janeiro de 1927
naquela cidade, cantando na Rádio Educadora Paulista e se apresentando no Teatro
Apollo. Assim a estação anunciou a presença do cantor em 1927: “Patricio Teixeira, o
aplaudido cantor de modinhas brasileiras, que tanto sucesso tem alcançado no Rio de
Janeiro, [achando-se] atualmente em São Paulo” (Correio Paulistano, 14/01/1927, p. 5).
Também foram encontradas em algumas edições de periódicos paulistas,
divulgações de programas radiofônicos de discos exclusivos de Patricio Teixeira entre
1927 e 1929, com duração de 15 a 30 minutos. Programa com o mesmo formato foi
encontrado em outra estação paulista, Rádio Record, entre 1935 e 1936, e com menos
frequência em 1938. Nas décadas de 1940 e 1950, não há registros do cantor nas
programações das rádios paulistas.285
O primeiro registro jornalístico de sua participação na rádio Mayrink Veiga foi
encontrado em uma edição do ano de 1929, no turno da noite se apresentando em
“programas de canções brasileiras, solos de violão e números cômicos”, acompanhado de
outros músicos (Gazeta de Notícias, 23/07/1929, p. 7).
A partir da entrada do famoso locutor e diretor artístico César Ladeira no início
da década de 1930, Patricio e outros cantores começaram a se apresentar no seu programa
de estúdio, que ia ao ar das 20 horas às 23 horas nos dias da semana (Gazeta de Notícias,
06/10/1934, p. 9), mas é provável que ele tenha participado de outros programas da
emissora.
Na primeira transmissão internacional da Rádio Mayrink Veiga que foi para
Buenos Aires houve participação de Patricio Teixeira e outros cantores de sucesso no
Brasil, com destaque para a grande estrela do momento, Carmen Miranda. A rádio carioca
mantinha contatos com a estação portenha Belgrano desde o início da década de 1930,

285
Há vários registros da atuação de Patricio Teixeira em São Paulo no final da década de 1920 e ao longo
da década de 1930.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

576
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

incluindo troca de cantores. Carmen Miranda fez algumas excursões para lá naquela
década (Pranóve, agosto de 1940, nº27, p. 35). Patricio Teixeira nunca saiu do Brasil,
segundo seu próprio depoimento (Entrevista de Patrício Teixeira, 01/12/1966).
No almanaque de 1946 sobre a história da radiofonia no Brasil, publicado pelo
matutino Correio da Manhã, foram mencionados diversos nomes que colaboraram para
o surgimento e desenvolvimento do rádio no país, entre eles alguns cantores como
Patricio Teixeira, cuja fotografia ilustrava a publicação (Correio da Manhã, 1946, pp.
143-150). A menção a Patricio Teixeira indicava sua posição de destaque nos anais da
radiofonia.
De acordo com as pesquisas, o cantor começou a gravar músicas em disco no
mesmo período em que iniciou na radiofonia. Seus discos circulavam, promovendo a
divulgação de suas músicas e de sua voz. Mas, foi sem dúvida, a partir da sua participação
no rádio que alcançou visibilidade e sucesso, ultrapassando os limites da cidade do Rio
de Janeiro. Cantando nas ondas do rádio, promovia publicidade para suas canções, o que
levaria à compra de seus discos e a convites para promover espetáculos nos teatros e
cassinos. Desta forma, fonografia e radiofonia se articulavam ao divulgar as produções
de músicos de talento como Patricio, tornando-os cantores de sucesso.
De acordo com Patricio, ele foi o “primeiro a cantar no rádio coisas regionais, ao
violão” (Gazeta de Notícias, 20/02/1935, p. 12), por isso, talvez tenha recebido o apelido
de “O seresteiro incorrigível.” Seu repertório musical era vasto e as temáticas variadas,
mas nota-se que ele era lembrado pela imprensa como “a voz do sertão” ou o cantor de
músicas folclóricas ou regionais.
Apesar de todo o sucesso artístico conquistado, uma breve análise de fontes
jornalísticas sobre a sua experiência profissional na radiofonia, revelou questões para
serem problematizadas como tensões raciais imbricadas nas relações com artistas negros
num contexto de pós-abolição da escravidão. Afinal, esta havia se processado há poucas
décadas e os impactos profundos da escravização de negros nas configurações sociais se
fizeram presentes de forma latente nas décadas imediatamente posteriores, inclusive
ainda se fazem presentes na atualidade. Qual o lugar a ser ocupado pelos negros na
sociedade brasileira? A história de Patrício, assim como de muitos outros homens e
mulheres negras, está inserida nessa problemática.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

577
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Em reportagem da Revista Fonfon de 1935 foi mencionado o seguinte


acontecimento na cidade do Rio de Janeiro, chamado de “O que nem todos sabem...”:

Um colégio desta capital realizou, recentemente, no Teatro Municipal,


uma festa, além dos próprios alunos, atuaram vários artistas das nossas
broadcastings. Barbosa Junior, Luiz Barbosa e Lamartine Babo
apresentaram números interessantes. Patricio Teixeira, igualmente
contratado para um número qualquer, não pode entrar em atividade. Os
diretores daquele teatro fizeram ver aos organizadores do programa que
no palco daquela casa não é permitido cantar sambas e nem ao menos
entrar um violão (Fonfon, 28 de dezembro de 1935, p. 39).286

O critério indicado para a proibição da apresentação de Patricio Teixeira foi o fato


de cantar sambas e o uso do violão. Todavia, recorrendo à discografia dos músicos citados
na reportagem acima, temos a seguinte situação: até 1935, ano da publicação desta edição
da revista Fonfon e suposto ano em que o episódio relatado acima ocorreu, Patricio gravou
cerca de 50 canções classificadas como sambas, de um total de 111 músicas, que
englobavam diversos gêneros. Sem dúvida, samba era o ritmo mais gravado por Patricio
(Instituto Memória Musical Brasileira. Disponível em:
http://www.memoriamusical.com.br/. Acesso em janeiro de 2017).287
Luis Barbosa, cantor e compositor citado na reportagem, apresenta na sua lista de
canções gravadas até o ano de 1935, 22 canções, sendo 14 sambas, 2 samba-canção, 2
marchas e 4 marchinhas. Consta que Barbosa Junior, irmão de Luis Barbosa, também
cantor e compositor, que trabalhou com Patricio na Mayrink Veiga, gravou no mesmo
período, 3 marchinhas, 2 humorismos, 1 choro e 1 marcha. Já o músico Lamartine Babo
gravou 13 marchas, 3 marchinhas, 2 sambas, 3 humorismos, 3 foxtrotes e outros gêneros
de menor expressão no seu repertório, perfazendo um total de 33 músicas (Instituto
Memória Musical Brasileira. Disponível em: http://www.memoriamusical.com.br/.
Acesso em janeiro de 2017).288
Pelo levantamento dos gêneros musicais que constam nas discografias citadas
acima, percebe-se que os quatro músicos podem ser classificados como “populares”,

286
Broadcasting era o nome empregado para se referir às emissoras de rádios. Elas usavam diversos termos
em inglês, fazendo referência ao país onde surgiu a radiofonia, Estados Unidos.
287
Os dados foram compilados a partir de pesquisa realizada neste banco de dados online.
288
Seguimos a designação dos gêneros musicais atribuídos às canções nos fonogramas.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

578
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sendo Patricio o cantor com a maior quantidade de canções gravadas até 1935, ano da
publicação em análise. O fato do samba ser mais representativo na discografia de Patricio
Teixeira inevitavelmente o associava mais aquele gênero musical. Além disso, era
reconhecido como um famoso violinista. Estes fatores podem ter sido razões para o
impedimento da sua apresentação tal como descrito na reportagem. Apesar de não
podermos descartar essas possibilidades, levando em conta que aquele teatro era um
espaço cultural elitizado, não parece razoável supor que o violão e o samba tenham sido
critérios exclusivos da proibição. Afinal, os outros três músicos contratados que não
foram impedidos de se apresentar no evento, eram todos brancos. E provavelmente,
tocavam violão, instrumento principal das composições populares. Cantavam sambas e
tantos outros gêneros populares, tal como Patricio. Não há como deixar de concluir que
o critério racial foi um dos elementos a serem considerados na proibição da apresentação
de Patricio Teixeira no Teatro Municipal, afinal, era o único músico negro entre os
contratados para o evento escolar. Além disso, sua apresentação poderia ter sido
condicionada à interdição do que os diretores do teatro não permitiam: samba e violão. O
repertório de Patricio era vasto, cantando diferentes ritmos e gêneros musicais, sendo
inclusive mais conhecido socialmente como seresteiro e cantor de modinhas regionais e
folclóricas do que como sambista.
Apesar do seu sucesso, o cantor parecia compreender os limites sociais
demarcados para artistas negros, indicando que o seu lugar na sociedade estaria
condicionado a hierarquias raciais, portanto, passível de preconceito e discriminação. Há
indícios de que ele se reconhecia socialmente como negro e reconhecia a existência de
restrições sociais estabelecidas por parâmetros raciais. Essas constatações são
evidenciadas na reportagem da revista O Malho em 1933: “Patricio Teixeira, o querido
cantor, anda furioso com todos os que votam ‘em branco’ no concurso para Príncipe do
‘broadcasting’ instituído pela ‘A Hora’!” (O Malho, 28 de dezembro de 1933, p.8).289
Outra reportagem bastante reveladora encontra-se na revista Fonfon de 1940:

Isto era antigamente, no início dos Cassinos! O elemento de cor não era
visto com bons olhos nessas “casas de diversões...” Vedava-se, mesmo

289
Era comum os periódicos organizarem concursos para o público eleger os artistas mais populares.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

579
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

com desculpas capciosas, a entrada de alguns que “bobeassem”,


ofuscados pelos focos de luz da portaria. Um dia, fartos de desacertarem
em outros setores onde costumavam fazer suas “fezinhas”, Nilo Chagas
(do Trio de Ouro) e Patricio Teixeira combinaram uma “aventura” na
Urca. Tudo acertado, feita a indiscutível “vaquinha”, aboletaram-se
num taxi guiado por Germano Augusto, e tocaram para o Cassino. - Vê
lá, “seu” Nilo, se vão barrar a nossa entrada como fizeram com o
Paraguassú, fato que quase dá em “barulho”...
- Qual nada, “home”, nós somos por demais conhecidos. E temos
“cartaz” de sobra! Lá chegando, Nilo, que era o mais esperto dos dois,
compra cem mil réis de fichas, e se aproxima, a medo, da roleta que
naquele instante ia parando lentamente... Mal havia encostado e o
“boleiro” berra, a plenos pulmões: - Preto, 2!...Até hoje, Patricio e Nilo
não sabem explicar como puderam fazer o longo percurso URCA-NICE
em 4 minutos e 2 segundos cravados (Fonfon, 07 de dezembro de 1940,
p. 20).

As datas precisam ser analisadas para entendermos em que período esse suposto
episódio teria ocorrido. Ao empregar a expressão “antigamente”, o jornalista anônimo
situou o acontecimento em um passado remoto. Outro marco temporal seria o “início dos
cassinos”. O local onde teria se desenrolado o caso seria no Cassino da Urca, onde
inclusive Patricio trabalhou. Este cassino iniciou suas atividades em 1933, logo o
acontecimento não poderia ter mais de sete anos. Além disso, o episódio envolveu o
cantor Nilo Chagas, identificado como membro do Trio de Ouro. Seguindo estas pistas,
descobrimos que este cantor surgiu no cenário artístico em 1936 para substituir o cantor
Francisco Sena, morto em 1935, que formava a dupla Preto e Branco com Herivelto
Martins. Tornou-se trio em 1936 com a participação da cantora Dalva de Oliveira, mas o
conjunto só começou a usar o nome Trio de Ouro a partir de 1938. Desta forma, o episódio
não poderia ter ocorrido num passado tão longínquo, pois a reportagem é de 1940.
Esses relatos demonstram que havia tensões raciais envolvendo músicos negros.
A ida de dois cantores negros famosos ao cassino para se divertirem ser narrada como
uma “aventura” sinaliza relações sociais, no mínimo, conflituosas. Apesar do tom cômico
do texto e a tentativa de suavizar a situação de preconceito racial atribuindo-a ao passado,
há pistas que apontam que os cantores estavam cientes das restrições sociais a pessoas
negras, revelado no suposto diálogo. Patricio teria questionado a Nilo: “Vê lá, “seu” Nilo,
se vão barrar a nossa entrada”. A resposta de Nilo está pautada na crença de que não
seriam proibidos de entrar por causa do sucesso que faziam como cantores. Portanto, não
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

580
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

nega que a proibição a pessoas negras pudesse de fato ocorrer: “Qual nada, ‘home’, nós
somos por demais conhecidos. E temos ‘cartaz’ de sobra”.
Ao se identificarem a partir da fala “Preto, 2!”, os cantores revelam o
reconhecimento de que não podem circular livremente pelos espaços sociais, mesmo
sendo famosos. A interpretação de que a expressão estava ligada a sua negritude gerou
um temor tão grande que fez com que eles saíssem correndo do local, chegando ao bar
Nice no centro do Rio, um reduto boêmio, com grande rapidez.
A partir da análise dessas reportagens, é possível concluir que os mecanismos
sociais de discriminação racial direcionados à população negra eram evidenciados nas
relações tecidas no campo artístico-profissional, mesmo diante do sucesso artístico.
Assim, a experiência do músico Patricio Teixeira é muito importante para pensar
conflitos, tensões, negociações e ambiguidades nas relações tecidas com as culturas
negras e com os músicos negros.
O campo artístico-cultural fora uma possibilidade de inserção profissional para
músicos pobres e remediados, incluindo negros. Para alguns poucos, as gravadoras e as
estações de rádio foram espaços de atuação, mas não excluíam hierarquizações e
preconceitos. À luz dessas questões, a trajetória de Patrício é muito rica de reflexões no
campo social, cultural e racial no Rio de Janeiro do período.

Fontes

Entrevista de Patrício Teixeira, concedida em 01/12/1966 ao Museu da Imagem e do


Som do Rio de Janeiro, armazenada na Coleção Depoimentos para a Posteridade.
Transcrição em janeiro de 2015.

Periódicos: Correio da Manhã; Gazeta de Notícias; Correio Paulistano; A Federação


(RS); Revista Pranove; Revista Fonfon; Revista O Malho; Revista do Rádio.

Bibliografia

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

581
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ABREU, Martha. O “crioulo Dudu”: participação política e identidade negra nas


histórias de um músico cantor (1890-1920). Topoi, Rio de Janeiro, v.11, n.20, p. 92-
113, jan.-jun. 2010.

AZEVEDO, Lia Calabre. No tempo do rádio. Radiodifusão e cotidiano no Brasil.


(1923-1960). Tese de doutorado em História. UFF, Niterói, 2002.

BAHIA, Joana (et al). Pensamento social no Brasil por Giralda Seyferth: notas de aula.
Porto Alegre: Letra&Vida, 2015.

BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: O guru, o iniciador e outras
variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000.

BORGES PEREIRA, João Baptista. Cor, Profissão e Mobilidade – o Negro e o Rádio


de São Paulo. 2a ed. São Paulo: Edusp, 2001.

HERTZMAN, Marc. Making samba. A new history of race and music in Brazil.
Durham and London: Duke University Press, 2013.

NAPOLITANO, Marcos. A historiografia da música popular brasileira (1970-1990):


síntese bibliográfica e desafios atuais da pesquisa histórica. ArtCultura, Uberlândia, v.8,
n.13, p. 135-150, jul.-dez. 2006.

ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. Cultura Brasileira e Indústria Cultural.


5ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1994.

SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro


(1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

VIEIRA, Caroline Moreira. Ninguém escapa do feitiço: música popular carioca, afro-
religiosidades e o mundo da fonografia. (1902-1927). Dissertação de Mestrado em
História. Faculdade de Formação de Professores da UERJ, São Gonçalo, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

582
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Manuais auto instrutivos: Aspectos gerais, circulação e práticas de leitura nos


séculos XVIII e XIX.
CÁSSIA REGINA DA S. RODRIGUES DE SOUZA

PPGHCS-COC/FIOCRUZ

As literaturas auto instrutivas que circularam sobretudo nos séculos XVIII e XIX,
permitiram o acesso da população aos mais variados assuntos, principalmente, às ciências
em geral, bem como às leis, à engenharia, etc. Os manuais de medicina doméstica, que
constituem o objeto principal dessa análise, representaram no Império a única forma de
contato da imensa maioria da população do Brasil com medicina produzida nas
academias. Alessandra Al Far (2004) aponta que esses manuais de utilidade prática290
ensinavam o leitor a executar todo o tipo de atividade: redação de cartas formais ou
informais, receitas culinárias, feitiços de amor, oratórias, ofícios burocráticos, cultivo de
plantas, correspondência comercial, dicas de bom comportamento, e “ regras sociais
fundamentais para se construir o que os autores de tais obras idealizavam como
‘civilização’”(GUIMARÃES, 2004, p.2).

Boa parte das literaturas desse período assume um caráter estritamente pedagógico
e preventivo. Esse aspecto ficou evidenciado, sobretudo nas obras médicas, onde a
chamada “saúde dos povos” constituía um tema recorrente. Esses tratados serviam de guia
médico no cotidiano das mais diversas classes e revelavam as “preocupações didáticas”
apresentadas pelos médicos que julgavam ser necessária a sua intervenção. (ABREU,
2007; MARQUES, 2004). Porém, veremos que tais preocupações não eram evidenciadas
apenas nos manuais de medicina doméstica. Com a vinda da Corte Portuguesa para o
Brasil em 1808, a vida social da Colônia também sofreu inúmeras mudanças. A
europeização dos costumes e as transformações nas formas de comportamento da
sociedade passam a ser notados e tornam-se um requisito para todos aqueles que desejam
fazer parte da “boa sociedade”. Maria do Carmo Rainho (1995) em um interessante estudo
sobre os manuais de civilidade que tiveram ampla circulação no Brasil do século XIX
aponta que foi no contexto do processo de civilização dos modos, dos cuidados com a

290
A autora aponta que o termo “manuais de utilidade prática” foi extraído do “Extrato do Catálogo da
Livraria de H. Garnier”. In: AZEVEDO, Aluísio. A Mortalha de Alzira. Rio de Janeiro, Garnier, 1903
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

583
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

higiene e em uma distinção na forma de se portar e vestir é que as literaturas de civilidade


surgiram. Segundo ela, esse corpus é constituído pelos livros voltados para o ensino dos
comportamentos tipos como corretos. Essas obras que surgiram na Europa a partir do
século XVI instruíam os leitores com relação as maneiras de comer, hábitos à mesa,
higiene corporal (banhos, modos de assoar o nariz, cuspir, etc), os comportamentos em
casa, na igreja, na rua, entre outros. De acordo com a autora, essa literatura não deve ser
vista como espelho dos modos da “boa sociedade”, mas como um tipo de documentação
que reflete a representação de um modelo de comportamento esperado. Nobert Elias
mostra que esses manuais foram fundamentais na Europa ao longo de quatro séculos
durante a transformação dos costumes tidos como bárbaros pelas elites principalmente na
corte de Luís XIV, onde a civilidade servia como distinção entre as classes e tinha como
objetivo disciplinar o indivíduo em suas posturas e gestos. É nesse contexto que surge o
conceito de “civilizado” que passa a ser amplamente divulgado a partir do século XVI na
França. Segundo Elias esse conceito consiste em:

Como membros da corte gostavam de designar, em sentido amplo ou restrito,


a qualidade específica de seu próprio comportamento, e com os quais
comparavam o refinamento de suas maneiras sociais, seu ‘padrão’, com as
maneiras de indivíduos mais simples e socialmente inferiores (ELIAS,1990,
p.54 apud RAINHO idem p.143).

Os primeiros manuais de civilidade chegaram ao Brasil no século XIX, onde o


processo civilizador já estava consolidado na Europa. Esses manuais podiam ser divididos
em duas categorias: os pedagógicos e os cortesãos. Ambos possuíam caráter pedagógico,
porém os primeiros consistiam em obras que eram dedicadas especialmente à educação
de jovens e os cortesãos eram voltados para o estabelecimento de etiquetas que deveriam
ser utilizadas na corte ou nos salões. No âmbito desta pesquisa, interessa-nos aqui os
manuais de cunho pedagógico, especialmente aqueles destinados à educação de crianças.
Essas obras, costumeiramente apresentam poucas diferenciações. Consistiam em
conselhos relacionados aos cuidados com os bebês e/ou em normas ou regras de como as
crianças deveriam ser portar em determinadas situações ou locais, como por exemplo,
como se vestir, hora de dormir, comportamentos à mesa, na escola, na igreja, na
companhia dos mais velhos, entre outros. Uma boa amostra desse tipo de manual que
circulou no século XIX foi Entretenimentos sobre os Deveres de Civilidade Colecionados

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

584
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

para Uso da Puericia Brazileira de Ambos os Sexos (1875) de D. Guilhermina de


Azambuja Neves, professora da cadeira publica da Freguesia da Candelária. A obra,
escrita por essa professora primária e diretora do externato Azambuja Neves, obteve tão
grande acolhida na Corte que em curto espaço de tempo foi aprovada pelos conselhos de
diretores de instrução primária e secundária e adotada pelo Governo Imperial nas escolas
públicas. Por sua grande aceitação, a obra era vendida nas principais livrarias da época,
além da Rua do Hospício n.100. É composta de duas partes, com dezesseis capítulos cada
uma. A primeira parte aborda conselhos relacionados aos deveres para com Deus, com a
família e a sociedade. Já a segunda, diz respeito aos deveres pessoais.

O livro é direcionado à instrução das crianças e destinado a ser lido por elas, por
esse motivo a autora afirma que ele foi escrito com objetivo de ensinar à puerícia numa
“linguagem persuasiva e fácil os deveres da civilidade”. Igrejas, colégios, jantares,
horário de dormir, são alguns cenários que merecem importância na narrativa da
professora. Ela adverte as crianças a terem respeito, reverência e educação nessas
situações.

Sempre permeando os diálogos, a autora introduz exemplos vividos ou não, que


possuem como modelos, crianças que são tomadas como “maus exemplos” de conduta,
pois não condiziam com os valores em voga naquele momento. O objetivo era deixar
esclarecido a distinção entre os modelos de comportamentos tipos como civilizados e os
que deveriam ser abandonados, por não condizerem com os ideais das luzes, rompendo
assim com um passado colonial de atraso.

Os manuais de civilidade apresentavam poucas variações semânticas, os preceitos


morais e as regras de etiquetas pouco se alteravam, assim como os locais que deveriam
ser respeitados e que exigiam a prática da civilidade. O cumprimento dessas normas
visava a conservação do lugar ocupado pela “boa sociedade”, bem como, deixar evidente
as distinções entre as classes.

Veremos que circulação das obras que compõe a coletânea de obras do tipo “faça
você mesmo” que incluem os manuais de civilidade, os almanaques, os avisos e em
especial, os manuais de medicina doméstica, foi impulsionada pela fundação da Imprensa

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

585
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Régia em 1808 que provocou o aparecimento de diversas de gráficas e livrarias. Entender


um pouco sobre processo de produção dos livros e das práticas de leitura no Brasil poderá
contribuir para uma melhor compreensão sobre o espaço que esse tipo de literatura
ocupou nos séculos XVIII e XIX.

O atraso nas artes gráficas no Brasil é frequentemente atribuído às proibições de


Portugal por não ser administrativamente necessária ou economicamente possível. A
ordem real de 6 de julho de 1747 preconizava para fins de censura toda a produção de
livros e qualquer tipo de impresso no Brasil, ficando essa restrita à Portugal.
(HALLEWELL, 1982; MOLINA, 2015). Hallewell, em um clássico estudo sobre a
história do livro no Brasil, aponta que a obsessão dos portugueses pelo isolamento da
colônia perpassa, sem dúvida, pelo receio de não permitir as influências estrangeiras, isso
significava não apenas o banimento de visitantes de outras nações, mas, também a
restrição ao acesso de navios de outras bandeiras por questões de segurança marítima. O
autor ainda acrescenta que um regime que não se preocupava em satisfazer as
necessidades da vida quotidiana dos colonos, certamente não iria atentar-se para
indigências literárias de além-mar (p.21). As restrições tinham o objetivo de evitar uma
possível propagação de ideias políticas progressistas e revolucionárias. (CARVALHO,
1999, p.83).

As obras sobre a colônia, a começar pela carta de Pero Vaz de Caminha, só foram
impressas anos depois. Dessa forma, o acesso aos livros em tempos coloniais só era
possível de forma legal por meio da importação de Portugal que tinha como obstáculos,
além de todos os trâmites burocráticos, os custos de transportes e a censura lusitana que
inicialmente era realizada por meio da Inquisição e mais tarde pela Real Mesa Censória
(AL FAR, 2006). Essas restrições tornavam o contrabando uma forma recorrente para
entrada de livros no país, canalizando assim, a fiscalização junto aos livreiros. Tais
restrições explicariam, dentre outros fatores, a existência de apenas duas livrarias durante
todo o período colonial.

Luiz Carlos Villalta (1997) destaca que os primeiros livros que chegaram em
terras brasileiras provavelmente vieram com os jesuítas juntamente com Tomé de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

586
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Souza291. As obras mais procuradas eram os manuais de confissão, os catecismos, uma


suma da doutrina cristã, o Flos sanctorum, obra sobre a vida dos santos, e outros de cunho
religioso, como as obras de doutrina. Entretanto, os títulos que tratavam de devoção
mística e ascética também tinham acolhida no meio da população. No meio rural
circulavam livros de sorte e também verifica-se a presença de livros de medicina na
Colônia encontrados nos registros de alguns testamentos.

Villalta faz uma importante observação a respeito de inventários e autos da


devassa da Inconfidência das cidades de Diamantina, Mariana, Vila Rica e São João de
Rei. Segundo ele, a posse dos livros diferenciava-se de acordo com a categoria
profissional e a posição dos inventariados e inconfidentes, concentrando-se entre os
proprietários, funcionários públicos e letrados. O tamanho das bibliotecas não era
determinado pelas riquezas, mas sim, pelo nível intelectual e escolaridade de seus
proprietários, sendo os padres, advogados e cirurgiões os maiores possuidores de livros.
Em suma, havia uma relação entre a composição das livrarias e a condição social e ofícios
de seus proprietários.

Os proprietários de terras, em sua maioria, possuíam em sua biblioteca, obras


religiosas, como devocionais e liturgias. Em algumas delas, verificava-se a presença de
manuais didáticos, obras de literatura, história e medicina (p.362, 365). No que diz
respeito a essas últimas, acrescenta-se o uso que alguns fazendeiros faziam dos manuais
de fazendeiros, embora, a presença desse tipo de literatura seja mais notada no século
XIX. Esses compêndios serviam de guias para “os novos fazendeiros que andam a esmo
sem conhecer (...) a maneira de bem dirigir o seu trabalho” (WERNECK, 1985 apud
RODRIGUES, 2010, p.1). Exprimem, em certa medida, a preocupação com a
manutenção da ordem escravista, “e são frutos das experiências vividas por seus autores
no ofício de fazendeiro”(idem, p. 2). Segundo Rodrigues, esses manuais procuravam
seguir uma ordem lógica, tratavam particularmente de cada doença, suas causas e
tratamentos que quase sempre era uma solução higiênica. Prescreviam também um

291
O autor faz menção às primeiras remessas de livros que chegaram ao Brasil, provavelmente referindo-
se aos meios legais, pois, outros autores atestam a circulação de obras na Colônia que versavam sobre mais
variados assuntos, em sua maioria, consideradas de caráter subversivo.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

587
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

receituário, com seus medicamentos, doses, indicações e modos de usar (p.6). Dentre eles,
destacam-se O Manual do Agricultor Brasileiro (1839), de Carlos AugustoTaunay,
Memória sobre a Fundação de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro (1847), do
Barão de Pati de Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o Manual do Agricultor
dos Generos Alimenticios, de autoria do Padre Antonio Caetano da Fonseca (1863) e a
obra de Jean Baptiste Alban Imbert, O Manual do Fazendeiro (1834 e 1839).

O cenário literário começa a alterar-se a partir de 1808 com a chegada da família


real portuguesa para o Brasil, marcando assim, o início das atividades da imprensa no
país. Em 13 de maio de 1808 foi criada por decreto real a Imprensa Régia com o objetivo
de imprimir toda a legislação e papéis diplomáticos provenientes das repartições reais.
Pouco tempo depois, devido à ausência de outras tipografias no país e pela grande
demanda, o governo português permitiu o uso da Imprensa Régia para outros fins além
de documentos reais, assim, foram impressos em seus prelos textos literários e de
conhecimentos gerais. Além da documentação oficial, entre as obras impressas incluíam-
se títulos de jurisprudência, história, belas-letras (os elogios aos soberanos e os
romances), teologia, ciências, artes e periódicos. Foram também impressos livros
destinados aos cursos de medicina e aos da Academia Real Militar. Após 1821, órgão
passou a ser chamar Tipografia Nacional. Ainda nesse período, o fim do monopólio da
impressão realizada pela Coroa e a regulamentação da imprensa proporcionou a
instalação de tipografias particulares no Brasil tornando o livro um objeto mais presente
no cotidiano da população do país. 292

A relação da população do Brasil com a leitura durante a Colônia e parte do


Império baseava-se sobretudo, na oralidade e por uma indistinção entre público e privado.
A palavra falada era dominante e fazia parte das festas, diplomacia, das leis, das pregações
religiosas, “ reafirmando constantemente os laços sociais, impondo autoridade política
dos governantes, nutrindo o imaginário coletivo e trazendo a memória mitos e histórias
de domínio público” (AL FAR op cit, p.27). Com o advento da imprensa, a palavra escrita

292
Para mais informações sobre a Imprensa Régia, consultar o verbete “Impressão Régia” no site do
Arquivo Nacional, disponível em: http://linux.an.gov.br/mapa/?p=2733

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

588
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

propagou-se nos meios letrados, enquanto que a oralidade predominou sobretudo no meio
rural, entre artesãos e trabalhadores analfabetos e de baixa renda. O português
predominava nos espaços públicos e era aprendido pelos poucos indivíduos que
frequentavam escolas religiosas. Era utilizado nos documentos escritos e cerimônias,
dessa forma, seu caráter era mais propriamente oficial do que público. Entre a população
em geral, o idioma falado era o tupi, por isso até os Setecentos eram frequentes os pedidos
à Coroa para que enviassem padres que falassem a língua dos índios.

Até 1759, a Companhia de Jesus foi o principal meio de promoção da educação


formal, possuindo vários colégios voltados para a formação de clérigos e leigos. Além
das escolas jesuíticas também havia outras instituições religiosas de ensino, tais como, as
escolas beneditinas, franciscanas e carmelitas. No entanto, a Coroa ainda reforçava
dependência da Metrópole, promovendo os vínculos com a Universidade de Coimbra,
embora nos colégios já houvessem cursos superiores, o governo incentivava a ida de
brasileiros para a universidade.

Em linhas gerais, a educação no Brasil resumia-se em: aos homens ensinava-se a


ler, escrever e contar. Inicialmente, somente aos homens das classes mais abastadas
possuíam esse privilégio. Às mulheres eram ensinadas as atividades pertinentes ao meio
doméstico, como cozinhar, lavar, costurar, etc. Entre as classes mais altas, não havia uma
distribuição regular da instrução. Em Casa Grande e Senzala, Gilberto Freire declara que
até meados do século XIX, os filhos dos senhores de engenho do Nordeste costumavam
a ter suas aulas na própria casa-grande, ministradas muitas vezes por capelães ou mestres
particulares. À esses jovens, juntavam-se os escravos e agregados, na tarefa de aprender
a ler, escrever, contar e rezar (FREIRE,1981). No entanto, o analfabetismo imperava e
grande parcela da população ainda não tinha acesso à instrução até pelo menos metade
do século XIX. É o que podemos verificar na apresentação da obra Machado de Assis
Cronista, publicada originalmente em15 de agosto de 1876: “Publicou-se há dias o
recenseamento do Império, do qual colige que 70% da nossa população não sabem ler”;
“Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses 9% não leem letra
de mão”. Nesse sentido, o escritor tinha em mente, a triste realidade de que a leitura de
sua obra e de outros livros era um privilégio de poucos (ASSIS, 1979, p.344-5,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

589
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Apresentação apud FERREIRA, 2007, p.192-3). Embora, se verifique a presença de um


enraizamento das práticas de leitura a partir dos XVIII, através de uma presença maior
dos livros, bibliotecas, mobílias e objetos associados à arte de ler e escrever, essa prática
desenvolveu-se de maneira lenta e no espaço privado, constituindo uma prerrogativa das
classes mais altas, reproduzindo assim a ordem social e a ostentação como uma
característica identitária.

Em meio aos títulos presentes nas bibliotecas de algumas casas brasileiras


encontravam-se os manuais de medicina doméstica ou auto instrutivos já mencionados
aqui. Esses manuais satisfaziam em certa medida a necessidade de médicos onde sua
presença era praticamente inexistente. À essas obras recorriam donos de escravos,
senhoras, parteiras, curandeiros e curiosos. Dentre os manuais que tiveram maior
circulação no Brasil destacam-se:

Erário Mineral (1735) de Luís Gomes Ferreira, editado pela primeira vez em
Lisboa foi um dos primeiros tratados de medicina brasileira escrito em língua portuguesa.
A obra reúne as experiências do cirurgião-barbeiro na capitania de Minas Gerais, a
descrição das doenças, tratamentos e o inventário dos medicamentos mais utilizados na
época e suas respectivas funções. Outra parte importante do livro é a composta de
informações detalhadas obre a vida dos escravos: características, alimentação, hábitos,
doenças, trabalho e moradia, dentre outros aspectos. Escrito dentro de um ramo
considerado mais prático da medicina portuguesa desempenhando por cirurgiões,
parteiras, barbeiros, o autor ressaltou a experiência como a base tanto para a medicina
quanto para a cirurgia. (Erário Mineral, v. 1, p. 183).

Outra obra de grande alcance que segue o modelo auto instrutivo é Domestic
Medicine de Willian Buchan traduzido para o português em 1788 em 4 volumes como
Medicina Doméstica, ou Tratado de Prevenir, e Curar as Enfermidades com Regimento,
e Medicamentos Simplices. Foi considerado o primeiro manual de medicina popular a se
espalhar pelo Brasil já no século XVIII. Na obra, Buchan tinha como um dos principais
objetivos, assegurar que as pessoas instruídas tivessem o conhecimento dos “princípios
gerais da medicina, para que pudessem aproveitar aquelas vantagens com que está

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

590
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

adornada, e guardar-se ao mesmo tempo das destruidoras influências da ignorância, da


superstição e charlatanaria (BUCHAN, 1801, p.XXI apud MARQUES, 2004, p.40).
Porém, dentre aqueles manuais de grande tiragem e circulação estão os escritos pelo
médico polonês Pedro Luiz Napoleão Chernoviz, formado em Montpellier, na França em
1837. Logo após sua chegada ao Brasil em 1840 se associou à Academia Imperial de
Medicina, o que lhe trouxe logo êxito social e profissional. Lançou o Formulário ou Guia
Médico e o Dicionário de Medicina Popular, o primeiro dirigia-se aos iniciados na
medicina e o último, aos leigos, ambos, no entanto, ficaram conhecidos como “o
Chernoviz”. O Formulário apresentava uma descrição completa dos medicamentos ali
registrados, suas propriedades, doses e patologias na qual eles deveriam ser aplicados,
plantas e águas do Brasil, como formular as medicações, além de receitas úteis na
economia doméstica (GUIMARÃES, 2004, p.5). Já com relação ao dicionário, a autora
destaca a sua inegável serventia doméstica pela utilidade dos assuntos escolhidos que
foram apresentados de forma simples e acessível ao público geral. Ao lado de cada
doença, órgão ou medicamento apresentado, a obra trazia uma descrição detalhada.
Ambas as obras alcançaram grande repercussão, produzindo diversas edições ao longo do
século XIX e no ano de 1904 o Dicionário de Medicina Popular já se encontrava em sua
14ª edição, utilizada amplamente pela comunidade médica, por fazendeiros, boticários,
práticos de saúde, entre outros.

Dentre os manuais de significativa circulação no Brasil e em Portugal produzido


em finais do XVIII, elegi a obra Tratado de Educação Física para Uso da Nação
Portuguesa de 1790 de Francisco de Mello Franco por tratar-se de uma obra de referência,
pois é apontado como o primeiro manual lusófono de puerícia. Mello Franco é
considerado como um dos principais representantes da medicina luso-brasileira dos finais
do século XVIII, pois, suas obras, incorporam as teorias médicas vigentes naquele
momento que privilegiavam temas como a moral, a higiene e a educação física, além de
seu nome estar frequentemente associado ao reformismo português. Médico de grande
influência na Corte, compôs a junta médica que avaliou D. Maria I, rainha de Portugal,
declarando-a incapaz de exercer o seu reinado, devido à problemas mentais. Em 1817
chegou ao Brasil juntamente com a comitiva de D. Leopoldina, Arquiduquesa da Áustria.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

591
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Entre as suas obras estão, além da analisada aqui, Medicina Teológica (1794), Elementos
de Higiene (1814) e Tratado sobre as Febres do Rio de Janeiro (1829).

O Tratado de Educação Física para Uso da Nação Portuguesa é sinalizado como


o primeiro manual dedicado exclusivamente à puerícia escrito em língua portuguesa,
indicado para a leitura de profissionais e leigos. A obra trata de um tema bastante em voga
que emerge na medicina dos setecentos e que irá se estender até o início do século XX: a
preocupação com os cuidados relativos à criação das crianças. O livro é dividido em doze
capítulos que se inicia já com os cuidados destinados às gestantes e transcorre pelos
principais temas relativos a infância: a primeira assistência que deve ser dada aos bebês,
banhos, vestimenta, alimentação, incluindo o debate sobre as amas de leite, e por fim os
exercícios indicados as crianças mais velhas.

Para o médico, os cuidados ou a educação física das crianças deve se iniciar não
apenas no momento do seu nascimento, mas no “primeiro momento do seu ser”, ou seja,
no ato da concepção. Isso significa, que os cuidados devem se iniciar assim que a mulher
ter conhecimento de sua gravidez. É por meio do comportamento da mãe que o destino
da criança será traçado. Assim, como outros autores de seu período, bem como nos
manuais de medicina doméstica posteriores, Mello Franco acredita que a sensibilidade
feminina se torna aumentada durante a gravidez, portanto, a mulher deve ter cuidado na
alimentação, dedicar mais tempo ao sono e ao descanso, pois esses constituem os
melhores calmantes que se podem prescrever para a sensibilidade dos nervos. A violência
das paixões deve ser evitada, assim como, todas as situações de tristeza, cólera ou até
mesmo a alegria excessiva (p.7,10).

O tratado aborda questões relevantes presentes nos finais dos XVIII e que
perpassará todo o século XIX, como a associação da saúde com os princípios
preconizados pela ciência higiênica e o debate sobre a amamentação. De acordo com ele,
o ar puro, os locais abertos influenciam ou contribuem para a conservação da vida animal.
Dessa forma, as pessoas, sobretudo as grávidas, devem procurar, as ruas largas e limpas,
os bairros elevados, as casas distantes dos cemitérios e de fábricas que infectem o ar com
a emanação de suas substâncias. Já com relação à alimentação da criança, o autor faz

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

592
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

menção de forma enfática que o único alimento recomendado para o recém-nascido é o


leite materno. Nenhum outro é aconselhável para um estômago ainda em formação.
Afirma que todas as mães são obrigadas a criar seus filhos, alegando que o leite de uma
ama mercenária além de não ser o leite próprio da mãe é grandemente contaminado por
moléstias que serão transmitidas aos bebês. Outro ponto importante é que Mello Franco
também acreditava na transmissão das características morais da pessoa para a criança
através do leite. Sendo assim, o caráter futuro da criança dependeria muito da qualidade
do leite que ela iria ingerir nos primeiros meses (p.42).

O Tratado de Educação Física dos Meninos para Uso da Nação Portuguesa


reflete as inquietações de uma época em que a preocupação com a “saúde dos povos”
transformou-se em uma prática pedagógica e preventiva. A obra ainda introduz outra
preocupação corrente naquele momento e que aponta para uma futura intervenção da
Higiene na vida social da cidade, como a atenção aos odores oriundos de locais tidos por
contaminados e que poderiam ser danosos para as gestantes, principalmente aos bebês,
exigindo assim, uma postura mais atuante dos poderes públicos.293 Bruno Barreiros
(2014) sinaliza que os fenômenos da degenerescência dos indivíduos de despovoação
dos territórios nacionais foram na Europa uma das grandes inquietações coletivas que
presidiram às propostas higienistas mais ousadas.

Mello Franco estava inserido nesse debate ao apresentar pedagogicamente os


conselhos a respeito das precauções com relação aos ares, as vestimentas das mães e
crianças e os exercícios físicos. O desregramento dos corpos juntamente com a confusão
de uma cidade pútrida seria certamente um empecilho para o aperfeiçoamento das
espécies. Para Ricardo Cabral de Freitas (2017), o aparecimento dos manuais de educação
infantil estava inserido num contexto de progressiva intervenção do discurso médico
sobre os hábitos privados das populações que enxergavam a insalubridade das cidades
como um processo de degeneração da espécie humana. Dessa forma, a medicina se volta

293
A respeito das novas sensibilidades olfativas que se tornaram preocupação na Europa do século XVIII,
conferir o trabalho de CORBIN, Alain. Saberes e Odores. O Olfato e o Imaginário Social nos Século XVIII
e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

593
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

para a intervenção direta sobre os hábitos individuais, como forma de reverter esse
processo degradante (p.76).
Os manuais de medicina doméstica, em destaque nessa pesquisa, constituíram um
meio de disseminação do conhecimento médico oficial no meio da população dispersa
pelo imenso território nacional. Essas literaturas fizeram parte do cotidiano da casa-
grande, nos ranchos, nas boticas, permitindo o acesso de diversos sujeitos ao saber médico
legitimado pela academia.
Os manuais auto instrutivos, aqui apresentados brevemente, obtiveram nos finais
dos séculos XVIII e XIX uma significativa circulação. Inicialmente, atenderam às
necessidades de uma seleta elite letrada, porém, posteriormente, diversificaram os seus
temas, transformando-se em um objeto usual e de fácil acesso. Possivelmente, por se
tratar de obras de consulta que não necessitavam de uma leitura mais atenta do início ao
fim, isso contribuiu para a sua rápida popularização, além de, mais tarde tornaram-se mais
acessíveis com as modificações textuais, gráficas e materiais empregados pelos editores
a fim de facilitar a leitura e baratear o custo da impressão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes:

MELLO FRANCO. Tratado de Educação Fysica dos Meninos para Uso da Nação
Portugueza. Lisboa, [s.n], 1790;

NEVES, Guilhermina Azambuja. Entretenimento sobre os Deveres de Civilidade:


Collecionados para o Uso da Puerícia Brazileira de Ambos os Sexos. Rio de Janeiro,
Typografia Cinco de Março, 1875;

Bibliografia:

ABREU, Jean Luiz Neves. A Colônia enferma e a saúde dos povos: a medicina das ‘luzes’
e as informações sobre as enfermidades da América Portuguesa. História, Ciências, Saúde
– Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, n.3, p.761-778, jul.-set. 2007;

AZEVEDO, Aluísio. A Mortalha de Alzira. Rio de Janeiro, Garnier, 1903;

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

594
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CORBIN, Alain. Saberes e Odores. O Olfato e o Imaginário Social nos Século XVIII e
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
FAR, Alessandra El. Páginas de Sensação. Literatura Popular e Pornográfica no Rio de
Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004;

FREIRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Formação da Família Brasileira sob o


Regime da Economia Patriarcal. Rio de Janeiro: Editora Brasil América, 1981;

FERREIRA, Tania Maria Tavares Bessone da Cruz. Os Livros na Imprensa: As Resenhas


e a Divulgação do Conhecimento no Brasil na Segunda Metade do Século XIX. In:
CARVALHO, José Murilo de (org.). Nação e Cidadania no Império: Novos Horizontes.
Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007;

GUIMARÃES, Maria Regina Cotrim. Os Manuais de Medicina Popular de Chernoviz na


Sociedade Imperial. Cantareira, Rio de Janeiro, vol.1, n.5, Ano 02, Abr-Ago, 2004;

HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil: Sua História. São Paulo: EDUSP, 1975;

MARQUES, Vera Regina Beltrão. Instruir para Fazer a Ciência e a Medicina Chegar ao
Povo nos Setecentos. Varia História, Minas Gerais, n.32, julho/2004;

MOLINA, Matías M. A História dos Jornais no Brasil. Da Era Colonial à Regência (1500-
1840). Vol.1.São Paulo: Companhia das Letras, 2015;

RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A Distinção e Suas Normas: Leituras e Leitores dos
Manuais de Etiqueta e Civilidade- Rio de Janeiro, século XIX. Acervo, Rio de Janeiro,
v.8, n.1-2, jan-dez/1995;

RODRIGUES, Kassia. Os Manuais de Fazendeiros, o Governo dos Escravos e a medicina


no Século XIX. XIV Encontro Regional da ANPUH-Rio, Memória e Patrimônio, Rio de
Janeiro, 19 a 23 de julho de 2010;

VILLALTA, Luiz Carlos. O que se Fala e o que se Lê: Língua, Instrução e Leitura. In:
MELLO e SOUZA, L. (Org.). História da Vida Privada no Brasil. Cotidiano e Vida
Privada na América Portuguesa. Companhia das Letras, vol.1, 1997;

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

595
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

596
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Um órgão esdrúxulo”: a Comissão de Urbanização de Araruama no período


liberal democrático (1945-1964)

CÁSSIO RICARDO HIPÓLITO DA SILVA CAMPOS


Programa de Pós-graduação em História – UFF - CAPES

Este artigo procura compreender o contexto que possibilitou a continuidade


durante a maior parte do Período Liberal Democrático (1945-1964) de um instrumento
instituído dentro do Estado Novo: a Comissão de Urbanização de Araruama. Este órgão,
criado pelo decreto-lei n° 668 de 28 de dezembro de 1942, tinha o objetivo de realizar um
plano de urbanização traçado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro para cidade de
Araruama no inicio da década de 1940.
A extinção desta Comissão se daria apenas pela lei n° 4.708, de 28 de junho de
1961 – ou seja, somente após vigorar e intervir, de maneira controversa, na autonomia
administrativa de Araruama por mais de 15 anos durante o regime democrático. Este caso
suscitou debates à época acerca da constitucionalidade desta Comissão, o que nos fez
pensar as condições dentro do sistema político partidário brasileiro na chamada República
Liberal-Democrática que permitiram essa continuidade.
Buscamos analisar as relações potencialmente conflituosas entre o poder
Legislativo e Executivo no âmbito estadual e municipal, a importância decisória das
instâncias de poder local e regional, além das alianças e coligações partidárias mais
relevantes. Pretendemos, a partir desta abordagem, mostrar facetas pouco ou nunca
estudadas, suas implicações, articulações e debates gerados nas esferas estadual e
municipal.

CONTINUAÇÃO NA TRANSFORMAÇÃO?

Durante todo o período do Estado Novo (1937-1945), o interventor do Rio de


Janeiro, Ernani do Amaral Peixoto, manteve como prefeito na cidade de Araruama o
Capitão da Guarda Nacional Antônio Joaquim Alves Branco. Popularmente conhecido
como “Antonino”, ele era proprietário de extensas terras no município
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

597
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(VASCONCELLOS, 1998) e mantinha relações pessoais com o então interventor


fluminense (CAMARGO, et al., 1986).
Criada em 1942 com o objetivo de promover obras de melhoria na cidade, a
Comissão de Urbanização de Araruama tinha o prefeito como integrante, além do
Secretário de Viação e Obras públicas do Estado do Rio de Janeiro – Hélio de Macedo
Soares – como presidente, e um engenheiro escolhido pelo governador fluminense. Tais
melhorias visavam urbanizar e promover o município à condição de local turístico e, para
tal, Antonino vendeu ao Estado algumas de suas terras para a construção de um hotel
cassino de alto padrão, batizado de “Parque Hotel de Araruama” (SOARES, 1997, p. 4).
A Comissão promoveu a abertura, calçamento e alargamento de rua e avenidas, aterrou
parte da laguna Araruama para criar uma orla, melhorou o sistema de água e luz na sede
do município, além de outras obras e serviços, como uma linha de ônibus de Niterói à
Araruama e a promoção da venda de terreno na cidade (VASCONCELLOS, 1998).
Durante o período do Estado Novo, as disputas políticas entre elites locais em
Araruama foram reconfiguradas, visto que não havia eleições e o prefeito era escolhido
pelo interventor do Estado. Porém, isso não impediu ou apagou os antigos embates,
construídos ainda na Primeira República: neste município, a família Vasconcellos era
inimiga histórica do Prefeito Alves Branco. A manutenção de Antonino no Poder
Executivo municipal por Amaral Peixoto durante todo o Estado Novo serviu para acirrar
ainda mais as desavenças políticas.
Estas disputas foram conduzidas a um nível que se estendia para além do âmbito
local por ocasião da conjuntura em que se esboçava um processo de abertura política e o
retorno do pluripartidarismo em 1945. Novas eleições para Presidência da República,
Senado Federal e Câmara dos Deputados foram fixadas para o dia 02 de dezembro
daquele mesmo ano. Para entender essa transição política, acreditamos ser necessário
compreender melhor a formação dos principais partidos políticos no período, assim como
suas relações com as elites locais em Araruama.
O Partido Social Democrático (PSD) foi fundado em 17 de julho de 1945 por
antigos interventores do Governo Federal nos estados, como o Almirante Ernani Do
Amaral Peixoto no Rio de Janeiro. Segundo Lucia Hippolito, o PSD foi um forte partido
de centro político-ideológico, o qual garantia sua força através do poder eleitoral que lhe
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

598
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

conferia uma maioria parlamentar confortável, atraindo para si alianças com outros
partidos e permitindo-lhe interferir na dinâmica do processo político (HIPPOLITO,
2012).
O PSD foi fundando com intuito de criar instrumentos para que a elite dominante
durante o Estado Novo pudesse conservar sua influência política, fundamentalmente
apoiada pelo eleitorado do interior dos Estados (HIPPOLITO, 2012).
Para Delgado, “Transformação e permanência seriam elementos que se confundiriam na
conformação da máquina partidária pessedista” (DELGADO, 1989, p.28).
No momento de formar os diretórios regionais, o PSD teve que negociar com
antigos chefes locais em busca de adesão. A condição para alguns se unirem ao partido
dos interventores, muitas vezes, foi afastar os inimigos políticos locais do poder. Este foi
o caso na cidade de Araruama: a condição dada pela família Vasconcellos para se filiar
ao PSD foi o afastamento do antigo inimigo político, Antônio Alves Branco. Com a
negação do pedido por parte de Ernani do Amaral Peixoto (CAMARGO, et al., 1986, p.
235), os Vasconcelos foram impelidos a fazer parte do partido de oposição ao legado do
getulismo: a União Democrática Nacional.
Construída fundamentalmente como partido aglutinador daqueles que faziam
oposição à Vargas, a União Democrática Nacional (UDN) foi fundada em 07 de abril de
1945 sob a égide do liberalismo e da democracia. A UDN agregou diversos setores que
se colocavam como opositores do regime do Estado Novo, como as oligarquias
destronadas com a revolução de 1930, os aliados de Getúlio marginalizados depois de
1930 e 1937, os que participaram do Estado Novo que se afastaram antes de 1945, os
grupos liberais com uma forte identificação regional e as esquerdas (BENEVIDES,
1981).
Os Vasconcellos, em Araruama, faziam parte daquele grupo que aderiu à União
Democrática Nacional por pertencer justamente “às oligarquias destronadas com a
Revolução de 1930”, visto que esta família e seus aliados detiveram os principais cargos
políticos no município durante grande parte da Primeira República (VASCONCELLOS,
1998). A negação ao pedido de afastamento dos antigos inimigos precipitou a polarização
política em Araruama, que se tornaria um reduto tradicionalmente udenista durante todo
o período da república pós-45 (VASCONCELLOS, 1998).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

599
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Outro partido que viria a ganhar importância gradativa ao longo deste período foi
o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) (HIPPOLITO, 2012, p. 27-28). Fundado em
setembro de 1945, tinha como principal base o eleitorado urbano-industrial contemplado
pela legislação trabalhista, vinculado a sindicatos. O PTB teria a difícil função de
aglutinar diferentes categorias de trabalhadores urbanos em torno do partido, legitimando
aos olhos dos trabalhadores, uma espécie de continuidade na transformação.
Mesmo com toda a movimentação no sentido da abertura política, Getúlio Vargas
foi deposto em 29 de outubro de 1945. Nesta ocasião, foram substituídos os interventores
estaduais e os prefeitos de alguns municípios (FAUSTO, 1995). No Estado do Rio de
Janeiro, assumiu como interventor por curto espaço de tempo Alfredo da Silva Neves,
sucedido em 06 de Novembro de 1945 pelo desembargador Abel Magalhães. Em
Araruama, o Prefeito Alves Branco também foi deposto, assumindo o cargo de prefeito o
advogado Geraldo Goulart de Macedo Soares, filho do desembargador Julião de Macedo
Soares. A família Macedo Soares tinha longa história na política fluminense, com
vínculos profundos na cidade de Araruama: alguns de seus integrantes nasceram e/ou
iniciaram suas atividades profissionais naquela localidade, além de serem proprietários
de terras no município.
No pleito de 02 de dezembro, os principais candidatos à Presidência foram o
General Eurico Gaspar Dutra por uma aliança entre o PSD e o PTB, e o Brigadeiro
Eduardo Gomes, pela UDN e por alguns partidos menores. Dutra recebeu apoio de Vargas
nos últimos instantes da eleição, vencendo com ampla margem. Em relação à Câmara dos
Deputados e Senadores, o PSD, seguido da UDN, obteve a maioria das cadeiras
parlamentares nesta eleição. Desta forma, podemos perceber que não houve um desmonte
da máquina do Estado Novo que, sem dúvida, muito ajudou para este desfecho eleitoral
(FAUSTO, 1995, p. 399).
Com a nomeação do Comandante Lúcio Martins Meira para a interventoria
fluminense, o ex-prefeito Antonino Alves Branco retornou ao controle do Executivo
Municipal de Araruama. O mandato de Antonino, assim como o do interventor Lúcio
Meira duraram até poucos dias depois da promulgação da nova Constituição brasileira
em 18 de Setembro de 1946, através de uma Assembleia Constituinte formada por
deputados e senadores eleitos pelo povo.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

600
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Logo após a promulgação de nova Constituição, o estado do Rio de Janeiro


assistiu à posse de outro interventor, o médico e militar Hugo Silva. Este nomeou como
prefeito de Araruama, pouco depois de sua posse, um integrante da família Vasconcellos:
o médico Rubens Vasconcellos Lessa. Rubens pediu exoneração do cargo em março de
1947 – um mês após a posse do novo interventor fluminense, Álvaro Rocha, que finalizou
o mandato em fevereiro de 1947. Neste intervalo, tivemos dois prefeitos nomeados para
exercer a prefeitura da cidade: Joaquim do Couto Pfeil, até setembro de 1947, e João
Batista de Bragança, que permaneceu no cargo até a posse do novo prefeito eleito em 11
de outubro de 1947 (VASCONCELLOS, 1998). Estes dois últimos cidadãos também
eram aliados políticos dos Vasconcellos, pertencendo a famílias tradicionais no
município.
A constituição de 1946 também restabeleceu os cargos de governador, prefeito e
vereadores escolhidos diretamente pelo povo. Em janeiro de 1947, foi empossado o
engenheiro e militar Edmundo de Macedo Soares como governador eleito pelo Estado do
Rio de Janeiro, apoiado por uma coligação entre o PTB, a UDN e o PSD. Neste mesmo
ano, foi também empossado no cargo de Deputado Estadual pelo Estado do Rio de
Janeiro, o ex-secretário de Viação e Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro, irmão
do governador eleito, o também militar e engenheiro Hélio de Macedo Soares. Hélio foi
apoiado pelo PSD, sendo o Deputado mais votado naquele pleito (CENTRO DE
PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA, 2017). Além
de a família Macedo Soares ter ocupado diversos cargos públicos e políticos durante todo
o século XX, os irmãos Edmundo e Hélio também tinham raízes no município de
Araruama, pois a mãe deles, Dona Elisa de Macedo Soares, era nascida nessa cidade, e o
avô de ambos, Antônio Joaquim de Macedo Soares, foi advogado e juiz em Araruama,
chegando ao posto de Ministro do Supremo Tribunal Federal (SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, 2017). Hélio foi integrante e presidente da Comissão de Urbanização de
Araruama, idealizador de diversos projetos que integravam o plano de urbanização da
Cidade (VASCONCELLOS, 1998).
A constituição do Estado do Rio de Janeiro, de 20 de junho de 1947, estabeleceu
o dia 28 de setembro de 1947 para eleição de novo prefeito e onze vereadores para
Araruama. Neste pleito, o médico Renato de Vasconcellos Lessa foi escolhido prefeito
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

601
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

naquele município (VASCONCELLOS, 1998). Membro da tradicional família


araruamense, Renato Vasconcellos foi eleito pela legenda da UDN juntamente com seu
irmão Rubens Vasconcellos, ocupando o cargo de Vereador em Araruama. O tio de
ambos, João Vasconcellos, foi eleito Deputado Estadual pelo Rio de Janeiro, também pela
legenda da União Democrática Nacional, sendo um dos signatários da nova constituição
do Estado (VASCONCELLOS, 1998, p. 130). Todos os integrantes da família
Vasconcellos eleitos em 1947 – Renato, Rubens e João – eram médicos e exerciam a
profissão junto à população carente de Araruama. João Vasconcelos havia também
exercido o cargo de prefeito de Araruama no mandato de 1924-1927. É importante
resaltar que, desde a criação da figura do prefeito em Araruama na década de 1920, todos
os chefes do executivo municipal desta cidade haviam sido, até a Revolução de 1930,
parentes ou aliados políticos dos Vasconcellos (VASCONCELLOS, 1998).
O fato de obter maioria de representantes na Câmara dos Deputados da
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) possibilitou o PSD escolher como
líder nessa casa o Deputado Hélio de Macedo Soares. Amaral Peixoto contou que, apesar
de ter apoiado Dutra e Edmundo de Macedo Soares na campanha para Presidente e
Governador, estes foram progressivamente se afastando depois de eleitos, até romperem
com o ex-interventor fluminense. Porém, o irmão do Governador, Hélio, continuou a
manter relações com Amaral Peixoto, que lembrou:

Eu fiz líder do PSD na Assembleia o Hélio de Macedo Soares, irmão


do Edmundo e meu grande amigo. Numa conversa em palácio, já as
coisas meio estremecidas, o Hélio disse: “Eu sou o juiz entre vocês dois.
Se um agir mal em relação ao outro, fico do lado contrário.” Ele sentiu
que o Edmundo agiu mal comigo e ficou do meu lado até o fim.
(CAMARGO, et al., 1986, p. 235).

O Afastamento de Amaral Peixoto parece ter aproximado o Governo Estadual e


Federal do executivo Araruamense em uma aliança que duraria até pouco antes das
eleições de 1950. As alianças interpartidárias eram “em grande parte produto de
disposições legais, que praticamente compelem os partidos à coligação. As táticas de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

602
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

alianças é que diferem, pois estas obedecem a critérios flagrantemente políticos”


(HIPPOLITO, 2012, p. 61). Essas alianças são fruto de negociações que ocorrem dentro
congresso, o que acaba por dar grande importância ao legislativo quanto à estabilidade
dos regimes democráticos (HIPPOLITO, 2012).
O Acordo interpartidário de 1948 reuniu o PSD, a UDN e o PR (Partido
Republicano) em uma grande aliança que permitiu ao presidente Dutra governar
praticamente sem oposição. Para a UDN, a possibilidade de poder participar do governo
era muito interessante. A derrota do brigadeiro Eduardo Gomes em 1945 já tinha feito os
udenistas repensarem seu discurso e aceitarem participar do governo Dutra logo após os
trabalhos da Assembleia Constituinte, com a participação em alguns ministérios
(BENEVIDES, 1981).
Importante detalhe deste acordo interpartidário foi a exclusão do PTB. Com isso,
Dutra poderia ter maior controle sobre a sucessão presidencial, afastar o PSD da
influência de Vargas e garantir governabilidade, visto que esta coligação alcançava 83,8%
da Câmara dos Deputados (HIPPOLITO, 2012).
Como moeda de troca para as coligações, o PSD utilizava algumas comissões
técnicas que eram divididas proporcionalmente em função do número de cadeiras
ocupadas pelo partido na Câmara. Munido da liderança da Câmara e do Senado, o PSD
mantinha para si, na Câmara dos Deputados, a presidência das duas comissões mais
poderosas do legislativo: a de Constituição e Justiça e a de Orçamento. A Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara tinha como atribuição “examinar, em primeiro lugar,
todos os projetos propostos pelos deputados ou pelo Presidente da República para
determina-lhes a constitucionalidade” e a Comissão de Orçamento “apreciava as emendas
ao orçamento da união, determinando, em última instância, a alocação de recursos para a
realização de obras nos municípios, entre outras despesas” (BENEVIDES, 1981, p. 77-
78). Acreditamos que a presidência dessas duas Comissões na ALERJ foi fundamental
para a manutenção da Comissão de Urbanização de Araruama durante a maior parte do
regime democrático, visto que um de seus principais idealizadores, Hélio de Macedo
Soares, além de líder na Assembleia fluminense, tinha grande prestígio e influência por
ser o deputado mais votado no período e irmão do governador do estado do Rio de Janeiro.
Nestas comissões da Câmara dos Deputados seria possível impedir, por exemplo, que a
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

603
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Comissão de Urbanização de Araruama fosse considerada inconstitucional, ou que lhe


faltassem recursos financeiros para promover as obras naquele município fluminense.

“METIDO ENTRE O PODER ESTADUAL E O PODER MUNICIPAL: UM ÓRGÃO


ESDRÚXULO”

Em 24 de Julho de 1948 foram inauguradas 40 casas em Araruama com a presença


do Presidente Dutra, do Governador Edmundo de Macedo Soares e do Prefeito Renato
Vasconcellos, entre outras autoridades. As casas foram construídas através da “Fundação
da Casa Popular”, órgão federal promotor de uma política popular de habitação. Apesar
desta aparente aproximação entre os araruamenses udenistas e os seus novos “aliados”
pessedistas, a intervenção Estadual no município começaria a causar atritos casa vez
maiores. O Deputado João Vasconcellos leu na tribuna da ALERJ um telegrama
endossado pelos 06 vereadores udenistas de Araruama, denunciando “arbitrariedades
praticadas pelo delegado João de Albuquerque”, que estaria praticando “desmandos”
como chefe da polícia local (Diário Carioca, 16 de junho de 1948). Tal delegado foi
indicado para Araruama pelo líder da maioria da câmara, Hélio de Macedo Soares. A
matéria de capa do Jornal “Diário da Noite” noticiava que

o ambiente político fluminense estava em sombria expectativa devido à


insistência do líder da maioria, Coronel Hélio de Macedo Soares, em
não deixar que seja publicado no “Diário Oficial” o ato do secretário de
segurança, assinado por ordem do governador, transferindo o delegado
de polícia de Araruama para Cabo Frio (...)(Diário da Noite, 28 de julho
de 1948).

A transferência, assinada pelo secretário de segurança há 08 dias, já havia sido


enviada à imprensa, mas foi impedida de ser publicada pelo líder pessedista. A matéria
indica ainda que o governador Edmundo Macedo Soares reiterou a transferência do
delegado para os udenistas e para o desembargador Ivair Nogueira Itagiba. Novamente a

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

604
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

transferência foi divulgada no expediente da secretaria de segurança e para a imprensa


local, porém, mais uma vez, foi impedido de ser publicado pelo Deputado Hélio de
Macedo Soares. Este atrito entre os irmãos Macedo Soares dava indícios de que as
alianças partidárias eram frágeis e efêmeras, ainda mais quando o líder pessedista na
Câmara detinha o poder de fazer as nomeações do executivo estadual em Araruama,
recinto majoritariamente udenista. A nomeação do escrivão interino da delegacia de
Araruama teria desagradado aos udenistas da cidade, visto que, segundo afirmou o
deputado João Vasconcellos, o cidadão seria “analfabeto e ladrão”, pois teria ficha
criminal por roubar “apetrechos de cabeleireiro” no valor de 04 mil cruzeiros em Niterói
(Diário da Noite, 07 de agosto de 1948).
O Deputado João Vasconcellos leu na tribuna da ALERJ um telegrama enviado
pela bancada udenista de Araruama ao Governador, denunciando “espancamentos”
praticados pelo escrivão e soldados na delegacia municipal. Como tais atos ficaram
impunes, os vereadores anunciaram que não mais iriam à Câmara municipal enquanto
não houvesse segurança para o exercício do mandato (Diário Carioca, 17 de agosto de
1948). Com o título “Contra um secretário do Governa a UDN fluminense”, o Jornal
“Diário da Noite” relatou que o Secretário de Segurança e pessedista Luiz Pinto foi
“violentamente atacado” em discursos dos deputados da UDN “em virtude das
declarações que fez sobre as violências policiais ocorridas em Araruama”. O Secretário
havia alegado que o ocorrido no município não passava de um caso de polícia de menor
importância, enquanto os udenistas sustentavam motivações políticas (Diário da Noite,
19 de Agosto de 1948). Nos dias seguintes, e ao longo do mês de setembro, diversas
matérias foram publicadas no “Diário da Noite” onde o Deputado João Vasconcellos
solicitava, por intermédio da ALERJ, informações acerca do andamento do processo
judicial contra o escrivão interino de Araruama.
É no jornal “Diário de Notícias” do dia 08 de Outubro de 1948 que encontramos
pela primeira vez uma menção do Deputado João Vasconcellos à Comissão de
Urbanização de Araruama, requerendo este ao Secretário de Viação do Estado que

informasse por que preço foram adquiridas as instalações de luz elétrica


da Vila de São Vicente de Paula, Distrito de Araruama, bem como se

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

605
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

esse serviço é feito por conta da Comissão Central de Macabú, ou por


conta da Comissão de Urbanização de Araruama. (Diário de Notícias,
08 de Outubro de 1948).

As duas comissões citadas pelo deputado João Vasconcellos – A Comissão de


Urbanização de Araruama e a Comissão Central de Macabú – tinham características muito
específicas em comum: ambas haviam sido idealizadas durante o Estado Novo sob o
comando direto do então Secretário de Viação e Obras públicas do Estado do Rio de
Janeiro, o atual deputado Hélio de Macedo Soares. Além disso, estas duas comissões
continuavam a atuar em pleno período democrático. Atacar esses órgãos era uma forma
de atacar o próprio líder da câmara, visto que ele ainda mantinha influência sobre estas
comissões. Além disso, o Deputado João Vasconcellos quis saber, por intermédio da
Assembleia Fluminense, “quantos são os funcionários da Comissão de Urbanização de
Araruama, e qual o nome dos referidos funcionários, com a discriminação dos cargos e
vencimentos” (Diário da Noite, 17 de Novembro de 1948).
Mesmo com o início de crise entre o líder do PSD e o Deputado Udenista de
Araruama na ALERJ, obras continuaram a ser inauguradas no município. Manchete do
“Diário de Notícias” anunciava um novo posto telefônico na cidade que “virá a facilitar
os meios de comunicação entre este município e o distrito federal, bem como a capital do
Estado” O prefeito Renato Vasconcellos presidiu a solenidade com “a presença de altas
autoridades” (Diário de Notícias, 12 de Dezembro de 1948). Ironicamente, parecia que a
comunicação entre o Legislativo Municipal de Araruama e o Legislativo do Estado do
Rio de Janeiro apresentava cada vez mais ruídos.
É na edição do “Diário Carioca” de 28 de Janeiro de 1949 que encontramos pela
primeira vez notícia sobre a “proposta de extinção da Comissão de Urbanização de
Araruama”, enviada à ALERJ por uma indicação aprovada pela Câmara Municipal de
Araruama. Essa recomendação, transcrita nas páginas do jornal, afirma que a Comissão
consome a verba anual de 500.000 cruzeiros, “sem nada ter produzido de útil ao povo
daquele município” (Diário Carioca, 28 de Janeiro de 1949). Além disso, “a existência da
referida Comissão atenta contras as garantias asseguradas ao município pelo artigo 28,
inciso II, letras ‘a’ e ‘b’ da Constituição Federal e pelo artigo 85, inciso II, letras ‘a’ e ‘b’

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

606
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

da constituição do Estado”. Por fim, afirma que a Comissão, criada para executar “o
plano mandado organizar pelo Estado” tem “atribuições catalogadas (...) que entram em
conflito com a dos poderes municipais” e que

Não se compreende, pois que, com evidente cerceamento da autonomia


do município, ainda exista a mesma comissão, que deve ser
imediatamente extinta. Trata-se de um órgão esdrúxulo, com
atribuições inconstitucionais, metido entre o poder estadual e o poder
municipal (Diário Carioca, 28 de Janeiro de 1949).

A mensagem apresentada pelo Governador Edmundo de Macedo Soares à ALERJ


em 15 de Março de 1949 (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO, 1949), dedicou duas páginas inteiras a explicar o que era a Comissão de
Urbanização de Araruama, o seu orçamento detalhado do ano anterior, bem como
algumas de suas atribuições e estratégias para fazer uma gestão mais eficiente do erário
público a ela destinado. Foram descritas as melhorias empreendidas pelo Serviço de Água
de Araruama (administrado pela Comissão) na conservação, substituição e ampliação dos
tubos da adutora, citando especificamente a construção de uma linha distribuidora para o
abastecimento das 40 casas construídas pela “Fundação da casa popular” inauguradas
pelo Presidente Dutra. Também foi mencionada a conclusão de uma residência e o início
de outra que completa o Parque Hotel, a continuação de sua escadaria, a feitura de
diversos levantamentos e demarcações e a conservação dos “imóveis pertencentes ao
patrimônio Estadual”. A mensagem informa que o Parque Hotel foi “arrendado à
Sociedade Comercial e Imobiliária Arcampo Ltda pelo prazo de 05 anos”, tendo “toda
conservação do imóvel e dos jardins que o circundam” passado à contratante. Assim, “o
Estado ficará aliviado de uma despesa que pesava anualmente no orçamento da C.U.A.”.
Por último, a mensagem do governador informa que o Serviço de ônibus Araruama-
Niterói, criado por conta da “escassez de transportes durante a guerra”, deixaria de existir.
É interessante perceber que a retórica utilizada pelo Governador Macedo Soares
nessa mensagem se baseia na ideia de que a Comissão de Urbanização de Araruama
administraria basicamente o “Patrimônio Estadual” no município, mantendo uma série de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

607
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

serviços que beneficiavam diretamente a população local. Em nenhum momento a


questão da autonomia municipal foi mencionada, pois a “C.U.A.” era entendida como um
órgão técnico que buscava tornar mais eficiente os benefícios que provinha ao povo. Se
analisarmos a discriminação da receita de 1948 para os “trabalhos deste órgão”, ficará
evidente a tentativa de expô-la como um custo relativamente baixo para o Município,
visto que dos 975.500,00 Cruzeiros disponibilizados no ano de 1948, apenas 3.500,00
provinham de taxas municipais e 500.000,00 do auxílio do Governo Estadual. O resto da
receita era resultado da venda de terrenos pertencentes ao Estado no município, da renda
da pedreira e da olaria também administrados pela Comissão (ASSEMBLEIA
LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1949, p. 129).
Coincidência ou não, um dos parágrafos desta mensagem do Governador à ALERJ
também fazia menção à Secretaria de Segurança do Estado, que por conta de seu
“aparelhamento precário”, estaria de “par com velhas concepções”, que

induzem as autoridades investidas nas funções policiais a praticarem,


por vezes, erros e arbitrariedades. Não tem faltado o Governo o dever
de puni-las, quando são funcionários, nem de demiti-las, quando
exercem o cargo graciosamente e a título precário; não se deixará,
entretanto, surpreender pelos que usam as armas da democracia para
destruí-la; pelo que clama contra as autoridades, porque elas os
impedem de praticar abusos; e pelos que se proclamam vítimas, quando,
de fato, são infratores da lei (ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1949, p. 10).

Este trecho do texto parece fazer referência ao tão noticiado “caso de Araruama”,
envolvendo espancamentos na cidade, supostos abusos por parte de agentes policiais
indicados por políticos e até um cabeleireiro furtado. A mensagem do governador foi
direcionada à ALERJ em um momento em que as discussões se exaltavam entre as
bancadas dos partidos e, sobretudo, entre políticos que acreditavam ser necessário
garantir suas influências locais e regionais no estado do Rio de Janeiro.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

608
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A crise que se instaurou na Assembleia Fluminense por conta de conflitos


municipais e estaduais anteriores ao Estado Novo, acabou se acirrando por conta de
mecanismo criados durante a ditadura varguista, que agora se distendiam até a República
Liberal-Democrática. Os questionamentos sobre os conceitos de “constitucionalidade” e
de “democracia” seriam discutidos durante bastante tempo por ambos os lados destas
disputas, profundamente influenciados por períodos históricos anteriores a eles. Estes
embates constituíam diferentes projetos de futuro não só para suas localidades e regiões,
mas também um projeto para todo o Brasil.

Periódicos

Diário Carioca
Diário da Noite
Diário de Notícias
O Principal

Referências Bibliograficas

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Mensagem


apresentada pelo Governador Edmundo de Macedo Soares e Silva à ALERJ a 15 de
Março de 1949. Niterói, Imprensa Estadual, Divisão de Obras, 1949.
BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o Udenismo: Ambiguidades do
liberalismo brasileiro. Rio de Janeiro, Terra e Paz, 1981.
CAMARGO, Aspásia; HIPPOLITO, Lucia; D’ARAÚJO, Maria Celina Soares;
FLAKSMAN, Dora Rocha. Artes da política: diálogo com Ernani do Amaral Peixoto.
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986.
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA
CONTEMPORÂNEA. Verbetes biográficos. Disponível em: <http://www.fgv.br/
cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/helio-de-macedo-soares-e-silva > . Acesso
em 03 de Fev. de 2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

609
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. PTB: do Getulismo ao Reformismo (1945-


1964). São Paulo, Marco Zero, 1989
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo, Edusp, 1995.
FAUSTO, Boris. A vida política. In: Olhando para dentro (1930-1964). Volume 4.
Madrid e Rio de Janeiro, Fundación Mapfre e Objetiva, 2013.
GOMES. Angela de Castro. População e Sociedade. In: Olhando para dentro (1930-
1964). Volume 4. Madrid e Rio de Janeiro, Fundación Mapfre e Objetiva, 2013.
HIPPOLITO, Lucia. De Raposas e Reformistas: o PSD e a experiência democrática
brasileira (1945-64). 2° edição. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2012.
INSTITUTO BRASISLEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA. Anuário Estatístico
de Brasil. Rio de Janeiro, serviço gráfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, 1947.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o sistema
representativo no Brasil. São Paulo, Alfa-Omega, 1975.
SOARES. Emmanuel de Macedo. Araruamando: os Corte-Real. O principal, Araruama,
p. 4, 22 mar. 1997.artigos/GT/GT2/tc2% 20 (34).pdf>. Acesso em 22 abr. 2014.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ministros. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/ministro
/verMinistro.asp?periodo=stf&id=154> Acesso em 27 de abril de 2017
VASCONCELLOS, Sylvio Lamas de. Apontamentos sobre Araruama. 1° edição.
Araruama, Alves Pereira editores, 1998.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

610
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Sistemas e redes de atenção à saúde no Brasil: Seu processo de construção e


heranças político-institucionais (1950-1990)

CHRISTIANE DE ROODE TORRES


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde/COC/Fiocruz

Introdução

Há uma carência de estudos que tomem historicamente o processo de construção


doutrinária, técnica e política das redes de saúde no Brasil. Compreender tal processo de
construção pode se apresentar como uma forma de se lançar luzes sobre os eventuais
constrangimentos e tendências para a conformação de redes e sistemas de saúde no Brasil
contemporâneo. Com isso não se quer dizer que seu processo de construção seja linear,
mas que há de se imaginar elementos de ruptura e continuidade históricas que, em seu
conjunto, conformam experiências exitosas e não exitosas no terreno da organização da
saúde pública brasileira. Em termos práticos, embora sejam inegáveis e representativos
os avanços alcançados pelos movimentos político-sociais da segunda metade do século
XX, que configuraram o cenário necessário que resultou na criação do SUS, torna-se cada
vez mais evidente a dificuldade em superar a intensa fragmentação das ações e serviços
de saúde e qualificar a gestão do cuidado no contexto atual. O modelo de atenção à saúde
vigente fundamentado nas ações curativas, centrado no cuidado médico e estruturado com
ações e serviços de saúde dimensionados a partir da oferta tem se mostrado insuficiente
para dar conta dos desafios sanitários atuais e insustentável para os enfrentamentos
futuros. O cenário brasileiro caracterizado pela diversidade de contextos regionais com
marcantes diferenças socioeconômicas e de necessidades de saúde da população entre as
regiões, agravado pelo elevado peso da oferta privada, seus interesses e pressões sobre o
mercado na área da saúde demonstra a complexidade do processo de constituição de um
sistema unificado e integrado no Brasil. A relevância de aprofundar o processo de
regionalização e de organização do sistema de saúde sob a forma de redes, redirecionando
suas ações e serviços no desenvolvimento das RAS, é capaz produzir impacto positivo
nos indicadores de saúde da população. Experiências têm demonstrado que a organização
de RAS tendo a APS como coordenadora do cuidado ordenadora da rede, se apresenta

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

611
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

como um mecanismo de superação da fragmentação sistêmica, sendo apontadas como


mais eficazes, tanto em termos de organização interna, quanto à sua capacidade de fazer
face aos atuais desafios do cenário socioeconômico, demográfico, epidemiológico e
sanitário (MENDES, 2010).

Materiais e método

Este trabalho compreende uma revisão não sistemática da literatura com análise
histórica das políticas e forças setoriais da saúde no Brasil, buscando reconstruir as bases
para o surgimento e desenvolvimento do conceito de Redes de Atenção em Saúde, tendo
como recorte temporal o intervalo contido entre os anos 1950 e 1990, no que concerne à
experiência brasileira, porém com paralelos na discussão internacional concernente.
A partir de pesquisa e seleção de fontes primárias, busca-se uma análise
aprofundada, à luz de contribuições do marco teórico do neoinstitucionalismo histórico
das arenas institucionais e das relações específicas entre diferentes atores políticos que
desempenharam papéis relevantes para as sucessivas configurações adquiridas pelas
políticas de saúde e o sistema de saúde brasileiro. O objetivo central do
neoinstitucionalismo histórico é construir uma teoria de médio alcance que estabeleça
uma ponte entre análises centradas no Estado e na sociedade, enfocando variáveis de nível
intermediário para dar conta da variação histórica e conjuntural dos fenômenos. Vários
estudos de política comparada de base institucionalista ilustram como a incorporação de
atores e os procedimentos definidos para ordenar as representações de interesses atuantes
na arena política formatam as opções políticas das nações para seus sistemas de saúde
(IMMERGUT, 1992; GIAIMO, 2001; GEVA MAY, 1999). Esses procedimentos
incluem grupos distintos de atores e excluem outros, e explicam por que alguns grupos
ganham, enquanto outros perdem (IMMERGUT, 1992). A incorporação de atores ou
grupos sociais informados por interesses específicos é ditada pelo arcabouço
institucional. Ao longo de processos de negociação, atores participantes da arena política
tendem a optar por formatos de políticas que contemplem seus interesses ou,
minimamente, criem ou mantenham abertas janelas de oportunidade para ganhos futuros
(IMMERGUT, 1992, 1998). Para uma melhor compreensão das políticas estatais no caso
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

612
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

do Brasil, devem ser estudadas, principalmente, as articulações entre os referenciais e


mediadores setoriais encontrados em cada análise, os atores estatais relevantes e os
capitalistas presentes no setor e na sociedade, sendo que em muitos casos, se chegará à
conclusão de que existe complexa articulação entre eles.
No que tange às conexões internacionais ou à emergência de noções e conceitos
com implicações organizacionais para a saúde pública brasileira, os processos históricos
estudados na pesquisa envolvem a produção e circulação de ideias, conhecimentos,
enunciados programáticos, assim como a sua aplicação prática sob a forma de políticas e
programas, tanto no âmbito da atuação de organismos internacionais, quanto da
organização e prestação de serviços de atenção à saúde, seja pelos Estados nacionais, seja
pelas esferas infraestatais como estados e municípios. Desta forma, pretende-se alcançar
uma sistematização do conhecimento existente e produção de conhecimentos originais.

Resultados e discussão

Uma vez que o escopo desta pesquisa engloba a análise histórica dos movimentos
sócio-políticos que ocorreram no Brasil no período de 1950 a 1990, no que tange a
emergência, construção e desenvolvimento das RAS, vale frisar que o contexto do pós-
guerra representou, em âmbito internacional, uma gradual reviravolta em termos de
propostas e de realização de inovações no terreno da gestão dos assuntos da saúde pública.
O próprio conceito de “saúde” passaria por importante revisão que, de um lado, envolveu
importante crítica à sua estrita dimensão biológica e, de outro, passou crescentemente a
apontar para uma ampliação de seu significado e alcance. Nesse amplo contexto brotarão
diversas, e nem sempre conectadas, experiências no campo da organização da assistência
e da saúde pública brasileira (NUNES, 1994; CUETO, 2015). Com a queda de Vargas
em outubro de 1945, a eleição de Eurico Gaspar Dutra e a promulgação de uma nova
constituição em 1946, o país inicia um período de 19 anos de experiência democrática. A
saúde pública conta com a intensificação de uma estrutura mais centralizada, com
programas e serviços verticalizados para implementar campanhas e ações sanitárias.
Diversos programas de controle e erradicação das “doenças tropicais” atraiam o interesse
de instituições nacionais e internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS),
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

613
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), o Fundo das Nações Unidas para a


Infância (Unicef) e a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
(FAO). A partir do Pós-Guerra, estes organismos multilaterais especializados em saúde,
teriam um papel importante na discussão sobre rede e sistema de saúde.
No cenário nacional, a 3ª Conferência Nacional de Saúde (1963) foi realizada na
cidade do Rio de Janeiro, com a finalidade de examinar a “situação sanitária nacional e
aprovar programas de saúde que, se ajustando às necessidades e possibilidades do povo
brasileiro, concorram para o desenvolvimento econômico do país” (Brasil, 1980). Embora
tenha sido considerada uma “reunião administrativa” na qual foram aceitos para discussão
apenas documentos apresentados por órgãos da administração pública, as proposições e
a organização da conferência foram norteadas pela ideia de introduzir técnicas de
planejamento ascendente do setor da saúde, ou seja, dos municípios para os estados e
destes para o nível federal, e a incorporação dos municípios numa rede básica de serviços
médico-sanitários (GIOVANELLA, 2012). Em meados da década de 70, em um cenário
de crise política e econômica iminente do governo militar, começou a se definir novas
estratégias para manter o governo, dentre elas a elaboração do II Plano Nacional de
Desenvolvimento (II PND) e a política de abertura do governo. O II PND foi um plano
quinquenal voltado ao desenvolvimento econômico e social, o qual continuava
ideologicamente orientado pela visão do “Brasil Grande Potência”. Ainda assim, foram
incluídas algumas prioridades no campo social: educação, saúde e infraestrutura de
serviços urbanos. O diagnóstico apresentado para a saúde pública e, inclusive, para a
assistência médica da previdência denunciava a carência de capacidade gerencial e
estrutura técnica, o que reduzia a eficácia dos recursos públicos a elas destinadas. Para
fazer frente a esses desafios, o governo criou o Conselho de Desenvolvimento Social
(CDS), à semelhança do Conselho de Desenvolvimento Econômico e o Ministério da
Previdência e Assistência Social (MPAS). O regime precisava lançar mão de políticas
sociais para a sua legitimação, por isso investiu, canalizou recursos e priorizou projetos
nestes setores. No entanto, não tinha quadros para ocupar todos os espaços abertos e
terminou por criar espaços institucionais para pessoas de pensamento contrário, senão
antagônicos, ao dominante em seu setor. Por esta brecha, lideranças do movimento
sanitário entraram na alta burocracia estatal, na área da Saúde e da Previdência Social
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

614
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(ESCOREL, 1998), ocupando espaços importantes de poder decisório e causando


pressões por reforma na política de saúde que possibilitaram transformações concretas
ainda nos anos 70, ainda que incipientes e resguardando os interesses do Estado
autoritário. Dentre as políticas implementadas, segundo Baptista (2003), destacam-se: a
criação do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), em 1974, que distribuiu
recursos para o financiamento de programas sociais; a formação do Conselho de
Desenvolvimento Social (CDS), em 1974, que organizou as ações a serem implementadas
pelos diversos ministérios da área social; a instituição do Plano de Pronta Ação (PPA),
em 1974, que constituiu em uma medida para viabilização da expansão da cobertura em
saúde e desenhou uma clara tendência para o projeto de universalização da saúde; a
formação do Sistema Nacional de Saúde (SNS), em 1975, primeiro modelo político de
saúde de âmbito nacional que desenvolveu imediatamente um conjunto integrado de
ações nos três níveis de governo; a promoção do Programa de Interiorização das Ações
de Saúde e Saneamento (PIASS), em 1976, que estendeu serviços de atenção básica à
saúde no nordeste do país e se configurou como a primeira medida de universalização do
acesso à saúde; a constituição do Sistema Nacional da Previdência e Assistência Social
(SINPAS), em 1977, com mecanismos de articulação entre saúde, previdência e
assistência no âmbito do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), e a
criação do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS),
que passou a ser o órgão coordenador de todas as ações de saúde no nível médico-
assistencial da previdência social.
Na segunda metade da década de 70, foram criados o Centro Brasileiro de Estudos
em Saúde (CEBES) e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
(Abrasco), organizações que sobrepujaram seu papel acadêmico e desempenharam
importante papel na luta do movimento sanitário, como interlocutores políticos nas arenas
de discussão e formulação de políticas de saúde (LIMA, SANTANA E PAIVA, 2015).
Já no âmbito internacional, a reunião de Alma-Ata (1978) teve também importante
destaque na discussão sobre a reestruturação dos sistemas de saúde segundo a lógica de
redes de atenção. Os reformistas buscavam a universalização do direito à saúde, a
unificação dos serviços prestados pelo INAMPS e a integralidade das ações. No Brasil,
crescia o debate sobre o direito à saúde, em um sentido mais amplo. Portanto, o direito à
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

615
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

saúde significava a garantia de condições dignas de vida e de acesso universal e igualitário


às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação em todos os níveis, assegurado
pelo Estado (ESCOREL, 1998).
A década de 80, governo Figueiredo (1979-1985), iniciou em clima de
redemocratização, mas com crise política, social e institucional do país, tendo como
primeiro passo a realização da 7ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) com o propósito
de reformular a política de saúde e formular o Programa Nacional de Serviços Básicos de
Saúde (Prev-Saúde), que visava uma extensão nacional do PIASS, ou seja, dotar o país
de uma rede de serviços básicos que oferecesse, em quantidade e qualidade, os cuidados
primários de proteção, promoção e recuperação da saúde, tendo como meta a cobertura
de saúde para toda a população até o ano 2000 (Conferência Nacional de Saúde, 1980).
Tinha como seus pressupostos básicos a hierarquização das formas de atendimento por
níveis de complexidade, a integração dos serviços existentes em cada um dos níveis de
complexidade, seja na rede pública ou privada, e a regionalização do atendimento por
áreas de populações definidas. Entretanto, não passava de uma proposta de investimento
no nível primário de atenção, que não tocava na rede hospitalar privada, e o Prev-Saúde
acabou não sendo incorporado pelo governo e muito menos estabelecido na prática, dadas
as resistências burocráticas assentadas no INAMPS, a forte oposição das entidades do
segmento médico empresarial e ainda as pressões oriundas do campo da medicina liberal
e do setor privado contratado (CORDEIRO,1991). Tais fatores contribuíam para que o
Prev-Saúde não se concretizasse, tornando-se um projeto “natimorto”, e como tal,
permaneceu como padrão das reformas sanitárias desejadas pela sociedade, mas jamais
atendidas pelo governo. Essas ideias reformistas começavam a se integrar em uma
proposta abrangente de definição da política de saúde e assim sendo, surgiram os
movimentos de contestação ao sistema de saúde. A primeira medida tomada foi a
formação do Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciário (Conasp),
em 1981, como órgão do Ministério da Previdência e Assistência Social. O Conasp
deveria buscar respostas concretas que explicassem a razão da crise no setor, devendo
operar como organizador e racionalizador da assistência médica buscando diminuir e
racionalizar gastos. A avaliação do Conasp determinou diversas alterações no modelo de
saúde até então vigente, como: inadequação de serviços à realidade, recursos financeiros
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

616
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

insuficientes, desvalorização dos serviços próprios e superprodução dos serviços


contratados. Essa avaliação indicava uma rede de saúde ineficiente, desintegrada e
complexa, indutora de fraude e desvios de recursos, e a partir dela foram elaboradas
propostas operacionais básicas para a reestruturação do setor, mas não para a finalização
do sistema. Dentre as propostas apresentadas, destacam-se: o Programa das Ações
Integradas de Saúde (PAIS), a Programação e Orçamentação Integrada (POI), o Programa
de Racionalização Ambulatorial (PRA) e o Sistema de Assistência Médico-Hospitalar da
Previdência Social (SAMHPS) (FIGUEIREDO NETO et al., 2010). O PAIS,
posteriormente denominado apenas Ações Integradas de Saúde (AIS), mostrou-se como
a principal saída para a universalização do direito à saúde e significou uma proposta de
“integração” e “racionalização” dos serviços públicos de saúde e de articulação destes
com a rede conveniada e contratada, o que combinaria um sistema unificado,
regionalizado e hierarquizado para o atendimento. A proposta resumia-se na assinatura
de convênios entre os INAMPS e os estados e municípios para o repasse de recursos
destinados à construção de unidades da rede com o compromisso dos governos de
oferecer assistência gratuita a toda a população e não só para os beneficiários da
previdência. Deste modo, as AIS recuperavam a estratégia apresentada no Prev-Saúde e
avançavam significativamente na conformação de políticas que levariam à reforma do
setor saúde, fortalecendo a coordenação de ações entre a união e os estados e a
incorporação do planejamento à prática institucional (FIGUEIREDO NETO et al., 2010).
Em 1985, o regime militar chega ao fim com a eleição indireta da chapa de
oposição, apoiada pela dissidência do próprio partido governista. O presidente eleito,
Tancredo Neves, falece antes de tomar posse, assumindo o governo, chamada Nova
República, o vice-presidente José Sarney. No setor econômico, o governo Sarney é
marcado pela hiperinflação, e lança planos monetários (Cruzado) buscando a estabilidade
e o crescimento econômico. No setor político, busca-se um equilíbrio entre as forças
vitoriosas sob a hegemonia dos políticos democratas e liberais (FIGUEIREDO NETO et
al., 2010). Com a chegada da Nova República, o plano das AIS foi retomado,
impulsionando, junto com uma nova POI, a reformulação do sistema de saúde visando
uma rede unificada. Líderes do movimento sanitarista passam a ocupar posições de
destaque no âmbito político-institucional no país, coordenando as políticas e negociações
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

617
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

no setor da saúde e previdência. Em decorrência disso, no ano de 1986, ocorreu a 8ª


Conferência Nacional de Saúde, presidida por Sérgio Arouca, então presidente da
Fundação Oswaldo Cruz. Esta conferência foi um marco histórico da política da saúde
brasileira, pois, pela primeira vez, contava-se com a participação da comunidade e dos
técnicos na discussão de uma política setorial. A conferência contou com a participação
de mais de quatro mil pessoas, evidenciando que as modificações no setor da saúde
ultrapassavam os limites de uma reforma administrativa-financeira. Existia a necessidade
de uma reforma mais profunda, com a aplicação do conceito de saúde e sua
correspondente ação institucional. Foi aprovada, por unanimidade, a diretriz da
universalização da saúde e do controle social efetivo de acordo com as práticas de saúde
estabelecidas, permanecendo as propostas de fortalecimento do setor público, garantindo
um direito à saúde integral. Na 8ª CNS, também se discutiu a unificação do INAMPS
com o Ministério da Saúde, devendo a Previdência Social ficar encarregada das ações
próprias do seguro social, enquanto que a saúde seria entregue a um órgão federal com
novas características. Sendo assim, foi aprovada a criação de um Sistema Único de Saúde
(SUS) com a separação total da saúde em relação à previdência. Entretanto, as propostas
da 8ª CNS não foram realizadas imediatamente, pois ainda havia a discussão acerca do
financiamento e a sobre a operacionalização do novo sistema de saúde.
Em julho de 1987, criou-se o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde
(SUDS), através de uma proposta do INAMPS/MPAS, que se apresentou como base na
construção do SUS. O SUDS avançou na política de descentralização da saúde e,
principalmente na descentralização do orçamento, permitindo uma maior autonomia dos
estados na programação das atividades do setor; deu prosseguimento às estratégias de
hierarquização e universalização da rede de saúde e retirou do INAMPS a soma de poder
que ele centralizava (VENÂNCIO, 2005), transferindo para os secretários estaduais de
saúde, que se tornaram os gestores principais. Ocorria ao mesmo tempo da
implementação do SUS, a discussão da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88,
tendo como base o relatório da 8ª CNS para discutir a reforma sanitária, e finalmente a
aprovação do SUS. O debate constituinte foi acirrado e revelou resistências por parte dos
prestadores de serviço privado do setor de saúde e da medicina autônoma, além de
conflitos de interesses entre os reformistas da previdência social. As disputas de interesse
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

618
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

não foram suficientes para barrar a aprovação do SUS e seus princípios, mas impediram
a definição de algumas políticas importantes para o processo de implementação da
reforma, tais como o financiamento, a regulação do setor privado, a estratégia para a
descentralização e unificação do sistema, dentre outras (FARIA, 1997).
Em 5 de outubro de 1988 é promulgada a oitava Constituição do Brasil,
denominada “Constituição Cidadã”, sendo um marco fundamental na redefinição das
prioridades da política do Estado na área da saúde pública. Ao longo de 1989, as
negociações se concentraram em torno da lei complementar que daria bases operacionais
para o SUS. Nesse mesmo ano, é realizada a primeira eleição direta para presidente da
República, assumindo a presidência em janeiro de 1990, Fernando Collor de Mello. Em
19 de setembro de 1990, foi aprovada a Lei Federal nº 8.080, a chamada Lei Orgânica da
Saúde (LOS), elaborada pela Comissão Nacional de Reforma Sanitária (CNRS), que
dispõe sobre as condições para a promoção, a proteção e a recuperação da Saúde. No
entanto, a legitimidade do processo constituinte e do movimento pela reforma sanitária
constitui-se na melhor garantia da operacionalização dos ideais dos SUS, ou seja, de seus
princípios e diretrizes. Ainda, o controle social foi assegurado pela Lei 8.142, de 28 de
dezembro de 1990, garantindo a participação social na gestão do SUS e
consequentemente, conquista dos cidadãos, que passaram a ocupar espaços estratégicos
dentro dos aparelhos do Estado.
O SUS é o resultado de um processo de articulação do Movimento pela Reforma
Sanitária e de diversas pessoas comprometidas com o reconhecimento dos direitos sociais
de cada cidadão brasileiro, ao determinar um caráter universal às ações e aos serviços de
saúde no País. A instituição do SUS, a partir da Constituição Federal de 1988, representa
um marco histórico das políticas de saúde em nosso país, uma vez que a atenção à saúde
passa a ser assegurada legalmente como direito fundamental de cidadania, cabendo ao
Estado a obrigação de provê-la a todos os cidadãos brasileiros e estrangeiros que vivem
no Brasil. Entretanto, este sistema demonstra estar fortemente ancorado em uma
necessária expansão da atenção primária saúde, que cresceu de modo desigual nos
diferentes estados brasileiros, em detrimento dos demais níveis de complexidade, em
grande parte realizados de forma precária, desconexa e carentes de estrutura física e
tecnológica. Enquanto isso, a medicina privada se fortaleceu, concentrou recursos
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

619
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

financeiros e tecnológicos, e passou a atender a parcela da população capaz de arcar com


o seu custo. De fato, o sistema ainda não garante a universalidade e integralidade do
cuidado, sendo necessária a reestruturação dos demais níveis de complexidade e a
organização de todos eles em sistema de redes de atenção em saúde reguladas e eficazes
com a APS, base do sistema, mas incapaz de absorver toda a demanda do setor.
Há que se mencionar, por fim, a quantidade de estudos, de base histórica, que
exploraram as diversas experiências, períodos e conformações da saúde pública no Brasil.
Uma historiografia que reúne trabalhos de historiadores do campo, boa parte deles
inserida na COC/Fiocruz, mas também envolve estudos realizados por outros analistas,
especialmente atores políticos do próprio campo das políticas de saúde. Esse conjunto de
estudiosos, contudo, até onde pudemos verificar, não foi capaz de produzir uma narrativa
que costurasse essas diversas experiências sob o enfoque do processo de desenvolvimento
de RAS e sistemas de saúde no Brasil: estudo que compreendesse suas eventuais
conexões, continuidades e rupturas históricas, bem como seu legado para o atual sistema
de saúde brasileiro.

Referências bibliográficas

BAPTISTA, T. W. F. Políticas de Saúde no Pós-Constituinte: um estudo da política


implementada a partir da produção normativa dos poderes executivo e legislativo
no Brasil. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: IMS / Uerj, 2003.

BRASIL. Constituição Federal de 1988, artigos 196 e 198.

BRASIL, Ministério da Saúde. Conferência Nacional de Saúde, 3ª, 1963. Relatório


Final. Brasília: Ministério da Saúde, 1980.

__________. Conferência Nacional de Saúde, 7ª, 1980. Relatório Final. Brasília:


Ministério da Saúde, 1980.

__________. Conferência Nacional de Saúde, 8ª, 1986. Relatório Final. Brasília:


Ministério da Saúde, 1987.

__________. Portaria nº 4.279, de 30/12/2010.

BRASIL, Presidência da República, Lei 8080 de 19/9/90.

CORDEIRO, H. O Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: Ayuri, 1991.


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

620
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

COSTA-E-SILVA, V.C.; RIVERA, F.J.U.; HORTALE, V.A. Projeto Integrar:


avaliação da implantação de serviços integrados de saúde no Município de Vitória,
Espírito Santo, Brasil. Cad. Saúde Pública, 23(6):1405-1414, jun, 2007.

CUETO, M. La “cultura de la sobrevivencia” y la salud pública internacional en


América Latina: la Guerra Fría y la erradicación de enfermedades a mediados del
siglo XX. Hist. cienc. saude-Manguinhos, vol.22, no.1, p.255-273, Mar 2015.

ESCOREL, S. Reviravolta na Saúde: origem e articulação do movimento sanitário.


Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.

FARIA, T. W. Dilemas e Consensos: a seguridade social brasileira na Assembleia


Nacional Constituinte de 1987/88 – um estudo das micro-relações político-
institucionais entre saúde e previdência social no Brasil. Dissertação de Mestrado. Rio
de Janeiro: IMS / Uerj, 1997.

FIGUEIREDO NETO, M. V.; SILVA, P. F.; ROSA, L. C. S.; CUNHA, C. L. F.;


SANTOS, R. V. S. G. O processo histórico de construção do Sistema Único de Saúde
brasileiro e as novas perspectivas. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 76, maio
2010.

GEVA-MAY, I. & MASLOVE, A. What prompts health policy change? On political


power contests and reform in health care system: the cases of Canada and Israel".
Journal of Health Politics, Policy and Law, 25 (5): 717-742, 1999.

GIAIMO, S. Who pays for health care reform? In Paul Piersen (ed.), The new politics
of the Welfare State, Londres, Oxford University Press, 2001.

GIOVANELLA, L.; ESCOREL, S; LOBATO, L. V. C.; NORONHA, J. C.;


CARVALHO A.I; organizadores. Políticas e sistemas de saúde no Brasil. 2ª Ed. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz/Centro Brasileiro de Estudos de Saúde; 1100p, 2012.

IMMERGUT, E. M.; The theoretical core of new institutionalism. Politics & Society,
26 (1): 5-34, 1998.

_______. Health politics interests and institutions in Western Europe. Londres,


Cambridge University Press, 1992.

LIMA, N. T.; SANTANA, J. P. & PAIVA, C. H. A. Saúde Coletiva: a Abrasco em 35


anos de história. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 324p, 2015.

MARQUES, E. C. Notas críticas à literatura sobre Estado, políticas estatais e atores


políticos. Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, n. 43,
p. 67-102, 1º. Semestre, 1997.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

621
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MENDES, E. V. As redes de atenção à saúde. Ciênc. Saúde coletiva, Rio de Janeiro, v.


15, n. 5, p. 2297-2305, 2010.

NUNES, E. D. Saúde coletiva: história de uma ideia e de um conceito. Saúde soc., São
Paulo, v. 3, n. 2, p. 5-21, 1994.

OPAS/OMS. Declaração de Alma-Ata. Conferência Internacional sobre Cuidados


Primários em Saúde. 1978. Disponível em: <http://www.opas.org.br>. Acesso em: 26 de
outubro de 2015.

VENÂNCIO, J. Textos de apoio em políticas de saúde. RJ: Fiocruz, 2005.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

622
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Uma problemática para o historiador: as fontes poéticas.

CINDYE ESQUIVEL VIEIRA


Mestranda no programa de pós-graduação em História da UNIVERSO

O intuito deste trabalho não é sanar problemas, tampouco, ter a presunção de


solucionar antigas discussões, o que se buscará nestas páginas é salientar as fragilidades
que vêm sendo encontradas ao decorrer da pesquisa e leituras da dissertação acerca do
papel histórico e poético de Carlos Drummond de Andrade no período do Estado Novo e
o que a poesia pode contar para nós historiadores. É necessário evidenciar que não será
tratado nesta comunicação objetivamente o Estado Novo, justamente porque gostaríamos
de usar a oportunidade para críticas referentes à parte metodológica e buscamos com isso,
construir um diálogo mais sólido visando compor a dissertação de forma mais coesa. As
questões aqui levantadas não são inéditas e nem haveria formas de ser, afinal, a poesia
faz parte da sociedade e como tal, tantas perguntas já foram direcionadas para versos;
Portanto, teremos questionamentos já feitos e os caminhos que estamos permeando para
tentar entendê-los.
O teor altamente subjetivo desqualifica a fonte? Seria o poeta consciente da crítica
que faz ou abusa da licença poética? Qual a utilidade da poesia para a História? A
cientificidade é inexistente no meio poético? Seria este um trabalho de Literatura e não
de História? A poesia é uma fonte pronta para nosso uso? Por que usá-la e não as escritas
em prosa? O que, afinal, extraímos dos versos?
Por mais que o intuito seja não limitar a poesia a este ou aquele período, achamos
que seria plausível não só justificar o interesse pelo uso da fonte poética bem como, ao
final, salientar motivos e expectativas de focar em Carlos Drummond de Andrade no
período pós Semana de 22. Com essa última observação encerramos os pró formes e
partimos, então, para a densidade sinestésica que é a poesia.

O Sensível e o método

O primeiro quesito a ser tratado é o da subjetividade X cientificidade. Muito se


ouve acerca da falta de consistência em escritos extremamente calcados em

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

623
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pessoalidades. Por vezes, levantaram-me preocupações como: “você não acha que a
escrita poética é algo muito inseguro para procurar fundamentação?”. Sim e Não. Sim, é
algo frágil de lidar pelas muitas entrelinhas. Não, pois como toda fonte é emissora de
discurso, Bloch já nos disse que ela só falará se questionada (BLOCH, 2001, p. 79), então,
a fragilidade não mora, necessariamente, na natureza do escrito e sim na forma que se
pretende fazê-la falar.
O significado histórico de um verso não está atrelado ao que foi de fato escrito em
tal linha e sim na forma com que foi dito, porque foi dessa forma e não de outra, a
metáfora usada teve fundo crítico ou estético, o verso entrou em circulação ou ficou preso
na censura e etc.? Eis, então, o método de análise que o pesquisador não pode burlar; não
nos interessa uma poesia solta e nem apenas o contexto da criação deve ser estudado.

[...] os historiadores, ainda que também possam elegê-las como centro


de atenção, devem compreendê-las em seus contextos históricos e
sociais, o que requer a consulta a outras fontes da época. Toda fonte
pode ser legítima na medida em que contribua para o entendimento do
objeto específico de estudo e se tenha em conta sua natureza: política,
econômica, científica, religiosa, artística, técnica ou outra. É preciso,
contudo, estar atento aos ambientes socioculturais do período analisado
para se evitar o tratamento anacrônico da fonte. (FERREIRA, 2015, p.
91)

Reforçando mais uma vez que mesmo uma fonte jurídica ou oficial294 irá se tornar
discutível caso não seja submetida à uma averiguação metodológica eficaz,
independentemente de serem “imparciais” ou “estarem imunes ao discurso subjetivo”.
Neutralidade é algo que vai de encontro com a subjetividade e que cabe também, neste
tópico, um adendo.
Documento295 algum é feito sem intenção, a produção humana é feita mediante
motivação, seja por hobby ou informe. Logo, por que criticar a parcialidade de uma
produção se nem mesmo, nós enquanto pesquisadores, somos seres neutros? Ao
escolhermos um aspecto, e não outro, para abordar já impregnamos na nossa um “eu”.

294
Tidas no início do ofício do historiador como confiáveis e sólidas.
295
Com “documento” está em voga todo e qualquer objeto de apreciação crítica: arte, diário oficial, revista,
jornal e etc.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

624
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Os historiadores passam a reconhecer ser impossível aquela atitude de neutralidade


diante do objeto” (GRESPAN, 2015, p.294). Se nós não somos imparciais, a nossa fonte
não há de ser.
Formar expectativas em relação ao que será encontrado nos documentos
não só é inevitável como desejável, pois são as conjecturas que
orientam a própria pesquisa, permitindo a seleção do acervo onde
buscar as informações necessárias, e constituindo os critérios da coleta,
reunião e análise do material. Toda a experiência é construída pela
atividade do sujeito que a realiza. (GRESPAN, 2015, p. 294)

A flexibilização da racionalidade permitiu que déssemos chance a outros


documentos, outras fontes. Um pesquisador adepto da serialização, por exemplo,
possivelmente não vê de bom grado uma retratação da gente brasileira por Tarsila do
Amaral, mas certamente dará crédito ao censo do mesmo período. Por que não unir
ambos? Uma análise que se atenha puramente a critérios racionais e quantitativos está
condicionada à limitação de interpretação do objeto,

A admissão de que o método não é neutro, de que o sujeito constrói o


conhecimento e de que não há uma objetividade pura tem levado,
muitas vezes até mais longe, revalorizando-se a subjetividade em seu
sentido mais amplo. Assim, assinala-se que nem tudo na pesquisa
histórica é estritamente racional [...] (GRESPAN, 2015, p. 297)

O mesmo pode ser feito com a poesia. Ao mesmo passo que acusam-na de
imprecisa, excluímos o poder de extração do historiador. Ao mesmo passo que acusam-
na de ser feita de pormenores, excluímos o saber do historiador de que um texto não é
composto apenas pela sua superfície. Ao mesmo passo que acusam-na de falar por
floreios e metáforas, excluímos “os entreditos, os interditos, os não-ditos, o vocábulo
revelador” (BARROS, 2002, p.140) passíveis de presença em qualquer documento. As
imperfeições não são exclusivas da poesia, tampouco as qualidades fogem dela.
Em um de seus estudos sobre a narrativa, Costa Lima escreve a seguinte nota:

A continuação da reflexão sobre as relações entre análise da literatura e


ciência, tal como mostram os artigos seguintes, levou-nos a negar a
necessidade deste enlace com a ciência. A análise do discurso literário
afasta-se da atividade científica porque não lhe é possível fazer

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

625
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

previsões sobre o comportamento do objeto e verifica-las. (LIMA,


1981, p. 197) 296

Respeitosamente atrevo-me a discordar em parte de tal sentença. Não há mesmo


a necessidade de tratar a Literatura com toques científicos, para muitos âmbitos, tratá-la
como um sopro de arte basta e cumpre a função. Contudo, negar a possibilidade desta
abordagem não parece correto. “Fazer previsão” entra no mesmo sentido de “criar
expectativas”297, quando analisamos, hoje, uma série de documentos de alforria, por
exemplo, sabemos o que esperar, afinal, conhecemos o fim da história. Quando tratamos
de documentos que não temos proximidade de contexto, todo “próximo papel” analisado
estará carregado de expectativas e previsões. Com a poesia, se conhecermos o âmbito
sociocultural no qual está inserida, a situação política, as condições de sua criação, em
qual esfera social o autor estava atuando, qual “casta literária” estava em vigor etc., assim
como os documentos de alforria, nós sabemos o que esperar. Resguardando a
impossibilidade de verificá-las junto à uma entrevista com seu autor, há outras formas de
compreender um discurso literário: o autor atuava em meios sociais? O que era dito
pelo/do autor? Os escritos públicos tinham o mesmo apelo dos particulares? Ele permeia
a alguma organização política? Ele escrevia sob marca de uma militância política? Com
todas essas perguntas não seria possível então, verificar o teor de um escrito literário?
Acreditamos que sim, as perguntas, o método, o questionamento, as recorrências de
temática e etc. são capazes de agregar valor científico à Literatura.

Quanto à ameaça que a ciência faria pesar sobre a liberdade e a


singularidade da experiência literária, basta, pra fazer-lhe justiça,
observar que a capacidade, proporcionada pela ciência, de explicar e de
compreender essa experiência, e de conferir-se assim a possibilidade de
uma liberdade real em relação às suas determinações, é oferecida a
todos aqueles que desejarem e puderem apropriar-se dela.
Mais legítimo seria talvez o temor de que a ciência colocando o amor
pela arte sob seu escalpelo, venha a matar o prazer e de que, capaz de
compreender, seja inapta para fazer sentir. (BOURDIEU, 1996, p. 13).

História e Literatura

296
Destaques originais do texto.
297
Tópico já mencionado anteriormente.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

626
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Áreas distintas? Sim. Áreas opostas? Não. É defendido aqui o que, hoje, não causa
tanta torcida de nariz: são áreas que dialogam, que possuem enlace, que podem formar
uma amálgama de análises. Se a História preocupa-se em estudar o homem e suas
mudanças através do tempo (BLOCH, 2001, p.54), a Literatura compõe uma forma de
expressão e participação individual dentro dessa mudança.

O decisivo, porém, é questionar a integridade do sujeito e do objeto: o


que a interdisciplinaridade impõe, mas que transcende a perspectiva que
a criou, é a redefinição completa e profunda dos campos do saber
delimitados ainda no século XIX, é a redistribuição do trabalho
intelectual. Sintomas dessa nova divisão, que já vem ocorrendo há
algum tempo, é a contínua multiplicação dos objetos históricos e,
consequentemente, das formas de estudá-los. (GRESPAN, 2015, p.
296)

O que esperamos é a simbiose. É perfurar uma membrana finíssima atrás de um


material que compense. De forma alguma procura-se fazer um trabalho puramente
literário, a composição dos versos ou a estética modernista auxiliam a compreensão mas
não são o objeto. Também não há intensão de se ater numa narração factual. O proposto
é, portanto, uni-las e colocar um pé em cada lado da fronteira e explorar o que Jorge
Grespan chama de “indiscutível porosidade” (GRESPAN, 2015, p. 297) entre a História
e a Literatura.
É importante frisar também que tanto quanto a exclusividade das áreas está fora
de escopo, algumas vertentes estão fora de vontade de uso: a crítica literária e a história
literária. É uma verdade que usamos críticos para compor o arcabouço bibliográfico,
contudo, exercer a crítica literária para fundamentar a pesquisa está fora dos objetivos.
Não há animosidade para com os termos e nem suas práticas, porém, os valores
instituídos por ambos não apreciam as metas delimitadas para o estudo em questão. Não
é pretendido nem o serviço de julgamento da obra drummondiana, com a crítica literária,
tampouco, focar no contexto da obra de Drummond sem apreciá-la de forma intrínseca,
como na história literária.
Uma distinção extremamente necessária entre as áreas é o uso de um termo que
causa enorme desconforto: visionários à frente do seu tempo. Dizer que este é a única real

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

627
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

desconformidade epistemológica entre a Literatura e a História seria prematuro, inocente


e falho, já que há muitas questões a serem balanceadas, contudo, é uma gritante
dicotomia. A Literatura trata os “homens a frente do seu tempo” como aqueles que
precedem um dado movimento, estilo, posicionamento que virá a se tornar norma, neste
sentido, é sentida a necessidade de discordar. Historicamente, se um homem é visionário
não é por ser (quase) miticamente magnânimo e profético e sim porque ele esteve inserido
em um contexto que propiciou a ele a oportunidade de desenvolver tal pensamento, ao
passo que os outros (não visionários) não usufruíram. Então o seu passo à frente se adequa
na oportunidade, no meio de inserção, momento político, profissão, formação e etc. O
homem será fruto do seu tempo, uns com mais outros com menos meios de se destacarem.
Num outro âmbito, temos a teoria literária e a história literária, já foi mencionada
a vontade de não recorrer a esta, enquanto aquela detém o oposto: bastante intenção de
uso.

Entretanto, mesmo que teoria literária e história literária tenham sido,


na maior parte de suas corporificações, alérgicas uma à outra, parece
difícil negar que as diferenças entre as obras literárias sejam, pelo
menos em parte, históricas. Seria então legítimo indagar de qualquer
teoria - e de qualquer estudo literário – como ela explica essas
diferenças históricas, como as define, como as situa. Uma teoria –
inspirada, por exemplo, na linguística ou na psicanálise – pode recusar
a história como quadro explicativo da literatura, mas não pode ignorar
que a literatura tem, fatalmente, uma dimensão histórica. Por outro lado,
as duas questões, a da mudança em literatura e a da contextualização da
literatura não são necessariamente idênticas nem passíveis de serem
reduzidas uma à outra, mas é também impossível ignorar por muito
tempo a afinidade entre elas. (COMPAGNON, 2014, p. 196)

É interessante notar as dicotomias entre as áreas. As teorias ligadas à Literatura


tendem a não aceitar o parâmetro histórico como motivador de escrita. Já as teorias que
atendem à História acrescentam que o “achismo” literário não tem história o suficiente.
Não somente, mas principalmente, após o Modernismo ambas as constatações se tornam
falhas à sua maneira. "Reconhecer o novo sistema cultural posterior a 30 não resulta em
cortar as linhas que articulam a sua literatura com o Modernismo. Significa apenas ver
novas configurações históricas a exigirem novas experiências artísticas.” (BOSI, 2015, p.
411).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

628
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A arte (a poesia, inclusive) e a História possuem relações bem amarradas, como


Bosi já nos disse, e necessário que “o histórico entre para o literário e o literário entre
para o histórico” (BOSI, 2013, p.227). É necessário que vejamos pontes e não barreiras
intransponíveis entre o discurso literário e o histórico.

Verso e Prosa

Lidar com a fonte literária já é um obstáculo, escolher estudar historicamente


poesia é um leão por verso. Gostaria de dizer que a motivação da escolha foi racional e
embasada puramente no desafio mas seria desonesto; A escolha foi antes de mais nada
por apreço pessoal, a manutenção do tema (mesmo com todos os sinais de alerta) esta
sim, foi pelo desafio.
Foi dito inúmeras vezes em forma de incisiva sugestão que fosse trocada a poesia
pela prosa, sugestões não seguidas. O que causa desinteresse pela prosa é ver facilmente
ambientado o contexto em questão, quando Euclides da Cunha escreve em 1902 um
(excelente) livro intitulado “Sertões”, o leitor instintivamente busca referências mentais
que são capazes de dar liga ao livro antes mesmo de abri-lo. Já com a poesia é algo que
funciona como descascar cebolas, uma etapa por vez. Há indicações instantâneas de
qualquer forma? Sim. Caso pegue “Sentimento do mundo” numa prateleira e veja que foi
publicado em 1940, há também expectativa, contudo, na poesia há também a estética, a
formalização (ou não), o verso em decassílabo, as alternâncias de rima e etc., para servir
de evidência e pista da obra O poético mora até na separação das estrofes, bem como a
atenção nesse tipo de pormenor se faz crucial.
É inevitável que retornemos à questão do subjetivo, mas

De que se alimenta a poética formada pelos poemas mais entusiastas ou


menos? Da indagação do tempo, melhor dito, da constatação de que ele
é feito de restos. São esses restos, imagens minadas do que perdura, a
matéria-prima do poeta. (LIMA, 1989, p. 300)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

629
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O que seria a análise histórica se não um olhar minucioso em cima daquilo que
foi deixado na poeira do tempo? Inspiração para uns, objeto de pesquisa para outros. “O
princípio gerador de uma produção poética significa assim a configuração de um ângulo
pelo qual são filtradas as experiências trazidas ao papel.” (LIMA, 1989, p. 292)
Cândido escreve que “a criação literária corresponde a certas necessidades de
representação do mundo” (CANDIDO, 2006, p.65), contudo, faz-se necessário uma
respeitosa ressalva. Usar a poesia apenas como representação denota a sua total
dependência criadora a algo não intrínseco a quem escreve, não é afirmado aqui que o
contexto é fator formador de quem cria, mas não se pode delegar todo o motivo de uma
obra a fazer jus ao seu tempo de nascimento. São fatores que se mesclam.

O tempo não rói apenas os mortos; rói também (ou sobretudo?) o seu
sobrevivente. Dizer que o verso se destina à sua expiação seria falseá-
lo. O verso diz o que não se expia; que por isso sempre retorna. O verso
exige algo a que se conecte; uma esperança, um sentido, um além de
sua fatura. (LIMA, 1989, p. 298)

Costa Lima sintetiza bem o que Massaud Moisés esmiúça em alguns capítulos de
“A criação literária”. O texto literário possui poder de catarse, recorrendo à
atemporalidade e universalidade, afinal, o texto não literário e produzido para um fim
imediato, logo, perece com o tempo; já a poesia, por exemplo, evoca o drama humano
independente da época que seja lida. Uma sociedade por mudar intensamente, mas a
humanidade será sempre composta por um mix de dramas.
Em uma simbiose de Costa Lima e Bosi podemos dizer que a poesia não é mais
vista como um reconhecimento, mas como um ver novo, uma exigida demora, é através
dela que o considerado perdido pela máquina social, volta a ter corpo e alma, forma e
nome.298

Fonte ou Devaneio

Combinações de frases encontradas em “Dispersa Demanda”, de Luiz Costa Lima, na página 202 e em
298

“Entre a Literatura e a História”, de Alfredo Bosi, na página 16.


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

630
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Não só um em total exclusão do outro. A poesia, de forma geral, é um conceito


livre de ferrenhas normatizações acerca de seu princípio criador. Temos poemas299
etéreos mas “não há unidade, nem dentro nem fora, o umbigo que liga o poeta ao mundo
é feito de restos, cacos, fragmentos” (LIMA, 1989, p. 301) da realidade. Acusá-los de
puro devaneio pela forma ou pela literalidade300 é limitar a análise a uma “passada de
olho” superficial.

No entanto, o estabelecimento dos juízos estéticos não cabe numa


pesquisa histórica. É facultado ao historiador, isso sim, procurar
compreender como tais avaliações são constituídas no interior das
sociedades, de que maneira se formam e disseminam os gostos, como
repercutem no coletivo e permanecem ou não historicamente. Afora tal
propósito especifico, perseguido também pela Sociologia, devem
interessar à pesquisa históricas todos os tipos de textos literários, na
medida em que sejam vias de acesso à compreensão dos contextos
sociais e culturais: literatura maior ou literatura menor, escritos
clássicos ou não, eruditos ou populares, bem-sucedidos no mercado ou
ignorados, incensados ou amaldiçoados. (FERREIRA, 2015, p. 71)

Logo, a preocupação com o poema não é causa de desqualificação e mesmo a


poesia pode ser vista como produto e emissora de discurso da sociedade e portanto, é um
documento em potencial.

Não mais apenas as fontes institucionais e diplomáticas ou as crônicas


oficiais que praticamente ocupavam todas as expectativas dos
historiadores no século XIX – hoje qualquer texto pode ser constituído
pelo historiador como fonte [...] Não há mais limites para os tipos de
textos que podem servir como materiais para o historiador.
Houve uma mudança na postura do historiador para com estes textos.
Se antes os textos eram quase que exclusivamente utilizados como
‘testemunhos’ de ode os historiadores do século XIX procuravam
extrair informações mais ou menos diretas (na maior parte dos casos de
uma maneira ingênua que associava o documento histórico à ideia de
“prova”), hoje as fontes textuais são também utilizadas como
‘discursos’ a serem decifrados em si mesmos. (BARROS, 2002, p. 134)

299
A distinção entre poema e poesia é estrutural. Poema é a escrita feita em versos enquanto que poesia e
uma composição com aspecto subjetivo e sensível.
300
É o uso de recursos estilísticos.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

631
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Na impossibilidade de tomar as palavras de Compagnon como minhas, serão


transcritas como o escopo deste tópico:

O que você chama de literatura? Que peso você atribui a suas


propriedades especiais ou a seu valor especial?, perguntará a teoria aos
historiadores. Uma vez reconhecido que os textos literários possuem
traços distintivos, você os trata como documentos históricos,
procurando neles suas causas factuais: vida do autor, quadro social e
cultural, intenções atestadas, fontes. O paradoxo salta aos olhos: você
explica pelo contexto um objeto que lhe interessa precisamente porque
escapa a esse contexto e sobrevive a ele. (COMPAGNON, 2014, p. 22)

Carlos Drummond de Andrade

Como já dito acerca da escolha poética, gostaria de poder dizer que o principal
motivador foi racional, mas estaria faltando com a verdade, ainda mais em escolha do
poeta. Cabe a confissão de não ter sido a primeira escolha mas foi a segunda certeira.

Em suma, a passagem do tempo hoje nos mostra que, em seu livro de


estreia, Drummond era muito mais do que um principiante de talento
ou alguém que soubera fecundar a nova estética do modernismo.
Homem do interior, cuja experiência de vida se resumia ao trajeto
Itabira-Belo Horizonte, o poeta tivera por matéria-prima as mudanças
que o país sofria e que só agora plenamente conhecemos. (LIMA, 1989,
p. 291)

O apreço pelo elo poético mesclou-se com a paixão pela História. O ceticismo
político pessoal encontrou uma voz que dissesse o mesmo em forma de versos.
Drummond conquista o posto de intelectual que vale ser estudado, ele possui discurso
digno de ser avaliado. Não que outros não o tenham, mas quando Costa Lima salienta que

[...] conquanto enraizada em si mesmo, a ótica que comanda as tensões


da poética drummondiana é de ordem extra-individual. Sem se

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

632
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

reduzirem um ao outro, história e indivíduo mutuamente se interferem


e o que permanece, perdura sob perdas. (LIMA, 1989, p. 295)

convence ainda mais aquele que já tenha uma inclinação para esta escolha.
Antonio Celso Ferreira levanta que é comum que quando questionados os
pesquisadores que se debruçam sobre material literário, haja quase um uníssono que usa
como motivação o glamour deste ou daquele autor ou argumentos da crítica literária
(FERREIRA, 2015, p. 80), não foi este o caso. Em comum há, talvez, o afã pelo meio
poético, mas a escolha se ratificou depois de mais profundidade na documentação,
justamente por se tratar de um intelectual/poeta com discurso coeso e consistente, tanto
no âmbito da construção poética quanto na posição ocupada por Drummond no meio
político e intelectual.
Poderia ter recorrido a inúmeras outras fontes, poderia ter corrido da fragilidade
intrínseca do que é artístico, contudo, a Literatura levanta “questões sobre a qualidade de
vida num mundo onde a própria experiência parece perecível e degradada” (EAGLETON,
2005, p. 63). No fim das contas, “seja qual for o assunto escolhido pelo historiador, a
interpretação dos textos literários exige algo além do método: um modo especial de
sensibilidade, que só é possível alcançar quem gosta de ler esse tipo de escritos”.
(FERREIRA, 2015, p. 83).

Referências bibliográficas

BARROS, José D’Assunção. O campo histórico. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002.

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar,


2001.

BOSI, Alfredo. Entre a Literatura e a História. São Paulo: Editora 34, 2015.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2015.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura no campo literário. São Paulo:
Companhis das Letras, 1996.

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Editora Ática,
1989.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

633
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da Teoria: Literatura e senso comum. Belo


Horizonte: Editora UFMG, 2014.

EAGLETON, Terry. Depois da Teoria: um olhar sobre os Estudos Culturais e o pós-


modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

FERREIRA, Antonio Celso. A fonte fecunda. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA,
Tania Regina de. (orgs). O historiador e suas fontes. São Paulo: Editora Contexto, 2015.

GRESPAN, Jorge. Considerações sobre o método. In: PINSKY, Carla Bassanezi


(organizadora). Fontes Históricas. São Paulo: Editora Contexto, 2015.

LIMA, Luiz Costa. A Aguarrás do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

LIMA, Luiz Costa. Dispersa Demanda: ensaios sobre a literatura e teoria. Rio de Janeiro:
F. Alves, 1981.

MOISÉS, Massaud. A criação literária: poesia e prosa. São Paulo: Cultrix, 2012.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

634
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Diplomacia brasileira e saúde

CLARICE OLIVEIRA NEPOMUCENO


PPGHCS-FIOCRUZ

O conceito de saúde global pressupõe, incontornavelmente, uma perspectiva


fundamentalmente ampla. A premissa sustenta-se, particularmente, ao se considerar que
essa noção compreende a análise da pluralidade de atores envolvidos, da manifesta
interdependência entre Estados e, consequentemente, da necessidade de atuação conjunta
para a solução de problemas transnacionais em saúde. A saúde global pode ser definida
como:

[...] an area for study, research, and practice that places a priority on
improving health and achieving equity in health for all people
worldwide. Global health emphasises transnational health issues,
determinants, and solutions; involves many disciplines within and
beyond the health sciences and promotes interdisciplinary
collaboration; and is a synthesis of population based prevention with
individual-level clinical care. (KOPLAN et al., 2009, p. 1995)

Essa acepção ressalta a complexidade inerente ao tema, já que a saúde, nesse


sentido, é analisada sob o prisma transnacional, com desafios e questões que ultrapassam
fronteiras. A significância desse assunto é verificada não só nos crescentes debates em
fóruns multilaterais, mas também na esfera acadêmica, em que se constata o crescente
uso da expressão "saúde global" em detrimento do termo "saúde internacional"
(BROWN; CUETO; FEE, 2006). Importa, pois, o estudo desse processo de transição em
curso sob a perspectiva nacional, por meio da análise da literatura especializada brasileira
no assunto.
Para além da produção teórica, o Brasil também denota relevância no que se refere
a sua atuação diplomática. O comprometimento brasileiro com a defesa de políticas de
saúde em escala global é evidente. Além da proposição de iniciativas de cooperação
internacional em saúde, verifica-se essa disposição no discurso empreendido em
negociações mundiais.
Este trabalho faz parte de um projeto em desenvolvimento que tem por objetivo
precípuo a investigação da inserção do Brasil na temática da saúde global, assunto de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

635
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

importância fundamental no contexto internacional atual. Estruturalmente, o projeto


divide-se em dois eixos, um teórico e um prático. No primeiro eixo, serão analisadas as
publicações nacionais relacionadas ao tema a partir do ano de 1990, quando se verifica a
ascensão do tema de forma geral. No segundo eixo, tem-se por meta o exame da atuação
diplomática brasileira tanto por meio do discurso do governo em política externa, no que
se refere à saúde, quanto por meio da quantificação das iniciativas de cooperação em
saúde, em particular na sua forma horizontal, entre países em desenvolvimento, a
chamada cooperação Sul-Sul. Este trabalho, em particular, refere-se ao desenvolvimento
inicial de parte do segundo eixo do projeto, qual seja, a atuação da diplomacia brasileira
nesse âmbito.

Diplomacia brasileira e saúde

A diplomacia brasileira demonstrou significativa mudança após o fim da ditadura


militar no país. Com a redemocratização, buscou-se, gradativamente, maior inserção
internacional, em um movimento permeado por um salto qualitativo nas relações do
Brasil com o mundo. Nesse sentido, o Estado passaria por uma espécie de "renovação de
credenciais" (FONSECA JR., 1998), processo baseado em verdadeira inflexão.
Consoante essa ideia, a renovada atitude internacional cooperativa alteraria a imagem da
nação no exterior.
No decurso da década de 1990, o país denotaria inequívoco engajamento no que
se refere ao cenário internacional, tendo, entre outras medidas, sediado a Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em 1992, e aderido à
Convenção Americana de Direitos Humanos, ou Pacto de San José da Costa Rica, de
1969. Seria, em contrapartida, no início do século XXI, com a emergência do governo
Lula, que a ampliação da projeção internacional brasileira assumiria contornos mais
evidentes. Um dos marcos do período foi a abertura de expressiva quantidade de
representações diplomáticas brasileiras em várias nações, com especial atenção para os
países em desenvolvimento.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

636
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Como relevante inovação, ter-se-ia o aprofundamento de uma lógica de


solidariedade, ou de "não indiferença", na política externa brasileira, como asseverado
pelo ex-Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim:

Such attitude of non-indifference is not contradictory with the defence


of our own interests. We are convinced that in the long run an attitude
based on a sense of humanity that favours the promotion of
development of the poorest and most vulnerable will not only be good
to peace and prosperity around the world. It will bring benefits to Brazil
herself, in political as well as economic terms. This dialectic relation
between national interest and the exercise of solidarity has been a
fundamental aspect of President Lula's foreign policy. (AMORIM,
2010, p. 225)

Tal posicionamento justificaria atitudes como o protagonismo brasileiro na


participação em missões de paz nesse período, especialmente na Missão das Nações
Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), em que o país exerceu a chefia
militar.
Outro pronunciado traço da política externa brasileira na primeira década do
século XXI foi a cooperação Sul-Sul, que é calcada em relações horizontais e em
objetivos comuns como a reforma das instituições componentes do sistema internacional.
A prioridade da articulação entre países emergentes na política externa brasileira
traduziu-se em ações como a participação na formação do G20 comercial, além da
atuação por meio dos grupos IBAS e BRICS. Para além disso, aumentou
consideravelmente o volume de iniciativas de cooperação técnica implementadas pelo
Brasil, sob a coordenação da Agência Brasileira de Cooperação (ABC).
Em relação à cooperação técnica brasileira, deve-se verificar a notória mudança
de padrão. Se, inicialmente, o Brasil situava-se, como regra, no polo receptor da relação
de cooperação; atualmente, desempenha papel de destaque na função de prestador. Além
de privilegiar a cooperação com países em desenvolvimento, importa ressaltar que o
governo brasileiro pauta esse processo no fortalecimento das instituições das nações
envolvidas, indo ao encontro da noção exposta no Relatório do Comitê de Alto Nível da
Cooperação Sul-Sul de que "A Cooperação Sul-Sul não deve ser vista como uma ajuda
oficial ao desenvolvimento. É uma parceria entre iguais baseada na solidariedade".

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

637
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Segundo dados disponíveis no sítio eletrônico da ABC, o Brasil desempenha


projetos de cooperação técnica de maneira extensiva, já que as atividades ocorrem na
América Latina, Caribe, África, Ásia, Oriente Médio e Oceania. Também abrangentes
são os tipos de cooperação implementados, que incluem o setor de agricultura, educação,
saúde, meio ambiente, turismo, cultura, entre outros. No que concerne ao campo da saúde,
no período vigente, mais de 30 projetos classificados como iniciativas de cooperação Sul-
Sul encontram-se em execução, como o "Apoio Técnico para Implantação ou
Implementação de Bancos de Leite Humano no Panamá" ou o "Apoio ao Programa de
Luta conta a Tuberculose de São Tomé e Príncipe".
A temática da relação entre diplomacia e saúde aufere maior relevância
atualmente, considerando-se sua ascendente proeminência na agenda internacional. A
saúde é contemplada entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS),
componentes fundamentais da Agenda 2030, que foi adotada no âmbito da Cúpula das
Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável em 2015. Nesse sentido, o objetivo
03 manifesta o compromisso internacional de "Assegurar uma vida saudável e promover
o bem-estar para todas e todos, em todas as idades" 2.
Em que pese o caráter amplo da assertiva manifestada nesse objetivo, em análise
relativa ao processo de negociação dos ODS verificava-se a insuficiência das metas
estabelecidas pelo OWG (Open Working Group on Sustainable Development Goals), que
teriam assumido traço mais restritivo (BUSS et al., 2014). Cabe ressaltar que, nesse
contexto, a diplomacia brasileira posicionou-se de modo a defender uma concepção mais
ampla de saúde, premissa corroborada pelo conteúdo do documento divulgado em 2014
que expunha os elementos orientadores da posição brasileira nas negociações da agenda
de desenvolvimento pós-2015³. O texto, cuja elaboração contou não só com os
Ministérios e órgãos governamentais, mas também com a participação da sociedade civil,
norteou os negociadores do Brasil nos debates relativos aos ODS. Menciona-se, inclusive,
entre as metas, "apoiar ações destinadas a abordar os determinantes sociais da
saúde, visando a reduzir as inequidades em saúde", o que reitera uma acepção mais ampla
na discussão da questão da saúde.
O grau de engajamento diplomático brasileiro no domínio da saúde pode ser
exemplificado por meio da análise de dois casos específicos que alcançaram significativa
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

638
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

notoriedade. O primeiro trata da participação brasileira no processo de negociação da


Convenção-Quadro da OMS para o controle do Tabaco, cuja importância, para além da
temática tratada no documento, reside no fato de ter sido esse o primeiro dispositivo
vinculante multilateral em saúde pública adotado no âmbito da Organização Mundial de
Saúde. O segundo refere-se ao esforço no sentido de flexibilização do Acordo TRIPS,
compromisso acerca dos direitos de propriedade intelectual negociado em 1994, no
âmbito da Rodada Uruguai.

1) O Brasil e a Convenção-Quadro sobre o Controle de Tabaco (CQCT)

Em 1996, a Assembleia Mundial da Saúde (AMS) adotaria uma decisão que


exortava os países membros a elaborarem uma convenção sobre o controle do tabaco,
cuja implementação dependeria de considerável alteração política no cerne da OMS, o
que, de fato, ocorreu com a eleição de Gro Harlem Brundtland em 1998 (SALDANHA,
2015). No ano seguinte, a AMS decide pela criação de um grupo de trabalho com vistas
a traçar os contornos da futura Convenção Quadro, cuja efetiva negociação estava prevista
para ser realizada entre os anos 2000 e 2003. A representação brasileira apresentou
expressiva atuação nas reuniões do grupo de trabalho e, após a criação do Órgão
Negociador Intergovernamental (ONI) pela AMS, o Brasil logrou assumir a presidência
do órgão, o que denota seu protagonismo também ao longo das negociações formais.
A escolha do país para liderar o processo foi, inclusive, endossada por Brundtland
que "percebeu no Brasil o parceiro ideal para assumir a liderança do processo negociador
da futura Convenção-Quadro.[...] tratava-se de um país genuinamente interessado no
engajamento construtivo com a OMS." (SALDANHA, 2015, p. 98). O êxito da
negociação da Convenção está associado, em grande medida, às notáveis atuações do
Embaixador Celso Amorim, eleito presidente do ONI no ano 2000, e do Embaixador Luiz
Felipe de Seixas Corrêa, que o sucedeu em 2002. Cabe ressaltar que um dos traços
marcantes do processo residiu na boa articulação entre a Presidência brasileira e o
Secretariado da OMS, cenário facilitado pela liderança da Dra. Vera Luíza da Costa e
Silva no âmbito da Tobacco Free Initiative, a partir de 2001, quando escolhida para a
direção do órgão (SALDANHA, 2015).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

639
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A complexidade relativa à elaboração do tratado em questão poderia ter sido


obstada por impasses manifestados pelas diferentes posições defendidas pelas partes
negociadoras. Em contrapartida, tanto o empenho diplomático brasileiro quanto a robusta
política interna existente no Brasil nessa temática contribuíram para a superação de
problemas. De fato, as estratégias utilizadas no contexto do Programa Nacional de
Combate ao Fumo de 1988 precederiam medidas que seriam posteriormente adotadas
pela OMS (ROMERO; COSTA E SILVA, 2011).

2) O Brasil e a flexibilização do Acordo TRIPS

No contexto da discussão acerca dessa temática, um episódio importante foi o


contencioso relativo ao tópico de propriedade intelectual entre os EUA e o Brasil, na
Organização Mundial do Comércio (OMC). O Estado norte-americano acionou o Sistema
de Solução de Controvérsias da organização no ano 2000 (Figura 1), alegando que o
Brasil estaria desrespeitando o Acordo TRIPS por meio do mecanismo de licença
compulsória previsto na legislação interna do país . A solução negociada entre os dois
países foi considerada como uma vitória brasileira, já que viabilizou, simultaneamente, o
fim da querela e a legitimação do posicionamento defendido pela nação sul-americana.

Figura 1

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

640
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Disponível em: https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds199_e.htm

Aspectos que favoreceram o resultado benéfico para o Brasil foram a estruturação


de uma defesa pautada na motivação humanitária da medida; o robusto apoio
internacional tanto de Estados quanto de outros atores, como organizações internacionais
e organizações não governamentais; o também abrangente suporte interno e,
especialmente, a atuação do Ministério das Relações Exteriores (MORENO; OLIVEIRA,
2007).
O debate internacional acerca do Acordo TRIPS expunha pontos de tensão,
porquanto os países em desenvolvimento iam de encontro aos interesses de grandes
indústrias farmacêuticas que pressionavam seus governos visando à proteção de patentes.
O Brasil manifestava especial interesse nessa matéria, haja vista a reiterada defesa da
possibilidade do uso de genéricos e o seu ambicioso programa de saúde, que previa a
distribuição gratuita de medicamentos dirigidos ao tratamento da AIDS. A discussão
culminou na elaboração de um documento crucial, no âmbito da OMC, que garante a
primazia da saúde pública mundial sobre as questões de propriedade intelectual. Nesse
sentido, a Declaração de Doha de 2001 sobre o TRIPS e Saúde Pública assevera que:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

641
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

We agree that the TRIPS Agreement does not and should not prevent
members from taking measures to protect public health. Accordingly,
while reiterating our commitment to the TRIPS Agreement, we affirm
that the Agreement can and should be interpreted and implemented in a
manner supportive of WTO members' right to protect public health and,
in particular, to promote access to medicines for all.
In this connection, we reaffirm the right of WTO members to use, to the
full, the provisions in the TRIPS Agreement, which provide flexibility
for this purpose4.

Ponto de especial relevância é o artigo 6 do documento que reconhece que, no


caso de incapacidade de o setor farmacêutico de determinado país produzir a medicação,
ficaria prejudicado o efetivo uso do licenciamento compulsório previsto no Acordo
TRIPS. Com base nesse problema, em 2005, avançou-se novamente na defesa da saúde
pública global, por meio da flexibilização do tratado. Na ocasião, com o fito de superar
esse impasse, foi aprovada uma emenda ao acordo, que possibilita expressamente a
exportação de medicamentos produzidos sob licença compulsória com vistas a atender às
necessidades desses Estados5. Em 2017, após a ratificação da emenda por dois terços dos
membros da OMC, a disposição finalmente entrou em vigor, revestindo de garantia legal
uma política exposta há mais de uma década.

Perspectivas e Desafios

Os dois casos analisados permitem o reconhecimento de algumas características


da diplomacia brasileira no âmbito da saúde global nesse período. Em primeiro lugar,
tem-se a evidência de forte articulação entre as esferas interna e externa. Em segundo
lugar, denota-se a especial consideração dos interesses dos países em desenvolvimento.
Finalmente, verifica-se a ascensão da projeção internacional brasileira ao longo do
período analisado.
A decisiva presença da saúde como vertente da agenda diplomática brasileira é
reiterada com a formação da iniciativa "Política Externa e Saúde Global" em 2006, grupo
de nível ministerial que abrange o Brasil, a Noruega, a França, o Senegal, a Tailândia, a

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

642
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

África do Sul e a Indonésia. Em 2007, o grupo lançaria a Declaração Ministerial de Oslo


- Saúde global: uma Premente Questão Política do Nosso Tempo, que ressalta a
essencialidade da temática da saúde global e de sua relação com política externa, ao
apontar que:

In today’s era of globalisation and interdependence there is an urgent


need to broaden the scope of foreign policy. Together, we face a number
of pressing challenges that require concerted responses and
collaborative efforts. We must encourage new ideas, seek and develop
new partnerships and mechanisms, and create new paradigms of
cooperation. We believe that health is one of the most important, yet
still broadly neglected, long-term foreign policy issues of our time. Life
and health are our most precious assets. (PIBULSONGGRAM et al,
2007, p. 1373).

O avanço em temas vinculados à saúde global esbarra em desafios também


presentes em outros debates e intrinsecamente associados com a configuração da ordem
internacional, a qual não se confunde com o sistema internacional. Enquanto este diz
respeito às relações de poder e, portanto, ao âmbito político, aquela refere-se às normas
que regem as relações internacionais. A pluralidade de atores internacionais inerente à
uma sociedade progressivamente mais complexa dificulta as discussões e a consecução
do consenso em determinadas matérias. Ademais, a ascendente projeção internacional de
países como China, Brasil e Índia implica o aumento da pressão para a diversificação da
agenda internacional em prol objetivos comuns a diversos países em desenvolvimento.
Nesse contexto, a diplomacia brasileira guia-se, substancialmente, pela estratégia
multilateral, que permite uma forma de negociação mais representativa. De acordo com
Celso Amorim, "o multilateralismo é a expressão normativa da multipolaridade" (Trecho
do discurso por ocasião da abertura do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal
do Rio de Janeiro – 2009).
Malgrado existam fatores que obstem o maior desenvolvimento de políticas
globais de saúde, faz-se necessário ressaltar a existência de notáveis progressos, que são
indubitavelmente encorajados pelo governo brasileiro. A adoção da Convenção-Quadro
para o Controle do Tabaco, a flexibilização do Acordo TRIPS no intuito de garantir a

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

643
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

proteção à saúde pública, a aprovação da Estratégia Global e Plano de Ação sobre Saúde
Pública, Inovação e Propriedade Intelectual, a realização da Conferência Mundial
sobre Determinantes Sociais da Saúde e a elaboração dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável expõem a crescente preocupação da sociedade internacional associada ao
tema da saúde.
Essas notórias conquistas corroboram a grande dimensão permitida pelo diálogo
global, que depende, em grande medida, do trabalho dos diversos corpos diplomáticos.
Nesse sentido, ainda que seja imperativa a busca de uma ordem internacional mais
representativa e inclusiva, não se deve perder de vista que é nesse âmbito que as soluções
devem ser negociadas, já que os problemas relacionados à saúde global transcendem
fronteiras e soluções nacionais.

Fontes

UNITED NATIONS. 2009. Nairobi outcome document of the High-level United Nations
Conference on South-South Cooperation. Resolution 64/222 of 21 December 2009.
Nairobi: General Assembly

WHO, 2003. Framework Convention on Tobacco Control. Disponível em:


http://www.who.int/fctc/en/

WTO, 2001. Declaration on the TRIPS agreement and public Health. Disponível em:
https://www.wto.org/english/thewto_e/minist_e/min01_e/mindecl_trips_e.htm

WTO, 2005. Amendment of the TRIPS Agreement. Decision of 6 December 2005.


Disponível em: https://www.wto.org/english/tratop_e/trips_e/wtl641_e.htm

Bibliografia

AMORIM, Celso. Brazilian foreign policy under President Lula (2003-2010): an


overview. Revista brasileira de política internacional, v. 53, n. SPE, p. 214-240, 2010

BROWN, Theodore M.; CUETO, Marcos; FEE, Elizabeth. The transition from
'international' to 'global' public health and the World Health Organization. História,
Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 13, n. 3, p. 623-647, 2006

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

644
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BUSS, Paulo M. et al. Saúde na agenda de desenvolvimento pós-2015 das Nações Unidas.
Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, vol.30 no.12 Dec. 2014

FONSECA JR., Gelson. A legitimidade e outras questões internacionais. São Paulo: Paz
e Terra, 1998

KOPLAN, Jeffrey P. et al. Towards a common definition of global health. The Lancet, v.
373, n. 9679, p. 1993-1995, 2009

OLIVEIRA, Marcelo Fernandes de; MORENO, Fernanda Venceslau. Negociações


comerciais internacionais e democracia: o contencioso Brasil x EUA das patentes
farmacêuticas na OMC. Dados, p. 189-220, 2007.

PIBULSONGGRAM, Nitya et al. Oslo Ministerial Declaration–global health: a pressing


foreign policy issue of our time. Lancet, v. 369, n. 9570, p. 1373-8, 2007.

ROMERO, Luiz Carlos; COSTA E SLVA, Vera Luiza da. 23 Anos de Controle do
Tabaco no Brasil: a Atualidade do Programa Nacional de Combate ao Fumo de 1988.
Revista Brasileira de Cancerologia, 57(3): 305-314, 2011

SALDANHA, Pedro Marcos de Castro. Convenção do Tabaco da OMS: Gênese e papel


da presidência brasileira nas negociações. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão,
2015.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

645
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Produção ou Reprodução? O diálogo entre mídia e feminismos no seriado Malu


Mulher (1979/1980)

CLARISSA GODOY301
PPGH - UNIRIO

Este trabalho pretende apresentar a trajetória da personagem fictícia “Malu”,


protagonista do seriado televisivo Malu Mulher que foi transmitido pela Rede Globo entre
Maio de 1979 e Dezembro de 1980. Propõe-se examinar como o seriado conseguiu
estabelecer um diálogo com o feminismo dos anos 1980. Para isso, os conceitos de
mediação e recepção formulados por Jesus Martín-Barbero serão fundamentais para
organizar tal diálogo.

Idealizado e dirigido por Daniel Filho302, a série escrita por autores como Manoel
Carlos, Armando Costa, Lenita Plonczynski, Renata Palottini, e Euclydes Marinho,
tratava de temas sensíveis às mulheres e que não eram explorados abertamente pela
grande mídia brasileira até o momento. A direção dos capítulos era dividida entre Daniel
Filho, Denis Carvalho (que também atuava no seriado como Pedro Henrique, ex-marido
de Malu) e Afonso Grisolli. Cada capítulo, dos 76 totais, tinha cerca de 45 minutos de
duração e eram exibidos uma vez por semana no horário das 22h, sendo divididos em
duas temporadas: a primeira em 1979 e a segunda em 1980.

A trama girava em torno de Malu, protagonizada por Regina Duarte, uma mulher
de classe média, socióloga, insatisfeita com o casamento, mãe de Elisa, interpretada pela
atriz Narjara Turetta. No primeiro capítulo o tema do desquite foi abordado de forma
intensa, sofrida, ao mesmo tempo que apresentava os procedimentos jurídicos da época
para se iniciar o processo de separação. Vale ressaltar que a lei do desquite no Brasil foi
introduzida no código civil em 1916 como forma de separação dos corpos, de forma
amigável, mas o vínculo matrimonial permanecia, ou seja, não era permitido casar

301
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História – UNIRIO.
302
Diretor e cineasta, autor dos livros O Circo Eletrônico, Fazendo TV no Brasil; Ano: 2001; Editora: jorge
zahar; e Antes que me Esqueçam, Ed. Guanabara 1a. edição 1988.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

646
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

novamente. Apenas em 1977 através de emenda constitucional a lei do divórcio foi


aprovada garantindo a dissolução do matrimônio e possibilitando que ambas as partes se
casassem juridicamente apenas mais um vez. Esses dados sobre o desquite chamam a
atenção pelo momento histórico em que ocorreu, sendo a série televisiva, produzida
poucos anos depois. Neste caso já é possível enxergar as mediações sugeridas por Jesús
Martín-Barbero sobre as práticas sociais que ligam a comunicação à cultura303.

Contudo ser uma mulher de classe média, desquitada na década de 1970 não era
bem visto pela sociedade, nem pelas famílias dos cônjuges. Sob esse aspecto o seriado
Malu Mulher se torna uma fonte de pesquisa rica pois tratava, em rede nacional, de temas
“tabus” para a época, popularizando a discussão sobre o assunto ao mesmo tempo que
mostrava as complexidades humanas em lidar com tais situações. No caso do desquite,
exigido pela personagem Malu, era uma decisão fundamental para ela seguir sua vida sem
o comodismo e a rotina que seu casamento havia se tornado. Mesmo a personagem
tentando dialogar com seu parceiro não havia retorno ou possibilidade de mudança por
parte dele, portanto, em atitude de enfrentamento e desespero o desquite seria sua única
opção.

É importante ressaltar que a possibilidade do desquite, no caso da personagem


Malu, é devido a uma série de fatores sócio econômicos, incluindo sua intelectualidade e
acesso a informação para tomar tal decisão. O que não significava que sua vida e de sua
filha passariam a ser maravilhosas, mas ambas tinham família, amigos, ou seja, uma rede
de sociabilidade que contrária ou não a decisão do desquite às amparavam, incluindo as
garantias financeiras adquiridas pelo processo do desquite.

Quando a série foi ao ar na TV brasileira

A fonte deste trabalho é um seriado televisivo contemporâneo de seu tempo, ou


seja, em 1979 no Brasil, período ainda regido pela ditadura civil-militar e com a censura
ainda controlando os meios de comunicação, apesar da aprovação da Lei de Anistia aos

303
Ver em MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 5ed.
Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

647
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

exilados políticos e a promessa de abertura da ditadura304. Não foi diferente com Malu
Mulher além de outros seriados previstos para estrear na Rede Globo no ano de 1979305.

Mesmo a personagem Malu não se assumindo claramente feminista ou contra a


ditadura civil-militar, o seriado era repleto de diálogos afirmativos em prol dos direitos
das mulheres e de uma democracia que garantisse por lei os direitos dos cidadãos. Em
entrevistas posteriores, quando a censura não imperava mais, os autores da série
assumiram que era um programa feminista, influenciado pelas lutas dos movimentos
hippies e feministas ocorridos na França e Estados Unidos no final da década de 1960.

O período da ditadura dificultou e muitas vezes impediu a produção artística em


diversas esferas. Mesmo na TV Globo, as telenovelas foram censuradas, assim como
programas de música, gerando modificações drásticas nos roteiros de programas que já
estavam no ar, como foi o caso de Malu Mulher.

Motivação para sua criação: autores e roteiristas

A primeira ideia para criar o seriado Malu Mulher e sua personagem principal
veio de Daniel Filho ao assistir ao filme norte americano Unmarried Woman, escrito e
dirigido por Paul Mazursky em 1978306. A princípio o seriado seria uma comédia, como
o filme de Mazursky, mas os diretores gerais da Rede Globo acreditavam que com a
abertura política os temas do seriado deveriam ter uma conotação mais dramática, em tom
de denúncia, ou seja, trazer para a programação popular tais temas polêmicos307.

Propondo discutir assuntos como o aborto, a traição, o desquite, a independência


financeira, o sucesso profissional, a violência doméstica, o assédio, assim como a relação
mãe e filha e sexualidade, a personagem Malu era, em muitos capítulos, uma mediadora

304
Ver em HAMBURGER, Esther. O Brasil antenado: A sociedade da novela. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., p.34-35, 2005.
305
Ver reportagem disponível na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional em CADERNO B: televisão:
Heróis e Heroínas nacionais contra os “enlatados”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 de mai. 1979.
306
“An Unmarried Woman” (Uma Mulher Descasada (título no Brasil) é um filme norte-americano de 1978
escrito e dirigido por Paul Mazursky e indicado ao Oscar de melhor filme em 1978.
307
Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/seriados/malu-
mulher/curiosidades.htm Acesso em: 15 jun. 2017
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

648
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

das situações difíceis que aconteciam ao seu redor. As decisões, muitas vezes complexas,
são tomadas de forma impulsiva pela personagem no desespero de ajudar as mulheres que
a cada episódio orbitavam ao seu redor. Dessa forma, todos os temas explorados não eram
vividos necessariamente por Malu, mas em sua maioria por personagens itinerantes,
interpretados por atores e atrizes convidados, que cruzavam pelo seu dia-a-dia.

Sendo assim, a personalidade de Malu é consolidada ao longo dos capítulos,


quando diversos acontecimentos e pessoas ora reafirmam ideias já legitimadas pela
personagem nas primeiras falas do seriado, ora a ensinam como ela pode ou deve lidar
com os fatos de forma diferente das planejadas.

Quem é Malu?

Para a construção da personagem interpretada por Regina Duarte foi necessário,


reuniões e pesquisa de campo com a própria atriz sob coordenação da socióloga e ex-
primeira dama Ruth Cardoso. Tais pesquisas foram feitas com grupos de estudantes
mulheres, a maioria estudante de sociologia da UNICAMP, sobre seus desejos,
expectativas e oportunidades de trabalhos. A ideia da personagem Malu ser uma socióloga
foi de Ruth, mostrando através de pesquisas as potencialidades da mulher intelectualizada
e informada. Não é de se admirar tal escolha uma vez que o campo da sociologia paulista
estava se consolidando, ganhando mais visibilidade acadêmica e notoriedade
internacional no final dos anos 1970.

Dessa forma, é interessante observar como parte da população politizada, com a


oportunidade de cursar graduações em universidades públicas, nutria uma classe
intelectualizada, preocupada com questões sociais, de cunho democrático, mesmo sob a
ditadura militar. Assim como as estudantes entrevistadas da UNICAMP, Malu fazia parte
de uma classe média paulista. Mesmo casando aos 20 anos e com uma filha, pode concluir
o curso de sociologia. Tais privilégios devem ser elucidados para uma análise histórica
comprometida com o diálogo entre os movimentos sociais e as produções dos meios de
comunicação de massa, identificando as particularidades de um momento da História do
Brasil em que a liberdade de expressão não era permitida, mas certas brechas podiam ser
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

649
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

preenchidas através das subjetividades dos sujeitos históricos. Nesse caso, a luta contra a
ditadura se mistura com as reivindicações populares, em especial da classe média
intelectualizada, agitada pelas causas dos movimentos sociais internacionais que
passaram a ganhar maior proporção no Brasil no início da década de 1970, reafirmando
os privilégios de quem podia se conscientizar e reivindicar direitos.

A caracterização da personagem Malu vem de um meio social específico, com


classe social e cor definido. Hoje é possível olharmos para o seriado e observar tais
características latentes, demarcadores culturais, especialmente se lembrarmos que a série
se debruça sobre as premissas da chamada “Segunda Onda Feminista” pra organizar a
personalidade e o posicionamento político de Malu.

A chamada “Segunda onda feminista” como SCOTT (1996) elucida é conhecida


por reivindicações de mulheres brancas de classe média, buscando maior independência
financeira e igualdade de salários entre homens e mulheres, dentre outras.
Portanto, acreditamos que a personagem Malu pode ser pensada como uma forma de
popularizar, ainda que muitas vezes de forma equivocada, via meio de comunicação de
massa, as lutas femininas dos movimentos feministas dos anos 1980.

É possível pensar a serie a partir de duas perspectivas teóricas: na primeira


corrente defendida pelos frankfurtianos entende que o público é mero receptor das
mensagens, vivendo sob um controle da indústria cultural que estimula a alienação dos
indivíduos308. Neste caso a personagem Malu e o seriado, seria mais um entretenimento
produzidos pela Rede Globo sem pretensões engajadas e sua repercussão não seria
diferente das outras programações da emissora.

Por outro lado, existem teóricos como: Raymond Williamns e Martín-Barbero,


que relativizam o poder dos meios de comunicação sobre os indivíduos, pensando nas
suas possibilidades de interpretação, cognição e subjetividade, ao receber informações da

308
Ver sobre Industria cultural em ADORNO, Theodor. “A indústria cultural”. In: COHN, Gabriel (org.).
Theodor Adorno. São Paulo: Ática. (Col. Grandes Cientistas Sociais), 1986. E sobre o conceito de
Alienação em MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo. 2006.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

650
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

indústria cultural309. Relacionando esta ideia com o conceito de mediação já apresentado


neste texto, Jesus Martín-Barbero (2008) também trata sobre o tema da recepção para
elaborar sua ideia sobre mediação, ou seja, os sujeitos sociais são fundamentais para o
entendimento da comunicação de massa e não apenas depositários passivos desse meio.
Para Martín-Barbero “entre a produção e a recepção há um espaço em que a cultura
cotidiana se concretiza” (1987, p. 233), dessa forma as mediações são os lugares que estão
entre a produção e a recepção.

A pesquisa desenvolvida pelo autor discute também o surgimento dos conceitos


de povo e massa na modernidade e as raízes das mediações de massa na América Latina,
local escolhido para compreender as relações entre massa e mídia através da televisão.
Uma consequência do debate proposto pelo autor é a importância do popular como um
espaço potente para se compreender os processos comunicacionais e culturais em curso
na contemporaneidade. Portanto, as questões referentes ao popular conseguem ser
inseridas na grande mídia, mantendo sua tradição e cultura, mostrando uma
heterogeneidade nas produções, uma mistura de valores, crenças e formatos que muitas
vezes se opõem. Ou seja, a superestrutura é também questão de desconstrução e
complexidade para Barbero, pois apresenta brechas nas hegemonias das grandes
empresas de telecomunicações, neste caso da Rede Globo ao produzir o seriado Malu
Mulher.

Sua repercussão nacional e internacional em geral foi positiva, quando a série foi
vendida para mais de 50 países, incluindo premiações artísticas e a viagem da atriz Regina
Duarte e do diretor Daniel Filho à Cuba, convidados e recebidos por Fidel Castro que se
apresentava como fã do programa e empático às causas feministas310. Dessa forma, é
possível refletir sobre o impacto dos meios de comunicação de massa sobre a sociedade
e como esta interpreta tais construções midiáticas.

309
Ler sobre Estudos culturais em WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo: Editora
UNESP, 2011.
310
Ver registro fotográfico e reportagem em http://revistatrip.uol.com.br/trip/espelho-espelho-meu e
http://www.imperioretro.com/2016/05/malu-mulher-o-pioneirismo-da-questao.html Acesso em: 11 Jul.
2017
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

651
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Retomando sobre a caracterização do seriado Malu Mulher, outro aspecto nos faz
visualizar a realidade sócio econômica de Malu é a decoração de seu apartamento, pois
também em pesquisa de campo a equipe de produção visitou casas de professoras
universitárias e estudantes de sociologia. Assim, a decoração do apartamento de Malu
não é só datada, mas busca refletir o meio social em que a personagem vive e para o qual
ela fala. Pode ser observado grande quantidade de plantas samambaias pelo apartamento,
assim como cerâmicas decorativas, vitrolas, tapeçaria e quadros “pop”. Estas construções
visuais, são demarcadores culturais importantes para serem analisados pois a empatia do
público com a personagem vem, dentre muitas esferas, da construção do “mito”
apresentado e representado em seu cotidiano, com fraquezas, tormentas, tristezas, sendo
humanizado, tornando-se “gente como a gente”, tal qual abordado por Schimidt (2000).

Por isso, os figurinos de Marília Carneiro e Helena Gastal, auxiliaram na


construção da imagem da nova mulher brasileira. Desapegando da moda “hippie” que
embalava os jovens de classe média característicos dos anos 1970 e início de 1980, a nova
mulher, no caso Malu, desconstrói a silhueta feminina com peças amplas e sem formas
específicas para o corpo feminino311. A caracterização de Malu, com pouca maquiagem,
trazia naturalidade ao contexto de vida da personagem, pois assim como muitas mulheres
não se maquiavam para tomar o café da manhã e sair para trabalhar, Malu não era
diferente.

Nos capítulos “Até sangrar” da primeira temporada exibida ao longo de 1979 e


“Filhos, melhor não tê-los” já da segunda em 1980, essas duas esferas do ser mulher, mãe
e insegura, se mostram latentes para a construção da trajetória da personagem. “Até
sangrar” é um dos últimos capítulos da primeira temporada de Malu Mulher e, ainda assim
a família da personagem se envergonha da filha ser desquitada. O tema da rejeição
familiar e da separação como tabu é explorado neste episódio através da insegurança de
Malu. Mesmo certa de sua decisão a reprovação dos pais e parentes mais distantes mexem
com a estabilidade emocional que ela estava construindo.

Ver sobre a importância do figurino no programa “Ofício em Cena” que foi ao ar no canal Globo News
311

em 14/10/2015. Disponível em: https://globosatplay.globo.com/globonews/v/4535994/ Acesso em: 10 Jul.


2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

652
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A demonstração de insegurança da personagem, tornou-a ainda mais real como


ser humano, mesmo entrando em contradição com sua segurança e determinação do início
da série em se desquitar do marido. Ou seja, a complexidade em ser mulher, humana,
sensível, vai estar em conflito com o desquite, mesmo com a certeza que a vida com o ex-
marido não dava mais certo.

Das mesmas incertezas ela vive a maternidade e as dificuldades de ser desquitada,


mãe e trabalhar fora de casa. No capítulo “Filhos, Melhor Não Tê-los” Malu mais uma
vez é orbitada por um problema alheio ao seu meio familiar. Neste episódio o tema da
jornada dupla de muitas mulher que exercem a maternidade e trabalham fora de casa é
tratado a partir da dificuldade prática do dia-a-dia, das carências e sensibilidades
envolvidas na relação mãe e filha, além da ilustração das diferenças de dificuldades entre
mães de classe sociais distintas.

Objetivos e frustrações na construção da personagem: censura altera a


personalidade de Malu ao longo da série

No decorrer dos primeiros meses em que Malu Mulher estava no ar, o


comportamento da personagem se mostrava inconstante. Para além de uma insegurança
“natural” a partir das mudanças em sua vida, como o desquite e a luta no mercado de
trabalho, Malu em alguns momentos parecia perdida de suas afirmações como pessoa e
mulher.

Muita leituras são possíveis a partir dessa prévia análise da inconstância da


personalidade da personagem, incluindo as envolvendo questões emocionais e
psicológicas, mas segundo o criador da série em entrevista ao programa Roda Viva no
ano 2001, o seriado ainda sofria interferências da censura brasileira e muitos roteiros
foram adaptados para ir ao ar312. A censura alegava que alguns comportamentos ou as

312
Programa exibido desde 1986 pela atual TV Cultura, Disponível em:
http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/550/entrevistados/daniel_filho_2001.htm Acesso em: 10 Jun. 2017
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

653
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

falas da personagem poderiam influenciar erroneamente as famílias brasileiras que


assistiam ao programa.

Desta coerção à produção artística, criou-se durante o primeiro ano da série uma
personagem inconstante e muitas vezes ingênua em contraste com a Malu do primeiro
capítulo “Acabou-se o que era doce”, quando decide desquitar-se do marido. Em alguns
capítulos do final da primeira temporada a personalidade forte em busca de justiça é mais
evidente, porém somente com o retorno da série em 1980 é que Malu se permite seguir
segura e insegura ao mesmo tempo, errando e acertando. Se tornando, assim, uma
personagem mais humanizada que tenta seguir seus princípios.313

Dialogando com tais pensamentos para escrever a trajetória da personagem Malu


é importante mostrar suas características como algo imperfeito, afinal, mesmo sendo
fictícia, Malu é um representação de muitas mulheres de seu tempo, com imperfeições e
inconstâncias cotidianas, mas sobretudo capaz de utilizar sua subjetividade como
personagem para falar de assuntos censurados à época no Brasil. Dessa forma, esse tipo
de reflexão colabora para não restringir os sujeitos, neste caso a personagem Malu, a uma
única possibilidade de vida, ou conduta moral, assim como seus pensamentos e ações.

Objetivos e frustrações na conduta da série: críticas sobre a série escrita apenas por
homens

A criação de um seriado com a temática feminista no final da década de 1970 no


Brasil já era de se esperar que seus roteiristas e diretores fossem homens, ou que a
liderança partiria deles, afinal, programas de TV fazem parte de empresas de
telecomunicações, e naquele momento de tensão política os direitos das chamadas
minorias – negros, mulheres, homossexuais – não eram assegurados, muito menos lhe
sobravam espaço no mercado de trabalho. O interessante no caso de Malu Mulher é que
o corpo de roteiristas era formado por três homens e duas mulheres, para além dos talentos

313
Ver reportagem sobre censura ao capítulo “A Amiga” escrito por Euclydes Marinho no CADERNO B:
televisão: Autocensura pode transformar Malu numa mulher sem problemas. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 1° set. 1979.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

654
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

como roteiristas e escritoras, Lenita Plonczynski e Renata Palottini, escreviam para uma
série sobre temas próximos de suas realidades de vida, principalmente por serem
mulheres, trabalhadoras, mães, donas-de-casa e intelectualizadas. A presença de mulheres
na escrita dos textos, assim como na equipe técnica, foi imprescindível para Malu ser
quem era.

Esta questão foi pauta de polêmica no fim do primeiro ano da série quando
Palottini já não fazia parte do grupo e Plonczynski pediu sua saída também por se sentir
insatisfeita com as mudanças que iriam ser impostas sobre a personagem, e o rumo que a
série ia seguir. Em entrevista para o Jornal do Brasil, de 2 de Dezembro de 1979, Lenita
Plonczynski dizia “Acha grave um programa sobre mulher escrita agora apenas por
homens: não entendo com Regina Duarte ainda aceita o papel” (QUEM, 1979, p. 6).

A partir de então o comando e escrita da série passou a ser exatamente só por


homens, escrevendo e dirigindo uma série que tinha se tornado tão popular por trazer à
tona temas tão velados pela sociedade brasileira sobre a mulher. Uma das pautas do
movimento feminista dos anos 1970 era a igualdade de salário e de oportunidades de
trabalho, questão que não pareceu relevante para a direção da série pelos rumos que foram
tomados.

Para amenizar os debates nas mudanças de roteiristas a publicização do seriado


focou nos bastidores, composto todo por mulheres, justificando que elas eram as
responsáveis por continuar criando Malu, reconstruindo a personagem a partir das
mudanças exigidas pela direção da Rede Globo. Duas páginas completas do caderno
“Televisão” do Jornal do Brasil, em 30 de Março de 1980, abordou o retorno de Malu
Mulher, anunciando o novo horário, e a mudança de estabilidade econômica da
personagem, que passa agora a ter um trabalho fixo numa empresa de pesquisa ganhando
25 mil cruzeiros por mês e mais 12 mil de pensão paga pelo ex-marido, e mostrando a
rotina de gravações da segunda temporada.

O debate financeiro das mulheres desquitadas toma proporções maiores nesta


segunda temporada e transborda para a equipe técnica, formada por mulheres, em sua
maioria desquitadas também, mas que viviam situações próximas as de Malu. A

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

655
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

reportagem faz uma breve comparação de salários entre diretores, roteiristas, atores e
equipe técnica da Rede Globo e mostra com suposições – já que a Rede Globo não se
pronuncia sobre salários – o quão alto é o salário de Regina Duarte em comparação com
outros atores. No encerramento da reportagem uma foto de Regina Duarte e Narjara
Turetta com as 6 mulheres que compunham a equipe técnica do seriado com a seguinte
legenda:

Os homens escrevem e dirigem, mas a presença de Malu no vídeo seria


impossível sem o trabalho das mulheres: Marília Rodrigues (figurinista); Graça
Motta (assistente de direção); Regina Duarte; Narjara Turetta (Elisa); Marta
(continuísta); Cristina Médicia (pesquisadora de arte); Denise Serraceni
(assistente de produção); Cristina, a mais jovem componente da equipe.
(CADERNO B, 1980).

Conclusão

É na tentativa de compreender a mudança de Malu e da conduta do seriado a partir


da segunda temporada que se torna possível construir uma trajetória da personagem de
Regina Duarte. Malu é uma mulher, buscando independência, reencontrar o amor,
reconstruir a vida a partir de diversos dilemas pessoais e sempre tentando com seu senso
de justiça e sensibilidade ajudar as mulheres que passam por sua vida.

A partir de tais aspectos, transitando do social ao individual, do inconsciente ao


consciente, do público ao privado, do pessoal ao profissional, evitamos reduzir todos os
aspectos da personagem a um denominador comum. Malu é uma personagem fictícia, que
representa uma classe, um gênero e uma cor, demonstrando agências, possibilidades de
transgressões, ditando novas leis mediante as instituídas e muitas vezes já engessadas
socialmente. Ela é a representação de um feminismo explorado por seu contexto histórico,
assim como a recepção do público com a série são demarcadores de identidades
interessantes ao se pensar a sociedade brasileira ainda sob uma ditadura militar.

Na tentativa de apresentar as possibilidades positivas de algumas produções da


grande mídia, neste caso o seriado Malu Mulher, os conceitos de mediação e recepção

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

656
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

colaboram para o diálogo entre feminismo e mídia, reafirmando a complexidade da


produção artística envolvida na superestrutura. Por isso, a investigação do diálogo entre
feminismo e a mídia, através da fonte apresentada, é importante para enriquecer o debate
no campo de estudo da História, buscando novas perspectivas ao olhar para a produção
da chamada indústria cultural.

REFERÊNCIAS:

ADORNO, Theodor. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel (org.). Theodor Adorno.
São Paulo: Ática. (Col. Grandes Cientistas Sociais), 1986.

ALMEIDA, Heloisa Buarque de. Gênero e sexualidade na mídia: de “Malu” a


“Mulher”. 31° Encontro anual ANPOCS. Anais, 2007.

AN UNMARRIED woman. Direção: Paul Mazursky. Estados Unidos: [s.n.], 1978.

BRITO, Rafaella. Malu Mulher: O Pioneirismo da questão feminista da


teledramaturgia brasileira, São Paulo, 03 mai. 2016. Disponível em:
<http://www.imperioretro.com/2016/05/malu-mulher-o-pioneirismo-da-questao.html>
Acesso em 10 jul. 2017.

CADERNO B: televisão: Heróis e Heroínas nacionais contra os “enlatados”. Jornal do


Brasil, Rio de Janeiro, 14 de mai. 1979. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/030015_09/198936 >. Acesso em: 15 Jul. 2017.

CADERNO B: televisão: Autocensura pode transformar Malu numa mulher sem


problemas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1° set. 1979. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/030015_09/204561 >. Acesso em: 19 jul. 2017.

CADERNO B: televisão: Malu está voltando muito mais mulher. Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, p. 9, 30 mar. 1980. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/4364 >. Acesso em: 20 jul. 2017.

CALIL, Ricardo. Espelho, espelho meu: Daniel Filho revela histórias de vários
bastidores e diz que a TV aberta virou rádio AM. Revista Trip, São Paulo, n. 186, 04
mar. 2010. Disponível em: <http://revistatrip.uol.com.br/trip/espelho-espelho-meu>
Acesso em: 11 jul. 2017.

DOSSE, François. A biografia, gênero impuro: A biografia é um verdadeiro romance.


In: _____. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: EDUSP, 2009. p. 55-80

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

657
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

FILHO, Daniel. Antes que me Esqueçam. 1. ed. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1988.

FILHO, Daniel. Memória Roda Viva: entrevistas. Disponível em:


<http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/550/entrevistados/daniel_filho_2001.htm >.
Acesso em: 19 jul. 2017.

GLOBO. Malu mulher. Disponível em:


<http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/seriados/malu-
mulher.htm>. Acesso em: 15 jun. 2017.

GLOBO. Ofício em Cena. Disponível em:


<https://globosatplay.globo.com/globonews/v/4535994/> Acesso em: 10 jul. 2017.

HAMBURGER, Esther. O Brasil antenado: a sociedade da novela. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Ed., 2005. p. 34-35.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e


hegemonia. 5ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo. 2006.

QUEM: Lenita apura o ofício de roteirista. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 02 dez.
1979. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/030015_09/209592>. Acesso em: 20 jul. 2017.

SÁ, Cristiane Ferreira de. A mulher na ordem do dia: estudo de temas em Malu
Mulher (1979/80) e mulher (1998/1999). Dissertação (mestrado) – Universidade
Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2011.
SARTI, Cynthia A. Feminismo e contexto: lições do caso brasileiro. Cadernos Pagu,
16, 2001. pp.31-48
SCHIMIDT, Benito Bisso. Luz, papel, realidade e imaginação: as biografias na história,
no jornal, na literatura e no cinema. In: _____. O biográfico: perspectivas
interdisciplinares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000. p. 49-70.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. Tradução de:
Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Àvila. 3ed. Recife: Editora: S.O.S. Corpo,
1996.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

658
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Entre linotipos e editoriais: o conflito israelo-palestino e a guerra de opinião


pública na mídia impressa brasileira - Folha de São Paulo, O Globo, Veja e
Cadernos do Terceiro Mundo - da Guerra dos Seis Dias a Primeira Intifada -
1967/1987

CLÁUDIO MÁRCIO LIMA PRADO


PPGHB/UNIVERSO

O Jornal O Globo de quatro de dezembro de 2010, na seção “Mundo”, apresentou


uma notícia de página inteira sobre o reconhecimento do governo brasileiro a um Estado
Palestino delimitado pelas fronteiras de 1967 (anteriores à Guerra dos Seis Dias),
formalizada pelo envio de uma carta à Autoridade Nacional Palestina (ANP).
Não obstante o anúncio, passados mais de sessenta anos a Questão palestina
permanece sem solução: o Estado Palestino – que desapareceu sem nunca ter existido,
exceto nos mapas da ONU. Com isso a oposição dos palestinos ao Estado de Israel foi
tornando-se gradativamente mais severa. A Guerra de Independência (1948-49) é
chamada pelos palestinos de “A Catástrofe” – pois nela os palestinos foram expulsos de
suas casas, perderam o controle sobre sua terra ancestral e passaram a estar submetidos
ao jugo israelense.
Assim como no episódio de 2010, o governo brasileiro tomou parte na criação do
Estado de Israel e na Questão Palestina. A imprensa brasileira registrou o nascimento do
novo Estado e suas querelas com palestinos e países árabes.
O recorte temporal do projeto, 1967-1987, engloba quatro momentos conflituosos
fundamentais para a percepção desta mudança de comportamento da opinião pública, os
dois primeiros – Guerra dos Seis Dias (1967) e Guerra do Yom Kippur (1973) –
favoreceram a consolidação de uma visão difundida pela mídia impressa brasileira que
massificou essa visão/memória social que legitimava o Estado de Israel em detrimento
dos palestinos. Os dois últimos – Invasão do Líbano (1982) e Primeira Intifada (1987) –
atuaram decisivamente para a inversão da opinião pública que reconhecia como
justificáveis os atos israelenses, passando a condená-los e posicionando-se
favoravelmente aos palestinos.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

659
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Na contemporaneidade, é cada vez maior o número de estudos e pesquisas


desenvolvidos dentro e fora do âmbito acadêmico acerca da relevância e da influência da
opinião pública nos diversos processos da vida política, em diferentes sociedades.
A despeito da dificuldade frequentemente encontrada quanto à melhor definição
para opinião pública, pois esta “faz parte dos fenômenos sociais aparentemente evidentes,
mas que se furtam à análise no momento em que esta visa à precisão científica” (Becker,
2003), sua valorização como temática de estudos para a História justifica-se: a opinião
pública integra-se aos processos históricos e políticos vinculados à dimensão da vida em
sociedade; não importa apenas conhecer e analisar as ações empreendidas pelos homens,
mas também o modo como estas são percebidas, em seu tempo e ao longo da história.
Tal percepção constitui-se em objeto de interesse para intelectuais e acadêmicos,
bem como para os diversos atores políticos: quais são os meios de que o Estado, os
governantes, os partidos políticos, os cidadãos, os grupos de pressão dispõem para
influenciar ou moldar a opinião pública? Qual é a atuação da mídia sobre ela? Que papéis
desempenha a opinião pública nas sociedades contemporâneas de massa?
Foi em direção à última pergunta que o presente trabalho se desenvolveu, com a
perspectiva de lançar um olhar sobre como se modificou a opinião pública da Guerra dos
Seis até a eclosão da “Revolução das Pedras” para buscar ampliar a reflexão sobre a
atuação da mídia impressa e da opinião pública brasileira na Questão Palestina.
Outro aspecto que assinala a importância de se produzir e pensar os embates pela
opinião pública decorrentes da criação do Estado de Israel e sobre a Questão Palestina na
imprensa escrita brasileira reside no fato de que, além da já referida atuação da
comunidade judaica, trabalhos como a tese de doutorado de Denise Jardim (2000)
assinalam a presença de comunidades palestinas que chegavam ao Brasil pelo Rio de
Janeiro (embora tenham se fixado no extremo sul e em outras regiões do país) que sempre
mantiveram representações comerciais e associações beneficentes na então capital
federal.
É importante ressaltar também que os debates, as pesquisas e a produção sobre a
mídia e a opinião pública brasileiras tem se multiplicado nos últimos anos, não obstante,
a discussão de questões relacionadas a comunidades migrantes e grupos minoritários
ainda é pouco explorada, e merece especial atenção, o fato de que a comunidade judaica
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

660
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

brasileira tem ligações históricas e atuação militante em determinados veículos da


imprensa nacional.
Ao falar de opinião pública tomo como base a perspectiva de Norbert Elias
“acredito que haja alguma coisa como a opinião pública de um país e não apenas
opiniões de indivíduos singulares” (2006: 113) associada as noções de Hegemonia de
Antônio Gramsci – que entende a imprensa como aparelhos privados de hegemonia – e
as de capital simbólico e de campos de poder de Pierre Bourdieu – que permitem perceber
a imprensa como campos de disputa e construção de visões de mundo e/ou opiniões que
se tornam hegemônicas.

a imprensa preparou o clima para que os golpistas de todos os tipos,


tamanhos e matizes se sentissem mais amparados pela opinião pública
ou, ao menos a “opinião publicada”. Como em outras épocas da história
do Brasil, a opinião publicada não era necessariamente a opinião
pública majoritária. (Napolitano, 2014: 47)

A obra de Edward Said – como um todo, e mais especificamente, “O Orientalismo


e a invenção do Oriente pelo Ocidente”, “A Ideia de Palestina no Ocidente” – é de
importância central para o desenvolvimento da perspectiva teórica escolhida para
trabalhar a imprensa e a opinião pública, ao articular o conceito de orientalismo como
instrumento forjador de uma visão, de um discurso de autoridade acadêmica e intelectual
do Ocidente sobre o Oriente à perspectiva de Habitus314 de Bourdieu.

Até a vitória militar de 1967, e até alguns anos depois, a imagem


internacional dominante de Israel era a apresentada pelos seus
fundadores sionistas de esquerda, bem como pelos muitos admiradores
na Europa e em outras partes: um pequeno país corajoso rodeado de
muitos inimigos, onde o deserto floresceu e a população nativa foi
apagada da foto. Após a invasão do Líbano, e com mais intensidade
depois da primeira intifada, no final dos anos 1980, a imagem pública
de Israel vem escurecendo paulatinamente. (...) Por isso Edward Said
insiste em seus ensaios na necessidade de que os palestinos levem seu
caso ao público norte-americano, e não somente, como ele diz
implorem ao presidente norte-americano que lhes “dê” um país. A
opinião pública norte-americana tem peso, e Said se desesperava com

314
A noção de Habitus fornecerá o referencial para trabalharmos a imprensa/mídia concebendo-as como
estruturas internalizadas e/ou naturalizadas pelo grupo hegemônico - da manipulação (ideológica)
promovida pela mídia que molda visões de mundo e consagra memórias convenientes.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

661
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

o antiamericanismo desinformado dos intelectuais e estudantes árabes.


(Judt, 2010: 198-201).

Em 1947 a Organização das Nações Unidas – ONU apresentou o Plano de Partilha


da Palestina315 que estabelecia a criação de dois Estados: um Judeu e outro árabe; além
de definir a área de Jerusalém como território internacional.
Com a criação do Estado de Israel, o retorno à palestina pelos judeus concretizou-
se, entretanto, a situação dos palestinos ficou bastante complicada – os árabes da Palestina
não aprovaram a resolução da ONU e não implementaram o Estado Palestino –, e o
diálogo entre israelenses e árabes se tornou cada vez mais árido.
Imediatamente após a declaração de independência do Estado de Israel proferida
por David Ben Gurion no porto de Haifa, os Estados Unidos e a União Soviética
reconheceram não só a existência, mas também a legitimidade do novo Estado que, então,
foi aceito como membro da Organização das Nações Unidas.
Passada a etapa de constituição do Estado de Israel, a política nacionalista
israelense ganha novos contornos com a primeira-ministra Golda Meir, que torna
explicita as premissas ideológicas das elites dirigentes judaicas: o povo judeu é agora
“soberano” em sua nação; os palestinos não têm mais poder decisório em Israel, uma vez
que, apenas em mãos judaicas repousam a chaves que dão acesso a Israel.
Definitivamente, os interesses de israelenses e palestinos tornam-se contraditórios.

Esse é o único ponto em que concordo com nossos vizinhos árabes.


Israel não será mais destruído. Mas árabes não têm o direito de ditar a
política imigratória do Estado de Israel. (...) As portas de Israel acham-
se abertas. As chaves estão em nossas mãos, nas mãos do independente
e soberano povo judeu. (Meir. s/d: 126)

A Guerra dos Seis Dias (05-10/06/1967) cristalizou a situação dos palestinos


como um “povo sem pátria”, uma “questão de refugiados”, pois Israel derrotou os países
árabes e anexou a Cisjordânia, as Colinas de Golan, A Faixa de Gaza e a Península do
Sinai.

315
Resolução nº. 181 da ONU (de 28 de novembro de 1947) concernente ao Plano de Partilha da Palestina,
ao futuro governo da Palestina e à internacionalização de Jerusalém.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

662
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Esta situação ficou nitidamente expressada na Resolução 242 do Conselho de


Segurança da ONU, que entre outros aspectos relativos aos conflitos árabe-israelenses
preconizava: “a necessidade (...) b. De se alcançar uma solução justa para o problema dos
refugiados (...)” (Massoulié, 1996: 91).
Enquanto Israel e os países árabes – mesmo tendo interpretações diametralmente
opostas – acatam a Resolução 242, a Organização Para a Libertação da Palestina (OLP)
condena a medida por não tocar no direito a autodeterminação do povo palestino.
Desde então a cidade de Jerusalém passou a estar sob o controle israelense e se
tornou um dos grandes entraves nas negociações de paz. Para os palestinos Jerusalém
Oriental é a capital do Estado Palestino; já para os israelenses a cidade é a capital
indivisível da fé judaica.
No livro “Porque lutam os palestinos”, Yasser Arafat externa a sua posição – e
da OLP – sobre como deveria ser processada a luta pelo Estado Palestino, o programa
para a solução da crise árabe-israelense, quais são os objetivos e a ideologia da OLP e do
Al Fatah (então uma organização secreta palestina, hoje um partido político).

Eu sou de início palestino, um palestino, um refugiado, sem pátria nem


terra. Recusei-me a entorpecer e silencia, vendo a revolução árabe em
geral. Devo combater, mas ninguém pode impor sua revolução aos
outros. Que cada um se ocupe de si mesmo. O povo sírio deve combater
por seus próprios territórios ocupados, o egípcio por recuperar o Sinai.
(...) Quanto a mim, minha luta é aqui (...) sobre o solo palestino e por
meu país. Nada de culto pessoal. Sou apenas um soldado. Nosso líder é
a Palestina. Nosso caminho é o caminho da morte e do sacrifício para
reconquistar nossa pátria. Se não conseguirmos, nossos filhos
conseguirão. Se eles não conseguirem, seus filhos conseguirão. (...)
Nossa luta revolucionária se inspira nas lutas de libertação nacional
contra o colonialismo e o imperialismo (...) o movimento Al Fatah
proclama solenemente que o ‘objetivo’ final de sua luta é a restauração
do Estado Palestino independente e democrático, cujos cidadãos, seja
qual for o seu credo, gozarão de direitos iguais’ (...) o que você chama
de Israel é a minha casa. (...) Nosso objetivo é a libertação da Palestina
por meio das lutas armadas, que acreditamos ser a única maneira de
conseguir nosso intento (...) nossa luta é encabeçada pelo povo palestino
e seu esteio é o povo árabe como um todo. (...) A agressão colonial
sionista e a criação do Estado de Israel privaram-nos do nosso direito
de viver como um povo livre. (Arafat. s/d: 7-33)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

663
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O posicionamento de Arafat e da OLP é um reflexo da conjuntura política-


ideológica da época. O líder palestino escreve após a Guerra dos Seis e explicita sua
decepção em relação à unidade árabe para combater Israel (“ninguém pode impor sua
revolução aos outros”). Outro aspecto relevante é a menção as: lutas de libertação
nacional, ao colonialismo e a colonial sionista, que estão relacionadas com a
bipolarização característica da Guerra Fria, uma vez que os países árabes eram aliados da
União Soviética e Israel sempre esteve associado aos Estados Unidos.
A proposta inicial da OLP e do Al-Fatah contemplava apenas a possibilidade de
uma solução via luta armada para a emancipação palestina. Com o passar do tempo as
circunstâncias foram sendo alterada, a proliferação dos ataques terroristas, a repercussão
mundial da Primeira Intifada (Revolução das Pedras, 1987) e acontecimentos no Oriente
Médio forçaram os palestinos a buscarem uma solução pacífica para o conflito.
Com o crescente apoio da opinião pública em prol da criação do Estado Palestino
Yasser Arafat, mais de vinte anos após ter assumido a liderança da OLP, deparou-se com
um novo e inquietante desafio: conseguir o equilíbrio e a aceitação entre os que
concordam com uma saída diplomática e os que ainda defendem a luta armada como
único caminho.

Desde o início da década de 1970, os ataques terroristas multiplicavam-


se, o que reforçava o argumento da impossibilidade de qualquer
negociação. (...) Assim, a direção da organização decide pela mudança
de orientação política, passando a buscar soluções diplomáticas para a
luta pelo reconhecimento da autodeterminação dos palestinos. Esta
opção não é feita sem dificuldades; muitos palestinos, a essa altura,
nascidos e criados em campos de refugiados, relutam em desistir da luta
armada. (Grimberg. 2000: 119)

Passada a euforia inicial pela possibilidade de criação do Estado Palestino através


dos acordos de Oslo, que rendeu a Arafat e Rabin o Prêmio Nobel da Paz em 1994, os
primeiros resultados do acordo de paz produziram ao mesmo tempo o descontentamento
de grande parte das facções palestinas resistentes a Arafat (que agora se via reconhecido
como interlocutor palestino nas negociações com Israel), de Israel (que não se satisfazia
com a ação do líder da Autoridade Palestina contra os grupos “terroristas”) e dos demais
países árabes do Oriente Médio (que repudiaram a atitude de Arafat em assinar a paz).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

664
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para Edward Said (2003) o “Processo de Paz” iniciado pelo acordo de Oslo I
(setembro de 1993) representou a legitimação para a continuidade da ocupação israelense
dos territórios palestinos: pois a população palestina vivencia desde então o processo de
“apartheid” social, territorial, político sem ter efetivamente garantido a
autodeterminação.
Arafat começou a perder cada vez mais popularidade e respeitabilidade entre os
palestinos que percebiam que suas promessas não se concretizavam e o Estado Palestino
continuava “existindo” apenas em esboços de papel discutidos nas infindáveis mesas de
negociação.
Como afirmou Hobsbawm (1990) o passado constitui-se “no elemento
fundamental das ideologias nacionalistas”, pois é sempre possível recriar um passado
“satisfatório” na medida em que o objetivo das ideologias nacionais é a construção do
presente. Exatamente por isso o nacionalismo busca na tradição, no sentimento de
“pertencer a uma coletividade” o referencial, o elemento que ultrapassa a esfera do
indivíduo:

No entanto, o nacionalismo também envolve um contínuo processo


dinâmico em que os símbolos são constantemente recriados, e novos
significados são atribuídos a eles, conforme as mutáveis circunstâncias
através das quais a vida da comunidade se desenvolve. A representação
dos ritos comuns realça o sentimento de unidade entre os membros da
nação. A exibição de certos símbolos identificados com a vida do grupo
desperta profundos e apaixonados sentimentos que não podem ser
reduzidos a uma causa racional. (Guibernau. 1997: 154)

Estabelecer a relação do orientalismo316 com a produção acadêmica e intelectual


ocidental de uma visão idealizada, romantizada sobre o Oriente que forjou um discurso
legitimador da autoridade do Ocidente sobre o Oriente, condicionando o olhar sobre a
Questão Palestina.

3162
Edward Said (1990. p. 13-39): Para Said, o orientalismo é a disciplina acadêmica ocidental que instituiu
cátedras sobre o estudo das sociedades orientais, que produziram representações dessas culturas, sociedades
e histórias, que fomentaram uma visão “conveniente” e “adequada” aos interesses da cultura ocidental. Essa
visão proclama a superioridade da cultura ocidental sobre a tradição oriental, legitimando o culto
exacerbado as instituições e valores preconizados pela civilização ocidental.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

665
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Edward Said tornou-se conhecido e respeitado internacionalmente a partir da


confecção de suas obras Orientalismo e Cultura e Imperialismo. Para ele, o orientalismo
forjou a partir do “conhecimento” acadêmico e científico produzido pelo Ocidente uma
construção do Oriente como “entidade abstrata”, como “totalidade homogênea” que
mascarava as características singulares daqueles diferentes povos, países, nações e
culturas.
Edward Said postula que embora a premissa mais comumente aceita para o
orientalismo seja a acadêmica – ainda que de forma distinta do século XIX continua
produzindo teses sobre o oriente e o oriental –, o conceito abarca diversos aspectos
interdependentes:

Enquanto setor do pensamento e do conhecimento, o orientalismo


compreende naturalmente vários aspectos sobrepostos. Em primeiro
lugar, a relação cultural e histórica cambiante entre Europa e Ásia –
uma relação com 4 mil anos de história. Em segundo, a disciplina
científica no Ocidente segundo a qual, a partir do século XIX, alguém
se especializava no estudo de várias culturas e tradições orientais. Em
terceiro, as suposições, imagens e fantasias ideológicas sobre uma
região do mundo chamada Oriente. O denominador comum desses três
aspectos do orientalismo é a linha que separa o Ocidente da Oriente, e
essa linha, sustentei eu, é mais um fato da produção humana do que da
natureza – chamei-a de geografia imaginativa. Porém, isso não significa
que a divisão entre Oriente e Ocidente não mude, nem que seja
simplesmente fictícia. (...) É obvio que não poderia haver orientalismo
sem orientalistas, de um lado, e orientais, do outro. (SAID, 2003: 62)

Um dos legados nefandos do orientalismo foi um certo tipo de “historicismo


universalizante” proposto por autores como Vico, Hegel e Marx – que segundo Said é
uma de suas bases epistemológicas – pautado na crença de que a as ações dos seres
humanos podem ser apreendidas historicamente, na medida em que possuem algum tipo
de unidade, de coerência, e consequentemente, aspectos e características comuns a
determinadas épocas que são distintas das demais.
Essa postura epistemológica historicista favoreceu a difusão na academia de
análises, teorias e leituras do Oriente sob “o prisma superior” quer de um especialista
ocidental em estudos orientais ou de trabalhos e estudos decorrentes da dominação
colonial européia – em ambos os casos sempre uma visão externa, ideologicamente

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

666
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

comprometida e que negligenciou as idiossincrasias e particularidades dos povos, etnias


e culturas orientais em prol da construção do Oriente como uma “totalidade homogênea”.

No que se refere ao orientalismo em particular e ao conhecimento


europeu de outras sociedades em geral, o historicismo significou que a
história humana que unia a humanidade culminava na Europa ou era
observada do ponto de vista da Europa e do Ocidente. Portanto, o que
não era observado nem documentado pela Europa permanecia
“perdido” até que, em data posterior, pudesse ser incorporado pelas
novas ciências da antropologia, da economia política e da lingüística.
(...) Mas junto com a maior capacidade de tratar daquilo que Ernest
Bloch chamou de experiências não-sincrônicas do Outro da Europa veio
um silêncio bastante generalizado quanto à relação entre o imperialismo
europeu e esses conhecimentos constituídos e articulados de forma
variada. (SAID, 2003: 72-73)

É importante enfatizar o papel da representação na construção intelectual do


orientalismo, na verdade representações, e o orientalista não obstante o que esteja
produzindo ou postulando sobre o Oriente torna explícito que “o que ele diz e escreve,
devido ao fato de ser dito e escrito, quer indicar que o orientalista está fora do Oriente,
tanto existencial como moralmente. O principal produto dessa exterioridade é, claro, a
representação.” (SAID, 1990: 32)
As construções e representações do oriental e do Oriente forjaram um arquétipo,
um modelo conveniente, adequado aos interesses orientalistas de expor “as fraquezas
inerentes” a tradição oriental e submeter intelectualmente o Oriente ao Ocidente.
Para o desenvolvimento da dissertação alguns conceitos serão de fundamental
importância dentre eles: opinião pública, identidade, legitimidade, hegemonia, capital
simbólico, campos de poder, habitus, orientalismo e alteridade.
Como hipótese inicial para o desenvolvimento do projeto parti do pressuposto que
Israel tinha uma perspectiva bastante favorável na imprensa brasileira no embate contra
os palestinos pela conquista da opinião pública durante as décadas 1960 e 1970, e suas
ações durante a Guerra dos Seis Dias (1967) e a Guerra do Yom Kippur (1973), forma
vistas pela mídia e entendidas pela opinião pública como legítimas.
A partir do final dos anos 1970 e do início dos anos 1980, com a ascensão dos
partidos de direita ao poder, as ações israelenses subsequentes, Invasão do Líbano (1982)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

667
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

e Primeira Intifada (1987) tiveram avaliações e repercussões totalmente distintas das duas
primeiras. Em ambas a postura israelense foi considerada ilegítima, abusiva, uma
violência aos direitos humanos e ao princípio de autodeterminação dos povos, das
culturas. A imprensa brasileira rompeu com a “tradicional” perspectiva pró-Israel vigente,
até então, nos veículos de comunicação nacionais.
Outra hipótese é a de que apesar do aparente “sucesso” político obtido por Israel
nos acordos de Camp David (1979), o “capital” adquirido que parecia favorecer os
interesses israelenses após o Egito “abster-se” da luta dos palestinos pela implementação
do Estado Palestino, em troca da devolução dos territórios ocupados por Israel na
Península do Sinai, revelou-se um grande fracasso quanto a aceitação da opinião pública,
o que contribuiria decisivamente para a chegada dos partidos de direita israelenses ao
poder – com um discurso de ação radical contra os palestinos.
Progressivamente a opinião pública modificou sua sensibilidade assumindo uma
postura se não francamente favorável aos palestinos, ao menos bastante crítica em relação
ao Estado de Israel. Essa ruptura no discurso favoreceu a difusão de novas memórias que
entraram em conflito com as tradições consagradas.
Para o desenvolvimento da pesquisa utilizei como fontes dois jornais e duas
revistas de circulação nacional - Cadernos do Terceiro Mundo, Folha de São Paulo, O
Globo e Veja –, objetivando a visualização dos diferentes posicionamentos destes
veículos midiáticos e a percepção da “transformação” da opinião pública que até o final
da década de 1970 sempre se demonstrou bastante favorável aos israelenses e que após a
ascensão dos governos de direita em Israel muda sensivelmente e passa a se “sensibilizar”
com a “causa palestina”.
A Folha de São Paulo e O Globo foram selecionados por serem veículos de grande
circulação, repercussão nacional e abordagens distintas, possibilitando perceber como a
imprensa paulista e carioca apresentaram os eventos relacionados aos embates entre
israelenses e palestinos no período que se estende da Guerra dos Seis dias (1967) até o
início da Primeira Intifada (1987) e influenciaram a opinião pública brasileira, além de
consagrar uma memória social destes episódios decorrentes da criação do Estado de Israel
e da Questão Palestina.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

668
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Veja e Cadernos do Terceiro Mundo foram incorporados ao corpo documental


desta pesquisa por possuírem visão e posicionamento ideológicos diametralmente
opostos, a primeira definida por Carla Luciana Silva (2009) como o “indispensável
partido neoliberal” e por Felipe de Farias (2012) como “o orientalismo revisitado”; a
segunda, notadamente de tendência socialista, o que se reveste de especial importância,
pois o recorte temporal do projeto insere-se no contexto da “Guerra Fria” onde os veículos
de comunicação – mesmo que de forma não explicitada – dirigiam-se para um público
que também assumia posições polarizadas sobre mídias “de direita” ou “de esquerda”,
sobre a imprensa liberal ou alternativa.

Referências Bibliográficas

ARAFAT, Yasser. Porque lutam os palestinos. Rio de Janeiro: Paralelo, s/d.

AVNERY, Uri. Outro Israel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

BACKMANN, René. Um muro na Palestina. Rio de Janeiro: Record, 2012.

BARBOSA, Renata Mazzeo. Solidariedade e resistência em tempos sombrios: as


associações judaicas no Estado de São Paulo (1937-1950). Orientadora: Profª Drª Maria
Luiza Tucci Carneiro. São Paulo: USP/PHS/FLFCH, 2008. Dissertação de Mestrado.

BECKER, Jean-Jacques. A Opinião Pública. In: René Remond (org). Por Uma História
Política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. (p. 184-211).

BISHARA, Marwan. Palestina/Israel: a paz ou o apartheid. São Paulo: Paz e Terra,


2003.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel / Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1989.

DUPAS, Gilberto e VIGEVANI, Tullo (org.). Israel−Palestina: a construção da paz


vista de uma perspectiva global. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

ELIAS, Norbert. Escritos e ensaios: 1. Estado, processo, opinião pública

FARIAS, Felipe Vagner Silva de. O orientalismo revisitado - a cobertura da Veja ao


islamismo e ao mundo árabe no pós-11 de setembro. Orientadora Profª. Drª. Adriana
Facina Gurgel do Amaral. Niterói: UFF/Instituo de Ciências Humanas e
Filosofia/PPGHS, 2012. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

669
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

FINKELSTEIN, Norman G. Imagem e realidade no conflito Israel-Palestina. Rio de


Janeiro: Record, 2005.

FLINT, Guila; SORJ, Bila Grin (Org.). Israel – Terra em transe: democracia ou
teocracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

FLINT, Guila. Miragem de paz: Israel e Palestina: processos e retrocessos. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

FRIEDMAN, Thomas L. De Beirute à Jerusalém. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.

GOLDFELD, Monique Sochaczewski Batista. O fim da equidistância: o veto brasileiro


ao sionismo e a política externa do governo Geisel para o Oriente Médio (1974-1979).
Orientador Prof. Dr. Orlando de Barros. Rio de Janeiro: UERJ/PPGH, 2004. Dissertação
de Mestrado.

GONZAGA, André Luís. A política externa brasileira e a questão palestina: análise


da imprensa e da diplomacia no período de 1945-51. Orientador: Prof. Dr. Clodoaldo
Bueno. Assis/SP: UNESP/Faculdade de Letras e Ciências de Assis, 2008. Dissertação de
Mestrado.

GRIMBERG, Keila. O mundo Árabe e as guerras árabe–israelenses. In: REIS FILHO,


Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste (org.). O século XX: o tempo das
dúvidas, do declínio das utopias às globalizações. Volume III, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000.

GURION, David Ben. Israel. Rio de Janeiro: Tradição, 1967.

HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e


realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

JARDIM, Denise Fagundes. Palestinos no extremo sul do Brasil: identidade étnica e


os mecanismos sociais de produção da etnicidade – Chuí/RS. Orientador: Professor
Dr. João Pacheco de Oliveira Filho. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS/Museu Nacional,
2000. Tese de Doutorado.

______ . Palestinos: as redefinições de fronteira e cidadania. Horizontes


Antropológicos, Porto Alegre, ano 9, n. 19, p. 223-243, julho de 2003.

______ . Imigrantes palestinos na América Latina. Estudos Avançados 20 (57), p. 172-


181, 2006.

JUDT, Tony. Reflexões sobre um século esquecido, 1901-2000. Rio de Janeiro:


Objetiva, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

670
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MASSOULIÉ, François. Os conflitos no oriente médio. São Paulo: Ática, 1996.

MEIR, Golda. A luta pela paz. Rio de Janeiro: Delta, s/d.

MONTEFIORE, Simon Sebag. Jerusalém: a biografia. São Paulo: Cia. das Letras,
2013.

MONTENEGRO, Silvia M.. Dilemas identitários do Islã no Brasil. Tese de Doutorado,


IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro. 2000.

______ . Discursos e contra-discursos: o olhar da mídia sobre o Islã no Brasil. Mana


[online]. 2002, vol.8, n.1, pp. 63-91. ISSN 0104-9313.

NAPOLITANO. Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo:


Contexto, 2014.

OREN, Michael. Seis dias de guerra: junho de 1967 e as origens do moderno Oriente
Médio. Rio de Janeiro: Record, 2005.

SAID, E. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia


das Letras, 1990.

______ . Reflexões sobre o exilo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

______ . Cobrindo o islã: como a mídia e os especialistas determinam nossa visão do


resto do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.

______ . A questão Palestina.São Paulo: UNESP, 2012.

SAND, Shlomo. A invenção do povo judeu: da Bíblia ao Sionismo. São Paulo: Benvirá,
2011.

_______ . A invenção da terra de Israel: da Terra Santa à Terra Pátria. São Paulo:
Benvirá, 2014.

SCHVARTZMAN, Gabriel Steinberg. A Montanha Azul de Meir Shalev: uma leitura


pós-sionista da sociedade israelense. Orientadora Profª. Drª. Nancy Rozenchan. São
Paulo: USP/FFLCH/Programa de Pós-Graduação em Língua Hebraica Literatura e
Cultura Judaicas/ Departamento de Línguas Orientais , 2005. Tese de Doutorado.

SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do habitus em Bourdieu: uma leitura


contemporânea. Revista Brasileira de Educação: Maio/Jun/Jul/Ago 2002 Nº 20.

SHEHADEH, Raja. Caminhos palestinos: notas sobre uma terra em extinção. Rio de
Janeiro: Record, 2009.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

671
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SILVA, Carla Luciona. VEJA: o indispensável partido do neoliberalismo (1989-


2002). Cascavel: Ediunioeste, 2009.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

672
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para além da Marcha da Vitória: Estudo de caso sobre a “Marcha da Família”


realizada no município de Niterói em maio de 1964

CRISTIANO DA SILVA MOREIRA


PPGHIS/ Universidade Salgado de Oliveira

Introdução

O golpe Civil-Militar que derrubou o governo do Presidente João Goulart teve em


sua fase de desenvolvimento várias entidades e instituições envolvidas que apoiaram e
deram voz a este ato político. Entre estas entidades estão as que se denominavam
femininas, de cunho político e religioso, e que inflamaram os sentimentos e o imaginário
do povo brasileiro em algumas cidades levantando a sua principal bandeira em defesa da
igreja e anticomunista. No estopim do aparecimento destas entidades femininas estava a
conjuntura política do início da década de 60. As eleições para presidente do Brasil
realizada no ano de 1960 havia consagrado o candidato Jânio Quadros, que tinha por
discurso principal “varrer” a corrupção do país (BENEVIDES, 1981: 19-29). Junto a este,
a vice-presidência havia sido ocupada por uma figura emblemática desde os tempos de
que foi Ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, o candidato gaúcho João Goulart.
Jango, como era conhecido em sua alcunha, tinha por marca em sua trajetória
política um alinhamento com os sindicatos trabalhistas, que por sua vez eram um
movimento com ideologias alinhadas aos movimentos dos trabalhadores e de partidos
comunistas (FAUSTO, 1995: 410). Depois de um governo relâmpago que durou pouco
mais de seis meses, devido a pressões sempre questionadas, Jânio renuncia ao cargo de
Presidente da República deixando vago para ser assumido pelo seu vice-presidente. Nos
primeiros momentos foram grandes as manifestações no Congresso Nacional tentando
impedi-lo de assumir a presidência, porém depois de alguns dias de discussões e tentativas
de seus opositores de impugnar o seu mandato, João Goulart assume a presidência sob
uma estrutura ministerial de modelo parlamentaria (Gabinete Parlamentar) a quem
caberia direção e a responsabilidade da política do governo e da administração geral, ou
seja, o presidente determinava o Primeiro Ministro e este delegava quem seriam os seus
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

673
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

conselheiros ministeriais, de acordo com a aceitação do Congresso Nacional (TOLEDO,


1993: 19-21). Se o período era de movimentação política, dentro e fora dos partidos, supor
que alguma instituição conseguiram ficar alheio as mudanças que estavam ocorrendo, ou
pelo menos não ser influenciado por essas mudanças, era algo inconcebível. As
instituições religiosas de todas as ramificações estavam dentro desta sociedade civil que,
mesmo por vezes mantendo o devido distanciamento das ações políticas partidárias, não
conseguiram estar de fora das mudanças que estavam ocorrendo no Brasil. E em
particular, a Igreja Católica, instituição que sempre manteve um contato direto com as
lideranças políticas do país desde o seu descobrimento, não esteve distante e nem alheia
a tudo. E por mais independente que esta instituição religiosa pudesse se colocar devido
ao seu “patrimônio espiritual”, os seus conceitos de civilização e de como uma sociedade
deveria se comportar-se, que estavam em discussão neste momento, lhe inseriam vez ou
outra ao centro dos debates (GASPARI, 2002: 241-243). A maior parte desta instituição
pendera para o golpe civil militar, e deram-lhe base popular através das “Marchas da
Família”, financiadas pelo complexo IPES/IBAD317 (DREIFUSS, 1981, p. 417-457), bem
como a maioria das entidades femininas que surgiram com este mesmo formato. Poucos
meses após Jango se torna Presidente do Brasil, em 7 de setembro de 1962, a Campanha
da Mulher Brasileira em Defesa da Democracia, e que ficou popularmente conhecida
como Campanha da Mulher Pela Democracia (CAMDE) surgia no cenário nacional.
Como narra o relatório prestado por esta entidade ao I Congresso Sul Americano da

317
Segundo Dreifuss, o IPES/IBAD foi um complexo de políticos, empresários, militares, e representantes
de diversas religiões com a intenção de implantar no Brasil um modelo econômico liberal, que acreditavam
eles, ser o necessário para tirar o país do atraso na escalada do progresso entre as nações. O IBAD – Instituto
Brasileiro de Ação Democrática – teve seu início de trabalho ao fim do governo de Juscelino Kubitschek,
quando em sua administração começou a ser observado um crescimento inflacionário, e se fortaleceu
através de conversas entre jovens empresários no governo de Jânio Quadros através da figura de Paulo
Ayres Filho, então diretor do Banco do Brasil. Com a renúncia do presidente Jânio Quadros as ações do
grupo de empresário se tornaram as claras, principalmente para criar uma oposição a João Goulart.
Dedicado anticomunista, Paulo Ayres Filho por sua vez convocou a João Batista Leopoldo Figueiredo, ex-
presidente do Banco do Brasil e empresário multinacional, que ficou a frente do IPES – Instituto de
Pesquisas e Estudos Sociais –, para também recrutar outros empresários e pessoas que pudessem cooperar
com o planejamento de inserir as suas políticas econômicas e anticomunistas em São Paulo. No Rio de
Janeiro, empresário como Gilbert Hulber Jr, Antônio Gallotti, Glycon de Paiva, José Garrido Torres, entre
outros, estiveram a frente do recrutamento de outros empresários e militares como os Generais Goulbery
do Couto e Silva e Heitor Herreira. O IPES passou a existir oficialmente em novembro de 1961, e teve
apoio do jornais cariocas como Jornal do Brasil, Última Hora, O Globo e o Correio da Manhã, e de figuras
eclesiásticas como Dom Jaime de Barros Câmara (DREIFUSS, 1981: 161-163).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

674
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Mulher em Defesa da Democracia realizado em novembro de 1965318, esta entidade


feminina teve seu início em 14 de junho de 1962, estando reunidos em uma casa em
Ipanema fiéis da igreja de N.S. da Paz junto a seu vigário, o Frei Leovegildo Balestrieri,
com a participação do General Antônio de Mendonça Molina, militar da reserva altamente
condecorado com a Medalha do Pacificador e a Estrela de Bronze, pelos seus feitos na
Segunda Grande Guerra no cenário da Itália. Na obra de Scocuglia e Machado é
apresentado que o General Molina, evocando valores religiosos e cívicos, leva este grupo
a se estenderem muito além das salas que se reuniam, e sob a presidência de sua irmã,
dona Amélia Molina Bastos, começam a desenvolver trabalhos em comunidades carentes
com intenções que iam além da assistência social e que serviam como “um trabalho de
educação e de conscientização do perigo que rondavam as famílias brasileiras com a
aproximação do comunismo” na figura do então presidente João Goulart (MACHADO,
2006: 194). Segundo Dreifuss, a ações da Campanha da Mulher pela Democracia vão ser
fortemente potencializadas pelo apoio financeiro do Instituto de Pesquisas e Estudos
Socais (IPES), que possibilitou um maior alcance das ações chegando a ser a CAMDE a
primeira entidade feminina que impulsionou as ações de outras entidades de classe média
em São Paulo e Minas Gerais como a Liga da Mulher Democrática (LIMDE), a União
Cívica Feminina (UCF), e o Movimento de Arregimentação Feminina (MAF)
(DREIFUSS, 1981: 291-298). Para as pesquisas de Janaína Cordeiro, as entidades
femininas são frutos de uma crescente de insatisfações que teve como primeira a União
Cívica Feminina de São Paulo (UCF/SP), sendo esta criada nos fins de 1961, mas,
somente registrada em fevereiro de 1962 (CORDEIRO, 2009, 175-208). Independente de
quem foi a primeiro ou ainda influenciador do movimento, o importante para a nossa
pesquisa é perceber a força destes grupos no meio civil e religioso, uma vez que as suas
ações alcançavam tanto ambos os grupos, circulando um discurso que fosse favorável a
construção de um imaginário anticomunista, que tinha como figura principal o presidente
da república recém empossado.

O catolicismo e o imaginário carioca no Apoio a “Marcha”.

318
Arquivo Nacional, FUNDO - Relatório de atividades da CAMDE, 1967.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

675
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O combate ao comunismo não era uma atitude nova em relação a Igreja Católica,
entretanto, neste momento estava tomando conotações de ação política no cenário
brasileiro. De acordo com as pesquisas de Rodrigo Motta (MOTTA, 2002: 35-39), o
mundo combativo idealizado pela igreja não havia iniciado naqueles dias. Em toda idade
média, desde a sua criação, a igreja havia construído uma visão defensiva e de resistência
a uma possível invasão do mundo infernal. Nesta forma de pensar, todos aqueles que por
ventura fossem achados em ações que colocassem em risco a condição de domínio e da
lógica moral da igreja eram vistos como forças malignas a serem combatidas. Tanto as
sinagogas judaicas como o Império Romano, o Arianismo, os Bárbaros, a Renascença, a
Reforma Protestante e a Revolução Francesa, entre outros, tiveram o mesmo destino de
serem entendida como forças inimigas a santa fé Católica. No fim do século XIX outra
ameaça rondava os domínios eclesiásticos. Este último, a Revolução Francesa, em
especial levantou uma nova forma de pensar este combate. A luta agora era pelas mentes
e contra o ateísmo. A igreja não teria que combater em cruzadas contra os “hereges” pois,
estes não teriam rostos somente mas as suas ideias eram o que mais afetava a igreja. No
ano de 1878 a encíclica de Leão XIII, Quod Apostolici Muneris, já apontava para uma
inclinação combativa: “(...) nos referimos a esta seita de homens que, debaixo de nomes
diversos e quase bárbaros, se chamam socialistas, comunistas ou niilistas (...)”. Neste
documento o Papa orientava a Igreja Romana a proteger os trabalhadores das influências
“malignas” deste que buscavam arregimenta-los, e que era um dever da igreja conferi-los
um espírito de mansidão e de consciência que deveriam aceitar a sorte que tinham. Em
1891, o mesmo Papa volta a este tema através da encíclica Rerum Novarum, porém agora
de forma mais incisiva ele ataca o socialismo dizendo se este o grande responsável de
provocar a discórdia entre trabalhadores pobres contra os ricos. A ordem agora era se
organizarem em grupos cristãos de operários que pudessem barrar o avanço de ideias que
negavam a Deus, incitavam a luta, e por isto contrária aos ideais pacíficos cristãos da
igreja. Com o advento do século XX, uma onda e movimento comunistas de ordem
trabalhista deflagraram a Revolução Russa transformando este cenário o mais perigoso
até então para a igreja. O padre Beozzo acrescenta em suas pesquisas que no Brasil do
Estado Novo, após anos de afastamento entre o poder político central e a igreja,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

676
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

provocado pelo cismo do Período Imperial e da laicização ocasionado pela Proclamação


da República, esta agora gozava de uma maior simpatia a partir do governo de Getúlio
Vargas. A Igreja Católica brasileira encontrou neste o seu grande defensor destes tempos
de política no Rio Grande do Sul. Agora na presidência, esta foi a sua grande aliada ao
combate a um inimigo comum, porém já bem antigo para o meio eclesiástico: o
comunismo (BEOZZO, 2007: 340-350).
O anticomunismo se intensificou ao fim da era getulista, e principalmente por
ocasião do fim da Segunda Grande Guerra. Com o alinhamento da política brasileira com
o ideal capitalista norte americano a luta contra o bloco comunista, que tinha como
principal símbolo a União Soviética Stalinista, cada vez mais tomava contorno de guerra
religiosa. E esta guerra era apresentada nos jornais impressos como sendo entre a cultura
cristã ocidental e a opressão comunista vermelha, sendo o vermelho uma clara alusão a
uma ideia associada ao inferno na religião cristã. Matérias como a publicada no jornal O
Fluminense do dia 25 de fevereiro de 1960 não eram a exceção neste momento. Na
matéria que tinha como título Luta contra o Clero, foi publicado a seguinte notícia:

Outra tática diz respeito a luta anti-religiosa sustentada pelos


comunistas (...) o atual objetivo do comunismo é exclusivamente a luta
contra o clericalismo (em se tratando de catolicismo) e os dirigentes de
outras seitas religiosas como o protestantismo, evangelismo, etc. (...)
Vemos assim que a co-existência pacífica não passa de simples
estratégia comunista dentro do seu imenso plano de minar as defesas
democráticas e religiosas em todas as partes para facilitar o domínio da
terra pelo bloco Moscou-Pequim (O Fluminense, 25/02/1960: 6)

Este mesmo tipo de anúncio podia ser visto em jornais como o A Cruz, da Paróquia
de São João Batista onde, na coluna do Padre Damian Rodin, questionava a aparente
passividade dos comunistas e proclamava que estes eram na realidade nocivos ao mundo
(A Cruz, 10/01/1960: 6). Publicações como o Jornal do Brasil que em sua contra capa do
início do ano de 1960, uma matéria que apresentava as pretensões do presidente norte
americano de visitar a América do Sul e intensificar o plano de combate ao comunismo
(Jornal do Brasil, 05/01/1960: 2). Impressos hebdomadários e diários, e que contavam
com vendagens expressivas, eram comuns no Rio de Janeiro com matérias que evocavam
uma clara noção de eminente perigo. Religião e Política juntas no mesmo mundo social

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

677
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

construindo uma forma de entender a realidade a partir de um combate ao inimigo


comum. Esta guerra por sua vez tinha um potencializador, que eram as publicações que
circulavam na cidade do Rio de Janeiro, e que tinham além da intenção de vendagem uma
clara inclinação de apoio ao capitalismo conservador de modelo estadunidense.
Estudar os jornais que circulavam no Rio e Estado da Guanabara durante as
décadas de 50 e 60 serve para percebermos como estes estavam alinhados com uma forma
de pensar o país. Neste momento pensar mídia impressa no Brasil era sem dúvidas
associar a um grande nome que estava por trás das empresas que pertenciam ao grupo
Diários Associados: Assis Chateaubriand. Segundo Laurenza, este foi o grande apoiador
do Golpe Civil-Militar que se apresentou em 1º de Abril de 1964. Advogado, Jornalista,
Empresário, ex-dono dos laboratórios Schering e do Licor de Cacau Xavier, Senador e
ex-embaixador do Brasil no Reino Unido, “Chatô” como era chamado, foi um dos
organizadores da “Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade” junto com o
governador Adhemar de Barros em São Paulo, e foi no saguão dos Diários Associados
que a campanha “Ouro para o bem do Brasil” teve o seu posto de arrecadação onde
milhares de donas de casa trocaram suas alianças de casamento por uma de latão que se
lia “Legionários da Democracia”. Publicações como a revista O Cruzeiro e A Cigarra, e
os jornais Diário da Noite, Jornal do Commercio, O Jornal, e a emissora Rádio Tamoio
e a de televisão TV Tupi, eram as principais comercializadores desta forma de pensar no
Rio de Janeiro, em meio outras tantas espalhadas pelo Brasil. Outro jornal impresso de
extrema importância no Rio de Janeiro foi a Tribuna da Imprensa, do político e advogado
Carlos Lacerda, grande opositor das políticas da Reforma de Base de João Goulart e que
fazia questão de proclamar o perigo comunista em suas páginas. Segundo Dantas, outras
mídias impressas também fora importantes neste processo como a Tribuna da Imprensa,
do político e advogado Carlos Lacerda, grande opositor de João Goulart e do comunismo
no Brasil, e seu o defensor do governo, o jornal Última Hora, do jornalista Samuel
Wainer. De todos não podemos de esquecer o jornal O Globo, de Roberto Marinho que
se juntara a apoiar o golpe civil-militar em troca de empréstimos vantajosos
(LAURENZA, 2008: 179-195). Todo este imaginário contribuiu para formar uma
ideologia de combate ao comunismo no Brasil, e em especial para a nossa pesquisa, no
Rio de Janeiro que recebeu a maior concentração da edição da “Marcha da Família, com
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

678
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Deus e pela Liberdade” desde a ocorrida na capital paulista em 19 de março de 1964. O


evento do Rio fora desenvolvido na Avenida Rio Branco, e o jornal O Globo publicou em
sua capa da seguinte forma:
“Mais de 800 mil pessoas na “Marcha da Vitória”! Impressionante massa humana
transformou a Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade na maior manifestação
democrática jamais vista no Brasil e que serviu como demonstração esplêndida de repúdio
do povo ao comunismo”. (O Globo, 03/04/1964: 1).

A Marcha da Família realizada em Niterói

Mesmo após a Intervenção Militar, as “Marchas” seguiram como forma de


mostrar o apoio a nova ordem política que havia sido imposta pelos militares. Tornou-se
comum ver os noticiários apresentados em diversos municípios do Rio de Janeiro, uma
versão da “Marcha da Vitória” desenvolvido na Avenida Rio Branco, e que contou com
uma população com forte expressão numérica. As entidades femininas, e em particular a
CAMDE juntamente com as representações locais da Igreja Católica, manifestaram seu
apoio aos militares e seu espírito de combate ao comunismo em defesa da religião cristã.
Cidades como Nilópolis, Barra Mansa, Vassoura, Pádua, São Gonçalo, Angra dos Reis e
Caxias, entre outras, puderam contar com total apoio de entidades femininas, do governo,
assim como de representações do Exército Brasileiro e de autoridades eclesiásticas para
prestigiarem os seus eventos. O evento de Niterói, realizado no dia 15 de Maio de 1964,
esteve entre estas tantas “Marchas” de apoio ao Golpe Civil-Militar. Porém, se apenas
olharmos de forma superficial não teremos em nossa pesquisa a compreensão de como
estas manifestações seguiram cursos totalmente impares de acordo com os locais em que
se apresentaram. E de todas as “Marchas”, a que apresentou uma maior expectativa de
números de pessoas foi a edição de Niterói. Assim o jornal Diário Carioca publicou a
matéria sob título “CAMDE promove “Marcha” que promete 250 mil às ruas”:

“(...) As organizadoras da “Marcha” revelaram que todas as unidades


sediadas em Niterói e São Gonçalo deverão enviar colunas de praças e
oficiais e que participaram as bandas do Corpo de Bombeiro e Polícia
Militar, Instituto Abel e várias outras. Também delegações de vários
municípios, agremiações sindicais, esportivas, estudantis e religiosas
estarão presentes (...)” (Diário Carioca, 15/05/1964: 9)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

679
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A expectativa formada em torno da manifestação era grandiosa segundo a


publicação, chegando os organizadores a acreditarem que o evento de Niterói faria
lembrar as grandes concentrações exibidas nas cidades de São Paulo e do Estado da
Guanabara. Jornais como A Luta Democrática, que tinha como presidente responsável o
político Tenório Cavalcante, não deixaram de enaltecer todo o processo de organização
que a “Marcha” de Niterói trazia. As publicações passavam um clima como se nada
pudesse impedir o seu sucesso, e que contava com o apoio de toda a população niteroiense
e dos municípios do Grande Rio (Luta Democrática, 14/05/19: 5). Já o jornal A Noite
enalteceu a influência do padre Ângelo Bruno da Igreja da Divina Providência, no bairro
da Engenhoca, como grande incentivador da que seria a “Imponente Marcha da Família”,
e que contava com a participação de várias pessoas ilustres (A Noite, 27/04/1964: 7).
Porém, o evento que em sua fase de organização se mostrava profícuo e vitorioso,
foi sendo substituído por uma percepção de que as ações não aconteceram da forma como
foi planejada. Muito embora todos os símbolos usados pelas “Marchas” anteriores foram
aproveitados para esta concentração como forma de associação imagética, como
bandeiras e slogans, e os convites de pessoas importantes das entidades religiosas e civis
estivessem de acordo com o evento, a concentração geral, segundo noticiários, ficaram
próximo a 10% do aglomerado populacional esperado na hora do acontecimento. Muitos
jornais não quiseram divulgar a quantidade dos participantes focando apenas no que fora
realizado, mas aqueles que o fizeram nos dá uma noção do sentimento de fracasso na
apresentação desta edição da “Marcha”. O Jornal do Brasil noticiou da seguinte forma o
acontecimento em Niterói:

Vinte mil pessoas participaram da “Marcha da Família, com Deus e pela


Liberdade” promovida ontem pela igreja da Divina Providência, e que
contou com a participação do Arcebispo Dom Antônio de Morais
Júnior, delegações estudantis, operárias e uma coluna de oficiais,
sargentos e praças do Exército e da Polícia Militar (...) (Jornal do Brasil,
24/04/1964: 13)

Podemos perceber que, para um evento que estava sendo programado com uma
perspectiva de aproximadamente 250 a 300 mil pessoas, como alguns previram, ser

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

680
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

apresentado com 20 mil aproximadamente é um indício que as manifestação não seguira


conforme os organizadores queriam os seus organizadores.

Entretanto, a mesma matéria aponta uma causa que pode ter sido.de alguma forma,
responsável de tão grande esvaziamento: O atraso de aproximadamente duas horas para
o início do evento. Seria este o motivo principal de tão grande renúncia populacional?
Um atraso seria o motivo da desistência de mais de duzentas mil pessoas? A matéria do
jornal Diário Carioca noticiou o episódio de Niterói, apresentando o mesmo problema de
ausência do apoio populacional em massa e levanta outra possibilidade para o ocorrido:

Embora estivesse previsto a participação de 300 mil pessoas, ontem a


realização da “Marcha da Família, com Deus e pela liberdade”, ontem
realizada em Niterói reuniu pouco mais de 20 mil pessoas (...). O
presidente da Legião Anticomunista, sr Joaquim Miguel Vieira
Ferreira, negou-se a subir no palanque oficial alegando que lá só tinha
comunistas. No momento em que o governador Paulo Torres dirigia a
sua mensagem ao povo somente mil pessoas estavam presentes, que
pouco a pouco saiam para as suas residências.

Esta matéria chama a atenção, em nossa pesquisa, para uma importante


possibilidade pelo qual o fracasso no evento, que era almejado um número em torno de
300 mil espectadores, mas, que na hora do pronunciamento do governador estava em
torno de apenas mil ouvintes presentes. Seguindo esta linha de pensamento, seria possível
que mesmo a fé cristã da população Niteroiense não fosse o suficiente para apoiar a
“Marcha”? Pelo que aparenta a resposta é positiva. Pois foi esta mesma fé que fez com
que houvesse esta tão grande rejeição na hora do comício, entendendo que os que estavam
para discursar em sua maioria negavam a fé católica, portanto, indignos de serem ouvidos.
Segundo Roger Chartier, o mundo social é composto por discursos que tendem a
confrontar-se e criar a partir de determinado grupo uma maneira de entender a realidade
(CHARTIER, 2002: 17-18). A “Marcha da Família” realizada em Niterói, muito embora
obedecesse a mesma apresentação da “Marcha da Vitória” realizado na Avenida Rio
Branco, no dia 02 de abril, de 1964, seguiu as suas próprias intenções políticas e
ideológicas. Intencionalmente, foram utilizados os símbolos que produziam uma noção
de continuidade de eventos, porém, em sua essência havia um interesse de legitimação de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

681
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

um determinado modelo político proposto pelos governantes deste município, e que viam
na “Marcha” uma excelente possibilidade de legitimação de poder.
Somente uma análise mais criteriosa nos permite percebermos os possíveis
rompimentos com o modelo idealizado da “Marcha da Família”. Porém, duas matérias
nos chamam a atenção quanto a noção de rompimento com o modelo original da
“Marcha”. A primeira se trata do acontecimento realizado em Caxias e que em
reportagem publicada no jornal Luta Democrática às vésperas de sua edição apresentava
uma desautorização por parte dos realizadores locais. Estes admitiam que pessoas
possivelmente estivessem querendo se aproveitar dos símbolos da “Marcha” para
proveito próprio e assumiriam o palanque para os discursos (Luta Democrática,
03/06/1964: 5). Sobre o dia do evento o jornal observou que, muito embora uma confusão
houvesse sido formada por determinado professor que estava a acusar o prefeito de Caxias
de uma administração desonesta, a mesma nota logo após observa que o grande e real
problema da manifestação estava por conta do grande número de “heróis da nação” que
proliferava após o golpe, aproveitando as manifestações para crescer politicamente (Luta
Democrática, 13/06/1964, p.5). Esta mesma observação foi levantada por Conceição da
Costa Neves, atriz que havia deixado a sua carreira para se dedicar a política em São
Paulo e foi uma das idealizadoras do evento naquela capital, vociferando em matéria
publicada no jornal Última Hora sobre a apropriação dos ideais da “Marcha” por parte de
pessoas “interesseiras” (Última Hora, 29/05/1964: 28). No caso de Niterói, esta acusação
se cumpre sendo anunciado pelo impresso Jornal do Commercio sobre o atual prefeito de
Niterói na época da “Marcha”. Segundo a matéria, Silvio de Lemos Pincanço que esteve
administrando o seu mandato durante os meses de janeiro de 63 a outubro de 64, manteve
contato direto com a China trazendo inclusive uma Feira de Pequim para se instalar na
localização (Jornal do Commercio, 04/06/1964, p. 4), agora juntamente com o Senhor
Celso Peçanha, um dos organizadores da Marcha em Niterói, que haviam se tornado
revolucionários da “Marcha da Família, com Deus pela Liberdade”. Acusações de
corrupção de muitos políticos associados a ele foram apresentados por parte deste jornal
que não poupou palavras criticá-los.

Conclusão
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

682
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Segundo Chartier, o meio popular cria a sua cultura e se manifesta de forma a


ensinar o seu público da mesma forma que o meio erudito, porém não de maneira
sistemática. Este ensino não sistemático se manifesta nos grupos religiosos através da
propagação de uma cultura popular de informações. Estas informações, como no caso da
“Marcha”, pode se manifestar pelas mídias impressas de grande circulação, ou mesmo
dentro de círculos de informações familiares, como cultos que acontece nos ares em dias
de círculos de estudos bíblicos, muito comum dentro das igrejas católicas, ou até em rodas
de bate papos antes ou depois das reuniões oficiais. Para Chartier, esta forma de
construção cultural estaria manifestada em todo lugar, uma maneira informal de conduzir
as informações (CHARTIER, 1995: 179-192.). O antropólogo Clinford Geetz que vai
além, defendendo que na religião a condição doutrinária ainda possibilita uma construção
de mundo idealizado de forma mais abrangente, uma vez que a própria religião parte de
pré supostos de mundo ideal. Este mundo idealizado provoca uma nova construção de
doutrina ou a adaptação da doutrina já construída, e assim mantem-se um ciclo cultural.
Se utilizando deste conceito de Geetz podemos perceber um discurso no mundo
idealizado da fé cristã comum a todas as crenças. E os próprios símbolos da “Marcha”
como “Deus”, “Famílias” e “Liberdade”, embora evoque uma série de outras realidades
conceituais e, por assim dizer culturais, pode ser facilmente assimilados dentro de cada
doutrina do credo católico ou de outras religiões, sendo os mesmos fáceis de serem
assimilados como aparte de suas realidades, tanto da população de menor poder aquisitivo
como de maior poder aquisitivo. Por esta sua condição híbrida, o poder destes símbolos
cristãos manifestados na igreja católica, alcançam um grande número de pessoas
possibilitando a organização de um grande quantitativo populacional para a defesa da fé
(GEETZ, 2008: 65-106). Sendo esta defesa da fé admitida para efeito de movimentação
política, a religião que assim abraça os símbolos acaba por se tonar uma ferramenta útil
de legitimação de poder político através da ideologia religiosa. No caso da “Marcha da
Família”, vimos que uma onda de eventos que em defesa do Golpe Civil Militar pode ser
orquestrado como parte de uma defesa da igreja, porém se tratava de legitimação de poder
político por parte daqueles que desejavam a saída de João Goulart da posição presidencial.
Este apoio teve a sua maior adesão no evento promovido pela CAMDE no Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

683
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

em torno dos símbolos Deus, Família e Liberdade. Símbolos estes que teve um poder de
agregar pessoas de todas as partes em nome de guerra contra o comunismo, independente
de quem estivesse a frente para palestrar no dia da “Marcha da Vitória”. Entretanto,
segundo o filósofo Terry Eagleton, nenhuma ideologia que se apresenta como cultural,
seja ela religiosa ou, não pode ser perpetuada se não houver diálogo com uma realidade
vivencial (EAGLETON, 1997: 38-40). No caso de Niterói, muito embora houvesse a
mesma intenção das marchas anteriores, e os mesmos símbolos tenham sido usados, o
evento não se concretizou como se desejava, e temos como principal motivo a posição
adotada pelo Prefeito Silvio Policanço que, em seu mandato segundo os redatores dos
jornais que denunciaram em nossa pesquisa, estava unido a desenvolvimento político
comunista, porém por ocasião da concretização do Golpe Civil Militar, se colocou como
revolucionário da Intervenção Militar.

BIBLIOGRAFIA

Fontes Primárias

Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital:

Foram analisados os seguintes impressos durante o período de 1960-1964:

1. O Fluminense
2. A Cruz
3. Jornal do Brasil
4. Diário Carioca
5. Luta Democrática
6. O Cruzeiro
7. Diário da Noite
8. Jornal do Commercio
9. O Globo

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

684
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Arquivo Nacional/FUNDO:

1 – PE00102/2, p.5 - Discurso da Srª Cordélia de Sá Lessa, Vice-Presidente da CAMDE.


Anexo ao Relatório da CAMDE no 1º Congresso Sul Americano da Mulher em Defesa
da Democracia, em abril de 1967.

Fontes Bibliográficas:

BENEVIDES, Maria Victória de Mesquita. O Governo de Jânio Quadros. São Paulo:


Brasiliense, 1981.

BEOZZO, José Oscar. A Igreja entre a Revolução de 1930: O Estado Novo e a


Redemocratização; in, PIERUCCI, Antônio Flávio de Oliveira. O Brasil Republicano:
Economia e Cultura. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

CHARTIER, Roger. Cultura Popular: revisitando um conceito historiográfico. Rio de


Janeiro: Revista Estudos Históricos, vol. 8, n . 16, 1995, p.179-192.

CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel,


2002.

CORDEIRO, Janaína Martins. Femininas e Formidáveis: o público e o privado na


militância política da Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE). Revista
Gênero, v8, 2009.

DEIFRUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado. Petrópolis: VOZES, 1981.

EAGLETON, Terry. Ideologia: Uma Introdução. Rio de Janeiro: Boitempo, 1997.


FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: UNESP, 1995.

GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

685
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

MACHADO, Charliton José dos Santos. Questões Políticas e Educacionais no I


Congresso da Sul-americano da Campanha da Mulher Pela Democracia. In:
SACOCUGLIA, Afonso celso; MACHADO, Charliton José dos Santos (Org). Pesquisa
e Historiografia da Educação Brasileira. Campinas: Autores Associados, 2006.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o “perigo vermelho”: O anticomunismo


no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2002.

TOLEDO, Caio Navarro de. O Governo Goulart e o Golpe de 64. São Paulo: Brasiliense,
1993.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

686
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Tradições narrativas e experiência pessoal em Amiano Marcelino: uma proposta


de análise das digressões etnogeográficas nas Res Gestae

CYNTHIA ALVES DE OLIVEIRA


PPGH/UNRIO

Amiano Marcelino foi um historiador que escreveu na segunda metade do século


IV d.C. uma obra intitulada Res Gestae319, cujo objetivo era narrar a história do Império
Romano no período compreendido entre o início do principado de Nerva (96 d.C.) e a
Batalha de Adrianópolis (378). Dos trinta e um livros originais, sobreviveram apenas os
dezoito últimos que nos apresentam uma obra de fôlego e erudição histórica, em que o
autor tenta se legitimar frente a uma tradição historiográfica que teve início muitos
séculos antes. A obra de Amiano é permeada por abundantes digressões de naturezas
diversas320, diante disso, a necessidade do recorte se impõe e o presente trabalho tem
como objetivo apresentar uma proposta de análise das digressões etnogeográficas
presentes nas Res Gestae a partir de duas chaves: a primeira consiste em analisá-las dentro
da estrutura geral da obra e a segunda é entender qual a linguagem empregada e a
densidade das descrições, sem com isso descartar o valor do conhecimento geográfico e
etnográfico por elas fornecidas.
Compreender a trajetória pessoal do autor constitui-se em uma das maneiras de
desvendar as minúcias das Res Gestae, uma vez que Amiano é personagem de muitos
eventos narrados em sua obra. Dados exatos acerca de seu nascimento e morte, detalhes

319
Originalmente, a obra cobria um período de quase trezentos anos da história romana, porém, é curioso
notar a maneira desproporcional como o conteúdo histórico é distribuído ao longo do texto: os livros
sobreviventes narram aos acontecimentos contemporâneos ao autor, situados nos vinte e cinco anos
compreendidos entre 353 e 378, ao passo que os trezes primeiros continham o relato dos fatos ocorridos
entre 96 e 353. No entanto, essa desproporção é um indicativo da concepção historiográfica de Amiano,
que tem como elementos-chave a importância da verdade e da objetividade – que deveriam ser alcançadas
por meio da narração dos fatos presenciados pelo próprio autor ou narrados por seus protagonistas, o que é
um elemento recorrente na historiografia latina (HARTO-TRUJILLO, 2002; MARQUES, 2008).
320
A presença de digressões ao longo da narrativa histórica constitui-se em um topos da historiografia
clássica, contudo, Amiano parece nutrir um gosto particular pelo seu uso, pois, à exceção de Heródoto, ele
é o autor antigo que mais lança mão desse recurso. As digressões estão espalhadas por toda as Res Gestae
e, apesar da variedade de assuntos abordados, existe entre os pesquisadores a tendência de agrupá-las em
quatro categorias principais: etnogeográficas, sobre questões naturais, filosóficas-religiosas e sociais
(GALLETIER; FONTAINE, 1968, p. 2)
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

687
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sobre sua carreira militar, a forma como publicou sua obra, o seu período de atividade
literária, entre tantos outros aspectos ficam envoltos em uma penumbra pela ausência de
informações, assim, tudo o que sabemos sobre a vida deste autor é aquilo que ele nos
permite saber por meio de sua narrativa histórica. Em 357 Amiano era um adulescens
(Amiano Marcelino, Res Gestae, XVI: 10.21), e, de maneira geral, esse termo pode ser
utilizado para se referir a alguém que tenha até trinta anos, o que sugere que ele tenha
nascido por volta do ano de 330. A cidade de Antioquia é apontada como local de
nascimento do historiador e acredita-se que, durante a sua juventude na cidade, o latim
provavelmente era uma linguagem familiar, tendo em vista que Constâncio II utilizou
Antioquia como base durante os combates contra o Império Persa na década de 340 e
nessa ocasião o local foi inundado por burocratas e soldados que falavam latim
(ROHRBACHER, 2002: 14). As lacunas sobre a vida do autor não nos permitem saber
detalhes sobre o início de sua carreira no exército romano, contudo, somos informados de
que em 354 ele servia como protector domesticus (Am. Marc. XIV: 9.1). Se levarmos em
consideração que um homem comum levaria muitos anos de serviço militar para alcançar
este posto e, tendo em vista que Amiano era relativamente jovem quando se tornou um
protector, isso sugere que ele alcançou sua posição por meio de conexões familiares. A
nomeação de um protector domesticus exigia a realização do ritual da adoratio purpurae,
onde o militar deveria se prostrar perante o imperador e beijar seu manto púrpura. Dessa
maneira, é provável que Amiano tenha realizado este ritual enquanto Constâncio II ainda
estava em Antioquia e isso certamente ocorreu antes do ano de 350 (ROHRBACHER,
2002: 15; CASTILLO GARCÍA et al, 2010: 8).
Em 359, Amiano passa por um dos eventos mais traumáticos de sua vida militar
durante o cerco da cidade de Amida. A derrota romana faz com que seu superior imediato,
Ursicino, seja responsabilizado e afastado definitivamente do exército. Depois disso
temos um hiato de informações até que encontramos o autor integrando a malsucedida
expedição do imperador Juliano à Pérsia, em 363. Depois da morte deste imperador,
Amiano se retira para Antioquia com o exército vencido e permanece no Oriente por pelo
menos quinze anos (Am. Marc. XXIII, 5.7; XXV, 10.1). Durante este período no Oriente,
o autor empreende viagens ao Egito, Grécia e Trácia, com o objetivo de conhecer
pessoalmente os cenários de sua obra; além dessas viagens, Amiano passou um longo
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

688
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

tempo em Antioquia, possivelmente se dedicando ao estudo e composição de sua obra,


embora não nos seja possível precisar o tempo que ele passou na cidade. Nos faltam
maiores informações sobre o restante de sua vida, contudo, existe um consenso entre os
pesquisadores de que Amiano Marcelino morreu por volta do ano 400 na cidade de
Roma321.
O uso de digressões etnogeográficas em narrativas históricas teve sua origem com
Heródoto, que tentou sintetizar e organizar o material etnográfico-geográfico até então
disponível, acrescentando os resultados de suas próprias investigações. A consolidação
da tradição historiográfica clássica criou regras que deveriam ser seguidas por todo aquele
que desejasse escrever sobre etnografia e geografia, quer fossem monografias como
Agrícola e Germânia, de Tácito, quer fossem digressões dentro de relatos históricos. Tais
normas consistiam na observância de cinco pontos principais: (1) geografia física – situs;
(2) origem e características dos habitantes – gentes; (3) clima; (4) recursos naturais,
produtos agrícolas e (5) organização política, social e militar. Contudo, podemos observar
ao longo da tradição uma irregularidade no cumprimento dessas cinco "regras”: se as
descrições geográficas e a origem dos habitantes estão presentes na maior parte das
digressões, as questões sobre clima, recursos naturais e organização político-social não
são tão frequentes assim (LÓPEZ RAMOS, 2008: 288-300).
Apesar de, retoricamente, uma digressão ser definida como uma interrupção
justificada do fio temático do discurso, dando-lhe um desenvolvimento inesperado com
o objetivo de narrar uma anedota, descrever um objeto, uma paisagem, um objeto ou uma
situação, antes de se retomar o assunto narrado anteriormente (BERSTÁIN, 1995: 150-
151), existe um intenso debate historiográfico acerca do número de digressões presentes
nas Res Gestae322. H. Cichocka (1975) defende que cada digressão deve conter uma
fórmula introdutória, onde o autor expõe o tema que vai tratar, e uma conclusão que

321
Para maiores informações ver: BARNES, 1998; HARTO TRUJILLO, 2002; MATTHEWS, 1994;
MOMIGLIANO, 1993; ROLFE, 1950.
322
Apesar desse debate, algo que os pesquisadores destacam é a interessante distribuição dessas digressões
ao longo da obra: uma parcela significativa se encontra na parte da narrativa dedicada ao período do governo
de Juliano. O que se percebe de maneira clara é que essas digressões aumentam a proporção do texto
dedicada a este imperador – e, por extensão, sua centralidade na narrativa. Além disso, digressões como a
da Gália (Am. Marc. XV: 9-12) ou da Pérsia (Am. Marc. XXIII: 6), enfatizam a vastidão e importância das
campanhas militares de Juliano (ROHRBACHER, 2002: 26).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

689
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

permita retornar ao relato central seguindo esse critério, existem apenas vinte e três
digressões formalmente estruturadas na obra de Amiano. Já A. Emmett (1983) considera
digressões passagens que, apesar de não possuírem introdução e/ou conclusão,
interrompem de alguma maneira o fluxo da narrativa principal, dessa maneira, as Res
Gestae contariam com um total de trinta e quatro digressões. Timothy Barnes (1998)
identifica na obra de Amiano trinta e uma passagens em que o autor, sem chamar
propriamente uma digressão, indica que tratará de um assunto brevemente. No caso das
digressões etnogeográficas, as abordagens de Emmett e Barnes nos parecem mais
apropriadas, pois, se nos detivermos apenas nas passagens que seguem as estruturas
formais de uma digressão, deixaremos de lado importantes descrições geográficas e
discussões etnográficas feitas pelo autor.
As digressões etnogeográficas de Amiano Marcelino foram alvo de um juízo
extremamente desfavorável por parte de Theodor Mommsen (1881), que apontou os
diversos erros e imprecisões em termos de localização e distância contidos nas descrições
geográficas fornecidas por Amiano, destacando a inaptidão do autor como geógrafo. Tal
diagnóstico influenciou gerações de pesquisadores que consideraram as digressões a parte
mais insignificante das Res Gestae: elas seriam uma demonstração excessiva de erudição
por parte do autor, desnecessariamente longas, que não mantinham um vínculo nítido com
a narrativa principal e cuja veracidade das informações era duvidosa. Dessa maneira, J.
Rolfe (1950, p. xix) afirma que Amiano não consegue atingir o ideal de veracidade em
suas digressões e que, se elas fossem omitidas, o relato não sofreria nenhum dano323. M.
Martínez Pastor (1992) afirma que as digressões são a parte da obra de Amiano com
menor valor literário, pois, além de interromperem a todo momento a unidade da narrativa
e caracterizar os povos bárbaros de uma maneira excessivamente exagerada, o conteúdo
por elas fornecido dependeria de outras fontes escritas, assim, o único objetivo de Amiano
ao inserir tais relatos em sua narrativa seria demonstrar erudição e domínio da tradição
literária.

323
Seguindo esse conselho, Wallace-Hadrill e W. Hamilton suprimiram todas as digressões do texto de
Amiano ao organizarem sua edição publicada em 1986.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

690
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Somente nas décadas finais do século XX é que o enfoque sobre as digressões começa
a se alterar para um ângulo mais positivo, sobretudo a partir do trabalho de Guy Sabbah
(1978) que afirma o sentido e a utilidade dessas passagens até então ignorados pelos
pesquisadores; segundo ele, muitas vezes as digressões permitem ao autor retomar uma
atitude objetiva depois de uma passagem violenta em que os personagens próximos estão
envolvidos. Seguindo a linha de revalorização das digressões, G. Sundwall (1996)
apontou para a necessidade de compreender as digressões em seus próprios termos, como
peças que possuem propósitos e métodos específicos, ao invés de restringir o debate
apenas à análise das fontes utilizadas por Amiano para compor seu trabalho ou à
identificação dos erros e imprecisões contidas nas descrições geográficas. Para J. Drijvers
(1998), as digressões constituem-se como peças literárias cuja autoridade etnogeográfica
pode ser completamente descartada. Seguindo as proposições desse último autor, J. López
Ramos (2008) afirma que as digressões são peças cujo objetivo era entreter o público e
que não podemos encontrar nessas narrativas particulares um conhecimento geográfico
plausível, pois não apresentariam uma noção coerente de formas ou dimensões das
diversas partes do mundo, deixando muito a dever para os tratados geográficos
produzidos por Plínio, o Velho, Pompônio Mela e Estrabão, por exemplo.
Somos informados sobre o recorte cronológico das Res Gestae por meio da
declaração final Amiano Marcelino, uma vez que não dispomos do prefácio inicial da
obra, onde geralmente os autores forneciam informações sobre a gênese de seu trabalho
(MOMIGLIANO, 1993: 113). A parte sobrevivente das Res Gestae pode ser dividida em
três grandes unidades: os livros XIV-XIX, que relatam os anos de 353 a 359, durante os
quais Galo e Juliano foram Césares de Constâncio II; o período em que Juliano foi
imperador (360-363), que ocupa os livros XX-XXV; e, por fim, os livros XXVI-XXXI,
que cobrem os reinados de Valentiniano no Ocidente e Valente no Oriente (364-378).
Amiano organiza seu material em blocos de informações que podem ser classificados de
acordo com seu conteúdo e que se repetem ao longo da obra. De maneira geral, a estrutura
das Res Gestae pode ser sintetizada em cinco pontos principais: (1) atividades dos
imperadores durante as campanhas bélicas; (2) eventos na corte - ou a ela conectados -
no inverno subsequente às campanhas; (3) os eventos ocorridos em Roma sob os
sucessivos prefeitos; (4) os eventos ocorridos nas províncias e que não estão diretamente
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

691
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ligados aos imperadores e (5) as digressões. O nível de complexidade da organização


desses blocos varia ao longo da obra dependendo dos acontecimentos narrados, por
exemplo: durante o período em que Juliano governa como único imperador romano
(livros XXII a XXV), a narrativa se simplifica, pois, a dicotomia marcada entre as ações
imperiais no Ocidente e no Oriente praticamente desaparece (BARNES, 1998: 32-42).
Além disso, Amiano demonstra um gosto por figuras opostas: os livros XV a XXV têm
como tema central a história de Constâncio e Juliano, construída a partir do contraste
entre essas duas personalidades; esse jogo de oposições se faz presente ainda na dicotomia
entre Ocidente e Oriente, nos assuntos civis e militares e na relação das virtudes e vícios
dos imperadores – dessa maneira, o autor utiliza a alternância entre um polo e outro como
princípio comparativo. A essa alternância agregam-se ainda duas linhas de composição
opostas, uma descendente que vai da vitória na Batalha de Estrasburgo ao desastre de
Adrianópolis, e outra ascendente que destaca os fatos vividos pelo autor, a exaltação de
Juliano e uma visão global do Império fornecida pelos últimos livros da obra.
(CASTILLO GARCÍA et al, 2010: 12-13).
Partindo do pressuposto de que a estrutura formal e simétrica de suas obras, onde
deveriam ser observadas as convenções de escrita do gênero em questão, era algo muito
caro aos escritores antigos (BARNES, 1998: 20-21), acreditamos na possibilidade de
analisar as digressões etnogeográficas presentes nas Res Gestae de Amiano Marcelino
por meio de duas chaves: a primeira, consiste em compreender as digressões enquanto
partes integrantes de uma estrutura argumentativa elaborada com o objetivo de legitimar
o seu autor enquanto herdeiro da tradição historiográfica clássica e a segunda entender a
linguagem empregada na construção desses digressões, no intuito de rastrear o que em
seu conteúdo é proveniente de fontes literárias anteriores a Amiano e que é resultado da
experiência pessoal do autor enquanto viajante do Império Romano. Dentro dessa
estrutura, tomar as digressões por peças literárias, o que tem sido procedimento padrão,
pode ser benéfico na medida em que impulsiona a análise filológica das mesmas,
identificando quais são os vocábulos e expressões utilizados especificamente nesses
pontos da obra e a intertextualidade do autor, bem como permite discernir entre as
informações que são fruto da experiência pessoal de Amiano e quais são provenientes de
outras fontes escritas. Porém, é necessário ir além e levar em consideração a concepção
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

692
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de mundo e as formas de orientação que servem de base para tais relatos. A busca de
exatidão das informações por parte de Amiano fez com que ele reforçasse os dados
fornecidos pelas fontes escritas com observações pessoais adquiridas ao longo de suas
viagens, adaptando assim uma longa tradição literária para os objetivos de sua obra.
Amiano constrói suas digressões de maneira peculiar, congregando o conhecimento
proveniente das fontes literárias as quais ele teve acesso com as observações pessoais
adquiridas através de suas viagens pelo Império Romano. Segundo G. Sundwall (1996:
624-626), a precisão de Amiano se traduziria em um esforço de entender as fontes
disponíveis, escolhendo as informações que aparentassem maior consistência e
descartando ou relegando a segundo plano relatos ao seu ver incompletos ou confusos. O
espaço geográfico e o elemento etnográfico ocupam um lugar central na narrativa de
Amiano Marcelino. Como historiador grego e oficial do exército que escreve em latim
para o público romano na segunda metade do século IV, Amiano viajou de um canto ao
outro do Império Romano, vendo com seus próprios olhos as regiões e os povos que
futuramente descreveria em sua obra. Assim, em suas digressões, ele concede uma
atenção especial para a complexa relação entre os povos e seu ambiente circundante, bem
como para as cidades, que parecem ser um referencial para o autor, tendo em vista que
sempre aponta a densidade ou escassez de cidades, oferecendo muitas vezes sua
importância em termos históricos, econômicos e sociais. As digressões presentes nas Res
Gestae foram escritas no contexto de campanhas militares contra os povos estrangeiros
que pressionavam as fronteiras do Império no século IV. Segundo Wiedemann (1986:
195-196), as digressões etnográficas são um misto de julgamento moral e descrição
etnográfica, onde a retórica da hostilidade dos romanos em relação aos bárbaros enfatiza
aquilo que o estilo de vida desses povos apresenta de diferente em relação aos romanos.
As descrições etnográficas presentes na literatura clássica são dotadas de uma série de
estereótipos associados aos bárbaros e não deve ser causa de espanto encontrar nas
digressões de Amiano esses mesmos estereótipos clássicos. Contudo, para além desses
estereótipos, é possível afirmar que as digressões de Amiano revelam muitos aspectos da
formação social e econômica desses povos, por mais que esse não seja o seu objetivo
principal; o autor concede especial atenção para o modo de vida dos bárbaros, utilizando
classificações como nômades, pastorais ou sedentários e acreditamos que tal
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

693
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

característica seja resultado das viagens que o autor empreendeu pelo Império, travando
contato com os povos descritos.

DOCUMENTAÇÃO:

AMIANO MARCELINO. Historia. Madrid: Akal-Clásica, 2002.

AMIANO MARCELINO. Historias I – Libros XIV-XIX. Madrid: Editorial Gredos,


2010.

AMMIANUS MARCELLINUS. Roman History, 3 volumes. Cambridge and London:


Harvard University Press, 1950 (The Loeb Classical Library).

AMMIANUS MARCELLINUS. The Later Roman Empire (A.D. 354-378) London:


Harmondsworth, 1986.

AMMIEN MARCELLIN. Histoire, 6 volumes. Paris: Les Belles Lettres, 1968.

BIBLIOGRAFIA:

BARNES, Timothy D. Ammianus Marcellinus and the Representation of Historical


Reality. Ithaca and London: Cornell University Press, 1998.

BERSTÁIN, Helena. Diccionario de Retórica y Poética. México: Editorial Porrúa,


1995.

BLOCKLEY, Roger C. Ammianus Marcellinus – A Study of His Historiography and


Political Thought. Bruxelles: Latomus, Revue d’Études Latines, 1975.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

694
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CASTILLO GARCÍA, Carmen; REAL MONTES, Concepción Alonso del; SÁNCHES-


OSTIZ GUTIÉRREZ, Álvaro. Introducción General. In: AMIANO MARCELINO.
Historias I – Libros XIV-XIX. Madrid: Editorial Gredos, 2010, pp. 7-47.

CICHOCKA, H. Die Konzeption des Exkursus im Geschichtswerk des Ammianus


Marcellinus, Eos, vol. 63, 1975.

DRIJVERS, Jan Willem. Ammianus Marcellinus on the Geography of the Pontus


Euxinus. Histos, v. 2, p. 268-278, 1998.

DUSANIC, Milena. The Geographic-Ethnographic Excursus in the Work of Ammianus


Marcellinus. Belgrade: GRO, Kultura, 1986.

EMMETT, A. The digressions in the Lost Books of Ammianus Marcellinus. In: CROKE,
B; EMMETT, A. History and Historians in Late Antiquity. Sydney: Pergamon, 1983.

GALLETIER, E; FONTAINE, J. Introduction. In: AMMIEN MARCELLIN. Histoire,


XIV-XVI. Paris: Les Belles Lettres, 1968.

GUZMÁN ARMARIO, Francisco Javier. Romanos y bárbaros em las fronteras del


Imperio romano según el testimonio de Amiano Marcelino. Madrid: Signifer, 2006.

HARTO TRUJILLO, Mª Luisa. Introducción. In: AMIANO MARCELINO. Historia.


Madrid: Akal-Clásica, 2002.

LOPEZ RAMOS, Jorge A. Excursus, etnografía y geografía: un breve recorrido por la


tradición historiográfica antigua (de Heródoto a Amiano Marcelino). NOVA TELLVS,
v. 26, n. 1, 2008.

MARQUES, Juliana Bastos. Mecanismos de legitimidade e tradição na Historiografia


Latina. História Revista, vol. 13, n. 1, 2008.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

695
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MARTÍNEZ PASTOR, M. Amiano Marcelino, escritor romano del s. IV. Perfil


literario, Estudios clásicos, vol. 102, 1992.

MATTHEWS, John. The Origin of Ammianus. The Classical Quarterly, New Series,
vol. 44, n. 1, p. 252-269, 1994.

MOMIGLIANO, Arnaldo. El solitario hiatoriador Marcelino Amiano. In: ______.


Ensayos de Historiografia Antigua y Moderna. México: Fondo de Cultura Económica,
1993.

MOMMSEN, Theodor. Ammians Geographica. Hermes, vol. 16, 1881, pp. 602-36.

ROLFE, J. Introduction. In: AMMIANUS MARCELLINUS. Roman History, volume I.


Cambridge and London: Harvard University Press, 1950 (The Loeb Classical Library).

SABBAH, G. La méthode d’ Ammien Marcellin. Recherches sur la construction du


discours historique dans les Res Gestae. Paris: Les Belles Lettres, 1978.

SUNDWALL, Gavin. Ammianus Geographicus. American Journal of Philology, vol.


117, n. 4, 1996.

WALLACE-HADRILL, Andrew. Introduction and Notes. In: AMMIANUS


MARCELLINUS. The Later Roman Empire (A.D. 354-378), translated by W.
Hamilton. London: Harmondsworth, 1986.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

696
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O discurso do Dono – Marca jornalística do Correio da Manhã

DAIANA MACIEL AREAS


PPGHS – UERJ

Este artigo tem o objetivo de fazer uma breve análise da modernização e


adequação do jornal Correio da Manhã, nos anos de 1950 e 1960, em busca da ampliação
da carteira publicitária, fonte de renda fundamental para garantir a manutenção e
sobrevivência da produção redacional desta folha. Abordando a trajetória do CM,
principal periódico do período supramencionado, percebemos que a permanência de
características marcantes como a “ortografia da casa” e construção mítica da “voz do
dono” na linha editorial do periódico foram mais fortes do que as rupturas necessárias
para o crescimento da carta publicitária da folha.
O Correio da Manhã, matutino carioca, fundado no início do século XX, pelo
jornalista Edmundo Bittencourt é considerado por muitos profissionais de imprensa, o
jornal mais importante e influente nos anos de 1950. Podemos destacar que, para além
dos reformadores pioneiros – Diário Carioca, Última Hora e Jornal do Brasil – outros
periódicos como o Correio aderiram ao processo de modernização, adequando-se aos
novos tempos.
Para Juarez Bahia, o reaparelhamento técnico da imprensa teve por função atender
às exigências da nova sociedade, que se instaurara no pós-guerra e no processo de
redemocratização. (BAHIA, 1990: 266.) O CM, foi sensível as transformações
técnicas.(...) Os grandes jornais, como O Estado de S. Paulo e o Correio da Manhã, se
antecipam na aquisição de novos equipamentos. Matutinos e vespertinos lutam para
conquistar novos públicos. A propaganda ingressa numa nova era. São todos
protagonistas de uma etapa de modernização que faz parte do ritmo nacional. (BAHIA,
1990: 379)
O CM foi criado pelo jornalista Edmundo Bittencourt, em 15 de junho de 1901,
no Rio de Janeiro. O jornal era diário e matutino e foi durante as cinco primeiras décadas
de sua existência, um dos principais órgãos da imprensa brasileira, sempre reconhecido
como um "jornal de opinião" (RIBEIRO, 2003: 157). Sua fundação pode ser associada ao
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

697
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

contexto da Revolução Federalista, que eclodiu nos primeiros anos da República (1893-
1895), no estado do Rio Grande do Sul, e dos eventos que a ela se sucederam. (ABREU,
2010)
No editorial de lançamento o periódico destacava que tinha a característica de
“independência, o compromisso público com a verdade e a opinião”, que foram descritas
inúmeras outras vezes em suas páginas. (Correio da Manhã, 15/06/1901: 2.) Segundo
Ribeiro, o público alvo inicial era composto por representantes da pequena burguesia
urbana, escalões médios da administração, militares, comerciantes, professores e donos
de pequenas empresas. (RIBEIRO, 2007: 64.)
Entre tanto foi na gestão de Paulo Bittencourt, filho do fundador que o jornal, que
a marca jornalística de apartidário e defensor da democracia e legalidade foram
fortalecidas. Foi o momento que a vida de seu dono se confundiu com a trajetória do
periódico. Bittencourt assumiu a direção do jornal, junto com seu pai, no ano de 1923.
Como jornalista e redator chefe do Correio da Manhã, Paulo Bittencourt fez
agressiva oposição ao governo do presidente Artur Bernardes (1922-1926), sendo preso
na ilha Rasa durante todo o ano de 1926. Em março de 1929, mesmo ano de sucessão
presidencial, recebeu de seu pai a propriedade e a direção definitiva do jornal.
Em suas memórias, Samuel Wainer, proprietário da Última Hora, atribuiu ao
jornalismo dos anos 1950 a característica peculiar de ter sido sempre a “voz do dono”,
isentando-se, porém, dessa mesma imagem, ao criticar os demais proprietários. Em sua
opinião, essa perspectiva seria predominante no noticiário, diferentemente do que ocorria
em outros países. Wainer destaca que este período a ligação entre o publico e o privado
esteve presente. Referindo se ao Correio argumenta que o perfil do jornal foi cunhado em
meio as práticas e relações políticas e que sempre ocorreu a contrapartida.

Paulo tinha um poder equivalente ao dos barões feudais da Idade média,


até porque o Brasil daqueles tempos abrigava uma sociedade colonial,
desprotegida, indefesa.(...) “Saiu no jornal”, dizia-se, num tom de quem
afirma uma verdade incontestável, irremovível. (...) Nos anos 50, essa
postura imperial da imprensa era muito mais aguda, e não há ninguém
melhor que Paulo Bittencourt para ilustrá-la (WAINER, 1998: 133).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

698
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para Wainer, portanto, haveria, no cotidiano de produção das notícias, um controle


que garantia a predominância da “voz do dono” sobre o conjunto da redação. A redação
do matutino CM era apresentada como exemplo de submissão aos “impulsos, ódios e
amores” de seu proprietário, ou ao controle de Paulo Bittencourt. (WAINER, 1998: 136)
O jornalista afirma que seu jornal Última Hora, criado em 1951 faria frente ao que
ele vai intitular “clube da imprensa”, dando ênfase a importância do Correio.(...) os
grandes jornais brasileiros, (...). O maior deles era o Correio da Manhã, o poderoso feudo
de Paulo Bittencourt, seguido pelo Diário de Notícias, da família Dantas. (...)Havia vários
jornais, e alguns deles tinham boa penetração, mas não se podia compara – los de modo
algum com o que representavam os grandes, sobretudo o CM. (WAINER, 1998: 135-136)
Esta importância foi construída pelos profissionais que passaram na redação e que
associados a família Bittencourt imprimiram a “ortografia da casa”, marca do jornal –
conhecido por textos muito bem redigidos e com qualidade no conteúdo. Esta
característica está associada ao desenvolvimento e solidificação do Correio, como grande
empresa de comunicação. Nelson Werneck Sodré destaca que o jornal passou por três
fases distintas: a primeira, de 1901 até 1923, correspondendo à gestão do jornalista Pedro
Leão Veloso (Gil Vidal) na chefia da redação; a segunda, entre 1923 e 1962, quando a
chefia da redação foi ocupada sucessivamente pelos jornalistas Pedro da Costa Rego,
também político, Antonio Callado e Luiz Alberto Bahia; e a terceira fase, a partir de 1963
até seu desaparecimento por completo em 1974. (SODRÉ, 1999: 174)
Já na primeira fase, o periódico contou não apenas com a experiência de Leão
Velloso, mas também com a colaboração de profissionais reconhecidos meio jornalístico
e literário, como Augusto Frederico Schmidt, Rui Barbosa, Coelho Neto, Arthur
Azevedo, Graciliano Ramos, Aurélio Buarque de Holanda e Gondin da Fonseca, o que
lhe garantiu tornar-se referência de qualidade editorial e gráfica, para os padrões da época.
Quando a direção e a propriedade do periódico passou para as de Bittencourt, no
final dos anos 1920 – o direcionamento foi para busca crescente de investimentos em
publicidade. Segundo Ribeiro, o jornal orientou-se também para a ampliação do seu
público, buscando a classe média alta. (RIBEIRO, 2007: 64)
Segundo a mesma autora, a orientação editorial e a linha argumentativa
destacavam-se pela inspiração liberal, o que era apresentado nos textos do jornal como
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

699
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

distinto daquilo que era feito nos demais periódicos. Esse diferencial, sendo denominado
por Costa Rego de “ortografia da casa”, foi construído com base na adoção de uma
linguagem apurada e no posicionamento independente mantido pelo jornal. (RIBEIRO,
2007: 64)
Outro diferencial do CM era o papel desempenhado pelo redator chefe, Costa
Rego, amigo e braço direito de Paulo Bittencourt, em sua administração. O jornalista teria
sido responsável por implantar mudanças na redação que ajudaram a constituir uma
linguagem e estrutura mais coesa para o jornal, buscando a produção de textos “bem
escritos” e revisados. Costa Rego fazia a leitura de todas as matérias importantes e
selecionava as colunas que seriam publicadas e quando o seriam.
Em fevereiro de 1945, o Correio publicou a depois famosa entrevista de José
Américo de Almeida, escritor e ex-ministro do governo Getulio Vargas. Na entrevista,
José Américo criticou o Estado Novo e defendeu a realização de eleições democráticas e
a liberdade de expressão, que havia sido cerceada pelo regime. O jornalista que realizou
a entrevista foi Carlos Lacerda, ainda repórter do CM. Na ocasião, o Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP) não reagiu e a entrevista, Ana Paula Goulart Ribeiro,
tornou-se um marco importante na história do Correio da Manhã, sempre lembrada em
seus editoriais de aniversário, para reafirmar a imagem e a argumentação de que este se
constituía como um órgão liberal, “combativo” e “corajoso”. (RIBEIRO, 2007: 65)
No primeiro quinquênio dos anos de 1950, Antonio Callado, assumiu a chefia da
redação, no lugar de Costa e Rego e iniciou um processo de modernização administrativa
e gráfica objetivando inserir o periódico nas exigências do mercado publicitário.
Além das transformações implementadas na linha editorial, que seguiam as
orientações do modelo “norte-americano”, Paulo Bittencourt, a partir de 1955,
modernizou o parque gráfico do jornal com a introdução de oito novas rotativas Hoe (de
fabricação norte americana), no lugar da antiga Man (fabricação alemã). O novo
equipamento levou o periódico a modificar o tamanho, suprimindo as colunas de 55
centímetros com 9 colunas para 50 centímetros e 8 colunas.
Nessa época o CM, era publicado sempre em dois cadernos, com exceção das
edições de domingo, compostas por cinco cadernos que incluíam os suplementos
esportivos e recreativos, o “caderno agrícola” e o suplemento de histórias em quadrinhos
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

700
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Prisma”. Na edição de sexta feira, saía o caderno ilustrado “Singra”, que compunha
artigos e reportagens sobre regiões do Brasil e do exterior e histórias em quadrinhos, entre
outros textos. Em todas as edições, os artigos assinados referentes à economia e política
saíam sempre no 1º caderno e na 2ª página, alternando os dias de cada articulista, dentre
os colaboradores permanentes. Já o editorial era diário, publicado na 6ª página do mesmo
caderno. Com a remodelação Callado trocou a publicação do editorial que antes era na 4ª
página para a 6ª. (RIBEIRO, 2007: 68)
Ao assumir a redação da folha, Callado recebeu de herança a estrutura de produção
de notícias criada por Costa Rego. Mesmo tendo conduzido a reformulação do jornal, na
chefia da redação, Callado sugeria aos colegas (CALLADO apud ANDRADE, 1991: 98)
que ficava mais confortável no dia a dia da produção das notícias e na atuação literária.
Neste período, Luiz Alberto Bahia tornou-se redator chefe, substituindo Antonio
Callado. Em entrevista a Jeferson Andrade, o jornalista destaca esse momento como
sendo de continuação do processo de modernização.

(...) a grande independência dos jornais da época repousava muito nos


anúncios classificados (...). Na medida em que o país se modernizava,
começaram a surgir as agências de publicidade, aparecendo os anúncios
de prestígio, de bancos, de indústrias, da indústria automobilística.
Tudo isso acabou determinando uma mudança, em última análise, da
relação do jornal, da sua opinião, com o seu perfil de renda. (BAHIA,
apud ANDRADE, 1991:105)

Bahia foi afastado da direção do jornal em 1962, por determinação de Paulo


Bittencourt, que, segundo informado pelo jornalista, não aprovava a virulência dos textos
por ele veiculados, nos editoriais, sobre o então governador do estado da Guanabara,
Carlos Lacerda.
O jornalista relembrou o impacto, no jornal, da ampliação da publicidade. Para
ele, ainda que o Correio veiculasse manifestações contrárias à transferência da capital
para o Centro Oeste, a carteira publicitária do jornal sofria pressões, principalmente por
parte da indústria automobilística, que dela participava com aportes consideráveis. A
atuação dos lobistas do transporte rodoviário também pressionou para que fosse reduzida,
no jornal, a veiculação de matérias favoráveis às ferrovias e ao comércio de cabotagem.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

701
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(...) Desde o tempo do Callado, essas pressões (agências publicitárias)


passaram a existir. O peso do classificado diminuía, o perfil do
anunciante começa a ser distinto. (...) O ferroviarismo não sustentava
uma coluna, enquanto o rodoviarismo sustenta o jornal inteiro. (...)A
transformação de um país não industrializado em um país
industrializado, acarretando a mudança do perfil da carteira publicitária
do nosso jornal. (BAHIA, apud ANDRADE, 1991: 105)

Bahia destaca, portanto, que o poder que passavam a deter, nos anos de 1950 e
1960, as agências publicitárias, determinava, na prática, o novo padrão a ser seguido nos
jornais. Para o jornalista, “quando um jornal afeta certo interesse, de um produto, de um
serviço, agenciado por determinada agência, quando esta aborda um jornal, questionando,
argumentando, não está falando apenas com o poder daquele anunciante. Ela tem muitas
verbas, e ela faz mídia.” (BAHIA apud ANDRADE, 1991: 106) Por conta do lobby
publicitário, o CM mudou seu estilo editorial – “Aí aparece então a mudança do estilo do
Correio da Manhã, do editorial falante, meio inconsequente. Esse editorial forte começa
a ser quebrado por influência da mudança do perfil da carteira publicitária”. (BAHIA
apud ANDRADE, 1991: 106)
Podemos depreender da leitura do depoimento de Luís Alberto Bahia que a
adequação do CM à expansão do mercado publicitário deu-se de forma gradual, atingindo,
finalmente, a produção dos editoriais. No mesmo período, a folha perderia leitores e verba
publicitária para seu então principal corrente, o Jornal do Brasil, mais sensível às
mudanças do mercado do final dos anos 1950 e que promoveu, mais rapidamente,
mudanças importantes em seu layout.
Para disputar mercado com o JB, Paulo Bittencourt contratou então o jornalista
Jânio de Freitas, que assumiu a direção e a chefia da redação em 1963, tendo por objetivo
aprofundar as reformas iniciadas na gestão de Antonio Callado, nos anos 1950.
A reforma proposta por Janio de Freitas, a partir de 1963, contaria com
profissionais conhecidos no meio jornalístico, como Amílcar de Castro, José Ramos,
Dácio de Almeida, alguns deles oriundos das reformas do JB. Antes de modificar a parte
gráfica e editorial, entretanto, Freitas alterou a parte administrativa.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

702
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para além da gestão administrativa Freitas reconfigurou graficamente o jornal


criando uma última página no 1º Caderno, para publicação das crônicas de Carlos
Drumonnd de Andrade e para o editorial que desde 1953 estava localizado na 6ª página
do mesmo caderno. O objetivo do novo editor chefe era que o leitor tivesse a gama de
notícias primeiro, no final, a opinião do jornal sobre o tivesse lido.
A reforma proposta por Freitas não teve continuidade. Em agosto de 1963, Paulo
Bittencourt faleceu e o periódico foi alvo de uma disputa judicial entre a segunda esposa
do proprietário, Niomar Moniz Sodré e Sybil Bittencourt, filha do primeiro
relacionamento de Paulo. Mesmo lutando na justiça pelo direito a administração do
periódico, Niomar assumiu ainda em 1963.324Pela instabilidade criada na disputa que
atingiu diretamente a redação, Jânio de Freitas decidiu se desligar do periódico. A viúva
de Bittencourt nomeou Osvaldo Peralva para o cargo e este revogou as modificações
feitas por Jânio e o jornal voltou ao seu antigo formato.
A partir da administração de Niomar e as posições tomadas pela chefia de redação
ao lidar com o processo de instabilidade política do país levaram a marca jornalística do
Correio a perda significativa de espaço no mercado publicitário e a morte paulatina do
principal periódico da antiga capital do país, Rio de Janeiro.
As modificações gráficas do Correio da Manhã na segunda metade da década de
1950 foram frutos da nova conjuntura enfrentada pela imprensa brasileira, que não
conseguia mais se manter com favores políticos e empréstimos em bancos oficiais.
Muitos jornais consolidaram-se e mantinham-se cada vez mais com a publicidade,
crescente no período. Para entender essa dinâmica, analisamos informações do Anuário
Brasileiro de Imprensa, referentes ao faturamento do Correio, no ano de 1958.

O faturamento do Correio da Manhã, no ano 1958, foi composto dos


seguintes dados - receita - 7,4 milhões em assinaturas e 24,8 milhões
em vendas avulsas e 236 milhões de cruzeiros de publicidade -
despesas - 53,7 milhões na compra de papéis e tinta, 51,1 milhões
despesas comerciais, 45, 3 milhões nas oficinas, 41, 6 milhões na
redação e 33,4 milhões na administração.(Anuário Brasileiro de
Imprensa, 1958 apud RIBEIRO, 2003. p. 18).

324
Apenas em 1965 o Supremo Tribunal Federal, ratificou o direito da mulher de Bittencourt de herdar e
administrar o Jornal.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

703
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Apenas com as verbas de publicidade o saldo das receitas ultrapassava as


despesas, gerando o lucro de 16 milhões de cruzeiros – um dos maiores faturamentos em
publicidade entre os jornais do período. Ao longo dos anos 1950, no entanto, o CM foi
perdendo sua carteira publicitária. Podemos atrelar a redução das entradas de recursos de
publicitários à paulatina modernização e a melhor adequação de outros periódicos ao
mercado, em especial ao fortalecimento do JB, periódico que se adequou à nova dinâmica
das reformas por meio de mudanças drásticas na sua apresentação gráfica e na
apresentação de uma posição mais “neutra” diante dos assuntos nacionais. (FERREIRA,
1993: 155)
A continuidade da modernização do parque gráfico e do padrão editorial, com a
adoção de uma linguagem mais “objetiva” e “simplificada” e o aumento dos aportes de
verbas publicitárias, propiciado com a ampliação da industrialização, na década de 1950,
apresentou, no entanto, limites concretos. Utilizando o CM como exemplo podemos
entender que a adoção de uma gestão mais moderna não implicava a eliminação de formas
arcaicas e paternalistas de administração.
Os interesses políticos continuavam a se sobrepor. Durante o processo de
modernização, os jornais tiveram uma atuação ambivalente. A modernização direcionou
algumas empresas para a autonomização, mas sua liberdade de ação não era total.
Segundo Ribeiro, o campo jornalístico nunca conseguiu assumir o papel de “vigilante”
do Estado, ideário pregado pelo jornalismo americano e perseguido, em parte, pelos
periódicos brasileiros da década de 1950. (RIBEIRO, 2003: 21)
O jornalismo brasileiro nunca pode, portanto, exercer plenamente uma vigilância
sobre o Estado, no sentido clássico do liberalismo, o que era pregado pelo CM desde a
sua fundação. Nem mesmo ele se desprendeu o suficientemente dos personagens e do
cenário político, funcionando ainda como esfera de disputa de interesses.
Essa característica do meio jornalístico, que se apresenta em uma relação
simbiótica com a esfera política, se espelha pela estruturação das empresas jornalísticas.
Os principais jornais tinham estrutura familiar e sua administração aproximava-se de um
“legado dinástico” (RIBEIRO, 2003: 24). O modelo de gestão administrativa era como
algo híbrido, girando em torno da racionalidade e do personalismo, sendo exemplo o
jornalista Paulo Bittencourt, na administração do Correio da Manhã.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

704
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BIBLIOGRAFIA

EDITORIAIS

Editorial. Correio da Manhã, 15/06/1901.

MEMÓRIAS

WAINER, Samuel. Minha razão de viver. 16ª ed.. São Paulo: Record, 1998.

HISTÓRIA DA IMPRENSA

ANDRADE, Jeferson de. Um jornal assassinado: a última batalha do Correio da Manhã.


Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.

BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica: história da imprensa brasileira. São Paulo:
Ática, 1990.

FERREIRA, Marieta de Moraes. Imprensa e modernização dos anos 50: a reforma do


Jornal do Brasil. Anuário Brasileiro da Pesquisa em Jornalismo, nº. 2, 1993, pp. 23-47.
RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Imprensa e história no Rio de Janeiro dos anos 50. Rio
de Janeiro: E-papers, 2007.

_________________________. Jornalismo, literatura e política: a modernização da


imprensa nos anos de1950. Estudos Históricos, nº. 31, 2003.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4ª. ed. (atualizada). Rio de
Janeiro: Mauad, 1999.

SÍTIOS DE PESQUISA

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

705
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ABREU, Alzira Alves de et al. (org.). Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro Pós
1930. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2010. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

706
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Reflexões sobre os pobres e os trabalhadores do hospital de caridade de Santa


Maria/RS no início do século XX

DAIANE SILVEIRA ROSSI


COC/FIOCRUZ
Bolsista CAPES

Para entender o público atendido por um hospital durante a Primeira República no


interior do sul do Brasil, é preciso, antes de mais nada, ter uma vaga noção do que
significava a instituição hospitalar no país nesse período. Assim, precisamos retroceder
ao período colonial e a influência europeia, sobretudo portuguesa, nas práticas de
assistência à saúde e à pobreza que foram implementados.
Destacamos dois principais modelos de ações assistenciais praticadas em Portugal
que refletiram no Brasil: o primeiro, que foi caracterizado pelo predomínio da Irmandade
da Misericórdia, confraria cujos hospitais tinham como finalidade a caridade,
representando a principal instituição de auxílio à pobreza até finais do século XIX. E o
segundo a partir da inserção da filantropia, representada por uma maior racionalização
dos problemas sociais, sobretudo, durante a Primeira República. Em ambos os modelos,
destacam-se o caráter complementar entre as iniciativas públicas e privadas, o qual,
segundo Russel-Wood (1981), as Misericórdias desempenhavam um papel
“semiburocrático”, ou seja, entidades particulares prestando serviços de interesse público.
Esse sistema de complementariedade que atuou no Brasil foi influenciado pelo modelo
de assistência portuguesa, caracterizado, de acordou com Laurinda Abreu (2014: 11),
como um meio de “coesão social”, no qual agiam diferentes grupos “os que
providenciavam os recursos assistenciais, os que organizavam a sua distribuição (não
necessariamente os mesmos) e aqueles que deles usufruíram”.
O modelo português de assistência, representado pelas Santas Casas de
Misericórdias foi implementado na colônia do ultramar ainda no século XVI,
principalmente em cidades da zona litorânea, como Olinda, Santos, Salvador e Rio de
Janeiro. Uma maior expansão para os interiores do Brasil ocorreu somente a partir do

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

707
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

século XVIII e início do XIX. O movimento de instalação das Misericórdias esteve muito
relacionado com a estruturação político-administrativa da colônia, aliado, em princípio,
com as sedes das capitanias. Renato Franco (2011: 66) aponta a respeito dessa relação
afirmando que “por um lado, confirmava a precedência da Misericórdia como uma das
principais confrarias em termos imperiais e, ao mesmo tempo, a presença de uma
irmandade como a da Santa Casa nobilitava as pequenas e frágeis povoações do território
americano, carentes de instituições e elementos de distinção”.
Enquanto no Brasil durante o período colonial se estabeleciam as Misericórdias
como principais administradoras dos hospitais, o contexto europeu estava sofrendo fortes
reformas no seu sistema hospitalar, sobretudo, a partir do final do século XVIII com a
introdução da clínica. Antes disso, cabe destacar que as instituições hospitalares na
Colônia não possuíam as mesmas funções tal e qual possuíam na Europa do mesmo
período. Enquanto no além-mar entre o final do medievo e princípios do período moderno
os hospitais eram caracterizados por ações que visavam resolver os problemas urbanos
causados pelo crescimento desordenado das cidades, prestando assistência através da
concessão de abrigo a peregrinos e viajantes, cuidado com os doentes e socorro aos
indigentes; no Brasil, embora os hospitais surjam em consonância com as pequenas
cidades que se instalavam nas Capitanias, as demandas assistenciais eram distintas das
europeias. Pode-se dizer que na Colônia as necessidades eram mais emergenciais, no
sentido de organizar um princípio de prestação de socorros aos necessitados e atender a
demanda de enfermos oriundos das epidemias causadas pelas más condições higiênicas
dos locais onde se aglomeravam as pessoas que chegavam ao Brasil e das embarcações
que aportavam e traziam consigo as doenças que grassava a Europa.
Dessa forma, ao mencionar a reforma nos hospitais que ocorreu no mundo
europeu a partir de fins do século XVIII, não se pode, de maneira alguma, afirmar que no
Brasil aconteceu ao mesmo tempo. Ao contrário, um processo semelhante à introdução
da clínica na Europa só irá ocorrer no Brasil a partir de meados a fins do século XIX, com
a instalação das Faculdades de Medicina durante o Império.
Durante o século XVII e XVIII declinou o modelo de hospital enquanto “fábrica”
religiosa e social, relativo ao total legado da caridade. O hospital representava uma grande
instituição de caridade. A partir da segunda metade da Era Moderna emergiu um
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

708
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

movimento de racionalização da assistência, o qual consistiu na gradativa transferência


da caridade das mãos dos leigos e religiosos para o Estado, aumentando as intervenções
das autoridades centrais. A assistência que antes era prestada em nome de Deus, a partir
de então passaria a ser um dever com a humanidade, ou seja, deveria ser útil a sociedade.
Ocorreu o que Mary Fissel (2002: 77) chamou de “ênfase mercantil sobre a população.
Em outras palavras, a caridade racionalizada iria para aqueles para quem seria mais útil
em termos de necessidades do país em geral”. Ou seja, há uma seleção do público que
seria atendido baseado nos interesses de quem estava prestando a assistência. A
racionalidade do benfeitor redefiniu os critérios de merecimento da pobreza, a qual foi
incorporada ao mundo social através da sociabilidade urbana em desenvolvimento que
adquiria novas formas organizacionais. Nesse sentido, o papel das instituições passa a ser
de disciplinadora da pobreza, enquanto meio para manter a ordem social. Os hospitais
representam esse processo, sendo eles compostos por “partes iguais de racionalização,
mordomia e um mercantilista preocupado com a saúde da cidade” (Op. Cit: 75).
A partir do momento em que os beneméritos que administram os hospitais
começaram a se preocupar com a saúde das cidades e passaram a agir no princípio da
filantropia, que via nas ações de assistência um meio de prestar serviços úteis a sociedade,
ocorreu uma grande mudança no objetivo desses espaços, transformando-os em máquinas
de curar325. O processo da terapêutica se alterou. Através do investimento no incremento
das tecnologias clínicas os espaços hospitalares se especializaram e tornaram-se lugares
de pesquisa e prática laboratorial que visava à cura dos seus internos.
No entanto, essas modificações nos hospitais não o eximiram enquanto lugar para
a pobreza e a sua assistência. Houve uma ressignificação do espaço assistencial, que se
transformou em terapêutico. Pode-se dizer que essa mudança foi influenciada por,
principalmente, dois fatores: a medicalização e a higiene pública.
O historiador Othmar Keel entende o processo de medicalização do hospital a
partir dessas mudanças, definindo-a como

325
Termo que se refere ao termo Machines à guérir, consagrado por Michel Foucault (1995), mas que foi
inicialmente descrito por Tenon em Mémoire sur les Hôpitaux de Paris, em 1788, para designar o papel
dos hospitais (SANGLARD, 2008, p. 61).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

709
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

a transformação, muito parcial e muito iníqua, que se produziu no


século XVIII em diferentes países da Europa, de certas instituições de
assistência ou de regulação social em instituições de terapêutica e
médico-científicas (...) O que não quer dizer que ela suplantou a função
de assistência ou de regulação social no sistema hospitalar ou de
assistência geral. Nesse sentido, mesmo no século XIX, a
medicalização ficará muito iníqua, e isso particularmente na França.
(KEEL, 2001: 29-30 apud SANGLARD, 2008: 48)

A percepção de que a prática clínica deveria colaborar para a cura dos enfermos e
que isso ajudaria a melhorar a higiene pública foi a grande transformação ocorrida entre
fins do século XVIII e início do XIX. As intensivas investidas nas pesquisas laboratoriais
corroboraram nesse processo. Os filantropos passaram a entender que investir em
pesquisa médica era uma forma de combater a pobreza, assim que “os hospitais tornaram-
se cada vez mais medicalizados e a doença se torna a principal via para o controle social”
(SANGLARD, 2008: 46). Ocorreu o que Sanglard denominou “modernização da
caridade”, através de ações assistenciais paternalistas, além de novas medidas de controle
por meio da separação entre doentes e pobres, curáveis e incuráveis; modificando, desse
modo, a estrutura de assistência que havia desde a reforma do final do período medieval
e início do período moderno.
As mudanças socioeconômicas ocorridas no Brasil pós-abolicionista provocaram
uma transformação na pobreza característica do país. Desse modo, o lugar da pobreza e
sobre quem recaía a responsabilidade de socorrê-la foi modificado. Nesse período, as
cidades receberam um grande contingente populacional, com o qual não sabiam como
lidar. Essa migração provocou aglomerações urbanas, desemprego, crescimento
descontrolado e a demanda por novos cuidados. O retrato da pobreza urbana, até então
composto por vadios ociosos, viúvas e órfãos, passou a integrar negros forros, imigrantes
e trabalhadores urbanos. Ao mudar o assistido e quem o assistia, modificaram-se também
as motivações da assistência, a forma de se efetuar a mesma e seu estatuto,
transformando-a em uma “questão social”, que passa a demandar ações filantrópicas e
estatais, em conjunto ou separadamente.
A necessidade do provimento da assistência em conjunto com o Estado, o qual até
então somente realizava ações isoladas, em casos, principalmente, epidêmicos, marcou a

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

710
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

delimitação das funções das esferas públicas e privadas. De acordo com Robert Castel
(2010), ao Estado caberiam ações gerais e à filantropia ações específicas. No Brasil, nesta
direção, as fundações de entidades assistenciais nesse período correspondiam a essa nova
ordem que se caracterizava na relação Estado e filantropia para o fornecimento da
assistência à pobreza.

O hospital de Caridade de Santa Maria e o seu público na Primeira República

Através da percepção da elite da necessidade de controlar os pobres e gerir seus


trabalhadores no contexto da efervescência urbana causada no país pós-abolição, que
surgiu o Hospital de Caridade de Santa Maria (HCSM). Embora muito distante da capital
federal e em uma cidade completamente distinta, com traços essencialmente rurais,
parece-nos que a mentalidade dos beneméritos que fundaram a referida instituição não
era tão diferente daqueles filantropos que estavam inaugurando hospitais, abrigos e
policlínicas no Rio de Janeiro no mesmo período. Fizeram parte do que foi definido por
Sanglard (2008) enquanto “características desse tempo”, ou seja, além da vida frenética,
dos prazeres, da arquitetura, da velocidade, da boemia, também “a filantropia, que
desponta como relevante elemento para o entendimento do período não só pelo caráter de
utilidade social que lhe é atribuído (...), mas também por incorporar, muitas vezes, as
questões do mundo do trabalho” (SANGLARD; FERREIRA, 2010: 438-39).
A fundação do hospital em Santa Maria circulou entre os salões da cidade, em que
se reuniam os beneméritos e suas esposas para planejar os bailes e quermesses que seriam
realizados para angariar fundos para a construção do prédio. Mas também perpassou a
Câmara Municipal, a Intendência, o gabinete do Presidente do Estado e o escritório da
Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fèr au Brésil, que, em conjunto, médicos, políticos
e empresários articularam a distribuição de recursos e suas contrapartidas na gerência da
instituição.
Ao determinar quem financiaria o hospital, a diretoria da instituição estava
aceitando algumas condições impostas com relação ao público que deveria ser atendido.
Ao receber subvenção do governo do Estado do Rio Grande do Sul, deveria em troca

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

711
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

atender e prestar todos os tipos de socorros e fornecimento de medicamentos aos soldados


da Brigada Militar. E, em contrapartida da subvenção municipal, ficaria a cargo do
hospital o serviço de assistência pública da cidade, ou seja, deveriam ser recebidos e
cuidados todos os pobres que necessitassem de socorros.
O Hospital de Caridade de Santa Maria foi inaugurado, oficialmente, em setembro
de 1903, para que pudéssemos fazer uma análise mais completa, com todos os meses,
optamos por iniciar em 1904. Como escolha metodológica, preferimos a análise serial por
amostragem, utilizando como parâmetro um período quadrienal. Temos, dessa forma, os
seguintes dados para os primeiros 12 anos da instituição: 445 registros para 1904; 704
para 1908; 437 para 1912 e 414 para 1916. Desses dados, podemos extrair diversas
informações sobre os indivíduos, visto que no Livro de Registros de Entrada de Pacientes,
fonte que utilizamos, constam os seguintes campos: nome, idade, sexo, cor, profissão,
naturalidade, residência, doença, médico responsável, data de entrada, data de saída,
classificação, motivo da alta e número de dias da internação. A seguir, passaremos a
análise específica de alguns desses campos a fim de entendermos melhor o público do
hospital.

Gráfico 01 – Porcentagem de internações por sexo326:

326
Gráfico elaborado pela autora a partir do Livro de Registro de Entrada de Pacientes do Hospital de
Caridade de Santa Maria. Acervo: Arquivo do Hospital de Caridade Dr. Astrogildo de Azevedo, livro 01.
Todos os gráficos desse artigo foram criados a partir desta mesma fonte.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

712
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ao observarmos o gráfico 01, saltam aos olhos a predominância do público


masculino, sobretudo nos três primeiros anos da análise. Esses dados são melhores
entendidos quando cruzamos o sexo com a classificação, ficando mais claro o motivo
pelo qual os homens são maioria.

Gráfico 02 – Classificação dos internos do HCSM (%)

Em vista do gráfico 02, percebemos que entre 1904 e 1908 a maioria dos internos
eram soldados da Brigada Militar. Estes, se somados aos trabalhadores da Viação Férrea
do Rio Grande do Sul (VFRGS), ultrapassam os 50% das internações. Se pensarmos essa
classificação enquanto profissão, temos uma explicação possível para o elevado número
de internos do sexo masculino. Destaca-se que o campo “classificação” era dado pelo
hospital para definir quem faria o pagamento da internação. “Brigada Militar”
correspondia a subvenção estadual, como já citamos, bem como “pobres” a subvenção
municipal. Já “VFRGS” significava pagamento pela ferrovia e “particular” – que se
desmembrava entre: “primeira e segunda classe” – eram pagos com recursos próprios dos
indivíduos.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

713
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Extraindo apenas os dados referentes a “Brigada Militar” e “Pobres” do gráfico


02, percebemos duas curvas inversamente proporcionais. Ou seja, vemos que os dados
em azul decrescem, até em 1912 desaparecerem; e, as colunas em vermelho aumentam,
correspondendo em 1912 e 1916 a três terços das internações. Em números absolutos de
internações, sobre os pobres temos: 168 em 1904, 280 em 1908, 318 em 1912 e 314 em
1916; e para a Brigada Militar: 228 em 1904, 326 em 1908, nenhum em 1912 e dois em
1916. Isto posto, a partir de agora focaremos a análise nesses dois grupos.

Pobres e trabalhadores:

Buscando a respeito da regulamentação da pobreza pelas autoridades municipais,


notamos que no primeiro Código de Posturas haviam alguns artigos no que diz respeito a
esse público.

Art. 115 – Toda pessoa que não tiver domicílio próprio ou alugado e
não poder justificar de que meios lícitos dispõem para prover a sua
subsistência, será compelida ao trabalho, prestando-se como criada ou
criada, sob pena de 10$ e prisão correcional.
Art. 117 – É proibido o exercício da mendicidade sem
expressa autorização do Intendente, que só a concederá ao mendigo
reconhecidamente tal e que não se dê ao vício da embriaguez. O
contraventor será preso e sujeito a trabalho correcional por oito dias.
Art. 118 – Não é igualmente permitido tirar esmolas ou promover
subscrições a fim de enfermos, viúvas, órfãos, irmandades, ordens
religiosas, etc. sem que haja autorização do Intendente, nos primeiros
casos e do respectivo pároco no segundo; ao infrator pena de 10$ de
multa.
Comentário:
Mantenho o art. 117 do projeto, discordando das observações
apresentadas, por quanto: para proibir a mendicidade pelas ruas, seria
preciso que houvesse na cidade um asilo ou casa de caridade onde
fossem recolhidos os pobres que mendigam a Caridade pública (grifos
nossos). (Código de Posturas Municipais, 1897. Fonte: Fundo Junta
Intendencial - AHSM - Caixa 02 - Livro 9 - 1850-1895).

O Código de Posturas Municipal de Santa Maria data de 1897 e a Sociedade de


Caridade, a qual deu origem ao Hospital, foi fundada em 1898. Sabemos que era grande
a distância entre o que previa a legislação e o que ocorria na prática, entretanto, podemos
pensar que talvez o incentivo que o município deu a criação do hospital teria alguma

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

714
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

relação com o que previa o comentário ao artigo 117 referente a necessidade de existir na
cidade uma Casa de Caridade.
No regimento interno do hospital, redigido no relatório anual de 1904,
encontramos o regulamento para o Serviço de Assistência Pública de Santa Maria, o qual
passaria a ser responsabilidade da instituição, conforme citação abaixo.

Em retribuição dos auxílios que recebe do município, o Hospital tomou


a si todo o serviço de assistência pública. No caso de acidentes nas ruas
ou ferimentos, a polícia transmite o caso por telefone e o hospital faz o
recolhimento, atende em suas enfermarias e presta quaisquer socorros.
Em caso de óbito, fazem o enterramento. Caso o acidente já seja mortal,
o hospital já faz o recolhimento direto ao necrotério e faz o
sepultamento, bem como se precisar de autópsia, sem custo ao Estado
ou ao Município. Em caso de morte de indigentes em domicílio, o
hospital também promove o enterramento (Relatório Hospital de
Caridade de Santa Maria, apresentado pelo Dr. Astrogildo César de
Azevedo, 07 de setembro de 1904: 50. Fonte: Acervo HCSM).

Através dessas palavras podemos perceber que a responsabilidade de cuidar da


pobreza no município ficaria a cargo do HCSM, o que nos leva a entender o elevado
número de pobres no hospital. No entanto, ainda temos como questão pensar sobre quem
eram esses indivíduos classificados como “pobres” para que obtivessem seus
atendimentos custeados pela Intendência.
Mais uma vez recorrendo aos dados do Livro de Registros, podemos, com o
auxílio de softwares, fazer o cruzamento entre a classificação o sexo e a profissão, do
qual obtivemos os seguintes gráficos.

Gráfico 03 – Profissão dos homens pobres:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

715
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Gráfico 04 – Profissão das mulheres pobres:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

716
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ao olharmos os gráficos 03 e 04 percebemos a relação existente entre a


diversidade de profissões e o número de pobres. Ou seja, voltando ao gráfico 02,
lembramos que a partir de 1908 o número de pobres aumentou, chegando a três terços em
1916. Com isso, notamos que, para o ano de 1904, entre as mulheres aparecem apenas
domésticas ou criadas, sendo que “doméstica” era a classificação dada às donas de casas,
senhoras do lar; e criadas eram as mulheres que não tinham meios para sobreviver e
deveriam ser submetidas a esse trabalho obrigatório, conforme determinado pelo artigo
115 do Código de Posturas de 1897, supracitado. Em 1908, aparecem dados semelhantes,
somado a um caso de mulher operária. Já em 1912 o número de domésticas destaca-se
como o mais elevado, ao passo que também existem uma boa porcentagem sem profissão
definida. O ano que chama atenção é 1916, pois se voltarmos ao gráfico 01, percebemos
que o número de homens e mulheres praticamente se equipara e, olhando o gráfico 04,
vemos que o número de profissões também aumenta, aparecendo casos de costureiras,
cozinheiras, estudantes, foguista, jornaleira, lavadeiras, parteiras e religiosas.
Já no que diz respeito aos homens, a partir do gráfico 03 destacamos três como
principais grupos profissionais: agricultores/lavradores, profissionais urbanos
especializados e jornaleiro/trabalhador, com exceção de 1908, em que o grupo de
operários se destaca. Nos demais anos, percebemos algumas tendências e podemos pensar
que as denominações jornaleiro e trabalhador podem ser sinônimas e denominam aqueles
com profissão não definida. Indicamos isso porque em 1916 não aparece nenhum caso de
“trabalhador”, ao mesmo tempo em que o número de “jornaleiro” se eleva. E, em 1912,
ao contrário, enquanto “jornaleiro” possuí uma representação pequena, “trabalhador”
aumenta. Sobre o indicador “profissionais urbanos especializados”, foi uma categoria que
criamos para englobar as mais diversas profissões que atuavam principalmente na cidade:
alfaiate, barbeiro, cocheiro, ferreiro, marceneiro, mascate, pedreiro, pintor, sapateiro,
servente, serralheiro, tipógrafo, etc.
Analisando os dados da pobreza, percebemos que gradativamente, tanto homens
quanto mulheres, os pobres eram cada vez mais trabalhadores pobres. Uma categoria de
pobreza característica do início do século XX, a qual pretendemos desenvolver melhor
no transcorrer da tese que está sendo escrita.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

717
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

***

Já sobre o outro ponto que propomos discutir nesse artigo, a respeito da


classificação referente a “Brigada Militar”, não nos deteremos nas mesmas categorias já
analisadas para a pobreza. Afinal, são um grupo profissional homogêneo e apenas
composto por homens. Então, nossa questão aqui centra-se em comparar suas doenças
com as enfermidades dos pobres.

Gráfico 05 – Doenças da Brigada Militar

Gráfico 06 - Doenças dos pobres

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

718
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para a elaboração dos gráficos 05 e 06 optamos por não colocar as colunas


referentes a “não consta” e “ilegível”, para que pudéssemos trabalhar apenas com os
números absolutos das doenças. Também, como haviam muitos casos de doenças que
aparecia apenas um ou dois pacientes registrados, optamos por colocar no gráfico apenas
os que apareciam em mais de quatro casos, as demais ficaram na coluna “outros”.
Sobre as doenças dos militares da Brigada, percebemos uma tendência àquelas
relacionadas ao que hoje chamamos DST’s: sífilis e gonorreia, seguidas por doenças
causadas por falta de higiene no ambiente de trabalho: sarna. Há também um certo
destaque para as doenças reumáticas, que podem ser causadas pelas condições de
trabalho. Tuberculose, gripe e doenças respiratórias eram as causas mais comuns de
internação em todos os hospitais do Rio Grande do Sul nesse período.
Entre os pobres, encontramos uma tendência bem semelhante aos militares,
destacando-se a sífilis, a qual, se percorrermos alguns casos específicos percebemos que
são sobretudo mulheres que dão entrada no hospital logo após os policiais da Brigada, ou
seja, indicando algum tipo de relação e contágio entre eles. Algumas enfermidades que
poderíamos classificar como “da pobreza”, seria a anemia, por falta de alimentação
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

719
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

saudável e as gastrointestinais e a febre tifoide que se relacionam com a falta de higiene


e más condições na alimentação e na água.
Por fim, não encontramos o motivo pelo qual percebemos que o hospital passa de
praticamente um hospital militar em 1904 e 1908 para um hospital de pobres em 1912 e
em 1916. Talvez a abertura de uma enfermaria militar em Santa Maria em 1908 seja um
caminho explicativo. No entanto, se refletirmos que ambas as classificações eram
subvencionadas pelos poderes públicos, de alguma forma eram todos “pobres
trabalhadores”, dadas as semelhanças entre as categorias, no que diz respeito às doenças
e na diversidade das profissões entre a pobreza. De qualquer modo, essas são conclusões
preliminares do terceiro capítulo da tese que está sendo elaborada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ABREU, Laurinda. O poder e os pobres. As dinâmicas políticas e sociais da pobreza e


da assistência em Portugal (Séculos XVI-XVIII). Lisboa: Gradiva, 2014.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Ed. Vozes, 2010.

FISSEL, Mary. Patients, power and the poor in eighteenth-century Brsitol. Cambridge:
Cambridge University Press, 2002.

FRANCO, Renato. Pobreza e caridade leiga – as Santas Casas de Misericórdia na


América Portuguesa. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo. Tese (Doutorado em História). São Paulo: USP, 2011.

RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e Filantropos – a Santa Casa da Misericórdia da


Bahia, 1550-1755. Brasília: Editora UNB, 1981.

SANGLARD, Gisele. Entre os salões e o laboratório: Guilherme Guinle, a saúde e a


ciência no Rio de Janeiro, 1920-1940. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 2008.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

720
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SANGLARD, Gisele; FERREIRA, Luiz Otávio. Médicos e filantropos: a


institucionalização do ensino da pediatria e da assistência à infância no Rio de Janeiro
da Primeira República. Varia História, v. 26, n. 44, p. 437-459, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

721
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Processo histórico e experiência de classe: uma abordagem sobre a reforma


agrária chilena a partir de Thompson (1967-1973)

DANIEL DE SOUZA SALES BORGES


UNIRIO/COC

O objetivo do presente artigo é tentar estabelecer uma abordagem preliminar sobre


a reforma agrária ocorrida no Chile buscando destacar o protagonismo camponês dentro
do processo de estabelecimento e consolidação reforma agrária, especialmente após a
chegada de Salvador Allende à presidência. Para tal, utiliza-se – ainda em estágio
preliminar, ressalte-se – algumas ideias desenvolvidas pelo historiador inglês Edward
Palmer Thompson a respeito de sua formulação sobre experiência de classe e suas
implicações em determinado processo histórico.
Na América Latina a questão agrária se configurou desde os primórdios da sua
colonização como um campo de intensos conflitos. A violenta expropriação dos povos
nativos e a inserção subordinada no mercado internacional acabaram por produzir uma
estrutura agrária altamente concentrada e oligarquias rurais que dispunham tanto de
recursos materiais quanto de poder político. Se é no século XIX o auge da liberalização
econômica e o agravamento da dependência das economias periféricas, no século XX a
questão agrária passa a ser um ponto central dentro de projetos políticos de transformação
social – reformistas ou revolucionários. Uma série de movimentos traziam para o centro
do debate público e das lutas sociais a necessidade de se reformar o setor agrário como a
revolução mexicana, a revolução cubana, as ligas camponesas no Brasil e ainda impulsos
reformadores na Bolívia e no Peru.
O exemplo do Chile é particularmente emblemático no contexto latinoamericano
pois a reforma agrária se configurou como um processo descontínuo em disputa por
diferentes setores sociais e suas associações de classe na sua relação com o Estado. Isso
aconteceu em decorrência da aparente estabilidade política327 que permitiu que projetos

327
A estabilidade política chilena, frequentemente propalada pela historiografia, era relativa e se limitava
à normalidade com que ocorreram os pleitos eleitorais entre as décadas de 1950 e 1970. A atuação de grupos
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

722
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

distintos se revezassem no poder entre 1958 e 1973, quando há o golpe e a quebra da


institucionalidade democrática. Desse modo, a reforma agrária emerge basicamente com
duas conotações distintas cuja permeabilidade nas esferas de poder estaria diretamente
relacionada à orientação político-ideológica do Estado: como demanda social específica
de melhoria das condições de vida do campesinato através de uma distribuição mais justa
de terras, ou como projeto de modernização capitalista que visava desenvolver o setor
agrícola, melhorando sua produtividade e aumentando sua participação no PIB (ULLOA,
2006). Para além das consequências diretas da incorporação do setor agrícola a um projeto
nacional, a tensão latente no campo entre uma classe de grandes proprietários, pequenos
proprietários e camponeses despossuídos de terras, tendia a aumentar pela simples
ameaça à estrutura baseada no latifúndio (hacienda), herdada da colonização espanhola
(LOVEMAN, 2001).
Em 1967, sob o governo de Eduardo Frei, influenciado diretamente pela Aliança
para o Progresso328, é consolidado um marco legal através das leis 16.640 e 16.625, que
determinam respectivamente o aprofundamento da lei de reforma agrária anterior e a
possibilidade da formação de sindicatos camponeses, proibidos desde 1947. Além de uma
normatização menos condescendente com classe proprietária no que se refere à
expropriação de terras improdutivas ou mal exploradas, a legislação que regulamentava
a criação de sindicatos estabelecia um ponto de inflexão tanto na atuação política
camponesa, quanto no grau de influência da Igreja Católica sobre esse grupo. Ressalta-se
que a lei que regulamenta a sindicalização não cria mobilizações em torno de demandas
determinadas, apenas as retira da clandestinidade uma vez que os principais mediadores
dos interesses camponeses nessa época eram a Igreja Católica, através do Partido

radicalizados – à esquerda e à direita – ganhava vulto em momentos de transição política, como a reação
de grupos fascistas contrários à posse de Allende em 1970.
328
A Aliança para o Progresso foi um amplo programa de cooperação para a promoção de reformas
econômicas e sociais na América Latina implementado pelo presidente norteamericano John Kennedy, que
sob o pretexto de estimular o desenvolvimento da região, objetivava aumentar a influência americana no
continente e refrear possíveis avanços do movimento comunista, principalmente após a Revolução Cubana.
Os governos alinhados com as diretrizes da Aliança para o Progresso receberam um grande volume de
investimento para realização de reformas que visassem aumentar a participação norteamericana em seus
territórios.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

723
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Democrata Cristão (PDC), e o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), que se


concentrava na ação direta com formação de pequenas guerrilhas e ocupações de terras329.
O programa de governo do presidente Eduardo Frei, expresso no slogan
“Revolução em Liberdade”, buscava repelir a influência do ideário de inspiração
marxista, bem como manter e aprofundar o alinhamento do PDC com a política externa
dos Estados Unidos para a América Latina. A reforma agrária praticada pelo governo de
Eduardo Frei era parte de um projeto político para modificar a produção, aumentar a
produtividade e abrir a economia ao mercado internacional. Estabelece, desse modo,
objetivos de longo prazo e os principais dispositivos jurídicos utilizados em favor dos
camponeses em detrimento dos proprietários: a modificação dos trâmites de expropriação
de terras e a permissão para a formação de organizações e sindicatos camponeses.
Com a vitória eleitoral da Unidad Popular (UP), frente de esquerda que levou
Salvador Allende, do Partido Socialista, à presidência, a Via Chilena ao Socialismo foi
caracterizada por um ambicioso projeto de reformas econômicas que visavam
democratizar os centros de decisão, restabelecer plenamente a soberania nacional e iniciar
a transição ao socialismo. Dentre todas as reformas projetadas pelo programa de governo,
a agrária urgia como ponto imprescindível na estratégia socialista delineada pela UP. Se
foi possível, ainda que brevemente, construir uma hegemonia popular nas áreas urbanas
com apoio maciço de trabalhadores, estudantes, parte das classes médias e com
demonstrações de força do poder popular como a formação de cordones industriales330 e
socialização de fábricas, no campo a penetração do ideário político da UP encontrava
forte resistência pelo legado do PDC.
Ainda assim, sob a base legal herdada da administração do PDC e com o objetivo
de eliminar o latifúndio, a UP realiza um volume tão grande de expropriações de terras
(BITAR, 1989), que é criado um impasse entre o ordenamento jurídico institucional da
reforma agrária, orientado pela via chilena ao socialismo, e a autonomia camponesa, que
atravessa o projeto político da UP por meio da atuação ativa das suas associações,

329
Os partidos de esquerda de inspiração marxista, a saber o Partido Comunista Chileno (PCCh) e o Partido
Socialista (PS) tinham pouca penetração no campo, estando mais presentes em setores sociais urbano-
industriais.
330
Sobre isso, consultar a tese de doutorado da professora Elisa de Campos Borges: iCon la UP ahora somos
gobierno! – A experiência dos cordones industriales no Chile de Allende.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

724
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

organizando ocupações de terras e pressionando o governo para acelerar ainda mais os


processos de expropriação. Há razoável consenso na historiografia sobre o que se chamou
de “fracasso econômico” da reforma agrária dos anos 1970. A bibliografia relativa ao
tema normalmente não apresenta uma análise mais pormenorizada da complexidade da
relação entre o Estado e as movimentações sociais que ocorriam no campo, e se detêm,
via de regra, em análises sobre a capacidade de produção das áreas reformadas.
Isso ocorre por ocasião de duas ideias razoavelmente estabelecidas e
aparentemente contraditórias: a reforma agrária de Frei teve pouca influência na ação
política camponesa (ULLOA, 2006) e (KAY, 1977), visão combatida por
(YOCELEVZKY, 2003, 1985) e (BENGOA, 1983), e que a reforma agrária sob o
governo popular foi um fracasso (DE VYLDER, 1976), (ULLOA, 2006). Tais
interpretações merecem um olhar mais detido, uma vez que a reforma era um processo
em disputa e que se afirmava em detrimento de certos interesses dependendo de quais
forças sociais levavam o projeto adiante. Há de fato um grande fracasso na organização
de áreas reformadas e na produção agrícola, mas trata-se de um fracasso imposto por um
conjunto de forças contrárias à Via Chilena de uma forma geral, como a elite agrária, por
exemplo.
O economista sueco Stephan De Vylder divide a reforma agrária no período da
UP em duas fases distintas. A primeira fase, destrutiva, refere-se ao ritmo acelerado de
expropriações de latifúndios, e a segunda fase, construtiva, refere-se à distribuição de
terras e organização da produção. Sobre a segunda fase, De Vylder (1976) relaciona os
problemas de produção às formas de associação cooperativa dos trabalhadores e a
incapacidade da Corporación de Reforma Agrária (CORA) no gerenciamento dos Centros
de Reforma Agraria (CERAS). Ideia compartilhada em parte pelo historiador chileno Jose
Bengoa (1983), que ao tratar do que De Vylder chamou de “fase destrutiva”, destaca a
incapacidade da UP de lidar com as demandas criadas pelo acelerado ritmo de
expropriações. Faundez (1988) observa que a constituição dos CERAS passou a ser
progressivamente uma prerrogativa cada vez mais dos conselhos camponeses do que do
próprio governo. A obra do autor é uma das poucas a relacionar as tensões no campo à
desestabilização do governo, uma vez que a criação de conselhos camponeses como
fóruns de deliberação coletiva não era um consenso na UP, sendo uma ideia defendida
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

725
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

internamente apenas pelo PS, mas que foi colocada em prática devido ao descontrole do
governo sobre o processo de reforma agrária.
Não é objetivo do presente artigo discutir os resultados econômicos das áreas
reformadas, mas se faz necessário ressaltar que a reforma agrária deve ser entendida como
um processo histórico que envolveu uma série de disputas sociais e políticas entre forças
antagônicas, e não como mera aplicação de um projeto. O próprio conceito de reforma
agrária estava em disputa, tanto pela conjuntura interna quanto externa, e, apoiado pela
afirmação de Gutelman (1974) de que uma reforma agrária é sempre o produto de uma
relação de força entre classes sociais diferenciadas, o presente artigo busca ressaltar
influência determinante que o referido processo teve na conformação e complexificação
de interesses de classe que exacerbaram os limites da atuação político-institucional e
passaram a se expressar sob a forma de distúrbios sociais. Nesta perspectiva, a
historiadora chilena Tamara Ximena Carrasco Leichtle salienta o seguinte:

Bajo los actuales antecedentes que se manejan pareciera ser que el


proceso de Reforma Agraria bajó desde lo alto a los pies del campesino,
mientras que la contrarreforma agraria lo fue sólo y exclusivamente en
su faceta material. Ambas situaciones dan cuenta de que no siempre se
ha comprendido lo que implicaba reformar el sistema agrícola nacional,
ni se ha considerado tampoco la violencia profunda que cruzó
prácticamente toda la sociedad rural, particularmente el proceso de
descomposición del latifundio en Chile (LEICHTLE, 2013:14-15)

Dessa forma, considera-se a reforma agrária como um processo histórico que


implica e opõe determinados sujeitos coletivos, suas práticas e sociabilidades em
determinado contexto histórico, ao mesmo tempo em que os constitui através da
diferenciação de seus respectivos interesses pela dinâmica da luta de classes.
Compreendendo classe como um fenômeno histórico relacional derivado de processos
sociais através do tempo (THOMPSON, 1987, 2001), isto é, para Thompson, a classe não
é, mas faz-se, quando sujeitos coletivos articulam interesses entre si em contraposição a
outros. A isso soma-se a dimensão da experiência de classe, que ainda segundo
Thompson, é determinada pelas relações de produção em que os sujeitos coletivos se
encontram, ainda de acordo com Thompson:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

726
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Se detemos a história num determinado ponto, não há classes, mas


simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de
experiências. Mas se examinarmos esses homens durante um período
adequado de mudanças sociais, observaremos padrões em suas
relações, suas ideias e suas instituições. A classe é definida pelos
homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única
definição (THOMPSON, 1987, p. 12).

Para o historiador inglês classe e experiência de classe são duas categorias que
estão articuladas, com a segunda precedendo a primeira. No recorte cronológico do
presente artigo são estabelecidos dois momentos chave – de dois projetos distintos – do
processo de reforma agrária, entre os anos de 1967 e 1970 e entre os anos de 1970 e 1973.
No primeiro, como mencionado, são definidos os parâmetros de expropriação de terras e
organização camponesa, e no segundo se iniciam as expropriações em larga escala e a
socialização de terras. A partir desse processo é que são ajustadas progressivamente as
estratégias de atuação camponesa, tanto como resistência às elites agrárias, quanto como
construção de hegemonia. A reforma agrária, portanto, apesar de possuir uma dinâmica
própria, não se desembaraça por completo do processo chileno de uma forma geral. Nesse
sentido, as mudanças de direção do Estado chileno assumem especial relevância uma vez
que influenciam decisivamente a atuação política camponesa. Oszlak (2016) observa que
os proprietários mantiveram por muito tempo um controle direto sobre as instâncias de
decisão do Estado impedindo que grandes modificações como uma reforma agrária
baseada num movimento massivo de expropriações. Dessa maneira, a partir da
observação de Oszlak, é possível perceber como no caso do Chile a reconfiguração do
Estado sob a composição de novas formas de hegemonia política constitui aspecto
determinante nas formas de atuação e intervenção política, não só, mas principalmente
das classes subalternas, uma vez que mesmo uma transformação superficial é um risco
potencial para uma estrutura agrária previamente estabelecida.
No campo, a possibilidade de sindicalização, conquistada em 1967, configurou-
se como um fator essencial para a luta do campesinato e a formação de organizações que
pudessem disputar não só, mas nesse contexto, principalmente a nível superestrutural
cada projeto político com as associações de classe de proprietários, como bem observa o
professor e pesquisador da FLACSO Sergio Gómez:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

727
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Las posibilidades que tienen los campesinos para establecer organizaciones y


para realizar moviliciones dependen en un grado importante de la política que
impulsa el Estado. Ello no quiere decir que las propias organizaciones no
jueguen un papel en la estructura de poder, ya que, en definitivo, van a
condicionar, juntos con otras fuerzas sociales, la política que expresa el Estado.
Pero, el clima social que se crea en la política del Estado, enquanto a permitir,
estimular, dificultar o reprimir las organizaciones, es fundamental para
comprender la evolución de éstas. Dentro del conjunto de políticas se deben
destacar, por su importancia, la que se refiere al área laboral y la de tenencia
de la tierra (GÓMEZ, 1982, p. 9).

Há, recuperando a ideia de Thompson (1981) de processo histórico, uma mudança


significativa a partir da incorporação de interesses camponeses ao aparato de Estado. A
importância da mobilização camponesa a partir de sua intensificação durante o processo
de reforma agrária pode ser expressa não só pelo aumento do número de organizações
que surgiram para defender interesses específicos do campesinato, mas também pela
autonomização desses interesses em relação ao projeto da UP. Restringindo mais
atentamente o foco deste artigo no desenrolar da situação no campo, percebemos que os
mecanismos de repressão estatal, no geral, se afrouxam a partir do governo Frei, com a
possibilidade de sindicalização. Isso significou, a partir deste precedente, e
posteriormente sob o governo de Allende, uma aceleração do processo histórico de
formação de interesses de classe entre o campesinato chileno, ao contrapô-los mais
diretamente com os interesses de classe dos proprietários. Em outras palavras, exacerbou
mais claramente uma tensão entre sujeitos coletivos que foram tanto condicionados como
ativos no processo de reforma agrária.
O período entre o final de 1972 e 1973 é emblemático dessa tensão. Há uma
grande instabilidade no campo com um movimento descontrolado de ocupações de terras
e demandas camponesas – numa inversão do procedimento de socialização das áreas
reformadas – por expropriação. Por outro lado, a dispersão dos interesses de classe
experimentada pelos proprietários de terras durante a reforma agrária atinge seu auge,
assim como o protagonismo camponês, no referido período, ensejando a drástica solução
expressa pelo golpe de Estado de Pinochet. Ao se associarem ao movimento de
desestabilização do governo da UP, as elites agrárias chilenas encontram uma brecha para

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

728
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

a recomposição desses interesses que se materializaram na violência aberta contra o


campesinato e na reversão da reforma agrária iniciada pela ditadura.
Desse modo, as formulações de Thompson permitem conferir centralidade ao
processo e a constituição do campesinato chileno e sua luta – luta de classes – durante a
reforma agrária. Para os restritos objetivos das questões levantadas por este artigo, possui
menos relevância a derrota imposta à reforma agrária e à via chilena como um todo, do
que a experiência de classe que se materializa em ações e disputas diretas durante o
processo.

Bibliografia

AGGIO, Alberto. Democracia e socialismo: a experiência chilena. São Paulo: Unesp,


1993.

BARRACLOUGH, Solon; FERNÁNDEZ, Jose Antonio. Diagnóstico de la reforma


agraria chilena. México DF: Siglo Veintiuno editores, 1974.

BENGOA, José. El campesinado chileno después de la reforma agraria. Santiago:


Ediciones Sur, 1983.

_____________. Haciendas y campesinos. Historia Social de la Agricultura Chilena.


Tomo II. Santiago: Ediciones Sur, 1990.

BITAR, Sergio. Transição, socialismo e democracia. Chile com Allende. São Paulo: Paz
e Terra, 1989.

BORGES, Elisa de Campos. Com la UP ahora somos gobierno! – A experiência dos


cordones industriales no Chile de Allende. Tese de doutorado. Niterói, 2011.

CURY, Marcia Carolina de Oliveira. O protagonismo popular: experiências de classe e


movimentos sociais na construção do socialismo chileno (1964-1973). Tese de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

729
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Doutorado. São Paulo, 2013. Disponível em:


http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000902844

DE VYLDER, Stefan. Allende’s Chile: The political economy of rise and fall of the
Unidad Popular. London: Cambridge University Press, 1976.

FAUNDEZ, Julio. Marxism and democracy in Chile – From 1932 to the fall of Allende.
New Haven and London: Yale University Press, 1988.

FURTADO, Celso. A economia latinoamericana. São Paulo: Companhia das Letras,


2007.

GÓMEZ, Sergio. Instituciones y Procesos Agrarios en Chile. Santiago: CLACSO, 1982.

GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

GUTELMAN, Michel. Estruturas e Reformas Agrárias. Lisboa: Edições 70, 1974.

KAY, Cristóbal. Tipos de reforma agraria y sus contradicciones: el caso de Chile.


Revista Mexicana de Sociología, Vol. 39, No. 3, Cuestiones agrarias en America Latina.
Universidad Nacional Autónoma de México, 1977.

_____________. Agrarian reform and the class struggle in Chile. Latin American
Perspectives, Vol. 5, No. 3. Peasants, capital acumulation and rural underdevelopment.
Sage Publication, 1978.

LEICHTLE, Tamara Ximena Carrasco. El campesinado entre Frei y Pinochet.


Testimonios de la Reforma Agraria en tres momentos: comunitaria, socialista y
contrarreformista. Huelquén, Paine (1967-1976). Tesis de magíster, Santiago, 2013.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

730
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

LOVEMAN, Brian. Chile: The Legacy of Hispanic Capitalism. Londres: Oxford


University Press, 2001.

OSZLAK, Oscar. La trama oculta del poder – Reforma agraria y comportamento político
de los tierratenientes chilenos. Santiago: Lom Ediciones, 2016.

PETRAS, James. Política y fuerzas sociales en el desarrollo chileno. Buenos Aires:


Amorrortu, 1971.

SEGUEL, Matías C.; BORGHERO, Karen F. Memórias de la Reforma Agraria – La


lucha porla tierra en el valle de Longotoma. Santiago: Lom Ediciones, 2012.

THOMPSON, Edward P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Vol. I eII. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1987.

____________________. A miséria da teoria ou um planetário de erros – uma crítica ao


pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

____________________. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas:


Editora Unicamp, 2001.

ULLOA, Roberto Santana. Agricultura Chilena en el siglo XX: contextos, actores y


espacios agrícolas. Santiago: Dibam, 2006.

VALDÉS, Alberto; FOSTER, William. La reforma agraria en Chile – Historia Efectos


y Lecciones. Santiago: Ediciones Universidad Catolica de Chile, 2015.

WINN, Peter. A revolução chilena. São Paulo: Unesp, 2009.

YOCELEVZKY, Ricardo. Los proyectos políticos de los años sesenta. IN: Frágiles
Suturas. Chile a treinta años del gobierno de Salvador Allende. COLMEX, 2003.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

731
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

_____________________. La Democracia Cristiana chilena. Tayectoria de un proyecto.


Revista Mexicana de Sociología, VOL. 47, No. 2. Universidad Nacional Autónoma de
Máxico, 1985.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

732
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A lei de promoções no Exército brasileiro de 1850: o palco do debate parlamentar

DANIELA MARQUES DA SILVA


Programa de Pós Graduação em História/ UFRRJ

Introdução

O decênio de 1850-1860, na Câmara dos Deputados, é conhecido como a fase de


prosperidade e progresso material no Império. Tais décadas acompanharam e exprimiram
o avanço conservador – saquarema. Este trabalho usa como recorte cronológico a 8ª
legislatura (1850-1852), em especial o ano de 1850. Tal legislatura foi marcada pela
aprovação do Código Comercial, do Processo Criminal, da Lei Euzébio de Queiróz e pela
criação da província do Amazonas e, pela aprovação da lei de terras (FRANCO, 1976).
O objetivo desse trabalho é identificar os atores políticos envolvidos no debate
parlamentar sobre a lei de promoções de 1850. Para isso, será necessário apresentar os
deputados que a discutiram e como funcionava a Câmara dos Deputados naquele
momento.
A lei nº 585, de 6 de setembro de 1850, também conhecida como lei de promoções
do Exército ou lei de 1850, determinava, em termos gerais, que o acesso aos postos de
oficial seria gradual e sucessivo. Desde alferes ou segundo tenente até marechal de
Exército.
Para ser promovido ao posto de alferes ou segundo tenente era necessário ter, no
mínimo, dezoito anos de idade e dois de praça efetiva do Exército. As promoções para os
postos de alferes e segundos tenentes deveriam ser preenchidas por sargentos e, cadetes
que tivessem servido por algum tempo como oficiais inferiores e por alunos da Escola
Militar. As promoções para os postos de tenentes, primeiros tenentes e capitães seriam
por antiguidade, os majores, tenentes coronéis e coronéis seriam promovidos metade por
antiguidade e metade por merecimento (LEI Nº 585, de 6 de setembro de 1850).
A intenção era regular a ascensão no Exército a partir de critérios mais objetivos,
que rompessem gradativamente com a tradição aristocrática, fundada na origem social do
requerente e em relações pessoais e de parentesco. A lei de promoções, segundo John
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

733
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Schulz, provocou mudanças na organização do corpo de oficiais do Exército ao


estabelecer requisitos mínimos de tempo de serviço e instrução. Com a lei, a instrução
seria fundamental para a ascensão dos oficiais as armas da engenharia, artilharia e estado-
maior. Além disso, ao instituir normas rígidas de promoção baseadas na antiguidade, a
lei de promoções aboliu o sistema antigo de promoções. Tal sistema era de origem
portuguesa e, permitia o acesso da nobreza direto, sem qualquer experiência, aos altos
postos da hierarquia militar (SCHULZ, 1994: 26-27)
O contexto de aprovação da lei de promoções é o período em que os conservadores
empreendiam sua obra política. Após vencerem as eleições para a legislatura de 1838, os
conservadores não se limitaram a reprimir as rebeliões que ameaçavam o Império. Eles
se empenharam na construção do Estado imperial forte e em difundir a civilização. Ilmar
Mattos lembra que foi exercida uma direção, a direção saquarema. Os conservadores,
porém não ocuparam o poder por anos a fio. Entre fevereiro de 1844 e setembro de 1848,
os liberais estiveram no poder. Mas, o Gabinete de 29 de setembro de 1848 marcou o
retorno conservador. Foi esse Gabinete o responsável por conter a Revolução Praieira,
reformar a Guarda Nacional, extinguir o tráfico negreiro intercontinental, criar o Código
Comercial e reformar o Exército (FAUSTO e HOLLANDA, 2004 e MATTOS, 2004).
Segundo Adriana Barreto de Souza, a obra política saquarema atingiu o Exército,
com a finalidade de definir um arranjo político centralizado. O objetivo era reerguer o
Exército que havia sido desmobilizado pelos liberais em 1831, transformando-o em um
eficiente braço administrativo da Coroa. Uma série de decretos e leis referentes ao
Exército e à Marinha foram sancionados, como por exemplo: o plano de organização do
corpo de saúde do Exército, criação de livros mestre (onde era registrado o acesso do
oficial no quadro hierárquico), padronização dos uniformes e a aprovação da lei de
promoções - que regulava o acesso aos postos de oficiais das diferentes armas do Exército
(MATTOS, 2004 e SOUZA, 1999).
No ano de 1850, durante a “fala do trono”, D. Pedro II chamou atenção para a
necessidade de medidas para aumentar a força do Exército. Entretanto, na década de 1840
havia a intenção, por parte do ministro da Guerra – João Paulo dos Santos Barreto, de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

734
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

regular as promoções no Exército.331 Por meio da leitura dos anais da Câmara dos
Deputados e dos relatórios do Ministério da Guerra é possível indicar o “caminho” da lei
de promoções no Parlamento.
No ano de 1846, houve uma proposta de lei para regular as promoções e, em 1850,
a aprovação da lei. Em 1846, o então ministro da Guerra (João Paulo dos Santos Barreto)
interrompeu a discussão sobre a criação de bispados no Brasil e propõe um projeto de lei
por parte do poder Executivo. Tal projeto é remetido à Comissão de Marinha e Guerra
(da própria Câmara dos Deputados) que modifica a proposta que passa a ser referenciada
como proposta do governo – retomada em 1850.332 Já no ano de 1850 o deputado João
Antônio de Miranda – magistrado e deputado pela província do Rio de Janeiro –
apresentou um projeto sobre as promoções no Exército. Este projeto é remetido à
Comissão de Marinha e Guerra. Esta com base na proposta de João Antônio de Miranda,
na proposta do ministro da Guerra e da Comissão de Marinha e Guerra de 1846 elabora
um novo projeto (ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1846 e 1850).
O deputado, militar e membro da Comissão de Marinha e Guerra, Antônio Nunes
de Aguiar, não concordava com a proposta da comissão e, em voto separada, apresentou
um projeto de lei. Após intensa discussão sobre qual projeto seria discutido para se tornar
lei, decide-se por discutir e votar o projeto apresentado pela Comissão de Marinha e
Guerra de 1850 (ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1850).

I. A Câmara dos Deputados

Durante o Império, votava-se, em âmbito local, para juiz de paz e para vereadores.
Os vereadores era responsáveis pela vida administrativa das vilas e cidades – o cargo de
prefeito não existia. Os eleitores votavam, ainda, para a Assembleia Provincial e para a
Câmara dos Deputados e para o Senado. No caso do Senado, os três nomes mais votados
eram submetidos ao Imperador, que escolhia um. O cargo de senador era vitalício. Cabia

331
Anais do Parlamento Brasileiro. Câmara dos Senhores Deputados. Rio de Janeiro: Tipografia e
Litografia do Imperial Instituto Artístico/ Imprensa Nacional, anos de 1846 e 1850.
332
A Comissão de Marinha e Guerra era uma das comissões permanentes da Câmara dos Deputados e seus
membros eram nomeados no princípio da seção ordinária de cada ano.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

735
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ao Imperador nomear os presidentes de província – responsáveis por administrar as


províncias (NICOLAU, 2004: 10-11).
As eleições para o Senado, para a Câmara dos Deputados e para as Assembleias
Provinciais foram indiretas (em dois graus) até 1880. Ou seja, aqueles que votavam
escolhiam os eleitores. Estes elegiam os ocupantes dos cargos públicos. Cabe destacar
que, após 1881 todas eleições tornaram-se diretas. Assim, os parlamentares da 8ª
legislatura foram eleitos de acordo com o sistema de eleições em dois graus. Havia
restrições quanto àqueles que podiam votar (NICOLAU, 2004).
Votavam homens com pelo menos 25 anos (para os casados, oficias militares, os
clérigos ou bacharéis independentemente da idade). Mulheres e escravos não podiam
votar, já os libertos podiam votar nas eleições de primeiro grau. Cabe destacar que, havia
exigência de renda para votar. Na época da 8ª legislatura, a circunscrição eleitoral era a
província. O eleitor podia votar em quantos fossem as cadeiras da província na Câmara
dos Deputados. Os mais votados da província eram eleitos deputados (NICOLAU, 2004:
10-23).
É importante destacar que o cargo de deputado estava inserido em uma rede de
relações dentro do próprio sistema eleitoral do Império. Ou seja, os homens responsáveis
pelo administração das províncias garantiam a vitória do partido que chefiaria o Gabinete.
Os deputados eleitos eram a sustentação parlamentar do Gabinete escolhido pelo
Imperador. Cabe destacar que, o sistema político imperial era aparentemente estável, mas
com instabilidade de governos. José Murilo de Carvalho mostra que, os ministérios
conservadores duravam mais que os ministérios liberais (CARVALHO, 2007: 210 e
NICOLAU, 2004).
José Murilo de Carvalho mostra que, poucos políticos saíram do setor secundário,
e poucos eram somente proprietários de terra. A maior parte dos políticos saiam do setor
terciário – administração, profissões liberais, capitalistas e proprietários. Cabe lembra,
que para o autor, o Estado era o maior empregador dos letrados que ele mesmo formava.
E, a elite política refletiu tal característica com o fato de fundir-se com a burocracia
(CARVALHO, 2007: 97-98).
A forma de eleição no Império era restritiva. Como mostra José Murilo de
Carvalho, as eleições para a Constituinte brasileira, foram por exemplo, feitas com
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

736
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

restrições à cidadania. Era exigido idade mínima de 20 anos e, exclusão dos assalariados
e estrangeiros. O autor destaca, ainda, que a Constituição de 1824 foi mais restritiva:
idade mínima de 25 anos, excluiu os criados e introduziu critérios de renda. No Brasil do
oitocentos acreditava-se a participação ampliada no processo eleitoral, sobretudo de
analfabetos, seria a causa de corrupção eleitoral. Pois, faltaria a essa população condições
de entendimento e de independência para votar. Daí a justificativa para manter a
participação popular em níveis baixos no processo eleitoral (CARVALHO, 2007: 394-
395).
Marcelo Basille lembra que, a Câmara dos Deputados era a porta de entrada para
o seleto grupo da elite política imperial. A Câmara dos Deputados possuía outro
importante papel para a política imperial, como mostra Maria Fernanda Vieira Martins: a
experiência obtida, por aqueles que ali estiveram, era um importante critério nas
nomeações para o Conselho de Estado (BASILE, 2011, p. 104 e MARTINS, 2007, p.
122).
O viajante inglês Reverendo Walsh assistiu a uma sessão da Câmara dos
Deputados em 1829 e descreveu o ambiente. Afonso Arinos de Melo Franco, mostra a
descrição feita pelo viajante:

O plenário era um salão com arcada suportada por pilares entre os quais
ficavam as galerias de dois lados, que subiam até o teto, com capacidade
para 200 ou 300 pessoas. Nos ângulos havia quatro pequenas tribunas
especiais e, debaixo delas, quatro outras, com mesas para os
taquígrafos, que ficavam em condições de ver e ouvir tudo o que se
passava. Os deputados se sentavam em dois bancos seguidos,
semicirculares e concêntricos, providos de encosto e de um corfundo,
alçado, via-se o Trono, encimado pelas armas do Império. Na ausência
do Imperador, que pouco comparecia, o Trono se mantinha coberto por
duas cortinas pendentes do docel. Na frente e abaixo do Trono ficava a
mesa (hoje no Museu Imperial de Petrópolis), na qual se assentava o
Presidente, ladeado pelos secretários [...] O povo enchia as galerias, que
ficavam apenas dois metros acima do plenário, o que permitia, nas
sessões agitadas, conversas entre assistentes e deputados. Entre o
recinto e a Secretaria ficava a famosa “Sala do Café”, frequentada não
só por deputados e jornalistas, como por postulares e homens da
sociedade. Era uma espécie de clube. O salão nobre, também para o
lado do antigo Paço, ficava entre o Gabinete do Presidente e o Primeiro
Secretário. A mesa, de frente para a entrada do edifício (isto é, de fundos
para a atual Rua S. José), ficava acima da antiga bancada dos Ministros
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

737
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

do Império, que se sentavam de costas para o Presidente (FRANCO,


1976: 19-20).

Em um espaço físico semelhante a esse que, em 1850, a lei de promoções foi


aprovada na Câmara dos Deputados. O regimento interno da Câmara dos Deputados
normatizava a forma como deviam se dar as discussões desde o horário de duração das
seções até os procedimentos para uma proposta de lei ser apresentada. Usarei como base
o regimento de 1854333 para apontar aspectos à respeito do funcionamento do Parlamento.
A Carta de Lei nº 387 (19 de agosto de 1846) determinou o número de 104
deputados. Vigorando para a 7ª e para a 8ª legislatura.334 O regimento era dividido em
capítulo referentes à assuntos como: sessão preparatória, da mesa, do presidente, das
comissões, das eleições, entre outros assuntos. Segundo o regimento de 1854, após 1848,
no primeiro ano da legislatura as sessões preparatórias começavam em 15 de abril. Nessas
sessões, os deputados nomeavam – por aclamação – um presidente e dois secretários. Nos
outros anos da legislatura e nas sessões extraordinárias, havia as sessões preparatórias
para verificar se havia número de deputados suficiente para haver sessão (REGIMENTO
INTERNO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1854).
Em pesquisa e leitura dos anais da Câmara dos Senhores Deputados é possível
perceber que as seções preparatórias para o ano de 1850 iniciaram no fim de 1846 – dia
15 de dezembro de 1849. Já em 2 de janeiro de 1850 foram eleitas as mesas e as
comissões, entre elas a Comissão de Marinha e Guerra –importante para o debate sobre
as promoções (ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1849 e 1850).
No momento de preparação para os trabalhos do ano legislativo havia, na Capela
Imperial, a Missão do Espírito Santo. Após a missa, havia a sessão Imperial de abertura.
Nela, os deputados juravam manter a religião Católica Apostólica Romana, observar e
fazer observar a Constituição, sustentar a indivisibilidade do Império, entre outros
juramentos. A mesa do ano legislativo era composta pelo Presidente e por quatro

333
Após pesquisa em arquivos como Biblioteca da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e
Biblioteca Nacional, não encontrei o regimento interno da Câmara dos Deputados de 1850. Encontrei o
regimento de 1854 na Biblioteca Online da Câmara dos Deputados. O ano de 1854 pertenceu à 9ª legislatura
(1853-1856).
334
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/a-camara/conheca/historia/historia/oimperio.html>.
Acessado em 07/04/2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

738
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

secretários – nomeados por um mês. Havia na Câmara diversas comissões para tratar dos
assuntos referentes a elas (REGIMENTO INTERNO DA CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 1854).
Por exemplo, a lei de promoções quando proposta por João Paulo dos Santos
Barreto, em 1846, foi encaminhada para a Comissão de Marinha e Guerra que elaborou
um outro projeto. Essa proposta foi encaminhada para essa comissão, por se tratar de um
assunto relativo ao Exército e, posteriormente foi referenciada como proposta do governo.
Isso se deu devido à exigência do regimento da casa, que determinava que quando um
ministro de Estado apresentava uma proposta, após ser lida e entregue ao presidente era
remetida à comissão respectiva para que entrasse em discussão, sendo convertida em
projeto de lei. (REGIMENTO INTERNO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1854 e
ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1846).
Nenhuma comissão da Câmara dos Deputados devia ter menos de três indivíduos
e mais de cinco. Nenhum deputado podia ser membro de mais de duas comissões
permanentes. Aqueles deputados que fossem ministros de Estado não eram nomeados
para comissões. As comissões permanentes era nomeadas no princípio da sessão ordinária
de cada ano. A mencionada Comissão de Marinha e Guerra era uma comissão permanente
da Câmara dos Deputados (REGIMENTO INTERNO DA CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 1854).
Em 1850, ano em que a lei de promoções foi aprovada, a Comissão de Marinha e
Guerra foi escolhida na sessão do dia 2 de janeiro de 1850. Nessa sessão foram eleitas as
mesas e as comissões. Em 1850, integraram a Comissão de Marinha e Guerra os seguintes
deputados: João Antônio de Miranda (propôs em 1850 um projeto sobre as promoções),
com 53 votos; José Joaquim de Lima e Silva Sobrinho, com 43 votos e Antônio Nunes
de Aguiar (apresentou um voto separado por discordar do projeto apresentado pela
comissão em 1850), com 37 votos (ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1849 e
1850).
Cabe destacar que Antônio Nunes de Aguiar era um importante militar membro
da elite política imperial, ao longo de sua carreira ocupou cargos como a presidência da
província de Alagoas. Já José Joaquim de Lima e Silva pertencia à importante família
Lima e Silva. Família esta que servia ao Imperador, como por exemplo o ex regente (e
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

739
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

seu pai) Francisco de Lima e Silva e seu irmão Luiz Alves de Lima e Silva, futuro duque
de Caxias. O deputado José Joaquim de Lima e Silva Sobrinho.335
Ainda no Regimento Interno de 1854 é possível observar que as sessões da
Câmara dos Deputados se davam em todos os dias, exceto Domingos, dias Santos e de
Festa Nacional (25 de março, 7 de setembro e aniversário natalício do Imperado).
Segundo esse regimento, as sessões duravam de quatro horas e eram abertas havendo
metade mais um do número dos deputados (REGIMENTO INTERNO DA CÂMARA
DOS DEPUTADOS, 1854).
O Regimento Interno da Câmara dos Deputados de 1854 permite – junto aos anais
da Câmara dos Deputados – compreender como funcionava o Parlamento. Assim, tal
fonte torna-se aliada dos estudos sobre militares e sobre política imperial. Uma vez que o
Exército foi reformado nas décadas de 1840 e 1850 para tornar-se um braço
administrativo do Estado Imperial e, assim, ser capaz de estabelecer a ordem no Império.
Seus altos cargos eram ocupados por homens herdeiros de uma tradição militar
portuguesa que possibilitava que os cargos mais elevados da hierarquia fossem ocupados
segundo um sistema aristocrático de promoções. Exército, Parlamento e elite política
estavam interligados durante a década de 1850 (SOUZA, 2004 e SILVA, 2015).

II. Os atores políticos do debate sobre as promoções

Maria Fernanda Vieira Martins mostra que é preciso considerar a identidade


individual e outros aspectos no momento de análise de um grupo. Martins sugere
extrapolar o próprio discurso, evitando armadilhas que a retórica nos trazem e obscurecem
a análise da ação política de um indivíduo (MARTINS, 2007: 32).
José Murilo de Carvalho argumenta que, a independência provocou a opção por
uma continuidade pela estrutura burocrática e pelo padrão de formação da elite herdados
de Portugal. Tal continuidade proporcionou ao Estado a capacidade de controle e

335
Sobre José Joaquim de Lima e Silva Sobrinho ver : <https://www.geni.com/people/Jos%C3%A9-
Joaquim-de-Lima-e-Silva-Sobrinho-1%C2%BA-conde-de-Tocantins/6000000012934824070>. Acessado
em 23/07/2017. Sobre Antônio Nunes de Aguiar ver: SOUZA, J. Galante. Índice de Biobibliografia
Brasileira. Instituto Nacional do Livro. Ministério da Educação e Cultura. Rio de Janeiro: 1963.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

740
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

aglutinação dessa elite. Para o autor, a homogeneidade da elite era fruto da socialização
e do treinamento que recebiam por parte do próprio Estado. Educação e ocupação
contribuíram, segundo ele, para a unidade da elite imperial (CARVALHO, 2007: 41-42
e 95).
O autor mostra ainda que, na elite imperial ocorria o fenômeno da ocupação
múltipla – uma mesma pessoa exercia mais de uma ocupação. O autor destaca, e não
devemos deixar esse dado de lado, que a maior parte da população era rural. A população
urbana era menor. Para ele, o emprego público era a ocupação que mais favorecia a
orientação estadista e que melhor treinava para a tarefa da construção do Estado – na fase
de acumulação de poder (CARVALHO, 2007: 95-99).
Assim, o Estado era o maior empregador daqueles que foram levados aos postos
públicos. José Murilo de Carvalho dividiu em grupos a elite para abordar sua ocupação.
No grupo Governo estavam o empregados públicos e os políticos. No grupo dos
Profissionais Liberais estavam os advogados, os médicos, os engenheiros, os professores
de ensino superior e os jornalistas. Os professores de direito e advogados estavam no
grupo Profissões. Já no grupo Economia estavam os proprietários rurais, comerciantes,
banqueiros e industriais (CARVALHO, 2007: 99-101). Essa divisão do autor será útil
para análise dos dados biográficos dos deputados que discutiram a lei de promoções de
1850.
Assim, Martins e Carvalho contribuem para este trabalho apontando a necessidade
de conhecer os atores políticos para interpretar e compreender o discurso deles na Câmara
dos Deputados. Cabe, então, destacar que, este trabalho é um ensaio para o segundo
capítulo da dissertação em desenvolvimento. Logo, esta segunda parte do trabalho traz
alguns dos autores que servirão como suporte teórico para o futuro capítulo e como eles
contribuirão para a pesquisa. Serão considerados dados como província de nascimento,
província que representavam, ano de nascimento e morte, formação, local de formação,
entre outros dados biográficos para compreender quem foram esses atores políticos. Visto
que, nenhum indivíduo (e suas falas) não está isolado de sua trajetória, de sua carreira ou
de suas relações sociais. Todo dado sobre os deputados torna-se importante para, junto às
suas falas, compreender como a necessidade de aprovar uma lei que regulasse as

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

741
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

promoções apareceu no cenário político imperial no momento de consolidação do Estado


imperial.
Carvalho mostra a dificuldade ao analisar os deputados gerais: boa parte das
informações não foi encontrada. Porém, supõe que a maioria deles era composta por
fazendeiros sem formação superior. Para ele:

Embora os dados se refiram à ocupação e não à educação, em


muitos casos a inferência é imediata. Todos os profissionais liberais,
bacharéis, magistrados, padres, tinham formação superior. Parte dos
militares também tinham e é possível que o mesmo acontecesse com
uns poucos fazendeiros (CARVALHO, 2007: 106)

José Murilo de Carvalho contribuiu para a análise pretendida na medida em que


analisou a formação da elite e a caracterizou em grupos a partir de sua ocupação. Logo,
por meio desses argumentos do autor, será possível analisar os deputados, que discutiram
a lei de promoções, de acordo com suas ocupações e relações com o Estado imperial.
Analisar dados biográficos não é tarefa fácil. A Câmara dos Deputados em 1850 possuía
111 parlamentares, sendo apenas um deles liberal – Bernardo de Souza Franco. Destes
deputados, apenas 27 envolveram-se diretamente no debate sobre a lei de promoções do
Exército. Busquei os nomes desses homens na obra Organizações e programas
ministeriais – Regime parlamentar no Império, organizada pelo barão de Javari. Por meio
dessa obra, pude descobrir o nome dos vinte e sete deputados que discutiram a lei de
promoções em 1850 – uma vez que os anais da Câmara dos Deputados apresentavam
somente os sobrenomes. Após essa busca, foi feita uma pesquisa biográfica com esses
vinte e sete nomes no Índice Bio- Bibliográfico na Biblioteca Nacional. Destes vinte e
sete deputados, descobri a biografia de vinte deputados. Assim, será esse número (20)
que utilizarei como base para minhas análises.
Dentre os deputados que discutiram a lei em 1850, estavam, por exemplo: os
militares Antônio Nunes de Aguiar e Sebastião do Rego Barros, os magistrados João
Antônio de Miranda, Luiz Alves de Oliveira Belo. A maior parte desses deputados nasceu
nas décadas de 1800 e 1810 e se formou no Brasil. Dos vinte deputados que tenho como
base para análise, cinco se formaram em São Paulo e dois em Olinda. A formação em
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

742
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

bacharel em direito predominava. Ou seja, dos vinte deputados que utilizo como base,
onze eram bacharéis em direito. Entretanto, no que diz respeito à ocupação/profissão,
predominavam os magistrados (6), seguidos dos militares (3) e dos médicos (3).
Passemos a exploração dos dados de dois deputados: João Antônio de Miranda,
que propôs um projeto sobre promoções em 1850, e, Antônio Nunes de Aguiar que em
voto separado propôs em 1850 um projeto de lei sobre as promoções. Estes dois deputados
juntos com José Joaquim de Lima e Silva Sobrinho integraram a Comissão de Marinha e
Guerra em 1850 (ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1849).
João Antônio de Miranda viveu entre 1811 e 1861, nasceu e representou em 1850
a província do Rio de Janeiro. Formado bacharel em direito em São Paulo, era magistrado
e ocupou cargos como o desembargador e presidente das províncias do Pará, do Maranhão
e do Ceará. Segundo sua biografia, não possuiu título nobiliárquico. Porém, em 1855 foi
escolhido senador e encerrou sua carreira de magistrado como promotor na Corte. Foi,
ainda, sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – assim como outros deputados
envolvidos no debate. A priori, não possuía relações com o Exército. Porém, propôs uma
lei de promoções (ÍNDICE BIO-BIBLIOGRÁFICO DA BIBLIOTECA NACIONAL e
ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1850).
O coronel Antônio Nunes de Aguiar, viveu entre 1807 e 1876, nasceu na província
do Rio de Janeiro e representou em 1850 a de Alagoas. O militar assentou praça no
Exército em 1822, aos quinze anos. Ou seja, era um militar formado de acordo com a
tradição militar portuguesa.336 Colaborou com o conde de Caxias na repressão à Balaiada
em 1841. Acompanhando Caxias, reprimiu as revoluções paulista e mineira em 1842
(ÍNDICE BIO-BIBLIOGRÁFICO DA BIBLIOTECA NACIONAL). O coronel em 1850
propôs um projeto de lei em voto separado ao parecer da Comissão de Marinha e Guerra,
como permitido pelo regimento da Câmara dos Deputados. Segundo João Antônio de
Miranda, o coronel Nunes de Aguiar não aceitou seu projeto por não ter sido proposto
por um militar. João Antônio de Miranda se dizia amigo da classe militar e afirmava haver

336
Sobre a tradição militar portuguesa ler: SOUZA, Adriana Barreto de. A serviço de Sua Magestade: a
tradição militar portuguesa na composição do generalato brasileiro (1837-50). In: CASTRO, Celso;
IZECKSON, Vitor e KRAAY, Hendrik (orgs). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

743
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

uma linha divisória entre militares e casacas ou becas (ANAIS DA CÂMARA DOS
DEPUTADOS, sessão em 26 de julho de 1850).
Os dois deputados tidos como exemplo acima possuíam trajetórias diferentes e
semelhantes. Diferente por terem seguido carreiras distintas, possuírem uma carga de
experiência que permitiram, por exemplo, que um deputado não militar pensasse uma lei
que mexeria com a estrutura do Exército brasileiro. Semelhantes porque ambos ocupavam
o mesmo espaço de tomada de poder, integravam uma elite política e provavelmente a
passagem pela Câmara dos Deputados permitiu o acesso à outros importantes espaços do
Império. O pequeno exercício feito com os dois deputados acima será ampliado e
amadurecido a fim de tornar-se uma contribuição para análise da relação entre Exército,
Parlamento e política de Estado.

Referências Bibliográficas

Fontes:

Anais do Parlamento Brasileiro. Câmara dos Senhores Deputados. Rio de Janeiro:


Tipografia e Litografia do Imperial Instituto Artístico/ Imprensa Nacional, anos de 1846
e 1850.

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A Câmara dos Deputados: síntese histórica.


Brasília: Câmara dos Deputados, 1976.

Lei Nº 585 de 6 de setembro de 1850. Disponível em <


http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=63350&norma=7924
5>. Acesso em 26/07/17.

Regimento Interno da Câmara dos Deputados, 1854.

SOUZA, J. Galante. Índice de Biobibliografia Brasileira. Instituto Nacional do Livro.


Ministério da Educação e Cultura. Rio de Janeiro: 1963.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

744
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Bibliografia:

BASILE, Marcello. Deputados e Regência: perfil socioprofissional, trajetórias e


tendências políticas. In: CARVALHO, José Murilo de e CAMPOS, Adriana Pereira
(orgs). Perspectivas da cidadania no Brasil Império. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial.


Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

FAUSTO, Boris e HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da civilização


brasileira – O Brasil Monárquico. T. 2, V. 5, 8ª ed. Rio de Janeiro: Bestrand Brasil,
2004.

LIMA, Manoel de Oliveira. O Império e o sistema parlamentar. In: ____. O Império


brasileiro: 1822-1889. Nova Edição, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986.

MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre


política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2007.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. A formação do estado imperial.


São Paulo: Hucitec, 2004.

NICOLAU, Jairo Marconi. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2004.

SCHULZ, John. O exército na política: origens da intervenção militar (1850-1894).


São Paulo: Edusp, 1994.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

745
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SILVA, Daniela Marques da. A obra política conservadora e a lei de promoções no


Exército de 1850: o debate na Câmara dos Deputados e seus atores políticos.
Monografia de conclusão de curso (licenciatura). Seropédica: UFRRJ/ICHS, 2015.

SOUZA, Adriana Barreto de. O Exército na consolidação do Império: um estudo


histórico sobre a política militar conservadora. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1999.

_______________. A serviço de Sua Magestade: a tradição militar portuguesa na


composição do generalato brasileiro (1837-50). In: CASTRO, Celso; IZECKSON, Vitor
e KRAAY, Hendrik (orgs). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2004.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

746
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As procissões na Lisboa dos séculos XVI e XVII: Poder, Sociedade e Cultura

DANIELA RABELO COSTA RIBEIRO PAIVA


Programa de Pós-Graduação em História/UFRRJ
Bolsista CAPES

Muito embora o desenvolvimento de Lisboa sempre estivesse atrelado ao mar e


ao Tejo, a cidade tornou-se reconhecida como uma cidade marítima e aclamada por essa
qualidade, de modo a Damião de Góis lhe atribuir o título de “Senhora e Rainha dos
Oceanos”, somente após as iniciativas de expansão (GÓIS, 2001: 27). Além de tornar
Lisboa referência para as demais cidades do reino, os Descobrimentos proporcionaram-
lhe um significativo crescimento demográfico e das atividades comerciais. A cidade
precisou oferecer maior capacidade de suporte e, para isso, passou por reformas na sua
infraestrutura.
As expansões marítimas fizeram com que continuasse a crescer de uma maneira
descontrolada, principalmente nas regiões centrais. Seu espaço urbano não conseguiu
comportar tanta gente. Como consequências, a cidade não conseguiu oferecer trabalho
para todos aqueles que se mudaram em busca de melhores condições de vida. Muitas
pessoas passaram a buscar na mendicidade sua sobrevivência. Lisboa também enfrentou
dificuldades para abastecer seus habitantes com alimento e água. O número de famintos
cresceu, bem como de vagabundos e vadios. Suas ruas se tornaram de difícil tráfego,
inseguras e sujas. E as péssimas condições sanitárias criavam condições para
disseminação de doenças, que vinham acompanhadas por um número súbito de mortes.
Nesse contexto, as festas e cerimônias adquiriam uma importância social à medida que
proporcionava a seus habitantes momentos de diversão e distração.
Em uma cidade abarrotada, com grupos sociais tão heterogêneos, diversas
profissões, etnias e nacionalidades, as relações sociais se tornavam muito mais densas,
tensas, intensas e dinâmicas. Os espetáculos adquiriam um novo sentido. E se tornaram
um negócio de Estado. Os monarcas perceberam a oportunidade de utilizá-los
politicamente para legitimar e transmitir uma imagem positiva do governo por todo
mundo. Os espetáculos também celebraram Lisboa na condição de “primeira do reino”.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

747
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As procissões e o cerimonial que marcavam a vinda de uma figura real, no rio e na terra,
promoviam a imagem da cidade e mudavam a forma com que se relacionavam consigo e
com o restante do reino. Os espetáculos se transformaram como Lisboa e com Lisboa
(ARAÚJO, 1990).
As cerimônias religiosas tiveram um papel marcante na vida social de Lisboa nos
séculos XVI e XVII. Em alguns períodos chegaram a ser os únicos acontecimentos que
movimentavam o cotidiano da cidade, sendo as procissões consideradas as cerimônias
religiosas mais importantes (CASTELO-BRANCO, 1990: 193-184). O trabalho tem
como objetivo apresentar na medida do possível a grandiosidade dos espetáculos que
produziam, assim como as emoções e expectativas sentidas pelos diferentes grupos que
participavam dessas festividades públicas. Isso será feito através de uma análise que não
restrinja as procissões ao seu caráter religioso, mostrando a presença do profano. Como
um acontecimento que colocava em atividade toda gente, as procissões despertaram
interesse da monarquia que passou a utilizá-las para afirmar e encenar o poder. Também
eram uma manifestação da cultura popular e seu divulgador. Além disso, os corpos sociais
eram representados ao longo do desfile, deixando em evidência o cariz corporativo da
sociedade portuguesa do Antigo Regime e as noções de ordem e hierarquia que lhe
norteavam.
Calcula-se uma média de três procissões mensais, que atraíam ao longo do seu
percurso milhares de pessoas. O quadro abaixo produzido pela historiadora Renata de
Araújo identifica as procissões que ocorriam anualmente. Não podemos deixar de
considerar as procissões de caráter eventual quando ocorria algum acontecimento notório:
batizados, casamentos e funerais, cerimônias e festas régias, comemoração de vitórias em
guerras e o retorno de cativos, e ainda para pedir alguma graça à cidade, como a vinda ou
a interrupção de chuvas, fim de epidemias, entre outros. Essa extensa lista nos permite
perceber o quão numerosas eram as procissões, além de sugerir sobre sua importância
(ARAÚJO, 1990, p.49). Por essa razão, o trabalho oferecerá maior ênfase às procissões
de Corpus Christi e dos penitentes da Santa Casa da Misericórdia que aconteceram nos
séculos XVI e XVII.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

748
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

RELAÇÃO DAS PROCISSÕES ANUAIS


Lisboa - séculos XVI e XVII
Janeiro 1 Comemoração da Batalha de Aljubarrota

20 S. Sebastião

22/21 São Vicente

Março Páscoa

Abril 15 N. S. dos Prazeres

17 Ação de Graças

23 S. Jorge

25 Ladainha Maior

Maio 3 S. Cruz

5 1ª Ladainha

6 2ª Ladainha

7 3ª Ladainha

12 Em homenagem a D. Nuno Álvarez Pereira

13 N. S. dos Mártires

Junho 1 Louvor a Virgem Maria

13 S. António

24 S. João

28 S. Pedro

Julho 2 Visitação de N. Senhora

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

749
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

3º dom Anjo Custódio

26 S. Ana

Agosto 14 Ação de Graças

15 Assunção de N. Senhora

Setembro 26 Transladação de S. Vicente

Outubro 1 Santos Mártires

25 Ação de Graças pela Tomada de Lisboa

Novembro 1 Dia de Todos os Santos

9 Patrocínio de N. Senhora

Dezembro 25 Natal

Santos Inocentes

Data móvel Corpus Christi

Fonte: ARAUJO, 1990: 73.

Cada procissão possuía suas próprias características, o que as tornavam ainda mais
impressionantes. Conforme documento datado de 1522, a mais solene de todas as
procissões anuais que ocorriam em Lisboa era a de Corpus Christi (OLIVEIRA, 1882:
418). Esta procissão foi a maior manifestação de luxo e aparato que a capital portuguesa
conheceu, o que fazia sua população aguardar ansiosa a data da sua realização
(BEBIANO, 1987: 128). A festa eucarística era considerada modelo de práticas para as
outras procissões que aconteciam no reino e no mundo português (SANTOS, 2005: 139).
Ademais, os carros alegóricos, as vestimentas e os paramentos confeccionados pelos
ofícios especialmente para essa festividade eram depois adaptados para outras cerimônias
religiosas e régias (ALVES, s.d.: 41).
O Papa Urbano IV instituiu a solenidade de adoração da eucaristia através da bula
Transiturus, em 1264. O documento pontifício determinava que missa e outros ofícios
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

750
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

deveriam ser celebrados na quinta-feira depois da oitava pentecoste. A procissão geral


que marca a festividade foi implantada apenas no século XIV, após o Concílio de Trento.
Diogo Ramado Curto explica que as procissões como um todo faziam parte das iniciativas
da Companhia de Jesus para captar os fiéis, juntamente com o ensino, o teatro e a
arquitetura (CURTO, 2011: 101). Ficou estabelecido que as câmaras municipais
organizariam a procissão de Corpo de Deus, de modo a garantir que estivesse descente e
venerável, que o cortejo sairia da catedral e no final do trajeto retornaria para a mesma
igreja, e que todos os ofícios e mestres deveriam estar presentes, colaborando com suas
festas e invenções (OLIVEIRA, 1882: 420).
Existem controvérsias no que diz respeito à época em que essa solenidade foi
introduzida em Portugal. Acredita-se que a celebração tenha sido iniciada nos últimos
anos do governo de D. Afonso III. Ainda nos primeiros tempos exercia primazia sobre as
demais festas religiosas, apesar de não contar com grande aparato (ARAÚJO, 1990: 48-
49). A procissão do Corpo de Deus teria sido, por sua vez, implementada por D. João I.
O fundador da dinastia de Avis também foi responsável por fazer com que S. Jorge
passasse a figurar no cortejo, o que era um adas peculiaridades da procissão portuguesa
quando comparada com outras monarquias europeias. S. Jorge tornou-se patrono
português após a "Revolução de 1385". Nesse momento, Portugal expulsava os mouros
do seu território contando com a destacada participação dos povos miúdos. Não por acaso,
o santo é protetor dos ofícios mecânicos (SANTOS, 2005: 117). Eles também foram
responsáveis por oferecer à procissão elementos populares, como as tourinhas, as danças
e os mouros.
A procissão alcançou maior pompa e magnificência após o reinado de D. Manuel.
Esse esplendor foi vivenciado não só em Portugal, mas em todas as cidades que lhe eram
subordinadas. As atuais perspectivas historiográficas ressaltam que as monarquias
ibéricas buscaram reproduzir nas conquistas ultramarinas a forma como administravam,
governavam e também sua vivência social. Como parte dessa geração de estudiosos,
Beatriz Catão Cruz Santos analisa a festa do Corpo de Deus na América, sempre
lembrando que a cerimônia religiosa também ocorria na Ásia e África portuguesas. Além
de participarem da organização das festividades religiosas e comemorações, a
historiadora destaca o papel das Câmaras como interlocutoras nas relações entre o
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

751
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Império Marítimo. Para a Câmara de Lisboa coube ainda a missão de fazer um espetáculo
que fosse referência como modelo e fonte de inspiração para outras cidades (SANTOS,
2005: 61).
Havia obrigatoriedade de comparecimento a mais importante procissão do ano.
Aqueles que se recusassem a ir à festividade poderiam ser multados e receber outras
sanções. Desta maneira, a população de Lisboa e arredores participava amplamente do
cortejo, representantes seculares e eclesiásticos, homens e mulheres, pessoas de alto
estirpe e humildes. A festa agregava inclusive negociantes e misteres, mais uma
particularidade da tradição lusa que pode ser utilizada para ilustrar o sentido de
comunidade no ritual do Corpo de Deus (SANTOS, 2005: 89).
Contava-se principalmente com a presença dos oficiais e mesteres, que deveriam
se apresentar pessoalmente à procissão, não podendo enviar em seu lugar um
representante. Documentos indicam que eles não aceitavam a imposição do
comparecimento e de outras tarefas inerentes ao seu ofício. Por vezes, chegaram a recorrer
junto ao rei o privilégio de se eximirem dessa obrigação, mas nunca obtiveram uma
resposta positiva. Ratificou-se o dever de estarem presentes no dia da festa, com as
respectivas bandeiras, castelos e demais invenções, construídos e enfeitados
especialmente para a ocasião. As invenções seriam carregadas por eles mesmos ao longo
de todo percurso da procissão, sem dispor da ajuda de ombreiros nem moços (OLIVEIRA,
1882: 418-419) .
Não houve um regimento específico que normatizasse a procissão de Corpo de
Deus em Lisboa. O mecanismo encontrado para regulamentar o evento foram os
diplomas, algo próximo ao que conhecemos como leis extravagantes. Uma significativa
quantidade de diplomas foi expedida pelo poder central e pelo governo da cidade
(OLIVEIRA, 1882: 421). A organização e as despesas da festa e procissão ficavam a
cargo da Câmara de Lisboa, que tinha como funções divulgar sua data, garantir que as
ruas estivessem limpas e enfeitadas, ordenar que se caiassem as casas, nomear quem
seguraria as varas do palio e definir o trajeto do desfile – não se sabe dizer o percurso
exato da procissão, pois este sofreu mudanças ao longo dos anos, inclusive deixou de sair
da Sé para ser na Patriarcal no Terreiro do Paço, no século XVIII.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

752
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O Santíssimo Sacramento ocupava uma posição central na procissão do Corpo de


Deus. Protegido em uma custódia, era exposto pelas ruas por onde passava o cortejo para
a adoração dos fiéis. A hóstia sagrada determinava a posição que cada um dos corpos
sociais deveria ocupar no desfile. A proximidade pressupunha prestígio na sociedade.
Houve disputas para definir as autoridades que segurariam as varas do pálio que
transportava o Santíssimo Sacramento. Quando o rei se encontrava em Lisboa e
comparecia à procissão, competia a ele uma das varas. Ninguém deveria se postar à sua
dianteira. A vara à sua direita seria ocupada por seu príncipe herdeiro e na sua ausência
por um dos representantes do Senado da Câmara. Neste caso, cabia a outros dois
representantes as varas detrás. Mais à frente do desfile ficavam arranjados os ofícios
(SANTOS, 2005: 110).
A ornamentação das ruas por onde a procissão de Corpo de Deus passava chamava
a atenção daqueles que assistiam ao desfile. Dias antes, os moradores deveriam consertar
janelas, portas, varandas e esteios por onde passaria o cortejo. E enfeitar com seda,
brocado, alcatifas, tapeçaria e outros materiais feitos de ouro ou dourados. Aqueles que
não cumprissem a determinação poderiam ser presos e multados. O mesmo valia para os
oficiais, que deveriam estar presentes durante todo trajeto da procissão com suas
bandeiras e invenções. As ruas passavam por limpeza, eram lavadas e espalhava-se pelo
chão areia, ervas e flores, e toldos eram armados para proteger os participantes do sol ou
da chuva. Feitos de lona, brim e outros tecidos, os toldos eram sustentados por paus de
pinho e enramados com louro e flores (OLIVEIRA, 1882: 432-435).
Outras procissões que aconteciam em Lisboa despertavam semelhante
deslumbramento com sua organização e participação popular. Podemos citar a procissão
dos penitentes da Santa Casa de Misericórdia que foi descrita por João Brandão, em
Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552. Realizada nas noites de Quinta-Feira da Ceia,
a procissão percorria a Rua Nova até São Francisco, depois passava por Trindade e descia
ao Carmo, chegava a São Domingos para contornar o Rossio, a Praça da Palha e a Rua
da Arcas, atravessava Correaria e a Sé, e só então alcançava a Misericórdia. O trajeto
terminava por volta da meia noite e meia. Essa procissão tinha presença obrigatória para
os irmãos dessa ordem, que deveriam estar devidamente vestidos com roupas pretas e se
postarem em ordem de procissão, acompanhados de candeias e velas. Outros homens e
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

753
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

mulheres acompanhavam o cortejo. Vestiam-se também de preto e se feriam com as


disciplinas, ficando ensanguentados. Os objetos utilizados para o flagelo eram varas de
ferro, cruzes de pau e pedras, que eram molhados e lavados no vinho quente para
aumentar o suplício. Fatias de marmelada e água eram oferecidas pelos fidalgos e devotos
aos penitentes. Ao final da procissão, os penitentes tinham suas chagas limpas com vinho
e eram tratados e vestidos para voltarem a suas casas (BRANDÃO, 1990: 121-122).
Filipe II ofereceu um interessante testemunho das procissões que participou
quando esteve em Lisboa. Esse testemunho pode ser lido nas cartas que escreveu para
suas filhas. Ao contar para elas sobre a procissão de Corpo de Deus, atém-se às danças
de mulheres e seus belos cantos. O monarca lamentou o fato de não ter aproveitado mais
este espetáculo por estar no final da procissão, na posição mais próxima à sagrada
eucaristia. Outra procissão que participou foi organizada pela Confraria do Santíssimo
Sacramento, da freguesia de São Julião, sendo espectador desta vez. Ele assistiu ao cortejo
em uma das janelas da rua Nova. A despeito da grandiosidade e dos excessivos gastos
despendidos pelos confrades, que o monarca chegou a comentar nas cartas, o que
novamente chamou sua atenção foram as danças, em especial aquelas que envolviam
diabos. Essas danças se assemelhavam, em sua opinião, às pinturas de Jerónimo Bosh
(BOUZA ÁLVAREZ, 1988: 72-74). Seu testemunho foi utilizado por Diogo Ramada
Curto para demonstrar a grande difusão popular dessas manifestações, refutando a
historiografia que se limita a interpretar as procissões como um mecanismo desenvolvido
pelas elites para disciplinar o povo e que exclui delas o elemento profano. Além disso, o
interesse despertado pelas danças populares serve para questionar a dicotomia entre a
cultura popular e a cultura de elite nas procissões, cortejos e festas (CURTO, 2011: 95-
106).
Ana Paula Torres Megiani diz que, mesmo quando não estava presente
fisicamente em Lisboa, a realeza filipina se fazia representar nas festas e comemorações,
dentre as quais, a procissão do Corpo de Deus. No entanto, a ausência real gerou um clima
de rivalidade e competição nesses eventos públicos. Representantes da Câmara Municipal
e do Conselho de Portugal duelavam entre si para definir quem substituiria os Filipes. As
disputas chegaram a um determinado ponto que ocupar uma posição de destaque em uma
das cerimônias em que o rei não estava presente era mais significativo que naquelas em
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

754
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que ele participava, o que pode ser explicado pelo fato de não se questionar a decisão real
ou dos seus funcionários diretos sobre a disposição dos nobres, na ocasião das jornadas
dos monarcas espanhóis, em 1581 e 1619 (MEGIANI, 2004: 98-116).
Com a Restauração, a festa de Corpus Christi e outras práticas rituais e cerimoniais
da monarquia tornaram-se mais intensas, assim como a reflexão que era feita sobre elas.
Isso porque os Bragança perceberam a oportunidade de utilizá-las politicamente para
difundir um modelo cortesão e afirmar a nação recém-soberana. Além disso, a forma
luxuosa e muito ornamentada como eram organizadas tinha como propósito demonstrar
a superioridade da monarquia e da dinastia que estava à frente. Essas mudanças foram
assinaladas principalmente durante o reinado de D. João V (SANTOS, 2005: 46) (MELO,
2012).
Essas festividades passaram a submeter-se à liturgia barroca e às determinações
pós-tridentinas, criando a imagem de uma sociedade mais rigorosa com relação à ordem
e à hierarquia e de sacralização do poder real. Como consequência, perderam a
espontaneidade que lhe era característica. A legislação da festa de Corpus Christi
instituída por D. João V proibiu o desfile das tourinhas, danças e dos mouros. Também
excluiu os negros e os charmeleiros que tradicionalmente acompanhavam o cortejo, e
vedou o acesso às mulheres. Esse esvaziamento dos elementos pagãos e populares foi
compensado por um maior aparato da procissão. O governo joanino representa uma
ruptura na história da festividade do Corpo de Deus em Lisboa, sendo lembrado pelos
contemporâneos como um momento de triunfo (SANTOS, 2005: 45) (BICALHO, 2002:
314).

Referências Bibliográficas

ALVES, Ana Maria. As entradas régias portuguesas. Lisboa: Livros Horizonte, [s.d.].

ARAÚJO, Renata de. Lisboa. A Cidade e o Espetáculo na época dos Descobrimentos.


Lisboa: Livros Horizonte, 1990.

BEBIANO, Rui. D. João V – poder e espetáculo. Aveiro: Livraria Estante, 1987.


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

755
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BICALHO, Maria Fernanda. Mediação, Pureza de Sangue e Oficiais Mecânicos. As


Câmaras, as Festas e as Representações no Império Português. In:PAIVA, Eduardo
França & ANASTASIA, Carla Maria Junho. (orgs.). O trabalho mestiço: maneiras de
pensar e formas de viver, séculos XVI a XIX. São Paulo/Belo Horizonte:
Annablume/PPGH-UFMG, 2002.

BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. Cartas de Felipe II a sus hijas. Madrid, 1988.

BOUZA-ÁLVAREZ, Fernando. Portugal no Tempo dos Filipes: Política, Cultura e


Representações (1580- 1668). Lisboa: Cosmos, 2000.

BRANDÃO, João. Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552 (1552). Lisboa: Livros


Horizonte, 1990.

CASTELO-BRANCO, Fernando. Lisboa Seiscentista. Lisboa: Livros Horizonte, 1990.


CURTO, Diogo Ramada. O discurso político em Portugal (1600-1650). Lisboa: Projecto
Universidade Aberta, 1988.

CURTO, Diogo Ramada. Cultura Política no Tempo dos Filipes (1580-1640). Lisboa:
Editora 70, 2011.

MATTOSO, Jośé (dir.). Hisória de Portugal: O Alvorecer da Modernidade (1480-1620).


Lisboa: Editora Estampa, vol.III, 1993.

MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festas e cultura política nas visitas dos
Filipes a Portugal 1581 e 1619. São Paulo: Alameda, 2004.

MELO, João Vicente. Ouro e preces: a procissão joanina de Corpus Christi. In: Bulletinof
Spanish Studies: Hispanic Studies and Researcheson Spain, Portugal and Latin
America.vol. 89, n.2, 2012.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

756
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MOTTA, Marly Silva da. “Cabeça da nação, teatro do poder: a cidade capital como objeto
de investigação histórica”. Trabalho apresentado no XVII Encontro Nacional da ANPUH.
São Paulo, 1993.

OLIVEIRA, Eduardo Freire de. Elementos para a historia do municipio de Lisboa.


Câmara Municipal de Lisboa, tomo IV, 1882.

PEREIRA, Paulo. Lisboa (séculos XVI e XVII). Novos Mundos. Portugal e a Época dos
Descobrimentos. Berlim, 2006.

RODRIGUES, Teresa. Portugal nos séculos XVI e XVII: vicissitudes da dinâmica


demográfica. Porto, Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, 2004.

RODRIGUES, Teresa. Crises de Mortalidade em Lisboa, séculos XVI e XVII. Lisboa:


Livros Horizonte, 1990.

SANTOS, Beatriz Catão Cruz. O corpo de Deus na América: a festa de Corpus Christi
nas cidades da América Portuguesa – Século XVIII. São Paulo: Anneblume, 2005.

SERRÃO, José Vicente. “O Quadro Humano”. In: José Mattoso (dir.). História de
Portugal, IV. Lisboa, Círculo de Leitores/Estampa, 1993.

SERRÃO, José Vicente. "População e rede urbana nos séculos XVI-XVIII". In:
OLIVEIRA, César (dir.). História dos municípios e do poder local (dos finais da Idade
Média à União Europeia). Lisboa: Círculo de Leitores, 1996.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

757
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A experiência da doença dos pacientes com fibromialgia e síndrome pós-


poliomielite

DANIELLE SOUZA FIALHO DA SILVA


PPGHCS/FIOCRUZ

Tema e delimitação

Prazer, meu nome é Lívia, e dentre outras milhares de informações sobre mim, eu tenho
fibromialgia. Talvez você nem saiba o que é isso, ou talvez você saiba, e mesmo assim,
eu te garanto: você não sabe o que é isso. A não ser que você, assim como eu, também
seja um portador dessa condição”

Relato Lívia (Abrafibro)

“Era terrível entrar na água fria, meu corpo, minhas articulações doíam muito. Ficou
insuportável”, conta. Em seguida começaram as quedas. A perna do professor não
suportava o peso e fazia com que ele perdesse o equilíbrio e caísse. “Meu joelho dobrava
sem meu comando”

Relato João (G14)

O tema da pesquisa surgiu após estudo desenvolvido no mestrado, que analisou


os discursos médicos dos reumatologistas sobre a doença fibromialgia, incorporada na
Classificação Internacional de Doenças (CID) de 2010. Analisamos as controvérsias
presentes relacionadas ao diagnóstico, práticas biomédicas e terapêuticas voltadas para
os pacientes. Ao final da etapa de mestrado, foi sugerido cotejar o discurso médico com
o ponto de vista dos pacientes, objetivando enriquecer a análise do processo de nominação
e validação de uma doença ainda polêmica. Durante os estudos sob a orientação da profa.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

758
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Dra. Dilene Raimundo Nascimento, entrei em contato com a história da poliomielite e da


síndrome pós-pólio. Esta última, com sintomas, aspectos biomédicos e sociais
semelhantes aos da Fibromialgia. Desse ponto, buscamos o desafio de compreender e
comparar a experiência do adoecimento (Herzlich, 2004; Rosemberg, 1997) de indivíduos
acometidos por estas duas doenças no Brasil.

Introdução

A fibromialgia é uma doença que tem a dor como seu sintoma principal. As
pessoas que se autodenominam “fibromiálgicas” sofrem com dores difusas e intensas pelo
corpo, que podem vir acompanhadas de outros sintomas ou comorbidades, como cefaleia,
síndrome do intestino irritável, alterações de memória e atenção, vertigens,
formigamento, ansiedade, depressão, etc. Seus pacientes não apresentam luxações,
inflamações, ou qualquer substrato anatomopatológico que justifique as queixas.
Podemos dizer que esta dor é “invisível” e pode provocar julgamentos de que as pessoas
acometidas são “frescas” ou estão exagerando a dor. Apesar da origem da doença não ser
esclarecida pelas pesquisas biomédicas, os indivíduos que sofrem com tais dores
experimentam alívio ao receberem um diagnóstico.
Por sua vez, a síndrome pós-poliomielite é uma patologia que acomete indivíduos
afetados pelo vírus da pólio muito anos antes, enfrentando novas dores e fraquezas.
Segundo Quadros et al. (2010), a síndrome é uma desordem neurológica derivada dos
efeitos tardios da poliomielite, caracterizada por fraqueza muscular e fatigabilidade
muscular anormal, podendo ocorrer também dores nas articulações. Esta manifestação
ocorre em pessoas que tiveram poliomielite aguda, geralmente de 30 a 50 anos, no
mínimo 15 anos antes. Da mesma forma que na fibromialgia, os pacientes identificados
com síndrome pós-pólio também sofreram descrença por parte de amigos, de colegas e
de familiares nas suas queixas de dor e fraqueza.
Neste trabalho, defendemos a experiência do adoecimento do paciente como uma
forma significativa para entender os processos de saúde e doença e de como as
perspectivas individuais dizem respeito à vida social. Partimos, desta forma, das reflexões
de Claudine Herzlich (2004), que destaca a importância das pesquisas que têm se voltado
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

759
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

para o âmbito privado há algumas décadas, buscando esclarecer o que as pessoas têm a
dizer sobre a doença. O foco direcionou-se para as patologias crônicas de longa duração,
uma vez que elas afetam todos os aspectos da vida do paciente. Tais pesquisas trouxeram
contribuições importantes para a sociologia da saúde e da doença, mostrando como as
enfermidades atingem a vida dos pacientes, ao provocarem uma desestabilização
irreversível.
Dentro deste prisma, Herzlich (2004) chama atenção para os trabalhos
desenvolvidos na sociologia a partir da década de 1970, que criticavam a ideia de que as
pessoas estavam submetidas a um modelo médico todo-poderoso (2004: 386). As
pesquisas se voltaram para o âmbito privado, buscando esclarecer o que as pessoas têm a
dizer sobre a doença. O foco direcionou-se para as patologias crônicas de longa duração
uma vez que ela afeta todos os aspectos da vida do paciente. Tais pesquisas trouxeram
contribuições importantes para a sociologia da saúde e da doença, uma vez que mostraram
como as enfermidades atingem a vida dos pacientes, provocando uma desestabilização
irreversível. Averiguou-se que experiência pessoal da doença não é mais uma interrupção
biográfica, mas uma autodescoberta, que oferece a possibilidade de renovação e mudança.
Neste sentido, a doença como uma experiência moral pode ser uma oportunidade de se
por à prova (Idem, p.389).
Sobretudo, o ponto de vista da doença através do olhar do paciente tem ajudado a
tornar perceptível a experiência privada da doença “ao enfatizarem a dimensão individual
e subjetiva do isolamento do contexto social e do domínio da vida pública coletiva”
(Idem: 390). É interessante notar, que Herzlich assinala que foi em meados da década de
1980, durante a epidemia de Aids, que houve uma mudança de narrativa sobre a
experiência do adoecimento que influenciou a forma como os pacientes se manifestam.
Segundo ela, o fato de os indivíduos se manifestarem individual e coletivamente na
televisão sobre sua enfermidade permitiu surgir sentimentos de compaixão e
solidariedade. Desta forma, a experiência da Aids tornou-se assunto público, motivando
e criando nova tendência em relação à experiência pessoal e de grupo.
A organização dos pacientes no contexto da Aids permitiu que vários doentes
fossem ouvidos, atuando não apenas como testemunhas, mas também denunciando e
judicializando. A experiência pessoal, aliada à experiência de grupo dos pacientes,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

760
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

propiciou um novo fenômeno no ativismo coletivo contemporâneo. Para Herzlich a


epidemia de Aids provocou uma mudança de paradigma com o surgimento do poder dos
pacientes. Ela localiza que dentro deste contexto houve uma transformação radical da
relação da sociedade com a saúde, principalmente, o ponto de vista do paciente foi usado
para criar novos direitos civis. Em sua observação, o ativismo foi tanto crítico quanto de
participação.
Podemos destacar os debates sobre a experiência da doença a partir do conceito
de memória (Armus, 2015), que é elaborada a partir de um arsenal de sentidos. Segundo
Armus, “a memória e os relatos de memória permitem ao doente comunicar a sua
experiência com a doença e nesse processo os doentes se afirmam como sujeito” (idem:
28).

Problematização

Na pesquisa de mestrado ”O alarme que precisa ser regulado’: os debates


médicos sobre a fibromialgia na Sociedade Brasileira de Reumatologia entre as décadas
de 1990 e 2010”, analisou-se o discurso médico sobre a fibromialgia. Primeiramente, o
que chamou a atenção em relação à doença foi a descrença na dor e a desconfiança que
rondava as pessoas que reclamavam de dores intensas e difusas. As informações
estatísticas da Revista Brasileira de Reumatologia (RBR) afirmam que cerca de 2% a 3%
da população mundial, “principalmente dos países industrializados, são atingidos pela
doença e que cerca de 90% dos pacientes são mulheres” (Mattos, 2011). Contudo, sabe-
se que a fibromialgia pode ocorrer em crianças, jovens, adultos e idosos de ambos os
sexos. Os artigos e o site da SBR assinalam que a fibromialgia é a segunda doença
reumatológica mais diagnosticada nos consultórios.
Nas fontes estudadas, registra-se a peregrinação dos pacientes e a dificuldade da
elaboração do diagnóstico, em parte por não existir uma comprovação da dor em termos
biomédicos. Relatos como “você não tem nada” eram comuns e poderiam vir
acompanhados de uma indicação para tratamento psicológico ou psiquiátrico. Quando
esse sintoma passou a ser acreditado pelos médicos na década de 90, a doença pôde
finalmente começar a ser tratada não como uma dor “psicológica”, como assinalam alguns
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

761
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

artigos, mas como uma dor “real”, que precisa de cuidados. Sem dúvida, a entrada no
Código Internacional das Doenças em 2010 (CID 10) representou um momento
significativo para o reconhecimento da fibromialgia junto à comunidade médica e não
médica.
Na mesma época, a síndrome pós-pólio ingressa no CID, contribuindo de forma
mais efetiva para que seus pacientes tivessem os sintomas reconhecidos e tratados.
Segundo Lima (2010), a luta pelo reconhecimento foi assumida por um grupo acometido
pela síndrome pós-pólio, bem como por seus familiares e amigos, em conjunto com o
médico Acary Souza Bulle de Oliveira, neurologista da Unifesp. No ano de 2002, foi
publicada a primeira descrição clínica da síndrome pós-poliomielite na Revista de
Neurociências e, no ano seguinte, iniciou-se a efetivação do atendimento específico para
os pacientes no Setor de Investigação em Doenças Neuromusculares da Escola Paulista
de Medicina (Unifesp/EPM), chefiado pelo neurologista (Idem: 292-293).
A Associação Brasileira de Síndrome Pós-poliomielite (Abraspp) foi organizada
em São Paulo, em maio de 2004, durante o primeiro simpósio sobre a doença. Lima
ressalta que o evento teve como subtítulo “Síndrome Pós-pólio: uma nova doença velha”.
Tal frase faz alusão a um passado recente da poliomielite, em relação ao qual existem
dados epidêmicos imprecisos, principalmente no período da ditadura militar. A
expectativa é a de que exista um grande número de pessoas que tiveram poliomielite e
desenvolveram a síndrome, mas ainda precisam de informações sobre nosologia,
diagnóstico e tratamento.
Na Espanha, o estudo de Sánchez (2012b) assinala a importância dos movimentos
associativos de pacientes afetados para dar visibilidade à doença, bem como às suas
demandas. Este papel do “paciente ativo” possuiria contribuições, segundo ele, dos
movimentos associativos ligados à igreja católica no período da ditadura franquista. As
fraternidades católicas promoveram um ideário, valores e uma socialização para pessoas
afetadas pela pólio (2012a). O autor localiza nestas formas associativas a transição de um
modelo médico para um modelo social. Destaca também o papel destas organizações para
formar líderes, fundamental no engajamento e ativismo dos pacientes com síndrome pós-
pólio. Em semelhança com Herzlich, Sánchez acredita que os movimentos associativos

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

762
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de pacientes experimentaram uma grande renovação durante a epidemia de Aids,


promovendo uma mudança no modelo de luta contra a doença (2012b: 112).

Objetivos

- Analisar e comparar a experiência do adoecimento da síndrome pós-pólio e da


fibromialgia do ponto de vista do paciente em depoimentos virtuais presentes em redes
sociais, blogs, Youtube etc;

- Analisar qual o valor atribuído à doença;

- Identificar e analisar de que forma atuam para dar visibilidade à doença e criam redes
de solidariedade;

Metodologia

Nossa metodologia conta com a lente teórica do campo de História das doenças.
Propomos, ainda, neste estudo com pacientes “fibromiálgicos” e acometidos da síndrome
pós-pólio os métodos de análise da História oral, pois a experiência do adoecimento
envolve memórias e recordações de pessoas que estão atuando seja nas associações de
pacientes, seja relatando em blogs e/ou Facebook suas vivências. Trata-se de lembrar e
relembrar os sujeitos históricos que participaram e são testemunhos da história vivida pela
coletividade.
Segundo Amado & Ferreira (2006: xv), “na história oral, o objeto de estudo do
historiador é recuperado e recriado por intermédio da memória” e, muitas vezes, ela é
“praticada fora do mundo acadêmico, entre grupos e comunidades interessados em
recuperar e construir sua própria memória”. Esta metodologia suscita reflexões, por
exemplo, acerca das relações entre memória, história e identidade.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

763
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Tal relação tem sido abordada por diversos historiadores, cada um à sua maneira,
contribuindo para a elaboração de um rico manancial de conceitos que podem ser
incorporados aos estudos sobre a trajetória social de um indivíduo ou de um grupo. Neste
sentido, podemos destacar o caráter coletivo de toda memória individual, conforme
sugeriu Halbwachs (1990), sobre a percepção de que a memória e a identidade são valores
disputados conflituosamente entre diversos sujeitos históricos, inclusive nos processos de
construção das identidades. Entretanto, cabe pensar aqui como as memórias e os registros
destes pacientes que vivem um adoecimento doloroso, muitas vezes desacreditado, é
relatado por esses sujeitos.
Faz parte da nossa metodologia igualmente as análises da incipiente historiografia
digital e nos debates das sobre netnografia para analisar nossas fontes digitais. Trata-se
de uma memória recente, ou de relatos atuais que estão disponíveis nas redes sociais,
blogs, youtube, e que narram a experiência individual, por vezes coletiva, do
adoecimento. O compartilhamento na internet, bem como nas redes sociais, de tais
experiências é um fenômeno relativamente recente. Pereira Neto et al. (2015) explica que
o tema saúde na internet tem cada vez mais informação disponível e um número cada vez
maior de pessoas interessadas. Saúde-doença é um assunto de incontáveis websites que
têm entre seus mantenedores e elaboradores empresários do setor de saúde, companhias
privadas de produtos e serviços, associações de profissionais, organizações não-
governamentais, organizações universitárias e de pesquisa e agências governamentais
(idem: 1655). De acordo com Pereira Neto et al., todo este universo de informação
favoreceu o advento e o desenvolvimento do “paciente informado”, que pode ser definido
como uma pessoa que conquistou habilidades e conhecimentos necessários para
desempenhar um papel ativo no processo de decisão que envolve sua saúde e sua condição
de vida. São pessoas que compartilham informações a respeito de doenças relativas ao
diagnóstico, profilaxia e tratamento e que estabelecem outro tipo de interação com setores
dominantes da saúde.

Hipóteses

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

764
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A história da dor investigada por Roseline Rey (2012) nos ajuda a pensar como o
pós-guerra foi um momento de escuta de diversos pacientes que sentiam dor. Escuta essa
que se traduziu não apenas em medicamentos analgésicos, mas em formas diversas de
tratamento. Neste sentido, acreditamos que tanto a fibromialgia como a síndrome pós-
pólio são doenças que tiveram seus sintomas nominados por existir uma valorização
biomédica nos cuidados da dor.
Uma série de autores (Lima, Herzlich, Sanchez) assinalam que o movimento dos
pacientes foi significativo para o reconhecimento das doenças e para que os pacientes
tivessem direito a tratamentos, licenças médicas e aposentadoria. Neste sentido,
acreditamos que estes “pacientes ativos” têm como forma de expressão, comunicação e
divulgação as redes sociais – área de militância e organização política.

Considerações sobre a pesquisa

Elaboramos o quadro abaixo com os respectivos dados das doenças que nos
auxiliam a visualizar e comparar as semelhanças e diferenças.

Quadro 1: elementos de comparação entre as doenças


DOENÇAS SFM SPP
Sintomas e Dores difusas no corpo Dores no corpo e nas articulações
comorbidades337 Dor de cabeça Fraqueza muscular
Perda de memória e falta Fadiga
de atenção Transtorno do sono
Insônia
Depressão
Distúrbios intestinais
Distúrbios e humor

337
Sugere a presença de outras doenças ou síndromes concomitantes, sinalizando que o indivíduo pode ter
mais de um diagnóstico.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

765
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Julgamentos de “É frescura” “isso é frescura”


amigos, familiares “Está exagerando a dor” “isso é depressão”
e colegas de “Isso é preguiça”
trabalho
Associações de Associação Brasileira “Associação Brasileira de
pacientes dos Fibromiálgicos Síndrome Pós-poliomelite”
(Abrafibro, de 2008, (Abraspp, de 2004, e que se
virtual) transformou em G14, em 2010)

Lema das “Essa dor pode ser “Poliomielite, um novo olhar,


associações invisível, mas nós não” cuidando da saúde e comemorando
a vida”
Leis e portarias Portaria 1083/2012 do Pl 660/2014
(organização Ministério da Saúde que
política) garante aos
fibromiálgicos
tratamento pelo SUS
Dias de luta 12 de maio 24 de outubro

Código CID 10 M79.7 CID10 G14, incluído em 2008


Internacional de
Doenças (CID)
Redes sociais Abrafibro - Associação Associação G-14 pós-pólio no
(Facebook) Brasileira dos Facebook
Fibromiálgicos no
Facebook

No quadro acima, podemos destacar que os pacientes fundaram suas associações


em datas bem próximas, sendo que a G-14, antiga Abraspp, teve um local físico na cidade
de São Paulo e a Abrafibro nasceu virtual. Neste sentido, a organização destas associações

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

766
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sugere uma relação estreita com a entrada das doenças na Classificação Internacional de
Doenças de 2010. De fato, segundo Lima (2010: 308), a Abraspp, juntamente com a
Unifesp e a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, formalizaram em 2005 o pedido
de inclusão no Código Internacional de Doenças (CID). Constata-se que ambas as
doenças foram inseridas no CID 2010, cabendo então verificarmos se existiu esta
demanda dos pacientes também para a fibromialgia.
É interessante notar que os pacientes que sofrem de síndrome pós-pólio tendem a
desaparecer, com a erradicação do vírus da poliomielite há mais de 20 anos no Brasil.
Segundo Nascimento et al. (2010), o último caso de pólio registrado no país data de 1989
e a certificação da erradicação é de 1994. Neste sentido, o registro histórico nos remete
ao passado epidêmico da poliomielite, às políticas públicas de combate, que podem ser
confrontados com os relatos e as experiências de indivíduos que vivenciaram as práticas
terapêuticas. Tais indivíduos, anos mais tarde, depararam-se com novas contingências.
Na opinião de Lima, a síndrome pós-pólio “configura-se como um problema de saúde
pública tanto quanto a pólio foi no passado recente” (2010: 313).
Observamos que as duas associações destacam em seus lemas a questão da
(in)visibilidade e do olhar. Podemos entender, então, que as frases colocam em evidência
a doença, que deve ser vista e notada para que se tenha uma efetiva atenção terapêutica e
esclarecimento para a sociedade em geral. Nascimento (2005, p. 32) assinala a diferença
da experiência da doença crônica e epidêmica: enquanto a primeira se situa na vida
privada, a segunda entra na esfera pública. É desse lugar, da esfera privada, que muitos
pacientes relatam em blogs a agonia e a perplexidade diante da busca pelo diagnóstico e
de tratamento, sobretudo a relação de descrença de pessoas próximas no seu cotidiano.
Em relação à organização dos pacientes nas redes sociais, notamos igualmente
que as redes sociais, como Facebook, blogs e Youtube, são utilizadas na troca de
informações sobre tratamento, diagnóstico e para se mobilizarem. Inclusive, uma das
associações – Abrafibro – é exclusivamente virtual. Este movimento contemporâneo de
uso das novas tecnologias de comunicação tem crescido mundialmente, conforme destaca
Pereira Neto et al. (2015), tanto entre pacientes quanto entre setores biomédicos que
percebem estas ferramentas de informação como aliadas. Para os autores, o “paciente

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

767
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

informado” é um novo ator social do campo da saúde que se tornou mais visível com a
propagação da internet.
Abaixo, podemos ler dois relatos distintos de pacientes: um publicizado em blog;
o outro disponível em site dedicado as pessoas com algum comprometimento físico.

O pior de ser portadora de De repente começo a sentir que a minha


fibromialgia é a falta de aceitação, perna esquerda que sempre fora forte
só porque você não é aleijada as começa a perder a força. Alguma coisa
pessoas julgam que você não tem estava errada, tentava fazer musculação, só
nada. Eu quero ser entendida. Eu piorava e eu não entendia. Ué, a musculação
quero ser respeitada. Eu quero e é para fortalecer os músculos, por que
preciso ser apoiada. comigo era ao contrário??? Não conseguia
dormir, deve ser stress. Enquanto os meses
No meu caso a minha família me passavam, meu corpo pesava cada vez mais.
entende e ajuda bastante. O Começaram as quedas, não conseguia
problema são os outros, ahhh os executar meu trabalho como queria. (...) Em
outros. Deviam não significar nada, minha cidade ia ao ortopedista e ele me
num é? Mas significam muito, mandava para o fisioterapeuta, que me
porque o julgamento deles machuca mandava para o ortopedista. Meu Deus, vou
e ofende. "Você não tem nada, deixa ter que fazer medicina para descobrir o que
de moleza!". "Isso é frescura, está acontecendo comigo?
aposto!" Relato sobre Síndrome Pós-pólio339
Relato sobre fibromialgia do blog de
Naiane Martins338

Para a autora do primeiro texto, o enfrentamento da doença passa pela aceitação


social da sua dor, ou seja, se ela consegue uma compreensão no âmbito familiar; porém,

338
Relato de um internauta. Disponível em:
<http://eutenhofibro.blogspot.com.br/2016/09/desabafo1.html>. Acesso em: 29/10/2016.
339
Relato de um internauta. Disponível em: 29/10/2016.
<http://www.deficiente.com/pcd/forum/adaptacao-de-veiculos/6006-sindrome-pos-polio?start=6>.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

768
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

em outra esfera, enfrenta o julgamento das pessoas. Contudo, a autora faz um apelo à sua
necessidade de respeito, apoio e aceitação. Como fenômeno contemporâneo, podemos
ver que a paciente se utiliza deste registo no blog para esclarecer como se sente, bem
como suas demandas, tomando para si a própria narrativa da doença.
No segundo relato, observamos que o desafio encontrado foi em relação ao
diagnóstico e à necessidade que a pessoa acometida de dor e fraqueza tem em obter
conhecimento específico para atingir o que Le Breton (2003) chama de “cuidado de si” –
movimento este na gestão do seu corpo como patrimônio. Rosemberg (1997), por sua
vez, assinala que o diagnóstico é um evento-chave na experiência da doença e objeto de
uma rede complexa de negociações sociais. Seu significado para o paciente é peculiar,
pois pode alterar sua própria narrativa tanto para o futuro, quanto para o passado.
Acreditamos que estas narrativas de pacientes nos auxiliam a pensar como as informações
sobre a doença circulam e são por eles apropriadas, abrindo formas de enfrentamento e
negociação.
Pierre Léwy (2014) também lança luz em nossas reflexões sobre estes pacientes
que se utilizam de blogs, sites e youtube mostrando que estão vivenciando suas
experiencias de paciente no contexto da cibercultura. Podemos entender que o uso da
web por tais pacientes são como dispositivos que desempenham uma função de “espelhos
da memória” (Léwy, 2011) assinalando temas caros as doenças e que ganham
visibilidade, permitindo inclusive novos “estilos de saber” (Léwy, 2011). Nesta
perspectiva, podemos pensar que este saber sobre a doença sofre uma apropriação do
biomédico para o dos pacientes, que por sua vez circulam práticas de cura e enfrentamento
do que não visível socialmente: seu lugar de fala é significativo como experiencia legítima
do adoecimento, ou como “portador dessa condição” – nas palavras de Lívia do blog da
Abrafibro.

Referências

AMADO, Janaína & FERREIRA, Marieta (org.). “Introdução”. In: Usos e abusos da
História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

769
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais
Ltda, 1990.

HERLIZCH, Claudine. “Saúde e doença no início do século XXI: entre a experiência


privada e a esfera pública”. Physis: Revista de Saúde Coletiva, vol.14, nº 2, 2004.

LE BRETON, David. Antropologie de la douleur. Paris: Metailie, 2006.

LUCCHESI, Anita. Digital History e Historiografia digitale: estudo comparado sobre a


escrita da história no tempo presente (2001- 2011). Dissertação ( Mestrado em História
Comparada) Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, 2014.

NASCIMENTO, Dilene Raimundo do. A história da Poliomielite. Rio de Janeiro:


Garamond, 2010.

PEREIRA NETO, André et al. O paciente informado e os saberes médicos: um estudo de


etnografia virtual em comunidades de doentes no Facebook. Hist. cienc. saude-
Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22, supl. p. 1653-1671, Dec. 2015.

LÉWY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da


informática. Rio de Janeiro: ed. 34, 2011.

LIMA, Solane Leonor Carvalho de. Abraspp: uma (re)ação brasileira. In:
NASCIMENTO, Dilene (org). A história da Poliomielite. Rio de Janeiro: Garamond,
2010.

MATTOS, Rafael da Silva. Fibromialgia e dor: um estudo de caso sobre o mal-estar no


trabalho e adoecimento. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, 2011.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

770
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

NASCIMENTO, Dilene Raimundo do. A história da Poliomielite. Rio de Janeiro:


Garamond, 2010.

PEREIRA NETO, André et al. O paciente informado e os saberes médicos: um estudo de


etnografia virtual em comunidades de doentes no Facebook. Hist. cienc. saude-
Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 22, supl. p. 1653-1671, dec. 2015.

REY, Roselyne. História da dor. São Paulo: Escuta, 2012.

ROSENBERG, C. & Golden, J. Framing disease: studies in cultural history. New Jersey:
Rutgers University Press, 1997.

SÁNCHEZ, Juan Antonio R. La persona enferma como expert: los cambios


sóciosanitarios por el asocionismo pólio-pospolio em Spaña. In: Estudos do Século XX,
número12, Universidade de Salamanca, 2012(b).

SÁNCHEZ, Juan Antonio R. Las secuelas sociales de la pólio: los inicios del movimiento
asociativo en España (1957–1975), Dynamis 32(2) (2012b), 391–414. doi:
10.4321/S0211-95362012000200006 2012(a).

SILVA, Danielle Souza Fialho da. "O alarme que precisa ser regulado": os debates
médicos sobre a fibromialgia na sociedade brasileira de reumatologia entre as décadas de
1990 e 2010. Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de
Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2014.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

771
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O ateísmo da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA): influências do


iluminismo e “neoateísmo” na busca pela identidade ateísta brasileira340

DANILO MONTEIRO FIRMINO


PPGHS – UERJ/FFP
Bolsista CAPES

O ateísmo cresce no mundo de forma constante, ao menos de acordo com recentes


trabalhos acadêmicos e de institutos de pesquisa341. Parte desse crescimento parece ser
devido ao movimento conhecido como “neoateísmo”, que tem como principais
características a crítica antirreligiosa, a defesa radical da separação entre religião e
Estado, uma concepção do mundo materialista baseada no paradigma científico e a
proposta de expansão por um processo de “conversão” ao ateísmo. Na esteira desse
crescimento destaca-se no Brasil a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA),
criada por Daniel Sottomaior, Alfredo Spínola e Maurício Palazzuoli em 31 de agosto de
2008. Atualmente, reúne cerca de 17000 associados342, sendo seu objetivo a “luta contra
a discriminação que os ateus sofrem na sociedade brasileira e pela verdadeira laicidade
do estado”. Os números da associação impressionam: o twitter conta com 14,4 mil
seguidores e 64,4 mil “twettes”; o Youtube possui 15.687 inscritos, com 29 vídeos; a
página oficial contem depoimentos de “conversões” ao ateísmo, links das ações da ATEA
em defesa da laicidade, canais de denúncia, voluntariado e uma série de categorias sobre
ateísmo e a defesa do mesmo; o Facebook da instituição é atualizado diariamente,
contendo quase 700 mil inscritos e seguidores, com 25.998 fotos, além de intensa
participação tanto de ateus quanto não ateus343.

340
Esta comunicação é um recorte do capítulo 1 da dissertação de mestrado que até o presente momento
não foi concluída. E-mail: dmf.1184@gmail.com
341
VER Clarissa de Franco (2014) e a pesquisa Win/Gallup sobre o ateísmo no mundo. Disponível em:
https://sidmennt.is/wp-content/uploads/Gallup-International-um-tr%C3%BA-og-tr%C3%BAleysi-
2012.pdf, acesso em 18 ago. 2017.
342
Últimos dados oficiais são de janeiro de 2016, ver https://www.atea.org.br/sobre/, acesso em 07 jun.
2017.
343
Todos os dados foram colhidos em 07 jun. 2017 nos respectivos sites oficiais: Twitter:
https://twitter.com/ateaorgbr; Youtube: https://www.youtube.com/user/ATEAorgBR; Site oficial:
https://www.atea.org.br; Facebook: https://www.facebook.com/pg/ATEA.ORG.BR.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

772
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Levando em consideração o crescimento do ateísmo no Brasil, trabalho pretende


demonstrar a proposta de uma identidade ateísta via ATEA baseada na defesa da realidade
fundamentada na “razão”, em uma perspectiva materialista. Essa razão é herdeira da ideia
formulada durante o iluminismo, sendo entendida como elemento universal que pode
levar “luz” às “trevas” religiosas e utilizada também nas discussões travadas pelos
“neoateus”.
Para demonstrar as influências do discurso de exaltação da razão por parte da
ATEA,o trabalho pretende destacar a figura de Barão de Holbach, filósofo iluminista
ateísta radical e analisar o documentário “Os Quatro Cavaleiros”, estrelado pelos quatro
principais autores do ateísmo contemporâneo Richard Dawkins, Sam Harris, Daniel
Dennett e Christopher Hitchens. Analisando a proposta racional de Holbach e
posteriormente dos “neoateus” atuantes no século XXI, o trabalho pretende mostrar como
a proposta da razão universal com poder de “salvar” o homem da ignorância religiosa é
um poderoso elemento na identidade defendida pela ATEA.

Definindo o “ateu” e o “ateísmo”: da impiedade ao “ateu virtuoso”

O ateísmo, ao menos de acordo com o dicionário Michaelis, consiste na “doutrina


que nega categoricamente a existência de Deus ou qualquer outra divindade”.344
Analisando o termo em sua origem grega, “a” tem o significado de “não” ou “sem” e
“theos” o significado de “deus”, o que não indica exatamente que o ateu negue a
existência dos deuses, mas apenas que não tem crença neles. O autor Michel Martin
afirma existir um entendimento mais amplo e comum onde o ateu não é apenas quem não
segue um deus ou os deuses, mas sim alguém que não acredita na existência desses seres
(MARTIN, 2010: 9-10). Existe ainda a compreensão do ateu como um indivíduo que não
acredita em quaisquer manifestações que não possam ser explicadas “racionalmente”, de
forma materialista ou científica, sendo essa a visão da ATEA.
Segundo Paulo Piva, o termo “ateu” foi pouco utilizado na história da filosofia até
o século XVI, sendo sinônimo de ímpio, principalmente nas querelas religiosas do século

344
Dicionário Michaelis online, disponível em http://michaelis.uol.com.br, acesso em 07 jun. 2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

773
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

XV. Citando Lucien Fevbre, George Minois indica que durante o século XVI “o termo
ateu era uma injúria que designava um herético, um cismático, um sacrílego, um
heterodoxo ou qualquer pessoa que não compartilhasse da fé da comunidade a que
pertencia” (MINOIS, 2015: 121). Em sua obra, Febvre pretende responder à pergunta “O
que vale a acusação de ateísmo no século XVI? ”. Segundo o autor, a palavra “ateu” “não
tinha sentido estritamente definido, sendo empregada no sentido que bem se lhe queria
dar (...) [mas] significa, pelo menos, incrédulo” (FEBVRE, 2009: 131-134).
É com o filósofo Pierre Bayle que a palavra “ateu” começa a ganhar novos
contornos. Piva destaca a obraPensamentos diversos sobre o cometa de Bayle como
importante na mudança da concepção do ateísmo. Lançadana segunda metade do século
XVII, Bayle tinha a intenção de demonstrar que a moralidade não dependia
necessariamente da religião. Assim, na medida em que o autor descreve uma sociedade
imaginaria onde ateísmo e moralidade podem coexistir, desfaz uma série de preconceitos,
rompendo a tradicional aliança entre moral e religião, passando o ateísmo a adquirir
seriedade nos meios científicos da época (PIVA, 2003: 86).

A razão na crítica ateísta de Barão de Holbach: “racionalidade ateísta” x


“irracionalidade teísta”

Segundo Ernst Cassirer, “o século XVIII não assenta seus propósitos intelectuais
mais vigorosos e seu característico dinamismo espiritual na rejeição da fé, mas no novo
ideal de fé que ele promove e na nova forma de religião em que ela se encarna”
(CASSIRER, 1992: 191). O homem não deve mais se submeter a uma religião e nem ela
deve ser submetida a uma força superior estranha, a religião deve estar estabelecida nos
limites da razão. Para o autor,

O século XVIII está impregnado de fé na unidade e imutabilidade da


razão. A razão é una e idêntica para todo o indivíduo-pensante, para
toda a nação, toda a época, toda a cultura. De todas as variações dos
dogmas religiosos, das máximas e convicções morais, das ideias e dos
julgamentos teóricos, destaca-se um conteúdo firme e imutável,
consistente, e sua unidade e sua consistência são justamente a expressão
da essência da própria razão (CASSIRER, 1992: 23)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

774
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O contexto da mudança do século XVIII se dará em conjunto com a


fundamentação do materialismo francês, que foi o principal elemento da causa ateísta
defendida por Holbach. Paul Henry Thiry d’ Holbach (1723-1789) nasceu na região do
Palatinado, sendo assim alemão de origem. Recebeu uma grande herança de seu tio, vindo
a se estabelecer e morar em Paris durante a maior parte de sua vida. É possível ver o
materialismo do autor em El buen sentido, o sea las ideas naturales opuestas a las
sobrenaturales (1821) que pretende ser seu livro menos denso, voltado para um público
letrado menos culto. Nesse artigo, interessa mais as concepções de Holbach sobre a
utilização da razão no combate à religiosidade e Deus.
Segundo Holbach, Deus é contra a moral e virtude, sendo caprichoso e injusto. O
homem não precisa de Deus para ser virtuoso, bastando para isso que ele tente se portar
de forma bondosa com seu próximo, pois a moral vem da reflexão interior e da natureza
(HOLBACH, 1821: 9-11). A religião não pode nortear a moral humana, pois causa
conflitos e guerras, fechando o coração dos homens e acabando com o afeto de uns pelos
outros. Apenas através da razão o homem pode buscar a verdade. Caso a religião seja
analisada utilizando a razão, é possível perceber como não se sustenta, respeitada apenas
porque não é compreendida. A religião nada mais é do que a ignorância das causas
naturais sistematizada (HOLBACH, 1821: 1).
Para Holbach, todos os princípios religiosos são ilusões, pois não advém nem do
raciocínio nem da experiência. Isso torna, segundo o autor, a fé contrária à razão
(HOLBACH, 1821: 158-159). Se os sentidos enganam o homem, existe uma forma de se
confirmar a razão e acabar com os erros: a experiência. Ela pode nortear o homem em
suas análises, ajudando-o a utilizar sua razão para encontrar a verdade. É impossível para
o homem ter ideia de Deus, pois Ele não se mostra para nossos sentidos.
Segundo o filósofo, o universo é uma causa para si mesmo, na medida em que ele
não é um efeito criado, mas sim uma causa. Não é necessário nenhum motor invisível
para cria-lo e movimenta-lo, pois ele se basta e nosso aparelho sensível e experiência
confirmam essa informação. Na natureza tudo está em movimento, sendo incoerente
acreditar que ela está morta e precisa de um “motor” sobrenatural para agir. Holbach diz
“atenéos á las causas segundas y dejad á los teólogos su causa primera, de la cual no tiene
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

775
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

necesidad la naturaleza para producir todos los efectos que veis” (HOLBACH, 1821: 36).
Se a natureza é a causa de todos os efeitos e produz leis fixas, é inconcebível existir
alguma coisa que desafie essas leis imutáveis. Os milagres são “ofensas” às leis da
natureza e não podem ser provados pela razão, sendo o não entendimento dos processos
da natureza e frutos de ações de charlatães.
Em Minois, vemos a transcrição de um fragmento de Sistemas da Natureza
(1770), polêmico livro de Holbach, onde o autor responde uma pergunta que faz a si: “O
que é um ateu? ” (MINOIS; 2014: 497-498). Segundo Holbach:

O que é, de fato, um ateu? É um homem que destrói quimeras nocivas


ao gênero humano para levar os homens de volta à natureza, à
experiência, à razão. É um pensador que, tendo meditado sobre a
matéria, sua energia, suas propriedades e suas maneiras de agir, não
precisa imaginar, para explicar os fenômenos do universo e as
operações da natureza, poderes ideais, inteligências imaginárias (...)
Se, por um ateu, entende-se um homem sem entusiasmo, guiado pela
experiência e pelo testemunho de seus sentidos, que vê na natureza
apenas aquilo que realmente se encontra nela ou aquilo que ele tem
condição de conhecer (...)uma pessoa que não sabe o que é um espírito
e não vê nenhuma necessidade de espiritualizar ou tornar
incompreensíveis causas corpóreas (...) designa-se o homem que rejeita
fantasmas, cujas qualidades odiosas e disparatadas são propícias apenas
para perturbar e mergulhar o gênero humano numa demência muito
nociva; se, digo eu, pensadores dessa espécie são aqueles a quem
chamamos de ateus, então não podemos duvidar da existência deles, e
eles existiriam em grande número, se a sabedoria da salutar física e da
íntegra razão fosse mais difundida; se assim fosse, eles não seriam
olhados nem como insensatos nem como furiosos (...) (MINOIS apud
Holbach, 2014: 497-498)

Como pode ser notado, o entendimento de Holbach sobre o que é ser um “ateu”
se aproxima da concepção contemporânea mais utilizada e aceita. Conforme Minois
afirma, “com D’Holbach, o ateísmo se torna adulto (...) dota-se de uma filosofia, o
materialismo, de uma ciência, o mecanicismo e de uma moral, a lei da natureza”
(MINOIS, 2014: 498). Assim sendo, é possível ter em mente a grande importância de
Holbach nos estudos sobre ateísmo, na medida em que, entre outras coisas, o autor define
de forma concisa o “ateu”, ao mesmo tempo em que elabora um sistema ateísta dotado de
filosofia, ciência e moral. O mundo guiado por leis rígidas, à moda Newton, parece não

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

776
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

precisar mais de um criador, pelo menos pela interpretação de alguns filósofos como
Barão de Holbach. O ateu como o homem que não acredita na divindade, no sobrenatural,
materialista, encontra sentido na sua cosmovisão no “século das luzes”, embora cada
momento histórico tenha sua própria especificidade.

Uma análise do documentário “Os Quatro Cavaleiros”: em busca de referências


sobre a razão no “neoateísmo”

Os “Quatro Cavaleiros” (The Four Horsemen) foi um documentário produzido em


2007, divulgado no site do cientista Richard Dawkins.345Ele reúne os mais proeminentes
divulgadores do movimento conhecido como “neoateísmo”, sendo eles o próprio Richard
Dawkins, o jornalista Christopher Hitchens, o neurocientista Daniel Dennett e o também
neurocientista Sam Harris. Segundo Leonardo Moreira (2014), esse movimento surge
após os atentados de 11 de setembro de 2001, com o lançamento do livro A Morte da Fé
(2009), de Sam Harris. Moreira entende que depois do lançamento do livro de Harris,
houve um “movimento de persuasão e embate aberto contra as religiões (...) quando a
divulgação científica dos autores tornou-se ainda mais enviesada a um discurso
antirreligioso” (Moreira apud ARTIGAS e GIBERSON, 2014: 23).
O termo “neoateísmo”346 surge em 2006, quando a revista Wired publicou uma
matéria com o título Church of Nobelievers347. A mesma destaca Richard Dawkins, Sam
Harris e Daniel Dennett com os “novos ateístas”, homens que condenam não que a
religião em si é errada, mas que é maligna, e que a crença e o respeito à crença em Deus
são prejudiciais para a sociedade. De acordo com Clarissa de Franco (2014), o
“neoateísmo” não é um fenômeno que se restringe aos autores protagonistas do
documentário, “mas também ateus anônimos que passaram a se organizar por meio de

345
Ver: https://www.youtube.com/watch?v=9DKhc1pcDFM e https://www.youtube.com/watch?v=TaeJf-
Yia3A, acesso em 16 ago. 2017. Uma versão legendada por ser vista em
https://www.youtube.com/watch?v=h_VggV02fEc, acesso em 16 ago. 2017. Originalmente o
documentário foi publicado no site de Richard Dawkins http://richarddawkins.net/.
346
É importante notar que o termo “neoateísmo” ou “neoateu” não é utilizado pela ATEA e nem por outras
instituições e grupos ateístas da contemporaneidade, sendo este considerado e utilizado de forma pejorativa,
conforme atesta também Franco (2014, p.12).
347
Ver: https://www.wired.com/2006/11/atheism/, acesso em: 17 ago. 2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

777
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

estratégias políticas e midiáticas” (FRANCO, 2014: 13). Ainda segundo Franco, existe
um novo ateísmo no sentido que as ciências naturais são utilizadas com os principais
argumentos na refutação da existência de Deus. Por fim, a autora enumera cinco fatores
para se considerar que existe realmente um novo movimento ocorrendo:

1) Característica de movimento social; 2) estado secular que dá


proteção e força aos ateus, relegando os religiosos para o lugar da
obsolescência; 3) passagem do paradigma filosófico para o científico
na defesa do ateísmo, com penetração pelo senso comum; 4) cenário de
terrorismo religioso, que assustou o mundo com mais intensidade desde
11/09/01, e 5) internet, que possibilita a formação de redes e o
espraiamento das ideias ateístas, focando o público jovem (FRANCO,
2014: 13)

Retornando ao documentário proposto para análise, “Os Quatro Cavaleiros” é


dividido em duas partes, a “primeira hora” e a “segunda hora”. Nos dois blocos, os autores
pretendem discutir temas caros ao ateísmo. O debate tem início com a questão de os
autores serem acusados de agirem de forma ofensiva. Segundo os “cavaleiros”, a religião
parecer ter uma “imunidade natural às críticas”, como se existisse a necessidade de
respeitar a religiosidade como um assunto diferenciado nas relações humanas. A religião,
quando está em debate, não pode ser analisada como um assunto “normal”, por exemplo,
a política ou o futebol, pois os religiosos se ofendem com facilidade quando suas crenças
são contestadas e isso é aceito com naturalidade pela sociedade. Dennett observa que
diante dessa opção intransigente, em nada adianta tentar ser razoável nas críticas, pois de
qualquer maneira serão acusados de estar praticando um ato ofensivo.348
Para Harris, o que eles estão fazendo reunidos é quebrando tabus, acabando com
a proteção religiosa diante do julgamento racional. A religião e fé se baseiam na falta de
evidências, demonstrando assim o seu caráter arrogante. Contra esse pensamento, destaca
Dennett, só é possível argumentar demonstrando racionalmente que essa forma de se agir
não é válida349. A razão seria utilizada então como uma arma frente ao “obscurantismo”
religioso, que tem um discurso por si só irracional.

348
Entre 0’48” e 1’48”.
349
Entre 18’10” e 20’30”.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

778
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Segundo Dennett, tampouco a teologia “profissional” pode ser levada seriamente


em consideração. A teologia sofisticada é igual colecionar selos, um trabalho
especializado e que poucas pessoas praticam. Suas próprias religiões nem prestam muita
atenção ao que dizem, as pessoas comuns e pregadores não entendem, nem tem relação
com a vida cotidiana350. Essa discussão é complementada com a defesa da acusação de
que os “quatro cavaleiros” apenas baseiam suas denúncias contra as religiões analisando
casos de religiosos fundamentalistas ou interpretando as Escrituras de forma literal. De
acordo com Dawkins, os cristãos aparentemente têm “licença” para fazer afirmações
baseadas na Bíblia que qualquer análise racional rapidamente demonstraria que se trata
de uma ficção.Harris afirma que os religiosos que agem com “moderação” são assim
porque perderam parte da fé devido ao avanço da ciência ou do secularismo351(HARRIS,
entre 29’21” e 29’40”).
Um dos momentos mais importantes para o trabalho proposto, e que demonstra
bem a questão do uso da razão como norte para a busca da verdade, está na discussão
sobre a autoridade e validade da ciência. A ciência é válida porque se baseia em
evidências: houve um método onde ocorreram experiências, a aprovação de outros
profissionais da áreae uma intensa competitividade entre os próprios cientistas para
chegar em um resultado satisfatório. Não existe nada sequer parecido nos discursos
religiosos, que se baseiam na ausência de provas. É necessário acreditar na autoridade da
ciência para conseguir os avanços necessários para a humanidade, pois é ela quem é a
portadora do discurso racional352. Dennett afirma que os argumentos religiosos nem
sequer podem ser válidos para iniciar uma discussão racional, pois não se sustentam
racionalmente. O fato de estar em um livro dito sagrado não faz com que seja verdade, e
afirmar isso é um sinal claro da arrogância religiosa.
A “segunda hora” se inicia com o questionamento em duas frentes que são
importantes para entender um pouco mais sobre os autores. O primeiro questionamento
se coloca em definir qual é o seu público e o real objetivo dos autores com seus livros. O
outro questionamento é entender se realmente não se pode persuadir ninguém a abandonar

350
Entre 24’10” e 25’35”.
351
Entre 27’40” e 29’22”.
352
Entre 34’34” e 39’00”.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

779
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

suas crenças. A resposta de Harris, endossada pelos outros membros do debate, resume
de forma adequada a visão dos mesmos sobre a importância de seus livros para o público:

A julgar pelos e-mails que recebo acredito que podemos.


Constantemente recebo e-mails de pessoas que perderam a fé e que, em
consequência, foram persuadidas a abandoná-la. E o fator que
contribuiu para isso foi um de nossos livros ou algum outro processo de
racionalização ou a incompatibilidade do que eles sabiam ser a verdade
e o que o credo deles lhes dizia. Acredito que temos que destacar o fato
de que é possível mostrar as pessoas as contradições internas da fé
delas, ou as contradições entre sua fé e o que sabemos sobre o universo.
O processo pode levar minutos ou meses ou anos, mas terão que
renunciar as suas superstições diante às certezas (HARRIS, entre
58’28” e 59’10”)

Porém, é evidente que as mensagens nos livros desses autores não são destinados
para um público mais “fundamentalista” ou ortodoxo, ou até mesmo para um grupo de
pessoas que não tem dúvidas de sua fé. Os autores concordam que o conteúdo é destinado
para um grupo de pessoas que se permitem usar a razão para examinar criticamente a
religião e a natureza, para agnósticos ou indivíduos que tiveram experiências que os
afastaram da religião, mas não tem coragem de se declararem ateus.
Segundo Harris, existe um problema cultural para se falar e criticar a fé. Afirmar
que abdicou de sua fé é um tabu. Até mesmo um cientista com todas as ferramentas
necessárias ainda pode continuar sendo um religioso e ter fé, separando seu “lado
cientista” e “lado religioso”. O autor acredita que isso é possível devido ao tabu existente
ao se criticar uma religião, pois os crentes não estão acostumados a alguém desafiar sua
fé abertamente. Então, um cientista ou qualquer outra pessoa que viva de forma “racional”
pode ter sua fé inabalada, pois nunca foi desafiado de forma séria353. Dennett afirma de
maneira enfática:

Somos apenas o começo de uma nova onda de tentavas explicitas de


abalar a fé das pessoas (...) me parece que o obstáculo não está no
pressuposto de que não temos fatos ou argumentos(...) requer uma
enorme coragem para simplesmente declarar que abandonou tudo isso.
E se pudéssemos arranjar formas de ajudar as pessoas a encontrar essa

353
Entre 01’01’58’’ e 1’02’39’’.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

780
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

coragem(...) acredito que podemos (DENNETT, entre 01’03’25” e


01’04’35”)

A próxima questão do debate é sobre a questão de fé e se os autores gostariam de


viver em um mundo sem ela. Todos, exceto Hitchens afirmam que sim. O autor acredita
que a superstição não vai acabar, então parece um desgaste desnecessário lutar por um
mundo sem fé. Os outros membros da mesa discordam e depois de uma discussão intensa,
Dawkins vai além nas afirmações sobre o fim da fé, defendendo que o mundo ideal é
aquele em que as pessoas acreditam apenas em fatos com provas e evidências354. A
razão é enfatizada de maneira direta nos últimos instantes do documentário,
demonstrando como é central nos argumentos dos ateus contemporâneos, se aproximando
da concepção da razão expressa em Holbach:

“Nunca deixaria de afirmar que todas as religiões são igualmente falsas.


E, por este motivo obrigam as pessoas a preferir a fé e não a razão (...)
[a religião obriga] desfazer da única coisa que temos que nos faz
primatas superiores: a faculdade da razão” (HITCHENS, entre
1’47’14” e 1’47’43”).

A razão como um projeto: a formação da identidade ateísta pela ATEA

Conforme destacou Zygmunt Bauman (2000), a identidade nunca é algo


descoberto, mas sempre inventado (BAUMAN, 2000: 21). A formação de identidade e
sua relação com o “outro” é uma abordagem que merece ser destacada nesta reflexão.
Segundo Tadeu da Silva (2000), embora a identidade aparentemente seja definida por
“aquilo que se é”, na verdade ela é uma “extensa cadeia de negações, de expressões
negativas de identidade, de diferenças” (SILVA, 2000: 1). Assim sendo, a identidade não
existe de forma “natural”, sendo sempre cultural e socialmente produzida. Além disso, a
construção da identidade está sempre envolvida pela disputa de poder, pelo acesso aos
recursos simbólicos e materiais, mas nem sempre essa disputa é igual. O autor afirma que

354
Entre 01’07’48 e 1’16’40”.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

781
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“onde existe diferenciação – ou seja, identidade e diferença – aí está presente o poder. A


diferenciação é o processo central pelo qual a identidade e diferença são produzidas”
(SILVA, 2000: 3). Dessa maneira, ao afirmar uma identidade, o indivíduo está dizendo
tudo aquilo que ele não é. Segundo tal modelo, o significado de determinada coisa só
pode ser entendido em contraste com a diferença, pois não existe significado sem
oposição – a significação é sempre relacional e depende da diferença entre opostos
(HALL, 2000: 153-154).
A questão do “outro” que se coloca como formador da identidade da ATEA se
apoia, em primeiro lugar, na defesa da laicidade do Estado, mas também se destaca pela
defesa da utilização da razão e sua interpretação materialista no entendimento da
realidade. Não se trata de apenas criticar a religião pela sua suposta corrupção ou males
sociais, mas evidenciar uma possível irracionalidade de grupos religiosos, conforme
encontram meios em sua religião para cometer uma série de crimes – é constante o
compartilhamento na página do Facebook de casos de padres pedófilos, exorcismos que
terminaram em morte, assassinados em nome da fé, entre outros. A questão do apelo à
razão marca uma oposição entre “irracionalidade teísta” e “racionalidade teísta”, na
medida em que evidenciam os usos da religião e fé em atos moralmente questionáveis e
até mesmo criminosos. Assim sendo, o mote “Ateísmo: uma relação pessoal com a
realidade”, tem por objetivo destacar a utilização da razão como um norte para o
entendimento do mundo e da natureza, pautada principalmente na ciência, em especial
aos estudos de biologia e física. Cinco imagens vinculadas pela ATEA em sua página do
Facebook atestam o apelo à razão e à ciência:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

782
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Imagem 1

Imagem 2

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

783
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Imagem 3

Imagem 4

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

784
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Imagem 5

Analisando as imagens acima, é possível notar que existe uma afirmação da


identidade que se distancia dos teístas na medida em que utiliza a razão para ser o guia da
consciência e moral, ao mesmo tempo em que defende um Estado laico que, por excluir
a religião, pode tornar possível a igualdade entre teístas e ateístas. Assim sendo, um
Estado que não é laico contém em si mesmo uma irracionalidade inerente, conforme
diversas propagandas da ATEA que denunciam atos brutais de Estados não laicos. Dessa
forma, enquanto a associação age em âmbito jurídico para a defesa da laicidade e utiliza
seu site para publicar possíveis violações da laicidade, sua página no Facebook tem todo
tipo de propaganda ateísta, laica e antirreligiosa.

Considerações finais

Como foi possível observar, a ATEA tem como preocupação enfatizar a utilização
da razão, considerando Deus e a religiosidade como algo atrasado e irracional. A
consciência torna possível uma vida moral sem a divindade, com o medo sendo um
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

785
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

elemento importante para a religião. Nesse sentido, é possível verificar como as palavras
de Holbach sobre a religiosidade e o que é ser ateu encontram ecos nas propagandas e
ações da instituição.
Mobilizando um discurso antirreligioso, as vezes em conjunto com o apelo à
razão, conforme a situação, sua identidade vai se moldando e modificando segundo as
circunstâncias, porém já é possível identificar tanto nos posicionamentos da entidade
quanto de seus seguidores o início de uma identidade: a de um sujeito antirreligioso,
defensor da laicidade do Estado onde a religião precisa ser excluída do espaço público,
onde a razão é o norte de suas reflexões. Essa razão está fundamentada, principalmente,
na utilização da ciência como explicação dos fenômenos da natureza, adotando assim uma
perspectiva muitas vezes materialista.
Essa perspectiva tem uma influência direta da concepção de razão elencada acima,
examinada no documentário proposto. É possível notar um discurso antirreligioso
poderoso nos argumentos dos “cavaleiros”, bem como a oposição flagrante da
“irracionalidade teísta” e a “racionalidade ateísta”. Essa racionalidade deriva, segundo os
autores, da observação dos fatos utilizando a razão, levando sempre em consideração o
discurso científico, interpretado como o discurso racional por excelência da modernidade.
O Islã, os milagres, o fundamentalismo ou até mesmo os religiosos considerados
“moderados” são alvos de acusações de irracionalidade, pois, de acordo com os autores,
a razão e a ciência são o extremo oposto da fé e da religiosidade: fé e religião, se
analisados pelo prisma científico e racional, não se sustentam e são excluídos das
explicações de mundo que devem ser consideradas modernas e sensatas.
Dessa maneira, embora longe de afirmar que exista uma forte identidade ateísta
no Brasil, vê-se por meio da ATEA uma tentativa de separação entre “eu” e os “outros”,
onde o sujeito ateu deve estar atento aos passos das religiões no espaço público. Tal
perspectiva é possível ser identificada tanto nos frequentadores dos fóruns e discussões
da ATEA, quanto em blogs e sites ateus de uma forma geral, em uma blogsfera ateísta
em constante expansão. Esse padrão definido pela ATEA, certamente inspirado em
experiências europeias e norte-americanas, parece ser definidor importante do que é “ser
ateu” no Brasil atual.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

786
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Documentação

HOLBACH, Barão de. El buen sentido, o sea las ideas naturales opuestas a las
sobrenaturales. Madri: 1821.
OS QUATRO CAVALEIROS. Richard Dawkins. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=h_VggV02fEc. Acesso em: 18 ago. 2017.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed., 2000

CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. Campinas: Unicamp, 1994.

DAWKINS, Richard. Deus, um Delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

FRANCO, Clarissa de. O ateísmo de Richard Dawkins nas fronteiras da ciência


evolucionista e do senso comum. Tese de Doutorado, Ciências da Religião, PUC/SP,
2014.

FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: A Religião de Rabelais.


São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In. SILVA, Tomaz Tadeu de (org.).
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.

MARTIN, Michael. Ateísmo e Religião. IN: Um Mundo sem Deus. Ensaios sobre o
Ateísmo. Lisboa: Edições 70, 2010. Coleção Saber da Filosofia 70, nº 39.

MINOIS, Georges. História do Ateísmo. UNESP: SP, 2015.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

787
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MOREIRA, Leonardo. Ainda encantados? Neoateísmo e desencantamento do mundo.


Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC, 2014.

PIVA, Paulo Jonas de Lima. O Ateu Virtuoso: materialismo e moral em Diderot. São
Paulo: Discurso Editorial: Fapesp, 2003.

SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: Identidade
e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
THROWER, James. Breve história do ateísmo ocidental. Edições 70: Lisboa, 1971.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

788
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Crônicas Históricas de Fernando de Alva Ixtlilxóchitl: a escrita que evidencia os


direitos políticos das elites indígenas de Texcoco

DAYANE MENEZES DE OLIVEIRA PEREIRA


Programa de Pós-Graduação em História- UFRRJ

Os contextos sociais e políticos do século XV ao XVIII na Nova foram marcados


pelas constantes trocas culturais entre os indígenas e os espanhóis. Estes contatos
produziram adaptações culturais e modificou as identidades dos diferentes grupos sociais
ao logo de todo o período de colonização do México.
A organização do sistema colonial na América Espanhola foi se constituindo
através do sistema de Cabildos, da evangelização Católica direcionada ás populações
indígenas (GIBSON, 1991: 9) e também da utilização de algumas estruturas sociais,
políticas e econômicas pré-colombinas, como o uso da organização tributária indígena
para reger o sistema de arrecadação nas encomendas e o ingresso das elites indígenas 355
em alguns cargos ou funções dentro da estrutura administrativa da colônia, como o cargo
de intérprete do Juizado dos índios. Estas funções exercidas pelos indígenas dentro da
estrutura administrativa da colônia espanhola e seu importante papel na implantação do
sistema colonial permitiram ás elites indígenas continuarem com seus privilégios sociais
e políticos frente aqueles indivíduos considerados comuns, os macehualtin (LÓPEZ
AUSTIN; LÓPEZ LUJÁN, 1996: 219-220)
Com estes privilégios as elites indígenas poderiam receber títulos e honrarias
espanholas, que seriam adaptadas ás tradicionais insígnias pré-colombinas. Assim, essas
elites indígenas estariam evidenciando, de uma maneira reformulada, o poder de sua
linhagem. No entanto, essa condição de privilégios não perdurou, pois a Coroa Espanhola,
a partir do final do século XVI e início do XVII, empreenderam uma serie de medidas
administrativas que diminuiria o poder das elites indígenas (CARRASCO, 2012: 179).

355
Entende-se que elites são aqueles indivíduos que ocupam, por gerações, uma determinada posição social
e política na sociedade colonial. As elites exercem funções importantes para o funcionamento
administrativos das coloniais e partir desta posição, essas constroem seus discursos particulares. (XAVIER,
Ângela Barreto; SANTOS, Catarina Madeira. Cultura intelectual das elites coloniais. Cultura revista de
História e Teoria das idéias, Universidade Nova de Lisboa, Portugal, v. 24: 9-33, 2007: 11).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

789
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As transformações da postura da Coroa Espanhola perante as elites indígenas se


refletiram nos códices e crônicas produzidas pelos nativos, os quais poderiam servir
justamente como outras ações, como estratégias de afirmação de seus direitos sociais e
políticos, tendo como foco as histórias de seus antepassados. Fernando de Alva
Ixtlilxóchitl foi um destes autores indígenas. Ixtlilxóchitl elaborou um conjunto de
diferentes textos sobre a história de sua etnia, os acolhuas356 de Texcoco357, que foram
congregados em dois volumes conhecidos como “Obras Históricas”, esses dois volumes
foram publicados respectivamente em 1975 e 1985. Os textos contidos nas “Obras
Históricas” trazem várias referenciais ás diferenciações e privilégios sociais e políticos
das elites indígenas de Texcoco frente aos demais membros da sociedade indígena.
É importante mencionar que as narrativas que destacam esse poder social e político
das elites indígenas, relatadas nos textos de Ixtlilxóchitl, foram construídas a partir de
valores pertencentes á cultura ocidental, tais como o uso das expressões “idólatra” e
“tirano” (IXTLILXÓCHITL, 1975: 349-441). Esta característica peculiar da escrita de
Ixtlilxóchitl na reconstrução da história de seus antepassados permitiu ao cronista
evidenciar ainda mais o poder das elites indígena da etnia a qual pertence.
Tendo em vista essas ponderações, o intuito desta pesquisa é observar, nas
estruturas narrativas dos textos de Fernando de Alva Ixtlilxóchitl, de que forma alguns
elementos, possivelmente originários da cultura ocidental, foram adaptados ás histórias
tradicionais relatadas pelo autor para evidenciar o poder social e político dos descendentes
de sua etnia, os acolhuas de Texcoco, em meio às mudanças administrativas do final do
século XVI e princípio do XVII na Nova Espanha.
Para embasar essa problemática, essa pesquisa utiliza como metodologia as análises
das estruturas narrativas dos textos, a partir dos quais foram destacados os principais
valores e qualidades ocidentais presente nos textos de Fernando de Alva Ixtlilxóchitl.

356
Os acolhuas eram da região oriental do centro mesoamericano. (SANTAMARINA NOVILLO, Carlos.
El Acolhuacan bajo dominio tepaneca. Un capítulo de la expansión de Azcapotzalco. Anales del Museo
de América, Madrid, n. 14: 9-26, 2006: 10-11).
357
Texcoco era uma das várias cidades do vale do México. (MONTORO, Gláucia Cristiani. Dos Livros
Adivinhatórios aos Códices Coloniais: uma leitura de representações pictográficas mesoamericanas.
2001. 144f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, 2001: 10).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

790
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Além disto, serão destacadas quais as peculiaridades do contexto social e cultural


vivenciado por Ixtlilxóchitl.
Outro elemento de suma relevância para a estrutura desta pesquisa e que esta se
fundamenta em teóricos que compreendem as culturas como não sendo fixas, ou seja,
podem ser modificadas (SAHLINS, 1999: 7). Desta maneira, a cultura indígena poderia
transformar e adaptar suas operações antigas em diálogo com o novo grupo que detinha
o poder político (NAVARRETE LINARES, 1998: 67-68). Assim, a cultura poderia ser
recriada para negociar ou colaborar com os dispositivos sociais, políticos e econômicos
do sistema colonial (ALMEIDA, 2010: 12). Ao agregar novas sínteses culturais, os
indígenas também estariam adaptando suas identidades, já que estas são mutáveis e
construídas conforme as interações entre os grupos (NAVARRETE LINARES, 2004:
24).

Fernando de Alva Ixtlilxóchitl- um cronista de origem indígena sob o contexto


colonial na Nova Espanha

Esta pesquisa identificou que Fernando de Alva Ixtlilxóchitl era o segundo filho da
mestiça Ana Cortés- descendente da linhagem governante de Texcoco- e do espanhol Juan
de Navas Pérez Peraleda- e que, por intermédio de sua bisavó materna, conseguiu acesso
ao Cacicazgo, ou seja, o reconhecimento de que pertence á linhagem da elite indígena de
Texcoco (ANDERS; JANSEN; GARCÍA, 1996: 8).
O Cacicazgo conferido na Nova Espanha pelas elites indígenas poderia ser
adquirido através de uma declaração de testemunho afirmado por autoridades locais, na
qual, os herdeiros das elites indígenas poderiam adquirir e legitimar sua descendência
(BORNEMANN MENEGUS, 2008: 16). Por intermédio deste documento, os indígenas
poderiam adquirir privilégios, títulos espanhóis, terem direito a terras e também não pagar
tributos.
Ao abraçar a posse dos direitos dos herdeiros indígenas- como no caso do
Cacicazgo- a Coroa Espanhola pretendia, no início do processo de colonização, ter o
auxilio das elites indígenas na evangelização Católica, administração e controle das
encomendas indígenas. No entanto, esta decisão da Coroa Espanhola, de habilitar a
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

791
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

continuidade das hierarquias étnicas entre os grupos indígenas, não perdurou, pois no
final do século XVI e princípio do XVII os espanhóis começariam a reordenar suas
relações com os indígenas.
Esta mudança de posicionamento dos espanhóis sobre o poder e privilégios das
elites indígenas ocorreu devido ao crescimento, cada vez mais rápido, das instituições
hispânicas na América, à percepção de que não precisariam mais do apoio das elites
indígenas como no início e também por acreditarem que as elites indígenas já tinham
adquirido títulos e privilégios demais para si (MENEGUS, 1991: 32).
A transformação do pensamento dos espanhóis sobre a situação política e social das
elites indígenas na América Espanhola resultou na diminuição dos direitos e privilégios
das elites indígenas e também na incorporação da tributação de todos os membros da
população indígena, ou seja, até as elites indígenas teriam que pagar tributos á Coroa
Espanhola (MENEGUS, 1991: 34).
No entanto, apesar deste cenário de diminuição do poder indígena, as elites
indígenas procurariam na produção de códices e crônicas, uma maneira de legitimar sua
descendência, seus direitos e privilégios. Um exemplo dessas produções são as crônicas
escritas por Fernando de Alva Ixtlilxóchitl, que foram elaboradas neste contexto histórico
e demonstram a preocupação do cronista em evidenciar e engrandecer sua descendência
indígena e, por seguinte, mostrar seu valor em um contexto de desvalorização.
Para solidificar esta origem indígena, Fernando de Alva Ixtlilxóchitl estabelece em
suas crônicas algumas relações genealógicas que permitem ao cronista relacionar e
configurar as gerações governantes que estavam vinculadas a sua etnia, os acolhuas de
Texcoco. Tendo isto em perspectiva, Ixtlilxóchitl constrói estruturas genealógicas que
destacam as etnias Toltecas358 e Chichimecas359, as quais, segundo o próprio cronista,
configuraram a descendência das elites indígena de Texcoco: “ (...) Los reyes de Tezcuco

358
Os toltecas eram uma população indígena que vivia no centro do México. (LÉON-PORTILLA, Miguel.
Religión de los Nicaraos. Análisis y comparación de tradiciones culturales nahuas. Estudios de cultura
náhuatl, UNAM, México, v. 10, n. 1: 11-112, 1972: 12).
359
Os chichimecas residiam no centro do México durante o período pré-hispânico e eram divididos em dois
grupos: os chichimecas nômades que não possuíam um governante e os que haviam criado laços de
parentesco com os toltecas, organizados por um governo central (LÉON-PORTILLA, Miguel. El proceso
de aculturación de los chichimecas de Xólotl. Estudios de cultura náhuatl, México, v. 6, n.1: 59-86, 1967:
60-61).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

792
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

por línea recta de la casa y descendencia por legítima sucesión de la casa de Xólotl,
poblador y monarca de esta tierra, y de la casa del gran Topiltzin monarca tulteca”
(IXTLILXÓCHITL, 1975: 305).
Ao descrever a constituição das relações genealógicas em suas crônicas, Fernando
de Alva Ixtlilxóchitl, pretende demonstrar a origem de prestígios da etnia á qual pertence,
assim, reafirmando o poder e status alcançados pelas elites indígenas na cidade Texcoco
no final do período pré-colombiano e, por seguinte, por herança preservar e o direito ao
poder das elites indígenas acolhua, incluindo o próprio cronista, durante o período
colonial.

O reflexo da educação cristã de Ixlilxóchitl sobre suas crônicas

O acesso ao Cacicazgo possibilitou ao cronista estudar no colégio Imperial de Santa


Cruz de Tlateloco, um das principais escolas comandadas por Franciscanos na Nova
Espanha, que ensinava a doutrina católica e a língua espanhola para os indígenas
(NAVARRETE LINARES, 2002: 101-102). O ensinamento adquirido neste colégio
serviu de base para que mais adiante Ixtlilxóchitl se tronasse Bacharel em Teologia
(CARRERA STAMPA, 1971: 19).
Durante o século XVI e XVII, os franciscanos preocupados com a disseminação do
paganismo na América Espanhola, elaboraram um esquema de educação que estaria
direcionada aos filhos das elites indígenas. Este sistema poderia ser dividido em três
etapas: 1) ensinar a leitura e escrita do latim; 2) realizar a aprendizagem dos dogmas
cristãos e dos ritos católicos; 3) por fim, os membros das elites indígenas teriam acesso
ao ingresso no ensino “superior” (GONZALBO, 2010: 42-44).
Sobre o ensino “superior” na Nova Espanha, os descendentes das elites indígenas
tinham a oportunidade de estudar várias disciplinas, como filosofia e teologia,
aprimorando o domínio do Latim e da retórica (GONZALBO, 1993: 335). Por intermédio
do aprendizado adquirido durante as três etapas mencionadas, os herdeiros das elites
indígenas poderiam receber títulos, com o de Bacharel. O aprofundamento nos estudos
auxiliou na constituição intelectual das elites indígenas, pois muitos cronistas utilizariam
os elementos narrativos europeus para elaborarem suas obras.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

793
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O cronista Fernando de Alva Ixtlilxóchitl, era um desses cronistas indígenas que


elaboraram seus textos através da associação com a cultura europeia. Nessa direção, as
crônicas de Ixtlilxóchitl apresentam, em suas estruturais textuais, uma cronologia cristã a
partir da encarnação de Cristo. Segundo Ixtlilxóchit: (...) las historias referidas (...) los
anales, sucedió lo suso referido algunos años después de la encarnación de Cristo señor
nuestro(...)” (IXTLILXÓCHITL,1975: 8)
O uso da cronologia cristã nos de textos de Fernando de Alva Ixtlilxóchitl, configura
em suas narrativas um tempo progressivo que é bastante diferente da perspectiva de
contagem de tempo que os indígenas utilizam nos períodos pré-hispânicos, pautados
numa cronologia muitas vezes cíclica e até anacrônica (SANTOS, 2009: 90-91.).
Esta cronologia cristã é um dos muitos elementos ocidentais encontrados nas
crônicas de Ixtlilxóchitl, pois, ao evidenciar as atitudes e o poder das elites indígenas de
Texcoco em relação ás demais etnias do Vale do México, o cronista fez uso de alguns
valores europeus, tais como: 1) Império- relacionado com aquele governante que tem
poder sobre uma grande quantidade de altepeme/ cidades (IXTLILXÓCHITL, 1975: 450-
451); 2) Idolatria- recorrente nos textos de Ixtlilxóchitl, sendo associado á adoração aos
deuses pré-hispânicos- “Tuvo por falsos a todos los dioses que adoraban los de esta
tierra”- (IXTLILXÓCHITL, 1975: 136); 3) Pecado- a descrição de pecados é associada
a alguns atos considerados feios e abomináveis para o autor- “(...) haciendo ellos cosas
con mal arte(...)”-( IXTLILXÓCHITL, 1975: 277); 4) Monarquia- a nomeclatura que
aparece nas histórias associada ao governante que exerce sua função –“como cabeza de
todos” (IXTLILXÓCHITL, 1975: 334); 5) Tirania- governante que age com soberba e
que realizaram ações consideradas como traidoras –“ tirano traidor”
(IXTLILXÓCHITL, 1975: 332).
O uso da cronologia Cristã e destes valores europeus citados são reflexos da
educação hispânica de Fernando de Alva Ixtlilxóchitl, os quais fazem com que o cronista
não aborde alguns elementos da cultura indígena, como a questão da adoração de vários
dos deuses indígenas (FLORESCANO, 1997: 57), aproximando se da cultura hispânica,
o que resultaria numa adaptação cultural que associa o passado e o presente do cronista
ao mesmo tempo.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

794
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Também é possível observar nos textos de Ixtlilxóchitl o uso da palavra “virtude”.


Esta palavra é recorrente nos textos, sendo associada a ações importantes para se tronar
um bom governante, como ter habilidades de guerra, sabedoria, persistência, misericórdia
com os pobres e ser justo.
Algumas destas características podem estar relacionadas á aprendizagem Ocidental
que o cronista recebeu durante o seu processo educacional, pois ter ações de misericórdia,
com os mais necessitados é um aspecto importante da doutrina Cristã (BORDIN, 2013:
135-137). Assim, podemos perceber que ao fazer uso de algumas ações cristãs, Fernando
de Alva Ixtlilxóchitl confere qualidades positivas, segundo o contexto cristão, a sua
linhagem que é descrita como aqueles que teriam as condutas mais adequadas para
receber a cultura ocidental na Nova Espanha.

Conclusão

O cronista Fernando de Alva Ixtlilxóchitl elaborou uma escrita bastante complexa


que o possibilitou afirmar e legitimar os direitos e privilégios da sua etnia. Essas
legitimação e afirmação foram se instituindo através de um discurso que contempla as
histórias tradicionais da etnia de Texcoco através das qualidades e valores considerados
importantes na cultura Ocidental, como o uso da cronologia cristã e de palavras como
tirano e idolatras.
O uso de alguns elementos da cultura europeia nas crônicas de Fernando de Alva
Ixtlilxóchitl o possibilitou instrumentar argumentos em defesa dos seus direitos e
privilégios adquiridos através de Cacicazgo, na qual, ao constituir as histórias tradicionais
de sua etnia conforme o modelo de escrita europeia, o cronista reforçar o status social e
político que lhe foi herdado pelos seus ancestrais diante daqueles que passariam a ter o
domínio sobre as questões administrativas na Nova Espanha, no caso, a Coroa Espanhola.
Por fim, os textos produzidos por Ixtlilxóchitl que evidenciam o poder social e
político de seus antepassados, seriam bastante pertinentes perante os contextos de
mudanças ou transformações administrativas na colônia espanhola no final do século XVI
e XVII, quando as elites indígenas foram tendo seus direitos sociais e políticos
diminuídos.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

795
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Referências bibliográficas

Fontes primárias

IXTLILXÓCHITL, Fernando de Alva. 3.ed. v.I, México: UNAM-IIH, 1975.

IXTLILXÓCHITL, Fernando de Alva. 4. ed. v.II, México: UNAM-IIH, 1985.

Teses, artigos e dissertações

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios aldeados no Rio de Janeiro


Colonial- Novos súditos Cristãos do Império Português. 2010. 351 f. Tese (Doutorado
em Ciências Sociais)- Instituto de Filosofia e Ciência Humanas, Unicamp, São Paulo,
2010.

ANDERS, Ferdinand d; JANSEN, Maarten; GARCÍA, Luis Reyes; et. al. ( org.) Códice
Ixtlilxochitl. Apuntaciones y pinturas de un historiador. Estudio de un documento
colonial que trata del calendario náhuatl.México: Fondo de Cultura Económica,
1996BAUDOT, Georges. México y los albores del discurso colonial. México: Pátria,
1996.

BORDIN, Reginaldo Aliçandro. Hernán Cortés e os franciscanos: a educação e a


dominação espiritual do México. 2013. 199f. Dissertação (Doutorado em História da
Educação)- de pós-graduação em educação da áera de concentração: história da educação,
Universidade Estadual de Maringá, Paraná, 2013.

BORNEMANN MENEGUS, Margarita. El Cacicazgo en Nueva España. In:


BORNEMANN MENEGUS, Margarita; SALVADOR AGUIERRA, Rodolfo; et al. El
Cacicazgo en Nueva España y Filipinas. México:Plaza y Valdés, 2008.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

796
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CARRASCO, Pedro. La transformación de la cultura indígena durante la colonia.


State University of New York at Stony Brook. In: História Mexicana, México, p. 175-
237, mai. /mar., 2012.

CARRERA STAMPA, Manuel. Historiadores indígenas y mestizos novohispanos. Siglo


XVI- XVII. Revista Española de Antropología Americana, Madrid, v. 6, n. 1, p. 205-
243, 1971.

FLORESCANO, Enrique. Sobre la naturaleza de los dioses de Mesoamérica. Estudios de


Cultura Náhuatl- UNAM, México, n.27, p.41-61, 1997.

GIBSON, Charles. Los Aztecas bajo el dominio español (1519-1810). México: Siglo
XXI, 1991.

GONZALBO, Pilar. La educación en América y Filipinas. In: DELGADO CRIADO,


Buenaventura (org.). História de la educación en España y América: la educación en
la España Moderna (siglo XVI-XVIII). Vol. II. Madrid: Morata, 1993.

________. El virreinato y el nuevo orden. In: TANCK DE ESTRADA, Dorothy (coord.).


La educación en México. México: El colegio de México, 2010.

LÉON-PORTILLA, Miguel. El proceso de aculturación de los chichimecas de Xólotl.


Estudios de cultura náhuatl, México, v. 6, n.1, p. 59-86, 1967.

________. Religión de los Nicaraos. Análisis y comparación de tradiciones culturales


nahuas. Estudios de cultura náhuatl, UNAM, México, v. 10, n. 1, p. 11-112, 1972.

LÓPEZ AUSTIN, Alfredo; LÓPEZ LUJÁN, Leonardo. El pasado indígena. México:


Fondo de Cultura Económica, 1996.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

797
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MENEGUS, Margarita. La destrucción del señorío indígena y la formación de la


república de indios en Nueva España. In: BONILA, Heraclio. El sistema colonial en la
América española. Barcelona: Crítica, 1991.

MONTORO, Gláucia Cristiani. Dos Livros Adivinhatórios aos Códices Coloniais: uma
leitura de representações pictográficas mesoamericanas. 2001. 144f. Dissertação
(Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual
de Campinas, Campinas, São Paulo, 2001.

NAVARRETE LINARES, Federico. Los libros quemados y los nuevos libros: Paradojas
de la autenticidad en la tradición mesoamericana. In: DALLAL, Alberto. La abolición
del arte. México: UNAM, 1998.

__________. La Sociedad Indígena En La Obra de Sahagún. In: (Coord.).En bernardino


de Sahagún Quinientos años de presencia. México: instituto de investigações
históricas: universidade nacional autónoma del México. v. 1, n.1, p.95-116, 2002.

________________. Las relaciones interétnicas en México. México: Universidad


Autónoma De México, 2004.

SAHLINS, Marshall. Ilhas da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

SANTAMARINA NOVILLO, Carlos. El Acolhuacan bajo dominio tepaneca. Un


capítulo de la expansión de Azcapotzalco. Anales del Museo de América, Madrid, n. 14,
p. 9-26, 2006.

SANTOS, Eduardo Natalino. Além do retorno: uma introdução ás concepções de tempo


dos indígenas da Mesoamérica. Revista USP: Universidade de São Paulo, v.1, n.81, p.
82-93, 2009.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

798
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

XAVIER, Ângela Barreto; SANTOS, Catarina Madeira. Cultura intelectual das elites
coloniais. Cultura revista de História e Teoria das Ideias, Universidade Nova de Lisboa,
Portugal, v. 24, p. 9-33, 2007.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

799
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Construindo a cartografia sul-americana das leishmanioses: circulação de saberes


e clivagens em perspectiva transnacional

DENIS GUEDES JOGAS JUNIOR


PPGHCS/COC-FIOCRUZ
Bolsista FAPERJ

Depois de um longo tempo dos médicos americanos relatarem a


existência, em certas regiões da América do Sul, de doenças
caracterizadas por ulcerações de pele e de mucosas, mais uma grande
confusão reinou no capítulo das doenças ulcerosas, tanto que o
diagnóstico não pode se basear solidamente sobre o conhecimento do
agente patogênico (Laveran, 1917: 468)

A epígrafe transcrita acima é o parágrafo inicial do capítulo sobre a “leishmaniose


américaine de la peau et des muqueuses”, do livro escrito pelo pesquisador francês
Alphonse Laveran (1845 – 1922) intitulado Leishmanioses. Kala-Azar, Bouton d’Orient,
Leishmaniose Americaine”, de 1917. De acordo com o autor, com mais de 500 páginas,
esse livro teve por objetivo reunir o conhecimento produzidos nos últimos 14 anos sobre
esse grupo de doença. Ao sintetizar esses conhecimentos em um grande manual, Laveran
fechava (mesmo que provisoriamente) uma trajetória de pesquisa da qual foi um dos
principais interlocutores e protagonista a nível global.
Criada em 1906 devido à reconfiguração advinda pelos paradigmas da
microbiologia e medicina tropical, a denominação “leishmanioses” foi uma solução
encontrada para enquadrar duas moléstias que apesar de terem manifestações clínicas
extremamente diferenciadas, apresentam como identidade protozoários patogênicos
morfologicamente idênticos, o que contrariava o postulado pasteuriano de agente único e
singular de cada moléstia. De um lado havia o calazar uma moléstia endêmica em
determinadas regiões do subcontinente indiano que, com suas manifestações viscerais
ocasionava altíssimas taxas de mortalidade nas populações locais. De outro, a branda
manifestação cutânea conhecida como botão do Oriente, endêmica em regiões do norte
da África e na Ásia e considerado um souvenir quase que obrigatório nas estadias dos
europeus dos séculos nesta região (Killing-Kendrick, 2010: 4).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

800
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Em 1903, em meio à torrente de descobertas de novos micro-organismos


patogênicos, característico do início do século XX, foram identificados, em processos
completamente diferenciados, os protozoários responsáveis pelo calazar e pelo botão do
Oriente. Por um lado, os médicos William Leishman e Charles Donovan trabalhando em
possessões britânicas na Índia, publicaram diferentes e complementares artigos no British
Medical Journal afirmando que teriam encontrado o micro-organismo causador do
calazar. Essa descoberta foi, ainda neste mesmo ano, confirmada por Laveran e Mesnil
que propuseram homenagear a dupla inglesa, denominando Leishmania-Donovani, o
protozoário responsável por essa doença (Leishman, 1903; Donovan, 1903).
Por outro lado, trabalhando em Boston, o médico norte-americano James Homer
Wright atendeu ao caso de uma menina armênia recém-emigrada que apresentava uma
lesão de doze milímetros no lado esquerdo do rosto que diagnosticou como botão de
Alepo. Após a realização de exames laboratoriais, Wright encontrou um parasito que
julgou ser o seu patógeno e denominou-o Helcosoma tropicum (Wright, 1903). É
interessante destacar que até esse momento essas doenças ainda eram consideradas
completamente diferenciadas, ou seja, não guardavam nenhuma relação de identidade.
Foi somente no ano seguinte, em 1904, que começou a ser desenhada a
aproximação entre essas duas moléstias. De início, o próprio Leishman publicou um novo
artigo no mesmo periódico que havia relatado suas conclusões do ano anterior afirmando
que o micro-organismo visto por ele e Donovan era similar ao identificado por Wright no
botão do Oriente, mas que a exata relação entre essas duas doenças ainda permanecia
incerta (Leishman, 1904). Dentre as muitas propostas advindas nos anos seguintes para a
denominação e a classificação desses protozoários, ganhou a do pesquisador alemão Max
Luhe que, em 1906, propôs renomear o patógeno do botão do Oriente para Leishmania
tropica e assim criar o grupo de doenças denominado leishmanioses.
As leishmanioses, então, passaram a constituir importante objeto de pesquisa para
os médicos ligados ao campo emergente da medicina tropical. Afinal, como dois
protozoários morfologicamente idênticos podiam causar doenças tão distintas? As
principais suspeitas recaíam sobre ciclos biológicos possivelmente diferenciados no
organismo do hospedeiro intermediário. Mas essa hipótese remetia a outra incógnita:
existia um hospedeiro intermediário? Se sim, seriam moscas, mosquitos, percevejos ou
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

801
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pulgas? Outra hipótese relacionava leishmaniose cutânea (botão do Oriente) e visceral


(calazar) aos diferentes ambientes e climas que emolduravam a relação entre patógeno e
hospedeiro humano. Mas como comprovar a relação entre ambiente e as distintas
manifestações clínicas da Leishmania? Essas eram algumas das questões que norteavam
as pesquisas sobre as leishmanioses no começo do século XX, fazendo delas um tópico
dos mais intrigantes e pujantes da medicina tropical (Jogas Junior, 2014: 41).
Em Paris, por iniciativa pessoal de Alphonse Laveran, foi fundada em 1908 a
Société de Pathologie Exotique, como seção especial do Instituto Pasteur de Paris
destinada a interligar melhor os resultados obtidos nos campos da microbiologia,
protozoologia e entomologia médica (Caponi, 2002, p. 128). Além de cultivar fortes
ligações com as filiais do Instituto Pasteur fundadas em regiões coloniais francesas
Laveran e o zoólogo Felix Mesnil, cofundador dessa sociedade, traçaram como programa
aglutinar um verdadeiro exército de pesquisadores, na condição de sócios
correspondentes, em regiões consideradas estratégicas para o desenvolvimento da
medicina tropical, abrindo-lhes a possibilidade de publicarem seus trabalhos originais no
Bulletin de la Société de Pathologie Exotique (BSPE)que se transformaria uma das
principais caixas de ressonâncias sobre os estudos das leishmanioses.
O bacteriologista francês Charles Nicolle, que havia assumido a direção do
Instituto Pasteur de Tunis, em 1903, foi um assíduo colaborador e passou a se dedicar
com grande entusiasmo ao estudo das leishmanioses, dando especial atenção ao
comportamento do protozoário responsável pelo kala-azar em culturas e a seu
comportamento na região mediterrânea, onde infectava preferencialmente crianças e
também cães, levando-o, em 1908, a particularizar o kala-azar infantil e a caracterizar o
referido mamífero como reservatório primário do parasita e origem da moléstia.
Em 1909, o médico inglês Patrick Manson, por vezes considerado o pai da
moderna medicina tropical, lançou a terceira edição de Tropical Diseases, na qual
substituiu a tradicional contracapa que vinha estampando os agentes etiológicos da
malária, desde 1898, por uma gravura que demonstrava a similaridade morfológica
existente entre os protozoários do kala-azar e do botão do Oriente. Tentando encontrar
uma explicação por que agentes causais tão similares produziam doenças absolutamente
distintas, Manson admitiu que, provavelmente, haveria duas formas (ainda
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

802
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

desconhecidas) de transmissões vetoriais: a direta, na qual uma mosca ou um inseto


sugador de sangue agiria como vetor mecânico, e a indireta, quando o parasito se
desenvolveria no interior de um hospedeiro intermediário, explicando assim as diferentes
manifestações clínicas produzidas por protozoários morfologicamente semelhantes
(Manson, 1909: 591).
Foi neste mesmo ano de 1909 que começaram a aparecer os primeiros relatos
parasitológicos da existência de manifestações de leishmanioses no continente sul-
americano, aumentando consideravelmente a sua abrangência territorial e dando inicio a
uma nova fase de pesquisas sobre esse grupo de moléstia. Com manifestações e cursos
clínicos extremamente diferenciados quando comparados àqueles encontrados na África
e na Ásia, as leishmanioses da América do Sul proporcionariam aos cientistas que
atuavam nesta região um tema de pesquisa que oferecia fortes e duradouras oportunidades
de diálogos com pesquisadores de outros continentes sobre um candente objeto de
pesquisa próprio das agendas dos grandes centros de medicina tropical europeia, ao
mesmo tempo em que lhes dava chances reais de se singularizarem naquela rede de
circulação de conhecimentos com contribuições originais sobre o novo grupo de
moléstias.
Adolpho Lindemberg do Instituto Bacteriológico de São Paulo e Antoni Carini e
Ulisses Paranhos do Instituto Pasteur de São Paulo foram os primeiros a diagnosticar
parasitologicamente casos de leishmanioses no continente sul-americano, durante uma
epidemia de ulceras cutâneas e outras mucosas ocorrida durante as obras de construção
da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, em Bauru, no interior paulistano.
Essa epidemia foi tão violenta que atrapalhou o andamento das obras de
construção desta ferrovia e lotou as enfermarias do hospital da Santa Casa de São Paulo
localizadas a mais de 400 quilômetros. Mesmo estranhando as manifestações de mucosas,
não conhecidas nos casos de leishmanioses cutâneas encontradas na África e Ásia, ambos
os artigos tinham por objetivo central comprovar a existência do protozoário denominado
Leishmania tropica (agente causal do botão do Oriente) na América do Sul. (Lindenberg,
1903; Carini e Paranhos, 1909)
De acordo com o dermatologista Eduardo Rabello, a identificação das úlceras de
Bauru a tal grupo de doenças foi “importantíssima” não só por adicionar novos territórios
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

803
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

à cartografia global das leishmanioses, como também no que dizia respeito ao


conhecimento da nosologia das leishmanias, pois era a primeira vez que se detectavam
parasitas desse gênero em úlceras mucosas, o que abria caminho para que lesões
semelhantes fossem examinadas como possíveis manifestações clínicas de leishmanioses
em outros pontos do continente sul-americano (Rabello, 1925: 9 - 10).
Ainda neste mesmo ano, 1909, os pesquisadores Louis Nattan-Larrier e Ferdinand
Heckenroth, da Société de Pathologie Exotique, receberam das autoridades coloniais
francesas na Guiana fragmentos de uma úlcera mucocutânea extraída de uma moléstia
popularmente conhecida como Pian-Bois de um paciente francês que residia na colônia
americana havia aproximadamente 10 anos. Após realização de exames parasitológicos,
e sem deixar de estranhar as manifestações clínicas relatadas, essa moléstia foi
diagnosticada como uma manifestação diferenciada de leishmaniose, levando Nattan-
Larrier a ponderar em suas conclusões que, apesar de ter ficado comprovado a existência
de protozoários do gênero Leishmania na Guiana, novas pesquisas seriam necessárias
“antes que se possa, de uma parte, especificar completamente este parasita e, de outra
parte, saber qual é a importância do seu papel patogênico nas diversas úlceras cutâneas
observadas na Guiana" (Nattan-Larrier et al, 1909: 590 - 591).
A partir de então, as manifestações de leishmanioses na América do Sul passaram
a ser um tema de pesquisa constantemente estudado por diferentes personagens e
instituições científicas que paulatinamente iam acrescentando novos elementos à
cartografia sul-americana das leishmanioses e, sem deixar de relatar as anomalias
observadas, forneciam modelos para que pesquisadores situados em outras regiões deste
continente buscassem-nas nos lugares em que exerciam suas pesquisas.
Na região norte do Brasil, o pesquisador baiano Alfredo Da Matta, fundador e
presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Amazonas, relatou a existência de
leishmanioses cutâneas e mucocutâneas na capital e no interior do Amazonas (Da Matta,
1910: 440 - 441). O médico italiano Affonse Splendore, que há dez anos trabalhava no
hospital São Joaquim em São Paulo, publicou no conceituado periódico alemão Archiv
für Schiffs- und Tropen-Hygiene importante trabalho defendendo que ao examinar
pacientes proveniente da região noroeste do Brasil encontrou manifestações mucosas de
leishmanioses, que acreditava constituir-se uma nova forma de leishmaniose (Splendore,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

804
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

1911: 105), opinião semelhante à externada por Antonio Carini, em 1911, ao publicar o
artigo Leishmaniose de la muqueuse rhino-bucco-pharyngée no Bulletin de la Société de
Pathologie Exotique
De acordo com diretor do Instituto Pasteur de São Paulo, apesar de ser menos
frequente do que feridas de pele em locais descobertos, a localização de úlceras sobre o
nariz e a boca não chegava a ser rara em São Paulo. Com diversos casos já observados e
fisionomia clínica bastante característica, Carini argumentava que não mais hesitava em
diagnosticá-las como leishmanioses de mucosas e afirmava que, apesar de não ter
encontrado, mantinha a suspeita da existência de um protozoário específico responsável
por esse tipo de manifestação patogênica (Carini, 1911: 289)
Em outubro de 1911, o pesquisador paraense Gaspar Vianna, que acabara de ser
convidado por Oswaldo Cruz para trabalhar no Instituto de Manguinhos, havia publicado
no periódico Brazil Médico uma nota preliminar relatando que, ao analisar amostras de
tecidos de um paciente internado no Hospital da Misericórdia do Rio de Janeiro havia
identificado protozoários “com a forma d’um ovoide”, “núcleo localizado um pouco
acima da parte mediana”, que julgava pertencer ao gênero Leishmania. Mas, devido à
presença de um filamento, “talvez rudimento de flagelo, não observado até hoje”, julgava
que esse parasito poderia “ser considerado como uma nova espécie” desse gênero.
Batizou-o então como L. braziliensis e concluiu sua breve nota afirmando estar
“aguardando estudos posteriores para sua minuciosa descrição morfológica e
biológica”(Vianna, 1911: 411).
No Peru, dois meses após a publicação de Carini, o médico Edmundo Escomel,
pesquisador desse país andino formado pela Universidade San Martin, que contou com
um período de intercambio no Instituto Pasteur de Paris, publicou no Bulletin de la Société
de Pathologie Exotique um artigo intitulado “La espundia”, no qual relatava ter
observado diversos casos de uma moléstia crônica, caracterizada por ulcerações
granulosas, com diversos anos de duração, encontradas sobretudo próximas às florestas
de “vegetação exuberante, temperatura quente e grande umidade” da Zona Central do
Peru e descrevia, de forma sumária, algumas observações sobre essa doença
popularmente conhecidas pelo nome que dava título a seu artigo (Escomel, 1911: 489).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

805
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No ano seguinte, os pesquisadores da Sociéte de Pathologie Exotique Alphonse


Laveran e Louis Nattan-Larrier publicaram dois artigos no periódico desta instituição
sugerindo “contribuições” ao estudo da espundia e entraram de vez no debate sobre as
leishmanioses no continente sul-americano. No primeiro artigo, em março de 1912,
relatando terem recebido de Escomel um pedaço de mucosa do palato duro de um paciente
peruano que convivia com a espundia havia 15 anos, afirmaram terem localizado
protozoários do gênero Leishmania “com uma grande analogia com a L. tropica, mas
apresentando uma particularidade que nos pareceu interessante.”(Laveran et Nattan-
Larrier, 1912: 177)
De acordo com esses cientistas, apesar da semelhança morfológica entre esses
protozoários, aqueles que foram localizados nos materiais enviados por Escomel
apresentavam comportamento e dimensões ligeiramente diferenciados. Entretanto, na
conclusão desse artigo, apenas afirmaram que “as observações relatadas nesta nota,
tendem a demonstrar que a espundia, como bem descrita por nosso colega Dr. Escomel,
tem por um agente uma Leishmania” (Laveran et Nattan-Larrier, 1912: 179)
Quatro meses mais tarde, Laveran e Nattan-Larrier publicaram sua segunda
“contribuição” aos estudos da espundia. Nesta nova oportunidade, analisando novos
materiais enviados por Escomel e qualificando-o, pela primeira vez, como sócio-
correspondente dessa sociedade científica, esses pesquisadores confirmavam o
diagnóstico de leishmaniose, feito no último artigo, e informavam que estavam
procedendo a novos estudos sobre o protozoário em questão. (Laveran et Nattan-Larrier,
1912b: 489)
Entre 1910 e 1913, multiplicaram-se os relatos de diagnósticos parasitológicos de
casos de leishmanioses no continente sul-americano que, a despeito das variadas
denominações locais e diferentes manifestações clínicas iam acrescentando novos pontos
geográficos a cartografia das leishmanias. Em 1910, Samuel Taylor Darling diagnosticou
casos de botão do Oriente na zona do Canal do Panamá.(Darling, 1911: 60) No ano
seguinte, P. C. Flu associou à leishmaniose casos conhecidos como boshyaws ou boessie
yassi na Guiana Holandesa (Flu, 1911: 624). Em 1913, Harold Seidelin encontrou
protozoários de Leishmania no pavilhão auricular de trabalhadores indígenas que

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

806
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

extraiam látex nas florestas virgens de Yucatan, nas denominadas ulceras de los chicleros
(Seidelin, 1913: 295)
Ainda em 1913, por ocasião da fundação da Faculdade de Medicina de São Paulo,
o entomólogo francês e professor da Faculdade de Medicina de Paris Émile Brumpt foi
convidado a organizar o curso de parasitologia da referida instituição. Em sua estadia de
um pouco mais de um ano neste país, Brumpt realizou, junto ao médico paulista
Alexandrino Pedroso, uma expedição ao interior de São Paulo com o objetivo de fazer
um levantamento epidemiológico sobre as manifestações de leishmanioses encontradas
nesta região. Como resultado de suas pesquisas, Brumpt e Pedroso argumentaram que,
apesar de, na forma benigna, a leishmaniose encontrada no interior paulista guardar
intimas relações com o botão do Oriente, nas suas formas malignas, que corresponderiam
a cerca de 10% dos casos, a doença apresentava quadro clínico e evolução diferenciados
que permitiam considerá-la uma afecção bem individualizada (Brumpt e Pedroso, 1913:
753).
No Paraguai, o médico Luis Enrique Migone, que ainda como estudante havia sido
discípulo e assistente de pesquisa do pasteuriano Miguel Elmassian no Instituto Nacional
de Bacteriologia e após intercambio de pesquisa em Paris se tornou o segundo diretor
desta instituição, diagnosticou grande profusão de leishmaniose entre os lavradores de
laranja na região norte do país, popularmente designada como buba (Migone, 1913: 211).
A Argentina foi um dos últimos países desta região a comprovar
parasitologicamente casos de leishmanioses em seus domínios territoriais, pois até
meados da década de 1910 pouca ou nenhuma atenção era dispensada às doenças tidas
como tropicais. Tal como indicado por Caponi, neste momento, o discurso médico
argentino parecia ignorar que grande parte do seu território se situava em regiões com
clima subtropicais e que as províncias do norte como Salta, Formosa, Jujuy e Santiago
del Estero possuíam um clima tropical. Essa mentalidade fazia com que os temores
relacionados às doenças tropicais estivessem unicamente identificados à proximidade
com seu país vizinho, o Brasil (Caponi, 2002: 124).
Decisivo impulso para o fortalecimento da medicina tropical neste país foi a
criação do Instituto de Bacteriologia de Buenos Aires, que, vinculado ao Departamento
Nacional de Higiene, tinha por objetivo estudar os problemas sanitários humanos e
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

807
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

animais, além da preparação de soros e vacinas. Para comandá-lo, as autoridades médicas


locais contrataram o bacteriologista austríaco Rudolf Kraus, que, após se formar na
Universidade Alemã de Praga, em 1893, acumulou cursos, cargos e períodos de trabalho
em importantes instituições de médico-científicas europeias. Como indicado por
Cavalcanti, a decisão de Kraus de aceitar o convite para trabalhar num país sul-americano
fazia parte de sua estratégia de ascensão profissional, uma vez que esse já renomado
pesquisador considerava as regiões tropicais como locais propícios para o
desenvolvimento de pesquisas científicas originais seja por considerar menor a
concorrência profissional ou ainda pela ideia de uma maior diversidade da fauna e flora
passíveis de serem investigadas como patogênicas aos seres humanos e animais
(Cavalcanti, 2013).
Antes de chegar a Buenos Aires, entretanto, Kraus aportou estrategicamente no
Rio de Janeiro, onde se encontrou com Oswaldo Cruz e conheceu a instituição que este
dirigia, o já internacionalmente reconhecido Instituto Oswaldo Cruz. Muito
provavelmente por indicação deste, Kraus convidou o jovem pesquisador Arthur Neiva
para comandar a seção de entomologia que dirigiria em Buenos Aires, o que demonstrava
sua predisposição em trabalhar com doenças vetoriais no país platino. Durante sua estadia
de um pouco mais de um ano na Argentina, Neiva se dedicou a estudar a fauna culicidiana
nacional (Neiva, 1915) e, por ocasião de uma expedição de três meses junto ao médico
argentino Belarmino Barbará às províncias de Salta e Jujuy, no norte do país, realizou o
primeiro diagnostico parasitológico de leishmaniose na Argentina em 1916 (Neiva e
Barbará, 1917).
Foi, no entanto, apenas em meados da década de 1920 que as doenças ditas
tropicais nas províncias do norte do país passariam a ser objeto de constante investigação.
Podemos considerar que a expedição realizada por Charles Nicolle neste país, tenha sido
o marco fundador da criação de uma instituição voltada exclusivamente para o estudo de
doenças tropicais que grassavam endêmica ou epidemicamente nestes territórios, a
Missão de Estudos de Patologia Regional Argentina (MEPRA) que, dirigida por Salvador
Mazza, conseguiria trazer grandes nomes da microbiologia e da medicina tropical às
pacatas e ensolaradas províncias de Jujuy, Salta e Santiago del Estero (Sanchez, 2010:
71).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

808
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Salvador Mazza se formou em medicina na Universidade de Buenos Aires em


1910, e, depois de integrar os quadros do Instituto Bacteriológico de Buenos Aires de
Rudolf Kraus, vinculou-se, em 1915, ao Laboratório Químico-Bacteriológico do Hospital
Militar Central, em um cargo no qual tinha a função de produzir comprimidos oxidantes
e redutores para esterilização química da água que consumiriam. Devido ao seu vínculo
com o Exército Nacional, realizou sua primeira viagem de estudos ao continente europeu,
visitando, em plena 1ª Guerra Mundial, a Alemanha e a Austria-Hungria, onde recebeu
instrução sobre a profilaxia das enfermidades nas tropas em campanhas e teve o primeiro
contato com os laboratórios móveis que, se locomovendo pelos trilhos de trem,
acompanhavam o exército em campanha (Buschini e Zabala, 2013: 7).
Em 1923, aos 37 anos, Mazza realizou sua segunda viagem à Europa, na qual por
19 meses percorreu os Institutos Pasteur de Paris, da Argélia e de Tunísia, as escolas de
medicina tropical inglesas de Londres e Liverpool, além de retornar à Alemanha e a
Hamburgo, onde se deteve no Instituto de Quimioterapia e no Instituto de Medicina
Tropical de Hamburgo. Ao voltar ao seu país de origem, em 1924, Salvador Mazza foi
nomeado como titular de laboratório e do museu do Instituto de Clinica Cirúrgica. Foi
nesta ocasião que convidou Charles Nicolle a visita-lo em Buenos Aires, para juntos
procederem a uma expedição às provinciais de Salta e Jujuy. Tal expedição foi realizada
em 1925 e teve como principal produto o artigo de Nicolle intitulado quelques
considerations sur la leishmaniosis tegumentaire americana, no qual o pesquisador
francês chamava a atenção para a grande incidência desta e outras moléstias tropicais nas
regiões visitadas e para a necessidade de melhor estudá-las e combatê-las naquelas
províncias (Nicolle, 1926).
Segundo Sierra Iglesias, teria sido nesta ocasião que Salvador Mazza manifestou
a Charles Nicolle sua intenção de estudar sistematicamente as patologias desta região que
rapidamente declarou apoio às intenções do pesquisador argentino e, seguindo o modelo
dos Institutos Pasteur de ultramar, propôs que tal instituição deveria ser erguida nas
províncias do norte do país, onde encontraria farto material de trabalho. Com apoio da
municipalidade de Jujuy, que doou um imóvel para suas primeiras instalações, foi criada
em fevereiro de 1926 a primeira sede da Sociedade de Patologia Regional da Argentina,
que daria origem à MEPRA, que, com seu famoso laboratório-vagão “E.600” percorreu
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

809
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

diversas províncias do país, estudando seus problemas de saúde pública realizando censos
epidemiológicos, identificando de novos vetores e tratamentos para moléstias que, como
a doença de chagas e as leishmanioses, ainda se configuravam tanto como desafios
científicos como problemas de saúde públicas regionais.

Considerações finais

Ao procurar rastrear os primeiros diagnósticos parasitológico de leishmanioses na


América do Sul e mapear a rede médica que se formava em torno deste grupo de moléstia,
foi interessante notar o jogo sinérgico entre o local e o global proporcionado por suas
especificidades que, em minha opinião, desafiaram as tradicionais cisões entre contextos
centrais e periféricos. Diferentes de outras doenças, que a partir de um determinado
quadro clínico, suspeita-se e busca-se comprovar sua classificação através da
identificação de um agente patogênico específico, no caso das leishmanioses, acontecia
justamente o contrário. Era através da identificação de um protozoário que diferentes
formas clínicas com pluralidades de denominações regionais iam sendo atribuídas a tal
grupo de moléstia, fazendo com que as expertises locais desempenhassem papeis centrais
na construção do quebra-cabeça representado pela associação de manifestações clínicas /
agentes patogênicos que paulatinamente iriam conformando as características desse
grupo de moléstia forjada exclusivamente em função da similaridade de seus agentes
etiológicos.

Bibliografia

BRUMPT, Émile e PEDROSO, Alexandrino Recherches épidémiologiques sur la


leishmaniose forestière américaine de l'État de Sâo Paulo (Brésil). Bulletin de la Société
Pathologie Exotique. Paris, França, vol. 6, n.10, 1913.

BUSCHINI, José e ZABALA, Juan Pablo. La medicina experimental en la Argentina


durante la primeira mitad Del siglo XX. Op. cit., p. 29; GODOY, Daniel. Labradores de
la salud popular. Salvador Mazza. Cuadernillo 2, 2013.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

810
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CAPONI, Sandra. Trópicos, micróbios y vectores. História, Ciências, Saúde –


Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 9, (sup), pp. 111 – 138, 2002.

CARINI, Antonio. Leishmaniose de la muqueuse rhino-bucco-pharyngée, Bulletin de la


Société Pathologie Exotique. Paris, França, vol. 4, n.5, 1911.

CAVALCANTI, Juliana Manzoni. A Trajetória Científica de Rudolf Kraus (1894-1932)


entre Europa e América do Sul: Elaboração, produção e circulação de produtos
biológicos. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo
Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2013.

DA MATTA, Alfredo. Leishmaniose tropica. Revista Médica de São Paulo, n.13, 1910
DARLING, Samuel. Autochtonous Oriental sore in Panama. Trans. Roy Soc trop Med &
hig., 4:60-63, 1910.

DONOVAN, Charles. The etiology of one o the heterogeneous Fevers in India. Britsh
Medical Journal. 12: 1401, 1903.

ESCOMEL, Edmundo. La espundia. Bulletin de la Société Pathologie Exotique. Paris,


França, vol. 4, n.7, 1911.

FLU, P C Die Aetiologie der in surinan vorkommender sogenannten “Boschyaws” einder


der Aleppobeule analogen Erkrankung. Centralbl. Bakter Parasit K de I, 6: 624 – 637,
1911.

JOGAS JUNIOR, Denis. Uma doença Americana? A leishmaniose tegumentar na


produção de conhecimento em medicina tropical. Dissertação de Mestrado.
PPGHCS/Fiocruz, 2014.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

811
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

KILLICK-KENDRICK, Robert. Oriental sore: an ancient tropical disease and hazard for
European travelers. Wellcome History. Vol. 43, 2010.

LAVERAN, Alphonse. Leishmanioses. Kala-Azar, Bouton d’Orient, Leishmaniose


Americaine. Manson et Cie. Ed. Paris, França, 1917.

LAVERAN, A. & NATTAN-LARRIER, L. Contribution à l'étude de la espundia.


Bulletin de la Société Pathologie Exotique. Paris, França, vol. 5, n.3, 1912.

______________. Contribution à l'étude de la espundia. (Deuxieme note.)Bulletin de la


Société Pathologie Exotique. Paris, França, vol. 5, n.3, 1912b.

LEISHMAN, Willian. A On the possibility of the occurrence of Trypanosomiasis in


India. Britsh Medical Journal. 21, p. 1376, 1903.

MANSON, Patrick. Tropical Diseases. A Manual of diseases of warms climates. 3ªed.


London, 1909.

MIGONE, Luis Enrique. La bouba du Paraguay, leishmaniose américaine. Bulletin de la


Société Pathologie Exotique. Paris, França, vol. 6, n.3, 1913.

NATTAN-LARRIER, Luis, TOUIN et HECKENROTH, Ferdinand. Sur un cas de Pian-


Bois de la Guyane. Ulcère à Leishmania de la Guyane. Bulletin de la Société Pathologie
Exotique. Paris, França, vol. 2, n.10, 1909.

NEIVA, Arthur e BARBARA, Belarmino. Leishmaniosis tegumentária americana.


Numerosos casos autóctones em la Republica Argentina. 1ª Conferencia Sud-Americana
de la Sociedad de Higiene, Microbiologia e Patologia, Buenos Aires, p. 311-372, 1917.

NEIVA, Arthur. Contribuición al estudio de los anofelinos argentinos. La Semana


Médica, v. 24, 1915.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

812
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

NICOLLE, Charles Quelques considerations sur la leishmaniose tegumentaire


americaine. C R Soc Biol. 1: 476-477, 1926.

RABELLO, Eduardo. Contribuições ao estudo da leishmaniose tegumentar no Brasil. I.


Histórico e Sinonímia. Annaes Brasileiros de Dermatologia e Syphilographia. 1925.

SÁNCHEZ, Norma Isabel, PÉGOLA, Federico, DI VIETRO, María Teresa. Salvador


Mazza y El arquivo “perdido” de La Mepra. Argentina, 1926-1946. Acassuso: El Guión,
2010.

SEIDELIN, Harold. Leishmaniosis and babesaisis in Yucatan. Ann Trop Med & Parasit,
n.6, 1912.

SPLENDORE, Affonso. Buba-Blastomicosi-Leishmaniosi. Nota sopra alcune affezioni


framboesiche observate in Brasile. Achiv für Schiffs- und Tropen-Hygiene, n. 15, 1911.

WRIGHT, J. Protozoa in a case of tropical ulcer ("Delhi sore"). The Journal of Medical
Research, Boston, 1903.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

813
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O Brasil e o Chile de Maria Graham: Entre rebeliões e revoluções, paisagens,


representações e cotidiano, os registros e narrativas de uma viajante inglesa na
América do Sul, 1821-1823

DENISE MARIA COUTO GOMES PORTO


PPGH - Universidade Salgado de Oliveira

Os Novos Mundos americanos de Maria Graham

O século XIX trouxe grandes transformações para o Novo Mundo compreendido


aqui pelas Américas Portuguesa e Espanhola. Os ventos liberais haviam soprado as
antigas mentalidades absolutistas do Ancien Régime para um lugar sombrio e nebuloso.
Novas liberdades foram então forjadas pelo esforço empreendido pelas Juntas das Cortes
espanhola e portuguesa, logo nas primeiras décadas do Oitocentos. Com a aprovação da
Constituição de Cádiz em 1812 e no decênio posterior, com a promulgação da
Constituição Portuguesa de 1822, a onda liberal espraiou-se por toda a América,
suscitando o crescimento do espírito nacionalista, semente fecunda na construção das
nascentes identidades nacionais.
Os velhos grilhões que mantinham as colônias submissas às suas metrópoles
ibéricas, foram rompidos por força dos anseios das jovens nações, na emergência de seus
ideais de independência, sendo estes processos revolucionários decorrentes de diferentes
especificidades e momentos. Segundo Alexandre Valentim (1998), desde 1808, quando
a família Real e as Cortes portuguesas vieram para o Brasil sob a proteção da marinha
Inglesa e que o rei havia decretado a abertura dos portos para nações amigas, a Inglaterra
protagonizara importantes acordos comerciais e diplomáticos. Tendo, portanto,
significativa representação política, sua influência estendeu-se segundo Gilberto Freyre
(2000), às dimensões social e cultural, atribuídas a técnicos, comerciantes, aventureiros,
negociantes, missionários e governantes.
Assim como no Brasil, a Inglaterra, que buscava a hegemonia política, ideológica
e de mercados na América do Sul, tinha fortes interesses comerciais no Chile. Como
exemplo, a cidade portuária de Valparaíso, contava com uma considerável comunidade
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

814
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de ingleses, sendo escolhida como um dos destinos certos dos comerciantes britânicos
(GRAHAM,1964).
Foi nesta paisagem de turbulências revolucionárias que a viajante inglesa Maria
Graham (1785-1842), chegou ao Brasil em 1821. A América do Sul de então, fora
redescoberta por estrangeiros que segundo Raymundo Campos (1996), aportavam com
os mais diversos objetivos, como comerciantes, artistas, viajantes, expedicionários,
engenheiros, mineralogistas, botânicos e aventureiros.
Segundo Gilberto Freyre (2000), seus relatos em forma de diários, cartas e
registros iconográficos, transformaram-se em fontes documentais preciosas, ajudam-nos
a entender as lógicas sócio-político-culturais e as mentalidades pertinentes daqueles anos.
Desse enorme contingente de estrangeiros que atravessou o Atlântico rumo aos portos
sul-americanos nas primeiras décadas do século XIX, destacaremos o protagonismo da
escritora, pintora, professora e herborista inglesa Maria Graham. Em nossa análise, o
contexto de sua historicidade se dá nos anos de 1821 a 1823. Testemunhou a rebelião da
Junta de Goiana em Pernambuco ao chegar ao Brasil. No ano seguinte ao seguir viagem
para o Chile, pode respirar os ares da independência ao chegar à cidade de Valparaíso.

Os ventos liberais estão soprando...

A insaciável sede de Napoleão pela conquista de territórios a fim de integrar seu


projeto imperialista sobre a Europa, havia enfim alcançado a Península Ibérica em 1807.
Neste contexto, nas palavras de Berbel (2010: 29) “os soldados carregavam armas contra
as monarquias vizinhas e argumentos para o estabelecimento de uma ordem dissociada
dos direitos tradicionais dinásticos”. Portugal encontrava-se ocupado desde novembro de
1807. Os exércitos franceses aproximavam-se de Lisboa. A inédita decisão de transferir
a família real e as Cortes portuguesas para a sua colônia americana, ideia defendida desde
os anos do Marquês de Pombal, não tivera precedentes até então na História Moderna.
Com o propósito de fundar na cidade do Rio de Janeiro o novo centro administrativo, a
coroa portuguesa tornou possível a eminente consolidação de um Império no Brasil.
Neste contexto, Silva (2009: 19) cita que, “A vinda da corte com o enraizamento
do Estado português no Centro-sul daria início à transformação da colônia em metrópole
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

815
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

interiorizada. ”e acrescenta “[...] Como metrópole interiorizada, a corte do Rio de Janeiro


lançou os fundamentos do novo Império português[...]”. (SILVA,2009: 22). Entretanto,
as consequências desta decisão, suscitaram em Lisboa sentimentos de insatisfação,
insegurança e de subordinação à sua ex colônia americana, fermentando tensões e mágoas
que culminariam na Revolução do Porto em 1820. Segundo Valentim Alexandre:

[...] todos queriam a Corte em Lisboa, porque odiavam a ideia de ser


colônia de uma colônia. Nesses termos, a revolução de 1820
corresponde antes de mais nada a uma reação de teor nacionalista à
situação de subordinação e de dependência criada ao reino português
no seio do Império. [...]Ponto central da ideologia vintista, o
nacionalismo[...]a afirmação dos valores patrióticos, muito marcada
durante a Guerra Peninsular, que teria visto a “ Nação Portuguesa “
adquirir um “ lugar eminente entre as demais nações da Europa, tanto
por suas virtudes militares, como sociais e civis. (ALEXANDRE,1989:
26).

Segundo Márcia Regina Berbel (2010), as origens da crise em Portugal estavam


fincadas na transferência da Corte portuguesa para o Brasil e a culminância na Revolução
de 1820, esteve em sintonia com os acontecimentos espanhóis desde 1810.Estas
ressonâncias demonstradas pelos contatos entre os liberais portugueses com os
revolucionários da Espanha, iniciaram-se em agosto de 1820 durando até o final do ano.
Ainda segundo a autora:

De fato, os revolucionários portugueses iniciaram a convocação das


Cortes Extraordinárias a partir da adoção dos critérios aprovados em
Cádiz e utilizando a Constituição espanhola como texto referência para
o início das atividades parlamentares. [...]Além disso, assumiam
também que “a base de representação nacional é a mesma em ambos os
hemisférios” [...] A adoção dos critérios eleitorais espanhóis elevou as
tradicionais capitanias do Brasil à condição de unidades provinciais,
com autonomia para decidir a adesão ao movimento constitucionalista
e promover a escolha dos deputados. O fato motivou as primeiras
adesões no Brasil entre os meses de janeiro e fevereiro de 1821[...].
(BERBEL,2010: 40).

No Brasil os ecos da Revolução Liberal do Porto fizeram-se ouvir como uma


ameaça a então frágil unidade do reino, até que em 1821, as Cortes portuguesas exigem
a volta de D. João VI a Portugal e o juramento a Constituição Portuguesa. Segundo Juliana

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

816
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ferreira Sorgine (2005) em 29 de agosto de 1821, na região norte de Pernambuco, na vila


de Goiana, antigos participantes da Revolução de 1817, instalaram uma Junta
Governativa Provisória, objetivando à adesão às Cortes portuguesas e destituir do
governo o representante português em Pernambuco, o Governador Luiz do Rego Barreto.
Assim, recorremos a Berbel (2010: 30) que observa em sua análise que, “ ligados por uma
mesma crise, espanhóis e portugueses buscaram respostas para a afirmação da soberania
de suas nações. ” E ainda segundo a autora, “ Os esforços deslocaram-se para a formação
de espaços parlamentares e para elaborações que deveriam conciliar os anseios pela
soberania e as demandas por autonomia, também acalentadas na América. [...]”. Na
vizinha Espanha, as forças militares de Napoleão submeteram a metrópole ao jugo francês
em 1808, destronando o rei Fernando VII, golpeando mortalmente o coração da
monarquia católica, que fora o pilar institucional capaz de unir a Espanha peninsular às
suas colônias americanas, construindo a unidade identitária do Império. A imensa
população de dezessete milhões de pessoas que habitava os vastos territórios imperiais,
reconhecia-se vassala de um mesmo soberano. Contudo, as consequências desastrosas de
uma monarquia acéfala, logo fizeram-se sentir nos Estados Peninsulares e em suas
possessões coloniais americanas, trazendo mudanças imponderáveis. Na Península, as
lutas de resistência na metrópole, segundo Fuentes Aragonés (2010: 20) “[...] expressadas
pela linguagem de independência/soberania, liberalismo e pronunciamento, serviram
como fator de liberação frente ao invasor francês e frente ao absolutismo. ” As colônias
ficaram sem sua metrópole. Logo os antigos ressentimentos da população Criolla
reacenderam fortemente, reclamando pelo reconhecimento de sua identidade americana,
maior participação na tomada de decisões e por igualdade representativa aos peninsulares.
Irromperam consequentemente, diversas revoltas por suas independências.

[...]. Houve uma grande mudança histórica na Espanha, nos dois anos
e meio transcorridos do dia 2 de maio de 1808, até a abertura das
“Cortes Gerais e extraordinárias “ na ilha de Léon (Cádiz) em 24 de
setembro de 1810, com o desmoronamento do estado Bourbônico e com
o vazio do poder, pela queda de Fernando VII. [...]como alternativa para
o ciclo de crises e revoluções que se espalhavam, só poderia resolver-
se mediante o poder interino das juntas. (FUENTES ARAGONÉS: 18-
21).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

817
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A partir dos conflitos decorridos pela dissolução da Monarquia Católica, os


questionamentos sobre a quem a América Espanhola deveria submeter-se, varreram os
territórios dos Vice-Reinados até alcançarem o Chile. As primeiras lutas pela
independência chilena dão-se a partir de 22 de junho de 1810. Em 18 de setembro do
mesmo ano, forma-se a primeira Junta Nacional do Governo, que dentre outras iniciativas,
abriu as exportações da produção nacional e a importação para manufaturas estrangeiras.
Finalmente, no dia 12 de fevereiro de 1812, o Chile proclama sua Independência, tendo
como governador Bernardo O’Higgins. A presença inglesa no Chile desde os primeiros
anos do século XIX, consolidou-se a partir do envolvimento dos comerciantes britânicos
na venda de armas e suprimentos bélicos para as forças militares e navais pela causa da
independência e da participação nos quadros de comando, estruturação e formação da
esquadra naval chilena.
Com a chegada da Família Real ao Brasil em 1808, deu-se a abertura dos portos
às nações amigas e a assinatura dos tratados comerciais de 1810, integrando o Brasil ao
mercado internacional, mas sobretudo, privilegiando os interesses mercantis da
Inglaterra, como parte dos acordos assinados pela proteção da Marinha Britânica ao
translado da Coroa e da Corte portuguesa para os trópicos. Coube a Inglaterra, portanto,
sendo a maior potência emergente desde a sua Revolução Industrial, o avanço
expansionista de seu Império nas Américas, difundindo assim, o liberalismo econômico
do comércio livre e mantendo o protagonismo diplomático, comercial, industrial e
cultural nas primeiras décadas do Brasil Monárquico. Freyre (2010: 46), ressalta que “ A
presença da cultura britânica no desenvolvimento do Brasil, no espaço, na paisagem, no
conjunto da civilização do Brasil, é das que não podem, ou não devem? — Ser ignoradas
pelo brasileiro interessado na compressão do Brasil”. Os ingleses desde que
“descobriram” as terras americanas, vislumbraram um novo mundo de oportunidades
para a ilimitada possibilidade de negócios, matéria prima britânica para impulsionar o seu
expansionismo industrial. Naqueles primeiros anos do Oitocentos, muitos foram os
ingleses que aportaram nas Américas, com os mais diversos objetivos.
Em 21 de setembro de 1821, o navio-escola da Marinha de S.M.B., a Fragata
Doris, chega a Pernambuco. Entretanto, fica fundeada ao largo, à espera de ordens para
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

818
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

aportar. O comandante do navio, Capitão Thomas Graham, encontrara o porto do Recife


bloqueado e a cidade em estado de sítio, por motivo da insurreição da Junta Governativa
de Goiana. A bordo da Doris, a inglesa Maria Graham avistou pela primeira vez as terras
americanas que tanto ansiava conhecer. Como esposa do Capitão Thomas Graham, viera
na tripulação como professora dos jovens Guarda-Marinha, candidatos a futuros oficiais
ingleses, que realizavam uma longa viagem de instrução. O navio que saíra de Portsmouth
na Inglaterra, em 31 de julho de 1821, rumava para o Atlântico Sul, singrando pela costa
do Brasil até alcançar o Pacífico e chegar ao Chile. Nascida em Papcastle, Inglaterra, em
19 de junho de 1785, Maria Graham, desde a infância teve uma educação voltada para os
valores filosóficos iluministas, destacando o gosto pelos estudos e pesquisas das ciências
naturais. Segundo Américo Jacobina Lacombe:

Desde criança revelou Maria Graham inteligência, muita aplicação nos


estudos e acentuado interesse pelas narrativas de viagem. [...] de forma
diferente da maioria das mulheres de sua época, pode estudar literatura
inglesa e do resto da Europa, arte, desenho, filosofia e história natural.
[...]foi uma adepta das ideias do liberalismo político e econômico, que
na sua época eram identificadas como o progresso
(LACOMBE,1997:11 apud GRAHAM,1997).

Com seu pai, Maria Graham havia viajado pela primeira vez para a Índia nos
princípios de 1808.No ano de 1819 conheceu a Itália, onde morou com seu marido
Thomas Graham por um curto período de tempo. Destas passagens por lugares
interessantes, deixou-nos os seus primeiros Diários de Viagem, gênero literário que
estava em ascensão tanto no gosto do público aristocrático e letrado da Europa, como dos
“ pacatos cidadãos comuns, tão ávidos de informações como de aventuras”.
(QUINTANEIRO,1996: 18).
Segundo o Diário de Pernambuco (2016/08, p.2), Maria Graham quando chegou
ao Brasil, aos 36 anos, já era famosa na Inglaterra por ser autora de interessantes livros
de viagens, além de notável pintora e ilustradora. Na década de 1830, publicou Little
Arthur’s History of England 360
,livro infantil que alcançou grande sucesso. Nos anos

360
Primeira edição em 1835, em dois volumes, sob as iniciais, M.C. e reeditado diversas vezes. A última
atualização foi em 1937(BRITTO,1989, p.10). Esta obra foi traduzida no Brasil para o português pelo
escritor piauiense Bugyja Britto em 1941/42 e publicado em 1989 no Rio de Janeiro.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

819
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

seguintes faria registros sobre o povo, os costumes e a natureza no Brasil, deixando


importantes relatos sobre os costumes locais e os testemunhos políticos do Movimento
Constitucionalista de 1821 e da Confederação do Equador em 1824.

As primeiras impressões do Brasil e os registros sobre a Junta de Goiana

No dia 21 de setembro de 1821 a Fragata Doris havia chegado à costa brasileira


na altura de Pernambuco. Fundeou ao largo, pois encontrou o porto do Recife bloqueado.
A cidade estava sitiada pelo cerco promovido pelas tropas constitucionalistas, que vindas
do interior, exigiam a saída do Governador Luís do Rego Barreto. Maria Graham descreve
detalhadamente em seu Diário de Uma Viagem ao Brasil, (1990) sua estada em
Pernambuco e o que presenciou do Movimento Constitucionalista da Junta de Goiana.
Nas palavras da viajante:

Sexta-feira, 21 de setembro. —Afinal estamos à vista da costa do Brasil.


Estamos ancorados cerca de oito milhas de Olinda, capital de
Pernambuco, com quinze braças de fundo, mas apesar de termos dado
mais de um tiro de canhão, pedindo um piloto, não aparece nenhum.
(GRAHAM,1990, p.125).
Pernambuco, 22 de setembro de 1821— [...]Além da disposição para a
revolução, que estávamos prevenidos existir há muito em toda a parte
do Brasil, havia também a rivalidade entre portugueses e brasileiros,
situação que os últimos acontecimentos haviam agravado em não
pequeno grau. A 29 de agosto cerca de 600 homens da milícia e outras
forças nativas haviam tomado posse da Vila de Goiana, um dos
principais lugares da capitania, e tomado à força a Câmara Municipal,
onde haviam proclamado o fim do governo de Luís do Rego. Passaram
então a eleger um governo provisório de Goiana, para entrar em função
até que a capital da província pudesse estar em condições de estabelecer
uma junta constitucional. (GRAHAM, 1990: 126).

Dois dias após chegar a Pernambuco, Maria Graham, desembarcou para conhecer
a cidade sitiada. Foram recebidos por um oficial a serviço do Governador Luís do Rêgo
que os conduziu ao Palácio do Governo. Conheceu o Governador e sua família. Em seu
Diário, (1990) lemos:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

820
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O coronel conduziu-nos ao palácio do governo, prédio muito belo, [...],


mas agora está ocupado por cavalos, [...] e soldados armados,
[...]canhões à frente com morrões acesos e um ar de alvoroço e
importância entre os soldados. [...]O conselho ou Junta Provisória de
governo, compunha-se de dez membros, presididos por Luís do Rêgo.
Estavam redigindo uma proclamação aos habitantes de Recife
assegurando-lhes a garantia e proteção; [...]afirmando que havia
provisões em abundância na cidade e encorajando-os em nome do rei e
das cortes a defenderem a cidade contra os insurgentes. [...] logo depois
apareceu o próprio governador, com bela aparência militar.
(GRAHAM, 1990: 131-132).

Após a visita de cortesia ao Governador, Maria Graham (1990) percorreu a cidade


e seus arredores. Encontrou a milícia nos vários postos de defesa e todo o comércio
fechado. Os comerciantes em sua maioria europeus, pertenciam, assim com os índios, aos
quadros da milícia, convocados para o serviço militar. No periódico Diário de
Pernambuco (2016/08/22), encontramos seu registro de que “ apesar do cerco promovido
pelas tropas do interior, na capital não havia fome, pois não faltavam farinha de mandioca,
carne seca e peixe salgado.

[...] cavalgamos para fora da cidade através de algumas belas casas


chamadas sítios [...]. Ao voltarmos fomos interpelados em todos os
postos, mas as palavras “amigos ingresos”[ingleses]eram nosso
passaporte, e voltamos para o Recife. [...] esta manhã soubemos que
uma centena de índios estão sendo esperados na cidade para auxiliar a
guarnição. (GRAHAM, 1990:133-136).

Maria Graham teve oportunidade de conhecer os rebeldes patriotas e esteve


também com os membros da Junta que pretendia assumir o governo. No Diário de
Pernambuco (2016/08/22) sobre seu encontro com os rebeldes patriotas, lemos:

Lady Graham[...] ouviu um longo discurso sobre as injustiças


praticadas na província por Luís do Rêgo. [...] alegavam defender uma
causa justa e não se consideravam rebeldes, pois marchavam sob a
bandeira de Portugal.

O armistício da rebelião foi segundo Sorgine,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

821
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A pacificação do confronto armado estabelecido entre os aliados do


governo de Luís do Rêgo e os partidários da Junta de Goiana foi
acertada[...] na chamada Convenção do Beberibe, em 5 de outubro de
1821 (2005, p.4).

Enfim na tarde de 14 de outubro de 1821, é chegada a hora da Doris zarpar rumo


aos mares do Pacífico com destino ao Chile, passando ainda no caminho, pela Bahia e
Rio de Janeiro. Maria Graham deixa-nos nesse momento sua impressão sobre o desfecho
da rebelião da Junta de Goiana e do sentimento dos Pernambucanos registrado em seu
Diário:

Deixamos Pernambuco com a firme convicção de que pelo menos esta


parte do Brasil nunca mais se submeterá ao jugo de Portugal. Se a
firmeza de comportamento de Luís do Rêgo falhou em manter a
capitania em obediência, será inútil a outros governadores tentá-lo,
especialmente enquanto o estado da metrópole for tal que não possa
lutar com as colônias, nem por elas, e enquanto as considerar
simplesmente como regiões tributáveis de seus territórios, obrigados a
sustenta-la em sua fraqueza. (GRAHAM, 1990: 163).

O Chile de Maria Graham

No dia 28 de abril de 1822 (Graham,1990), a Fragata Doris chega finalmente ao


porto de Valparaíso no Chile. Saíra do Rio de Janeiro em 10 de março do mesmo ano,
cumprindo a última parte de sua viagem de instrução. Entretanto, durante trinta e oito dias
de navegação, o navio enfrentara tempestades e dolorosos infortúnios, culminando na
morte do Capitão Thomas Graham. Maria Graham em seu Diário De uma Viagem ao
Brasil (Graham ,1990) atesta a tristeza e dor em que se encontrava ao perceber sua nova
realidade ao término da viagem:

Na noite de 9 de abril, pude despir-me, e ir para a cama pela primeira


vez desde que deixei o Rio de Janeiro. Estava tudo acabado; dormi
longamente descansei; quando acordei foi para tomar consciência de
que estava só, e viúva, com um hemisfério entre mim e meus parentes.
(GRAHAM, 1990: 251-252).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

822
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No Chile, Maria Graham encontra um país ainda em processo de consolidação de


sua Independência. Logo no prefácio de seu Diário de mi residência en Chile, (Graham,
1964), ela nos dá uma importante introdução ao panorama revolucionário, cujos relatos
verbais foram recolhidos a partir de longas entrevistas pessoais com o próprio Supremo
Director Bernardo O’ Higgins, o líder revolucionário patriota que lutou pela causa da
independência e que esteve à frente do governo chileno do ano de 1817 ao ano de 1823.
A inglesa obteve sua permissão para transcrever em seu Diário de mi residence en Chile
(1964), todo o conteúdo dessas conversas, as quais transformaram-se nos anos seguintes
em valiosas fontes para a historiografia local, sobre os primeiros anos da revolução do
Chile. A relevância desses relatos se dá por terem sido queimados nos seis primeiros anos
da revolução chilena, todos documentos dos arquivos públicos que pudessem conter
informações sobre os patriotas aos espanhóis.

Uma vez oí á don Bernardo O’Higgins relatar com la mayor sencillez


la história de esta accíon,y estou segura de que empleó en inglês las
mismas palavras que he citado.[...].Pocos son los informes que pueden
procurarse de los seis primeiros años de la revolucíon de
Chile[...]fueron quemados todos los papeles y documentos públicos que
se halló á mano, para evitar que cayeran em poder de los
espanhóis.[...].Desde entonces, hasta el año de 1817, no se encuentran
ni em los archivos de gobierno documentos que rastrear, hasta medianos
de 1818, nada de lo impresso em Chile; de manera que dentro de pocos
años más podria haberse perdido todo recuerdo del primer período de
la revolucíon de este país. (GRAHAM, 1964: 21).

Durante o período da estada chilena, de 28 abril de 1822 a 18 de janeiro de 1823,


Maria Graham (1964) descreveu suas impressões críticas sobre as causas políticas que
fizeram emergir as lutas pela Independência chilena:

Todo sistema de España respecto á las colônias, mientras las tuvo bajo
su domínio, fué comercial y no político. Los virreyes[...] no fueron en
realidad outra cosa que presidentes de uma companhia de monopolistas,
sus propósitos estaban limitados por sus sórdidos y mezquinos
interesses [...]descuidándose em consecuencia la libertad, la felicidade
ó el interés de los habitantes. La pereza y la ignorância fueron las
consecuencias necessárias, y cuando el Pueblo se levanto, como de um
sueño proclamo su independencia, estaban tan amoldados al antiguo
régimen de cosas las costumbres é ideas [...]que sus jefes y
gobernadores siguieron por la miesma senda. Considerando la posesión
del poder simplesmente como la posesión del capital de uma companhia
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

823
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

mercantil, especularon com él[...] y, em muchos casos, se arruinaron


ellos mismos. (GRAHAM, 1964: 42).

Em 18 de janeiro de 1823, após terem se passado quase nove meses da sua chegada
a Valparaíso, chegou a hora de Maria Graham partir do Chile. Lago (2000, p.153) cita
que “Sus últimas tareas cotidianas fueron revisar los manojos de semillas y raíces
recogidos para plantarlos em Inglaterra”. A bordo do bergantín Colonel Allen, em
companhia do amigo Almirante Lorde Cochrane e do primo Glennie, Maria Graham
voltaria para o Brasil pela segunda vez, deixando no distante Chile suas mais
melancólicas memórias. Nas anotações escritas no Diário de mi residencia em Chile,
(Graham, 1964, p.23-23), entretanto, percebemos que a autora procurou aproximar-se de
tudo que pudesse lhe fornecer maior conhecimento daquele país, afim de compreender
com profundidade sua história e seu povo.

Considerações Finais - Num só coração, duas Américas...

Ao penetrarmos nos mundos americanos vividos por Maria Graham e narrados a


partir de seu olhar, percebemos que a autora descreveu as singularidades identitárias de
ambos, ressaltando em seus Diários, as turbulências provocadas pela emergência de
anseios libertários sobre o jugo político e econômico imposto por suas metrópoles
ibéricas. Nas palavras da autora,

Julgou-se conveniente separar completamente as narrativas referentes à


América Espanhola e à América Portuguesa, já que nos países que as
constituem são diferentes não só o clima e as produções quanto os
habitantes por suas maneiras, sociedade, instituições e governo
(GRAHAM, 1990: 20)

Neste artigo, pretendemos demonstrar que a viajante Maria Graham, analisou


cuidadosamente as sociedades do Brasil e do Chile das primeiras décadas do século XIX,
no momento das grandes transformações políticas e econômicas da América do Sul.
Maria Graham buscou interpretar as características próprias e peculiares das sociedades
de cada país, destacou os fatos políticos relevantes que culminaram em lutas e revoluções
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

824
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

na construção de suas liberdades, mantendo, entretanto, opiniões críticas parciais sobre


tudo que via, procurando analisar os fatos por dois pontos de vista. Como a autora cita:

A autora não tem pretensões à perfeita imparcialidade, pois nem sempre


esta significa virtude. [...]espera ter sempre encarado as questões pelos
dois lados, ainda que isto lhe tenha custado bastante esforço na
composição. (GRAHAM, 1990, p.19).

Nos Diários de uma viagem ao Brasil (1990) e Diário de mi residence em Chile


(1964), constatamos nas análises sobre as sociedades e os acontecimentos políticos que
se deram nas Américas Portuguesa e Espanhola, descritos pela autora, que ela procurou
distinguir as suas singularidades, ressaltando, também algumas aproximações. Destacou
o protagonismo da vontade popular na emergência dos movimentos libertários nas
Américas hispânica e portuguesa. A força do indivíduo americano como sujeito histórico,
agente transformador da sua realidade sócio-política, naquele início de século, foi
identificada nas narrativas do Diário de uma viagem ao Brasil, (1990) sobre a rebelião da
Junta de Goiana em 1821 no Brasil, e também nos escritos deixados no Diário de mi
residence em Chile (1964), sobre as lutas pela Independência, do Chile. Nas palavras de
Maria Graham:

Não há nada mais interessante que a situação atual de toda a América


do Sul. Enquanto a Europa se empenhava na grande luta da Revolução,
aquela região alcançava uma posição que tornava impossível a
submissão por mais tempo a um domínio estrangeiro. Foram fatos e não
leis, que abriram os portos do Atlântico Sul e do Pacífico. Foram
também indivíduos, e não nações, que prestaram auxílio aos patriotas
do Novo Mundo. Saíram mais armas de guerra e munições para armar
os nativos contra os tiranos estrangeiros, ocultamente, dos armazéns
comerciais que dos arsenais das grandes nações. (GRAHAM, 1990,
p.20).

Ao concluirmos, percebemos que as duas Américas foram aqui aproximadas pelas


vivências cotidianas e apaixonadas da autora, durante sua permanência no Brasil e no
Chile nos anos de 1821 a 1823. Suas críticas e descrições minuciosas dos fatos
observados, de cunho intencionalmente documental, lança luz na compreensão daqueles
anos revolucionários. Nas palavras de Maria Graham:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

825
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Irrompeu a luta, parte da qual teve a autora oportunidade de


testemunhar e a respeito da qual pode colidir com alguns dados, que
poderão servir no futuro como fontes para a História. (GRAHAM,
1990, p.20).

Documentação

GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia,1990.

GRAHAM, Maria. Diário de mi residência em Chile-1822 e mi viaje ao Brasil-


1823.Madrid: Editorial América,1964.

Bibliografia

BERBEL, Marcia Regina. Autonomia e soberania às vésperas das independências


ibero-americanas (1810-1824). In: PAMPLONA, Marco & STUVEN, Ana Maria.
Estado e Nação no Brasil e no Chile do Século XIX (orgs.). Rio de Janeiro:
Garamond,2010.

CAMPOS, Raymundo Carlos Bandeira. Viagem ao Nascimento de uma nação- Diário


de Maria Graham. São Paulo: Atual.1996.

FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.

FUENTES ARAGONÉS, Juan Francisco. Las Cortes de Cádiz: Nación, soberania y


territorio. Cuadernos de História Contemporánea, 2010, vol.32, p. 17-35.

LAGO, Tomás. La Viajera ilustrada -A vida de Maria Graham. Santiago: Editorial


Planeta,2000.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

826
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

LACOMBE, Américo Jacobina. Correspondência entre Maria Graham e a imperatriz


Leopoldina e Cartas anexas. Belo Horizonte: Itatiaia ,1997.

PRADO, Maria Ligia Coelho. “ Repensando a história comparada da América


Latina”. Revista de História,153(2,2005).

SORGINE, Juliana Ferreira. A formação da Junta Governativa de Goiana e a crise do


Antigo Regime Português em Pernambuco (1821). Londrina: ANPUH- XXIII
Simpósio Nacional de História,2005, p.1-8. <Http://blogs. /Acesso em 15 de maio de
2017.

<Http:/blogs.diariodepernambuco.com.br/históriape/index.php/2016/08/22/maria-
graham-a-inglesa-que-retratou-pernambuco/Acesso em 17 de maio de 2017. Maria
Graham, a inglesa que retratou Pernambuco.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

827
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Estrutura de Posse de Cativos no distrito da Vila de Santo Antônio de Sá (1797)

DERMEVAL MARINS DE FREITAS


PPGHIS/UFF

Introdução

A Vila de Santo Antônio de Sá teve origem na antiga freguesia de Santo Antônio


de Casseribú, que de acordo com Matoso Maia Forte “foi a das primeiras das criadas no
recôncavo e, mais antiga do que ela, só apontava a da Sé do Rio de Janeiro” (FORTE,
1984: 37). Desta freguesia se desmembraram a freguesia de São João de Itaborahy, a de
Nossa Senhora do Desterro de Itamby, Nossa Senhora da Ajuda de Aguapeymirim,
Santíssima Trindade e Nossa Senhora da Conceição de Rio Bonito, que formavam o
termo da dita vila, que foi criada em 1697.
O povoamento do Vale do Macacu (região que abarca o território da Vila), remete
ao processo de expulsão dos franceses da capitania e a consequente fundação da cidade
de São Sebastião do Rio de Janeiro. A população da Vila de Santo Antônio de Sá
dedicava-se ao cultivo de alimentos, da cana-de-açúcar e consequentemente a produção
de aguardente. Através da sua extensa rede hidrográfica, a produção da vila era escoada
para a cidade do Rio de Janeiro.
No decorrer do século XVIII a capitania do Rio de Janeiro passa por uma
conjuntura favorável ao desenvolvimento econômico a partir da segunda metade do
século XVIII. Nesse momento a praça mercantil estabelecida no Rio de Janeiro se torna
a mais importante do Atlântico Sul e seu porto, a principal porta de entrada de cativos
africanos (GUEDES e FRAGOSO, 2014: 18). Neste sentido a Vila de Santo Antônio de
Sá pode ter se beneficiada, incrementando a produção de gêneros agrícolas para a agro-
exportação (tal como o açúcar e a aguardente), assim como diversificando a sua produção
alimentícia.
A “Discripção do que contém o distrito da Vila de Sant o Antônio de Sá de
Macacu feita por ordem do vice-rei do estado do Brasil, conde de Resende [D. José Luís
de Castro]” produzida em 1797 apesar de ser o mais denso quanto as informações
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

828
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

demográficas e econômicas do distrito da vila, apresenta alguns equívocos quando se


compara o somatório geral presente ao final com os dados separados por domicílio. No
resumo geral, constam 6.830 escravos do total de 11.108 habitantes, porém, quando
contabilizado os escravos dos 1.077 fogos relacionados, o número é um pouco menor:
6.811. Nesse sentido, há outras imprecisões no documento de modo que os números que
ora apresentamos destoam dos apresentados por Vinícius Maia Cardoso, em sua
dissertação de mestrado (CARDOSO, 2009).
O distrito da Vila de Santo Antônio de Sá através do mapa populacional de 1797,
compreende as freguesias da Santíssima Trindade, Nossa Senhora da Ajuda de
Aguapeymirim, Nossa Senhora do Desterro de Itamby, a freguesia sede que leva o nome
da Vila e o Aldeamento de São Barnabé, possuía 1.159 fogos no resumo geral. Contudo,
quando são discriminados os fogos com seus respectivos chefes, filhos, agregados e
produção agrícola, são apresentados 1.077 fogos, pois não foram inclusos os fogos do
antigo aldeamento jesuítico. Infelizmente o mapa populacional não apresenta
discriminado em quais freguesias estão localizados tais fogos, o que não nos permite
distinguir em detalhe as características demográficas e econômicas de cada uma destas
localidades.
Os fogos representam unidades produtivas, pois um mesmo chefe é mencionado
proprietário de outros, como por exemplo o Capitão Brás Carneiro Leão, que além de
possuir dois engenhos (um na freguesia de Santo Antonio de Sá e outro em Itambi),
também tinha uma fábrica de farinha e os Religiosos do Carmo quem eram proprietários
de um engenho de açúcar e uma fábrica de farinha.
Nesse sentido nos aproximamos da definição proposta por Iraci Del Nero Costa
que define fogo como:

“(...) edificação (ou conjunto de edificações), que se pode considerar


como uma "unidade habitacional". Em alguns casos, grupos de pessoas
ou famílias totalmente independentes -- com referência a laços de
sangue, parentesco ou subordinação -- coabitavam; tal evento mostrou-
se insignificante quando relacionado com o número total de residências.
Parcela substancial dessas residências pôde ser subdividida em
domicílios e enquadrada juntamente com as demais residências, as
quais se pode, sem restrições, assimilar ao conceito de Domicílio, ou
seja: conjunto de pessoas coabitantes que mantêm laços de parentesco

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

829
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

e/ou subordinação e vivem sob a autoridade do Chefe de Domicilio --


individuo a encabeçar a lista nominativa correspondente ao domicilio e
que podia ou não ser chefe de família. ” (Grifos do autor) (COSTA,
1982:85)

O Mapa Populacional divide os fogos por atividade profissional dos chefes dos
fogos361, quais sejam: proprietários de engenho de açúcar, fábrica de arroz, fábrica de
farinha, olarias, lavradores, serralheiros, oficiais de ofício e taverneiros. Cada registro
apresenta o nome do chefe do fogo e seu estado conjugal, extensão das terras, quantidade
de filhos e filhas divididos em grupos de maior e menoridade, número de escravos
também divididos por faixa etária e por sexo, número de agregados, número de animais
e gêneros agrícolas produzidos.

Estrutura de Posse de Escravos

Do total de 1.077 fogos, 72,9% dispunham de mão de obra escrava (785 fogos).
Percebemos, deste modo, o quanto a propriedade escrava se encontrava difundida por
amplos setores da sociedade da Vila de Santo Antônio de Sá. Manolo Florentino e José
Roberto Góes, baseando-se em inventários de proprietários do agro fluminense
apresentam a porcentagem de 88% de todos os inventariados eram donos de escravos,
entre 1790 e 1830362 (FLORENTINO e GOES, 1999:52), enquanto Ana Paula Souza
Rodrigues Machado em relação ao distrito de Guaratiba com base na estatística de 1797,
destaca que 64,6% dos domicílios possuíam escravos (MACHADO, 2015). Sheila de
Castro Faria para a Capitania do Paraíba do Sul (região atualmente conhecida como Norte
Fluminense) em 1785, demonstrou que das 1.488 unidades agrárias 65,5% possuíam
escravos (FARIA, 1998: 132). Portanto, percebemos que a difusão da mão de obra
escrava estava altamente difundida nas freguesias rurais da capitania do Rio de Janeiro,

361
Consideramos aqui chefes de domicílio segundo a definição dada por Maria Luíza Marcílio, que define
como aqueles “que encabeçam cada um dos fogos”, podendo ser “um marido, um viúvo ou viúva, ou ainda
um solteiro vivendo só ou com filhos ou dependentes”, In: MARCÍLIO, Maria Luiza, A cidade de São
Paulo: Povoamento e população (1750-1850), São Paulo: Pioneira, Ed. da Universidade de São Paulo,
1973, p.126-127.
362
Apesar dos autores não destacarem as localidades em que estes inventariados habitavam, consideramos
pertinente a comparação com os nossos dados por apresentarem um panorama geral dos proprietários rurais
do Rio de Janeiro.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

830
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

com cerca de 1/3 dos domicílios possuindo escravos, contudo, veremos a diante, essa
distribuição era desigual, com uma tendência a concentração de escravos nas mãos dos
grandes proprietários escravistas.
Observando a tabela 1, podemos verificar que 73,6% dos proprietários de escravos
possuíam pequenas escravarias de 1 a 9 cativos. Comparado com os dados de
Florentino/Góes para o Rio de Janeiro (52,0%) e de Machado para Guaratiba (52,7%), a
Vila de Santo Antônio de Sá possuía uma disseminação muito maior da posse de escravos
entre os pequenos produtores, sendo, portanto, caracterizada por pequenas unidades
escravistas (FLORENTINO e GOES, 1999:54; MACHADO, 2015:134). Da mesma
forma, como no caso de todo o agro-fluminense entre 1790 a 1830, quase um terço destes
pequenos proprietários eram constituídos por camponeses abastados (FLORENTINO e
GOES, 1999:54).
Cerca de metade dos escravistas (49,8%) possuíam de 1 a 4 cativos,
correspondendo a 12,7% do total de escravos do distrito da Vila. Por outro lado, os
proprietários de escravos que possuíam de 20 a mais de 50 cativos, correspondiam a 9,1%
dos escravistas, contudo, detinham 43,7% dos escravos da região, o que demonstra o alto
grau de concentração da propriedade escrava na região.

Tabela 1 – Posse de escravos no distrito da Vila de Santo Antônio de Sá em


1797

FTP Proprietários % Escravos %


1a4 391 49,8% 866 12,7%
5a9 187 23,8% 1226 18,0%
10 a 19 135 17,2% 1744 25,6%
20 a 49 56 7,1% 1689 24,8%
+ 50 16 2,0% 1286 18,9%
Total 785 100,0% 6811 100,0%
Fonte: Discripção do que contém o distrito da Vila de Sant o Antônio de Sá de Macacu feita por ordem do
vice-rei do estado do Brasil, conde de Resende [D. José Luís de Castro]. 07 de abril de 1797.
Arquivo Histórico Ultramarino-Rio de Janeiro. Cx. 165, doc. 62 e AHU_ACL_CU_017, Cx.161, D.
12071.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

831
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A tabela 2 distribui os proprietários de escravos por tipo de produção, na fonte, a


separação dos domicílios foi organizado da seguinte forma: primeiro aqueles que
detinham fábricas onde eram processadas as matérias primas, desse modo temos os
proprietários de engenho, de fábricas de arroz363, fábricas de farinha e olarias; em segundo
lugar vinham os despossuídos de fábricas: lavradores, oficiais de ofício (pedreiro,
carpinteiro, ferreiro, sapateiro, etc.), serradores e taverneiros. Para os objetivos deste
presente trabalho, agregamos as atividades voltadas para o artesanato (olarias, oficiais de
ofício e serradores) e comércio (taverneiros), por não apresentarem características tão
díspares entre elas, enquanto nas atividades agrícolas decidimos utilizar a classificação
utilizada pela fonte, por apresentarem características bem específicas uma das outras,
como veremos a seguir.
Observando a tabela 2 podemos perceber que os proprietários da faixa de mais de
50 escravos eram senhores de engenho e de fábricas de farinha. Apesar de
corresponderem a 34,8% dos proprietários de escravos das unidades agrícolas, os
senhores de engenho e de fábricas de farinha detinha cerca de dois terços de todos os
escravos deste setor, enquanto os lavradores que correspondiam 65,1% dos proprietários
de escravos, possuíam um terço dos cativos. Como é possível verificar a designação de
lavrador não correspondia a pequenos proprietários, alguns deles (2,5% do total)
possuíam escravarias médias de 20 a 49 escravos. Contudo, a massa de cativos dos ditos
lavradores e proprietários dos mesmos se encontravam na faixa de 1 a 9 escravos,
correspondendo 86,7% do total de proprietários e 59,9% dos escravos.
No artesanato, 30,1% dos escravos se encontravam na faixa de tamanho de posses
de 1 a 4 escravos, ausentes no 5 a 9, e retornam nas faixas de 10 a 19 e 20 a 40, com
46,6% e 23,3% dos escravos nessas faixas respectivamente, enquanto os proprietários se
encontravam majoritariamente na primeira faixa, correspondendo a 82,6% dos domicílios
dedicados ao artesanato. No setor do comércio a presença de proprietários e de escravos
se limita a faixa de 1 a 20 cativos, com presença marcante de proprietários na primeira
faixa e com aproximadamente um terço de escravos em cada faixa de tamanho de posses.

363
Não foi encontrada a propriedade escrava nas fábricas de arroz, possivelmente utilizavam trabalho
escravo de suas outras propriedades, já que todos os 2 proprietários eram também possuidores de engenhos
de açúcar.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

832
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Tabela 2 – Distribuição de cativos em diferentes faixas de tamanho de posse de


escravos e atividades produtivas (1797)

1a4 5a9 10 a 19 20 a 49 mais de 50 Total


Atividade # % # % # % # % # % # %
Eng. Açúcar 0 0,0 17 1,1 14 0,9 392 26,1 1.078 71,8 1.501 22,0
Eng. Farinha 121 4,4 441 16,0 1019 37,0 963 35,0 208 7,6 2752 40,4
Lavradores 665 29,1 704 30,8 609 26,6 310 13,5 0 0,0 2288 33,6
Artesanato 31 30,1 0 0 48 46,6 24 23,3 0 0 103 1,5
Comércio 49 29,3 64 38,3 54 32,3 0 0 0 0 167 2,5
Total 866 12,7 1.226 18 1.744 25,6 1.689 24,8 1.286 18,9 6.811 100
Fonte: Discripção do que contém o distrito da Vila de Sant o Antônio de Sá de Macacu feita por ordem do
vice-rei do estado do Brasil, conde de Resende [D. José Luís de Castro]. 07 de abril de 1797.
Arquivo Histórico Ultramarino-Rio de Janeiro. Cx. 165, doc. 62 e AHU_ACL_CU_017, Cx.161, D.
12071.

Tabela 3 – Distribuição de proprietários em diferentes faixas de tamanho de posse


de escravos e atividades produtivas (1797)

1a4 5a9 10 a 19 20 a 49 mais de 50 Total


Atividade # % # % # % # % # % # %
Eng. Açúcar 0 0 2 7,4 1 3,7 11 40,7 13 48,1 27 3,4
Eng. Farinha 49 22 65 28,9 76 33,8 32 14,2 3 1,3 225 28,7
Lavradores 298 63 110 23,4 51 10,8 12 2,5 0 0,0 471 60,0
Artesanato 19 82,6 0 0 3 13 1 4,3 0 0 23 2,9
Comércio 25 64,1 10 25,6 4 10,3 0 0 0 0 39 5,0
Total 391 49,8 187 23,8 135 17,2 56 7,1 16 2 785 100
Fonte: Discripção do que contém o distrito da Vila de Sant o Antônio de Sá de Macacu feita por
ordem do vice-rei do estado do Brasil, conde de Resende [D. José Luís de Castro]. 07 de abril de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

833
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

1797. Arquivo Histórico Ultramarino-Rio de Janeiro. Cx. 165, doc. 62 e AHU_ACL_CU_017,


Cx.161, D. 12071.

Separando os sexos da população cativa, percebemos uma proporção maior de


homens escravos com relação as mulheres. Computando a média geral, 56,1% da
população cativa era masculina, a razão de sexo era relativamente baixa: haveria,
portanto, 127 homens para cada 100 mulheres. De acordo com Sheila de Castro Faria,
para a região do Campo dos Goytacazes em 1840, a baixa razão de sexo se dava em
regiões de ocupações mais antiga (CASTRO, 1999: 296).
A proporção de homens e mulheres escravas apresentou grandes desequilíbrios
nas faixas de 1 a 4 cativos e nas propriedades escravistas com mais de 50 escravos (161,9
e 139,9 homens para cada cem mulheres). O mais próximo do equilíbrio foi a faixa de 10
a 19 cativos com 108,1 homens para cada cem mulheres.

Tabela 6 – Proporção de homens e mulheres escravas por tamanho de posse de


cativos no distrito da Vila de Santo Antônio de Sá (1797)

HOMENS MULHERES
FTP # % # % Total R/S
1A4 535 61,8 331 38,2 866 161,6
5A9 680 55,5 546 44,5 1226 124,5
10 A 19 906 51,9 838 48,1 1744 108,1
20 A 49 949 56,2 740 43,8 1689 128,2
50 + 750 58,3 536 41,7 1286 139,9
TOTAL 3820 56,1 2991 43,9 6811 127,7
Fonte: Discripção do que contém o distrito da Vila de Sant o Antônio de Sá de Macacu feita por ordem do
vice-rei do estado do Brasil, conde de Resende [D. José Luís de Castro]. 07 de abril de 1797.
Arquivo Histórico Ultramarino-Rio de Janeiro. Cx. 165, doc. 62 e AHU_ACL_CU_017, Cx.161, D.
12071.

Considerando a proporção de homens e mulheres escravos por sexo, faixa de


tamanho de posses e atividade produtiva percebemos o grande desequilíbrio entre os
sexos na faixa de um a quatro cativos em todas as atividades, sendo maior no artesanato
e no comércio, e mais próximo do equilíbrio na agricultura, porém maior nas fábricas de
farinha do que entre os lavradores. Há uma tendência geral de diminuição do

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

834
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

desequilíbrio entre os sexos nas segundas e terceira faixa de tamanho de posses, voltando
a crescer na última faixa (mais de 50 cativos).
Considerando as atividades agrícolas, permanece o grande desequilíbrio entre os
sexos dos escravos na faixa de 1 a 4 cativos, tanto nas fábricas de farinha (66,1% de
homens), quanto entre os lavradores (59,7% de homens). Em todas as faixas de tamanho
de posse é entre os lavradores que se encontra o menor desequilíbrio entre os sexos dos
escravos.
Assim como no artesanato como no comércio, a pequena representatividade de
proprietários dificulta generalizações nos engenhos de açúcar e nas fábricas de farinha,
na faixa de 5 a 9 cativos, foram apenas dois os senhores de engenhos, assim como na
faixa de mais de 50 cativos, foram encontrados apenas três proprietários de fábricas de
farinha.

Tabela 7 – População escrava por sexo, atividade produtiva e faixa de tamanho de


posses (1797)
Atividade Faixa de tamanho de posses de escravos
1a4 5a9 10 a 19 20 a 49 Mais de 50
H M H M H M H M H M
E. açúcar 41,2 58,8 71,4 28,6 61,7 38,3 61,3 38,7
F. farinha 66,1 33,9 58,5 41,5 52,0 48,0 54,8 45,2 42,8 57,2
Lavradores 59,7 40,3 53,7 46,3 51,1 48,9 53,9 46,1
Artesanato 74,2 25,8 56,3 43,8 50,0 50,0
Comércio 71,4 28,6 57,8 42,2 51,9 48,1
Fonte: Discripção do que contém o distrito da Vila de Sant o Antônio de Sá de Macacu feita por ordem do
vice-rei do estado do Brasil, conde de Resende [D. José Luís de Castro]. 07 de abril de 1797.
Arquivo Histórico Ultramarino-Rio de Janeiro. Cx. 165, doc. 62 e AHU_ACL_CU_017, Cx.161, D.
12071

O mapa da população do distrito da Vila de Santo Antônio de Sá apesar de não


apresentar dados específicos sobre a idade dos escravos, naturalidade (se africano ou
crioulo), “cor” ou qualidade de cor, e estado conjugal, apresenta a divisão deste entre
crianças e adultos, nos possibilitando compreender o quantitativo populacional destas
duas grandes faixas etárias.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

835
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Na média geral as crianças representavam cerca de um terço do total da população


escrava, isto é 28,9%. Há uma tendência do crescimento da participação de crianças
conforme o aumento da faixa de tamanho de escravos, nesse sentido, nas pequenas
propriedades (de 1 a 4 e de 5 a 9 cativos) temos respectivamente, os percentuais de 15,5%
de crianças e 26,1% nas médias escravarias (de 10 a 19 cativos) os percentuais são, 33,5%
de crianças e nas grandes escravarias ( de 20 a 49 e de faixa de mais de 50 cativos), 32%
e 30,5% dos escravos são crianças. De acordo com Slenes, há uma relação entre
crescimento da participação de crianças conforme aumenta o tamanho das escravarias, e
isto se explicaria pelo fato da existência de uma “proibição de casamentos “fora de casa”,
e a maior dificuldade que as mulheres nos plantéis pequenos enfrentavam para encontrar
parceiros sexuais que pertenciam ao mesmo senhor. ”(SLENES, 1987: 223)
Os adultos eram majoritários nas pequenas escravarias, correspondendo 84,5%
dos escravos nessa faixa de posse. Considerando o grande desequilíbrio entre os sexos e
a necessidade de braços cativos, principalmente de homens, nas pequenas unidades
escravistas, era de se esperar tal quantitativo. De acordo com Manolo Florentino era baixa
a importação de crianças escravas dos portos africanos “a porcentagem de escravos com
menos de 10 anos de idade: 4%” (FLORENTINO, 2015:59). Desse modo a maior parte
dessas crianças deveriam ter nascidos nessas escravarias e devido a desproporção dos
sexos dos escravos, diminuta deveria ser a reprodução natural desses cativos. De acordo
com Heloísa Maria Texeira, a razão da maior participação de adultos com relação as
crianças se dá:

“a) devido ao menor número de escravos (muitas vezes não iam além
da unidade) e considerando a dificuldade de enlaces entre escravos de
propriedades distintas, os pequenos plantéis eram menos propícios à
formação de famílias e, consequentemente, menos propícios à
reprodução; b) a conservação de escravos mais produtivos e a venda das
crias destes pequenos plantéis para outros maiores, ou seja, um pequeno
escravista nem sempre tinha condições de manter crianças sem que
estas dessem retorno à produção; e c) cada criança nascida e mantida
no pequeno plantel aumenta a possibilidade de que este mesmo plantel
tenha passado de pequeno a pequeno-médio (seis a dez escravos).”
(TEIXEIRA, 2001:80)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

836
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Já na faixa de 10 a 19 cativos é onde se encontra o maior equilíbrio de homens e


mulheres, o que poderia gerar uma taxa de reprodução natural elevada, o que pode ser
comprovado com o maior percentual de crianças nessa faixa de tamanho de posses.
Provavelmente era nas médias escravarias que haveria um ambiente mais favorável para
a formação de famílias escravas e, considerando os dados relativas as atividades
produtivas, eram nas fábricas de farinha e nas plantações dos lavradores os grandes
responsáveis por essa proporção (as fábricas de farinha e as plantações dos lavradores
correspondem 93,3% do total das atividades produtivas inseridas na faixa de 10 a 19
escravos).

Tabela 8 – Proporção de crianças e adultos escravos por faixa de tamanho de posses


de escravos (1797)

Crianças Adultos Total


FTP # % # % #
1a4 134 15,5 732 84,5 866
5a9 320 26,1 906 73,9 1226
10 a 19 584 33,5 1160 66,5 1744
20 a 49 541 32,0 1148 68,0 1689
50 + 392 30,5 894 69,5 1286
Total 1971 28,9 4840 71,1 6811
Fonte: Discripção do que contém o distrito da Vila de Sant o Antônio de Sá de Macacu feita por ordem do
vice-rei do estado do Brasil, conde de Resende [D. José Luís de Castro]. 07 de abril de 1797.
Arquivo Histórico Ultramarino-Rio de Janeiro. Cx. 165, doc. 62 e AHU_ACL_CU_017, Cx.161, D.
12071.

O percentual de mulheres cativas crianças se mostra maior que o das mulheres


adultas, em todas as faixas de tamanho de posses, e no conjunto perfazem 46,4% do total
de crianças em oposição aos 42,9% dos adultos. Novamente é a faixa de 10 a 19 cativos
que se verifica o maior equilíbrio entre os sexos nas crianças.

Tabela 9 – Proporção de crianças e adultos escravos por sexo e por faixa de tamaho
de posses de escravos. (1797)

Crianças Adultos

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

837
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

FTP H % M % H % M %
1a4 82 61,2 52 38,8 453 61,9 279 38,1
5 a 9 175 54,7 145 45,3 505 55,7 401 44,3
10 a 19 291 49,8 293 50,2 615 53,0 545 47,0
20 a 49 289 53,4 252 46,6 660 57,5 488 42,5
+ de 50 220 56,1 172 43,9 530 59,3 364 40,7
Total 1057 53,6 914 46,4 2763 57,1 2077 42,9
Fonte: Discripção do que contém o distrito da Vila de Sant o Antônio de Sá de Macacu feita por ordem do
vice-rei do estado do Brasil, conde de Resende [D. José Luís de Castro]. 07 de abril de 1797.
Arquivo Histórico Ultramarino-Rio de Janeiro. Cx. 165, doc. 62 e AHU_ACL_CU_017, Cx.161, D.
12071.

Conclusão

Buscamos ao longo deste capítulo estudar as características demográficas do


distrito da Vila de Santo Antônio de Sá. A posse de escravos estava disseminada em todas
as atividades produtivas em amplos setores desta sociedade, cerca de três quartos da
população livre possuíam mão de obra escrava. Apesar da difusão da propriedade escrava,
percebemos a concentração dela nas mãos de poucos escravistas.
Os escravos foram utilizados em praticamente todas as atividades econômicas,
porém percebemos o predomínio nas atividades agrícolas. Nestas se encontravam os
maiores proprietários, primeiramente os senhores de engenho de açúcar, seguido dos
fabricantes de farinha, porém até mesmo entre os lavradores, se verificou grandes posses
de escravos, o que demonstra que a posse ou não de uma fábrica de engenho/açúcar
fossem determinantes para o tamanho das escravarias.
As escravarias de tamanho médio, principalmente aquelas destinas as fábricas de
farinha e entre os lavradores, apresentavam equilíbrio entre os sexos dos escravos, assim
como percentuais elevados de crianças de ambos os sexos. Percebemos assim, que nesta
faixa de tamanho de posses os escravos teriam condições melhores para encontrarem um
parceiro e estabelecerem relações conjugais.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

838
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARDOSO, Vinicius Maia. Fazenda do Colégio: Família, fortuna e escravismo no Vale


do Macacu séculos XVIII e XIX. Universidade Salgado de Oliveira. Niterói. 2009.
Dissertação de Mestrado.

COSTA, Iraci Del Nero Costa. Minas Gerais: estruturas populacionais típicas. São
Paulo: EDEC,1982.

FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano


colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

FLORENTINO, Manolo; GOES, José Roberto. Na Senzala Uma Flor – Esperanças e


recordações na Formação da Família Escrava. Brasil Sudeste, Século XIX. Editora Nova
Fronteira: Rio de Janeiro, 1999.

_____________________. Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de


Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: UNESP. 2015.

GUEDES, José Roberto e FRAGOSO, João Luíz Roberto. Notas sobre transformações e
a consolidação do sistema econômico do Atlântico luso no século XVIII, In: O Brasil
Colônial, volume 3, ca. 1720- ca. 1821). FRAGOSO, João Luiz Roberto e GOUVÊA,
Maria de Fátima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

MACHADO, Ana Paula Souza Rodrigues. “Mapa populacional de freguesias rurais do


Rio de Janeiro. O distrito de Guaratiba em 1797.” In: Revista Brasileira de História &
Ciências Sociais, Vol. 7, nº14, Dezembro de 2015. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.14295/rbhcs.v7i14.311

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

839
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MARCÍLIO, Maria Luiza, A cidade de São Paulo: Povoamento e população (1750-


1850), São Paulo: Pioneira, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.

SLENES, Robert. “Escravidão e família: padrões de casamento estabilidade familiar


numa comunidade escrava (Campinas, século XIX). Estudos Econômicos. São Paulo,
17(2), p. 217-227, maio/ago, 1987.

TEIXEIRA, Heloísa Maria. Reprodução e famílias escravas em Mariana, 1850-1888.


São Paulo: 2001. Dissertação (Mestrado em História) - USP.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

840
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O “Espião Nazista” Raymundo Padilha

DIEGO DA SILVA RAMOS


PPGHS/UERJ/FFP
FAPERJ

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho, ainda em estágio inicial, tem como objetivos aprofundar as


pesquisas em torno da figura do ex-governador do estado do Rio de Janeiro, Raimundo
Delmiriano Padilha. Partindo da sua formação ainda na Ação Integralista Brasileira, onde
chegou a ser o segundo na hierarquia do grupo e representando no Brasil o líder Plínio
Salgado, passando pela denúncia de espionagem nazista no período da Segunda Guerra
Mundial. Focaremos ainda no anticomunismo de Padilha nos anos 1950 e 1960,
relacionando-o com seu passado integralista, para com isso, tentarmos resgatar a memória
e as heranças integralistas que são levadas para o interior da ditadura militar.
O integralismo como doutrina se desarticula com a implantação do Estado Novo,
mas as ideias integralistas persistem e são carregadas com seus porta-vozes para dentro
dos porões da ditadura. Faz-se necessário entender até que ponto essas ideias se
enraizaram e como foram recebidas pelos arquitetos do regime. Sendo assim, chegando
no período em que Padilha assume o governo do estado do Rio de Janeiro, no auge de seu
poder político, mas que teve uma rápida decadência. É importante entendermos ainda, o
processo que leva ao apagamento da figura de Padilha e como esse processo pode ter
afetado outros líderes integralistas, que passaram por processo semelhante durante a
ditadura militar.
No entanto, no atual momento em que a pesquisa se encontra, propomos uma
análise mais detalhada da participação de Padilha num esquema de espionagem durante
os anos de 1940 no Brasil. E de como tais acusações foram importantes como construtores
da trajetória política do mesmo, que tem nesse episódio um grande argumento contra
Padilha, mas bastante favorável ao discurso de seus opositores.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

841
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

2. ESPIONAGEM ALEMÃ NO BRASIL DURANTE A SEGUNDA GUERRA


MUNDIAL

A Segunda Guerra Mundial foi um conflito de proporções inéditas que ocorreu


entre os de 1939 e 1945. Para autores como Eric Hobsbawn, tal conflito nada mais é do
que uma continuidade da Primeira Guerra (HOBSBAWN, 2011). Derrotada no conflito,
a Alemanha foi talvez a nação que mais tenha sofrido sanções após 1918. Culpabilizados
pelos danos causados na guerra, os alemães se encontravam em uma situação de caos
político, econômico e social. Entendiam que as imposições do Tratado de Versalhes
foram deveras pesadas e possuíam um cunho humilhante e vingativo por parte,
principalmente, da França. É através dessa perspectiva que os alemães vão gestar as suas
frustrações e seu ódio contra os seus oponentes. Por um discurso baseado na dualidade
"humilhação/vingança" os fascistas alcançaram o poder já em 1934 (SILVA, 2011).
Numa Europa dividida entre a manutenção das imposições de Versalhes, os
esforços para evitarem um novo conflito e o desejo contido de evitarem a expansão
socialista pelos países fragilizados pelo conflito, as principais lideranças assistiram
"apaziguadoramente" a construção de um Estado fascista tanto na Itália, quanto na
Alemanha. Um Estado que dentro de suas bases ideológicas enxergava no expansionismo
e na retomada de territórios perdidos ainda na Primeira Guerra a solução para parte de
seus problemas: a ocupação de territórios que abrigassem populações germânicas foi um
engodo para a conquista do continente e, de acordo com os planos para o futuro, a
formação de um reino "puro" e dominante do resto do mundo. Neste contexto, desenhou-
se o a Segunda Guerra Mundial (HOBSBAWN, 2011).
Com o início do conflito e a expansão dos tentáculos fascistas por praticamente
toda Europa, o projeto do governo alemão agora era o de garantir seus domínios pelos
demais territórios do globo. O Norte da África, a Ásia (contando com o apoio do governo
fascista japonês) e a América (HOBSBAWN, 2011). Para garantir êxito a tal projeto e,
ainda promover a manutenção do poderio sobre os territórios já conquistados, o governo
fascista da Alemanha colocou em funcionamento uma poderosa rede de informação e
espionagem. Porém, na prática, a tal rede militar de informações em princípio teve como
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

842
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

atribuição central municiar a marinha e o exército sobre as principais movimentações


comerciais e militares que ocorriam no Oceano Atlântico, principalmente as atividades
desde a Costa Leste dos Estados Unidos, passando pelo Caribe e chegando ao Nordeste
brasileiro, entendido pelo governo alemão como local propício para um futuro
desembarque de tropas no continente americano, ou seja, o nordeste brasileiro serviria
como "cabeça de ponte" para agilizar as manobras militares de invasão vindas do norte
da África (MOURA, 1991).
Utilizando como principal fonte a obra "Suástica Sobre o Brasil" de Stanley E.
Hilton, realizando o trabalho de conferência e checagem através da comparação com
dados levantados no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e na Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional, buscaremos uma tentativa de reconstrução dos
acontecimentos discretos, porém efervescentes que dominaram o âmbito das relações
diplomáticas entre Brasil, Estados Unidos e Alemanha e que veremos, mais adiante,
contou com a participação do ex-integralista Raimundo Padilha. O trabalho de Hilton
relata detalhadamente e com farta descrição de fontes primárias coletadas nos arquivos
dos governos estadunidense e brasileiro que durante a guerra grupos de espiões alemães
agiram deliberadamente dentro do território brasileiro, tanto nas grandes cidades como
no interior, captando informações políticas e comerciais, públicas ou secretas e enviando
as mesmas através de rádios transmissores que contactavam diretamente o III Reich
alemão. Tais grupos contavam ainda com a participação intensa de alguns brasileiros, em
sua maioria, ligados ao integralismo.
Inicialmente, durante os anos 1930, agentes alemães vieram para o Brasil com
dinheiro para formar uma rede de informações que contava com duas frentes: a cooptação
de informantes (sejam eles germânicos, húngaros, portugueses e até mesmo brasileiros
simpáticos à causa fascista) que se infiltravam sempre em atividades ligadas aos ramos
econômicos ou de informações e a criação de bases para transmissão das informações
obtidas (aluguel de casas, recebimento de equipamento, compra de peças, contratação de
pessoal de manutenção especializado). Era uma tarefa difícil, pois a rede de informações
crescia a cada dia, o que demandava o cuidado cada vez maior com o sigilo e a
disponibilidade de capitais para bancar toda a empreitada. Manter em funcionamento as
estações demandava um custo relativamente alto, constando na pauta de despesas além
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

843
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

dos gastos acima, a compra do silêncio de pessoas e autoridades (HILTON, 1977).


Uma vez construídas, as estações de radiotransmissão não representavam um
facilitador como aparentemente possa ser. A aparelhagem era cara, requeria manutenção
constante e geralmente não se encontravam peças com facilidade tendo que comumente
se importarem componentes da própria Alemanha. Eram poucos os técnicos confiáveis e
vez ou outra eram necessárias mudanças às pressas quando geravam-se suspeitas sobre
as estações.
A principal atividade das estações de radiotransmissão era o envio de informações
privilegiadas referentes a movimentação de navios de carga ou militares, ingleses ou
americanos, que estivessem circulando pela costa brasileira. Outro alvo dos informantes
eram as manobras militares que, com a chegada dos anos de 1940, tornaram-se cada vez
mais constantes no nordeste brasileiro, principalmente operados pelos americanos. As
fontes das informações iam basicamente das óbvias publicações dos jornais brasileiros
(consideradas como informações de relevância reduzida devido a sua publicidade e
censura do governo), relatos passados por funcionários dos portos (comprados com o
dinheiro de Berlim) e até mesmo a abertura de empresas de fachada para fazer a
interceptação de informações comerciais privilegiadas referentes aos navios atracados
nos portos. Alguns métodos de coletar informações eram inusitados como o exemplo de
um português que por nascer em Goa e falar hindu tornou-se tradutor para a polícia civil
do Distrito Federal. Tal trânsito transformou o informante numa peça importante, pois ao
mesmo tempo em que era próximo de policiais simpáticos ao governo alemão (garantindo
assim algumas informações), conseguia dados de navios ingleses que tinham tripulantes
indianos, sendo uma demonstração da versatilidade dos agentes e da capacidade de
infiltração do Abwehr (HILTON, 1978: 41).
A deterioração das gerações entre Brasil e Alemanha e o amadurecimento da
aproximação do governo brasileiro e o governo americano (MOURA, 1991) fez com que
a atividade dos espiões sofresse um duro golpe. Após a prisão de alguns espiões nos
Estados Unidos feitas pelo FBI, a importância do funcionamento da seção brasileira da
inteligência militar aumentou, pois eram praticamente os únicos a enviarem informações
provenientes da América para os alemães. No entanto, a possibilidade da existência de
espiões germânicos em nosso país era cada vez mais cogitada pelas autoridades militares
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

844
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(brasileiras e americanas) e ainda mais divulgada nos meios de comunicação. Nesse


sentido, a observação a elementos suspeitos de colaborarem com "uma suposta rede de
espionagem" era um entrave que dificultaria a ação dos agentes.
Com esse novo quadro surgindo e a rápida aproximação entre Brasil e Estados
Unidos, eram cada vez mais comuns as demonstrações populares de descontentamento
com o fascismo. Talvez, o auge dessas demonstrações foram os protestos pelo
afundamento de navios brasileiros por supostos navios germânicos. Este fato coloca o
Brasil na lista dos países antieixistas e o governo brasileiro, incentivado pelo governo
americano inicia suas demonstrações de sentimentos antinazistas pelo Brasil. Neste
cenário o trabalho dos agentes é cada vez mais dificultado. Em contrapartida é crescente
o alistamento voluntário de novos agentes simpáticos a causa alemã, motivados talvez
pela radicalização política que tomou conta do país após a declaração de guerra. Com o
fechamento do cerco em relação à atuação de elementos suspeitos colaboracionistas no
Brasil, outros métodos de envio de informação são experimentados como camuflar dados
em fardos de algodão da movimentação de navios ingleses ou o envio de desenhos dos
aeroportos construídos no Nordeste pelos Estados Unidos (HILTON, 1977: 47). Mesmo
com toda a dificuldade, é importante ressaltar que os agentes buscavam sempre
diversificar os seus métodos e promoverem grandes esforços em favor do Eixo, pois a
grande maioria trabalhava movida por um sentimento ideológico à causa fascista. Por
isso, além dos tradicionais agentes formados pela inteligência alemã, o conjunto de
informantes contava com marinheiros, militares, policiais, empresários e comerciantes
que colaboravam desde a forma mais complexa de colaboração (como abertura de
empresas de fachada) até formas mínimas como o caso da "Zeiss Ótica" que fotografou
recortes de uma revista norte-americana a fim de abastecer com informações o Reich.
Logicamente, com os ânimos se acirrando entre os Estados Unidos e a Alemanha, a guerra
naval no Atlântico era cada vez mais acirrada e o interesse pelas atividades navais era
cada vez maior. A dificuldade imposta pela nova realidade da guerra fazia com que a
Alemanha aumentasse os seus esforços procurando novos agentes. Em contrapartida, os
que se alinhavam ideologicamente ao eixo externavam seu sentimento através de maior
dedicação na colaboração.
A colaboração de elementos de origem germânica no Brasil era relativamente
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

845
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pequena em relação a quantidade de imigrantes que aqui residiam. Analisando por um


lado, temos uma situação que até mesmo era esperada, ou seja, cidadãos germânicos que
direta ou indiretamente poderiam colaborar com seu antigo país. No entanto, o mais
curioso é quando começamos a perceber a colaboração de brasileiros com os nazistas.
Como já vimos a polícia carioca dispunha de membros que colaboravam com
informações que pudessem ajudar os elementos nazistas, como o caso do português que
trocava informações com a polícia ou ainda membros da polícia que removiam processos
dos arquivos e repassavam a terceiros. (HILTON, 1977: 79).

3. A ATUAÇÃO DOS INTEGRALISTAS DURANTE A SEGUNDA GUERRA


MUNDIAL

Uma intensa atividade de espionagem, contra-espionagem, propaganda,


sabotagem e colaboracionismo se formou no Brasil fomentado por ex-integralistas que,
frustrados pelas últimas contendas com o governo Vargas e a ilegalidade da AIB,
passaram a se dedicar às atividades ilegais de apoio ao Reich. Não cabe nesse momento
novamente um detalhamento do modus operandi dos agentes, que vez ou outra, pouco se
diferenciava das ações dos agentes alemães. Integralistas como Álvaro da Costa e Souza,
Valêncio Wurch Duarte, Túlio Régis do Nascimento, Gerardo Mello Mourão, Oswaldo
Rieffel França e ainda Raimundo Padilha atuaram de maneira significativa na criação de
uma rede que promovia uma verdadeira linha direta o “sigma e a suástica” (HILTON,
1977: 297).
Auxiliando mais diretamente ou com contribuições menores, os ex-integralistas
atuaram de maneira a colaborar com o esforço de guerra nazista. De todos os
colaboradores, o mais notório foi Túlio Régis do Nascimento. Capitão licenciado do
exército brasileiro por problemas de saúde, “Túlio era integralista exaltado e partidário
feroz dos regimes totalitários” (HILTON, 1977: 298) e por diversas vezes seus colegas
testemunharam afirmações pró-germânicas vindas dele. Sua simpatia pelos eixistas pode
ser explicada pela sua adesão ao integralismo. Sua participação na rede de espionagem
germanófila foi provavelmente a mais direta e também conhecida dentre os inúmeros
brasileiros que auxiliaram o Reich. A atuação de Nascimento se iniciou de maneira
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

846
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

voluntária e seu papel deveria ser no sentido de conseguir novos brasileiros que atuassem
junto ao levante de informações. Ainda no início de sua carreira como espião, Túlio já
havia sido interceptado em uma missão: uma viagem aos Estados Unidos que o mesmo
faria no intuito de captar informações militares. O processo contra Túlio não foi avante
nesse caso, pois o chefe da polícia carioca, Filinto Muller, um elemento com simpatia
germânica, procurou Régis Nascimento para repreendê-lo sobre o seu vacilo e apenas fez
uma oitiva e liberou o suspeito. Não ouve abertura de inquérito por parte de Muller
(HILTON, 1977: 301).
Percebendo a liberdade que possuía Túlio continuou a agir. Outro membro da rede
de informações foi Gerardo Mello Mourão. Jornalista com inspirações notoriamente
germânicas, integralista, tinha uma grande rede de contatos profissionais e
consequentemente ideológicos com membros dos serviços de notícias alemães. A atuação
de Gerardo caminhava no mesmo sentido dos outros agentes que era o de captar as
informações e repassá-las a um agente alemão que faria a transmissão das mesmas via
rádio. Vale destacar que o manuseio de equipamento de radiotransmissores na maioria
das vezes ficava sobre o controle de alemães e a parte que cabia geralmente aos brasileiros
era a de manutenção do aparato.
A atuação desses agentes já constava da primeira metade dos anos 1940 e o grupo
brasileiro já não encontrava as mesmas condições favoráveis de coleta de informações e
repasse das mesmas para a mão dos eixistas. Embora com participações menores,
Oswaldo Rieffel França e Valêncio Wurch Duarte, (suas missões consistiam em
transportar mensagens entre elementos brasileiros), estes integralistas também
compunham o núcleo de espionagem montado pelos ex-partidários do sigma, uma
verdadeira "célula verde" de espionagem nazista no Brasil.
No entanto de todos os integralistas relatados nos autos dos processos, quem mais
nos chamou a atenção foi Raimundo Padilha. Segundo homem da hierarquia integralista
e o representante dos interesses políticos de Plínio Salgado no Brasil. Além disso, Padilha
se tornaria elemento político importante no pós-guerra chegando a ocupar os cargos de
deputado federal pelo Partido de Representação Popular (PRP), pela União Democrática
Nacional (UDN) e Aliança Nacional Renovadora (ARENA), alcançando ainda o posto de
governador do estado do Rio de Janeiro durante a ditadura militar (CALIL, 2001). Por
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

847
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

esse motivo, acreditamos ser de suma importância não só o conhecimento do passado


integralista dele que já foi explorado por Alexandre Oliveira em sua dissertação de
mestrado. Entendemos que a colaboração, mesmo que relutante, de Padilha com o eixo
associado ao seu passado integralista e a sua carreira vindoura na política brasileira fez
com que ele se torne uma peça interessante de análise sobre um questionamento que se
sobressai neste caso: como um brasileiro envolvido com acusações mal explicadas de
colaboracionismo com as forças nazistas chegou a ocupar cargos tão importantes em
nossa república? E para contribuirmos com tal análise é importante que possamos
entender melhor o que possivelmente ocorreu quando Padilha, pela primeira vez, foi
contactado pelo grupo de Túlio Régis do Nascimento para que o mesmo colaborasse em
seu trabalho quinta-colunista.
De acordo com os testemunhos dados pelos elementos detidos à época e com o
próprio depoimento de Padilha, o esquema de espionagem envolvendo o mesmo tem
origem com as ligações entre Túlio Régis do Nascimento e Gerardo Melo Mourão. A
relação entre esses dois elementos tinha como objetivo inicial dar continuidade com os
trabalhos de espionagem e sabotagem que já vinham sendo realizados por Régis
Nascimento. Como já havia ganhado a confiança das células alemãs aqui, o ex-militar
recebeu uma missão mais complexa, onde deveria providenciar o levantamento sobre a
construção de bases americanas no Rio Grande do Norte. Importante notarmos que tanto
Régis Nascimento, quanto Mello Mourão alegaram em seus depoimentos que o seu
principal objetivo era dificultar uma possível "conquista militar do Brasil pelos Estados
Unidos", deixando claro com essa fala suas visões nacionalistas naquele momento
(HILTON, 1977: 308). O que, no entanto, é assaz contraditório na medida em que sendo
figuras pró-germânicas, certamente esperavam que as forças alemãs em algum momento
fizessem algum tipo de ação semelhante à dos americanos, ou seja, certa hora os alemães
também desembarcariam em solo brasileiro.
Como conterrâneo de Padilha e conhecido de outras datas, Mello Mourão
procurou o representante de Salgado no Brasil a fim de que este conseguisse alguém
disposto a realizar a viagem ao Rio Grande do Norte e tivesse a habilidade necessária
para captar as informações. O plano era relativamente simples de ser executado, embora
as informações fossem de grande valor. Assim como a recompensa oferecida a Padilha,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

848
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que era de onze contos e quinhentos para as despesas da época e "um armamento que
consistiria em trezentas a mil metralhadoras de mão que seriam colocadas em qualquer
ponto da costa do Brasil que Padilha indicasse e trazidas por submarinos alemães"
(HILTON, 1977: 308). Mediante a proposta, Padilha inicialmente não aceita a oferta,
mas, algum tempo depois, volta a procurar Mello Mourão com a opinião mudada. Nossa
hipótese ainda é a de que Padilha teria ido consultar Salgado sobre a permissão para a
missão. De acordo com o plano que foi executado, Padilha enviaria a Natal Carlos
Astrogildo Correa, um oficial da reserva de confiança que traz consigo informações sobre
as bases e movimentação das tropas americanas.
Em seu retorno do Nordeste, Correa entrega a Padilha um relatório detalhado do
que consegue de informações. No entanto, Padilha volta atrás, devolve o dinheiro a Mello
Mourão e recusa-se a mostrar o relatório para Túlio Régis. Até o momento, a pesquisa
não consegue identificar o motivo que levou Padilha a tomar tal decisão. O mais curioso,
contudo, é que Padilha em outra oportunidade deixa Mello Mourão ver o relatório e este,
astutamente, copia as informações e repassa-as a Túlio Régis, o que se configura, em
nosso entendimento, algumas observações relevantes. O primeiro ponto é o fato de que
Raimundo Padilha aceitou, mesmo com relutância, a missão. Mesmo consciente de todas
as violações que estava cometendo, o integralista envia seu agente à missão, que retorna
com material produzido. Além disso, chama a atenção uma proposta de Túlio Régis que
fez Padilha mudar de ideia, quando os onze contos são oferecidos e a disposição das
metralhadoras para os integralistas. Na verdade, Padilha não aceita a missão com o
primeiro argumento de Túlio, de que seria uma empreitada para barrar os interesses
estadunidenses no Brasil. Talvez Padilha tenha avaliado que o risco e o custo eram altos
e o retorno, relativamente pequeno. Mas a partir do momento em que foi envolvida a
questão da quantia e da disponibilização das armas, Padilha muda de ideia. Outro ponto
de inflexão no discurso de Padilha é que o material não foi entregue a Régis Nascimento.
Ora, mas do que adiantou o segredo em relação ao material se, depois, ele foi passado à
Mello Mourão que o repassou a Régis Nascimento? Ao fim e ao cabo, o material alcançou
seu destino final. E sem nenhuma contrapartida aparente, pois de acordo com Hilton, nos
autos não constam detalhes sobre.
O desenrolar dos acontecimentos nos levam ao enfraquecimento das redes de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

849
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

espionagem criadas no Brasil. Com a ajuda dos órgãos de inteligência dos Estados
Unidos, agora aliados oficiais do Brasil, um a um os espiões vão sendo identificados e
presos o que, em alguns casos, leva a delações provocando o desmantelamento das redes.
Além disso, o governo brasileiro após assumir sua posição na guerra começa a fiscalizar
melhor a atuação de membros do governo que agiam em favor do eixo.
O desmantelamento da rede formada por Túlio Régis era cada vez mais iminente,
com membros da polícia vigiando os elementos e prontos para agirem no sentido de
prender a célula espiã. Os planos para o afundamento de um navio alemão preso pelas
autoridades brasileiras deixou o grupo ainda mais vulnerável, pois era necessária uma
constante exposição dos agentes para a execução do plano, que nunca chegou a ser
executado. Gerardo Mello Mourão e Túlio Régis Nascimento foram presos. Com isso foi
mais fácil o desmonte do restante do grupo. Durante sua detenção, Raimundo Padilha
explicou que aceitou a proposta de Régis Nascimento e Mello Mourão para estar a par
dos planos dos elementos e, com isso poderia prevenir todos os integralistas sobre as
intenções da dupla. Com esta confusa explicação Raimundo Padilha foi liberado após seu
depoimento por falta de provas. Já Túlio Régis do Nascimento e Gerardo Mello Mourão
receberiam tratamento diferenciado, pois tendo uma quantidade muito maior de provas
de sua atuação em favor do eixo e tendo uma rede de contatos menos influente, não
conseguem escapar das acusações e amarguraram anos de prisão e processos penais
(HILTON, 1977: 310).
Certamente o depoimento de Padilha contendo a sua versão da história ficou
bastante confuso. Uma peça mínima do quebra cabeça pode estar no depoimento daquele
que perpassou por todo o processo como um coadjuvante, o tenente Carlos Astrogildo
Correa. O tenente Correa foi o enviado de Padilha ao Rio Grande do Norte e é o agente
que traz consigo as informações sobre a movimentação americana na região. No entanto
o que quase passou despercebido foi o fato de Carlos Astrogildo ter sido enviado ao
nordeste depois de Plínio Salgado ter oferecido seus serviços a Berlim. Ou seja, de acordo
com Hilton (1977: 312) Padilha precisaria das informações de Correa para que "pudesse
escrever ao senhor Plínio Salgado a fim de esclarecer ao mesmo sobre o que se passava
no Brasil", mostrando assim um interesse maior de Padilha do que os onze contos e as
trezentas metralhadoras. Num exercício de especulação (devido ao estágio atual da
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

850
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pesquisa) o que talvez possa ter feito Padilha mudar de ideia após a primeira proposta de
Túlio Régis não estaria ligado ao que o militar oferecia em troca, mas sim estivesse ligado
a uma ordem de Plínio Salgado.
Todos os elementos citados anteriormente contavam algumas características
comuns. Em algum momento da vida estiveram ingressados nas fileiras integralistas. Não
é abusivo concluirmos que suas afinidades ideológicas, além de semelhantes, convergiam
para a defesa do autoritarismo fascista. Mas o que os notabilizou como eficientes
informantes foi em primeiro lugar a sua admiração germânica, e todo o ideário fascista
quer era carregado com ela e, principalmente, a sua grande rede de contatos, não só com
elementos alemães, mas também com pessoas influentes em postos profissionais nas
empresas comerciais e jornalísticas privadas e também no funcionalismo público, como
o caso da polícia. Importante ressaltarmos que sem essas ferramentas possíveis através da
rede de contatos o trabalho dos espiões ficaria muito mais difícil. Por outro lado,
percebemos o quanto foi importante a participação destes “agentes indiretos e/ou
anônimos”. Em certo sentido, seja motivado por dinheiro ou ideologia, centenas desses
agentes cooperaram no sentido de ajudar a Alemanha e que, diretamente, prejudicaram
diretamente o nosso esforço de guerra.

4. OS DESDOBRAMENTOS DO FIM DA "CÉLULA VERDE"

No decorrer do ano de 1942 a célula integralista de cooperação com os nazistas já


havia sido desmantelada. As ações conjuntas entre a inteligência americana e os órgãos
de polícia brasileiros estavam cada vez mais ativos nas interceptações dos contatos entre
elementos germânicos e brasileiros com o Abwehr. Embora ainda resistentes com o
funcionamento precário, cada vez menos informações chegavam até Berlim. A
intensidade da repressão a tais atividades ocorre após a entrada do Brasil na guerra. Com
a disseminação das notícias de interceptações de mensagem, localização de
radiotransmissores e prisão de colaboradores, um certo clima de histeria tomou conta da
população a partir da publicização das ações policiais. Muito comum também foram os
boatos em torno de possíveis atividades nazistas no Brasil como, por exemplo, o
abastecimento de submarinos alemães por ribeirinhos da costa do Pará (HILTON, 1977).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

851
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Enquanto isso os principais integralistas envolvidos no esquema de colaboração


com os nazistas vinham obtendo suas punições. Túlio Régis do Nascimento e Gerardo
Mello Mourão foram considerados inicialmente culpados e mantidos presos até seus
julgamentos, onde foram condenados a trinta anos cada um. Seus informantes, os também
integralistas, Valêncio Duarte, Álvaro da Costa e Souza e Oswaldo França receberam
vinte e cinco anos de punição cada um. Com o fim da guerra e a chegada dos anos de
1950 essas punições foram revertidas e somente Túlio Régis ainda é processado levando
o seu caso ao Supremo Tribunal Federal e conquistando sua absolvição (HILTON, 1977:
311).
As prisões levavam a depoimentos, delações, descobertas de provas que
colocavam outros elementos em situações comprometedoras como inclusive elementos
ligados a alta cúpula do governo brasileiro que abastecia alguns espiões alemães com
informações secretas. Outras acusações versavam ainda sobre a venda de facilitações de
fugas e o apagamento de provas, sendo que nestes casos é difícil identificarmos se o
interesse era apenas financeiro ou ideológico.
Curiosamente, ao contrário deles, Raimundo Padilha foi solto após prestar
esclarecimentos por falta de provas (HILTON, 1977: 311).

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERTONHA, João Fábio. Integralismo. Problemas, perspectivas e questões


historiográficas. Maringá: EDUEM, 2014.

Blue Book on Argentina. Memorandum of the United States Government. Washington,


D.C., February 1946.

CALIL, Gilberto Grassi. O integralismo no pós-guerra: a formação do PRP. Porto


Alegre: EDIPUCRS, 2001.

CALABRE, Lia. A Era do Rádio - Memória e História. Anais do XXII Simpósio


Nacional de História - Anpuh: 2003.

CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo: ideologia e organização de um partido


de massa no Brasil. Bauru: EDUSC, 1999.

COUTINHO, Amélia. Raimundo Delmiriano Padilha. In: ABREU, Alzira Alves de et al


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

852
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(coords.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-1930. Rio de Janeiro:


CPDOC, 2010. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br.>. Acesso em: 24/08/2015.

HOBSBAWN, Eric J. A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994. 2ª ed. 2011.

MAIO, Marcos Chor; CYTRYNOWICZ, Roney. Ação Integralista Brasileira: um


movimento fascista no Brasil. In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida
Neves (Org.). O Brasil Republicano. O tempo do nacional-estatismo – do início da
década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003.

MOURA, Gérson. Sucessos e ilusões. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1991.

OLIVEIRA, Alexandre Luís de. Do Integralismo ao Udenismo: a trajetória política de


Raimundo Padilha. Dissertação de mestrado. Orientador: Leandro Pereira Gonçalves.
Juiz de Fora: PPGH - UFJF, 2014.

PADILHA, Raymundo. O Integralismo e o PRP: (discursos). Rio de Janeiro, 1946.

PANDOLFI, Dulce C. Os Anos 1930: as incertezas do regime. In: FERREIRA, Jorge &
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org.). O Brasil Republicano. O tempo do
nacional-estatismo – do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. 1. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

SILVA, Francisco Carlos T. da Silva. Os Fascismos. In: REIS FILHO, Daniel A.,
FERREIRA, Jorge e ZENHA, Celeste. O Século XX: o tempo das crises. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000.

VIANNA, Marly de Almeida G. O PCB, a ANL e as insurreições de novembro de 1935.


In: FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org.). O Brasil
Republicano. O tempo do nacional-estatismo – do início da década de 1930 ao apogeu
do Estado Novo. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

853
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Uma breve análise sobre irmandades religiosas no Rio de Janeiro do século XVIII:
Entre identidades e devoções

DIEGO SANTOS BARBOSA


PPGH-UNIRIO

INTRODUÇÃO

O estudo das irmandades religiosas no Rio de Janeiro foi e continua sendo foco
privilegiado de pesquisadores. Esta assertiva pode ser verificada pelo número de trabalhos
produzidos sobre o tema. A atenção voltada para as associações religiosas e pela
importância dessas instituições na vida das sociedades urbanas, em especial o Rio de
Janeiro. As irmandades são muito mais do que instituições religiosas, são instituições a
partir das quais se pode depreender diferentes instâncias da vida social, local, nos ritos
funerários, no estabelecimento de redes sociais, no sistema de crédito, na afirmação
social, etc.
As irmandades, fenômeno com raízes medievais, tiveram importância, no
contexto colonial, crucial na vida do catolicismo brasileiro. As estruturas políticas
reconhecidas fizeram dessas instituições um tipo de expressão social e religiosa, com uma
grande importância política naquela sociedade provincial profundamente dividida pela
idéia de uma “pureza de sangue” e pelo estatuto da escravidão (CARDOSO, 2008).
Originárias das antigas corporações medievais, tanto na metrópole, África ou
Brasil, as Irmandades e Ordens Terceiras disseminaram-se pelos vastos territórios do
Império Português (BOSCHI, 1986). De um modo geral, eram instituições leigas que
reuniam cristãos em torno de um santo para devoção, escolhido para padroeiro. Lugar de
expressão de um catolicismo barroco, as confrarias produziam elaboradas manifestações
externas de fé, funerais grandiosos e procissões cheias de alegria (REIS, 1991).
Tendemos a concordar com João José Reis de que as irmandades, não apenas na
Bahia, estudada pelo autor, constituem-se em associações corporativas no interior das
quais se teciam solidariedades fundadas nas hierarquias sociais e, dessa maneira,
possuíam “a função implícita de representar socialmente, se não politicamente, os
diversos grupos sociais” (REIS, 1991, p. 51). Assim, as diferentes irmandades, de certo

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

854
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

modo, ao apresentarem-se com seus estandartes e paramentos, ciosas de sua


“precedência364”, como diria Marisa de Carvalho Soares, encenavam a ordem estamental
do Antigo Regime e “viabiliza[vam] legalmente na prática as hierarquias de graduação,
privilégio e honra” (SOARES, 2000, p. 105). Essas associações constituíram-se em
espaços por vezes ambíguos, conjugando espaços de controle e autonomia das populações
de origem africana. Conforme o historiador Paulino Cardoso, as irmandades foram
concebidas como lugar normativo, de assimilação de valores culturais da sociedade
colonial, estes lugares de exercício de um catolicismo leigo e popular, também, foram
transformados em espaços de sociabilidade e de invenção de visões de liberdade
(CARDOSO, 2008, p. 261).
É importante compreender as irmandades não apenas como instância de poder
político, mas também como partícipe do pensamento católico vigente. Ela, afinal, atraía
muitos membros que desejavam assegurar o recebimento dos sacramentos e da assistência
financeira nas adversidades. Ou seja, não podemos negligenciar a finalidade com que ela
foi fundada e pensá-la unicamente como instituição capaz de conferir status e projeção
social aos seus membros. Assim como outras irmandades coevas, seu objetivo era dar
socorro aos irmãos quando necessário e, principalmente, ministrar os sacramentos tão
fundamentais numa sociedade em que o catolicismo permeava todas as instâncias da vida,
desde o nascimento até a morte. Dessa forma, fazer parte de uma irmandade era um modo
de ter assegurados o batismo, as confissões, a comunhão, a extrema-unção etc., o que
confortava os irmãos de qualquer associação religiosa.
As irmandades, em tese, agrupavam em seio grupos de indivíduos com
características econômicas e sociais semelhantes. Nesse sentido, ao longo deste trabalho
viemos pensando as irmandades como instituições capazes de contribuir para a distinção
social de indivíduos, por este motivo, acreditamos poder pensar nessa instituição também
como espaço em que se estabeleciam redes de influência, extrapolando-se, assim, as
funções religiosas.
Muitos têm sido os estudos atualmente sobre as irmandades de africanos e
descendentes, no Brasil. No entanto, alguns estudos merecem destaques: a obra de Caio

364
Elites brancas limpas de sangue, brancos com ofício, pardos, pretos (diversos) e crioulos.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

855
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

César Boschi (1986) e Julita Scarano (1978) em Minas Gerais; João José Reis (1991) e
Lucilene Reginaldo (2011) na Bahia; no Rio de Janeiro, Mary C. Karasch (1987), Mariza
de Carvalho Soares (2000); Antônia Aparecida Quintão (1996) em São Paulo; em Santa
Catarina Claudia Mortari (2000) e Maristela Simão (2008); e no Rio Grande do Sul Liane
S. Mueller (1999). São estudos regionais e tratam das irmandades de africanos e
descendentes como um todo ou de uma irmandade específica.
Podemos afirmar que este artigo se justifica na medida em que há uma lacuna na
produção historiográfica referente ao tema. Embora os estudos sobre irmandades sejam
abundantes, os trabalhos publicados sobre as Confrarias do Santíssimo Sacramento, uma
irmandade que exprime a associação de irmandade branca, são escassos, principalmente
quando comparados, por exemplo, com aqueles dedicados às Irmandades de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. Desse modo, este artigo pode
trazer uma breve e inicial contribuição para o entendimento de como os grupos dirigentes
no Rio de Janeiro se constituíram e se sedimentaram no século XVIII.

A IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO E SÃO BENEDITO DOS


HOMENS PRETOS E A IRMANDADE DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO DA
ANTIGA SÉ

A difusão das irmandades entre os diversos segmentos sociais foi, aos poucos, se
acomodando às hierarquias vigentes na sociedade colonial brasileira. Foram dando cada
vez mais importância às distinções raciais e sociais. Havia irmandades não só de brancos
e de negros, mas também de pardos e de mulatos. O que demonstrava que, mesmo entre
os negros e seus descendentes, os critérios sociais e raciais dominantes eram reforçados
(SCARANO, 1978, p. 24).
No Brasil, a primeira irmandade do Santíssimo Sacramento foi fundada no Rio de
Janeiro, entre os anos de 1567 e 1569. Era destinada às elites brancas da cidade,
principalmente na sua mesa diretora, o que pode ser observado pela sua importância
política e econômica, e também pelas contribuições anuais dos irmãos, principalmente
dos dirigentes da irmandade. Estes eram os principais responsáveis pela receita da

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

856
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

instituição, contribuindo com avultadas somas anualmente - em contraste, portanto, com


as irmandades de negros e mulatos (AGUIAR, 1993, p. 182).
Já a origem da Irmandade do Rosário e de São Benedito dos Homens Pretos
remonta ao Rio de Janeiro do século XVII (TINHORÃO, 1988), onde, inicialmente,
funcionou na Igreja de São Sebastião, no morro do Castelo. Na época, o espaço foi
transformado em sede da Sé. E, na condição de sede administrativa da Igreja Católica, a
igreja do Castelo acabou abrigando desentendimentos entre os irmãos e os cônegos. Após
alguns anos de conflitos, os membros da irmandade foram contemplados com a doação
de um terreno onde seria erguido um templo para suas devoções.
Esse primeiro desentendimento entre às duas irmandades, com relação ao cabido
da Sé, são passíveis de uma análise de como os grupos se distinguem e sua relação com
os demais. Em 1703, em função do estado de ruína da Igreja de São Sebastião, a
celebração do culto divino da catedral passou a ocorrer na capela da Santa Vera Cruz.
Fato que já denotava certa importância do templo para a época. Entretanto, essa estadia
do cabido no templo da irmandade esteve longe de ser tranquila, já que os cônegos, de
hóspedes, passaram a querer intervir no funcionamento da igreja.
Esse imbróglio entre a Capela de Santa Vera Cruz e o Cabido da Sé demonstra a
repulsa das irmandades a esta mesma situação. O cabido, efetivamente, se apropriara da
igreja que não lhe pertencia. Não contentes, desejavam alterar o lugar de destaque do
símbolo da corporação, o que levava os próprios irmãos a se sentirem sem relevância
dentro da sua própria casa. Além disso, os irmãos seriam sepultados como pessoas
comuns, pois perderiam até o direito de receberem sepultura sob os auspícios da Cruz no
interior de sua igreja. Era uma alteração muito difícil de ser absorvida, não só por essas
irmandades, mas, por qualquer outra que se encontrasse em situação semelhante, afinal,
a sepultura próxima ao altar de sua devoção era buscada como um caminho para se
garantir a salvação da alma, após a morte. Além do que, significava a manutenção dos
laços com a família espiritual, mesmo no post mortem.
As hostilidades foram constantes entre a Irmandade de Santa Vera Cruz e o Cabido
da Sé, onde se encontrava também a Irmandade do Santíssimo Sacramento. Segundo
Coaracy, as outras irmandades donas do templo se recusaram a mantê-lo enquanto o
cabido ali permanecesse (COARACY, 1988, p. 243). Tal fato é de difícil comprovação.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

857
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Um documento interessante é encontrado dentre os documentos manuscritos avulsos


referentes à capitania do Rio de Janeiro existente no Arquivo Histórico Ultramarino de
vinte de Maio de 1734, onde uma carta dos irmãos pretos, irmãos da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, o irmão Batista Vieira, João e
Barros e Domingos da Cruz, ao rei D. João IV agradecendo a conservação da igreja da
irmandade e por não ter sido tomada para a Sé do Rio de Janeiro365.
No entanto, em 1737, quando o cabido finalmente deixou o templo, o mesmo se
encontrava em estado bastante precário, sendo essa uma das desculpas utilizadas para a
sua transferência para a Igreja do Rosário. Nesse momento em diante temos o irmandade
do Santíssimo Sacramento da Antiga Sé e a irmandade de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito dos Homens Pretos na Igreja do Rosário.
Podemos encontrar alguns documentos relacionados a este encontro e o período
que as duas irmandades estiveram na Igreja do Rosário. Alguns documentos estão
presentes no livro ou códice E-278 — Ordens Régias 1681-1809, localizado no Arquivo
da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Contém um índice de ordens, alvarás e cartas
reunidas sob a rubrica “ordens régias”, expedidas em nome do soberano e transmitidas ao
bispado do Rio de Janeiro entre 1681 e 1809.
Um documento interessante sobre este ocorrido é o de três de Outubro de 1739.
Este documento sua Majestade ordena que os cônegos e o Cabido se conservem na Igreja
do Rosário até se fazer uma nova Sé. E este documento ressalta a Sé não impedir os pretos
a fazer suas funções na própria igreja para evitar as queixas que os mesmos ditos tem
feito366.
Em dezenove de Janeiro de 1746, outro documento pode ser analisado nos
manuscritos avulsos referentes à capitania do Rio de Janeiro existente no Arquivo
Histórico Ultramarino. Neste documento o Conselho Ultramarino dá parecer favorável
aos irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário para que seja feita logo a
transferência da Sé, onde os irmãos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário têm

365
Catálogo de documentos avulsos referentes à capitania do Rio de Janeiro existente no Arquivo Histórico
Ultramarino. 20 de Maneiro de 1734, Rio de Janeiro - AHU-Rio de Janeiro, cx. 29, doc. 66.
366
Este documento se encontra no livro ou códice E-278 — Ordens Régias 1681-1809, localizado no
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Índice 369 [f. 166-166v].
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

858
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sofrido os abusos dos capitulares da Sé, e os mesmos ainda não haviam escolhido um
novo local para que a transferência, e que esta transferência deveria ser feita o mais logo
possível367.
Os problemas ocorridos entre as irmandades não se concentravam apenas nas
imediações da Igreja do Rosário. Em cinco de Junho de 1790 os procuradores das
irmandades de Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora de Boa Morte e São Benedito
do Terço da cidade do Rio de Janeiro, solicitam em conjunto a certidão ao vigário da vara
sobre o ocorrido de que foram impedidas de participar da celebração do Corpo de Cristo
pelos diretores da congregação, no qual era a Irmandade do Santíssimo Sacramento da
Antiga Sé era responsável368.
Um importante ponto para salientar com as considerações desses documentos
analisados aqui é que uma das funções principais da devoção nas irmandades era
distinguir o grupo na sua relação com os demais, como é o caso deste último documento
com relação às irmandades que poderiam ou não participar das festividades religiosas.
Neste sentido, a devoção, além de expressão de fé, funcionou como expressão de
identidades. Estas foram construídas, algumas vezes, em processos de auto-afirmação
enquanto grupo; em processos de legitimação de posições privilegiadas no contexto social
e em processos que uniam a auto-afirmação e a resistência cultural.
São vários conflitos que as irmandades no período do setecentos no Rio de Janeiro
se encontravam, é necessário dividir os conflitos entre internos e externos, porém, com a
leitura das fontes, percebemos que estes dois fenômenos, entre formação das identidades
e devoções, estavam profundamente imbricados, assim como as redes de solidariedade
também eram formadas a partir dos mesmos, ou vice-versa.
Como não poderia deixar de ser, os caracteres de pertença exigidos nas
irmandades implicavam, da mesma forma, em caracteres de exclusão o que por sua vez é
um fator comum na construção de identidades.

367
Catálogo de documentos avulsos referentes à capitania do Rio de Janeiro existente no Arquivo Histórico
Ultramarino. 19 de Janeiro de 1746, Lisboa - AHU_CU_017, Cx. 38, D. 3995.
368
Catálogo de documentos avulsos referentes à capitania do Rio de Janeiro existente no Arquivo Histórico
Ultramarino. 5 de Junho de 1790, Rio de Janeiro. AHU-Rio de Janeiro, cx. 145, doc. 64.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

859
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essas pessoas que faziam o mundo do século XVIII tinham em marcas sociais de
distinção algumas de suas principais maneiras de identificação. Era uma época de ordens,
irmandades, nações, condições e outras classificação que buscavam colocar cada
indivíduo em um lugar determinado. É dentro deste mosaico que identidades étnicas
encontram seu lugar. Entre as inúmeras identificações a disposição, podia-se ser branco,
preto, brasileiro, português, benguela, mina, livre, liberto ou cativo, e muito comumente
as pessoas se identificavam com uma série destas identidades.
Outro autor importante de citar é Anderson de Oliveira, assim como afirma o
renomado autor, a “dissimulação” que Roger Bastide (BASTIDE, 1974) observa com
relação ao “catolicismo negro” não dá conta do fenômeno em si. Africanos e seus
descendentes, ao se congregarem em suas irmandades não estão ali para encobrir as
religiões africanas. As suas práticas religiosas, no interior daquelas instituições, foram
pautadas segundo os códigos bases do catolicismo, o que permite constatar um nível de
crença nos símbolos cristãos. Estas práticas também acabaram por redefinir um espaço
de cunho político que permitiu a afirmação de identidades plurais (OLIVEIRA, 2008, p.
34). Penso que, na mesma linha de raciocínio do autor, e, sendo assim, complementando
que, essas identidades são criadas também nos conflitos, exclusões e nas escolhas das
práticas devocionais.
Mais do que compreender como os indivíduos se encaixam nestas categorias, nos
interessou neste artigo contribuir para que se perceba de que maneira essa identificação
poderia se materializar na vida dessas pessoas. Mais do que pessoas compartilhando uma
identificação, temos identificações sobrepondo-se para formar uma sociedade. Para João
José Reis:

A distinção étnico-nacional constituía a lógica de estruturação social


das confrarias no Brasil. Nesse ponto os africanos pouco inovaram,
apenas se adaptaram ao ambiente. O surpreendente é constatar quão
bem eles se adaptaram e, a partir daí, criaram microestruturas de poder,
conceberam estratégias de alianças, estabeleceram regras de
sociabilidade, abriram canais de negociação e ativaram formas de
resistência. (REIS, 1996, p. 5)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

860
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As associações religiosas, dessa forma, viriam a auxiliar no desejo de distinção,


primeiramente na tentativa de agregar os supostamente semelhantes e algumas delas por
restringir a participação de alguns segmentos sociais. A importância dessas instituições
no Rio de Janeiro é notória por sua grande quantidade e pela sua participação em
diferentes instâncias sociais e pela análise de seus possíveis conflitos com outras
irmandades.
Nesse sentido, o estudo das irmandades auxilia na compreensão da dinâmica das
sociedades coloniais por remeterem aos preceitos políticos, sociais e econômicos
vigentes, bem como por possibilitar o entendimento das nuances, da dinâmica e das
peculiaridades da formação dessas sociedades. Esperamos, deste modo, contribuir de
alguma forma ao entendimento das complexas relações que entremeia o convívio de
indivíduos em situações tão díspares, embreados em devoções e construções de
identidade de alcance tão amplo, que foram se construindo ao longo de tanto tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, Marco Magalhães de. Vila Rica dos Confrades: a sociabilidade confrarial entre
negros e mulatos nos séculos XVIII. Dissertação Mestrado. Orientadora, Prof. Dr. Maria
Beatriz Nizza Marques da Silva. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1993.

BASTIDE, Roger. As Américas negras: as civilizações africanas no Novo Mundo(trad.


de Les Amériques noires: les civilisations africaines dans le Nouveau Monde’’). São
Paulo: EDUSP, 1974.

BOSCHI, Cáio César. Os leigos e o poder: Irmandades leigas e políticas colonizadoras


em Minas Gerais. São Paulo: Ed. Ática, 1986.

CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. Negros em Desterro: Experiências de


populações de origem africana em Florianópolis na segunda metade do século XIX. Itajaí:
UDESC; Casa Aberta, 2008.

COARACY, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. Belo Horizonte/São Paulo:


Itaiaia/EDUSP, 1988.

KARASCH, Mary C. Slave Life in Rio de Janeiro: 1808 1850. Princeton: Princeton
University Press, 1987.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

861
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MALAVOTA, Cláudia Mortari. Os homens pretos do Rosário: Um estudo sobre a


Irmandade do Rosário. Dissertação de Mestrado em História pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS, Porto Alegre, 2000.

MÜLLER, Liane Suzan. “As contas do meu rosário são balas de artilharia” – Irmandade,
jornal e sociedades negras em Porto Alegre 1889-1920. 253 f. Dissertação de Mestrado ,
PUCRS. Porto Alegre, 1999.

NASCIMENTO, Mara Regina do. As irmandades no meio urbano: práticas funerárias e


religiosidade entre os leigos, Porto Alegre, século XIX. In: Anais do XXIII Simpósio
Nacional de História. Londrina, 2005.

OLIVEIRA, Anderson José Machado de. Devoção negra: santos pretos e catequese no
Brasil colonial. Rio de Janeiro: Quartet, 2008.

QUINTÃO, Antonia Aparecida. Irmandades Negras: outro espaço de luta de resistência


(São Paulo 1870-1890), São Paulo: Annablume, 2002.

REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: Irmandades de africanos e crioulos


na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011.

REIS, João José. A morte é uma festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século
XIX, São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

_____________. Identidade e diversidade étnica nas irmandades negras no tempo da


escravidão, Revista Tempo, Vol. 2, n. 3, Rio de Janeiro, 1996.

SANTOS, Beatriz Catão Cruz. E-278 - ORDENS RÉGIAS 1681-1809. Um códice do


Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Topoi, 2015.

SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário


dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII, São Paulo: Ed. Nacional, 1978.

SIMÃO, Maristela dos Santos. Lá vem o dia a dia, lá vem a Virgem Maria, agora e na
hora de nossa morte: A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos
Homens Pretos em Desterro (1860-1880), Itajaí-SC: Ed Casa Aberta, 2008.

SOARES, Mariza de Carvalho. Escravidão africana e religiosidade católica, Rio de


Janeiro – século XVIII. Rio de Janeiro: Ed Civilização Brasileira, 2000.

__________________________. Devotos da Cor: Identidades étnicas e religiosidade e


escravidão no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed Civilização Brasileira, 2000.

TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil. São Paulo: Art Editora, 1988.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

862
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Panorama sobre a imigração na República Velha e a chegada dos Finlandeses no


Brasil

DIEGO ULIANO ROCHA


PPHBC – FGV

INTRODUÇÃO

O Brasil durante sua formação como Estado – Nação recebeu um contingente


significativo de estrangeiros. Conforme afirma Oliveira (2006) a elite e o povo humilde
brasileiro vieram de fora. A elite do sul da Europa, como colonizadores. E o que se tornou
povo, tem origem predominantemente da África, vindos como escravos. Os indígenas
culturalmente quase desapareceram apesar de estarem presentes em nossa herança
genética. Posteriormente, por volta das últimas décadas do Império, concomitantes com
alguns processos de formação dos Estados Nacionais da Europa foram recebidos os
imigrantes: nativos de outro país, que por vontade própria, decidem estabelecer-se em
terras brasileiras, no intuito de fundar colônias com valores e regras próprias, em
consonância com as leis brasileiras, diante da impossibilidade de fazê–lo em seus países
de origem. Frente a este quadro, este ensaio buscará desenvolver um panorama sobre a
imigração brasileira, a partir da Primeira República como pano de fundo para a pesquisa
sobre a vinda dos imigrantes finlandeses ao Brasil.
No primeiro tópico “A imigração na República Velha”, busca-se fazer um
panorama geral sobre o desenvolvimento da imigração no Brasil, as principais regiões
recebedoras de fluxos e as etapas historiográficas deste fenômeno, de acordo com as obras
e pesquisas referentes sobre o assunto.
Na segunda parte deste ensaio, intitulada como “Febre dos trópicos: A imigração
Finlandesa no mundo” procura-se apontar as principais motivações para as imigrações
finlandesas utópicas para América Latina, no qual enquadra-se o caso brasileiro.
Na última parte do trabalho sob o título “A colônia Finlandesa no Brasil”
pretende-se investigar o processo de vinda e ideias envolvidas na migração finlandesa
para o Brasil. Como o único caso deste tipo de imigração foi no Rio de Janeiro; serão
aprofundados os fatos referentes a chegada e estabelecimento dos colonos na antiga

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

863
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

fazenda “Penedo” atualmente distrito do município de Itatiaia e destino turístico étnico


desta referida imigração.

A IMIGRAÇÃO NA REPÚBLICA VELHA

A imigração é um fenômeno humano permanente e universal. Ela ocorre por


diversos motivos de ordem social, religiosa, política, cultural entre outros. De acordo com
Rocha e Trindade (1995) emigrar é deixar seu país ou território de origem de forma
temporária ou permanente com o intuito de trabalhar, refugiar-se e /ou estabelecer
residência física em outra pátria. No Brasil os fatores econômicos foram um dos
principais motivos para a intensa migração de europeus no período republicano.
O maior fluxo migratório no Brasil república se deu entre o final dos séculos XIX
e início do século XX. Especificamente, entre os períodos de 1889 e 1930, ingressaram
no país cerca de 3,5 milhões de estrangeiros (BIONDI, 2010), aonde 72% desta população
chegou ao Brasil até 1914 (FAUSTO, 1998 apud SIMÕES, 2005). Junto a Argentina e
EUA, a pátria brasileira foi a terceira maior receptora de imigrantes das Américas, tendo
um fluxo de estrangeiros um pouco menor do que os países citados (BIONDI, 2010).
A principal característica da política de imigração brasileira, pautada em uma
economia agroexportadorada, era a formação de mão de obra rural em substituição ao
trabalho escravo que não apresentava mais a mesma rentabilidade, sendo mais vantajosa
a importação de mão de obra livre estrangeira a preços baixos (KOWARICK, 1994). A
mão de obra livre dos libertos era vista com preconceito e por consequência considerada
inapropriada para o trabalho nas plantações pelos patrões “pois a pecha de indolência e
vadiagem continuava a desabar sobre eles” (KOWARICK, 1994, p. 41). Neste período a
indústria no país ainda era incipiente, diferentemente do que ocorreu nos EUA e
Argentina.
A partir de uma análise social, histórica e geográfica, Biondi (2010) elenca os
principais destinos dos estrangeiros no Brasil:

1) uma região central fortemente atrativa, os estados do Sudeste,


caracterizada pelo sistema agroexportador, mas também pela incipiente

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

864
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

industrialização e pela franca expansão urbana; 2) uma região de


atração importante, mas secundária, os estados do Sul, com consistentes
núcleos coloniais rurais formados por pequenos proprietários e
urbanização recente e mais rarefeita; 3) a macrorregião dos estados do
Norte e Nordeste, onde a inserção dos estrangeiros foi quase
exclusivamente urbana, mas muito pouco significativa no seu complexo
e em relação ao resto do país, embora importante para as dinâmicas
econômicas, sociais e culturais das grandes cidades. (BIONDI, 2010, p.
1)

O mesmo autor aponta a região sudeste como a que mais recebeu imigrantes no
período da primeira república, até 1930. O eixo Rio – São Paulo foi de fato, o polo
receptor da maior parte deste fluxo, com destaque para São Paulo. Somente este Estado
recebeu cerca de 57% do total de estrangeiros registrados que entraram no país (BIONDI,
2010). O referido Estado, entre os do sudeste, se destaca na entrada de estrangeiros para
o trabalho na área rural. Em contrapartida, a então capital federal - o Rio de Janeiro –
diante da decadência das terras cafeeiras, recebeu um fluxo de mão de obra estrangeira
voltado para a incipiente industrialização e o trabalho urbano.
A Primeira Guerra Mundial fez com que o fluxo de estrangeiros fosse reduzido
até o ponto de ser considerado estagnado. Alguns anos depois do fim da guerra,
precisamente em 1920, percebe-se um intenso movimento de retorno dos estrangeiros aos
seus países de origem (BIONDI, 2010).
Com relação a etnicidade dos imigrantes Biondi (2010) afirma que:

[...] todos os grupos nacionais europeus foram representados; entre os


asiáticos, quase somente japoneses e sírio-libaneses. Destaca-se um
núcleo mediterrâneo europeu preponderante formado por italianos (o
maior grupo de imigrantes no Brasil nesse período, quase 1,3 milhão,
35% do total), portugueses (28%) e espanhóis (14%) – isto é, quase 8
de cada 10 imigrantes era originário desses três países. Os alemães,
quarto maior grupo, constituíram 4% do total, e os japoneses 3,5%. No
restante, houve uma grande variedade, na qual prevaleceram os sírio-
libaneses, seguidos por poloneses, ucranianos, húngaros, lituanos,
austríacos de língua alemã e judeus da Europa oriental. Todos esses
grupos se instalaram em todas as regiões brasileiras interessadas, mas
houve algumas diferenças. (BIONDI, 2006, p .3)

Percebe-se, a partir da referida citação, o grande número de imigrantes europeus


que vieram para o Brasil. Este tipo de imigração foi em grande parte incentivada e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

865
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

subsidiada pelo Estado brasileiro (em âmbito federal e estadual) desde o final do império
por diversos motivos dentre os quais: a tentativa de substituição da mão de obra escrava
pelo trabalho livre do imigrante dada a iminência da república e de seus ideais (principal
motivo elencado por SIMÕES, 2005; BIONDI, 2010 e IOTTI, 2010) a ideologia
eugenética defendida por Gobineau369, que incentivava o branqueamento da população
como fator primordial para o desenvolvimento; e o povoamento de regiões isoladas com
a finalidade de desenvolvê-las para a agroexportação, através de colônias de imigrantes.
O fluxo migratório intensifica-se após a república na região sudeste “subvencionada e
controlada que previa a concessão gratuita da passagem e da moradia e a concentração
dos imigrantes em hospedarias, para que fossem direcionados principalmente aos
latifúndios das principais regiões rurais” (BIONDI, 2010, p. 3). Segundo Iotti (2010)
houve três perfis de política imigratória no início da república brasileira:

A primeira, de 1889 a 1891, quando a recém-instalada república deu


continuidade a política imperial, mantendo algumas concessões para o
transporte e instalação de imigrantes. A segunda, de 1891 a 1907,
quando o poder público transferiu para os estados a tutela dos negócios
ligados à imigração e à colonização. A terceira, de 1907 a 1914, quando
a União voltou a intervir no processo de atrair imigrantes e de criação
de núcleos coloniais, promulgando uma série de medidas (IOTTI, 2010,
p. 12).

A autora em questão aponta no período uma participação cada vez maior do setor
privado no empreendimento colonial onde no mesmo período foram criadas 102 colônias,
sendo que 84 (83%) eram particulares, 16 (15%) federais e 2 (2%) estaduais (GIRON;
BERGAMASCHI, 1996, p. 51 apud IOTTI, 2010, p. 12).
Os estudos de Oliveira (2006) indicam uma terceira fase imigratória em trajetória
temporal mais longa: até 1945. Esta é caracterizada pelo aumento de imigrantes
classificados como “outras nacionalidades” oriundas principalmente da Europa oriental:
poloneses, russos, romenos e judeus. Os japoneses aparecem também com maior
frequência, tornando-se exceção a regra. Nesta classificação de espaço temporal passa-se
a existir uma política de restrições imposta pela constituição de 1934 onde são fixadas

369
Filósofo francês e um dos principais teóricos do racismo no século XIX. Segundo Gobineau, o Brasil
não teria futuro, pois a mistura de raças levaria a degeneração da nação (SCHWARCZ, 1993).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

866
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

cotas em 2% para entradas de acordo com as nacionalidades já existentes no país entre


1884 e 1934 (OLIVEIRA, 2006). É durante este período que ocorre a migração finlandesa
para o Brasil.
O perfil típico do imigrante que vinha para as terras brasileiras, independente do
seu direcionamento de destino (área urbana ou rural) era o europeu, pobre, camponês,
vindo com o núcleo familiar principal no intuito de permanecer no país a longo prazo ou
em definitivo. A maior parte destes estrangeiros vinha pelo sonho de adquirir um pedaço
de terra e ter condições melhores de vida. Grande parte da massa internacional de
trabalhadores foi influenciada pelas propagandas bancadas principalmente pelos
latifundiários. Diante das péssimas condições de trabalho e melhores oportunidades de
educação, saúde e ascensão social, houve um fluxo secundário de imigrantes das áreas
rurais para as áreas urbanas. A maior parte destes imigrantes, com raras as exceções
engrossaram a camada de trabalhadores pobres do campo e das cidades (SEVCENKO,
2000). Não existia nenhuma assistência para estes recém-chegados, que após dias de
viagem transportados como animais chegavam sem saber a língua, sem recursos, sem
condição de retorno e ainda tendo que disputar seu espaço nas cidades e fazendas com os
ex-escravos (SEVCENKO, 2000).
Segundo Piñon (1994, p. 95) apud Oliveira (2006, p. 10) os imigrantes “chegavam
para ficar, para plantar árvores, ter filhos, e, sobretudo, para cavarem suas próprias
sepulturas”. Na maioria dos casos era um caminho sem volta, diante do abandono de seus
laços com a terra natal e a dificuldade de comunicação existente (OLIVEIRA, 2006). O
trabalho duro e incansável foi um componente presente nas histórias de sucesso e fracasso
dos que aqui estiveram e ainda estão. Apesar de existir a aceitação no país por ser branco
e europeu este imigrante sofre um aviltamento pela desconfiança dos nativos e
principalmente pela predominância de realização de trabalhos manuais ou agrícolas,
desvalorizados em demasia pela sociedade brasileira (OLIVEIRA, 2006).

FEBRE DOS TRÓPICOS: A IMIGRAÇÃO FINLANDESA NO MUNDO

Apesar da existência de uma identidade coletiva comum antes mesmo da


formação do Estado Nacional, no território hoje circunscrito como Finlândia, esta nação
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

867
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

foi um campo de disputas entre civilizações mais antigas e com maior poder bélico. Estes
Estados Nação consolidados dominaram por muitos séculos os finlandeses, até a
conquista da independência no início do século XX.
O território finlandês foi colonizado e dominado pela Suécia durante sete séculos
(1150 até 1809). O povo natural da região, principalmente os camponeses, falavam o
finlandês mesmo com a imposição do sueco como idioma oficial do país. O domínio
sueco é entendido como benéfico inicialmente conforme aponta o escritor russo
Kropotkin (1885) apud Fargelange (2007), pois a dominação Alemã ou Soviética seriam
mais rigorosas quanto ao processo de esquecimento das tradições orais finlandesas
populares. No entanto, toda a cultura formal, acadêmica e escrita, é produzida sob o ponto
de vista sueco. Estes também posteriormente oprimiram economicamente a região
colocando altas taxações das riquezas produzidas em prol da manutenção de uma
aristocracia sueca. Mesmo dominado durante muitos séculos, os finlandeses mantinham
sua cultura viva. Esta identidade finlandesa ganha mais força na transição do domínio
sueco para o império soviético. Diante desta disputa, os movimentos nacionalistas
finlandeses ganham força.
No decorrer do processo conhecido como russificação da Finlândia370 no final do
século XIX, surgiram diversos movimentos por parte de alguns cidadãos finlandeses de
excursões para conhecimento da América Latina. Os cidadãos que não concordavam com
a junção da União Soviética a Finlândia e que não desejavam ser obrigados a servir seus
exércitos foram procurar uma alternativa em outros lugares do globo terrestre onde
pudessem fundar uma nova sociedade baseada em seus valores e costumes
(CARVALHO, 2014)
Os traumas da guerra civil de independência somados aos da Primeira Guerra
Mundial, junto à industrialização e o crescente cientificismo; que forçavam determinados
tratamentos considerados cientificamente comprovados em detrimento dos usados pela
tradição e cultura popular; semelhante aos que ocorreu na Revolta da Vacina no Rio de
Janeiro, no início do século XX; estimulou a busca por parte dos cidadãos finlandeses de

370
Período iniciado em 1889 até a independência da Finlândia em 1917. O Czar Alexandre II imperador da
antiga União Soviética, região da atual Rússia, decide não permitir a criação de uma constituição finlandesa
e limita a autonomia política existente através de coerção militar (FAGERLANDE, 2007).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

868
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

uma terra onde pudessem ter a liberdade de agir e viver dentro de seus preceitos culturais
(FAGERLANDE, 2007).
Os finlandeses viajavam e conheciam diversos lugares neste continente com a
finalidade de mudar-se para lá diante da possibilidade de invasão da União Soviética. A
escolha da América Latina, não se devia somente pela opressão política do País vizinho,
pois diante deste fato, qualquer outra área poderia ter sido escolhida. Então por que o
território latino americano?
A Finlândia é composta majoritariamente por lagos, rios e pântanos. O clima frio
e a pobreza mineral da terra, além da ausência de sol em certas épocas do ano, tornam a
região geograficamente pouco hospitaleira (FAGERLANDE, 2007). A América Latina
possui abundância de recursos naturais, terra fértil, clima ameno e grande disponibilidade
de lotes. Os finlandeses viram na América a possibilidade de ter uma vida mais saudável,
em harmonia com a natureza. Além disso, existiam diversos movimentos migratórios de
povos vizinhos europeus para os países latino americanos no final do século XIX e início
do século XX. Todos estes fatores contribuiriam para o movimento chamado “febre dos
trópicos” no território Finlandês. Este conceito refere-se ao movimento de migração em
massa dos finlandeses para os territórios latino-americanos diante da impossibilidade de
uma vida em plenitude com a cultura e a natureza em sua própria pátria.
A ideia era fundar uma nova Finlândia fora da Europa. As novas colônias eram
baseadas nos valores de igualdade, fraternidade, vida regrada, sem excessos, em harmonia
com a natureza aos moldes das sociedades utópicas imaginadas por Thomas More, Henry
Thoreau e Peter Kropotkin, liderados por um líder carismático aos moldes do conceito
estabelecido por Max Weber (FAGERLANDE, 2007 e CARVALHO, 2014).
O contexto da imigração à Penedo integra-se ao fenômeno “febre dos trópicos”,
pois foi a partir dele que os imigrantes decidem vir para o Brasil. Buscavam fundar uma
comunidade inspirada nos ideais também de seu líder fundador: livre, fora da lógica
capitalista e em harmonia com a natureza.

A COLÔNIA FINLANDESA NO BRASIL

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

869
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A colônia Finlandesa no Brasil tem sua sede escolhida pelo seu líder carismático
Toivo Uuskallio no Rio de Janeiro, no antigo município de Resende, atualmente
município de Itatiaia, desde 1988.
Apesar das diversas etnias que lá estiveram a região têm sua história marcada pela
chegada dos imigrantes finlandeses. Os índios Puris são os primeiros habitantes de que
se tem conhecimento nesta localidade do Vale do Paraíba (MAIA, 1986). Posteriormente
estivem lá os Portugueses em busca do ouro e por se tratar de caminho de acesso as minas
gerais. Os escravos foram trazidos pelos Portugueses e posteriormente pelos senhores de
engenho para as plantações de café, no período de grande valorização do produto, durante
o século XIX. Posterior a todos os grupos, os primeiros finlandeses chegaram,
especificamente em Penedo, em 1927, com o intuito de fundar uma nova sociedade
baseada em valores religiosos, veganos e naturalistas (HILDÉN, 1989).
Ao chegarem, sob a liderança de Uuskallio, financiam a compra de uma antiga
fazenda de café chamada Penedo, em Resende. A escolha foi resultado de um processo
de busca de Uuskallio, que antes da compra, passou uma temporada no Rio de Janeiro, a
maior parte dela no interior, na fazenda Poços de Caldas, em Barra Mansa - RJ. Ao saber
da disponibilidade do terreno nas proximidades decidiu adquiri-lo (HILDÉN, 1989).
Após visitar mais de duzentas fazendas de café, Toivo escolhe esta em específico por
estar próximo ao acesso da linha férrea além de não existir muitas possibilidades de
intervenção do Estado ao projeto utópico de comunidade (CARVALHO, 2014). Esta
região também recebeu outros tipos de imigração com os Italianos no atual do município
de Porto Real e em Visconde de Mauá com os alemães. O que de fato também incentivou
a vinda e permanência dos finlandeses.
O grupo de Uuskallio chega em um período de queda do fluxo migratório do país
e rigorosidade com relação a imigração . O grupo não recebe nenhuma ajuda
governamental para o estabelecimento da colônia. Os migrantes finlandeses só podiam
contar com a ajuda de seus próprios compatriotas em seu país de origem. Com a
colaboração do grupo “Amigos de Penedo” em sua pátria mãe, sob a liderança do pastor
Pennanen, foram selecionados os indivíduos dispostos a virem para o novo paraíso
brasileiro. Após rigorosa seleção, 28 finlandeses foram escolhidos. Dentre eles, os pais
de Eva Hildén, a personagem responsável pela criação do atual museu Finlandês.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

870
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Segundo Fagerlande (2007) chegaram no porto do Rio de Janeiro, no período de 1927 até
1940 cerca de 340 finlandeses dentre os quais 208 foram registrados como imigrantes.
A escolha dos colonos foi feita através de um rigoroso processo seletivo que
buscava selecionar os indivíduos com perfeita saúde, com uma ocupação que fosse de
utilidade para a futura colônia, boas condições financeiras para investir na nova
empreitada, com princípios religiosos e de vida que se aproximassem do veganismo, além
da busca por uma vida simples, longe da cidade, em harmonia com a natureza.
Os candidatos vinham de toda a Finlândia motivados pelas crônicas de Pennanen
sobre as maravilhas das terras brasileiras:

Pennanen escrevia semanalmente uma coluna, “Notícias de Penedo”,


na revista Työkansa e também viajava pelo Finlândia dando palestras.
Fez eloquentes descrições da “terra de palmeiras e verão eterno.”
Descreveu a Fazenda Penedo com entusiasmo contagiante: “Temos
certeza do sucesso do nosso empreendimento pelas seguintes razões:
estamos a serviço de Deus e teremos sempre a Sua ajuda; o dirigente é
Toivo Uuskallio que tem todos os atributos necessários: prática,
instrução e competência para assumir a liderança da futura colônia. A
Fazenda Penedo terá certamente um futuro brilhante e será valorizada
devido a sua boa localização; a paisagem é uma das mais bonitas do
Brasil, o clima é saudável, as plantações valiosas, madeiras de lei, água,
estradas, a sede é uma mansão velha e aristocrática, e há outras
construções (HILDÉN,1989, p. 25).

Segundo Oliveira (2006) o Brasil dos anos de 1920 até 80 era visto de forma
idílica. Promissor em seu futuro, entendia-se que aqui podia-se viver em paz e harmonia
diante da grande mestiçagem e exuberância da natureza. Pois estes fatores eram os
primordiais procurados pelos imigrantes motivados a nova aventura no país. Segundo
Carvalho (2014) estas motivações sobrepunham a vontade de criação da colônia utópica
repleta de regras estabelecidas por Uuskallio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O projeto de Toivo Uuskallio fracassa em 1940, diante de diversos problemas,


dentre os quais, podem-se destacar os motivos relacionados com a improdutividade da
terra e as discordâncias ideológicas entre os colonos e seu líder carismático.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

871
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O solo da fazenda Penedo estava esgotado pelo cultivo insustentável do café. A


monocultura de enxertos de laranja para a baixada fluminense entrou em decadência
durante a segunda guerra mundial. Este tipo de cultivo junto ao desgaste do processo de
monocultura anterior, pouco diversificado, gerou na região um desequilíbrio ambiental,
ocasionando o aparecimento de uma grande quantidade de formigas saúvas, responsáveis
pela destruição frequente do pouco que se conseguia plantar.
As desavenças entre os colonos e Uuskallio se davam por diferenças de
pensamento, ideologia que num primeiro momento não havia ficado claro na seleção dos
colonos ou, por vontade de embarcar na nova empreitada, foi omitida por parte dos
voluntários. Estas ideologias para estes imigrantes estavam em segundo plano diante da
busca comum principal do eldorado brasileiro e da vida em paz e harmonia.
A medida que a vida no Brasil tornava-se mais difícil, os conflitos aumentavam
entre colonos e seu idealizador. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, no qual a
Finlândia estava envolvida por pressão da União Soviética, muitos imigrantes retornam,
ficando apenas o núcleo mais idealista. Situação semelhante a de outros grupos
migratórios, conforme a ponta Biondi (2010), que retornam a sua terra natal diante da
desilusão de um futuro próspero em terras brasileiras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIONDI. Luigi. Imigração. In: ABREU, Alzira Alves de et al (coords.). Dicionário


Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-1930. Rio de Janeiro: CPDOC, 2010.

CARVALHO, Lila Almendra Praça de. Os finlandeses de Penedo: Uma viagem


utópica em direção aos trópicos. 2014. 113p. Dissertação (Mestrado de Ciências Sociais
em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade). Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro – UFRRJ – RJ. Disponível em: < r1.ufrrj.br/cpda/wp-
content/uploads/2014/10/UFRRJ_FINAL_LILA_opt.pdf>. Acesso em: 04 out.2016

FAGERLANDE, Sergio Moraes Rego. A utopia e a formação urbana de Penedo: A


criação, em 1929, e o desenvolvimento de uma colônia utópica finlandesa no Estado
do Rio de Janeiro.2007. 228p. Dissertação (Mestrado em Urbanismo) Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Disponível em <
http://livros01.livrosgratis.com.br/cp066484.pdf > . Acesso em: 6 de out.2016.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

872
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

HALL, Michael. A imigração na cidade de São Paulo. In: Porta, Paula (org.). História
da cidade de São Paulo. A cidade na primeira metade do século XX, 1890 - 1954. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2005, v. 3.

HILDÉN, E. A saga de Penedo: a história da Colônia Finlandesa no Brasil. Rio de


Janeiro: Fotografia Brasileira Ed, 1989.

IOTTI, Luiza Horn. A política imigratória brasileira e sua legislação – 1822 – 1914.
In: X ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA, 2010, Santa Maria, Rio Grande do Sul.
Disponível em: < http://www.eeh2010.anpuh-
rs.org.br/resources/anais/9/1273883716_ARQUIVO_OBRASILEAIMIGRACAO.pdf>.
Acesso em: 01 jul. 2017.

KOWARICK, Lúcio. Trabalho e Vadiagem –A origem do trabalho livre no Brasil.


São Paulo: Paz e Terra, 1994.

MAIA. João Carneiro Azevedo. Do descobrimento do campo alegre até a criação da


vila de Resende. 2. ed. Rio de Janeiro: Prefeitura municipal de Resende, 1986.

MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República consentida – cultura democrática e


científica do final do Império. Rio de Janeiro: Ed. FGV/ Edur, 2007

OLIVEIRA, Lucia Lippi. Nós e eles: relações culturais entre brasileiros e imigrantes. Rio
de Janeiro : Editora FGV,2006.

ROCHA E TRINDADE, Maria Beatriz da. Sociologia das Migrações. Lisboa:


Universidade Aberta, 1995. Disponível em:
<http://www.webartigos.com/artigos/abordagens-teoricas-sobre-
migracoes/47805/#ixzz32rNSQf4c . Acesso em: 03 jan. 2016.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole – São Paulo: sociedade e cultura


nos frementes anos 20. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina, mentes insanas em corpos rebeldes.
(1984 | rev. Amp. 1993). São Paulo: Cosac Naify, 2010.

SIMÕES, José Luis. Anotações sobre Abolição, Imigração e o Mercado de Trabalho


na República Velha. In: IX SIMPÓSIO INTERNACIONAL PROCESSO
CIVILIZADOR, 2005, Ponta Grossa, Paraná. Disponível em: < www.uel.br/grupo-
estudo/processoscivilizadores/portugues/sitesanais/.../art16.pdf>. Acesso em: 01 jul.
2017.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras,
1993.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

873
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O Movimento “Escola Sem Partido” e as disputas pela neutralidade da educação

DIOGO DA COSTA SALLES


PPGHST – FFP/UERJ

1. INTRODUÇÃO

O Movimento Escola Sem Partido (MESP) surge a partir da iniciativa


aparentemente individual do advogado Miguel Nagib. Segundo a narrativa oficial de seu
fundador, o nascimento do MESP estaria ligado ao momento em que Nagib escutou o
testemunho de uma de suas filhas relatando que seu professor de história havia feito uma
comparação entre as trajetórias de vida de São Francisco de Assis e Che Guevera durante
a aula. Nagib, que é católico, se prontificou a cobrar satisfações da conduta do professor,
por interpretar a comparação como uma forma de “doutrinação ideológica” que estaria
sendo praticada pelo docente: “as pessoas que querem fazer a cabeça das crianças
associam as duas coisas e acabam dizendo que Che Guevara é um santo” (BEDINELLI,
2016).
De acordo com Nagib, ele teria tentado mobilizar outros pais da escola para propor
medidas contra o docente. Após ser rechaçado tanto pela direção da escola quando pelos
demais responsáveis, ele decidiu construir as próprias ferramentas para ajudá-lo nessa
disputa. Daí teria nascido o “Escola Sem Partido” (NAGIB, 2011), que apesar do início
modesto, conseguiu em muito pouco tempo se consolidar como uma das grandes
iniciativas conservadoras nos debates educacionais contemporâneos. Com um discurso
de defesa dos valores da família e da moral dos estudantes contra práticas de “doutrinação
ideológica” por professores, o movimento encontrou eco não só junto a vários setores da
sociedade brasileira, mas também da classe política, com destaque para grupos
conservadores.
O discurso que o MESP construiu a respeito de si mesmo, tanto para legitimar
suas pautas como para se posicionar nas disputas políticas a respeito do papel da escola e
da educação escolar junta à sociedade, tem uma série de fundamentos. Dentre eles, pode-
se destacar a apropriação feita pelo movimento da já mencionada noção de “doutrinação
ideológica”, uma estratégia argumentativa que coloca professores e práticas docentes

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

874
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

como potenciais detratores dos valores tradicionais que teriam como base a moral e a
família, instituições tidas como invioláveis. No entanto, outro pilar importante para a
fundamentação teórica-argumentativa do movimento é a ideia de neutralidade; mais
especificamente que a educação escolar, a atuação de professores em sala de aula e os
fundamentos das relações de ensino-aprendizagem, devem ser neutros.
A ideia de neutralidade aparece com destaque no texto do anteprojeto de lei que serve
como base para a atual expansão do MESP pela via legislativa. Disponível no portal
<www.programaescolasempartido.org> em versões municipal, estadual e federal, o
“Programa Escola Sem Partido” identifica como um dos princípios a ser seguido pelos
sistemas de ensino público a “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. Em
contrapartida, o termo “doutrinação” nem é mencionado na redação do documento.
Embora o perigo da “doutrinação ideológica” tem uma forte presença nos
discursos do MESP, o conceito de neutralidade mobilizado pelo movimento parece ter
uma maior aplicabilidade jurídica e política. Um dos sintomas disso é que, enquanto o
conceito de “doutrinação” parece ser tomado pelos entusiastas do movimento como
autoexplicativo371, ao conceito de neutralidade são dispensadas definições mais
cuidadosas372.
Assim, minha proposta é reservar para as páginas seguintes uma análise a respeito
dos embasamentos que a concepção de neutralidade mobilizada pelo MESP possui. Meu
objetivo será tratar de como a noção de neutralidade enquanto um conceito se constitui
dentro de uma perspectiva sobre educação defendida pelo MESP. Proponho a construção

371
Um exemplo dessa contradição está no texto da justificação do Projeto de Lei 867/2015 de autoria do
deputado federal Izalci Lucas, que quer incluir “entre as bases e diretrizes da educação nacional o ‘Programa
Escola Sem Partido’”. Como o próprio PL faz questão de ressaltar, ele se inspirou no modelo do anteprojeto
de lei produzido por Nagib em 2014. Entretanto, ainda que o MESP já contasse com mais de 10 anos de
existência na época em que o projeto foi apresentado na Câmara dos Deputados, a justificação do PL se
limita a tratar da questão da “doutrinação ideológica” afirmando que: “É fato notório que professores e
autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos
estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem padrões de
julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados
por seus pais ou responsáveis.”
372
Uma justificativa comum dada por Nagib para legitimar os princípios do “Programa Escola Sem Partido”
seria que todos os elementos listados nesse artigo já se encontram presentes na legislação brasileira, tanto
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, como na Constituição Federal, e em tratados
internacionais de direitos humanos ao qual o Estado brasileiro adere como o Pacto de San José da Costa
Rica (NAGIB, 2016) e até mesmo o Código de Defesa do Consumidor (NAGIB, 2013).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

875
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de um histórico das concepções conservadoras estabelecidas ao longo da história da


educação brasileira que auxiliaram na formação dos conceitos e discursos mobilizados
pelo movimento.

2. O CARÁTER CONSERVADOR E REACIONÁRIO DO MOVIMENTO


ESCOLA SEM PARTIDO

Concepções pedagogias surgem em contextos de disputas políticas sobre o campo


educacional. Muito mais do que a ação isolada de um pai preocupado, como estabelece a
versão oficial de Nagib sobre a criação do MESP, o movimento se projeta como uma
iniciativa de caráter conservador e reacionário dentro do contexto de disputas políticas e
sociais em que é criado e que pretende consolidar seu projeto junto à sociedade e ao
Estado (SALLES, 2017).
O aspecto reacionário do MESP é entendido aqui na função de um adjetivo. A
reação que o movimento assume aqui é uma característica de movimentos que
“configuram um projeto de educação reacionária, entendida aqui como a que se opõe às
mudanças sociais em curso e se esforça para restabelecer situações ultrapassadas”, como
define Cunha (2016, p. 2). O adjetivo reacionário serve para definir a dimensão
conservadora do movimento, que representa um projeto político que visa “evitar qualquer
transformação na ordem social ou melhorias reais para as classes trabalhadoras, ou para
qualquer grupo minoritário”, buscando a manutenção da desigualdade social
(SEPULVEDA; SEPULVEDA, 2016, p. 81).

3. DESENVOLVENDO O CONCEITO DE NEUTRALIDADE

Tomo em conta que a questão atual da neutralidade do ensino é só a forma mais


recente assumida pelo desenvolvimento histórico de um processo de disputas de longo
prazo entre grupos, instituições e perspectivas políticas a respeito dos papéis que devem
ser reservados à escola junto à sociedade brasileira. Miguel (2016) comenta que a base
do discurso que legitima o MESP se estrutura em três pilares: o fundamentalismo
religioso, o anticomunismo e o “libertarianismo”. Utilizarei esse referencial para traçar
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

876
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

um paralelo com as noções expressas no anteprojeto de neutralidade religiosa, ideológica


e política. Meu objetivo é mostrar como essas três ramificações do conceito de
legitimidade se articulam com o desenvolvimento histórico de uma lógica conservadora
e reacionáriasobre educação nos termos mobilizados por Miguel. Assim, para fazer essa
reconstituição histórica, estabeleço uma associação entre o papel do fundamentalismo
religioso na história da educação brasileira e a ideia corrente de neutralidade religiosa
mobilizada pelo MESP; faço o mesmo com o anticomunismo e a neutralidade política e
com o “libertarianismo” e a neutralidade política.

3.1 Fundamentalismo religioso e neutralidade religiosa

A referência à neutralidade religiosa do Estado remete ao conceito de laicidade,


mas a escolha de palavras denota uma outra inserção do MESP na discussão em torno do
Estado laico. A definição de laicidade “consiste em que o Estado não professa nem
favorece (nem pode professar ou favorecer) nenhuma religião”; assim

Seguindo a laicidade, o Estado não possui doutrina oficial, tendo como


consequências adicionais que os cidadãos não precisam filiar-se a
igrejas ou associações para terem o status de cidadão e inexiste crime
de heresia (ou seja, de doutrinas e/ou interpretações discordantes e/ou
contrárias à doutrina e à interpretação oficial). (LACERDA, 2014, p.
181).

A opção tomada na redação do anteprojeto pela expressão “neutralidade religiosa”


retira a constituição política do conceito de laicidade. A concepção de encerrar “qualquer
vínculo entre crença religiosa e pertencimento político” (idem, p. 189), para que possam
haver as condições adequadas de convívio e diálogo na esfera pública é deixada de lado.
O que resta é um simulacro dessa ideia, reduzido ao nível individual. O Estado é extirpado
da sua função de promover direitos e empoderar a sociedade, ficando restrito à
manutenção do status quo, independente se este favorece a pluralidade de crenças ou a
sufoca.
Miguel comenta que a preferência dada ao termo neutralidade nos projetos de lei
inspirados no MESP remete a uma perspectiva conservadora que entende que o Estado

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

877
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

deve ser neutro pois ele não deve assumir a função de difundir valores. Tal função deveria
caber somente às instituições entendidas como fundadoras da formação dos indivíduos: a
família e a igreja. Contudo, tal discurso não torna o Estado neutro, mas reprodutor das
relações de desigualdades sociais e violências que pautam tanto a família e a igreja quanto
a sociedade como um todo. Impedir esse diálogo entre questões da esfera privada com a
esfera pública implica em naturalizar esses problemas e impedir que sejam pensadas
soluções políticas para eles. Assumindo uma postura contrária a essa ótica conservadora,
em defesa da laicidade do Estado, Cunha (2014) toca em pontos semelhantes:

Com efeito, ninguém pode ser neutro em relação a valores, tampouco


os valores que dizem respeito a todos tem uma religião ou várias delas
como fundamento. O Estado não é neutro em relação à democracia por
exemplo. Além de afirmar a democracia, valor que nem todas as
religiões reconhecem (ou nem sempre reconheceram) uma ética laica
afirma a liberdade de crença, que não coincide com os valores de
autorreferência da maioria das religiões. (CUNHA, 2014, p. 220).

A discussão em torno desse conceito particular de neutralidade mobilizado pelo


MESP pode ser recente, mas o mesmo não pode ser dito a respeito das disputas em torno
da educação como promotora de valores. Na verdade, é possível considerar que, desde a
independência, as políticas públicas voltadas para a educação escolar, suas propostas e
reações, “vai, progressivamente, assumindo as características de uma luta do governo do
estado contra o governo da casa” (FARIA FILHO, 2007, p. 146). Ou seja, o campo
educacional se torna um palco de disputas entre os interesses do Estado brasileiro de
inserir e integrar a sociedade ao projeto de nação que se almeja fundar e as tradições
culturais e políticas do espaço familiar e congregacional que se quer manter.
É nessa conjuntura que o elemento do fundamentalismo religioso, que destaco da
análise de Miguel373, passa a ter um envolvimento central para a formação do conceito de
neutralidade mobilizado pelo MESP. Ao invés de escolher um dos lados entre o governo
do estado e governo da casa, temos a Igreja Católica como a instituição religiosa

373
O autor define fundamentalismo como “percepção de que há uma verdade revelada que anula qualquer
possibilidade de debate” (p. 593). Miguel trata da influência mais recente das doutrinas religiosas
neopentecostais e católicas dentro da disputa pelo monopólio da moral e da verdade. Irei expandir o escopo
de análise usando o conceito de fundamentalismo do autor para tratar da influência religiosa ao longo da
história da educação brasileira.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

878
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

predominante no sistema político e social brasileiro, se mostrando presente junto a ambos


os lados dessa disputa. Seja no interesse de manutenção das tradições, seja para consolidar
um projeto de nação, a Igreja Católica buscará assumir o monopólio tanto na esfera
pública quanto privada no que condiz à promoção de valores e visões de mundo.
Em outro momento, Cunha (2011) trata de como a relação entre Estado e Igreja
Católica e suas ramificações junto a sociedade esclarecem o “caráter impositivo da
religião” ao longo da história brasileira (CUNHA, 2011, p. 4). O legado da
colonização374contribui assim para que a constituição de 1824 estabeleça o cristianismo
católico como religião oficial do Império e para que a educação religiosa se torne uma
presença constante nos currículos escolares daí em diante como resultado desse projeto
político de viés fundamentalista375.
A garantia à laicidade do Estado que o texto da constituição de 1891 traz para a
Primeira República (1889-1930), levando à breve retirada do ensino religioso das escolas,
não duraria muito tempo. O período seguinte dos governos comandados por Getúlio
Vargas restaura a condição da Igreja Católica de impor seus projetos junto ao poder
público. Nesse momento o magistério passa a ter uma função social ligada aos interesses
estatais de consolidar, através da educação, os saberes que estivessem de acordo com um
determinado projeto de nação.
As políticas públicas educacionais desse tinham uma forte orientação para a ideia
de “apostolado cívico”:

A identificação entre a função social do magistério com o apostolado


remete à influência das congregações religiosas na profissão docente.
Sustentamos que a concepção de magistério como sacerdócio subsistiu
nas políticas de profissionalização do magistério no pós-1930. (...)
Contudo, o termo “cívico” e o significado específico de que se revestiu,
caracterizou a concepção dos setores entrincheirados na sociedade

374
Dois exemplos são a política evangelizadora das sociedades indígenas promovidas pela Igreja Católica
concomitantemente ao processo de colonização portuguesa e o Regime do Padroado, autoridade que os
monarcas portugueses – e, após a independência, os imperadores brasileiros – possuíam para consagrar
membros da hierarquia eclesiástica.
375
Miguel Nagib, criador do MESP, já se pronunciou como favorável ao ensino religioso de caráter
confessional em escolas. Cf. “Ministério busca equilíbrio para abordagem de gênero na base curricular”.
Undime. Disponível em <https://undime.org.br/noticia/09-06-2017-13-33-ministerio-busca-equilibrio-
para-abordagem-de-genero-na-base-curricular>. Acesso em 6/7/2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

879
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

política sobre a função social e política do magistério. (DIAS, 2013, p.


124).

O apelo ao civismo representava a educação como principal instrumento para a


“conquistar a adesão à ideologia autoritária do regime” (idem, p. 125), que disporia dessa
nova inserção junto a sociedade para garantir o suporte necessário à consolidação do
projeto varguista de industrialização da economia e integração territorial. Paralelamente,
o “combate ao comunismo, ao liberalismo e a outras expressões políticas e religiosas
distintas da ideologia do regime” (idem, p. 126) representou a nova base da aliança entre
Igreja Católica e Estado. Assim, os debates em torno dos papéis da Igreja, Estado, família
e escola a respeito da função de educar adentram o século vinte, iniciativas conservadoras
que defendem o potencial moralizador e impositivo da educação começam a abraçar
novos projetos. Dessa forma, a tensão se estende do âmbito moral para o ideológico com
a inclusão da plataforma anticomunista nas disputas em torno da educação brasileira.

3.2 Anticomunismo e neutralidade ideológica

É durante a Ditadura Militar que a educação será tomada como um instrumento


para a “regeneração moral” da sociedade, tendo em vista o combate às ideologias tidas
como subversivas (CUNHA, 2014). A principal encarnação desse projeto político ao
longo da Ditadura foi a inclusão nos currículos desde a educação básica até o nível
superior das disciplinas de Educação Moral e Cívica. Por outro lado, se o anticomunismo
servia como pretexto para unificar grupos conservadores em torno das pautas que
justificaram o golpe de 1964 e a manutenção dos governos militares por mais 21 anos,
atualmente uma retórica semelhante é reproduzida por iniciativas como o próprio MESP,
que prosperam no debate educacional fazendo eco à uma retórica muito semelhante. O
sucesso que o movimento vem alcançando com a bandeira do combate à “doutrinação
ideológica” demonstra o quão eficiente vem sendo a forma como o grupo opera com a
noção de ideologia. Atualmente, o anticomunismo assume novas formas, com as novas
ameaças identificadas se manifestando no “bolivarianismo”, no Foro de São Paulo e no
Partido dos Trabalhadores (MIGUEL, 2016). A partir dessas referências, o MESP

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

880
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

consolidou uma narrativa onde “ideológico” se tornou sinônimo para toda inserção dessas
supostas ameaças nas relações de ensino-aprendizagem que violaria os limites entre
escola e família, promovendo uma subversão da moral.
A teórica para essa interpretação pode ser extraída de Braulio Porto de Matos,
professor de sociologia da educação pela Universidade de Brasília (UnB) e vice-
presidente do MESP. Durante uma audiência pública na Câmara dos Deputados, Matos
apresentou aquilo que se pode considerar como o mais próximo de uma definição oficial
do movimento para o conceito de ideologia. Segundo Matos, após “uns trinta anos de
estudo para chegar a essa definição”, a conclusão que teria formulado a respeito do
conceito determina que ideologia seria “Um discurso ficcional e simplista que se
apresenta como verdade a ser assegurada em última instância pelo controle total do poder
governamental” (MATOS, 2015, p. 3). Daí se deduziria a existência de uma “doutrinação
marxista” ou de uma “ideologia de gênero” promovidas por professores; um movimento
com vistas a tomar o Estado através da escolapara difundir visões únicas a respeito de
assuntos políticos ou falsidades sobre como identidades de gênero e orientações sexuais
se manifestam – leia-se, tudo que foge da lógica dos padrões comportamentais e
discursivos tido como normas (orientação heterossexual, identidade cisgênero) é tratado
como suspeito de doutrinário.
Assim, o Estado deve ser ideologicamente neutro, como determina o anteprojeto,
para evitar que essa barreira entre espaço dos valores familiares não seja violada pela
atuação estatal na educação dos indivíduos. A ideia de que essa tão estimada neutralidade
não pode ser alcançada, uma vez que tornar o modelo moral padrão a regra a ser seguida
e nunca questionada é, por si só, assumir um posicionamento ideológico não entra em
questão.

3.3 “Libertarianismo” e neutralidade política

Miguel define o “libertarianismo” como o ramo norte-americano das correntes de


pensamento econômico que se desenvolveram a partir dos anos 1930 e 1940 pela
influência da Escola Austríaca. Em um contexto de consolidação do modelo de Estado de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

881
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

bem-estar social do modelo keynesiano, a corrente austríaca propõe a desregulamentação


da economia e das relações sociais de qualquer influência estatal.
Se a partir dos anos 1970, as proposições da Escola Austríaca começam a se inserir
junto aos projetos políticos de governos como os de Ronald Reagan (EUA), Margaret
Thatcher (Reino Unido) e Augusto Pinochet (Chile) – consolidando o modelo que viria a
ser chamado de neoliberal – a partir dos anos 1980 o “imperativo da globalização”
(OLIVEIRA, 2004, p. 1129) auxilia ainda mais a impulsionar esse movimento. No caso
brasileiro, a influência dessas concepções passa a definir novas perspectivas e projetos no
campo educacional numa conjuntura de redemocratização com o fim da Ditadura Militar,
em que as economias ocidentais do pós-Guerra Fria começam a se dirigir para a lógica da
flexibilização e precarização do trabalho, num processo de desprofissionalização
crescente (idem).
Integrado aos termos de um processo de Globalização pautado no ideário
neoliberal, o mercado se torna o referencial maior para as relações entre Estado e
sociedade. As políticas públicas educacionais não representarão uma exceção às novas
regras. Assim

[p]assa a ser um imperativo dos sistemas escolares formar os indivíduos


para a empregabilidade, já que a educação geral é tomada como
requisito indispensável ao emprego formal e regulamentado, ao mesmo
tempo em que deveria desempenhar papel preponderante na condução
de políticas sociais de cunho compensatório, que visem à contenção da
pobreza. (idem, p. 1129).

Dessa forma, o Estado, mesmo assumindo um papel de promotor de direitos


sociais como educação, busca se travestir de empresa, adequando suas estruturas à lógica
de “baixar custos e redefinir gastos” (idem, p. 1131) e, consequentemente, afetando as
relações de trabalho com seus funcionários e agentes. Na escola pública, isso se manifesta
no fenômeno da desprofissionalização, onde “[a]s reformas em curso tendem a retirar
deles [professores] a autonomia, entendida como condição de participar da concepção e
organização de seu trabalho” (idem, p. 1132).
O que se observa é que as mobilizações sociais em torno de demandas como a
democratização do ensino e da escola pública foram sendo apropriadas e resignificadas

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

882
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

em favor de interesses conservadores. Os novos sentidos dados a essas exigências


acabaram levando à construção de um espaço de experiências orientado não na vontade
da sociedade civil, mas na relação simbiótica entre Estado e mercado. Essa nova condição
não substitui ou exclui as percepções de conjunturas anteriores a respeito do caráter
moralizante e cívico que a escola deveria seguir, mas se soma a elas. A consequência
disso é que, contrariamente ao potencial aberto pelo contexto de fim da Ditadura Militar
para o início de um debate plural e democrático para o avanço da educação pública, laica,
gratuita e inclusiva, a escola continua sendo palco para a manifestação de novos e antigos
interesses que visam reproduzir a lógica patrimonialista de apropriar os espações públicos
para a consolidação de interesses privados.
O principal exemplo da vinculação do MESP com o ideário que articula essas
concepções neoliberais e “libertárias” está na associação de seu criador e atual
coordenador, Miguel Nagib, com o thinktank Instituto Millenium. O advogado teria
atuado durante certo tempo como articulista da organização, produzindo textos como “Por
uma escola que promova os valores do Millenium” (AQUINO, 2016). O que se observa
desses valores que o MESP busca consolidar a partir da escola é a ideia de um Estado
neutro em relação à política como uma instituição isenta, esvaziada do seu potencial de
representar os interesses da sociedade. Segundo a lógica “libertária”, a única instituição
capaz de assumir uma função política junto aos indivíduos é o mercado, base para a
construção do progresso humano. O Estado se torna mínimo, responsável somente por
consolidar direitos estabelecidos pelas leis, as quais, por sua vez, devem priorizar a
promoção daquele mesmo mercado.
A essas determinações se somam as influências dos outros pilares do discurso
conservador sustentado pelo MESP. A despolitização da escola implica que a discussão
política nas relações de ensino-aprendizagem só pode ser feita como parte dos conteúdos
prescritos a serem ministrados. A dimensão política da educação é desconsiderada. A
escola assume o mesmo caráter do Estado politicamente neutro: manutenção das
desigualdades e hierarquias sociais pautadas numa moral definida pela família, pela
religião e pelo mercado. A política se torna uma relação de poder naturalizada e não uma
ferramenta a partir da qual os participantes do espaço escolar possam agir no mundo.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

883
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É partindo da definição desse viés tanto conservador quanto reacionário do


movimento que podemos começar a definir as concepções pedagógicas e políticos que o
orientam. A noção de neutralidade surge assim como uma das fundamentações teóricas
para esse discurso que quer se legitimar. Penna aponta que o MESP visa estabelecer um
“projeto de escolarização completamente destituído de qualquer caráter educacional”
(PENNA, 2016, p. 46). É esse caráter que a demanda por um ensino neutro informa.
Essa configuração deve ser tomada como parte das disputas pelo sentido da
educação escolar e da inserção social da profissão docente. Esse seria um ponto de partida
importante para uma análise crítica do MESP e seu discurso enquanto objeto de pesquisa.
A crítica à ideia de uma educação pautada na neutralidade deve considerar os espaços e
motivações que estruturam esse conceito.
Com seu projeto de escolarização pautada no combate à “doutrinação ideológica”
e defesa dos valores através da promoção de um ensino neutro, o MESP não só retira de
professores e estudantes a autonomia para decidir sobre o processo de ensino-
aprendizado, mas também retira o seu potencial de agir politicamente, descartando um
certo sentido de educação e produzindo outro. Assim, tanto numa abordagem teórica
quanto política, a desnaturalização dos argumentos e propostas do movimento pode ser
um método possível para avançar dentre desse debate.

5. FONTES

“Anteprojeto de Lei Municipal e minuta de justificativa”. Disponível em:


http://www.programaescolasempartido.org/municipal/. Acesso em: 10/7/2017

“Anteprojeto de Lei Estadual e minuta de justificativa”. Disponível em:


http://www.programaescolasempartido.org/anteprojeto-estadual/. Acesso em: 10/7/2017

“Anteprojeto de Lei Federal”.


Disponível em: http://www.programaescolasempartido.org/plfederal/. Acesso em:
10/7/2017

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 867 de 2015. Disponível em:


<http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1317168.pdf>. Acesso em: 19/7/2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

884
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

6. BIBLIOGRAFIA

AQUINO, Renata (2015). “A ideologia do Escola Sem Partido”. Professores Contra o


Escola Sem Partido, online.
Disponível em:
<https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com/2016/06/03/a-ideologia-
do-escola-sem-partido/>. Acesso em 6/7/2017.

BEDINELLI, Talita. “A educação brasileira no centro de uma guerra ideológica”. El


País Brasil, Política. 26 jun. 2016b.
Disponível em:
<http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/22/politica/1466631380_123983.html?id_extern
o_rsoc=FB_CM?rel=mas>. Acesso em: 18 out. 2016.

CUNHA, Luiz Antônio. Confessionalismo versus laicidade na educação brasileira: ontem


e hoje. Visioni Latino Americane, v. III, n. 4, 2011.

_____. O Legado da ditadura para a educação brasileira. Educação & Sociedade, v. 35,
2014.

_____. O projeto reacionário de educação. [S.l.], 2016?.


Disponível em:
<http://luizantoniocunha.pro.br/uploads/independente/1-EduReacionaria.pdf>.
Acesso em: 10 dez. 2016.

_____; OLIVA, Carlos Eduardo. Sete teses equivocadas sobre o Estado Laico. In
CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Ministério Público em Defesa
do Estado Laico (volume 1). Brasília: CNMP, 2014, pp. 205-227.

DIAS, Amália. Apostolado cívico: a função social do magistério de ensino secundário


(1931-1942). Revista Contemporânea de Educação, v. 8, n. 15, 2013.

FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Instrução elementar no século XIX. In LOPES,
Eliana Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes de; VEIGA, Cynthia Greive.
500 anos de educação no Brasil. 2ªed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, pp. 135-224.

_____; VIDAL, Diana Gonçalves. Os tempos e os espaços escolares no processo de


institucionalização da escola primária no Brasil. Revista Brasileira de Educação, n. 14,
2000.

LACERDA, Gustavo Biscaia. Sobre as relações entre Igreja e Estado: conceituando a


laicidade. In CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Ministério
Público em Defesa do Estado Laico (volume 1). Brasília: CNMP, 2014, pp. 177-204.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

885
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MATOS, Braulio Tarcísio Porto de. Doutrinação política e ideológica nas escolas. Escola
Sem Partido, 2015.
Disponível em:
http://www.escolasempartido.org/images/braulio. Acesso em 08/04/2017

MIGUEL, Luis Felipe. Da “doutrinação marxista” à "ideologia de gênero": Escola Sem


Partido e as leis da mordaça no parlamento brasileiro. Direito & Práxis, v.7, n. 15, 2016.
Disponível em:
<http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/25163>. Acesso
em: 10 dez. 2016.

NAGIB, Miguel. Caso Sigma. Escola sem Partido, 2011, Disponível em:
http://www.escolasempartido.org/sindrome-de-estocolmo/114-caso-sigma. Acesso em
08/04/2017.

_____. Juristas confundem liberdade de ensinar com liberdade de expressão. Escola sem
Partido, 2016. Disponível em: http://www.escolasempartido.org/artigos-top/591-juristas-
confundem-liberdade-de-ensinar-com-liberdade-de-expressao. Acesso em 05/04/2017.

_____. Professor não tem direito de fazer a cabeça do aluno. Conjur, 2013. Disponível
em: http://www.conjur.com.br/2013-out-03/miguel-nagib-professor-nao-direito-cabeca-
aluno. Acesso em 05/04/2017.

PENNA, Fernando. “Programa “escola sem partido”: uma ameaça à educação


conservadora”. In GABRIEL, Carmen; MONTEIRO, Ana Maria & Martins, Marcus
Leonardo (orgs). Narrativas do Rio de Janeiro nas salas de aula de história. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2016.

OLIVEIRA, Dalila Andrade. A reestruturação do trabalho docente: precarização e


flexibilização. Educação e Sociedade, v. 25, n. 89, p. 1127-1144, 2004.

SALLES, Diogo da Costa. A concepção pedagógica e o projeto educacional conservador


e reacionário do Movimento Escola Sem Partido: uma crítica a partir da função de
subjetivação do processo de ensino-aprendizado. Revista Aleph, v. 14, n. 28, 2017.

SEPULVEDA, Denize; SEPULVEDA, José Antonio. O pensamento conservador e suas


relações com as práticas discriminatórias na educação: a importância da laicidade.
Revista Teias, v. 17, n. 47, 2016.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

886
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Em busca de uma “Psiquiatria Latino-Americana”: Projetos e propostas


(1939-1970)

EDE C. B. CERQUEIRA
PPGHCS – COC/Fiocruz
CAPES

Nesta comunicação procuro apresentar resumidamente os principais tópicos


analisados em minha tese de doutorado, ainda em elaboração. Tenho como principal
objetivo estudar projetos e propostas, desenvolvidos por grupos de psiquiatras de diversos
países da América Latina, que visavam a constituição de uma psiquiatria latino-
americana, no período de 1939 a 1970. Dentre os psiquiatras que participaram destes
projetos, focalizo minha análise, principalmente, nas iniciativas desenvolvidas por
brasileiros e argentinos, para fins de recorte metodológico, mesmo considerando a
participação fundamental de especialistas provenientes do Peru, Colômbia, Cuba,
Venezuela, dentre outros países, no desenvolvimento de tais projetos.
Como marco inicial foi escolhido o ano de 1939, quando foi criada a revista
Neurônio – Arquivos Latino-Americanos de Neurologia, Psiquiatria, Medicina Legal e
Ciências Afins, na cidade de São Paulo, por considerar que, a partir desta revista, surgiram
novas iniciativas relacionadas à ideia de uma psiquiatria latino-americana que
envolveram diretamente médicos brasileiros e argentinos. E como marco final para esta
pesquisa foi eleito o ano de 1970, quando aconteceu o VI Congresso Latino-Americano
de Psiquiatria, realizado em São Paulo, dedicado ao estudo da relação entre “Psiquiatria
Social e América Latina”, um evento de grande relevância para os projetos que visavam
constituir um modelo específico de psiquiatria latino-americana. A pesquisa busca assim
compreender quais os sentidos concedidos à ideia de uma psiquiatria latino-americana e
quais as consequências práticas destes modelos. Quais grupos de especialistas falavam a
este respeito e que projetos defendiam? Quais temas e ideais eram debatidos? De quais
instituições participavam?
Até o presente estágio da pesquisa identificamos quatro projetos principais
desenvolvidos por grupos de psiquiatras, projetos estes com características diferenciadas,
mas que compartilhavam a ideia de elaborar uma psiquiatria feita por especialistas latino-
americanos e voltada para atender os problemas e necessidades específicos locais. Os
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

887
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

projetos defendidos por estes atores sociais serão aqui analisados a partir de dois aspectos:
por um lado, as propostas teóricas-analíticas que defendiam, inspiradas em tendências
diversas da medicina, como a organicista, a psicossocial e a psicossomática; por outro, os
esforços para a constituição e desenvolvimento de instituições – associações científicas,
revistas, e também eventos como os congressos regionais. Trata-se aqui da análise dos
espaços de discussão nos quais circulavam ideias sobre problemas específicos
enfrentados pela psiquiatria na América Latina, os quais serviam também para a própria
divulgação dos modelos teóricos-analíticos que defendiam, frente a outros propagados
por grupos diversos de médicos e psiquiatras latino-americanos.

A AMÉRICA LATINA TAMBÉM FAZ CIÊNCIA

O primeiro projeto, que analiso, foi defendido por um grupo formado


principalmente por médicos legistas e psiquiatras forenses que, desde o final da década
de 1930, estavam preocupados com o desenvolvimento destas áreas em países latino-
americanos e sua relação com outras disciplinas próximas, como a neurologia,
neurocirurgia, endocrinologia, toxicologia, antropologia, criminologia, infortunística e
técnica policial. Também era um dos principais objetivos deste grupo divulgar as
pesquisas realizadas por especialistas latino-americanos a nível regional e mundial. A
maioria dos psiquiatras forenses e médicos legistas brasileiros deste grupo eram ligados
ao Instituto Oscar Freire e à cadeira de medicina legal da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, ambos localizados na citada capital, embora existissem
também especialistas em medicina legal e psiquiatria forense ligados à Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro e de outros países latino-americanos que participaram dos
projetos desenvolvidos por este grupo.
O projeto de psiquiatria latino-americana defendido por este grupo desenvolveu-
se a partir da criação da revista Neurônio – Arquivos Latino-Americanos de Neurologia,
Psiquiatria, Medicina Legal e Ciências Afins, em 1939, na cidade de São Paulo, e da
fundação da Academia Latino-Americana de Neurologia, Psiquiatria, Medicina Legal,
em 1941. A criação destas instituições tinha como principais objetivos congregar
especialistas latino-americanos em associações que representassem seus interesses;
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

888
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

organizar congressos científicos; divulgar a produção científica publicada por estes


especialistas a nível regional e mundial, por meio da revista, e incentivar esta mesma
produção do conhecimento via promoção de concursos de trabalhos originais.
Teoricamente os membros deste grupo eram influenciados pelo viés orgânico da medicina
psiquiátrica, pela higiene mental e eugenia, e por teóricos da criminologia e medicina
legal.
Alguns dos médicos que se destacaram pela ativa participação neste grupo foram
Antonio C. Pacheco e Silva e Hilário Veiga de Carvalho, Aderbal Tolosa, Flamínio
Fávero como representantes de São Paulo, ligados ao Instituto Oscar Freire e à cadeira de
medicina legal da Faculdade de Medicina da USP; Guillermo Uribe Cualla (Bogotá),
Henrique Tanner de Abreu (Rio de Janeiro) e Oswaldo Loudet (Buenos Aires) (Neurônio,
Apresentação, 1939).
A Revista Neurônio teve como seu primeiro diretor Hilário Veiga de Carvalho,
sendo que seu primeiro conselho científico foi formado pelos médicos acima citados e
tendo como membros do conselho de redação os médicos A. Teixeira Lima, Manuel
Pereira, A. Amado Ferreira, Milton E. Amaral, Osvaldo Lange, Pedro A. da Silva, Oscar
de Godoy. O editorial de apresentação da revista, em 1939, ressaltava que o nome
Neurônio foi escolhido porque a revista, tal qual o “mais nobre tecido” com a “mais nobre
função de organismo”, pretendia cumprir a função de “transmitir a elaboração mental
latino-americana, que nela se contém, levando-a a todas as partes que lhe estejam ao
alcance”. Assim, os editores convocavam aos “cientistas latino-americanos” dedicados
ao estudo das especialidades contempladas na revista a colaborarem com esta enviando
trabalhos, livros e publicações várias sobre as quais o periódico publicaria recensões, já
que esta era organizada como uma revista bibliográfica especializada (Neurônio,
Apresentação, 1939).
O propósito da direção da revista, neste período, era o de servir como vitrine para
as publicações de livros e artigos de especialistas latino-americanos, que muitas vezes
não encontravam espaço para divulgar seus trabalhos nos periódicos europeus,
principalmente no caso de autores mais jovens, e, por conseguinte, catalogar a produção
do conhecimento médico-científico latino-americano nas áreas contempladas pela
publicação. A direção da Neurônio reforçava em suas primeiras páginas que “esta
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

889
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Revista, já se assinalou, desde o subtítulo é latino-americana: é da América Latina para


si mesmo e para todo o mundo” (Neurônio, Apresentação, 1939).
Nos primeiros anos após a fundação da revista, as resenhas apresentadas nesta
estavam divididas em seções de “Generalidades”, em que aparecem trabalhos sobre
medicina em geral; “Antropologia, criminologia e direito penal”; seguida pelas seções de
“Constituição e Endocrinologia”; “Infortunística”; “Medicina Legal”; “Neurologia e
Neurocirurgia”; “Neuropatologia, Anatomia patológica e histologia”; “Psiquiatria e
Psicopatologia forense”; “Técnica policial” e “Toxicologia”. Nos primeiros números da
revista, os trabalhos de psiquiatria, mais especificamente, foram em sua maioria
publicados em São Paulo e Rio de Janeiro, mas também se tem trabalhos publicados em
revistas das cidades de Rosário, Córdoba, Buenos Aires, Bogotá e Lima (Neurônio, 1939-
1941).
Em 1942, a Revista Neurônio, que então tinha como redatores os médicos
Fernando O. Bastos e J. Carvalhal Ribas, passou por algumas modificações. No seu
conselho científico foram incorporados novos membros. A revista, a partir deste ano,
também passou a ter uma edição ampliada, com muitas propagandas de medicamentos.
Estes patrocinadores eram fundamentais na época para a manutenção da revista, de
maneira que, quando a Academia Latino Americana de Neurologia, Psiquiatria e
Medicina Legal foi criada em 1941, a revista Neurônio não pode assumir todas as funções
de órgão oficial da academia, pois, segundo o Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP) do governo Vargas, para isto ela precisaria abdicar de toda a publicidade em suas
páginas (Neurônio, 1942, p. 30). Assim, na revista aparecem notícias sobre a Academia
em seus primeiros anos, mas não são publicadas atas de reunião, como eram comuns em
periódicos oficiais de instituições científicas do período.
A anteriormente citada Academia Latino-Americana de Neurologia, Psiquiatria,
Medicina Legal foi fundada em 12 de outubro de 1941, na cidade de São Paulo. Sua
primeira diretoria foi formada por Antonio Carlos Pacheco e Silva como presidente, o
psiquiatra argentino Osvaldo Loudet como primeiro vice-presidente, o neurologista Julio
Oscar Trelles como segundo vice-presidente e Heitor Carrilho como terceiro vice-

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

890
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

presidente, Flamínio Fávero como secretário geral, Pedro Augusto da Silva e Fernando
O. Bastos como secretários376 (RMLC, 1942, p. 86).
Por meio da influência de membros deste grupo, como os brasileiros Pacheco e
Silva, H. Veiga de Carvalho e o colombiano Uribe Cualla, a revista Neurônio e a
Academia Latino-Americana, desde a sua fundação, mantiveram uma longa e sólida
relação com o Instituto de Medicina Legal da Colômbia até a década de 1960, quando a
revista do Instituto passou inclusive a assumir a função de órgão oficial da Academia.

A ASSOCIAÇÃO LATINO-AMERICANA PRÓ-SAÚDE MENTAL E SEUS


CONGRESSOS

O segundo projeto identificado até o momento foi iniciado em 1948, com a criação
da Associação Latino-Americana Pró-Saúde Mental. Neste mesmo ano, foi realizado, em
Londres, o primeiro Congresso Internacional de Saúde Mental, cuja temática principal foi
“Saúde mental e cidadania mundial” (RMLC, 1959, p. 22). A comissão organizadora
deste congresso foi composta por 25 membros, dentre eles: Oswaldo Camargo-Abib,
superintendente do serviço de saúde mental do estado da Bahia; Otto Klineberg, professor
de psicologia da Universidade de Columbia; Lawrence K. Frank (presidente da
comissão), diretor do Instituto Caroline Zachry, em New York; Margaret Mead, Curadora
no Museu Americano de História Natural, New York; Harry Stack Sullivan, diretor da
Escola de Psiquiatria de Washington, dentre outros (CSM, 1948, p. 4).
Esta comissão reunia profissionais com experiências em diversas áreas, como
psicologia educacional, social e industrial; sociologia; assistência social psiquiátrica;
psiquiatria e psicanálise; filosofia; teologia; antropologia cultural; ciência política;
pesquisa médica e administração médica e geral, o que teoricamente lhe atribuía um
caráter multidisciplinar. Os três principais eixos de discussão propostos pela comissão

376
Como vogais dos países membros temos: José Belbey da Argentina; Leonídio Ribeiro do Brasil; Arturo
Vivado do Chile; Guillermo Uribe Cualla da Colômbia; Israel Castellanos de Cuba; Angel Viñán do
Equador; J. Gómez Robleda do México; Cándido A. Vasconsellos do Paraguai; C. A. Bambarén do Perú;
J. M. Estapé do Uruguai. Como membros honorários foram declarados: A. Austregésilo, Afranio Peixoto;
Henrique Roxo; Henrique Tanner de Abreu; Arturo Ameghino, Francisco de Veyga; Leonidas Avendaño;
Mariano R. Castex e Nerio Rojas (RMLC, 1942, p. 86).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

891
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

preparatória para os congressistas foram: “O que é saúde mental”; “O que constitui uma
boa sociedade”; e o “O que é cidadania mundial” (CSM, 1948, p. 4). Neste mesmo
congresso foi criada a World Federation for Mental Health, que seria uma continuação
do Comitê Internacional de Higiene Mental, criado em 1919, inspirado no exemplo do
Comitê Nacional de Higiene Mental dos Estados Unidos, fundado dez anos antes. Estes
dois comitês de higiene mental impulsionaram a criação de Ligas de Higiene Mental a
partir da década de 1920 em países europeus como a França, Espanha e Inglaterra
(ECHAVARRÍA, 2013, p. 37), e também na América Latina.
A realização do citado Congresso Internacional de Saúde Mental, associado à
fundação da World Federation for Mental Health, foram fatos decisivos para a criação da
Associação Latino-Americana Pró-Saúde Mental, naquele mesmo ano de 1948. Esta
associação foi responsável pela organização de congressos latino-americanos de saúde
mental, que ocorreram primeiramente em São Paulo (1954) sob a presidência de Antonio
C. Pacheco e Silva, depois em Buenos Aires (1956), dirigido por Nerio Rojas, seguido do
de Lima (1958), que foi organizado por Honório Delgado. As edições seguintes
ocorreram Santiago do Chile (1960), Caracas (1963) e novamente Buenos Aires (1966).
No terceiro congresso, sediado em Lima, em 1958, participaram delegados de 15
países da América Latina, e “observadores dos EUA, Canadá e Federação Mundial de
Saúde Mental”, cujo diretor no período era o psiquiatra chileno Carlos Nassar (Revista
de Medicina Legal da Colômbia – RMLC, 1959, p. 40). Nesta ocasião, Honório Delgado,
enquanto presidente do congresso, enfatizava a importância do estudo e debate das
“estatísticas de adoecimento mental em áreas urbanas e rurais; dos problemas de saúde
mental dependentes da migração; das causas da intoxicação crônica; da relação entre
trabalho e saúde mental e também da organização e problemas sociais da comunidade”.
Diferente dos congressos de psiquiatria, estavam excluídos do programa de apresentações
daquele evento temas que tratassem do adoecimento mental do indivíduo e da assistência
aos enfermos mentais (RMLC, 1959, p. 22-23). Para Delgado, a relevância dos temas do
congresso estava no fato de que estes versavam “sobre o aspecto coletivo da saúde
mental” e sobre as condições de vida em uma “sociedade moderna que se [agravavam]
cada vez mais desde começos do século passado ao extremo que sua influência [fosse]

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

892
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

decisiva para dar fisionomia peculiar a humanidade atual”. Questões que para ele ainda
eram preteridas pela psiquiatria em geral.
Delgado fazia uma relação direta entre os cuidados de saúde mental com a
medicina em geral, observando que só com os avanços no tratamento e profilaxia em
doenças como a sífilis e outras enfermidades infecciosas se alcançou a redução de
determinados problemas mentais decorrentes destas patologias. Ele ressaltava que
“mesmo que a psiquiatria em seus métodos clínicos, sociais e experimentais tenha a
direção do trabalho científico e dos serviços em todo o âmbito da saúde mental”, esta já
não pode resolver sozinha todos os problemas que envolvem as questões referentes a
saúde mental de uma comunidade. Para ele era “central pois uma empresa de colaboração
multiprofissional” que envolvesse desde médicos e funcionários de hospitais até
psicólogos, assistentes sociais, sociólogos, juristas, educadores e sacerdotes (Delgado, H.
RMLC, 1959, p. 24-25). Percebemos neste grupo uma influência da higiene mental,
atrelada à defesa do que eles denominam de “psico-higiene” como ação fundamental para
o pleno desenvolvimento da saúde mental e da saúde pública em geral.

A “PSIQUIATRIA SOCIAL” SOB UMA LEITURA LATINO-AMERICANA

Um terceiro grupo, que foi formado a partir do início dos anos de 1950, reunia
psiquiatras que buscavam a constituição de um projeto específico de psiquiatria voltado
para o estudo e tratamento dos problemas nervosos e mentais dos latino-americanos,
levando em consideração questões pertinentes ao seu “meio social”. Esta psiquiatria
deveria ser desenvolvida por psiquiatras latino-americanos e para latino-americanos,
mesmo que os primeiros apresentassem fortes influências norte-americanas e europeias.
O projeto de constituição de uma psiquiatria latino-americana desenvolvido por este
grupo de psiquiatras, ao defender a indivisibilidade entre mente, corpo e meio social,
considerava que os postulados teóricos e tratamentos psiquiátricos não poderiam basear-
se em categorias universais estanques, mas, pelo contrário, deveriam ser condizentes com
problemas específicos locais que afetavam o indivíduo dentro do seu ambiente familiar,
de trabalho e político-social mais amplo.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

893
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A análise desenvolvida até o momento possibilita afirmar que fizeram parte deste
grupo médicos psiquiatras como Gregório Bermann (Argentina), Cláudio de Araújo Lima
(Brasil), Carlos Alberto Seguín (Peru), Jorge Thenon (Argentina), José Bleger
(Argentina) e José Angel Bustamante (Cuba). Dentre os membros do grupo citado,
analiso brevemente nesta comunicação a participação de dois psiquiatras, o argentino
Gregório Bermann e o brasileiro Cláudio Araújo Lima, na idealização deste projeto de
constituição de uma psiquiatria latino-americana.
Bermann e Araújo Lima foram os editores fundadores da Revista Latino-
Americana de Psiquiatria, criada em 1951 com sede dupla em Córdoba e Rio de Janeiro,
e que circulou até 1954 (VEZETTI, 2016, s.p.). Bermann já possuía experiência na
editoração de uma revista especializada, pois havia criado, em 1936, a Revista
Psicoterapia, que publicou apenas quatro edições antes de sua viagem para a Espanha,
para lutar na Guerra Civil. Esta revista apresentava um programa que ampliava a
utilização da psicoterapia para além da técnica, incluindo uma função política progressista
de renovação da psiquiatria (PLOTKIN, 2001: 26-27).
Bermann, além de obras mais específicas de psiquiatria como Psicogénesis de la
locura moral, Nuestra psiquiatría e La salud mental y la asistencia psiquiátrica en
Argentina, publicadas entre as décadas de 1930 e 1960, também escreveu trabalhos
focalizando temas mais amplos como a questão do conhecimento, das ciências, da
reforma universitária e dos problemas políticos e sociais argentinos e latino-americanos
(CELENTANO, 2004).
Araújo Lima, assim como Bermann, publicou tanto sobre psiquiatria como sobre
questões políticas e sociais da época. Entre os anos de 1930 e 1960, ele escreveu livros
relacionados à psiquiatria clínica, como Ensaios de psicologia médica (1959); biografias
psicológicas, como Plácido de Castro, um caudilho contra o imperialismo (1952) e Mito
e realidade de Vargas (1955); e ensaios que buscavam combinar psicologia, sociologia e
política, como Imperialismo e angústia, com o subtítulo de “ensaio sobre as bases de uma
sócio-psiquiatria da classe média brasileira na era imperialista” (1960), dentre outros.
Como citado anteriormente, a Revista Latinoamericana de Psiquiatria (RLAP),
criada em 1951, por Bermann e Araújo Lima, contou com a participação em sua
constituição de psiquiatras de vários países da América Latina, como Honório Delgado
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

894
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(Peru), por um breve período, Carlos Alberto Seguín (Peru), Jorge Thenon (Argentina);
José Bleger (Argentina) e José Angel Bustamante (Cuba), dentre outros. Em seu editorial
de lançamento a revista foi apresentada por seus diretores como um “empreendimento de
solidariedade científica e humana”, que pretendia “abstrair as fronteiras nacionais, visto
como os graves problemas de saúde mental” já não podiam “ser enfrentados pelas equipes
científicas de um único país”. Os editores destacavam o fato de que, mesmo com a
multiplicação dos congressos e conferências internacionais, “os estudiosos de cada país
ou região ainda [permaneciam] solitários, consumindo-se em esforços as vezes estéreis”.
E reforçavam que “apesar de nossa origem comum e de um evidente destino comum,
permanecemos hoje quase tão fragmentados e isolados como nos tempos coloniais, por
absurdos motivos que não são precisamente o dos seus homens de ciência”. Neste
contexto, acreditavam Bermann e Araújo Lima, “a RLAP, de âmbito continental, com
espirito americano e universal, será o ponto de confluência dos esforços particulares para
uma obra de progresso científico e social, que impõe a ação conjugada e solidária”
(RLAP, 1951, p. 5-6).
Em seu programa a Revista procurava uma aproximação com outras disciplinas
científicas tais como a Psicologia, Psicopatologia, a Antropologia cultural e a Sociologia,
como forma de contribuir para o “descobrimento e aperfeiçoamento do Homem
Americano, tarefa que implica tanto maior responsabilidade quando se trata de uma época
de crise e de um século em efervescência criadora” (RLAP, 1951, p. 6). Para efetiva
realização de tal tarefa, eles consideravam de fundamental importância, no campo da
psiquiatria, “compreender o homem e suas perturbações mentais, dentro de sua época e
de seu meio”, caracterizando como um grave erro, “sobretudo entre os médicos,
considerar separadamente o homem e a sociedade”. Assim eles defendiam a tese de que
“o indivíduo é sempre o membro de sua família, do seu ambiente, da sua coletividade, da
sua nação, do seu mundo” (RLAP, 1951, p. 5-6) e deveria ser assim compreendido frente
a uma “realidade complexa, rica, unitária e, ao mesmo tempo incessante, que é a América,
que é o Mundo” (RLAP, 1951, p. 7).
As preocupações de Bermann e Araújo Lima apresentadas no editorial da RLAP,
relacionadas à efetivação de projetos coletivos entre psiquiatras latino-americanos, eram
compartilhadas por outros praticantes desta especialidade em países da América Central,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

895
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

do Sul e Caribe. Entre estes, podemos citar o cubano José Ángel Bustamante, que, em
1945, foi nomeado médico chefe do Hospital Psiquiátrico de Mazorra e, neste mesmo
ano, viajou por todos os países da América Latina, como representante do Colegio Médico
Nacional, com o objetivo de convocar um congresso a realizar-se em Havana. Neste
congresso, ocorrido em 1946, foi criada a Confederación Médica Panamericana, na qual
Bustamante ocupou os cargos de secretário geral, diretor da revista e, em 1948, presidente
(BAYARDO; MALPICA; LARA, s.d., pp. 219-220).
Após a realização do I Congresso Mundial de Psiquiatria, em Paris, no ano de
1950, Bustamante, juntamente com alguns dos psiquiatras latino-americanos377 que se
encontravam descontentes com os encaminhamentos discutidos neste evento, passou a
trabalhar em prol da criação de uma associação de psiquiatras latino-americanos. A
inquietação destes psiquiatras baseava-se no fato de que naquele certame os problemas
referentes à América Latina, assim como de outras regiões do mundo, estavam sendo
discutidos sob uma perspectiva europeia, o que limitaria sua aplicação, ao mesmo tempo
que marginalizava o conhecimento desenvolvido localmente. No ano seguinte à
realização do congresso, o mexicano Raúl González Henriquez viajou pela América do
Sul para promover a ideia da criação de uma associação que reunisse psiquiatras latino-
americanos, e criou juntamente com Bustamante e o peruano Carlos Alberto Seguín o
Grupo Latinoamericano de Estudios Transculturales (Gladet) (BAYARDO; MALPICA;
LARA, s.d., pp. 219-220).
Porém, as primeiras iniciativas em prol da constituição da associação foram
interrompidas por alguns anos com o falecimento de González Henriquez, em 1952. Em
1958, quando da realização do III Congresso Latino Americano da Saúde Mental, sediado
em Lima, ocorreu uma reunião cujo objetivo era informar sobre o processo de
constituição da APAL, reunião que foi presidida por José Bustamante, A. C. Pacheco e
Silva e Carlos A. Seguín, como membros do comitê de constituição da Associação. Nesta,
os citados médicos relataram os avanços alcançados pelo comitê de organização da
instituição no sentido de conseguirem a adesão de vários países à associação. Na ocasião
o dr. Uribe Cualla, enquanto representante da Sociedade de Psicopatologia, Neurologia e

377
Estavam presentes neste evento José A. Bustamante, A. C. Pacheco e Silva, Carlos A. Seguín, Gregório
Bermann, Honório Delgado, Carlos César General, Aníbal da Silveira, dentre outros.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

896
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Medicina Legal da Colômbia, e o dr. Guillermo Correal Sanín, representante da


Sociedade de Estudos Psiquiátricos de Bogotá, confirmaram a adesão destas entidades à
agremiação, assim como os delegados de outros países como Chile, Argentina, Venezuela
e Equador. Os membros do comitê planejavam preparar os estatutos da instituição até
abril do ano seguinte (RMLC, 1958, p. 30).
Em 1960, a APAL foi efetivamente fundada, após um longo processo que durou
cerca de dez anos, desde as primeiras iniciativas em prol de sua constituição. Um ano
após a sua criação, foi realizado em Caracas, o Primeiro Congresso Latino Americano de
Psiquiatria, seguido pelos congressos que ocorreram no México (1962), Lima (1964),
Buenos Aires (1966), Bogotá (1968) e São Paulo (1970) e Punta del Este (1972)
(ROSSELLI, 1971, p. 566). Estes congressos da APAL, segundo Javier Mariátegui,
tiveram como principal finalidade “convocar os psiquiatras desta parte do hemisfério,
para estudar sobretudo as características próprias de ‘Nuestra Psiquiatría’”
(MARIÁTEGUI, 1995, p. 302). Também participaram deste movimento pela criação da
APAL os psiquiatras Jésus Mata de Gregorio, G. Bermann, e Guillermo Dávila, do
México.

NOVAS PROPOSTAS PARA UMA “PSIQUIATRIA SOCIAL” LATINO-


AMERICANA

O quarto grupo analisado era formado por alguns discípulos de membros do


segundo grupo e por outros psiquiatras mais jovens. Estes resgataram e revisaram alguns
dos projetos apresentados pelo grupo anterior, procurando concretizá-los na forma de
modelos assistenciais e terapêuticos e também em iniciativas institucionais. Os
psiquiatras deste grupo também se preocuparam em escrever uma história da psiquiatria
latino-americana, enquanto uma estratégia de afirmação de sua especificidade,
apresentando suas origens nas práticas de cura pré-coloniais e não na medicina europeia
colonial. Também buscaram definir uma “identidade da psiquiatria latino-americana”.
Assim como os membros do grupo anteriormente citado, os psiquiatras deste grupo
defendiam a importância da psiquiatria considerar o homem enfermo frente às
especificidades do seu meio social, no caso o latino-americano.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

897
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Este grupo teve uma ampla participação no VI Congresso Latino-Americano de


Psiquiatria, realizado em 1970 em São Paulo, onde os participantes debateram sobre
práticas terapêuticas e assistenciais relacionadas à psiquiatria social. Fizeram parte deste
grupo: Clóvis Martins (Brasil), Javier Mariátegui (Peru), Renato Alarcón (Peru),
Humberto Rosselli (Colômbia), Carlos León, Guillermo Vidal (Argentina). O principal
projeto defendido pelos membros deste grupo, com a colaboração de alguns outros
psiquiatras, foi manter a APAL e sua revista Acta Psiquiátrica y Psicológica de América
Latina, criada em 1964, na cidade de Buenos Aires, em efetivo funcionamento.
Outra iniciativa deste grupo baseou-se na construção de uma história da
psiquiatria latino-americana. Este grupo iniciou uma tradição entre os psiquiatras de
países latino-americanos de buscarem, para além das histórias nacionais da psiquiatria em
seus países de origem, pontos em comum de integração com outros países desta região.
Um aspecto importante da leitura desenvolvida por estes autores sobre a história da
psiquiatria latino-americana diz respeito a uma busca por uma identidade própria, latino-
americana, procurando fugir a comparações esquemáticas com a psiquiatria europeia e
norte-americana e à ideia de atraso em relação a estas.
Estes projetos, apesar de apresentarem influências teóricas diferentes e terem sido
desenvolvidos em contextos e períodos específicos, tem em comum a intenção de
desenvolver projetos e apresentar propostas que viabilizassem a constituição e divulgação
de uma psiquiatria latino-americana, independente, produtiva e consciente de suas
particularidades. Em alguns destes projetos esta estaria mais propensa ao estudo da
influência do físico sobre o mental, em outros voltada para atender as características
sociais, políticas, econômicas, históricas e culturais do “homem latino-americano”, como
um indivíduo uno com a sociedade em que vive e que sofre uma influência direta dos
fatores que a afetam.

FONTES

Acta Psiquiátrica y Psicológica de América Latina (1964-).


Neurônio: Arquivos Latino-Americanos de Neurologia, Psiquiatria, Medicina Legal e
Ciências Afins (1939-1974).
Revista de Medicina Legal de Colombia (1935-1970).
Revista latinoamericana de psiquiatría (1951-1954).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

898
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERMANN, Gregorio. “La unidad continental y la psiquiatría”. In: ______. Nuestra


Psiquiatría. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1960.

BUSTAMANTE, Silvia. “Semblanza de José Ángel Bustamante O’Leary”. In:


BAYARDO, Sergio J. V.; MALPICA, Carlos R.; LARA, Jean G. Antología de textos
clásicos de la psiquiatría latinoamericana. S.l.: Grupo Latino Americano de Estudios
Transculturales, s.d., pp. 219-220.

CELENTANO, Adrián. “El humanismo de Gregorio Bermann”. In: GONZÁLEZ, Pablo


Guadarrama; BIAGINI, Hugo (Dir.). El pensamiento latino-americano de siglo XX ante
la condición humana, 2004. Disponível em http://www.ensayistas.org/
critica/generales/C-H/argentina/bermann.htm. Consultado em 25/09/2016.

MARIÁTEGUI, J. Necrología. Carlos Alberto Seguín. Revista de Neuro-psiquiatría, Vol.


58, 1995, pp. 299-300.

PLOTKIN, Mariano. Freud in the Pampas: The Formation of a Psychoanalytic Culture


in Argentina, 1910-1983. Stanford: Stanford University Press, 2001.

ROSSELLI, Humberto. “Antecedentes y desarrollo de la psiquiatría en Latino-América”.


In: MARTINS, Clóvis; ASSIS, Luís M. de (Org.). Psiquiatria social e América Latina.
São Paulo: Referência, 1971.

VEZZETTI, Hugo. Psiquiatría, psicoanálisis y cultura comunista: batallas ideológicas


en la guerra fria. Buenos Aires: XXI Siglo Veintiuno Editores, 2016.

SITES

“Grupo Latinoamericano de Estudios Transculturales”.


Disponível em www.gladet.org.mx. Consultado em 27/10/2016.

“Historia de APAL”.
Disponível em http://designfromnow.com/apal/historia-de-apal. Consultado em
27/10/2016.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

899
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Narrativas históricas e ficcionais em diálogo:


o uso de literaturas africanas e suas contribuições ao ensino de história

EDUARDA DAUDT DA SILVA


PROFHISTORIA Mestrado Profissional em Ensino de História
PUC-Rio / CAPES

O presente texto é fruto de um projeto de pesquisa desenvolvido a partir do tema


da relação entre literatura e ensino de história. Eescolhemos como objeto de análise as
culturas locais de sociedades africanas, mas especificamente sua literatura e suas
experiências com o tempo. O país africano Moçambique será o espaço escolhido onde a
produção literária analisada se desenvolve. Através de narrativas ficcionais, literaturas
permeadas pela tradição e oralidade, analisaremos concepções temporais e o modo como
determinadas sociedades vivenciam e lidam com o tempo. É, pois, através da linguagem,
possível vermos refletidas ações e intenções que marcam o tempo e categorias temporais.
É possível analisar como o homem de uma singular cultura se relaciona com o fenômeno
do tempo.
Segundo o sociólogo e literato Antônio Cândido de Mello e Souza, a literatura, ao
abranger todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de
uma sociedade, caracterizaria-se como necessidade universal, que precisa ser satisfeita e
cuja satisfação constitui um direito. Concordando com o autor, tratamos aqui o acesso à
literatura como um direito e um meio através do qual é possível construir nossa
humanidade. Os valores que as sociedades mantêm, ou os que considera prejudiciais,
estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática.
Segundo Cândido, a literatura é humanizadora na medida em que desenvolve o exercício
da reflexão, a aquisição de saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das
emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção
da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. Ela nos torna mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.
Sua relação com a história é extremamente importante ao passo que, sendo a
escrita da história uma produção também narrativa, esta pautada na investigação
científica, ambas mantém estreitos laços na tarefa de produção de signicados sobre a
realidade em que se vive. Obras literárias sintetizam interesses de diferentes tempos e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

900
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

podem fazer falar o passado quando resgata contextos históricos. A literatura de


determinda época pode revelar, ao historiador ou ao aluno de história, o que sonhavam os
homens de tal período, o que desejavam expressar, como influenciavam comportamentos
e pensamentos. Ambos os campos expõem, de um jeito ou de outro, o que somos ou
fomos como potência e ato. Mais do que isso, a historiografia moderna chega a importar
recursos estéticos da literatura na construção de suas narrativas, abrindo novas
possibilidades à escrita da história.
É nosso propósito levantarmos questões ao âmbito do ensino de história tais como:
como tratar, junto aos estudantes de história, as questões acerca da representação e
marcação do tempo de culturas diversas? Qual seria o papel da memória para culturas
tradicionais não-letradas na construção de referências temporais? E, no caso de
Moçambique, no período pós-colonização portuguesa, das guerras de independência e as
resultantes desta, como se dá o intercâmbio entre distintas concepções temporais,
originárias do Ocidente, através do colonizador europeu, e das culturas tradicionais
locais?
Tais indagações podem produzir ricos debates e diálogos no ensino de história,
mas para além disso, o uso da literatura como meio para compreender a forma como o
homem lida com o tempo parece-nos ser uma via extremamente produtiva.
Para isto intencionamos trabalhar com a obra do escritor moçambicano Mia
Couto. Antônio Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia Couto, nasceu em 5 de Julho
de 1955, na cidade da Beira em Moçambique. É filho de uma família de migrantes
portugueses. Mia Couto publicou os seus primeiros poemas no jornal Notícias da Beira,
com 14 anos. Iniciava assim o seu percurso literário dentro de uma área específica da
literatura – a poesia –, mas posteriormente viria a escrever as suas obras em prosa. É
membro correspondente da Academia Brasileira de Letras. Seu romance Terra
sonâmbula foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Em 1999,
o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007 o prêmio
União Latina de Literaturas Românicas378.

378
Biografia retirada do sítio do autor <http://www.miacouto.org>. Acesso em 24 de junho de 2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

901
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Sua obra é composta por poemas, romances, crônicas e uma vasta produção de
contos publicados em diversos livros, entre eles Vozes Anoitecidas (1986), Cada Homem
é uma Raça (1990), Estórias Abensonhadas (1994). Interessa-nos aqui seus contos, por
se tratar de gênero que atrai mais aos jovens estudantes pela sua aceleração no desenrolar
da narrativa do que o gênero romance por exemplo. Far-se-á uma seleção de contos dos
seguintes livros do autor: Estórias Abensonhadas (1994), Contos do Nascer da Terra
(1997) e O Fio das Missangas (2003). Também analisaremos algumas crônicas do autor
presentes no livro Cronicando (1998). Ao longo do andamento da pesquisa outros de seus
livros poderão ser incluídos.
O tempo, nas narrativas de Mia Couto, tem um lugar privilegiado, não apenas
como estruturador das narrativas, mas também como tema. Em um dos capítulos de seu
romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, por exemplo, encontramos a
seguinte epígrafe: “O bom do caminho é haver volta. Para ida sem vinda, basta o tempo”
(COUTO, 2003, p. 123). Outros títulos de seus contos chamam atenção: A menina de
futuro torcido, O dia em que fuzilaram o guarda-redes, O dia em que explodiu Mabata-
bata, O ex-futuro padre e sua pré-viúva, Nas águas do tempo, O bebedor do tempo, A
última chuva do prisioneiro.
Mia Couto trabalha o tempo enquanto tema de forma sutil, levando o leitor a
pensar e sentir o tempo de formas não convencionais. No conto A menina de futuro
torcido, um pai pensa no “futuro” dos filhos: “Joseldo pensou na sua vida, seus doze
filhos. Onde encontraria futuro para lhes distribuir? Doze futuros, onde?” Já no conto O
fio e as missangas, dois homens dialogam sobre a passagem do tempo e a memória:

- Lembra que sentámos neste mesmo lugar há uns anos atrás?


- Recordo, sim senhor. Parece que foi ontem.
- O ontem é muito longe para mim. Minha lembrança só chega às coisas antigas.
- Ora, o senhor ainda é novo.
- Não sou velho, é verdade. Mas fui ganhando velhices.

Além da temática temporal, Mia Couto lida em suas obras com temas sociais como
o processo de independencia de seu país, a guerra, a fome, a pobreza; mas também as
diversidades culturais, as dinamicas sociais, as culturas em movimento. Traços que

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

902
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

podemos perceber nos seguintes trechos dos contos Sangue da avó, manchando a alcatifa
e As medalhas trocadas, respectivamente:

Mandaram vir para Maputo a avó Carolina. Razões de guerra. A velha


mantinha magras sobrevivências lá, no interior, em terra mais frequentada por
balas que por chuva. Além disso, a avó estava bastante cheia de idade.
Carolina merecia as penas. A vovó chegou e logo se admirou dos luxos da
família. Alcatifas, mármores, carros, uísques tudo abundava. Nos princípios,
ela muito se orgulhou daquelas riquezas. A Independência, afinal, não tinha
sido para o povo viver bem? Mas depois, a velha se foi duvidando. Afinal, de
onde vinham tantas vaidades? E porque razão os tesouros desta vida não se
distribuem pelos todos? Carolina, calada em si, não desistia de se perguntar.
Parecia demorar-se em estado de domingo. Mas, por dentro, os mistérios lhe
davam serviço. Na aldeia, a velha muito elogiara a militância dos filhos
citadinos, comentando os seus sacrifícios pela causa do povo. Em sua boca, a
família era bandeira hasteada bem no alto, onde nem poeira pode trazer
mancha. Mas agora ela se inquietava olhando aquela casa empanturrada de
luxos. A filha vinha da loja com sacos cheios, abarrotados.
- Este abastecimento não é tão demais?
- Cala vovó. Vai lá ver televisão.
Sentavam a avó frente ao aparelho e ela ficava prisioneira das Luzes. Apoiada
numa velha bengala, adormecia no sofá. E ali lhe deixavam. Mais noite, ela
despertava e luscofuscava seus pequenos olhos pela sala. Filhos e netos se
fechavam numa roda, assistindo vídeo. Quase lhe vinha um sentimento doce,
a memória da fogueira arredondando os corações. E lhe subia uma vontade de
contar estórias. Mas ninguém lhe escutava. (COUTO, Mia. Cronicando. Ed.
Caminho, Lisboa: 1991.)

Transcrevo agora uns capítulos da vida de Zeca Tomé, homem de mais acaso que
destino. Estava ele no embalo da sua inocência quando chegou a notícia: por feitos de
bravura ia ser condecorado. Zeca riu-se: eu? Sim, ele proprioíssimo. Medalhado no Dia
da Raça. Zeca desdenhou. Ele, sempre esquecido, por que motivo seria agora
maisprezado? Explicaram: é o senhor administrador que está-te chamar, precisa de você
no tal dia, o exacto dez de Junho.

- Vai dizer ao senhor diministrador que parece há uma confusão. Há outro


Tomé aqui, a medalha deve ser para esse.
O mensageiro declarou que o tempo era mais curto que a sua língua, razão que
aquilo merecia as pressas. Fosse um ou outro Tomé, para o caso nem
interessava. Ele mesmo que lhe acompanhasse à cidade, vestido de boas
maneiras.
E foi assim que Zeca Tomé foi condecorado, em cerimónia de praça, raça e
canhões.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

903
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(...) O tempo rodopiou, esbanjando os dias. Já a Independência tinha subido


aos mastros e o País se registrara com nome próprio. Em seu novo canto, o
Zeca gozava agora de bastas honrarias. Ele ascendera a herói da luta contra o
colonialismo. Seus anos de cela, ainda que breves, rendiam agora juros. Zeca
recebia os tributos: graças, cargos, cartões. Estava dispensado de ser cidadão,
sofrer as vulgares dificuldades…
Novembro distribuía as primeiras chuvas quando a delegação chegou. Era
uma dessas, dos países socialistas, aliados naturais. Convocaram o Zeca
Tomé.
- Você, camarada Zeca, você também consta da lista.
Na lista, a qual? A dos condecorados pelo Presidente Jivkov. Mas, desculpem
os camaradas, esse homem nunca me foi visto…
- Não, é por causa os mil e trezentos anos.
Mas eu nem aos quarenta não cheguei, contrargumentiu o Zeca, aflito com a
vigente confusão. Você nunca ouviu falar a Bulgária, terra onde se
descobriram os iogurtes?
- Nunca, nunca…
Não quiseram saber mais. Era ordem das estruturas bastante superiores. No
dia seguinte, o nosso homem estava lá, gravatado, em cerimónia
internacionalista e proletária. (COUTO, Mia. Cronicando. Ed. Caminho,
Lisboa: 1991.)

A obra de Couto está entremeada de tais posicionamentos reflexivos perante o


tempo, característica e herança da relação que as culturas tradicionais moçambicanas
mantêm com a percepção da passagem do tempo. Ainda, caracteriza-se pela presença de
sutil, porém incisiva crítica social. Os contextos sociais da guerra em Moçambique, da
luta pelo poder, da corrupção e deterioração dos ideiais primeiros dos movimentos de
independencia formam o palco onde indivíduos singulares vivem e sobrevivem,
enfrentando seus próprios dilemas pessoais.
No primeiro conto, uma senhora de idade avançada viaja de sua aldeia natal até a
cidade onde reside sua família, devido aos conflitos armados pelos quais passava o país,
mesmo após a independência. Ao chegar à abastada casa de seus filhos militantes,
espanta-se com o luxo e excessos que presencia, enquanto nota que a maior parte da
população não desfruta de tais luxos. A velha senhora é ignorada pelos familiares, que a
abandonam à companhia da televisão. Nem mesmo seus netos estão interessados em suas
histórias. Neste trecho, vemos uma crítica do autor à violência instaurada no país, mas
principalmente ao novo lugar que a velha senhora, representante da ancestralidade, da
sabedoria e do conhecimento tradicional, ocupa nesta nova realidade urbana pós-
independência.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

904
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O segundo conto nos traz a história de Zeca Tomé que, por engano, foi
condecorado por “feitos de bravura” pelo major português, figura que representava o
poder do colonialismo português. Tempos sucederam-se, dobraram-se calendários, a
independência havia chegado e desta vez quem homenageia o camarada Zeca Tomé são
os socialistas, aliados naturais.
Pretendemos, através da leitura e análise destas narrativas, em conjunto com
alunos da educação básica, trabalhar as relações temporais e concepções de tempo que
podem permear o pensamento das diversas culturas locais de Moçambique neste
período determinado. O grande contexto social pós-independência de Moçambique é o
cenário onde os personagens de Mia Couto nos narram suas vidas, muitas vezes, em
momentos de tensão com o poder instituído. Possibilitando, assim, o estudo de diversas
formas de experiências temporais em diálogo com a forma própria do aluno de se
relacionar com seu próprio tempo.
O presente trabalho visa contribuir para o ensino de temporalidades no ensino de
história, por meio da utilização e análise de narrativas de ficção tradicionais, produzidas
em sociedades africanas, afim de, através de um estudo comparativo de experiências
temporais humanas diversas, ampliar o potencial de compreensão das relações temporais
estabelecidas pelos alunos. A fim de que o aluno possa desenvolver habilidades para
compreender e questionar o momento presente, a investigação do que chamamos passado
e as relações que mantemos com ele, faz-se imprescindível.
Afastamo-nos de visões eurocêntricas, baseadas, por exemplo, no conceito de
progresso, que consideram o tempo em África ahistórico, como o fez no século XIX o
filósofo alemão Friedrich Hegel em Filosofia da História. Segundo o historiador Joseph
K. Adjaye (ADJAYE, 1994), somente nas últimas quatro décadas a escrita sobre a África
deixou de ser feita por outsiders não-africanos, os quais detinham muito pouco
conhecimento do continente e suas sociedades. Em consequência, suas concepções sobre
o continente foram permeadas por noções preconcebidas, preconceitos, hipóteses
eurocêntricas, das quais desejamos nos afastar, e ao mesmo tempo proporcionar novas
visões sobre o continete.
Em atenção à afirmação e aplicação da lei 10.639/2003 no ensino de História,
vista como produto das demandas de setores sociais que disputam memórias no âmbito
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

905
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

do ensino, escolho utilizar literaturas africanas de língua portuguesa com a intenção de


apresentar ao aluno parte importante das culturas africanas, as quais estão tão presentes
na cultura brasileira, seja através de estórias, das artes plásticas, da música, das
religiosidades, da culinária etc. Através do diálogo entre saberes distintos, é possível
explorar diferentes experiências temporais no modo como narramos a vida.
Nossa escolha por Moçambique se deu, principalmente, através da leitura da
encantadora obra do escritor Mia Couto, que desenha, com sua poética afetuosa, a
realidade social e cultural de seu país de forma primorosa. Consideramos sua linguagem
acessível a estudantes de história do ensino médio e mais que tudo, enriquecedora. A
língua portuguesa foi outro fator importante a ser levado em consideração para uma
aproximação de alunos brasileiros a um contexto social de um país africano, que manteve
historicamente relações políticas, economicas e culturais com o Brasil por vários séculos.
Para os historiadores africanos e africanistas Hama e Ki-Zerbo (1980), o tempo
em algumas culturas africanas tradicionais engloba e integra a eternidade em todos os
sentidos. As gerações passadas não estão perdidas para o tempo presente. À sua maneira,
elas permanecem sempre contemporâneas e tão influentes, se não mais, quanto o eram
durante a época em que viviam (idem, 1980).
O linguista senegalês Pathé Diagne (1980), afirma que

O negro africano estabelece uma ligação entre história e língua. Essa visão é
comum ao bantu, ao ioruba e ao mandinga. (...)O que favorece a ligação entre
história e linguagem na tradição dos povos da África negra é a concepção que esta
em geral conservou dos dois fenômenos. Tal concepção identifica,
espontaneamente, pensamento e linguagem e encara a história não como uma
ciência, mas como um saber, uma arte de viver.

O autor aproxima o trabalho do historiador e do linguista, na medida em que a


linguagem, primeiramente, como sistema e instrumento de comunicação é um fenômeno
histórico. Ela tem a sua própria história. Em segundo lugar, como alicerce do pensamento
e, portanto, do passado e do conhecimento deste, ela é o lugar e a fonte privilegiada do
documento histórico. Segundo Diagne, povos como

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

906
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

os Bakongo de civilização bantu, os Ibo de Benin ou os Susu de cultura sudanesa


deixaram poucos textos (ou mesmo nenhum) que correspondem às normas de
uma ciência histórica moderna. Em contrapartida, produziram, como fonte de
informação, uma abundante literatura oral com gêneros distintos de modo
relativamente nítido e obras que hoje seríamos tentados a classificar como contos,
novelas, narrativas, crônicas de epopeias históricas, lendas, mitos, obras
filosóficas ou cosmogônicas, reflexões técnicas, religiosas ou sagradas. Nelas se
mesclam o verdadeiramente vivido e a ficção, o evento que pode ser datado e o
mito puramente imaginário. A reconstrução da história dos Bakongo, dos Ibo ou
dos Susu passa pela análise crítica dessas literaturas e tradições orais. Também
não pode negligenciar a análise dos seus discursos, técnicas e conhecimentos, a
decifração das linguagens, dos conceitos e do vocabulário que tais grupos
utilizaram e que continuam a revelar a história de cada um deles.

Vemos assim a importância do trabalho de análise da linguagem, através das


narrativas produzidas por estas sociedades, para a compreensão de suas histórias e suas
concepções temporais.
Segundo a historiadora Carmen Teresa Gabriel (2012), “produzimos, distribuímos
e consumimos história com o intuito de significar nossa experiência temporal individual
e coletiva. Com efeito, a reflexão no e com o tempo tem marcado a particularidade da
História no conjunto das ciências humanas”. A contribuição do campo da história para a
construção de nossas inteligibilidades, enquanto sujeitos imersos no tempo, surge a partir
na categoria narrativa, tal como trabalhada pelo filósofo francês Paul Ricoeur.
Na hermenêutica do tempo de Ricoeur (2010) só haveria tempo pensado quando
narrado. A relação entre narrativa e estrutura temporal seria intrínseca. Narra-se o/no
tempo humano. A configuração do tempo na narrativa corresponde à composição do texto
literário ou histórico quando a intriga a ser narrada é armada, reconstruída a partir dos
recursos específicos de cada modalidade narrativa (idem, 2012).
O tempo torna-se tempo humano na medida em que ele é articulado na forma
narrativa; em contrapartida, a narrativa é significativa na medida em que delineia os traços
da experiência temporal. Ricoeur ainda permite avançar na discussão sobre fragmentação
de temporalidades quando reconhece a pertinência em articular passado, presente e futuro
numa totalidade que não seja percebida de forma acabada e definitiva. As reflexões de
Ricoeur contribuem para provar que, por detrás da aparente descontinuidade, o fio da
trama não é nunca completamente rompido.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

907
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para o filósofo, os gêneros histórico e literário são unidos pela conexão lógica do
tecer da intriga. A explicação histórica mantém laços com a narrativa de ficção, na medida
em que faz igualmente uso da imaginação, operando, dessa forma, com um registro de
objetividade marcado pela incompletude, compensada pela mediação da subjetividade:
“a intencionalidade histórica só se efetua incorporando à sua intenção os recursos de
ficcionalização que dependem do imaginário narrativo”. Ricoeur não tem dificuldade em
mostrar que agentes históricos se apresentam como ‘quase-personagens’, verdadeiros
atores das intrigas nas quais estão envolvidos, portadores de ideias, sentimentos, sonhos
e projetos, protagonizando, como agentes ou pacientes, diferentes tipos de ações e de
realizações (GABRIEL, 2012).
A teoria hermenêutica de Ricoeur, permite-nos tratar as narrativas de ficção como
um quase-passado, já que os acontecimentos contados numa narrativa de ficção são fatos
passados para a voz narrativa. “Fala uma voz que narra o que, para ela, ocorreu. Entrar
na leitura é incluir no pacto entre o leitor e o autor a crença de que os acontecimentos
narrados pela voz narrativa pertencem ao passado dessa voz.” (RICOEUR, 2010)
Desta forma, utilizaremos a teoria hermenêutica de Paul Ricoeur para
compreender como se dá a construção da dimensão temporal na narrativa. Acreditando
no entendimento da narrativa como uma estrutura temporal e para uma reflexão sobre a
aprendizagem e orientação temporal de alunos, consideramos válido investigar outras
formas de experiências temporais em culturas diversas.

DOCUMENTAÇÃO

COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

______. Contos do nascer da terra. Lisboa: Caminho, 1997.

______. Cronicando. Lisboa: Caminho, 1993.

______. Estórias abensonhadas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

______. Vozes anoitecidas. Lisboa: Caminho, 1986.

______. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

908
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BIBLIOGRAFIA

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

ADJAYE, Joseph K. Time in the black experience. Westport: Greenwood Press, 1994.

ALBUQUERQUE Jr, Durval M. de. “Fazer defeitos nas memórias: para que servem o
ensino e a escrita da história?” In: GONÇALVES, Marcia; ROCHA, Helenice; REZNIK,
Luis, MONTEIRO, Ana Maria (org). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: FGV,
2012.

BÂ, A. H. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph. Metodologia e pré-história da África.


São Paulo, Cortez, 2011.

BHABHA, Homí K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

BURKE, Peter. “A História dos acontecimentos e o renascimento da narrativa” In:


BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 2011.

CABAÇO, José Luís. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação. São Paulo:


Unesp, 2009.

CHAVES, Rita, LEITE, A. M.; APA, L. (Org.). Nação e narrativa pós-colonial I. 1. ed.
Lisboa: Colibri, 2012.

__________.; MACEDO, Tânia. (Org.). Passagens para o Índico - Encontros brasileiros


com a Literatura Moçambicana. 1.ed. Maputo: Marimbique, 2012.

___________.; CABAÇO, José Luís; MACÊDO, Tania (Org.). Via Atlântica. 21. ed. São
Paulo: ECLLP / USP, 2012.

CERRI, Luis Fernando. Ensino de história e consciência histórica. Rio de Janeiro :


Editora FGV, 2011.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

DIAGNE, P. “História e Linguística” in: História Geral da África: vol. I, Paris:


UNESCO, 1980.

ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

FALOLA, Toyin. “Nacionalizar a África, culturalizar o Ocidente e reformular as


humanidades na África”. Afro-Ásia, Salvador, no. 36, 2007. p. 9-38.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

909
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

GABRIEL, Carmen. Tereza. “Teoria da História, Didática da História e narrativa:


diálogos com Paul Ricoer”. In: Revista Brasileira de história, vol. 32, n.64.

____________. “Cultura histórica nas tramas da didatização da cultura escolar (ou Para
uma outra definição de didática da história).” In: ROCHA, Helenice; MAGALHÃES,
Marcelo; GONTIJO, Rebeca (orgs.). O ensino de história em questão: cultura histórica,
usos do passado. Rio de Janeiro: FGV, 2015.

___________. “Que passados e futuros circulam nas escolas de nosso presente?” In:
GONÇALVES, Marcia; ROCHA, Helenice; REZNIK, Luis, MONTEIRO, Ana Maria
(org). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: FGV, 2012.

HAMA, B. & KI-ZERBO, J. “O lugar da história na sociedade africana”, in: História


Geral da África: vol. I, Paris: UNESCO, 1980.

HARTOG, François. Regimes de historicidade. Presentismo e experiências do tempo.


Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

HERNANDEZ, Leila Leite. A África em sala de aula: visita à história contemporânea.


São Paulo: Selo Negro, 2008.

MATTOS, Regiane Augusto de; PEREIRA, Matheus Serva; GOMES, Carolina (Org.).
Encontros com Moçambique. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016

M’BOKOLO, Elikia. A África negra. História e civilizações do século xix aos nossos
dias. 2. ed. Tomo ii. Lisboa: Edições Colibri, 2007.

NEWITT, Malyn. História de Moçambique. Lisboa: Europa-América, 1997.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Uma contribuição à semântica dos tempos


históricos. Rio de Janeiro: Contraponto Editora; Editora PUC Rio, 2006.

PADILHA, Laura Cavalcante. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção


angolana do século XX. Niterói: EdUFF, Rio de Janeiro: Pallas Editora: 2011.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Volume 3.

SILVA, Ana Cláudia da. O rio e a casa: Imagens do tempo na ficção de Mia Couto. São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.

_____________. “Um mergulho “nas águas do tempo”, de Mia Couto”. Vertentes &
Interfaces I: Estudos Literários e Comparados. Fólio – Revista de Letras. v. 3, n. 2.
jul./dez. 2011.
Disponível em<http://periodicos.uesb.br/index.php/folio/article/view/618>

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

910
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O meu samba está de luto: a narrativa da imprensa carioca sobre a morte dos
compositores populares Sinhô e Noel Rosa

EDUARDO EMILIO MAURELL MÜLLER NETO


PPGHCS – COC/Fiocruz

REI MORTO, REI POSTO

Em 4 de agosto de 1930, uma hemoptise matou, aos 42 anos, José Barbosa da


Silva, o Sinhô. O ‘Rei do Samba’ estava a bordo da barca Sétima da Companhia
Cantareira e Viação Fluminense, que fazia a ligação do Cais Pharoux, na Praça XV, com
a Ilha do Governador, onde residia o compositor. Localizada na rua Pio Dutra 44, “a casa
muito pobre e miserável” (MÁXIMO; DIDIER, 1990, p. 230) era um refúgio onde Sinhô
costumava se refazer dos dias e noites agitados de boemia e criação musical. Ali, o
sambista vivia acompanhado da mulher Nair, de um violão velho e de uma tira de
cartolina com teclas brancas e pretas desenhadas imitando um piano. “Vez por vez
abandonava tudo. E uma barca o conduzia a ilha do Governador, e ali no seu ninho, a
casinha modesta dos seus entes queridos descansava e se refazia das tiradas extenuantes”
(GAZETA DE NOTÍCIAS, 6/8/1930, p. 8).
Com a aparência “cadavérica” (NETO, 2017, p. 230), o músico, naquele início de
década de 30, vinha apresentando sinais de que a batalha contra a tuberculose rumava
para o trágico e inevitável desfecho. Sinhô havia desenvolvido um método nada
convencional de enfrentamento das crises de tosse cada vez mais frequentes. “Estava
quase inteiramente afônico. Tossia muito e corrigia a tosse bebendo boas lambadas de
Madeira R.” (BANDEIRA, 1966, p. 11). A “associação do alcoolismo com a tuberculose”
(ARMUS, 2007, p. 181) era presença segura nos discursos de degeneração, sendo
apontada pela medicina como um dos fatores que compunham o perfil tuberculoso. “A
vida tuberculosa comportava uma variedade de máculas” (BERTOLLI FILHO, 2001, p.
157).
O jornal Gazeta de Notícias repercutiu a morte do compositor, destacando a
popularidade do artista, a qualidade da sua obra musical, mas também a sua predileção
pela vida boêmia, que lhe causou a perda de saúde e o definhamento corporal. A notícia

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

911
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

evidencia ainda a causa da sua convalescença: a tuberculose. Essa é uma rara notícia em
que o nome da doença aparece publicado. “[...]as pessoas ainda lhe evitam o nome.
Chamam-na de "doença", "queixa do peito", "fininha", "seca", "tísica", "magrinha",
"delicada", toda sorte de eufemismos para não lhe mencionarem o nome certo”
(MÁXIMO; DIDIER, 1990, p. 459).

Hontem,379 Sinhô voltava na barca Sétima, à noite, para a cidade. O Rei


do Samba volvia ao alvoroço dos ambientes de folia. Os excessos de
uma vida desregrada destruíam paulatinamente o seu organismo. Sinhô
andava cadavérico, ossudo, como se fôra antes só espírito, só vibração...
Tossia, uma tuberculose minaz lhe corroía a vida... (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 6/8/1930, p. 8).

Com o título ‘A margem da vida’, o Jornal do Brasil segue mesma linha e destaca
a impotência física do sambista diante da doença. “Era muito magro, encovado e triste,
cuja alma formosa, risonha e cantante vivia em perene contraste com a sombria carcaça
que o encerrava” (JORNAL DO BRASIL, 9/8/1930, p. 6). A notícia segue, relatando a
situação de miserabilidade e abandono do artista. “Esse violeiro, conhecidíssimo em
todos os recantos desta terra morreu pobre, abandonado até a derradeira hora compôs e
entoou seu derradeiro canto” (JORNAL DO BRASIL, 9/8/1930, p. 6).
A tosse não cedia. O estado de saúde do sambista somente fazia agravar-se com a
ingestão contínua de cachaça como prática terapêutica. Sinhô percebia a derrota frente à
doença e se queixava para os amigos sobre as dificuldades consequentes da deterioração
física a que era vitimado. A voz afônica por causa dos acessos de tosse era uma das suas
queixas, como retrata artigo publicado no jornal Correio da Manhã:

- E como vae você, Sinhô?


- Vou mal... Esta rouquidão não me larga. Estou na ilha do governador
para ver se, mudando de ares, melhoro. Adeus. Appareça por lá;
concluiu elle, estendendo-me a mão. Estava escaldando de febre.
Coitado do Sinhô. (CORREIO DA MANHÃ, 17/8/1930, p. 6).

379
A grafia original das palavras será preservada na reprodução dos textos jornalísticos selecionados.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

912
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O curto diálogo aponta para aspectos comuns a quem vivia o cotidiano desgastante
de enfrentamento da tuberculose. A busca por melhores ares era prática terapêutica
recorrente para os que podiam pagar por ela. Não era o caso de Sinhô. No início da década
de 30 multiplicavam-se sanatórios e clinicas para tratamento de tuberculosos,
multiplicavam-se também os anúncios desses locais nos jornais, publicados diariamente.
O redator traça ainda um perfil de infelicidade, desassossego e desesperança do
compositor, apontando na tosse e na rouquidão suas queixas da vida e os sinais de
esgotamento. O diálogo termina com o sentimento de pena e a constatação de que o rei
do samba já não pode ser ajudado: coitado do Sinhô.
Ao tísico não lhe era dado o direito de ser feliz. “A recuperação da saúde e a
felicidade não rimavam com a vida infectada” (BERTOLLI FILHO, 2001, p. 111). A
edição do jornal Correio da Manhã, de 5 de agosto de 1930, sugere que Sinhô havia
abandonado as medidas tradicionais de tratamento da doença, e seguia frequentando
locais públicos, não recomendado para os convalescentes em busca de recuperação. Sinhô
mantinha-se fiel ao mesmo estilo de vida que o havia elevado à condição de rei. O nome
da doença é omitido do texto, mas o redator deixa um ar de mistério a evocar a luta de
Sinhô contra algo que não se pode vencer. A menção ao aspecto físico aparece novamente
e completa o texto do obituário:

A magoa despertada não deixava, realmente, de ter sua razão, pois que,
mesmo não sendo de compleição robusta e estando até atacado de
enfermidade incurável, mesmo assim era visto o Sinhô,
constantemente, nos logares frequentados por gente sadia, nas rodas de
bohemia, nos theatros, nas festas. (CORREIO DA MANHÃ, 5/8/1930,
p. 3).

Sinhô havia passado a última madrugada de vida em claro, trabalhando no ofício


que lhe dera fama anos antes, como descreve notícia do Jornal do Brasil, em entrevista a
viúva do sambista: “E a noite foi correndo, cheia de música dentro daquella casa. De
quando em quando a flauta emmudecia e um acesso de tosse parecia querer estourar o
peito do artista” (JORNAL DO BRASIL, 7/8/1930, p. 8). Sinhô sonhava em ganhar

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

913
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“muito dinheiro” (JORNAL DO BRASIL, 7/8/1930, p. 8). A gravação de ‘Jura’380, na


voz de Mário Reis,381 vendera, dois anos antes, 30 mil cópias em curto espaço de tempo.
Um feito artístico e comercial extraordinário naquele final da década de 20. O
reconhecimento ainda permanecia vivo na memória de Sinhô. Ele queria emplacar mais
um sucesso. Não deu tempo. Sinhô morreu miserável e com a letra de um novo samba no
bolso.

Sinhô foi enterrado por uma subscripção de amigos e companheiros de


arte. À noite, quando aquelles que elle enriquecera dormiam
refestelados e quentes, Sinhô, para não morrer a mingua, arrancava do
piano, em noitadas alegres e ruidosas, o seu minguado pão de cada dia.
(A NOITE, 11/8/1930, p. 6).

Dois aspectos importantes devem ser destacados nesta notícia de A Noite. O


primeiro refere-se à solidariedade dos amigos. Sinhô era querido e sua popularidade pode
ser percebida nas notas obituárias publicadas. Era prática comum a associação de parentes
e amigos para ajudar a custear o tratamento longo e dispêndios ao qual o doente era
submetido. O segundo é em relação à situação de miserabilidade de Sinhô, que mesmo
enfermo seguia trabalhando no seu ofício de músico na noite carioca, que lhe dava o pão,
mas lhe tirava a vida.
A ajuda aos tuberculosos pobres vinha também do trabalho de entidades
filantrópicas. O Correio da Manhã destaca, na edição que circulou em 17 de agosto de
1930, ações de solidariedade da Cruzada Nacional contra a Tuberculose que doou 437
peças de vestuário e 4.688kg de gêneros alimentícios para 1.686 doentes e a Associação
de Socorro aos Tuberculosos que realizou também doação de alimentos. A década de 30,
segundo Bertolli Filho, “contextualizou o nascimento e a consolidação de várias entidades
representativas de profissionais da saúde” (BERTOLLI FILHO, 2001, p. 81). Do campo
médico e intelectual partiram iniciativas de combate à doença, sobretudo, com
informações sobre contágio e tratamento, resultando na “formação de movimentos e

380
Gravado em novembro de 1928. Disco Odeon 10278.
381
Mário Reis nasceu no Rio de Janeiro em 31/12/1907 e foi um dos principais intérpretes das canções de
Sinhô, tendo sua estreia fonográfica em 1928, em disco da ODEON, gravando duas músicas de Sinhô.
Faleceu em 5/10/1981.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

914
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

instituições sociais com finalidades humanitárias e patrióticas” (NASCIMENTO, 2005,


p. 14).
A primeira notícia sobre a morte de Sinhô no jornal A Noite foi publicada em
5/8/1930. A nota curta, localizada na página 8 do vespertino, destacava na chamada, em
caixa alta, o título de nobreza no qual o compositor era conhecido: “A MORTE DO ‘REI
DO SAMBA’” (A NOITE, 5/8/1930, p. 8). Abaixo do título a explicação de como havia
sucedido o trágico desfecho. A hemoptise a bordo da barca. Na primeira linha, o redator
invoca, mais uma vez, os aspectos físicos do agora rei morto: “Corpo ossudo, rosto
comprido [...]” (A NOITE, 5/8/1930, p. 8). Não havia menção à palavra tuberculose. O
texto, no entanto, apontava indícios da causa da morte. “Já andava a tossir. O ar frio do
mar provocou-lhe a tosse. Veio a hemoptyse. E ali, no mar, entre a ilha onde elle tinha o
seu pouso e a cidade que o consagrara Rei do Samba, Sinhô morreu” (A NOITE,
5/8/1930, p. 8). Uma foto de perfil do sambista completava o breve relato da sua
passagem.
O Jornal do Brasil, edição de 5 de agosto de 1930, em pequena nota com foto na
página 11, demonstra incredulidade quanto ao falecimento do compositor. “Hontem a
noite circulou a notícia da morte repentina, a bordo de uma barca que vinha da Ilha do
Governador de José Baptista da Silva, conhecido sambista carioca. E foi verdade”
(JORNAL DO BRASIL, 5/8/1930, p. 11). A notícia destaca ainda o trabalho das
autoridades policiais, o prestígio do artista, cujo corpo foi visitado por diversos amigos
enquanto esperava liberação no necrotério, e suas habilidades musicais que o
transformaram no “sambista mais popular” (JORNAL DO BRASIL, 5/8/1930, p. 11). O
poeta tísico Manuel Bandeira descreve como se sucedeu a romaria ao necrotério do
Hospital Hahnemanniano382, para onde o corpo foi levado:

A capelinha branca era muito exígua para conter todos quantos queriam
bem ao Sinhô, tudo gente simples, malandros, soldados, marinheiros,
donas de rendez-vous baratos, meretrizes, chauffeurs, macumbeiros (lá
estava o velho Oxunã da Praça Onze, um preto de dois metros de altura
com uma belida num olho), todos os sambistas de fama, os pretinhos
dos choros dos botequins das ruas Júlio do Carmo e Benedito Hipólito,
mulheres dos morros, baianas de tabuleiro, vendedores de modinhas...

382
Localizado na rua Frei Caneca, 94 – Centro do Rio de Janeiro.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

915
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Essa gente não se veste toda de preto. O gosto pela cor persiste
deliciosamente mesmo na hora do enterro. Há prostitutazinhas em
tecido opala vermelho. Aquele preto, famanaz do pinho, traja uma
fatiota clara absolutamente incrível. As flores estão num botequim em
frente, prolongamento da câmara-ardente. Bebe-se desbragadamente.
(BANDEIRA, 1966, p. 11).

Benedicto Mergulhão383, então redator do jornal A Noite, escreve artigo em tom


de reverência ao sambista morto. Ele destaca a morte repentina do compositor popular,
sem oportunidade de dizer adeus aos amigos e admiradores. “Faltou-lhe tempo para tudo
isso” (A NOITE, 11/8/1930, p. 6). Mergulhão destaca ainda o prestígio artístico obtido
por Sinhô quando ainda vivo, em contraste com a miséria que se encontrava às vésperas
da morte:

Sinhô desfructou de um prestígio e de uma popularidade tão grandes


que muita gente boa daria tudo para conquistar. E nunca subiu na vida.
Emquanto anonymos mais afortunados arrotavam refeições magníficas,
Sinhô muitas vezes não teve onde jantar. Emquanto, à custa de seus
sambas e canções, muita gente andava farta e cheia de chouriços no
Natal, Sinhô não passava nunca de um esqueleto ambulante. (A NOITE,
11/8/1930, p. 6).

AGORA VOU MUDAR MINHA CONDUTA

Um mês após a passagem de Sinhô, um menino franzino, com o queixo


malformado e exímio violonista desengavetou a letra de uma música escrita no ano
anterior. Sem a companhia do grupo musical a que pertencia, o Bando de Tangarás384,
Noel Rosa gravou o que seria considerado o maior sucesso do carnaval de 1931, e obra
prima de um cantor ainda desconhecido. ‘Com que roupa’ – gíria muito em uso na capital
federal para indicar falta de dinheiro - vendeu 15.000 cópias e caiu no gosto popular.
Virou paródia, comercial, foi cantada em todo o Rio de Janeiro. Nos próximos sete anos,
Noel Rosa viveria, assim como Sinhô viveu, a glória do reconhecimento público de sua
arte e o sofrimento da dor solitária de sua doença. A Gazeta de Notícias anuncia a morte

383
Benedito Manos Mergulhão nasceu no Rio de Janeiro, em 21/5/1901. Foi jornalista e deputado federal.
384
Grupo musical formado em 1929, no bairro de Vila Isabel, por Carlos Alberto Ferreira Braga
(Braguinha), Álvaro de Miranda Ribeiro (Alvinho), Henrique Brito, Henrique Fôreis Domingues
(Almirante) e Noel Rosa.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

916
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de Noel Rosa, colocando-o no mesmo patamar Sinhô e Canuto,385 que morreu vitimado
também pela tuberculose. “Depois de Sinhô e Canuto, foi a maior individualidade que
floresceu no mundo da música popular brasileira!” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 6/5/1937,
p. 8).
Noel Rosa morreu aos 26 anos, no dia 4 de maio de 1937, no “chalé modesto” 386
da sua família, localizado na rua Theodoro Silva 392, em Vila Isabel. “A cidade chora,
nesta noite, o desapparecimento do expoente máximo do sambista carioca e um dos mais
interessantes poetas modernos” (A NOITE, 5/5/1937, p. 1). A Gazeta de Notícias noticia
a morte do compositor como sendo o cumprimento da “profecia da música que todos os
vadios já espalharam pela cidade” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 5/5/1937, p. 4).
Dias antes, o sambista voltava de seu refúgio terapêutico em Piraí, cidade serrana
do Rio de Janeiro. Ainda buscava a cura da sua moléstia nos bons ares recomendados. A
edição de A Noite lembra também da sua derradeira tentativa de recuperação na cidade
serrana do Rio de Janeiro. “Parecia que o scenario fôra por elle próprio preparado, armado
quando no longínquo Pirahy, há dias, apenas, e onde fôra buscar illusoriamente melhoras”
(A NOITE, 5/5/1937, p. 9). A notícia segue falando da sua temporada em Piraí, dizendo
que “aggravara-se o seu mal. Noel foi para Pirahy. Mas sentiu saudades da sua Vila Isabel.
Escreveu a sua mãe. Queria voltar. Que Deus tomasse conta dele como já tomara do seu
destino” (A NOITE, 5/5/1937, p. 9).
O jornal volta a falar das tentativas de recuperação de Noel Rosa, em Belo
Horizonte e Piraí, na capa da edição de 6 de maio de 1930: “Por duas vezes, ultimamente,
fôra elle, á prescrição médica, para fora do Rio. A moléstia, entretanto, espreitava, apenas,
uma opportunidade” (A NOITE, 6/5/1937, p. 1). Na mesma notícia, o jornal aponta no
modo de vida do compositor o agravante do fim precoce. “Bohemio incorrigível.

385
Deocleciano da Silva Paranhos, sambista e parceiro musical de Noel Rosa em duas composições: ‘Eu
agora fiquei mal’ e ‘Esquecer e perdoar’, gravadas pela Parlophon, em 1931. Morreu de tuberculose em
27/11/1932.
386
O “chalé modesto” em que Noel Rosa viveu com a família inspirou os versos do samba ‘Só pode ser
você (Ilustre Visita), composto em parceria com Vadico, em 1935, e gravado em agosto de 1936, por Aracy
de Almeida. VICTOR (34.152A). Na época, com a tuberculose avançada, Noel passou uma temporada em
Belo Horizonte para mudar de ares e fugir da vida boêmia, algo que não aconteceu. “Compreendi seu gesto
/ Você entrou naquele meu chalé modesto / Porque pretendia / Somente saber / Qual era o dia / Em que eu
deixaria de viver / Mas eu estava fora / Você mandou lembranças e foi logo embora...”.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

917
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Namorado das noites e das ruas, foi essa sua índole, em grande parte, responsável pelo
fim prematuro de seus dias” (A NOITE, 6/5/1937, p. 1).
Texto publicado em 6 de maio de 1937, no jornal A Noite, recorda a causa comum
da morte de Noel Rosa e Sinhô, utilizando o termo peste branca, como era também
conhecida a tuberculose. “Filho da geração de Sinhô, era um irmão do autor de Jura, que
também a peste branca carregou nos braços, numa noite sem lua” (A NOITE, 6/5/1937,
p. 4). E completa destacando a importância de ambos para a música popular: “A música
popular do Brasil pode ser dividida em dois períodos: antes de Sinhô e depois de Sinhô.
Depois de Sinhô, foi Noel Rosa” (A NOITE, 6/5/1937, p. 4). Uma passagem do livro
Noel Rosa: uma biografia, de João Máximo e Carlos Didier, conta que o jovem sambista,
quando ainda estudante do colégio São Bento, foi até a Ilha do Governador para conhecer
seu ídolo Sinhô, e muitas outras vezes depois o encontrou, acompanhando o seu
definhamento físico, seguia o mesmo destino.

Sempre foi e ainda é grande a admiração de Noel por Sinhô, este mulato
alto, magro, desdentado, que mesmo em processo de visível decadência
física, os pulmões escravizados à tuberculose, não perde o aprumo.
Uma admiração tão grande que, tempos atrás, ainda no São Bento, Noel
convenceu Hélio a irem juntos conhecer de perto o célebre Rei do
Samba, então brilhando no carnaval, no teatro de revistas, nas festas
familiares, nos prostíbulos, nas gafieiras ou onde pudesse fazer ouvir os
seus sambas: Minha cabocla, a Favela vai abaixo, quanta saudade tu
terás deste torrão! Mas a visita de Noel e o irmão à casa de Sinhô
resultou em constrangimento e desencanto. (MÁXIMO, DIDIER, 1990,
p.117-18).

Noel Rosa pesava cerca de 40 quilos no momento de sua morte. Sete anos depois
de Sinhô, o Rio de Janeiro chorava novamente a perda de um dos seus mais notáveis e
criativos compositores populares. Já não era mais possível a recuperação. “Noel voltou a
esta capital para succumbir entre os desvelos de sua veneranda mãe e de sua esposa”
(CORREIO DA MANHÃ, 6/5/1937, p. 3), registra o Correio da Manhã, em 6 de maio
de 1937, reforçando a ideia da perda de autonomia do doente e o apoio do núcleo familiar.
Artigo assinado por Ariel, em A Noite, edição de 7 de maio de 1937, explora a tristeza, o
desgaste físico do compositor e a espera inevitável pelo fim do sofrimento: “Noel Rosa
morreu moço e triste, tossindo, curvando-se cada vez mais, até que a morte o acolheu” (A
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

918
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

NOITE, 7/5/1937, p. 12). O Correio da Manhã, de 6 de maio de 1937, reproduz diálogo


de Noel Rosa com Orestes Barbosa387, em que apresenta um sambista conformado com a
morte: “seu amigo está acabado...” (CORREIO DA MANHÃ, 6/5/1937, p. 3).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os estudos de História da Medicina, de acordo com Cláudio Bertolli Filho,


concentraram-se apenas em um grupo limitado de temas e não deram importância ao
paciente tuberculoso enquanto “sujeito social” (BERTOLLI FILHO, 2001, p. 24). O
autor, por meio do “enquadramento dos doentes como ativos participantes da vida
cotidiana” (BERTOLLI FILHO, 2001, p. 26), defende a ideia de que as respostas
individuais e coletivas dos convalescentes agem como elementos de continuidade na luta
pela vida, especialmente contra as práticas de isolamento e estigmatização. Sinhô e Noel
Rosa lutaram também pela manutenção das suas vidas, mesmo não conseguindo se afastar
do ambiente de boemia de onde tiravam o sustento e inspiração. As tentativas de
isolamento de Noel, que por duas vezes se refugiou em busca de melhores condições
climáticas, são provas de que ele, ao seu modo, seguia as orientações médicas. Uma carta,
em forma de versos, escrita pelo ‘Poeta da Vila’, em 27 de janeiro de 1935, durante sua
temporada em Belo Horizonte, e endereçada ao seu médico e amigo, Edgar Graça Mello,
evidencia a preocupação de Noel em seguir as recomendações de repouso, boa
alimentação, e se queixa de ter abandonado o cigarro:

[...] Já apresento melhoras/Pois levanto muito cedo/E... deitar às nove


horas/Para mim, é um brinquedo!/A injeção me tortura/E muito medo
me mete;/Mas... minha temperatura/Não passa de trinta e sete!/Nessas
balanças mineiras/De variados estilos/Trepei de várias maneiras/E...
pesei cinquenta quilos!/Deu resultado comum/O meu exame de
urina./Meu sangue: - noventa e um/Por cento de hemoglobina./Creio
que fiz muito mal/Em desprezar o cigarro:/Pois não há material/Pra meu
exame de escarro!/Até agora, só isto./Para o bem dos meus pulmões,/Eu
nem brincando desisto/De seguir as instruções./Que meu amigo
Edgar/Arranque deste papel/O abraço que vai mandar/O seu amigo
Noel. (MÁXIMO, DIDIER, 1990, p.471-72).

387
Orestes Barbosa nasceu em 7/5/1893. Compositor, poeta, escritor e jornalista, era também de Vila Isabel
e estava ao lado de Noel Rosa no momento da sua morte.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

919
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Um dos focos de interesse dos pesquisadores da história social e da experiência


de homens e mulheres com a doença recai sobre as definições e etiologias que servem
como “ferramenta de controle social, como rótulos para desvio e como uma justificativa
para a legitimação das relações de status” (ROSENBERG, 1992, p. XV). Para Rosenberg,
a doença desempenha uma função estruturante nas situações sociais: “um agente social e
mediador” (ROSENBERG, 1992, p. XVIII). No caso da tuberculose, a institucionalização
da sua atenção passou por um processo progressivo de ampliação, na virada do XIX para
o XX. A consequência dessa institucionalização foi a imposição de limites para a
“liberdade individual” (ARMUS, 2007, p. 325) do enfermo tísico.
A “trajetória do desterro” (BERTOLLI FILHO, 2001, p. 129) de um fimatoso
obedecia a um roteiro bem conhecido e que não se alterava no início dos anos 30. Bertolli
Filho destaca que o doente passava a ser uma figura incômoda e perdia a sua autonomia.
“Concluía-se assim a primeira morte dos infectados, a morte social” (BERTOLLI FILHO,
2001, p. 135). Sinhô teve a sua morte social decretada antes. O outrora Rei do Samba
morreu em um quase esquecimento, miserável e doente.
Assim como Sinhô e Noel Rosa, outras personalidades do mundo do samba
sucumbiram à tísica entre o final da década de 20 e início da década de 40. O Estácio,
bairro carioca em que o samba sofreu sua primeira mudança rítmica, chorou dois mortos
ilustres: Mano Rubem388, morto por uma “tuberculose galopante” (MÁXIMO; DIDIER,
1990, p. 282) e Nilton Bastos389, que os “dois pulmões frágeis o levaram de vez”
(MÁXIMO; DIDIER, 1990, p. 284). No Salgueiro, a vítima da tísica foi Antenor
Gargalhada390, diretor de harmonia da Escola Azul e Branco391. Em luto, a agremiação
não participou da “exibição carnavalesca” (CABRAL, 2016, p. 99) de 1941. A Mangueira
perdeu seu primeiro presidente, Saturnino Gonçalves, em 1935. O criador do samba de

388
Rubem Barcellos, da velha guarda do Estácio, falecido em 1927.
389
Parceiro de Ismael Silva, nascido em 12/7/1899 e falecido em 8/9/1931. Seu maior sucesso foi a música
‘Se você jurar’, sucesso no carnaval de 1931.
390
Antenor Santíssimo de Araújo. Foi parceiro de Noel Rosa na música ‘Eu agora fiquei mal’, interpretada
por Canuto (ver nota 8). Os três morreram de tuberculose.
391
A Azul e Branco era uma das três Escolas de Samba do morro do Salgueiro. As outras se chamavam
Unidos do Salgueiro e Depois Eu Digo. Em 1953 houve a unificação dos integrantes da Azul e Branco e
da Depois Eu Digo, criando o Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

920
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

breque, Luiz Barbosa392, faleceu da doença em 1938, como noticia a revista O Malho.
“Afastado há cerca de dois anos da atividade radiophonica, todo mundo sabia que os seus
dias estavam contados e que uma insidiosa enfermidade minava os alicerces de sua
existência” (O MALHO, 20/12/1938, p. 6). Outro falecido precocemente foi Cândido das
Neves393, aos 34 anos.
Famosos ou anônimos, o ponto comum entre os enfermos do show business
brasileiro foi a predileção pela vida boêmia. Diego Armus destaca fala do médico Nicolás
Lozano, dando conta que somado ao bacilo de Koch existiam também fatores médicos e
sociais que predispunham a tuberculose, como o alcoolismo, as habitações insalubres, a
má alimentação e os excessos de toda a natureza. Este saber médico-científico sobre
tuberculose foi responsável por classificá-la por longo tempo como uma “doença de
desgaste” (ARMUS, 2007, p. 173).
Entre os comportamentos de risco, a associação da tuberculose com o álcool
marcou praticamente todos os discursos sobre a degeneração. “O álcool chama a tísica e
a tísica o ajuda na negra tarefa de terminar o quanto antes com o bebedor. Ou bem a tísica
o empurra até o sepulcro e o álcool acelera o desenlace fatal” (ARMUS, 2007, p. 181). A
ligação da vida desregrada à tuberculose permitiu o aparecimento de vozes acusadoras de
que a responsabilidade sobre estar enfermo era do próprio paciente.

[...] absurdas e perigosas opiniões conseguem atribuir o ônus da doença


ao paciente, não só enfraquecendo a sua capacidade de compreender o
alcance do possível cuidado médico, mas também, implicitamente,
afastando o paciente do tratamento. (SONTAG, 1984, p. 31).

Esta leitura teve entre seus propagadores o médico alemão Georg Groddeck, que
julgava ser “o próprio homem que cria a sua enfermidade” e o psiquiatra norte-americano,
Karl Menninger, para quem “em parte, a doença é o que o mundo fez com a vítima, mas
numa extensão maior é o que a vítima fez com seu mundo e consigo mesma” (SONTAG,
1984, p. 31).

392
Cantor e compositor nascido em Macaé/RJ, em 7/7/1910 e falecido em 8/10/1938.
393
Compositor, filho de Eduardo das Neves, primeiro artista a gravar disco no Brasil. Nasceu em 24/7/1899
e faleceu em 4/11/1934. Entre suas composições, destaque para ‘Noite cheia de estrelas’, gravada por
Vicente Celestino.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

921
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As avaliações sobre alterações no corpo eram constantes entre os tísicos. Os


principais remédios para tuberculose eram o repouso e a fuga para lugares com
temperatura mais amena. A busca pelo melhor clima foi inventada como tratamento para
tuberculose no século XIX e, apesar da diversidade de ambientes propostos pela
medicina, há um ponto em comum nestes indicativos: a rejeição da cidade (SONTAG,
1984).
A aproximação de universos distintos - arte e doença – não chega a ser novidade.
A tuberculose foi inspiração para artistas ao longo do século XIX e foi definida como “a
febre das almas sensíveis” (BERTOLLI FILHO, 2001, p. 45). A revisão desta imagem,
“reconhecendo a consunção como marca da população pobre e marginalizada”
(BERTOLLI FILHO, 2001, p. 48), data da segunda metade do século XIX. As duas visões
encontram-se quando transportadas às origens do samba, que além de estilo musical,
notabilizou-se por ser uma escolha de vida em que se entrecruzavam arte, pobreza,
boemia e doença. Neste sentido, trabalhar a narrativa da tuberculose pelo viés do artista
enfermo e sua reprodução nos meios de comunicação justifica-se pela capacidade de
resgate de momento histórico repleto de transformações culturais e sociais.

FONTES

A NOITE. A morte do Rei do Samba. Rio de Janeiro. 5/8/1930, p. 8.

____ ‘Sinhô’. 11/8/1930, p. 6.

____ Morreu Noel Rosa. Rio de Janeiro. 5/5/1937, p. 1.

____ A última estrofe. Rio de Janeiro. 5/5/1937, p. 9.

____ O violão que emmudeceu. Rio de Janeiro. 6/5/1937, p. 1.

____ Saudades de Noel Rosa. Rio de Janeiro. 6/5/1937, p. 4.

____ Vida e morte de um sambista. Rio de Janeiro. 7/5/1937, p. 2.

CORREIO DA MANHÃ. Morreu o Rei do Samba. Rio de Janeiro. 5/8/1930, p. 7.

____ Sinhô, o Rei do Samba, já não canta mais. Rio de Janeiro.17/8/1930, p. 6.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

922
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

____ A morte prematura de Noel Rosa. Rio de Janeiro. 6/5/1937, p. 3.

GAZETA DE NOTÍCIAS. A vida fora-lhe perenne verão, em que ele, Sinhô, - a cigarra
maravilhosa – extravasou toda a sua alma, tocando e cantando. Rio de Janeiro. 6/8/1930,
p. 8.

____ “Quero morrer cantando um samba”. Rio de Janeiro. 5/5/1937, p. 4.

____ Noel Rosa. Rio de Janeiro. 6/5/1937, p. 8.

JORNAL DO BRASIL. Morreu ‘Sinhô’. Rio de Janeiro. 5/8/1930, p. 11.

____ A alma que canta. Rio de Janeiro. 7/8/1930, p. 8.

____ A margem da vida. Rio de Janeiro. 9/8/1930, p. 6.

O MALHO. O último breque. Rio de Janeiro. 20/12/1938, p. 6.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARMUS, Diego. Ciudad Impura: Salud, tuberculosis y cultura em Buenos Aires.


Buenos Aires: Editora Edhasa, 2007.

BANDEIRA, Manuel. Os Reis vagabundos e mais 50 crônicas. Rio de Janeiro: Editora


do Autor, 1966.

BERTOLLI FILHO, Cláudio. História Social da Tuberculose e do Tuberculoso. Rio


de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.

CABRAL, Sérgio. Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Cia Editora
Nacional, 2011.

DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. Disponível


em http://dicionariompb.com.br/.

MÁXIMO, João; DIDIER, Carlos. Noel Rosa: Uma biografia. Brasília: Editora UNB,
1990.

NASCIMENTO, Dilene Raimundo do. As pestes do século XX: tuberculose e Aids no


Brasil, uma história comparada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.

NETO, Lira. Uma história do samba: vol. 1 (As origens). São Paulo: Companhia das
Letras, 2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

923
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ROSENBERG, Charles. Introduction: Framing disease: Illness, society and history. In


ROSENBERG, Charles; GOLDEN, Janet (Eds). Framing Disease - Studies in Cultural
History. New Brunswick: Rutgers University Press, 1992, p. xiii-xxvi.

SONTAG, Susan. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

924
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Poder e Narrativas: as abordagens intelectuais acerca do candomblé nagô e as


formas de apropriações religiosas década (1930)

ELAINE CRISTINA VENTURA FERREIRA


PPGH – UFRRJ

INTRODUÇÃO

Considerando que a reflexão narrativa e subjetividade integram relações de poder


sempre conflituosas, o artigo pretende discutir como o discurso da superioridade dos
candomblés nagôs, reafirmado por diferentes intelectuais, dentre os quais Édison de
Souza Carneiro, foi apropriado por dirigentes de candomblés nagôs, legitimando um
discurso de hierarquia nos candomblés e na construção das identidades
religiosas. Conforme o antropólogo Nicolau Parés (2007), em A Formação do
Candomblé História e Ritual da nação jeje na Bahia, o termo Nagô, também chamado
de anagô ou anagou “era um etnômio ou autodenominação de um grupo de fala iorubá
que habitava a região de Egbado, na atual Nigéria, mas que emigrou e se disseminou por
várias partes da atual República do Benim”. (PARÉS, 2007, p. 25).
Os primeiros trabalhos sobre as religiões de matrizes africanas têm por referência
os estudos do médico Raimundo Nina Rodrigues. Segundo a historiadora Vanda Serafim,
Nina Rodrigues foi o primeiro homem de ciência a estudar as religiões de matrizes
africanas no Brasil. Rodrigues foi ainda segundo a autora - responsável por inserir as
religiões trazidas pelos africanos escravizados no Brasil como objeto de estudo da ciência.
E observa que Nina Rodrigues, apesar de estudar as religiões de matrizes africanas com
base nas teorias evolucionistas e darwinistas de seu tempo, impulsionou um campo de
investigação sobre as culturas de origem africana. Nina Rodrigues como é sabido - não
estudou as religiões de matrizes africanas apenas pela ótica da ciência médica oitocentista.
Em seu pensamento há o olhar católico, do “folclorista”, e do ogã, do “historiador”. Ou
seja, de um intelectual com múltiplas identidades disciplinares. (SERAFIM, 2010, p. 81).
Com seu pioneirismo, Nina Rodrigues inaugura a corrente de pensamento que deu origem
ao discurso da superioridade dos candomblés nagôs, do qual Édison de Souza Carneiro
também foi partidário.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

925
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Em pesquisas recentes sobre a história dos candomblés é possível observar que as


casas mais antigas de Salvador não foram fundadas por mulheres nagôs –– como afirmam
os mitos de origem, mas por africanas provenientes do reino de Daomé. Para comprovar
essa tese (que salienta a importância jeje em detrimento da nagô na fase da formação do
candomblé), o antropólogo Nicolau Parés apresenta dados demográficos, etimológicos e
antropológicos. E mostra que os documentos mais antigos não falam de orixás (termo
nagô), mas de voduns (espíritos provenientes do Golfo do Benin termo fon, jeje); não se
referem à Exú, mas a Legba (Legbá é o correspondente Jeje do orixá Exú dos nagôs ou
iorubás). (PARÉS, 2007, pp. 13-21). O antropólogo, ao estudar os candomblés, aponta
que foi a partir de Nina Rodrigues que ocorreu a construção do discurso da superioridade
dos candomblés nagôs. Para ele, este discurso foi construído com apoio de lideranças dos
candomblés e desencadeou o que ficou conhecido por nagoização. Como Nina
Rodrigues, Édison Carneiro, segundo os antropólogos Vivaldo da Costa Lima e Waldir
Freitas de Oliveira, ao escrever sobre os candomblés, foram conduzidos pela tradição oral
do povo de santo e reproduziram seus mitos e genealogias, muitas vezes contraditórios.
(LIMA e OLIVEIRA, 1987, p. 64). O discurso da superioridade nagô foi construído a
partir dos relatos orais, fortalecendo alianças entre os intelectuais e os dirigentes de
terreiros, acabando por estruturar hierarquias entre as diferentes matrizes dos candomblés.
Para o historiador e antropólogo Sérgio Ferretti, estudioso das religiões de
matrizes africanas no Brasil, somente cerca de trinta anos após o falecimento de Nina
Rodrigues, - Arthur Ramos, também médico, retomou os estudos sobre o negro no Brasil.
Arthur Ramos desenvolveu seus estudos no contexto em que o pensamento evolucionista
não era mais predominante e se fundamentou na antropologia culturalista para refletir
sobre os fenômenos religiosos. (FERRETTI, 2013, p. 47). Segundo a antropóloga Marisa
Corrêa, a retomada dos estudos sobre o negro no Brasil ocorreu com o surgimento do
grupo de trabalho de Arthur Ramos que fundou a “escola Nina Rodrigues” deste grupo
culturalista, fizeram parte Édison Carneiro. (CORRÊA, 2000, p. 238).
Édison Carneiro, filho de pais baianos, negro, nasceu no dia 12 de agosto de 1912
em Salvador, Bahia, e faleceu em dezembro de 1972, no Rio de Janeiro. Concluiu o ensino
primário e o secundário em Salvador, bacharelando-se em Ciências Jurídicas e Sociais
pela Faculdade de Direito do estado. Atuando em diferentes áreas, o pesquisador foi
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

926
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

classificado como jornalista, etnógrafo, historiador, folclorista, dentre outras


denominações, que explicam, como salienta a antropóloga Ana Carolina Nascimento, que
produziu um trabalho sobre a trajetória do estudioso, a dificuldade de categorizá-lo a
partir de uma identidade disciplinar. (NASCIMENTO, 2010, p. 35).
Ao estudar a trajetória intelectual de Édison Carneiro no campo de estudos das
relações raciais no Brasil, o antropólogo Luiz Gustavo Freitas Rossi, observou que a
“conversão” de Édison Carneiro ao comunismo durante sua juventude na Academia dos
Rebeldes em 1920 na Bahia - selou o destino de sua produção intelectual e suas tomadas
de posição no campo de estudos sobre o negro brasileiro. Para Rossi, Édison ajustou seu
olhar ao problema das “raças oprimidas” na Bahia e no Brasil e a perseguição policial aos
candomblés é o que marca seus estudos no campo das religiões de matrizes africanas.
(ROSSI, 2011, p. 143). O autor foi defensor da liberdade de culto por acreditar que as
religiões de matrizes africanas deveriam ser reconhecidas como as outras matrizes
religiosas.
Isto fica claro, na fala de Édison Carneiro, no jornal intitulado Liberdade de Culto:

Nenhuma das liberdades civis tem sido tão impunemente desrespeitada,


no Brasil, como a liberdade de culto. O texto constitucional não tem
clareza, embora seja claro como a luz do dia o princípio democrático
que lhe serve de base, - e qualquer beleguim da polícia se acha com o
direito de intervir numa cerimônia religiosa para semear o terror entre
os crentes. Esse desrespeito a uma liberdade tão elementar atinge
apenas as religiões chamadas inferiores. E quanto mais inferiores, mas
perseguidas. (CARNEIRO, 1950, p. 1)

Desde 1933 já se interessava pelos cultos populares de origem africana e, em geral,


pelo folclore e pela cultura popular, tendo iniciado em companhia do romancista
Guilherme Dias Gomes, um curso de iorubá ou nagô. O conhecimento dos candomblés
lhe deu a possibilidade de divulgar por escrito as suas festas, para o que foi contratado
pelo jornal O Estado da Bahia em 1936, e de tentar uma federação das várias casas de
culto na União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia.
No mesmo ano, Édison Carneiro escreveu no Jornal O Estado da Bahia sobre os
ritos e festas dos candomblés baianos, sendo um dos principais defensores da liberdade

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

927
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

religiosa. Esta informação consta no Diário Oficial - Projeto de Lei do Senado, número.
31 de 1974.
Em 1937, Édison Carneiro organizou o segundo Congresso Afro-Brasileiro
realizado em Salvador. O Congresso marcou sua atuação no campo do estudo das
religiões de matrizes africanas. Com o desdobramento do evento, ocorreu ainda em 1937,
a criação da União das Seitas Afro - brasileiras da Bahia, que foi dirigida pelo intelectual.
O objetivo da instituição era unir os pais de santo de terreiros de candomblé da Bahia na
luta pela liberdade religiosa. E em seu discurso de abertura, definiu seu objetivo:

Este Congresso tem por fim estudar a influência do elemento africano


no desenvolvimento do Brasil, sob o ponto de vista da etnografia, do
folclore, da arte, da antropologia, da história, da sociologia, do direito,
da psicologia social, enfim, de todos os problemas de relações de raça
no país. Eminentemente científico, mas também eminentemente
popular, o Congresso não reúne apenas trabalhos de especialistas e
intelectuais do Brasil e do estrangeiro, mas também interessa a massa
popular, aos elementos ligados por tradições de cultura, por atavismo
ou por quaisquer outras razões, à própria vida artística, econômica, e
religiosa do Negro no Brasil. (O ESTADO DA BAHIA, 1938, p. 2).

Como observado por Parés, o Congresso Afro- Brasileiro liderado por Édison
Carneiro foi organizado com o objetivo de debater a liberdade religiosa, buscando o
reconhecimento dos candomblés. O autor observou que pais e mães de santo participavam
ativamente desses eventos com a intenção de chamar atenção da sociedade para a
necessidade de abolir a perseguição contra a prática religiosa de matriz africana:

Em 1937, intelectuais como Édison Carneiro e Aydano do Couto


Ferraz, com a participação de pais – de – santo como Martiniano Eliseu
do Bonfim, promoveram o Segundo Congresso Afro – Brasileiro, em
Salvador, que em muito contribuiu para o reconhecimento social e a
valorização dessa tradição religiosa. (PARÉS, 2013, p. 219).

Nos estudos sobre os candomblés na década de 1930, o antropólogo Vivaldo da


Costa Lima observa que muitos líderes religiosos que exerciam, com maior influência
comunitária, papéis importantes nos candomblés da Bahia, dois se destacavam de maneira
indiscutível: “o Babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim e a Ialorixá Eugênia Ana dos
Santos - Aninha, do Centro Cruz Santa do Axé do Opô Afonjá”. (LIMA, 2004, p. 201).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

928
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Foram esses chefes de terreiros os convidados de honra do II Congresso Afro-Brasileiro


liderado por Édison Carneiro. Para Lima, no momento em que os candomblés eram
perseguidos pela polícia, Édison Carneiro exerceu um papel importante na mediação entre
esses dirigentes religiosos, outros intelectuais e a sociedade, no que se refere à construção
da história dos candomblés. E não foi por acaso que Martiniano Eliseu do Bonfim,
presidiu o II Congresso Afro – Brasileiro, pois foi ele o responsável pela construção da
narrativa ancestral. Aqui, podemos reforçar nosso olhar para as redes de sociabilidades
entre esses intelectuais e os dirigentes de candomblés.
A primeira obra sobre os candomblés de Édison Carneiro foi Religiões Negras
publicada em 1936. Édison Carneiro, em diferentes momentos, retomou o pensamento de
Nina Rodrigues, com destaque, o discurso da supremacia dos candomblés nagôs. Na obra
em diversas passagens nota-se que Édison Carneiro reforça o discurso da superioridade
nagô. Pois, estabeleceu fronteiras rígidas entre as diferentes vertentes religiosas de
matrizes africanas, principalmente entre nagô e banto, sem considerar os cruzamentos
culturais. A polaridade demarcada reproduz a superioridade da cultura nagô e da
inferioridade da cultura banto. Édison Carneiro reafirma a superioridade do rito nagô,
porém desconstrói o discurso em torno da ideia de pureza nos rituais nagôs, apontando
que: “e a prova de sua importância está, principalmente, na absorção das várias míticas
negras, inclusive a mítica dos jejes, por parte da nagô”. (CARNEIRO, 1991, p. 31).
Na obra Candomblés da Bahia, publicada em 1940, Édison Carneiro destaca que
Nina Rodrigues analisou os cultos de origem africana no Brasil, tendo por referência o
culto nagô. Destaca também, que Nina Rodrigues apesar de ter atribuído maior ênfase ao
culto nagô, explicitou a existência de outros modelos, embora não os tenha explorado.
Para Édison Carneiro, os nagôs na Bahia se constituíram como uma elite religiosa e seu
modelo de culto rapidamente foi reproduzido. Segundo o autor, o modelo nagô deu
origem ao que se pode chamar de culto de origem africana no Brasil. Carneiro demonstra
concordar com o conceito de sincretismo de Nina Rodrigues de ilusão da catequese,
contudo, reinterpreta o conceito a sua maneira, dizendo que o catolicismo não conseguiu
desafricanizar o negro nagô que resistiu à imposição da religião dominante. O conceito
de sincretismo segundo Édison Carneiro é interpretado como assimilação, visto como
subterfúgio ou estratégia dos crentes contra a repressão policial e, aos poucos, a
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

929
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

assimilação foi adaptada, tornando-se uma segunda natureza dos fiéis. (CARNEIRO,
2008, pp. 50-51). O conceito de assimilação se aproxima da ideia de negociação. Se aqui
usarmos o texto de Edward Thompson, sobre “a venda das esposas”, é possível refletir
sobre a relação entre conflito e formação de identidades socioculturais, já que o autor
afirma que a cultura é ressignificada em meio a conflitos e negociações e proporciona a
construção de identidades. (THOMPSON, 1998, p. 64). Na análise da definição do
conceito de sincretismo segundo Édison Carneiro, busco chamar atenção para o fato de
que o autor lançou uma nova luz para explicar o fenômeno. E aqui retomo o pensamento
de Ferretti, pois o autor aponta que, na evolução dos estudos do sincretismo realizados
pelo antropólogo americano Melville Herskovits, o conceito pensado como aculturação e
harmonia simplesmente da escola culturalista, não deu conta de explicar sua
complexidade. E do mesmo termo, derivaram-se as ideias de acomodação e assimilação
como conflito. (FERRETTI, 2013, pp. 95-96). É da ampliação do conceito de sincretismo,
que está o posicionamento intelectual de Édison Carneiro para os candomblés nagôs.
Em Ladinos e Crioulos publicado em 1964 - Édison Carneiro, define o candomblé
nagô como aquele modelo religioso mais fiel ao povo de Iorubá. Para ele, entre todos os
povos chegados ao Brasil, os nagôs eram sem dúvida os portadores de uma religião mais
elaborada, mais coerente, mais estabilizada. A sua concentração na Cidade de Salvador,
os deu a possibilidade de conservar quase inatas, as suas tradições religiosas.
(CARNEIRO, 1964, p. 174). Édison Carneiro, por um lado, afirma a fusão entre as
míticas dos nagôs com os jejes e por outro, diz que dos candomblés existentes, os nagôs,
foram os que mantiveram mais fiéis, seus laços ancestrais com a África ainda que tenha
absorvido outras míticas.

IDENTIDADE E APROPRIAÇÕES: O CASO DE MARTINIANO ELISEU DO


BONFIM E EUGÊNIA ANA DOS SANTOS

Os antropólogos Vivaldo da Costa Lima e Waldir Freitas de Oliveira chamam


atenção para o posicionamento de intelectuais como Édison Carneiro que de forma ativa
com os dirigentes de candomblés, lutaram pela liberdade religiosa no momento em que
os cultos de origem africana eram perseguidos pelo Estado. O autor aponta que de Nina
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

930
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Rodrigues a Édison Carneiro, já havia a percepção desta religião como parte da história
social do negro na Bahia: “e as “religiões africanas” do tempo de Nina Rodrigues, já eram,
para Ramos e Carneiro “religiões negras”. Religiões do povo negro da Bahia”. (LIMA e
OLIVEIRA, 1987, p. 40). Para Édison Carneiro, era mais que a luta pela liberdade
religiosa. Significou a busca por inserir as culturas de origem africana como parte ativa e
integrante para se pensar a identidade nacional: “o homem negro aumentou o quadro
religioso da nacionalidade, incorporando ao inconsciente coletivo figuras legitimamente
africanas”. (CARNEIRO, 2005, p. 09). Podemos aqui, pensar que a atuação e a relação
desses intelectuais com os dirigentes dos candomblés nagôs fez parte de um projeto mais
abrangente, ou seja, de nacionalizar o candomblé, cuja matriz original seria o ritual nagô,
porém, carecemos de maiores estudos.
A antropóloga Beatriz Góis Dantas investiga os usos da África no Brasil,
considerando as diferentes formas narrativas com relação à originalidade do culto. Para a
autora, a construção da ideia de “pureza” no candomblé está vinculada a vertente nagô
que, dentre tantas matrizes, seria a mais “africana” e “original”. A construção destas
narrativas busca no continente africano sua ancestralidade. Para Góis, existem conflitos
em torno da construção desta memória ancestral, tendo em vista as diferentes formas
discursivas sobre a ancestralidade nos cultos de matrizes africanas. (DANTAS, 1988, p.
17). A mesma temática é discutida pela antropóloga Stefania Capone, pois a autora afirma
que: “na Bahia como o resto do Brasil, nagô (ou ioruba se preferirem) é, mais do que
nunca, sinônimo de “africano”, bem como o qualificativo obrigatório do que está ligado
a reafirmação das raízes africanas da identidade negra brasileira” (CAPONE, 2009, p.
08). O trabalho das autoras abre possibilidades para refletir que a construção destas
narrativas ocorre por meio de alianças dentro e fora dos terreiros, tendo em vista o papel
que os intelectuais exercem no que compete à legitimação da ideia de uma “verdadeira
raiz ancestral”. Tomando emprestado, as reflexões, é possível pensar que Édison
Carneiro, como estudioso das religiões de matrizes africanas, ao retomar e reafirmar o
discurso da superioridade nagô, exerceu uma função importante na construção desta
memória reafricanizada e reinventada nos terreiros como afirmam as autoras, pois esta
narrativa é construída com o apoio dos intelectuais. Quanto a isso, Édison Carneiro diz
que: “a religião nacional dos jejes, não teve no Brasil, a importância da nagô, elevada a
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

931
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

categoria de padrão e modelo de todos os candomblés de influência negra” (DIÁRIO DA


BAHIA, s/d, p. 5).
O discurso da África no candomblé foi construído a partir do modelo nagô e os
intelectuais exerceram uma atuação central em sua legitimação. Esta constatação explica
as razões pelas quais o babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim e a ialoriá Eugênia Ana dos
Santos se apropriaram dessas falas para reafirmarem suas identidades religiosas. Segundo
Vivaldo da Costa Lima e Waldir Freitas de Oliveira: “Martiniano e Aninha são atualmente
nomes lembrados na tradição oral de todos os terreiros da Bahia, mitificados já, na
lembrança da gente de santo”, dos que os conheceram em vida e dos que ouviram contar
histórias de seu poder, de seu conhecimento, de seu imenso prestígio. “Martiniano e
Aninha foram as figuras mais importantes e prestigiosas do candomblé da Bahia naquela
época”. (LIMA e OLIVEIRA, 1987, p. 46). Embora discutir as redes de sociabilidades
entre os intelectuais e os dirigentes dos candomblés não tenha sido o objetivo central do
trabalho de Parés, sua análise é importante para verificarmos que o discurso sobre a
nagoização do candomblé ocorreu a partir da narrativa criada por Martiniano Eliseu do
Bonfim e foi legitimada pelos intelectuais, aqui, retomamos a relação entre narrativa e
subjetividades e segundo Parés:

Entre os agentes dessa intercomunicação entre a Bahia e a área ioruba


no final do século, o caso do babalaô Martiniano Eliseu de Bonfim é o
mais conhecido. Ele foi um dos informantes de Nina Rodrigues e, na
sua juventude, esteve vários anos na Nigéria, iniciando-se na tradição
de Ifá e convertendo-se depois em um dos precursores do processo de
“africanização”, ou melhor, “nagoização”, do candomblé. Foi ele que,
em 1910, ajudou Eugênia Ana dos Santos, mãe Aninha, a fundar o Axé
do Opô Afonjá e a estabelecer, posteriormente, com base nos títulos
onoríficos utilizados no reino de Oyo, a instituição dos abas de Xangô.
(PARÉS, 2013, p. 160).

Para Vivaldo da Costa Lima, Martiniano Eliseu do Bonfim foi um membro


importante dos candomblés da Bahia, desde os fins do século XIX. Nina Rodrigues a ele
se referia, como um valioso informante. Martiniano, para esses intelectuais foi
conhecedor das verdadeiras tradições religiosas africanas. “Sua viagem, adolescente, à
Nigéria, sua volta à Bahia, depois de onze anos; sua aprendizagem e formação no culto
Ifá, que o tornou um babalaô respeitado. Seu pai, que era da tribo egbá, foi trazido para o
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

932
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Brasil cerca de 1820 e liberto em 1842. Sua mãe era da nação iorubá e foi alforriada por
seu marido em 1855. Seu pai e sua mãe nunca se casaram de acordo com os ritos católicos
nem mulçumanos. Seu avô, que era um guerreiro na África, teve quarenta mulheres e seu
pai, seguindo as práticas poligâmicas africanas, teve cinco mulheres, das quais sua mãe
era esposa principal. Ao retornar da África afirma que sua nação era nagô”. (LIMA, 2004,
p. 16). E para Édison Carneiro: “Martiniano do Bonfim foi à figura masculina mais
impressionante das religiões do negro do Brasil” (CARNEIRO, 2008, p.128). Abaixo, a
imagem do babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim:

IMAGEM I: O babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim. Reprodução.

Filha de santo do Engenho Velho, e com a responsabilidade de chefe do Axé do


Ôpo Afonjá, erigido, em honra de Xangô, em São Gonçalo do Retiro, Aninha realizava o
tipo perfeito da negra fiel à sua gente e às crenças trazidas da África, sobre brilho ao fundo
ancestral. Muito fez pela preservação das tradições africanas no candomblé da Bahia.
(CARNEIRO, 1964, p. 207). Em 1948, Édison Carneiro publicou no jornal O Estado da
Bahia o falecimento de sua amiga a ialorixá Eugênia Ana dos Santos, expressando então,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

933
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sua relação não apenas com os candomblés nagôs, mas também, com os cultos dirigidos
por matriarcas. Ao falar de sua identidade religiosa, a matriarca afirmou: “também aninha,
falando da origem de seu terreiro, dizia, orgulhosamente, a Donald Pierson”: “minha seita
é puramente nagô, como o Engenho Velho”. (LIMA e OLIVEIRA, 1987, p. 53). E ao
falar da morte de Dona Aninha Édison Carneiro no O Estado da Bahia do dia 25 de
janeiro de 1948, apontava que as religiões de matrizes africanas era uma questão a ser
resolvida na sociedade brasileira e dizia:

Com a morte de Aninha, perdem as religiões afro-brasileiras uma de


suas maiores intérpretes, chego mesmo a dizer que a maior. Não era
possível querer mais distinção, mas inteligência, mas compreensão dos
problemas de sua gente da África. Essa negra alta, disposta, falando
clara e corretamente, o beiço inferior avançando em ponta, era bem um
expoente superior da raça negra do Brasil, síntese feliz da soma de
conhecimentos da velha Maria Bada e da agilidade intelectual do
professor Martiniano do Bonfim, companheiro de Nina Rodrigues nas
suas incursões pelos candomblés baianos e de todos os que, com a
mesma sinceridade, se propõe servir a obra de reabilitação social dos
antigos escravos (JORNAL DA BAHIA, 1948, p. 1).

A imagem a seguir foi publicada no livro de Donald Pierson “Brancos e Negros


na Bahia” em 1945. Eugênia Ana dos Santos veste um traje com turbante, geralmente de
algodão alvejados engomados fazendo os distintivos da cabeça, para proteger, para
identificar e para adornar e completar o traje, ora do cotidiano, ora de finalidade ritual
religiosa; fios de contas no pescoço, chamado pelo povo de santo, especialmente o dos
terreiros de candomblé Ketu- Nagô, por ilequê, os fios de contas são distintivos de usos
masculino e feminino, embora com maior força estética estejam no domínio da mulher;
pano da costa, presença e distintivo do posicionamento feminino nas comunidades
religiosas afro-brasileiras é uma sinalização do corpo da mulher – explicita hierarquia e
blusa rendada que faz parte da roupa da novicche ou gonjai dos terreiros Mina - jeje e
Nina nagô. (LODY, 2003). Foi com a matriarca dos candomblés nagôs, mãe Aninha, que
Édison Carneiro teceu profundas relações de admiração e amizade:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

934
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

IMAGEM II: A Ialorixá Eugênia Ana dos Santos, a famosa Aninha. Reprodução.

O posicionamento desses dirigentes dos candomblés nagôs foi reforçado com o


auxílio dos intelectuais que legitimaram a superioridade desta matriz ritual. Ao discutir
sobre o conceito de nação no candomblé Vivaldo da Costa, diz que o mesmo se explica
pela estratificação interna desta religiosidade e passou a representar a relação do culto
com um lugar de origem do continente africano. O autor afirma o teor ideológico que este
termo passou a ter no momento em que foi utilizado como demonstração da superioridade
religiosa, passando a ter significados cosmológicos e teológicos característicos de cada
grupo de candomblé: “na Bahia, na linguagem do povo de santo, esses últimos termos se
equivalem como referentes espaciais dos grupos, mas a palavra candomblé conserva sua
conotação de sistema ideológico em outras situações referenciais”. (LIMA, 1976, p. 67).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

935
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta do artigo foi refletir sobre a relação entre os intelectuais e os dirigentes


dos candomblés nagôs para sabermos por meio das narrativas construídas por esses
estudiosos, como os dirigentes dos candomblés se apropriariam dessas falas, usando-as
para reafirmar suas identidades religiosas. Partindo deste ponto, buscamos identificar
também, que os dirigentes dos candomblés exerceram papéis ativos na construção de sua
ancestralidade religiosa que se vinculou ao rito nagô, desencadeando hierarquias nos
candomblés. As análises aqui expostas permitiu refletir sobre a relação entre narrativas e
subjetividades com a finalidade de perceber que tanto os discursos construídos quanto as
formas de apropriações são usadas para o poder, não são neutras, são intencionais.

FONTES

“Liberdade de Culto”. Édison Carneiro, Janeiro de 1950. Biblioteca Amadeu Amaral do


Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Rio de Janeiro.

Diário Oficial. Projeto de Lei do Senado, número. 31 de 1974. Biblioteca Amadeu Amaral
do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Rio de Janeiro.

O Estado da Bahia “Cidade de Salvador”, Édison Carneiro 31 de setembro de 1938 -


Salvador, Biblioteca Amadeu Amaral do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular,
Rio de Janeiro.

O Negro no Brasil. Trabalhos apresentados ao 2º Congresso Afro-Brasileiro (Bahia). Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940.

Diário da Bahia. Vodum. Édison Carneiro, Bahia, s/d. Biblioteca Amadeu Amaral do
Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Rio de Janeiro.
Jornal não identificado. Babalaô. Édison Carneiro. s/d. Biblioteca Amadeu Amaral do
Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Rio de Janeiro.

O Estado da Bahia, Bahia 25 de janeiro de 1948. “Dona Aninha”. Édison Carneiro.


Biblioteca Amadeu Amaral do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Rio de
Janeiro.

CARNEIRO, Édison. Ladinos e Crioulos estudos sobre o negro no Brasil. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1964.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

936
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

__________. Religiões negras e negros bantos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


1991.

__________. Antologia do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

__________. Candomblés da Bahia. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

LIMA, Vivaldo da Costa. OLIVEIRA, Waldir Freitas de. Cartas de Édison Carneiro a
Arthur Ramos de 04 de janeiro de 1936 a 06 de dezembro de 1938. (orgs). São Paulo:
Corrupio, 1987.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2009.

CORRÊA, Mariza. O Mistério dos Orixás e das Bonecas: Raça e Gênero na Antropologia
Brasileira. Revista Etnográfica. Volume, (12), pp. 233-265, 2000.

DANTAS, Beatriz Góis. Vovó nagô e papai branco usos e abusos da África no Brasil.
Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FERRETTI, Sérgio. Repensando o sincretismo. São Paulo: Edusp, 2013.

NASCIMENTO, Ana Carolina Carvalho de Almeida. O sexto sentido do pesquisador: A


Experiência Etonográfica de Édison Carneiro. Dissertação de Mestrado. Universidade
Federal do Rio de Janeiro Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia/
PPGSA. Rio de Janeiro, 2010.

LIMA, Vivaldo da Costa. O conceito de nação nos candomblés da Bahia. Revista Afro-
Ásia. Número 12, 1976.

LODY, Raul. Dicionário de artes sacra e técnicas afro-brasileiras. Rio de Janeiro:


Pallas, 2003.

PARÉS, Luis Nicolau. A Formação do Candomblé História e Ritual da Nação Jeje na


Bahia. São Paulo: Unicamp, 2007.

ROSSI. Luiz Gustavo Freitas. O intelectual “feiticeiro”: Édison Carneiro e o campo de


estudos das relações raciais no Brasil. Universidade Estadual de Campinas. Programa de
Pós Graduação em Antropologia Social. Tese de Doutorado. Campinas, Março, 2011.

SERAFIM, Vanda Fortuna. O Discurso de Nina Rodrigues acerca das religiões africanas
na Bahia século XIX. Universidade Estadual de Maringá – UEM. Paraná, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

937
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum Estudos sobre a cultura popular


tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

938
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Apropriações, ressignificações e representações do federalismo no Brasil (1860-


1902)

ELION DE SOUZA CAMPOS


PPGHIS/UFRJ
CAPES

O objetivo desta pesquisa é analisar as apropriações, as ressignificações e as


representações do conceito de federalismo no Brasil entre 1860 e 1902. O federalismo se
constituiu como um dos temas mais importantes do debate político na transição entre o
Império e a República no Brasil. Entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras
do século XX, intelectuais brasileiros de diferentes vertentes ideológicas sustentaram ou
criticaram sua implantação no país em artigos na imprensa, em tratados políticos, nas
tribunas parlamentares ou nos programas partidários que surgiram no fim do período
monárquico.
Havia no Brasil um forte elemento localista com base nas elites econômicas rurais
que não cessou de se manifestar no processo de independência e na Regência. A
centralização política fora um feito do Império, para o qual colaboraram principalmente
os temores das elites quanto à subversão da ordem social escravocrata e à fragmentação
do território. José Murilo de Carvalho (1998, p. 179) afirma que “O apelo simbólico da
monarquia entre as populações rurais e seu apelo instrumental entre as elites” foram
fatores que contribuíram para a centralização monárquica, mas “assim que passou o efeito
da ação ordenadora da centralização e assim que terminou a coincidência entre o centro
político e o centro econômico”, a demanda por descentralização voltou sob a forma da
questão federalista394.

394
As discussões sobre o sentido do federalismo no Brasil tiveram grande destaque entre as décadas de
1960 e 1970. João Camilo de Oliveira Torres (1961, p. 11-16; 42-55) defendeu o surgimento desse conceito
a partir da estrutura localista herdada do período colonial. Para além da estrutura centralizada e unitária do
Império, haveria um elemento sociológico plural, remanescente da autonomia de que gozavam as capitanias
na América Lusa. O federalismo brasileiro teria se formado como uma ideologia que legitimava a oposição
de movimentos que aspiravam à autonomia política das províncias, contra o unitarismo do Império
Brasileiro. Contrária a essa postura, Rosa Maria Godoy da Silveira (1978, p. 55-72) afirma que a
reformulação social e econômica do Brasil levou à necessidade de reorganização das relações de poder.
Nesse sentido, o federalismo seria uma proposta, mobilizada pelos republicanos a partir de 1870, que teve
possibilidades de se concretizar, pois satisfazia a interesses do grupo hegemônico na nova configuração
social e econômica brasileira, os cafeicultores de São Paulo. José Murilo de Carvalho (1998, p. 155-188)
retomou a discussão apontando que, para além do elemento localista e da configuração socioeconômica do
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

939
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A querela federalista na década de 1860 foi protagonizada pelo liberal Aureliano


Cândido Tavares Bastos, enquanto o principal defensor do centralismo foi o conservador
visconde do Uruguai. Ambos os intelectuais concordavam na questão da liberdade
política como objetivo principal a ser alcançado pelo autogoverno local. Discordavam,
porém, quanto aos métodos para alcançá-la e ao papel do Estado no processo
(CARVALHO, 1988, p. 177-178). Ambos ainda conheciam e utilizavam como fonte
teórica o federalismo estadunidense, diferindo nas interpretações deste.
Tavares Bastos associava o centralismo ao despotismo e o federalismo à liberdade.
Seus ataques à centralização se davam não só à centralização política, mas principalmente
à intervenção administrativa em assuntos locais, como a nomeação dos presidentes de
província, a falta de autonomia, o cerceamento das assembleias e a inexistência de
executivos municipais. Considerava a autonomia provincial como o fundamento do
governo representativo e afirmava que “Absolutismo, centralização, império são
expressões sinônimas” (apud CARVALHO, 1988, p. 171). Para Tavares Bastos, a
liberdade deveria ser alcançada por meio do autogoverno local, e, portanto, o papel
imediato do governo era fazer a descentralização, segundo o modelo dos Estados Unidos
(CARVALHO, 1988, p. 178). O deputado alagoano era categórico na defesa das
instituições estadunidenses como libertadoras das forças produtivas propulsoras do
progresso econômico, enquanto o centralismo de inspiração napoleônica encerraria o país
no atraso. Nessa lógica, o Estado imperial deveria encolher, limitando-se ao papel de
representante da nação e administrador da justiça, liberando o caminho para a ação da
livre empresa particular (LYNCH, 2014, p. 73).
Seu interlocutor no debate era o visconde do Uruguai, político experiente que fora
um dos fundadores do Partido Conservador. Enquanto para os Conservadores puros a
liberdade sequer era um valor em si, sendo preterida pela ordem, Uruguai pertencia ao
grupo dos conservadores liberais, que se preocupavam com a questão e advogavam uma
espécie de ortodoxia liberal (CARVALHO, 1998, p.175-177). Para Uruguai, a liberdade
política era ameaçada não apenas pelo poder central, mas principalmente pelo poder
privado oligárquico. Por ter vivido o caos da Regência, considerava que a

Brasil, deve-se atentar para as tradições federalistas estrangeiras, em especial as norte-americanas, que são
apropriadas pelos intelectuais brasileiros a partir da década de 1860.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

940
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

descentralização imediata poderia levar à fragmentação territorial, ao cerceamento da


liberdade do cidadão e ao alijamento das oposições. De Tocqueville aprendera que o self-
government, ao estilo estadunidense, poderia garantir a liberdade política, no entanto não
desprezava o modelo centrípeto francês como garantia da liberdade civil. Por isso,
argumentava que o poder centralizado poderia ser menos despótico que os potentados
locais e servir como garantidor de direitos e condutor da civilização. “Uruguai achava
que o Estado podia exercer o papel de pedagogo da liberdade, de educador do povo para
o autogoverno, de instrumento de civilização” (CARVALHO, 1998, p. 177). Uruguai
defendeu a subordinação da representação parlamentar ao imperativo da ordem e da
unidade, representados na pessoa do imperador, como única possibilidade de garantia dos
direitos civis da maioria da população contra as aspirações das oligarquias (LYNCH,
2014, p. 74).
O discurso federalista e americanista de Tavares Bastos inspirou muitos liberais
radicais após a crise política de 1868, entre eles aqueles que abandonaram as fileiras
liberais para compor o Partido Republicano em 1870 (CARVALHO, 2011, p. 152). A
transformação de liberais radicais em republicanos, em 1870, gerou um retrocesso
conservador, na medida em que as demandas sociais, especialmente em torno da abolição,
foram esvaziadas na propaganda republicana, sendo preteridas pela questão da forma de
governo que a república deveria assumir, cuja principal evidência foi a transformação da
demanda por descentralização em exigência de federalismo (CARVALHO, 2006, p. 207-
215; 2011, p. 142-153). A dicotomia “centralização-fragmentação, descentralização-
unidade”, mote do Manifesto Republicano, não deixa dúvidas quanto a sua ideia de
república. O manifesto associava, em termos deterministas, o princípio federativo à
natureza da nação brasileira, ao mesmo tempo em que a monarquia era apontada como
uma imposição, que alterara a evolução natural da política americana em terras
brasileiras. As expressões república, democracia e federalismo eram vistas quase como
sinônimas e componentes do mesmo tripé na propaganda republicana brasileira, exceção
feita aos positivistas da Corte, pois, para alguns deles, o imperativo da ordem precederia
o federalismo (ALONSO, 2002, p. 109; p. 183-184).
Christian Lynch (2014, p. 88) colabora com o argumento do retrocesso
conservador representado pelo republicanismo brasileiro acrescentando que “O
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

941
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

republicanismo federalista emergiu para esmagar a perspectiva da monarquia


democrática”, assumida por monarquistas como Joaquim Nabuco e André Rebouças. O
pensamento liberal clássico apresentado pelos republicanos brasileiros tornara-se
conservador e autoritário diante do liberalismo social que ganhava terreno na Europa e
nos Estados Unidos. Nesse sentido, o Partido Republicano limitara-se a propor reformas
institucionais e, quando não se opunha, omitia-se sobre o movimento de emancipação.
Ângela Alonso (2002, p. 106) acrescenta que o conservadorismo dos republicanos
de 1870 associava-se ao vínculo de dependência que estes ainda mantinham com o
establishment imperial. Movimentavam-se em torno de atividades urbanas que
obedeciam à lógica estamental, “num mundo de transações comerciais dependentes do
beneplácito de chefes partidários e/ou da sociedade de corte”. Era um grupo que criticava
as instituições imperiais demandando reformas moderadas, que abrissem espaço para a
atuação política dos setores médios urbanos, sem, contudo, alterar profundamente a
ordem social estabelecida, o que explica sua posição contemporizadora diante da
emancipação. Nos momentos que precederam a abolição, os republicanos chegaram a
defender medidas como a abolição com a indenização da propriedade escrava.
A face mais conservadora do republicanismo brasileiro foi representada pelo
Partido Republicano paulista, criado em 1873, na convenção de Itu (CARVALHO, 2011,
p. 12-145). Na província de São Paulo, o cultivo do café para a exportação expandia-se
vigorosamente na mesma medida que a sua população de escravizados, o que indica o
embaraço que o tema da emancipação constituía para os republicanos paulistas. O
manifesto da Convenção afirmava que a questão da abolição era de responsabilidade
exclusiva dos partidos imperiais. Por defenderem a implementação evolutiva do
republicanismo, afirmavam crer que o problema da escravidão seria resolvido ainda na
etapa monárquica, isentando, assim, os republicanos de qualquer compromisso com o
assunto. Se, porventura, a solução recaísse sobre a República, esta seria feita de forma
federativa, com cada província escolhendo sua opção. A forma evasiva do tratamento do
assunto reflete um conservadorismo social que tinha por objetivo a atração dos
proprietários para o partido.
O liberalismo conservador dos republicanos de São Paulo pode ser associado à
apropriação de perspectivas teóricas estrangeiras como as de Herbert Spencer, referência
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

942
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

do principal teórico do partido, Alberto Sales (LYNCH, 2014, p. 88-90). Spencer opunha-
se de modo ferrenho ao intervencionismo estatal, proclamando-o como um entrave para
o desenvolvimento das forças individuais, responsável pelo progresso da civilização. A
pobreza, nessa perspectiva, seria o resultado da incapacidade moral dos menos aptos, e,
portanto, o intervencionismo, conforme advogado pelo liberalismo, social era um
empecilho ao desenvolvimento material por impedir que os mais aptos prosperassem, ao
mesmo tempo em que difundia a ignorância e o atraso. A doutrina social spenceriana de
Sales era complementada pelo economicismo de Stuart Mill e pelas teorias positivas de
Littré, Téophilo Braga e José Victorino Lastarria (ALONSO, 2002, p. 222-237). Este
último é de especial importância para o presente trabalho, pois, com base em sua teoria
descentralizadora, inspirada no sistema estadunidense, Sales desenvolve seu federalismo.
Lastarria, em suas Lecciones de Política Positiva, foi defensor de uma reforma
descentralizante do Estado chileno – que se constituía em um centralizado
presidencialismo monárquico –, buscando conciliar o princípio das liberdades individuais
com as teses positivistas de evolução social. Lastarria “apreciava o self-government que
as colônias inglesas herdaram, dando-lhe um nome mais ao gosto positivista:
semecracia”, ou o governo de si mesmo (ALONSO, 2002, p. 228).
Assim como para os republicanos paulistas, as teorias políticas científicas
alcançaram grande ressonância entre as fileiras do Partido Republicano da província do
Rio Grande do Sul (ALONSO, 2002, p. 155-159). O federalismo científico dos gaúchos
guarda grandes semelhanças, inclusive em suas fontes, com o dos paulistas, havendo
ainda ligação pessoal entre Alberto Sales e os líderes gaúchos Júlio de Castilhos e
Joaquim Francisco Assis Brasil. O primeiro, a principal liderança política, e o segundo, o
principal teórico. Assim como no grupo paulista, a plataforma republicana gaúcha era
predominantemente política, tendo como centro a república federativa. Sua crítica ao
império dava-se em torno do não processamento das demandas dos grupos que, como
eles, estavam alijados do centro político saquarema, expressando ainda feições localistas
acentuadas. Seu repertório doutrinário nascia da conjugação dessa marginalização
política com as teorias políticas científicas.
Diferentemente do debate da década de 1860, protagonizado por Visconde do
Uruguai e Tavares Bastos, as discussões sobre o federalismo posteriores à década de 1870
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

943
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

não giravam em torno da questão da liberdade, especialmente tratando-se dos teóricos de


São Paulo e do Rio Grande do Sul. Nessas áreas em que havia o predomínio dos
proprietários de terra nas fileiras do partido republicano, o federalismo ganhava valor em
si mesmo. Num ambiente rural onde não havia direitos civis e os direitos políticos da
esmagadora maioria da população estavam sob a tutela dos senhores, “a resistência contra
a interferência do poder central” ganhava “um ingrediente oligárquico, era a defesa do
poder privado, de seus privilégios, de sua prepotência” (CARVALHO, 1998, p. 179).
Embora a retórica dos propagandistas apresentasse os termos como sinônimos, a força
por trás do republicanismo nessas regiões era o federalismo, e não a liberdade.
Sales e Assis Brasil concordavam que o excesso de Estado e a centralização
faziam-se sentir, além da esfera política e administrativa, nas esferas fiscal e econômica
(ALONSO, 2002, p. 232-237). Desse modo, a centralização da direção de todos os
negócios públicos no Estado faria escoar o superávit das economias do Rio Grande do
Sul e de São Paulo para as províncias atrasadas do Norte e do Nordeste, inviabilizando o
pleno desenvolvimento material das províncias mais aptas. A crítica dos federalistas
científicos acusava o desencontro entre poder político e poder econômico (CARVALHO,
1998, p. 172). O Império centralizado faria uma elite política decadente se perpetuar no
poder, não abrindo espaço para a atuação dos grupos mais dinâmicos e progressistas. A
resposta a essa centralização que mantinha o país no atraso estava no federalismo, cujos
argumentos eram retirados, em grande medida, do Manifesto de 1870 e das teorias de
Lastarria (ALONSO, 2002, p. 235). Para Sales e Assis Brasil, a igualdade era um dos
princípios da república e um dogma científico. No entanto, em sua aplicação, ela se
limitava à eliminação dos privilégios do establisment imperial, não se estendendo aos
escravizados e pobres (CARVALHO, 2011, p. 144).
Carvalho (2011, p. 153) ressalta que a redução do leque temático à esfera
estritamente política, com a exclusão dos temas sociais como o da escravidão, gerada na
transformação de liberais radicais em republicanos, esteve associada a “uma clara
alteração na fundamentação teórica das ideias e no estilo de argumentação”. Exceção feita
apenas ao Manifesto de 1870, “todos os manifestos e as obras dos principais doutrinários
da República estavam profundamente impregnados do positivismo, do evolucionismo e
do biologismo”. Enquanto nos grandes debates da década de 1860 citavam-se os grandes
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

944
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

autores da tradição liberal, que valorizava a história e a ação política sob a égide do
individualismo filosófico, a retórica posterior a 1870 passou a valorizar o cientificismo e
as grandes filosofias da história. O chileno Lastarria estaria entre esses novos autores
incorporados no cânone dos republicanos brasileiros (CARVALHO, 2011, p. 153-155).
A percepção das mudanças políticas e econômicas ao final do Império levou
monarquistas liberais a advogarem o federalismo como forma de conservação da
monarquia. Entre os defensores de uma monarquia federal, por razões mais pragmáticas
do que ideológicas, achavam-se Joaquim Nabuco e Rui Barbosa (CARVALHO, 1998, p.
171-172; 2011, p. 153). Não sendo federalistas convictos, convenceram-se de que a
demanda era irresistível, e, se o Império não conduzisse o processo, a federação seria feita
sem ele. Nabuco apresentara um projeto de federação monárquica ao Congresso, em
1885, alegando que aquela seria uma evolução natural da história política do país,
interrompida de forma abrupta pelo Império. Argumentou que o tamanho e a diversidade
de interesses no país exigiam uma administração descentralizada, que sem o autogoverno
não haveria democracia real e que a centralização aproximava a maioria do país à situação
colonial. Derrotada a proposta, apresentou-a outra vez em 1888, já feita a abolição,
momento em que o federalismo se tornou a principal questão política do país. Nessa
ocasião, Nabuco apelou ao argumento do Manifesto Republicano de que apenas a
federação era capaz de garantir a unidade, acrescentando, no entanto, que deveria ser
mantida a monarquia, pois o republicanismo levaria também à fragmentação, haja vista o
exemplo das repúblicas hispânicas.
Rui Barbosa, por sua vez, feita a abolição, encampou no partido liberal o
argumento de que ou a monarquia faria a federação ou o federalismo faria a República;
de que a única maneira de se salvar a monarquia diante dos separatismos que se
proliferavam era o federalismo. Usou o exemplo inglês para demonstrar que não havia
incompatibilidade entre governo local e monarquia e, ainda, o estadunidense, pela
interpretação de Tocqueville, para defender a possibilidade de coexistência entre
federalismo e centralização política. As tímidas medidas descentralizadoras do Gabinete
Ouro Preto não foram suficientes para impedir o golpe de novembro de 1889. Feita a
República e outorgada a federação por decreto, Rui Barbosa, feito ministro da Fazenda
do Governo provisório e um dos principais elaboradores do projeto constitucional, buscou
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

945
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

no federalismo hamiltoniano o fundamento teórico para tentar barrar os excessos do ultra


federalismo que se difundiu na Assembleia Constituinte (CARVALHO, 1998, p. 172;
LYNCH, 2011, p. 307-309).
Sobre as duas principais tradições federalistas americanas, a hamiltoniana,
exposta no clássico O Federalista, e a jeffersoniana, desenvolvida a posteriori por
Tocqueville na obra A Democracia na América, José Murilo de Carvalho (1998, p. 181-
183) afirma que a opção feita pela elite política brasileira, à semelhança das de outros
países latino-americanos, foi pela segunda tradição. Os artigos de Hamilton, Madison e
Jay apontavam para a necessidade de reforço do poder central, enquanto o enfoque
principal de Tocqueville era o autogoverno das townships e dos Estados. No entanto, para
o autor francês o self-government e o espírito cívico eram sustentados pelo igualitarismo
e pela liberdade que marcaram a sociedade construída pelos pioneiros. No Brasil houve
uma inversão. Na retórica federalista hegemônica a quebra da centralização, por si só, era
capaz de promover a liberdade, o igualitarismo e o espírito cívico. Em uma sociedade que
desconhecia o espírito da liberdade individual e o igualitarismo, em uma sociedade
hierarquizada, em que no lugar de cidadãos havia súditos, o federalismo imposto por
decreto não gerou a democracia. Ao contrário, em tais condições, “federalizar era
necessariamente reforçar as estruturas de poder preexistentes, era reforçar a desigualdade,
a hierarquia, o privatismo” (CARVALHO, 1998, p. 181). A primeira República foi o
ponto alto do poder privado, e o federalismo, um instrumento para a transição da
monarquia à oligarquia.
Acreditamos que a interpretação autoritária do federalismo estadunidense não se
dá apenas por opção pela tradição jeffersoniana de Tocqueville. Christian Lynch (2014,
p. 99-111) sustenta que a interpretação brasileira do modelo republicano norte-americano
foi mediada pelo exemplo argentino. O interesse da elite política brasileira não seria o
alargamento das liberdades nem dos direitos civis, tampouco da representação política,
mas o progresso material estadunidense. Visto que a Argentina havia implantado uma
Constituição inspirada no modelo norte-americano e que esta havia dado um significativo
salto econômico durante a década de 1880, “foi pelo espelho oligárquico da República
platina, portanto, que a nossa oligarquia rural pôde enxergar a possibilidade de uma
democracia ianque” (LYNCH, 2014, p. 100). O federalismo argentino instituído na
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

946
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Constituição de 1853 teria adquirido contornos fortemente autoritários e excludentes,


dada a necessidade de supressão do caudilhismo do período anterior, que levou à anarquia
política e à guerra civil. Os principais teóricos e artífices da Constituição de Argentina,
os renomados intelectuais liberais Juan Bautista Alberdi e Domingo Faustino Sarmiento,
foram influenciados por seu período no exílio em Santiago do Chile, durante a supremacia
da província de Buenos Aires no governo de Juan Manuel Rosas. Os contornos
oligárquicos e autoritários do modelo institucional argentino teriam vindo da justaposição
entre instituições chilenas – monárquicas e conservadoras – e o federalismo centrífugo
estadunidense. Com isso, os liberais argentinos buscavam expressar os ideais da
aristocracia rural, construir um país civilizado e europeizado, por meio do incentivo do
progresso econômico e da imigração, e no qual liberdade civil e descentralização política
estivessem conciliados ao imperativo da ordem e da autoridade. “Assim, se aos argentinos
o caminho para Washington passava por Santiago do Chile, aos conservadores brasileiros
pareceu mais seguro fazer escala em Buenos Aires” (LYNCH, 2014, p. 110-111).
Ainda segundo Lynch (2014, p. 107), “a simpatia do republicanismo brasileiro
pelo modelo platino refletiu-se na recepção das instituições argentinas na Constituição de
1891”. Os principais responsáveis pela apropriação das instituições argentinas foram os
republicanos históricos Quintino Bocaiuva e Campos Sales, respectivamente, membros
fundadores articuladores políticos dos partidos republicanos do Rio de Janeiro e de São
Paulo e que foram elevados aos cargos de ministros das Relações Exteriores e da Justiça
do Governo Provisório. Ambos, além de admiradores dos teóricos e das instituições
argentinas, mantinham relações estreitas com políticos daquele país. Uma comissão de
cinco juristas foi encarregada por Sales e Bocaiuva de “elaborar um anteprojeto
constitucional que, a partir da experiência argentina, extraísse do modelo norte-americano
o que ele possuísse de melhor” (LYNCH, 2014, p. 107). O anteprojeto foi remetido à
revisão de Rui Barbosa, ministro da Fazenda, que, monarquista até a véspera do golpe,
graças a sua enorme cultura jurídica, pôde ingressar no novo Governo, no qual buscou
conter os excessos do ultra federalismo.
Rui Barbosa e Campos Sales, respectivamente liberal e conservador, na nova
configuração ideológica da República cooperaram no sentido de garantir o regime contra
a restauração monárquica e defender o federalismo contra os ideais positivistas de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

947
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

centralização (LYNCH, 2011, p. 305-311). Rui Barbosa fizera importantes alterações,


dando um sentido sofisticado e liberal ao texto do projeto. Sendo também conhecedor da
Constituição argentina, buscou garantir as instituições norte-americanas e atualizá-las,
tendo em vista o desenvolvimento histórico dos Estados Unidos desde 1787. Manteve, no
entanto, várias adaptações argentinas do modelo federalista estadunidense, em especial
as relativas ao Senado. As principais alterações feitas por Rui Barbosa estavam
relacionadas à intervenção federal nos Estados, em que condicionou o estado de sítio –
instrumento utilizado durante toda a Primeira República – ao pedido dos judiciários e
legislativos estaduais. Reescrito por Rui Barbosa, o projeto remetido à constituinte
expressava um ideário federativo hamiltoniano atualizado, em boa parte, por sua
interpretação platina.
O federalismo hamiltoniano foi ainda a principal base da argumentação de Rui
Barbosa durante os debates da Assembleia Constituinte para contrapor o ultra federalismo
dos deputados gaúchos e paulistas (CARVALHO, 1998, p. 173; LYNCH, 2011, p. 311-
318; 2014, p. 107-109). Estes, em sua maioria republicanos históricos, buscaram expandir
a competência dos estados além do previsto no projeto de Rui Barbosa. Defendiam um
Estado mínimo em que o federalismo era o instrumento para submeter o político ao
econômico. Paulistas ligados a Sales invocavam a doutrina da soberania dual, que
igualava a soberania dos estados e da união em suas alçadas. Gaúchos liderados por Júlio
de Castilhos invocavam as concepções federalistas de Augusto Comte, para quem as
nações estavam destinadas à desagregação, formando pequenas pátrias. Chegaram a
defender a inversão das relações entre províncias e governo durante a monarquia,
propondo que a união vivesse das transferências dos estados. A descentralização proposta
por esses grupos nada tinha a ver com a questão da liberdade e dos direitos civis, antes
propunham-na como valor em si mesma, conforme a interpretação de Carvalho (1998, p.
181-183).
Por sua vez, Rui Barbosa e outros liberais, especialmente pernambucanos e
baianos, frisavam, ancorados no federalismo de Hamilton, a necessária precedência da
União sobre os estados (LYNCH, 2011, p. 315-316). Afirmavam que a unidade da pátria
fora a maior conquista da monarquia, atacavam o apetite pelo federalismo como doentio
e afirmavam existir nos Estados Unidos, contrariamente ao argumento dos paulistas, um
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

948
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

movimento em direção à centralização. Em três meses, a Assembleia chancelou o projeto


com algumas alterações conquistadas pelos ultra federalistas, não passando despercebida
pelos constituintes a sua inspiração argentina.
Os nove primeiros anos de republicanismo no Brasil não foram o sonho dos
propagandistas. A República foi governada nesse período por dois militares e um civil; e,
se nem a liberdade foi alcançada, tampouco o foi o progresso econômico. Em seu lugar
veio instabilidade política, guerras civis e falência financeira, num quadro que ameaçava
a própria sobrevivência do regime. A superação do caos veio no governo do
autoproclamado conservador Campos Sales, em que o pacto federativo foi redefinido para
superar a ingovernabilidade do período anterior, de modo a silenciar as ideologias em
guerra no parlamento e construir um congresso obediente ao poder Executivo. O
mecanismo foi chamado de política dos governadores, ou política dos estados, como o
próprio Sales o denominou (CARVALHO, 2011, p. 155-157). Pelo novo pacto, o
presidente da República negociava com os governadores a construção de um Congresso
absolutamente governista, utilizando-se da mudança no mecanismo de verificação dos
diplomas eleitorais, que passava a ser prerrogativa dos Estados. A estabilização do regime
se deu às custas do ideal republicano de democracia, pois os cidadãos foram substituídos
pelos estados. “O federalismo engoliu a democracia (...). Em lugar da república dos
sonhos dos propagandistas, Campos Sales construiu a República brasileira”
(CARVALHO, 2011, p. 157).
Segundo Lynch (2014, p. 109-111), a implementação da política dos estados era
também um reflexo da simpatia dos conservadores brasileiros pelo modelo federativo
argentino e suas práticas institucionais. Sales, confesso admirador da obra de Júlio Roca,
adotou a fórmula que, 15 anos antes, garantira ao político tucumano a operacionalidade
do federalismo oligárquico. Na argentina, como no Brasil, a política dos governadores
garantiu legislativos dóceis, conservou as situações estaduais por longos períodos e
impediu o pluralismo político. Também como na Argentina, o estado de sítio no Brasil
foi utilizado como política de governo para abafar as oposições às oligarquias
situacionistas.
Consideramos, assim, que a tese de Carvalho (1998, p. 181), de que a opção feita
pelos republicanos do Brasil pelo modelo federalista jeffersoniano, em detrimento do
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

949
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

modelo hamiltoniano, é complementada pela de Lynch (2014, p. 99-111) de que a


apropriação dos modelos institucionais estadunidenses foi mediada por interpretações
sul-americanas, em especial a argentina e a chilena. Dessa forma, a opção por um modelo
que privilegia o autogoverno em prejuízo da União e que gera um federalismo com valor
em si mesmo passa pela mediação das representações de teóricos e modelos institucionais
posteriores ao liberalismo clássico. Entre esses autores estão Lastarria, Alberdi e
Sarmiento. Para se entender a formação intelectual do federalismo no Brasil, deve-se ler
os intelectuais federalistas brasileiros tendo-se a perspectiva de que miravam o modelo
dos Estados Unidos, em um diálogo profundo com outros intelectuais sul-americanos.

Referências Bibliográficas

ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império.


São Paulo: Paz e Terra, 2002.

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro
das sombras: a política imperial. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

______. Pontos e Bordados: escritos de história política. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

______. “República, democracia e federalismo Brasil, 1870-1891”. In: Varia história,


Belo Horizonte, v. 27, n. 45, p.141-157, junho de 2011. Disponível em:
<http://www.scielo.br >. Acesso em: 9 de ago. 2016.

LYNCH, Christian Edward Cyril. Da monarquia à oligarquia: história institucional e


pensamento político brasileiro (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2014.

______. “O momento oligárquico: a construção institucional da República brasileira


(1870-1891)”. In: Historia Constitucional, Madrid (ESP), n. 12, p. 297-325, 2011.
Disponível em: <http://www.historiaconstitucional.com>. Acesso em: 19 de set. 2016.

OLIVEIRA TORRES, João Camilo de. A formação do federalismo no Brasil. São Paulo:
Cia. Ed. Nacional, 1961.

SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Republicanismo e federalismo: um estudo da


implantação da República Brasileira. Brasília: Senado Federal, 1978.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

950
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Eu tinha um marido só”: Casamento como valor na experiência de mulheres


soropositivas (1990)

ELIZA DA SILVA VIANNA


PPGHCS – COC/Fiocruz
CAPES

INTRODUÇÃO

Uma das últimas grandes epidemias do século XX, a aids evocou uma série de
elementos das doenças do passado ressignificados em seu tempo histórico. Vindo a
público no começo dos anos 1980, colocou em xeque a atmosfera de otimismo do saber
médico-científico, inflada pela erradicação de doenças como varíola e poliomielite. Além
disso, a associação com as primeiras vítimas, homens homossexuais, bem como a forma
de transmissão por via sexual, cercaram a doença de estigmas e preconceitos.
Entre os aspectos abordados pelas principais produções historiográficas a seu
respeito, destaca-se a recuperação de metáforas militares e marginalizadoras, presentes
na compreensão do câncer e reificadas no novo contexto epidêmico, conforme apontou
Sontag (1989). Além disso, de acordo com o que analisou Pollak (1990), a epidemia
trouxe à tona a homossexualidade, revelando práticas muitas vezes clandestinas e
obrigando a sociedade à convivência e enfrentamento de comportamentos considerados
fora dos padrões e que muitas vezes se tentava ignorar. Desta forma, a doença foi cercada
de estigmas (GOFFMAN, 1980) que podem ser sintetizados pela tão criticada categoria
‘grupo de risco’.
Nascimento (2004) sinalizou que a própria nomenclatura inicial395 da doença
desconhecida indicava os preconceitos indissociáveis da medicina, nos lembrando os
entrelaces sócio-históricos do saber médico e científico. A autora nos mostrou que as
próprias campanhas de prevenção do Ministério da Saúde reproduziam discursos
preconceituosos e equivocados, sendo alvo de críticas por parte de movimentos sociais
que se organizaram na luta do combate à doença e aos preconceitos. Barata (2006), por

395
Em que figuram expressões como ‘câncer gay’ e Gay Related Immune Deficiency (Grid), cuja tradução
seria imunodeficiência ligada ao homossexualismo (NASCIMENTO, 2004, p. 82)
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

951
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sua vez, foi eficaz em mostrar como a atmosfera alarmista foi amplamente veiculada pela
imprensa no Brasil, contribuindo para o alastramento do pânico e dificultando a
prevenção. Esses fatores contribuíram para que a aids não fosse vista nem combatida
como uma doença de todos e que podia atingir a todos, como denunciava o ativista
soropositivo Herbert Daniel (DIAS, 2012), fundador de uma das principais ONGs que
combatiam a doença. Um dos desdobramentos da primeira década da epidemia foi o
aumento significativo no número de notificações do HIV entre mulheres heterossexuais
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2000).
Entendemos, portanto, que as mudanças no quadro epidemiológico representam
uma transformação nas compreensões sobre a aids e em fissuras na representação social
da doença. Esta é aqui entendida como o arsenal de sentidos que circulam a respeito de
uma enfermidade, consideradas as relações de poder de diferentes grupos sociais e seus
discursos. Nesse sentido, a compreensão das experiências individuais do adoecimento por
HIV entre mulheres, vem nos indicando caminhos onde se entrelaçam as especificidades
de gênero e da aids do ponto de vista histórico.
O recorte aqui apresentado faz parte da pesquisa maior em que são analisadas
entrevistas e autobiografias de mulheres soropositivas na segunda década da epidemia,
investigando de que formas os modelos de comportamento ligados à feminilidade
contribuíram para a vulnerabilidade ao HIV, bem como na experiência do adoecimento.
Um dos aspectos relevantes nesse sentido é a compreensão do matrimônio como um valor
a partir do qual as mulheres inocentam ou culpabilizam seus próprios comportamentos.
Destacamos, portanto, elementos da análise de duas entrevistas que compõem o
acervo “A fala dos comprometidos” (DAD/Fiocruz), realizadas entre 1997 e 1998, e da
autobiografia Por que eu?, publicada sob o pseudônimo Juliette (1990).

ESCRITAS DE SI: AUTOBIOGRAFIAS E ENTREVISTAS

A escolha metodológica de incluir entrevistas e autobiografias, documentos


históricos com suas especificidades inquestionáveis, parte da compreensão de que ambas
incluem-se na categoria escrita de si. Definida por Gomes (2004), como as narrativas em

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

952
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que o sujeito assume centralidade e que tem gerado considerável demanda editorial nas
últimas décadas.
De modo análogo, Alberti (1991) reflete sobre a centralidade do sujeito moderno
na produção de narrativas autobiográficas, enfatizando o surgimento do escritor como
sinônimo de autor e a afirmação da literatura em seu espaço social moderno. Cabe
observar que a análise de Bourdieu (1998) sobre as elaborações biográficas nos lembram
que a coerência de uma vida é mais uma tentativa que uma efetividade, mais próxima de
ser alcançada na publicação autobiográfica, mas também pretendida em uma entrevista
cujo objetivo é o relato de vida.
Autobiografias e entrevistas compartilham o objetivo de uma narrativa coerente,
que mantém-se mais como objetivo do que concretude, onde, como destacou Fernandes
(2016), se processam a construção da identidade e a seleção de lembranças na construção
de um passado com o qual se possa conviver. Desta forma, a entrevista constitui lugar de
criação de que fazem parte a flutuação, a transformação e a seleção, ainda que em medidas
diferentes do processo de escrita e publicação.
Assim como a escrita autobiográfica, a memória oferece, segundo destacou
Portelli (1996, p. 71), um campo de possibilidades compartilhadas, reais ou imaginadas.
Tanto para o depoente quanto para o historiador que analisa as fontes, não é possível
enquadrar tais possibilidades em esquemas compreensíveis e rigorosos, pois “na mente
das pessoas se apresentam diferentes destinos possíveis”. A percepção destes, por sua
vez, também é bastante particular para cada indivíduo, que se orienta e orienta suas ações
tomando-os como referência. É importante manter em mente que, quando foram narradas,
as experiências de nossas entrevistadas já haviam passado por um processo de elaboração,
no qual, muitas vezes, as incertezas do momento em que ocorreram foram subtraídas em
prol de uma aparente coerência narrativa.
O fôlego da presente exposição não nos permite o adequado aprofundamento
metodológico das diferenças e semelhanças entre os dois tipos de documentos aqui
analisados. Todavia, acreditamos que o empreendimento da elaboração do eu na categoria
escrita de si sintetize suas conexões mais gerais. Nesse sentido, as duas mulheres, cujas
entrevistas são aqui analisadas, compartilham com a autobiografada uma elaboração
identitária e das experiências em que a relação com o HIV assume um caráter norteador
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

953
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

para os acontecimentos de suas vidas. No caso das entrevistadas, a participação no Grupo


de Mulheres do Grupo Pela Vidda (Pela Valorização, Integração e Dignidade do doente
de Aids) é que resultou na realização da entrevista; e, para a autobiografia, o diagnóstico
motivou a escrita.

“EU ACHO QUE EU PROCUREI E ENCONTREI”

A associação inicial entre aids e homossexualidade limitou o combate amplo à


epidemia, evocando a metáfora militar de identificação como uma doença do outro
(SONTAG, 1989). Essa aspecto contribuiu para que as mulheres por nós estudadas não
se sentissem vulneráveis ao vírus e, por isso, não incluíssem em suas vidas os métodos
de prevenção. O diagnóstico chegou para as três de modo surpreendente e mobilizou a
formulação de explicações diferentes na construção de suas experiências da doença.
Amanda, Rosangela396 e Juliette trazem em suas trajetórias o elemento comum de
estabelecerem essa relação a partir do casamento, entendido como instituição responsável
por salvaguardar uma suposta moralidade de que o HIV estaria excluído. O adultério, o
casamento e a ausência deste representaram, respectivamente, as explicações para a
possibilidade ou impossibilidade da doença para as três mulheres.
Para Amanda, de cuja fala retiramos o subtítulo para este item, o diagnóstico foi
entendido como uma espécie de punição para a relação extraconjugal que mantinha há
cerca de quinze anos. A entrevistada, com quarenta e quatro anos à época, elabora uma
definição de si baseada no cerceamento da liberdade estabelecido pela mãe, que a teria
criado com o objetivo do casamento porque não havia tomado esse rumo em sua vida.
Considerada com uma vida desregrada, a mãe de Amanda nunca se casou, teve vários
filhos que passaram a infância divididos em residências de parentes.
Segundo elabora em seu depoimento, o fato de a mãe não ter seguido o destino de
mãe e esposa gerava julgamentos por parte da família e influenciou uma cobrança rígida
para que ela não seguisse o mesmo destino. Um dos desdobramentos foi o controle de seu
comportamento durante a adolescência e a pressão para que casasse muito cedo.

396
Seus nomes reais foram substituídos conforme previsto no termo de cessão de uso das entrevistas.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

954
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Destacamos abaixo um fragmento em que reflete sobre a decisão pressionada pelo


matrimônio aos dezoito anos:

Quer dizer, eu deixei de fazer... mas eu acho que eu não queria ter
deixado de fazer não, sabe? (risos) Eu acho que eu devia ter pensado
um pouquinho porque eu casei, aí nós casamos, é compramos nossas
coisas, mas o negócio é o seguinte: a minha mãe, acho que ela me
ajudou muito a casar porque ela (risos) queria se livrar do problema,
entendeu? Tipo assim, eu era um problema, né? Porque eu era terrível,
né? Então quando ela viu aparecer esse homem que era o príncipe
encantado que ela achou que era pra mim (...) era pobre mas era melhor
do que eu, né? Tinha mais condição que eu. Aí minha mãe deu maior
força, né? Pra casar e tal, aí minha mãe praticamente me obrigou a casar
(DAD/ COC/FIOCRUZ, A fala dos comprometidos, Fita 1, Lado A, p.
32, 1998).

Na tentativa de construir uma narrativa coerente, Amanda estabelece relações de


causa e consequência entre o casamento precoce e a infidelidade da qual, em sua
concepção, o HIV resultou como punição. Ser vista como um problema pela mãe em
muito se relaciona aos desvios do comportamento tradicional esperado para as mulheres
e o medo de que ela iniciasse a vida sexual, ou mesmo engravidasse, sem contrair
matrimônio. Em sua rememoração, ela acredita que a atitude da mãe pode ter freado um
processo de ‘degradação’, no seu entender, mais grave que ter contraído o vírus:

Mas eu acho que eu não casaria. Se ela tivesse deixado assim...como


direi? Eu viver a minha vida, talvez (risos) eu tivesse pior do que eu to
hoje, eu não sei mas naquele momento, talvez eu não tivesse casado se
ela tivesse deixado mais frouxo ou ele mais frouxo. Eu hoje como mãe,
eu vejo assim, eu não teria forçado tanto. Eu teria deixado mais livre
(DAD/ COC/FIOCRUZ, A fala dos comprometidos, Fita 1, Lado B,
1998, p. 35).

Na leitura de sua própria personalidade, ela defende que incorporou o


comportamento esperado de uma esposa, abandonando seus antigos interesses e projetos
de vida para dedicar-se ao marido e aos filhos: “Quer dizer, eu mudei assim da água pro
vinho, né? Quer dizer, pensei que eu tivesse mudado. Mas não mudei não. Acho que
fiquei adormecida (risos) um período” (DAD/ COC/FIOCRUZ, A fala dos
comprometidos, Lado B, 1998, p. 36-37). Ela parece atribuir a esse silenciamento de suas

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

955
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

características pessoais e interesses de vida o ‘erro’ do adultério, para o qual a doença


seria uma punição praticamente justa.
Como já dito, as mulheres não eram vistas como vulneráveis ao vírus da aids,
portanto, a realização de seus diagnósticos precisa ser entendida nos meandros específicos
de cada experiência. No caso de Amanda, uma grave pneumonia do homem com quem
mantinha uma relação extraconjugal levou à desconfiança e realização do exame, por
iniciativa dela e com o objetivo de tranquilizá-lo. O resultado surpreendeu aos dois e
tornou imperativa sua revelação ao marido.
Enquanto a culpa e a responsabilidade por ter colocado o marido em risco
aparecem como tônicas importantes em sua elaboração de si, o companheiro de quem
adquiriu o vírus não é responsabilizado, pois, segundo ela, tratava-se de um rapaz mais
jovem, solteiro. A compreensão que constrói de seu próprio comportamento, em
contrapartida, é bastante enfática e arraigada na noção de culpa, como é possível observar
no seguinte fragmento:

Eu me posiciono assim, eu acho assim, eu acho que eu procurei e


encontrei, né? No caso, eu sei como que eu adquiri isso, eu não fiquei
como a maioria das pessoas assim: ‘Ah, será que foi com A, com B ou
com C?’ (risos) Eu sabia da onde ele tinha vindo, eu sabia que eu estava,
como tava e porque que eu tava, né? Então eu disposta a enfrentar isso,
mas eu não... eu tava com medo das outras consequências, quer dizer,
saber se o meu marido tava (...) (DAD/ COC/FIOCRUZ, A fala dos
comprometidos, Fita 3, lado A, 1998, p. 8).

A angústia sobre como informar ao marido a condição sorológica a atormentou


por algum tempo, pois obrigaria a revelação da traição. Quando decidiu contar, ao invés
de admitir eu mantinha um relacionamento há quinze anos, optou por dizer que eram
vários os encontros e relacionamentos que possuía, ao que acresceu de inúmeros
julgamentos do próprio caráter e depreciação de si mesma:

Aí eu comecei a falar merda, né? (...) ‘Porque eu sou uma vagabunda,


porque eu sou prostituta, porque eu ando com tudo que é homem’. Aí
eu comecei a falar um monte de coisa, né? Isso que me mata até hoje.
Aí eu falei um monte de coisa, falei que andava com todo mundo, que
eu tinha um monte de homem. (DAD/ COC/FIOCRUZ, A fala dos
comprometidos. Fita 3, lado A, 1998, p. 17).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

956
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Apesar de eventualmente mencionar que sua atitude foi motivada pela solidão que
sentia no casamento, decorrente do envolvimento do marido com o trabalho e da escassez
de tempo que dedicava a ela e aos filhos, atribui a culpa apenas a si mesma, isentando
ambos os homens de qualquer culpa ou responsabilidade. A mentira que decide elaborar
amplia sua própria culpa e o julgamento moral de seu comportamento:

Eu me chamei assim de puta pra baixo, né? Eu falei pra ele, ele
perguntou: ‘Pô, eu devo ser uma merda como homem’. Eu falei: ‘Não,
tu é legal! Mas é só que eu me...’ Eu disse que eu era insaciável, que eu
queria um monte de aventura, sabe? Nem eu acredito nas coisas que eu
falei! Só que eu não falei isso olhando pra cara dele, não! Eu não olhava
pra cara dele. (DAD/ COC/FIOCRUZ, A fala dos comprometidos, Fita
3, lado B, 1998, p. 22).

A entrevistada cuja fala dá título a essa breve análise estabelece outra relação com
o matrimônio em sua construção da experiência com o HIV. Rosangela cresceu se
acreditando filha adotada de uma família humilde e só após a morte de sua mãe adotiva
descobriu ter sido fruto de uma relação extraconjugal do pai que acreditava ser adotivo.
Após a morte deste, a infância descrita como repleta de mimos foi substituída pelo
controle da mãe bastante religiosa e uma tentativa de abuso sexual considerado estopim
para sua fuga aos treze anos.
Durante a adolescência, trabalhou como empregada doméstica, mas foi
dispensada após engravidar do primeiro filho. Ainda grávida, conheceu o primeiro
marido, com quem residiu em uma casa atrás da Central do Brasil, que descreve como
local de receptação de roubos e passagem para várias pessoas envolvidas com crimes e
entorpecentes. Após a primeira separação, trabalhou como prostituta nas ruas de
Copacabana por cerca de dois anos, quando conheceu seu segundo marido, que havia
fugido da prisão, tendo sido recapturado pouco tempo depois. Quando ele foi solto,
Rosangela abandonou a prostituição para viver a vida de esposa.
O diagnóstico positivo para o HIV ocorreu através de seu terceiro filho. O bebê
nasceu com diversos problemas de saúde que o levaram a óbito com nove meses de idade
e levantaram a suspeita da médica que o tratava. Quando a solicitação do exame foi
informada à mãe, a reação de Rosangela foi categórica:
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

957
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Aí ela pediu, eu olhei pro exame, olhei bem pra cara dela, falei pra ela:
‘Olha, mas eu tenho um marido só. Não existe possibilidade deu ter
essa doença’. Porque na época, na televisão, o que se comentava era
que prostituta e viado só pegavam, não era? Então, eu era uma mulher
casada, tinha marido e três filhos...eu nunca... Aí, ela pegou e falou:
‘Não, é um exame de rotina’. Tudo bem, é um exame de rotina. Com
uns quinze dias depois do exame feito, a maternidade me chamou, ligou
pra minha mãe... (DAD/ COC/FIOCRUZ, A fala dos comprometidos,
Fita 3, lado A, 1998, p. 4)

Sua compreensão ambígua sobre o casamento é muito instigante para nossa


análise, pois ao mesmo tempo em que atribui a ele o status de proteção para a doença
marginalizada, desacredita sua tradição em outros momentos. É interessante que, apesar
de ter trabalhado durante dois anos como prostituta – categoria incluída na equivocada
classificação ‘grupo de risco’ –, o fato de viver monogamicamente à época do
diagnóstico, a faz considerar-se imune à aids. Além disso, ao relatar sua experiência ‘na
pista’, expressão com a qual se refere à prostituição, a desmistificação do casamento
adquire grande importância, como é possível observar no seguinte trecho:

É, o casamento passou a ser besteira, porque eu acho...é, a minha mãe


me criou no sentido do seguinte: marido só tem uma mulher só. Então,
ali você passa a descobrir que o cara não tem uma mulher só. Sempre
tem uma aliança no dedo se ele está casado. Cadê a mulher de dentro
de casa? O que que ele foi fazer? Foi me pagar pra quê? Se eu vou para
a cama com ele, vou fazer o quê? O que ele pode fazer comigo em cima
da cama, ele não pode fazer com a mulher dele? Então se desilude um
pouco, sabe? Que mostra que de vez em quando, eu ia montar um
condenado, eu muitas vezes cansei de pensar isso, eu olhava pra cara
do cara assim, e ficava pensando, na minha: a mulher tá lá, se matando,
ele liga pra casa: ‘Ah, eu tenho uma reunião’. E ela acredita, sabe?
Então te desilude um pouco, você perde um pouco daquele brilho,
daquela coisa de que, sabe, o casamento vale a pena, sabe? (DAD/
COC/FIOCRUZ, A fala dos comprometidos, Fita 2, lado A, p. 15).

A marginalização da doença, reforçada pelas campanhas oficiais de prevenção


voltadas para homens homossexuais, contribuíam para que a aids fosse vista como uma
doença do outro. Apesar das relações sexuais sem preservativo com os antigos clientes e
com o marido; apesar de mencionar que o marido mantinha outras parceiras, o HIV não
era considerado uma possibilidade.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

958
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A terceira mulher a que nos dedicamos aqui realiza um movimento diverso do


estabelecido por Amanda e Rosangela em relação ao casamento, pois considera a ausência
dele como fator essencial para seu adoecimento. Juliette narra em sua autobiografia os
muitos parceiros e um em especial a quem atribui a transmissão do vírus. O
comportamento desregrado e a opção por manter-se solteira e sexualmente ativa a teriam
levado ao adoecimento. De acordo com suas palavras: “Eu não tinha um amante regular.
Ia de um para outro ao sabor de minhas fantasias e de minhas necessidades.” (M., 1990,
p. 41-42).
A doença é vista como um acontecimento inevitável, um obstáculo necessário para
frear seu apetite sexual:

Tudo acontecera muito depressa. Tudo se consumira rapidamente. Eu


mal completara trinta anos e estava fora do torneio. Parecia que,
realmente, não havia mais lugar para mim, já que enfrentara todas as
provas e transpusera todos os obstáculos. Alguma coisa precisava
mesmo acontecer, um acidente ou doença (M., 1990, p. 183).

Como afirmou Perrot (2005), a formação das sociedades modernas estrutura-se na


tentativa de delimitar os espaços e comportamentos das mulheres. Afastadas do espaço
público, às mulheres coube o casamento, o lar, o cuidado dos filhos. Nas primeiras
décadas do século XX, o discurso médico adquiriu importante papel no reforço das
atribuições esperadas do ‘belo sexo’ (VOSNE, 2004). Análises como a de Pedro (1998)
foram eficazes em mostrar que as formas de viver as mulheres nunca se enquadraram nos
padrões estabelecidos e que o julgamento moral a que foram submetidas relacionava-se
ao grupo social ao que pertenciam.
As complexidades das experiências aqui abordadas dialogam com a historiografia
ao estabelecerem pontos de confluência e desvio em relação às analises citadas. As vidas
de Amanda, Rosangela e Juliette não se adéquam aos modelos de comportamento
esperados para o gênero feminino, mas estes permanecem como referências na
compreensão que fazem de si e de sua condição soropositiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

959
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os limites desta exposição não permitem uma apreciação aprofundada de nosso


objeto. Contudo, objetivamos aqui sinalizar alguns aspectos importantes quem vem sendo
abordados em nossa investigação. Analisar a história da aids sob a perspectiva de gênero
com ênfase na experiência evoca inúmeras questões e o casamento emerge como um
norteador da relação entre os modelos de comportamento e a concretude da experiência.

FONTES

‘A representação Social da Aids – A fala dos comprometidos: ONGs e Aids no Brasil'.


Departamento de Arquivo e Documentação/COC/FIOCRUZ, 1998). Coordenação:
Dilene Raimundo do Nascimento.

M., Juliette. Por que eu? Confissões de uma mulher de hoje. São Paulo: Círculo do livro,
1990.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de


DST/Aids. Boletim Epidemiológico - Aids e DST. Ano I - nº 1 - até semana
epidemiológica 52ª. 1994-1998.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, Verena. LITERATURA E AUTOBIOGRAFIA: a questão do sujeito na


narrativa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 7, 1991, p. 66-81.

BARATA, Germana F. A primeira década da Aids no Brasil, op. cit., 2006.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO,


Janaina. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998.

DIAS, Cláudio José Piotrovski. A trajetória soropositiva de Hebert Daniel (1989-1992).


Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da
Saúde – Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2012.

GOFFMAN, Erving. Estigma-Notas sobre a Manipulação da Identidade deteriorada.


Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.

GOMES, Angela de Castro (org). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2004. Introdução, p. 7-24.

FERNANDES, Tania. Ouvindo histórias e memórias: o depoimento oral como fonte. In:
FRANCO, Sebastião Pimentel e NASCIMENTO, Dilene Raimundo do. Uma história
brasileira das doenças. Volume 6. Vitória: Fino Traço, 2016.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

960
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

NASCIMENTO, Dilene Raimundo do. As pestes do século XX: tuberculose e Aids no


Brasil, uma história comparada. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.

PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. 2ª
ed. Florianópolis: UFSC, 1998.

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005.

POLLAK, Michael. Os homossexuais e a Aids: sociologia de uma epidemia. Op. cit.,


1990.

PORTELLI, A. A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas


memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, v.1, n.2, pp.59-72, 1996.

SONTAG, Susan. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. 3a.
Edição.

________. AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

MARTINS, Ana Paula Vosne. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos
XIX e XX [online]. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004, 287 p. História e Saúde
collection. ISBN 978-85-7541-451-4. Available from SciELO Books
<http://books.scielo.org>.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

961
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Operando o cérebro”: a psicocirurgia em periódicos da grande mídia no Brasil


nas décadas de 1940 e 1950

ELIZA TEIXEIRA DE TOLEDO


PPGHCS – COC/Fiocruz

Em 1965 o jornalista Irving Wallace publicou em seu livro O Cavalheiro de


Domingo artigos sobre diversos temas referentes à arte e à política correntes naquele
contexto. Entre eles, o escritor estadunidense republicou um texto divulgado em 1951 no
jornal The Saturday Evening Post, que abordava o uso da lobotomia nos Estados Unidos.
Primeiramente intitulado “Amputaram-lhe a consciência” o artigo foi publicado pelo
jornal com o título “A operação de último recurso” (considerado “mais inofensivo”, nas
palavras de Wallace). Nele o escritor afirmava que nos Estados Unidos, até o ano de 1951,
cerca de 20 a 30 mil lobotomias haviam sido realizadas e expunha alguns argumentos,
sobretudo médicos, contra e a favor da cirurgia.
Diante desses debates, Wallace se debruçou sobre a história de Larry397,
lobotomizado em uma clínica particular dos Estados Unidos, com o intuito de analisar os
motivos que o levaram à cirurgia e seus resultados para a vida do paciente e para os do
seu entorno. Segundo o autor, o trabalho rendeu “uma montanha de correspondência” de
leitores. Médicos, padres e familiares de pacientes que haviam passado pela cirurgia
escreviam a Wallace discutindo a legitimidade da operação e contando histórias de
pessoas próximas que haviam sido lobotomizadas. Ainda segundo o escritor, o jornal lhe
informara que seu artigo encontrava-se entre os 2 ou 3 trabalhos que “mais controvérsia
tinham provocado nos últimos dez anos” (WALLACE, 1965: 195).
O retorno por parte dos leitores ao artigo de Irving Wallace nos indica que o tema
atraía a atenção da sociedade em seu país e que dividia opiniões, já no momento em que
a lobotomia era utilizada398. Mas o que sabemos em relação a essa cirurgia no Brasil? A
sua chegada e aplicação em nosso país é ainda pouco conhecido e pouco trabalhada pela

397
Nome ficcional escolhido pelo autor para preservar a identidade do paciente.
398
Segundo Collins e Stam (2014), a “era de ouro” da terapêutica aconteceu entre 1945 e 1956, período
que marca o pós Segunda Guerra e vai até o lançamento da Clorpromazina, antipsicótico sintetizado na
França em 1950 e cujo efeito terapêutico semelhante ao ansiado pela psicocirurgia estaria ligado ao seu
declínio. O fim desse período teria também sido marcado pelo aumento da crítica à cirurgia por alguns
médicos, incluindo aí alguns de seus praticantes.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

962
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

historiografia. Uma forma de acessar parte dessa história é recorrer às publicações sobre
o tema que ocuparam as páginas de jornais e revistas no Brasil. Esse artigo intenciona,
então, escrever uma parte da história da psicocirurgia no país a partir dos discursos
divulgados sobre a tema em publicações da grande mídia brasileira.

A PSICOCIRURGIA E SUA CHEGADA AO BRASIL

Antes de recorremos às fontes midiáticas e os discursos ali divulgados envolvendo


a temática em questão, faz-se necessário elucidar a terminologia que será aqui mobilizada.
Utilizo a designação psicocirurgia por ser um termo que comporta diferentes variações
da técnica cirúrgica divulgada pelo neurologista português Egas Moniz em 1936, a
leucotomia pré-frontal. Esse termo foi utilizado por trabalhos médicos no período
estudado, em fontes clínicas (como os prontuários), e é também empregado pela
historiografia contemporânea. Nele se inserem a lobotomia pré-frontal (aplicada pelo
psiquiatra Walter Freeman e pelo neurocirurgião James Watts nos Estados Unidos em
1936) e a lobotomia transorbitária (desenvolvida por Freeman nos Estados Unidos em
1946), além de variações dessas técnicas, como a “leucotomia em três tempos”, do
médico paulista Mário Yahn399. As duas primeiras técnicas extraem na substância branca
do cérebro, feixes de associação com centros afetivos diencefálicos, a primeira centrada
no o lobo-frontal e a segunda no eixo lobo-frontal-tálamo (MASIERO, 2003). Em 1946,
mobilizando estudos do neurologista italiano Fiamberti, Freeman desenvolveu a chamada
“lobotomia transorbitária”, que acessava o córtex frontal através da órbita ocular (RAZ,
2013). Psicocirurgia designa então, de maneira geral, o uso de métodos cirúrgicos em um
cérebro anatomicamente normal para o tratamento de doenças mentais e comportamentos
inadequados (MASIERO, 2003; RAZ, 2013).

399
Na leucotomia em três tempos – divulgada pelo psiquiatra do Hospital do Juquery (em São Paulo) Mário
Yahn em 1948 –, o lobo pré-frontal era dividido em quatro quadrantes: superiores (direito e esquerdo) e
inferiores (direito e esquerdo). O primeiro tempo era feito no quadrante inferior direito e o segundo no
quadrante inferior esquerdo. Não dando resultado, operava-se os dois quadrantes superiores (terceiro
tempo) de uma só vez (Em “Mário Yahn”, biografia da Academia de Medicina de São Paulo. Disponível
em http://www.academiamedicinasaopaulo.org.br/biografias/188/BIOGRAFIA-MARIO-YAHN.pdf).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

963
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Recorrendo novamente ao texto de Wallace como pontapé para a análise histórica


aqui proposta, notamos que na década de 1950 o alcance da psicocirurgia em nível
internacional já era conhecido em seu país. Como o autor aponta, o vasto uso da
terapêutica foi confirmado na Primeira Conferência Internacional de Psicocirurgia,
realizada em Lisboa em 1948. Nessa ocasião foram apresentados, de acordo com Wallace,
oito mil casos de lobotomia realizadas em diversas regiões do mundo, “tais como a Índia,
a Suécia, a Tchecoslováquia, a Nova Zelândia e o Japão” (WALLACE, 1965: 189). Essa
afirmação está de acordo com o que Brianne N. Collins e Henderikus J. Stam afirmam
em recente trabalho sobre a psicocirurgia em perspectiva transnacional: oito mil casos de
operações foram apresentados para discussão durante a conferência, em trabalhos
apresentados por mais de 20 nações (COLLINS e STAM, 2014).
Entre os países nos quais a lobotomia encontrou terreno fértil para seu
desenvolvimento, estava também o Brasil. Sabe-se ainda que o trabalho de Egas Moniz
recebeu rapidamente atenção dos médicos no país, recepção que é analisada na tese em
processo de escrita400. Por ora, podemos afirmar que foi Aloysio Mattos Pimenta (1913-
1987)401 que praticou a primeira leucotomia pré-frontal realizada fora de Portugal, um
mês antes da primeira aplicação feita por Freeman e Watts nos Estados Unidos
(MASIERO, 2003; COLLINS e STAM, 2014). Sabemos também que o Hospital
Psiquiátrico do Juquery, no Estado de São Paulo, essas operações cerebrais tiveram
grande aplicação entre os pacientes, especialmente mulheres, entre as décadas de 1940 e
1950402. Essas informações foram publicadas por André Luis Masiero (2003) e vêm sendo
confirmadas em minha pesquisa de doutorado por meio de análise de registros clínicos
do hospital, publicações médicas do contexto e as fontes midiáticas.

400
A pesquisa de doutorado intitulada "As psicocirurgias no Brasil (1936-1956): uma análise histórica sobre
intervenções cirúrgicas no tratamento de pacientes psiquiátricos" é orientada pela Profa. Dra. Cristiana
Facchinetti. O projeto visa dar um panorama histórico sobre a prática psiquiátrica em relação a sua chegada
ao Brasil e uso, em especial no Hospital Psiquiátrico do Juquery entre fins da década de 1930 (quando a
primeira cirurgia foi praticada no Brasil) e meados da década de 1950. O marco final dessa periodização é
justificado pelo decrescimento das operações em função do lançamento de um psicofármaco de terapêutica
semelhante e que não incorria no processo invasivo e irreversível da leucotomia e suas variações – a
Clorpromazina.
401
Neurocirurgião do Hospital Psiquiátrico do Juquery, nascido na Baixada Fluminense.
402
A tese em questão comporta também uma análise de gênero que intenciona esclarecer o uso assimétrico
da terapêutica em pacientes do sexo feminino e masculino.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

964
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Recorro aqui a estas últimas com o intuito de traçar o que era divulgado sobre
psicocirurgia no Brasil no contexto de sua utilização. Uma vez que os impressos são
“produtos forjados a partir de representações contextualizadas das realidades”, eles são
fontes históricas que nos permitem aceder a memória de grupos que viviam no contexto
das publicações e nos indicam “formas simbólicas de luta pelo poder de representar”
(CALONGA, 2012: 85).
Os periódicos mobilizados para esse artigo são jornais e revistas de São Paulo e
do Rio de Janeiro, nos quais a temática aparece mais intensamente entre fins da década
de 1940 e primeiros anos da década de 1950403, momento no qual a psicocirurgia ganhou
maior atenção internacional e da mídia leiga em função de ter sido condecorada com o
prêmio Nobel em 1949. O Estado de São Paulo tem aparecido nas fontes como centro
privilegiado do uso da cirurgia no Brasil e os periódicos cariocas têm se destacado pela
grande quantidade de publicações que nos esclarecem, inclusive, sobre o envolvimento
dos médicos paulistas com a terapêutica.

PUBLICAÇÕES SOBRE A PSICOCIRURGIA NA GRANDE MÍDIA

Como bem aponta Maurilio Dantielly Calonga, a imprensa escrita enquanto fonte
documental anuncia discursos e expressões e por meio deles podemos verificar “como os
meios de comunicação impressos interagem na complexidade de um determinado
contexto” (CALONGA, 2012: 82). Ainda para esse autor, os discursos da imprensa são
capazes de nos permitir o acesso ao nível “básico” das relações sociais e, citando Le Goff,
nos lembra que tais discursos são produtos da sociedade que os fabricou segundo as
relações de poder que vigoravam em um determinado contexto (CALONGA, 2012).
Tânia de Luca, por sua vez, ressalta que os jornais “agregam pessoas em torno de ideias,
crenças e valores que se pretende difundir a partir da palavra escrita” (DE LUCA, 2006:
140). Nesse sentido, o que era divulgado ao grande público sobre a psicocirugia? Que
“valores” eram difundidos em relação a essa terapêutica? Que vozes estavam ali
presentes? Quem publicava esses discursos e de que maneira o fazia?

403
Todos os periódicos brasileiros citados nesse texto foram encontrados na Hemeroteca Digital Brasileira.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

965
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Encontramos publicações sobre a temática de maneira mais recorrente no


momento posterior à Conferência Internacional de Psicocirurgia em 1948. O evento que
atraiu médicos dos cinco continentes gerou, com efetiva participação do comitê brasileiro
ali presente, a indicação de Egas Moniz ao prêmio Nobel pela elaboração da leucotomia.
Essa mobilização resultou no recebimento do prêmio por Moniz, no ano seguinte, na área
de Medicina / Fisiologia (CORREIA, 2014). A Conferência e o recebimento Da
condecoração internacional legaram grande atenção, também da mídia, à técnica que já
ocupava páginas de jornais em momento anterior, mas sem a mesma proficuidade.
O texto “Egas Moniz, Prêmio Nobel de Medicina pelo Dr. Paulo Niemeyer”
divulgado em novembro de 1949 na revista Ciência para Todos é bastante representativo
nesse sentido. Nele, Paulo Niemeyer (1914-2004)404 aborda diversos aspectos da prática
psicocirurgia no Brasil. Em primeiro lugar, o neurocirurgião chama atenção paras as
notícias recentes que chegaram da Europa informando que o recebimento do prêmio
Nobel por Egas Moniz, “encheu de orgulho o coração de portugueses e brasileiros, pela
admiração a simpatia que Egas Moniz goza no seio de nossa classe médica”.
Niemeyer vai além e fala sobre a influência dos médicos brasileiros na nomeação
do neurologista português durante o Congresso, afirmando que “Foi ao Brasil que coube
a honra de lançar a candidatura de Egas Moniz ao prêmio que acaba de receber”. Segundo
ele, no decorrer da última sessão científica do evento, a delegação brasileira composta
dos Drs. Pacheco e Silva, Paulino Longo, Mario Yahn, Mattos Pimenta, Anibal Silveira,
Élio Simões e Antônio Carlos Barreto apresentou a moção que levaria o neurologista a
receber o primeiro Nobel dedicado a uma personalidade de língua portuguesa.
É interessante notar que Niemeyer procurava também esclarecer como se chegou
à premiada terapêutica. Ele escreve que

A hipótese de que as funções mentais relacionavam-se aos lobos


frontais do cérebro, confirmada pela ocorrência de alterações de
conduta e outras perturbações nos indivíduos que sofriam traumatismos
e destruição desses lobos, e ainda as alterações surgidas em um doente

404
Neurocirurgião carioca, é apresentado no artigo como “figura exponencial da medicina brasileira, chefe
dos Serviços de Neurocirurgia no Hospital de Pronto Socorro e na Santa Casa de Misericórdia e que tem
utilizado em nosso meio às descobertas de Egas Moniz. (...) possui grande experiência em leucotomia
cerebral, que há vários anos vem praticando em nossos serviços e na sua clínica”.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

966
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de R. Brickner que sofreu a extirpação dessas regiões do cérebro


levavam Egas Moniz a pensar em agir cirurgicamente sobre os lobos
pré-frontais para o tratamento dos doentes mentais (Ciência para todos,
Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1949, p.11).

O médico brasileiro descreve então que Moniz procurou interromper as fibras


nervosas que partem dos lobos pré-frontais, utilizando inicialmente injeções de álcool
para fazê-lo e, posteriormente, destruindo com um aparelho denominado leucótomo,
dando origem à leucotomia pré-frontal. Ainda segundo Niemeyer, milhares de doentes
em todo o mundo gozavam de resultados “altamente satisfatórios”405 da operação que
visava também tratar dores crônicas causadas por cânceres incuráveis. Interessante notar
que, segundo esse médico, a leucotomia teve inicialmente maior aceitação em São Paulo,
“especialmente pelos cirurgiões e psiquiatras do hospital de Juqueri, que a praticaram em
larga escala” (Ciência para todos, Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1949, p. 11).
Apesar de toda a atenção legada à terapêutica após o Nobel 406, é relevante
considerar que alguns periódicos de grande circulação procuravam entender a lógica da
cirurgia que era aplicada também no Brasil, levantando debates acerca de seus pontos
positivos e também de seus riscos, antes mesmo do prêmio. Podemos inferir que os jornais
e revistas expressavam em determinadas matérias uma preocupação (ou, ao menos, uma
curiosidade) por parte do público leigo em compreender o funcionamento, os benefícios
e os perigos que a cirurgia poderia acarretar.
A revista Eu sei tudo, em 4 de setembro de 1947, falava sobre a cirurgia de
“extrema delicadeza e dificuldade”. Na mesma revista, em edição de outubro de 1950, o
artigo “Lobotomia: cirurgia da angústia” informava que o processo terapêutico da cirurgia
que recairia não sobre a doença, mas sobre os sintomas. A esquizofrenia, contudo (que
compreenderia "boa parte da psiquiatria: demência precoce, mania, delírio”), aparecia

405
Entre esses casos, Niemeyer cita o de pacientes operados por ele no Hospital da Ordem 3ª da Penitência
e na Casa de Saúde Dr. Eiras. Os resultados foram, em suas palavras, compensadores, proporcionando-lhe
“o prazer de ver voltar ao convívio de suas famílias muitos doentes considerados incuráveis e que pareciam
destinados a terminar seis dias nos hospícios”.
406
Em pesquisa na Hemeroteca Digital Brasileira não foram encontrados jornais que divulgassem o tema
“lobotomia” ou “psicocirurgia” na década de 1930-39. Na década de 1940-49, com o descritor “lobotomia”
foram encontrados 9 jornais paulistas abordando o tema e 53 jornais cariocas. Em 1950-59 foram
encontradas duas referências em jornais paulistas e 133 em jornais do Rio de Janeiro. Nessa mesma década
há 120 jornais menções em jornais cariocas com o descritor “psicocirurgia” (que não gera nenhum resultado
nas décadas de 1930 e 1940), mas nenhuma em jornais de São Paulo.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

967
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

como patologia que teria resultados inconstantes com a cirurgia: ao lado de “êxitos
brilhantes”, “números reveses” (Eu sei tudo, 34º ano, n.º 5, outubro de 1950, p. 17).
Na última matéria citada estão presentes dois debates retomados pela
historiografia sobre o tema nos Estados Unidos e que compõem minha pesquisa em
relação às fontes clínicas: que muitas vezes o “bom” resultado da cirurgia não era a cura
da doença, mas a supressão de sintomas (sobretudo a agressividade/ agitação em pacientes
considerados mais violentes). Outro ponto é que a esquizofrenia – que figurou como
psicopatologia que mais recebeu aplicações da psicocirurgia nos Estados Unidos
(BRASLOW, 1997; RAZ, 2013) – mostrou-se uma doença que, também no Brasil,
parecia encontrar na psicocirurgia uma esperança terapêutica. Isso se reflete na fala de
Henrique Roxo, publicada no Jornal do Brasil em 28 de setembro de 1947. No texto que
abordava possibilidades para o problema da superlotação nos hospitais psiquiátricos
brasileiros, Roxo dizia que a “operação de Egas Moniz” acenava “com grandes
esperanças de cura em muitos casos de esquizofrenia”.
Recorrendo brevemente a publicações médias, podemos notar que os jornais
faziam coro a algumas das ideias divulgadas pelos médicos praticantes da psicocirurgia
nas décadas de 1940 e 1950407. Em relação à determinação das indicações para a prática
psicocirúrgica, vale a pena a transcrição de um trecho da obra Tratamento Cirúrgico das
Doenças Mentais (1951), onde Mário Yahn, Aloysio Mattos Pimenta e Afons Sette Jr.,
médicos do Juquery, publicaram resultados das aplicações feitas naquele hospital ao
longo da década de 1940. No capítulo Sobre a leucotomia pré-frontal de Egas Moniz408,
lemos que

Apesar de número relativamente grande de doentes já operados, ainda


não se formou conceito sólido sobre as indicações da neurocirurgia para
o tratamento de distúrbio mentais. Agindo sobre vias nervosas que
relacionam centros encefálicos diversos, é admissível que a intervenção
não atue em grupos mórbidos propriamente ditos mas sobre
manifestações sintomáticas (YAHN et al., 1951: 18).

407
Muitos deles nos periódicos médicos Arquivos de Assistência a Psicopatas do Estado de São Paulo e
Arquivos de Neuro-Psiquiatria.
408
Anteriormente publicado como artigo por Yahn em Arquivos de Neuro-Psiquiatria (S. Paulo), vol. IV,
n.º 3, Set. 1946.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

968
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ressaltamos também que diversos trabalhos foram publicados sobra as


experiências operatórias e seus resultados, desde a publicação de Tentatives óperatoires
dans le traitement de certaines psychoses por Egas Moniz em 1936. Ainda que nessa obra
Moniz tenha atestado que a porcentagem de melhora em casos de esquizofrenia foi menor
que 30%, os estudos que se seguem à divulgação da leucotomia e da experimentação de
novas técnicas demonstram a possibilidade (ou a esperança) terapêutica para esse grupo
nosológico. Assim, em publicações como o artigo Lobotomia transorbitária: resultados
obtidos em 54 pacientes tratados em Hospital Privado (1956), publicado por Paulino
Longo e colaboradores409 tem-se que “Especialmente as neuroses obsessivas, as
depressões ansiosas e as esquizofrenias paranoides constituíram as formas clínicas com
melhores resultados” (LONGO et al., 1956: 282). É relevante ainda notar que no quadro
de “formas clínicas” nas quais foram feitas as intervenções com a lobotomia
transorbitária, há cinco grupos de esquizofrenia, precisamente: esquizofrenia paranóide
(18 casos), esquizofrenia catatônica (6 casos), esquizofrenia hebefrênica (1 caso),
esquizofrenia simples (6 casos) e reação esquizofrênia (2 casos), compondo 33 casos dos
54 analisados pelos autores410.
Os reveses que poderiam decorrer da utilização da psicocirurgia, contudo,
aparecem de maneira tímida nos artigos da grande imprensa. No artigo de título “Já se
pratica no Brasil a lobotomia pré-frontal” do Jornal do Brasil de 7 de fevereiro de 1948,
o Diretor da Faculdade Nacional de Medicina, professor Alfredo Monteiro, informava
que a psicocirurgia era praticada por alguns neurocirurgiões brasileiros e apresentava
“resultados animadores em certas psicoses”. Perguntado sobre modificações de
temperamento que a cirurgia poderia acarretar, Monteiro afirmava que já era sabido que
tumores do lobo frontal modificavam o comportamento do indivíduo. Assim, segundo
ele, seria fácil “compreender que uma intervenção neste lobo frontal acarretar variações
de personalidade” (Jornal do Brasil, 7 de fevereiro de 1948). A tão debatida mudança de

409
Longo era professor de Clínica neurológica da Escola Paulista de Medicina e Diretor Clínico do Serviço
de Neuro-Psiquiatria do Instituto Paulista. Seus colaboradores nessa publicação são Joy Arruda e J.
Armbrunst Figueiredo, psiquiatra e assistente no mesmo Instituto, respectivamente.
410
As outras “formas clínicas” citadas no estudo são: psicose maníaco-depressiva (4 casos), personalidade
psicopática (4 casos), psicose de involução (3 casos), neurose obsessiva (7 casos), depressão ansiosa (2
casos) e arteriorclerose cerebral (1 caso).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

969
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

personalidade – que aparece como sequela pós-operatório no texto de Irving Wallace –


estava também presente no discurso médico difundido pelo periódico no Brasil, ainda que
de maneira amenizada.
Destaco ainda, como outro resultado parcial da analise às fontes midiáticas no
Brasil, a divulgação de diversas notícias sobre o tema originalmente publicadas em
jornais nos Estados Unidos. É o caso, por exemplo, do jornal O Diário de Notícias, que
informava em 11 de janeiro de 1947 sobre o “Novo método para curar a loucura”, a
lobotomia pré-frontal. Na matéria lê-se que no Hospital de Spring-Grove, em Maryland,
a lobotomia teria restituído o “juízo normal” a 15 enfermos “considerados incuráveis”. O
jornal A Noite, por sua vez, noticiava em 3 de maio de 1948 informações de Chicago
sobre “Cura quase instantânea do vício de narcóticos” pela lobotomia pré-frontal. A
operação, segundo o artigo, vinha se mostrando “útil no alívio a certos tipos de doença e
a dores insuportáveis – ou ao medo da dor”. No jornal Diário de Notícias, em 6 de
setembro de 1947, divulgava-se no quadro “Para todos. Sugestão de enfermidade” que
professores da Universidade Washigton declaravam ter realizado a lobotomia pré-frontal,
“uma operação do cérebro que libera os pacientes das sensações de angústia e temor – em
pessoas portadoras de moléstias crônicas”.
Notamos, assim, que o tom otimista na divulgação das notícias sobre a
psicocirurgia, prevaleceu no Brasil, de maneira próxima ao que Mical Raz (2013)
observou em relação aos Estados Unidos. Em relação à análise de Raz, a autora afirma
que a disseminação da psicocirurgia como um tratamento miraculoso pela grande mídia
foi um dos fatores de sustentação social da terapêutica. Para ela, os familiares de pacientes
que recorreram à psicocirurgia e que ainda não tinham nenhuma forma de saber os riscos
que a mesma implicava, optavam por utilizá-la pautando-se não apenas por conselhos
médicos mas também por discursos médicos favoráveis à operação disseminados em
jornais e revistas.
Por fim, e esclarecendo o tom laudatório que acompanhou a maior parte das
publicações sobre a temática em impressos de grande circulação no Brasil, cito um trecho
divulgado na revista Eu Sei Tudo em outubro de 1950:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

970
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A lobotomia está, é verdade, em seu princípio, e numerosos são, já


agora, os aperfeiçoamentos e as extensões previstas em sua técnica.
Mas não devemos esquecer o próprio princípio de uma cirurgia das
enfermidades mentais e o fato de que, com um pouco mais de
conhecimento, poderemos, sem dúvida, operar o cérebro como já
operamos o fígado, o coração e os pulmões. Os que conhecem de perto
a extrema miséria dos enfermos mentais esfregarão as mãos felizes por
ver nascer uma técnica nova que acabará com o martírio de grande
número de indivíduos que perderam essa saúde tão importante como a
do corpo: a saúde mental (Eu sei tudo, 34º ano, n.º 5, outubro de 1950,
p. 18).

Em um momento no qual as especialidades médicas, de maneira geral, tinham


acesso ao tratamento e mesmo a cura de patologias por meio de diagnóstico localizado e
intervenções cirúrgicas, a psicocirurgia acenava como terapêutica equivalente em relação
às moléstias mentais. Assim, a “lobotomia” (ou ainda a leucotomia e outras variações,
que foram diversas vezes tratadas sobre esse termo) era divulgada com esperança para o
arsenal terapêutico da psiquiatria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do texto procurei demonstrar que o mapeamento do que foi divulgado


pela mídia popular é uma das formas de acessar o que a população leiga recebia como
informação em relação a determinada temática e em determinado contexto. Nesse sentido,
a busca por notícias sobre a psicocirurgia no referido marco espacial (Rio de Janeiro e
São Paulo) e temporal (décadas de 1940 e 1950), nos dá subsídios para uma escrita da
história dessa prática em termos de discursos que intencionava-se levar ao grande público.
A partir de pesquisa ainda incipiente pudemos ver que, como no caso dos Estados
Unidos, a psicocirurgia também virou notícia no Brasil. Vimos como a imprensa, embora
divulgasse algumas complicações inerentes à cirurgia, manteve um tom otimista em
relação à terapêutica. O recebimento do Nobel por Egas Moniz em 1949 contribuiu com
esse caráter enaltecedor nas publicações por meio de uma postura laudatória em relação
à psicocirurgia. Essa postura era ainda acompanhada pela exposição da proximidade de
Egas com médicos brasileiros, destacando ao mesmo tempo a participação de vários
desses na indicação do médico português ao prêmio.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

971
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

De maneira semelhante ao que foi constatado por Mical Raz (2013) em relação
aos Estados Unidos, vemos no Brasil, até o momento, a difusão de um discurso “oficial”
que recorreu à opinião de “especialistas”. Esse discurso ressaltou a indicação da
terapêutica sobretudo para casos consideradas crônicos e a apontou como possível
esperança para o tratamento de pacientes com esquizofrenia.
Até o momento não foi encontrada nenhuma matéria, entre as décadas de 1940 e
50, que dessa voz a pacientes ou pessoas próximas a casos de aplicação de cirurgia. Como
vimos, as reportagens recaem sobretudo sobre a explicação do processo terapêutico que
se daria com a cirurgia, suas indicações e possíveis contratempos. Os escritos da grande
mídia não acessam os pacientes e suas histórias, o que a pesquisa pretende explorar, ainda
que de maneira muito concisa em relação à massa documental à qual temos acesso.
É também relevante destacar que não encontramos ainda divulgação de críticas
contemporâneas à terapêutica, como as feitas por Nise da Silveira (FERNANDES, 2015),
nesses periódicos. Nesse sentido, e de maneira semelhante ao que Raz (2013) constatou,
podemos afirmar que os impressos da grande mídia aos quais tivemos acesso
contribuíram com a popularização da narrativa médica, uma narrativa que tendeu à
promoção de benefícios atribuídos à cirurgia.
Destaco, por fim, que a psicocirurgia é ainda tema de acalorados debates na mídia.
Encontramos hoje, não apenas em veículos de grande mídia mas em publicações pessoais,
como blogs, debates sobre casos encontrados no passado, matérias jornalísticas que
procuram compreender a lógica que possibilitou seu uso e referências a sua utilização
atualmente. Dessa forma, acredito que a história da psicocirurgia é um caminho essencial
para a compreensão de uma parte da história da psiquiatria no mundo e no Brasil, nos
auxiliando a compreender a racionalidade terapêutica que permitiu sua utilização e
contribuindo para a historicização de doenças e dos tratamentos médicos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASLOW, Joel. Mental Ills and Bodily Cures: Psychiatric Treatment in the First Half
of the Twentieth Century. University of California Press, 1997.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

972
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CALONGA, Maurilio Dantielly. O jornal e suas representações: objeto ou fonte da


história? Comunicação & Mercado/UNIGRAN - Dourados - MS, vol. 01, n. 02 – edição
especial, p. 79-87, nov. 2012.

CORREIA, Manuel. Egas Moniz e os seus colegas no Brasil: a arquitetura de um Prêmio


Nobel. ComCiência, Campinas, n. 164, dez. 2014 . Disponível em
<http://comciencia.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-
76542014001000009&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 24 de novembro de 2016.

RAZ, Mical. The Lobotomy Letters: The Making of American Psychosurgery. University
of Rochester Press, 2013.

FONTE LITERÁRIA

WALLACE, Irving. Cortaram-lhe a consciência. In: O Cavalheiro de Domingo. São


Paulo: Círculo do Livro, 1965, p. 159-207.

FONTES – PERIÓDICOS

“Como evitar a superpopulação nos asilos de alienados. Fala ao “Jornal do Brasil” o


Professor Henrique Roxo indicando os meios que lhe parecem eficientes para resolver o
momentoso problema”. Jornal do Brasil, 28 de setembro de 1947.

“Cura quase instantânea do vício de narcóticos”. A Noite, 3 de maio de 1948.

“Já se pratica no Brasil a lobotomia pré-frontal. Fala sobre o assunto o Diretor da


Faculdade Nacional de Medicina” (entrevista a Alfredo Monteiro). Jornal do Brasil, 7 de
fevereiro de 1948.

“Lobotomia: a cirurgia da angústia”. Eu sei tudo, 34º ano, n.º 5, outubro de 1950, p. 17-
18.

NIEMEYER, Paulo. “Egas Moniz, Prêmio Nobel de Medicina pelo Dr. Paulo Niemeyer”.
Ciência para Todos, Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1949, p.11.

“Novo método para curar a loucura”. Diário de Notícias, 11 de janeiro de 1947.

“Para todos. Sugestão de enfermidade”. Diário de Notícias, 6 de setembro de 1947.

FONTES – PUBLICAÇÕES MÉDICAS

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

973
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

LONGO, Paulino W.; ARRUDA, Joy; ARMBRUST FIGUEIREDO, J.. Lobotomia


transorbitária: resultados obtidos em 54 pacientes tratados em hospital privado. Arq.
Neuro-Psiquiatr., São Paulo , v. 14, n. 4, p. 273-284, Dec. 1956 Disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-
282X1956000400001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 18 ago. 2017.

MONIZ, Egas. Tentatives óperatoires dans le traitement de certaines psychoses. Maison


& Cie éditeurs, Libraires de l’Académie de Médicine, 1936.

YAHN, Mário; A. MATTOS, Pimenta; JUNIOR, Afonso Sette. Tratamento cirúrgico


das moléstias mentais (leucotomia). São Paulo: Universidade de São Paulo – Faculdade
de Medicina, 1951.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

974
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Assistência à saúde na capital da Província do Rio de Janeiro: a Casa de Saúde


Niteroiense (1858-1969)

ELIZABETE VIANNA DELAMARQUE


PPGHCS – COC/Fiocruz

CASA DE SAÚDE NITEROIENSE: CARIDADE OU OPORTUNIDADE DE


NEGÓCIO?

A proximidade de Niterói com a capital do império fez com que durante muitos
anos os doentes daquela localidade fossem tratados nas dependências do Hospital da
Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Tal realidade começa a ser questionada e
modificada, gradativamente, com a inauguração da Casa de Saúde Niteroiense no fim dos
anos 1850. É importante assinalar que a assistência à saúde oferecida por este
estabelecimento, provavelmente, não era a única oferecida na Província, visto que
serviços médicos e de outros profissionais da área de saúde eram ofertados em periódicos
de ampla circulação.
As primeiras casas de saúde surgiram na Corte e em Niterói nos anos de 1820,
expandiram-se na década seguinte, mas com maior expressividade a partir da segunda
metade do século XIX e configuravam-se como mais um espaço de cura que a população
poderia recorrer, especialmente aqueles que dispunham de meios para custeá-las.
Segundo Santos Filho (1991, p. 474), as casas de saúde eram pequenos hospitais
particulares leigos, “não pertencentes a Irmandades ou Sociedades Beneficentes, mas de
propriedade de médicos e por eles administrados” (SANTOS FILHO, p. 474). Todavia,
algumas destinassem horários ao atendimento dos pobres, e outras fossem subsidiadas
pela municipalidade e presidência da província do Rio de Janeiro, a exemplo das Casas
de Saúde Niteroiense (capital da Província) e Nossa Senhora da Ajuda (Corte).
Cabe aqui tentarmos identificar quais foram as motivações para criação da Casa
de Saúde Niteroiense, posteriormente Hospital de São João Baptista; os principais
argumentos utilizados para o recebimento de subsídios provinciais; os atores sociais
envolvidos em sua criação, gestão e prática médica; e o perfil da população que recorria
ao atendimento, bem como as enfermidades que mais acometiam este público.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

975
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Em outubro de 1858, periódicos da Corte e de Niterói anunciavam a inauguração


da Casa de Saúde de São Sebastião, situada à Rua da Pampulha, próxima à ponte das
barcas de São Domingos, sob a direção do médico espanhol Epifanio Astudillo y
Bussoms, formado pela Faculdade de Medicina de Madri (LAEMMERT, 1859; A CASA
DE SAÚDE DE S. SEBASTIÃO EM NITERÓI, 1858). Suas propagandas ressaltavam a
localização aprazível e as categorias de instalações do estabelecimento, que contava com
quartos particulares, enfermarias gerais e dependências para escravos, cujos preços
estavam em consonância com os praticados na Corte. Havia, também, uma oficina da
farmácia, a qual estava sob responsabilidade de farmacêutico devidamente autorizado
para o exercício da função. Assim como diversas casas de saúde da Corte, destinava o
horário das 9h às 10h da manhã ao atendimento aos pobres. Oferecia-se assinaturas aos
operários e artistas, sob o argumento de que eram os que mais padeciam na ocorrência
das epidemias, por meio da quantia de 1$000 mensais para o tratamento de qualquer
doença, o que não incluía os procedimentos cirúrgicos. O serviço de clínica médica era
responsabilidade dos facultativos Dr. João José Pimentel e Dr. José Martins Rocha,
coadjuvados pelo médico e lente catedrático de medicinal legal da Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro, Dr. Francisco Ferreira de Abreu (COC, s/d).
Assim como bem assinalou Gonçalves (2011), vários proprietários de casas de
saúde da Corte explicitavam o nome dos médicos que prestavam atendimento, sobretudo
aqueles que pertenciam à elite médica, com o fim de valorizar o seu estabelecimento. Tal
estratégia foi adotada por Epifanio Astudillo y Bussoms, que fez questão de ressaltar que
havia um professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro prestando assistência em
sua casa de saúde, o que talvez fosse um meio para angariar clientes. No entanto, José
Martins Rocha não permaneceu como médico da Casa de Saúde de São Sebastião por
muito tempo, visto que no anúncio pulicado no Almanaque Laemmert, no ano seguinte,
constam os nomes de José Alves Machado e Domingos Bernardino d'Almeida como os
responsáveis pelos serviços médico e cirúrgico.
Pelo que foi possível notar, pouco tempo após os primeiros anúncios da Casa de
Saúde de São Sebastião serem publicados, os médicos Dr. João José Pimentel e Dr. José
Martins Rocha recorreram aos periódicos para comunicarem que não compunham mais o
corpo médico da referida casa de saúde, “por justos motivos, e principalmente para
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

976
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

manterem seu crédito, julgaram conveniente desligarem-se daquele compromisso”


(COMUNICADO, 1858, p. 1), e fundaram a Casa de Saúde Niteroiense nos últimos dias
de dezembro de 1858.
Ao que tudo indica, os doutores Pimentel e Martins Rocha deixaram de trabalhar
para a casa de Saúde de São Sebastião quando constaram que o seu proprietário, Epifanio
Astudillo y Bussoms, não apresentava licença para exercer a medicina no Brasil, visto
que fora reprovado no exame de suficiência para validação do diploma na Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro. Tal situação caracterizava-se como exercício ilegal da
medicina, um dos grandes problemas enfrentados pelos órgãos fiscalizadores da saúde
pública durante todo o século XIX (SAMPAIO, 2001). Somou-se a isso, o fato de
Epifanio solicitar participação dos facultativos no sustento da casa de saúde.
Ao lermos as atas das sessões da Assembleia Legislativa Provincial, nos
deparamos com a súplica de Pimentel e Martins Rocha para firmarem um contrato com a
Província do Rio de Janeiro, por meio de um auxílio financeiro, com o fim de tratar os
indivíduos pobres na Casa de Saúde Niteroiense, a qual, desde a sua fundação, em
dezembro de 1858, destinava cinco leitos ao atendimento médico e cirúrgico dos
desvalidos. Objetivava-se equiparar a Casa de Saúde Niteroiense às casas de caridade já
existente em outros pontos da província, ou seja, deveria ser concedida, em benefício do
estabelecimento, a extração de uma loteria anual por cinco anos. Tal solicitação era
justificada, segundo os seus requerentes, pelo fato da capital da província não dispor de
estabelecimento de caridade, diferente de outras cidades e vilas menos importantes, tendo
o habitante de Niterói que atravessar a baía e buscar atendimento no Hospital da Santa
Casa da Misericórdia da Corte, o que acabava, também, por sobrecarregar este.
Tentavam fortalecer os seus argumentos ao alegarem que o estabelecimento não
traria prejuízo algum aos cofres públicos, que pelo contrário, a municipalidade e o
governo da província teriam a sua disposição um estabelecimento público, cabendo aos
suplicantes fornecer meios para que o seu funcionamento fosse adequado, cogitava-se,
inclusive, instituir enfermarias especializadas ao atendimento de determinadas doenças,
como as de pele, por exemplo.
Ao analisarem a proposta dos suplicantes, as comissões de saúde pública e de
fazenda provincial da Província do Rio de Janeiro consideraram as alegações plausíveis,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

977
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

reconheceram as vantagens do contrato entre província e Casa de Saúde Niteroiense e


julgaram a como atendível. Em função disso, colocaram em votação proposta em que o
presidente da província contrataria aos proprietários da Casa de Saúde Niteroiense pelo
fornecimento de enfermarias gerais e especiais, que se destinariam ao tratamento, de
casos médicos e cirúrgicos, dos doentes pobres do município de Niterói. Para isso, a Casa
de Saúde Niteroiense seria equiparada às casas de caridade da província e receberia o
produto líquido de duas loterias, anualmente, que seria extraídas em seu benefício, bem
como a extração de uma loteria por ano, durante 5 anos, em benefício de sua sustentação.
Oposições ao projeto surgiram, especialmente por parte de José Fernandes
Moreira, que defendia a ideia de que a Casa de Saúde Niteroiense era um estabelecimento
de caráter particular que queria se manter às custas da Província. Julgava exagerado a
Assembleia Provincial conceder a uma casa de saúde privada mais loterias do que se
outorgava para aquelas de natureza inteiramente pública. Segundo o deputado provincial,
a Assembleia negara, no passado, a solicitação de loterias em benefício da casa de
caridade de São João da Barra, sob a alegação de não ser praticável extrair mais loterias
e por isso seria inoportuno conceder três loterias a uma casa de saúde particular.
Pelo que se percebe, Fernandes Moreira questionava a utilidade do projeto, que
era ferrenhamente defendida pelo parlamentar Figueiredo. Para Fernandes Moreira era
mais coerente conceder loterias para a construção de uma casa de caridade ao invés de
repassá-las a particulares, já que estes poderiam, em algum momento, deixar de trabalhar
a seu bel prazer. No entanto, a oposição assinalava que não era possível com a quantia
solicitada instalar hospital de caridade do zero e reiterava a importância de um
estabelecimento da natureza da Casa de Saúde Niteroiense na capital da província, desde
que elevado aos fins de uma casa de caridade, já que o seu atendimento não ficaria restrito
aos habitantes pobres desta localidade, mas se estenderia a toda província, e teria a
obrigatoriedade de prestar assistência aos indivíduos afetados por epidemia, o que era
visto como uma economia aos cofres públicos, afinal, alegavam que na epidemia de cólera
(1855), a província gastara o montante de 27:000$ para o socorro daqueles que não
podiam custear seu tratamento. Este último argumento foi rebatido por parte de Fernandes
Moreira por meio da alegação de que em períodos epidêmicos, proibia-se a admissão de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

978
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

doentes afetados pela moléstia reinante em hospitais e casas de saúde, sendo enfermarias
especiais estabelecidas para o seu tratamento.
De fato, um ano após a eclosão da epidemia de febre amarela (1849/50), o
Ministério dos Negócios Estrangeiros expediu comunicado à Junta Central de Higiene
Pública sobre a obrigatoriedade do transporte de doentes diagnosticados com febre
amarela a bordo para o Lazareto de Jurujuba, bem como a proibição da admissão desses
pacientes em hospitais e casas de saúde. Percebe-se que a restrição era em relação aos
pacientes embarcados e não aos demais acometidos pela doença epidêmica, embora ao
receberem estes, as casas de saúde devessem participar ao presidente da Junta.
Entre os que se opunham ao projeto, além de Fernandes Moreira havia F. A. de
Souza, que argumentava que o estado financeiro dos cofres provinciais não permitia o
custeio de um estabelecimento de caridade. Todavia, Figueiredo, apesar de reconhecer a
precária situação financeira da província, sinalizava que não se concederia dinheiro e nem
se pedia o adiantamento do produto de loterias, mas sim a extração de loterias, que só
correriam quando houvesse oportunidade.
O processo de aprovação do projeto iniciara nos primeiros dias de janeiro de 1859,
mas o contrato só foi outorgado na segunda quinzena de novembro do mesmo ano,
acredita-se que essa demora esteja relacionada à falta de consenso por parte dos votantes.
Tal contrato previa que no espaço de tempo de três anos, 1/5 dos leitos, em período não
epidêmico, seria reservado aos doentes pobres do município de Niterói e a terça parte em
momentos epidêmicos. A contrapartida do governo provincial seria a concessão do
produto líquido de uma loteria, o qual era pago em três prestações anuais, após a inspeção
e atesto do chefe de polícia, ao qual cabia a fiel observância de todas as condições do
contrato.
Nos anos subsequentes, o contrato firmado entre governo provincial e casa de
saúde Niteroiense foi renovado inúmeras vezes e acrescentaram-se ao rol dos atendidos
às custa da loteria, os africanos livres ao serviço das obras públicas, os praças enfermos
do corpo policial, os guardas nacionais designados para o serviço da guerra e os
voluntários da pátria. De acordo com os relatos de alguns presidentes da Província do Rio
de Janeiro, a inserção desses indivíduos para serem atendidos pela Casa de Saúde
Niteroiense gerara economia aos cofres públicos, sobretudo, no caso dos praças enfermos
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

979
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

do corpo policial, já que o edifício em que se localizavam as enfermarias, poderia ser


utilizado como casa de arrecadação.

O FUNCIONAMENTO DA CASA DE SAÚDE NITEROIENSE

A casa de saúde Niteroiense admitia enfermos, sem restrição de doença, com


exceção de moribundos, que procurassem o estabelecimento, a qualquer hora do dia ou
da noite, mas reservavam os horários de 8 às 10 da manhã e de 5 da tarde em diante para
as consultas gratuitas aos pobres. Os preços variavam conforme a dependência escolhida,
havia quartos particulares, enfermaria geral e aposentos destinados aos escravos. As
enfermarias podiam ser ocupadas tanto por pessoas livres quanto por escravos, mas eram
divididas de acordo com o sexo e a doença dos pacientes, característica comum das casas
de saúde desta época. Além das dependências internas, os pacientes tinham acesso à
chácara, onde podiam passear e ter acesso ao ar puro, podendo ajudar no
restabelecimento. O pagamento era feito por meio de quinzenas adiantadas, as operações
eram pagas à parte e os valores cobrados estavam de acordo com o preço praticado pelas
casas de saúde da Corte, variando muito pouco.
A casa de saúde também estava aberta aos doentes da Corte que quisessem ali se
tratar ou convalescer e para isso solicitava que os interessados recorressem à farmácia do
Sr. Francisco Pereira Tota, situada no Largo de São João com uma hora de antecedência.
Quanto às instalações físicas, ao que tudo indica, nos dois prédios em funcionou
e sobretudo nos primeiros anos de funcionamento, estavam de acordo com os preceitos
de higiene e ideais médicos da época, já que a casa era descrita como espaçosa, clara e
bem ventilada, além de estar situada numa região de planície, cercada de vegetação e
longe dos focos de infecção e habitações, não se caracterizando, segundo os preceitos da
época, como um ambiente prejudicial à saúde pública. Tal esforço em organizar o espaço
conforme as normas de higiene pode estar relacionada em eliminar ao máximo os danos
que poderia provocar naqueles que buscavam a cura no estabelecimento e também na
população do entorno.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

980
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Com o passar dos anos, problemas estruturais foram apontados pelos presidentes
de província em seus relatórios, como foi o caso da sala reservada ao depósito de
cadáveres, que apesar de construída distante da casa de saúde, localizava-se abaixo da
enfermaria de pacientes acometidos por varíola. Vale ressaltar que tal edifício não
constava no contrato firmado entre província e os proprietários do estabelecimento.
Percebe-se que não só os médicos buscavam esquadrinhar todos os elementos que
tornassem o espaço destinado à cura mais salubre e que esta advertência poderia ser uma
tentativa de minimizar os efeitos nocivos da casa de saúde nos indivíduos que recorriam
ali para se curar, buscando eliminar, ao máximo, a possibilidade de causar ou agravar as
doenças já existentes. Todavia, não há informações sobre qual medida fora adotada para
reverter esta situação considerada inadequada a um espaço destinado à cura.
Sabe-se que nos fins da década de 1860, os proprietários esforçavam-se na
construção de um novo edifício para ampliar a capacidade de sua casa de saúde, elevando-
a à categoria de hospital. Tal iniciativa não passou despercebida nas folhas dos periódicos
da Corte e Niterói.
Não foi possível determinar ao certo quantas enfermarias a casa de saúde
apresentava, mas sabe-se que além dos serviços de clínica médica e cirurgia geral,
dispunha de clínica oftalmológico, que era liderada pelo oculista francês Carron du
Villard, o qual não restringia os seus serviços às moléstias dos olhos, executava também
a função de cirurgião. Trabalhavam como médicos assistentes os proprietários do
estabelecimento e Manoel do Valladão Pimentel e como conferencistas os médicos e
professores Luís da Cunha Feijó e Francisco Ferreira de Abreu. Havia também uma
farmácia, que segundo os anúncios publicados em periódicos encontrava-se provida de
todos os medicamentos necessários e dirigida por um farmacêutico com 25 anos de prática
nas principais boticas da corte.
Além dos serviços de assistência à saúde ofertados à população, a casa de saúde
Niteroiense disponibilizava às autoridades policiais o serviço de corpo de delito e exames
de sanidade, ambos realizados nas próprias dependências do estabelecimento.

O PERFIL DOS ATENDIDOS

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

981
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Com o fim de caracterizar os enfermos que recorriam à assistência ofertada pela


Casa de Saúde Niteroiense, consultamos os mapas do movimento deste estabelecimento
contidos nos relatórios do presidente da província do Rio de Janeiro. Embora estes
relatórios fossem publicados anualmente, não há informação para todo período de
existência da casa de saúde, o que pode ser justificado pelo fato dos proprietários do
estabelecimento não disponibilizarem os dados em alguns anos. Eram constantes as
reclamações, por parte dos presidentes da província, sobre a falta de regularidade do envio
dos movimentos de hospitais e casas de caridade. Em princípio, os diretores destes
estabelecimentos deveriam encaminhar os mapas, os balanços e o relatório sobre o estado
dos estabelecimento ao presidente da província, já que recebiam subsídios, até o mês de
julho de cada ano. No entanto, em função da dificuldade do envio desses documentos,
solicitou-se que os mapas parciais fossem encaminhados trimestralmente.

Tabela 1: Variação do número de pacientes entre os anos 1859/1869


Casa de Saúde Niteroiense
Período Existiam Entraram Saíram Faleceram Permaneceram Total
tratado
28/01/1859 a 30/07/1859 0 176 108 17 26 176
01/07/1859 a 30/04/1860 26 358 290 58 36 384
01/05/1860 a 30/06/1861 36 584 478 112 30 620
1861 ? 532 466 71 25 562
1º semestre de 1862 ? ? 168 34 23 225
2º semestre de 1862 a 1º 23 407 324 76 80 430
semestre de 1863
2º semestre de 1863 80 134 137 45 32 214
2º semestre de 1863 e 1º ? ? 282 96 41 419
semestre de 1864
01/06/1865 a 30/06/1866 ? ? 278 114 ? 414
01/07/1866 a 30/06/1867 ? ? 329 63 21 413
01/07/1867 a 30/06/1868 21 556 436 106 ? 577
03/05/1869 a 31/08/1869 ? 211 148 31 ? ?
Total 4434
Fonte: Relatórios do Presidente de Província

A partir dos dados localizados e irregulares, no período de 28 de janeiro de 1859


a 30 de junho de 1868, a Casa de Saúde Niteroiense atendeu 3.808 indivíduos, sendo

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

982
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

1.958 as custas do estabelecimento, ou seja, considerados indigentes e 1.831 pensionistas.


Dos atendidos, 2.475 eram livres e 1.333 escravos. Estes eram atendidos como
pensionistas, já os livres podiam ser admitidos como pagantes ou indigentes. O número
de escravos admitidos só superou o número de livres no primeiro ano de funcionamento
do estabelecimento, mas dentre os pagantes, durante todo o período, excedeu o número
de livres, foram 1.333 escravos para 498 livres.
Conforme assinalou Barreto (2016, p. 405), espaços destinados aos escravos em
casas de saúde, enfermarias e maternidades,

faziam parte da estrutura de assistência à saúde na capital do Brasil ao


longo do século XIX. Essas edificações foram oportunidades de
negócios e de construção de especialidades médicas, a exemplo da
obstetrícia e da ginecologia. Ao atender grupos excluídos da rede de
solidariedade horizontal, portanto mais vulneráveis, colocavam esses
doentes à mercê dos estudos acadêmicos, os quais eram publicados em
periódicos leigos e especializados.

Dentre os livres, constavam estrangeiros e nacionais. No entanto, não há


informação sobre a nacionalidade dos estrangeiros, somente a quantidade em que foram
atendidos na casa de saúde. O registro dos dados relativo aos estrangeiros não é regular
no período encontrado, há lacunas, mas pode-se afirmar que predominavam na categoria
de indigente, sobretudo os do sexo masculino, sendo 72% de homens para 28% de
mulheres. Somente nos últimos anos de funcionamento da casa de saúde que o número
de indigentes nacionais superou o de estrangeiros, com predomínio de homens. Mas ao
comparar o quantitativo de mulheres indigentes estrangeiras com as nacionais, há
preponderância destas em relação àquelas, quase que o dobro.
Os dados relacionados à nacionalidade dos escravos são muito irregulares, em
vários relatórios não há a identificação entre nacionais e africanos, mas os registros
encontrados apontam que a maioria dos escravos atendidos na casa de saúde Niteroiense
era de homens originários do continente africano. Todavia, ao comparar o quantitativo de
mulheres escravas nacionais com as estrangeiras, há predomínio daquelas em relação a
estas.
O índice de mortalidade na casa de saúde Niteroiense era de aproximadamente
14%, variando em alguns períodos, sendo que os indigentes morriam mais (55%),

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

983
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

seguidos dos pensionistas escravos (29%) e pagantes livres (16%). Em virtude dos dados
disponíveis, não foi possível quantificar o número de falecidos por nacionalidade e sexo.
Em quase todos os mapas havia a preocupação em justificar a taxa de mortalidade,
afirmava-se que esta acabava sendo elevada, não correspondendo com a realidade da casa
de saúde, por conta do ingresso de pacientes moribundos, afetados por doenças mortais
em seu último estágio de desenvolvimento, bem como idosos afetados de
degenerescências orgânicas.
A tuberculose pulmonar foi a doença que mais ceifou vidas na casa de saúde
Niteroiense. Destacam-se as moléstias epidêmicas como foi o caso da varíola, febre
amarela e ascite no ano de 1861, o que está em consonância com o estudo de Pimenta,
Barbosa e Kodama (2015) sobre as principais ocorrências de epidêmicas na província do
Rio de Janeiro. A tuberculose pulmonar, a varíola e a febre amarela se fizeram presentes
em quase todos anos na casa de saúde, sobretudo a primeira, que é citada em todos os
relatórios que apresentam informações sobre as doenças que mais avultavam no
estabelecimento. O quadro nosológico parece não diferir do encontrado na Corte.
De acordo com Pimenta, Barbosa e Kodama (2015), todas as regiões da província
eram acometidas pela varíola. Os achados aqui analisados mostram que esta é uma das
doenças mais citadas nos mapas encaminhados ao presidente da província pelos diretores
da Casa de Saúde Niteroiense.
Ao que tudo indica, as operações realizadas no interior da Casa de Saúde
Niteroiense eram consideradas seguras. Das 214 cirurgias declaradas, há somente um
relato de óbito decorrente à utilização de fórceps durante um parto.

OS ANOS FINAIS DA CASA DE SAÚDE NITEROIENSE

Aos fins da década de 1860, foi recorrente nos relatórios do presidente da


província o reconhecimento dos serviços prestados pela Casa de Saúde Niteroiense e a
necessidade de ofertar maior atenção a esse estabelecimento, sobretudo em função do
crescimento do número de doentes ali internados. Enquanto que no primeiro ano foram
176 tratados, no último ano que dispomos de números, foram 577. Discorria-se,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

984
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

constantemente, sobre a necessidade de remoção para outro espaço que pudesse abranger
maior número de pacientes e que dispusesse de condições mais salubres para atendê-los.
O contrato entre a Província e a Casa de Saúde estava prestes a expirar em 1867,
no entanto, seus proprietários suplicavam a renovação por mais cinco anos, “elevando-se
a duas em cada um as duas loterias, com que deve ser subvencionado o estabelecimento,
ou, mediante, o mesmo favor, a 20 anos, com o ônus de ser o edifício entregue à província,
como propriedade sua, no fim desse prazo...” (PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO,
1867, p. 26). O presidente da província concordava com o solicitado, contudo, segundo
ele, deveria haver contrapartida, entre as quais “a imposição de outras obrigações, como
por exemplo, a aceitação gratuita das praças enfermas do corpo policial, da guarda
nacional em destacamento, e de presos de crimes, que não forem graves, com as precisas
cautelas, para que se não evadam” (PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO, 1867, p. 26).
Tal solicitação foi encaminhada à Assembleia Provincial e solucionada por meio do art.
25 da lei n. 1374 de 15 de janeiro de 1868, ocasião em que:

[...] o orçamento provincial, autorizou a presidência a renovar por 20


anos o contrato relativo à casa de saúde niteroiense, com as condições
de que as loterias para custeio desse estabelecimento deveriam ser 2 por
ano; seriam tratados gratuitamente nele, além dos enfermos pobres, as
praças do corpo policial e da guarda nacional desiscada; e ficaria o novo
edifício, destinado aquele mister, pertencendo à província, findo o
prazo do contrato, sendo incorporado aos próprios provinciais
(PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO, 1867, p. 6).

Com as reestruturações e sobretudo a ampliação sofrida, a Casa de Saúde deixou


o seu local original, e foi transferida, segundo o Presidente da Província, para a localidade
considerada mais arejada da capital, embora não tenha sido encontrado projeto detalhado
desse novo estabelecimento, dizia-se que

[...] construído com solidez e asseio, nada faltando para os fins a que é
destinado” [...] colocado em uma posição eminente, [...] espaçoso e [...]
segundo os preceitos da ciência, oferece a vantagem de achar-se quase
no centro da cidade, e sob a imediata fiscalização de médicos hábeis e
dedicados (PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO, 1869, p. 18).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

985
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No entanto, pouco mais de dois anos, Dr. José Martins Rocha, um dos
proprietários do estabelecimento, comunicou a impossibilidade de cumprir com o
contrato firmado por ele e seu sócio, Dr. João José Pimentel, com a província, em função
do falecimento deste, já que sua viúva e herdeiros não estavam dispostos a dar
continuidade ao contrato

por não estarem dispostos a fazer a hipoteca estipulada no art.24, nem


podiam ser compelidos à sua execução, porque, tratando-se de
alienação do prédio, foi essa convenção feita sem outorga da referida
viúva que se recusa a assinar a escritura para torna-la válida não a
podendo fazer também seus filhos menores e , considerando que o
mencionado Dr. José Martins Rocha fechou a Casa de Saúde
Niteroiense, apesar da impugnação que teve a multa que lhe foi imposta
e desobedeceu à ordem para abrir de novo o estabelecimento afim de
serem cumpridas as estipulações do contrato, e , persistindo a
mencionada naquele propósito... (BENEVIDES, 1870, p. 2)

Diante disso, o presidente da província decidiu pela extinção do contrato, ocasião


em que os direitos e obrigações dos contratantes foram anuladas. Após intensos debates
a Casa de Saúde Niteroiense foi comprada pela Província, sob a justificativa de que a
capital da província necessitava de um hospital público de caridade, mas sob a
perspectiva, de num futuro, ser administrada por uma irmandade. No entanto, enquanto
estivesse sob a administração provincial o estabelecimento seria denominado Hospital de
São João Baptista de Niterói (PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO, 1872).

FONTES PRIMÁRIAS

BENEVIDES, J. M. C. S. Deliberação. Diário do Rio de Janeiro, n. 187, 09 jul. 1870,


p. 2.

BRASIL. Recenseamento do Brasil em 1872. 1872. Disponível em: <


http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv25477_v10_rj.pdf>. Acesso em: 03
mar. 2017.

CASA DE SAÚDE DE S. SEBASTIÃO EM NITERÓI. A Pátria, n. 279, p. 4, 11 dez.


1858.

COMUNICADO. A Pátria, n. 292, p. 1, 26 dez. 1858.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

986
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

LAEMMERT, Eduardo (org.). Junta Central de Higiene Pública. In: ______.


ALMANAK administrativo mercantil e industrial da Corte da Província do Rio de
Janeiro para o ano de 1859. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1859. p.
1371.

PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO. Diário de Rio de Janeiro, n. 128, 11 maio 1872,


p. 2.

PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO. Relatório apresentado a S. Ex. o senhor 1º Vice-


presidente Dr. Eduardo Pindahyba de Mattos pelo presidente Dr. Esperidião Eloy
de Barros Pimentel em 29 de fevereiro de 1868. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional,
1868.

PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO. Relatório apresentado à S. Ex. o Sr. 1º vice-


presidente desembargador Diogo Teixeira de Macedo pelo presidente Conselheiro
Benvenuto Augusto de Magalhães Taques em 18 de maio de 1869. Rio de Janeiro:
Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1869.

PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO. Relatório apresentado ao Exm. Sr. Presidente


da Província do Rio de Janeiro Dr. Esperidião Eloy de Barros Pimentel pelo vice-
presidente Dr. Eduardo Pindahiba de Mattos a 10 de outubro de 1867. Rio de Janeiro:
Tipografia Universal de Laemmert, 1867.

FONTES SECUNDÁRIAS

BARRETO, M. R. Maternidade para escravas no Rio de Janeiro (1850-1889). Revista de


História Regional, v. 21, n. 2, p. 389-406, 2016.

CASA DE OSWALDO CRUZ - COC. Abreu, Francisco Ferreira de. CASA DE


OSWALDO CRUZ. In: Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no
Brasil (1832-1930). s/d. Disponível em:
<http://www.dichistoriasaude.coc.fiocruz.br/iah/pt/verbetes/abreufranfer.htm>. Acesso
em: 03 abr. 2017.

GONÇALVES, M. S. Mente sã, corpo são: disputas, debates e discursos médicos na


busca pela cura das “nevroses” e da loucura na Corte Imperial (1850-1880). 244f. Tese
(Doutorado em História das Ciências e da Saúde). Casa de Oswaldo Cruz, Fundação
Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2011.

MOREIRA, G. A. C. Legislação eleitoral e política regional: um estudo sobre o impacto


das reformas de 1855, 1860 e 1875 no sul fluminense. Niterói, 2014. 313f. Tese
(Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, 2014.
PIMENTA, T. S.; BARBOSA, K.; KODAMA, K. A província do Rio de Janeiro em
tempos de epidemia. Dimensões, v. 34, p. 145-183, 2015.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

987
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SAMPAIO, G. R. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro


imperial. São Paulo: Editora da Unicamp, 2001.

SANTOS FILHO, L. História Geral da Medicina Brasileira (1 ed. 1948), Vol. I e II,
São Paulo, Hucitec/EDUSP, 1991.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

988
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Breves considerações sobre ideologia nas forças armadas entre 1961-1964

ENIO VITERBO MARTINS


Programa de Mestrado em História do Brasil da UNIVERSO-RJ

A historiografia militar brasileira é escassa no tocante a apresentar um modelo


estrutural que explique a ideologia da intervenção das forças armadas na política nacional,
não resta melhor sorte ao tema quando o foco é formações teóricas.
Os estudos existentes divergem quanto ao papel político das forças armadas
como atores principais da república brasileira desde sua gênese, se alguns autores as
expõem como meros peões no jogo da elite política civil brasileira, outros os colocam
como agentes independentes da política externa às casernas, como sendo verdadeiros
agentes autônomos no tocante a influencia dos civis sobre as forças armadas.
Saliente-se ainda que a historiografia militar tradicional não tinha como escopo
a explicação estrutural ideológica das intervenções e conflitos ideológicos internos das
forças armadas, cite-se que na obra de Paula Cidade de 1959, a Síntese de Três Séculos
de Literatura Militar, não encontra-se uma publicação historiográfica que tenha por
objetivo o estudo ideológico das forças armadas.
Grande parte dos trabalhos de historiografia militar até a publicação da obra de
Paula Cidade tinha viés literário, bibliográfico ou estudava as grandes campanhas,
batalhas, chefes militares e outras coisas que dominavam o escopo da época.
Ingressando no campo da análise das relações políticas entre as forças armadas
e a sociedade civil, a tese de que as forças armadas representam os interesses da classe
média da sociedade retroage desde de Virignio Santa Rosa, em 1933, na obra “O sentido
do Tenentismo”, seguida pela obra de Santiago Dantas “Dois momentos de Rui Barbosa,
de 1949.
Em 1965 Nelson Werneck Sodré publica a “História Militar do Brasil”, nesta
obra o militar, por ser de esquerda, tentava explicar a história do Brasil sob um prisma
marxista. O autor também estabelece como premissa uma concepção estrutural da política
nas forças armadas, que explica-se pelo fato de imaginar as forças armadas como meras
espectadoras do cenário político e influenciáveis pela sociedade civil, como se não
houvessem objetivos e ideais propriamente militares.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

989
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Podemos concluir que Werneck Sodré parte da concepção de que em uma


sociedade capitalista o exército nada mais é do que o braço repressivo do Estado, sendo
o braço armado da classe política dominante que o utiliza para repressão. Tal concepção,
que decorre o conceito de luta de classes, gera uma concepção instrumental oligárquica
em que o exército só pode ser instrumento dos desígnios das classes sociais existentes.
Ainda sob um prisma marxista, onde o capital estrangeiro é antinacional,
Werneck Sodré vê o imperialismo como uma força que atrapalha a expansão da economia
nacional, afirmando que é necessário para as instituições militares, caso queiram se tornar
verdadeiramente democráticas e ajudar na expansão da economia nacional, desligar-se de
qualquer tipo de submissão ao latifúndio e ao imperialismo, como fizeram em período
posterior a revolução de 30. Somente quando terminam esse processo de desligamento
estas instituições começariam a ter traços verdadeiramente nacionais (SODRÉ, 2010, p.
489).
Dentro de um conceito de fase autônoma das forças armadas o autor também
explica o fato de que devido a burguesia nacional não conseguir reproduzir um aparato
militar nas mesmas condições de que a burguesia europeia forjou a dela, a burguesia
brasileira passa a perder o domínio desse aparelho militar progressivamente e então
somente em determinadas oportunidades conseguia utilizar as forças armadas brasileiras
como objeto de sua repressão.
A crítica à teoria instrumental de Nelson Werneck é que dificilmente se nota nas
forças armadas esse papel exclusivamente passivo e submisso às vontades da sociedade
civil, pois claramente a história brasileira demonstra que as intervenções das forças
armadas e os conflitos ideológicos existentes dentro das corporações se dão muito mais
por um dialogo entre os ideais e objetivos dos militares com a sociedade civil do que
exclusivamente dos civis utilizarem o exército como massa de manobra.
Já em Campos Coelho (1977, p. 32) podemos inicialmente observar uma análise
de espécies da concepção instrumental adotada por Nelson Werneck Sodré, estas seriam:
Oligárquica, Setores Médios e Moderadora.
Na vertente “Oligárquica” as elites dominantes influenciam cristalinamente a
posição e intervenção das forças armadas, utilizando-as como uma proteção ao status quo
quando de uma crise do sistema vigente; na vertente dos “Setores Médios”, o exército é
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

990
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

colocado como representante e agente político organizado pelas classes médias e por fim,
na concepção “Moderadora” o exército tem uma função de arbitro das disputas políticas
nacionais, geralmente com a instituição militar pendendo para o lado de maior aceitação
na opinião pública.
Tais concepções instrumentais ao procurarem o fundamento da atuação
intervencionista dos militares nos possíveis ganhos para os grupos sociais civis não
consideram as especificidades das instituições militares, assim como do poder como fim
em si próprio.
Na obra de Edmundo Campos Coelho, é exposta uma discordância no tocante a
concepção instrumental do Exército, entendendo que este não se trata apenas de um
agente passivo às pressões da sociedade civil.
O autor inicialmente nos mostra, baseando-se na tese de erradicação do exército
durante a fase entre a independência e a questão militar, que mesmo a forte pressão
exercida pela sociedade civil sobre a validade da existência do exército não foi capaz de
tirar os militares de um marasmo existencial-institucional que o autor corretamente
denomina como um período de “hibernação”.
Considerando que Campos Coelho entende que a definição de concepção
organizacional da política no exército pressupõem uma análise histórica não linear de
crescimento da independência do exército em relação a influencia da sociedade civil, o
autor afirma que a república significou um rompimento do vinculo primário que unia o
exército a sociedade civil numa relação de dependência absoluta, além de que existiam
divergências internas no exército que dividiam os grupos perpetuadores do golpe
republicano.
Surge então a ideia de Alain Rouquié dos “Partidos Militares”, na qual o autor
identifica a tendência dos militares a criarem instituições não governamentais para
influenciarem a política, como o “Clube de 13 de Outubro”, como também um conflito
interno de tendências antagônicas que lutam pelo controle da corporação militar,
principalmente quando os líderes de tais instituições tentam implementar a tendência a
qual são ideologicamente partidários (ROUQUIÉ, 1980, p. 13).
Cite-se ainda uma breve explicação de Nelson Werneck Sodré que antecipa tal
analise de Rouquié “As Forças Armadas são um partido político de conteúdo nacional,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

991
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que não participa de atos eleitorais, que não se insere na linha de organizações
especificamente políticas, dentro dos limites indicados.” (2010, p. 493).
O autor esclarece que inicialmente as instituições representativo-corporativas
começaram a abrigar o conflito de tendências ideológicas quando suas diretorias
passaram a ser eleitas e não mais designadas de acordo com a hierarquia, clássico exemplo
do Clube Militar.
Por ser a instituição representativa-corporativa por excelência em que o exército
fazia a política interna, de 1930 a 1964, era fundamental para o governo civil eleito que
este tivesse o apoio do Clube Militar.
Karla Carloni apresenta o que seria uma nova vertente do entendimento da
interação entre as forças armadas e a sociedade, baseando-se em uma crítica as duas
vertentes anteriores, tanto a de Nelson Werneck Sodré, quanto a de Edmundo Campos
Coelho. A autora afirma que não se deve reduzir a totalidade das ações das Forças
Armadas como se estas fossem uma mera representação das ações e objetivos de classes
ou admitir ainda que formam instituições totalmente impenetráveis aos debates e
discussões da sociedade civil (CARLONI, 2012, p. 26).
Nelson Werneck Sodré reconhece que ainda que em sua concepção as forças
armadas terem sido originariamente democráticas, com divisões internas quando da
repressão a movimentos de cunho popular, e posteriormente se tornado instrumentos do
latifúndio, a burguesia em ascensão no final do século XIX teve dificuldade em controlar
as forças armadas.
Um fator importante e que nenhuma das concepções consegue abarcar em seu
arcabouço teórico é a influencia estrangeira nas intervenções militares, pois se na
concepção instrumental as forças armadas são meros desígnios nas mãos de uma elite
civil política esta é manifestamente nacional e na concepção organizacional os fatores
externos basicamente não teriam influencias internas nas forças armadas, ficamos sem
espaço para esta possível influencia estrangeira em tais concepções de relações entre
militares e civis.
Seria ignorada a influencia americana no golpe de 1964? Seria ignorada a
influencia da missão francesa na formação política intervencionista ou profissionalizante
apolítica no exército?
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

992
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ora não foi privilégio do Brasil na América latina a experiência com missões
militares estrangeiras, Robert D. Putnam faz uma relação entre as missões militares
estrangeiras e a situação política no país em que foram implementadas. O autor afirma
que não raramente naqueles países, tais como Peru, Chile, Argentina e Brasil, que
contrataram missões de treinamento germânicas, chilena e francesas passaram pela
experiência de intervenções militares (PUTNAM, 1967, p. 101).
O mesmo autor comprova, por outro lado, a incongruência de um outro fator
estrangeiro nas forças armadas que seria a incidência de golpes militares em países
vizinhos, que por si só, geraria um tipo de influencia nas demais forças armadas para que
estas também perpetuassem um golpe.
Assim sendo tais teorias, tanto a instrumental de Nelson Werneck Sodré quanto
a organizacional de Edmundo Campos Coelho, não explicam a totalidade ideológica
política e social as intervenções das forças armadas na política, sendo possível a formação
de uma nova teoria que abarque de uma forma mais abrangente as inúmeras característica
de uma intervenção militar na política, e mais importante, a questão da ideologia presente
em tais intervenções militares.
Porém o que de fato é ideologia? Qual é o conceito de ideologia que mais se
aproxima a explicar as diferentes visões de mundo que existem nos militares?
Para Marx, ideologia era um termo pejorativo, um conceito que implicava um
certo tipo de ilusão, seria um tipo de percepção deformada da realidade com base em uma
perspectiva da classe dominante, ou seja, nada mais era do que uma forma de dominação
da classe menos favorecida.
Em Lenin temos a conceituação de ideologia em duas formas: a ideologia
burguesia e a ideologia proletária, “Ideologia deixa de ter o sentido crítico, pejorativo,
negativo, que tem em Marx, e passa a designar simplesmente qualquer doutrina sobre a
realidade social que tenha vínculo com uma posição de classe.” (LÖWY, 1991, p. 12).
As forças armadas não podem ser entendidas como uma classe social na visão
marxista, tendo em vista que não produzem e, portanto não são proletários, porém
também não possuem os meios de produção, ou seja, também não são burgueses, logo,
não teriam uma ideologia própria, e assim os militares, como camadas médias urbanas,
se inclinariam para as ideologias burguesas ou proletárias.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

993
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Porém cite-se que para Lenin o exército permanente nada mais era do que uma
forma de dominação da classe proletária pela elite política governamental, essa
instituição, ao lado da burocracia, nada mais seria do que um mero “parasita” da
sociedade burguesa, de modo que seria mantido pela burguesia para dar sustentação ao
poder centralizador do Estado (LENINE, 1917).
O próprio protótipo de Estado de cunho popular, a Comuna de Paris, aboliu em
suas primeiras medidas o exército permanente como forma de organização militar.
Transcreva-se o planejamento de Lenin para substituição do exército regular
permanente por milícias populares armadas:

A democracia é uma das formas, uma das variantes do Estado. Por


consequência, como todo Estado, ela é o exercício organizado,
sistemático, da coação sobre os homens. Isso, por um lado. Mas, por
outro lado, é ela o reconhecimento formal da igualdade entre os
cidadãos, do direito igual de todos em determinar a forma do Estado e
administrá-lo. Segue-se que, a certa altura do seu desenvolvimento, a
democracia levanta, logo de início, contra o capitalismo, a classe
revolucionária do proletariado e lhe fornece os meios de quebrar, de
reduzir a migalhas, de aniquilar a máquina burguesa do Estado, mesmo
republicano, o exército permanente, a polícia, o funcionalismo, e de
substituir tudo isso por uma máquina mais democrática, mas que nem
por isso é menos uma máquina de Estado, constituída pelas massas
operárias armadas, preparando a organização de todo o povo em
milícias. (LENINE, 1917, p. 58).

Ocorre que a perspectiva marxista de luta de classes não dá a devida importância


ao pensamento propriamente militar, pressupondo a adesão destes às ideologias
proletárias ou burguesas.
Porém é possível afirmar a existência de uma ideologia propriamente militar?
Para melhor compreensão do tema, faz-se necessário após a breve consideração do
conceito de ideologia anteriormente exposta, nos debruçarmos sobre a “mentalidade
militar” de Samuel P. Huntington.
A análise de relação entre forças armadas e sociedade para Samuel P. Huntington
passa uma pelo entendimento de que existem dois pressupostos metodológicos para
atingir o objetivo do estudo de uma ideologia e do papel das forças armadas no cenário
político.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

994
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O primeiro pressuposto é de que em toda a sociedade, a relação civil-militar deve


ser entendida como um sistema composto por elementos independentes. Para Huntington
existem características nesse sistema que servem para basear a metodologia de estudo
desse referido sistema, quais sejam: “a posição formal e estruturais das forças armadas
no governo, o papel informal e a influencia de grupos militares na politica e na sociedade
como um todo, e a natureza das ideologias de grupos militares e não militares”
(HUNTINGTON, 1996, p. 16).
O segundo pressuposto é de que é possível definir, com base na natureza e
finalidade das instituições militares, em teoria o equilíbrio – “controle civil objetivo” –
que eleva a segurança militares.
O autor corretamente afirma que um dos aspectos da política de segurança
nacional é a relação entre civis e militares e coloca dois imperativos que regem esta
relação, quais sejam, um imperativo funcional, que advém das ameaças à segurança da
sociedade e um imperativo societário proveniente das forças sociais, das ideologias e
instituições dominantes dentro da referida sociedade.
Porém uma das posições que o autor assume de forma intransigente, é de que os
oficiais das forças armadas são os responsáveis pela segurança militar da sociedade e que
possuem uma posição dirigente ativa da estrutura militar.
Os oficiais são um corpo profissional, um grupo funcional com características
especializadas, são profissionais no sentido de que possuem vocação com caráter de
especialização, responsabilidade e corporatividade (HUNTINGTON, 1996, p. 26).
A especialização diz respeito à formação de um técnico com habilidades e
conhecimentos especializados que só vem através de educação e experiências
prolongadas.
A responsabilidade advém de uma resposta do profissional que é um técnico
militante para a sociedade na qual trabalha e em que presta um serviço essencial para a
manutenção da mesma. A remuneração não pode ser o que motiva o profissional, não
pode ser a meta primária a ser buscada, porém sim a responsabilidade de prestar um
serviço fundamental a sociedade quando a necessidade assim lhe mostra necessário.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

995
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A corportatividade se refere ao esprit de corps que os membros de uma


determinada corporação adquirirem depois de passarem por uma disciplina diuturna e o
treinamento necessário para prestar o serviço do qual são responsáveis.
O autor insiste que os oficias possuem alto grau de treinamento especializado
tendo em vista que diferente de atirar um fuzil, a administração das variáveis que
envolvem o comando militar garantem que o oficial na verdade desempenha um papel
intelectual avançando.
A responsabilidade dos oficiais está em que a administração da violência deve
ser feita com extrema cautela com o objetivo de que seja utilizada apenas conforme os
propósitos socialmente aceitos. A sociedade tem interesse direto no emprego dessa
administração de violência para sua própria segurança militar.
Ainda sobre a reponsabilidade dos oficias, o autor afirma que diante de um
quadro em que os militares ocidentais geralmente não recebem um bom pagamento, sua
motivação via de regra não pode ser mercenária, com vista apenas em seus próprios
interesses econômicos individuais, porém sim a motivação deve ser o amor técnico por
sua habilidade e no senso de obrigação social para utilizar essa qualidade em beneficio
da sociedade.
Sobre o caráter corporativo do oficialato, o autor atesta que o oficialato é uma
profissão pública burocratizada, sendo que sua estrutura não comporta apenas a
burocracia oficial como também escolas, publicações, instituições, costumes e tradições
próprios. O que o separa do grande público são as fardas e insígnias que lhe são
unicamente atribuídos.
A crítica da concepção profissional do autor reza justamente na falta de
atribuição das qualidades dos praças que o autor não considera como profissionais. O
autor desconsidera toda a formação intelectual dada aos praças bem como todo o
treinamento que lhes é atribuído no qual cristalinamente adquirem o esprit de corps que
é também atribuído a qualquer oficial.
Os conscritos detém a mesma responsabilidade social que detém os oficiais, não
seriam os praças os que em tese seriam o instrumento através dos quais os oficiais
cumprem seus objetivos? Seriam os praças meros espectadores passivos das vontades e
desejos dos oficias? Claro que não.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

996
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Claramente os praças tem aspirações próprias sendo frequentemente na história


brasileiras as revoltas ocasionadas por estes, de modo que seria injusto atribuir-lhes uma
papel secundário na vida política militar.
Além de que o autor não demonstra critérios objetivos que comprovem sua
hipótese da falta do caráter profissional aos praças, por exemplo, existe um tempo mínimo
para que os oficiais adquiram esprit de corps? Quais são, especificamente, as
qualificações intelectuais que os praças não possuem?
Prosseguiremos com a lógica exposta por Samuel P. Huntington, porém com a
dada ressalva de que seus pressupostos profissionais também se aplicam aos praças, desse
modo, os caracterizamos também como profissionais militares e como tal, também
possuidores de aspirações e objetivos próprios.
Existem dois tipos de abordagem de uma “mentalidade militar” que são
fundamentais na obra de Huntington e que significam um certo tipo de ideologia militar,
a primeira, que afirma que a mentalidade militar diz respeito a determinados tipos de
atributos ou qualidades mentais que compõem tal mentalidade e a segunda que é formada
pelas atitudes, valores, opiniões e visão do próprio militar.
A analise de tais atitudes deve ser feita através de dois métodos, o primeiro
método descreve determinados tipos de atitudes e valores como sendo propriamente
militares e como tais tem predomínio entre os militares. Existem duas atitudes que
merecem destaque dentro das demais: a belicosidade e o autoritarismo, o próprio autor,
porém, reconhece que afirmar a existência de valores militares e ainda a predominância
destes dentre os militares em si, é arbitrário e subjetivo.
Outra abordagem e conclusão da análise de tais atitudes e valores militares pela
sua fonte é admitir que qualquer expressão de atitude e valor advinda de militares vindo
de uma fonte militar refletem a mentalidade militar, porém obviamente existem
divergências étnica, política, religiosa e etc. entre os militares que nos impedem de
admitir tais valores e atitudes provenientes de militares como sendo propriamente
militares.
Assim sendo, o autor define “mentalidade militar” como sendo um “tipo ideal à
maneira de Weber, em termos do qual as crenças de homens e grupos reais podem ser
analisadas” (HUNTINGTON, 1996, p. 80).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

997
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Cumpre salientar que dentro desta chamada “mentalidade militar” o autor


pretende excluir qualquer tipo de concepção política externa aos valores e atitudes
propriamente militares, como aspectos teórico-políticos e macroeconômicos. Transcreva-
se:

A política se situa além do escopo da competência militar e a


participação de militares na política enfraquece-lhes o profissionalismo,
reduz a competência profissional, divide a profissão contra si mesma e
substitui valores profissionais por valores estranhos. Politicamente, o
militar tem é que permanecer neutro. (HUNTINGTON, 1996, p.89).

Porém não seria isso uma simplificação da “mentalidade militar” considerando


que as instituições militares são permeáveis pelas ambições, conflitos e aspirações da
sociedade civil? Além do que, politicamente, neutralidade também é uma forma de
posição política.
Em que pese o próprio termo de “ideologia” já encontrar críticos entre a doutrina
sociológica, a ideologia continua sendo um termo presente em discussões historiográficas
e, apesar de regularmente utilizado, possui diversas definições dentre os mais diferentes
autores.
O conceito de ideologia ainda pode ser visto por diversas abordagens, sobre o
ponto de vista do assunto, ideologia se direciona ao poder, a política e ao mundo em si,
sob o ponto de vista dos sujeitos, ideologia pode ser vista como sendo uma mentalidade
de classes (concepção marxista), de qualquer grupo e ainda de qualquer grupo e/ou
indivíduo.
Diante do exposto, tendo em vista as diferentes concepções das relações entre as
forças armadas e a sociedade civil, bem como da presença de uma visão de mundo própria
das forças armadas, concluímos que se estas últimas possuem uma visão de mundo que
se comunica tanto em grupo quanto em cada individuo, considerando que muitas vezes
os militares possuem planos econômicos próprios para o país que dialoguem com os
planos e metas da segurança nacional, considerando que os militares na América latina
possuem cristalinamente planos de poder, podemos observar que dentro os valores,
tradições e costumes próprios, existem o que se assemelha a uma chamada ideologia das

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

998
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

forças armadas, porém que não foi do objetivo do presente estudo em aprofundar-se no
tema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARLONI, Karla. Forças armadas e democracia no Brasil: o 11 de novembro de


1955. Rio de Janeiro, 2012.

CIDADE, Francisco de Paula. Síntese de três séculos de literatura militar brasileira.


Rio de Janeiro: Bibliex, 1998.

COELHO, Edmundo Campos. Em busca de identidade: o Exército e a política na


sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1976.

HUNTINGTON, Samuel P. O soldado e o Estado: teoria e política das relações entre


civís e militares. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1996.

LÖWY, Michael. Ideologia e ciência social: elementos para uma analise Marxista. 7ª
ed. São Paulo, 1991.

PUTNAM D. Robert. Toward Explaing Military Intervantion in Latin American


Polities. World Politics, Vol. 20, nº1, p. 83-110, Out, 1967.

ROUQUIÉ, Alain. Os Processos políticos nos partidos militares no Brasil. In: Os


Partidos Militares no Brasil. ROUQUIÉ, Alain. Rio de Janeiro: Editora Record, 1980.

SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil/Nelson Werneck Sodré, 2ª Ed.


São Paulo: Expressão Popular, 2010.

STEPAN, Alfred. Os Militares: da abertura à nova república. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1986.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

999
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Somos mais de um milhão: as estratégias de evangelização de jovens no Youtube

ÉRIKA MARIA DE ARAUJO PESSANHA


Programa de Pós-Graduação em História Social – UERJ-FFP

Introdução
Na internet é fácil encontrar uma variedade de opções religiosas, desde
movimentos mais tradicionais e até novos movimentos religiosos, demonstrando um
deslocamento de fronteiras e uma ressignificação – e em uma perspectiva ampla, a
construção de “multiterritorialidade” no ciberespaço – de práticas religiosas na busca de
se adaptar aos protocolos da internet. (VILLASENOR, 2013)
Esse texto aponta para os principais alvos que norteiam essa pesquisa ainda em
fase inicial, na qual pretendo pôr em análise as relações que determinados grupos
religiosos, em especial dos evangélicos, fazem no ciberespaço, em que não obstante a
relação entre mídia e religião ser bastante estudada, a análise deste grupo religioso e sua
conexão com comportamento jovem tem sido ainda pouco analisada.
Considerando a importância de tal discurso para a promoção, manutenção e a
revisão de valores e comportamentos em nossa sociedade. É importante, também, estudar
o discurso religioso, devido à influência e alcance cada vez maior que esse discurso sobre
a população, principalmente em consequência do processo de inserção da religião nas
mídias (processo de midiatização da religião).
As pesquisas sobre o Censo de 2010 do Ibge411mostraram um aumento dos
“evangélicos sem igreja” que denota uma dinâmica de flexibilização do compromisso
religioso e pelo trânsito entre as instituições religiosas (CAMURÇA, 2013). Nessa nova
“classe”, como demonstra Daniele Hervieu-Léger, cada vez mais o “peregrino” cresce em
face os convertidos e ligados por familiarialidade as igrejas em fazem parte, sua
participação é fluida e móvel pelas diversas denominações existentes sem qualquer
vínculo com as instituições. Com efeito, o novo espaço cibernético propicia também que

411
Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_religiao_deficiencia/defau
lt_caracteristicas_religiao_deficiencia.shtm>
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1000
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“pessoas desligadas das instituições religiosas, mas que continuam acreditando no divino
e cultivando uma crença não institucionalizada” (VILLASENOR, 2013, p.98).
Contudo o sagrado escapa ao midiático, paralelamente criando relações com os
espaços mais tradicionais de culto.

Secularização412 ou Reencantamento do Mundo?


As aspirações do início do século apontavam para a definitiva separação e
afastamento da religião da dimensão pública, na qual a secularização seria a consequente
supressão da religião pela modernidade, contudo as “explosões religiosas” alavancaram
as discussões a respeito de um possível retrocesso da secularização.
A partir da discussão sobre a secularização e seu aparente contraponto, o
‘Reencantamento do Mundo’, fica-se diante do debate entre “aqueles que acreditam em
um reforço da secularização e, na direção oposta, aqueles que veem esse fato como
irrupção do sagrado e ‘Reencantamento do mundo’” (CAMURÇA, 2003).
Peter Berger (2000) questiona a existência de uma “teoria da secularização” na
qual ocorreu um declínio da religião413 em decorrência da modernidade414. O ‘moderno’
em oposição ao ‘atraso’ advindo da ‘superstição’ e crenças tradicionais415. O autor chama

412
Antônio Flavio Pierucci conceitua que “ 'Secularização' é uma metáfora. Surgida na época da Reforma,
originalmente em âmbito jurídico (para indicar a expropriação dos bens eclesiásticos em favor dos príncipes
ou das igrejas nacionais reformadas), a palavra veio a conhecer, ao longo do século XIX, uma notável
extensão semântica: primeiramente, no campo histórico-político, em seguida à expropriação dos bens e dos
domínios religiosos fixada pelo decreto napoleônico de 1803 (daí a carga polêmica com a qual o termo foi
empregado durante o Kulturkampf), e posteriormente no campo ético e sociológico" (MARRAMAO, 1983,
p. 30).
413
Na definição dukheimiana o termo pode ser entendido como “sistema solidário de crenças e práticas
relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma
comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem” (DURKHEIM, 1996)
414
“A Modernidade se caracteriza pela colocação do indivíduo como medida e como fim. O ser humano,
em sua individualidade e racionalidade, de certa forma substitui o centro anterior, a saber, um cosmo
sagrado, com suas derivações encompassadoras de sentido e norma, gerido por instituições religiosas que
davam a coesão social e cultural e que alocavam o centro de sentido para além do ser humano. A
Modernidade, no entanto, coloca o ser humano como medida de si, de suas relações e do universo, a partir
de uma lógica cartesiana e de uma moral kantiana. Já não seria mais o cimento da coesão cultural-social
ditado pela religião o que daria o sentido ordenador da realidade e do social, com suas mediações, mas
doravante a própria racionalidade, a própria independência de escolha racional centrada no indivíduo
autônomo”. (PORTELLA, 2006)
415
“A maioria dos pensadores do Iluminismo e a maioria das pessoas de espírito progressista desde então
tenderam a pensar que a secularização é positiva, pelo menos na medida em que elimina fenômenos
religiosos “atrasados”, “supersticiosos” ou “reacionários”.” (BERGER, 2000)
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1001
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

atenção para o florescimento da religião islâmica e do evangelismo em que enfatiza que,


o desenvolvimento destas não se limita as esferas menos modernizadas ou ‘atrasadas’ da
sociedade, ao contrário é muito forte em cidades com alto grau de modernização.
Berger contraria a tal tese, levantando o argumento de que a modernização teve
efeito secularizantes em alguns lugares, mas em outros provocou o surgimento de
poderosos movimentos contrassecularizantes e que na cena internacional ocorreu o
crescimento dos movimentos conservadores - ortodoxos ou tradicionalistas. Para ele, isso
demonstra que a contrassecularização é um “fenômeno ao menos tão importante no
mundo contemporâneo quanto à secularização”.
Explicita ainda que, “algumas instituições perderam poder e influência, mas
crenças e práticas religiosas antigas e novas em muitas sociedades, às vezes assumindo
‘novas formas institucionais’, às vezes levando a grandes explosões de fervor religioso”.
O autor chama atenção para a ‘explosão evangélica’ na América Latina que
provoca transformação cultural, sendo caracterizado por um movimento crescente no
mundo inteiro, em países nos quais esse tipo de religiosidade era incógnito ou marginal,
diferentemente do islamismo que se propaga em países já muçulmanos ou entre
imigrantes muçulmanos (como na Europa).
Segundo Odair Araújo (2003), para Weber o termo refere-se ao "processo pelo
qual a religião perdeu espaço público a partir da separação do Estado e da Igreja, passando
a religião a ser esfera autônoma, não mais ligada ao poder temporal", na qual a religião
vai se limitando a esfera privada, perdendo autonomia e os espaços antes ocupados. O
autor chama a atenção, todavia, ao interesse de inúmeros estudiosos sobre a efervescência
religiosa na contemporaneidade, particularmente da sociedade contemporânea ocidental.
Ele enumera diversos conceitos que não foram capazes de construir uma concepção mais
definitiva acerca do fenômeno contemporâneo.
Contudo religiosidade não significa um processo de "dessecularização", e sim um
momento em que a modernidade vem demonstrando sua capacidade de conviver com
diferentes formas de manifestações culturais.
Ao contrário das religiosidades tradicionais, a procura religiosa contemporânea é
caracterizada pelo pluralismo.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1002
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A religião, na modernidade, é apenas mais um sistema de conhecimento e


orientador de conduta. Assim como a ciência, o Estado, dentre outras
instituições laicas, ela compete na interpretação do mundo e orientação de
conduta. Diferentemente da sociedade medieval, na qual a Igreja detinha
poderes sobre a vida e sobre a morte dos indivíduos, nos tempos atuais seu
poder foi sendo limitado à esfera do sagrado e até aí ela é legitimada por meio
de uma constituição laica, que permite seu funcionamento, mas posicionando-
a num local específico dentro da sociedade. Estabelecem-se limites para sua
atuação. (ARAUJO, 2003, p.9)

Para o autor, a modernidade propicia a pluralidade religiosa, pois permitiu a


liberdade de cultos e credos. Produzindo assim as múltiplas perspectivas de construção
de novas religiosidades. A secularização significa de fato um “deslocamento da esfera
religiosa do público para o privado, provocando perdas para a religião”. A procura pela
religiosidade não é eliminada, contudo se estrutura em outras possibilidades e dimensões.
O autor Ricardo Mariano (2003) assenta seus estudos sob os efeitos da
secularização do Estado Brasileiro, destacando a consolidação do pluralismo religioso e
do mercado religioso sobre o pentecostalismo. No qual a separação Estado-Igreja que no
Brasil ocorre paralelamente à chegada do regime republicano, sendo este o impulsionador
do processo de secularização.
Para ele, no caso brasileiro, a larga liberdade religiosa proporcionada pela
secularização do Estado está na estrutura da desmonopolização religiosa, da formação e
expansão do pluralismo religioso, e como resultado, do acirramento da concorrência
religiosa. Abrindo caminho para disputar e conquistar novos espaços na sociedade,
adquirir legitimidade social e consolidar sua presença institucional.

Explosão Evangélica416

416
No Brasil, “evangélico” é geralmente sinônimo de “protestante”. De acordo com Mendonça (1989)
“Evangélico” é preferido por membros das igrejas e por historiadores comprometidos com as mesmas,
enquanto “protestante” é usado por historiadores e sociólogos não comprometidos. (Mendonça p.42 in
Freston et al p 1) De acordo com Paul Freston o IBGE oferece duas categorias: “protestantes tradicional” e
“protestante pentecostal”. A falta de unidade interna propõe uma autoidentificação forjada em oposição a
igreja dominante. “Evangélico” é a identificação que une e permite ações conjuntas; e o nome
denominacional (“batista”, “metodista” etc.) é a identificação que diferencia e justifica a existência de
organizações múltiplas. Nos últimos anos, a imprensa consagrou o termo “evangélico”, o qual adquiriu
espaço em publicações acadêmicas e deixou de ser privativo dos “comprometidos”.
Utilizarei “protestante” e “evangélico” sem diferença de sentido.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1003
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No censo de 1990 a população evangélica total correspondia a 13% da população


brasileira. O livro intitulado “O novo nascimento” apresenta os resultados das pesquisas
de levantamento em 1994 baseadas nos dados recolhidos pelo IBGE para o censo geral
de 1990. Na qual se percebeu que em questões espaciais o estado do Rio de Janeiro
apresenta uma população evangélica corresponde de 10 a 15% da população na área
metropolitana, constatando a existência de 4000 instituições evangélica no território em
que das 52 denominações evangélicas cadastradas, 30 delas foram criadas no Rio de
Janeiro. Nas quais quantitativamente notou-se a maior concentração de membros das
Igrejas Batista e Assembleia de Deus.
No censo de 2000do IBGE417 a população evangélica é de 15,4% da população
sendo 10,4% pentecostais. O autor Antônio Flavio Pierucci aponta para o declínio das
religiões tradicionais e o esgotamento do protestantismo de imigração em face da
explosão pentecostal e neopentecostal.
Já no censo de 2010, segundo o IBGE, a população evangélica era 22,2%, um
aumento expressivo de 61% para o censo 2000, concomitantemente a população católica
caiu de 73,7% para 65% da população.
No Brasil, o pentecostalismo tem tomado proporções de magnitude. É hoje uma
das expressões religiosa mais entranhada na massa e há tempos congrega a maioria dos
protestantes (13,4%).
No segmento pentecostal se destacam as denominações Congregação Cristã no
Brasil (1910), Assembleia de Deus (1911), Igreja do Evangélico Quadrangular (1951),
Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo (1955), Igreja Pentecostal Deus é
Amor (1962).
E ainda uma vertente, que tem como precursor a Igreja de Nova Vida fundada em
1960, que ganha forma nos anos 80 denominadas “neopentecostais” com grande ênfase
na teologia da prosperidade, como a Igreja Internacional do Reino de Deus (1977), Igreja
Internacional da Graça de Deus (1980), Igreja Mundial, Igreja Renascer em Cristo,
Comunidade Sara Nossa Terra, Igreja Paz e Vida, Comunidades Evangélicas entre outras.

417
Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/populacao/religiao_Censo2000.pdf>
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1004
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Religiosidade Midiática
Na constituinte de 1987/88 inúmeros deputados da chamada “bancada evangélica”
negociaram seus posicionamentos em votações em troca de concessões de rádio e de
TV418. Nesse quadro a IURD adquiriu a Rede Record de Televisão se tornando a primeira
denominação evangélica a ser proprietária de uma televisão com cobertura nacional.
Demonstrando mais uma vez a afinidade que as denominações evangélicas tinham com
o uso de meios de comunicação e as suas “mídias” de massa na expansão de sua
mensagem, utilizando a impressa desde o início do século XX e nos anos 40 os primeiros
programas já sendo veiculados em rádios locais.
É relevante apontar que o intenso movimento de midiatização da religião busca
atrair fieis e encontrar novas redes de comunicação no mercado religioso ampliado pelo
fenômeno da secularização.
Movimentos extra religiosos crescem com maior rapidez tendo em vista a
possibilidade de novas formas de “ter voz”, e também preocupam entidades e setores
religiosos que se veem na condição de “resgate aos costumes” tendo em vista o seu lugar
de disputa.
Nesse aspecto, a midiatização se tornou essencial a pregação com a modernização,
que impõem novos desafios às igrejas pelos cenários e pelos efeitos de problemáticas
sociais e políticas, principalmente com o enfraquecimento de instituições responderem
com suas estratégias convencionais ao “aqui” e “agora” do mal-estar material e espiritual
vivenciado pelas pessoas em tempos modernos. Além disso, a instituição de “políticas
terapêuticas” por parte de instituições confessionais que têm, na esfera da mídia o
“setting” ideal para transformação de pastorais e outros rituais de escuta e de atendimento.
Neste caso, os novos formatos de “tele atendimento midiáticos” instituem, assim,
possibilidades de respostas às demandas que continuam sendo formuladas às instituições
por parte “do mundo da vida”, onde se estrutura o “mercado de candidatos” desses
serviços. (FAUSTO NETO, 2002)
A contemporaneidade modificou as relações do homem com esse território em
que a “multiterritorialidade” expressa as “diferentes representações do espaço” e abarcam

418
Correio Braziliense 27 de maio de 1987. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/131323
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1005
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

experiências de caráter globalizante e móvel em uma nova e múltipla organização que


permitem “jogar” uma velocidade muito maior de acesso e trânsito por essas
territorialidades em redes via “ciberespaço”. (HAESBAERT, 2004)
No Brasil, somente em 1995 foram criados os provedores de acesso particular, o
que permitiu na pratica o acesso do cidadão comum a este ciberespaço. (JUNGBLUT,
2002) O que em pouco tempo se transformou em um dos principais veículos de
comunicação. Em 2015, dados do IBGE apontam que 57,5% dos domicílios pesquisados
tinham acesso à internet.
A web em pouco tempo se tornou um campo simbólico de disputas religiosas,
segundo Jungblut (2010), sendo os pioneiros nessa “colonização” das no Brasil os
católicos que lançaram em 2000 um portal e um provedor de acesso gratuito chamado
“católico”. Bem como o lançamento posterior em no “Portal Terra” do site do Padre
Marcelo Rossi tinha a sua disposição de uma web-chat para transmitir semanalmente a
missa e disponibilizar em áudios as orações diárias e missas dominicais.
De uma forma simplificada Jungblut (2010) apresenta um esquema das principais
formas de visibilidade dos evangélicos na Internet, chamando a atenção para as muitas
páginas institucionais (sendo essas de igrejas locais, regionais e até mesmo
denominacionais); as páginas publicitárias (as livrarias e lojas de material evangélico); as
páginas pessoais buscando uma divulgação da fé evangélica e chama a atenção para a
intensa interatividade individual de relacionamentos “extra” e “intramuros” aos quais os
religiosos se lançam na interatividade comunicativa via Internet buscando “a formação
de comunidades de crentes como também o trabalho convercionista”(JUNGBLUT, 2010,
p.163).
De acordo com Myklos (2010) os formatos midiáticos se adaptam aos elementos
do ritual religioso, submetendo-os a um padrão próprio, e, simultaneamente, a religião
midiatiza- se e a mídia é sacralizada. Assim, as experiências religiosas no ciberespaço –
a ciberreligião – como fenômeno midiático, nada mais são que uma busca por um lugar
encantado, mas o que acaba sofrendo esse encantamento é a própria mídia.
O site de compartilhamentos de vídeos Youtube lançado em 2005 parecia inovar
nas lógicas do compartilhamento de informações e viabilizar o acesso fácil ao cidadão
comum. Além da possibilidade de compartilhar em outras redes fora da plataforma.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1006
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Contudo, em 2006 com a compra do Youtube pelo Google a plataforma alcança rápidos
resultados e já em 2008 já é considerado um dos 10 sites mais visitados no mundo.
(BURGESS E GREEN, 2009)
Burgess e Green ainda consideram o Youtube como a possibilidade de um espaço
no qual os indivíduos podem representar suas identidades e perspectivas, envolver-se com
as representações pessoais de outros e encontrar diferenças culturais. (BURGESS E
GREEN,2009, p.112).
E nessa perspectiva iremos analisar um pouco sobre presença evangélica no
YouTube com atenção para as blogueiras femininas e como essa construção de identidade
conduz os discursos proferidos por elas nos vídeos da plataforma.

Blogueiras evangélicas no YouTube


Em meados dos anos 2000, uma nova onda começa a surgir com a pastora Sarah
Sheeva que inicia seu ministério com enfoque na “Santificação” segundo ela, uma
maneira de aconselhar as jovens cristãs no proceder e em 2007 cria o “culto das princesas
– ou culto das solteiras” na qual a pastora lança um blog no qual publica seus conselhos
as meninas cristãs e seu canal no youtube com os aconselhamentos emocionais – hoje
com mais de 47 mil inscritos em seu canal do youtube sem contar as demais redes sociais
da pastora (SILVA, 2014).
Segue-se a criação de diversas outras redes de sociabilidade entre os jovens
cristãos, com aporte no Youtube, como o Projeto Eu Escolhi Esperar (2011), no qual
incentiva os jovens a manter a pureza e se guardarem para o casamento por ser esta a
“vontade de Deus”.
A intensificação do conteúdo digital também encontra espaço para tal discussão,
e a “invasão” das blogueiras/youtuber/escritoras evangélicas a se tornarem modelos de
comportamento para as jovens cristãs.Contudo não se resume a isso, a mensagem
evangelística através do YouTube já em uma infinidade de conteúdo - que vai de já
personas consagradas no meio gospel á anônimos que ganham notoriedade na própria
plataforma - que vão dos canais de humor evangélicas, encenando situações ocorridas no
interior das igrejas, canais de aconselhamento espiritual e emocional, canais de pregação
e outros. É difícil quantificar exatamente quantos canais sobre a temática, mas essa
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1007
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

impossibilidade já demonstra o crescimento rápido do movimento no interior da rede.


Como exemplo nos ateremos o canal da Fabiola Melo, membro da Assembleia de Deus
e escritora de livros com temáticas relacionadas ao “namoro cristão”.

O canal Fabiola Melo


A youtuber/influenciadora digital evangélica inicia na plataforma em 5 de maio
de 2011 e hoje já conta com mais de 1 milhão de inscritos, em sua descrição sobre o canal
a youtuber que pretende com “humor” e “seriedade” traz diversos assuntos sobre o
namoro cristão. Em que “a maioria dos vídeos são elaborados de acordo com os temas
mais pedidos pelos jovens cristãos” Nos quais também o interlocutor pode pedir
conselhos e sugerir vídeos também, através da Fanpage no site Facebook.
O primeiro vídeo no canal é de 02 de agosto de 2012 no qual a youtuber apresenta
dicas de como “conquistar uma garota”. Na sequência a youtuber constrói o quadro no
canal intitulado “Nam.ORAR” nos quais dá conselhos e “dicas” para os jovens cristãos
que querem namorar ou estão vivendo situações difíceis. A youtuber ainda aponta para
premissas da doutrina cristã como se guardar para o casamento e o namoro entre cristãos.
No final de 2014 a youtuber alcançou a marca de 500 mil inscritos no Youtube.
Em 2015 a temática do canal passa a contar também com a presença do marido da
youtuber que inicia a série “vida de casada” contando situações do início do casamento e
coisas que mudaram do namoro para o casamento. Nesse contexto de expansão de alcance
a youtuber passa a aceitar convites para ministrar nas igrejas, principalmente em eventos
voltados ao público feminino. Para além disso, a youtuber realiza inúmeras “collabs”
(termo utilizado por youtuber para se referir a parcerias entre canais) com outros canais
de caráter evangélico – como o canal intitulado “Tô Solto” em que o personagem do canal
de humor é o fictício Jacinto Manto, um pastor pentecostal - e a receber em seu espaço
personas já consagradas do movimento gospel, construindo inúmeras relações no
ciberespaço e nessa nova religiosidade eletrônica.
A youtuber grava em sua maioria conversando com a câmera, normalmente no
seu quarto em tom intimista e realizando no interim dos vídeos pelos esquetes para
elucidar as narrativas dela, convidando sempre a participação do seu interlocutor a se
identificar com aquilo que ela conta.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1008
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Como parte do canal há vídeos de inúmeras temáticas, mas a maioria está


relacionada à temática do namoro, a jovem apresenta narrativas pessoas para aconselhar
aos jovens como proceder, entre esses há vídeos “ensinando” como a garota deve mostrar
interesse sem tomar a “atitude” que na visão da maioria dos evangélicos é papel do
homem, uma vez que ele é o “cabeça” de um lar.
Publicado em 29 de julho de 2015419 a youtuber “subiu” o vídeo intitulado
“Confissões de uma filha de pastor” em que narra às problemáticas que sofreu na infância
e adolescência por ser filha de pastor.
A assembleiana narra que detestava ser filha de pastor pela influência negativa
que toda a comunidade pertencente fazia na criação dela, entre elas o uso de calça jeans
por ser menina, um costume considerado “pecado” pelos membros mais velhos e em
algumas igrejas é parte da doutrina, e o uso de brincos narrando que o codinome filha de
pastor a impedia de ser como as outras crianças.
A menina ainda conta em tom de ironia que cansou de ouvir a frase “filhos de
pastor são os piores” e por sentir que as pessoas mudavam no tratar com ela quando
sabiam que ela era filha de pastor, influenciando assim até mesmo nos relacionamentos
por sentir muito receito quanto os outros jovens da mesma igreja, e com isso procurando
namorados que não tivessem ligação com a rede religiosa. A youtuber revela já ter
superado todas essas questões e que o trabalho dela no youtube a ajudou muito por ela
ser vista por ela mesma sem a influência do “codinome” filha de pastor.
Em vídeo publicado 19 de julho de 2017420, em ambiente extremamente doméstico
a youtuber responde à pergunta que mais fazem a ela enquanto um dos maiores canais
cristãos no youtube de como é ser uma referência para inúmeros jovens que a assistem e
se espelham nela.
A youtuber de forma leve diz que entende que todo cristão deve ser uma referência
de comportamento e ser para além de ser “seguido” como Jesus foi, ou nas redes sócias,
uma referência é um modelo a ser copiado e imitado. Em paralelo a própria narrativa
pessoal a youtuber exemplifica a temática utilizando o personagem bíblico Paulo quando
em várias de suas cartas afirma ser imitador de Cristo, e portando eles podiam ser seus

419
Acesso disponível: < https://www.youtube.com/watch?v=AuKVT7aW3-c>
420
Acesso Disponível: < https://www.youtube.com/watch?v=REH3LBNUOEs>
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1009
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

imitadores dele próprio enquanto referência de comportamento e convidando e citando


um versículo de 2 Coríntios para dizer que os cristãos são “cartas” de Cristo e convidando
o expectador a ser também uma referência para as pessoas. Bem como afirmar que o
“peso” que ela sente sobre ser essa referência para tantas pessoas faz com que ela tenha
mais cuidado com todas as suas atitudes e posicionamentos diante do público e nas redes
sociais tendo vista que ela precisa ser “imitadora” de Cristo.

Considerações Finais
Pelos múltiplos significados existentes, creio ser impossível esgotar o tema em tão
breve exposição, sendo assim julgo impossível concluir esse texto sem considerar as
inúmeras possibilidades da religião no ciberespaço – cibercultura em construção nessa
modernidade.
A construção da imagem do canal está diretamente ligada a história da jovem filha
de pastor da Assembleia de Deus e sua relação com as lideranças jovens, em que a
influenciadora digital constrói um personagem de si mesmo nas videografias para
estabelecer relação de proximidade com o público jovem cristão buscando uma
representação e uma “referência” de comportamento.
Para Pierre Bourdieu (1989) esses símbolos (padrões de comportamento,
representação) são instrumentos por excelência da “integração social”, enquanto
mecanismos de conhecimento e de comunicação, eles tornam possível o “consensus”
acerca do sentido do “mundo social” que contribui fundamentalmente para a reprodução
da ordem social: “a integração da “lógica” é a condição de integração “moral” ”.
As relações fluidas e móveis das “redes” de sociabilidade no ciberespaço permite
uma intensa e rápida chega de informação e conteúdo o que permite romper barreiras
institucionais. Essa ciberreligião opera na especificidade das videografias e que essa
teatralização do “eu” é continuamente seguida de um visível apelo para a interação. As
videografias nos permitem analisar o indivíduo que atua e dirige tendo a própria vida com
“roteiro”, nos quais é possível notar as marcas das ideologias que norteiam as falas e os
seus principais alvos de abrangência.

Bibliografia
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1010
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ALMEIDA, Fábio Chang de. O historiador e as fontes digitais: uma visão acerca da
internet como fonte primária para pesquisas. In: Aedos, n. 8, v.3, jan./jun. 2011.
ARAÚJO, Odair José Torres de. Secularização e efervescência religiosa: contrastes da
modernidade. In: XI Congresso Brasileiro de Sociologia, SP, 2003.
BERGER, Peter. A dessecularização do mundo: uma visão global. In: Religião e
Sociedade, Rio de Janeiro, 21 (1): 9 – 24; 2000.
BOURDIEU, Pierre. O poder do simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
BURGESS, Jean& GREEN, Joshua. YouTube e a Revolução Digital: como o maior
fenômeno da cultura participativa transformou a mídia e a sociedade. Tradução: Ricardo
Giassetti. – São Paulo: Aleph, 2009.
FAUSTO NETO, A. Processos Midiáticos e construções das novas religiosidades.
Revista Galáxia, n. 3, p. 151-164, 2002.
FERNADES, Rubem Cesar; SANCHIS, Pierre; VELHO, Otávio Guilherme;
CARNEIRO, Leandro Piquet; MARIZ, Cecília; MAFRA, Clara. Novo Nascimento: os
Evangélicos em Casa, na Igreja e na Política. Editora Mauad, RJ, 1998.
FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment. Tese
(Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas, São Paulo, 1993.
JUNGBLUT, Airton Luiz. O uso religioso da Internet no Brasil. PLURA, Revista de
Estudos de Religião, vol.1, nº 1, 2010, p. 202-212
LÉVY, Pierre (1999). Cibercultura. São Paulo: Editora 34.
MARIANO, Ricardo. Efeitos da secularização do Estado, do pluralismo e do mercado
religiosos sobre as igrejas pentecostais. Civitas, Porto Alegre, v. 3, nº 1, jun. 2003.
MYKLOS, Jorge. A construção de vínculos religiosos na cibercultura: a ciberreligião.
Tese (Doutorado) – Programa de comunicação e semiótica, PUC-SP. São Paulo, 2010.
PIERUCCI, Antônio Flávio. Reencantamento e dessecularização. A propósito do
autoengano em sociologia da religião. In: Novos Estudos Cebrap, n. 49, nov. 1997. p. 99-
117.
SILVA, Daniele Renata da. Eu sou princesa, fora cachorrada: uma análise do discurso da
pastora Sarah Sheeva nos Aconselhamentos Sentimento. Dissertação (Mestrado) –
Departamento de Letras, Universidade Federal de Viçosa, MG, 2014.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1011
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

VILLASENOR, Rafael Lopez. As práticas religiosas no ciberespaço: nova fronteira


religiosa. Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano IX, n. 44, 2013.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1012
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Para construir-se a Transamazônica será preciso sanear o ambiente e curar o


homem”: as políticas médico-sanitárias do governo Médici na BR-230 (1970-74)

ERIKA MARQUES DE CARVALHO


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde
da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Pesquisa financiada pela CAPES

1. Introdução421
Em 16 de junho de 1970, no Decreto-Lei n. 1.106, como instrumento do Programa
de Integração Nacional (PIN), a construção da Rodovia Transamazônica (BR-230) era
anunciada pelo então presidente da República Emilio Garrastazu Médici (1969-1974).
Efetivada por diversos órgãos governamentais, entre eles o Ministério dos Transportes e
a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), o projeto da BR-230
pretendia ligar o oceano Atlântico, a partir de Cabedelo, na Paraíba, ao oceano Pacífico,
em Lima, no Peru.
As justificativas oficiais utilizadas pelo governo Médici para realizar a construção
da BR-230 foram: a opção de livrar os nordestinos do presente cruel resultado da seca
crônica vivida por estes e a possibilidade, tantas vezes pretendida na história nacional por
diversos governos, de ocupar, efetivamente, a região amazônica. As consequências do
empreendimento seriam a expansão das fronteiras econômicas do país, já que incorporaria
uma área ainda inexplorada economicamente e repararia desequilíbrios inter-regionais ao
descentralizar os polos econômicos brasileiros que eram concentrados na região Centro-
Sul.
E havia ainda outra motivação para a construção da Transamazônica por parte da
ditadura civil-militar: a legitimidade que o empreendimento traria para o regime que
enxergava neste a ideia síntese de um objetivo comum e desejável de todos os brasileiros,
promovendo uma “mobilização social de afeto” da população que poderia vir a aderir e a
aceitar o regime, que desfrutava de pouca popularidade, a partir da rodovia. (MENEZES,

421
Esse texto é a primeira escrita sobre uma das várias perspectivas do meu novo objeto de pesquisa de
doutorado, a Transamazônica. As pesquisas sobre esse novo tema de tese se iniciaram no mês de maio.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1013
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

2007, p.87). Posto que, esta traria maior integração territorial e nacional, levaria o
desenvolvimento e a ocupação estatal e demográficaao “vazio” da região amazônica,
considerada tão importante como fronteira e como fornecedora de recursos naturais.
No entanto, havia alguns parlamentares e jornalistas que buscavam semelhanças
entre o empreendimento da rodovia Transamazônica e a Estrada de Ferro Madeira-
Mamoré (EFMM) que foi construída entre 1907 e 1912422. Esta comparação consistia no
fracasso da ferrovia,consideradoassim por diversas autoridades políticas e técnicas,
justificado pelo número impressionante de mortes causadas pelas doenças tropicais,
principalmente a malária, que acometiam os seus trabalhadores.423
Assim como afirmaram Jaime Benchimol e André Felipe Cândido da Silva: “De
todos os empreendimentos ferroviários, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré é talvez o
mais emblemático quanto ao impacto que as doenças ditas tropicais tiveram nas obras de
infraestrutura associadas à modernização, nesse período da história republicana [Primeira
República]. A assombrosa mortalidade entre os trabalhadores valeu-lhe o epíteto de
Ferrovia do Diabo.” (BENCHIMOL; SILVA, 2008, p.741).424
E assim, tendo o mesmo cenário da região amazônica e os mesmos fascínios e
contrariedadesem relação a um grande empreendimento realizado pelo Estado brasileiro,
que se dedicava à modernização e desenvolvimento nacional, a comparação entre a
rodovia e a ferrovia, para alguns, era inevitável. Dessa forma, os esforços federais, para
além da engenharia e do financiamento, voltaram-se também para os problemas já
existentes, e para os futuros, no âmbito da saúde e do saneamento nos municípios e
núcleos populacionais pelos quais a Transamazônica passaria.

422
Com o Tratado de Petrópolis (1903), o Brasil entrava em acordo com a Bolívia para a anexação de parte
do território deste país que ficou conhecido como o estado do Acre. O governo brasileiro pagaria uma
indenização de dois milhões de libras esterlinas e deveria arcar com a construção da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré. Esta possibilitaria a comunicação do território boliviano com o oceano Atlântico e assim
o escoamento da produção de borracha do país poderia ser realizado. (FERREIRA, 2005).
423
Segundo Manoel Rodrigues Ferreira, calcula-se que tenham sido 6.208 mortes. (FERREIRA, 2005, p.
301).
424
Na tentativa de mudar esse estigma, durante o auge da construção da ferrovia, em 1910 e 1911, a empresa
responsável pela EFMM contratou 11 médicos, dentre estes, quatro trabalharam no hospital e o restante nos
canteiros de obras. Os integrantes do “quadro superior” (engenheiros, médicos e técnicos) do
empreendimento eram estadunidenses e havia uma alta rotatividade na leva de trabalhadores, pois em
poucos meses nos canteiros de obras estes adoeciam, geralmente da malária. (BENCHIMOL; SILVA, 2008,
p. 742).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1014
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

2. As políticas médico-sanitárias na BR-230


A Operação Oswaldo Cruz é criada pelo então Ministro da Saúde, Rocha Lagoa
(1969-1972), em setembro de 1970, para realizar trabalhos de medicina preventiva e
assistencial na Amazônia visando, sobretudo à proteção dos núcleos de colonização
previstos no PIN, a serem implementados nas rodovias Transamazônica e Santarém-
Cuiabá. A Operação era integrada pela Fundação Serviços de Saúde Pública (FSESP)425,
Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM)426 e o Instituto Evandro
Chagas (IEC)427.
A FSESP investia cerca de vinte e cinco milhões de cruzeiros por ano no
desenvolvimento de ações de saúde e saneamento na Amazônia. A assistência médico-
sanitária, com o a tentativa de chegar ao objetivo imediato de promover saúde, prevenir,
diagnosticar e tratar as enfermidades, foram realizadas por unidades sanitárias e unidades
mistas, nas quais funcionavam as atividades outras instituições, como a SUCAM com
campanhas de vacinação, por exemplo. Essas unidades realizavam, a partir da Fundação,
atividades de enfermagem, educação sanitária e de saúde dental.
Em 1972, foi dada prioridade, pela FSESP, às medidas de saneamento, assistência
a crianças de zero a quatro anos de idade, ao controle de doenças transmissíveis,
destacando-se a tuberculose e a lepra. No que se refere a saneamento básico, nesse mesmo
ano, foram realizadas cerca de seis mil vistorias em habitações com o intuito de melhorias
domiciliares, compreendendo a implantação de privadas higiênicas, lavatórios, pias,

425
A FSESP era antes de 1960 o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) regulamentado pelo Decreto-
lei de n. 4.275 de 1942, vinculado ao Ministério da Saúde. (SOUZA, 2011).
426
Órgão criado em 1970 com a fusão do Departamento Nacional de Endemias Rurais (DENERu; 1956),
da Campanha de Erradicação da Malária (CEM; 1965) e da Campanha de Erradicação da Varíola (CEV;
1966).
427
O IEC foi criado pela Lei n. 59 de 11 de novembro de 1936 como Instituto de Patologia Experimental
do Norte (IPEN), passando a levar o nome do seu cientista e primeiro diretor científico em 1940. Em 1970,
o IEC era transferido para a recém-criada Fundação Oswaldo Cruz, na qual foram reunidos todos os centros
de pesquisa do Ministério da Saúde. Em 1975, o IEC voltaria a reintegrar a FSESP. (PINHEIRO, 1986, p.
70).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1015
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

banheiros, tanques, filtros, melhorias em poços e cisternas, reservatórios e ligações à rede


de água. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1973).
O saneamento do ambiente também exigia esforços da FSESP, que para tal
elaborava projetos de sistemas de abastecimento de água e esgoto, além de executar tais
obras. Integravam a Fundação diversos auxiliares e enfermeiros, que se formavam em
suas Escolas de Enfermagem e de Pessoal Auxiliar em Manaus (AM) e em Santarém
(PA), respectivamente, entre outros cursos do seu programa de capacitação.
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1973, p. 35-47).
Dedicando quase o mesmo valor que a FSESP anualmente, a SUCAM exercia seu
papel em ações de medicina preventiva no combate às endemias, atuando fortemente com
operações com o uso de inseticidas para a campanha de erradicação da malária na região
amazônica. A malária era um grande problema de saúde na região, e se agravava com o
fluxo migratório do processo de colonização. Em 1972, assegurados os recursos
financeiros indispensáveis pela administração do Ministério, à época, a SUCAM pode
estender as operações de ataque ao mosquito anopheles em áreas antes não resguardadas,
sendo ao total trabalhadas mais de 112 mil localidades próximas ao trajeto da rodovia
Transamazônica. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1973, p. 51).
Paralelamente às operações de inseticidas, a SUCAM desenvolvia atividades de
avaliação epidemiológica através da busca passiva e ativa de casos de malária e de outras
doenças como a febre amarela, a leishmaniose, filariose, tracoma, bouba e
esquistossomose.428 E as campanhas de vacinação tinham função fundamental para o
alcance dos objetivos da Operação Oswaldo Cruz de controle das doenças endêmicas na
região amazônica.
A atuação do Instituto Evandro Chagas estava no âmbito da realização de estudos,
pesquisas, levantamentos e coletas sobre doenças que ocorriam na região da rodovia. A
exemplo disso, a construtora Mendes Júnior429 solicitou em junho de 1973 ao IEC, que

428
Mesmo que algumas dessas doenças não ocorressem em grande número, como a filariose que se
concentrava mais especificamente nas imediações da cidade de Belém, faziam parte do objetivo da
Operação Oswaldo Cruz de levar saúde e saneamento para os colonos e trabalhadores da região amazônica
e da BR-230.
429
A Construtora Mendes Júnior foi uma das quatro empreiteiras que ganhou a concorrência para construir
a BR-230. As outras eram: Construtora Queiroz Galvão, Empresa Industrial Técnica e Cristo Redentor.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1016
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

este investigasse e esclarecesse a ocorrência de uma doença que havia causado mortes
súbitas (entre 24 horas e 36 horas do início do aparecimento dos sintomas) de três
trabalhadores dos acampamentos da construtora em Gurupi e Itinga, localidades às
margens da rodovia Transamazônica. (BENSABATH, 1973).
Outras duas significativas atuações do IEC foramos estudos da chamada Febre
Negra de Lábrea e na Síndrome Hemorrágica de Altamira (SHA). A primeira doença até
1974, que ocorria especificamente na cidade de Lábrea (AM), ainda tinha sua etiologia
desconhecida. Somente após consulta com outras instituições e médicos estrangeiros, os
estudos passaram a ser orientados no sentido da identificação de uma toxina de origem
bacteriana, de cogumelo ou levedura, cuja proliferação era favorecida pelas condições
ecológicas da região. E voltaram as atenções a aflatoxina que possivelmente estivesse se
desenvolvendo em alimentos habitualmente consumidos, como por exemplo, a farinha de
mandioca.
A SHA começa a ser registrada no início de 1970, quando surgem casos de uma
enfermidade hemorrágica em imigrantes chegados recentemente em Altamira. Os
primeiros casos da síndrome ocorrem seis meses após o início da chegada de imigrantes
para a colonização das terras da rodovia. “Antigos moradores de Altamira referem a
ocorrência no passado de casos esporádicos de enfermidade similar, porém sempre em
pessoas de fora.” (PINHEITO et al., 1986, p.797). O número de casos em 1972 era de 22,
já em 1973 aumentou para 79. O estudo da Síndrome foi prioritariamente realizado pelos
técnicos e médicos do IEC que faziam regulares levantamentos e coletas locais, levando
estes aos seus laboratórios localizados na cidade de Belém (PA) para maior análise.
A construção da Transamazônica possibilitou a ampliação dos estudos sobre vírus
realizados pelo Instituto Evandro Chagas por dezesseis anos. Dessa forma, não foi
somente a rodovia que pode ser viabilizada pelos estudos, controle e solução de doenças
pelo instituto e por outros órgãos governamentais, que ocorreram durante a obra, mas
também estes tiveram suas pesquisas beneficiadas pelas oportunidades trazidas pela BR-
230.

Esta faliu em 1971, passando o seu trecho a ser divido então, pela Mendes Júnior e a S. A. Paulista.
(CAMPOS, 2015, p. 382).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1017
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Além de enfrentar as endemias na região amazônica, as instituições de controle


médico-sanitário iriam também se deparar com doenças trazidas pelos próprios migrantes
que se deslocavam para a estrada com o propósito de colonizar. A esquistossomose,
doença endêmica, à época, em diversos estados nordestinos,passava a ser preocupar as
instituições integrantes da Operação Oswaldo Cruz. O médico Brito Bastos, coordenador
da Operação, foi o primeiro a alertar os Ministérios do Interior e da Saúde sobre o
aumento dos casos da doença nas imediações da rodovia Transamazônica.
Acusado de não realizar os devidos exames nos migrantes nordestinos, o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)430 nega os surtos de
esquistossomose e se defende relatando que havia uma forte triagem dos colonos e
voluntários que chegariam para colonizar a rodovia, através de rigorosos exames feitos
por uma equipe de médicos que ficavam localizados no município de Altamira431.
Segundo ainda agentes do INCRA, tanto os colonos que seguiam para a região por
intermédio do instituto, quanto os voluntários que se deslocavam isoladamente eram
submetidos aos exames assim que chegavam a Altamira e somente depois destes,
integravam seus núcleos de habitação e de trabalho.

3. Conclusão432
Inicialmente, em seus primeiros meses de existência, a Operação Oswaldo Cruz
atuava sem a necessária coordenação entre seus órgãos governamentais. A multiplicidade
destes e o débil conhecimento sobre como estruturá-los em conjunto para uma efetiva
operação de saúde e de saneamento, fez com que contribuísse para os já existentes fatores
que tornavam ainda mais complexa a problemática da saúde nas áreas da BR-230.

430
O INCRA é criado pelo Decreto-Lei n. 1.110 de 09 de julho de 1970 e é a autarquia federal, vinculada
ao Ministério da Agricultura, responsável pela colonização da Transamazônica.
431
A cidade de Altamira (PA) era considerada pelas autoridades que realizavam a construção da
Transamazônica como uma espécie de capital da mesma, onde se concentravam os núcleos e sedes de
praticamente todas as instituições ligadas ao grande empreendimento estatal.
432
O início de uma pesquisa foi apontado aqui. Há ainda muitos documentos a serem investigados, como
por exemplo, os do Fundo da FSESP, no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo
Cruz (DAD/COC), que ainda precisam ser observados por completo. Há muitas perguntas a serem
respondidas sobre as políticas médico-sanitárias realizadas pelo governo Médici durante a construção da
rodovia Transamazônica.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1018
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Após alguns insucessos da Operação, que levavam a mais comparações com a


EFMM, o Ministério da Saúde revisou seu plano para a região e passou a formular e a
intensificar programas para a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças,
salientando as medidas destinadas ao combate às endemias e à assistência médica-
cirúrgica, além de promover benefícios com o abastecimento de água e o saneamento
domiciliar.
E mesmo que os gritos de alerta para as semelhanças em relação à EFMM tenham
sido exageradas, estas de alguma forma fizeram com que tanto os governos municipais,
estaduais quanto o federal prestassem atenção às situações sanitária e médica da região
amazônica. E que assim passassem a elaborar projetos e iniciativas a partir das
instituições ligadas ao Ministério da Saúde e consecutivamente à Operação Oswaldo Cruz
para estudos, controles e soluções dos problemas médico-sanitários que apareciam nos
canteiros de obra e de colonização da Transamazônica, viabilizando então a própria
rodovia.

4. Documentação

4.1. Fontes primárias:


ANDREAZZA, Mario David. Perspectiva para os transportes. Ministério dos
Transportes, Secretaria Geral. Rio de Janeiro. 2v, 1974.
_____. Transamazônica. Pronunciamento feito na Câmara dos Deputados em 1º Julho de
1970. Brasília, 1970, 36 p.
BENSABATH, Gilberta. Investigação sobre mortes súbitas ocorridas em trabalhadores
dos acampamentos da Construtora Mendes Júnior em Gurupi e Itinga. Fundação Oswaldo
Cruz/Instituto Evandro Chagas, 1973.
BRASIL, Presidência da República. Metas e bases para a ação de governo. Brasília, 1970.
BRASIL, Departamento Nacional de Estradas de Rodagem. Transamazônica. Brasília,
1972.
BRASIL, Presidência da República. I Plano Nacional de Desenvolvimento (1972-74),
PND, Brasília, 1972.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1019
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BRASIL, Leis, decretos. Operação Amazônia – Legislação Básica, n. 2. Belém: SUDAM,


1968.
MÉDICI, Emílio Garrastazu. Conferência da SUDENE. Brasília, junho de 1970.
_____. O jogo da verdade. Departamento de Imprensa Nacional, junho de 1970.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Saúde e Saneamento na Transamazônica. Belém: Plano de
Integração Nacional/Ministério da Saúde, 1973.
SUPERINTENDÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO DA AMAZÔNIA. Estudo
Socioeconômico do Eixo da Transamazônica e da Cuiabá-Santarém. Belém:
SUDAM/FSESP, 1974.
_____. Elementos para o aperfeiçoamento da Ação Planejada do Poder Público na
Amazônia. Belém: SUDAM, 1973.
_____. Relatório da Equipe Coordenadora das atividades da SUDAM nas áreas das
Rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá. Belém: SUDAM, 1971.
_____. Subsídios ao Plano Regional de Desenvolvimento (1972-74). Belém: 1971.
_____. Operação Amazônia – Discursos. Belém, SUDAM, 1968.
_____. O novo sistema de ação do governo federal na Amazônia. Rio de Janeiro: Editora
Spencer, 1967.
_____; COSTA, José de Cavalcanti. Programa de Integração Nacional –Transamazônica.
Belém, 1970.
_____; FUNDAÇÃO SERVIÇOS DE SAÚDE PÚBLICA. Estudo socioeconômico do
eixo da Transamazônica e da Cuiabá-Santarém. Belém: SUDAM, 1974.

4.2. Fontes secundárias:


GOMES, Flavio Alacaraz. Transamazônica: a redescoberta do Brasil. São Paulo: Editora
Cultura, 1972.
MORAIS, Fernando; GONTIJO, Ricardo; CAMPOS, Roberto de Oliveira.
Transamazônica. São Paulo: Brasiliense, 1970.
PEREIRA, Osny Duarte. Transamazônica: prós e contras. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1971.
REBELO, Darino Castro. Transamazônica: integração em marcha. Rio de Janeiro: Centro
de Documentação e Publicações do Ministério dos Transportes, 1973.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1020
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

REIS, Olegário Pereira. Uma Contribuição à análise da experiência de planejamento na


Amazônia: o caso SUDAM (1966-1975). 246 f. Tese (Livre Docência), Universidade
Federal do Pará, Belém, Pará, 1976.

5. Referências Bibliográficas
ANDRADE, Márcio Magalhães de. Proposta para um resgate historiográfico: as fontes
do SESP/FSESP no estudo das campanhas de imunização no Brasil. História, Ciências,
Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 10 (suplemento 2), pp. 843-848, 2003.
ANDRADE, Rômulo de Paula. A Amazônia na era do desenvolvimento:
saúde,alimentação e meio ambiente (1946-1966). 378 f. Tese (Doutorado em História das
Ciências e da Saúde), Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, 2012.
BENCHIMOL, Jaime Larry; SILVA, André Felipe Cândido da. Ferrovias, doenças e
medicina tropical no Brasil da Primeira República. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos,Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, jul/set. 2008.
BRAGA, Magno Michell Marçal. BR-230,Nordestinos na Rota Transamazônica: a
trajetória dos migrantes no estado do Pará (1970-1974). 135 f. Dissertação (Mestrado em
História), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco, 2012.
CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a
ditadura civil-militar, 1964-1988.Niterói: Eduff, 2015.
CARDOSO, Fernando Henrique; MÜLLER Geraldo. Amazônia: expansão do
capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1978.
CAUSEY, Calixto E. Implantação dos Estudos sobre Arbovírus na Região Amazônica.
In: Fundação Serviços de Saúde Pública. Instituto Evandro Chagas: 50 anos de
contribuição às ciências biológicas e à medicina tropical. Ministério da Saúde, Belém:
Fundação Serviços de Saúde Pública; 1986.
FERREIRA, Manoel Rodrigues. A Ferrovia do Diabo. São Paulo: Melhoramentos, 2005.
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no
Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997.
FONSECA, Teresinha. A Amazônia brasileira pré-sustentabilidade: um estudo crítico
discursivo dos planos de desenvolvimento do governo federal (1964 a 1987). 198 f. Tese

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1021
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(Doutorado em História Social), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,


Rio de Janeiro, 2016.
GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MENEZES, Fernando Dominiensce. Enunciados sobre o futuro: Ditadura Militar,
Transamazônica e a construção do “Brasil grande”. 200 f. Dissertação (Mestrado em
História), Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2007.
PINHEIRO, Francisco de Paula. Histórico do Instituto Evandro Chagas (1950-1985). In:
Fundação Serviços de Saúde Pública. Instituto Evandro Chagas: 50 anos de contribuição
às ciências biológicas e à medicina tropical. Ministério da Saúde, Belém: Fundação
Serviços de Saúde Pública; 1986.
______; BENSABATH, Gilberta; FREITAS, Ronaldo B.; COSTA JÚNIOR, Domingos.
Síndrome Hemorrágica de Altamira. In: Fundação Serviços de Saúde Pública. Instituto
Evandro Chagas: 50 anos de contribuição às ciências biológicas e à medicina tropical.
Ministério da Saúde, Belém: Fundação Serviços de Saúde Pública; 1986.
REIS, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição
de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
_____. Ditadura militares, esquerdas e sociedade. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2005.
SOUSA, Amandia Braga Lima. A Fundação Serviços de Saúde Pública (FSESP) no
Amazonas: Um estudo sobre sua atuação junto aos indígenas. 87 f. Dissertação (Mestrado
em Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônia), Universidade Federal de Manaus,
Manaus, AM, 2011.
SOUZA, Matilde. A epopeia da Transamazônica: 90 milhões em ação. 210 f.Dissertação
(Mestrado em Ciência Política), Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
Minas Gerais, 1995.
SOUZA, César Martins de. Ditadura, grandes projetos e colonização no cotidiano da
Transamazônica. Revista Contemporânea – Dossiê 1964-2014: 50 anos depois, a Cultura
Autoritária em questão, ano 2, n. 5, 2014, v. 1, pp. 1-19.
_____. Morte, saúde e ditadura na construção da Transamazônica. Tempos Históricos, v.
19, pp. 65-91, 2º semestre de 2015.
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1988.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1022
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1023
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A centralidade do Rio de Janeiro na preservação do império português no século


XVIII

ESTEVÃO BARBOSA DAMACENA


Mestrando em História Política - Programa de Pós Graduação em História da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro - CAPES

Introdução
O Rio de janeiro ao longo do século XVIII foi se constituindo como um dos
espaços mais importantes na articulação política e econômica do império português em
seu complexo atlântico. A capitania Fluminense exerceu um papel crucial para o
cumprimento dos interesses e objetivos metropolitanos, em especial para o seu lado
atlântico. A historiografia recente tem mostrado e evidenciado como se deu este processo.
As conclusões têm apontado para o fato de que o Rio de Janeiro constituiu-se como um
lócus imprescindível na formulação de políticas de defesa do atlântico lusitano, num
contexto de constante tensão geopolítica presente no século XVIII. Nas palavras
doravante, tentaremos esboçar a partir da historiografia sobre o tema as causas e motivos
deste crescimento em importância da cidade no funcionamento e manutenção da
soberania lusitana em seu lado atlântico.

O século XVIII ficou marcado na história do ocidente pelo acirramento bélico que
se sucedeu entre as potências europeias. Cresceram as disputas dos países europeus por
mercados e rotas comerciais no ultramar. Após o tratado de Utrecht, acontecimento que
pôs fim à guerra de sucessão espanhola, Novaes afirma: “no novo equilíbrio assentado
em Utretch, o mundo colonial ultramarino pesava significativamente como elemento
essencial do equilíbrio das forças europeias.” (Novaes apud Bicalho, 2003:56) Não
obstante, o século XVIII para Bicalho pode ser entendido como um período de forte
“concorrência colonial” entre os países europeus. A busca por hegemonia no velho
continente tinha uma amálgama com as disputas de rotas comerciais e marítimas no
ultramar.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1024
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No caso do império português, estudos recentes têm mostrado o quanto o império


ao longo daquele século sofreu um processo de atlantização. Se aos finais do século XVI
e boa parte do XVII, a hegemonia marítima e comercial dos lusitanos era pungente nos
quatro cantos do globo, - no limite era um império que o sol não se punha- no século
XVIII, porém, esta situação se modificou. Portugal perdeu importantes praças mercantis
no Estado da índia, tais como Ormuz, Tanger, Ceilão, Coxim, Bombaim. Neste sentido,
houve uma grande discussão entre os estadistas portugueses sobre as políticas a serem
tomadas para que este império não se esvaísse por completo.
As atenções políticas de Portugal voltaram-se com grande força para seu
complexo atlântico, tendo a preservação da América portuguesa seu maior objetivo. Há
no diagnóstico dos estadistas lusitanos uma constatação de dependência econômica de
Portugal para com o Brasil, e neste sentido, faziam-se necessárias medidas para que esta
colônia não se perdesse, tal como já vinha acontecendo no oriente. D. Luís da Cunha, um
dos mais influentes estadistas na primeira metade do século XVIII, participou ativamente
de políticas imperiais que visaram a preservação do Brasil. Escreveu ativamente sobre a
condição de atraso econômico e cultural do reino de Portugal frente a outros países
europeus, como também imbuiu-se de um conhecimento geográfico vasto da América,
participando na demarcação de limites resultantes do tratado de Madri de 1750. Foi ele
também um dos pioneiros em perceber a mudança de eixo que vinha acontecendo no
império, deixando de ser o oriente o principal lócus de gerenciamento do mercantilismo
lusitano, e sim o atlântico, tendo o Brasil um papel de destaque. Em seus escritos, D. Luis
da Cunha observa que “o príncipe, para poder conservar Portugal, necessita totalmente
das riquezas do Brasil, e de nenhuma maneira das de Portugal.” (FURTADO, 2010: 380).
Surge no coração e na mente dos estadistas lusitanos que o Império Português
deveria concentrar suas forças no atlântico, cuja preservação do Brasil era mais que
essencial. Nas palavras de Bicalho, a política externa de Portugal naquele momento teve
como principal pauta a “segurança das rotas marítimas e comercias de suas colônias no
atlântico” (BICALHO, 2003: 53). E como vimos pelas palavras de D. Luis da Cunha, o
Brasil desempenhava um papel fulcral na sobrevivência deste imenso portugal.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1025
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Agora talvez fique a pergunta. Por que precisamente a cidade do Rio de Janeiro
constitui-se como o lugar chave na articulação política de defesa do complexo atlântico
sul da América? Não obstante ainda, porque o porto de sua cidade transformou-se em
lugar estratégico para a manutenção da rede de comércio dentro do império?
Importante ressaltar o fato de que na história é importante pensarmos na noção de
processo. A cidade do Rio de Janeiro não adquiriu este status de importância como região
de defesa e de gerenciamento mercantil no império português num “passe de mágica”. Se
tivermos de puxar um fio que nos levaria ao inicio deste processo, talvez chegaríamos
ainda no século XVII com a chamada repartição sul iniciada em 1602. Basicamente, o
que se propunha neste projeto era uma nova divisão do Estado do Brasil. As capitanias
situadas ao centro-sul da América passaram a ser subordinadas diretamente ao Rio de
Janeiro, e não mais à Bahia, como até então funcionava. Tal decisão foi tomada a partir
de um plano de melhorar a comunicação entre estas regiões. O Rio de Janeiro, por estar
situada em uma região geograficamente meridional, adquiriu esta responsabilidade de ser
a cidade cabeça desta nova repartição. Esta nova configuração da divisão administrativa
da colônia deu um start neste contínuo processo de relevância da cidade na administração
colonial, sendo ela um importante espaço nas determinações políticas que tinham
ressonância nas capitanias a ela subordinada. Seu governador tinha a jurisdição de dar
ordens aos outros governadores e capitães mores.
Em 1662, oficialmente se encerrou a referida divisão do território brasileiro.
Restabeleceu-se o antigo modelo, não tendo mais uma divisão geográfica e de jurisdições.
Seria o governador-geral situado na Bahia o responsável novamente por todas as outras
capitanias do Estado do Brasil.
Entretanto, na prática não foi isso que se sucedeu. A historiadora Mônica Ribeiro
enfatiza o fato de que, mesmo com o fim da repartição, o Rio de Janeiro manteve-se como
cabeça das capitanias do sul, uma vez que ainda aglutinava e comandava questões de base
política e jurídica naquela região. Em regimento de 1669, o príncipe regente Pedro II
recomendou ao ouvidor geral que residisse na cidade do Rio de Janeiro “por ser a
principal cidade daquela repartição e no meio dela que fica mais acomodado para as partes
irem requerer sua justiça[...]” (RIBEIRO, 2016: 107). Portanto, mesmo com o fim da
repartição sul, o Rio de Janeiro manteve seu status de sede daquela região.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1026
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Em finais do século XVII, efetivada a descoberta de ouro pelos paulistas como


conseqüência de seus desbravamentos do sertão, o Rio de Janeiro juntamente ao seu porto
constituíram-se como a principal praça mercantil do império. Não só pelo fato de ser
aquele porto responsável por escoar as remessas do metal amarelo extraído do interior
das minas, foi ele também um dos principais pontos de recepção de mercadorias e
produtos vindos de Portugal e de outros países- via contrabando-, uma vez que o mercado
consumidor cresceu vertiginosamente nas regiões auríferas. Luís Vahia Monteiro,
governador da cidade, em 1727 dissera, “esta terra é hoje um império, donde carrega todo
o trafico da América, e descarrega todo o peso, e aviamento dos governos das Minas
Gerais e São Paulo” (JUCÁ, 2003: 148). Nas investigações de Antônio Carlos Jucá, a
cidade do Rio de Janeiro superou Salvador como espaço de maior recepção de
mercadorias do reino, dado o pujante mercado consumidor estabelecido na região das
minas, como já foi dito. Na opinião de Jucá, o Rio de Janeiro entrou para a “encruzilhada
do império”. (JUCÁ, 2003: 148)
Paralelamente a esta importância econômica adquirida pela cidade, destacaríamos
de igual modo sua posição geográfica meridional, fato este que sublinhou sua importância
estratégica na construção da geopolítica do império. Como vimos acima, foi estabelecida
ainda no século XVII a posição de destaque da cidade com a repartição-sul. No século
XVIII esta posição manteve-se e cresceu. Era a capitania fluminense o centro aglutinador
de políticas de defesa de toda a América portuguesa. Em ofício ao poder régio em 1762,
Gomes Freire, então governador da cidade, traz suas considerações.

Este governo [Rio de Janeiro] é a mais importante jóia deste tesouro. Aqui
correm e correrão ao diante os mais importantes negócios, tanto da coroa,
como dos vassalos; e assim se deve contar como mural destas províncias, de
onde podem socorrer e animar as outras. (BICALHO, 2003: 84)

Este sentimento de Gomes freire era a síntese de uma constatação geral dos
estadistas portugueses àquela época. Com a emergência da monarquia Josefina, e
conseqüentemente de um dos validos mais conhecidos da história do império, o Marquês
de Pombal, a noção de importância da cidade cresceu ainda mais. Tornou-se cada vez
mais um consenso nas discussões entre os estadistas pombalinos de que a defesa da
América era mais que crucial para a sobrevivência do império. Não a toa que o ímpeto

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1027
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

reformista de Pombal e seus aliados convergia para uma tática de defesa e manutenção
de seus territórios além-mar, em especial o Brasil. Pombal em suas correspondências
insistia, “a perda do Rio de Janeiro significa a perda do Brasil.” (BICALHO, 2007: 263)
Havia uma demanda dos locais na capitania fluminense de se melhor gerir a
questão da justiça na cidade. Não a toa que, após muitos pedidos, em 1751 o Rio de
Janeiro recebeu um tribunal da relação próprio, órgão que até então só existia na Bahia
no presente Estado do Brasil. Para ter-se uma ideia dos números demográficos, já em
1751 a população do Rio de Janeiro contava com 50.000 habitantes contra os 46.000 da
Bahia em 1757 (HOLLANDA, 2004: 44).
Nada tirou mais o sono do Marquês de Pombal do que os anos que se sucederam
durante a guerra dos Sete anos (1757-1763). Portugal tentou assumir uma postura de
neutralidade até o ultimo segundo, uma vez que não fazia parte de sua estratégia, no
cenário internacional, angariar qualquer tipo de tensão com outros países europeus, pois
sua marinha de guerra estava longe de ser equiparada com as outras potências em disputa,
França e Inglaterra. Tendo estes dois países declarado guerra, Portugal optou por manter
sua aliança com os ingleses, parceiros de longa data. Porém, insurgiu um clima de
bastante tensão entre as autoridades lisboetas sobre a preservação de seu patrimônio no
além-mar, uma vez que, com a guerra, suas colônias poderiam ser invadidas. Em 1763,
ao fim do conflito, os estadistas pombalinos decidiram transferir a capital da colônia
sediada na Bahia para o Rio de Janeiro, selando assim por completo sua posição de
destaque dentro do jogo dos interesses imperiais.
As razões efetivas desta transferência não foram até então descobertas pela
historiografia, porém Bicalho nos dá algumas pistas em seu livro a cidade e o império.
Bicalho compreende que, se tivéssemos que traçar os objetivos desta decisão de se
transferir a capital, estes seriam respaldados por questões de defesa e aparato militar.
Na conjuntura do período pombalino, o que se tinha era uma preocupação com as
fronteiras. Havia uma necessidade de uma precisa demarcação dos limites entre as
colônias ibéricas, uma vez que o obsoleto tratado de Tordesilhas já não servia como ponto
de referência na divisão dos limites. Em 1751 selou-se o tratado de Madri entre Portugal
e Espanha como um meio de achar uma solução para este impasse. No norte, Francisco
Xavier de Mendonça Furtado foi o principal comissário e ao sul, Gomes Freire então
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1028
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

governador da capitania fluminense. O tratado de Madri não teve sucesso em seus


desígnios. No sul, a situação condensou-se em tons dramáticos, pois os jesuítas e
indígenas se recusaram a sair do território das sete missões, desencadeando assim num
conflito bélico.
O fato é que o eixo sul da América portuguesa adquiriu uma grande preeminência
como espaço de diretrizes políticas e econômicas neste vasto império. O território de Rio
de Grande e Santa Catarina estavam sendo assediados pelos espanhóis, e não raro havia
denuncias de forte contrabando naquela região. Por outro lado, os portugueses também
se beneficiavam com o comércio no estuário da prata. Portanto, o “centro” da colônia foi
se deslizando rumo ao sul, uma vez que geograficamente a Bahia não tinha condições,
comparado ao Rio de Janeiro, de fornecer suporte político e militar para aquela região,
que há muito era um barril de pólvora. Vale dizer que a Colônia do Sacramento foi
invadida pelos espanhóis na guerra de sucessão em 1705. A cidade do Rio de Janeiro foi
saqueada em 1711 pela fragata de Duguay-Trouin, causando um pânico geral nos
habitantes e autoridades. Portanto, o eixo sul foi se tornando uma região bem conflituosa
ao longo do século, fazendo que as atenções metropolitanas voltassem gradativamente
para aquela região.
Os cuidados e os diagnósticos dos estadistas lusitanos sobre a tensão geopolítica
no eixo sul do atlântico não foram equivocadas. Já no período pombalino, o clima de
beligerância entre os reinos ibéricos só aumentou. Em duas ocasiões, uma em 1763 e
outra em 1773, os espanhóis invadem o Estado do Rio Grande, reivindicando partes que
não foram respeitadas, por parte dos portugueses, no tratado de Madri (1750). O secretário
de Estado da Marinha e domínios ultramarinos àquele tempo, Martinho de Melo e Castro,
estava bem ciente deste perigo de invasão um ano antes, ainda em 1772. Neste sentido, o
secretário não poupou energias em alertar e aconselhar o vice-rei, Marquês do Lavradio,
na tomada de providências, pedindo que fossem enviadas tropas militares e mantimentos
para melhor se proteger de um possível ataque. Em ofício enviado ao Lavradio, Martinho
de Melo e Castro pede para que o vice-rei entre em aliança com a capitania de São Paulo
no auxilio ao sul,

Nossa inteligência [...] ordena S.Magestade que V.Ex. , e o referido governador


de SP, tratando de comum acordo este importantissimo objeto, convenhão, e
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1029
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

assentem nos meyos e modos de se fazerem o efectivo socorro; de facilitarem


a sua marcha vencendo obsctáculos, e dificuldades que se possão encontrar no
caminho; ou tendo embarcações prontas para o transporte por mar, se accazo
parecer melhor este expediente, depois de calculada a diluição, e embarassos
que poderas haver por rua, ou por outra parte; e tomando com antecipação
todas as medidas de sorte que o dito socorro, quando for necessario, chegue ao
tempo de ser util. (Biblioteca Nacional. Oficio de Martinho de Melo Castro a
Lavradio. Referencia, 07, 4, 032)

Ataque este que viria acontecer no ano seguinte, em 1773, quando os espanhóis
invadem aquele Estado e lá constroem o forte de Santa Tecla.
Adquirindo o status de cidade “cabeça” do Estado do Brasil em 1763, o Rio de
Janeiro foi um centro estratégico de organização política e militar na busca da manutenção
da soberania lusitana em seus domínios ultramarinos. Temos desempenhado pesquisas
sobre a comunicação política travada entre o secretário de Estado da Marinha e domínios
ultramarinos, Martinho de Melo e Castro e o vice-rei Marquês do Lavradio nos anos de
sua administração (1769-1779). Temos observado que há uma quantidade enorme de
ofícios remetidos pela secretaria ao Lavradio no que concerne a este tema da defesa. Em
suma, o secretário ordenou por diversas vezes ao vice-rei que aquela capitania deveria
prestar todo suporte necessário na defesa do sul. Em síntese, o Rio de Janeiro constituiu-
se como um espaço central na articulação da geopolítica rumo a uma solução dos conflitos
que se sucederam com a Espanha até o tratado de santo Ildefonso em 1777.

Conclusão
Vimos na discussão acima o quanto a cidade do Rio de Janeiro cumpriu um papel
de extrema importância dentro dos objetivos das autoridades lusitanas no que concerne a
proteção e defesa de seu complexo atlântico. É importante que se pense neste crescimento
em importância a partir de uma noção de processo, tal como nos alerta a professora
Mônica Ribeiro. A cidade de fato no século XVIII desempenhou uma função crucial nos
planos de cunho econômico e político do império, porém é importante o historiador está
atento aos processos que estimularam tal consequência. Como vimos, ainda no século
XVII o Rio de Janeiro teve destaque na nova repartição sul, região divida pelo poder
régio, uma vez que a comunicação entre as capitanias era dificultada pelas distâncias.
Então, a solução foi, devido a sua posição meridional, ser ela a cidade “cabeça” das outras
capitanias da região, tendo o governador daquela cidade jurisdição sobre os outros.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1030
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No século XVIII, esta posição de destaque foi consolidada ao longo dos anos que
se sucederam, pois, com a descoberta das minas de metal amarelo, seu porto constitui-se
como principal elo de exportação e importação de mercadorias, superando até mesmo
Salvador em meados daquele século. Por sua posição meridional, partia de lá socorro
militares para as colônias do sul, como aconteceu em 1773 em Rio Grande.
Neste sentido, a partir das pesquisas recentes, estudos têm trazido mais respostas
sobre este papel de destaque da cidade nos ditames políticos e econômicos do império
português. É necessário que se diga que este papel de centralidade da capitania fluminense
foi sendo desenhado ao longo do século pelas contingências e necessidades de momento,
tal como a descoberta de ouro no fim do XVII, a concorrência colonial entre as potências
ultramarinas, e uma constatação de vulnerabilidade frente a um possível ataque inimigo.
Há uma tentação de nós historiadores em afirmar de que tudo isso precipitou o “ápice” da
história da cidade, sendo ela em 1808 a capital não mais da colônia, mas sim de todo o
império. Não queremos aqui fazer esta ligação teleológica. Entretanto não podemos negar
o fato de que o secretário de Estado em 1808 era D. Rodrigo de Sousa Coutinho, agente
político no processo que culminou na transferência da corte. Como um hábil estadista que
era, D. Rodrigo estudou o histórico da cidade e sua relação com o reino, constatando que
ela seria o local mais apropriado para receber uma possível transferência de governo.
Entretanto, há ainda muito que descobrir, muito que pesquisar. A dinâmica
administrativa da cidade da cidade tem sido pouco explorada, sobretudo no período
pombalino, período onde houve a transferência da capital centrada na Bahia para o Rio
de Janeiro. A comunicação política tem sido um objeto relativamente novo abordado pela
historiografia recente. Há a possibilidade aí de se trazer mais respostas a essa relação
entre colônia e metrópole.

Referências Bibliográficas

BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império. O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
______. As noções de capitalidade no Rio de Janeiro sob a política pombalina. In:
ARAÚJO, Ana Cristina; CARDOSO, José Luís; MONTEIRO, Nuno Gonçalo; ROSSA,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1031
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Walter; SERRÃO, José Vicente (orgs.). O Terramoto de 1755: impactos históricos.


Lisboa: Livros Horizonte, 2007, p. 257-267.
COSENTINO, Francisco Carlos. Comunicação entre governadores, capitanias e câmaras:
governação no Estado do Brasil, 1654-1681. Anais Eletrônicos do XXVII Simpósio
Nacional de História da ANPUH – Conhecimento histórico e diálogo social. Natal:
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2013. Disponível em:
www.snh2013.anpuh.org.
FALCON, Francisco. A Época Pombalina (política econômica e monarquia ilustrada).
2ª ed., São Paulo: Ed. Ática, 1993.
FURTADO, Júlia Ferreira. “O oráculo que S.Majestade foi buscar: D. Luís da Cunha e
a geopolítica do novo império. In: FRAGOSO, João. GOUVÊA, Maria de Fátima. (Org.)
Na trama das redes. Política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização brasileira, 2010
______. Pombal e o Brasil. In: TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal. 2ª
ed., São Paulo: Edusp/Unesp, 2001, p. 227-244.
HOLLANDA, Sérgio Buarque(dir.). História Geral da Civilização Brasileira. 1. A época
Colonial. 11 Ed, Rio de Janeiro: Bertrand, 2004.
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal, paradoxo do Iluminismo. 2ª ed. São Paulo:
Paz e Terra, 1997.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José: na sombra de Pombal. Lisboa: Temas e Debates,
2008.
______. As reformas na monarquia pluricontinental portuguesa: de Pombal a dom
Rodrigo de Sousa Coutinho. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.).
O Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, vol. 3, p. 111-156.
RIBEIRO, Mônica da Silva. “O Rio de Janeiro pós-repartição do sul” in: CAETANO,
Antônio Felipe Pereira(Org.). Dinâmicas Sociais, políticas e judiciais na América lusa.
Recife: Editora da UFPE, 2016.
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: o Rio de
Janeiro: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650-
c.1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1032
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Literatura, pátria e nação: apontamentos acerca de Gonçalves de Magalhães e seu


Ensaio sobre a História da Literatura do Brasil

FABIANA DIAS
Programa de Pós - Graduação em História Social da Cultura - PUC-Rio
Bolsista CAPES

No fluxo dos movimentos atlânticos por liberdade e autonomia, a América


Latina oitocentista protagonizou uma série de experiências revolucionárias e inaugurou
um outro viés emancipatório, que respondeu, de modo específico, às necessidades
daquelas elites criollas, até outrora submetidas à estrutura de um Antigo Regime,
edificado, aliás, pelas gerações metropolitanas das quais descendiam. (ANDERSON,
2008) Das tensões entre a permanência e a ruptura, ou entre a fidelidade à Coroa
espanhola e a autonomia definitiva dos territórios representados pelos cabildos
americanos, irromperam uma série de novas repúblicas nos domínios austrais dos
Bourbon. Na sequência da fundação dos estados independentes, as elites locais se
depararam com a necessidade de criar estratégias legais e subjetivas que corroborassem
e difundissem os seus projetos nacionais. Nesse sentido, a construção do passado e do
futuro destes países inéditos seria forjada às custas de uma longa e reincidente cruzada
contra a barbárie.433 (SEIXCLACK, 2014)
De modo semelhante, as elites da América portuguesa entoaram projetos
nacionais atravessados pelo paradigma civilizador oitocentista. No entanto, foi de modo
consideravelmente distinto que esses luso-brasileiros negociaram a independência
política do Brasil com os representantes da Casa de Bragança. A começar pelo efeito da
invasão napoleônica para o Império português, que assistiu à mudança de sede da Coroa
e à consequente elevação do Brasil à categoria de Reino Unido de Portugal e Algarves. O
protagonismo do Rio de Janeiro, de 1808 em diante, só contribuiu para aprofundar ainda
mais o abismo entre a capital / sede do Reino e as demais regiões da América portuguesa.
Já na altura de 1817, a Revolução Pernambucana ecoava a voz de um patriotismo

A expressão faz referência à “pacificação” dos territórios indígenas pelos governos argentinos no último
433

quarto do século XIX.


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1033
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

regional, desvinculado das ordenações pretensamente brasileiras que se irradiavam de


uma Corte – encravada no sudeste – e pouco atenta às distintas e plurais vozes de um
território de dimensões continentais (MATTOS, 2010). Em meio ao crescente
desconforto provocado pelas determinações das cortes de Lisboa, as elites do Rio de
Janeiro organizaram um projeto emancipatório que atendia aos seus interesses locais e
pouco incorporava as reivindicações das tantas outras regiões. O partido brasileiro
guiava, portanto, um projeto de independência de pretensões nacionais a partir de suas
articulações locais. Nas palavras de José Bonifácio, um dos exponenciais brasileiros
defensores do projeto de uma monarquia constitucional nos trópicos, “brasileiro é todo
aquele que segue a nossa causa” (MATTOS, 2010: 109), isto é, a causa independentista
articulada pelas elites da Corte.
Declaradas as independências, fosse em Caracas, Buenos Aires, ou Rio de
Janeiro, fazia-se necessária a discussão sobre a construção jurídica do Estado, bem como
a organização de esforços no sentido de arregimentar os patriotismos regionais e
reconfigurá-los em favor da noção de pertencimento nacional. Os projetos em jogo
iluminavam, então, um futuro de - superficial – coesão, à medida que, orquestrados pelas
elites locais, propunham, de modo geral, estratégias para que os diversos povos habitantes
daquelas pátrias locais fossem homogeneizados, singularizados, de modo a constituírem,
em um futuro próximo, o povo e a nação. (FERREIRA, 2009)
A politização desses conceitos – povo e nação -, antes relacionados aos
componentes étnicos e cívicos, guarda relação, como já sugerimos, com as acelerações
desencadeadas pelos movimentos liberais, crescentes desde a década de 1760. Conforme
se constituía uma nova ordem política, o conceito de nação ia se reconfigurando a medida
que ia se associando às noções de povo, soberania e cidadania. Nesta dialética
associativa, esses conceitos foram se singularizando e adquirindo contornos cada vez
mais politizados. (KOSELLECK, 2006)
À noção pactista de nação recorreram grande parte dos intelectuais que
pensaram os estados recém-fundados na primeira metade do século XIX. Nessas
circunstâncias, o uso do conceito de nação foi adquirindo o sentido de um pacto volitivo
e consensual a ser firmado entre as elites envolvidas nas articulações independentistas. A
essa noção corresponderam os esforços intelectuais por fundar as bases constitucionais
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1034
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de cada uma das novas unidades políticas, afinal as balizas legais destas experiências
políticas sem precedentes precisavam ser demarcadas. Consolidados os pilares da nova
ordem, a segunda metade do século XIX assistiu a potencialização do sentido étnico e
político do conceito de nação. Nesta altura, essa dupla acepção de nação foi sendo
mobilizada pelos circuitos intelectuais ibero-americanos, então dedicados a costurar os
heterogêneos tecidos em prol de uma identidade espontânea. (WASSERMAN, 2009) A
História e a Literatura, em franca expansão institucional no século XIX, protagonizaram
essa experiência, contribuindo, de maneira decisiva, para legitimar os arquétipos
nacionais – do herói ao bom selvagem. Os usos cada vez mais pragmáticos destes que
haviam sido por longos séculos domínios eruditos, serviram muito convenientemente à
invenção de uma unidade nacional pretérita, no intuito de produzir uma comunidade
imaginada (ANDERSON, 2008) que transcendesse, inclusive, os movimentos de
independência, como se desde os tempos coloniais houvesse uma espécie de
protonacionalismo, quando bem sabemos da significativa representatividade das
inúmeras articulações alternativas aos projetos emancipatórios e unificadores.
(PAMPLONA, 2015)
A progressiva singularização do conceito de povo esteve intimamente
vinculada à consolidação da dimensão afetiva dos estados nacionais. Isto é, no compasso
em que se disseminavam as pinturas históricas, os compêndios de história nacional, a
literatura romântica e as óperas de viés nacionalista, as múltiplas identidades locais
recriavam-se, conciliando suas referências originais às referências imaginadas de um
pertencimento nacional. A invenção dessas tradições esteve, como já adiantamos,
visceralmente relacionada ao paradigma civilizador, sobretudo porque instruíam a
respeito dos gostos, hábitos e saberes, polindo, assim, os então considerados
comportamentos excêntricos. (STAROBINSKI, 2001)
Aos códigos civilizadores deveriam ser introduzidos todos aqueles que
estivessem, ainda, em estágio de barbárie. Isso porque civilizar pressupunha um devir,
um compromisso dos europeus, supostamente evoluídos, de conduzirem o outro à marcha
do progresso (ELIAS, 1994). O binômio civilização/progresso serviu muito
apropriadamente aos intelectuais oitocentistas que ousaram pensar um projeto nacional
para os recentes estados independentes aos quais estavam vinculados. Para que a nação
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1035
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

progredisse, seria preciso, portanto, eliminar qualquer vestígio de barbárie, ou seja, fazia-
se urgente civilizar para integrar, e vice-versa.
Índios e negros constituíam, nesta altura, um entrave às expectativas
europeizantes projetadas pelas elites ibero-americanas para seus respectivos Estados. Na
representação de José Bonifácio à Constituinte de 1823, por exemplo, é clara a
preocupação em integrar os contingentes étnicos identificados ao atraso à civilização,
pois:
[seria] da maior necessidade ir acabando [com] tanta heterogeneidade física e
civil; cuidemos desde já em combinar tantos elementos discordes e contrários,
e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e
compacto, que não se esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão
política. (SILVA, 2000: 23-4)

A noção de civilização como uma prática processual e progressiva ganhou,


portanto, contornos muito específicos na América ibérica após as independências. O devir
de uma América civilizada e livre da suposta barbárie autóctone estava no cerne da
retórica nacional oitocentista, desde as primeiras manifestações discursivas em torno da
ideia de um pacto nacional. Variava, no entanto, o diagnóstico que realizavam das raças,
bem como as propostas civilizatórias que apresentavam. Da tensão entre o rompimento
com a metrópole e o imperativo pela construção de uma nova ordem, uma questão chave
se apresentava a estas elites letradas iberoamericanas: como produzir, do ponto de vista
interno, civilização nos novos países? Em outras palavras, como fundariam um novo
modus operandi civilizatório, já que haviam rompido com as práticas metropolitanas?
Esta foi a indagação com a qual conviveram seguidas gerações de
intelectuais que compartilhavam o entendimento de que o branco/ europeu constituía o
parâmetro de civilidade. No recém-fundado Império do Brasil, a permanência da
escravatura de negros africanos e a condição dos indígenas preocupavam a elite letrada
atuante no legislativo e nos periódicos. (RAMA, 2015) As tensões em torno do
equacionamento da heterogeneidade étnica e civil do país permearam todo o debate
intelectual acerca da nação brasileira.
No entender de José Bonifácio, a emancipação dos negros só agregaria à
economia do Brasil, pois colocaria em circulação um imenso contingente de sujeitos até
então privados do mundo do capital, além de “livrar as famílias de exemplos domésticos

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1036
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de corrupção e tirania; de inimigos seus e do Estado; que hoje não tem pátria e que podem
vir a ser nossos irmãos, e nossos compatriotas.” (SILVA, 2000: 32) Na terceira versão
que apresentou à Constituinte de seu diagnóstico sobre a situação de então dos indígenas,
o patriarca da independência fez uma crítica explícita às missões jesuítas e ao projeto
colonizador empreendido pelos portugueses. (SILVA, 2000: 47)
A escrita do naturalista rompia, assim, com o passado colonial e escravista
e propunha uma nova ordem, a ser alimentada por aquele grande pacto entre as elites
brasileiras e o Imperador. A retórica de Bonifácio em favor da extinção da escravidão e
em prol da civilização dos índios bravos por métodos alternativos aos tradicionais não
agradariam, pois, aos constituintes mais conservadores, nem ao Imperador, então
convencido das pretensões de um projeto de Estado independente que desse continuidade
às tradições lusitanas. A dissolução da Constituinte e a prisão dos irmãos Andrada – e do
grupo de deputados a eles afinados - demonstrou o rechaço do Imperador ao projeto
refundador capitaneado por Bonifácio. De qualquer modo, a difusão imagética e
discursiva do Brasil como um corpo político autônomo (SOUZA, 1999) seria daí por
diante uma tarefa subsidiada por um programa que, paradoxalmente, delineava os
contornos de um país novo/ moderno sem prescindir das tradições coloniais com as quais
teria, em tese, rompido.
No entanto, os esforços de D. Pedro I não foram suficientes para garantir
a coesão do território. Com a abdicação e a vacância do trono, a fragilidade do Império
tornou-se ainda mais evidente. A experiência das independências proclamadas por Bahia,
Rio Grande do Sul e Grão-Pará expôs os limites da noção de brasilidade. Ganham espaço,
nesse ínterim, investimentos intelectuais na dimensão afetiva, simbólica e cultural do
Estado que se pretendia nação. A publicação da Revista Nitheroy, em 1836, e a fundação
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, constituíram, com efeito, reações
à iminente possibilidade de esfacelamento do Império idealizado pelas elites de 1822.
A Nitheroy Revista Brasiliense contou apenas com duas edições. Na
primeira delas, seus jovens redatores –Gonçalves de Magalhães, Araújo- Porto-Alegre e
Torres Homem - escrevendo de Paris, em meio à convivência com Jean Batiste Debret,
Eugène Garay de Monglave e Ferdinand Denis, se posicionaram criticamente a respeito
da continuidade da escravidão e dos resquícios colonizadores que pareciam se perpetuar
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1037
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

na cambaleante pátria brasileira, obstruindo, nas palavras de Magalhães, “todas as portas


e estradas que a ilustração [a] conduzir podiam.” (MAGALHÃES,1836: 139)
Considerada pela crítica literária como um dos marcos de instauração do romantismo
brasileiro, a Nitheroy propôs uma linguagem literária nacional, condicionando a
edificação da nação e a concretização de sua independência à escrita de uma história da
literatura do Brasil. (ANDRADE, 2009) O intuito de Gonçalves de Magalhães ao
argumentar em favor desta empreitada era o de forjar uma trajetória literária brasileira,
a partir de obras publicadas, aleatoriamente, desde os tempos coloniais, quando não se
compartilhava, aliás, qualquer ambição por uma unificação nacional.
A seção intitulada Ensaio sobre a História da Literatura do Brasil adverte
sobre a ausência de um estudo específico e sobre o seu caráter imprescindível:

a literatura de um povo é o desenvolvimento do que ele tem de mais sublime


nas ideias, de mais filosófico no pensamento, de mais heroico na moral, e de
mais belo na natureza, é o quadro animado de suas virtudes, e de suas paixões,
o despertar de sua glória, e o reflexo progressivo de sua inteligência. E quando
esse povo ou essa geração desaparece da superfície da Terra com todas as suas
instituições, suas crenças, seus costumes, a Literatura só escapa aos rigores do
tempo, para anunciar às gerações futuras, qual fora o caráter do povo, do qual
é ela o único representante na posteridade. (MAGALHÃES, 1836: 132)

Ao definir a História da Literatura como única representante longeva dos feitos de


um povo, Gonçalves de Magalhães opera pautado por uma tradição epistemológica onde
escrita histórica e escrita literária desempenham funções equivalentes. Uma História da
Literatura se fazia imperativa, portanto, pois seria capaz de forjar uma trajetória literária
brasileira, a partir de obras publicadas aleatoriamente nos domínios da América
portuguesa, quando não se compartilhava qualquer ambição por uma unificação nacional.
As opacas fronteiras entre história e literatura podem ser observadas no trecho em que a
sua sistematização é considerada condição ao desenvolvimento da civilização:

A Literatura abrangendo grande parte de todas as Ciências, Artes e sendo ela


só filha, e representante moral da civilização, é mister um concurso de extensos
conhecimentos para poder-se traçar sua história geral, ou particular, e jamais
perder-se de vista a ideia predominante do século, luminoso guia na indagação,
e coordenação dos fatos, sem o que a história é nula, e sua missão iludida.
(MAGALHÃES, 1836: 135)

Retomando o primeiro excerto, notamos o uso recorrente do termo povo como


conceito designatório daqueles que habitavam os domínios territoriais brasileiros. A
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1038
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

edição de 1858, do Dicionário de Moraes Silva, registra os termos nação e povo como
sinônimos, mas com algumas sutis especificidades: nação significava uma dilatada
família, mas sem incluir todas as pessoas que habitavam uma determinada circunscrição
territorial, se referindo apenas a um certo tipo de gente; enquanto povo representava a
uma multidão de homens reunidos em um mesmo lugar, neste caso todos aqueles que
compartilhassem um mesmo território. (PAMPLONA, 2009) A ideia de nação como
dilatada família afina-se com o paradigma étnico/cultural, enquanto povo comportaria
uma noção mais abrangente, mais ligada à ocupação do território. (FERREIRA, 2009)
No decorrer da seção, Gonçalves de Magalhães faz uso do conceito de nação para se
referir a exemplares obras literárias que cooperaram para a glória de Roma, por exemplo.
Nesse sentido, parece estar se apropriando da acepção que atrela a ideia de nação à ideia
de cidadania, vejamos:

A glória de uma Nação, que existe, ou que já existira, não é senão um reflexo
da glória de seus grandes homens; de toda a antiga grandeza da pátria dos
Cíceros, e dos Virgílios apenas restam suas imortais obras, e essas ruinas, que
tanto atraem a vista do estrangeiro, e no meio das quais Roma se sustenta, e se
enche de orgulho. (MAGALHÃES, 1836: 138)

O uso recorrente dessa dimensão do significado de nação sugere que o Brasil não
dispunha, àquela altura, das elementares condições para se configurar como uma Nação.
O esforço do grupo capitaneado pela Nitheroy seria, justamente, o de suprir uma dessas
lacunas através da escrita de uma História da Literatura. A precariedade do cenário
intelectual brasileiro é atribuída, por Gonçalves de Magalhães, ao projeto colonizador
conduzido por Portugal, sobretudo ao que concerne às suas condenáveis estratégias com
relação aos índios – elemento genuíno da brasilidade – e com relação à recepção de negros
escravizados oriundos do continente africano. Segundo ele, “as Ciências, a Poesia e as
Artes, filhas da Liberdade, não são partilhas do escravo; Irmãs da glória, fogem do país
amaldiçoado onde a escravidão rasteja, e só com a Liberdade habitar podem.”
(MAGALHÃES, 1836: 142-3)
Por fim, se as mazelas coloniais obstruíam “todas as portas e estradas que a
ilustração o conduzir podiam” (MAGALHÃES, 1836: 139), os primeiros anos do Brasil
independente deveriam ser dedicados a corrigir esse suposto atraso. Talvez a severidade
da crítica de Magalhães ao estado da produção literária no Brasil esteja relacionada à
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1039
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

percepção comparativa que pôde desenvolver a respeito dos modelos civilizacionais então
operantes. Cabe aqui destacar a interação do grupo da Nitheroy, residente em Paris à
época da redação e da publicação da Revista, com diversos intelectuais, de múltiplas
matrizes intelectuais.
O ensaio de Magalhães a respeito da História da Literatura reconhece, nas
entrelinhas, que a ideia de nação, na sua acepção mais politizada, não se constituía como
uma experiência compartilhada, mas como um horizonte de expectativa daqueles que
defendiam o projeto de um império centralizado. Ao longo de todo este ato de fala não
há menção ao Brasil como nação, no seu sentido singularizado, o que, com efeito, remete
à fragilidade do mosaico brasileiro, agravada pelas potentes revoltas do período das
regências. As francas disputas travadas em diversos pontos do território que a Coroa
procurava manter agregado, não permitiam, portanto, a Gonçalves de Magalhães, em
1836, operar com o conceito de nação brasileira.
Além de mobilizar o conceito de povo para se referir aos brasileiros, o autor
recorre também ao termo pátria, evocando a sua carga afetiva. Ao discorrer sobre o
desmerecimento para com os Literatos, diz que o elemento motivador do seu ofício é o
amor. “O amor à Poesia e à Pátria.” (MAGALHÃES, 1836: 143) A dimensão metafórica
do conceito de pátria provavelmente já estava presente quando o termo possuía uma
acepção mais plural e identificava-se com vilas e cidades. No entanto, essa subjetivação
deve ter se complexificado à medida em que o termo foi sendo singularizado e passou a
interagir com os conceitos de nação e reino. (PAMPLONA, 2014) Nos atos de fala dos
liberais vintistas a ideia de nação pautava-se na prerrogativa de uma unidade atlântica,
“na concepção de uma única identidade nacional entre as diferentes partes componentes
do mundo português.”(PAMPLONA, 2014: 60) Nesse contexto linguístico, pátria servia
para designar o local de nascimento, assim, a pátria brasileira e a pátria lusitana
conservavam suas especificidades locais e compartilhavam uma noção de pertencimento
comum ao mundo português, ou “à nação inteira de ambos os hemisférios.”
(PAMPLONA, 2014: 60)
A aproximação entre pátria e nação acompanhou os debates a respeito da
emancipação do Brasil. Conforme a possibilidade do surgimento de um novo Império ia
se materializando, a ideia de nação ia se reconfigurando no sentido de um projeto nacional
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1040
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

brasileiro e o significado de pátria ia sendo a ela incorporado. Nos anos compreendidos


entre a promulgação da Independência e as regências, o conceito de pátria foi acionado
de forma significativa nas enunciações discursivas da imprensa e do legislativo, já como
sinonímia da ideia de nação.
O ato de fala de Magalhães testemunha, muito claramente, a ressignificação de
pátria diante das irreversíveis modificações desencadeadas pelas ocupações napoleônicas
e o seu impacto sobre a própria trajetória da Literatura brasileira. Para os editores da
Nitheroy, a nova ideia de pátria provoca uma reorientação geral daquele contexto
linguístico. Nas palavras do autor:

No século XIX com as mudanças, e reformas políticas, que tem o Brasil


experimentado, nova face literária [se] apresenta. Uma só ideia absorve todos
os pensamentos, uma nova ideia até ali desconhecida, é a ideia da Pátria; ela
domina tudo, tudo se faz por ela, ou em seu nome. Independência, Liberdade,
instituições sociais, reformas, política enfim, tais são os objetos que atraem a
atenção de todos, e os únicos, que ao povo interessam. (MAGALHÃES, 1836:
152)

A nova noção de pátria haveria, ainda, contribuído para que a literatura brasileira
escapasse das armadilhas da imitação e iniciasse a pavimentação de um caminho de
originalidade. Os intelectuais partidários do projeto da monarquia centralizada
vislumbravam, no horizonte daquele percurso, uma língua autêntica e uma literatura
brasileira, afinal:

Em Poesia requer-se mais que tudo invenção, gênio e novidade; repetidas


imitações o espírito embrutecem, como a muita arte e preceitos tolhem e
sufocam o gênio; as primeiras verdades da ciência, como os mais belos
ornamentos da Poesia, quando a todos pertencem, a ninguém honram. O que
dá realce, e nomeada a alguns dos nossos Poetas não é certamente o uso destas
ficções; mas sim outro gênero de belezas naturais, não colhidas nos livros, mas
que só a Pátria lhes inspirará. (MAGALHÃES, 1836: 147)

O uso do termo pátria não abandonou a sua acepção mais plural, atrelada à ideia
de lugares variados. Conforme o Estado centralizado se consolidava, mais o conceito de
pátria se singularizava e se confundia com a ideia de nação. A partir da década de 1840,
com a vitória do projeto saquarema, os atos de fala dos aliados desse grupo
empreenderam um grande esforço para que toda a carga afetiva do termo pátria fosse
colada à ideia de nação. A fundação do IHGB em 1838 encampou a tarefa de forjar, na
ausência de elementos espontâneos, a dimensão étnico-cultural da Nação. A Literatura, a
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1041
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

História, a Geografia, a Cartografia, a Arqueologia e a própria Pedagogia - através do


Colégio Pedro II – serviram, hegemonicamente, à edificação das tradições nacionais pelas
quais clamava o ensaio de Gonçalves de Magalhães na Revista Nitheroy.

Fontes primárias impressas

MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de. Ensaio sobre a História da Literatura do


Brasil In: Revista Nitheroy, Tomo I. Dauvin et Fontaine Libraires: Paris, 1836.
SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Representação à Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura. In: DOLHNIKOFF. Miriam.
Projetos para o Brasil: José Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: Companhia das
Letras: PubliFolha, 2000.

Referências Bibliográficas
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão
do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ANDRADE, Debora El-Jaick. Semeando os alicerces da nação: história, nacionalidade
e cultura nas páginas da Revista Nitheroy.Revista Brasileira de História, SP, vol.29, nº58,
p.417-442. 2009.
COUTINHO, Afrânio. A tradição afortunada: o espírito de nacionalidade na crítica
brasileira. RJ: Livraria Jose Olympio Editora, 1968.
DIAS, Fabiana R. Da gênese do campo historiográfico: erudição e pragmatismo nas
associações literárias dos séculos XVIII e XIX. Revista de Teoria da História. Ano 2. Nº4,
dez./2010. UFG.
DOLHNIKOFF. Miriam. Projetos para o Brasil: José Bonifácio de Andrada e Silva. São
Paulo: Companhia das Letras: PubliFolha, 2000.
DOYLE, Don H. & PAMPLONA, Marco A. Nacionalismo no Novo Mundo. Editora
Record: RJ e SP, 2008.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1994.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1042
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

FERREIRA, Fátima Sá e Melo. Entre viejos e nuevos sentidos: Pueblo y pueblos em el


mundo ibero-americano entre 1750 y 1850. In: SEBÁSTIAN, Javier Fernandez (Dir.).
DicionarioPolitico y social del mundo ibero-americano. La era das revoluciones (1750-
1850). Madrid, 2009.
GOLDMAN, Noemí. Soberania em Iberoamerica. Dimensiones y dilemas de um
concepto politico fundamental, 1780-1870. In: SEBÁSTIAN, Javier Fernandez (Dir.).
DicionarioPolitico y social del mundo ibero-americano. La era das revoluciones (1750-
1850). Madrid, 2009.
HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence. (orgs.) A invenção das tradições. Paz e Terra, 2012.
KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Estudos
Históricos, vol.5, nº 10, Rio de janeiro, 1992.
____________________ Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio
de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2006.
MATTOS, Ilmar Rohloff. Transmigrar – nove notas a propósito do Império do Brasil.
In: PAMPLONA, Marco A. & STUVEN, Ana Maria (orgs.). Estado e Nação no Brasil
e no Chile ao longo do século XIX. Rio de Janeiro, Garamond, 2010.
MELLO e SOUZA, Ântonio Cândido. Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz,
2000. Publifolha, 2000.
PAMPLONA, Marco A. Comentarios sobre las independências y la formacion de estados-
naciones em Ibero-America: um abordaje comparado entre la America portuguesa y la
America hispânica. In: GONZALEZ BERNALDO, Pilar (ed.): Independencias
Iberoamericanas: nuevos problemas e aproximaciones. 2015.
_________________. Nação. In: JUNIOR, João Feres (org.). Léxico da História dos conceitos
políticos do Brasil. UFMG, 2009.
_________________. Pátria – Brasil. In: SEBÁSTIAN, Javier Fernandez (Dir.). Dicionario
Politico y social del mundo ibero-americano. Tomo 8, Centro de Estudos Politicos y
Constitucionales: Madrid, 2014.
RAMA, Angel. A cidade das letras. SP: Boitempo Editorial, 2015.
SÁ, Maria Elisa Noronha de. Civilização e barbárie: a construção da ideia de nação. Brasil e
Argentina. Rio de janeiro: Garamond, 2012.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1043
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SEIXLACK, Alessandra Gonzalez de Carvalho. Discursos políticos sobre a raça indígena na


Argentina: Domingos Faustino Sarmiento e o conflito das raças nas Américas. In: ASCENSO,
João Gabriel da Silva. & CASTRO, Fernando Luiz Vale. (orgs.) Raça: trajetórias de um
conceito. Rio de janeiro, Ponteio: 2014.
SKINNER, Quentin. Visões da Política. Lisboa: Difel, 2005.
STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização: ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1044
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“A articulação entre religiosidade e política no pensamento de Frei Betto”


FABIANO DIAS AZEVEDO
UNIVERSIDADE SALGADO DE OLIVEIRA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
STRICTO SENSU EM HISTÓRIA DO BRASIL

“Eu sou discípulo de um preso político. Jesus não morreu nem de


hepatite na cama e nem de desastre de camelo numa esquina de
Jerusalém. Foi preso, torturado e julgado por dois poderes políticos”.
(Frei Betto)434

O presente trabalho tem por objetivo apresentar a trajetória do intelectual


brasileiro Frei Betto, destacando no seu pensamento as relações entre religiosidade e
atuação política. Por tratar-se da análise de uma biografia, utilizaremos como base teórica
os pressupostos de Pierre Bordieu e David Lowenthal. O primeiro nos alerta para que não
pensemos a biografia de um individuo como uma trajetória isenta de conflitos, indecisões
e incoerências. Uma vida não pode ser compreendida como uma sequência linear.
Segundo Bourdieu, devemos fugir da armadilha da ilusão biográfica que organiza o
passado a partir do presente conhecido (BOURDIEU, 2006, 183). Já para Lowenthal por
maior que sejam as recordações de um individuo, elas não são mais do que fragmentos
do que foi vivenciado. Para o autor, a memória é composta de lembranças e
esquecimentos. Nas mãos da memória o passado é selecionado, destilado, distorcido e
transformado. A memória está em constante transformação. Algumas lembranças são
anexadas enquanto outras são descartadas. Existem aquelas que vão habitar a nossa
consciência e as que passam para o mundo inconsciente.

“Lembranças, em todos esses aspectos, tendem a se acumular com a idade.


Embora algumas estejam sempre se perdendo e outras se alterando, o estoque

434
Essa resposta, dada numa entrevista ao médico Drauzio Varella, aparece constantemente na fala do Frei
Betto, principalmente quando ele quer explicar a articulação entre espiritualidade e ação política. Para Frei
Betto, esse binômio simplesmente não existe. Tanto é assim que ele costuma inverter a questão: como
alguém pode ter fé e não questionar a realidade caótica em que se vive, formada de injustiça, opressão e
exclusão social. A entrevista pode ser consultada em
https://www.youtube.com/watch?v=wFGgfEnIcyQ&t=1166s.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1045
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

total de coisas recordáveis e recordadas aumenta à medida que a vida transcorre


e as experiências se multiplicam.” (Lowenthal, p.78)

FREI BETTO
Frei Betto nasceu na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais, no dia 25 de
Agosto de 1944. Ele foi o segundo dos oito filhos do casal Antônio Carlos Vieira Christo
e Maria Stella Libanio Christo, escritora e culinarista, autora do clássico "Fogão de Lenha
- 300 anos de cozinha mineira"435.
Desde criança, viveu num lar, marcado pelo binômio religiosidade / política. Sua
mãe era uma católica fervorosa que participava de movimentos estudantis e lia diversos
autores cristãos progressistas. Já seu pai, um anticlerical declarado, escrevia artigos em
jornais e mergulhava de cabeça nas questões políticas de sua época.
Frei Betto pertence à geração que tinha vinte e poucos anos na década de sessenta.
Aqueles jovens vibraram com a Revolução Cubana de Fidel Castro e Che Guevara que
derrubou a ditadura de Fulgêncio Batista. Também se empolgaram com a resistência dos
vietnamitas aos Estados Unidos, além do movimento hippie que pregava a paz, o amor e
a liberdade sexual. Viviam entorpecidos pelo altruísmo de figuras como Nélson Mandela
e Gandhi. Desejavam mudar o mundo e não aceitavam uma sociedade marcada pela fome,
miséria e exclusão social. No livro Paraíso Perdido - Viagens ao mundo socialista, Frei
Betto fala da influência da Revolução Cubana na sua geração:

“A Revolução Cubana é um dos mitos da minha geração. A imagem dos


guerrilheiros de Sierra Maestra, com suas barbas, botas e uniformes verde-oliva,
nutriu os ideais políticos do movimento estudantil da década de 1960.
Acreditávamos que a história, implacável mestra e generosa mãe, nos oferecia a
oportunidade de derrotar o imperialismo estadunidense; convicção reforçada na
década de 1970 pela vitória dos vietcongs de Ho Chi Minh sobre as tropas da
maior potência bélica e econômica do planeta.
(...) Se Cuba pôde, por que não poderíamos? Éramos jovens como os militantes
do Movimento 26 de Julho e, desde 1964, tínhamos no Brasil uma ditadura tão
cruel e corrupta quanto a de Fulgêncio Batista.” 436

No início da juventude, tornou-se membro da União Municipal dos Estudantes


Secundários de Belo Horizonte e logo depois fez parte da direção nacional da JEC

435
Livro publicado pela editora Vozes de Petrópolis – RJ.
436
Betto, Frei. Paraíso Perdido. Viagens ao mundo socialista. Ed. Rocco. 1ª ed. Rio de Janeiro, 2015, p.37.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1046
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(Juventude Estudantil Católica)437. Para os militantes dos movimentos estudantis cristãos,


o objetivo principal era revolucionar a sociedade brasileira através do evangelho. Eles
deviam atacar as misérias causadas pelas desigualdades sociais e através do método “ver,
julgar e agir” procuravam articular a vida cristã com o engajamento político. Segundo
Marcelo Timothéo: “para as juventudes católicas, o cristão deveria ser “engajado”, o que
significava estar compromissado com a transformação da sociedade – apresentada como
desigual e injusta – em que vivia”.438
A experiência vivida na Ação Católica transformou Frei Betto num militante,
movido à fé, idealismo e utopia. Ele passou a acreditar num Deus que tem preferência
pelos pobres e que exige a justiça social. O Reino de Jesus é uma sociedade igualitária na
qual o pão nosso de cada dia tem que ser dividido. Assim, a negação dos bens essenciais
à conservação da vida é um grave pecado contra Cristo e a humanidade.
Após o golpe militar de 1964, pouco a pouco, os aparelhos respiratórios da JEC e
da JUC foram desligados. A repressão do governo, somada a falta de apoio da Igreja,
levou ao enfraquecimento dos movimentos estudantis católicos. Porém, no mesmo
período começaram a se desenvolver as CEBs (comunidades eclesiais de base) e a partir
delas nasceu a Teologia da Libertação.
Frei Betto, segundo suas próprias palavras, viveu uma “terrível crise vocacional”.
Ele tinha muitas dúvidas a respeito da sua vocação sacerdotal. Para resolver esse dilema,
trancou a faculdade de jornalismo e ingressou na ordem dos pregadores. Entrei para sair,
afirma o dominicano mineiro.
Eram tempos muito difíceis e Frei Betto decidiu cair de cabeça na subversão.
Como tantos outros brasileiros, desejava ardentemente derrotar a ditadura. Para tanto, o
jovem Betto e outros dominicanos uniram-se a ALN- Aliança Libertadora Nacional,
grupo guerrilheiro liderado por Carlos Marighella439. A ponte entre o revolucionário

437
A JEC fez parte de um momento de especialização da Igreja Católica que procurava alcançar diversas
esferas da sociedade. Essas novas diretrizes, sob a proteção da Ação Católica, dividia-se em: JAC
(Juventude Agrária Católica), : JEC (Juventude Estudantil Católica), : JIC (Juventude Independente
Católica), JOC (Juventude Operária Católica)e JUC : JAC (Juventude Universitária Católica)
438
COSTA, Marcelo Timothéo da – artigo Operação cavalo de Tróia – a Ação Católica Brasileira e as
experiências das JEC e JUC.
439
As ações de guerrilha urbana começaram em 1969, pouco depois da promulgação do Ato Institucional
nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, que marcou um endurecimento sem precedentes do regime militar.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1047
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

baiano e os religiosos foi construída por Frei Oswaldo. Estudante de filosofia na


Universidade de São Paulo, Oswaldo foi o elo entre Marighella e o convento de Perdizes.
Além da militância política junto a ALN, às leituras de textos marxistas impulsionaram
os jovens frades nas suas escaladas revolucionárias.
O convento dos dominicanos em São Paulo já era famoso por sua efervescência
politica e cultural. Frequentavam as suas dependências figuras do porte de Geraldo
Vandré, Caetano Veloso e Chico Buarque de Holanda. O local era utilizado para guardar
dinheiro, armas e materiais subversivos. A casa dos frades também protegia pessoas que
estavam na mira do governo militar. Muitas vezes, os dominicanos faziam contato com
amigos que pudessem abrigar os perseguidos em seus lares. No caso específico de Frei
Betto, dar fuga àqueles que estavam marcados pela repressão era a sua tarefa principal.
Nunca peguei em armas salienta o escritor de Batismo de Sangue440.
Além da vida religiosa e da militância política, Frei Betto escrevia sobre cultura e
vida estudantil na Folha da Tarde. O jornal era identificado com a esquerda e as suas
reportagens procuravam se distanciar das versões oficiais dos fatos. Este trabalho foi
muito importante para ele, devido ao contato com líderes estudantis como José Dirceu e
Luís Travassos e ao fato da redação servir como um celeiro para a busca de novos
militantes.
“Betto fazia o trabalho de cooptação de companheiros para a ALN de forma
sistemática e com um perfil variado que extrapolava o universo estudantil. A
ALN se diferenciava por ter incorporado um contingente de profissionais de
diferente áreas, ao contrário da maioria das outras organizações, mais restritas
aos estudantes. Décadas depois, Clauset viria a definir o papel de Betto na
organização: “Ele contribuiu para a ALN ser a maior organização de resistência
à ditadura entre todas, não só numericamente, mas em termos de
representatividade. Duas pessoas tinham esse perfil na ALN: Frei Betto e Paulo
de Tarso Venceslau.”441

Marighella participou pessoalmente de várias investidas e, em junho desse ano, escreveu o Minimanual do
guerrilheiro urbano, concebido claramente sob inspiração do exemplo cubano, tendo em vista uma guerra
de libertação nacional, quando a partir do apoio das massas, “os guerrilheiros... derrubarão a ditadura e
sacudirão o jugo norte-americano”. A revolução era vista como “um fenômeno social que depende de armas
e dinheiro. Eles existem no país; basta ter os homens que tomem posse deles”. (CPDOC-FGV)
440
BETTO, Frei. Batismo de Sangue. Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Ed. Bertrand Brasil
– RJ, 1987.
441
FREIRE, Américo e Sydow, Ivanize. Frei Betto – biografia. Ed. Civilização Brasileira – RJ, 2016, p.82

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1048
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Como a situação estava muito perigosa, Frei Betto decidiu abandonar a Folha da
tarde e partir para o sul do país. Ajudado por um primo, o teólogo João Batista Libâneo,
Frei Betto organizou a sua ida para o seminário de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul.
Outro dominicano, Frei Fernando, quando soube da viagem de Frei Betto, conversou com
ele sobre a criação de uma rota de fuga pelas fronteiras. O projeto foi ratificado numa
reunião com Carlos Marighella que pediu a Frei Betto que estudasse a viabilidade da ação.
O caminho deveria atender todos que necessitassem sair do país e não somente os
militantes da ALN.
Frei Betto foi preso sob a acusação de fazer contrabando de gente, uma vez que
passou doze perseguidos políticos pelas fronteiras com o Uruguai e a Argentina. Do Rio
Grande do Sul o dominicano foi levado para São Paulo onde ficou preso por quatro anos
– dois anos como preso político e os outros dois como prisioneiro comum. Um caso raro
durante a ditadura militar no Brasil. Geralmente, os presos políticos nãos eram misturados
aos prisioneiros comuns. Neste período, Frei Betto passou por três diferentes prisões: a
do Estado de São Paulo, o Carandiru e por fim a de Presidente Venceslau.
Na prisão, Frei Betto escreveu diversas cartas aos seus familiares, amigos e
companheiros de caminhada religiosa. “De escritor, os generais brasileiros fizeram de
mim um autor”442. Dos seus escritos produzidos na cadeia surgiram os livros Cartas da
prisão, Batismo de Sangue, Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar
brasileira, O canto na fogueira (em parceria com frei Fernando e frei Ivo) e o seu primeiro
romance – O dia de Angelo.443
Frei Betto saiu bem da prisão. Abatido fisicamente, mas mentalmente sadio.
Porém, uma noticia causou muito impacto no dominicano mineiro: Frei Tito de Alencar
havia atentado conta à própria vida no convento francês em que vivia. Após passar alguns
meses com a família em Belo Horizonte, resolveu ir morar em Vitória, capital do Espírito
Santo. Desejoso de se dedicar aos pobres, ele entendeu que a capital capixaba era segura
para desenvolver o seu trabalho de educação popular junto às comunidades carentes.

442
BETTO, Frei. O que a vida me ensinou. 1ª edição, Ed. Saraiva, SP, 2013, p. 33
443
Sobre este período em que Frei Betto passou na prisão consultar a obra: FERNANDO, Frei, IVO, Frei
e BETTO, frei. O canto na fogueira. Ed. Vozes, RJ, 1977
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1049
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No Estado do Espírito Santo, Frei Betto passou a atuar em várias frentes de


batalha: escreveu vários livros divulgando os preceitos da Teologia da Libertação,
produziu catecismos populares para serem estudados nas comunidades eclesiais de base,
atuou em diversos movimentos sociais e participou da fundação do Emaús - um grupo
que reunia teólogos e agentes pastorais com a intenção de produzir reflexões acerca das
relações entre o marxismo e o cristianismo. O objetivo do dominicano era formar quadros
para atuarem na organização das associações de moradores, dos sindicatos e das pastorais
operárias. Frei Betto também participou da construção do folheto litúrgico Caminhada
que era utilizado nas paróquias. Além disso, o mineiro também “traduzia” para uma
linguagem popular outros materiais produzidos pela Igreja Católica.
No final da década de 1970, ele transferiu-se para São Paulo, atuando
principalmente na Pastoral Operária de São Bernardo do Campo e Diadema. Frei Betto
tinha muito interesse nos movimentos operários daquela região. Partiu dele o desejo de
procurar o bispo local – Dom Cláudio Hummes444 – e oferecer-se para atuar naquela
diocese. Em São Paulo, o dominicano atuou principalmente nos sindicatos e nas
comunidades eclesiais de base locais. Segundo a jornalista Antônia Carrara, apelidada de
Toinha, uma das coordenadoras da Pastoral Operária de São Bernardo do Campo:

“Frei Betto nos formava em todos os sentidos. Ele nos orientava teoricamente,
em leituras do marxismo, e também em questões de ordem prática. Pedia sempre
pra a gente ter cuidado, porque estávamos na época da ditadura; sempre guardar
algum dinheiro caso fosse preciso sair do país.” 445

O trabalho de Frei Betto junto a Pastoral Operária do ABC durou 22 anos. Foi
uma das suas atividades de maior importância e maior durabilidade. Muitos militantes
foram formados politicamente para atuar nos movimentos sociais, nos sindicatos, na CUT

444
Em 1975, teve sua ordenação episcopal celebrada em Porto Alegre por dom Aloísio Lorscheider e foi
nomeado bispo coadjutor com direito de sucessão da diocese de Santo André (SP), onde permaneceria até
1996. Nesse período, integrou a Comissão Episcopal de Pastoral da CNBB de 1976 a 1998, e foi assistente
nacional da Pastoral Operária de 1979 a 1990. Durante as greves de operários metalúrgicos da região do
ABC paulista – Santo André, São Bernardo e São Caetano – que ocorreram em 1978 e 1979, teve atuação
destacada, abrindo as portas da igreja matriz de Santo André para que ali fossem realizadas as reuniões que
permitiram planejar e conduzir o movimento. Em 1980, foi eleito pelos bispos da CNBB delegado junto ao
Sínodo dos Bispos sobre a Família. (CPDOC- FGV)
445
FREIRE, Américo e Sydow, Ivanize. Frei Betto – biografia. Ed. Civilização Brasileira – RJ, 2016, p.199

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1050
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

e no Partido dos Trabalhadores. Para o dominicano, era importante debater a participação


dos cristãos na sociedade brasileira, marcada pelo avanço dos movimentos sociais que
causavam o desgaste da ditadura militar.
No livro “A mosca azul – reflexão sobre o poder”,446Frei Betto relata a sua
participação na fundação do Partido dos Trabalhadores. Segundo ele, Lula sentia a
necessidade da classe trabalhadora ter um partido que os representasse. Trabalhador tinha
que votar em trabalhador. A ideia da formação do novo partido teria surgido durante um
congresso sindical na Bahia, em 1978. O PT nasce num caldeirão que englobava o
movimento sindical, as Comunidades Eclesiais de Base e a Teologia da Libertação.
Porém, um afastamento se fazia necessário. O PT não deveria se tornar um partido
exclusivamente cristão e as CEB´s deveriam evitar um politização que as afastasse da fé
evangélica.
Frei Betto faz questão de ressaltar que, diferente do que costumam pensar, nunca
foi filiado a nenhum partido político. Porém, ele se considera um ser essencialmente
politizado. Para ele, fé e política são inseparáveis. A sua atividade é uma exigência da sua
crença, ao mesmo passo que a sua religiosidade exige um engajamento constante. Por
carregar uma fé que se propõe universal e plural, ele evitou o vínculo direto com qualquer
instituição partidária. Embora, tenha contribuído de forma considerável para a formação
do Partido dos Trabalhadores.
Além disso, o dominicano teve uma participação bastante ativa nas campanhas de
Lula à Presidência da República. Ele foi um importante consultor e companheiro de
viagens Brasil a fora, onde procurava apoio tanto da Igreja Católica quanto de
representantes de outras religiões. O religioso chegou a aparecer em diversas fotos ao
lado do futuro presidente e a escrever artigos que defendiam abertamente a candidatura
do petista. Em companhia de outros intelectuais, ajudou a construir a imagem do PT junto
ao eleitorado e a opinião pública. Assim, o partido dos trabalhadores ganhou capital
político nas diversas eleições presidenciais em que saiu derrotado, culminando com a
vitória nas eleições de 2002.

446
BETTO, Frei. A mosca azul – reflexão sobre o poder. Ed. Rocco, RJ, 2006.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1051
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Após a tão esperada chegada do PT ao poder, convidado pelo Presidente Lula,


Frei Betto atuou durante dois anos – entre 2003 e 2004 – como dirigente nacional do
Programa “Fome Zero”. O dominicano em vários momentos evitou ocupar cargos de
direção, seja no poder público ou na iniciativa privada. Porém, este convite o atraiu de
forma singular por se tratar de um projeto voltado para os mais necessitados, aqueles que
se encontravam abaixo da linha da pobreza e conviviam diariamente com o fantasma da
fome. Além de ocupar um gabinete em Brasília, viajou pelo país trabalhando arduamente
no desenvolvimento do “Fome Zero”. O religioso se reuniu com políticos, deu entrevistas,
ministrou palestras, escreveu cartilhas e foi ao exterior buscar apoio na luta pela
erradicação da fome no Brasil. Além de unir, em torno do projeto, igrejas, universidades,
partidos políticos, Ongs, sindicatos e movimentos populares, Frei Betto também ajudou
na criação dos programas Escolas Irmãs - uma rede de solidariedade entre escolas de
várias partes do Brasil e Talher - um projeto de educação popular inspirado na
metodologia de Paulo Freire. Não bastava acabar com a fome de alimentos, mas era
preciso saciar outras fomes – de beleza, de cidadania, de cultura, de política e de
autonomia financeira.

Religiosidade e Política
Ao nos aprofundarmos na obra de Frei Betto, a princípio salta aos olhos a sua
espiritualidade que é formada na ação. O dominicano Betto é portador de uma
religiosidade que se transforma na atuação política. Uma militância em busca do reino de
Deus. Não um lugar distante a ser experimentado na outra vida, mas, o reino de igualdade
pensado por Jesus e que deve ser vivenciado aqui e agora.
Frei Betto é um viciado em utopias. Não simplesmente um vaso nas mãos do
oleiro, mas alguém que se constrói na transformação da sociedade. Logo, na sua
concepção de vida não pode haver neutralidade política. Ser apolítico significa aceitar as
injustiças do mundo. Buscar uma neutralidade é compactuar com os pecados sociais. De
forma recorrente, o dominicano cita o Nobel da Paz, o bispo sul-africano Desmond

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1052
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Tutu447 que dizia que não há nada mais ideológico do que afirmar-se sem ideologia. Não
há nada mais político do que dizer que a religião não tem nenhuma relação com a política.
Segundo o pensamento de Frei Betto, Jesus, através da sua preferência pelos
pobres e do seu projeto de vida igualitária, teria uma articulação profunda entre fé e
política. Nele não haveria uma opção pela neutralidade, mas, pelo contrário, uma vivência
a partir da causa dos menos favorecidos. Assim, a negação dos direitos essenciais dos
pobres seria um pecado social.
Então, qual seria a melhor maneira de servir a Jesus? Através dos pobres. Religião
e política são inseparáveis. E só nos tornamos verdadeiramente filhos de Deus na medida
em que o pão for realmente de todos. Criticando o modelo capitalista de produção, Frei
Betto afirma que nenhum sistema político pode colocar a propriedade privada acima da
vida.
No seu livro “Um Deus muito humano. Um novo olhar sobre Jesus”448, Frei Betto
identifica a necessidade de uma libertação social que atinja a todos, inclusive os
opressores. Isso se daria através da superação das relações humanas baseadas na
desigualdade social, no preconceito, na miséria e na fome. Neste livro, o autor ressalta
que as preocupações com a vida eterna, nos evangelhos, nunca saem da boca dos pobres.
Aqueles que se preocupavam com a salvação são os que já garantiram a sua sobrevivência
na Terra. Os pobres estão ocupados com as dificuldades da vida terrena: uma deficiência
física, a cura de uma doença, a morte de um parente e a fome. Para o dominicano Betto,
Jesus se identifica com os mais pobres e excluídos e a dedicação a eles é a melhor maneira
de se servir a Deus. É condição si ne qua non para se chegar a salvação.
Mas, por que a preferência de Jesus pelos pobres? Segundo o frade mineiro, a
pobreza se faz à medida que a pessoa não tem acesso aos bens essenciais à vida que é o
maior presente dado por Deus. Logo, os pobres são defendidos porque a sua condição é
fruto da injustiça social. Na concepção evangelística de Frei Betto, o Deus que Jesus

447
Esta citação pode ser encontrada do livro de autoria de Frei Betto: O que a vida me ensinou. 1ª edição,
Ed. Saraiva, SP, 2013, p. 12.

448
BETTO, Frei. Um Deus muito humano. Um novo olhar sobre Jesus.Ed. Fontanar, 1ª edição, SP, 2015.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1053
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pregava não aceita nenhum modelo político que leve a morte (...) “na casa de Jesus, entra,
de preferência, quem é pobre ou faz opção pelo pobre”. (BETTO, 2015)
Na Palestina dos tempos de Jesus, os religiosos procuravam saber os caminhos
que levavam a salvação. Eles já tinham os bens necessários à vida terrena, logo
almejavam conquistar voos mais altos. Ou seja, prevaleciam interesses individualistas
sobre as questões de características mais coletivas. Os mais humildes, em contrapartida
precisavam resolver as pendências humanas – as deficiências físicas, a morte de um
parente ou a cura de alguma doença.
Assim, para Frei Betto, o Deus revelado por Jesus Cristo não pode aceitar nenhum
modelo político que não preserve a vida. “Eu vim para que tenhais vida e vida em
abundância”449. Então, tanto o liberalismo quanto o marxismo podem ser antievangélicos,
uma vez que privilegiam alguns seres humanos em detrimento de outros. Na revolução
cultural realizada por Jesus, todos os seres humanos seriam iguais, não admitindo
diferenças relacionadas às raças, a sexualidade, as classes econômicas, a fatores políticos
ou sociais.
Vale a pena ressaltar que o Messias estava mergulhado nos conflitos
sociopolíticos da Palestina, onde não se separava a religião da política. Desta forma, a
religiosidade de Cristo exigia um encontro com o Pai a partir da pólis. Assim, não faz
sentido um Deus que está no céu e nada tem haver com que acontece aqui na Terra. Da
mesma forma que ninguém pode ser dizer cristão num mundo em que tantos morrem de
fome a cada dia.
“No entanto, é no mínimo vergonhoso constatar que hoje, segundo a FAO, mais
de 1 bilhão de pessoas vivem, no mundo, em estado de desnutrição crônica. Isso
em países ditos cristãos, mulçumanos, budistas...Para que serve uma religião
cujos fiéis não se sensibilizam com a fome alheia? Por que tanta indiferença
diante dos povos famintos? O que significa adorar a Deus se ficamos de costas
ao próximo que padece de fome?” 450

O dominicano mineiro pensa num cristianismo de engajamento, em que a busca


de uma justiça social é o único caminho em direção à salvação. Os pobres, as meninas de
olhos do Senhor, devem ser privilegiados e a política é o caminho que leva ao paraíso

449
Estas referências podem ser encontradas no capítulo 10 do evangelho de João.
450
Um Deus muito humano. Um novo olhar sobre Jesus. Ed. Fontanar. 1ª Ed. 2015. P. 115
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1054
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

aqui e agora. Assim, Deus só será realmente pai nosso quando todos tiverem acesso ao
pão nosso de cada dia.

“A ressurreição de Jesus é um convite à nossa, ainda nesta vida. Livrar-nos de


todos os sinais de morte – injustiça, conformismo, desalento, desesperança – e
abraçar a justiça, o sonho, a utopia, a esperança, sem os quais o amor não passa
de um sentimento inócuo.” 451

Interessante notar na citação acima que ele pensa numa ressureição ainda neste
mundo. Entendemos que ele esteja falando não da morte física, mas, simbolicamente na
morte do “homem velho” – aquele ligado ao egoísmo, a individualismo, ao lucro
desenfreado, a concorrência desleal, a injustiça e a desumanidade – características que ele
relaciona ao modelo capitalista de produção.
Deste modo, a preferência do nazareno pelos pobres e a sua aversão à acumulação
de bens materiais causam constrangimentos numa sociedade baseada na desigualdade
social e na concorrência desenfreada. Assim, a ressurreição seria o nascimento de uma
nova consciência, voltada à coletividade, a alteridade, a partilha e a justiça social. O
socialismo se aproxima do modelo ideal pensado por Betto. Em palestra recente no
município de Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro, ele afirmou que “o socialismo é o
nome político do amor”.452 Porém, é importante ressaltar que ele vê falhas nesse modelo
produtivo, principalmente no período do stalinismo na antiga União Soviética. Mesmo
assim, Frei Betto entende a importância do marxismo. Não como um dogma político, mas
como uma importante ferramenta de análise da realidade social. Para ele, a espiritualidade
não pode abrir mão do arcabouço teórico das ciências sociais para compreender as
mazelas do mundo e mais do que isso, para encontrar meios de superá-las.
A religiosidade de Frei Betto está intimamente ligada aos preceitos da Teologia
da Libertação. Esta concepção teológica, segundo o dominicano, é “a fé cristã vivida e
refletida a partir do mais profundo anseio dos pobres deste Continente: o direito à vida,
dom maior de Deus”. O seu primeiro contato com esta teologia se deu nos tempos da

451
BETTO, Frei. Um Deus muito humano. Um novo olhar sobre Jesus. Ed. Fontanar. 1ª Ed. 2015. P. 101
452
Debate ocorrido na cidade de Petrópolis no Rio de janeiro no ano de 2017. Fizeram parte da mesa, além
de Frei Betto, o teólogo Leonardo Boff e Frei Ivo (antigo companheiro de Frei Betto que esteve com ele
preso durante a ditadura militar).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1055
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

prisão. Ele não tem certeza como aconteceu, mas, supõe que tenha ocorrido através das
cartas que trocava com os teólogos Leonardo Boff e Carlos Mesters. Foi também na
cadeia que Frei Betto leu pela primeira vez o clássico de Gustavo Gutierrez – Teologia
da Libertação.
O teólogo da libertação é um intelectual orgânico intimamente ligado aos
movimentos populares. Desta forma, a teologia surgiu não de intelectos favorecidos, mas
de uma práxis libertadora junto aos mais carentes. Nesta nova concepção teológica, a
Igreja não seria formada somente por sua hierarquia eclesiástica, mas por um corpo que
nasce nas comunidades eclesiais de base. Em outras palavras, a realidade social
excludente da América Latina e as lutas dos movimentos sociais criaram a teologia da
libertação. Ela brota da pobreza latina. Segundo Gustavo Gutierrez, o objetivo principal
não é ensinar teologia ao menos favorecidos, mas permitir que os pobres expressem o seu
próprio pensamento teológico. O importante é libertar os pobres, fazendo assim a vontade
de Deus.

Bibliografia

BETTO, frei. Alfabetto – Autobiografia escolar. Ed. Ática, São Paulo. 2002.

BETTO, Frei. A mosca azul – reflexão sobre o poder. Ed. Rocco, RJ, 2006.

BETTO, Frei. Batismo de Sangue. Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Ed.


Bertrand Brasil – RJ, 1987.

BETTO, frei. O oficio de escrever. Ed. Anfiteatro, 1ª edição, RJ, 2017.

BETTO, Frei. O que a vida me ensinou. 1ª edição, Ed. Saraiva, SP, 2013

BETTO, Frei. O que é Comunidade Eclesial de Base, 5ª edição, Ed. Brasiliense, SP,
1985.

BETTO, Frei. Paraíso Perdido. Viagens ao mundo socialista. Ed. Rocco. 1ª ed. Rio de
Janeiro, 2015

BETTO, frei. Típicos Tipos – coletânea de perfis literários . Ed. A Girafa – SP – 2004.

BETTO, Frei. Um Deus muito humano. Um novo olhar sobre Jesus.Ed. Fontanar, 1ª
edição, SP, 2015

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1056
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BETTO, Frei. Um homem chamado Jesus. Ed. Rocco, RJ, 2009.

BOFF, Leonardo. A Águia e a galinha – uma metáfora da condição humana. Ed. Vozes –
Petrópolis- RJ.

BOFF, Leonardo. Igreja, carisma e poder. 3ª edição, Ed. Vozes, RJ, 1981.

BOURDIEU, Pierre. In: Usos e abusos da História oral. Organizadoras: Marieta de


Moraes Ferreira e Janaína Amado. 8ª edição, Ed. FGV.

COSTA, Marcelo Timothéo da – artigo Operação cavalo de Tróia – a Ação Católica


Brasileira e as experiências das JEC e JUC.

COSTA, Marcelo Timotheo da – Um Itinerário no Século: mudança, disciplina e ação em


Alceu Amoroso Lima, SP/RJ, Loyola/PUC-Rio, 2006

FAUSTO, Boris- História Concisa do Brasil- Ed. edusp – SP,2015.

FERNANDO, Frei, IVO, Frei e BETTO, frei. O canto na fogueira. Ed. Vozes, RJ, 1977.

FICO, Carlos – História do Brasil Contemporâneo – da morte de Vargas aos dias atuais
– Ed. Contexto- SP – 2015.

FREIRE, Américo e Sydow, Ivanize. Frei Betto – biografia. Ed. Civilização Brasileira –
RJ, 2016

LE GOFF, Jacques – História e Memória – Ed. Unicamp. SP.

LOWENTHAL, DAVID. Como conhecemos o passado (1998). Tradução: Lúcia


Haddad. Revisão técnica: Mariana Maluf.

MONTES, Maria Lúcia. As figuras do sagrado – entre o público e o privado na


religiosidade brasileira. Ed. Claroenigma – SP- 2012.

REIS, Daniel Aarão – Ditadura e Democracia no Brasil – Ed. Zahar – RJ – 2014.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1057
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Batismos e ilegitimidade na freguesia de Macaé nas primeiras décadas do século


XIX

FABIO FRANCISCO DOS SANTOS


Mestrando do Programa de Pós-graduação em História do Brasil da Universidade
Salgado de Oliveira – UNIVERSO.

Introdução
Os registros paroquiais são fontes privilegiadas de informações capazes de
auxiliar na compreensão do passado. Sua importância consiste não só como mecanismos
de controle da Igreja e da Coroa, mas também como suporte de informações sobre a
sociedade civil, que é de suma importância no campo de pesquisa da demografia histórica.
Nesta perspectiva, o presente artigo pretende analisar os registros de batismo voltados a
toda população na freguesia de Macaé durante as duas primeiras décadas do século XIX
e ainda trazer para o debate alguns estudos de caso voltados para a compreensão do fator
de legitimidade e de ilegitimidade do batizando, ou seja, para a situação matrimonial na
qual são apresentados os pais das crianças que são levadas a pia batismal. Numa sociedade
marcada pela dualidade entre cativos e libertos e pela posição social do branco, o reflexo
na produção desses assentamentos é quase inevitável, bem como as inúmeras
particularidades referentes à legitimidade e ilegitimidade dos batizados. Essas
características extraídas dos documentos demonstram que os registros paroquiais são
fontes privilegiadas de informações, capazes de auxiliarem na formação de diversos
cenários sociais e merecem a devida atenção dos pesquisadores.

A padronização dos registros


A elaboração e padronização dos registros de batismo e das demais fontes seriais
eclesiásticas seguiram as instruções do Sínodo Diocesano, reunido na Bahia, em 1707,
que engendrou as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, publicadas em
1720. Este foi uma compilação de normas, para servir como a principal legislação
eclesiástica no Brasil Colonial. É considerado um dos mais importantes documentos de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1058
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

cunho religioso dos tempos coloniais. A Igreja determinava que os assentos devessem
seguir uma padronização453.
Seguindo este padrão, os registros passaram a ser redigidos com uma mesma
moldura. Por isto, são fontes seriais. Como se vê, para os registros de batismo, as
Constituições estipulavam que certas informações deveriam constar, incluindo a data e o
local do batismo, o nome do batizando, dos seus pais, o nome dos padrinhos, seu estado
matrimonial, o nome dos proprietários dos padrinhos, caso estes fossem escravos, a
paróquia a que pertenciam pais e padrinhos dos batizados.
Estas são, portanto, as informações básicas contidas nos registros de batismo.
Todavia, a frequência de determinada informação variou sobremaneira, pois vários padres
lançam os assentos nos livros. Uns registram datas de nascimento dos inocentes, ao passo
que outros não o faziam com a mesma assiduidade. Isto significa que a feitura dos
assentos passava pelo poder de escrita dos padres, que eram filtros de informações.
Segundo Iracydel Nero da Costa (1990, p.48), ao que tudo indica, os batismos não
eram, necessariamente, registrados imediatamente antes ou depois de ministrado o
sacramento. “Talvez os padres anotassem os dados em um papel qualquer para depois
efetuarem os lançamentos definitivos”.
Os padres precisavam obter informações de alguém. Na maioria das vezes não há
como ter certeza, mas, de um ou outro modo, os registros demonstram percepções de
agentes sociais e as informações revelam lugares sociais que as pessoas ocupavam. Para
além da concepção dos párocos e do discurso da Igreja, os registros de batismo eram uma
maneira de identificar as pessoas ali mencionadas, são registros de (e sobre os) atores
sociais de então. Em suma, são documentos sociais.
O batismo, primeiro dos sacramentos cristãos, era experimentado pela quase
totalidade da população. De acordo com os prescritos eclesiásticos, este sacramento
deveria ser ministrado o mais rápido possível de preferência em sete dias após o
nascimento da criança. O registro de batismo servia como documento de nascimento e de
inserção na cristandade. Poderia também significar, no caso dos escravos, o
reconhecimento oficial dos direitos do proprietário sobre sua posse (LOTT, 2004, p.3).

453
Ver mais detalhes: SEBASTIÃO, Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
Coimbra: Real Colégio das Artes e da Comp. de Jesus, 1720, Livro Primeiro. Títulos IX ao XX.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1059
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As Constituições não determinavam a confecção de livros exclusivos para livres


e para escravos. A partir de 1871 foi obrigatória a separação de livros para livre e para
escravos, muito embora algumas paróquias não o fizessem. Os registros de Macaé, porém,
demonstram que nem todos os livros eram separados por grupo social, mas confirmam a
diferenciação social de uma sociedade escravista. Havia brancos, pretos escravos e pardos
livres. Nada mais natural, evidentemente, já que se trata também de livros de registros
produzidos em uma sociedade escravista, que destaca cor, condição jurídica, naturalidade
e procedência (GUDEMAN, 1988). Deste modo, os batismos também serviam para
garantir a posse e o domínio de um cativo inocente, bem como para fazer doações de
batizados ou, ainda, alforriá-los.
Apesar de não haver livros destinados para cada cor, a forma como os registros
eram produzidos demostrava uma diferenciação objetiva, nem sempre configurando
discriminação, mas sim por falta de elementos para construção desses registros, conforme
observa Iraci Del Nero da Costa (1990). Para o autor, o fator a determinar a concisão ou
prolixidade dos vários registradores também refere-se ao posicionamento social e/ou
faixa etária das pessoas envolvidas no sucesso assinalado.

Escravos, forros e inocentes, via de regra, receberam tratamento sucinto. Por


outro lado, os dignitários da Igreja ou da vida administrativa colonial, bem
como as pessoas de posses tiveram seus privilégios consubstanciados em
assentos minuciosos, evidentemente, não se trata aqui de discriminação - a
própria condição de escravo, forro e/ou inocente tinha como corolário uma
existência sem acontecimentos marcantes os quais, em última instância, davam
embasamento aos assentos pormenorizados. (COSTA, 1990, p.47)

O registro de batismo abaixo é de uma criança branca. Ele reproduz detalhes,


como filiação, padrinhos e, em muitos casos, os avós e suas respectivas freguesias:

Aos vinte e hum de novembro de mil oito centos e dez, nesta freguesia de
Nossas Senhoras das Neves do Sertão de Macaé batpzei solenemente e pus os
Santos Óleos a Anna, inocente filha legítima de Joze Ferreira Barbosa e
Alexandrina Francisca Campos, neta paterna de Luiz Ferreira e Maria Luiza,
avos maternos Joze Francisco Campos e Francisca, natural de Macaé. Forão
padrinhos Capitão Manoel Ferreira e Ritta Francisca Campos, fregueses dessa
freguezia, do que para constar, fiz este assento. O vigário João Bernardo da
Costa.(Fonte: Arquivo da Igreja de Nossa Senhora das Neves. Livro 1 de
Batismos (1808-1841), folha 17).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1060
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Já o exemplo abaixo, reproduz um registro de um escravo ainda criança. Neste


caso, a anotação da madrinha estava presente. Não raro, muitos párocos consagravam a
condição de madrinha a Nossa Senhora:

Aos nove de junho de mil oito centos e doze nesta freguesia de Nossa Senhora
das Neves do Rio MacaéBaptizeisolenemente e pus os Santos Óleosa
Maria,innocentefilha legitima de Antônio e Joaquina, escravos de Manoel
Joaquim de Figueira Campanha. Forão Padrinhos Domingos e Francisca,
escravos deCustódio José Teixeira Campanha,e para constar fiz este assento.
O vigário Manoel da Silva e Souza.(Fonte: Arquivo da Igreja de Nossa Senhora
das Neves. Livro 1 de Batismos (1808-1841), folha 55).

Sejam quais forem os motivos da separação ou não de livros, nos registros de


batismos de livres, quer em Macaé ou alhures, as informações em geral são as seguintes:
data e local do batismo, data ou tempo de nascimento, nome do batizado, cor/condição
social, legitimidade e ilegitimidade (isto é, se era ou não filho de pais casados), condição
jurídica (se livre ou forro), ocasionalmente se o batizado era alforriado na pia batismal.
Além destas informações, os registros aludem títulos ou cargos (capitão, tenente, dona
etc.) dos pais e padrinhos, às vezes suas ocupações, suas cores, se há parentesco entre os
padrinhos.
O seguinte registro é de um escravo do Tenente Amaro Velho da Silva,
proprietário da Fazenda Atalaia. Os registros informam a sua patente militar. Há grande
quantidade de registros de batismo de cativos nos seus domínios. A fazenda foi uma das
maiores na região:

Aos treze de junho de mil oito centos e nove nesta freguezia de Nossa Senhora
das Neves do Rio Macaé Baptizei solenemente pus os Santos Óleos a
Demétrio, innocente filho legitimo de Joze e Maria, escravos do Tenente
Amaro Velho da Silva da fazenda Atalaia. Forão Padrinhos Francisco e Nossa
Senhora, e para constar fiz este assento. O vigário João Bernardo da
Costa.(Fonte: Arquivo da Igreja de Nossa Senhora das Neves. Livro 1 de
Batismos (1808-1841), folha 17).

Necessidade do batismo desde a origem


Apesar do curto espaço temporal contemplado nesse trabalho é possível analisar
também o batismo de escravos adultos. Essa era uma prática recomendada a todos
nascidos no Brasil e os que chegavam da África, conforme analisa Costa (1990). O autor
observa que inocentes entendiam-se as crianças, via de regra, com menos de sete anos,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1061
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que ainda não comungavam. Adultos, consideravam-se, em geral, os negros africanos,


com mais de sete anos, aqui chegados sem terem recebido o batismo na África. A este
respeito mostra-se elucidativa a ordem régia de 29 de novembro de 1719:

Havendo casos em que o cabido e o bispo de Angola possam não ter batizado
os negros, antes de embarcarem, como lhes é muito recomendado e prescrito,
mando que o arcebispo da Bahia e os bispos de Pernambuco e do Rio de Janeiro
hajam de suprir esta diligência, fazendo batizar os que aportarem nos navios,
e sem demora para não morrerem em falta deste sacramento; e que párocos
examinem, se os moradores de suas paróquias os têm por batizar, fazendo listas
e remetendo-as aos ouvidores para castigarem os senhores na forma da
Ordenação L. 5 Tit. 99. (COSTA, 1990, p.49).

Além de registros de adultos, foi possível analisar também assentamentos de


escravos que davam conta da sua nação de origem. Nesse particular, se destacam dois
negros cabindas, batizados em 1811 e pertencentes a Antônio José Lopes de Araújo, da
Fazenda Nova, conforme é possível observar um dos assentos abaixo:

Aos tantos de março de mil oito centos e onze nesta freguezia de Nossa
Senhora das Neves do Rio Macaé Baptizei solenemente pus os Santos Óleos a
Alexandre adulto, nação de Cabinda, escravos de Antônio José Lopes de
Araújo da fazenda Nova. Forão Padrinhos Francisco e Thereza e para constar
fiz este assento. O Vigário João Bernardo da Costa.(Fonte: Arquivo da Igreja
de Nossa Senhora das Neves. Livro 1 de Batismos (1808-1841), folha 25).

Os registros paroquiais são como luminárias, que possibilitam enxergar detalhes


ainda obscuros da historiografia. Mas não basta ter um enorme quantitativo de fontes se
não souber utilizá-las como ferramentas eficientes para pesquisa. É necessário saber
interrogá-las e não influir com preconceitos para obter resultados que legitimem opinião
ou crença, para que se possa aproximar, o quanto possível, da realidade pesquisada.
Por isso é tão importante o cruzamento das fontes paroquiais, com as listas
nominativas, testamentos, inventários, para relacionar as linhas onomásticas e chegar a
uma observação em escala pormenorizada.

No passado, podiam-se acusar os historiadores de querer conhecer somente as


“gestas dos reis”. Hoje, é claro, não é mais assim. Cada vez mais se interessam
pelo que seus predecessores haviam ocultado, deixado de lado ou
simplesmente ignorado. (GINZBURG, 2008, p.11).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1062
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Carlo Ginzburg traz essa perspectiva de uma história que parte do micro para
compreender o macro. Possibilidades ora ocultadas, desconhecidas ou simplesmente
desconsideradas são, agora, valorizadas.

A questão da legitimidade
Ao informarem a legitimidade dos batizandos, os registros de batismo são fontes
primorosas de análise do comportamento conjugal sob a ótica de determinada sociedade,
principalmente pelo fator serial que se constitui.
O registro abaixo ilustra o batismo de um forro, em 1810. É importante observar
que na descrição do pároco, o inocente é filho natural:

Aos dez de abril de mil oito centos e dez nesta freguezia de Nossa Senhora das
Neves do Rio Macaé Baptizei solenemente pus os Santos Óleos a Florinda,
parda, innocente filha Natural de Feliciana, parda. Forão Padrinhos Joaquim
Vicente de Moraes e Joanna Francisca Roza, forros e para constar fiz este
assento. O VigárioJoão Bernardo da Costa.(Fonte: Arquivo da Igreja de Nossa
Senhora das Neves. Livro 1 de Batismos (1808-1841), folha 26).

O assento acima abre uma reflexão importante sobre a situação matrimonial na


qual o batizando foi gerado. De acordo com Antônio Amaro Neves (2001) a ilegitimidade
está diretamente relacionada ao comportamento sexual da população que se realiza fora
dos laços conjugais estabelecidos pelas normas da Igreja Católica. Desse modo, podemos
compreender que os filhos naturais, ou “filhos das ervas”, eram aqueles cuja concepção
e nascimento ocorreu fora do seio legítimo, ou seja, não sacramentadas pelas bênçãos do
matrimônio. No entanto, cabe ressaltar a diferença existente entre filho ilegítimo e filho
“natural”. Essa questão está diretamente ligada a viabilidade matrimonial dos pais, isto é,
quando a denominação ilegítimo aparece quer significar que um ou ambos os pais já são
casados, por sua vez, a denominação “filho natural” indica que os pais são solteiros, isto
é, ainda podem vir a se casar sejam entre si, ou com outras pessoas. Em outras palavras:

Os filhos ilegítimos constituíram uma faceta comum da vida familiar ao longo


de todo o período colonial. A ilegitimidade aparecia em todos os grupos
sociais, mas era mais frequente nas camadas populares (...). A lei portuguesa
fazia uma distinção entre os filhos legítimos, aqueles nascidos dentro do
casamento, e os ilegítimos aqueles nascidos fora do casamento. Conforme a
legislação portuguesa postulava, entre os filhos ilegítimos os filhos naturais
detinham um estatuto superior ao dos filhos espúrios. Os primeiros tinham
nascidos de um casal não ligado pelo matrimonio, mas em relação ao qual não

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1063
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

havia obstáculo que impedisse o casamento futuro. Em geral eram filhos de


homens e mulheres solteiros ou viúvos. Os filhos espúrios por outro tinham
sido concebidos no pecado. Seriam os filhos de casais que jamais poderiam se
casar. Eram fruto de relações adúlteras, incestuosas ou sacrílegas. (METCALF,
apud CAVAZZANI, 1994, p.02).

É fundamental considerar quais eram as condições de acessibilidade do mercado


matrimonial para a população oriunda de relações fora da esfera do matrimônio. Pois,
conforme a historiografia brasileira já apontou, a ilegitimidade fazia parte da realidade
brasileira desde o período colonial. Inúmeras explicações foram apontadas: o difícil
acesso ao casamento, a burocracia, a diferença da quantidade de mulheres em relação aos
homens, os aspectos culturais advindos com a escravidão, processos migratórios etc.
No entanto, Faria (1998) observa quenasáreas rurais onde há grandes propriedades
escravistas, como o caso do norte fluminense, os índices de legitimidade entre os
batizandos escravos eram bem maiores em comparação a determinadas regiões, como
centros urbanos, portuários e mineradores, onde prevalecia a "criança natural", filha de
mãe solteira.
Nos registros de batismo de Macaé, entre os anos de 1808 a 1820, foi possível
observar a justificativa levantada pela autora. A quantidade de filhos legítimos é muito
superior aos naturais, tanto entre a população escrava quanto os livres, conforme mostra
a quadro 1.2:

Tabela 1.1
Registros de batismos em Macaé (1808 – 1820)
Tipo de população Quantidade de %
batismo
Branco 80 14,3
Escravo 446 80
Índio 2 0,3
Forro (pardo) 29 5,2
TOTAL: 557 100
Fonte: Arquivo da Igreja de Nossa Senhora das Neves, em Macaé. Livro 1 de Batismos (1808-1841).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1064
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os dados analisados são apenas dos registros completos produzidos pelos vigários
e compreendem a paroquia de Nossa Senhora das Neves, em Macaé, entre os anos de
1808 a 1820. Por esquecimento ou talvez pelo simples descaso quanto aos registros de
cativos e pardos, muitas informações não foram lançadas nos documentos, o que
prejudica a análise totalitária dos dados.

Tabela 1.2
Situação matrimonial na qual o batizando foi gerado: Macaé (1808-1820)
Legitimidade do batizando Branco % Escravo % Forro %
Legítimo 74 92,5 132 29,5 2 6,8
Natural 7 8,75 58 13 2 6,8
Ilegítimo 0 0 0 0 0 0
Exposto 0 0 0 0 0 0
Fonte: Arquivo da Igreja de Nossa Senhora das Neves, em Macaé. Livro 1 de Batismos (1808-1841).

O alto número de filhos de cativos legítimos significa que a criança era fruto de
um matrimônio sacramentado pela Igreja Católica, numa cerimônia realizada por um
religioso e com a permissão de seus proprietários. Afinal, um registro de batismo é um
sacramento cristão que legitimava a união entre um homem e uma mulher perante uma
sociedade conservadora. Em contraposto estavam os filhos naturais, frutos de relações
consensuais, que generalizam uma gama de situações inclusive casos de concubinato.
Nesses registros encontram-se somente o nome das mães.
Segundo Faria (1998), um dos motivos para a elevada taxa de filhos legítimos
frutos de casamentos são creditados a maior presença da Igreja nos meios rurais, como o
norte fluminense. Porém, Manolo Florentino e José Roberto Góes (1997), consideram
que esta prática era conveniente aos senhores, pois contribuía para o controle do
escravo.Pontuam ainda que escravos casados tinham menos motivos para queixas,
afirmação que condiz com o fato de considerarem a família como um fator que
contribuiria para a paz nas senzalas.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1065
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Se havia vantagem para o senhor, poderia haver também para os cativos. Segundo
Robert Slenes (1999) os escravos que se casavam poderiam ganhar um espaço próprio
para sua família, o que seria um benefício, uma vez que os escravos ficavam por muitas
vezes amontoados em compartimentos de pouco mais de um metro.
Entre os filhos naturais analisados nesse período não houve nenhuma indicação
dos nomes dos pais. Segundo Sílvia Maria Jardim Brügger(2007), até o início do século
XIX, os padres registravam a informação dada pela mãe sobre a paternidade do seu filho
sem que o pai soubesse ou mesmo estivesse presente. Não só mulheres livres indicavam
os pais, com também as escravas. Ainda segundo a autora, é importante pensar no
significado de uma mulher poder nomear o pai do seu filho, principalmente numa
sociedade reclusa aos dogmas da Igreja Católica.
Brügger (2007) analisa ainda que a indicação dos pais nos registros de batismo
poderia produzir complicações no futuro dos envolvidos, principalmente no direto a
herança. A prática foi gradativamente diminuindo, mas sem desaparecer por completo,
pelo menos até fins de 1840. Segundo Farias (1998), os padres passaram a tomar mais
cuidado com as informações que registravam.
Nas duas primeiras décadas do século XIX, conforme se baseou a presente
pesquisa, foram batizados dois forros na qual a situação matrimonial dos seus
progenitores registrada pelos vigários aponta como natural. Em ambos os casos, as mães
também eram forras, o que justifica a liberdade de seus filhos. Apesar da quantidade bem
reduzida, se comparado aos registros de legítimos, ainda mais numa sociedade agrária e
fechada, como a de Macaé, as mães teriam optado pelo não casamento. Segundo Sheila
de Castro Farias, isso se explicaria pela possibilidade de relativa prosperidade destas
mulheres através do comércio de tabuleiro454.

Considerações finais

454
A autora enumera alguns dados que permitem perceber esta relativa prosperidade das forras,
especialmente, as de origem africana. FARIA, Sheila de Castro. “A Mulher Africana – Alforria e Formas
de Sobrevivência (séculos XVII ao XIX)”. Projeto de Pesquisa apresentado ao Centro de Estudos Afro-
Asiáticos. Niterói, 1999.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1066
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Podemos observar, portanto, que a riqueza das fontes eclesiásticas pode ser de
grande valia e auxiliam pesquisadores a reproduzirem cenários econômicos e sociais em
diversas regiões. Como observa João Fragoso, estes recursos são cada vez mais
procurados, na medida em que não há fartura de outras fontes com igual capacidade de
informação.Nos registros das cerimonias de batismo é possível aferir o pacto de alianças
entre famílias, por exemplo. Da mesma forma, como analisa Fragoso (2014), apreende-
se uma noção da classificação social (hierarquia social) costumeira vivida na freguesia
pelos paroquianos. Basta lembrar que o pároco, na ocasião dos batismos, informava a
qualidade social dos pais e dos padrinhos (escravos, forros, donnas, capitães, fidalgos
etc). A qualificação dos agentes permitia investigar o grau de endogamia social.
As observações produzidas sobre legitimidade de nascimento sugerem reflexão
aprofundada, pois possibilitam uma oportunidade excepcional de analisar cenários e
entender a formação familiar colonial. As analises levantadas aqui apenas mostram o
tamanho das ramificações de pesquisas e o quanto são fundamentais para qualquer estudo
social.
O restrito recorte temporal das duas primeiras décadas do século XIX em Macaé,
utilizado nesse trabalho, possibilitou observar algumas questões propostas inicialmente e
abriu caminho para um leque de possibilidades interpretativas, a partir das informações
dos registros. Cabe ao historiador desvelar estas informações, cuja verdade encontra-se
constantemente encoberta pelo véu do silencio e da aparente regularidade formal da
documentação eclesiástica.

Bibliografia

BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João del Rei
– séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007.
CAVAZZANI, A. L. M; MORAES, J. M. In extremis causa: exposição e mortalidade
numa pequena vila da América portuguesa no século XVIII. In: Encontro Nacional de
Estudos Populacionais, 14., 2004, Caxambu. Anais eletrônicos... Campinas: ABEP, 2004.
Disponível em: http://www.abep.nepo.unicamp. Acesso em: 11 jun. 2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1067
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

COSTA, Iracudel Nero da. Registros paroquiais: notas sobre os assentos de batismos,
casamento e obito. Lph - Revista de Historia, Mariana, n. 1 , p. 46-54, 1990.
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998. Idem, p. 308; SOARES, Mariza de Carvalho. Identidade étnica, religiosidade e
escravidão. Tese de Doutorado, apresentada ao PPGH-UFF. Niterói: UFF, 1997.
Apêndice metodológico.
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano
Colonial. RJ, Nova Fronteira, 1998, p.54.
FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz nas senzalas: famílias escravas e
tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1997.
GUDEMAN,Sthepen e SCHWARTZ, Schwartz. Purgando o pecado original: compadrio
e batismo de escravos na Bahia no século XVIII, in REIS, João José (Org.) Escravidão e
Invenção da Liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1988.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: O cotidiano e as ideias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
LOTT, Miriam Moura. Casamento e família em Minas Gerais: Vila Rica, 1804 – 1839.
Belo Horizonte: UFMG, 2004. (Dissertação de Mestrado – História).
NEVES, António Amaro. Filhos das Ervas. A ilegitimidade no Norte de Guimarães.
(século XVI-XVIII). Guimarães: Universidade do Minho/NEPS, 2001.
SEBASTIÃO, Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Coimbra:
Real Colégio das Artes e da Comp. de Jesus, 1720, Livro Primeiro. Títulos IX ao XX.
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de, FRAGOSO, João, GUEDES, Roberto. Arquivos
paroquiais e história social na América Lusa: Mauad, 2014.
SLENES, Robert. Na senzala, uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1068
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O Distrito Federal em guerra: mobilização do front interno pelo Governo


Provisório durante a Guerra de 1932

FELIPE CASTANHO RIBEIRO


Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Salgado de
Oliveira - UNIVERSO

Não se tratava apenas de oferecer toda a retaguarda e a infra-estrutura


econômica e militar para os exércitos, mas de se preparar para bombardeios
contra alvos claramente civis e, essencialmente, de manter todas as esferas da
vida privada e pública em permanente estado de mobilização a serviço do
Estado, submetidos a uma lógica e a um controle que escapavam à
compreensão do indivíduo. (CYTRYNOWICZ, 2000, p.15)

Ao analisar o cotidiano de São Paulo durante a Segunda Guerra mundial, Roney


Cytrynowicz identificou a mobilização da população para apoiar o Estado no conflito.
Este fato foi incentivado e estimulado pelo governo de Getúlio Vargas. Ainda que a guerra
não atingisse diretamente o estado paulista, fazia-se necessário que a sociedade se
dispusesse, em suas diferentes esferas civis, a serviço do governo. Esta mobilização
específica, foi nomeada por Cytrynowicz como front interno e civil em oposição ao
externo e militar(CYTRYNOWICZ, 2000, pp.13-41).
É através do conceito de front interno que o presente trabalho foi construído. No
entanto, nossa proposta visa o estudo do Distrito Federal durante a Guerra de 1932, mais
conhecida como revolução constitucionalista455. Este conflito, teve início em 9 de julho
de 1932 e durou até o dia 2 de outubro do mesmo ano. A princípio tratado como um
conflito regional pela historiografia, a Guerra de 1932 tem sido alvo de novas análises
desde a década de 1980, que cada vez mais se aproximam da perspectiva de uma guerra

455
O nome do movimento eclodido em 1932 no Estado de São Paulo pode variar de acordo com o
posicionamento historiográfico dos autores que se debruçam sobre o tema. Acreditamos que a nomenclatura
mais correta seja a de guerra civil, não apenas por conta da projeção do conflito como pela própria definição
do termo. Segundo o Dicionário de Política, guerra civil é a guerra quando conduzida por cidadãos de um
mesmo Estado. Já para Saint-Pierre, a guerra civil se desenvolve em uma unidade decisória, como
manifestação extrema de uma pluralidade política. In: BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINO, 2000, p. 572
e SAINT-PIERRE, 2000, p. 34. No presente artigo iremos nos referir ao conflito como Guerra de 1932.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1069
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

civil e nacional456. Neste sentido, acreditamos que durante a Guerra de 1932, o Governo
Provisório precisou mobilizar a sociedade na capital em busca do apoio e legitimação
necessária para que pudesse assegurar a sua vitória contra o movimento de oposição
iniciado em São Paulo.

A constituição de um Front interno através da imprensa


Na Guerra de 1932, a imprensa foi importante aliada do Governo Provisório para
garantir o apoio e a legitimidade da população na capital. No dia 14 de julho de 1932, o
jornal O Radical informava que por conta do início da guerra civil, Getúlio Vargas havia
parado de realizar o seu tradicional passeio do Palácio Guanabara ao Catete. Contudo, no
dia 13 de julho, 4 dias após o início do conflito, Vargas retornou ao seu tradicional
passeio.O periódico explicava que:

Todos os dias, o senhor Getulio Vargas, acompanhado apenas pelo seu


ajudante de ordens, tenente Amaro da Silveira, dirige-se, democraticamente, a
pé, do Palacio Guanabara ao do Cattete, á hora do inicio dos despachos. Os
moradores da rua Paysandu [...] já se habituaram, após o almoço, a ver
aquelledemocratico civil, ladeado por um militar, passando tranquilamente, ao
trabalho. Algumas vezes, em dias mais radiosos, o Chefe do Governo prolonga
o passeio. Vae de uma ponta a outra da praia do Flamengo. Nos primeiros dias
que precederam á agitação paulista, os moradores da rua Paysandu perderam
de vista, á hora habitual, o Chefe do Governo e seu ajudante de ordens. [...]
Mas, transcorrida essa primeira phase, o sr. Getulio Vargas voltou, tranquilo e
sorridente, aos seus hábitos. E, hontem, fez novamente o mesmo trajecto,
accrescido, á noite, com uma excursão pela praia do Flamengo, áquela hora
repleta de familias, que lhe promoveram demonstrações de sympathia e
admiração.457(O Radical, RJ, 14/07/1932)

Pelo advento da guerra, Getúlio Vargas havia deixado de realizar o seu passeio,
mas, poucos dias depois, já retomaria a sua caminhada habitual.Mais ainda, “tranquilo e
sorridente”. Dessa forma, os moradores da rua Paysandu, acostumados com a rotina de
Vargas,podiam presenciar novamente o “democrático civil” passear após o almoço. A
notícia parecia ser uma clara mensagem a população da capital do país.Nesta, a situação
se encontrava sobre o controle do governo e a rotina na cidade não deveria ser afetada.

456
Discussão melhor explorada por mim no texto: RIBEIRO, Felipe Castanho. A historiografia da Guerra
de 1932 e a sua amplitude. Mosaico, Rio de Janeiro, v. 8, n. 12, p. 226 - 247, jun. 2017. ISSN 2176-8943.
Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/mosaico/article/view/65514>. Acesso em: 21
Jun. 2017. doi:http://dx.doi.org/10.12660/rm.v8n12.2017.65514.
457
Mantivemos a grafia original das fontes utilizadas neste artigo.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1070
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Não podemos afirmar que esta matéria havia sido disparada pelo próprio governo.Mesmo
cientes de que os jornais que circulavam na cidade se encontravam censurados desde o
dia 12 de julho com o decreto 21.611 de 1932458. Entretanto, sabemos que O Radical era
um jornal tenentista e que representava os interesses do Governo Provisório459.
Se no caso de O Radical a matéria sobre o passeio de Getúlio Vargas parecer ter
sido voluntária, este não foi o caso do jornal Correio da Manhã, que por meio de uma
nota emitida pelo Palácio Guanabara, noticiava que o tradicional passeio do chefe do
Governo Provisório voltou a se repetir no dia 14 de julho.A nota dizia que por volta das:

(...) 8 1/2 horas da noite, o sr. Chefe do governo provisorio deixou o palacio
Guanabara, em companhia de seu ajudante de ordens, tenente Garcez, afim de
realizar o seu habitual passeio até á praia do Flamengo. [...] O passeio de s. ex.
o chefe do governo provisorio prolongou-se por cerca de tres quartos de hora.
(Correio da Manhã, RJ, 1932)

Por razões óbvias, manter a ordem na capital era fundamental para o Governo
Provisório.A sede administrativa do país não poderia correr riscos, eventuais ataques na
capital poderiam ser decisivos para que o desfecho da guerra fosse contrário ao desejado
pelo governo. Era necessário demonstrar que a população carioca estava, na sua grande
maioria, do lado do governo. O que estava em jogo era a própria legitimidade do Governo
Provisório, que era testada num momento desfavorável a este. Robert M. Levine definiu
a Guerra de 1932 como a “crise mais tempestuosa do regime”(LEVINE, 2001, p.53)de

458
O Correio da Manhã transcreveu o decreto que cria o Departamento de Censura e Publicidade na
repartição da Polícia do Distrito Federal, o decreto não contém muitas informações além de explicar que a
sua criação possui relação com a situação anormal. Posteriormente, no dia 16 de julho, o periódico
informava que o Departamento foi instalado no prédio da Imprensa Nacional e era chefiado por Rivadavia
Corrêa Meyer. No dia 14, o jornal transcreveu o “Decreto n. 21.611, de 12 de julho de 1932 – Crea na
Repartição da Policia do Districto Federal o Departamento de Censura e Publicidade [...] O chefe do
governo provisorio da Republica do Estados Unidos do Brasil, considerando que o levante militar, de que
foi theatro, ultimamente, a capital do Estado de S. Paulo, tem preoccupado, como era natural, a attenção da
policia do Districto Federal, que, como lhe cumpre, tem agido no caso com o maximo interesse, resolve
crear, naquella repartição, o Departamente de Censura e Publicidade.” Correio da Manhã, RJ, 14 e
16/07/1932.
459
O jornal O Radical começou a circular em 1º de junho de 1932 e foi publicado por quase duas décadas
a mais, precisamente até 9 de outubro de 1954. O seu surgimento ocorreu exatamente no contexto de
agravamento da crise política que atingiu o Governo Provisório no ano de 1932.A sua criação surgiu da
necessidade do Governo Provisório e do movimento tenentista terem uma imprensa favorável aos seus
interesses. O Radical teve a sua fundação tutelada pelo “tenente” João Alberto, à época chefe da Polícia do
Distrito Federal. In verbete: O Radical, DHBB/CPDOC.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1071
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Getúlio Vargas.O autor também percebeu a importância da legitimidade para o governo.


Segundo suas palavras:

O governo provisório foi a primeira ditadura estabelecida no Brasil a lutar por


legitimidade, introduzindo um sistema autoritário centralizado que sobreviveu
em muito ao fim do próprio governo provisório, em 1934. (LEVINE, 2001, pp.
56-57)

Raimundo Helio Lopes observou no Ceará um intenso esforço do Governo


Provisório no sentido de se legitimar durante a Guerra de 1932. Para o caso estudado por
Lopes, o governo federal atuou procurando relacionar a guerra iniciada por São Paulo ao
modelo político da Primeira República que para a população remontava a uma memória
de desleixo e esquecimento do poder central com a região. Um exemplo claro utilizado
pelo governo e pela interventoria chefiada pelo capitão Carneiro de Mendonça estava no
esforço realizado pelo poder central de combater as secas no estado cearense, que
aumentou gradativamente desde que Getúlio Vargas assumiu o poder460. Para o autor, o
processo de construção da legitimação da guerra foi uma estratégia utilizada pelo governo
para vencer o conflito fora do campo bélico e não dever ser menosprezado, “ao contrário,
ele representa um campo de luta onde os ideais foram reafirmados e defendidos pelas
partes em combate”. Esta frente de batalha era fundamental, pois “ambos os lados sabiam
que, para vencer a guerra, era primordial a adesão de várias pessoas as suas tropas e, não
menos importante, o apoio da população. A guerra não era ganha apenas na luta armada”
(LOPES, 2009, p.71).
Na capital do país eram comuns as notas emitidas pelo governo e pela polícia no
intuito de diminuir o apoio da população a São Paulo e de transmitir a confiança na vitória
do governo federal. Logo no início do conflito, a Polícia, possivelmente preocupada com
possíveis perturbações na capital, procurou tranquilizar a população com nota emitida no
dia 10, ou seja, no dia seguinte a deflagração da guerra. A nota, ao mesmo tempo em que
explicava os últimos acontecimentos, informava que:

Explodiu hontem, em São Paulo, um movimento sedicioso, do qual participam


apenas dois corpos da guarnição daquelle Estado. O movimento se acha

460
O autor demonstra que não se tratava apenas de uma questão retórica do Governo Provisório e
demonstrou que entre 1932 e 1933, anos de seca no Ceará, o investimento realizado na região aumentou.
LOPES, 2009a, pp. 47-48.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1072
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

circumscriptoácapital de São Paulo, estando o resto do paiz em perfeita ordem.


O governo domina inteiramente a situação, já havendo recebido dos
interventores dos Estados a segurança de se encontrarem em condições de
prestar auxilioefficaz ao restabelecimento da ordem. Póde considerar-se como
certo que os rebeldes, isolados em São Paulo e não podendo contar com
adehsão de novas forças, acabam por depôr as armas dentro de um praso
relativamente curto. (Correio da Manhã, RJ, 11/07/1932)

A nota emitida pela polícia do Distrito Federal, procurava reduzir a ação de São
Paulo contra o governo, dizendo que apenas dois corpos da guarnição do estado
participavam do movimento sedicioso. O movimento teria um caráter regionalista não
obtendo a adesão de outras regiões e por este motivo, devido ao seu isolamento, o conflito
deveria ter um desfecho favorável ao governo e sem muita demora. A nota realizada pela
Chefatura da Polícia e destacada na primeira página do Correio da Manhã, á época um
dos jornais de maiores circulações da cidade (BARBOSA, 2007, p.41), demonstra que
desde os primeiros dias da Guerra de 1932 havia uma preocupação em tranquilizar a
população da capital. A questão dizia respeito não apenas a ordem, mas a legitimidade do
governo também.
Para o governo, além da manutenção da ordem e de procurar tranquilizar a
população carioca, também era fundamental que a rotina da capital não fosse abalada.
Dito de outra forma, para que a população não sentisse o clima de incertezas que uma
guerra civil pode proporcionar, era importante que a rotina do carioca não fosse
significativamente alterada. Neste sentido, o entretenimento, o lazer e o comércio não
deveriam sofrer grandes alterações. Afinal de contas, a mensagem que o governo
procurava passar era de um conflito regional que não demandava maiores preocupações,
sendo certa a vitória do Governo Provisório. O futebol era um desses exemplos. Durante
toda a Guerra de 1932 os jogos continuaram e, em 2 de outubro de 1932, o Botafogo se
consagraria campeão do equivalente ao torneio carioca atual, ganhando do Bonsucesso
com o placar de 5x4 para o Botafogo (Correio da Manhã, RJ, 03/10/1932). O mesmo
servia para o campeonato do tradicional jogo de “Basket-Ball” (O Radical, RJ,
12/07/1932). Os Teatros e jantares dançantes, também continuavam funcionando
normalmente, em 12 de julho O Radical anunciava os espetáculos do dia: no Trianon
aconteceria Chauffer, comédia de Joracy Camargo; no Recreio, O Homem Mysterioso;
no Republica, a “Flor do Bairro”, opereta portuguesa; no Eldorado, Dante, ilusionista

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1073
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

famoso; e no Rialto, MoulinBleu, variedades (O Radical, RJ, 12/07/1932). Por fim, no


dia 26 de julho, o Cristo Redentor, uma das principais atrações turísticas da cidade
inaugurada no ano anterior, ainda ganharia um inédito sistema de iluminação (O Radical,
RJ, 26/07/1932).
Em matéria intitulada “Uma viagem as alegrias da cidade”, o jornal O Radical
procurava demonstrar que o movimento “contra-revolucionário” em nada teria alterado a
diversão da população carioca. Segundo o jornal, alguns cidadãos doentes do fígado
dizem que o Rio “é de uma insipidez horrivel. Não tem para onde ir-se”, enquanto que
outros, dizem se tratar de uma cidade maravilhosa que em “cada recanto ha um bazar de
alegrias...”. Sendo assim, o jornal enviou um repórter aos lugares que considerava de
maior destaque na cidade, procurava, portanto, demonstrar as inúmeras possibilidades de
diversão na cidade, assim como a normalidade dos serviços. Na Cinelândia, diz que a
diversão ficava por conta dos cinemas; nos teatros o jornal afirma que “dizem os
empresários que a temporada é bôa. Bilheterias sempre frequentadas”, para os domingos,
o jornal diz que a diversão fica por conta do futebol e das corridas de cavalo que não
sofreram interrupção por conta da guerra civil. O jornal ainda afirmava, que para as
pessoas que possuem poucos niqueis as praças e jardins nos bairros se tornam uma
excelente opção de passeio, sem contar os inúmeros circos que se instalam nos subúrbios
da cidade (O Radical, RJ, 01/09/1932).
Por mais que a cidade mantivesse em parte a sua rotina normal, em outros setores
era inegável a atipicidade do momento por conta da guerra que atingia o país. Visando o
esforço de guerra, várias medidas foram adotadas na capital para melhor atender as tropas
do Governo Provisório e para a melhor manutenção da ordem na cidade. Já no dia 11 de
julho a Central do Brasil passava para a jurisdição militar sendo ocupada por uma
companhia de fuzileiros e, visando à “manutenção da ordem pública”, no dia 13 de julho,
Getúlio Vargas por meio de decreto colocou a Polícia Militar do Distrito Federal sob o
comando da 1ª Região Militar (O Radical, RJ, 11 e 13/07/1932).
O intenso movimento de tropas pela cidade também alterava o cotidiano da
cidade.Não obstante, a chegada ou a partida de tropas da capitalfederal não raramente
acabavam em demonstrações de apoio ao Governo Provisório.Foi assim no embarque do

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1074
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

3º Regimento de Infantaria (3º R.I) em direção à São Paulo. A cobertura realizada pela
imprensa aliada, dizia que:

Hoje de manhã a Avenida Rio Branco viveu alguns instantes de profundo


civismo com a passagem do 3º Regimento de Infantaria. Conforme já
noticiámos, essa força do Exercito Nacional seguiu hoje; em auto-omnibus da
Viação Excelsior, para São Paulo, onde vae oferecer ataques ás tropas
sediciosas. Quando aquellesvehiculos passavam pela Avenida Rio Branco,
uma verdadeira multidão ocorreu, saudando enthusiasticamente a valente
mocidade militar. E assim, ao som das palmas vibradas pelo publico, a tropa
do 3º R.I. cantando hymnospatrioticos partia, erguendo no ar os seus lenços
brancos. Este espetaculo comoveu a todos que assistiram. (O Radical, RJ,
11/07/1932)

A respeito do embarque de tropas ou da chegada destas, cenas como estas se


repetiriam, quase sempre com a presença do patriotismo e de manifestações em favor do
Governo Provisório. Dessa forma, segundo O Radical, no dia 20 de julho, o carioca teria
recebido carinhosamente o 4º batalhão de Brigada Militar de Pelotas (RS), sendo digna
de:

(...) registro a maneira por que o povo carioca recebeu os destemidos briosos e
disciplinados soldados do 4º Batalhão, que vem formar ao lado dos seus
companheiros que aqui, se acham, promptos a defender, seja por que meio fôr,
o governo constituído. (O Radical, RJ, 20/07/1932)

O cenário voltaria a se reproduzir inúmeras vezes até o fim do conflito.Foi assim


por ocasião da chegada do 20º B.C. e 29º B.C. daBahia e deNatal, quando uma “compacta
massa de povo que, enthusiasticamente, palmeou a tropa que acaba que acabava de pisar
a terra carioca”461 e no desembarque do 22º Batalhão de Caçadores, aquartelado em João
Pessôa e o 1º Batalhão da Policia Militar da Bahia quando foram recebidos no armazém
13 do cais do porto “por numerosos populares, que os saudaram enthusiasticamente” além
de algumas autoridades do governo (O Radical, RJ, 23/07/1932). Raimundo Helio Lopes,
observou que os embarques de tropas representavam um momento patriótico e de
mobilização da sociedade a favor do Governo Provisório e tinha nestes o seu ápice. Lopes
ainda afirma que:

461
O Radical, RJ, 21/07/1932. Agradecemos a professora Marly de Almeida Gomes Vianna pela
observação sobre as origens do 20º e 29º Batalhões de Caçadores. Isto porque, na matéria do O Radical
consta que o 20º B.C. era de Natal enquanto o 29º da Bahia.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1075
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A mobilização, todavia, em Fortaleza atingia seu ponto mais alto nos


embarques das tropas para o front de batalhas, pois nesses momentos, mais do
que nunca, a Interventoria e os diversos apoiadores do Governo Provisório
construíam um clima favorável à causa governista, fortalecendo mais ainda a
relação entre os citadinos e a guerra. (LOPES, 2009b, pp.15-17)

Ainda que pudesse descaracterizar o cotidiano da capital, as manifestações


realizadas pela população por ocasião da movimentação de tropas eram vistas com bons
olhos pelo Governo Provisório, porque legitimavam a causa governista. Em outras
palavras, havia uma seleção por parte do governo sobre como a guerra deveria afetar o
cotidiano da cidade. O conflito deveria fazer parte e mobilizar a sociedade carioca desde
que fosse favorável ao governo e não rompesse com a manutenção da ordem, o que
poderia pôr em perigo o próprio Governo Provisório. É neste contexto que a imprensa
como principal meio de comunicação no período adquire um papel fundamental de
representar os interesses do governo no Distrito Federal.
Entretanto, apesar dos esforços do governo de manter a rotina da cidade, como era
antes de 9 de julho, parecia impossível que o clima de guerra não atingisse a cidade. É o
que percebemos no artigo publicado pelo Correio da Manhã e assinado por Bastos Tigres,
intitulado Em marcha á ré.O autor mencionava que apesar de estarem vivendo em uma
época de guerra se fazia necessário que as pessoas continuassem a viver, posto que para
Tigres:

A guerra civil é uma calamidade: é ponto em que estão acordes optimistas,


pessimistas e “s’enfichistas’; mas, com ser uma calamidade, ella não faz a vida
parar; bem ou mal, todas as actividades têm de prosseguir; a parada, a
estagnação, a inercia seriam a guerra silenciosa, a parda tonitroante guerra de
canhoneio e fuzilaria. Calamidade sobre calamidade. Entretanto, que se vê na
capital do paiz, por um phenomeno de sugestão collectiva, é um entibiamento
geral de vontades, um collapso de energias, uma arrastada molleza em e de
todos, como se a população inteira tivesse retornado dos campos de batalhas,
cansada e estropiada. É preciso reagir contra essa outra guerra, parda, baça,
apathica, tediosa. Ella só faz aggravar os males da convulsão intestina que
ensaguenta serras e valles, dentro do paiz. Se até certo ponto é comprehensivel
esse estado psychico da população, preoccupada que está com dia de amanhã,
evitando fazer despesas, gastando o menos possivel, por outro lado devemos
considerar que, chegando aos extremos, essa assustada prudencia virá peorar
ainda mais a situação futura. Se param as actividades, se nada se inicia, se nada
se continua, se tudo fica adiado para “quando isso acabar”, teremos depois, de
reiniciar a vida em ultra-pessimascircumstancias. (Correio da Manhã, RJ,
13/08/1932)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1076
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Bastos Tigres reconhecia o fato de que a guerra civil que afligia o país era um
grande mal comum a todos, mas que mesmo assim ela não poderia fazer a vida parar. Era
necessário combater a inércia e a estagnação da população, que representavam uma
verdadeira “guerra silenciosa”. No entanto, nesta frente de combate parecia que a batalha
estava sendo perdida. Tigres afirmava que a população parecia “cansada”, “mutilada”,
como se tivesse retornando de um “verdadeiro” campo de batalha. Não obstante, era
preciso que a população reagisse contra essa guerra, pouco visível, pálida, apática e
tediosa. Segundo o autor, a guerra civil em andamento justificava o estado psicológico da
população, que procurava evitar despesas e não gastar muito.O autor ressalta que se
tratava de uma prudência ocasionada pelo medo e que apenas iria piorar a situação,
sobretudo num momento posterior quando as atividades retornassem ao normal. Neste
trecho inicial do artigo, há uma clara preocupação do autor com a economia que devia
estar sendo afetada pela prudência da população em poupar dinheiro. Ainda que a
percepção do autor possa ser de cunho mais particular do que geral, devemos perceber
que o clima de guerra o afetava e que talvez não fosse o único.Dessa forma, a sensação
de normalidade que parecia ser almejada em algumas notas pelo governo não estava sendo
plenamente alcançada.
O conflito que envolvia o país, exigia do Governo Provisório um grande esforço
de guerra. Para além das medidas necessárias para combater o movimento de oposição ao
Governo Provisório, era preciso garantir a ordem no restante do país. Neste sentido, no
Distrito Federal, era fundamental garantir o apoio da população para a causa governista,
minimizando ao máximo o impacto da guerra na rotina da população. A tarefa não era
fácil, mas o governo se esforçava.Como foi no casodo tradicional desfile de 7 setembro.
Em matéria realizada no dia da comemoração cívica,O Radical anunciava que:

Este anno, a cidade, infelizmente, não terá o espetaculo de uma parada militar,
no dia festivo que hoje passa. As bandeiras penderão melancolicamente das
fachadas, sobre as ruas tristes e desertas de onde a vida habitual terá fugido. O
dia apenas será mareado pelo número vermelho das folhinhas. Dia monótono
e sem côr no rythmo nervoso da cidade. (O Radical, RJ, 07/09/1932)

O jornal prosseguia e num tom melancólico afirmava que:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1077
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(...) todos os soldados do Brasil estão, a esta hora, nas trincheiras, attendendo
ao appello da Nação ameaçada em sua unidade. Todas as armas estão
empenhadas na defesa do ideal de outubro, visado pelo golpe de aventura dos
politiqueiros decahidos. (O Radical, RJ, 07/09/1932)

Segundo o periódico, a parada militar não ocorreria porque os soldados se


encontravam no front, combatendo em defesa do ideal da revolução de 1930. É importante
notar que O Radical, em um raro momento, admitia que o país encontrava a sua unidade
ameaçada. Trata-se de uma exceção que não caracteriza o grosso das matérias realizadas
pelo jornal durante os 85 dias de duração do conflito. Nesta matéria, podemos conjecturar
em primeiro lugar, que o governo admitia que havia um empenho grande do Exército no
sentido de combater os inimigos da Nação e dessa forma justificava a ausência do desfile.
Mas, ao mesmo tempo, procurava desqualificar o movimento iniciado em São Paulo, por
se tratar de uma aventura dos políticos que se encontravam alijados do poder com o
advento da revolução de 1930462.
Retornando ao desfile, apesar da gravidade do momento e da matéria realizada
pelo O Radical, a parada militar acabou acontecendo, ficando ao encargo da Marinha
cumprir esta missão.De modo que a:

(...) passagem da grande data nacional da independencia serviu de pretexto


para que o governo déssehontem uma prova publica de tranquilidade e força.
No momento exacto em que a offensiva do boato procurava inquietar a
população carioca com a difusão insensiva de boatos alarmantes, o ministro da
Marinha para commemorar o 110º anniversario da nossa emancipação politica,
determinava um brilhante desfile do Regimento Naval pela cidade, com
evoluções de uma esquadrilha de hydro-aviões sobre a estatua de Pedro I.(O
Radical, RJ, 08/09/1932)

Pela matéria podemos perceber que o tradicional desfile de 7 de setembro, naquele


ano, representava mais que a comemoração de uma data cívica, o seu acontecimento
significava uma demonstração de força e tranquilidade por parte do governo. Além disso,
diante da população da cidade num momento em que boatos inquietavam a sociedade
carioca.

Consideração final

462
A estratégia de afirmar que a Guerra de 1932 foi realizada por políticos decadentes da Primeira
República também foi utilizada na imprensa do Ceará. Ver LOPES, 2009a, pp. 25-40.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1078
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Como pudemos ver, demonstrar “força e tranquilidade” para a população da


capital federal do país demandou uma atenção especial por parte do Governo Provisório.
Este parece não ter evitado esforços neste sentido. No entanto, diante da gravidade da
situação que atingia o país, nem sempre o resultado esperado era alcançado, forçando o
governo a criar estratégias que minimizassem o impacto da guerra na cidade e
consequentemente garantisse o apoio e legitimação do governo pela população carioca.
A atuação do Governo Provisório no Distrito Federal se constituiu, então, num verdadeiro
front interno. É neste sentido que o Governo Provisório atuou no Distrito Federal,
capitalizando e mobilizando o apoio da população a seu favor e consequentemente se
legitimando. A Guerra de 1932 também estava nas ruas da cidade do Rio de Janeiro.

Fontes
O Radical (Hemeroteca da Biblioteca Nacional).
Correio da Manhã (Hemeroteca da Biblioteca Nacional).

Referência Bibliográfica
BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil – 1900-2000. Rio de
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de
Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado, 2000.
CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem Guerra: A mobilização e o cotidiano em São
Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Geração Editorial: Editora da
Universidade de São Paulo, 2000.
GOMES, Angela de Castro (Coordenação). Regionalismo e centralização política:
Partidos e Constituinte nos anos 30. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
HILTON, Stanley. A guerra civil brasileira: história da Revolução Constitucionalista de
1932. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
LEVINE, Robert M. Pai dos Pobres?: O Brasil e a era vargas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1079
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

LOPES, Raimundo Helio. Os batalhões provisórios: Legitimação, mobilização e


alistamento para uma guerra nacional (CEARÁ, 1932). 2009a. 213 f. Dissertação
(Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Ceará – Fortaleza.
____________________. A Cidade e A Guerra: a campanha de mobilização e o cotidiano
de Fortaleza durante a Guerra de 1932. Mosaico, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, dez. 2009b.
ISSN 2176-8943. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/mosaico/article/view/62782/61918>.
Acesso em: 11 Fev. 2017.
_____________________. Um vice-reinado na República do pós-30: Juarez Távora, as
interventorias do Norte e a Guerra de 1932. 2014. 321 f. Tese (Doutorado em História,
Política e Bens Culturais). Fundação Getúlio Vargas – Rio de Janeiro.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
SODRÉ, Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1966.
RÉMOND, René. Por uma História Política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
RIBEIRO, Felipe Castanho. A historiografia da Guerra de 1932 e a sua
amplitude. Mosaico, Rio de Janeiro, v. 8, n. 12, p. 226 - 247, jun. 2017. ISSN 2176-8943.
Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/mosaico/article/view/65514>. Acesso em:
21 Jun. 2017. doi:http://dx.doi.org/10.12660/rm.v8n12.2017.65514.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1080
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A construção de um material didático a partir dos apontamentos do relatório


Figueiredo

FELIPE ROCHA DE BORBA BRAZ


Mestrado Profissional em Ensino de História
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro –Bolsista CAPES/ CNPQ

1 - Introdução
O presente trabalho tem como principal objetivo a construção de um material
didático sobre a presença indígena no Brasil contemporâneo voltado para os estudantes
de história do ensino médio. A partir das discussões levantadas e atividades propostas,
pretende-se formar alunos atentos às sociedades e tradições indígenas que existem no
Brasil até os dias de hoje e aos diferentes modos de ver o mundo que elas persistentemente
apresentam. A preparação de tal material busca também desafiar as lógicas formadoras
de um cânone escolar que continua construindo silêncios sobre a história desses grupos.
O material didático será produzido a partir dos rastros deixados pelo relatório
Figueiredo, conjunto de documentos produzidos durante comissões de inquérito
instauradas em 1963 e 1967. As duas comissões buscavam investigar abusos cometidos
por funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), instituição criada em 1910 com
a intenção de construir a política indigenista brasileira e que se tornou famosa no
imaginário popular pelo lema criado por Marechal Rondon: “morrer se preciso for, matar
nunca”. Nessa apresentação, nos dedicaremos a apresentar parte do projeto de pesquisa
desenvolvido no primeiro semestre de 2017, com especial atenção para a apresentação da
temática, dos objetivos e da justificativa.

2 - Delimitação Temática
2.1 – O Relatório Figueiredo
O que hoje chamamos de relatório Figueiredo é, na verdade, um conjunto de
documentos reunidos em 1967 pelo procurador do Departamento Nacional de Obras
contra a Seca (DNOCS) Jáder de Figueiredo, no âmbito da comissão de inquérito
destinada a avaliar os abusos cometidos por funcionários do Serviço de Proteção ao Índio
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1081
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(SPI). A comissão de inquérito, solicitada pelo ministro do Interior General Afonso de


Albuquerque Lima, dava continuidade às investigações iniciadas ainda no período
democrático através de uma comissão parlamentar de inquérito instaurada em 1963. As
quase sete mil páginas do relatório final ajudam a trazer uma dimensão mais complexa às
discussões sobre as violências (estatal e civil) sofridas por grupos indígenas devido ao
número grande de testemunhas e à identificação das violações perpetradas – “assassinatos
de índios, prostituição de índias, sevícias, trabalho escravo, apropriação e desvio de
recursos do patrimônio indígena” (STARLING, 2015, p.44).
Sobre o contexto da produção e divulgação do documento em 1967, o historiador
Seth Garfield destaca que:

A investigação do SPI fazia parte do plano dos militares de racionalizar a


burocracia e eliminar a corrupção, o clientelismo e a infiltração esquerdista. O
curioso, todavia, foi a decisão militar de divulgar o conteúdo do relatório
Figueiredo, expondo-se, assim, às críticas internacionais. Em parte, a
divulgação dos crimes do SPI era uma encenação para legitimar o governo
autoritário e expor a corrupção do setor público sob a gestão dos populistas.
Os militares aparentemente apostaram que, divulgando os crimes contra os
índios, o Brasil mostraria, no exterior, uma imagem de harmonia racial
(GARFIELD, 2011, p.218).

A reação da imprensa nacional e estrangeira não tardaria. No Brasil, a divulgação


do relatório foi recebida como o escândalo do século, enquanto os jornais estrangeiros
adotavam um tom mais duro, classificando como genocídio os ataques ao território e às
vidas dos índios brasileiros. Tamanha pressão interna e externa levou o governo militar a
tentar uma aproximação dos indígenas por meio de visitas do ministro Albuquerque Lima
e do presidente Costa e Silva aos grupos indígenas do Xingu que, por sua vez,
aproveitavam o momento para exigir a demarcação de seus territórios. Mas, entre 1967 e
2012, o material foi engavetado, caindo no esquecimento.
A redescoberta do documento ocorreu em 2012, quando o pesquisador Marcelo
Zelic, do grupo Tortura Nunca Mais, identificou o relatório final de Figueiredo em meio
a documentos da FUNAI que haviam sido incorporados ao acervo do Museu do Índio em
2008. As investigações faziam parte das apurações relativas ao grupo de pesquisa da
Comissão Nacional da Verdade dedicado ao estudo das violações cometidas contra os
indígenas e a revelação da documentação - que fora considerado perdido por quase
quarenta anos – novamente chamou a atenção da imprensa. Nessas narrativas “foram
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1082
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

exaltados os aspectos mais sensacionalistas, evidenciando o terror das práticas de tortura


utilizadas, dos massacres e genocídio” (GUIMARÃES, 2015, p.118).

2.2 – Olhares macro e micro na construção do material didático


A partir da tipificação dos delitos apresentados no relatório, percebe-se a
preponderância de crimes contra a pessoa e a propriedade indígena cometidos contra ao
menos 13 etnias distintas, em diversas localidades do Brasil. As práticas de
espancamento, assassinatos, escravidão e arrendamento de terras indígenas podem ser, a
partir desses dados, mapeadas e inseridas no material didático, com a intenção de
construir uma narrativa que apresente essas violações aos alunos do ensino médio de
modo organizado. Nesse sentido, serão destacados o ano do ocorrido, o tipo de crime
atribuído no relatório e a disputa em questão.
Tal processo de mapeamento revelará não somente a ação ou omissão dos agentes
do SPI em relação aos aldeamentos que deveriam defender, mas também a presença
indígena no Brasil contemporâneo. Assim, a construção de uma representação
cartográfica a partir dos apontamentos do relatório Figueiredo faz ver a presença indígena
dentro do território brasileiro e a pode servir como pano de fundo para a discussão sobre
a relação social dos indígenas com o seu território. A apreensão geográfica desses
conflitos, distribuídos por boa parte do território brasileiro, apresentará a desapropriação
de terras indígenas, com suas disputas violentas e lutas por demarcação como um
problema histórico que marca a vida de diversas populações indígenas até os tempos
atuais.
Nesse sentido, a utilização da cartografia não se daria apenas como ilustração, mas
sim como um aporte para compreensão das relações entre as imagens e o poder político.
Sobre o assunto, o antropólogo Álvaro Bello destaca que:

El territorio como imagen, como representación, es un instrumento de poder.


Enel contexto de losprocesossociales, lasrepresentacionesson motores de
laaccióncolectiva, guías que incluso se superponen al objeto mismo
representado. La dirección o incluso la distancia que tome larepresentacióndel
objeto o de la “realidad”, está endirectarelaciónconlossujetoscon que se
vincula el sistema de representaciones, y conelcontrol que éstosejercen sobre
él, debido a lahegemonía que se poneen disputa en torno de
laimagendelterritorio que se deseaimponer (BELLO, 2004, p.99).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1083
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O historiador Fredson Martins relatou, em artigo recente, a experiência com o


Relatório Figueiredo em aulas de história. A apresentação do relatório foi realizada por
Martins a partir de uma apresentação de slides, onde “foram inseridos trechos do relatório
disponibilizados em jornais como o Diário de Minas, na revista Istoé e fragmentos da
entrevista concedida por seu filho, Jáder de Figueiredo Correia Júnior, ao jornal EBC”
(MARTINS, 2016, p.18). A exposição das imagens e textos do relatório possibilitaram o
contato direto com as fontes, no sentido de desenvolver a capacidade crítica e
interpretativa dos alunos acerca das inúmeras violações sofridas pelos indígenas durante
o período ditatorial. Nesse ponto, o autor apresenta várias narrativas, misturando matérias
de jornais escritas após o redescobrimento de 2012 com trechos do próprio documento e
imagens produzidas na década de 60.
A avaliação da atividade realizada por Martins se deu a partir da fabricação de
painéis a respeito da situação atual de cinco etnias indígenas brasileiras: Krenak,
Tupinambá, Yanomami, Tupi-guarani e Cinta Larga. A pesquisa sobre a cultura e a
atuação política desses grupos na atualidade revelou alguns pontos interessantes, como a
luta por territórios que ainda é travada por grupos indígenas em vários pontos do Brasil,
os casos de violência ocorridos nessas disputas e debates sobre a relação entre os
indígenas e a economia capitalista. As conexões realizadas entre passado e o presente
apresentado no relato dos alunos são índices de que o processo de aprendizagem histórica
se aproximou da realidade dos estudantes e deve servir de inspiração para as atividades
propostas na elaboração do fanzines.
Para além da relação entre o passado e o presente, o trabalho de Martins nos instiga
a pensar que as micro-narrativas históricas voltadas para alguns povos indígenas serão
capazes de enriquecer o material didático a ser produzido. “Nenhum de nós se torna o que
é por meio de uma única história (...), mas sim por um feixe de histórias” (MATTA, 2011,
p.69), nos lembra o historiador Sérgio da Mata ao discutir a relação entre a história e a
formação moral do ser humano. Desse modo, a observação holística possibilitada pelo
mapa será seguida por pequenos textos, imagens e poesias que apresentem as culturas
singulares de duas populações citados no relatório – o povo bororo e o povo kaingang.
Os bororo de duas reservas indígenas são citados no relatório. Os que moravam
na aldeia de Couto de Magalhães, atual Tocantins, relatam o entrega da jovem índia Rosa
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1084
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

em pagamento pela construção de um fogão e outros abusos físicos perpetrados pelo chefe
de posto Flávio de Abreu e pelo funcionário João Batista da Rosa. A reserva indígena
Tereza Cristina é citada no relatório como vítima de grilagem de terra por parte do
governador do Mato Grosso, que entregara as terras demarcadas por Rondon a ministros,
deputados, senadores e parentes da região. Tais crimes apontados pelo relatório serão
apresentados como ponto de chegada do fanzine sobre os bororo, que serão apresentados
antes a partir de suas cosmogonias, sua relação com o espaço e o tempo e os rituais que
nos informam sobre sua cultura.
A construção do material sobre os kaingang, do Rio Grande do Sul, seguirá a
mesma lógica. Esse grupo forma a maior parte das vozes indígenas presentes no Relatório
Figueiredo, narrando castigos corporais violentos – como a tortura no tronco que
esmagava os calcanhares das vítimas –, roubo de materiais e arrendamento das melhores
terras do posto para terceiros. Compreender a cultura Kaingang em seus traços
particulares, como a formação das duas metades complementares que criaram o mundo
(CLAUDINO, 2012) – Kamẽ e Kanhru – pode ser um bom modo de entender a relação
estabelecida entre os indígenas e os chefes de posto ao longo processo de esbulhos
territoriais e abusos relatados nas comissões de inquérito e na investigação empreendida
por Jáder Figueiredo.
Em ambos os casos, as microanálises destacarão a formação dos sistemas de
pensamento dos indígenas e também a relação construída com as lideranças do SPI nos
contextos apresentados pelo relatório. Desse modo, será possível refletir a respeito dos
enquadramentos segundo os quais os indígenas eram analisados e analisavam as ações
dos membros do órgão indigenista que exerciam os abusos de poder. Pensando na
construção do conhecimento histórico dos alunos, será um importante não só para pensar
as culturas indígenas brasileiras, mas também na construção de suas histórias de vida, que
também são construídas a partir de diálogos e conflitos com outros diferentes.

2.3 – O fanzine como material pedagógico


Os fanzines são publicações independentes e autorais que, como o nome já diz,
são feitas por fãs de determinados assuntos que possuem pouco espaço em mídias
tradicionais. Sobre os primeiros fanzines, Senna e Silva destacam que:
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1085
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os fanzines surgiram nos Estados Unidos da América, na década de 30 do


século XX. O primeiro fanzine que se tem notícia, publicado por Ray Palmer
para o Science Correspondence Club, em maio de 1930, tinha o nome de The
Comet e tratava de ficção científica. A denominação fanzine, que só foi
aparecer em 1941, cunhada por RussChauvenet, trata-se de um neologismo
formado pelo amálgama de dois termos da língua inglesa: fanatic e magazine
(revista do fã). (ANDRADE e SENNA, 2015, p.2883)

A partir da década de 1960, a linguagem dos fanzines evoluiu a partir do trabalho


de quadrinistas e de coletivos anarquistas e punks, que expandiram os limites temáticos e
estéticos das primeiras revistas de fã. Desde então, essas publicações passaram a abordar
diversos temas – política, música, biografia e cinema – a partir de diversos gêneros
textuais – textos, resenhas, charges, quadrinhos, colagens, entre outros.
Tal liberdade editorial, onde os textos misturam-se com desenhos, poesias e
quadrinhos, é análoga à multimodalidade presente nos textos literários produzidos pelos
povos indígenas, onde os grafismos e a oralidade são tão importantes quanto a escrita.
Desse modo, acredito que seja possível aproximar o leitor-estudante ocidental de formas
de ver e pensar o mundo diferentes, abrindo caminho para uma melhor compreensão das
textualidades indígenas presentes nos acervos das bibliotecas escolares.
A facilidade de produção e distribuição dos fanzines foi outro fator determinante
na escolha desses materiais, pois geralmente são feitas a partir de fotocópias. Trata-se de
um material que pode ser reproduzido dentro dos espaços escolares a partir de impressoras
multifuncionais, fotocopiadoras ou até mesmo por mimeógrafos, facilitando a
apropriação dos fanzines produzidos no decorrer da pesquisa por qualquer professor
interessado em desenvolver a temática com seus alunos. A facilidade de produção
também serve como elemento motivador dentro da escola, pois “pode despertar os alunos
para um fato óbvio (e, talvez exatamente por esta razão, tão pouco explorado): o de que
todos temos algo a dizer e maneiras particulares de fazê-lo.”(CAMPOS, 2009, p.2).
Nesse sentido, pretendemos entregar, ao final da pesquisa, um fanzine sobre a
questão indígena a partir das denúncias do Relatório Figueiredo. O material será
organizado e realizadoem duas partes. O primeiro momento de organização e formatação
será um trabalho solitário, realizado por mim após a pesquisa e a organização dos registros

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1086
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

documentais. A segunda parte do material será montado em oficinas463 realizadas com os


alunos que demonstrarem interesse no assunto, reforçando o caráter coletivo da
construção do zine e buscando refletir sobre a apropriação do material por parte dos
jovens.

3 - Justificativa
Desde a promulgação da lei 11645/08, o ensino da história e das culturas indígenas
tornou-se obrigatório no ensino básico brasileiro. A inclusão dos indígenas
complementou o texto da lei 10639/03, que inclui o ensino da história e das culturas
africanas nos currículos escolares. Lidas em conjunto, as leis apontam para uma tentativa
de superar o pensamento eurocêntrico predominante nas narrativas escolares brasileiras e
revelam a força dos movimentos sociais dos negros e indígenas nos últimos anos do
século XX.
Na mais recente avaliação das coleções didáticas empreendidas pelo Ministério
da Educação, o Programa Nacional do Livro Didático de 2017 (PNLD 2017), o tratamento
dado aos saberes indígenas foi apontado como o mais problemático entre as coleções
aprovadas. O grupo de avaliadores aponta que, ao longo das obras, “são comuns os lapsos
temporais, como se não existisse uma relação longeva de continuidade envolvendo grupos
sociais historicamente excluídos na sociedade”464. Os grupos indígenas aparecem nos
livros de modo esparso durante o período colonial, especialmente nas bandeiras, e no
século XIX, a partir da mirada do romantismo e do Instituto Histórico Geográfico
Brasileiro (IHGB). Questões importantes da história indígena contemporânea, como a
organização das lutas pela demarcação de territórios e a emergência da literatura e do
cinema indígenas são, assim, apartadas de muitas salas de aula.
As historiadoras Adriana Frazão e Érika Ralejo pesquisaram a coleção “História,
sociedade e cidadania”, de Alfredo Boulos Junior, aprovada no PNLD de 2011, e

463
A decisão de construir o material a partir de oficinas foi tomada pois não assumi turmas de terceiro ano
em 2017. De acordo com o currículo mínino adotado pela Secretaria de Educação de Estado do Rio de
Janeiro, os assuntos relativos à história do Brasil contemporâneo devem ser tratados nesse ano. Assim, a
escolha por oficinas realizadas com alunos interessados na temática emergiu como solução para essa
impossibilidade de aplicação com turmas regulares.
464
A avaliação pode ser encontrada no seguinte endereço: http://www.fnde.gov.br/arquivos/category/125-
guias. Acesso em 13/01/2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1087
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

observaram que a história dos índios brasileiros ocupa um espaço pequeno desde o
Manual do Professor, onde apenas uma pequena lista de livros, sites e filmes sobre a
temática indígena é indicada para auxiliar os professores. A análise dos conteúdos do
livro dos alunos revela que no sexto ano, os indígenas brasileiros são apresentados em
conjunto com outros povos da América latina, com destaque para a ocupação do
continente. No sétimo ano, são ressaltadas as semelhanças e diferenças entre os grupos
indígenas que viviam na costa brasileira e, posteriormente, o choque cultural no contexto
da colonização. O silenciamento das ações indígenas se inicia no oitavo ano, dedicado à
formação da América Portuguesa até o fim do século XIX, onde somente cinco dos
dezesseis capítulos da obra abordam a questão. O nono ano prevê o estudo de períodos
que vão do Imperialismo até a formação da nova ordem mundial e a temática indígena é
citada em apenas um capítulo, aquele que trata da conquista de direitos na Constituição
de 1988, onde a agência histórica é exercida pelos homens brancos que promulgaram
carta. Assim, o problema apontado pelos avaliadores do PNLD 2017 também foi notado
pelas pesquisadoras: “quanto mais perto do tempo presente, mais a participação dos povos
indígenas vai sendo apagada” (FRAZÃO e RALEJO, 2012, p.5).
Se os livros didáticos são importantes por conta da sua ampla utilização por alunos
e professores como fonte de consulta (às vezes a única), os currículos são relevantes pois
constroem sentidos sobre o mundo ao indicarem os conhecimentos que devem ser
abordados nas aulas de história em determinada rede ou unidade escolar.
No currículo mínimo adotado por todas as escolas estaduais do estado do Rio de
Janeiro desde 2012, a participação dos índios na história do Brasil fica restrita ao sétimo
ano do ensino fundamental e ao primeiro ano do ensino médio. Em termos de narrativa,
o currículo mínimo indica que a análise dessas sociedades deve ocorrer, nos dois níveis
de ensino, a partir dos encontros entre europeus e americanos durante o processo de
expansão marítima, na virada do século XV para o século XVI. As habilidades e
competências esperadas dos alunos do ensino fundamental compreendem a
caracterização das sociedades ameríndias pré-coloniais e o desenvolvimento de
comportamentos respeitosos em relação às diversas culturas. No ensino médio, além das
duas habilidades análogas as desenvolvidas no sétimo ano, é esperado que se compare os
conflitos culturais, sociais, políticos e econômicos pré-coloniais e contemporâneos.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1088
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Levando em consideração que o currículo mínimo aponta, de modo genérico, “os itens
que não podem faltar no processo de ensino-aprendizagem, em cada disciplina, ano de
escolaridade e bimestre durante os sete anos do ciclo que compreende os ensinos
fundamental e médio”465 e que o estudo dos indígenas na contemporaneidade é
contemplado em apenas uma competência de todo o ciclo, é possível afirmar que, ainda
que a inclusão dessa competência indique uma tentativa de aproximação da temática
indígena, há no currículo mínimo uma seleção de conteúdos que constrói esquecimentos
sobre o desenvolvimento histórico dessas culturas durante os últimos cem anos.
Pensar a inclusão da temática indígena nos currículos escolares abre espaços de
reflexão sobre os conceitos utilizados na construção desses documentos. Experiências
recentes, como a primeira versão do currículo de história da Base Nacional Curricular
Comum (BNCC)466, dão mostras de que a inclusão de temas como a história indígena e
africana nos currículos escolares deve ser acompanhada de uma problematização sobre
conceitos utilizados na construção do saber histórico escolar. A proposta, divulgada em
setembro de 2015, apresenta a intenção de enfatizar a história do Brasil e traz em suas
propostas um aumento do número de conteúdos sobre as contribuições indígenas e
africanas. Mas, “ao não problematizar a ideia de Estado-nação, ela reafirma lógicas
epistêmicas da modernidade ocidental, reforçando práticas associadas a colonialidade do
saber e do poder” (GABRIEL, 2016, p.120)
A própria divisão da história do Brasil em colônia, império e república na primeira
versão da base acaba emulando esquemas explicativos que norteiam o ensino de história
desde o século XIX, quando a nação brasileira era encarada “como um desdobramento,
nos trópicos, de uma civilização branca e europeia” (GUIMARÃES, 1988, p.7). Esta
perspectiva reforça a visão linear do tempo, eclipsando outras organizações temporais e
culturais construídas por indígenas e africanos dentro do território brasileiro.
Nesse sentido, a reflexão e a produção de material didático sobre as denúncias
presentes no Relatório Figueiredo visa enfrentar um silenciamento sobre a história dos

465
Disponível em: http://www.rj.gov.br/web/seeduc/exibeconteudo?article-id=759820. Acesso em
25/03/2017.
466
Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/conhecaDisciplina?disciplina=AC_CIH&tipoEnsino=TE_EF
. Acesso em: 25/03/2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1089
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

índios no Brasil contemporâneo. Esse problema, notável nos currículos e na produção


didática recente, deve ser analisado também a partir de um aporte teórico que discuta a
colonialidade do saber dentro do espaço escolar, já que a inserção da história dos índios
em estruturas epistemológicas eurocêntricas pode reforçar preconceitos ou renovar visões
estereotipadas sobre as culturas nativas.

Bibliografia
ANDRADE, Sandro Silva de. SENNA, Nádia Cruz. Fanzines na sala de aula:
expressividade e autoralidade. In: 24º ANPAP : Compartilhamentos na arte: redes e
conexões. Anais do 24º Encontro Nacional da ANPAP. Santa Maria: UFSM. v. 1, 2015.
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. In: Revista Brasileira de
Ciência Política, UNB: Brasília, n.11, 2013.
BELLO, Álvaro.Etnicidad y ciudadanía en América Latina. La acción colectiva de los
pueblos indígenas. Santiago de Chile: CEPAL, 2004.
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de luto?Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2016.
CARDOSO, Fernanda Borsatto. O ensino de história e cultura indígena nas escolas
municipais de São Paulo – 2008 a 2015. In: Anais do XXIII encontro estadual de história
– História: Por que e para quem?, Assis, 2016.
CLAUDINO, Zaqueu Key. Kamê e Kajru: a dualidade fértil na cosmologia Kaingang. In:
BERGAMASCHI, Maria Aparecida et ali (orgs.). Povos indígenas e educação. Porto
Alegre: Editora Mediação, 2012.
DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo, In: LANDER, Edgardo (org.).
A colonialidade do saber. Eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas latino-
americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
FRAZÃO, Érika Elizabeth Vieira; RALEJO, Adriana Soares. Narrativas do outro nos
livros didáticos de História. In: XV Encontro Regional de História - ANPUH-Rio Ofício
do Historiador: Ensino e Pesquisa. ANAIS DO XV ENCONTRO REGIONAL DE
HISTÓRIA DA ANPUH-RIO, São Gonçalo, 2012.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1090
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

GABRIEL, Carmen Teresa. Nação, diferença e temporalidade: uma análise discursiva da


BNCC de História. In: Vera Maria Candau. (Org.). Interculturalizar, descolonizar,
democratizar: uma educação "outra"?.Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
GARFIELD, Seth. A luta indígena no coração do Brasil: política indigenista, a Marcha
para o Oeste e os índios xavante (1937-1988). São Paulo: Editora Unesp, 2011.
GUIMARÃES, Elena. Relatório Figueiredo: entre tempos, narrativas e memórias.
Dissertação (Mestrado em Memória Social) – UNIRIO, Rio de Janeiro, 2015.
GUIMARÃES, Manoel Luis Lima Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. In: Revista Estudos
Históricos, Rio de Janeiro,vol. 1, nº 1,1988.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de ‘Depois’ de aprender com a história, o que fazer
com o passado agora? In: NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAÚJO,
Valdei Lopes de. (orgs.) Aprender com a história: o passado e o futuro de uma questão.
Rio de Janeiro: FGV Editora, 2011.
HERMMAN, Nadja. Razão e sensibilidade: notas sobre a contribuição do estético para a
ética, In: Educação e Realidade, Rio Grande do Sul, 27(1):11-26; jan./jun., 2002.
MARTINS, FredsonPedro.As populações indígenas e a ditadura civil-militar brasileira
nas aulas de história.In:Revista eletrônica discente História.com. Cachoeira, v. 3, p. 12-
26, 2016.
MATA, Sérgio da. Historiografia, normatividade, orientação: sobre o substrato moral do
conhecimento científico. In: NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda;
ARAÚJO, Valdei Lopes de. (orgs.).Aprender com a história: o passado e o futuro de uma
questão. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2011.
MIGNOLO, Walter. Pensamento liminar e diferença colonial. In: Histórias locais/
projetos globais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silencio. In: Revista Estudos Históricos,
nº2, vol. 3, 1989.
PORTELA, Cristiane de Assis. Por uma história mais antropológica: indígenas na
contemporaneidade. In: Sociedade e Cultura, Goiânia, vol. 12, nº1, 2009.
SILVA, Maria da Penha da. “A temática indígena no currículo escolar à luz da lei
11.645/2008.” In: Revista Cadernos de Pesquisa, São Luís, vol. 17, n. 2, maio/ago. 2010.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1091
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

STARLING, Heloisa. Os silêncios da ditadura. In:Revista Maracanan, Rio de Janeiro, v.


12, p. 37-46, 2015.
THIÉL, Janice. Pele silenciosa, pele sonora: a literatura indígena em destaque. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012, p. 65-67.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1092
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Práticas de Bem Morrer e Relações de Poder – Mariana, Minas Gerais (C. 1742 - C. 1751)

FELIPE TITO CESAR NETO


Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro - Bolsista CAPES

Introdução
Por doença, acidente ou assassinato, não importa, a morte chega de igual forma
para todos. Todavia, as formas de preparação para o momento da morte, são subjetivas a
cada testamento devido às inquietações pessoais de cada consciência, os recursos que
cada um detém e as formas concebidas na produção do perfil em testamento.467Por se
tratar de uma sociedade de Antigo Regime, o morrer era cercado de importantes ritos
necessários com o principal intuito de obter a salvação da alma ou uma curta estadia no
Purgatório – evitando, claro, a condenação eterna no Inferno.468
Apesar da clara pretensão deste ato, importantes trabalhos nos mostram algumas
indicações por de trás das solicitações de últimas vontades dos moribundos, que nos
permitem aprofundar nosso olhar tanto nos estudos sobre a História da Morte, quanto das
relações entre livres e alforriados, em uma sociedade com característica estamental e
escravista.
Deste modo, à luz do conceito de poder e das relações de poder, pretendemos
refletir acerca das práticas de “bem morrer”, tendo como fonte uma pequena amostragem

467
Consoante Eduardo França Paiva, o moribundo construía em testamento a forma que o mesmo quisesse
que sua imagem fosse legada após a sua morte. O objetivo era traçar um perfil de bom cristão e merecedor
da salvação eterna, com intuito de obter um julgamento favorável à alma, livrando-a do Inferno. PAIVA,
Eduardo França. “Usos e costumes da terra: o viver e o sentir nos relatos testamentais e nos inventários
post-mortem das Minas Gerais setecentistas”. In: RODRIGUES, Claudia e WANDERLEY, Marcelo da
Rocha (Org.). Últimas Vontades: testamento, sociedade e cultura na América Ibérica – séculos XVII e
XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2015, pp. 77-80.
468
Para maior aprofundamento sobre a temática do Purgatório e do Inferno, sugerimos as seguintes leituras:
Le GOFF, Jacques. O nascimento do Purgatório. Lisboa: Editora Estampa, 1993; VOVELLE, Michel. As
almas do Purgatório: ou o trabalho de luto. São Paulo: Editora Unesp, 2010 e ARIÈS, Philippe. O homem
diante da morte. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1093
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de testamentos de livres e alforriados, compreendidos entre os anos de 1742 e 1751,


oriundas do Acervo da Casa Setecentista de Mariana.469

Poder e Relações de Poder


Nesta exposição teórica sobre o poder e as relações de poder, apontamos as
contribuições do sociólogo Bourdieu. Suas definições são aos quais melhor permite tecer
diálogos com as práticas de bem morrer, conforme nossa percepção. Por isto, utilizaremos
enquanto referencial teórico deste trabalho. Seu conceito clássico para este estudo é o
denominado “poder simbólico”, no qual tendo como premissa que o poder esteja situado
em toda a parte e em parte alguma, ele define que:

[...] é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais
completamente ignorado, portanto, reconhecido: o poder simbólico é, com
efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade
daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem
(BOURDIEU, 1989, p. 7-8).

Sua definição de poder, conforme podemos perceber, corresponde a conjunto de


forças que envolvem ações de indivíduos e grupos em sociedade, por meio de suas
relações cotidianas. São posturas que são feitas ou deixadas de fazer, mediante
determinada clareza das consequências que poderiam vir, a depender dos atos de cada
um. Neste caso, “onde ele se deixa ver menos”, sendo “completamente ignorado”, que
este poder torna-se arraigado e conhecido entre os demais. De forma oposta, quando há a
necessidade de constante reafirmação deste poder, podemos arriscar a dizer, seguindo a
linha de Bourdieu, que este poder acaba não sendo funcional socialmente, pois nas
práticas cotidianas ele não é reconhecido, havendo a necessidade da força e violência.
Assim, não mais simbólico.
Os sistemas simbólicos - enquanto conhecimento de mundo e de comunicação -
exerce um poder estruturante na visão de mundo, porque são estruturados. E nesta
estrutura, que o poder simbólico – enquanto essas visões de mundo são reconhecidas –
possibilita estabelecer uma ordem social em determinada sociedade. Esta consideração

469
Salientamos, que entre esse recorte, não contemplaremos a documentação presente a todos os anos do
período informado. . A metodologia de análise consistiu em colher todos os testamentos dos alforriados
deste período e, complementando com os testamentos de livres analisados até o momento.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1094
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

torna-se muito eficaz, quando dialogada com a cosmogonia de uma sociedade de Antigo
Regime e sua relação com o catolicismo à época. Sendo esta visão de mundo vigente no
período a ser estudado, as práticas simbólicas realizadas conferem sentido em diálogo
com as crenças do catolicismo.Sendo assim, as práticas de bem morrer, consideradas
importantes ao intentar obter a salvação da alma, encontram-se inseridas nesses sistemas
de códigos, o qual possibilita aquele que os faça, não apenas assegurar sua ida ao Paraíso,
mas também, mostram socialmente que estão afinados a estas práticas e detém condições
de arcar com as disposições testamentais. Ou seja, mais que um instrumento de intentar
obter a salvação, os testamentos e as práticas de bem morrer, também são meios de
demonstração de poder no momento da morte.
Dando continuidade a este trabalho, seguiremos nossa reflexão sobre a óptica do
poder,nas práticas de bem morrer.

Poder e Relações de Poder nas Práticas de “Bem morrer”


O testamento é a ferramenta por excelência para iniciar as práticas com o intuito
de obter a salvação da alma. Na maioria das vezes, estando de proximidade com a morte,
que a produção do mesmo era feita (FURTADO, 2009, p.93-118).Daqueles que
conseguiram legar as suas últimas vontades, analisaremos uma pequena amostragem de
testamentos de livres e alforriados, moradores do Termo de Mariana, preocupados com
seu destino no post-mortem.
Os moribundos - e posteriormente os mortos - por meio das práticas de bem
morrer, possuíam vínculos estreitos com os vivos. Essas relações, à luz do poder, nos
permitem observar a dinâmica social entre eles, marcada pela hierarquia, distinção e
pompa fúnebre. Essa relação entre ambos, da mesma forma que era importante para
aqueles que partiam – afinal, dependiam dos vivos para que suas últimas vontades fossem
realizadas –,também era fundamental para os vivos, sobretudo aqueles encarregados de
realizar as disposições solicitadas pelo testador. Consoante Van Gennepe, o benefício era
para ambos os lados:

Os indivíduos para os quais não foram executados os ritos fúnebres, assim


como as crianças não batizadas ou que não receberam nome, ou não foram
iniciadas, são destinadas a uma existência lamentável, sem poder jamais
penetrar no mundo dos mortos nem se agregarem à sociedade aí constituída.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1095
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

São os mortos mais perigosos, porque desejariam reagregar-se ao mundo dos


vivos, mas não podendo fazê-lo conduzem-se como estrangeiros hostis. Não
dispõem dos meios de subsistência que os outros mortos encontram em seu
mundo, e por conseguinte devem procurá-los à custa dos vivos. Além disso,
estes mortos sem lar nem lugar sentem frequentemente um amargo desejo de
vingança. Deste modo, os ritos dos funerais são ao mesmo tempo ritos
utilitários de grande alcance, que ajudam a livrar os sobreviventes de inimigos
eternos (GENNEPE, 2011, p. 138).

Destarte, ao realizar os pedidos solicitados pelos mortos, os vivos escapavam de


sua ira. E, também poderiam vir a nutrir, que ao chegar seus últimos momentos, receberia
o mesmo tratamento; mostrando a imagem de um bom cristão, preocupando-se tanto
consigo, quanto às almas dos demais. Na maioria das vezes, cabia ao testamenteiro
escolhido pelo testador, cuidar das premissas para a salvação de sua alma e partilha de
seus bens materias. A proximidade nas relações entre vivos e mortos, são características
das sociedades de Antigo Regime, na hora da morte. Todavia, para além das garantias de
realizações das disposições em testamento, à prática testamentária e ritos fúnebres neles
contidos, possibilita ampliarmos o nosso olhar de análise.
As Ordenações Filipinas, legislações que vigoraram no Império Português e em
suas colônias, regulavam a prática testamentária na América Portuguesa. Nelas
continham alguns limites ao direito de testar. Não era permitido que os homens menores
de 14 anos; as mulheres abaixo de 12 anos; os furiosos ou loucos; os mentecaptos ou
idiotas; os hereges; os apóstatas; o pródigo ou gastador; os religiosos professos; os
escravos, etc., solicitassem suas últimas vontades em testamentos.470 Por si só, o ato de
testar, funcionava como uma espécie de “filtro social” daqueles que poderiam lograr e ter
condições de almejar uma boa morte. Dos poucos que conseguiam realizar a feitura do
testamento, livres e alforriados, as suas últimas vontades eram importantes meios de
intentar a salvação, bem como demonstração de poder que o morto possuía enquanto
vivono interior do próprio grupo.471

470
As legislações das Ordenações Filipinas encontram-se on-line:
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm. As questões referentes ao testamento podem ser
conferidas no livro IV, do Título LXXX, até o Título LXXXVI.
471
Estudos recentes a respeito da mobilidade social, sobretudo em sociedades com características
estamentais, consideram que a mobilidade social não deve ser entendida meramente como apêndice do
enriquecimento. Antes disso, nestas sociedades, a reputação social tem sua primazia de destaque. O
enriquecimento podia ou não, colaborar, porém o prevalecimento deve-se a imagem que o mesmo tinha no
grupo que estava inserido. Cf. GUEDES, Roberto. “Ofício mecânico e a mobilidade social: Rio de Janeiro
e São Paulo (Sécs. XVII-XIX)”. In: Topói. Vol. 7, n° 3, jul-dez, 2006, pp. 379-423. Partindo deste
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1096
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Analisamos 15 testamentos conforme mostra a tabela 1. Nela, contendo as


disposições testamentais de livres e alforriadas, moradores do Termo de Mariana. Por se
tratar de uma pesquisa em andamento, não podemos apontar a representatividade dos
testadores de Mariana, frente à quantidade demográfica da sociedade à época. Contudo,
com esta fase inicial da coleta de dados na documentação, esperamos conseguir esboçar
os caminhos empíricos desta efêmera reflexão.

TABELA 1 – Testamentos de moradores do Termo de Mariana, 1742-1751


Local Homens Mulheres

Livre Alforriado Livre Alforriada

Mariana 7 0 1 7

Fonte: Testamentos do 1° Of. da Casa Setecentista de Mariana (CSM)

Apesar dos dados não ser possível mensurar a representatividade de testadores do


termo de Mariana, podemos levantar algumas constatações desta pequena amostragem,
em conjunto com dados para outras regiões. Dos anos de 1742 a 1751, dos livros de
testamento do Primeiro Ofício de Mariana dos quais tivemos acesso, foram encontrados
sete testamentos de mulheres alforriadas. Para o mesmo período, até então, não
encontramos nenhum testamento de homem alforriado.472Não podemos afirmar os
motivos para esta ausência na documentação em Mariana; contudo, algumas informações
do período, podem nos proporcionar caminhos que nos aproxime de uma resposta. Para

pressuposto, que a mobilidade social dava-se no interior do próprio grupo, salientamos a importância
daqueles que conseguiam legar as suas últimas vontades, levando em consideração o meio em que estavam
inseridos. No momento da morte, o moribundo podia mostrar aos demais, seu perfil de bom cristão e os
ritos fúnebres que viria a receber. Especificamente no caso dos alforriados, dos poucos que conseguiam
deixar testamentos, tal atitude mostra a distinção que o mesmo possuía em relação aos outros, neste grupo
social de escravos e forros. Ou seja, alcançar o ato de testar, tanto para livres e alforriados, nesta sociedade
com símbolos do catolicismo na cosmogonia da época, era um importante instrumento de poder, na hora
da morte. Apesar dos gastos referentes à feitura do testamento, - não tornando o poder como dependente da
economia - chamamos atenção para o ato de testar, por si só, inserido nos sistemas de significações das
sociedades de Antigo Regime; bem como os ritos pedidos em testamento, que apesar das solicitações serem
mais ou menos suntuosas, o importante era estar afinado a este meio social.
472
Este dado é ainda mais peculiar. Dos anos de 1735 e 1750, referentes ao meu recorte monográfico de
pesquisa, tendo acesso aos livros de testamento do 1° Ofício de Mariana, de número 62, 63, 65, 70, 71, 72
e 73, em nenhum deles, foram encontrados testamentos de homens alforriados.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1097
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

isto, chamamos atenção para a tabela 2 e 3, a respeito da população da Capitania Mineira,


respectivamente nos anos de 1766 e 1776.473

TABELA 2 – População da Capitania de Minas Gerais, 1766


Comarca Escravos Escravas Subtotal Livres Total

Rio das Mortes 21.500 5.391 26.891 19.594 46.485

Vila Rica 32.907 5.740 38.647 21.602 60.249

Rio das Velhas 34.813 8.214 43.027 26.301 69.328

Serro 15.414 2.624 18.038 11.500 29.538

Total 104.634 21.969 126.603 78.997 205.600

Fonte: Dados extraídos de: CARRARA, Ângelo Alves. Agricultura e pecuária na capitania de Minas
Gerais, 1674-1807. Rio de Janeiro: IFCS, 1997. p. 280. (Tese de Doutorado). Apud: KELMER MATHIAS,
Carlos Leonardo. As múltiplas faces da escravidão: o espaço econômico do ouro e sua elite
pluriocupacional na formação da sociedade mineira setecentista, c. 1711 – c. 1756. Rio de Janeiro: Mauad
X: FAPERJ, 2012. p. 233.

TABELA 3 – População da Capitania de Minas Gerais, 1776


Comarca Homens Mulheres

Brancos Pardos Pretos A Brancas Pardas Pretas B C

Rio das 16.277 7.615 26.199 50.091 13.649 8.179 10.862 32.690 82.781
Mortes

Vila Rica 7.847 7.981 33.961 49.789 4.832 8.810 15.187 28.829 78.618

Rio das 8.648 17.011 34.707 60.366 5.746 17.225 16.239 39.210 99.576
Velhas

473
A demografia para a primeira metade do século XVIII é escassa e impressiva. Optamos pelos dados da
segunda metade do século XVIII, como estimativas mais sólidas, permitindo observar o quantitativo de
livres, escravos e alforriados nas principais regiões de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1098
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Serro 8.905 8.186 22.304 39.395 4.760 7.103 7.536 19.399 58.794

Total 41.677 40.763 117.171 199.641 28.987 41.317 49.317 120.128 319.769

Fonte: Dados extraídos de: CARRARA, Ângelo Alves. 1997, Op. cit., p. 280. Apud: KELMER
MATHIAS, Carlos Leonardo. 2012, Op. cit., p. 234.
Legenda: A – Total de homens; B – Total de mulheres; C – Soma de A e B.

A tabela 2 mostra que o número de escravos frente aos livres é superior em todas
as comarcas que constam na demografia. Outra informação importante é a superioridade
quantitativa de homens em relação às mulheres. Tendo como exemplo a comarca de Vila
Rica, os homens escravos representavam mais que cinco vezes o número dessas mulheres
escravas. No grupo dos livres, para a mesma comarca, o número de homens e mulheres,
também é inferior ao quantitativo de homens pretos e pardos para este período de 1766.
Na tabela 3, dez anos depois dos últimos dados, o quantitativo de pretos (a) e
pardos (a) - podendo tanto referir-se a escravos, forros e descendentes - continuou
superior aos homens e mulheres brancos – os livres - das mesmas comarcas. Durante este
período, manteve-se também o maior número de homens pretos e pardos, frente às
mulheres pretas e pardas. Na junção desses últimos dados, os números de homens e
mulheres pretos e pardos dobraram nos últimos dez anos. Em contrapartida, quanto ao
número de homens e mulheres brancos para este mesmo período, houve um declínio
significativo.
De acordo com Kelmer Mathias, este considerável aumento do número de negros
na capitania mineira foi proveniente do intenso espaço econômico do ouro, que
corroborou para os altos índices da entrada de escravos na América Lusa no século XVIII,
através do tráfico Atlânticode escravos, propiciando grandes mudanças e transformações
econômicas, políticas, sociais, demográficas e culturais na região (MATHIAS, 2012, 95-
96).
Os dados demográficos possibilita continuar caminhando a respeito da ausência
de homens forros na documentação e, o maior número de mulheres que deixaram
testamentos, nos períodos referentes à documentação analisada até o momento. Apesar
da maior quantidade de homens na condição de cativo para a região, o mesmo não pode
dizer a respeito daqueles que conseguiram lograr a sua liberdade. Na tabela 4 e no gráfico

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1099
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

1, em Mariana e Vila do Carmo, respectivamente, as mulheres eram mais propensas ao


conseguir a liberdade.

TABELA 4 – Processos de alforria em Mariana, 1750-1759


Vila Homens: 38,50% Mulheres 61,49%

Crioulos Africanos Crianças Crioulas Africanas Crianças

Mariana 27% 42% 28% 27% 53,50% 15,50%

Fonte: Dados extraídos de: MONTI, Carlos Guimarães. “Por amor a Deus: o processo de alforria dos
escravos de Mariana (1750 – 1759)”. In: Revista do centro Universitário Barão de Mauá, v. 1 n° 1,
jan/jun 2001. Disponível em
http://www.baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes/jornal/v1n1/por_amor.html. Acesso em:
07/12/2016. p. 3.

GRÁFICO 1 – Alforrias por gênero e faixa etária no termo


de Vila do Carmo, 1711-1720

Fonte: Extraído de: KELMER MATHIAS, 2006. Op. cit. p. 57.

Carlos Monti mostra que o número de mulheres escravas alforriadas é superior ao


número de homens alforriados na vila de Mariana, dentre os anos de 1750 e 1759.
Quantitativamente, tanto homens e mulheres crioulos correspondiam aomesmo número
de liberdade neste período.Mas entre os africanos, este número é maior e contém a
predominância de mulheres a conseguirem a sua liberdade. Somente entre as crianças, o
número de meninos é maior que de meninas, neste processo de alforria.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1100
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Conforme o gráfico de Kelmer Mathias,as manumissões no qual tinham por


intuito alforriar crianças e infantes nos mostram superioridade entre os sexos, em que
ambos estão equilibrados e respondem por cerca de 50% do total das alforrias, entre
meninos e meninas. Na categoria dos adultos é possível observar a maioria ser constituída
pelas mulheres, representando 68,25% contra os 31,74% dos homens. Para vila do Carmo,
também nos períodos posteriores, entre 1735-1740 e 1770-1775.
Os dados demográficos e o número de alforriados em Marianas e locais próximos
são informações importantes no andamento de nossa análise. Os números mostram a
predominância de homens e mulheres escravos e alforriados, em relação a homens e
mulheres livres. Contudo, este mesmo reflexo não é aparente na prática testamentária. Os
nossos dados não permitem estipular o número de testadores no Termo de Mariana e nem
distingui-los numericamente por gênero e grupo social – ainda há um caminho a ser
percorrido. Entretanto, demais pesquisas que versam desta documentação, para diferentes
regiões, apontam o maior número de testamentos entre os homens livres, as mulheres
alforriadas, as mulheres livres e os homens alforriados, respectivamente. Não temos a
pretensão de seguir para este caminho e tentar entendê-lo, no momento. Porém, são
características, que provavelmente são similares aos testadores do Termo de Mariana.474
Por se tratar de um instrumento de salvação da alma de uma sociedade católica e
branca, os homens e mulheres livres, de forma óbvia, estavam afinados a estas práticas
simbólicas presentes nas relações à época, possuindo melhores condições de alcançar a
realização das suas disposições finais. Mostrando aos demais, seu poder durante a
trajetória de vida e no momento da morte. Não podemos deixar de chamar atenção, o
número de mulheres forras que conseguiram legar suas últimas vontades, frente aos
homens na mesma condição. Pelo menos na Capitania mineira, os dados nos leva a
acreditar que elas tiveram maiores versatilidades para conseguir alcançar estecaminho.475

474
Dados referentes à Bahia, Cf. REIS, João José. A Morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no
Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991; ao Rio de Janeiro, Cf. RODRIGUES,
Cláudia. Lugares dos mortos nas cidades dos vivos. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Revisão e Editoração, 1997; e Minas Gerais,
Cf. PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: Estratégia de
resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2009.
475
Como as Ordenações Filipinas proibiam os escravos de realizar testamentos, o número de mulheres
alforriadas é um caminho promissor a considerar sua maior participação na prática testamentária. Os meios
pelas quais elas conseguiam melhores possibilidades para conquistar a sua liberdade e melhores condições
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1101
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Apesar de em termos demográficos sua presença ser inferior aos homens, às mesmas
conseguiram maiores possibilidades de atingir a sua liberdade e, afinar-se com as práticas
sociais da época, concomitante a sua liberdade, num processo que poderia acontecer antes
mesmo, no próprio cativeiro.476 No momento da morte, as mesmas demonstravam esse
destaque em relação aos homens – às vezes até mesmo em maior quantia que as mulheres
livres conforme algumas regiões – o que mostra certa ascensão durante sua trajetória de
vida. O alcance a prática testamentária são fundamentais, para iniciar a demonstração de
poder nas atitudes diante da morte.477
Júnia Furtado em seu estudo a respeito dos ritos fúnebres pautada na prática
testamentária de mulheres forras do arraial Tejucano e de homens de negócios moradores
de diversas localidades da Capitania de Minas Gerais, afirma que esses ritos garantiam
ao morto à salvação de sua alma e, também eram utilizados, como forma de exteriorização
do lugar social que cada um ocupava em sociedade.De acordo com a autora,apesar de
serem duas condições sociais distintas, os mesmos se aproximam devido a ambos
buscarem esquecer o seu passado. Enquanto o primeiro distanciava-se do estigma social
da senzala, o segundo grupoz buscava apagar o estigma de mecânico e cristãos-novos que
os identificavam(FURTADO, 2001, p.397-416).

Considerações Finais
O estudo da História da Morte à luz do poder e das relações de poder permite
frutíferas abordagens tanto a esta temática, quanto dos grupos sociais que passam a ser

de vida, são analisadas por diferentes formas pela historiografia. Sobretudo, pelas práticas de concubinato,
o comércio e a formação de famílias. Cf. FURTADO, Júnia Ferreira. “Pérolas negras: mulheres livres de
cor no distrito diamantino”. In: FURTADO, Júnia Ferreria (org). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as
novas abordagens para uma história do Império ultramarino Português. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2001, pp. 81-119; GUEDES, Roberto. Egressos do Cativeiro: Trabalho, família, aliança e mobilidade
social. (Porto Feliz, São Paulo, c.1708 – c.1850). Rio de Janeiro: MauadX : FAPERJ, 2008; Reis, Liana
Maria. "Mulheres de ouro: as negras de tabuleiro nas Minas Gerais do século XVIII." In: Revista do
Departamento de História 8 (1989; entre outros estudos.
476
Para mais informações a este respeito, Cf. FRAGOSO, João. “Elite das senzalas e nobreza de terra numa
sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741”. In:
FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). Coleção o Brasil Colonial 1720-1821. Vol.3. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. pp. 241-305.
477
Cabe chamar atenção que a utilização do testamento não era de forma utilitarista. Sua principal função
era a crença na sua utilização enquanto início de preparar uma boa morte, com o intuito a obter a salvação
da alma. Contudo, tal documentação, à luz do poder e, também das hierarquias sociais, torna-se possível
olhar o mesmo enquanto importante mecanismo de distinção social e instrumento de poder.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1102
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

objeto de estudo do pesquisador. Neste breve artigo, observamos que livres e alforriados
no momento da morte, recorriamà feitura do testamento com intuito de obter a salvação
da alma e, na prática testamentária,a distinção social e demonstração do poder no interior
do próprio grupo, estava presente nas atitudes diante da morte.
Concluindo, consoante José Carlos Rodrigues,o poder da morte reside no desafio
que ela oferece ao tentá-la classificar. E este poder é em função de resposta, no
entendimento de cada sociedade, a respeito deste momento final (RODRIGUES, 2006,
p.85). As relações e a atitudes diante da morte, torna possível analisar o poder que se
encontra durante este momento último e derradeiro.

Fontes manuscritas:
Testamentos do Acervo da Casa Setecentista de Mariana
Livro 62, fls. 66-68v. Maria Fontoura. 7 de maio de 1744.
Livro 63, fls. 13-15.[Ileg.] de Souza. 15 de junho de 1746.
Livro 63, fls. 93v-95.[Ileg.] de Pinha. 12 de abril de 1742.
Livro 70, fls. 2-6v. Manoel de [ileg.]. 14 de outubro de 1748.
Livro 71, fls. 99-101v. Joana Ferras. 6 de maio de 1751.
Livro 71, fls. 121v-125v. Maria de Meira. 3 de setembro de 1751.
Livro 71, fls. 126-130. Manoel de Queiros Pereira. 30 de novembro de 1749.
Livro 71, fls. 133v-138. Henrique de Souza. 10 de janeiro de 1749.
Livro 71, fls. 138v-143. Antônio Moreira Delgado. 19 de agosto de 1744.
Livro 71, fls. 143-164. Manoel Ribeiro Quaresma. 4 de setembro de 1751.
Livro 71, fls. 168v-171.Padre Antôio Soares Freire. 11 de agosto de 1751.
Livro 71, fls. 174v-177. Franscisco Cardozo [ileg.]. 24 de abril de 1751.
Livro 71, fls. 183-186v. Roza [ileg.]. 8 de agosto de 1751.
Livro 72, fls. 44v-47. [Ileg.]. 20 de abril de 1742.
Livro 72, fls. 76v-79v. [Ileg.]. 16 de agosto de 1743.

Fonte On-Line:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1103
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ordenações Filipinas, vols. 1 a 5; Edição de Cândido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro


de 1870. Especificamente o livro IV, do Título LXXX, até o Título LXXXVI. Disponível
em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm.

Referências Bibliográficas:
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
BOURDIEU, Pierre. “Sobre o poder simbólico”. In: O Poder Simbólico. Lisboa: Editora
Difusão Editorial, 1989, pp. 7-16.
FRAGOSO, João. “Elite das senzalas e nobreza de terra numa sociedade rural do Antigo
Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741”. In: FRAGOSO, João
e GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). Coleção o Brasil Colonial 1720-1821. Vol.3. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. pp. 241-305.
FURTADO, Júnia Ferreira. “Transitoriedade da vida, eternidade da morte: ritos fúnebres
de forros e livres nas Minas setecentistas”. In: JANCSÓ; I. KANTOR, In: Festa: cultura
e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo, Hucitec, Edusp, Fapesp, Imprensa
Oficial, v. 1, 2001, pp. 1-22.
__________, Júnia Ferreira. “Pérolas negras: mulheres livres de cor no distrito
diamantino”. In: FURTADO, Júnia Ferreria (org). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as
novas abordagens para uma história do Império ultramarino Português. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2001, pp. 81-119.
__________, Júnia Ferreira. “A morte como testemunho da vida”. In: PINSKY, Carla
Bassanezi e LUCA, Tania Regina de (org.). O historiador e suas fontes. São Paulo:
Editora Contexto, 2009, pp. 93-118.
GENNEPE, Arnold Van. Os ritos de passagem. 3° Edi. Petrópolis: Editora Vozes, 2011
GUEDES, Roberto. “Ofício mecânico e a mobilidade social: Rio de Janeiro e São Paulo
(Sécs. XVII-XIX)”. In: Topói. Vol. 7, n° 3, jul-dez, 2006, pp. 379-423.
__________, Roberto. Egressos do Cativeiro: Trabalho, família, aliança e mobilidade
social. (Porto Feliz, São Paulo, c.1708 – c.1850). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ,
2008.
Le GOFF, Jacques. O nascimento do Purgatório. Lisboa: Editora Estampa, 1993.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1104
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MONTI, Carlos Guimarães. “Por amor a Deus: o processo de alforria dos escravos de
Mariana (1750 – 1759)”. In: Revista do centro Universitário Barão de Mauá, v. 1 n° 1,
jan/jun 2001. Disponível em
http://www.baraodemaua.br/comunicacao/publicacoes/jornal/v1n1/por_amor.html.
Acesso em: 07/12/2016.
KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. As múltiplas faces da escravidão: o espaço
econômico do ouro e sua elite pluriocupacional na formação da sociedade mineira
setecentista, c. 1711 – c. 1756. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2012.
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII:
Estratégia de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte:
PPGH-UFMG, 2009.
PAIVA, Eduardo França. “Usos e costumes da terra: o viver e o sentir nos relatos
testamentais e nos inventários post-mortem das Minas Gerais setecentistas”. In:
RODRIGUES, Claudia e WANDERLEY, Marcelo da Rocha (Org.). Últimas Vontades:
testamento, sociedade e cultura na América Ibérica – séculos XVII e XVIII. Rio de
Janeiro: Mauad X, 2015, pp. 77-80.
REIS, Liana Maria. "Mulheres de ouro: as negras de tabuleiro nas Minas Gerais do século
XVIII." In: Revista do Departamento de História 8 (1989): 72-85.
REIS, João José. A Morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
RODRIGUES, Cláudia. Lugares dos mortos nas cidades dos vivos. Rio de Janeiro:
Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação
Cultural, Revisão e Editoração, 1997.
RODRIGUES, José Carlos. O Tabu da Morte. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.
VOVELLE, Michel. As almas do Purgatório: ou o trabalho de luto. São Paulo: Editora
Unesp, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1105
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Candaces: o lugar social da mulher no reino Kush entre os séculos II A.C e IV D.C

FERNANDA CHAMARELLI DE OLIVEIRA


Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura – Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

Resumo
As candaces, rainhas-mãe que detinham elevado status social e político na
civilização de Méroe, no Reino de Kush, localizado na região da África subsaariana,
assumiram um poder político superior a de seus filhos ou maridos, entre os séculos II A.C
e IV D.C, conforme demonstra o debate desenvolvido por diferentes pesquisadores. Esse
poder é atestado por diversas fontes, como por exemplo, registros reais, como a estela de
Hamadab, também conhecida como a grande de estela da rainha Amanirenas e seu filho,
representando uma celebração de campanhas militares e a iconografia localizada em
templos, conferindo a mulher o papel de indivíduo ativo nesta sociedade.
Buscamos com o desenvolvimento desta pesquisa trabalhar na perspectiva de um
olhar alternativo sobre a história da África antiga, um olhar que possibilite a reconstrução
para história de sociedades que ainda carecem de serem valorizadas e reconhecidas por
seu desenvolvimento e suas crenças, sociedades que necessitamos conhecer as origens, a
organização política e social, a cultura, bem como as relações com civilizações dentro e
fora do continente africano.

Repensando a história da África: diálogos entre silenciamentos, memórias, histórias


e identidade.
“A África tem uma história” (KI-ZERBO, 1983, p.21). Joseph Ki-Zerboinicia a
introdução geral de uma importante obra que colabora para ampliação dos conhecimentos
atuais sobre o continente africano e sua história com esta frase, e a partir dela reflete sobre
a necessidade de se repensar a escrita desta história. Destacando-se como um dos
importantes pesquisadores africanistas, que contribuem para o pensar sobre a história da
África sob uma nova ótica, Ki-Zerbo acredita que esta deve ser reescrita, pois, além de
ser pouco conhecida, ela foi escrita por não africanos, o que gerou uma série de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1106
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

estereótipos e imagens negativas relacionadas ao continente. Essa reescrita seria como


uma verdadeira tomada de consciência, pois deve serrealizada a partir do interior do
continente, sobre uma história até então pouco, ou não conhecida pelos africanos.
Como norteadores para esta reescrita, que resultará em uma historiografia pioneira
da África, Ki-Zerbo (1983) propõe que esta seja feita como uma história do conjunto dos
povos africanos, pois as atuais fronteiras existentes no continente não representam as
estabelecidas por esses povos, mas sim as impostas pelos anos de colonização. Para tanto,
apesquisa a ser realizada para essa escrita deve ser interdisciplinar, contanto com o apoio
de áreas como a antropologia, sociologia e linguística, e valorizando as civilizações que
ali se desenvolveram, suas principais instituições e estruturas.
Cheik Anta Diop, escrevendo na década de 1950, período de intenso debate sobre
o processo de independências no continente africano, destaca-se como um dos mais
importantes pesquisadores sobre história da África. Diop entende que é necessário haver
uma valorização da historicidade das sociedades africanas e dentro também da concepção
de estabelecer uma nova história para África, desconectada do etnocentrismo até então
predominante, trabalha com a concepção de uma unidade cultural africana, considerando
a diversidade presente nas sociedades que se desenvolveram no continente e as diferenças
que foram impostas ao longo do tempo pelas dominações árabe e europeia478.
Alberto da Costa e Silva, reconhecido africanista da atualidade, debate também a
questão de se conhecer a África a partir de um olhar interno, desconstruindo a falta de
conhecimento sobre a história desse continente e do desenvolvimento de suas civilizações
antes da chegada dos europeus a região. Em busca da valorização desta história, o autor,
assim como Diop, trabalha com a teoria de que a vida humana teria se iniciado na África,
e se utiliza de diversas fontes para realizar uma escrita minuciosa sobre as civilizações
africanas antes da chegada dos portugueses ao território (SILVA, 2011).
Essa necessidade de revisão e reescrita da história da África se apresenta como
uma temática de extrema relevância na busca por findar um aprisionamento cultural que
foi imposto a sociedades africanas em séculos de colonização europeia no continente.

478
Cheik Anta Diop é autor de uma série de obras que se configuram como de grande relevância para o
estudo da África, como por exemplo, Civilização ou Barbárie (1988), A África negra pré-colonial (1987),
A origem africana da civilização: mito ou realidade (1974), entre outros.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1107
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Silenciamento de uma pluralidade de crenças, valores, religiões, línguas, organizações


sociais, cosmovisões, histórias, que atendiam a um estatuto colonial que impunha ao outro
a condição de inferioridade para subjugá-lo.
Nessa busca pelo conhecimento de histórias por muitos séculos silenciadas, a
memória se apresenta como um importante elo entre presente e passado e o lembrar e o
conhecer sua história, suas raízes, se mostra como uma forma de resistência e de
afirmação de uma identidade. Reescrever a história da África, despida dos estereótipos
impostos pelos cânones da razão moderna ocidental, significa, além de uma importante
mobilização política, uma redescoberta do ser africano ou afrodescendente. Essa memória
reescrita a partir da história pode assim dar um novo sentido ao passado e ao sentimento
de pertencimento a um grupo social, atribuindo novos significados às experiências
vividas.
“A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade,
individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e
das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (LE GOFF, 1990, p.469). De acordo com
Jacques Le Goff, a memória é a propriedade de conservar certas informações. Essa
propriedade se refere a um conjunto de funções psíquicas que fornece ao indivíduo a
capacidade de atualizar impressões ou informações passadas, ou que por ele foram
reinterpretadas como passadas. No entanto, esta memória não é apenas individual, mas
também coletiva, sendo esta uma forma que muito interessa ao trabalho do historiador.
Segundo Margarida Neves, o conceito de memória é abrangente e assume
múltiplas vozes em todas as suas potencialidades:

O conceito de memória é crucial porque na memória se cruzam passado,


presente e futuro; temporalidades e espacialidades; monumentalização e
documentação; dimensões materiais e simbólicas; identidades e projetos. É
crucial porque na memória se entrecruzam a lembrança e o esquecimento; o
pessoal e o coletivo; o individuo e a sociedade, o público e o privado; o sagrado
e o profano. Crucial porque na memória se entrelaçam registro e invenção;
fidelidade e mobilidade; dado e construção; história e ficção; revelação e
ocultação. (NEVES, 1998, p.218)

A memória coletiva é composta por lembranças individuais de fatos vividos ou


que foram repassados, mas que pertencem também a uma comunidade. É essa memória,
inserida em um contexto social e histórico, a responsável por fundamentar a identidade

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1108
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

desta comunidade e da percepção do indivíduo sobre si mesmo e sobre o grupo social do


qual faz parte. A memória, portanto, se faz presente em cada visão de mundo, crenças e
formas de agir e pensar dos indivíduos de um determinado grupo.
A memória coletiva, geralmente, tende a estar relacionada a um acontecimento
considerado importante para determinada comunidade, gerando uma simplificação de
todo o restante do passado. Desta forma, devemos considerar que a memória individual
está diretamente relacionada a essa seleção de fatos feita pelo coletivo. Até mesmo o
esquecimento deve ser considerado como um importante aspecto ao se estudar a memória
de grupos e comunidades, pois este na maior parte das vezes ocorre pela vontade do grupo
de ocultar determinados fatos. Observamos assim que a memória coletiva está sendo
constantemente reelaborada e deve ser analisada a partir dessa premissa. Sobre o papel
social da memória coletiva, Le Goff aponta que “a memória coletiva é não somente uma
conquista, é também um instrumento e um objeto de poder”. (LE GOFF, 1990, p.470)
As memórias individuais e coletivas, não se reduzindo, portanto somente ao ato
de recordar, mas trazendo consigo potencialidades como as que conformam identidades
e relação de poder, apresentam-se como importantes fontes de produção e análise de
conhecimento histórico.
A busca do conhecer e do ressignificar a história do continente africano perpassa
por aquilo que foi esquecido e pelo que foi mantido nas memórias individuais e coletiva.
Sendo a memória social este grande instrumento de poder, é possível observar que a parte
da história da África que é mantida nesta memória ainda é aquela que só pode ser
alcançada com uma visão exterior, como uma visão eurocêntrica, a qual não convém
trazer a luz a riqueza cultural, as diferentes formas de organização e visões de mundo e
toda a produção de conhecimento realizada por sociedades africanas.
Repensar a história da África é uma forma de possibilitar um olhar de reconstrução
para história de sociedades que precisam ser valorizadas e reconhecidas por seu
desenvolvimento e suas crenças, sociedades que necessitamos conhecer as origens, a
organização política e social, a cultura, bem como as relações com civilizações dentro e
fora do continente africano.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1109
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Candaces: representação do elevado status político e social da mulher no reino Kush


As candaces479, rainhas que assumiram o poder político na civilização meroítica,
no reino Kush, que se localizava na região da África subsaariana, entre os séculos II A.C
e IV D.C, circulam pela mitologia africana como figuras de destaque nos estudos que
envolvem as civilizações africanas na antiguidade, representando a força da mulher como
indivíduo ativo.
O tema das candaces foi relatado por Estrabão, na obra Geografia, livro XVII.
Escrevendo no século I D.C, em Roma, Estrabão descreve a região do Egito e da Líbia
em seu último livro de uma obra de dezessete volumes. Neste, relata o avanço de tropas
romanas na conquista de cidades ao sul do Egito, dominando Pselchis e Premnis, onde
vários etíopes foram capturados480. Entre eles, encontravam-se soldados da rainha, que
por ele foi denominada também como Candace481, que era a governante dos etíopes
naquele tempo. Estrabão a descreve como uma espécie masculina de mulher e cega de
um olho482.
Após a conquista de Pselchis e Premnis, os romanos, de acordo com Estrabão,
partem para a conquista da cidade de Napata, descrita como a residência real da rainha
Candace. A soberana envia embaixadores para um tratado de amizade com os romanos,
oferecendo a devolução dos escravos que foram capturados na invasão dos etíopes a
Syene e da estátua de César trazida do mesmo local. Ainda assim, Petrônio, liderando as
tropas romanas, ataca e captura Napata, saqueando suas riquezas e escravizando seus
habitantes.

479
O termo candace deriva da palavra de origem meroíta KTKE ou KDKE, que significa rainha-mãe.
480
O tema também foi abordado por Plínio, na obra História Natural, livro VI e por Dion Cássio, na obra
História Romana, livro LIV.
481
De acordo com a lista de soberanos elaborada pelo arqueólogo Hintze, a rainha a qual Estrabão faz
referência é a Candace Amanishakete, que teria governado entre 41 e 12 a.C.
482
Segundo Cristiano Bispo, em seu artigo Candaces: dois discursos, duas representações (2009), as
características físicas da rainha, apontadas por Estrabão, encontram-se em desacordo com os registros
iconográficos da soberana encontrados em sítios arqueológicos no Sudão e com os objetos achados em sua
pirâmide. Estes demonstram uma preocupação com a estética e o cuidado com o corpo, como por exemplo,
vasos de vidro usados para armazenar óleos corporais e espelhos.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1110
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Quando Petrônio se retira de Napata, a rainha candace reorganiza suas tropas para
retomar a cidade, que havia sido fortificada pelos romanos. Petrônio ao descobrir o
deslocamento das tropas etíopes, retorna para conter a invasão. Diante do impasse
estabelecido, a Candace solicita dialogar para negociar a paz com César Augusto, que se
encontrava em Samos. De acordo com Estrabão, aquilo que foi pedido a César foi
concedido, inclusive a retirada dos impostos que iriam recair sobre Napata.
Uma importante fonte de cultura material a partir da qual podemos analisar o papel
político e militar exercido pelas candaces é a estela de Hamadab, que encontra-se
atualmente no Museu Britânico. A parte superior da estela possui imagens mostrando a
rainha Amanirenas e o seu filho, príncipe Akinidad, enfrentando divindades egípcias. O
relevo que se encontra abaixo mostra prisioneiros e há uma inscrição em hieróglifos
meroíticos. Acredita-se que estela possa ter sido produzida para celebrar a vitória de uma
invasão kushita no Egito, por volta de 24 A.C.

Fonte:http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?ob
jectid=116018&partid=1&place=1843&plaa=1843-3-1&page=1 Acesso: 15/08/2017

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1111
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Na 25ª dinastia, na dinastia kushita no Alto Egito, havia se tornado uma prática
para o faraó instalar seus parentes do sexo feminino como as sumo-sacerdotisas de Amon
em Tebas. Essas mulheres na verdade teriam se tornado governantes no Alto Egito.
Segundo Williams e Finch (2007), foram empreendidas por elas massivas restaurações e
obras públicas em Tebas e em todo Alto Egito. Seus nomes estão presentes em
monumentos, edifícios e estátuas e elas são retratadas tanto como sacerdotisas quanto
administradoras.
Existiam duas linhas destas sumo-sacerdotisas, uma em Tebas e uma em Napata,
e elas seriam designadas, respectivamente, “Senhora do Egito” (Tebas) e “Senhora de
Kush”.
Na historiografia, o tema das Candaces foi debatido por diversos autores. Segundo
Jean Leclant, em Império de Kush: Napata e Méroe, foi com a rainha Shanakdakhete (por
volta de 170 a 160 A.C) que parece ter ascendido ao poder um matriarcado tipicamente
local na sociedade cuxita. Após seu governo, duas rainhas tiveram então um papel
preponderante: Amanirenas e Amanishaketo. Tamanha era sua representatividade, que
seus maridos permanecem esquecidos, e não se sabe sequer o nome do de Amanishaketo.
Comprovando o poder exercido pela rainha Shanakdakhete, Necia Harkless
(2006, p. 147), em Nubian pharaohs and meroitic kings, aponta o registro de seu nome
real preservado nos hieróglifos egípcios e meroíticos, além de utilizar a análise de
registros e inscrições reias que comprovam a atuação das Candaces, como por exemplo,
a Grande Estela de Amanirenas e seu filho. De acordo com Harkless (2006, p.99), o papel
social de destaque ocupado pela mulher no reino Kush pode ser explicado pela crença de
que estas detinham poderes divinos, e a maternidade era vista como único laço
reconhecido.
Alberto da Costa e Silva, em A enxada e a lança, confirma o elevado status
conferido às rainhas-mãe afirmando que a mãe do rei possivelmente era um dos principais
chefes do partido que o levara ao trono. Ela é retratada, nas paredes dos templos,
subordinada somente ao próprio rei e com uma destacada posição como portadora de
oferendas nos túmulos. (SILVA, 2011, p.134). Ali Hakem, em A civilização de Napata e
Méroe, se utilizando também da análise iconográfica de templos, endossa a atuação das
Candaces, apontando que a certa altura as rainhas devem ter superado em importância
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1112
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

seus filhos ou maridos, e em um dado momento, assumido a totalidade do poder.


(HAKEM, 1983, p.305)
M´Bokolo debate a questão da importância da filiação materna no reino Kush, no
período meroítico, apontando o exemplo presente na estela do rei Aspelta (593-568 A.C),
que declara ter recebido seus direitos hereditários de sucessão de sua mãe. Segundo o
autor, as rainhas e princesas ocupavam um lugar central no sistema monárquico do reino,
onde inicialmente tinham uma participação indireta, na educação dos príncipes, na adoção
da primeira esposa de seu filho, que era o rei em exercício, como conselheiras ouvidas
por seus maridos e filhos, na participação na cerimônia de coroamento, e posteriormente
de forma direta, quando assumiram efetivamente o poder político. (M´BOKOLO, 2009,
p.82)
Nosso espaço geográfico de interesse, a cidade de Méroe, se localizava na região
do vale Butana. A região constituía-se em um importante elo entre a África central e o
mundo mediterrânico. A sociedade se desenvolveu as margens do rio Nilo, que era seu
principal ponto de união. Na região ocorriam chuvas constantes, facilitando a agricultura
e também a criação de animais. O maior limite territorial conhecido desta sociedade se
estendeu da segunda catarata do Nilo até as margens do Nilo Azul. Sobre esta localização,
G. Mokhtar (1983, p.215) aponta que:

(...) poderíamos definir a Núbia histórica como a parte da bacia do Nilo que se
estende da fronteira oestenoroeste da atual Etiópia até o Egito, incluindo o
próprio vale do Nilo, partes do Nilo Branco e do Nilo Azul e todos os seus
tributários situados ao norte do 12º paralelo, tais como o Atbara, o Rahad e o
Dinder.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1113
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Fonte: http://www.keyword-suggestions.com/bWVyb2UgbWFw. Acesso em 10/07/2017

A filiação matrilinear no reino Kush


As primeiras civilizações que se desenvolveram na África tinham como principal
característica a organização matrilinear, que passou a ser vista como uma forma primitiva
de organização, por ser uma característica própria das civilizações africanas e também
pelo fato que por um longo período tentou-se provar a origem branca e europeia do ser
humano, já que a ideia do negro ser o primeiro humano a habitar a Europa não era aceita.
Isso se explica pelo fato do africano ser considerado como inferior aos europeus ainda no
século XX e o próprio termo civilização não ser utilizado para designar as sociedades
antigas que se desenvolveram na África, sendo a civilização ocidental considerada como
o estágio mais avançado do desenvolvimento humano.
Muitos teóricos buscaram explicações para as questões que envolviam a
desigualdade entre os sexos em diferentes sociedades, bem como os aspectos que
embasavam a existência da matrilinearidade e da patrilinearidade483. Cheik Anta Diop

483
Entendemos como matrilinearidade o sistema de parentesco, de filiação através do qual somente a
ascendência (família) da mãe é tida em consideração para a transmissão do nome, dos benefícios ou do
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1114
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(1989) busca desconstruir a visão de progresso que foi associada ao patriarcado e a visão
de uma organização primitiva ligada à matrilinearidade. Para tanto, analisa as teorias
sobre o patriarcado propostas por diversos autores, como Bachofen e Engels, no intuito
de mostrar que faltam bases científicas que provem a superioridade das sociedades
patriarcais e para dissociar o matriarcado de algo atrasado e primitivo.
Bachofen e Engels defendem o processo que leva da organização matriarcal à
patriarcal como um progresso universal vivido pelas sociedades, como uma evolução,
considerando as estruturas sociais matrilineares como retrógradas. Diop discute a teoria
de Bachofen que considera a existência do matriarcado com um estágio anterior a
organização patriarcal, demonstrando a visão de progresso alcançada com este sistema e
posicionando o matriarcado como algo que deveria ser superado. Para Diop (1989), esta
teoria não pode ser considerada como científica, pois não há como provar em uma
determinada sociedade a sobreposição do patriarcado em relação ao matriarcado.
Para analisar as mudanças nas formas de organização das sociedades, bem como
no desenvolvimento das relações de parentescos, Engels propõe uma divisão em três
momentos principais: o estado selvagem, a barbárie – que denomina como estágios pré-
históricos de cultura – e a civilização. A forma de organização matrilinear é vista por
Engels como uma forma de evolução da sociedade, até se chegar a um momento neste
processo onde esta família monogâmica onde o homem conquista o papel principal e essa
figura paterna passa a ser dominante na relação familiar. Surge assim o patriarcado, onde
o homem possui grande poder de controle sobre sua esposa e sua família. Diop debate a
teoria de Engels, pontuando que ele se baseia nas teorias anteriores para entender as forma
de organização política e social. Desta forma, essas teorias serviram para que ele
mostrasse que a família monogâmica burguesa passaria por uma decadência assim como
as instituições anteriores.
Para embasar sua teoria sobre o matriarcado, Diop (1989) trabalha com a
influência da ecologia sobre a organização social, atribuindo a esta fatores externos.
Apresenta a hipótese de dois “berços” de desenvolvimento humano, que seriam o do norte
e o do sul, tendo como ponto de divisão a bacia do Mediterrâneo. O norte, por apresentar

status de se fazer parte de um clã ou classe, enquanto na patrilinearidade a ascendência considerada é a


paterna.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1115
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

um caráter nômade devido ao ambiente árido, estando ligado aos povos indo-europeus,
foi favorável à organização patriarcal, pois a mulher era vista como um fardo que o
homem carregava, tendo sua função reduzida a procriação. Já o sul, tendo como base de
desenvolvimento sociedades agrárias, devido à vegetação existente, que possibilitou o
processo de sedentarização, tinha a mulher como base de uma função central, pois era ela
que trabalhava na agricultura enquanto os homens caçavam, sendo assim sociedades
favoráveis à organização matriarcal.
O continente africano, para Diop, foi um dos berços de desenvolvimento da
organização matriarcal, sendo o patriarcado introduzido apenas com a penetração do
islamismo no continente no século X. Mesmo assim, Diop defende que este não penetrou
profundamente na base do sistema matriarcal484.
Nas sociedades de organização matrilinear, o poder da mulher estava baseado em
seu papel econômico, e a herança biológica da mãe era mais forte e mais importante que
a do pai. Não havia uma dominação da mulher sobre o homem, mas sim uma partilha de
poder e responsabilidades. A mãe possuía um sacro poder e sua autoridade era ilimitada.
Todos os direitos políticos eram transmitidos pela mãe e a herança era proveniente do tio
materno e não do pai. Nestas sociedades, segundo Diop, era a mulher que recebia o dote
no casamento, podendo repudiar seu marido a qualquer momento. O homem era quem
levava seu clã para viver junto da mulher, pois era esta quem contribuía substancialmente
para a economia.
Os estudos realizados sobre as sociedades matrilineares, segundo Isabela
Casimiro (2014), até os anos 70-80 do século XX, ainda são carregados de uma visão
bastante preconceituosa, haja vista o modelo de organização social patrilinear vigente e
ainda entendido como superior em uma escala de evolução desta organização. A partir
dos estudos pós-coloniais, que ganham força a partir da década de 80, começa se

484
Para embasar sua teoria do matriarcado relacionada ao continente africano, Cheik Anta Diop trabalha
com a concepção de uma unidade cultural africana, considerando as diferenças que foram impostas ao longo
do tempo pelas dominações árabe e europeia. Diop escreve na década de 1950, período de intenso debate
sobre o processo de independências no continente africano. Assim, toda sua obra é baseada em uma
valorização da historicidade das sociedades africanas e para estabelecer o continente como berço das
civilizações mais antigas, hipótese que foi bastante contestada no século em que ele desenvolve suas
pesquisas.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1116
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

estabelecer uma visão desconstruída dos padrões de organização social e é possível


observar análises mais críticas em relação às sociedades matrilineares.
Nessas sociedades haveria um maior espaço social e político concedido às
mulheres, onde estas teriam uma maior autonomia e autoridade formal em rituais e nas
políticas locais, bem como no controle de rendimento e nas decisões referentes às relações
familiares. A matrilinearidade era compreendida como uma oposição à patrilinearidade,
enquanto que, de fato, nas sociedades matrilineares não existe uma dominação feminina,
mas status sociais que se complementam e levam a uma equivalência social. Esta
organização social estaria ligada às relações econômicas existentes, sendo característica
de sociedades agrárias, e tendo sido estabelecida em regiões da África austral e central,
da África Ocidental e da Indonésia.
Bibi Bakare-Yusuf também discute a organização e o status social conferido às
mulheres nas sociedades matrilineares africanas, se referindo a pesquisas de autoras como
Ifi Amadiume e Oyèrónké Oyěwùmí que debatem a questão de que a assimetria sexual
não era de fato inerente à organização de sociedades africanas e que esta não estava
pautada na questão do gênero antes da invasão europeia. Para as autoras, existiriam outras
formas próprias de desigualdades nestas sociedades que não estavam relacionadas com o
gênero.
Ainda para Amadiume e Oyěwùmí o poder exercido pela mulher nas sociedades
africanas derivava da importância sagrada que era concedida à maternidade, que era visto
como algo quase divino, diferenciando o status e a experiência social das mulheres
africanas em relação às europeias.

Considerações finais
Repensar a histórias, ou “as histórias” da África é não somente um resgate da
memória de africanos e afrodescendentes e uma afirmação de sua identidade, mas também
um ato de mobilização política. A luta por ressignificar os conhecimentos e olhares sobre
esta história perpassa por um reconhecimento das inúmeras contribuições históricas e
culturais do continente, que acreditamos que pode passar a ser visto fora das noções do
diferente, fora do padrão canônico estabelecido durante séculos de dominação das
civilizações europeias. As histórias e valores culturais africanos podem por nós serem
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1117
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

desvendados para serem não tolerados, mas revistos dentro de uma perspectiva não
hegemônica de pensamento.
Ao pesquisarmos e aprofundarmos nossos conhecimentos sobre sociedades de
organização matrilinear que se desenvolveram no continente africano, onde tomamos
como objeto de estudo a sociedade kushita do período meoítico, podemos reconhecer um
dos traços bastante marcantes das sociedades africanas antigas, bem como refletir sobre
o status político, social e militar que era atribuído a essas mulheres. Esse debate ainda nos
leva a refletir sobre o quão importante era a organização social e política desse reino,
influenciando o poder exercido por rainhas e princesas, e estando diretamente ligada
também a fatores econômicos e culturais da sociedade kushita.

Documentação
ESTRABÃO. A Geografia de Estrabão(texto em grego e em inglês, versão de H. L.
Jones). Col. «The Loeb Classical Library», 8 vols., MCMLIX.
Estela de Hamadab. The British Museum, Coleção on-line. Departamento de Egito antigo
e Sudão. Aquisição:1914. Datação: Século I D.C.

Referências bibliográficas
A. M. ALI HAKEM. A civilização de Napata e Méroe. In: MOKHTAR, G. (coord.).
História Geral da África. v. 2: A África Antiga. São Paulo - Paris: Ática – UNESCO,
1983, p.297-332.
BAKARE-YUSUF, Bibi. Além do determinismo: a fenomenologia da existência
feminina africana. Tradução para uso didático de BAKARE-YUSUF, Bibi. Beyond
Determinism: The Phenomenology of African Female Existence. Feminist Africa, Issue
2, 2003, por Aline Matos da Rocha e Emival Ramos.
BISPO, Cristiano Pinto de Moraes. Candaces: Dois discursos, duas representações.
Nearco, 2009. Ano II, número IV.
CASIMIRO, Isabel Maria. Paz na Terra, Guerra em Casa. Série Brasil &África coleção
Pesquisas 1, Pernambuco: Editora da UFPE: 2014.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1118
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

DIOP. Cheik Anta. Precolonial Black Africa: a comparative study of the political and
social systems of Europe and Black Africa, from Antiquity to the Formation of modern
States. Westport: Lawrence Hill & Company, 1986.
___ The cultural unity of Black Africa – the domains of patriarchy and of matriarchy in
classical antiquity. Westbourne, Karnak house, 1989.
HARKLESS, Necia Desiree. Nubian pharaohs and meroitic kings – the kingdom of Kush.
Bloomington: Author House, 2006.
KI-ZERBO, Joseph. Introdução geral. In: KI-ZERBO, Joseph. História Geral da África.
V.1: Metodologia e pré-história da África. São Paulo – Paris: Ática – UNESCO, 1983, p.
XXXI-LVII.
LECLANT, Jean. Império de Kush – Napata e Méroe. In: MOKHTAR, G. (coord.).
História Geral da África. v. 2: A África Antiga. São Paulo - Paris: Ática – UNESCO,
1983, p.273-296.
LE GOFF, Jacques, 1924. História e memória; tradução Bernardo Leitão ... [et al.] --
Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990.
NASCIMENTO, Elisa Larkin. A matriz africana no mundo. Rio de Janeiro: Editora Selo
Negro, 2008.
M´BOKOLO, Elikia. África negra- história e civilizações. Salvador: EDUFBA, 2009.
NEVES, Margarida de Souza. História e Memória: os jogos da memória. In: MATTOS,
Ilmar Rohloff (org.). Ler e escrever para contar: documentação, historiografia e formação
do historiador. Rio de Janeiro: Access, 1998, p.203-220.
SILVA, Alberto da Costa. A enxada e a lança– A África antes dos portugueses.Editora
Nova Front, 2011.
WILLIAMS, Larry e FINCH, Charles S. As grandes rainhas da Etiópia. In: SERTIMA,
Ivan Van. Mulheres negras na antiguidade. New Jersey: Transaction Publishers, 2007,
13ª edição, p.12-35.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1119
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As práticas de cura africanas, que viajaram nas redes de informações do Império


Ultramarino Português: final do século XVIII e início do XIX

FERNANDA RIBEIRO ROCHA FAGUNDES


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde - Casa de
Oswaldo Cruz/FIOCRUZ RJ

Introdução e pressupostos teóricos


Pretende-se neste artigo, discutir a circulação da prática de cura africana por meio
da viagem das plantas locais, do uso do conhecimento tradicional africano de
variolização, e da adesão de práticas saúde de sangradores nos negreiros. Ambos da região
da África Centro-Ocidental, da faixa Luanda -Benguela, ao final do século XVIII e
princípios do XIX. Analisa-se personagens importantes como o físico-mor e primeiro
professor de Medicina da África Austral, José Pinto de Azeredo, o viajante e explorador
Joaquim José da Silva, sangradores nos negreiros e a atuação de outro físico-mor na
região subsaariana por parte do Império Britânico. Na discussão destaca-se a 1ª Escola
Médica de Angola de 1791 como uma zona de contato, inserida em uma área de
crioulização, fazendo parte da rede de circulação de conhecimentos científicos do Império
Ultramarino português, sob a luz da Nova História das Ciências Global e
Transcontinental.
De acordo com a Nova História das Ciências Global e Transcontinental, a história
das ciências passoua ser vista a partir da perspectiva mundial. O interesse dos
historiadores e estudiosos da ciência moderna, império e tecnologia, ao final do século
XX, voltou-se para as contingências, para a fluência das pessoas, para as sociedades que
migram, fazem comércio e transmitem conhecimento material dos tempos imemoriais.
Segundo essa nova corrente, os impérioseram globais no início do períodomoderno,pois
coletavam e transmitiam conhecimentos. Isso teria ficado evidente a partir datradição dos
anos 1980 e 1990, que aliados aos Estudos Pós-Coloniais, disciplinaram aexpansão
dapesquisa das ciências no ponto de vista império e possessões coloniais. Isto trouxe à
tona outras partes do mundo, além da Europa, no contexto da produção das ciências. Essa
nova perspectiva despertou o interesse por viajantes,viagens exploratórias e história
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1120
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

natural ao redor do globo (FAN, 2012: 250-253). A nova historiografia global e


transcontinental reexamina a naturezado conhecimentocientífico, que foi feito no espaço
mundial do início da modernidade,olhando para o papel intercultural, nos encontros e na
circulação dos conhecimentos especializados que formaram a ciência no período. A partir
daí o local e a sua “cultura especialista” passaram a produzir novos conhecimentos,
devendo-se levar em conta os agentes envolvidos na produção do saber, o espaço da
inteligência intercultural, o processo ativo de recepção, reconfiguração e circulaçãodos
conhecimentos e habilidades.Tudo isso, ocorre na “zona de contato”, onde acontece a
construção do conhecimento científico, pois ela traz materialhistórico e legitima a ciência
fora da Europa (RAJ, 2007:4-14).Identifica-se a região Luanda-Benguela,ao final do
século XVIII e princípios do XIX, como “Zona de Contato”, umaárea de “crioulização”,
onde a 1ª Escola Médica de Angola, pode ter valorizado conhecimentos locais,
reelaborado saberes da faixa Congo-Angola, pondo-os para circular a nível global por
meio de personagens como José Pinto de Azeredo, Joaquim José da Silva e sangradores,
naquele espaço especializado.

A valorização do conhecimento local da África Centro-Ocidental: faixa Luanda-


Benguela
As plantas nativas de Angola e o interesse médico dessas por parte dos viajantes
poderiam ser identificados desde o século XVI, pois os colonizadores portugueses e
vários outros agentes sociais conectados ao Império Ultramarino Português coletavam
plantas africanas na região da África Centro-Ocidental por necessidades econômicas e
territoriais. Os funcionários do ultramar, missionários e viajantes esforçaram-se em
entender as doenças que grassavam na região, sistematizando a medicina africana,
permitindo uma mescla do conhecimento africano e europeu nas áreas de crioulização,
onde os problemas médicos passaram a receber respostas com produtos da África Centro-
Ocidental, como plantas que foram enviadas para Portugal, Brasil e outras regiões do
Império. Já no início do século XVIII muitas farmacopeias traziam iconografias da África
centro-ocidental, nelas haviam identificadas drogas conhecidas em Portugal e
“pharmacistas” de Lisboa trabalhavam com jesuítas e agostinianos para providenciar
remédios para as doenças da população.Os conhecimentos dos produtos medicinais da
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1121
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

África Centro-Ocidental chegaram à Portugal espalhando-se em terras lusas, com físicos


portugueses que experimentavam e produziam seus próprios componentes.
Existirammuitos esforços farmacêuticos com a bioprospecção da África, que produziam
conhecimentos médicos baseados na medicina natural. As informações eram originárias
de ordens religiosas, outros agentes do Império Ultramarino Português e farmacopeias,
que foram emitidas à coroa, ganhando maior brio na conjuntura ilustrada (KANANOJA,
2015: 14,15e 17).
Nesse cenário de interesse botânico medicinal, emerge o personagem Joaquim
José da Silva, matemático e viajante naturalista, sob o jugo do governo pombalino,que ao
final do século XVIII propunha como objetivo avançar no interior africano em direção ao
leste, estabelecendo fortes, feitorias, feiras para o interior e, posteriormente,
asexplorações pela malha fluvial. O viajante Joaquim José da Silva e outros viajantes
tentaram chegar à Moçambique usando o rio Guango e depois o rio Cunene em Benguela.
Em 1785, Silva participou da jornada pelo rio Cunene, sob o comando do capitão Antônio
José da Costa, no entanto não atingiu o objetivo. O governador africano, Dom Francisco
Inocêncio de Souza Coutinho, havia estimulado a entradanos sertões de Benguela por
meio desses agentes, encontrando largos e sertões úteis (RAMINELLI, 2008: 66). Cabe
ressaltar que Joaquim José da Silva era do Rio de Janeiro, foi formado em Coimbra,
trabalhou na secretaria de Angola e era cientista e explorador. Ele também fez viagensna
área do rio Dande entre 1783-1784 e na região de Luanda para Massangano em 1784
(KANANOJA, 2015: 17 e 18). Joaquim José da Silva foi aluno de Domingos Vandelli,
que planejou algumas viagens das quais ele participou, como membro dessas expedições
ele também era encarregado de coletar informações sobre produtos naturais, história
natural das colônias e preparar registros do material coletado para o Complexo
Museológico D’Ajuda (PATACA, 2003: 981 e 987). Nos interstícios dessas
viagensJoaquim José da Silva passou por Ambaca e prospectou plantas medicinais úteis,
que possivelmente poderiam ser do conhecimento do Físico-mor da 1ª Escola Médica de
Angola de 1791, José Pinto de Azeredo. Segundo Silva:

(...) qualquer pessoa que tenha feito algum estudo sobre as coisas da natureza
e versado nos objetivos do mesmo contemple o aspecto que oferece qualquer
das partes deste sertão em que se compreende o território de Ambaca cercado
de montanhas [...] segundo expressam os naturalistas persuadir-se- na
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1122
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

facilmente darem se nele frequentes matrizes de muitas espécies de minerais,


emesmo metais que façam merecedoras de suas indagações e estudos [...] que
se sabia somente e se pode agora dar notícia, enquanto a metais, de algum
ferro no distrito do Hary; ficando por isso mesmo ao pensamento mais este
motivo para ocupar-se dos vegetais, em que acha objetos a medicina e a
agricultura...(SILVA, 1797:f15).

Outro personagem importante, que contribuiu para queos saberes africanos de


cura fluíssem nas redes de comércio e sociabilidades foi José Pinto de Azeredo,
considerado um “homem de letras”, à serviço do Estado. Ele atuou em Angola como
Físico-mor na 1ª Escola Médica em 1791, dialogando com o saber praticado na Europa,
introduzindo experimentalismo, fazendo parte de uma geração ilustrada, que entrou em
contato com doutrinas estrangeiras, com o objetivo de contornar problemas de assistência
no ultramar.Foram médicos, cirurgiões e outros personagens históricos, que aofinal do
século XVIII entraram em contato com outras culturas eincorporaram saberes locais sobre
enfermidades, apropriados por médicos luso-brasileiros (ABREU, 2013: 190 e 191).
Alguns historiadores da ciência, observam que, nessa ocasião, haveria umaespécie de
conversão do Império Português ao modelohegemônico franco-inglês, no qual as
práticascientíficas passariam a fazer parte integrante da rotina administrativa dos impérios
(KURY: 2004, 115).José Pinto de Azeredo, nascido no Rio de Janeiro, foi físico-mor da
cidade de São Paulo de Assunção de Luanda em 1789, lecionou Filosofia Racional e
Medicina, entre os anos de 1791 e 1797, na primeira Escola Médica de Angola, sendo
colocado como o primeiro Professor régio de Medicina, na África Austral portuguesa.
Também atuou no Hospital Militar de Lisboa em 1801, sendo médico da Real Câmara e
Família Real. Estudou em Edimburgo entre 1786 e 1788, passando por Leiden em 1788.
(OLIVEIRA, 2013: 153,154, 158 e 164).
Destacamos a atuação de José Pinto de Azeredo na Primeira Escola Médica de
Angola em 1791, e defendemos que ela faça parte da rede de conhecimentos do Império
Ultramarino Português do final do século XVIII.Nessa região, ele teve a possibilidade de
combater febres, bexigas, coceiras e lombrigas, usando o conhecimento local,
reelaborando as práticas nativos africanas com as outras informações de curacirculantes,
gerando conhecimento novo.

Não há moléstia que mais precise de uma pronta assistência do que do que é a
febre, a eficácia dos remédios depende sempre de ser asua administração feita

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1123
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

atempo[...] O médico não deve perderinstantes, nem olhar indiferente para


pequenos sintomas, porque eles rapidamente crescem e passam a ser
mortais...(AZEREDO, 1799: 61).
Apesar da maravilhosa virtude da quina, há intermitentescotidianas que
resistem a ela. Pelo que me vi obrigado a recorrer a outros remédios, a fim de
procurar alívio para meus enfermos. A falta de quina que frequentemente
selamentaem Loanda,eraoutro motivo que me forçavaapesquisar umaoutra
coisa, com que asuprisse.Estes exames e tentativas não deixaram de aproveitar-
me. Eu achei nanoz vômica uma virtude igual,ou talvez superior àda quina,
para curar as intermitentes cotidianas. Depois que eu mostreios seus bons
efeitos,tanto no Hospitalcomo fora dele, todos os mais professores começaram
a recita-la por necessidade e hoje já a recitam por estudo[...] depois de alguns
anos de frustradastentativas, vim a encontrar com um que é tão eficaz, e certo
nestas febres, como é o arsênico branco nas quotidianas... (AZEREDO,
1799:91e 92).

O problema das febres era frequente no século XVIII, não se sabia ao certo o
motivo dessas pirexias diante da medicina da época. A cura no final do século XVIII e
princípios do século XIX na Europa ocidental e nos domínios ultramarinos portugueses
fundamentava-se na teoria hipocrático-galênica, que apontava a análise dos climas, dos
humores, o lado sobrenatural e empírico, uma visão de mundo herdada do período
medieval, mas ainda presente no fim do século XVIII. Neste contexto, gerou-se a
concepção dos miasmas causadores de doenças, onde a preocupação estava voltada para
a nutrição, a organização dos espaços, com os ares, com as águas, e a doença não possuía
causa específica. Compartilhavam também, de diversas teorias médicas antagônicas,
como a Iatrofisica, Iatroquímica, vitalismo e excitabilidade orgânica, coexistindo assim
várias concepções e fundamentações teóricas da medicina (FAGUNDES, 2016:25).
No entanto, autores como WATTS (1999:111) especulavam que as febres
poderiam estar relacionadas à varíola, que era com certeza um problema no século XVIII.
Até o século XVIII o tratamento da varíola poderia ser dividido entre o método quente
árabe, segundo o qual poderia expelir a matéria causadora da doença pelo calor, e o
método frio de Thomas Sydenhan, que acreditava que a exposição ao ar fresco e o uso de
cobertas leves e bebidas frias seriam uma boa terapia para a doença. Essas duas práticas
estavam também associadasao isolamento dos infectados. Porém, na primeira metade do
século XVIII a inoculação teria sido noticiada na Royal Society por médicos, mercadores
e funcionários ingleses, em missão nas possessões do oriente (SILVEIRA, 2013: 53). A
partir daí a doença teria sido consideravelmente reduzidae a origem de seu combate teria
se dado por meio de uma prática africana.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1124
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O comércio de escravos desde o século XVII havia ajudado a fazer a doença


circularpor meio dos negreiros. Os agentes coloniais observavam que os escravos se
tornavam imunes por meio por meio da prática da variolização, que desde o final do
século XVII fazia parte da cultura Yorubá do sudeste da Nigéria, através dos rituais do
“Soponha”, uma entidade responsável pela fertilidade das terras e o cultivo dos grãos
(WATTS,1999:111). Vale a pena acrescentar que,os comerciantes de escravos, obrigados
a ter ao menos sangradores em suas embarcações davam preferência aos que vinham da
região da África Centro-Ocidental, da região angolana e costa da Mina, entendendo que
o conhecimento desses sangradores africanos era aceito pelos escravos dentro das
embarcações e que os traficantes de escravos reconheciam o talento desses homens na
arte de curar (RODRIGUES, 2005: 278 e 279).
No universo cultural dos africanos, a doença podia ser causada pelo poder de
feiticeiros, existindo a possibilidade do flagelo da doença ocorrer por meio da magia, por
violação de uma tradição, por erro ritual ou pelo descumprimento de deveres para com os
deuses (CHALLHOUB, 1996:136 e 137). É nesse universo de pensamento, em que se
pôde identificar à variolização, comum às tradições da cultura Yorubá, presente desde o
final do século XVII no sudeste da Nigéria. Nesse local, entendia-se que quando a
entidade “Soponha” se mostrava furiosa, causava pústulas como grãos de morte na pele.
A grande marca da inoculação teria sido dada por meio de um escravo inglês no século
XVIII, chamado Onesimus, que havia informado ao seu senhor que teria sido inoculado
quando criança e que isto era uma prática entre os negros da África Ocidental e os não
Ocidentais. A partir da circulação desse conhecimento, os europeus passaram a aceitar a
inoculação como possível e essa prática passou a viajar pelo mundo. Quando em 1714,
Emanuel Timoni publicou o tratamento da prática em Istambul, fazendo com que esse
saber chegasse à Suíça, àFrança, àEspanha, à Prússia e àItália. A variolização africana foi
combatida pelas universidades no século XVIII, mas se difundiu diante do resultado que
denotou um crescimento populacional entre 1750 e 1800 na Europa. Ao final do século
XVIII,depois de um grande número de imunizados na Europa, a varíola passou a ser
controlada. Em 1796, Edward Jenner, tendo consciência da importância da inoculação,
foi premiado por uma nova técnica chamadade vacinação para prevenção da varíola, em

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1125
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que inoculava-se a matéria infecciosa do úbere da vaca nas pessoas (WATTS, 1999: 110-
116).
É possível perceber a formação de um conhecimento novo ao final do século
XVIII, na região Congo-Angola da África Centro- ocidental, em que o conhecimento e a
prática médica africana foram reelaboradas e circularam por meio do Físico-mor José
Pinto de Azeredo e também por meio do viajante Joaquim José da Silva. Uma nova
historiografia baseada na História das Ciências Global e Transcontinental traz à tona a
possibilidade da observação da produção de ciência nos antigos centros europeus e
também nas antigas possessões coloniais africanas, americanas e asiáticas.“A cultura
especialista” produz conhecimentos levando em consideração os vários agentes
envolvidos nesse processo, o espaço da inteligência intercultural ou “zona de contato”, o
processo ativo de recepção, reconfiguração e circulação de saberes e habilidades (RAJ,
2007:4-14).
A partir da abordagem acima descrita, percebe-se que o Físico-mor da 1ª Escola
Médica de Angola em 1791, José Pinto de Azeredo, usava conhecimentos médicos
oriundos de sua formação universitária europeia, reelaborando-os com os conhecimentos
africanos locais, fazendo-os circular, produzindo conhecimento novo que chegou até o
Brasil, nas mãos de Sigaud, médico da corte do Rio de Janeiro na primeira metade do
século XIX. Segundo Sigaud:

Os práticos da Bahia constataram a eficácia médica do arsênico no tratamento


das febres intermitentes. O doutor Persiani, que exerceu vários anos nesta
cidade, o empregou com sucesso tanto nas pirexias periódicas quanto nas
afecções nervosas do peito. Este agente terapêutico, de que o senhor Boudin,
médico dos hospitais da Argélia, mostrou apoderosa eficácia medica, tinha
sido empregado noBrasil por vários práticos recomendáveis, já a cerca demeio
século.O doutor Azeredo Pinto [...] introduziu no Brasil o seu métodocurativo,
que tinha experimentado com sucesso em São Paulo de Luanda (SIGAUD,
1844:187).

Nas áreas de crioulização, como a região entre Luanda e Benguela, onde é possível
encontrar a 1ª Escola Médica de Angola de 1791. A dimensão Atlântica e sociocultural
de Angola foi influenciada pelo tráfico Atlântico, pois foi a região que mais enviava
escravos para América. Ela foi controlada por um grande número de negociantes do
Brasil, Luanda e Benguela. Nessa região, estavam presentes elementos da cultura crioula,
oriundos de laços familiares, educacionais e religiosos. Esses elementos da cultura crioula
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1126
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

reforçavam códigos culturais, que funcionaram em várias regiões do Brasil como o Rio
de Janeiro, a Bahia e Pernambuco, e na África Centro-Ocidental como Luanda, Benguela,
Mbaka e Kakonda (FERREIRA, 2016:41). As relações comerciais entre Brasil e Angola
poderiam ser identificadas por meio de licenças e viagens, o que gerava muitos
deslocamentos de mercadorias, informações e pessoas, principalmente no auge do tráfico
de escravos. Sendo assim, ao final do século XVIII era possível encontrar negros, livres
ou não, atuando como sangradores, dentro e fora dos navios, e as curas que esses práticos
disponibilizavam eram semelhantes as curas disponibilizadas pelos físicos. Além disso,
os sangradores atuavam com público das diversas classes sociais. Os sangradores negros
forros ou de ganho, alémde ganhar a vida nas ruas, praças ou em uma loja, poderiam
acumular algum pecúlio,exercendo a sua atividade em navios,principalmente em
negreiros (PIMENTA, 1998: 361). O conhecimento de cura desses africanos era
valorizado por mercadores de escravos, que davam preferência em constar em suas
embarcações, negros oriundos da África-Centro Ocidental, visto que os cativos dos
negreiros rejeitavam a cura do físico-mor e davam preferência à cura dos africanos
sangradores, diante de uma proximidade de complexo cultural, uso da língua Bantu e
visões cosmológicas (RODRIGUES, 2005: 278 e 279).
Assim como o conhecimento de cura africano era valorizado no comércio
Atlântico-sul de escravos, os Impérios Ultramarinos do final do século XVIII também
observaram utilidade nos conhecimentos locais dos territórios do ultramar, por meiode
outros agentes sociais como físicos-mores,sobretudo em regiões africanas.Isto é possível
de se observar na atuação de “homens de letra” à serviço do Estado como o José Pinto
de Azeredo, por parte do Império Ultramarino Português, e o Mungo Park, por parte do
Império Ultramarino Inglês. Ambos destacaram os conhecimentos africanos de cura,
prospectando informações úteis para seus impérios, em regiões africanas ao final do
século XVIII. Propõe-se aqui,um breve paralelo ente Azeredo e Park, afim de ilustrar que
a atuação de José Pinto de Azeredo não era uma atitude isolada, mas sim um
procedimento que fazia parte de um contexto em que o Império Português se convertia
ao modelo hegemônico franco-Inglês, onde as práticas científicas faziam parte da rotina
administrativa.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1127
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O paralelo entre Azeredo e Park, pode ser percebido a partir do ponto de vista em
que ambos estariam alimentando a rede de informações de seus respectivos impérios.Vale
ressaltar que o médico escocês Mungo Park havia chegado à África Subsaariana em 1795e
pretendia percorrer o rio Níger e visitar Tombuctu, mas não concluiu seus objetivos diante
dos obstáculos da doença e fome. Mas como era um médico, fruto de seu tempo,
influenciados pelo naturalismo, utilizando-se da “surviveliterature” e também
conhecendo a língua mandinga,escreveu cientificamente e de maneira entusiástica,
destacando as potencialidades africanas, fazendo-as circular. Em seus escritos, Park
identificou a baixa incidência de doenças entre os africanos, registrando as terapias locais
para as febres, os usos de emplastos, vaporização e pós de casca de árvores. O médico
exaltou as práticas de cura africanas, observando fraturas, abcessos, deslocamentos,
colocando-as como mais abertas e igualitárias (VIANA, 2011: 33, 40, 43, e 44). Azeredo
e Park, ambos esbarraram-se com o obstáculo das doenças ao explorar o território. Ao
penetrarem nos sertões africanos esses dois médicos destacaram as potencialidades dos
nativos locais, enfatizando saberes africanos de saúde, que poderiam ser úteis às redes de
conhecimentos de seus respectivos impérios.
Esse interesse pelo conhecimento médico fazia parte dos objetivos da rede de
conhecimentos elaborada pelos Estados Nacionais na conjuntura abordada. Com a
renovação científica iluminista, que proporcionaram reformas na universidade de
Coimbra e nos outros impérios ultramarinos no final do século XVIII, foi possível a
criação de órgãos e instituições como colégios, academias militares, escolas médicas, o
envio de profissionais conectados à história natural e técnicos para viagens científicas
para o Brasil, Ásia e África. Esses funcionários do ultramar iriam articular o projeto
integrado de colonização e ordenamento territorial, prospectando informações científicas
de caráter prático como aclimatação de plantas, cultura de novas espécies, racionalização
da agricultura, mineralogia e também informações médicas.(DOMINGUES, 2001: 825-
827). Dessa maneira, nosso objeto o Físico-mor José Pinto de Azeredo e o viajante
Joaquim José da Silva atuaram prospectando informações botânicas médicas,
contribuindo para alimentar a citada rede deconhecimentos.E defende-se que a referida
1ª Escola Médica de Luanda de 1791, faria parte dessa rede de conhecimentos do Império
Ultramarino Português.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1128
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Mesmo com o encerramento da 1ª Escola Médica de Angola, o Físico-mor de


Angola, José Pinto de Azeredo, manteve a mesma iniciativa de valorizar os
conhecimentos locais de cura, que desenvolvera antes e durante a vigência da referida
Escola Médica. Com essa atitude era perceptível que ele ainda contribuía para a rede
deinformações do Império Ultramarino Português, reelaborando e dando novos usos para
saberes africanos de cura, circulantes na região Congo-Angola. Conforme os seus “Textos
de química e botânica” de 1801:

Calumba é um gênero desconhecido a sua raiz e um fortíssimo amargo. Tem


tido pouco uso mas ela promete ser um fortíssimo tônico próprio para as febres
intermitentes. Dela tenho usado nas mesmas febres suprindo a quina com bom
sucesso, por isso merece ser mais posta em prática. (AZEREDO, 1801: 16
verso).

Joaquim José da Silva, viajante e explorador em 1797, assim como Azeredo a


serviço do Império Ultramarino Português, destacava plantas da faixa Luanda-Benguela
e seu caráter medicinal.

... com sementes de uma espécie de melissa, trazidas a poucos anos do interior
deste sertão. Cheira perfeitamente e sabe ao cravo da índia, o que eu entendo
assim,das folhas com as suas espigas porem uma tintura leve extraída da
mesma, com aguardente,muito ordinária [...]Água de Melissa [...] com
sementes de uma espécie de cássia, vulgarmente mubôlo. As suas flores e
renovo das folhas, mastigadas excitam o cheiro de rosas, emais exatamente do
jambo. Neste sertão com usos médicos, edeveterasvirtudes dos a adstringentes
aromáticos: e particularmente serve, (além de outras plantas) aocurativo de
uma espécie defebre endêmica do país... (SILVA, 1797:f15verso)

Considerações finais
Desde de oséculo XVI, já existia o interesse por partedo Império
UltramarinoPortuguês por plantas medicinais na região da África Centro-ocidental.Tal
interesse corroborou com oprojeto político do final do século XVIIII e princípios do
XIX,onde aciência fazia parte dapráticaadministrativa e osagentesconectados aos
impérios ultramarinos eram enviados para possessões além-mar, afim de prospectar
conhecimentos de diversas áreas, inclusive médico, alimentando uma rede de
conhecimentos. Esses novos saberes iriam possibilitar o melhor domínio das possessões
territoriais. Essa rede eracomposta por instituições, que cooptavam as informações e
faziam-nas circular pelas rotas de comércio escravista e de sociabilidades. Defende-se
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1129
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que a 1ª Escola Médica de Luanda em 1791, da qualatou José Pinto de Azeredo, teria feito
partedessarede. Nessaescola possivelmente circularamconhecimentos africanos
reelaborados, que viajaram para Portugal eoutras extremidades do ImpérioUltramarino
Português. JoaquimJosé daSilva, um viajante, que no momento do funcionamento da
escola, prospectouplantas esaberesquepossivelmente teriam feitoparte do cotidiano do
físico-mor e professor dadita escola, José Pinto de Azeredo. Azeredo, e outros agentes
históricos ligados a cura, valorizou o conhecimentolocal da faixa Congo-Angola da
África Centro-Ocidental e o fez circular, produzindo ciência na África sob o olhar daNova
História das Ciências Global e Transcontinental.

Referências

Fontes primárias.
AZEREDO, José Pinto de. Ensaios sobre algumas enfermidades D’Angola. Lisboa:
RégiaOficina de Tipografia. 1799. Biblioteca Nacional (RJ).
AZEREDO, José Pinto de. Textos de química e botânica, [ c a.1801]. Códice 8484.
Disponível em: < http://purl.pt/index/geral/aut/pt/152878.html>. Acessado em 4
ago.2016.
SIGAUD, J.F.X. Do clima e das doenças do Brasil ou estatística medica deste império
1844;Tradução de Renato Aguiar. Coleção História e Saúde; clássicos e fontes. Rio
deJaneiro: Editora Fiocruz, 2009.
SILVA, Joaquim José da. Notícias do presídio de Ambaca. Luanda, 1797. Coleção IHGB
(RJ) DL 32,04.

Fontes Secundárias.
ABREU, Jean Luís Neves. O saber médico e as experiências coloniais nos Ensaios sobre
algumas enfermidades de Angola. In: OLIVEIRA, Antônio Braz de et al. (org.). Ensaios
sobre algumas enfermidades de Angola. Lisboa, Portugal: Edições Colibri, 2013. pp. 188-
211.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1130
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CHALHOUB, Sidney. “Varíola, vacina e vacinofobia”. In: __________________.


Cidadefebril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras,
1996. pp. 136 e 137.
DOMINGUES, Ângela. Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a
constituição de redes de informação no império português em finais dos setecentos.
História, Ciências, Saúde- Manguinhos, Rio de Janeiro, v.8, Supl. 2001. pp. 823-838.
FAGUNDES, Fernanda Ribeiro Rocha. Boticas. “A arte da cura em finais do
séculoXVIII e princípios do século XIX”.In:________________. Boticas, funcionários
do ultramar e intermediários do tráfico aserviçoda cura: América portuguesa e Angola
(séculos XVIII/ XIX). Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, Programa de Pós
Graduação de História das Ciências e Saúde/ COC/FIOCRUZ, 2016.pp. 25-67.
FAN, Fa-ti. The global turn in the History of science. East Asian Science, technology and
society: An international Journal, February, 2012, 6: 249-258.
FERREIRA, Roquinaldo. Biografia, mobilidade e cultura atlântica: a micro-escala do
tráfico de escravos em Benguela, séculos XVIII e XIX. Tempo UFF, Jan 2016, vol.10,
n.20, pp.23-49.
KANANOJA, Kalle. Bioprospecting and European uses of African natural medicine in
early modern Angola. Portuguese Studies Review and Baywolf Press, University of
Helsinki, 23 (2) 2015, pp. 1-25.
KURY, Lorelai. Homens de ciência no Brasil: impérios coloniais e circulação de
informação (1780-1810). História, Ciências, Saúde - Maguinhos, Rio de Janeiro, v.11,
supl.1; 2004. pp.109-129.
OLIVEIRA, Antônio Braz de. “Do Rio a Lisboa, passando a Luanda: achegas para uma
bibliografia de José Pinto de Azeredo”. In: OLIVEIRA, Antônio Braz de et al. (org.).
Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola. Lisboa, Portugal: Edições Colibri, 2013.
pp. 153-187.
PIMENTA, Tânia Salgado. Barbeiros, sangradores e curandeiros no Brasil (1808-
1828).História, Ciências, Saúde- Manguinhos, Rio de Janeiro, v.5, n.2, jul- out.1998 pp.
349-372.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1131
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

PATACA, E.M. A confecção de desenhos de peixes oceânicos das viagens filosóficas


(1783) ao Pará e a Angola. História das Ciências e Saúde- Manguinhos, v.10(3) set-dez,
2003, 979-991.
RAJ, Kapil. Introduction. In: RAJ, Kapil. Relocating modern science: circulation and
construction of knowledge in South Ásia and Europe, 1650-1900, London:
PalgraveMacmillan, 2007, pp. 1-26.
RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas. São Paulo: Alameda, 2008.
RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos marinheiros e intermediários do tráfico
negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das
Letras,2005.
SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. “A varíola no Brasil do século XIX”. In: FRANCO,
Sebastião et al. (orgs.). Uma história brasileira das doenças: volume 4. Belo Horizonte,
MG: Fino Traço, 2013. pp.51- 68.
VIANA, Larissa. Os trópicos na rota do Império britânico: a visão de Mungo Park sobre a África
em fins do século XVIII. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.1, jan.-
mar. 2011, p.33-50.
WATTS, Sheldon. “Yellow Fever, malaria and development: Atlantic Africa and the New World,
1647 to 1928”, Epidemics and history. Disease, power and imperialism. New Haven/London,
Yale University Press, 1999.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1132
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As políticas públicas de saúde no Brasil: o saber higienista e a loucura feminina


(1930-1945)

FERNANDA SILVA DE FREITAS


Mestrado Acadêmico - Programa de Pós Graduação em História das Ciências e da
Saúde - Casa de Oswaldo Cruz/ FIOCRUZ RJ
Apoio Financeiro: Fundação Oswaldo Cruz

O universo de uma política pública se estabelece por um conjunto de trajetórias


políticas e sociais que permeou as relações Estado versus Nação. Por de trás de um
modelo político se institui um modelo teórico como um suporte necessário para o
exercício de um poder técnico científico, que justificasse seu oponente exercício de poder
e sua polarização hierárquica social. Falar do processo cientificista no Brasil é evocar a
herança do positivismo que permeou o poder do discurso da ciência médica, na qual a
partir do XX, o Estado legitimou seu exercício de poder através do fomento científico e
o processo de formação do Estado nacional Brasileiro. (SCHWARTCZ, 1993, p.189-238)
Neste contexto, o presente artigo pretende analisar um conjunto de políticas
públicas de saúde, bem como o saber higienista, inerentes à saúde mental feminina no
primeiro governo Vargas. Resgatando a percepção da figura da mulher como principal
foco do projeto de Estado Nação em meio ao Estado Novo, entre 1930-1945, e os
discursos das esferas médicas que se recaiam sobre o corpo feminino e a construção de
sua sexualidade. O recorte temporal foi escolhido por se apresentar como um período de
maior repressão aos ditos “desviantes da ordem social”. Neste período observamos uma
forte interferência do poder do Estado na atuação na vida do indivíduo, por meio de ações
no campo educativo, de caráter segregacionista e repressor.
Para Foucault, os séculos XIX e XX inauguraram um nascimento de uma
intelectualidade técnico científico, que procediam ao um exercício de um poder
vinculados ás esferas da lei. Da mesma forma, se faz necessário uma aproximação de uma
intelectualidade, não para se sobrepor a lei, mas para favorecer em seu de prestígio e
poder. Logo, essa intelectualidade orgânica estabelecerá um poder de carisma capaz de
estabelecer sua ideologia política social. (FOUCAULT, 2003, p.7-14).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1133
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A condução do poder político emanado pelo Estado se constituiu numa forma


coercitiva conduzidas principalmente no que se refere ao elemento corporal. Contudo, o
processo de recursos disciplinares foi se aperfeiçoando ideologicamente pelos aparatos
de juristas e, sobretudo pelos médicos. Os mecanismos de controle e a adoção de
penalidades jurídicas corporais tornaram-se “máquina de poder” que propiciaram o
esquadrilhamento e o ordenamento de corpos dominados e submetidos, se apresentando
através de corpos dóceis. (FOUCAULT, 2013, p.131-162)
A abordagem temática nasceu em meio as minhas experiências durante dois anos
como estagiária do Centro Cultural da Saúde no Instituto Municipal Nise da Silveira485,
onde em meio a um acervo de prontuários médicos do Antigo Hospital de Alienados,
Hospício de Pedro II e do Centro Psiquiátrico Nacional, comecei a lidar tanto com os
prontuários médicos do século XIX como do século XX. Ao longo desses dois anos em
contato direto com os prontuários médicos, pude fazer a descrição documental,
higienização e organização dos mesmos. Percebi que a designação da loucura podia ser
identificada por um olhar médico que qualificava a loucura como fruto de campos
patogênicos contrários as designações de padrões raciais, sociais e políticos vigentes.486
Dessa forma, pretendemos através de uma análise quantitativa e qualitativas dos
prontuários do Hospital Nacional de Alienados, percebendo as relações entre loucura
feminina e as singularidades da feminilidade perante o discurso médico. A partir da
análise temática exposta pretendemos como proposta metodológica abordar as questões

485
Nise da Silveira é um dos nomes que fortemente revolucionou a história da psiquiatria, intitulada “A
psiquiátrica rebelde” como ela mesma se auto designava, quebrou paradigmas numa época em que campo
médico científico era dominado pelo mundo masculino. A partir de seu trabalho foi possível a criação do
Museu de Imagens do Inconsciente, fundado em 20 de maio de 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente,
emergia a partir de uma proposta inovadora, resguardar a arte do inconsciente e a construção de seus
processos psicóticos. O processo de construção do Museu de Imagens do Inconsciente se constitui através
do processo terapêutico ocupacional criado pelo trabalho de Nise da Silveira, a partir de 1946 no Centro
Psiquiátrico Nacional. A proposta terapêutica de Nise da Silveira era buscar através da terapêutica
ocupacional, a humanização no tratamento dos doentes mentais, numa época em que a psiquiatria se
utilizava de métodos de extrema violência contra os ditos “loucos” , seja através de lobotomias , choques,
insulinoterapias e dentre outros, se estabeleceu em meio à luta de Nise da Silveira contra os discursos de
uma medicina que visava uma forma de tratamento extremamente desumano, não legando nenhum tipo de
sensibilidade ao tratamento dos pacientes.
486
O princípio da eugenia pode ser classificado como um aparato atrelado a um conjunto de medidas de
profilaxia mental, onde o advento da prevenção acerca da degeneração se estendia a sociedade como um
todo. A partir do ideal eugênico o principal elemento garantidor de um saúde mental se relacionava com a
ideologia da raça ideal, ou seja, combatendo o fantasma da miscigenação das raças que tanto assolava a
sociedade brasileira recém saída dos laços escravistas.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1134
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

do discurso do saber médico higienista e a incorporação desse discurso na esfera do


estado, através do modelo de políticas públicas de saúde mental. Pretendemos trabalhar
com a construção do conceito de feminilidade, a interferência da sexualidade e a loucura
feminina na Primeira República (1930-1945). Estaremos percorrendo todo o trajeto
político e social que permearam estes conceitos. Nesta perspectiva, o jogo de análise de
discurso estabelecerá a percepção não apenas do sentido da linguística, antes, uma
desmistificação de uma ideologia, controle discursivo e o resgate de construção de uma
realidade histórico social.
Analisar e percorrer os caminhos e percepções sobre a loucura feminina é resgatar
a condição de imposição e subordinação dos espaços femininos em meio aos discursos
médicos e a forte intervenção de um a política de Estado voltados para as mesmas. Na
visão de Joan Scott (SCOTT, 1992, p.64-95) acerca do resgate histórico sobre as mulheres
se justificam para além do campo teórico puramente político, mas ao desdobramento das
relações de poder como uma categoria de abordagem para uma análise histórica das
relações sociais, assim como o complexo concernente a uma identidade individual e
coletiva (SCOTT, 1992, p.61-95). Neste contexto, os adventos da classificação da
“loucura” foram imbuídos por um aparelhamento de poder normativo, aliados a um
modelo de comportamento voltados para o mundo do trabalho, disciplinando corpos e
mentes. O elo analítico de cada diagnóstico psiquiátrico, representam muito mais do que
uma pura e simples nosografia. Diante de cada anamnese, sobressaem as singularidades
de cada indivíduo e suas representações no campo social. Contudo, se torna mais latente
a realização de estudos referentes à loucura e o esquadrilhamento da figura feminina pela
ciência para se compreender os estigmas da loucura e as barreiras da feminilidade. Na
visão da ciência sobre a mulher, então, esta foi concebida como uma expressão de
fragilidade, de desconfiança sobre a concepção do corpo feminino e pautada por suas
instabilidades hormonais e psíquicas, levando-as a uma propensão maior à loucura487.

487
Apesar da existência de relevantes trabalhos, como os de Yonissa Mamitt Wadi e de Magali Engel,
abordando justamente a questão da loucura feminina, ainda há muito a ser explorado nos arquivos médicos
psiquiátricos. Ocorrendo, portanto, uma grande lacuna entre a construção da feminilidade e os aspectos da
loucura no período Vargas e suas políticas materno infantis. Lembrando, que a história da psiquiatria como
campo de análise da História social ser relativamente recente, bem como a utilização de acervos
psiquiátricos para pesquisa.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1135
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A estrutura analítica da categoria de gênero deve ser percebida e analisada muito


mais que uma simples síntese das relações de papéis sociais, antes devem ser
compreendidas e analisadas pelas relações de poder, visando assim às estruturas políticas
inerentes que possibilitaram o forjamento dos papéis sociais de homens e mulheres em
políticas e normativas sociais coercitivas. Logo, a apresentação do gênero como categoria
analítica do processo histórico, ultrapassará as barreias da diferenciação do gênero
masculino e feminino. Desta forma, as configurações das relações de poder
transcenderam a uma identidade do sujeito social e suas categorias de classe, raça, etnias
e toda sua subjetividade.
Segundo Magali Engel (ENGEL, 1998, p.543-563) a loucura no Brasil foi atrelada
às “inversões” das normas sociais estabelecidas. Destaca ainda que as ideias de loucura,
reclusão e civilização andaram juntas na medida em que a loucura determinava o contra-
senso do ideal de uma sociedade. Tais percepções eram presentes pelas relações de uma
loucura designada através de uma recusa ao trabalho, demonstrando um elemento inativo
social, mais frequentemente como um elemento perturbador da moral social. Havia a
vinculação da loucura a partir da raça, sendo definida considerada a raça negra a mais
propensa à degeneração mental, pois segundo algumas teorias científicas as pessoas da
raça negra tinham um tamanho do cérebro menor e inferior ao da raça branca, deixando-
os mais vulneráveis à loucura. Outros dois elementos de designação do enquadramento
de loucura eram estabelecidos pelos elementos do “fanatismo” religioso/político e da
sexualidade. Principalmente o que concerne ao campo da sexualidade, onde
constantemente enquadravam-se as mulheres.
De acordo Jurandir Freire Costa, o formato ideológico da psiquiatria brasileira foi
moldado a partir de um modelo “autoritário”, na medida em que buscava justificar os
fatores da indisciplina do indivíduo a um embasamento científico, possibilitando a
segregação dos desordeiros que impediam o bom ordenamento social. A partir de 1923
com a criação da Liga Brasileira de Higiene Mental, os alicerces desta ideologia de caráter
higienista se agregou a ideia da eugenia, o que propiciou um forte controle social por
parte do discurso alienista. Para o autor, o arcabouço teórico da psiquiatria em seus
primórdios advinha de um conhecimento de pouca base científica, tendo ganhado mais
reconhecimento jurídico. Assim, as bases conceituais se estabeleceriam em formulações
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1136
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

e preceitos oriundos de problemas advindos dos meios culturais. Entretanto, o aparato


conceitual psiquiátrico se pautaria na denominação de causa e efeito em agentes
biológicos, atreladas a um emaranhado de concepções distorcidas, na qual agregavam a
si a um cunho não científico. Um exemplo deste complexo de ideologias, biológicas,
culturais e morais era a Liga Brasileira de Higiene Mental. (COSTA, 2006, p.19-67)
A partir da perspectiva do ideal eugênico, é que se passará a demarcar o papel
social da mulher e a construção de sua feminilidade. Neste sentido, o saber médico, assim
como o próprio Estado, adotou uma forte intervenção sobre o caráter feminino, já que se
identificava a importância da mulher na construção e formação da nação, destacando-se
por sua base ideológica do seio familiar e consequentemente da nação (COUTO, 1997,
p.7-37). Contudo, a visão feminina se atribuiria a um caráter de cientificidade eugênica,
onde as condições morais e sociais seriam mediadas pelos discursos médicos. É
justamente a partir da década de 30 que vai se reforçar os papéis sociais, principalmente
o da mulher.
Podemos observar que o discurso médico, se recairia como um campo de
higienização do corpo social. O caráter científico se relacionaria fortemente na vida
cotidiana e suas relações sociais, onde as relações entre os gêneros serão intermediadas
pela ação de controle social. Se a identificação do papel do homem se apresentava como
um papel de provedor e trabalhador, o papel da mulher se definiria sobre a terna figura de
mães e esposas. Logo, a questão feminina se sobressairia, já que o papel da mulher se
tornaria o principal veículo de intervenção do Estado na estruturação da família. Podemos
nos remeter a seguinte questão: De que maneira a construção da feminilidade foi pautada
e delineada pelo saber médico higienista, sobe a perspectiva do controle social no Estado
Varguista?
É justamente no período que vai de 1930 -1945, com o emprego da política de
bem- estar social, que a política de Vargas será mais fortemente direcionada à figura da
mulher e do trabalhador. Segundo Angela de Castro Gomes, política de Vargas se
destacará por empreender diversas medidas no campo de uma política social. Para a
autora, a legitimação se difere por uma mudança nas formas de governar, já que a política
da esfera social serviria como elemento fundamental para política de Estado, amparando
ações concernentes ao mundo do trabalho. Dessa forma, a base de sustentação ideológica
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1137
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

do Estado se pautaria em medidas assistencialista e de proteção ao proletariado. Contudo,


a demarcação do processo de construção de identidade apreendida pelo Estado
incorporaria a imagem do trabalho como ápice de vanglória de uma nação. (GOMES,
2005, p.10-31)
A implementação do Ministério da Educação e Saúde, assim como o Ministério
da Indústria e do Comércio, eram fortalecidos por uma arregimentação de uma
administração e centralização política nacional. A essas estruturas serviriam como bases
ideológicas para uma política de bem-estar social. Na análise de Cristina Oliveira
(FONSECA, 2007, p.9-51), o processo de governabilidade durante o Estado Novo se
apresentou por um período de forte instabilidade política, onde se fazia necessário uma
mudança de novas estruturas no modelo de gestão pública para o enfrentamento das
instabilidades políticas e sociais.
Em meio à apresentação deste quadro político, a nova configuração da política
buscou o reajuste de novas de governabilidades, promovendo a configuração de um novo
quadro institucional através de uma promoção de políticas públicas sociais. Essas
políticas públicas se estabeleceriam como um meio ideológico que circunscreveriam e se
ampliariam por ideias de cunho centralizadoras e autoritárias. Logo, as políticas sociais
foram sendo estabelecidas por uma atuação do poder público por todo Estado nacional
como ferramenta para manter a unidade territorial nacional, diante das rivalidades
federalistas. Nesta ótica de análise, a construção do modelo político foi estabelecida e
orientada por medidas de bem-estar social. A este cenário a autora afirma que a
institucionalização da saúde pública é vista como um modelo de centralização e
fortalecimento do Estado que possibilitou a construção de uma cidadania intermediada
por um processo de lutas e ordem políticas sociais, ou seja, uma “cidadania tutelada” por
um elo estatal. (FONSECA, 2007, p.39)
A implantação do Estado Novo propiciou a centralização de políticas públicas
integrando o aparato da psiquiatria às políticas higienistas como política de saúde pública.
A implantação do Estado varguista possibilitou uma estratégia ideológica para a
construção do progresso e civilidade de nação. É justamente a partir de 1934 que as
vertentes da psiquiatria brasileira oriundas por ajustamentos de tendências trazidas no
percurso da psiquiatria às políticas públicas de saúde, introduzidas no governo de Getúlio
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1138
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Vargas. A partir da década de 30, houve todo um remodelamento da ordem social, o que
foi sentida por uma forte repressão do Estado na sociedade. É justamente a partir da
década de 30, que o eugenismo cairá numa fase de maior radicalismo, onde se expressou
mais nitidamente por um ideal de reclusão dos disgênicos ao projeto sanitário, “sanear é
eugezinar” (FABRICIO, 2009, p.26).

Considerações Finais:

Entretanto, é a partir desta intelectualidade científica eugênica que o Estado Novo


se apropriou para redefinir novos mecanismos de poder, impondo sua repressão nas
esferas sociais de um caráter ditador e repressor político. Configurando a sacralização
única do Estado a construção dos ideais de nação, esse legado dará aos instrumentos de
alta autoridade e poder. Ao mesmo tempo em que o temperamento da mulher, se tornaria
para a ciência como elemento de insanidade, já que sofria de fraqueza dos temperamentos
ou que acionava a eminência histérica da mulher. A medicina classificava, o estereótipo
da mulher como degenerada ou histérica, caso a mesma não fosse cumpridora dos anseios
sociais estabelecidos pelo viés da eugenia. Assim podemos perceber que o ser feminino,
recairia numa intermediação entre o discurso médico e a imposição do Estado.
As medidas higienistas passavam a reorientar as esferas da vida social,
valorizando as relações no seio familiar, sendo o vetor da família um elo de intervenção
direta do controle social. Assim, as relações entre homem e mulher seriam fruto de uma
forte vigilância, assim como a importância da mulher no seio familiar. Portanto, a
estruturação da família serviria como elemento direto de controle social. Assim, a
condição feminina passou a ser subordinada aos anseios sociais estabelecidos por sua
atuação no lar e no exercício da maternidade. Entretanto, não apenas o caráter feminino
como também o masculino, se tornariam agentes de imposição de políticas científicas,
empregando as políticas de controle social, reafirmando cientificamente a função de
esposa mãe e de pai trabalhador e provedor do lar. Dentre essas relações, destaca-se a
figura feminina como elo direto das intervenções do projeto higienista, á elencando como
guardiã da família e protetora da infância, sendo responsável pela contenção da
mortalidade infantil.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1139
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Referências Bibliográficas

CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas: O imaginário da República no


Brasil. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1990.
COSTA, Jurandir Freira. História da psiquiatria no Brasil: Um Corte Ideológico. 5ª ed.
Rio de Janeiro: Ed. Garamond, 2007.
COUTO, Rita Cristina C. de Medeiros. Eugenia, Loucura e Condição Feminina. Cad.
Pesq, SP, Ago/1994. Disponível em:
<http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/cp/arquivos/882.pdf>. Acesso em:
06/04/2013.
CUNHA, Maria Clementina. Cidadelas da Ordem: A Doença Mental na República. São
Paulo: Ed. Brasiliense, 1990.
ENGEL, Magali. As barreiras da ‘Anormalidade’: Psiquiatria e controle social. Hist.
cienc. saude-Manguinhos, vol. 5, no. 3, Rio de Janeiro, Nov. 1998/Feb. 1999. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0104-
59701999000100001&script=sci_arttext>. Acesso em: 05/04/2013.
FABRICIO, André Luiz da Conceição. A assistência Psiquiátrica no Contexto das
Políticas Públicas de Saúde (1930-1945) Dissertação de Mestrado em História das
Ciências e da Saúde. Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz, Rio de Janeiro, 2009.
FONSECA, Cristina M. Oliveira. Saúde no Governo Vargas (1930-1945): dualidade
Institucional de um bem público. Tese de doutorado de Ciências Políticas na IUPERJ.
Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2007.
FOUCAULT, Michel. A casa dos Loucos. In: FOUCAULT, Michel. In: Microfísica do
poder Rio de Janeiro. 16ª ed. São Paulo: Ed. Graal, 2001.
_______. Vigiar e Punir.Ed.Vozes, 41ªed, RJ, 2013.
GOMES, Angela de Castro. A Invenção do Trabalhismo.5ªed, Ed.FGV, Rj,2013.
NUNES, Silvia Alexim. A Medicina Social e A Questão feminina. In: NUNES, Silvia
Alexim. Medicina social e regulação do corpo feminino. 1983. Tese (Doutorado) -
Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1140
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

1983, Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/physis/v1n1/03.pdf >. Acesso em:


05/04/2016.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças Cientistas, Instituições e Questões
Raciais no Brasil 1870-1930. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1993.
SCOTT, Joan. História das Mulheres In :BURKE, Peter. (Org.). A escrita da História:
Nova Perspectivas Ed. Unesp, SP, 1992. p.64 -95.
TARSO, Vera Nathália Silva. Corpos instáveis, Mentes insanas: A Mulher e a medicina
mental nas teses da Faculdade de Medicina Mental na Bahia (Salvador, 1900-1920).
Disponível em:
<http://www.historiahistoria.com.br/materia.cfm?tb=professores&id=69>. Acesso em:
05/04/2016.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1141
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Um olhar sobre a história da saúde internacional no Brasil: as ações do ministério


da saúde na segunda metade do século XX

FERNANDO MOREIRA DE SÁ BRITO


PPGHCS-COC/FIOCRUZ. CAPES/MEC

Este projeto, ainda em andamento e fase de delimitação teórica-metodológica,


surge de reflexões sobre o processo de institucionalização das questões internacionais em
saúde pelo Ministério da Saúde (MS) com o enfoque para a segunda metade do século
XX. Como exemplo, a criação da Coordenadoria de Assuntos Internacionais de Saúde
(CAIS), no âmbito do MS na década de 1960, responsável por temas internacionais de
interesse da instituição e cuja estrutura (apesar das mudanças de nomenclatura e funções)
existe até os dias atuais, evidencia um processo histórico de aproximação da relação entre
saúde e questões internacionais por parte do governo brasileiro.
É interessante e instigante pensar que mesmo em um contexto de mudanças
políticas e econômicas no cenário nacional, o Brasil criaria uma estrutura organizacional
voltada para questões internacionais de saúde. Vislumbra-se que a compreensão das ações
desenvolvidas por esta estrutura pode contribuir para o debate da Saúde Internacional.
Diante de tais reflexões, a proposta central deste projeto é analisar a atuação do
Ministério da Saúde no âmbito das ações da estrutura organizacional voltada para os
assuntos internacionais em saúde durante a segunda metade do século XX e as possíveis
repercussões desta atuação nos cenários nacional/internacional.
Este trabalho foi divido em duas partes: na primeira parte serão abordados os
conceitos de Saúde Internacional, Saúde Global e Cooperação Técnica, entendidos como
importantes para o embasamento teórico do estudo; e na segunda parte serão apresentadas
algumas informações sobre a estrutura organizacional dentro do Ministério da Saúde
responsável pela coordenação das ações de caráter internacional em saúde.

Saúde Internacional, Saúde Global e Cooperação Técnica:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1142
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No século XIX e início do século XX, as ocorrências de pandemias (ex.: cólera,


febre amarela e peste bubônica) influenciaram as ações coordenadas entre diferentes
governos nacionais. Tal fato tem como exemplo a organização de conferências
internacionais envolvendo em grande parte países europeus e posteriormente os Estados
Unidos. Entre 1851 e 1913 foram realizadas 11 conferências que tinham como objetivos
a instituição de normas de quarentena e uniformização de medidas de isolamento de
passageiros suspeitos de cólera em portos (CUETO, 2015). Neste âmbito, a Saúde
Internacional tinha como foco o controle de epidemias que ultrapassassem as fronteiras
entre nações, concepção esta basilar deste conceito mas que sofreria algumas mudanças
ao longo do século XX (BROWN, FEE & CUETO, 2006).
Ao longo da primeira metade do século XX, foram criadas instituições de caráter
internacional que atuavam no âmbito da saúde pública e que estimularam a discussão de
ações no escopo da Saúde Internacional. Podem ser citadas como exemplo o Escritório
Internacional de Higiene Pública (OIHP, do francês Office International d’Hygiene
Publique), que funcionou entre 1907 e 1946; a Organização de Saúde da Liga das Nações
(OSLN) criada em 1920; a Repartição Sanitária Pan-Americana (Pan-American Sanitary
Bureau ou “Pasb”) criada em 1902 (e renomeada Organização Pan-Americana de Saúde
em 1958); e a Fundação Rockefeller, criada em 1913, que pode ser considerada a primeira
organização filantrópica privada com foco na Saúde Internacional (CUETO, 2015).
Tal fato corrobora com o pensamento de Birn (2009), em que o período entre 1902
e 1939 foi marcado pelo estabelecimento de instituições supranacionais que
desempenharam um papel relevante no planejamento de ações no que tange aos
problemas de saúde considerados “mundiais” e no fornecimento de suporte cooperativo
em campanhas de saúde, influenciando na organização de agências nacionais de saúde
permanente nacionais.
Já a partir da segunda metade do século XX, o conceito de Saúde Internacional
ganhou projeção por conta da criação de organizações multilaterais (como a OMS) e as
ações de assistência de determinados países em um contexto de bipolarização mundial
com o fim da Segunda Guerra Mundial. Tal concepção pode ser exemplificada por meio
das ações de financiamento e assistência técnica prestadas por países como os Estados
Unidos e a União Soviética no período pós-segunda guerra a outros países como forma
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1143
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de fortalecer a influência geopolítica, ou as campanhas de erradicação de doenças


infecciosas promovidas pela OMS (HARRISON, 2015).
A criação da OMS é considerada por muitos autores um marco histórico no que
tange a Saúde Internacional, pois coloca em evidência uma instituição multilateral que
possui o reconhecimento de grande parte dos países e que possuía como algumas de suas
primeiras atribuições: a elaboração de um regulamento sanitário internacional; a
realização de campanhas de saúde voltadas para o combate e erradicação de doenças; e a
criação de um sistema de informação epidemiológico em escala global (FIDLER, 2001;
BROWN, FEE & CUETO, 2006; CUETO, 2015).
Para Gómez-Dantes e Babak Khoshnood (apud NIGRO e PEREZ, 2014), o
período entre 1946 e 1978 seria marcado não só pela criação da OMS, mas também pela
ampliação de funções e objetivos das agências internacionais de saúde que, apesar de
desenvolverem em grande parte ações ligadas aos programas verticais de saúde (ex.:
campanhas de controle e erradicação de doenças infecciosas), já mostravam novas
perspectivas de atuação, incluindo propostas de organização de serviços e sistemas de
saúde. Os autores (op.cit) ainda comentam que o período após 1978 é influenciado pela
Declaração de Alma-Ata, criando-se um conflito entre programas de saúde verticais e
uma atenção primária baseada na melhoria de estruturas sociais, políticas e econômicas.
A discussão feita até aqui pode ser ligada à compreensão de Birn (2009), ao dividir
o processo de construção do campo da saúde internacional em pelo menos 4 etapas: 1ª)
chamada de “reunião e saudação” que tem como ponto principal as onze conferências
internacionais de saúde realizadas entre 1851 e 1902; 2ª) de 1902 a 1939 com o
estabelecimento de instituições internacionais como a OSLN; 3ª) entre 1946 a 1970 com
a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1948, o aumento da qualificação
dos profissionais que trabalhavam com o tema, além da institucionalização das ações;
As décadas de 1970 e 1980 foram caracterizadas por crises econômicas e ajustes
macroeconômicos de caráter neoliberal que iriam influenciar até mesmo as formas de
cooperação entre os países (PIRES-ALVES, PAIVA & SANTANA, 2012). No caso da
saúde, instituições multilaterais como o Banco Mundial e a Unicef passariam a ganhar
expressão por meio de ações voltadas para o planejamento familiar/controle populacional
e desnutrição infantil, em meio às discussões sobre o papel da OMS sobre as ações de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1144
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

saúde em caráter supranacional e o surgimento de novas doenças, em especial a Síndrome


da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) (BROWN, FEE & CUETO, 2006).
De acordo com Fortes e Ribeiro (2014), nas últimas décadas do século XX ocorreu
uma transição da concepção de Saúde Internacional para a Saúde Global. Novas questões
de caráter global surgiram como o aquecimento global, a deterioração da qualidade do ar,
avanços tecnológicos, intensificação das migrações e comércio internacional, o que
contribuiu para uma mudança de olhar sobre as questões de saúde e para o entendimento
de que novas formas de atuação e articulação entre os diferentes organismos
internacionais, ONG’s, países e indivíduos devem ser buscadas a fim de se garantir
melhorias nas condições de vida e de saúde das populações (FRANCO-GIRALDO &
ALVAREZ-DARDET, 2009).
A Saúde Global pode ser entendida como um campo científico que comporta
limites indefinidos em relação a uma diversidade de assuntos que vão de acordos
internacionais em prol de assistência a países em situação de risco e pobreza, até a ações
que busquem acesso e melhorias da saúde para todas as populações do mundo (FORTES;
RIBEIRO, 2014). Contudo, é passível de serem levantadas algumas características
distintas da Saúde Global em relação a Saúde Internacional como: a preocupação com a
emergência de novas doenças epidêmicas; o papel ativo de pacientes, ONGs e de
instituições privadas em questões relacionadas a saúde e em escala global; o impacto das
descobertas tecnológicas e de drogas; a importância crescente das questões ambientais e
de direitos humanos; e a demanda por acesso gratuito a serviços de saúde, mesmo que em
outros países que não o de origem (CUETO, 2015).
Entende-se até aqui que o conceito de Saúde Internacional abarca diversos
momentos e perspectivas. Dentre as ideias principais transversais a estas perspectivas está
a relação entre países em caráter bilateral. Desta forma, com um enfoque voltado
principalmente para a segunda metade do século XX, influenciada pela criação e maior
atuação de instituições multilaterais e dos países nas questões atreladas à saúde, um outro
termo também ganha projeção: a cooperação técnica.
Com o intuito de auxiliar na compreensão do tema supracitado, cabe destacar que,
de acordo com Mazzaroppi (2016, p.3), anterior ao termo cooperação técnica, uma outra
expressão - assistência técnica - já havia sido utilizada, inclusive instituída pela Resolução
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1145
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

200/1948 da ONU, onde era “(...) entendida como transferência, em caráter não
comercial, de técnicas e conhecimento por meio da execução de projetos desenvolvidos
em conjunto entre atores de nível desigual de desenvolvimento – prestador e
recipiendário”. O autor (op.cit) ainda comenta que a ideia de assistência possuía
características de unilateralidade e verticalidade, enquanto o conceito de cooperação tinha
como noções a bilateralidade (ou multilateralidade) e a horizontalidade.
O contexto no qual estava inserida esta ideia de assistência e cooperação era o
período imediato ao fim da Segunda Guerra Mundial, onde dentre as principais estratégias
de assistência para a reconstrução da Europa estavam os empréstimos de dinheiro, a
cessão de técnicos, serviços e materiais em caráter de transferência entre Estados, sendo
a maior parte da oferta feita pelos Estados Unidos e pela União Soviética
(MAZZAROPPI, 2016).
Em 1959, por meio de uma Assembleia Geral da ONU, o termo assistência técnica
foi revisto, passando a se chamar então “cooperação técnica”, com um enfoque
reconhecendo a existência de partes desiguais, mas que poderiam se basear em uma
relação de trocas que levasse em conta os interesses de ambas as partes (BRASIL, s/d
(b)). Esta revisão iria ampliar a visão atrelada às relações horizontais e o surgimento
daquilo que seria chamado mais tarde de Cooperação Técnica entre Países em
Desenvolvimento (CTPD).
A importância da Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento foi
percebida e reconhecida principalmente na década de 1970 por meio de declarações e
resoluções divulgadas pela ONU, apesar de haver registros de acordos de CTPD nas
décadas de 1950 e 1960 desenvolvidos em países como Tailândia, Cingapura, Coréia e
Índia (AMADOR, 2001). Mesmo assim, a dinâmica entorno desta temática nos anos da
década de 1970 era tal que resultaria no Plano de Ação de Buenos Aires (PABA), de
1978, marco histórico de estímulo à CTPD, base das ideias posteriores também
conhecidas como cooperação sul-sul e cooperação horizontal (AMADOR, 2001; PIRES-
ALVES, PAIVA & SANTANA, 2012). Este plano aponta para algumas características
da CTPD (UNDP, 1994), dentre elas:
(...) escopo bilateral (cooperação entre países) ou multilateral
(cooperação entre países em conjunto com organismos internacionais);

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1146
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

caráter sub-regional, regional ou inter-regional; organização da CTPD


para e entre governos com a possibilidade da promoção da participação
de organizações públicas, privadas e de indivíduos, no âmbito das
políticas estabelecidas pelos governos e acordos; possibilidade do uso
de abordagens, métodos e técnicas inovadoras adaptadas às
necessidades locais, além daquelas modalidades de CT já existentes
consideradas úteis; o suporte de países desenvolvidos e de instituições
regionais/inter-regionais pode ser necessário para o desenvolvimento e
operacionalização da CTPD (UNDP, 1994. p. 6)
Neste sentido, diferente de uma cooperação técnica internacional pautada na
relação norte-sul, a CTPD tinha como intuito incentivar os países em desenvolvimento a
se tornarem não somente receptores da cooperação, mas também fornecedores, além de
estarem passíveis de construir conhecimento em conjunto e promover o intercâmbio de
experiências em uma grande diversidade de temas (AMADOR, 2001), dentre eles a saúde.
Neste sentido, entende-se que uma maneira de conhecer e compreender melhor esta
cooperação técnica internacional no âmbito da saúde no Brasil é a partir das ações do
Ministério da Saúde voltadas para os assuntos internacionais.

O Ministério da Saúde e a estrutura voltada para a Saúde Internacional:


Ao buscar abordar este tema, adentra-se a esfera da saúde pública brasileira
através do Ministério da Saúde, cuja história tem como um dos marcos principais o ano
de 1953, com o desdobramento do Ministério da Educação e Saúde em dois ministérios
a partir da Lei nº 1.920 de 25 de julho. Contudo, mesmo com o status de principal unidade
administrativa de ações sanitárias do Governo, estas ações ainda continuaram distribuídas
por outros ministérios e autarquias, com dispersão e fragmentação de recursos humanos
e financeiros (BRASIL, s/d (c)).
No que tange à participação no cenário internacional, a criação do Ministério da
Saúde (MS) em 1953 não trouxe nenhuma modificação, já que a estrutura que permanecia
no âmbito desta temática estava baseada na atuação da Comissão de Saúde Internacional
(CSI), criada pela Portaria n º 93 de 20 de abril de 1950, e que tinha como uma das
principais atribuições servir de órgão consultivo em assuntos internacionais relacionados
à saúde internacional (GAUDÊNCIO, 2014).
Um fato que deve ser destacado neste período foi a criação do Departamento
Nacional de Endemias Rurais (DNERu), em 1956, responsável pela execução de serviços

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1147
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

voltados ao combate a doenças como malária, leishmaniose, doença de chagas, febre


amarela, entre outras existentes no país (BRASIL, s/d (c)). No âmbito da presidência de
Juscelino Kubitschek (1956-1961), a criação do DNERu, que teve como o primeiro
diretor o reconhecido médico sanitarista Mario Pinotti, refletia a importância que o tema
de combate às endemias rurais tinha para o governo supracitado (HOCHMAN, 2009;
SILVA e HOCHMAN, 2011).
A década de 1960 foi de grande importância para o MS. De acordo com a seção
que trata da história da instituição no site oficial do governo (BRASIL, s/d (c)), as
questões relacionadas a desigualdade social e econômica da população fizeram com que
o planejamento em saúde ganhasse expressividade, contribuindo para a discussão entorno
da Política Nacional de Saúde em 1961, na gestão do ministro de saúde Estácio Souto-
Maior, objetivando redefinir a identidade deste ministério em relação aos avanços que
ocorreram no escopo econômico e social nacional. O resultado das discussões sobre este
tema nos anos posteriores ficou explícito na Reforma Administrativa Federal, de 25 de
fevereiro de 1967 (Decreto Lei nº 200), onde:
(...) ficou estabelecido que o Ministério da Saúde seria o
responsável pela formulação e coordenação da Política Nacional
de Saúde, que até então não havia saído do papel. Ficaram as
seguintes áreas de competência: política nacional de saúde;
atividades médicas e paramédicas; ação preventiva em geral,
vigilância sanitária de fronteiras e de portos marítimos, fluviais e
aéreos; controle de drogas, medicamentos e alimentos e pesquisa
médico-sanitária. (BRASIL, s/d (c)).
Em relação ao cenário nacional da segunda metade da década de 1960, é
importante ressaltar o início do período de Ditadura Militar em 1964, em que ocorreu a
centralização dos poderes nas mãos dos militares e a perda progressiva de direitos da
população, principalmente aqueles relacionados à liberdade de expressão. Na dimensão
da saúde, as políticas de caráter capitalista influenciaram no desenvolvimento de ações
de privatização (ex.: a venda de hospitais e estímulo à contratação de serviços
terceirizados), e de assistência médica-individual em detrimento às ações de saúde
pública (ESCOREL, 2008).
Ainda na década de 1960 ocorreram também mudanças na estrutura voltada para
as relações internacionais do MS. Por meio do Decreto nº 55.041, de 19 de dezembro de
1964, seria criado a Comissão de Assuntos Internacionais (CAI), vinculada ao Gabinete
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1148
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

do Ministro, de caráter deliberativo coletivo, que funcionou como assessoria do Ministro


de Estado e que diferia da CSI principalmente em três aspectos: 1) é criada por meio de
decreto; 2) envolve a participação do Ministério das Relações Exteriores; 3) possui
estrutura burocrática de apoio para funcionamento (GAUDÊNCIO, 2014). O autor
(op.cit) ainda explana que:
As atribuições da CAI se remetem ao auxílio na tomada de
decisão quanto à oferta de bolsa de estudos no exterior ao pessoal
do Ministério, autorização de viagens para participação em
eventos internacionais e instruções sobre o posicionamento
brasileiro às delegações nesses eventos, e avaliação das propostas
de cooperação e acompanhamento destas, além da manutenção
da memória dessas atividades. O quadro de pessoal era bastante
enxuto, cabendo ao diretor-executivo da CAI o papel de
secretário-executivo da Comissão, com apoio administrativo do
próprio corpo de pessoal do Gabinete do Ministro.
(GAUDÊNCIO, 2014, p.45).
Com base nas informações apresentadas sobre a participação brasileira em
conferências sanitárias internacionais e pan-americanas no trabalho de Gaudêncio
(op.cit), é possível conjecturar que esta estruturação da CAI estimulou uma maior
participação de atores brasileiros nestes eventos para além do setor saúde (ex.: a
participação de profissionais vinculados ao Ministério das Relações Internacionais), além
de uma profissionalização dos trabalhadores em cargos administrativos voltados para os
assuntos internacionais dentro do Ministério da Saúde.
Novas mudanças ocorrem no fim da década de 1960 e início da década de 1970.
Surge a CAI (agora como Coordenação de Assuntos Internacionais) em 1969, já dentro
de uma estrutura de órgão de coordenação (ênfase no caráter administrativo), sendo que
em 1970 a sigla é alterada para CAIS (Coordenadoria de Assuntos Internacionais de
Saúde). Foram a partir destas transformações que este órgão deixaria de ter o caráter
deliberativo para ter uma função burocrática, já que grande parte das competências destas
se destinavam à organização, arquivamento e a produção de relatórios (GAUDÊNCIO,
2014).
Dentre as reformas estruturais que o Ministério da Saúde passou, destacou-se as
de 1974 com a criação da Secretária Nacional de Saúde (que englobou as secretárias de
saúde e de assistência médica com vistas a diminuir a ideia de separação entre Saúde
Pública e Assistência Médica), e a integração à Superintendência de Campanhas de Saúde

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1149
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Pública (SUCAM) que tinha a responsabilidade de erradicação e controle de endemias


nas áreas de atuação do antigo Departamento Nacional de Endemias Rurais (BRASIL,
s/d (c)).
No final dos anos 1970, ocorre uma nova reestruturação da CAIS. Com base no
Decreto nº 81.141 de 1977, este órgão passaria a ter como atribuições consideradas
básicas “a promoção, coordenação, acompanhamento e avaliação da cooperação técnica
internacional, na área da Saúde, com organismos internacionais, governos ou entidades
estrangeiras” (BRASIL, 1978, p.3). Outro aspecto relevante é a criação dos serviços de
cooperação com organismos internacionais, de cooperação bilateral e de cooperação
institucional, abrangendo as relações com as diferentes estruturas institucionais
internacionais (GAUDÊNCIO, 2014).
Cabe destacar também que, no âmbito desta reestruturação da CAIS em 1977, a
cooperação técnica tinha diferentes significados: a internacional era entendida como
aquela em que o Brasil era o receptor; a cooperação técnica ao exterior era entendida
como aquela em que o Brasil era o fornecedor e voltada para os países da América Latina,
Ásia e África; e a cooperação técnica nacional era baseada na transferência de
conhecimentos entre instituições (BRASIL, 1978).
Mesmo com tais nuances em relação às diferentes formas de cooperação técnica
concebidas pela CAIS e o desenvolvimento das ações pautadas em algumas atribuições
voltadas para a avaliação e colaboração na tomada de decisão pertinentes às relações do
MS no tocante aos assuntos internacionais, Gaudêncio (2014) comenta que a coordenação
mantinha preocupação com a concessão de bolsas de estudo para cursos no exterior e com
a cooperação recebida nos anos posteriores, ou seja, ao longo da década de 1980.
Importante lembrar que a década de 1980 foi marcada por fatos como a 8ª
Conferência Nacional de Saúde, cujas discussões, pautadas no direito à saúde gratuita e
universal, tiveram uma forte participação social, culminando na criação do Sistema Único
de Saúde (SUS) garantido pela Constituição Federal de 1988 e regulamentada por meio
da lei 8.080 de 1990 (PIRES-ALVES, PAIVA & SANTANA, 2012).
A CAIS continuaria a exercer suas atribuições voltadas para o apoio às ações
internacionais desenvolvidas pelo Ministério da Saúde até o início da década de 1990. Na
gestão do então presidente Fernando Collor de Mello, esta coordenação, além de outras
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1150
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

secretarias ou assessoriais internacionais de todos os ministérios, deixaram de existir


(BRASIL, s/d (a)). Isto por conta da criação da Medida Provisória nº 150, de 15 de março
de 1990, cujo o intuito era racionalizar e eliminar a superposição de funções, buscando a
melhoria da coordenação entre órgãos e secretarias (STORCK apud GAUDÊNCIO,
2014, p.46-47).
A busca por alternativas referentes ao acompanhamento do cenário internacional
no âmbito da saúde resultou na criação, em 1991, da Coordenação-Geral de Assuntos
Especiais de Saúde (CAESA). Após reformas administrativas esta coordenação passou a
chamar-se Assessoria de Assuntos Especiais de Saúde (AESA) em 1993 e em 1998
passaria a ter o nome de Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde (AISA) cuja
estrutura funciona até os dias atuais (BRASIL, s/d (a)).

Considerações finais:

Diante do que foi exposto, é plausível pensar na importância deste tema diante do
reconhecimento da importância do Ministério da Saúde nas ações de caráter internacional,
fora o resgate histórico que embasava estas ações no período referente à segunda metade
do século XX. Sabe-se que nos últimos anos, o fato do Brasil ter sido considerado um dos
países com grande potencial de desenvolvimento para as próximas décadas, permitiu que
o país projetasse sua imagem, principalmente na América do Sul, em diferentes áreas,
sendo uma delas a saúde. Um exemplo disto é o fato do Instituto Sul-Americano de
Governo em Saúde (ISAGS), ligado a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), e
que tem dentre outras atribuições o apoio técnico e na formação de recursos humanos
voltados para os países da América do Sul, estar situado no Brasil (no Rio de Janeiro).
Contudo, este projeto ainda está em fase de construção e por conta disto as
discussões entorno das fontes e dos métodos de pesquisa ainda estão ocorrendo. Por
exemplo, o que se vê é que o acesso as principais fontes não estão somente endereçados
nos arquivos e bibliotecas do Ministério da Saúde, mas também no Ministério das
Relações Internacionais e em pessoas que trabalharam em organismos internacionais,
como a OPAS e a OMS, pensando que a articulação destes atores ocorreu e que pode
dizer muito sobre o papel do Ministério da Saúde neste cenário internacional.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1151
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Uma outra questão é a escolha do período. Como esta é uma fase de delimitação
e exploração dos dados e informações, tomou-se como referência a segunda metade do
século XX, percorrendo a criação da Comissão de Saúde Internacional em 1950 até a
formação da Assessoria de Assuntos Internacionais em 1998, que é a estrutura atual do
Ministério da Saúde para assuntos internacionais. Desta forma, pode-se se ter uma ideia
da quantidade de dados e informações existentes, fora um panorama do que foi feito.
Por fim, espera-se com este trabalho contribuir para a discussão sobre a Saúde
Internacional no Brasil, além da produção de conhecimento e debate sobre o papel do
Ministério da Saúde na segunda metade do século XX. Em um momento em que pessoas
e instituições se torna mais dinâmica e fluída, um olhar histórico pode nos ajudar a
enxergar os processos que ocorreram e culminaram com o cenário atual da saúde nacional
e internacional.

Documentação:

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. COORDENADORIA DE ASSUNTOS


INTERNACIONAIS (CAIS). Relatório anual – 1978. Ministério da Saúde: 1978.
Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/relatorio_anual_1978.pdf.
UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME – UNDP. Special Unit for
TCDC, New York - The Buenos Aires Plan of Action (BAPA) – 1978. UNDP, 1994.
Disponível em:
http://ssc.undp.org/content/dam/ssc/documents/Key%20Policy%20Documents/BAPA.p
df.

Referências Bibliográficas:

AMADOR, Ethel Abarca. El nuevo rostro de la cooperación técnica entre países en


desarrollo (CTPD) y las nuevas tendências internacionales. Revista de Ciencias Sociales
- Universidad de Costa Rica, San Jose, v. IV, nº 94, 2001. Disponível em:
http://www.redalyc.org/pdf/153/15309413.pdf.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1152
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE. O Ministério – Relações Internacionais: quem


somos. Ministério da Saúde. S/d (a). Disponível em:
http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-mais-o-
ministerio/279-aisa-raiz/aisa/24937-quem-somos.
BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. AGÊNCIA BRASILEIRA
DE COOPERAÇÃO. Histórico da Cooperação Técnica Brasileira. S/d (b). Disponível
em: http://www.abc.gov.br/CooperacaoTecnica/Historico.
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Do sanitarismo à municipalização. S/d (c).
Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/historico.
BIRN, Anne-Emanuelle. The stages of the international (global) health: Histories of
success or successes of history? Global Public Health, Vol. 4, n. 1, p.50-68, 2009.
BROWN, Theodore M.; CUETO, Marcos; FEE, Elizabeth. A transição de saúde pública
'internacional' para 'global' e a Organização Mundial da Saúde. História, Ciências, Saúde-
Manguinhos, vol.13, n.3, p.623-647, 2006. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
59702006000300005&lng=en&nrm=iso.
CUETO, Marcos. Saúde Global: Uma Breve História. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2015.
ESCOREL, S. História das políticas de saúde no Brasil de 1964 a 1990: do golpe militar
à reforma sanitária. In: GIOVANELLA, L. et al. (org.), Políticas e Sistemas de Saúde no
Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2008. P. 385‐434
FIDLER, David. P. The globalization of public health: the first 100 years of international
health diplomacy. Bulletin of the World Health Organization, v. 79, n.9, 2001. p. 842-
849.
FORTES, Paulo Antônio de Carvalho. RIBEIRO, Helena. Saúde Global em tempos de
globalização. Saúde e Sociedade, São Paulo, v.23, n.2, 2014. p. 366-37. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v23n2/0104-1290-sausoc-23-2-0366.pdf.
FRANCO-GIRALDO, Álvaro e ALVAREZ-DARDET, Carlos. Salud pública global: un
desafío a los límites de la salud internacional a propósito de la epidemia de influenza
humana A. Revista Panamericana Salud Publica, 2009, v.25, n.6, p. 540-547. Disponível
em http://www.scielosp.org/pdf/rpsp/v25n6/v25n6a11.pdf.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1153
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

GAUDÊNCIO, Sérgio Alexandre. Contextos para definição de competências


profissionais aos que atuam na área internacional de saúde. Dissertação de mestrado
defendida como pré-requisito para a obtenção do título de Mestre na modalidade
Profissional em Saúde Pública no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Saúde
Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP-FIOCRUZ). Rio de
Janeiro: 2014. Disponível em:
http://bvssp.icict.fiocruz.br/lildbi/docsonline/get.php?id=4103.
HARRISON, Mark. A Global Perspective: Reframing the History of Health, Medicine,
and Disease. Bulletin of the History Medicine, v. 89, n.4, 2015. p. 639-89. Disponível em:
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4898657/.
HOCHMAN, Gilberto. “O Brasil não é só doença”: o programa de saúde pública de
Juscelino Kubitschek. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.16,
supl.1, jul. 2009, p.313-331.
SILVA, Renato da; HOCHMAN, Gilberto. Um método chamado Pinotti: sal
medicamentoso, malária e saúde internacional (1952-1960). História, Ciências, Saúde –
Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.2, abr.-jun. 2011, p.519-543.
MAZZAROPPI, Eduardo. Evolução histórico-conceitual da Cooperação Técnica
Internacional Brasileira em Saúde. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação,
Inovação de Saúde, Rio de Janeiro, v. 10, nº 3, 2016. Disponível em:
http://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/1087.
PIRES-ALVES, Fernando A. PAIVA, Carlos Henrique Assunção. SANTANA, José
Paranaguá. A internacionalização da saúde: elementos contextuais e marcos institucionais
da cooperação brasileira. Revista Panamericana de Salud Publica. v. 32, nº 6, 2012. p.
444–50. Disponível em: http://www.scielosp.org/pdf/rpsp/v32n6/a08v32n6.pdf.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1154
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“As Funestas consequências da Vacina”: Uma obra contra a vacina antivariólica


no Império Português no Início do XIX.

FILLIPE DOS SANTOS PORTUGAL


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. FIOCRUZ.
CAPES.

A varíola foi uma das doenças epidêmicas mais recorrentes no mundo e a


constatação da transmissibilidade e da imunidade, que são características da varíola,
impulsionaram a disseminação de diversas técnicas que buscavam evitar sua forma mais
grave. Dentre as técnicas, destacamos a introdução do vírus variólico contido, na secreção
retirada da pústula de pessoas doentes, no homem sadio. Essas práticas receberam o nome
de inoculação ou “variolização” e foram incentivadas em diversos países 488.
Em 1798, o inglês Edward Jenner descobriu a vacina antivariólica, daí se tornou
comum chamá-la de vacina jenneriana. A vacina antivariólica era retirada de uma doença
que acometia os gados bovinos chamada cow-pox. Jenner obteve a vacina pela
observação de que, pessoas que trabalhavam com o gado e contraiam o cow-pox,
consequentemente, não adquiriam a varíola. Nessa conjuntura, diversas dúvidas foram
suscitadas quanto à eficácia da vacina e a possibilidade de transmissão de outras doenças
através de sua utilização489.
Os discursos sobre a vacina e a sua aplicação foram uma questão polêmica por
toda Europa no início do século XIX. Em Portugal, a questão também atraía atenção da
Corte, a qual esteve envolvida com mortes decorrentes da varíola. Desta maneira, a fim
de compreender melhor a referida técnica e evitar novos infortúnios, foi publicada,em
1803, a tradução da obra de Jenner, intitulada “Indagação sobre as causas, e efeitos das

488
CHALLOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo; Companhia das
Letras. 1996. p. 102-103
489
Não se havia referenciais teóricos para explicar o processo imunizante da vacina e como esta não era
uma doença muito comum no gado, acabava-se a utilizar o método de vacinação braço a braço, retirando-
se o fluído vacínico de uma pessoa já vacinada e aplicando direto no braço de outro indivíduo.
FERNANDES, Tânia Maria. Vacina antivariólica: ciência, técnica e o poder dos homens, 1808-1920. Rio
de Janeiro; FIOCRUZ, 2010. p..31-32.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1155
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

bexigas de Vacca”, para o português, feita pelo médico João Monteiro, sob ordem do
Príncipe-Regente D. João490.
Em 1808, o médico Heliodoro Jacinto Carneiro491 publicou uma das obras mais
polêmicas da literatura médica portuguesa do início do XIX. Intitulada Reflexões e
observações sobre a prática da inoculação davaccina, e as suas funestas consequencias.
Esta obra foi para os apoiadores da vacina, o mais duro golpe da época, sendo Heliodoro
Carneiro lembrado e criticado por gerações, de modo que seus detratores passaram a
chamá-lo pela alcunha de doutor bexigas, como se ao detratar a vacina acabasse por
favorecer as bexigas492.
Como a vacina antivariólica passou a ser uma prática bem sucedida e cada vez
mais aceita na comunidade médica, tendo sua eficácia consolidada por exemplos bem
sucedidos de aplicação. A obra de Heliodoro foi considerada, `a época, como um erro
científico e como tal foi desacreditada. Todavia, enfatizamos que partindo da
historiografia sobre produção científica, devemos analisar esta obra pelo princípio da
simetria, como sugerem os autores Bloor e Barnes, ou seja, erros e acertos devem ser
estudados com os mesmos critérios. Cabe salientar que a obra de Heliodoro, embora
identificada enquanto um erro, apresentou muitos argumentos plausíveis para a época,
compartilhado até mesmo por outros autores, principalmente ingleses493.
Helidoro não praticou a vacinação de modo que parar elaborar sua obra se baseou
nas obras de Jenner e de outros autores, e nas visitas feitas a práticos e a hospitais
particulares na Inglaterra. Desta maneira argumentou ter entrado em contato com todos
os fenômenos em relação à vacina, bem como suas “Funestas consequências”. A obra de
Heliodoro foi toda pautada na argumentação contra a vacina e para isso utilizou
argumentos que circundavam os campos médicos, sociais, culturais, teóricos, históricos

490
FREITAS, Ricardo Cabral de. Os sentidos e as ideias: trajetória e concepções médicas de Francisco de
mello Franco na Ilustração Luso-Brasileira (1774-1823). Tese (Doutorado em História das Ciências e da
Saúde), Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz,
2017.
491
O autor da obra em questão teve formação na universidade de Coimbra e passou a maior parte de sua
vida fora de Portugal. Empregado primeiramente em comissões científicas e, posteriormente, em missões
diplomáticas, por seus serviços ao reino acabou por receber o título de visconde de Condeixa. SILVA,
Francisco Inocencioda.DiccionarioBibliographicoPortuguez. Tomo IV. Imprensa Nacional. 1840.
492
Idem. Ibidem.
493
BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo, Editora UNESP. 1976.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1156
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

e científicos. Para o autor, a vacina seria até mesmo uma ofensa às vacas, um animal que
fornece as principais necessidades: bifes, leite, manteiga, queijo e, que, em resposta,
“estava sendo paga com indignidade e degradação de sua espécie”494. Essa variedade de
argumentos demonstra o quanto as questões sobre saúde e doença são fenômenos
complexos sobre os quais interferem diversos aspectos sociais.
Para Heliodoro, a difusão da vacina seria causa do entusiasmo da época por
novidades que estava associada a uma ideia “extravagante” que seria tentar livrar a
humanidade da varíola495, doença que, a seu ver, era causada e produzida por variações
da atmosfera, através de uma matéria morbosa originada em um animal de uma natureza
tão diferente com a vaca. Esta é a principal crítica do autor contra a vacina, pois esta ideia
vai de encontro ao paradigma médico vigente, segundo o qual, não se poderia passar uma
doença da “economia animal” para humana sem trazer com isso uma série de
consequências, principalmente a inserção de novas doenças para o homem496.
Uma das críticas feitas pelo autor referia-se à Inglaterra, por ter tentado proibir a
inoculação de bexigas para substituir a prática pela vacinação, com o agravante de que a
prática médica encontrava-se misturada com os deveres eclesiásticos, pois os bispos e
dioceses pregavam e intimavam seus pupilos a se vacinar. Com isso, na visão do autor, a
vacina “gerou o zelo e crime” de muitos padres e médicos que estavam fazendo com que “um
veneno que atacava e flagelava a raça humana se fazia por familiarizar com a economia animal
em lugar de expulsá-lo e destruir”497.
Para Heliodoro, a vacina era um empreendimento fanático que em lugar de expelir
uma moléstia, trazia mais uma ao homem. Devido a isso, o objetivo de sua obra estava
circunscrito em demonstrar como a vacina estava fazendo vítimas diariamente devido à
“ignorância de uns e obscenidades de outros”. A ideia de se ver livre de uma doença,
ainda que por outra, porém, nascida e originada em um animal, em sua concepção, surgiu
e se propagou pelo desejo de “novidade e extravagância ídolo do século”. Ademais, a
cultura inglesa favoreceu a vacina, pois havia uma grande afinidade com relação o animal

494
CARNEIRO, Heliodoro Jacinto de Araújo. Reflexões sobre a Pratica da Inoculação da Vaccina e suas
funestas consequências. Lisboa: Na Nova Off. de João Rodrigues Neves. 1808.
495
Idem. Ibidem
496
Idem. Ibidem
497
Idem. Ibidem
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1157
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(vaca), além do fato do povo ser percebido, á época, como “insalubre e circunscrito”, ou
seja, se limitavam a levar em conta as coisas que aconteciam no próprio país. Dessa
maneira, para Heliodoro, seria a Inglaterra um terreno propício para que Jenner fizesse da
vacina uma moléstia comum aos dois animais498.
Especificamente sobre a estrutura da obra de Heliodoro, observamos que, num
primeiro momento, o autor demonstrou o caráter histórico das práticas de inoculação de
bexigas e como ela foi bem sucedida na Europa do século XVIII. Em sua opinião, seria
mais racional evitar a varíola por meio da realização de mais pesquisas e do
melhoramento da prática da inoculação, como já vinha se fazendo há mais de um século
na Europa, do que tentar evitar uma doença da “raça humana” por meio de outra tão
diferente como a dos quadrúpedes.
Como estratégia de argumentação Heliodoro Jacinto fez ataques pontuais à obra
de Jenner com referência direta a trechos de suas publicações. Heliodoro pontuou o que
considerou erros e incoerências com o objetivo de desmobilizar Jenner, como podemos
perceber no seguinte trecho:
“ Na página 57 confessa que não obteve os felizes efeitos
da inoculação esta não poucas vezes produz
deformidades da pelle e muitas vezes , debaixo mesmo
da melhor direção é fatal”.

Se Jenner tentava amenizar os sintomas da vacina, Heliodoro, em sua obra,


buscava realçá-los, discorre que os sintomas da vacina seriam calafrios, dores de cabeça,
nos lombos e membros. Para Heliodoro, como Jenner não podia negar a gravidade destes
sintomas, teria argumentado que estes procediam da irritação da úlcera e não do vírus da
vacina, sobre a constituição. Outro fato questionado por Heliodoro, foi referente aos casos
usados por Jenner como comprobatórios da vacina, os quais estariam fundados na
“tradição e conto” de alguns paisanos de Glaucesteshire, e assim não seriam válidos como
evidências científicas. Além disso, a seu ver a obra de Jenner seria inconsistente no que

498
Para Heliodoro o sucesso da obra de Jennerna Inglaterra, pois os Ingleses venerão as vacas, pois queriam
se assemelhar aos seus primeiros antepassados comoJhon Bull: “um homem indômito, forte e bravo com
um touro”. Daí o entusiasmo pela vaca.Idem. Ibidem
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1158
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

se referia aos casos em que se vacinou, mais de uma vez, e a vacina não teria surtido
efeito499.
Interessante ressaltar que um dos fatos apontados por Heliodoro como
questionáveis na obra de Jenner, acabaria sendo constatado posteriormente como
verdadeiro. Heliodoro não aceitava que a origem da vacina poderia ser, como Jenner
atribuía, uma doença que surgiria nos cavalos e mudaria sua constituição ao passar para
as vacas e depois para o homem. Para Heliodoro além de implausível esta teoria, faltava
o teste empírico para comprová-la, pois Jenner não fez a sua teoria com base experiência
direta, mas sim em baseada em “alguns contos populares”. Além disso, segundo Helidoro
existiam diversas partes da Inglaterra onde o gado possuía a vacina, sem no entanto haver
a presença de nenhum cavalo. Cabe ressaltar que o que Heliodoro considerava como falta
de cientificidade e de rigor na obra de Jenner, foi recorrente na obra. Um dos exemplos
que pode ser observado na obra é quando se refere ao Mr Laurence, o qual teria discorrido
que Jenner havia publicado sua hipótese mais por condescendência com as ideias oriundas
do povo do que como resultado de sua própria reflexão500.
Heliodoro argumentou que doenças com pústulas parecidas com as bexigas eram
recorrentes em outros animais, tal fato, em alguma medida, em sua concepção,
comprovaria uma relação que “guarda e conserva a natureza” na organização dos seres
vivos. Dessa maneira, cada reino como: o mineral, o vegetal e o animal possuiriam suas
próprias “eflorencias e excrecencias morbosas”, cada qual com leis gerais e comuns, mas
também com leis particulares e próprias a cada classe, ordem e espécie. Como exemplo
de sua explanação Heliodoro afirmou que o homem africano por sua “textura particular
de pelle” seria mais suscetível à “bexiga de mal caráter”. Assim, de acordo com
Heliodoro, existiriam diversos tipos de “bexigas” de acordo com as espécies, como
exemplo: de porco; ovelha; vacas, entre outras501.

499
Idem. Ibidem
500
Heliodoro critica o rigor científico da obra de Jenner por não seguir os métodos científicos na indagação
da natureza; um que se chama a posteriori, que é através dos fatos e efeitos decidir as causas, outro a priori
que e por analogia e indução raciocinar e conjecturar. Para Heliodoro as razões analogia e conjectura são
risonhas e pueris; as de fato além de serem precárias são de uma tradição popular e ignorante.Também
crítica Jenner por não utilizar corretamente os métodos dedutivos e indutivos em sua análise. Idem. Ibidem
501
Idem. Ibidem
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1159
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A introdução do pus da vaca não traria consequências ao sistema orgânico do


Homem por ser um pus Bestial, as bexigas voltariam a se suceder com o passar do tempo.
Para o autor, o que causaria a defesa do corpo contra a varíola, no ato de inoculação,
ocorreria em todos os casos em que o “sistema” fosse atacado por uma moléstia e com
isso não ficava susceptível a outra, como nos casos como as pessoas com sarna não
pegavam lepra502.
Assim, Heliodoro argumentou que além das doenças que poderiam advir ao ser
inoculado um vírus bestial ao corpo humano, a vacina só tornaria o corpo por pouco
tempo livre das bexigas. Segundo o autor, esse aspecto não era inédito na espécie humana,
e para exemplificar isso, fez menção ao povo de Malbar, que para evitar uma espécie de
tifo, epidêmica nos fins de outono, adquiríam úlcera por “meio de hum vacinatório” e,
em consequência, ficavam livres do tifo ou o tinham de maneira mais benigna503.
Nessa perspectiva, Heliodoro reforçava seu argumento citando o Dr Mosely, que
discorrera acerca de algumas doenças, principalmente as do gênero cutâneo, as quais
tenderiam a “tirar a susceptibilidade ao sistema de contrair bexigas”. Como exemplo, nas
Índias Ocidentais, um médico francês teria observado que um negro que tivesse
elefantíase jamais adquiriria bexigas, mesmo que vivesse no meio de bexigosos.
Portanto, para Heliodoro, a capacidade da vacina de proteger seria uma qualidade comum
a outras moléstias bestiais, todavia as consequências da vacina seriam demasiado graves
para serem utilizadas como um preservativo504.
Dando bases a seu argumento, que resumidamente tratava acercados riscos de se
passar uma doença animal a economia humana, o autor mencionou exemplos de
transfusões de sangue de um animal para o homem que teria ocorrido no século XVII. O
procedimento consistia em abrir a artéria de um animal e, por meio de um instrumento,
seria transferido o sangue deste animal para as veias do homem. Segundo Heliodoro, a
crença de que pela transfusão se poderia transmitir característica dos animais e, como

502
Idem. Ibidem.
503
Idem. Ibidem.
504
Idem. Ibidem.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1160
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

resultado, os caracteres viciosos do homem, por exemplo, o sangue do Leão curaria a


“poltroneria”, o da ovelha a ferocidade, entre outros505.
Segundo Heliodoro,à época de sua criação,a técnica logrou êxito livrando o
homem de todas as doenças, e foram publicadas muitas observações que incentivavam a
prática. Entretanto, as pessoas que aderiam à novidade, logo que recebiam a transfusão,
tornavam-se inválidas, doentes, loucas e depois sucumbiam até a morte506. Podemos
perceber aqui que Heliodoro entendia que o mesmo estava ocorrendo com a vacina,
embora ressaltasse a clara diferença entre os dois procedimentos. No século XVII o
objetivo da transfusão era o de curar as moléstias, e no XVIII, por sua vez, era de evitá-
las ao introduzir um veneno e uma nova moléstia na economia Humana507.
Em uma citação do dr.Mosely, Heliodoro resumiu os principais argumentos
médicos contra a vacina:
Por que diz elle, pelos principios de pathologia e boa
analogia, das leys da economia animal, e da falta de
semelhança entre as duas molestiashe impossível crer sem
uma inteira alienação da razão, que qualquer dellas possa
tornar a constituição inscusceptivel da outra. As bexigas
não tem afinidade alguma com a vacina mas com outra
qualquer molestia, e as bexigas somente podem ser
mencionadas com a vaccina para significar a sua muita
semelhança508.

Os argumentos médicos eram plausíveis, pois como Tania Fernandes aponta, na


época de Jenner não havia referenciais teóricos que possibilitassem a compreensão do
processo imunitário ou que indicassem hipóteses a serem comprovadas empiricamente.
Para a autora o próprio Jenner em suas obras não tentava explicar como ocorria o
fenômeno de “proteção” que incidia após a vacinação, contentando-se apenas em afirmar
que a vacina funcionava e era segura. Cabe ressaltar que na época em que a vacina
Jenneariana foi criada o conceito de imunidade ainda não existia, sendo assim, a
comprovação de seu método era dado através da reprodução de fatos observados em

505
Idem. Ibidem.
506
Segundo Heliodoro a prática de transfusão de sangue animal para o homem foi proibida no parlamento
Inglês em 1670.
507
Idem. Ibidem.
508
Idem. Ibidem.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1161
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

condições naturais pela tentativa e erro, ou seja, a experiência detinha-se numa tentativa
de reprodução da natureza509.
Voltando à obra de Heliodoro é interessante ressaltar associação da doença da
vacina ao clima. Segundo Heliodoro, nos climas quentes e temperados a vacina
desenvolveria mais erupções, que nos climas “frios e irregulares” e isto ocorreria razão
da maior e mais regular transpiração. Nos de clima frio, pela razão contraria e mais
ordinária, desenvolver-se em tumores parciais, ulceras e etc. Advertindo que nos climas
quentes, ou por “mudanças da atmosfera ou por incidentes anexos ao regime e vida do
vacinado” era maior a “disposição bestial” havendo maior ocorrência de febres e
desordens do pior caráter.
Neste sentido, para o autor, por exemplo, os negros vacinados nas colônias teriam
maior propensão à doença e talvez muitos morressem da mesma forma que ocorria na
Inglaterra. Porém Heliodoro atribuía tais mortes às más constituições e às irregularidades
das estações das colônias. Como exemplo emblemático desta relação, o autor citou um
caso que presenciou no ano de 1806, em Belém, região de clima quente, no qual um rapaz,
que fora vacinado havia 3 meses, conservou sempre alguma vermelhidão e inflamação na
parte que tinha sido inoculada, um dia este rapaz recebeu uma pancada na úlcera da
vacina o que causou uma maior inflamação juntamente com uma febre grave após tais
fatos o rapaz morreu em convulsões.
Passando do campo teórico para os casos empíricos, Helidoro Carneiro constatou
que em crianças inoculadas com a vacina, era possível observar desordens e moléstias
difíceis de curar, haja vista que algumas adquiriam “notícias externas” que atacam a maior
parte do gado, como: sarna, lepra dos cavalos e todas as moléstias morbosas que
acometem as vacas; ovelhas; porcos e outros animais; nos quais dominava uma espécie
de “constutuição pituitosa” que degenerava em tumores análogos aos observados após a
vacina. Assim diversas doenças poderiam ocorrer após a inoculação da vacina510.
Cabe ressaltar um fato curioso, em meio a todas as críticas, o autor acabou
entrando em contradição ao ter admitido que a vacina havia reduzido a susceptibilidade
às bexigas, por períodos de 2 a 6 meses; 1 e 2 anos. Porém Heliodoro argumentou que

509
FERNANDES, Tânia Maria. Op. Cit.
510
CARNEIRO, Heliodoro Jacinto de Araújo. Op. Cit.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1162
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

não havia tempo para saber se estes efeitos iriam perdurar em longo prazo por períodos
acima dos observados. Este questionamento não circundava apenas Heliodoro, mas
também outros médicos, dentre eles, os próprios apoiadores da vacina511.
Na visão de Heliodoro Carneiro, a vacina era um empreendimento fadado ao fim,
pois quanto mais os vacinadores fossem ativos em propagar o “bestial projeto”, mais
depressa a humanidade seria convencida de seus malefícios. E tais malefícios da vacina
seriam imprevisíveis, como afirmou: “Poderá alguém predizer que poderão ser as
consequências de introduzir um humor bestial na constituição humana passados muitos
anos? (...)Quem sabe igualmente o quanto o caráter humano poderá sofrer de estranhas
mudanças de symphatia quadrupede”512.
Quanto aos efeitos práticos da vacina, Heliodoro Carneiro citou como problemas
os casos de pessoas vacinadas que haviam contraído bexigas e morrido, ao passo que
outras teriam adquirido “molestias bestiais, as quais nunca antes a espécie humana havia
experimentado”. Estas moléstias seriam tumores e inchaços escrofulosos; vaccino-
abscessos; vacino-úlceras; vacino gangrenas e uma espécie de erupção cutânea
semelhantea sarna. Estas erupções seriam mais confluentes e com uma irritação muito
mais grave a tal ponto que as crianças que fossem acometidas não conseguiriam dormir,
e a sua cura seria muito mais difícil e rebelde513.
Todos estes sintomas, como as erupções, os tumores, e as úlceras vacinais que
além de serem difíceis de curar e cicatrizar, ocorreriam muitas vezes de maneira que
mesmo após cicatrizados poderiam voltar depois de um ano. Desta forma para Heliodoro
Carneiro o vírus da vacina imprimiria e deixaria na constituição humana uma disposição
e susceptibilidade que se desenvolveria e apareceria de acordo com certos estímulos e
circunstancias514.
Assim Heliodoro cita Mosely que entendia que a vacina além de não proteger das
bexigas fazia surgir diversos casos de crianças “com moléstias de olhos, erupções
inveteradas, ulcerações corrosivas e várias espécies de sarna”. A correspondência vinda

511
Idem.Ibidem.
512
Idem. Ibidem.
513
Idem. Ibidem.
514
Idem. Ibidem.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1163
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

das províncias continha registros de funestas relações de ulcerações e gangrena nos


braços, e até mesmo de morte de um paciente. Muitas crianças vacinadas também teriam
morrido de moléstias consecutivas, mesmo naquelas que não tinham aparecido
ulcerações, e outras teriam perdido os narizes e extremidades dos dedos, muitos meses
depois da inoculação515.
Quanto a Portugal, Heliodoro afirmou que no ano de 1806 a vacina já havia
mostrado seus efeitos funestos, análogos aos que haviam ocorrido na Inglaterra. Segundo
o autor, muitas crianças em Lisboa que tinham sido vacinadas haviam sofrido,
principalmente no outono e primavera, comum a erupção com febre que poderia se repetir
várias vezes na mesma criança. Alguns médicos lhe davam o nome de sarampão, embora
não tivessem nenhum sintoma próprio ao sarampo, além da pequenez da erupção. E
afirmava também que algumas crianças chegariam a ter mais de 10 vezes o sarampo516.
Outra parte importante da obra de Heliodoro Carneiro é quando ele elencou os
oito questionamentos contra a vacina e as respostas dos médicos partidários da vacina.
Como exemplo, ao questionar se alguma criança tinha bexiga ou mesmo se morria depois
de ter sido vacinada, a resposta era que a vacina não havia sido verdadeira, mas sim a
espúria. Quando se seguia gangrena, ou mortificação nos braços, e outras partes do corpo
respondiam que os maus hábitos e constituições eram sujeitos a gangrena e outras
moléstias. Quando se morria grande número de pessoas em decorrência da inoculação da
vacina dizia-se que a matéria da vacina havia sido tirada muito tarde da pústula, quando
já havia uma infecção pútrida. Em último caso, quando os partidários da vacina não
podiam negar que as crianças vacinadas haviam adquirido bexigas, diziam que estas
seriam “bexigas volantes ou doidas”, ou seja, uma forma branda da bexiga que deveria
ter sido ocasionada quando os vacinadores poderiam ter levado por descuido o vírus
varioloso na ponta da lanceta517.
Para o autor as funestas consequências estavam ocorrendo diariamente em Lisboa,
por causa da inoculação da vacina e os fatos não se tornavam públicos, pois as pessoas
que viam isso ocorrer eram justamente aquelas que estavam recomendando a vacina.

515
Idem. Ibidem.
516
Idem.Ibidem.
517
Idem. Ibidem.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1164
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Outro motivo para misto era em decorrência do fato de que alguns efeitos da vacina
demoravam a aparecer e podiam ser associado a outros fatores. Na visão do autor “seria
preciso que todas as crianças morressem imediatamente para se fazer crer, que a vacina
era um mal. Ainda que para alguns não fosse hentente: como aconteceu com a morte do
Duque de Miranda e da Baroneza de Quintella518”.
Outra estratégia persuasiva contra a vacina, presente na obra de Heliodoro, foi a
publicação de quatro figuras com a face de pessoas que teriam adquirido doenças de
animais por causa da vacinação. Tais figuras dariam amplitude aos seus argumentos,
ademais fariam que a obra atingisse até mesmo as pessoas que não sabiam ler.
Curiosamente, anos mais tarde, o diretor da Instituição Vacínica portuguesa seguiria
estratégias parecidas, recomendando que se publicassem estampas com o rosto de
mulheres perfeitas e depois desfiguradas após adquirirem vacina.
Ademais Heliodoro reclamou da falta de liberdade de imprensa, pois as matérias
contra a vacina eram censuradas, sendo somente publicadas as “asserções e provas
ficticias dos impostores e entusiastas”. Na sua concepção os médicos e boticários tinham
interesse em propagar a vacina, pois ganharam dinheiro pela prática e depois ganhariam
mais dinheiro ainda por tratar dos doentes519.
Neste sentido, alguns dos principais jornais da época como a Gazeta de Lisboa e
o Jornal de Coimbra possuíam médicos favoráveis a prática da vacinação enquanto donos
e editores, com isso realmente poderiam censurar as matérias contra a vacina, fato que
pode ser comprovado pela falta de matérias nestes jornais tratando deste objeto. Todavia,
a possibilidade de se ganhar dinheiro com a vacina pode ser relativizada na medida em
que a maioria dos propagadores da vacina eram filantropos, de modo que os próprios
vacinadores da Instituição Vaciníca de Lisboa, que seria inaugurada no ano de 1812, não
recebiam remuneração pelos serviços prestados.
No final de sua obra, Heliodoro fez um comentário interessante sobre os
resultados da vacina na América:
Na América aonde se tem praticado a
inoculação da vacina principalmente em negros,
quem lhe importa examinar a morte de muitos
518
Idem. Ibidem.
519
CARNEIRO, Heliodoro Jacinto de Araújo. Op. Cit.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1165
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

centos destes, ou incomodos que esta desgraçada


gente sofre? se o preto vive incomodado depois
davacina a quem importa isto:? Quem examina a
causa primaria de tudo será o que o inoculou? Que
é o mesmo que o vê se o mal é externo. Jamais ele
dirá mal do seu estabelecimento e antes usará das
expressões do egoistaruant montes terra que ruat-
Morianturhominerred ego salvus sim...520

De fato os escravizados não poderiam reclamar em relação àquela prática, porém,


como apontou Foucault, onde há relações de poder e dominação há também formas de
resistência. Desta maneira não é difícil conjecturamos que a população escravizada tenha
sido, em alguma medida, refratária a vacina, pois ela ia de encontro com a prática de
variolização que era praticada centenariamente em diversas partes da África. Além disso,
a vacinação interferira diretamente no culto do Orixá Omolu, pois esta divindade era
responsável tanto por causar quanto curar a varíola, de modo que a vacina interferia
diretamente nos poderes desta divindade ao impedir que a doença se desenvolvesse521.
Segundo Herculez Octaviano Muzzi médico responsável pelos serviços de
vacinação no Rio de Janeiro, Heliodoro Carneiro se rendeu ainda em vida à eficácia da
vacina, tendo ele próprio se submetido à prática, embora tenha assinalado que os prejuízos
e preconceitos sobre o método dificilmente se apagariam522. Uma resposta contundente e
direta à obra do autor foi publicada três anos depois pelos editores em matéria no jornal
o Investigador Português na Inglaterra, na qual refutavam os argumentos de Heliodoro
por meio da referência a diversas correspondências com médicos importantes da época e
aos dados sobre a vacinação em diversos institutos vacinícos pelo mundo, demonstrando
o quanto a prática era eficaz e os preconceitos do autor eram infundados523.
Por fim, é importante analisarmos esta obra pensando que o autor não
encontrava-se isolado, pois apoiava seu argumento em vários outros autores. Desta forma,
Heliodoro, embora afastado de uma maioria que era favorável à vacina, compartilhava do
anseio de outra parcela de médicos, ou mesmo uma parcela da população. A

520
Idem.Ibidem.
521
CHALHOUB, Sidney. Op. Cit.
522
CHALHOUB, Sidney. Op. Cit.
523
Todos os editores deste jornal eram médicos e apoiadores da vacina, são eles: Miguel Caetano de Castro,
Vicente Pedro Nolasco e Bernardo José de Abrantes e Castro. FREITAS, Ricardo Cabral de. Op. Cit.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1166
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

aceitabilidade da vacinação seria um problema e obstáculo às ações que buscavam


promover a vacinação. Cabe ressaltar que obras contestando a vacinação continuariam a
ser publicadas no século XIX, principalmente na Inglaterra. A análise dos argumentos do
autor é importante, pois demonstra o quanto a prática da vacinação foi de encontro a
alguns paradigmas médicos vigentes, e como não havia ainda conceitos importantes,
como o de imunidade, isto teria dificultado a aceitação dos argumentos de Jenner. Todavia
como os efeitos práticos da vacinação eram empiricamente muito favoráveis, a vacina
ganhou cada vez mais aceitação e alcançou uma maior difusão por todo mundo, o que
pode ser constatado pela criação de diversos institutos próprios para se difundir a prática
em diversos países como, por exemplo, a Instituição Vacínica da Academia Real de
Ciências de Lisboa, criada em Portugal em 1812 , e a Junta da Instituição Vacínica da
Corte criada em 1811 no Rio de Janeiro.

Referência Bibliográfica

BARREIROS, Bruno Paulo Fernandes. Concepções do Corpo no Portugal do Século


XVIII: Sensibilidade, Higiene e Saúde Pública. Universidade nova de Lisboa. 2014

BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo, Editora UNESP. 1976.

CARNEIRO, Heleodoro Jacinto de Araújo, Reflexões sobre a Pratica da Inoculação da


Vaccina e suas funestas consequências.Lisboa: Na Nova Off. de João Rodrigues Neves.
1808.

CHALLOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo
Companhia das Letras, 1996.

FERNANDES, Tânia Maria. Vacina antivariólica: ciência, técnica e o poder dos


homens, 1808-1920.2ed.rev.Tânia Maria Fernandes Rio de Janeiro; FIOCRUZ, 2010.

FREITAS, Ricardo Cabral de. Os sentidos e as ideias: trajetória e concepções médicas


de Francisco de mello Franco na Ilustração Luso-Brasileira (1774-1823). Tese
(Doutorado em História das Ciências e da Saúde), Programa de Pós-Graduação em
História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, 2017.

SILVA, José Alberto Teixeira Rebelo da.A Academia Real das Ciências de Lisboa
(1779-1834): ciências e hibridismo numa periferia europeia.Universidade de Lisboa.
Lisboa. 2015.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1167
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Livrarias, memória e identidade: A importação de livros no Brasil e a trajetória da


Livraria Leonardo da Vinci no Rio de Janeiro

FLÁVIA MARIA ZANON BAPTISTINI


FGV/CPDOC

Introdução
Estão as livrarias com seus dias contados? Qual o papel que as livrarias exercem na
vivência cultural contemporânea das cidades? E de que forma estes espaços em vias de
extinção, anteriormente considerados centros de atividades intelectuais e de sociabilidade
literária, estão ligados à identidade e à memória de suas cidades?
Com base nestas indagações iniciais, interessei-me pelo caso da Livraria Leonardo
da Vinci, cujo “fim” foi amplamente divulgado na imprensa do Rio de Janeiro ao longo
de 2015. A longevidade e a comoção em torno do seu fechamento foram os gatilhos
iniciais do projeto: um tradicional espaço de venda de livros, localizado no centro do Rio
de Janeiro, parecia fazer parte da “memória ameaçada” de uma certa comunidade carioca,
formada por algumas gerações de intelectuais, artistas, políticos e estudantes.
Além de terem sido locus de vivência e sociabilidade em tempos passados, as
pequenas unidades varejistas dedicadas à venda de livros contribuíram para a manutenção
de um sistema de produção editorial mais balanceado, na medida em que atendiam perfis
de leitores diversificados e espalhados geograficamente. Estas livrarias disponibilizavam
tanto os candidatos a best-sellers - segmento facilmente encontrado em qualquer rede
varejista não necessariamente a especializada (THOMPSON, 2013, p.33-45), - quanto os
livros destinados a interesses específicos, contribuindo na preservação da
bibliodiversidade524 (GERLACH, 2006).
Nessa perspectiva, os estudos sobre as livrarias brasileiras visam colaborar não
somente com a historiografia da indústria do livro no país ou com a memória cultural das
cidades, mas também contribuir com o debate sobre a importância desses locais para o

524
O termo bibliodiversidade designa a diversidade cultural aplicada ao livro, segundo a declaração de 2007
da Alliance Internationale des Éditeurs Indépendants, uma associação sem fins lucrativos, fundada em
2002, regida por leis francesas, que reúne grupos de editores independentes de 45 países da África, América,
Europa e Ásia, com o objetivo de proteger e promover a bibliodiversidade.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1168
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

fortalecimento de ambientes letrados culturalmente diversificados, e consequentemente


para a ampliação da base de leitores, essencial à formação integral de cidadãos.
Este artigo, produzido a partir da dissertação “Livrarias, Memória e Identidade: A
Importação de Livros no Brasil e a Trajetória da Livraria Leonardo da Vinci no Rio de
Janeiro” propõe-se a compilar alguns dos elementos constitutivos fundamentais à longa
existência da Livraria Leonardo da Vinci e à posição de prestigio que alcançou perante
parte da comunidade carioca letrada.
Como fontes de pesquisa foram utilizadas entrevistas em profundidade com
indivíduos que fizeram parte da sua história, entre os quais a fundadora e seus filhos, ex-
funcionários e ex-clientes; coleta e análise de material documental de posse da família e
de instituições arquivísticas tais como o Arquivo Nacional, Arquivo do Estado do Rio de
Janeiro e Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro; além de análise de conteúdo
jornalístico e propagandístico dos principais periódicos da cidade do Rio de Janeiro, ao
longo da segunda metade do século XX, acessíveis via Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional e Fundação Casa de Rui Barbosa.
De início serão apresentados os principais acontecimentos que marcaram a trajetória
“da casa” ao longo destas seis décadas. Na sequência, atributos constitutivos da
identidade da livraria, entre eles a atuação da livreira Vanna Piraccini e algumas das
principais práticas administrativas, comerciais e sociais que a consagraram; e para
finalizar uma análise dos elementos que a aproximam de um empreendimento cultural
segunda uma análise bourdieusiana.

Breve cronologia da livraria importadora


O efeito final dos impostos alfandegários e da taxa do dólar foi
tornar mais barato, durante a maior parte da década de 1950,
importar livros do que importar papel para imprimí-los. E como os
direitos de tradução deviam ser pagos pela taxa cambial plena,
também era muito mais barato importar um livro estrangeiro em
tradução publicada em Lisboa do que adquirir esses direitos e
produzir uma versão brasileira…O resultado inevitável foi que a
maior parte das editoras estrangeiras passou a vender os direitos de
tradução para a língua portuguesa apenas às editoras de Lisboa ou
do Porto. (HALLEWELL, 2012, p. 573-574)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1169
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Neste contexto, árido para a indústria nacional e fértil para as importações, surgiu a
livraria importadora Leonardo da Vinci. Pode-se dizer que o novo estabelecimento nasceu
a partir de outra livraria já existente, a Nova Galeria de Arte - localizada num anexo do
Hotel Copacabana Palace - que vendia livros importados, raridades e peças de arte aos
clientes endinheirados do complexo hoteleiro.
O romeno Andrei Duchiade chegou ao Brasil em 1949 vindo de Paris, convidado
pelo primo Trajano Coltzesco para trabalhar na Nova Galeria de Arte, de sua propriedade.
Após ter-se estabelecido, ele vai buscar sua companheira ítalo-romena Vanna Piraccini,
desembarcando juntos em terras brasileiras em dezembro de 1951.
O casal, ávido por ampliar o alcance do ofício para além dos salões luxuosos da
capital federal, alguns meses após a chegada decidiu abrir uma nova loja para a venda de
livros importados, iniciando as atividades da Leonardo da Vinci, em 1952. Inicialmente
em uma pequena sala no 18º andar do Edifício Delamare, na Avenida Presidente Vargas.
O nome foi uma homenagem da única sócia-mulher ao mestre renascentista, em evidência
naquele ano pela comemoração dos quinhentos anos de seu nascimento.
Embora tenha sido concebida como casa importadora de livros desde o início, a
inclinação às humanidades e às artes ainda não tinha se consolidado quando a livraria foi
fundada. Durante os primeiros anos de existência, a maioria dos livros ofertados eram
técnicos e científicos, ligados a áreas como Engenharia, Química, Administração e
Finanças525.
Mesmo oferecendo obras provenientes de vários países, a inclinação à produção
editorial francesa, aos seus pensadores e publicações, esteve presente na Da Vinci desde
a sua fundação e é parte constitutiva da identidade da casa. Em parte pela influência que
a produção intelectual francesa exercia (e ainda exerce) no mundo ocidental e no ambiente
intelectual e acadêmico brasileiro; e em parte pelas inclinações dos proprietários e
escolhas de “Dona Vanna”.
Em 1956, os proprietários decidiram mudar-se para a primeira galeria subterrânea
do Rio de Janeiro, no subsolo de recém-inaugurado exemplar do modernismo brasileiro,
o Edifício Marquês de Herval. Obra dos irmãos MMM Roberto e localizado na artéria

525
Anúncios publicitários do Jornal do Commercio da década de 1950.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1170
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

central da cidade, na Avenida Rio Branco, 185. Nesta mesma década, a livraria viveu seus
primeiros ímpetos expansionistas, com a abertura de filiais em Copacabana (1954), na
Galeria Alaska, e em Porto Alegre (1957), na Rua Salgado Filho, iniciativas que
sobreviveram por um curto período de tempo.
No entanto, foi outro empreendimento de curta duração, a editora Scala, o principal
causador da falência da livraria526. Em extrema dificuldade financeira, já que as dívidas
assumidas no pedido de concordata impediam o estabelecimento de encomendar livros, a
livraria sofreu seu segundo revés, em meados de 1965, com a morte repentina do Sr
Andrei Duchiade. Sua morte aconteceu em decorrência de um choque anafilático, após
ser picado por abelhas que cultivava em seu apiário, localizado em Nova Friburgo.
Este incidente trágico levou Vanna Piraccini a assumir os negócios em definitivo.
Ela passou os anos seguintes organizando a vida financeira da casa com aportes de capital
pessoal advindo da família, da alta burguesia bolonhesa527. Aos poucos, as dívidas foram
sanadas e a oferta revista e ampliada, especialmente com livros norte-americanos, mas
também ingleses e alemães voltados às Ciências Humanas e as Artes.
A Da Vinci testemunhou sua primeira florada no final da década de 1960 e início
da década de 1970. Reconhecida pelo tipo de livro que ofertava, a casa passou a ser
considerada representante do pensamento humanístico ocidental de vanguarda, na cidade
do Rio de Janeiro (CABRAL, 2012). Embora pregasse uma política de neutralidade
ideológica, a livraria esteve associada às correntes de pensamento em voga no período
como o Estruturalismo e a Anti-Psiquiatria e às obras e autores de esquerda que abrigava
em suas prateleiras.
Fosse para se antecipar aos desejos de seus clientes-leitores, fosse por inclinação
pessoal da livreira, a Da Vinci ficou conhecida como um dos locais de referência do
pensamento político de esquerda promovido pelo mundo, cindido pela Guerra Fria. Ao
mesmo tempo, adotou uma postura diplomática no trato com os clientes e na composição
do catalogo ofertado528, estabelecendo boas relações tanto com os dirigentes e apoiadores
do Regime Militar quanto com os dissidentes e perseguidos pelo mesmo.

526
Entrevista Vanna Piraccini.
527
Entrevista Vanna Piraccini.
528
Entrevista George Gould e Florin Piraccini Duchiade.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1171
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Em seis de dezembro de 1973, aconteceu o incêndio que destruiu todo o acervo,


estoque e mobiliário da livraria. Embora nunca tenha sido provado, a fundadora e sua
família afirmam que o incêndio tenha acontecido de forma deliberada, após um início
acidental na boate do outro lado do corredor da galeria. Como indicativos de ato
criminoso, os vestígios do incêndio – a vitrine foi quebrada e um grande armário que se
localizava ao fundo arrastado para a parte frontal da loja – e a memória da livreira, que
se recorda dos gritos que ouviu quando saiu à porta da livraria naquele dia: “– Russa
Comunista!”.
Através da pesquisa documental no Arquivo Nacional e APERJ, onde estão
mantidos os documentos do DOPS entre as décadas de 1960 e 1980, foi possível
descortinar fragmentos da vigilância a livraria e a família no período. Embora a maioria
dos documentos encontrados aponte para um monitoramento esporádico das atividades
da livraria, e relacione os filhos da fundadora aos movimentos políticos de oposição ao
regime, não existem evidências da participação direta da livraria ou da livreira em tais
atividades.
Tampouco se encontra qualquer indício de que o incêndio tenha sido criminoso,
encomendado pelas forças policias repressoras que atuavam no período. Pode-se dizer,
contudo, que há, sim, indícios de alguma proximidade com estes movimentos, pela via
familiar ou social, através das redes de sociabilidade construídas na circulação ensejada
pela casa.
Logo depois do incêndio um grupo de intelectuais cariocas mobilizou-se para ajudar
a reerguer a casa livreira529, através de um fundo convertido em créditos futuros, a serem
gastos na livraria após o restabelecimento de suas atividades. Como colaboração à
retomada, um artigo de Carlos Drummond de Andrade intitulado “Aquela Livraria” no
Correio da Manhã do dia 15 de dezembro de 1973, incitava os incautos a este ato de boa-
fé, amor à cultura e gratidão pelos fundamentais serviços prestados pela casa, na formação
cultural de gerações de estudantes, acadêmicos, literatos e escritores.

Apaixonados pelo debate como todo intelectual que se


preze, os frequentadores de livrarias podem discutir sem nunca

529
Jornais da época, dezembro de 1973.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1172
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

concordar, mas na década de 70, pelo menos num ponto todos estão de
acordo: a Civilização Brasileira, a Kosmos e a Leonardo da Vinci
formam o trio de livrarias tradicionais, acolhedoras e conceituadas da
cidade. (MACHADO, 2012, p. 334-339)

Pode-se considerar o incêndio como o fechamento de um ciclo e, ao mesmo tempo,


o início de uma fase de grande prosperidade. Após a reinauguração da loja no mesmo
local em 1974, e apesar do evento traumático e do enorme prejuízo, a livraria nunca mais
sofreu nenhum tipo de ameaça ou retaliação oficial530.
Foi o decênio em que a Da Vinci consolidou seu prestígio como uma das casas
livreiras mais importantes do país, até então restrita aos círculos dos habitués e eruditos,
frequentadores usuais deste tipo de estabelecimento. As décadas de oitenta e noventa
foram um período de prosperidade financeira e reconhecimento fora do campo literário e
acadêmico.
Em 1997, Milena Piraccini Duchiade, filha primogênita, passa a trabalhar na livraria
e vai aos poucos assumindo a função de livreira-chefe. Sob o novo comando algumas
atualizações e modificações no negócio foram feitas: a casa reformada, o sistema
informático atualizado, e um catálogo com maior participação de livros nacionais
elaborado.
Isto acontece num momento de grande mudança para o varejo livreiro, com a
expansão da Amazon (fundada em 1994) - que passou a atender uma parcela de clientes
brasileiros aptos a fazer compras on-line em sites estrangeiros - e a consolidação das redes
de livrarias no país, que estavam inaugurando suas primeiras megastores em território
nacional.
Antes do final da primeira década do novo milênio, a Da Vinci já enfrentava
dificuldades financeiras, que foram sendo vencidas pelas injeções constantes de capital
financeiro pessoal da fundadora e algumas rajadas de lucro, como uma grande encomenda
feita por uma universidade angolana em 2008531. Nos anos que se seguiram, como forma
de honrar os seus compromissos e manter a livraria aberta, seus ativos foram sendo, pouco
a pouco, vendidos.

530
Outro incidente envolvendo a polícia política passou longe da livraria e esteve relacionado a invasão do
sítio da família em Nova Friburgo na década de 1980.
531
Entrevista Milena Piraccini Duchiade.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1173
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No início de 2016 concretizou-se a venda da Leonardo da Vinci a Daniel Bandeira


Louzada deixando de ser uma empresa familiar, após quase 65 anos de existência. Mais
uma vez, a livraria escapou do fechamento e renasceu para uma outra fase, próximo
capítulo de uma história marcada por ciclos e intermitências.

Atributos da identidade da “casa”: a livreira e suas práticas


Vanna Piraccini nasceu em quatorze de janeiro de 1926, na cidade de Bolonha,
capital política e centro comercial da região da Emília-Romanha, na Itália. A família
abrigava, de um lado, o estilo de vida da alta-burguesia italiana, e de outro os valores
rigorosos das culturas norte-europeias, como a sobriedade e a disciplina532. Vanna, bem
como sua irmã mais velha, viveram a infância sob os cuidados dos avós533. “Dona Vanna"
atribui sua formação e curiosidade intelectual ao seu avô materno, um professor de latim
severo que lia Goethe e outros clássicos alemães para ela, além de fazê-la praticar o latim
à mesa, durante as refeições534.
Aos dezoito anos, ingressou na Universidade de Bucareste para estudar Línguas
Neolatinas, onde permaneceu por dois anos. Em dezenove de outubro de 1946, aos vinte
anos, Vanna casou-se com Constantin Calmuschi, em Bucareste, na Romênia, num enlace
de curta duração. Após essa data, há uma lacuna de informação de aproximadamente
cinco anos em sua trajetória, onde alega-se que tenha vivido em Roma, Paris e Londres,
nesta última cidade por um curto período de tempo. Sabe-se que neste período conheceu
Andrei Duchiade, terminou o casamento e decidiu segui-lo ao novo continente.
Nos primeiros anos de sua nova rotina no Brasil, dividia-se entre as tarefas
domésticas e a função de compradora da Leonardo da Vinci, após uma breve passagem
pela Nova Galeria de Arte. Mesmo trabalhando em regime parcial, dedicava-se ao contato
com as editoras e, aos poucos, foi conquistando a confiança da clientela. A morte do

532
Entrevista Vanna Piraccini.
533
Entrevista Milena Piraccini Duchiade.
534
Entrevista Vanna Piraccini.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1174
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

companheiro535, em meados de 1965, obrigou-a a assumir integralmente o destino da Da


Vinci e da família.
Como medidas inaugurais, ela comprou a participação dos sócios536 e decidiu
ampliar a oferta da livraria. Através de novas editoras de países que já constavam
timidamente do acervo, entre eles a Itália, Espanha, Portugal e principalmente aquelas
oriundas dos Estados Unidos, com obras muito mais em conta que as similares inglesas.
No início da década seguinte, os negócios começaram a prosperar e ela, a se firmar como
livreira respeitada.

Então você tem aí um intervalo de 8 anos entre a morte do


meu pai e o incêndio da livraria, quando a livraria se consolida e saneia
do ponto de vista financeiro. Minha mãe muito mais agressiva do ponto
de vista comercial: “- Vamos importar da Itália, da Espanha e de
Portugal… Ela tinha uma postura mais inteligente, mais ousada, mais
aberta. Ela entendeu que o livro americano era muito mais barato que o
livro inglês… E ela pensava: “- Poxa vida, não preciso ficar dependendo
do livro inglês!” Eles faziam livros de capa mole muito bons, as
brochuras. Entrevista Milena Piraccini Duchiade

Foram também os anos em que ela desenvolveu seu estilo de trabalho e consolidou
sua marca pessoal no exercício do ofício. Ao longo das décadas seguintes, ela não só
aprimorou as habilidades esperadas de um bom livreiro - a procura constante de bons
títulos, o conhecimento da clientela e a forma de atendê-la - mas incorporou outras. A
forma de composição do catálogo é um exemplo.
Na busca pelas obras, além de feiras internacionais, as viagens e visitas às editoras
eram frequentes. A livraria prestava um serviço personalizado que acompanhava os
pedidos de encomendas, artífice fundamental à aquisição de conhecimento sobre as

535
Eles nunca foram casados segundo as leis brasileiras, pois a Lei do Divórcio só seria promulgada no
Brasil em 1977. No entanto, o divórcio foi assinado num tribunal parisiense no dia 15 de junho de 1959.
Em 1963 e 1964, os periódicos nacionais oficiais publicavam notícias sobre o processo de homologação do
divórcio em terras brasileiras, sentença estrangeira de número 1859. No entanto, existem documentos e
notas jornalísticas que atribuem a “Dona Vanna" o sobrenome do marido, Duchiade.
536
Oficialmente, ela retirou os sócios José Francisco Coelho e Antonio Rotundo somente em 1976. Em
1972, ela criou uma nova empresa chamada Nova Livraria Leonardo da Vinci e em 1977 ela inseriu seus
filhos como sócios do empreendimento. Fonte: Notas publicadas na seção da Junta Comercial no Jornal do
Commercio.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1175
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

preferências e interesses dos clientes e à percepção antecipada de movimentos culturais


ascendentes, entre os círculos sociais letrados do país.
O conhecimento acumulado sobre os clientes era utilizado também para fazer
encomendas por conta da casa, pensando nos interesses específicos de cada freguês. Ao
saber de lançamentos afinados à pesquisa de determinados clientes, “Dona Vanna"
encomendava-os. Iniciativa, dentre outras, que configurava uma espécie de serviço
contínuo de consultoria bibliográfica537 e a guiava nas compras de obras-primas das
correntes de pensamento em voga no Ocidente.

[…] escolhia para coincidir com o momento cultural do Brasil


na época. Depois a pessoa dizia: “- só aqui encontrei este livro! Em São
Paulo andei em todas as livrarias. Em curitiba…”. A escolha era um
critério cultural meu, mas coincidia com o momento cultural do país.
Entrevista Vanna Piraccini

Os livros, escolhidos de forma quase artesanal, não serviam somente para satisfazer
o desejo dos clientes, tinham a finalidade também de apresentar novas idéias ao público
frequentador. A percepção de certos ciclos culturais ascendentes junto aos intelectuais
brasileiros, e a atenção dedicada aos interesses específicos dos clientes são dois lados da
mesma moeda - práticas que serviram à modelagem de suas habilidades às vicissitudes
da profissão.
O sistema de contas, outra prática consagrada na Da Vinci, chegou a ter mais de
quatro mil cadastrados, em seus últimos anos contava com aproximadamente mil e
oitocentos indivíduos, entre clientes ativos e inativos. Consistia num sistema de
pagamento fracionado, que permitia que o cliente dividisse o valor da compra em
parcelas.
Conforme relatos, o sistema de contas carregava uma carga simbólica significativa,
uma espécie de “chave de acesso” a um território desejado, mas ainda inacessível para
alguns. Consequentemente, as contas - além de incentivar o consumo - funcionavam
como uma eficiente estratégia de publicidade, tornando-se um “traço de iniciação"
apreciado dentro do campo de produção intelectual e acadêmica carioca.

537
Entrevista ex-funcionários.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1176
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A livreira também é lembrada, por muitos dos entrevistados, como administradora


habilidosa e ousada na condução dos negócios. Para ilustrar, um pequeno compilado
destas práticas: o gerenciamento das dívidas de acordo com a flutuação da taxa cambial;
a política de remuneração e de incentivo aos seus funcionários, pouco usual para a época
e para o tipo de negócio; e nas três primeiras décadas, as inovações implementadas nos
anúncios publicitários dos principais periódicos cariocas.
Assim como suas políticas administrativas e práticas comerciais, a relação que a
“casa” criou e soube cultivar com indivíduos e instâncias de poder institucionalizadas
tiveram um papel significativo em sua trajetória. Diplomática na maneira de tratar os
frequentadores de diferentes matizes ideológicas e democrática quanto ao catálogo
ofertado, a livreira certificava-se de que os clientes encontrassem desde os pensadores
mais críticos àqueles simpáticos ao regime militar e à influência norte-americana no país.
Além da rede de apoio tecida entre a casa e os clientes, outro aspecto notável na
história da livraria é a relação de proximidade que foi construída com a imprensa. No
conteúdo dos principais jornais cariocas, constantes da Hemeroteca da Biblioteca
Nacional, salta aos olhos a visibilidade concedida ao estabelecimento, principalmente no
Jornal do Commercio das décadas de 1950 e 1960, no Jornal do Brasil das décadas de
1970 e 1980 e no Jornal O Globo, em décadas posteriores.
A Leonardo da Vinci aparece como fonte de matéria prima tanto para as crônicas
sobre o universo intelectual da cidade e seus clientes ilustres, muitas das quais assinadas
por Carlos Drummond de Andrade, quanto para acontecimentos dignos das colunas
sociais, além das matérias jornalísticas sobre o mercado de importação e livreiro.
Alguns trágicos elementos biográficos, assim como os altos e baixos financeiros, a
atuação da livreira e suas práticas e o catálogo foram elementos estruturais na construção
da identidade da livraria. No entanto, seria ingênuo não considerar a relação com
indivíduos bem posicionados no ambiente político e artístico-intelectual de ambos os
espectros ideológicos na sobrevivência e manutenção da casa livreira. Assim como a
relação que estabeleceu com a imprensa, colaboradora atuante na construção de narrativas
que a celebrizaram, legitimando assim o lugar de prestígio que a Da Vinci ocupou na
história e memória de parte da intelectualidade carioca.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1177
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A Livraria como empreendimento cultural bourdieusiano


De acordo com Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 1996), no campo de produção de
bens simbólicos, existe uma fragmentação dos empreendimentos culturais em duas
categorias distintas. De um lado os “empreendimentos culturais com ciclo de produção
curto”, voltados ao acúmulo de capital financeiro a curto prazo, e aqueles com “ciclos de
produção longo”, geralmente dedicados aos próprios produtores do campo e com a
perspectiva de ganhos financeiros a longo prazo.
Embora a obra de Bourdieu (BOURDIEU, 1996) refira-se especificamente às
editoras e às galerias de arte - e as livrarias não costumam ser consideradas
empreendimentos culturais, por se tratarem de um elo voltado exclusivamente à venda e
distribuição da mercadoria-livro - propõe-se que a Leonardo da Vinci possa ser
enquadrada no horizonte de análise bourdieusiano.
Além da percepção de diversos agentes do campo artístico-intelectual e acadêmico
que consideram a livraria como um espaço de “produção, incentivo ou abrigo” de bens
simbólicos para algumas gerações de literatos, intelectuais e acadêmicos do Rio de
Janeiro e do país, foram encontrados alguns elementos que a aproximariam de um
empreendimento cultural de ciclo longo, embora não alcance todos os critérios definidos
pelo autor.
A livraria consolidou-se no campo dos “produtores para produtores”(BOURDIEU,
1996, p.169) sem abdicar de algumas ferramentas comerciais utilizadas pelas empresas
voltadas à produção cultural de ciclo curto.

O êxito simbólico e econômico da produção de ciclo longo


depende (pelo menos em seus começos) da ação de alguns
"descobridores", isto é, dos autores e dos críticos que fazem a editora
dando-lhe crédito (pelo fato de ali publicar, de fornecer-lhe manuscritos,
de falar favoravelmente de seus autores etc.), e também do sistema de
ensino, único capaz de oferecer, a prazo, um publico convertido..
(BOURDIEU, 1996, p. 168-169)

É fácil identificar entre muitas personalidades, uma destas figuras capazes de trazer,
ao mesmo tempo, legitimidade e popularidade à “casa”. Um de seus “descobridores”
(BOURDIEU, 1996, p.168-169), uma espécie de padrinho oficialmente instituído, foi

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1178
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Carlos Drummond de Andrade, com uma dezena de menções - entre crônicas e notas -
sobre a casa, os livreiros proprietários e suas visitas cotidianas. Assim como a Livraria
Garnier tinha em Machado de Assis um “compadre” muito próximo (REIS, 2004), a Da
Vinci obteve o afeto, a confiança e a assiduidade do poeta por muitos anos.
Além de Drummond, a clientela que frequentava a livraria era composta de outros
indivíduos consagrados em suas áreas de atuação, entre muitos escritores, artistas e
políticos. Figuras de diferentes gerações e atividades profissionais - tais como Tristão de
Athayde (pseudônimo de Alceu Amoroso Lima), Santiago Dantas, Jorge Amado, Glauber
Rocha, Lygia Fernandes Telles, Décio Pignatari, Golbery do Couto e Silva - frequentaram
o espaço. Entre os acadêmicos figuravam: Eduardo Portela, Cândido Mendes, Sergio
Paulo Rouanet, Willian Gonçalves, Arno Vogel, Melo Fonder.
Dentre aqueles pertencentes às diversas áreas profissionais ou à comunidade
científica, e que eram, ao mesmo tempo, clientes a dinâmica era similar. Existiam, entre
os frequentadores, aqueles que conferiam prestígio à “casa” e aqueles que a frequentavam
em busca desta legitimação, à procura desse “capital simbólico” (BOURDIEU, 1996)
extrínseco às obras vendidas.
Este “círculo virtuoso" garantiu não só a frequência “qualificada” durante décadas,
como proporcionou o acúmulo de capital financeiro a partir da segunda metade da década
de 1970, outra característica em alinhamento com os empreendimentos culturais de ciclo
longo, segundo Bourdieu (BOURDIEU, 1996, p. 170-171). Foi a partir desta década que
a Da Vinci passou a ser conhecida e reconhecida por indivíduos alheios ao ambiente de
produção cultural erudita, conferindo uma alta carga de significado simbólico aos livros
vendidos e à clientela frequentadora.

Considerações finais
Por fim, pode-se concluir que os “trunfos” da Livraria Leonardo da Vinci não se
limitaram à elaboração do catálogo nem à figura da livreira no comando. A longevidade
alcançada e o espaço de prestígio ocupado pela livraria, na memória da cidade do Rio de
Janeiro na segunda metade do século XX, demonstraram estar baseados num emaranhado
de fatores intrínsecos e extrínsecos ao negócio da livraria.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1179
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Estes, quando reunidos, apresentam um mosaico de atributos, práticas e iniciativas


que estão na base de sua consagração: ao incentivar a criação de laços entre e com os
funcionários, que trabalhavam motivados pela política de benefícios da livraria; ao prestar
um serviço que incluía uma minuciosa consultoria bibliográfica prévia, entre outras
comodidades; ao fortalecer a política de encomendas, que provou ser um sistema eficiente
de pesquisa sobre os interesses dos clientes; ao privilegiar o sistema de contas que
significava crédito e acesso aos livros, até então indisponíveis, para uma parcela da
população interessada.
Ao diversificar o portfólio de clientes, atendendo as demandas de instituições e
empresas, e ao adotar uma estratégia de divulgação inovadora, nos principais veículos
impressos; ao estabelecer relações amistosas e de parceria com as instâncias de poder
institucionalizadas, na esfera política, acadêmica e midiática. E sobretudo, ao provocar e
alimentar o “burburinho” intelectual, artístico e acadêmico em torno do subsolo da
Avenida Rio Branco, 185.

Documentação
CABRAL, Severino. Severino Cabral: depoimento [12 nov. 2012]. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional, 2012. Entrevista concedida ao projeto Os livros e a vida literária no
Rio de Janeiro da Biblioteca Nacional.

DE ANDRADE, Carlos Drummond. “Cultura”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 abr.


1982, Caderno B.

DUCHIADE, Milena Piraccini. Milena Piraccini Duchiade: depoimento [12 nov. 2012].
Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2012. Entrevista concedida ao projeto Os livros e a
vida literária no Rio de Janeiro da Biblioteca Nacional.

PIRACCINI, Vanna. Vanna Piraccini: entrevista [1998]. 1º CD. Disponível no Arquivo


Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

Bibliografia
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo:
Cia das Letras, 1996.

GERLACH, Markus. Proteger o livro: desafios culturais, econômicos e políticos do preço


fixo. Rio de Janeiro: LIBRE – Liga Brasileira de Editores, 2006.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1180
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. 3º edição. São Paulo: Edusp,
2012.

MACHADO, Ubiratan. História das livrarias cariocas. São Paulo: Edusp, 2012.

REIS, Rutzkaya Queiroz dos. Machado de Assis e Garnier: o escritor e o editor no


processo de consolidação do mercado editorial. In: SEMINÁRIO BRASILEIRO SOBRE
LIVRO E HISTÓRIA EDITORIAL, 1., 2004, Niterói. Anais ... Niterói: UFF, 2004.

THOMPSON, John B. Mercadores de cultura. São Paulo: Unesp, 2013

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1181
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O bom vassalo nasce no coração do rei: Juan de Palafox e sua visão de


Monarquia

FLAVIA SILVA BARROS XIMENES


Programa de Pós Graduação em História/UFF. CNPQ

Durante muito tempo as coisas de César e as de Deus andaram juntas, se fundiram


e confundiram de forma que por muito tempo foi impossível saber exatamente o que dar
a quem, já que não era possível ver com clareza a linha tênue que separava as posses de
proprietários tão distintos.
Na península ibérica do século XVII a ordem sócio-política baseava-se
fundamentalmente no catolicismo, e a política era indissociável do elemento religioso,
onde o dever primordial do rei era defender a fé católica. A Coroa Hispânica, desde o
século anterior envolvida na guerra pela independência dos Países Baixos, passara a
enfrentar também, desde 1618, a Guerra dos Trinta Anos, enredando-se num crescente
déficit de recursos agravado cada vez mais pelos custos militares. A crise se aprofundaria
em 1640 com a rebelião da Catalunha e a independência de Portugal, que pôs fim aos
sessenta anos de união das Coroas Ibéricas.
Nesse contexto turbulento, Juan de Palafox y Mendoza se destacou na política do
mundo hispânico. Depois de passar pelos Conselhos de Guerra e das Índias chegou à
Nova Espanha como visitador e bispo e em meio ao panorama de crise e guerra que
envolvia a monarquia hispânica tentou tomar as rédeas das reformas que considerava
necessárias no Novo Mundo, guiado pelo seu ideal de monarquia. A Coroa, em sua
opinião, deveria mudar a sua forma de governar não só nos territórios europeus, mas
também nas Índias e foi com essa intenção em mente que aportou na Nova Espanha como
visitador e agarrou com ímpeto a possibilidade de se tornar vice-rei. Tentou fazer da Nova
Espanha parte integrante e atuante da monarquia hispânica, com os mesmos direitos e
deveres dos reinos peninsulares. Suas ousadas propostas e atitudes conquistaram tanto
partidários fiéis como poderosos desafetos.
O presente trabalho pretende discutir como seu ideal de monarquia influenciou
sua atuação na Nova Espanha, quando reuniu em suas mãos a autoridade das esferas
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1182
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

secular e religiosa e o prestígio advindo dessa posição como bispo, visitador geral e vice-
rei interino.

Juan de Palafox y Mendoza nasceu em 24 de junho de 1600, filho ilegítimo de D.


Jaime de Palafox y Rebolledo, segundo marquês de Ariza, e Dona Ana de Casanate e
Espés. Estudou filosofia e direito em Huesca e Alcalá de Henares e em 1620 graduou-se
em direito canônico na Universidade de Salamanca, centro dos grandes debates da época,
em especial da questão reformista, que crescia a medida em que a monarquia espanhola
se afastava do “século de ouro”. No início do século XVII a Coroa espanhola sofria uma
crise financeira, e era difícil manter o controle sobre seus territórios, o que já havia levado
à perda dos Países Baixos em 1580 e sessenta anos mais tarde levaria à perda de Portugal.
Um grupo de intelectuais, chamados de arbitristas, começa a publicar obras fazendo
críticas e propondo soluções ao problema da monarquia. Com a crescente debilidade da
economia ameaçando a Coroa há o despertar de uma consciência da crise, que leva a um
debate intenso para buscar suas razões. O reformismo deixa de ser um projeto dos
arbitristas para fazer parte do discurso da elite política da época. No entender dos
reformistas o declínio da Coroa não era de fundo político ou econômico, mas tinha como
causa a decadência da moral e dos costumes que dominava a monarquia em todos os
setores.
Em meio à efervescência reformista Palafox, tão logo se gradua na Universidade
e após uma breve e frustrada tentativa de seguir a carreira militar, é encarregado por seu
pai de tutelar seu irmão mais moço e administrar o marquesado de Ariza. Em 1626 é
chamado para representar a nobreza nas Cortes Aragonesas convocadas por Felipe IV
para negociar a contribuição à União de Armas, projeto do conde-duque de Olivares que
propunha a criação de um exército comum para todos os reinos da Monarquia espanhola,
sustentado igualmente por todos com recursos humanos e financeiros.
Sem abrir mão das prerrogativas aragonesas Palafox defendeu a proposta real,
afirmando que a colaboração com a Coroa fortaleceria a posição de Aragão perante o rei,
oferecendo maiores possibilidades de ascensão a seus habitantes. Ao final das cortes, as
partes entraram em acordo: em troca do apoio a União de Armas, os aragoneses teriam
maior participação nos cargos da administração real. Essa medida estava em perfeita
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1183
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

concordância com a intenção de Olivares de integrar a Monarquia, tornando-a mais


homogênea e unificada como um só reino em torno de um monarca.
Os esforços de Juan de Palafox e sua lealdade ao rei chamaram a atenção do
conde-duque de Olivares, que reconheceu o potencial do jovem aragonês e no mesmo ano
de 1626 o nomeou como procurador do Conselho de Guerra. Este ano foi um divisor de
águas na sua carreira, quando se transformou de um promissor nobre de Aragão em um
dos membros do círculo de preferidos de Olivares, os favoritos do favorito do rei. A rede
de clientelismo de um valido era ampla e complexa, integrando múltiplos indivíduos sob
sua influência direta ou indireta, integrando o reino amplamente sob seu controle
(OLIVEIRA, 2011).
Recebeu as ordens sacerdotais em 1629 e alguns meses depois, no mesmo ano, foi
nomeado fiscal do Conselho das Índias. Ainda em 1629 Palafox foi nomeado capelão e
limosnero mayor da irmã do rei, a infanta dona Maria, com a missão de escoltá-la em sua
viagem a Viena onde encontraria seu marido Fernando III, rei da Boêmia e da Hungria.
Olivares encarregou seu protegido de obter informações sobre as condições de aliados e
inimigos da Coroa espanhola e recolher todas as informações relevantes que obtivesse.
Como solicitado, Palafox escreveu um diário sobre a viagem538, mas para
desapontamento de Olivares dedicou maior atenção a análise de regiões periféricas da
coroa, como Aragão e Catalunha, mais preocupado com a possibilidade de revoltas
domésticas do que com inimigos externos num primeiro sinal de distanciamento,
aparentemente insignificante, das ideias de seu protetor, mas que deixava claro que no
futuro as visões políticas dos dois homens iriam se distanciar ainda mais (TOLEDO,
2004, p.28).
Ao contrário de Olivares, para quem a solução do declínio espanhol era a
centralização e a unificação da autoridade real em todos os territórios, Palafox cria
fortemente na manutenção das leis e costumes próprios de cada reino que deveriam ser
respeitados pelo rei para o crescimento da monarquia e a manutenção de seus territórios.
Apesar disso, Palafox se manteve fiel a Olivares embora as diferenças entre seus pontos
de vista ficassem mais claras a cada dia, como quando recusou o apoio a publicação de

538
O diário depois de ser considerado perdido foi encontrado e publicado em 1935, em Madrid, com o
nome de Diario del viaje de Alemania. Obra inédita del venerable don Juan de Palafox y Mendoza.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1184
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

um panfleto anti-França temendo o agravamento do isolamento espanhol, o que deixou


seu protetor furioso (TOLEDO, 2004, p.35).
Retornando a Madrid Palafox retomou seu posto no Conselho das Índias e logo
foi promovido a conselheiro, tendo então a oportunidade de entrar em contato com o
governo do Novo Mundo e suas particularidades. Do outro lado do oceano havia uma
tensão constante entre peninsulares e criollos, numa constante disputa por cargos na
administração e por privilégios para seu grupo. A esfera religiosa também não estava
isenta de conflitos. A Igreja das Índias estava subordinada à Coroa pelo Patronato Real,
concedido mediante uma série de bulas papais, que Numhauser sustenta ser a pedra
angular sobre a qual a monarquia espanhola, e também a portuguesa, construiu seu
sistema de governo, salientando que originalmente as prerrogativas concedidas pelo papa
possuíram um caráter de privilégio para fins religiosos, mas foram utilizadas por estas
monarquias como uma ferramenta para dominar, excluir e se defenderem de qualquer
intervenção em seus reinos (NUMHAUSER, 2013), principalmente a Coroa espanhola,
que mantinha um duro controle sobre sua Igreja e seu clero. Dando sequência a seus
planos de reforma e aumento da intervenção governamental, Olivares enviou as Índias
como vice-rei o Marques de Gelves com a incumbência de pôr seu plano em prática, o
que resultou em desagrado e, em 1624, numa revolta que culminou com a fuga
desesperada de Gelves da fúria da população disposta a assassiná-lo. Em 1939 a notícia
de uma nova ameaça a autoridade de um vice-rei chegava à corte, desta vez o marques de
Cadereita era desafiado por uma facção que incluía membros da audiência do México. O
Conde-duque então decidiu enviar um visitador geral para restaurar a ordem e zelar pelos
interesses da Coroa: o escolhido para a missão foi Don Juan de Palafox.
Nomeado visitador geral em março de 1639 e ordenado bispo de Puebla de Los
Angeles, maior diocese da Nova Espanha, em dezembro do mesmo ano, Palafox, munido
de amplos poderes seculares como visitador e não menos ampla influência religiosa
conferida pelo bispado, numa época em que as esferas política e religiosa se
interpenetravam, embarcou rumo à Nova Espanha, onde aportou em junho de 1640. Ao
assumir o bispado de Puebla, tinha dois objetivos principais: transferir o controle das
paróquias indígenas das ordens mendicantes para o clero regular e obrigar os jesuítas a
pagar os dízimos a igreja diocesana. Havia uma longa história acerca do enfrentamento
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1185
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

entre bispos e ordens regulares, já no século anterior o então arcebispo do México, don
Pedro Moya de Contreras tinha se envolvido em longos e infrutíferos embates com as
ordens, e com Palafox não foi diferente.
Em 1641, após a notícia da rebelião portuguesa, o vice-rei duque de Escalona é
deposto após acusações de conspiração com os portugueses rebeldes, que apesar de não
serem substanciais, foram suficientes para alarmar a corte e selar a deposição do vice-rei.
Depois da deposição de Escalona, Palafox é empossado como vice-rei interino e arcebispo
do México, além de visitador-geral. Foi o momento de maior concentração de poder em
suas mãos, reunindo a autoridade e prestígio das esferas religiosa e secular. Por suas
atitudes em relação à oligarquia local, conquistou o apoio dos criollos, se esforçou por
uma administração baseada na observação dos decretos reais, na distribuição equitativa
da justiça e na restauração da moralidade pública. Não obstante, a Coroa desejava ver a
eficiência financeira da sua gestão, e Palafox, além de não querer usar meios coercitivos
para aumentar a arrecadação, propunha a redução das demandas fiscais, indo contra o
imposto do papel selado e se colocando a favor da remoção das barreiras para o comércio
entre as Índias e as Filipinas, medida polêmica já que comerciantes peninsulares
sustentavam que essa interação prejudicaria os interesses reais. Reformar a administração
da Nova Espanha era um risco que a Coroa não queria correr num momento de fragilidade
interna e externa e, assim, em novembro de 1642 o conde de Salvatierra substituiu Juan
de Palafox como vice-rei.
O vice-reinado de Salvatierra é o início de tempos difíceis para Palafox, um
período marcado por tensões políticas, onde não pode contar com seu patrono, conde-
duque de Olivares, que caiu do poder em 1643, mesmo ano em que Palafox havia
renunciado ao cargo de Arcebispo do México. Duas visões estavam em choque: a do
conde, para quem o necessário era recolher impostos para o tesouro real, e a de Palafox,
que queria reformas profundas cujos resultados seriam vistos a longo prazo.
Juntamente com as altercações com Salvatierra, o bispo se enfrentaria com os
Jesuítas num confronto que ultrapassaria os limites da Nova Espanha. Já em 1642, com a
cobrança dos dízimos aos jesuítas, que se recusavam a pagá-los, os ânimos estavam
exaltados. Por doação papal os dízimos do Novo Mundo pertenciam à Coroa, que os
distribuía, logo, deixar de pagá-lo lesava o rei, que não recebia o devido, e a Igreja, que
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1186
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ficava sem a doação correspondente. O conflito explodiu em 1647, quando Palafox pediu
que os jesuítas apresentassem suas licenças para pregar e confessar dentro de vinte e
quatro horas, sob pena de serem proibidos de exercer essas funções. Embora tivessem as
licenças, os frades recusaram-se a apresentá-las e a partir daí seguiram-se acusações de
parte a parte, ataques mútuos, excomunhões recíprocas, com intervenções da Igreja e da
Coroa – só em janeiro de 1648 o rei expediu catorze cédulas sobre a contenda. Os jesuítas,
as ordens mendicantes e Salvatierra finalmente convergiram numa conexão que visava
aniquilar o programa reformista de Palafox em todas as frentes.
Mais que uma disputa religiosa, tratava-se de uma questão política entre
Salvatierra e Palafox acerca da reforma da Nova Espanha. A decisão do visitador de pôr
em prática a reforma dos alcaides maiores acabaria por selar seu destino. Com a ameaça
de submeter os alcaides à visita geral o vice-rei conseguiu que o Cabildo do México –
subornando uma facção e obrigando o restante a fugir – escrevesse ao rei pedindo o fim
da visita geral, e publicou um edito acusando o visitador de incitar a rebelião. Acusado
de sedição, com os ânimos da população exaltados em seu favor, o que motivou um
tumulto em Puebla, Palafox saiu da cidade e se escondeu em São Jose de Chiapas, num
auto-exílio que durou de junho a novembro de 1647.
Em setembro de 1647 chegaram ordens de Madri para por fim a contenda: o conde
de Salvatierra foi designado como vice-rei do Peru, o que, afinal, equivalia a uma
promoção e Palafox recebeu ordens de encerrar a visita geral, mas só em novembro, com
a chegada do governador interino da Nova Espanha, saiu do seu esconderijo e retornou à
sua diocese. O fim de seu projeto reformista foi decretado por uma ordem datada de
fevereiro de 1648, a qual determinou que embarcasse no primeiro navio para a Espanha,
e em junho de 1649 deixa a Nova Espanha para onde, apesar de seu desejo, não mais
voltaria.
Temendo novas disputas os ministros o transferem do Conselho das Índias para o
de Aragão, o que entendeu como uma punição e uma forma de afastá-lo de qualquer
possibilidade de tentar implantar seus planos de reforma. O juiz de residência que
examinou sua conduta como visitador e vice-rei o declarou virtuoso e íntegro ministro e
servidor zeloso do rei; livre de acusações, oficialmente seu nome estava limpo. A disputa
com os jesuítas foi encerrada após dois breves papais em favor de Palafox. Com o nome
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1187
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

limpo na esfera temporal e a moral restaurada na religiosa, sua esperança era retornar a
Puebla e recuperar sua diocese, mas ao invés disso foi apontado para o pobre bispado de
Osma, em Castela, o que muitos de seus amigos viram como uma afronta.
Desapontado, sem o reconhecimento de seus serviços à Coroa, sem esperança de
rever a diocese de Puebla, para onde despachou uma comovedora carta de agradecimento
aos fiéis, partiu em 1654 rumo ao seu novo bispado, onde se dedicou à meditação e ao
asceticismo, enquanto prosseguia com sua profícua obra literária que incluía várias cartas
e tratados, tanto de cunho político quanto religioso. Em 1659 adoece e morre em Osma,
sendo enterrado na capela principal da catedral, encerrando assim sua agitada e polêmica
carreira.
Para Palafox a monarquia não era simplesmente a forma de governo exercida por
um rei, mas condicionava o uso do termo Monarquia a uma situação específica: “No es
Monarquia um Reyno grande, por poderoso que sea, sino no domina sobre otros grandes,
y poderosos” (MENDOZA, 1762, Tomo X, p. 37).
Então um reino como Castela, por mais poderoso que fosse não poderia ser
Monarquia enquanto estivesse cercada de outros como Aragão, Navarra ou Portugal, que
poderiam a ela se opor. A Monarquia espanhola só teria sido digna do nome quando
agregou vários reinos sob o governo de Carlos V, no entanto, essa união não durou muito,
levando o bispo a questionar porque Deus dá vida longa a umas monarquias, sendo más,
e breve a outras, sendo boas, comparando a breve duração da Monarquia espanhola, com
o Império Assírio, que durou mais de mil e duzentos anos, o Romano, que durou mais de
seiscentos e outros de grande duração. Como constata Elliot (2004, p.13) reformación e
declinación eram duas palavras inseparáveis que estavam frequentemente na boca dos
espanhóis do século XVII e Palafox cresceu à sombra tanto da visão de um iminente
declínio da monarquia espanhola quanto do saudosismo que invocava reformas que
trariam o retorno dos tempos gloriosos. E é a consciência do declínio e necessidade de
reforma que vão nortear todo o pensamento político de Palafox e também sua ação na
Nova Espanha. Na obra Diálogo Político del Estado de Alemania539, escrito para o rei
Felipe IV, através do diálogo entre dois personagens fictícios expõe suas idéias acerca da

539
O Diálogo Político del Estado de Alemania está inserido no Tomo X das Obras de Juan de Palafox.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1188
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

superioridade da Espanha sobre as demais nações, entre as quais a fé católica e o modelo


de monarquia composta, unida sob um rei e uma fé, mas com leis diferentes em cada reino
segundo a particularidade de cada um.
Boa parte de suas preocupações políticas dirigiram-se ao rei, coração da
Monarquia, o qual para reinar com felicidade devia cumprir principalmente três pontos:
primeiro, conquistar e manter o amor dos vassalos; segundo, que os ministros respeitem
e temam o rei e terceiro, não permitir que ninguém seja mais estimado e temido que ele,
o que evitaria um mal “perniciosíssimo” que assolava monarquias inteiras, o dedicar-se
ao ministro a reverência devida ao rei e o considerar-se mais os preceitos do vice-rei que
os do rei. Outro ponto de grande importância é a independência real. No seu Ditames
Espirituais540, escrito em 1638, em pleno andamento das reformas de Olivares, abundam
exortações para que o rei “obre por si mesmo’ e faça justiça. Justiça entendida pelo bispo
como premiar os bons, castigar os maus e fazer e executar boas leis. O prêmio e o castigo
são tidos como os dois polos sobre os quais se forma e reforma uma monarquia, e uma
forma de atrair danos é punir os zelosos e premiar os dissolutos.
Palafox não transigiu jamais com sua posição em favor do constitucionalismo.
Defende que a unidade da Coroa é sua fé e seu rei, tendo cada reino suas leis e
características próprias, devendo o monarca visitar seus reinos, comportando-se como se
fosse nascido em cada um, granjeando assim o amor dos súditos, outro conceito que
perpassa os escritos políticos palafoxianos:“Claro está que un Rey Catolico (...) teme mas
las lagrimas de sus vasallos, que las lanzas de sus enemigos” (MENDOZA, 1762, Tomo
X, p. 73) para o bispo, o amor do vassalo é o grande tesouro do seu rei.
Palafox chega à Nova Espanha quando a prioridade da Coroa eram as exigências
da guerra. Era necessário que as remessas de recursos continuassem fluindo das Índias
rumo a uma Espanha cada vez mais acossada por seus inimigos, e na ânsia de honrar seus
compromissos militares o governo de Olivares adotava medidas progressivamente mais
autoritárias, intervindo cada vez nas Índias com o fim de obter maiores rendimentos.
Porém o interesse de Palafox não era apenas obter maior aporte financeiro para a
Coroa, mas manter a integridade do que restava do Império Espanhol. Se a grande

540
Dictamenes Espirituales e Políticos, também inserido no Tomo X das Obras de Juan de Palafox.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1189
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

monarquia de Carlos V havia se desmantelado, ele estava disposto a evitar que se perdesse
ainda mais, e em sua opinião as Índias tinham um grande potencial de oferecer uma
grande contribuição a Coroa, mais do que simplesmente financeira, mas como um grande
reino anexo à Castela. Para isso seu plano era reformar totalmente a relação entre a
Espanha e as Índias atendendo aos interesses e necessidades locais, projeto
diametralmente oposto ao de Olivares.
O bispo abraçou a causa dos criollos, defendendo seus interesses, e finalmente a
oligarquia criolla viu a possibilidade de ter suas aspirações políticas atendidas. Palafox
advogou, junto ao Conselho das Índias, a redução dos impostos sobre a Nova Espanha e
pediu a suspensão da introdução de novos impostos, notadamente o do Papel Selado.
Ainda apoiou as reivindicações para o fim das restrições das relações comerciais entre a
Nova Espanha, as Filipinas e o Peru e, continuando suas sugestões ao Conselho, propôs
a redução do preço de mercúrio para incrementar a produção da prata e permitir que os
mineiros pagassem suas dívidas com a Coroa mais facilmente. Para ele, os tributos
deveriam ser cobrados com equilíbrio, sem que faltasse à Coroa nem se exaurissem os
reinos. Essa postura fez a alegria da comunidade criolla, conquistou o apoio de grande
parte da população e o descontentamento do vice-rei, duque de Escalona, na mesma
medida. Começava uma desinteligência entre os dois homens de visões opostas, que
terminaria com o bispo aproveitando a revolta portuguesa para tirar o vice-rei de seu
caminho, levantando contra ele a suspeita de conspiração. Com a deposição de Escalona
Palafox ocupou seu lugar como vice-rei, começando imediatamente a implantar
mudanças no governo.
Para gáudio da comunidade criolla, o bispo se encarregou de promover benefícios
em prol de seus interesses econômicos e sociais, começando por expulsar os portugueses
das costas da Nova Espanha, deixando o comércio em mãos espanholas e suspendeu o
imposto do Papel Selado. No entanto sua posição não agradou uma coroa cada vez mais
envolvida pela guerra e seus gastos. Sua relutância em impor novas taxas e a decisão de
restaurar as finanças da Nova Espanha antes de aumentar os rendimentos para a própria
Coroa, além de se posicionar contra sua política mercantilista despertou a preocupação
de uma Madrid disposta a não correr riscos com experimentos no governo das Índias e,
contra sua vontade, o vice-rei Palafox foi substituído pelo conde de Salvatierra.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1190
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Salvatierra tinha o pensamento oposto ao de Palafox e sua primeira providência


para aumentar a arrecadação foi cobrar as dívidas que o Cabildo do México tinha com a
Coroa, terminando por declará-lo insolvente e tirou seu poder sobre administração das
alcabalas. Em franco desafio ao bispo resolveu impor a cobrança do Papel Selado, o que
provocou tamanha comoção no vice-reino que fez o conde voltar atrás. A prioridade do
conde era obter recursos para as finanças da Coroa espanhola, cada vez mais necessitadas,
não hesitando em impor pesados tributos sem se importar em como iriam afetar a
economia da Nova Espanha. Palafox pensava que o modo de Salvatierra conduzir o
governo era o mesmo que havia levado à sublevação da Catalunha e de Portugal e
criticava o conde, dizendo que a solução não era exaurir os súditos, mas reformar a
administração, já que para ele o conde usava a crise da Coroa da justificar o abuso dos
funcionários do vice-reino. A rivalidade entre o visitador e o vice-rei era o confronto entre
duas formas diferentes e opostas de governar e nenhum dos dois homens iria mudar seu
ponto de vista.
Palafox decidiu, por fim, em 1646 usar sua prerrogativa de visitador geral para
investigar os alcaides maiores. Estes funcionários eram escolhidos pelo vice-rei, que
aproveitava para entregar o posto a seus clientes, indignando os criollos, que só
conseguiam tal posto mediante a compra, pagando altas quantias. Além disso, o usual era
que estes funcionários ocupassem tais cargos com a finalidade de tirar a máxima
vantagem financeira dele, o que incentivava abusos e corrupção como a exploração da
população indígena, que era obrigada a aceitar a compra de mercadorias a alto preço, com
castigos a quem não pudesse pagar. Os espanhóis eram obrigados a vender seus produtos
a preços baixos, para que os alcaides pudessem revendê-los com lucro e a Coroa também
era prejudicada, pois não pagavam a alcabala. O Conselho das Índias embora conhecesse
o problema nunca interveio, pois achava que o lucro obtido pelos funcionários
compensava seus baixos salários. O projeto de Palafox era substituir os alcaides maiores
por alcaides ordinários escolhidos pela comunidade, acreditando que com isso a Coroa
seria beneficiada não só com o aumento da receita, mas com a fidelidade das elites locais.
Mas a decisão de submetê-los à visita geral provocou a reação imediata do grupo que
pressionou o conde de Salvatierra, que fez com que a Audiência revogasse a decisão.
Disposto a acabar com a interferência do visitador, conseguiu que o Cabildo do México,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1191
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

através de ameaças e subornos, escrevesse ao rei pedindo o fim da visita geral e apoiado
não só pelo Cabildo, mas pelas ordens religiosas e a Inquisição acusou o bispo de
fomentar a rebelião no reino. Acusado de sedição, Palafox não teve alternativa senão
desistir da reforma. O Conselho das Índias suspendeu a visita geral, sepultando assim as
suas aspirações de um novo governo nas Índias.

A Monarquia ideal de Palafox fica muito clara nos seus escritos: Um reino que
tem sob seu comando outros reinos poderosos. O coração e líder desse império é o rei
católico e zeloso da fé, que ama seus súditos e é amado por eles, reinando em função de
conquistar e manter esse amor. Esse rei é uma figura forte, que “obra por si mesmo” e
mantém em suas mãos as rédeas do governo “e não as entrega ao servo”. Seria esse anseio
pela independência real suscitado pela influência do conde-duque de Olivares sobre
Felipe IV?
A característica principal de seu pensamento político é a defesa do pluralismo da
monarquia espanhola, com vários reinos agregados sob o comando de um monarca.
Palafox acreditava que não era possível aplicar regras gerais de governo a uma estrutura
intrinsecamente diversificada. Para ele a unidade e a diversidade dessa monarquia não
eram contraditórias e poderiam coexistir, sendo necessário para isso que o rei defendesse
os interesses particulares de cada um dos territórios sob sua autoridade.
De acordo com esse ideal tentou reformar o governo da Nova Espanha, sem medir
esforços nem hesitar. Ao invés da solução rápida de aumentar a arrecadação dos cofres
reais preferiu formar uma base sólida na qual a monarquia pudesse se apoiar, sem o risco
de revoltas como a de Portugal. Além do sistema corrompido, esbarrou na necessidade da
Coroa, que tinha urgência em conseguir recursos e não podia se arriscar num projeto de
reforma cujo resultado só veria a longo prazo, se a empresa obtivesse sucesso.
Não só propôs uma alternativa ao sistema de governo vigente, mas tentou torná-
la realidade: seus esforços concentraram-se em três grandes áreas: reduzir a pressão fiscal
sobre o vice-reino, limitar os poderes do vice-rei e reformar a administração a nível local
(TOLEDO, 2004).
Sua intenção de reformar a base das relações entre a Coroa e as Índias esbarrou
no pragmatismo de dois vice-reis, que não compartilhavam das idéias do bispo e
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1192
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

priorizavam a arrecadação financeira visando resolver os problemas imediatos da


península, muitas vezes atropelando os interesses locais.
Convencido do acerto de seus propósitos aferrou-se a eles com a tenacidade dos
que creem ter razão e pagou o preço acumulando inimigos, rivalidades e mesmo ódios
viscerais. Acreditando fazer a vontade de Deus embrenhou-se na seara de César e seguiu
lutando até o fim sem parar nem se deter perante as oposições, mas tanta determinação
não impediu que seus planos fossem frustrados. Com quase dois séculos de antecedência,
previu a independência das Índias (TOLEDO, 2004) em advertência ao rei do perigo de
não por em prática seu projeto de reforma, pois se não fizesse as mudanças necessárias,
pela distância em que se encontravam, os vice-reinos ficariam também politicamente
separados do reino.

FONTES

MENDOZA, Juan de Palafox y. Obras del Ilustrissimo, Excelentissimo e Venerable señor


Don Juan de Palafox y Mendoza, Tomo X, Madri, 1762.

____________________ Obras del Ilustrissimo, Excelentissimo e Venerable señor Don


Juan de Palafox y Mendoza, Tomo XI, Madri, 1762.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIRRE, Rodolfo; ENRÍQUEZ (Coords.) La Iglesia Hispanoamericana, de la colonia


a la república. México: Plaza y Vadés Editores, 2008.

BOADELLA, Monserrat Galí (Org.) La Pluma e El Baculo. México: BUAP, 2004.

ELLIOTT, John H. Imperial Spain: 1469-1716. London: Penguin Books, 2002.

_______________ Reformismo en el mundo hispânico: Olivares y Palafox. In:


BOADELLA, Monserrat Galí (Org.) La Pluma e El Baculo. México: BUAP,
2004.ELLIOTT, J. H. & BROCKLIS, Laurence. El Mundo de los Validos. Madrid:
Taurus, 1999.

GARCIA, Antonio Rubial (coord.) La Iglesia en el México Colonial. México: Ediciones


de Educación y Cultura, 2013.

GARCIA, Arturo Morgado. Ser clérigo en la España del Antiguo Régimen. Cádiz:
Universidad de Cádiz, 2000.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1193
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

KAMEN, Henry. Spain, 1469-1714: A Society of Conflict. United Kingdon: Pearson,


2005.

MAZÍN, Oscar. El poder y las potestades del rey.Los brazos espiritual y secular en la
tradición hispanica. In: La Iglesia en Nueva España. Problemas y perspectivas de
investigación. México Universidad Nacional Autónoma de México, 2010.

NUMHAUSER, Paulina. El real patronato em índias y la compañia de Jesus durante el


período filipino (1580-1640). Boletin Americanista, Barcelona, año LXIII. 2, n. 67, 2013.

OLIVEIRA, Ricardo de. Entre reis e rainhas: valimentos, favoritismos e disputas


políticas na Europa do século XVII. Dimensões, vol. 26, 2011.

PORRAS, Guillermo. El Regio Patronato indiano y la evangelización. Scripta


Theologica. Año 1987, vol. 19 (3), p. 755-769.

TOLEDO, Cayetana Alvarez de. Politics and Reform in Spain and Viceregal Mexico: The
life ant Thought of Juan de Palafox 1600-1659. New York: Oxford University Press Inc.,
2004.

TOLEDO, Cayetana Alvarez de. El proyecto político de Palafox: una alternativa


constitucional en tiempos de crisis. In: BOADELLA, Monserrat Galí (Org.) La Pluma e
El Baculo. México: BUAP, 2004.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1194
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Protestantismo, abolição e imprensa evangélica

GABRIEL SANTOS PAIXÃO


Programa de Pós-Graduação em História
Universidade Salgado de Oliveira

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo fazer uma breve exposição da atuação dos
protestantes no Brasil, da segunda metade do século XIX, no que diz respeito ao uso da
imprensa e aos ideais abolicionistas, considerando que tal tema continua obscuro,
necessitando ainda um grande avanço na historiografia para que seja trazido à luz os
contornos que dão forma à história desse grupo. Muitos dos livros sobre o tema foram
escritos por educadores, sociólogos e pastores, vários numa escrita muito mais narrativa
do que problematizadora, cabendo agora ao historiador pesquisador acabar com esse
silêncio541, respondendo sobre como os protestantes utilizaram a imprensa na segunda
metade do século XIX e se ouve ou não algum tipo de atuação direcionada a propósitos
abolicionistas.
Buscaremos estar atentos a algumas questões em nossa análise da imprensa
evangélica no Brasil como, por exemplo, quais atores sociais redigiam o jornal, quais as
estratégias que utilizavam para popularizá-lo e quais valores o discurso defendia?
Também serão feitas algumas considerações envolvendo o catolicismo, visto que
estamos falando da religião oficial do império, e como a atuação protestante na imprensa
diante da escravidão se relaciona com o catolicismo, sendo que este via com maus olhos
a penetração do protestantismo na sociedade brasileira, já que o catolicismo estava
praticamente onipresente tendo em vista o aspecto cultural.
Antes de mais nada, faremos uma breve introdução da chegada dos protestantes
no Brasil, visando fazer uma contextualização sobre o cenário religioso na época em que
iremos tratar e no final traremos algumas informações preciosas sobre a Igreja Evangélica

541
FONSECA, A. B.. A imprensa evangélica no Brasil do século XIX e XX, um olhar sobre a questão da
escravidão e o progresso. In: X Encontro Regional de Historia - Anpuh, 2002, Rio de Janeiro. Anais
eletrônicos do X Encontro da Anpuh. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1195
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Fluminense, sendo um caso peculiar que se relaciona com nosso tema.

CHEGADA DOS PROTESTANTES NO BRASIL

Não havia no Brasil ao iniciar o século XIX sequer vestígio de protestantismo. Os


protestantes que passaram por aqui não deixaram traço no sistema religioso. As tentativas
de franceses e holandeses de fortalecerem a fé protestante somente serviram para o
protestante ser identificado com invasor. O último hunguenote tinha sido enforcado no
Rio de Janeiro em 1567. Já os holandeses foram embora sem seus pastores deixarem no
país uma igreja reformada, e os sinais de catequese dos índios desapareceram.542
Após a vinda da família real, mesmo antes da abertura dos portos, estrangeiros
começaram a entrar e entre eles protestantes, como no caso de alguns suecos que vieram
para São João de Ipanema, em São Paulo, em 1810. Ainda naquele ano, com o Tratado
de Aliança e Amizade, e de Comércio e Navegação foi aberta a brecha para o
protestantismo penetrar o Brasil.543
Desse momento em diante, aos poucos, vários estrangeiros que provinham de
outros países protestantes foram chegando. Entre eles haviam norte-americanos, suecos,
dinamarqueses e escoceses, com a maioria se instalando na Corte, embora muitos tenham
ido para outros lugares do país, especialmente Bahia, Recife e Minas, e com o tempo
passaram a ser estabelecidas igrejas protestantes.544
Contudo, cabe dizer que antes que houvesse protestantismo no Brasil, foram
criadas condições jurídicas para a sua aceitação, modelando um sistema que os
protestantes pudessem considerar satisfatório. À medida que surgiram problemas, tanto
para os protestantes de colônia quanto para aqueles brasileiros que aderiram ao
protestantismo, eram feitas modificações nas leis que asseguraram segurança e
convivência na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo a Igreja Romana era tolhida com
restrições legais que enfraqueciam seu poder de decisão e que enfraqueciam a sua reação

542
RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Brasil Monárquico, 1822-1888: aspectos culturais de
aceitação do protestantismo no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1973.
543
RIBEIRO, op. cit., p.15.
544
RIBEIRO, Ibidem, p.25.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1196
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

à presença e estabelecimento de protestantes no sistema religioso.545

OS PROTESTANTES E A IMPRENSA

Quando falamos de imprensa evangélica no Brasil Império, é necessário


começarmos dizendo que foi a partir terceira década do século XIX que a divulgação e
circulação de impressos protestantes passaram a ser realizadas no Brasil, por meio da
atividade editorial da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (BFBS) e da Sociedade
Bíblica Americana (ABS), fundadas em 1804 e 1816, respectivamente.546
Pedro Henrique Cavalcante de Medeiros chama atenção para o fato de a imprensa
no século XIX ser o espaço privilegiado para a propagação de diversas ideias de cunho
tanto político quanto religioso. A partir da segunda década dos Oitocentos, as discussões
de cunho religioso se tornam ainda mais acirradas. Neste mesmo período começam a
chegar ao Brasil os primeiros missionários protestantes, trazendo uma religião que, até
então, não havia interferido no campo religioso brasileiro. O choque entre católicos e
missionários protestantes fez com que diversos temas viessem a ser discutidos
fervorosamente, destacando-se o problema da união entre o Estado e a Igreja, esta ligação
não era questionada somente por protestantes.547
É no século XIX que ganha importância à ampliação e divulgação de uma cultura
impressa religiosa, considerando o crescimento do mercado editorial, o intercâmbio entre
o velho e o novo mundo e o amplo número de tipografias que passaram a se estabelecer
no Brasil, permitindo a propagação de impressos de toda ordem, que promoveram
mentalidades e construíram em torno de si comunidades de leitores.548
A imprensa foi utilizada para divulgação da mensagem evangélica desde a
chegada do primeiro missionário protestante. A partir de 1865, Robert Kalley,
missionário escocês, que desembarcou no Rio de Janeiro em 1855, publicou em torno de

545
RIBEIRO, Ibidem, p.18
546
CRUZ, K. J. C. Cultura Impressa protestante no Oitocentos: um diálogo luso-brasileiro. Convergência
Lusíada, n. 32, p. 112-120, 2014.
547
MEDEIROS, Pedro H. C. de. Pelo progresso da sociedade: a imprensa protestante no Rio de Janeiro
imperial (1864-1873). 2014. Dissertação (mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ. Cit. p. 1
548
CRUZ, K. J. C. Ibidem, p.119.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1197
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

trinta e cinco artigos no Correio Mercantil, além de outros artigos no Jornal do Comércio.
Em 5 de novembro de 1864, foi fundado o primeiro jornal protestante brasileiro chamado
Imprensa Evangélica, por Ashbel Green Simonton, missionário norte-americano, que
desembarcou no Rio de Janeiro em 1859, tendo sido gestor e principal redator ao longo
dos três primeiros anos de publicação. 549
Ashbel Green Simonton teve como auxiliares na criação da Imprensa Evangélica
Alexander Latimer Blackford, José Manoel da Conceição, Domingos Manoel de Oliveira
Quintana e Antônio José dos Santos Neves. Além do jornal, algumas das atividades
missionárias de Simonton foram: a organização da primeira Igreja Presbiteriana do Brasil,
em 1862, tradução de obras presbiterianas para o português e organização de um
seminário para preparar jovens para o ministério evangélico, em 1867.550
Quando estava para ser lançada a primeira publicação do periódico, Simonton
afirmou que pretendia deixar a gerência do jornal por conta de Santos Neves; todavia, na
edição seguinte, ele próprio passou a administrar o jornal sozinho, deixando Santos Neves
apenas como mais um dos redatores do jornal.551
Cabe aqui dizermos que José Manoel da Conceição era um padre convertido ao
protestantismo e que foi primeiro pastor brasileiro. Juntamente com Simonton e
Blackford, Conceição, foi redator da Imprensa Evangélica. Sua conversão nos leva a
imaginar o que isso pode ter representado para a sociedade da época, possivelmente
levando o clero Brasileiro a “abrir os olhos” para o que estaria por vir em temos de
conversões ao protestantismo. Também não seria difícil supor que a adesão de Conceição
a um novo tipo de crença tenha despertado curiosidade em muitos fiéis católicos em
relação ao protestantismo.
O trabalho de Conceição foi muito importante para a expansão do trabalho
presbiteriano. Como pastor protestante ele passou a viajar por suas ex-paróquias,
proclamando suas novas crenças e abrindo espaço para o trabalho missionário. Ele,
contudo, não chegou a assumir nenhum pastorado de acordo com os modelos
convencionais, dedicando-se apenas a anunciar a mensagem cristã. Ele visitava as casas,

549
MEDEIROS, Ibidem, p. 27
550
MEDEIROS, op.cit., p. 27
551
MEDEIROS, Ibidem, p. 30
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1198
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sítios e cidades sem se preocupar em fazer proselitismo denominacional ou conduzir


formalmente pessoas para a Igreja Presbiteriana especificamente.552
Segundo José Carlos Barbosa, os primeiros missionários presbiterianos, enviados
pela Primeira Igreja Presbiteriana do Norte dos Unidos, eram explicitamente contrários à
escravidão, sendo que não existe nenhum registro de que a adesão ao presbiterianismo
implicasse para os novos convertidos a necessidade de libertar seus escravos.553
Considerado os meios de comunicação existentes na época da criação da Imprensa
Evangélica, seria um passo importantíssimo para os missionários protestantes rumo à
propagação de suas crenças em um país que, além de ter a maioria esmagadora de
católicos, também tinha o catolicismo como religião oficial do império. Cabe aqui dizer
que, assim como acontece nos dias de hoje, também existiam católicos não praticantes no
Brasil daquela época e que algumas outras crenças podem ter contado com um grande
número de simpatizantes que se diziam ser católicos.
No caso dos protestantes, verificamos que o impresso era o seu principal meio de
propaganda doutrinária, mantendo os membros informados e promovendo certo senso de
pertencimento a uma comunidade religiosa, além de encontrarem os espaços necessários
para discussão e defesa dos ideais evangélicos. 554
A Imprensa Evangélica era semanal, possuía 8 páginas. Sua tiragem era de 400
exemplares, tinha editoriais doutrinários da reforma evangélica na religião Romana; além
de controvérsia bem educada, defesa de reformas legais necessárias à liberdade completa
de cultos, noticiário positivo da vida evangélica mundial, tradução de publicações norte-
americanas e europeias.555
A primeira edição do jornal foi feita pela a Typographia Universal Laemmert, mas
depois desistiram por terem sofrido perseguições. A partir da segunda edição, a
Typographia Perseverança, fundada em 1863, por Antônio Maria Coelho da Rocha e
administrada por Antônio Joaquim Pereira dos Santos, assumiu as publicações, mesmo
sendo a tiragem pequena e apesar de sofrer pressão por parte da igreja católica. No

552
BARBOSA, José Carlos. Negro não Entra na Igreja: espia da banda de fora: Protestantismo e escravidão
no Brasil Império Editora UNIMEP, 2002. (livro).
553
BARBOSA, Ibidem, p.44.
554
CRUZ, K. J. C. Ibidem, P.119.
555
MEDEIROS, Ibidem, p. 33.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1199
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

entanto, tal tipografia estava ligada à maçonaria, o que parece justificar assumir a
impressão do jornal, já que a maçonaria muitas vezes protegia a causa protestante.556
Na época, o convívio entre católicos e protestantes era extremamente espinhoso,
com tudo indicando que os católicos viam os protestantes como um grupo que ameaçava
a situação confortável em que estavam no império brasileiro do ponto de vista religioso,
onde poucos grupos religiosos conseguiam fazer um contraponto capaz de abalá-los. Cabe
aqui dizer que Hélio de Oliveira Silva afirma que o catolicismo estava de tal modo
entrelaçado com a cultura imperial brasileira, que qualquer mudança religiosa implicaria
em sérias perdas sociais para as famílias aristocráticas da época.557
Desde o início, o protestantismo foi encarado como uma nova religião considerada
como radical e perigosa à tradicional sociedade brasileira. No momento em que as
possibilidades de implantação do protestantismo ganhavam corpo, a fiscalização
começou a ser feita de forma mais rigorosa, não só como possível ameaça à hegemonia
católica, mas sobretudo por incorporar um conteúdo inovador.558
Outro grupo que possivelmente despertou preocupação dos católicos foi os
espíritas. Entre 1881 e 1882, a Revista da Sociedade Acadêmica Deus, Cristo e Caridade,
que “assumiu o papel de paladino do espiritismo na Corte”. Outros jornais que podemos
citar são O Renovador, 1882, mas que só teve uma edição e o jornal Reformador, que
teriam dado um novo vigor para a imprensa espírita da Corte. Além desses periódicos,
constatamos que a década de 1880 foi profusa em produção de jornais espíritas, pois
também foram fundados: A Cruz, 1881, em Pernambuco; O Espiritismo e União e Crença,
1881, além de Revista Espírita, 1882, ambos no Rio de Janeiro.559
Dentre as publicações protestantes, além da Imprensa Evangélica, havia no
império os seguintes jornais: Púlpito Evangélico, 1874-1875, e O Pregador Cristão, 1875-
1885, na província de São Paulo; Salvação de Graça, 1875-1876, na província de
Pernambuco; e O Pregador Cristão, 1877-1887, na província do Rio Grande do Sul. No

556
MEDEIROS, Ibidem. P. 35
557
SILVA, Hélio de O. A Igreja Presbiteriana do Brasil e a escravidão: BREVE ANÁLISE
DOCUMENTAL. Vox Faifae: Revista de Ciências Humanas e Letras das Faculdades Integradas da Fama
Vol. 3 No. 2 (2011). Fascículo Crer é Pensar.
558
BARBOSA, Ibidem, p.188.
559
MEDEIROS, Ibidem, P.23.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1200
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

fim do século, já no período republicano, foram criados: Estandarte, em 1892; e O


Puritano, em 1900, existente até os dias de hoje.560
Na fase de inserção do protestantismo, os missionários buscaram mostrar sua
singularidade vinculando a religião ao progresso ao mesmo tempo em que relacionavam
o catolicismo com o atraso. O meio utilizado para este objetivo era, principalmente, a
palavra impressa, através da qual o catolicismo, enquanto religião oficial seria refutado e
colocado como algo que prejudicava o Brasil em termos de desenvolvimento em uma
época onde todos pareciam querer associar suas ideias e instituições ao progresso.
Desde as primeiras tentativas de inserir a ideologia protestante na sociedade
brasileira, aspectos como a escravidão e a educação se destacavam entre as mazelas que
precisariam ser retiradas antes que o proselitismo surtisse efeito considerável.
Missionários de todas as denominações ditas "históricas", (metodistas, presbiterianos,
batistas e congregacionais) insistiam em suas prédicas e, através dos meios de
comunicação posteriormente criados, diziam que a sociedade brasileira sofria desses
problemas crônicos em decorrência de sua dependência de séculos de instituições ligadas
à Igreja Católica, e que a "restauração" e a imersão do Brasil no rol das sociedades
modernas estariam sujeitas à atuação de entidades ligadas ao protestantismo.561
A circulação da Imprensa Evangélica foi noticiada por alguns jornais do Rio de
Janeiro, para que o máximo de pessoas tomassem conhecimento de sua existência. O
preço do exemplar era 520 réis e as assinaturas podiam ser anuais, semestrais ou
trimestrais. Nos primeiros anos, o formato era tamanho 20 por 30 centímetros e facilmente
encadernado.562
Segundo Hélio de Oliveira Silva, o jornal teve boa aceitação pública e os
sacerdotes católicos não somente liam como assinavam. Porém, isso não deve ser
entendido como aprovação por parte deles, que provavelmente o faziam para entender
melhor o “inimigo” com o qual estavam lidando no campo religioso.

560
MEDEIROS, Ibidem, P.24.
561
SEIXAS, M. E. S. Protestantismo, Política e Educação no Brasil: A Propaganda do Progresso e da
Modernização. Revista Brasileira de História das Religiões, v. III, p. 333-358, 2010. P. 335.
562
SILVA, Hélio de O. A Igreja Presbiteriana do Brasil e a escravidão: BREVE ANÁLISE
DOCUMENTAL. Vox Faifae: Revista de Ciências Humanas e Letras das Faculdades Integradas da Fama
Vol. 3 No. 2 (2011). ISSN 2176-8986. Fascículo Crer é Pensar. cit. P. 13.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1201
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os artigos tinham temas variados como exposições e preleções bíblicas,


documentos e história das igrejas reformadas, traduções de artigos estrangeiros, notícias
do crescimento do protestantismo em outros países, biografias e ficção evangélica. A
polêmica com o catolicismo, que se mostraria interminável iria aparecer depois quando o
jornal católico O Apóstolo passou a denunciar a ação protestante no país. Só mais tarde a
Imprensa Evangélica passaria a ter o logotipo uma âncora dentro de um coração.563
O jornal foi o principal veículo de comunicação protestante no século XIX, sendo
o seu objetivo mais explícito representar a comunidade protestante, mostrando seus ideais
e sua opinião sobre os mais variados assuntos, com ênfase naqueles de cunho religioso,
teológico e espiritual. 564
Chama atenção o cunho pedagógico de muitas das matérias publicadas em suas
páginas. O jornal era utilizado para transmitir ideias e veicular concepções de vida
consideradas adequadas aos verdadeiros cristãos, discutir questões muito variadas, como
a política imperial (e, posteriormente, republicana), a "decadência moral do catolicismo"
brasileiro, a ética do trabalho, o modelo ideal contido na família nuclear, cuidados para
com a infância e a juventude, além de discussões teológicas que descaracterizavam o
catolicismo como religião cristã, sendo o protestantismo apresentado como o único agente
capaz de levar o Brasil ao caminho do progresso, modernização e moralidade. 565
Cabe aqui dizer que o jornal imprensa evangélica também contribuiu para que
fosse feita uma discussão relacionada a educação das mulheres, pois elas eram as
educadoras por excelência no seio familiar. Sendo sua influência tão grande na formação
do caráter infantil, elas já não poderiam mais ser “ignorantes”, “supersticiosas” ou
“alienadas”. O papel delas seria colaborar para que as futuras gerações se apegassem ao
amor ao trabalho, ao progresso e à moralização da sociedade. 566

OS PROTESTANTES E A ABOLIÇÃO

563
SILVA, Ibidem. P.14.
564
SEIXAS, Ibidem, p. 346
565
SEIXAS, Ibidem, p. 346-347
566
SEIXAS, Ibidem, p. 352
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1202
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Entre os protestantes com atuação direcionada para abolição temos Antônio José
dos Santos Neves, que se converteu em 1863. Ele era poeta e trabalhava com taquígrafo
do Senado, além de ser funcionário do Ministério da Guerra. Foi membro do Partido
Liberal e, em 1863, fundou um periódico liberal, O Locomotivo Intelectual, que teve curta
duração. Em 1868, tornou-se maçom, convidado por um presbiteriano, Possidônio M. de
Mendonça Jr; e, em 1872, publicou um poema em homenagem à Maçonaria, no qual
reclamava a abolição da escravatura. Santos Neves também compunha poemas para
serem publicados na Imprensa Evangélica. 567
Andréa Braga Fonseca aponta que Joaquim Nabuco agradeceu o apoio dos
protestantes abolicionistas em seu jornal, O Paiz (publicado na “Imprensa Evangélica”
em 24/7/1886). Ele teria dito que todos os dias eram lidos, nos pequenos jornais
protestantes, que se publicavam no Brasil escritos de propaganda abolicionista. 568
O artigo mais antigo encontrado por Andréa Braga Fonseca no jornal Imprensa
Evangélica foi o de 7/10/1871, com o jornal aplaudindo a lei do ventre livre, embora
considerasse ela muito defeituosa havendo uma clara posição para a manutenção do
sistema vigente. 569 Em 1881, o jornal bate de frente com o catolicismo questionando se
o Brasil Católico continuaria julgando que um escravo não tem alma ou que não deve
haver um lugar para ele na igreja de Cristo.570 A partir de 1884 passam a ser
constantemente vistos no jornal, artigos abolicionistas com uma extensa argumentação
que procuravam demonstrar a total incompatibilidade do cristianismo com a
escravidão.571
O Reverendo Eduardo Carlos Pereira escreveu uma série de artigos, em 1886,
intitulados "Uma Cena da Escravidão" e "A religião Christã em suas relações com a
572
escravidão". Neles afirmava ser necessário o clamor incessante da imprensa sobre a
escravidão, que ele chamava de pecado nacional e que o silêncio medroso do púlpito seria
infidelidade a Deus.

567
MEDEIROS, Ibidem, P.30
568
FONSECA, Ibidem, P. 1
569
FONSECA, op. cit., P. 5
570
FONSECA, Ibidem, P. 5
571
FONSECA, Ibidem, P. 5-6
572
FONSECA, Ibidem, P. 6
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1203
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Segundo Hélio de Oliveira Silva, os primeiros missionários presbiterianos,


enviados pela igreja presbiteriana dos Estados Unidos da América (PCUSA ou igreja do
norte) eram explicitamente contrários à escravidão – embora não tenham se envolvido
abertamente no processo abolicionista brasileiro – e chama atenção para o fato de que na
reunião do Presbitério do Rio de Janeiro, em 1886, dois anos antes da assinatura da Lei
Áurea, um grupo de abolicionistas convictos e atuantes, como Emanuel Vanorden e
Eduardo Carlos Pereira, teria adotado publicamente uma posição favorável à abolição.573
Ainda de acordo com Silva, a prioridade das missões presbiterianas instaladas no
Brasil a partir de 1859 era o de estabelecer e desenvolver sua obra missionária
denominacional, sendo o envolvimento precoce com a questão abolicionista algo que
poderia colocar em risco todo o processo de implantação da igreja, uma vez que o
catolicismo era a religião majoritária e detinha inquestionável influência política, pois
gozava o status de “religião oficial”.574
Para Mariana Ellen Santos Seixas, os protestantes consideravam a escravidão
como uma das causas de atraso e desmoralização do Brasil, com seus líderes e órgãos de
comunicação logo assumindo a postura de combatentes da escravidão. Vale dizer, porém,
que a autora chama atenção também para os protestantes se verem, por vezes,
encurralados entre o discurso e a prática antiescravista.575
Quando falamos sobre protestantismo e abolição temos que chamar atenção para
a Igreja Evangélica Fluminense, que foi fundada no Rio de Janeiro, em 11 de julho de
1858, justo na data do batismo do primeiro brasileiro convertido ao protestantismo, Pedro
Nolasco de Andrade. Robert Reid Kalley e Sarah Poulton Kalley foram o casal de
missionários responsáveis por essa igreja que, desde seu começo, era inclusiva para os
padrões da época, não discriminando pessoas por etnia, sexo ou situação social.576
Quando no dia primeiro de agosto de 1862, foram eleitos os quatro primeiros
presbíteros do Brasil em assembleia, além de dois portugueses (madeirenses), discípulos

573
SILVA, Hélio de O. A Igreja Presbiteriana do Brasil e a escravidão... cit. P. 4.
574
SILVA, Ibidem, P. 4.
575
SEIXAS, M. E. S. Protestantismo, Política e Educação no Brasil... cit. P. 356.
576
CARDOSO, Douglas Nassif . Protestantismo e Abolição. Caminhando (São Bernardo do Campo), v.
14, p. 105-114, n. 2009. Cit. P.108-109.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1204
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de Kalley (Francisco da Gama e Francisco de Souza Jardim), de um inglês, discípulo de


Sarah (William Pitt), foi escolhido Bernardino Guilherme da Silva, português convertido
no Brasil, e negro, legítimo representante da nova igreja. 577
Uma semana após Sarah iniciar projeto da escola dominical junto a crianças de
Petrópolis, em 26 de agosto de 1855, Kalley começou a lecionar em classe bíblica de
negros. A proposta de missão do casal era no mínimo atípica – evangelizar crianças e
negros – atingir os que eram negligenciados pela igreja oficial e pela igreja de imigração.
578

Imagina-se que o tema da abolição devia ser debatido pela população de uma forma geral,
daí surge a pergunta sobre a possibilidade de um crente possuir escravos. Tal assunto foi
levantado numa assembleia de membros da Igreja Evangélica Fluminense, realizada no
final de setembro de 1865, sendo interessante notar que quem levantou a questão foi um
dos dois membros da igreja que possuíam escravos. Diante do questionamento, trataram
de preparar a argumentação e no dia três de novembro do mesmo ano retornaram ao
assunto numa nova assembleia.579
Kalley era médico e em sua argumentação descreveu os órgãos do corpo
afirmando que são dádivas divinas que não podem ser roubadas, sendo assim, um corpo
não pode ser escravizado. Ele também utilizou o direito de propriedade considerando que
os órgãos de um ser humano não devem pertencer a outro ser humano. Além de ter posse
plena de seus órgãos que representam dádivas divinas o homem teria também direito dos
frutos produzidos pelo trabalho feito com seu corpo.580
A interpretação de Kalley surpreende quem esperaria uma posição mais
acomodada ao denunciar a escravidão como roubo, declarando não haver diferenças entre
as pessoas (servos e senhores). Utiliza textos referentes à proteção dos estrangeiros,
lembrando a origem do nefasto tráfico negreiro, que sequestrava pessoas no continente
africano e as submetiam ao tratamento desumano.581
Contudo, essas posições de Kalley ainda não estabeleciam uma regra, sendo a

577
CARDOSO, Ibidem, p.108
578
CARDOSO, Ibidem, p.109
579
CARDOSO, Ibidem, p.109-110
580
CARDOSO, Ibidem, p. 112
581
CARDOSO, Ibidem. P.112
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1205
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

prática da igreja discutir suas questões em reuniões com membros (assembleias) com a
presença dele sendo apenas norteadora, estando aberto a opiniões de todos. As decisões
não eram imediatas havendo tempo para reflexão sobre as situações a serem definidas.
No caso da escravatura, porém, foi decidido que não seriam aceitos membros que
possuíssem escravos e que os membros que não obedecessem às deliberações da
assembleia seriam excluídos. Uma nova sessão ocorreu em 20 de dezembro de 1865, com
João Severo de Carvalho apresentando cartas de alforria a seus dois escravos, e
Bernardino de Oliveira Rameiro sendo excluído por não acatar admoestação.582

CONCLUSÃO

Diante do exposto podemos dizer que houve ações por parte de alguns protestantes
no que diz respeito às críticas sobre a escravidão, contudo, não vemos nenhum movimento
sólido em nosso estudo que tivesse grandes proporções, mas sim atitudes pontuais de
indivíduos com ideias abolicionistas. Quanto ao jornal Imprensa Evangélica, vemos casos
pontuais de atuação relacionadas ao fim da escravidão, parecendo terem se tornado mais
constantes a partir de 1884.
Vale ainda ponderar que a condição dos protestantes no Brasil não era a mais
cômoda dentro do cenário religioso e político existente e que isso pode ter feito com que
eles evitassem tocar em temas polêmicos para a sua própria preservação, não
considerando valer a pena chamar atenção para cima deles que buscavam ganhar
legitimidade para transmitir suas crenças.
O caso da Igreja Evangélica Fluminense parece ter sido o mais radical em relação
a escravidão dentro de sua organização, mas parece que os membros dessa igreja também
não tiveram nenhuma atitude de grande vulto fora de seus muros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, José Carlos. Negro não Entra na Igreja: espia da banda de fora:
Protestantismo e escravidão no Brasil Império. Editora UNIMEP, 2002.

582
CARDOSO, op. cit. 113-114
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1206
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CARDOSO, Douglas Nassif . Protestantismo e Abolição. Caminhando (São Bernardo do


Campo), v. 14, p. 105-114, n. 2009.

CRUZ, K. J. C. Cultura Impressa protestante no Oitocentos: um diálogo luso-brasileiro.


Convergência Lusíada, n. 32, p. 112-120, 2014.

FONSECA, A. B.. A imprensa evangélica no Brasil do século XIX e XX, um olhar sobre
a questão da escravidão e o progresso. In: X Encontro Regional de Historia - Anpuh,
2002, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos do X Encontro da Anpuh. Rio de Janeiro:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2002.

MEDEIROS, Pedro H. C. de. Pelo progresso da sociedade: a imprensa protestante no Rio


de Janeiro imperial (1864-1873). 2014. Dissertação (mestrado em História). Instituto de
Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica,
RJ.

RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Brasil Monárquico,1822-1888: aspectos


culturais de aceitação do protestantismo no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1973

SEIXAS, M. E. S. Protestantismo, Política e Educação no Brasil: A Propaganda do


Progresso e da Modernização. Revista Brasileira de História das Religiões, v. III, p. 333-
358, 2010.

SILVA, Hélio de O. A Igreja Presbiteriana do Brasil e a escravidão: BREVE ANÁLISE


DOCUMENTAL. Vox Faifae: Revista de Ciências Humanas e Letras das Faculdades
Integradas da Fama Vol. 3 No. 2 (2011). Fascículo Crer é Pensar.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1207
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Em plena Guerra Fria, Médicos Brasileiros na URSS: o relato de viagem de Milton


Lobato e sua trajetória na militância comunista

GABRIELA ALVES MIRANDA


PPGHCS/COC/FIOCRUZ
Bolsista CNPq

Esse trabalho é fruto de minha pesquisa de doutorado, vinculado a esse Programa


de Pós-Graduação desde o início desse ano de 2017. O estágio inicial dessa pesquisa me
leva a apresentar um texto com caráter mais propositivo de uma agenda de pesquisa para
o campo da história da saúde no Brasil do que propriamente resultados e sínteses.
Proponho analisar as ideias de Milton Lobato (Maranhão, [?] - Rio de Janeiro,
2004583), médico tisiologista, professor da Faculdade de Medicina e militante comunista
por meio do seu relato de viagem Médicos Brasileiros na URSS escrito em 1953, e
publicado em 1955, pela Editorial Vitória584, editora carioca ligada ao PCB (Partido
Comunista Brasileiro). Esse livro pode ser considerado como um elemento da cultura
política de sua época e como uma prática da escrita de si, ou seja, uma narrativa
autobiográfica que apresenta traços de subjetividade, mesmo que não diretamente.
Essa viagem ocorreu por convite de funcionários do governo da URSS durante o
Congresso Mundial de Médicos para o Estudo das Condições Atuais de Vida, realizado
entre 23 e 25 de maio de 1953, em Viena. Formavam uma comitiva de 25 latino
americanos (13 médicos brasileiros e 6 argentinos, e 6 acompanhantes mulheres)585.
Desse grupo, apenas 3 médicos publicaram em livro seu relato de viagem. De modo geral,
ao retornarem da viagem, esses médicos participaram de conferências, palestras, na qual
eram convidados a contar aquilo que haviam vistos na União Soviética. (LOBATO,
1955:8)
Além das impressões narradas por Milton Lobato, o livro Médicos Brasileiros na
URSS continha também as Notas de viagem de Reinaldo Machado, natural de Curitiba,

583
Jornal do Brasil, 21/03/2004. Aviso obituário publicado pela família. Ainda não foi encontrada qualquer
evidência sobre sua data de nascimento.
584
A Editorial Vitória chegou a ser dirigida por Leôncio Basbaum, constituindo-se num fato em um
processo que acusava Basbaum de atividades comunistas em 1949. Ficha de Leôncio Basbaum. Repositório
Digital. APESP/DEOSP
585
Quatro mulheres brasileiras que acompanharam Correia Porto, Tachis Bittencourt e Brigagão Ferreira
(esposas) e Lintz Caire (mãe) e mais 2 acompanhantes argentinas (esposas).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1208
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que atuava como médico clínico na cidade de Marília, no interior de São Paulo. No ano
seguinte, em 1956, a editora Civilização Brasileira, com sede em São Paulo, publicou A
URSS vista por um médico brasileiro escrita pelo paulista Raul Ribeiro da Silva, chefe
do Serviço de Proctologia do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Esse trabalho tem o objetivo de analisar o relato escrito por Milton José Lobato,
em 1953 e publicado em 1955, enquanto uma prática de escrita de si, ou seja, uma
narrativa autobiográfica que apresenta traços de subjetividade, mesmo que não
diretamente. Ainda que o enfoque tenha recaído com mais intensidade sobre a trajetória
profissional e política de Milton Lobato, não desconsiderarei de que ele era parte de um
grupo.
A escrita sobre si ou auto-referencial surgiu com a noção de indivíduo moderno,
datada no século XVIII, tem seu auge no século XIX e sofreu alterações no século XX,
sobretudo com o advento da internet. Essa prática de escrita de si se relaciona com as
transformações da sociedade ocidental que, antes pautada por uma lógica coletiva, passa
por um processo longo e complexo que compreende a emergência da figura de indivíduo,
o avanço na escolarização e do desenvolvimento da imprensa. Tal processo reflete o
surgimento de uma cultura individualista e correspondentes práticas culturais que
impactam na produção de memória de homens comuns, ensejadas pelo desejo atribuir
significado ao mundo, de maneira articulada à própria vida (GOMES, 2004).
A viagem é um dos momentos da vida de uma pessoa que estimula a prática da
escrita de si, ou autobiográfica. Essa mudança espacial é concebida como um “período
excepcional”, percebido como especial. A narrativa de viagem guarda uma relação com
o espaço e com tempo. O sujeito, ao narrar e descrever o que viu, busca reter o tempo,
constituindo o próprio texto como um “lugar de memória” (GOMES, 2004, p.18).

O Livro como um ator

Ao longo dos anos de 1930-1935, passaram por Moscou “um pequeno mas
influente fluxo de turistas sócio-econômicos” (HOBSBAWM, 1995:100). A curiosidade
ocidental pelo mundo socialista foi motivada por dois cenários contrastantes: a crise de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1209
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

1929 no ocidente capitalista e a implementação do Plano Quinquenal na União Soviética


(Idem).
Não foram poucos turistas que passaram pela Rússia naquele momento. A
historiadora Brigite Studer chamou atenção para o fato de dezenas de milhares de
ocidentais de vários países terem ingressado na URSS entre 1917 e 1939. Com a fase do
Grande Terror de 1937-1938 (violenta e persecutória política de Stalin contra inimigos)
e com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, tem-se a interrupção desse fluxo de
viajantes nesse, que Studer denominou como, “primeiro período de viagem à União
Soviética” (STUDER, 2003: 4).
Tratando da década de 1930, Rodrigo Patto Sá Motta (2006) destacou o papel do
livro, e das casas editoriais, “nessa guerra em torno do imaginário sobre a URSS”
(MOTTA, 2006:138). Nesse campo de disputa, o livro era encarado como um ator, “um
personagem central” (MOTTA, 2006:98) tanto do lado dos comunistas, como dos
anticomunistas ou defensores da ordem.
Um dado significativo, é que um médico foi apontado como inaugurador desse
gênero no Brasil (MOTTA, 2006: 137). A narrativa de um mês de viagem para a União
Soviética do médico, professor da Faculdade de Medicina e jornalista Mauricio de
Medeiros (1885-1966). Rússia: Notas de Viagem, impressões, entrevistas, observações
sobre o regime soviético, foi publicado pela editora carioca Calvino Filho em 1931586,
sendo seguido de outras publicações587 dessa categoria, lançadas na primeira metade da
década de 1930 (MOTTA, 2006: 136). Considerado um sucesso para a época, rendeu seis
edições consecutivas, que oscilaram entre duas ou três mil cópias por edição. A primeira
e a quinta edição foram publicadas em um espaço de apenas um ano, um verdadeiro
fenômeno editorial (MOTTA, 2006: 138). O tamanho do sucesso teve preço para
Maurício de Medeiros, que se considerava injustiçado, uma vez que havia sido ignorado

586
A editora Calvino Filho foi criada em 1931, passou a se denominar editora Calvino e publicou muitos
títulos sobre a Rússia ou teses de pensadores de esquerda. Em 1944, constatou-se sua ligação com o PCB.
Hallewell, Laurence. O Livro no Brasil: sua história. – São Paulo: EDUSP, 2005. p. 508.
587
Alguns relatos de viagem também lançados nesse período são de autoria do historiador Caio Prado
Júnior, do médico Osório Thaumaturgo César (que esteve por 3 meses na URSS com sua companheira
Tarsila do Amaral), o engenheiro Claudio Edmundo (que trabalhou nas obras do Plano Quinquenal), etc.
Ver Konder, Leandro. A derrota da dialética: a recepção das ideias de Marx no Brasil até o começo dos
anos trinta. – Rio de Janeiro, Campus, 1988. p. 185-186
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1210
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pela justiça as diversas passagens de seu livro, posicionou-se criticamente ao regime


soviético (MEDEIROS, Mauricio, 1931: 299-300). Acusado de comunista, Medeiros
sofreu prisão, expurgo, e os exemplares do livro foram recolhidos das bibliotecas e
livrarias.
Ao sucesso do relato de Medeiros seguiram-se outras publicações no mesmo
gênero, isto é, relatos de viagem à União Soviética escritos por brasileiros. Em 1932,
chegou às livrarias o relato assinado por outro médico: Osório Taumaturgo Cesar, natural
da Paraíba, psiquiatra no Hospital Juqueri de São Paulo e crítico de arte, conseguiu aliar
os dois saberes constituindo-se em um dos pioneiros na inclusão da arte como terapia no
Brasil. O livro Onde o Proletariado Dirige: visão panorâmica da URSS foi publicado em
São Paulo, em 1932, com prefácio do escritor francês Henri Barbusse (1873-1935),
militante do PC francês. Osório César esteve por 3 meses na URSS em 1931,
acompanhado da artista Tarsila do Amaral.
Em relação ao relato de Medeiros, a narrativa de Osório César é mais entusiasta
do regime soviético. Para Motta, na narrativa de Medeiros sobressai o tom de moderação
(MOTTA, Rodrigo Patto de Sá, 2006: 138). César foi preso em 1932 por ter se envolvido
com a revolução constitucionalista de São Paulo. Com a liberdade, se afastou do hospital
do Juqueri e começou a traduzir obras do russo: de médicos russos, literatos ou teóricos
do pensamento de esquerda (BERTIOLLI FILHO, 1998:113). Um desses livros foi A luta
contra a tuberculose na URSS lançado pela editora Athena em 1935. Outra tradução sua
foi do livro da médica russa Esther Conus, Proteção à Maternidade e à Infância na União
Soviética publicado em 1935 pela Editora Nacional588 (e posteriormente publicada pela
Editorial Calvino Limitada em 1944)589. Convém observar que o tema da maternidade e
infância, ou puericultura, também recebeu destaque de Maurício de Medeiros tanto em
seu livro Rússia, como em suas entrevistas, conforme divulgado no Correio da Tarde de
19/09/1931: O problema de proteção à infância constitui uma das faces mais brilhantes

588
Diário da Noite, 10/05/1935: “Literatura & Co.; Socialismo do Bom”. É importante observar que a
Editora Nacional publicou o nome russo da autora, Esfir Mirenevna Kenius. [Catálogo das Obras Gerais da
BN]. Um ano antes, em 1934, o livro havia sido publicado em Madrid. E em francês, em 1933.
589
CONUS, Ester. Proteção à maternidade e à infancia na União Sovietica - nova edição (tradução do
original de Moscou por Osorio Cesar) - Rio de Janeiro: Editorial Calvino Limitada, 1944. Um exemplar
dessa última edição de 1944 pertence ao Acervo Histórico da Faculdade de Medicina de Universidade
Federal de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1211
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

da administração soviética. Osório César traduziu para a Editora Nacional, o livro


Medicina na Russia do médico ortopedista argentino Lelio Zeno590, lançado em 1935.
A medicina soviética, segundo Bertolli Filho (1998), representava a ideia de
ampla assistência aos cidadãos e de uma maior participação dos médicos na resolução
dos problemas nacionais. No geral, seria uma alternativa aos modelos do Instituto Pasteur
e da escola de John Hopkins (BERTIOLLI FILHO, 1998:102).
A medicina soviética é vista como parte importante das grandes estruturas da
sociedade soviética, como parte dessa sociedade nova. Nos relatos, os médicos brasileiros
mostraram-se impressionados que os médicos na URSS desempenhavam amplos poderes,
tornaram-se responsáveis por fiscalizar esse novo homem comunista (BERTIOLLI
FILHO, 1998:103), além de disporem de vantagens como benefícios frente outras
categorias profissionais, apoio à pesquisa, e acesso à infraestrutura moderna.
Ainda para Bertolli Filho (1998), apesar de haver dois momentos de abertura aos
estrangeiros pela União Soviética, os relatos da década de 1930 quando comparados aos
relatos daqueles que viajaram em 1953 são muito semelhantes, mesmo com a diferença
de 25 anos entre as viagens (BERTIOLLI FILHO, 1998:107). Em comum todos os
médicos viajantes tinham a preocupação em declararem-se como relatores da veracidade,
imbuídos pelo caráter da neutralidade para transmitir exatamente o que se viu e se viveu.
Essa era uma influência positivista, que também aparecia na atenção com que os autores
trataram as estatísticas, provavelmente sugestionados por folhetos divulgados pela
Intourist. Os médicos também teceram comentários sobre o papel da mulher na sociedade
soviética e quanto à experiência do aborto como opção legal à decisão da mulher. Todos
se mostraram perplexos quando comparavam a estrutura dos institutos de pesquisa
soviéticos com os do Brasil – em comum, visitaram o Instituto de Fisiologia; de Higiene
Social e o do Cérebro; a Maternidade e a Faculdade de Medicina (BERTIOLLI FILHO,
1998:116).

590
Lelio Zeno (1890-1968), foi um médico ortopedista argentino (tinha 1 ano de idade quando chegou a
Buenos Aires com seus pais italianos) e era filiado ao Partido Comunista. Em 1931, o argentino esteve na
URSS para se reunir com o cirurgião russo S.S. Yudinym, quem também prefacia o livro, a fim de
estabelecer um centro de traumatologia em Moscou que hoje leva seu nome.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1212
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Esses livros são parte da cultura material e política comunista, que “mobilizava
crenças, sentimentos e tradições” (MOTTA, 2013:16). A cultura política comunista
transcende às organizações partidárias, e possui a Revolução de 1917 como marco de
fundação de sua identidade (MOTTA, 2013:20). Nesse sentido essa cultura é marcada
pela devoção à URSS, pela construção de um homem novo e por ideais internacionalistas
e anti-imperialistas (majoritariamente antiamericana, principalmente no período da
Guerra Fria) (MOTTA, 2013:23). O nacionalismo também foi uma variável importante,
na medida em que sua defesa fortaleceria a luta contra o imperialismo, constituindo-se
num dos paradoxos do internacionalismo de esquerda (MOTTA, 2013:24).
O sucesso da campanha da União Soviética contra o nazismo elevou seu prestígio
político no cenário internacional, apesar do país encontrar-se devastado econômica e
demograficamente (REIS, 2000: 15). A conjuntura se transformou a passos largos, e de
aliados, a URSS e os Estados Unidos tornaram-se potências antagônicas sob a
bipolaridade da Guerra Fria, processo acentuado com a Guerra da Coreia em 1947. O
entusiasmo popular com o governo soviético e com o Partido Comunista Brasileiro foi
acompanhado por forte repressão anticomunista. O PCB, proscrito em 1947, atuava na
ilegalidade. No início dos anos 1950, adquiriu certa dimensão social com movimentos
nacionalistas como a campanha “O petróleo é nosso” pelo monopólio nacional de sua
exploração e, sobretudo, com a campanha da luta pela paz que pressionou contra a Guerra
da Coreia e o envio de expedicionários brasileiros ao conflito. O Movimento pela Paz foi
uma diretriz soviética dirigido aos PCs empreendido por militantes que recolheram
assinaturas em prol da paz no mundo, contra o imperialismo norte-americano e contra a
guerra atômica.
Também a URSS voltou a investir em intercâmbio cultural entre intelectuais e
artistas estrangeiros. O turismo era uma esfera da política internacional soviética,
entendido como fundamental para fortalecer o intercâmbio cultural com outros países591.

591
Em 1925, foi criada a VOKS “Vsesoiuznoe Obshchestvo Kul'turnoi Sviazi szagranitsei” cuja tradução
em inglês seria “All-Union Society for Cultural Relations with Foreign Countries”: uma organização
soviética destinada a promover contatos culturais de cientistas, escritores, artistas, músicos, atores,
educadores e atletas com outros países. Em 1958, a VOKS passou por uma restruturação e foi renomeada
como União das Sociedades Soviéticas de Amizade e Relações Culturais com os Povos dos Países
Estrangeiros, até sua extinção em 1992. Em 1929, a fim de atender à crescente demanda de estrangeiros no
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1213
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A nação do comunismo tornou a recepcionar estrangeiros. A comitiva de médicos latino-


americanos, que foram à URSS em 1953, marca a retomada da política de turismo como
intercâmbio cultural entre artistas e intelectuais ocidentais.
A narrativa de Lobato é constituída por diversas vozes. Além das informações que
ele parece transcrever de folhetos ou das explicações recebidas, é preciso destacar que ele
próprio se desdobra em autor, narrador e personagem, um fenômeno que é característico
de narrativas autobiográficas, segundo Phillippe Lejeune (LEJEUNE, 2008). Lobato teve
de lidar com diferentes tempos ao longo de sua narrativa, o da história da URSS (muito
marcada pela Revolução de 1917 e pela Segunda Guerra Mundial), o tempo da viagem e
o de sua rememoração.
O relato de viagem é conhecido como um gênero híbrido. Sua narrativa é
constituída por diários, cartas, e outros intertextos, como o “Noticiário do Trabalhador
médico do dia 16 de junho: Médicos Brasileiros e Argentinos na URSS”, nota em jornal
russo, transcrita na íntegra por Lobato592. A narrativa de Lobato foi escrita com base em
suas anotações diárias. Ele conta que escreveu esse livro, tão logo retornaram ao Brasil,
“à base das anotações e das lembranças bem vivas”.593 Embora a datação não esteja
presente, a ordem está colocada a partir dos locais, em geral, visitados. Segundo Philippe
Lejeune, “um diário é escrito, antes de qualquer coisa, para ser relido pelo seu autor.
Escrevemos para nos recordarmos, mas também para podermos avaliar o passado e julgar
suas evoluções”594. Nas fotografias que compõem o livro, vemos os médicos com seus
blocos e lápis em mãos, demonstrando que era uma prática do grupo de anotar as
informações conforme fossem recebidas.
A apresentação do livro Medicos Brasileiros na URSS foi elaborada por seu
próprio autor. O texto foi escrito anos depois, na ocasião de publicação de seu livro, em
julho de 1955. Assim como Gisele Martins Venâncio (2009), que analisou os prefácios
escritos por Oliveira Vianna como uma “construção de si”, também observamos com

país do comunismo de maneira centralizada e mais eficiente, a União Soviética veio ser a primeira nação a
criar uma infraestrutura destinada à promoção do turismo com controle estatal denominada Intourist.
592
Lobato, Milton. Médicos Brasileiros na URSS. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1955.
593
Lobato, Milton. Introdução. Medicos Brasileiros na URSS. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1955. p. 7
594
Lejeune, Philippe. “O diário: gênese de uma prática”, em Gutfreind, Cristiane Freitas (org.) Narrar o
biográfico: a comunicação e a diversidade da escrita, Porto Alegre, Sulina, 205, p.33.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1214
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

atenção especial o texto da “Introdução”, escrita por Lobato. Para Venâncio, “o ato de
prefaciar textos da própria autoria traduz uma clara intenção de orientar as leituras das
próprias obras, conformando a recepção junto ao público leitor”595.
O diálogo com o leitor era fundamental. Lobato iniciou seu texto tratando ser uma
responsabilidade divulgar o que viu. Se preocupou em listar artigos publicados em jornais
de maior circulação e especializados, conferências ou palestras, participação de mesa
redonda na rádio daqueles integrantes da comitiva brasileira. Não se esqueceu de
mencionar o prêmio que recebeu pela Sociedade Brasileira de Tuberculose pela
comunicação apresentada “sobre a luta Anti-tuberculosa na URSS” (LOBATO, 1935:8).
Nos parágrafos finais de sua “introdução” (que pode ser pensada como prefácio),
Lobato se dedicou a protestar contra o não reatamento das relações exteriores entre Brasil
e URSS, e contra o desaparecimento do médico argentino e colega de viagem, Juan
Ingalinella. Além disso, se solidarizou com o médico pernambucano Arnaldo Marques,
também companheiro da viagem, afastado do cargo de legista por perseguição política596.
Também saúda a participação de “Butrov e de outros médicos soviéticos” (Butrov seria
um encarregado as relações exteriores do Ministério da Saúde soviético), no Congresso
Internacional de Câncer, ocorrido em São Paulo. Lobato acompanhou a delegação nas
palestras e conferencias que esses médicos prestaram no Rio de Janeiro. Assim, Lobato
se mostrava frente ao leitor como sendo bem-sucedido em seu propósito: “Este pequeno
livro é destinado ao trabalho de aproximação entre os médicos brasileiros e soviéticos,
em proveito mútuo da medicina e da saúde dos nossos povos” (LOBATO, 1935:9).

Da trajetória de Milton Lobato

Não podemos afirmar que Lobato tenha lido Russia de Medeiros, mas é uma
hipótese possível. Nessa época, ele era estudante de medicina na Faculdade de Medicina
(entre 1932-1937). Sua vida estudantil foi marcada pela participação em diferentes

595
Venancio, Gisele Martins. “A utopia do diálogo: os prefácios de Vianna e a construção de si na obra
publicada, em Angela de Castro e Schmidt, Benito Bisso (org.) Memórias e narrativas (auto)biográficas,
Porto Alegre/Rio de Janeiro, Ed. UFRGS/Ed. FGV, 2009, p. 173-188.
596
Em 1949, Milton Lobato fora demitido do cargo de médico tisiologista do Instituto dos Bancários, sob
acusação de comunismo. O combate, 15/10/1949.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1215
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

comissões de organizações sociais. Propôs ao Sindicato Médico Brasileiro, a criação de


uma Ala Reivindicadora dos Estudantes de Medicina, unanimemente aprovada (A manhã,
11/09/1935)597, foi representante dos estudantes na Comissão Pró-Liberdade de
Dionclicio Machado. Esse movimento foi organizado, com apoio do Sindicato do Médico
Brasileiro, em defesa do médico neuro-psiquiatra e preso por conta do cargo de presidente
do diretório estadual da Aliança Libertadora Nacional, no contexto de forte
anticomunismo, arrefecido a partir da repressão ao Levante Comunista de 1935 (JB,
18/10/1935). Participou da diretoria da Sociedade Acadêmica de Medicina e Cirurgia, em
1937 e se relacionava com diversas organizações: Conselho Nacional dos Estudantes,
onde pleiteou por matrículas gratuitas, na Faculdade de Medicina, a estudantes que
necessitassem (JB, 19/08/1837), participou da recém-criada Coligação da Mocidade Pró
Educação Sexual (JB, 16/11/1937), esteve entre os membros fundadores da Associação
Brasileira de Estudantes (Beira Mar, 23/10/1937). Também participava da Sociedade
Brasileira de Tuberculose, sendo um dos autores da Revista Brasileira de Tuberculose e
Doenças Torácicas (Correio da Manhã, 30/12/1954).
Em 1949, foi demitido do Instituto dos Bancários aonde era médico tisiologista,
sob acusação de comunismo, o que gerou alguns protestos na Câmara de seu conterrâneo
do Maranhão, deputado federal Lino Machado (A Manhã 06/10/1949). No ano seguinte,
Milton Lobato foi eleito vereador no Rio de Janeiro pela legenda do Partido Republicano
Trabalhista (PRT)598, com 4.386 (A Manhã, 16/01/1951), cargo que logo renunciou em
03/04/1951 (Diário de Notícias, 03/04/1951, p.2). Como vereador, participou da
solenidade da Quinzena pela Paz como membro da Comissão que entregou assinaturas
junto à Carta da Paz, finalizando uma série de comícios em diversas regiões da cidade
(Imprensa Popular, 16/01/1951). Com o retorno da viagem, participou de palestras e
debates coletivos, organizou uma exposição de cartazes (russos e brasileiros) na
Sociedade Brasileira de Tuberculose (LOBATO, 1935:8).

597
O periódico A Manhã era dirigido por Pedro Motta Lima, quem também dirigia o Imprensa Popular.
598
O Partido Republicano Trabalhista (PRT) foi fundado em 1948 como uma reestruturação do
Republicano Partido Democrático. Foi extinto em 1958 para dar lugar ao Partido Rural Trabalhista. O PRT
era um partido sem perfil muito definido, servindo de apoio para candidatos sem suporte partidário como
era o caso de comunistas já que o PCB caiu na ilegalidade a partir de 1947. Dicionário Histórico Geográfico
Brasileiro. Acesso em out/2016: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/partido-
republicano-trabalhista-prt
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1216
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ao retornar ao Brasil e antes mesmo da publicação de seu relato, Lobato se


dedicou a diversas atividades de divulgação da viagem. Em novembro de 1953, Milton
Lobato foi convidado para uma conferência em Curitiba, para tratar do que viu na Rússia,
anunciada na imprensa, que deu destaque para “parto sem dor, terapêutica do sono e
educação sanitária da infância para prevenção da tuberculose e a medicina profilática em
geral” (O Dia, 11/11/1953). Em agosto de 1954, participou da cerimônia de recepção ao
médico russo Alexandre Savilski na Sociedade de Medicina e Cirurgia lendo a tradução
para o português de “A luta contra o câncer na Russia”, de autoria do mesmo que estava
no Brasil junto com outros colegas para a ocasião do VI Congresso Internacional de
Câncer, reunido em São Paulo (Correio da Manhã, 04/08/1954, p.3).
Alguns anos depois, em 1959, Milton Lobato (entre outros como José Brigagão,
Isnard Teixeira, Valério Konder) recepcionou 5 cientistas soviéticos que estiveram no
Rio de janeiro, após regressarem de Buenos Aires aonde participaram do I Congresso
Internacional de Fisiologia. A visita, assim como os passos da comitiva russa, foi
registrada pela polícia política carioca, com detalhes de informações de hora: passeios a
pontos turísticos (visitas ao Corcovado, zoológico, Maracanã para assistir ao “Fla x Flu”),
mas também instituições como o Ministério da Educação, Hospital dos Servidores,
Instituto de Manguinhos (IOC) e, uma conferência proferida por Carlos Chagas no Hotel
Glória, aonde se hospedaram (APERJ. Fundo Polícia Política, pasta Preventivo n. 10). A
narrativa da polícia indica que os objetivo de Lobato de fortalecimento das relações entre
médicos e cientistas russos e brasileiros, não ficou apenas no plano do discurso.

Considerações Finais

O fato de sua narrativa ter se transformado em livro, e todas as condições de


produção desse livro que tentamos traçar acima, indicam que seu texto passou por algum
tipo de acabamento e que havia desejo, por parte do autor, de que seu texto resistisse ao
tempo. Embora ainda haja lacunas sobre a trajetória de Milton Lobato, foi possível
perceber como ele associou sua memória a sua militância política.
Suas atividades de militância ocuparam um papel tão marcante que é determinante
de sua memória por seus contemporâneos de partido. Um “comunista de carteirinha” nas
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1217
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

palavras de Irun Sant’Anna, médico, militante comunista e um dos fundadores da União


Nacional dos Estudantes UNE, em uma entrevista realizada pela Fundação Dinarco Reis
na ocasião do lançamento de seu livro de memórias em 2011599. Milton Lobato também
é citado como uma figura importante, ligada a entrada de Luiz Werneck Vianna como
membro do Partido Comunista. Werneck Vianna contou que cresceu em Ipanema, bairro
de classe média alta carioca. Cresceu entre brincadeiras, a imaginação e a realidade de
saber que em sua rua funcionava um núcleo do partido que ali funcionava ilegalmente.

Nós éramos garotos, mas entrando na casa dos colegas adivinhávamos


alguma coisa da vida dos pais. Havia uma base atuando na minha rua,
composta de um barbeiro, um médico e um engenheiro. Esse
engenheiro era neto do Machado Binencoun, ministro da Guerra que
morreu no atentado ao Prudente de Morais. Era um homem de elite e
era comunista. O médico era Milton Lobato. Na garagem do Carlos
Machado Binencourt, onde nós brincávamos, havia uma tampa. Se
você puxasse, aparecia uma maçaneta, e se você abrisse, dava para um
esconderijo (VIANNA in CASTRO, 2005:178).

Alguns anos se passaram e Werneck Vianna apontou Lobato como uma referência
bastante significativa em sua biografia, tendo sido procurado pelo futuro sociólogo
quando decidiu ingressar no Partido, nos anos 60, com seus “20 e poucos anos”
(VIANNA in BASTOS et all, 2006: 161).
O relato de viagem de Milton Lobato à URSS era parte da construção de sua
identidade. Para ele, a palavra era arma de ação, de atuação e de transformação social. A
partir do seu relato, percebemos a necessidade de se investir em buscar compreender
como se deu essa rede de sociabilidade, que procuramos mapear aqui, envolvendo
intelectuais, com atenção aos médicos, editoras, imprensa e o Partido comunista, assim
como uma relação com médicos comunistas argentinos.
A crítica de que esses relatos de viagem não passariam de produtos de propaganda,
e de que eram iguais e estereotipados pelo roteiro definidos pela Intourist, mesmo não

599
Entrevista a Irun Sant’Anna para o site da Fundação Dinarco Reis (órgão ligado ao PCB e fundado em
2000) durante o lançamento do livro “O garoto que sonhou mudar a humanidade”, editado pela mesma
fundação, em 2011. Acesso em julho, 2017.
https://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=22:entrevista-irun-
santanna&catid=5:entrevistas-com-a-historia
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1218
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sendo negada estaria ultrapassada, segundo Brigite Studer (STUDER, 2003:5). Para ela,
sem abandonar aspectos da sociologia do fenômeno e de seus atores, é preciso observar
as aspirações, sensibilidades e crenças do próprio viajante. Qual a motivação da viagem,
qual interesse de sua experiência pessoal, quais as consequências da viagem aos autores,
assim como a recepção dos relatos (STUDER, 2003:5-6) (KERSHAW, 2006) são
algumas das questões que permeiam as preocupações de recentes pesquisas com os relatos
de viagens políticas.

Referências Bibliográficas

BERTOLLI FILHO, Claudio. Uma outra modernidade: médicos brasileiros na União


Soviética. IN: Anos 90 , Porto Alegre n. 10, dezembro de 1998.

BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica” em FERREIRA, Marieta M. e AMADO,


Janaína (orgs.), Usos e abusos da História Oral, Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2006.

FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito: cultura e imaginário político dos comunistas no


Brasil (1930-1956) – Niterói: EdUFF: Rio de Janeiro: Mauad, 2002.

GOMES, Angela de Castro. “Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo”, em


GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da História, Rio de Janeiro, Ed.
FGV, 2004, p. 7-24.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. – São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.

JUNQUEIRA, Mary Anne. Elementos para uma discussão metodológica dos relatos de
viagem como fonte para o historiador. Junqueira, Mary Anne; Franco, Stella M.Scatena.
(Orgs.). Cadernos de Seminários de Pesquisa. Vol. II. São Paulo: Humanitas, 2011.

KERSHAW, Angela. “French and British Female Intellectuals and the Soviet Union. The
Journey to the USSR, 1929 – 1942”, E-rea [En ligne], 4.2 | 2006, document 7, mis en
ligne le 15 octobre 2006. Consultado em agosto/ 2017. URL : http://erea.revues.org/250

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau a internet, Belo Horizonte,


Ed. UFMG, 2008.

LOBATO, Milton e MACHADO, Reinaldo. Médicos Brasileiros na URSS – Impressões


de viagem e Aspectos de Medicina Soviética. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1955.

MEDEIROS, Maurício. Rússia (Notas de viagem-impressões entrevistas-observações


sobre o regime soviético). Rio de Janeiro: Calvino, 1931.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1219
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “O Diabo nas Bibliotecas Comunistas.” IN: Dutra, Eliana;
R. Mollier, Jean-Yves. (Org.). Política, nação e edição: o lugar dos impressos na
construção da vida política: Brasil, Europa e Américas nos séculos XVIII-XX. São Paulo:
Annablume, 2006.

______________________. A Cultura Política Comunista: Alguns Apontamentos.


Napolitano, Marcos; Czajka, Rodrigo e Motta, Rodrigo Patto Sá (orgs.). Comunistas
Brasileiros: Cultura Política e Produção Cultural – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

REIS, Daniel Aarão. Ferreira, Jorge. Zenha, Celeste (Orgs). O século XX: o tempo das
crises: revoluções, fascismos e guerras (vol 2) – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000.

SILVA, Carla Luciana. Onda Vermelha: Imaginários Anticomunistas Brasileiros (1931-


1934). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

STUDER, Brigitte. “Le Voyage em URSS et son retour”. Le Mouvement Social 2003/4
n. 205. Ultimo Acesso em agosto/2017: https://www.cairn.info/revue-le-mouvement-
social-2003-4-page-3.htm

VIANNA, Luiz Werneck (entrevista). CASTRO, Celso. Estudos Históricos. Rio de Janeiro,
nº 35, janeiro-junho de 2005. p. 177-191.

_____________________________. BASTOS, Elide Rugai et all. Conversas com


sociólogos brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2006. P. 161- 182.

ZENO, Lelio. A Medicina na Rússia. Rio de Janeiro: Editora Nacional, 1935.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1220
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Experiência negra no pós-abolição: Eduardo Gonçalves Ribeiro, o governador


negro no Amazonas (1862-1900)
GEISIMARA SOARES MATOS
PPGHIS/ UFRJ. Capes

Introdução
Era 18 de setembro de 1862 600 quando Florinda Maria da Conceição dera a luz a
Eduardo Gonçalves Ribeiro, na cidade de São Luís, no Maranhão. Muito pouco se sabe
sobre a infância de Ribeiro, de origem modesta e talvez descendente de escravos, teve
uma infância humilde como os demais meninos de sua idade na época.
Durante sua curta vida, o então menino assumiria um protagonismo cheio de autos
e baixos e controvérsias. Trajetória marcada seja pela fundação do jornal anticlerical O
Pensador, juntamente com Aluísio de Azevedo em São Luís, seja pela sua morte muito
questionada e envolta de mistérios. Ou seja, a investigação da vida de Ribeiro pode ser
visualizada como um exemplo importante sobre as novas possibilidades que homens e
mulheres negras começavam a se defrontar depois da abolição do cativeiro e com o
estabelecimento da república brasileira.
A negritude de Ribeiro foi e ainda é algo ainda pouco abordado na historiografia
amazonense. Mário Ypiranga Monteiro, que escreveu a obra biográfica de Ribeiro mais
conhecida, trata sua ascendência como um fato ainda misterioso para ele, pois “parece
que ninguém quer falar ou ousa transpor os limites da confidência. Daí supor-se
inevitavelmente que sua origem fosse do tipo daquela que humilhava o grande Machado
de Assis”. (MONTEIRO, 1990, p. 89) Guardadas as devidas críticas ao teor do texto de
Mário Ypiranga, a citação é elucidativa: falar da origem de Ribeiro sempre foi difícil -
sempre pairando um silêncio embranquecedor - e quando acontecia, era com o intuito de
negativar sua imagem.
A vida de Ribeiro nos possibilita botar em xeque, argumentos que, durante muito
tempo, estiveram presentes nos estudos historiográficos: de que com a abolição da
escravidão, em 1888, a população negra brasileira viveu um período de marginalização,
o que significava estar fora das escolas, do mercado de trabalho e morando em lugares

600
Sua fé de ofício de 17 de fevereiro de 1892 nos da como ano de nascimento de Eduardo Ribeiro o ano
de 1861.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1221
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

insalubres e afastados da cidade. Não cabe aqui desmentir essa a precarização da vida do
negro no pós-emancipação, mas de trazer a tona outras vivências que vão muito além da
visão estereotipada sobre a vida da população negra, esta que, viveu e ainda vive, um
protagonismo na sociedade brasileira.
George Andrews em América Afro-Latina, ao analisar a vida dos negros no século
XIX, aponta que nesse período vários fatores, como o crescimento econômico e o fim do
tráfico de escravos, possibilitaram que afro-brasileiros conseguissem certos avanços
econômicos e sociais, principalmente através das faculdades que formavam médicos e
advogados de cor. (ANDREWS, 2007, p. 143-148) Assim, pensamos Eduardo Ribeiro
dentro desta lógica já que, ao inserir-se na Escola Militar da Praia Vermelha no Rio de
Janeiro, consegue bacharelar-se em matemática e ciências físicas, fato importante para
sua ascensão social, econômica e ingresso na vida política.
Como bem afirma Petronio Domingues, “o protagonismo negro no pós-abolição
é um campo de pesquisa em processo de consolidação, porém já é possível identificar
alguns dilemas, impasses e desafios”. Assim, o autor destaca que, neste leque de
pesquisas, um dos gêneros “de grandes potencialidades é o da biografia das pessoas de
cor”, (DOMINGUES, 2013, p. 60) perspectiva essa em que se insere a discussão aqui
sugerida. Muito demonizado entre os historiadores do início do século XX, a biografia
vem se renovando, o que significa dialogar com as novas perspectivas da História Política
e pensar o indivíduo estudado fora de uma linearidade coerente, cheia de discursos
ufanistas e laudatórios. Agora, busca-se pensar, a partir das experiências individuais,
como se relacionavam com o ambiente e época que viviam, procurando entender as
tensões e contradições de sua vivência.
A vida de Ribeiro pode nos dar uma luz sobre o período da Primeira Repúblca,
onde, sem dúvidas, a política institucionalizada era dominada pelos homens brancos. Isso
significava que os negros sofriam cotidianamente com o racismo que os humilhava e
impedia que acendessem a certos espaços, o que significava serem visualizados como
“um ser eugenicamente patológico: feio, sem charme ou elegância”. Assim, “sua
ascensão, portanto, foi possível graças à possibilidade de aproveitar as fissuras e brechas
do sistema racial brasileiro”. (DOMINGUES, 2013, p. 155)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1222
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Isso aconteceu e se reflete até hoje. Pois, o processo de branqueamento de Eduardo


Ribeiro, ao longo da História, e sua representação branca pelos museus da cidade de
Manaus, configuram como exemplo importante sobre esse processo, nos fazendo
questionar: seria mais oportuno ligar a imagem de um dos políticos mais conhecidos na
cidade a uma figura branca? Isso nos demonstra que o emergir de uma elite que se alto
denominou branca possibilitou escolher como tipo representativo de superioridade de
nossa sociedade o branco europeu e, assim, o negro como tipo negativo e inferior, origem
que ninguém queria associar-se. (MOURA, 1988, p. 62) Ou seja:
Em cima dessa dicotomia étnica estabeleceu-se, como já dissemos, uma
escala de valores, sendo o indivíduo ou grupo mais reconhecido e aceito
socialmente na medida em que se aproxima do tipo branco, e
desvalorizado socialmente repelido à medida que se aproxima do negro.
(MOURA, 1988, p. 62)

É certo destacar aqui que Eduardo Ribeiro, ao que nos parece, não teve um
discurso de identidade racial, não participando, por exemplo, do movimento abolicionista,
mas este fator não descaracteriza e deslegitima, ou torna inviável o estudo de uma
personagem que tinha estampada na pele um dos obstáculos de se ascender socialmente
no final do século XIX. Como um republicano de cor e positivista, Eduardo Ribeiro, como
tantos outros negros republicanos acreditava em um projeto de república.
Com essa pequena discussão sobre as possibilidades de discussão que a vida de
Eduardo Ribeiro nos possibilita, acabamos por assinalar um marco geográfico: a
Amazônia, ou mais precisamente, o estado do Amazonas. A historiografia regional, e
porque não dizer, brasileira, por muito tempo negligenciou a presença negra na
Amazônia, conferindo a ela caráter quase insignificante no que tange a formação dessa
população que teria o aspecto indígena muito mais acentuado. Fato mais falseador não
há.
Desde a década de 1980 e principalmente a partir dos anos de 1990 novas
pesquisas vem elucidando, principalmente, a questão da escravidão negra na região
amazônica. Quando falamos sobre a produção historiográfica sobre o negro no Amazonas
ainda estamos falando de um terreno recente e ainda em construção, mas que já vem a
algum tempo preocupando-se em, principalmente, tentar entender as dinâmicas da

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1223
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

escravidão na região601 e do movimento abolicionista602 acontecido já em 1884. Quando


partimos para os estudos sobre pós-abolição no Amazonas o número de pesquisas a se
debruçar sobre essa perspectiva ainda é escasso, demandando por estudos de mais fôlego.
Assim, ao tratarmos da trajetória de Ribeiro nos inserimos dentro de uma nova abordagem
que busca elucidar a presença negra no Amazonas. A partir do silencio que se fez sobre
a origem negra de Eduardo Ribeiro, argumentamos que este fato implicou no seu
branqueamente. Nosso objetivo com este trabalho é, contribuir para enegrece-lo, como
também entender sua trajetória cheia de contradições a partir dos espaços que em que
circulou.

A trajetória d’O Pensador 603


A trajetória de Eduardo Ribeiro inicia-se no Maranhão como apresentado no início
desse artigo. Foi lá que começou seus estudos, até entrar para o Liceu Maranhense em
1879, fato incomum para um rapaz de origem humilde e com a ascendência africana
visível na cor da pele. As biografias existentes sobre ele nos mostram que para conseguir
concluir os estudos Ribeiro foi ajudado por um padrinho poderoso e político, fato
reforçado por uma escrita tradicional, que não apresenta fontes sobre isso.
Ainda em São Luís, no dia 10 de setembro de 1880, Eduardo Ribeiro, juntamente
com figuras importantes do meio intelectual maranhense, como o escritor Aluísio de
Azevedo, funda o jornal O Pensador. Publicado três vezes ao mês e de caráter anticlerical,
tinha como objetivo contrapor as ideias do jornal Civilização, representante dos interesses
da Igreja Católica e de seu conservadorismo. Esse Jornal foi um meio fecundo para que
esses jovens pudessem expressar suas ideias modernas. O fato de Eduardo Ribeiro estar
ligado a um jornal nitidamente contrário a política imperial, não nos dá indícios de que

601
Sobre isso ver: SAMPAIO, Patricia Melo. Espelhos Partidos: Etnia, legislação e desigualdade na
colônia. (2011); SAMPAIO, Patrícia Melo. Os fios de Ariadne: fortunas e hierarquias sociais na Amazônia,
século XIX. (2014); COSTA, Jéssyka Sâmya Ladislau Pereira. Por todos os cantos da cidade: escravos
negros no mundo do trabalho em Manaus oitocentista (1850-1884) de 2016; CAVALCANTE, Ygor Olinto
Rocha. Uma viva e permanente ameaça: resistência, rebeldia e fugas de escravos no Amazonas Provincial
(c.1850-c.1882) de 2013; ABREU, Tenner Inauhiny. “Nascidos no Grêmio da Sociedade”: Racialização e
mestiçagem entre os trabalhadores na Província do Amazonas (1850-1889) de 2012.
602
Sobre isso ver: POZZA NETO, Provino. Aves Libertas: ações emancipacionistas na Amazônia Imperial.
Dissertação de Mestrado. UFAM, Manaus, 2011.
603
Eduardo Ribeiro ficou conhecido no Amazonas pelo codinome O Pensador, que fazia referência ao
jornal em que participou em São Luis/MA.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1224
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

tenha lutado diretamente no movimento abolicionista no Maranhão, apesar disso,


podemos supor que suas ideias modernas possam ter relação com o contato direto com a
escravidão e seus desdobramentos.
Agora, terminada sua jornada em São Luís, Ribeiro senta Praça no Rio de Janeiro
em fevereiro de 1881 e inicia seus estudos na Escola Militar, já em 1884 é promovido a
604
alferes-aluno. Conclui o curso em janeiro de 1886 tonando-se bacharel em Ciências
Matemáticas. Como podemos supor, a passagem de Ribeiro pela Escola Militar não deve
ter sido pacífica. Dentre as dificuldades enfrentadas podemos apontar o fato de ter tido
origem humilde e esta escola ser predominantemente um espaço da elite da época. Outro
ponto diz respeito às dificuldades quanto aos estudos, tendo em vista o elevado grau de
exigência disciplinar. Mas talvez a dificuldade maior tenha sido as discriminações
enfrentadas por sua origem pobre e negra. (MESQUITA, 2005, p.283)
Terminando sua passagem pelo Rio de Janeiro e já no posto de alferes, foi
promovido a 2º tenente e lotado no 3º Batalhão de Artilharia-a-Pé sediado em Manaus
(MONTEIRO, 1990, p.12), sendo que, sua passagem pelo norte do país já havia
começado por Belém. Em agosto de 1887, Eduardo Gonçalves Ribeiro chega a
Manaus.605 Agora, em Manaus, Eduardo Gonçalves Ribeiro é incorporado ao Terceiro
Batalhão de Artilharia, onde ficara até 15 de novembro de 1889. Quando da Proclamação
da República, Eduardo Ribeiro já era Secretário do Comando de Armas e, com a
implementação do governo provisório, foi alçado ao cargo de Oficial de Gabinete. Em
1890, quando Augusto Ximeno de Villeroy606 é empossado governador do Amazonas,
Ribeiro mantem-se como secretário sem prejuízo de suas obrigações.
Ficando apenas 11 meses no governo do Estado do Amazonas, Ximeno de
Villeroy retira-se do cargo em novembro de 1900, em direção ao sul do país para que
pudesse cuidar de sua esposa doente. Sendo assim, o cargo é entregue a Eduardo Ribeiro

604
Informação obtida em biografia escrita por Agnello Bittencourt, em dicionário amazonense de
biografias. Segundo Otoni Mesquita citando biografia no Diário Oficial, Eduardo Ribeiro concluiu o curso
em janeiro de 1887. (p.282)
605
Uma escrita tradicional diz que por ter mantido às ideias republicanas sua vinda para Manaus foi
realizada como forma de aplicação de uma pena militar.
606
Augusto Ximeno de Villerou foi educado nos ensinamentos de Benjamin Constant. Chegou ao
Amazonas em janeiro de 1890, para assumir o cargo de governador do Amazonas. Aqui, dissolveu a
Assembleia Provincial e as Câmaras Municipais, criou um batalhão de polícia, extinguiu o ensino religioso
nas escolas, entre outras coisas. Deixou o governo em novembro do mesmo ano. (REIS, 1989, p. 247).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1225
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

em 02 de novembro de 1890, uma vez que o primeiro vice-governador não se encontrava


em Manaus. Em 03 de janeiro de 1891 é nomeado governador do Amazonas, substituindo
Villeroy. A situação política não era pacífica, os ataques que o governo de Ximeno de
Villeroy vinha se deparando, agora, ameaçavam a administração de Eduardo Ribeiro.

Ribeiro era muito jovem, solteiro e sua descendência africana era


evidente na cor da pele. Não tinha fortuna nem sobrenome aristocrático.
Além disso, não era nativo. Ainda que sua formação na Escola Militar
lhe proporcionasse um elevado status, isso não era atributo suficiente
para lhe proporcionar uma acolhida satisfatória pela sociedade e pelas
oligarquias locais. Orientado por um discurso de princípio republicano
e pelos ideais do progresso, Ribeiro imprimiu uma administração
dinâmica ao Estado. Mas confrontava-se com a tradição de uma política
de velhos coronéis e barões; portanto, não havia unanimidade em torno
de seu nome. (MESQUITA, 2005, p. 287)

Talvez, por denúncias feitas por lideranças locais, em detrimento de inclinações


políticas assumidas por Ribeiro, 607 na manhã do dia 12 de abril de 1891, chega a abrupta
notícia de sua demissão do cargo e a nomeação do coronel Traumaturgo de Azevedo para
substituí-lo. A notícia não foi bem recebida pela população amazonense, convocados por
um boletim, o povo se reuniu em frente ao palácio pedindo para que Eduardo Ribeiro não
deixasse o governo do Estado. Sobre isso, Arthur César Ferreira Reis nos apresenta a ata
assinada por centenas de pessoas, que dizia:
Aos doze dias do mez de Abril de mil oitocentos e noventa e um,
terceiro da República, reunido o povo da cidade de Manáos, em nome
da população do Amazonas, na praça da Republica, em vista da
demissão traiçoeiramente conseguida do Governo Geral pelos inimigos
da República, do cidadão Dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro, que a
contento da população do Amazonas está dirigindo os distinos deste
Estado, resolveu a mesma população acclamar o referido Dr. Eduardo
Gonçalves Ribeiro, governador effectivo d Estado do Amazonas. Em
seguida o mesmo povo depoz a Intendencia Municipal por não mais lhe
merecer confiança. E por ser esta a vontade do povo, foi lavrada a
presente acto que lida ao cidadão Governador proclamado pelo povo,
foi aceita e assignada pelos presentes”. (REIS, 1989, p. 249)

607
Ainda sobre essa tentativa de retirar Eduardo Ribeiro do governo do Estado, Mário Ypiranga Monteiro
(1990, p. 26) nos diz que os homens que tramaram essa deposição, eram homens convencidos de que a
república tratava-se apenas de uma atividade política efêmera e que Ribeiro no poder constituía séria
ameaça aos planos dos partidos conservadores, principalmente o Partido Democrático, inegavelmente
monarquista.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1226
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Parecia que tudo estava resolvido e que Ribeiro iria se manter como governador
do Estado, mas no dia 05 de maio de 1891, o capitão de fragata Borges Machado, vindo
do sul para comandar a flotilha, chegou a Manaus com instruções do governo provisório
e intimou o tenente Eduardo Ribeiro para que passasse o governo ao 1º vice-governador,
o coronel Guilherme José Moreira, o Barão de Juruá.
Naquela ocasião seu governo foi bastante curto, durando apenas 20 dias, de 05 de
maio de 1891 a 25 de maio do mesmo ano, quando foi substituído pelo coronel Antônio
Gomes Pimentel. É instalado o Congresso Constituinte que tinha de eleger o governador
e o vice-governador, e assim o fazem, em 27 de junho de 1891. Com maioria pertencente
ao Partido Democrático e obedecendo as ordens vinda do Rio de Janeiro foram eleitos
608
Gregório Taumaturgo de Azevedo e Guilherme José Moreira para os cargos de
governador e vice-governador respectivamente.
Depois de diversos impasses e disputas que não cabem explorar no curto espaço
de um artigo, Taumaturgo de Azevedo é obrigado a entregar o governo do Amazonas.
Em 27 de fevereiro de 1892 o comandante da flotilha assume o governo. Nos dias que se
seguiram, Eduardo Gonçalves Ribeiro já era esperado pela população de Manaus que
havia sido nomeado pelo marechal Floriano Peixoto para que restabelecesse a ordem no
Estado. Na ocasião de sua chegada e posse, os jornais noticiaram a grande aclamação que
Ribeiro teve, mais uma vez, do povo amazonense. 609
Era 11 de março de 1892 quando Eduardo Gonçalves Ribeiro assume novamente
o governo do Estado do Amazonas. Já em decreto de 12 de março de 1892, Ribeiro com
o intuito de interromper os atos estabelecidos pelos representantes do Estado, dissolve o
Congresso Legislativo.
Em decreto de 18 de março de 1892, Ribeiro convoca eleições para presidente e
vice-presidente do Estado do Amazonas. Para manter o controle da situação, regula a

608
Nasceu na cidade de Barras, no Piauí em 17 de novembro de 1851. Como engenheiro militar atuou na
Comissão de Limites do Brasil com a Venezuela em 1880, explorou a região de Itacoatiara no Amazonas,
entre outras atividades. Foi nomeado para o cargo de governador do Piauí por Deodoro da Fonseca e
exercendo o mandato ade 26 de dezembro de 1889 a 4 de junho de 1890. Foi prefeito do Departamento do
Alto Juruá, no Acre, em 1904 fundou a cidade de Cruzeiro do Sul. Ficou na presidência da Sociedade de
Geografia do Rio de 1914 a 1920. (BRAGA, 2011, p. 97)
609
Sobre esses acontecimentos, o Jornal Amazonas de maço de 1892, descreve a aclamação da chegada de
Ribeiro.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1227
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

eleição ao estabelecer regras objetivas para essa escolha, diante disso, em 23 de julho de
1892, foi eleito governador do Amazonas. Observamos assim, o início da principal
administração de Eduardo Gonçalves Ribeiro, entre 1892 e 1896. Administração esta que
é conhecida pelas obras de intervenção urbana, edificações suntuosas e pela ênfase na
modernidade urbana. Obras como o Teatro Amazonas, o Palácio da Justiça, reservatório
do Mocó, a ponte Benjamin Constant, dentre tantos outros feitos. Sobre isso Mário
Ypiranga Monteiro nos diz que “tornou-se lugar-comum admitir-se tudo quanto Manaus
possui de bonito e moderno ao governador dr. Eduardo Gonçalves Ribeiro”, fato que
acaba por deixar a margem os feitos durante a monarquia. (MONTEIRO, 1990, p. 95)
Mas nem tudo eram flores, as lutas políticas não cessaram. Diversas acusações ao
seu governo aconteciam todo momento. Olympio Lima em Carta Aberta a Eduardo
Ribeiro nos faz saber sobre algumas das acusações de que Ribeiro era alvo em jornais de
oposição. Ele diz:

Hontem, por exemplo, andavam a dizer:


a) que recebestes pelo Pernambuco, duas peças de tiro rápido;
b) que mandastes comprar a uma ou duas lojas de ferragens 3 contos de
reis em rifles;
c) que tendes mandado comprar no Pará, grande quantidade de
armamento. (Diário de Notícias, Manaus, nº 4, 04 de abril de 1893)

Ainda nessa carta, Olympio Lima nos informa que havia boatos correndo pela
cidade de que por ordem de Eduardo Gonçalves Ribeiro, as pessoas que não pensavam
ou que não morriam de afetos por ele estava sofrendo algum tipo de represália. Olympio
não acreditava nas acusações que chegavam aos seus ouvidos, e enaltece a índole de
Ribeiro ao longo de seu texto.
Por ocasião de artigos publicados em jornais que ofendiam a imagem do
governador, as primeiras censuras à imprensa foram feitas. Jornais como o Commercio
do Amazonas e Diario de Manaós foram punidos já em 1892. Luciano Costa Teles em
artigo sobre jornais operários no início da republica no Amazonas, nos apresenta o caso
do jornal operário Gutenberg que após passar a tecer críticas ao governo de Ribeiro teve
suas publicações suspensas. (TELES, 2015) Falar mal de Eduardo Ribeiro não era fácil

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1228
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

e, talvez, essa seja outra faceta desse personagem que ainda é pouco explorada: seu
autoritarismo
Sobre sua administração Agnello Bittencourt é enfático “com aquele espírito de
iniciativa a realização de Eduardo Ribeiro, foi fácil, em 4 anos, transformar a grande
aldeia que era Manaus, na cidade moderna que passou a ser”. ( BITTENCOURT, 1973,
p. 196) Esse é o pensamento corrente na historiografia amazonense, como também na
memória da população sobre sua figura, Mário Ypiranga, apesar de enfatizar o caráter
visionário de administrações anteriores, não nega a notória capacidade de trabalho que
ele tinha:

Essa energia contaminadora , que o levava a estabelecer linha de


navegação para o Maranhão, a mandar vir colonos e operário
maranhenses, pois as obras novas exigiam mão-de-obra especializada,
adjutórios extras, tantas as disponibilidades chamarizes do braço
trabalhador, tantas as escavações, as paredes, os tetos, as valas, os
aterros, as pontes, os desmontes, aqui, acolá. (MONTEIRO, 1990, p.
100)

Havia um projeto de modernização de Manaus, não há como negar, mas é


importante destacar que esse plano foi possível pelo crescimento econômico que o estado
passava, tendo em vista a grande arrecadação de impostos com a borracha que era
exportada, por outro lado o Congresso apoiava Eduardo Ribeiro, o que fez com que vários
de seus projetos enviados ao Congresso fossem aprovados e assim pudessem receber
financiamento. Muitas dessas obras realizadas por Ribeiro, concentraram-se no centro de
Manaus, com o intuito de embelezamento como muito destacam, mas não apenas por
isso, já que sabemos que o período da Belle Epoque não se resumia a uma maior
proeminência de uma vida artística e boemia.
Ao final de seu mandato, e com mais impasses diante de sua pessoa e de seu
partido, o republicano, nas eleições de 1896, Eduardo Ribeiro é eleito para ocupar uma
cadeira no senado federal como representante do Amazonas, contudo, Ribeiro não
conseguiu assumir o cargo. Agora, já que não possuía privilégios por conta de cargo
público, continuava sobre as miras da imprensa.
Em 1898 manteve-se como líder do Partido Republicano Federal, e assume o
posto de presidente do Congresso Estadual e o cargo de redator do jornal A Federação.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1229
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ainda naquele ano, concorreu as eleições para o senado federal novamente, mas não é
eleito. Os degastes políticos estavam sendo constantes e as investidas da imprensa
continuavam e seus problemas de saúde ficaram evidentes (MESQUITA, 2005, p. 298).
Quando o ex-governador do Amazonas, Eduardo Gonçalves Ribeiro morreu, em
14 de outubro de 1900, em sua casa, a Chácara Pensador, já era tratado como herói por
grande parte da população amazonense Sua situação clínica já não estava indo bem já
havia um tempo, e isso anunciava tempos difíceis para O Pensador.
Durante a madrugada de sua morte, segundo Júlio Benevides Uchoa, Eduardo
passara agitadíssimo, em grande estado nervoso. Até o momento em que na madrugada
do dia 13 de outubro o enfermo tirou as correntes de sua rede, sacudiu-as e jogou umas
nas outras. O enfermeiro que o acompanhava tirou-as de sua posse, foi então que Ribeiro
solicitou que o mesmo trouxesse-lhe leite. Durante o curtíssimo tempo em que ficara só,
pôs termo a vida.610
Pairava uma aura de mistério sobre Manaus, diversos jornais publicavam notícias
que deixavam em dúvida as circunstâncias em que a morte havia acontecido. Tendo em
vista a posição do corpo, questionavam se havia sido suicídio ou homicídio.611 Discursos
em torno de sua morte continuaram a ser tecidos mesmo muito depois de sua morte, o
Jornal Quo Vadis? Em nota sobre a passagem de três anos da morte de Ribeiro deixa
explicito a possibilidade de ter sido assassinato.

Se são reaes os boatos, que Deus dê paz à sua alma e remorsos ao seu
assassinos, que não podiam ser outros se não aquelles que o cercavam,
que ele havia levantado da lama e nos quaes dava o nome de amigos
(Jornal Quo Vadis?, Manaus, nº 233, 12 de dezembro de 1903.)

O enterro e funeral de Eduardo Ribeiro foram apoteóticos e mobilizaram grandes


nomes da política, instituições e a população em geral. A morte e o ritual fúnebre deste
sujeito foram momentos importantes para a reafirmação de um herói humano, um herói

610
Uchoa apud Monteiro 1900. Mário Ypiranga transcreve parte do trabalho do professor Júlio Benevides
Uchoa, mas não nos fornece maiores detalhes quanto à origem de sua publicação. p. 47.
611
Sobre a morte de Ribeiro, Mário Ypiranga Monteiro nos apresenta ainda duas versões sobre a morte
misteriosa. Uma das mais antigas diz respeito ao seu envenenamento através de um charuto. Outra versão
diz que seu assassinato havia sido encomendado pelo barão de Santa-Anna Nery. Uma terceira diz que teria
sido envenenado com ervas trazidas de Santarém. Ainda sobre isso Monteiro propõe que era “preciso
liquidar o negro”. (Negritude e Modernidade, p. 83)
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1230
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que apesar de todas as dificuldades em torno da sua saúde foi capaz de transformar
Manaus em uma metrópole no final do século XIX e, para além disso, construiu-se
Ribeiro como um herói popular.

Considerações Finais
É inegável que a partir de 1889, com o estabelecimento da República Brasileira,
é assinalado não apenas a inauguração de um novo regime, mas também a ascensão de
grupos diferenciados aos postos de comando. (LAMB, 2012, p. 183) Nesse sentido,
observamos um cenário com transformações e continuidades nos diversos setores da vida
pública, econômica, política e social. Assim, a vida de Eduardo Gonçalves Ribeiro, por
sua singularidade, nos suscitou interesse por ser uma trajetória emblemática para a
história da república amazonense.
A vida de Ribeiro, principalmente no tocante aos espaços de sociabilidade que
esteve inserido e as escolhas políticas que fez, nos mostram os vários dilemas que o fim
do império ofereceu. Como positivista e republicano, é inegável que Eduardo Ribeiro
questionasse a sociedade e que buscasse outras possibilidades de organização
administrativa e política.
Apesar de não assumir uma luta explícita sobre sua condição racial, Eduardo
Ribeiro nós mostra como é importante reafirmar, na escrita de uma história, a sua
condição de ser um homem de cor que no final do século XIX alcança um grau de
prestigio, isso porque os discursos desenvolvidos sobre ele trataram de modo bem
superficial sobre sua negritude, pairando um silenciamento branqueador sobre ele. Nos
poucos casos em que a cor de Eduardo Ribeiro é referenciada, termos como “pardo”,
“moreno” e “mulato” são utilizados, nitidamente com o objetivo de clarear sua cor. Ou
seja, queria o Amazonas um herói negro?

Fontes
Diário de Notícias, Manaus, nº 4, 04 de abril de 1893.
Jornal Quo Vadis?, Manaus, nº 233, 12 de dezembro de 1903.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1231
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Referências Bibliográficas
ANDREWS, George Reid. América Afro-Latina (1800-2000). São Carlos: EDUFSCar,
2007. p. 143-148.

AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade


de São Paulo. / Capinas, SP : Editora da Unicamp / Centro de Pesquisa em História Social
da Cultura, 1999.

BITTENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias: vultos do passado.


Rio de Janeiro, Conquistas, 1973.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de


Morais (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. 4ª edição. Rio de Janeiro: FGV, 2001. p.
183-191.

DANTAS, Carolina Vianna. Monteiro Lopes (1867-1910): um líder da raça negra na


capital da República. Afro-Ásia, n.41, 2010, p.168-209.

DINIZ, Carlos Alberto Nogueira. Santo Dias: a construção da memória (1962-2005).


Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual Paulista. 2013.

DOMINGUES, Petrônio. Cidadania levada a sério: os republicanos de cor no Brasil. In:


GOMES, Flávio e DOMINGUES, Petrônio (orgs). Políticas da raça: experiências e
legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2014, p.121-
154.

DOMINGUES, Petronio. Fios de Ariadne: o protagonismo no pós-abolição”. In:


GOMES, Flávio do Santos; DOMINGUES, Petronio. Da nitidez da invisibilidade:
legados do pós-emancipação no Brasil. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2013. p. 60

DOMINGUES, Petronio. “Vai ficar tudo preto”: Monteiro Lopes e a cor na política. In:
GOMES, Flávio do Santos; DOMINGUES, Petronio. Da nitidez da invisibilidade:
legados do pós-emancipação no Brasil. Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2013.

________________. A “aurora de um grande feito”: a herma a Luiz Gama. Anos 90,


Porto Alegre, v.23, n.43, 2016. p. 389-416.

GOMES, Flávio. “No meio das águas turvas – racismo e cidadania no alvorecer da
República: a Guarda Negra na Corte (1888-89)”. Estudos Afro-Asiáticos, n.21, 1991, p.
75-96.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1232
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

GRINBERG, Keila, 1971 – O fiador dos brasileiros / Keila Grinberg. – Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.

LAMB, Nayara Emerick. Figurações do passado: heroicidade e nacionalismo na virada


do século XIX para o XX. Revista Maracanan, 8ª edição, janeiro/ dezembro 2012. p. 183.

MALATIAN, Teresa. Arlindo Veiga dos Santos e a inserção do negro num projeto de
nação. In: COSTA, Hilton; ROIZ, Diogo da Silva; TRINDADE, Alexandro Dantas
(orgs). À margem do(s) cânone(s): pensamento social e interpretações do Brasil.
Curitiba: Ed. YFPR, 2013, p. 97-118.

MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste


escravista (Brasil, século XIX). - 3ª ed. ver. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013.

MESQUITA, Otoni Moreira de. La Belle Vitrine: O mito do progresso na refundação da


cidade de Manaus (1890-1900). Tese de Doutorado em História apresentada ao Programa
de Pós Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2005.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Negritude e Modernidade. Manaus: Governo do Estado


do Amazonas. 1990.

MOURA, Clovis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo. Editora ÁAtica, 1988.

REIS, Artur Cezar Ferreira. História do Amazonas. Manaus, 1989.

TELES, Luciano Everton Costa. Entre perseguições, agressões e empastelamentos: o caso


dos jornais de trabalhadores Gutenberg (1891-1892) e Operário (1892) no Amazonas da
Primeira República Brasileira. In: Revista Aedos, Porto Alegre, v.7, nº 17, p. 22-40, Dez.
2015.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1233
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Republicanismo, Abolição e Pós-abolição na imprensa de Itaboraí (1886-1921)

GILCIANO MENEZES COSTA


PPGH/UFF
Introdução:
A sociedade brasileira passou por uma série de crises e transformações no período
entre o último quartel do século XIX e as três primeiras décadas do século XX. As
discussões em torno da abolição da escravatura, o embate entre Monarquia e República e
os conflitos com a inserção social dos negros, no contexto do Pós-abolição, foram
temáticas que estiveram em pauta no cotidiano da imprensa neste período (MACHADO,
1991).
A proposta deste estudo é apresentar os conflitos desse contexto, em Itaboraí-RJ,
através da leitura dos jornais locais, sobretudo, O Social e O Itaborahyense, entre o
período correspondente a criação do O Social, 1886, e a morte de seu criador, Hermeto
Luiz da Costa, em 1921.
Considerando que as diversas transformações que ocorreram, nesse intervalo de
tempo, impulsionaram o reordenamento de práticas e ações que os negros realizaram
diante dos diferentes embates que tiveram, este texto busca analisar os conflitos raciais
na cidade dentro das relações e articulações políticas, sociais e culturais que os jornalistas
desenvolveram na região.
Desta forma, é analisado o cotidiano da representação do negro na imprensa local,
através da compreensão do conjunto de práticas e processos sociais próprios desse
período, presente nesses jornais, em diálogo com os jornais da Corte que mencionavam
Itaboraí em suas matérias. É um trabalho que busca proporcionar uma contribuição para
a História da Imprensa Fluminense, inserindo o jornalismo de Itaboraí como lente de
observação desse processo histórico.
Com essa redução da escala de análise, como meio de interpretar os
acontecimentos, os conflitos e as negociações existentes, pretende-se perceber os
fenômenos da sociedade que geraram as relações políticas, sociais e culturais no período
analisado, acompanhando os agentes sociais nas diferentes relações que realizaram e
estiveram inseridos. Essa redução possibilita reconstruir o vivido e “por outro lado,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1234
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

propõe-se indagar as estruturas invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula”
(GINZBURG , 1991, p.177).
Dialogando com a Micro-história, o conceito de cultura política também embasa
este trabalho, visto que, como observou Serge Berstein, tal conceito contribui para uma
“explicação dos comportamentos políticos por uma fração do patrimônio cultural
adquirido por um indivíduo durante a sua existência e compartilhado pelo tecido social o
qual está inserido” (BERSTEIN, 1998, p. 349-363).
Este conceito defende que a cultura dialoga com o comportamento político e
econômico, além de politizar as práticas e ações cotidianas – ritos, festas, costumes – e
de defender que são sujeitos de sua própria história os indivíduos e grupos que vivem
relações sociais de dominação (GOMES, 2005). Vale destacar que a Micro-história, assim
como o conceito de cultura política, inviabiliza uma compreensão unívoca da História e
testa na realidade os modelos interpretativos mais amplos.

A Cidade, a Imprensa Local e os Hermetos:


O município de Itaboraí está localizado ao Leste do Recôncavo da Guanabara e
tem sua formação territorial no desfecho das divisões político-administrativas ocorridas
na Vila de Santo Antônio de Sá e posteriormente na incorporação da Vila Nova de São
José Del Rei pela Vila de São João de Itaborahy, quando esta última foi criada em 1833
(COSTA, 2014, p. 7).
Quanto à economia de Itaboraí, embora a produção de açúcar tenha sobressaído,
ocorreu uma considerável diversificação no século XIX, sendo produzido farinha, milho,
arroz, feijão, café, tendo a criação de gado e produção de madeira, telhas e outros
utensílios de barro. Soma-se a isso, o fato de que no período da produção de café nas
regiões de Nova Friburgo e Cantagalo, antes da implementação da ferrovia em 1860, a
região se destacou como um importante entreposto comercial, sobressaindo a localidade
de Porto das Caixas (SANTOS, 1975). No decorrer das três primeiras décadas do século
XX, a região passou a produzir frutas com expressividade, com destaque para a produção
de abacaxi e laranja (ALMANAQUE..., 1925, p. 1027).
Em função de seu crescimento econômico e político, na primeira metade do século
XIX, Itaboraí foi escolhida para ser "cabeça de comarca”, compreendendo os termos das
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1235
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Vilas de São João de Itaborahy, de Magé, de Santo Antônio de Sá, de Maricá e de Praia
Grande. Essa projeção política se modificou no decorrer do Século XIX, sendo
intensificada no final deste século e início do século XX (COSTA, 2013, p. 133).
Em relação à população escrava, apenas a partir de 1877 que a região parou de
apresentar flutuações entre crescimento e diminuição dessa população, visto que é a partir
desse ano que ocorre a queda contínua da população cativa na região, como pode ser
verificado pelos seguintes dados: 1872 (7.166 escravizados); 1877 (7.221); 1881 (5.781)
e 1885 (2.701) (RECENSEAMENTO GERAL DE 1872; RELATÓRIO DO
PRESIDENTE...1881-1887).
No Pós-Abolição, o primeiro recenseamento realizado na República foi o de 1890,
apresentando para Itaboraí um total de 23.973 habitantes. Desses, a população não branca,
composta por Pretos (5.048), Caboclos (496), Mestiços (10.388), possuía um total de
15.932 e a população branca um total de 8.041. Os Recenseamentos de 1900 e 1920 não
mencionam a classificação “cor”, apresentando apenas o total da população distribuído
por sexo, tendo respectivamente o total de 21.194 e 27.760 habitantes
(RECENSEAMENTO GERAL DE 1890, 1900 E 1920).
Por fim, para somar na apresentação da dimensão demográfica da região, no censo
de 1940, de um total de 24.370 habitantes, 5.798 são denominados de pretos, 8.412 de
pardos, 62 de cor não declarada e 10.098 de brancos (IBGE, 1940).
No que concerne aos Jornais, a imprensa no Brasil tem como marco o decreto de
D. João VI de 1808, na medida em que cria a Imprensa Régia, estabelecendo que fosse
impresso "exclusivamente toda legislação e papeis diplomáticos" das repartições do real
serviço (BRASIL, 1891, p. 29-30). No início, apenas jornais oficiais ou simpáticos ao
governo podiam circular. O primeiro desses jornais foi a Gazeta do Rio de Janeiro. No
decorrer do século XIX, esse quadro de censura se altera e surgem jornais com mais
autonomia, participando de lutas sociais e de embates com autoridades e com jornais que
defendiam o status quo612.
Em Itaboraí, na primeira metade do século XIX, os jornais publicizavam anseios
dos grupos políticos que conduziam a cidade, como O Severo (1832) e O Amigo da Moral

612
Para saber mais sobre o desenvolvimento da imprensa no Brasil ver: CARVALHO, 1908 e SODRÉ,
1999.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1236
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(1838). No decorrer da segunda metade deste século, surgem jornais dialogando com o
poder público sobre a necessidade em atender demandas, que supostamente beneficiariam
a estrutura econômica da região. Entre as temáticas do que era publicado, as que mais
sobressaíam eram as referentes a construções e reformas de estradas e pontes, drenagem
de pântanos e melhoria no transporte para atender, principalmente, a agricultura. Com
raras exceções, os embates explícitos com as autoridades locais eram realizados. Desses
jornais, O Popular (1854) do Porto das Caixas teve uma maior atuação613.
Em 1862, também no Porto das Caixas, esse perfil começa a ser alterado com as
publicações do jornalista Hermeto Luiz da Costa614 no Jornal A Nova Era. Essas
publicações já apontavam - ainda que de forma inexpressiva, mas não menos conflituosa
- cobranças ao Poder público para atender algumas demandas da própria população (O
ITABORAHYENSE, 17/07/1921).
A mudança de postura é intensificada nas duas últimas décadas do século XIX, no
contexto das discussões entre escravidão e abolição e entre Monarquia e República,
quando Hermeto Luiz da Costa cria, em momentos diferentes, os jornais A União, A Luta,
O Social e O Itaborahyense615. Esses periódicos representam um marco na atuação da
imprensa do município de Itaboraí e arredores, na medida em que atuaram em defesa da
criação de um espaço onde fosse possível discutir temas referentes às questões
econômicas, políticas, e, principalmente, sociais e culturais.

613
Pesquisando sobre os jornais de Itaboraí, até 1930, foram encontrados os seguintes: O Severo (1832), O
Amigo da Moral (1838), A Civilização (1850), O Semanário (1853), O Popular (1854), O Patriota (1855),
A Nova Era (1862), Echo Popular (1863), Itaborahyense (1863), Regenerador (1866), A União (1876), A
Luta (1880), O Social (1886), O Itaborahyense (1895), Echo (1905), O Portuense (1908), O Momento
(1922), O Sambaitibense (1922) e A União (1929). Informações obtidas através da leitura das seguintes
obras: Almanak...(1844-1889); Almanaque Administrativo...(1891-1930); Anais da Biblioteca
Nacional...(1965) e Acervo Heitor Costa.
614
Hermeto Luiz da Costa nasceu no dia 09 de agosto de 1839 e faleceu, devido a uma gripe pulmonar
aguda, no dia 27 de julho de 1921. A imprensa da capital, destaque para o jornal Gazeta de notícias, publicou
seu falecimento com pesar e o denominou como “Decano da Imprensa Fluminense” (02/07/1921). Foi
monarquista e integrante do partido Liberal. “Exerceu os cargos de escrivão de polícia, contador e
distribuidor, tabelião, escrivão de órfãos, juiz de Paz e vereador”. Participou da Loja Maçônica Concordia
II, em Itaboraí, ocupando sempre a cadeira de 1º vigilante (O ITABORAHYENSE, 17/07/1921).
615
Desses jornais, apenas O Social e O Itaborahyense fazem parte do acervo Heitor Costa, o que
inviabilizou, até o momento, a análise dos jornais A Nova Era, a União e a Luta. Agradeço aos herdeiros,
Helso Costa, Heitor Costa e em especial Heimar Costa, pelo acesso a esses jornais e por apoiar a pesquisa
em curso.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1237
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A princípio, a intenção defendida, por esse jornalista e seus colaboradores, era a


possibilidade de se ter um jornal que publicasse os anseios de diferentes grupos da região,
não restringindo, desta forma, as temáticas das matérias na exclusividade dos interesses
do "mandonismo" local. Em um espaço curto de tempo, essa suposta imparcialidade foi
mantida, porém a não aceitação do "mandonismo" local diante de tal postura, realizando
intimidações e retaliações, levou Hermeto Luiz da Costa a explicitar de forma mais direta
seus posicionamentos no jornal.
Como consequência dos embates com as autoridades locais, seus três primeiros
jornais, provavelmente, tiveram vida curta. O primeiro jornal criado foi A Nova Era em
1862. Posteriormente surge A União, em 1876, e depois, em 1880, A Luta. No dia 01 de
outubro de 1886, Hermeto Luiz da Costa realizou a primeira publicação do jornal O
Social616, que de nome um tanto sugestivo para época, manteve-se até 1890, registrando
acontecimentos importantes da História do Brasil e seu desenrolar na cidade, com
destaque para Abolição da Escravatura e a Proclamação da República (O
ITABORAHYENSE, 1970).
Por fim, no dia 19 de janeiro de 1895, esse jornalista cria o jornal O
Itaborahyense617, conseguindo, desta vez, manter o jornal em funcionamento mesmo
diante de tantos conflitos. A partir de 1900, seu filho - Hermeto Luiz da Costa Júnior618
– assume a gerência do jornal, embora os dois continuassem atuando juntos até 1921.
Suas diferenças com a República não foram esquecidas, e junto com seu filho, defendeu

616
O Social foi um jornal hebdomadário, de 4 páginas, criado juntamente com a formação de uma
associação, tendo seu Hermeto Luiz da Costa como redator (GAZETA DE NOTÍCIAS, 24/09/1886). Sua
primeira publicação ocorreu no dia 01 de outubro de 1886 e parou de ser impresso, possivelmente, entre os
meses de novembro e dezembro de 1890 (O SOCIAL, 06/10/1888).
617
Criado em 1895 por Hermeto Luiz da Costa, teve sua primeira interrupção, em 1930, com a morte de
Hermeto Júnior. Em dezembro 1944, assume Heitor Costa, filho do Hermeto Júnior, mantendo o jornal em
funcionamento até 1946. Em 1952 o jornal retorna com suas atividades, sendo impresso até 1988. Em 1993
o jornal volta a ser publicado, tendo seu Heitor Costa o apoio de seu filho Heimar Costa e, em 1996, a
contribuição de Simão Miguel. Em 1998 ocorre outra interrupção e desta data para os dias atuais, alguns
números foram produzidos esporadicamente sem a frequência semanal que seus três principais proprietários
conseguiram realizar. Desta forma, mesmo com as interrupções, o jornal foi publicado durante 88 anos.
618
Hermeto Luiz da Costa Júnior nasceu no dia 01 de novembro de 1874 e faleceu no dia 27 de maio de
1930. Seu falecimento foi noticiado em diversos jornais, entre eles, destacam-se o Diário Carioca
(29/05/1930) e o Diário da Noite (28/05/1930). Diante do convívio com o pai, também era monarquista e
árduo crítico da República. “Exerceu diversos cargos públicos como suplente de juiz de Direito, adjunto do
Promotor Público (...) e secretário da Prefeitura Municipal desta cidade”. Assim como seu pai, participou
da Loja Maçônica Concordia II, em Itaboraí, ocupando, principalmente, a cadeira de secret. (O
ITABORAHYENSE, 20/07/1930).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1238
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

um tradicionalismo monárquico através do jornal, enaltecendo as reformas sociais da


monarquia - sobretudo a abolição - e os valores do cotidiano monárquico.

Abolição, República e o Pós Abolição:


Ainda que o estudo apresentado, neste artigo, esteja em sua fase inicial, já foi
possível perceber que o papel social desempenhado pelos Hermetos, através das
publicações em seus jornais, viabilizou um espaço de conflitos políticos onde foi possível
conhecer como as autoridades, de finais do Império e da Primeira República, lidaram com
a população negra de Itaboraí e quais caminhos essa população utilizou para expressar
suas ambições e projetos de participação e auto representação.
No contexto da discussão da Abolição da escravatura, o jornal O Social defendeu
a criação do que chamou de "núcleos orphanologicos" para "receber menores, inválidos
e os ingênuos emanados da emancipação". Escreveu que nestes núcleos seria ensinada
"instrução primária e religiosa adquirindo ao mesmo tempo habilitações para qualquer
arte ou ofício (...)". Apontava para a Câmara Municipal que a região carecia de tal
iniciativa, principalmente por conta da "substituição do trabalho servil" (O SOCIAL,
21/05/1887).
Em tom de alarde, assinalou que a abolição era algo inevitável e questionou os
principais fazendeiros por não terem tomado nenhuma atitude em direção à substituição
do trabalho dos escravizados. Desta forma, o jornal pressionava os fazendeiros dizendo
que a "emancipação caminha a passos agigantados (O SOCIAL, 20/08/1887)".
Este jornal publicava matérias de periódicos abolicionistas da Corte, que
noticiavam ações de outras cidades assinalando possibilidades de inserção social dos
libertos neste contexto de substituição do trabalho. Assim, O Social noticiou que no
Gazeta de Notícias foi publicada uma matéria que assinalava que, em Barra Mansa, a
Câmara Municipal estava realizando esforços para que nos “domingos e dias santificados
os libertos expunham no largo da Matriz da cidade os seus produtos agrícolas”. Conclui
a matéria afirmando que “este procedimento, digno de aplausos, deve ser imitado por
todas municipalidades, porquanto é um acoroçoamento ao trabalho” (O SOCIAL,
09/06/1888).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1239
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ao noticiar uma das primeiras reuniões de lavradores realizadas na cidade, a qual


teve a participação de alguns abolicionistas, como o Vigário Joaquim Mariano de Castro
Araújo, o jornal assinalou falas que defendiam o trabalho dos libertos como alternativa a
ser adotada com a abolição. Em tom de crítica o jornal comenta que, devido ao teor da
reunião, "pequeno foi o número daqueles que acudirão o convite” (O SOCIAL,
17/03/1888).
Um dia antes da Abolição, o jornal noticiou que alguns fazendeiros libertaram
seus escravos, dando um considerável destaque:

"Honramos esta coluna passando para ela o nome do nosso amigo o


Sr. Coronel Epifanio José de Vargas, que no dia 9 do corrente reuniu
todos os seus escravos em número de 64 e declarou-os todos livres sem
condição alguma e bem assim desistiu dos serviços dos 30 ingênuos
filhos daqueles ex-escravos. Consta-nos que os libertos continuam em
serviço de sua fazenda da Sapucaia mediante módico salário. Era este
benemérito libertador o maior proprietário de escravos deste
município. (O SOCIAL, 12/05/1888)."

Diante das matérias apresentadas acima, ao contrário das propostas


“abolicionistas-imigrantistas” de fins do século XIX, torna-se possível perceber que
Hermeto Luiz da Costa priorizava a defesa do uso da mão de obra do liberto, como
alternativa a ser adotada, na substituição do trabalho escravo na região. Tal divergência
demonstra que, como já pontuou Sílvia Hunold Lara, “noções diferentes de liberdade e
de trabalho livre estiveram em luta no final do século XIX e início do XX” (1998, p. 28).
Vale destacar que, diante de sua concepção abolicionista, o jornal O Social não
possuía anúncio de fugas, mesmo sendo parte do período de sua circulação o momento
em que ocorreram uma expressiva quantidade de fugas pelo país (MACHADO, 1994).
O redator do O Social, o velho Hermeto como também era conhecido, atuava em
manifestações culturais da cidade, seja por sua participação direta com a Sociedade
Musical Euterpe Itaborahyense Princesa D. Izabel ou pelo apoio e encanto em divulgar
as apresentações dos clubes carnavalescos da cidade, assim como ações de clubes de
outras regiões.
Neste sentido, ao noticiar o carnaval na corte, deu ênfase a ação do Clube dos
Fenianos por ter este lembrado “dos míseros sedentos de liberdade”, visto que, segundo
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1240
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

a matéria, “os Fenianos no terceiro dia de Carnaval libertaram mais um escravizado”. A


matéria é concluída com uma saudação contemplando a ação: “Um bravo aos Fenianos
pela sua ação generosíssima” (23/02/1888).
A publicação da matéria é parte integrante das diferentes temáticas apresentadas
pelo jornal no decorrer de sua campanha abolicionista na cidade e se insere em um
contexto onde o carnaval representou um “palco de intensas disputas materiais e
simbólicas” (BRASIL, 2014, p. 1) e “ocupou um papel central na expressão pública de
concepções da festa, da nação, de autonomia e liberdade” (BRASIL, 2011, p. 14). A
identificação do redator do jornal pela libertação do escravizado em um espaço festivo,
recreativo e de lazer viabiliza conhecer as diversas dimensões desse processo histórico
em análise e os diferentes espaços em que esse jornalista circulava.
A abolição foi registrada com muito louvor no jornal O Social. Entre as matérias,
destacam-se o telegrama enviado a Princesa Regente, pela Sociedade Musical Euterpe
Itaborahyense Princesa D. Izabel, parabenizando-a pela iniciativa; a organização e
divulgação das Festas em comemoração a essa medida e a Seção Ordinária, do dia 19 de
maio, na qual a Câmara Municipal estabeleceu uma proposta de apoio à abolição,
felicitando a Princesa Isabel, o que gerou expressivas reações dos republicanos (O
SOCIAL, 26/05/1888).
Ainda que a abolição e a República tenham proporcionado o princípio de equidade
política no Brasil, como assinalou Ângela de Castro Gomes, a realidade existente no Pós-
abolição mostrou que a liberdade jurídica representou apenas mais um passo, entre tantos
outros, que os negros precisaram dar para conquistar seus direitos e exercer sua cidadania
(GOMES, 2003).
A identificação que o Velho Hermeto possuía com a Monarquia (O SOCIAL,
02/03/1889), somada as suas considerações referentes à condição do negro no contexto
da Abolição e do Pós-Abolição, repercutiu em intensas pressões realizadas pelos
Republicanos, sobretudo pelos Republicanos do 14 de maio619.
No período republicano, com a criação do jornal O Itaborahyense, Hermeto Luiz
da Costa, junto ao seu filho Hermeto Júnior e seus colaboradores, questionavam a

619
Fazendeiros que se tornaram republicanos após abolição e que exigiam indenizações pela libertação de
seus escravos. Ver: MATTOS, 2012.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1241
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

República, afirmando que tinha o “o arbítrio como norma de proceder em todos os ramos
administrativos, a vaidade e ambição do mando tomados como a suprema expressão do
patriotismo” (O ITABORAHYENSE, 27/09/1896). Perguntas provocativas eram
corriqueiras em suas matérias e eram acompanhadas de avaliações do período de duração
da República: “O que se tem feito durante esses vinte seis anos de República? Ao lema
‘ordem e progresso’ assistimos a desordem e retrocesso. (...) o resultado que se obteve é
o que vemos: miséria, impostos e abandono completo das riquezas do pais” (O
ITABORAHYENSE, 05/11/1915).
Como tática (CERTEAU, 1998)620, respondiam aos republicanos realizando
abordagens que comparavam a região do período monárquico com a Primeira República.
Os Hermetos procuravam demonstrar, através dessas comparações, que as "crises"
econômicas e a diminuição da expressão política de Itaboraí e arredores, diante do Estado
do Rio de Janeiro, foram ocasionadas, principalmente, pela República.
Para enfatizar tal posicionamento, publicavam também matérias que denunciavam
o descaso, do Poder Público local e estadual, com as condições precárias que a maioria
dos moradores da cidade viviam, dando destaque à situação do negro. Tais matérias
viabilizaram investigar as relações sociais que os negros estavam inseridos, em Itaboraí,
e as ações que os envolviam e as que eram realizadas por eles mesmos, tanto no final da
monarquia, assim como no decorrer da Primeira República.
Entre as ações, destaca-se a discussão do enterramento de seus mortos, visto que
os negros participaram ativamente das pressões para obter uma resolução. O jornal
denunciou que a Câmara Municipal não tomava nenhuma atitude para auxiliar o
transporte dos mortos para o cemitério da cidade. Noticiou a situação, mostrando que a
população negra ficou abandonada no Pós-abolição:

O maior número dos cadáveres, são dos nossos antigos escravos, pelo
completo abandono em que ficaram. Esses infelizes (...) morrem
miseravelmente por falta de asilo, a que tinham direito, como principais
motores da nossa agricultura e são quase sempre encontrados seminus pelas
ruas e estradas a implorarem um pedaço de pão. Não podemos nunca

620
Diferente da estratégia que é organizada pelo postulado de um poder, a tática é determinada pela ausência
de poder. CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1998,
[Tradução: Ephraim Ferreira Alves], p. 99.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1242
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

esquecer, que esses nossos irmãos, são vitimas da lei da força e assim tirados
de um pais tão livre como o nosso, para depois de usufruirmos toda sua
vitalidade em nossos serviços, atira-los a fome e a miséria. (O
ITABORAHYENSE, 20/09/1896).

A pressão que o jornal realizou pelo fornecimento das carroças fúnebres, ganhou
maiores proporções quando parte da população negra passou a deixar os corpos de seus
mortos, em estado de putrefação, na calçada em frente à Igreja Matriz da cidade.
A partir daí as críticas do jornal receberam o apoio de vários outros grupos, na
medida em que o argumento apresentado nas publicações, passou de denúncias do
descaso da Câmara Municipal com os negros, para a completa irresponsabilidade da
Câmara com todos os moradores - inclusive com os filhos dos próprios ocupantes da
Câmara que residiam no local - pois o jornal passou a publicar que alguns corpos foram
"vítimas de moléstias epidêmicas".
Além desses, outros fatos, noticiados no jornal, possibilitam o entendimento do
meio social que os negros viviam e os diferentes níveis de violência que recebiam e
reagiam em Itaboraí. Sob a direção de Hermeto Júnior, o jornal questionou o comissário
de polícia da seção, Sr. Agostinho Luiz da Costa, por ter deixado o corpo do “preto Adão
da Costa” no mesmo lugar onde ele faleceu, ficando “exposto ao tempo e a chuva”. Em
tom de indignação, o jornal criticou o fato exposto:

“Essa falta de humanidade com os nossos semelhantes por serem pobres não
se justifica de modo algum e os Srs. Comissários de polícia saibam que aqui
estaremos sempre para verberá-los quando não procedam de modo caridoso
e com a devida veneração com o cadáver daqueles que a sorte não favoreceu
e que expiram na via pública” (O ITABORAHYENSE, 12/05/1918).

O jornal, de forma explícita, noticia matérias que associam a violência e o


abandono da população negra na região como consequência do cativeiro: “Foi encontrada
morta em uma casa inabitada, no Outeiro das Pedras, no dia 14 do corrente, uma pobre
velha de cor preta. Provavelmente alguma vitima do cativeiro que como tantas outras não
tem domicilio” (O ITABORAHYENSE, 20/09/1896).

Considerações finais:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1243
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os jornais dos Hermetos representaram um espaço de fermentação intelectual e


política em Itaboraí. Um lugar de sociabilidade que agregou pessoas em torno de ideias e
projetos coletivos, ou seja, um “ponto de encontro de itinerários individuais unidos em
torno de um credo comum” (SIRINELLI, 1996, p. 46).
A atuação dos Hermetos na campanha abolicionista, os enfrentamentos com a
República, a denúncia da precariedade social da população negra no Pós-Abolição e suas
ações na cultura local, com destaque para as Sociedades Musicais, Clubes Carnavalescos,
organização de Festas do 13 de maio que serão analisados em um momento posterior,
caracterizam os Hermetos como intelectuais criadores e mediadores culturais e também
atores do político, na medida em que estiveram engajados na vida da cidade, nos locais
de produção e na divulgação de conhecimento e promoção de debates (GONTIJO, 2005,
p. 263).

Documentação:
ALMANAK LAEMMERT (1844-1889).
ALMANAQUE ADMINISTRATIVO MERCANTIL E INDUSTRIAL DO RJ (1891-
1921).
BRASIL. Leis etc. Coleção das Leis do Brasil de 1808. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1891.
DIÁRIO CARIOCA. Morreu, hontem, um velho jornalista fluminense; Há 40 anos vinha
publicando “O Itaborahyense”. Quinta-feira, 29 de maio de 1930.
DIÁRIO DA NOITE. Faleceu um antigo jornalista fluminense. Quinta-feira, 28 e maio
de 1930.
GAZETA DE NOTÍCIAS, Sexta-feira, 24 de setembro 1886.
GAZETA DE NOTÍCIAS. O Decano da Imprensa Fluminense: Falecimento do Sr.
Hermeto Costa". Sábado, 2 de Julho de 1921.
IBGE. CENSO DEMOGRÁFICO DE 1940.
O ITABORAHYENSE. Lembrem-se ao menos dos pobres. Domingo, 20 de setembro de
1896.
O ITABORAHYENSE. Domingo, 20 de setembro de 1896.
O ITABORAHYENSE. De Lança em Riste. Domingo, 27 de setembro de 1896.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1244
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O ITABORAHYENSE. Em prol do Progresso. Domingo, 05 de novembro de 1915.


O ITABORAHYENSE. Desumanidade!. Domingo, 12 de maio de 1918.
O ITABORAHYENSE. Perda Irreparável. Domingo, 17 de julho de 1921.
O ITABORAHYENSE. O falecimento do nosso Director. Domingo, 20 de julho de 1930.
O ITABORAHYENSE. 75 anos. Domingo, 18 de janeiro de 1970.
O SOCIAL. Sábado, 21 de maio de 1887.
O SOCIAL. Sábado, 20 de agosto de 1887.
O SOCIAL. O Carnaval. Sábado, 23 de fevereiro de 1888.
O SOCIAL. Reunião de Lavradores. Sábado, 17 de março de 1888.
O SOCIAL. Sábado, 12 de maio de 1888.
O SOCIAL. Sábado, 26 de maio de 1888.
O SOCIAL. Última Hora. Sábado, 09 de junho de 1888.
O SOCIAL. Sábado, 06 de outubro de 1888.
O SOCIAL. “O que foi e o que é”. Sábado, 2 de Março de 1889.
RECENSEAMENTO DO BRASIL DE 1872, 1890, 1900 E 1920.
RELATÓRIO DO PRESIDENTE DE PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO 1881 E
1887.

Referências Bibliográficas:
CARVALHO, Alfredo. “Gêneses e Progressos da Imprensa Periódica no Brasil”. In:
Centenário da imprensa. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo
Consagrado à Exposição Comemorativa do Primeiro Centenário da Imprensa periódica
no Brasil, v.2. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908.
Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Catálogo de jornais e revistas do Rio de
Janeiro (1808–1889). Vol 85, 1965.
BERSTEIN, Serge. “A Cultura Política” IN: RIOX, Jean-Pierre & SIRINELLI, Jean
François. Para uma História Cultural. Editorial Estampa. 1998.
BRASIL, Eric. Áfricas, macacos e flores: os carnavais cariocas e o ensino de história e
culturas Afro-brasileiras. Xavier, Giovana (org.). Histórias da Escravidão e do Pós-
abolição para as escolas. Coleção Uniafro 2014.
_______. Carnavais da abolição: diabos e Cucumbis no Rio de Janeiro (1879-1888).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1245
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

COSTA, Gilciano Menezes. A escravidão em Itaboraí: Uma vivência as margens do rio


Macacu (1833-1875). Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 2013.
_______.Escravidão em Itaboraí: Uma proposta de Estudo Regional.
In: OLIVEIRA, Iolanda; PESSANHA, Marcia Maria de Jesus (orgs). Educação e
Relações Raciais, Curso ERER, volume 1, Rio de Janeiro/Niterói: CEAD UFF, 2016. p.
171 – 204.
GINZBURG, Carlo. “O nome e o Como: troca desigual e mercado historiográfico”. IN:
A Micro-História e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1991.
GOMES, Ângela de Castro. Venturas e desventuras de uma república de cidadãos. In:
ABREU, Martha e SOIHET, Rachel. (orgs.) Ensino de História. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2003.
GOMES, Ângela de Castro. “História, historiografia e Cultura Política no Brasil: algumas
reflexões”. IN:. SOHIET, BICALHO & GOUVÊA. Culturas Políticas, Rio de Janeiro,
Mauad. 2005.
GONTIJO, Rebeca. História, Cultura, Política e Sociabilidade Intelectual. In: SOIHET,
R.; BICALHO, M.; GOUVÊA, M. Culturas políticas: ensaios de história cultural,
história política e ensino de história. Rio de Janeiro: MAUAD/FAPERJ, 2005, p. 259-
284.
LARA, Sílvia Hunold. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Revista
projeto História, v. 16, p. 25-38, 1998.
MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e Brados. A Imprensa Abolicionista do Rio
de Janeiro (1880-1888). Tese de Doutorado, São Paulo: USP, 1991.
MACHADO, Maria Helena P. T. O Plano e o Pânico. Os Movimentos Sociais na
Década da Abolição. Editora UFRJ/EDUSP, Rio de Janeiro, 1994.
MATTOS, Hebe. A vida política. A Abertura para o mundo 1889-1930. In:
SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História do Brasil Nação: 1808-2010. Vol 3. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2012.
SANTOS, Ana Maria dos. Vida Econômica de Itaboraí no século XIX. Dissertação de
Mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal Fluminense, Niterói. 1975.
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: René Remond. (org). Por uma história
política. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p.46

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1246
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1247
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Literatura e nação na Nigéria:


uma análise a partir do personagem Obi Okonkwo de Chinua Achebe

GIOVANNI GARCIA MANNARINO


PPGH/UERJ . CAPES

“Foi na Inglaterra que a Nigéria se


tornou para ele algo mais do que
apenas um nome (ACHEBE, 2013, p.
9)”.

Até o momento em que viajou para a Inglaterra para cursar a faculdade de letras,
a Nigéria não era nada para Obi Okonkwo. A partir daquela experiência, no entanto, e do
contado com outros povos, outros ambientes e culturas, a sua identidade nigeriana se
consolidou. No exterior, ele era o estrangeiro e precisava de um pertencimento que
garantisse seu enquadramento na relação com os demais. Foi, portanto, no contato com o
diferente que esta delimitação aconteceu (SILVA, 2007).
Obi é o personagem principal do livro “A Paz Dura Pouco” (1960), de Chinua
Achebe (1930-2013). O autor é um dos mais renomados da Nigéria. Escrevendo no
contexto das mobilizações nacionalistas da década de 1950 e da independência do país
em 1960, sua obra contribuiu para resgatar o “poder de narrar” (SAID, 2011, p. 11) que
até então estava nas mãos dos colonizadores britânicos. E não só isso, os romances de
Achebe oferecem como legado um conjunto de histórias para fomentar a identidade e a
construção da nação nigeriana que estavam em luta para se estabelecer naquele contexto.
O livro “A Paz Dura Pouco”, é o segundo do autor, lançado em 1960. Dois anos
antes ele havia publicado seu romance mais conhecido, “O Mundo se despedaça”
(ACHEBE, 2009 [1958]). A intenção de Achebe era produzir um romance que contaria a
história de três gerações da família Okonkwo passando pelos principais acontecimentos
da história do país, desde a chegada dos colonizadores, passando pela dominação

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1248
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

estrangeira consolidada, até a independência. O projeto, no entanto, se tornou inviável e


ele preferiu produzir um romance para cada uma das etapas (BONETTI, 1989, p. 75).
“A Paz Dura Pouco” conta a história do jovem igbo/nigeriano Obi Okonkwo que
estudou na Inglaterra e acabou de retornar a Lagos na Nigéria. Ao chegar, ele consegue
um emprego público e começa a se ver rodeado por uma série de ofertas de propina. O
jovem, que estava passando por problemas financeiros, depois de muito resistir, acaba
aceitando as ofertas, é flagrado e preso.
O livro é ambientado nos anos 1950, período pré-independência e o seu autor,
mesmo antes da libertação, já faz uma série de críticas aos rumos que o país estava
percorrendo, principalmente em relação à corrupção generalizada, personalismos e
divisionismos que dificultavam a criação de uma identidade nacional. Neste sentido, os
escritores africanos foram os primeiros intelectuais a trazer à tona, diante de um amplo
público interno e externo do continente africano, as profundas questões sobre a corrupção
dentro de governos pós-coloniais e o grau de persistência da dominação externa
(COOPER, 2008, p. 31).
Neste trabalho, pretendo analisar a construção da nação nigeriana a partir do
romance ‘A Paz Dura Pouco’ de Chinua Achebe e de seu personagem principal, Obi
Okonkwo. O meu argumento é que neste livro, o autor deixa transparecer a complexidade
das questões identitárias da Nigéria pré-independência. Ele mostra um país que ainda não
se vê como nação, um povo que ainda não tem uma identidade em comum. Os
pertencimentos são regionais e, muitas vezes, locais.
Nesse contexto, acredito que o personagem Obi Okonkwo foi criado por Achebe
como um mecanismo para reforçar a identidade nigeriana, para ser um símbolo da nação
que era almejada pelo autor naquele momento de independência em que o livro era
lançado. Produzir esse discurso de nação criando um conjunto de referências comuns,
histórias, memórias foi a forma encontrada pelo autor para contribuir no fomento desta
identidade (SILVA, 2007).
A partir da década de 1930 a mobilização contra os colonizadores cresceu na
Nigéria. Inicialmente com uma pauta de combater o racismo e os privilégios
brancos/europeus no âmbito do serviço público da colônia e, com o tempo, passando por
demandas de maior controle político para os próprios nativos e independência. Estas
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1249
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

primeiras mobilizações são lideradas por sindicatos - Nigerian Civil Servants Union,
Nigerian Union of Teachers -, pelo movimento estudantil - Nigerian Youth Movement - e
por uma elite educada nos moldes europeus que fomentavam um nacionalismo pan-
nigeriano que superasse as diversidades internas para lutar contra o colonizador
(FALOLA & HEATON, 2008, p. 140).
Achebe fazia parte deste grupo que cresceu frequentando as escolas ocidentais.
Seus pais tinham se convertido ao cristianismo e conduziam seus filhos a viver dentro dos
preceitos da religião e da cultura europeia. O autor estudou em escolas fundadas por
missionários antes de entrar nas escolas criadas pela administração pública britânica
(ACHEBE, 2012, p. 21). Ao longo de sua formação, ele teve contato com a literatura
produzida pela metrópole na qual os africanos eram retratados como selvagens e
inferiores. Sua obra, utilizando a língua e a forma literária do colonizador – o inglês e o
romance – será um confronto a essa literatura e uma tentativa de retomar o direito de
contar suas próprias histórias, a história de seu povo, agora não mais com um viés de
inferioridade.
O personagem principal da obra que estamos analisando, Obi, também é um
membro desta elite que cresce em escolas missionárias e ocidentais. Compõe, portanto,
uma geração que ao longo das décadas de 1940 e 1950 agita a colônia com demandas por
participação política e independência reivindicando, para isso, um sentimento de
pertencimento comum, a identidade nigeriana. Esta é referida constantemente ao longo
do romance aparecendo em termos “jovens nigerianos”, “Nigéria”, “mulher nigeriana”.
Obi, enquanto estava no exterior, por exemplo, escreve um poema chamado
“Nigéria”. Com versos bastante entusiasmados, o personagem conclamava seus
compatriotas para construir o país: “Deus abençoe nossos nobres compatriotas,\ Homens
e mulheres de toda parte,\ Ensine-os a caminhar unidos\ Para construir nossa querida
nação,\ Deixando de lado região, tribo ou língua,\ Mas sempre atentos uns aos outros”
(ACHEBE, 2013, P. 120). Escrito em um contexto em que Obi sonhava com uma Nigéria
independente e grande, esse poema nos mostra como o personagem objetivava a
construção de uma identidade nacional que superasse nos limites étnicos e regionais.
Além do poema que o personagem escreve e da utilização do termo “nigeriano”, o
personagens faz planos, debate com amigos e traça teorias sobre o melhor caminho a ser
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1250
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

percorrido para a Nigéria ser uma grande nação. Ou seja, o país como um todo, para além
das divisões étnicas, era o centro das preocupações e dos planos do protagonista.
Este não é o único momento em que o personagem principal do romance faz
propostas para a nação que estava nascendo. Em outra passagem, Obi diz o que esperava
dos jovens educados do país: “Educação para o serviço, não para os empregos
burocráticos e para os altos salários. Com o nosso grande país no limiar da independência,
precisamos de homens preparados para servi-lo bem e com sinceridade” (ACHEBE,
2013, p. 44). Aqui o personagem conclama os jovens nigerianos para construir a nação.
Este chamado tinha como alvo, em especial, uma minoria que tinha tido a oportunidade
de estudar, seja frequentando as escolas coloniais ou mesmo as universidades que
começavam a surgir na Nigéria naquele período.
A fala de Obi deixa transparecer, também, uma crítica às ações de parte dos seus
compatriotas naquele período. Como veremos mais a frente, a obra de Achebe, mesmo
sendo publicada no mesmo ano da independência da Nigéria, já traz uma série de críticas
aos caminhos que o país estava percorrendo. Neste trecho, o personagem pontua que os
funcionários públicos devem ocupar cargos para servir o país com sinceridade, não para
terem altos salários disputando posições-chave dentro do funcionalismo público – muitas
vezes com objetivos escusos.
A partir da Segunda Guerra Mundial, as ações da administração colonial ganham
um novo perfil e o governo começa a colaborar com os nacionalistas moderados e a fazer
reformas que aos poucos foram transferindo o comando do país para os nativos. O passo
inicial para isso foi a “nigerianização” do serviço público, em especial nos cargos mais
altos, até então quase que restritos aos europeus (FALOLA & HEATON, 2008, p. 148).621
Enquanto a nigerianização do serviço público transferiu o controle administrativo
do país para os nativos, as reformas constitucionais foram, aos poucos, transferindo o
poder legislativo. Três novas constituições são aprovadas entre 1947 e 1954 fazendo
reformas no sentido do autogoverno. A primeira delas foi a Constituição Richards,
aprovada em 1947. Esta, pela primeira vez, permitiu que o Conselho Legislativo tivesse
maioria de nigerianos. Se por um lado a nova legislação trouxe unidade, por outro ela

621
Em 1937 apenas 23 nigerianos ocupavam estes cargos. Em 1947 esse número subiu para 182, em 1953
já eram 786 e em 1960 passou de 2.600 (FALOLA & HEATON, 2008, p. 148).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1251
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

favoreceu o divisionismo. Através dela, foram criadas três assembleias regionais, uma no
sudeste, uma no sudoeste e outra no norte. Isso fez com que as três grandes etnias
nigerianas – haussás-fulani no norte, igbo no sudeste e iorubá no sudoeste – começassem
a disputar o controle de suas respectivas regiões.
A elite educada fica dividida em relação à criação destas assembleias regionais.
Se por um lado elas representavam a diversidade étnica do país, por outro elas
enfraqueciam as demanda por um nacionalismo pan-nigeriano ao passo que cada etnia
começaria a disputar pelo poder regionalmente afirmando sua identidade local/étnica
(FALOLA & HEATON, 2008, p. 149).
Já os nacionalistas da região norte apoiaram amplamente a criação das
assembleias regionais. Eles acreditavam que era uma forma de se resguardar de uma
possível dominação por parte das etnias do sul – em especial dos igbos. Estas, por terem
um contato mais antigo e enraizado com o colonizador, tiveram, por exemplo, um
desenvolvimento mais intenso do sistema de educação ocidental em suas regiões. Isso fez
com que, no contexto da nigerianização do serviço público, os nigerianos do sul – mais
preparados – ocupassem a maior parte dos novos cargos, inclusive aqueles que surgiam
na região norte (FALOLA & HEATON, 2008, p. 139)622. Essa situação gerava
insegurança no norte e, nos anos seguintes, seria o combustível para conflitos étnicos.623
Medidas como esta fizeram com que, ao longo da virada da década de 1940 para
a de 1950 as identidades étnicas se fortalecessem e se tornassem politicamente
significativas. O nacionalismo pan-nigeriano vai ficando em segundo plano em um
contexto em que cada grupo disputava recursos materiais e poder para o seu próprio
grupo. Diversas organizações culturais – que depois se transformariam em partidos -
começam a ser criadas seguindo bases étnicas. A Egbe Omo Oduduwa, entre os iorubás;
a Ibo Federal Union para promover a solidariedade entre os ibo incentivando o progresso
da etnia e o envio de jovens para estudar no exterior; e o Bauchi General Improvement

622
Em 1966 havia aproximadamente 13.000.00 orientais, ibos na maioria, na região norte (FORSYTH,
1979, p. 21)
623
Uma primeira ocorrência destes conflitos acontecem já em 1953 quando os igbos são massacrados em
Kano, maior cidade do norte. Nos relatórios oficiais, 52 pessoas foram mortas e 245 feridas
(FORSYTH,1979, p. 25).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1252
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Union, com objetivo de lutar pela autonomia da região norte e evitar o predomínio do sul
(FALOLA & HEATON, 2008, p. 151).
É a esse contexto que Obi faz referência no poema que vimos acima. Ele convoca
seus compatriotas a “caminhar unidos”, “deixando de lado região, tribo ou língua”. Nos
anos imediatamente anteriores à independência da Nigéria o nacionalismo pan-nigeriano
perde força. Muitos estavam satisfeitos com os empregos que tinham ganhado com a
nigerianização e com a abertura política regional promovida pelos colonizadores. Cresce
a disputa pelo poder entre as etnias e, em especial, para saber qual delas teria primazia no
comando da nação e no controle dos recursos materiais.
Era muito comum, neste período, o surgimento de associações de ajuda mútua nos
contextos urbanos. Estas tinham como objetivo acolher os compatriotas de uma mesma
etnia ou mesmo vilarejo quando estes chegavam nas cidades grandes. Nestas associações
eles encontravam apoio para se ambientar no novo espaço urbano, conseguiam ajuda para
encontrar moradia, emprego e eram ambientados no novo universo político em que
estavam inseridos (FALOLA & HEATON, 2008, p. 139). Elas também eram
responsáveis por enviar seus jovens para estudar no exterior, obtendo formação suficiente
para ocupar bons cargos no contexto da nigerianização do serviço público (FALOLA &
HEATON, 2008, p. 148).
No romance de Achebe, a União Progressista de Umuofia era uma destas
associações. Para onde quer que os habitantes da cidade se mudassem eles fundavam ali
uma filial da UPU. Nela, eles se reuniam, apoiavam-se mutuamente e mantinham as
tradições de sua cidade natal. Foi através de uma bolsa oferecida pela UPU que Obi
conseguiu ir estudar no exterior. A intenção da União era que ele retornasse, devolvesse
aos poucos o dinheiro para que outros jovens tivessem a mesma oportunidade, e, com o
emprego que ele conseguiria, apoiasse seu povo com favores.
Estas associações formadas em bases étnicas nas décadas de 1940 e 1950
contribuíam para enfraquecer o nacionalismo pan-nigeriano a partir do momento em que
colocavam em primeiro plano os laços locais. Os membros da UPU, por exemplo,
afirmavam que estar em Lagos era estar em “terras estrangeiras” (ACHEBE, 2013, p.
151). Ou seja, a capital da colônia e futura capital do país não era produzia neles um efeito

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1253
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de pertencimento, pelo contrário. Ali eles se sentiam forasteiros, longe de sua verdadeira
casa que era Umuofia.
Seu pertencimento nem mesmo chegava a ser regional ou étnico, ou seja, eles não
se identificavam como igbos em oposição aos iorubás da região de Lagos. Afirmavam
com muito mais intensidade um pertencimento local, da aldeia. Os membros da UPU se
autodenominavam como “umuofianos” (ACHEBE, 2013, p. 13) e desejavam que Obi se
formasse em direito para terem um advogado que os ajudasse em contendas contra seus
vizinhos, ou seja, outras cidades igbo.
Um diálogo entre Obi e seu melhor amigo Joseph é bastante representativo destas
tensões étnicas e mesmo da corrupção que vai se alastrando pelo país neste período.

“Como vai Clara? [perguntou Joseph] [...]


‘Ela vai bem’, respondeu. ‘Esses policiais nigerianos são muito descarados, sabe?
‘São uns inúteis’, disse Joseph, que não queria conversar sobre a polícia.
‘Pedi ao motorista que nos levasse até a Victoria Beach Road. Quando chegamos
lá, estava tão frio que Clara se recusou a sair do carro. Então ficamos no banco
de trás conversando. [...] De todo modo, não ficamos ali nem dez minutos quando
um carro da polícia parou do lado e um dos guardas acendeu sua lanterna. E falou:
‘Boa noite senhor’. Eu disse: ‘Boa noite’. Depois ele disse: ‘Onde foi que pegou
essa daí?’. Eu não consegui suportar isso e então estourei de raiva. Clara me disse
em ibo para chamar o motorista e irmos embora. O guarda logo mudou de atitude.
Ele era ibo, entende? Disse que não sabia que éramos ibos (ACHEBE, 2013, p.
89).”

Este trecho evidencia como as relações étnicas ganham importância no país ao


longo da década de 1950. Os policiais iriam ser rígidos e até ofensivos com quem quer
que fosse menos com os membros de sua própria etnia. Estes mereciam tratamento
diferencial e, muitas vezes, favores fora da lei.
Todo esse contexto de valorização dos laços étnicos e as disputas por cargos e
bens materiais acirram os ânimos no país ao longo das décadas de 1940-50. Em alguns
momentos, esses conflitos descambaram para uma violência efetiva, como a que
aconteceu na cidade de Kano, no norte do país, quando membros das etnias do sul que
estavam na cidade trabalhando foram assassinados em 1953. À medida que a
independência se aproximava, ficava evidente que as identidades regionais estavam mais
fortes do que a própria identidade nacional nigeriana. O auge destes conflitos aconteceria

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1254
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

na década seguinte, quando os igbos declaram sua independência em relação à Nigéria


dando origem à guerra civil que ficou conhecida como a Guerra de Biafra entre 1967
e1970 (FORSYTH, 1979).
Com todo este processo em curso no país, o que mais chama a atenção são os
silêncios do autor. Em nenhum momento Achebe comenta sobre os diversos conflitos e
massacres que sua etnia estava sofrendo ao redor do país. Ele parece esconder tais
choques para fomentar a união do país, uma tentativa de superar as diferenças em prol de
um objetivo em comum. Isso mostra mais uma vez, em minha opinião, o projeto de
Achebe em contribuir para a construção da nação, da unidade e da identidade nigeriana.
Esta postura ‘pacifista’ e ‘coletivista’ de Achebe aparece em outro momento do
romance, quando Obi está sendo entrevistado por uma comissão para conseguir um
emprego no serviço público da colônia. Esta era composta por dois ingleses e três
“africanos”. Cada um dos africanos pertencia a uma região da Nigéria, que naquele
momento era formada pelas regiões norte, leste e oeste. Em dado momento Obi percebe
que um destes estava dormindo. Quando ele acorda, no final da entrevista, começa a fazer
perguntas desconcertantes para Obi como se quisesse prejudica-lo. Pergunta, por
exemplo, se ele queria um cargo público para receber propinas.
Este “africano” pertencia a uma das etnias que compunham a Nigéria,
provavelmente uma diferente da de Obi, os igbo, da região oeste. O narrador afirma,
então, que se não fosse esse fato aquele evento seria de menor importância: “[...] não
fosse aquele cavalheiro o único representante de uma das três regiões da Nigéria. (Em
benefício da unidade nigeriana, a região não deve aqui ser nomeada)” (ACHEBE, 2013,
p. 51). Ou seja, para evitar os choques entre as etnias que dificultariam ainda mais a união
nacional, Achebe cria um mecanismo para ao indicar essa tensão, mas de uma forma
indireta.
A defesa que Achebe faz do projeto de valorização da identidade nigeriana, no
entanto, não é isenta de contradições. A primeira delas é que, mesmo tendo esta proposta
de produzir uma obra para gerar referências comuns e histórias compartilhadas para toda
nação, seus romances oferecem um ponto de vista totalmente igbo. Tanto os livros que
apresentam como pano de funda a aldeia – “O Mundo se despedaça” e “A Flecha de
Deus” -, como também “A Paz Dura Pouco”, que se passa em contexto urbano, tem como
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1255
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

protagonistas os personagens da etnia do autor e sua cultura (OKEKE-EZEIGBO apud


SULLIVAN, 2001, pp 77).
No romance estudado, raramente são feitas referências aos outros grupos que
compunham o país. A língua iorubá é indicada apenas duas vezes (ACHEBE, 2013, p.
136 e 160), referência à Olurum aparecem uma única vez (ACHEBE, 2013, p. 160) e, em
um debate que Obi tem com seu chefe no serviço público, o personagem lembra que a
Nigéria é um país mulçumano já que esta religião estava muito presente no norte
(ACHEBE, 2013, p. 174-175).
As contradições do projeto de Achebe também aparecem na escolha da língua
nacional nigeriana. O autor pertencia a um grupo que pontuava que o idioma a ser eleito
como oficial no país e a ser utilizado para escrever literatura deveria ser o inglês. O
argumento é que esta seria a única língua capaz de unir a nação sem privilegiar nenhuma
das etnias a partir da escolha do idioma de uma delas como oficial (SULLIVAN, 2001).
O inglês, no entanto, no contexto da independência, não era falado por todos os
nigerianos e alguns vão ser marginalizados em função desta escolha. A alfabetização nos
moldes ocidentais não estava consolidada em todas as regiões do país de igual forma e
isso fez com que as etnias do sul tivessem mais acesso ao idioma do que as demais,
gerando um desnível político na escolha do inglês como língua oficial.
Toda essa situação de conflitos étnicos, disputas por bens materiais e ideológicas
criou um contexto na Nigéria pré e pós-independência de desencanto com a nação.
Achebe, mesmo antes de 1960, já tecia uma série de críticas a forma como o processo de
libertação estava sendo conduzido insuflando os divisionismos regionais, a corrupção,
personalismos e pobreza. Em “A Paz Dura Pouco”, Obi vai ser um grande crítico deste
contexto, condenando constantemente a corrupção – até ser engolido pelo sistema.
Em uma das viagens que fez de Lagos a Umuofia, para visitar sua família, Obi
tomou um caminhão-ônibus que fazia o percurso transportando passageiros. No meio do
caminho, o veículo é parado pela polícia para uma conferência da documentação e o
personagem principal percebe que o agente estava prestes a aceitar uma propina para
liberar o caminhão. O policial, com medo por estar sendo observado, não aceita a oferta
e multa o motorista, que fica extremamente chateado com Obi. O jovem começa, então,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1256
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

a refletir sobre o futuro do país: “Mas que tipo de democracia pode existir lado a lado
com tanta corrupção e ignorância” (ACHEBE, 2013, p. 56).
O poema que o protagonista escreveu quando estava na Inglaterra aparece mais
uma vez no final do romance. Obi, desesperançoso em relação aos rumos do país, relê os
versos quase ufanistas que tinha escrito tempos atrás. Eles não faziam mais sentido em
uma Nigéria tão corrupta, desunida e com tanta pobreza. Ele, então, “com calma e em
silêncio, amassou o papel na mão esquerda, até virar uma bolinha, jogou-a no chão[...]”
(ACHEBE, 2013, p. 171). O simbolismo de destruir a poesia que ele tinha feito
conclamando os compatriotas a construir a nação é bastante significativo da desesperança
de Achebe em relação ao futuro da Nigéria.
Como vimos na abertura deste trabalho, Obi afirmava que só quando foi para o
exterior a Nigéria se tornou algo para ele. Achebe afirma algo semelhante dizendo que
para sua geração a nacionalidade nigeriana foi um sabor adquirido (ACHEBE, 2012, p.
46). Acredito que a obra do autor é uma tentativa de contribuir para a consolidação do
nacionalismo pan-nigeriano, superando os pertencimentos locais, criando uma
comunidade imaginada (ANDERSON, 2008).

DOCUMENTAÇÃO

ACHEBE, Chinua. A paz dura pouco. Traduzido por Rubens Figueiredo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.

BIBLIOGRAFIA

ACHEBE, Chinua. O Mundo se despedaça. Traduzido por Vera Queiroz da Costa e


Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ACHEBE, Chinua. A Educação de uma criança sob o Protetorado Britânico: ensaios.
Traduzido por Isa Marra Lando. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão
do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1257
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe;


STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo: Editora UNESP. pp.
188.
BONETTI, Kay. An interview with Chinua Achebe. The Missouri Review, v. 12, n. 1,
1989, p. 75.
COOPER, F. Conflito e Conexão: repensando a história colonial da África. Anos 90.
Porto Alegre, v. 15, n. 27, jul. 2008, p.31.
FALOLA, Toyin; HEATON, Matthew M. A History of Nigeria. London: Cambridge
University Press, 2008.
FORSYTH, Frederic. A História de Biafra. Rio de Janeiro: Record, 1979.
REIS, Eliana Lourenço de Lima. Pós-colonialismo, identidade e mestiçagem cultural:
a literatura de Wole Soyinka. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SILVA, T. T. (Org.) Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais.
Petrópolis: Vozes, 3ª ed., 2007.
SULLIVAN, Joanna. The question for a national literature for Nigeria. Research in
African Literatures. V. 32, n. 3, 2001, pp 71-85.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1258
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Unindo o físico e o mental: a história da paralisia geral progressiva no


Hospício Nacional de Alienados (1883-1960)

GIULIA ENGEL ACCORSI


PPGHCS - Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

A paralisia geral progressiva (PGP) constituiu-se como um objeto de especial


importância para o campo da psiquiatria, sobretudo na Europa, entre os anos 20 do século
XIX e os anos 40 do século XX, tendo o entendimento sobre tal entidade nosológica
sofrido mudanças significativas ao longo desses 120 anos. Tal importância se constituiu
a partir do momento em que a atenção de alguns alienistas se voltou para um quadro
clínico de perdas motoras generalizadas que atingia uma fração cada vez maior dos
doentes internados nos diferentes asilos do Velho Continente. Além do surgimento de
distúrbios nos movimentos corporais, esta condição se fazia evidente através de delírios,
problemas na fala, na escrita, incontinência gástrica e urinária e incapacidade de engolir.
Conforme o quadro avançava, os doentes apresentavam dores lancinantes em diferentes
partes do corpo, que costumavam ser tomadas pela gangrena, deixando-os passos mais
próximos de uma “morte sem dignidade”.
Figuras importantes do campo da medicina mental em ascensão, como Jean-
Étienne Dominique Esquirol (1772-1840), acreditavam que o quadro de paralisia era
ocasionado por complicações derivadas de diferentes tipos de loucura. No entanto,
discordava desta concepção Antoine-Laurent-Jessé Bayle (1799-1858), jovem estudante
de psiquiatria e pupilo do alienista francês Royer-Collard (1768-1825). Bayle defendia
que a desordem mental e os problemas motores eram sintomas de uma doença
independente, causada por uma lesão cerebral que chamou de aracnoidite crônica624. O
jovem alienista se dedicou ao desenvolvimento de suas ideias e em 1822 publicou sua
tese, que foi recebida com certa hesitação. Assim, ao longo da segunda metade do século
XIX – ao mesmo tempo em que a psiquiatria vinha se constituindo como campo
autônomo no âmbito da medicina – continuaram os debates sobre a caracterização da

624
A aracnoidite caracteriza-se por uma inflamação na aracnoide, membrana que protege os nervos da
medula espinhal e do cérebro.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1259
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

paralisia geral progressiva, sendo seu reconhecimento como uma enfermidade autônoma
um processo contínuo, que levaria alguns anos para se consolidar e que envolveria
alienistas de diferentes nacionalidades (DAVIS, 2008; HURN, 1998; SLIJKHUIS;
OOSTERHUIS, 2012; BROWN, 1994; KRAGH, 2010).
É interessante pensar sobre os diferentes fatores que influenciaram o processo de
construção deste conjunto de sintomas como uma doença independente. Ao entrarmos em
contato com diversos trabalhos sobre a história do campo da psiquiatria, percebemos que
muitos de seus atores participaram da luta para que esta área do conhecimento médico
fosse reconhecida enquanto ciência. A princípio, as doenças, os tratamentos e os recursos
que se encontravam na alçada da medicina mental não eram orientados pelos mesmos
paradigmas norteadores de grande parte dos objetos e ferramentas pertencentes ao dia a
dia das demais especialidades médicas e que foram consolidados ao longo do século XIX
e início do século XX, a partir do desenvolvimento dos campos da anatomia patológica,
da microscopia e, mais tarde, da bacteriologia e da imunologia (BENCHIMOL, 2004;
BYNUM, 1994).
Segundo os paradigmas da medicina geral que estavam em voga, o
estabelecimento de uma relação de causa entre sintomas e lesões orgânicas constituía-se,
a priori, como um dos principais argumentos para a defesa da teoria de uma enfermidade
distinta. Deste modo, como um adepto dos ideais da recém-surgida escola de anatomia
patológica, Bayle chamava atenção não somente para as manifestações físicas (paralisias)
e mentais (delírios, especialmente os de grandeza) da doença, mas também para os danos
histológicos encontrados no cérebro de cadáveres que teriam sido acometidos por este
mal, repousando nesta evidência um de seus maiores argumentos em favor da autonomia
da doença (BROWN, 1994). Ao longo do tempo, conforme avançavam as pesquisas sobre
tal quadro sintomático, a hipótese de que o mesmo constituía uma entidade nosológica
autônoma ganhava adeptos.
Com o estabelecimento do paradigma bacteriológico durante o terceiro quartel do
século XIX, a anatomia patológica – além de fornecer novas pistas sobre a patogênese da
PGP – também impulsionou mudanças no estudo das doenças, mudanças essas que
apontavam o caminho do laboratório. Porém, mais uma vez, as afecções mentais em geral
não se “encaixavam” bem nestes postulados, pois entre suas causas não se encontravam,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1260
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

a princípio, seres microscópicos ou qualquer elemento externo capaz de causar danos aos
órgãos do corpo humano; danos esses que seriam, por fim, responsáveis pelos distúrbios
clínicos observados. Ademais, enquanto desenvolviam-se as técnicas laboratoriais de
diagnóstico, os psiquiatras o faziam através de meios mais tradicionais, considerados
também imprecisos, como entrevistas e a observação especialmente do comportamento
dos pacientes. Finalmente, a falta de eficácia dos tratamentos disponíveis para as doenças
mentais distanciava ainda mais a psiquiatria das outras especialidades médicas
(FACCHINETTI; MUÑOZ, 2013).
No entanto, em princípios do século XX, diferentes eventos ocorridos exatamente
neste espaço de produção do conhecimento, o laboratório, contribuíram bastante para o
esclarecimento da etiologia da PGP, que seria estabilizada no interior do paradigma
bacteriológico. Um dos primeiros a observar sintomas comuns entre estágios avançados
de sífilis e a PGP foi o venereologista norte-americano radicado na França Philippe
Ricord, que identificava três estágios do “mal venéreo” 625. Em 1857, Friedrich Esmarch
e Peter Willers Jessen atentaram para o grande número de doentes acometidos
concomitantemente pela sífilis e pela paralisia geral progressiva, no asilo de Hornheim,
na região de Schleswig, que pertencia à Dinamarca naquele momento. Ambos sugeriram
que a sífilis seria a causa essencial da paralisia geral progressiva, mas optaram por não
serem categóricos em suas conclusões, já que suas evidências estatísticas poderiam ser
facilmente questionadas (KRAGH, 2010).
Alguns trabalhos apontam especialmente três eventos que parecem ter contribuído
para impulsionar o processo de aceitação da etiologia sifilítica da paralisia geral
progressiva de forma mais generalizada dentro do campo médico. Em 1905, o
protozoologista Fritz Richard Schaudinn e o venereologista Paul Erich Hoffmann
descreveram pela primeira vez o agente etiológico da sífilis, observado pelos
pesquisadores em associação com lesões típicas desta doença e batizado de Treponema
pallidum. Um ano depois, August Paul von Wassermann e seus colaboradores
desenvolveram a primeira reação sorodiagnóstica para detectar casos da doença: a reação
de Wassemann, resultado de um longo processo de construção, que envolveu inúmeros

625
Expressão sistematicamente utilizada por Sérgio Carrara em seu livro “Tributo à Vênus”.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1261
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

atores. O recém-criado método conquistou seu lugar no dia-a-dia de diferentes áreas


médicas, entre elas a psiquiatria, tornando-se uma importante ferramenta para os
profissionais da medicina mental, não somente em termos práticos, mas também
retóricos. A integração da RW no cotidiano da psiquiatria, além de autenticar a ideia da
etiologia sifilítica da paralisia geral progressiva, também demonstrava a capacidade do
campo de incorporar um recurso tipicamente científico em sua prática diária, utilizando-
o no diagnóstico de uma doença mental (DAVIS, 2008; HURN, 1998).
Em 1913, a publicação das pesquisas desenvolvidas por Hideyo Noguchi e J. W.
Moore constituiu-se como mais uma grande contribuição para a reafirmação da etiologia
luética da demência paralítica. Os cientistas estudaram 70 cérebros de cadáveres de
paralíticos gerais no Instituto Rockfeller (Nova York) dos quais, porém, apenas 14
apresentavam o Treponema pallidum. Mesmo assim, o fato de poucas amostras
evidenciarem a presença do agente etiológico da doença não entravou o entusiasmo
perante a descoberta, considerada, por muitos, como de grande importância para os
campos da sifilografia, da psiquiatria e da venerealogia.
No entanto, desde sua descrição enquanto doença, a paralisia geral progressiva
não possuía tratamento, o que implicou diretamente em sua conceptualização como uma
enfermidade fatal. A partir do momento em que a etiologia sifilítica da PGP passou a ser
aceita de modo mais amplo, muitos paralíticos eram tratados com substâncias utilizadas
para aplacar o “mal venéreo”, como o mercúrio, o iodeto de potássio, o salvarsan e, mais
tarde, o neosalvarsan, terapêuticas que não provocavam, no entendimento geral, efeitos
satisfatórios nos estágios finais da sífilis (ACCORSI, 2015). Assim, apesar da moléstia
em questão ter contribuído para a consolidação da ideia de que as doenças mentais
pudessem sim ter um fundo orgânico, a incapacidade do campo psiquiátrico em produzir
sua cura/remissão continuava a desafia-lo.
No ano de 1917, em meio a este contexto de descrença, o psiquiatra austríaco
Julius Wagner-Jauregg desenvolveu a primeira terapia somática considerada, por muitos,
como eficaz no tratamento da demência paralítica: a malarioterapia. A técnica consistia
na inoculação de sangue contendo um dos agentes etiológicos da malária, o protozoário
da espécie Plasmodium vivax, em doentes portadores da PGP. Ao longo da primeira
metade do século XX, a técnica passou a ser estudada e utilizada em diferentes países do
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1262
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

mundo, inclusive no Brasil. Sempre presente nos debates entre os psiquiatras que atuavam
no Rio de Janeiro, a malarioterapia foi manipulada em diversas instituições asilares
cariocas até, pelo menos, o início da utilização da penicilina. Pesquisas que abordam a
história do tratamento através desse antibiótico assumem que tal processo tenha se
iniciado em meados da década de 1940, no contexto da Segunda Guerra Mundial.
Contudo, pesquisas em fontes primárias brasileiras mostram que até o final dos anos de
1950, estudos que comparavam a eficácia da malarioterapia e da penicilina no tratamento
da paralisia geral ainda estavam sendo conduzidos na cidade do Rio de Janeiro
(ACCORSI, 2015).
Até aqui, percebemos que a paralisia geral progressiva permitiu a entrada de uma
série de modelos teóricos e técnicas consideradas “legitimamente científicas”, pelo
campo médico em geral, no dia a dia da prática psiquiátrica, a saber: a relação de causa e
efeito entre lesões histológicas e sintomas físicos/mentais, o paradigma bacteriológico, a
punção lombar, a reação de Wassermann e a malarioterapia. Assim, a historiografia sobre
tal enfermidade demonstra que seu potencial de aproximar estas ferramentas da área da
psiquiatria influenciou de modo significativo a consolidação do campo em questão em
diferentes países (DAVIS, 2008; HURN, 1998; SLIJKHUIS; OOSTERHUIS, 2012;
BROWN, 1994; KRAGH, 2010).
Outro aspecto que também costuma chamar atenção destes autores, justificando a
atenção médica mobilizada pela doença, é sua alta incidência nos asilos do Velho
Continente. Deste modo, muitas das interpretações, articulações e conclusões às quais
chegam os pesquisadores que assinam tais trabalhos relacionam-se diretamente com este
dado. Contudo, conforme se começa a analisar as fontes primárias cariocas, vê-se que
esta alta taxa da PGP não é uma realidade nas instituições de internação localizadas no
DF. Tal dado já foi apresentado por Sérgio Carrara e Marcos Carvalho, em um artigo
publicado em 2010, e corroborado por mim através da observação das fichas de entrada
dos pacientes que passaram pelo Pavilhão de Observações durante os anos de 1908 e 1913
e da análise das teses defendidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro entre 1883
e 1915.
Se todas as entradas no Pavilhão de Observações eram de fato registradas, durante
o período de 01 de abril de 1908 a 31 de dezembro de 1913, apenas 217 pacientes
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1263
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

receberam o diagnóstico de paralisia geral, o que corresponde a aproximadamente 4,65%


do total das admissões, uma parcela pequena, quando comparada a outros diagnósticos,
como o alcoolismo e a histeria. Na tese defendida por João Pedro de Albuquerque, por
exemplo, o percentual de paralíticos que deram entrada no Hospício Nacional entre 1890
e 1896 foi de 1,92%. Tais dados confirmam que a doença não produzia um quadro
epidemiológico que pudesse suscitar qualquer tipo de preocupação ou transtorno em
termos de lotação institucional, ao contrário do que apontam os estudos europeus
(ALBUQUERQUE, 1896).
No entanto, entre as teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro produzidas
no período de 1831 a 1915, 45 títulos discorrem sobre aspectos relacionados à paralisia
geral progressiva, sendo que 11 delas possuem tal diagnóstico como tema central – a
primeira, inclusive, data de 1883, sendo, certamente, um dos primeiros trabalhos
defendidos no âmbito da recém-criada Cátedra de Psiquiatria e Moléstias Nervosas. Outro
dado interessante é fornecido pela pesquisadora Ede Cerqueira, que reporta que entre
1908 e 1930 foram discutidos nas reuniões da Sociedade Brasileira de Neurologia,
Psiquiatria e Medicina Legal 68 casos de infecções neurossifilíticas, classificadas pelos
médicos como: tabes, sífilis cerebral ou paralisia geral progressiva, 40 desses casos eram
especificamente de paralisia geral (CERQUEIRA, 2014).
Tais elementos evidenciam o significativo interesse despertado pela PGP, mesmo
enquanto uma doença que não fazia um grande número de vítimas na Capital Federal,
desde, pelo menos, o início da década de 1880. Este interesse despertou-se,
principalmente, pelo reconhecimento por parte dos alienistas/psiquiatras do potencial
legitimador do qual estava imbuída a categoria da paralisia geral progressiva enquanto
doença mental. Desta forma, o principal e mais amplo objetivo da presente pesquisa reside
em investigar como a construção do diagnóstico em questão pode ter contribuído para o
processo de legitimação da psiquiatria como ciência médica – e consequentemente, dos
seus profissionais como indivíduos que deveriam ter seu lugar nos debates relacionados
à agenda da saúde pública carioca – mesmo com um número tão baixo de vítimas.
Como objetivo mais específico, pretendo investigar de que modo certas técnicas
laboratoriais – como a reação de Wassermann, a punção lombar e a aplicação da
malarioterapia – colaboraram para a “cientificização” da prática psiquiátrica e,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1264
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

consequentemente, para que a mesma conquistasse prestígio entre grupos médicos e na


sociedade como um todo. Além disso, também viso compreender quais foram as
eventuais influências que estas “tecnologias” puderam exercer nos processos de
“emolduramento” da própria doença – de seu diagnóstico e de seu tratamento/cura
(ROSENBERG, 1977).
É igualmente importante ressaltar que, apesar da descoberta e paulatina aceitação
da etiologia sifilítica da PGP, tal estágio do “mal venéreo” permaneceu, ao que as fontes
indicam, predominantemente sob a alçada dos neuropsiquiatras. Em muitos momentos,
esses médicos trabalharam em conjunto com sifilógrafos e é possível que também com
parasitologistas. Entretanto, ainda assim, continuavam sendo a “autoridade” quando o
assunto era a doença. Isso se deu, provavelmente, não só por conta da natureza mista das
manifestações da PGP (físicas e mentais), mas também devido à solidez que esta categoria
nosológica conquistou ao longo de seus quase 100 anos de construção como doença
independente. Em outras palavras, quando começaram a surgir as teorias sobre a origem
luética da paralisia geral, a mesma já se constituíra como uma enfermidade autônoma, de
características bem estabelecidas e cujos conhecimentos haviam sido produzidos e
consolidados, sobretudo, no âmbito do campo da psiquiatria. Assim sendo, o segundo
objetivo específico da presente pesquisa procura evidenciar a dinâmica das relações entre
psiquiatras e outros profissionais da medicina – patologistas, sifilógrafos, parasitologistas
– e entender como a paralisia geral progressiva auxiliou a construção dessas redes de
sociabilidade e, consequentemente, destas trocas interdisciplinares.
Entendo a história da psiquiatria como uma ferramenta para se compreender os
processos de conformação e, consequentemente, as características do campo da medicina
mental e dos conhecimentos produzidos no âmbito do mesmo em determinados
momentos e lugares (HUERTAS, 2001; MICALE; PORTER, 1994; VENÂNCIO;
CASSÍLIA, 2010). Tal visão atrai o foco dos estudos para elementos culturais, sociais,
políticos, econômicos, religiosos, intelectuais, pessoais, etc. que influenciaram a
elaboração dos alicerces do pensamento psiquiátrico em diferentes períodos históricos.
Deste modo, o presente trabalho compromete-se justamente com este tipo de abordagem
quando procura analisar os entendimentos sobre a paralisia geral progressiva orientado
por questionamentos que pretendem levar em consideração ao menos parte dos aspectos
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1265
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

supracitados. Procuro abordar a construção de tal entidade nosológica a partir de uma


perspectiva multifacetada, encarando-a como um processo complexo e dinâmico.
Assim, a esta pesquisa é especialmente caro o conceito de framing desenvolvido
pelo historiador da medicina Charles Rosenberg. Na introdução do livro editado por ele
e por Janet Golden, em 1977, Rosenberg defende sua principal tese: cada doença, quando
descrita e singularizada, constitui-se em uma categoria elaborada perante a lógica e a
influência de fatores não somente biológicos, mas também históricos e sociais. Dito de
outro modo, segundo o autor, as doenças não existem enquanto fenômenos sociais até que
sejam nomeadas e enquadradas. Tal processo de framing (enquadramento) é mediado por
diferentes atores, entre médicos e pacientes, e consiste na caracterização de uma
enfermidade a partir não somente dos saberes e paradigmas científicos em voga no
momento, mas também do contexto social e histórico nos quais este processo se
desenrola.
Uma vez enquadradas, as enfermidades tornam-se, por sua vez, fatores
estruturantes do contexto social, capazes agora, de orientar políticas públicas, hábitos e
valores morais a serem ou não seguidos, estilos de vida, padrões alimentares, protocolos
médicos etc. Assim, se o paciente recebe um diagnóstico, o primeiro passa a refletir, a
personificar tal enfermidade, e Rosenberg lembra que essa situação é especialmente
significativa em doentes crônicos, já que o quadro de moléstia não é transitório, mas
permanente. Desta forma, podemos dizer que as doenças são estruturadas pelo contexto,
mas também são capazes de estrutura-lo, elegendo prioridades e diretrizes a serem
seguidas, beneficiando ou prejudicando em termos sociais, econômicos e políticos uns e
outros grupos de uma sociedade (ROSENBERG, 1977).
A partir de uma perspectiva afinada com estas concepções, procura-se analisar os
elementos cognitivos – inerentes às teorias e aos debates médicos em voga acerca das
doenças mentais – e sócio históricos que influenciaram o processo de enquadramento e
reenquadramento da paralisia geral progressiva, primeiro, enquanto uma entidade
nosológica autônoma, e depois, como uma enfermidade de origem sifilítica. Supõe-se que
a associação entre sífilis, loucura e PGP implicou no desenvolvimento de outras
referências acerca destas moléstias no que diz respeito, principalmente, ao seu
diagnóstico e ao seu tratamento.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1266
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A fim de cumprir os objetivos e embasar as hipóteses que serão colocadas ao longo


desta pesquisa, busquei construir um corpus documental diverso, que buscaria contemplar
a maior parte dos aspectos já elencados julgados importantes. Assim, são quatro os
principais tipos de fontes a serem analisados: periódicos científicos, manuais de
psiquiatria, teses defendidas no âmbito da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e os
relatórios referentes ao serviço de assistência aos alienados.
Consideram-se os periódicos médicos como fontes importantes, porque a partir
deles se pode, entre outras coisas, inferir os assuntos que constavam na agenda de
diferentes campos da medicina em determinados períodos, entre eles o campo
psiquiátrico. Ademais, os artigos científicos permitem acompanhar mais de perto as
etapas que fizeram parte dos processos de produção e consolidação dos conhecimentos
acerca da PGP, bem como das técnicas laboratoriais que cercavam seu diagnóstico e
tratamento.
Os Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria e os Arquivos da Fundação
Gaffrée e Guinle estão entre os títulos adotados. Alguns estudos já demonstraram que o
primeiro periódico constitui-se como um dos principais, senão o principal, veículo de
divulgação de pesquisas e investigações desenvolvidas no âmbito da psiquiatria
brasileira. Além disso, tal revista exibe riqueza de conteúdos, porque publicava grande
parte das atas das reuniões da Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina
Legal durante o período em que foi publicado (1905-1956). Deste modo, fica-se a par não
somente do que os psiquiatras publicavam acerca da doença em questão, mas também das
especificidades dos casos que discutiam e dos pontos que geravam mais controvérsias. A
partir daí, torna-se viável um mapeamento de grupos de profissionais que comungavam
das mesmas ideias, o que costuma ser bastante significativo, ao menos para os estudos
relacionados à história da psiquiatria no Rio de Janeiro. Alguns autores apontam
divergências epistemológicas e ideológicas entre os psiquiatras que atuavam no Hospício
Nacional e aqueles pertencentes à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, o que gerou
tensões que certamente influenciaram nas tomadas de decisão por parte de diferentes
atores inseridos neste campo do conhecimento.
O segundo periódico, os Arquivos da Fundação Gafrée e Guinle, foi publicado em
oito números, entre os anos de 1928 e 1938, e seu principal objetivo consistia na
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1267
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

divulgação das pesquisas desenvolvidas nas dependências do Hospital da Fundação


Gaffrée e Guinle, cuja iniciativa de criação proveio de parcerias entre o poder público e
os filantropos Cândido Gaffrée e Guilherme Guinle. Tal revista também é de grande
relevância, pois publicava muitos estudos acerca da paralisia geral produzidos no Serviço
de Neurossífilis do HFGG. Os artigos veiculados evidenciam a existência de pesquisas
realizados a partir de parcerias entre psiquiatras e dermatossifilógrafos, e que
contemplavam, entre outros temas, a utilização e aperfeiçoamento de técnicas
diagnósticas para a PGP, como a reação de Wassermann, e de tratamentos para esta
moléstia, como a malarioterapia. Além desses, serão explorados ao menos três outros
periódicos, a saber: os Anais da Assistência a Psicopatas, os Arquivos de Higiene Mental
e os Anais do Instituto de Psiquiatria.
Sobre os manuais, são caras as considerações feitas por Thomas Kuhn em seu
livro “A Estrutura das Revoluções Científicas”. Segundo o autor, os manuais são livros
cuja principal característica consiste na compilação dos eventuais consensos que foram
estabelecidos acerca de determinado assunto. Porém, os mesmos não permitem a análise
dos percursos tortuosos através dos quais tais consensos foram produzidos. Esses
percursos, por sua vez, podem ser iluminados a partir da análise dos artigos veiculados
em revistas médicas, como mencionado anteriormente. Nas quatro edições de seu
“Manual de Psiquiatria” (1921; 1925, 1938 e 1946), o psiquiatra Henrique de Brito
Belford Roxo, professor catedrático de Clínica Psiquiátrica e de Moléstias Nervosas da
FMRJ, descreve as categorias nosológicas reconhecidas pela Sociedade Brasileira de
Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal e, consequentemente, por parte significativa dos
psiquiatras que atuavam no Rio de Janeiro, durante o período em que foram publicadas.
Em todas as edições do livro, o médico faz considerações bastante ricas sobre a paralisia
geral progressiva, o que coloca a par das ideias que, a princípio, encontravam-se bem
estabelecidas sobre tal doença. Deste modo, os livros de Roxo são caros, pois combinados
com o conteúdo dos artigos publicados nos periódicos científicos, fornecem uma visão
menos pobre do que foram os processos de produção do conhecimento sobre a PGP626.

626
KUHN, T. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1268
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Já os relatórios da Assistência Médico-Legal a Alienados do DF redigidos por seu


diretor, oferecem números e informações acerca das demandas do serviço durante o
período estudado. Através da leitura de alguns desses documentos, se pode mapear, por
exemplo, alertas do médico Juliano Moreira (diretor de 1903-1930) sobre as recém-
descobertas formas nervosas da sífilis e a necessidade da elaboração de políticas para a
contenção do avanço destes formatos da doença. É comum que Moreira retome uma série
de apelações, já feitas, nas versões subsequentes dos relatórios, seja para agradecer à
atenção às suas demandas, ou para continuar cobrando que essas sejam contempladas.
Assim, a recorrência ou não de determinadas queixas que diziam respeito ao tratamento,
prevenção e acomodação dos doentes acometidos pela PGP pode dar pistas sobre os
lugares de prioridade que a doença em questão ocupou, ou não, na agenda do poder
público executivo.
Por fim, as teses defendidas no âmbito da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro também são fontes de grande importância para o estudo em questão, pois ajudam
a mapear as teorias que circulavam acerca da paralisia geral, e das doenças mentais de
uma forma mais ampla, durante, especialmente, a segunda metade do século XIX. Até
1905, quando são fundados os Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria, os temas
inerentes ao campo do alienismo/psiquiatria não eram muito recorrentes nos periódicos
médicos veiculados durante o século XIX. Deste modo, as teses são documentos que
compilam ao menos parte das ideias sobre a PGP e que costumam evidenciar as vertentes
teóricas às quais eram partidários seus autores e mentores.

Referências bibliográficas

ACCORSI, G. E. Entre a moléstia e a cura – a experiência da malarioterapia pelos


psiquiatras do Rio de Janeiro (1924-1956). Dissertação (Mestrado em História das
Ciências e da Saúde). Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Rio de Janeiro, 2015.

BENCHIMOL, J. L. Febre amarela e a Institucionalização da microbiologia no Brasil. In


HOCHMAN, G. & ARMUS, D. (Orgs.). Cuidar, Controlar, Curar. Ensaios históricos
sobre a saúde e a doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
2004, pp. 57-97.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1269
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BROWN, E. French Psychiatry’s Initial Reception of Bayle’s Discovery of General


Paresis of the Insane. Bulletin of the History of Mecicine, v, 68, n. 2, 1994, pp. 235-253.

BYNUM, W. F. Medicine in the laboratory. In Science and the practice of medicine in


the nineteenth century. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, pp. 92-117.

CARRARA, S. Tributo a Vênus – a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século


aos anos 40. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1996.

CARRARA, S.; CARVALHO, M. A sífilis e o aggiornamento do organicismo na


psiquiatria brasileira. História, Ciência, Saúde – Manguinhos, v. 17, supl. 2, 2010, pp.
391-399.

CERQUEIRA, E. C. B. A Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina


Legal: debates sobre ciência e assistência psiquiátrica (1907-1933). Dissertação
(Mestrado em História das Ciências e da Saúde), Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz, 2014.

DAVIS, G. The Cruel Madness of Love: sex, syphilis, and psychiatry in Scotland, 1880-
1930. Amsterdam, Nova York: Rodopi, 2008.

FACCHINETTI, C.; MUÑOZ, P. Emil Kraepelin na ciência psiquiátrica do Rio de


Janeiro, 1903-1933. História, Ciência, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 20, n.
1, 2013, pp. 239-262.

HUERTAS, R. Historia de la psiquiatria, ¿Por qué?, ¿Para qué? Tradiciones


historiográficas y nuevas tendencias. Frenia, v. 1, n. 1, 2001, pp. 9-36.

HURN, J. D. The history of the general paralysis of the insane in Britain, 1830 to 1950.
Tese (PhD em Filosofia). London University, Londres, 1998.

KRAGH, J. V. Malaria fever therapy for general paralysis of the insane in Denmark.
History of Psychiatry, Cambridge, v. 21, n. 4, 2010, pp. 471-486.

PORTER, R.; MICALE, M. S. Introduction: Reflections on Psychiatry and Its Histories.


In Discovering the History of Psychiatry. Nova York e Oxford: Oxford University Press,
1994, pp. 3-36.

ROSENBERG, C. E. Introduction – Framing Diseases: Illness, Society and History. In


ROSENBERG, C. E.; GOLDEN, J. (eds.) Framing Disease – Studies in Cultural History.
New Brunswick, New Jersey: Rutgers University Press, 1977, pp. XIII-XXVI.

SLIJKHUIS, J.; OOSTERHUIS, H. Cadaver brains and excesses in baccho and venere:
dementia paralytica in dutch psychiatry (1870–1920). Journal of the History of Medicine
and Allied Sciences. Oxford, Outubro 2012, pp. 1-35.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1270
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

VENANCIO, A. T. A.; CASSILIA, J. A. P. A doença mental como tema: uma análise


dos estudos no Brasil. Espaço Plural, Cascavel, v. 11, n. 22, 2010, pp. 24-34.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1271
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Misteriosos caminhos: religiosidades e práticas de curas populares na primeira


república (1890- 1920)

GLÍCIA CALDAS
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
Programa de Pós-graduação em História Social
Bolsista CAPES

Introdução

A repressão às práticas de cura realizadas pelos negros e setores populares não foi uma
invenção da República, já existindo no Império. No entanto, o Código Criminal do Império não
previa a repressão à magia e à feitiçaria que, de forma subliminar, estavam associadas ao crime
contra a religião do Estado previsto no art. 276. A novidade da República com o Código de
1890 é a institucionalização da repressão. Diante de um quadro que se instaura no pós-abolição,
a necessidade de enquadrar a população negra, agora liberta, exigia novos mecanismos de
controle e o discurso legal contra práticas que, tradicionalmente, eram associadas àqueles
grupos, era uma das formas de garantir este enquadramento. O Decreto nº. 119-A, de
07/01/1890, baixado antes de ser promulgada a primeira Constituição da República, no governo
provisório de Marechal Deodoro da Fonseca, (1889-1891), extinguiu os privilégios que a Igreja
tinha no Império estabelecendo-se os princípios para um Estado laico.
As práticas terapêuticas eram muito comuns entre a população do Brasil, pelo
entendimento da etiologia da doença e cura, do partilhar da mesma concepção da origem e do
tratamento O Código Republicano embora garantisse a liberdade de consciência e culto,
sancionava a perseguição aos terapeutas populares, criminalizando as práticas do espiritismo,
da magia, do uso de talismãs, das cartomancias e da prática ilegal da medicina, quando
empregadas para a cura de moléstias. O exercício do ofício de curandeiro também era
formalmente proibido e estava sujeito à pena de prisão e de multa. A necessidade de incorporar
e tornar visíveis outros sujeitos políticos menos “legítimos” oficialmente, silenciados no
discurso sobre as diversas medicinas do Brasil, revelou os praticantes dos ofícios de curas
negros e seus descendentes, além da estreita ligação desses praticantes com as religiões
defendidas por eles. Os médicos buscavam o espaço desejado, reclamavam a proteção legal
para o exercício profissional. Com a criação do Código Penal de 1890 os médicos conseguiram
a garantia legal de se impor contra quem exercesse as práticas da medicina popular. Lançando

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1272
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

na ilegalidade todo aquele que exercia uma medicina diferente da sua, assim os curandeiros
puderam ser criminalizados (SCHRITZMEYER, 2004: 75).
A criminalização dos artigos alegando a proteção à saúde pública deve ser entendida no
contexto da ação da categoria médica que visava resguardar em termos legais o monopólio do
exercício da cura. Além da condenação ao espiritismo, à magia e a outras práticas, o Código
Penal previa punições para o simples exercício da medicina sem títulos acadêmicos (art. 156) e
o crime de curandeirismo, a saber, a aplicação ou prescrição de substâncias com fins
terapêuticos (art. 158). O que confere especificidade aos saberes e práticas prescritos pelo artigo
157 é a identificação de seu poder de ilusão ou fascinação: o problema não é só que o
"espiritismo", a "magia", os "talismãs" e a "cartomancia" não possuem virtualidades
terapêuticas, mas que, sem poder curar, pretenda "inculcar" essa possibilidade. Por trás desse
reconhecimento, está a idéia de que as práticas da magia seriam "manobras fraudulentas",
reforçadas em seu poder de persuasão por um apelo ao sobrenatural.
Não só a população negra e pobre sofria repressão policial, pelas práticas consideradas
mágicas, mas todo aquele que se opunha aos padrões considerados civilizatórios o projeto de
civilizar na República, “vestiu a cidade com outra roupa, mas o corpo permaneceu o mesmo,
possuindo uma incrível dificuldade de andar de salto alto” (RODRIGUES, 2002: 11-43).
Vamos conhecer os caminhos percorridos por Ventura José Romão, preto, morador em terras
de Nova Friburgo e o professor Vicente Ferreira da Cunha, residente em São Cristovão, na
capital federal.

1- Um espírita no banco dos réus


Por desrespeito à ordem pública estipulada, os praticantes do espiritismo científico,
também tiveram seus direitos proibidos no Código Penal da República e no Regulamento
Sanitário de 1904, criado pelo Decreto nº 5156, do sanitarista Oswaldo Cruz. Para as
autoridades policiais e médicas, eles estavam praticando o que denominavam de charlatanismo,
exercendo ilegalmente a medicina, sem título legal e por meio das intervenções de espíritos, ou
seja, por dons mediúnicos, categoria assim conhecida pela doutrina espírita científica. Para eles
o espiritismo, mesmo o chamado de científico, era considerado uma prática antissocial e
anômica e não uma prática religiosa. Assim, os espíritas podiam sofrer das autoridades

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1273
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

repressão e terem seus domicílios invadidos e processados criminalmente, estando à margem


do projeto de salubridade da cidade.
Os inspetores sanitários eram os profissionais que tinham o contato direto com a
população, cabendo-lhes a tarefa de fiscalizar o exercício ilegal da medicina e “condenar” os
saberes considerados ilegítimos e bárbaros, associados às práticas de curas, combaterem os
charlatães. O exercício ilegal da medicina incluía as práticas espíritas que eram enquadradas
como crime. Decreto 5156 regulamentava nos artigos 250 e 251 as exigências legais para
exercer a arte de curar e a ilegalidade do espiritismo no tratamento das doenças/cura.
A Gazeta de Notícias, no dia 29 de junho de 1904, informava que o inspetor sanitário
Dr. Sebastião Barroso da 7ª Delegacia de Saúde, sabendo que o “Sr. Vicente Avellar curava por
meio de espiritismo e exercia também a medicina, dirigiu-se à residência do professor Avellar
em São Christovão”, para averiguações. Avellar residia à rua São Cristovão, número 201, era
brasileiro, pardo, casado, e acreditamos ser professor de profissão, pois antes de seu nome
encontramos a palavra “professor” nos artigos dos periódicos e nos processos sanitário e
judiciais.
Vicente Avellar foi denunciado pelo inspetor sanitário à Procuradoria dos Feitos da
Saúde Pública, com a suspeita do exercício ilegal da medicina e por prescrever medicamentos,
através de práticas espíritas. No artigo 158 da legislação penal, ficou estabelecida a proibição
de prescrição de receitas médicas pelos não habilitados a exercerem a medicina. A possibilidade
pelos não habilitados de prescreverem medicamentos poderia comprometer a saúde física e
psíquica das pessoas.
Durante um ano Vicente Ferreira da Cunha Avellar627 tentou provar sua inocência junto
às autoridades judiciais, foi indiciado pelos artigos 156 e 157 do Código Penal e os artigos 250
e 251 do Regulamento Sanitário, o processo foi instaurado em 1904 e finalizado em 1905. O
caso de Avellar foi um dentre muitos outros em que os praticantes de cura foram levados aos
tribunais de justiça, por exercerem sua fé, atentando contra a Saúde Pública na perspectiva dos
agentes do Estado. Muitas vezes, na maioria dos processos, havia certa tolerância à prática do
espiritismo, sobretudo quando a Constituição Federal era utilizada como instrumento de defesa
para legitimar o exercício da liberdade religiosa. Quando eram encontrados, ervas, alguidares,

627
Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Processo nº. 924, Referência: BV.O.RMI. 0666, Supremo Tribunal Federal,
Vicente Ferreira da Cunha Avellar.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1274
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

galinhas, velas, peles de bichos secas, pipocas entre os materiais apreendidos, estes eram
imediatamente considerados práticas de sortilégio e magia, pois associava as pessoas com a
prática da feitiçaria. (Maggie, 1992: 77).

Nos autos da infração sanitária

O Dr. Sebastião Barroso declarou em seu depoimento que no sobrado da residência de


Avellar, havia uma movimentação de pessoas, em idas e vindas e que ao saírem da dita casa
entravam numa farmácia existente no andar térreo, saindo levando pequenos embrulhos, que
poderiam ser remédios. Dirigiu-se ao sobrado acompanhado de três testemunhas, Luiz
Rodrigues de Figueiredo, Frederico Martins dos Santos e Antonio Gomes,
“...ali deparou com uma sala da frente, vasta e apparelhada de bancos e cadeiras,
paralelamente alinhadas e defrontando uma mesa collocada sobre um estrado. Tinham
dependurados nas paredes, quadros de imagens, retratos, cartazes com
agradecimentos de curas feitas pelo prof. Avellar e os estatutos de uma sociedade
scientifica “Estudos Philosophicos Jesus Nazareno” ” 628.

Declarou ainda o inspetor, que ao chegar à porta do sobrado, encontrou uma mulher
saindo da dita farmácia, que trazia um embrulho nas mãos e uma suposta receita. Adelaide
Drummond na presença das três testemunhas, acima citadas, disse ter procurado o professor
porque se encontrava doente, que ele curava por meios do espiritismo e prescrevia receitas cujos
medicamentos eram retirados no térreo do sobrado. Convencido que ali naquele lugar havia
uma transgressão à lei, adentrou ao sobrado, sendo recebido por Vicente Avellar, Manoel Luiz
Carrosa e Frederico Martins Santos. Aqui encontramos uma contradição, o inspetor declarou
que Federico Martins Santos o acompanhava como testemunha das averiguações, como poderia
ao mesmo tempo estar com o professor Avellar no sobrado? Voltaremos mais tarde a esse
questionamento.
Vicente Avellar foi convidado a prestar declarações às autoridades policiais sanitárias,
suspeito pelo exercício ilegal da medicina, prática da magia, prática de ciências ocultas e
espiritismo. O inspetor após sua declaração solicita a instauração de um processo-crime em
junho de 1904, perante o Juízo dos Feitos da Saúde Pública, anexando o rol das testemunhas:

628
Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital, Rio de Janeiro, Gazeta de Notícias, 24/08/1904; Arquivo Nacional,
op. cit., declaração do inspetor sanitário.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1275
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Luiz Rodrigues de Figueiredo, Frederico Martins dos Santos, Antonio Gomes e incluindo o
nome de Adelaide, como testemunha de acusação. Não houve relato de objetos apreendidos no
local, mas “documentos” foram anexados ao processo, retirados do sobrado. Não sabemos como
o inspetor sanitário tomou conhecimento do exercício das artes de cura do professor Avellar, já
que os artigos nos periódicos são posteriores as averiguações do inspetor sanitário.
Relembrando, a “visita” do Dr. Sebastião Barroso aconteceu no dia 28 de junho de 1904, o
artigo na Gazeta de Notícias em 24 de agosto do mesmo ano, com o título de “Tribunaes”,
“Infração Sanitária” e “O professor Vicente Avellar”, nessa data o advogado de Vicente Avellar
aguardava resultado da Apelação. Tudo cercado de grande mistério e muitas contradições.
As testemunhas arroladas de acusação não comparecem, não foram localizadas nos
endereços fornecidos à justiça. O Sr. Edmundo de Almeida Rego, subprocurador dos Feitos da
Saúde Pública, mandou que se intimasse Azevedo Lima para testemunhar. Quem era Azevedo
Lima? Como aparece para ser intimado como testemunha, se não consta no rol anexado ao auto
de infração? Também, seu nome não é mencionado no ofício da infração que origina o
processo. Não compareceu para testemunhar, desapareceu do processo da mesma forma de
surgiu, misteriosamente.
Os vizinhos fizeram uma declaração por escrito, que foi anexada ao processo,
constatando a fama do curandeiro, do grande número de pessoas que o procuravam em seus
momentos de aflição das mazelas do corpo doente, da prática artes de curar através do
espiritismo e do uso de medicamentos manipulados na farmácia no andar térreo do sobrado.
Um exemplar de um periódico - “A Fé” é anexado aos autos, na capa constava o nome de
Vicente Avellar como o redator-chefe. O endereço da redação do folhetim e do sobrado eram
os mesmos, rua São Cristovão, 201, Rio de Janeiro. Também foi anexado um cartaz que estava
preso na parede da sala. Nesse cartaz constavam as normas de consultas da Sociedade
Scientífica de Estudos Philosóficos Jesus Nazareno. Esses documentos anexados pelo inspetor
sanitário, segundo seu entendimento, comprovavam a existência das práticas de curas e de
espiritismo.
O advogado de defesa alegou que o inspetor sanitário invadiu a casa do acusado,
praticou atos de violência, cometendo abusos, convocando Avellar para prestar declarações,
sem quaisquer tipos de esclarecimentos de quais seriam seus objetivos e quais denúncias teria
ido apurar. Com todas as lacunas existentes, o processo seguiu seu rumo e Vicente Avellar foi
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1276
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

interrogado pelo juiz Eliezer Gerson Tavares, na Casa de Audiência do Juízo dos Feitos da
Saúde Pública. Ele negou exercer a medicina em qualquer uma de suas formas, que não
praticava a magia, ciências ocultas ou espiritismo, afirmando que como presidente da Sociedade
referida, distribuía aos seus associados beneficências cujas naturezas não soube explicar.
Perguntado sobre os bancos e a mesa colocada sobre um tablado, ele explicou que eram usados
para sua profissão e também usa o espaço para reunir os membros da Sociedade Beneficente
Scientífica Jesus de Nazareno, negando ter ligação com a medicina e o espiritismo. Pode-se
perceber que a declaração foi uma das estratégias de Avellar para fugir da repressão sanitária,
pois negando as práticas mágicas e do espiritismo, negava estar inserido nas infrações sanitárias
previstas nos artigos 250 e 251, e nos crimes previstos pelo Código Penal, artigos 156 e a157.

Falhas no processo ou declarações fraudulentas?

Apontar as falhas no processo, não significa realizar aqui uma análise jurídica dos
procedimentos processuais penais e sim confrontar as alegações do advogado de defesa com as
declarações do inspetor sanitário. Primeiro questionamento: se realmente a testemunha
Adelaide estava com frascos de remédios e receita nas mãos, como esses objetos não foram
apreendidos como prova do delito? O inspetor deixou escapar uma prova? Ele deixou de
apreender uma prova, que seria irrecusável para comprovar a acusação. O advogado de defesa
alega que a referida prova não existia, “porque só se deixa escapar algo que existe, não sendo
o caso do frasco de remédio e da receita”, o que lembra um dito jurídico transcrito por Maggie
(1992:24), “o que não está nos autos, não esta no mundo”, ou seja, o advogado levanta a
hipótese da materialidade desses objetos, também da farmácia no andar térreo. A dita farmácia
nunca existiu. Segundo questionamento: quem o denuncia? Na declaração do inspetor sanitário
ele não faz qualquer alusão de como tomou conhecimento da infração e como chegou ao
endereço do acusado. Terceiro questionamento: a testemunha Frederico Martins dos Santos
encontra-se em dois lugares contraditórios: acompanhante do Dr. Sebastião Barroso para
averiguações (parte acusatória) e ao mesmo tempo no sobrado ao lado de Vicente Avellar (parte
da defesa), recebendo o inspetor sanitário. Quarto questionamento: de onde surgiu Azevedo
Lima, mandado ser intimado para testemunhar, sem constar no ofício da infração sanitária?
Esses questionamentos são as lacunas que não foram preenchidas durante o processo e mesmo
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1277
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

assim não o invalidaram. Quinto questionamento: o professor Vicente de Avellar foi


considerado culpado e sentenciado629 com uma pena maior da que era prevista nos artigos 156
e 157. Foi condenado a sete meses de prisão celular e ao pagamento de multa de 583.333 réis.
Em 30 de junho de 1904, o advogado de defesa recorreu da sentença pelas lacunas
existentes e pelo erro do tempo de prisão celular. No dia 31 de julho, o subprocurador dos
feitos, Edmundo de Almeida Rego reiterou todas as acusações proferidas ao acusado, rejeitando
o provimento da apelação de revisão criminal, retificando o tempo de prisão, para seis meses,
como previsto em lei e mantendo o restante da sentença. Finalmente, em 09 de outubro de 1904,
o advogado de defesa Dr. Borges, entrou com uma ação de Revisão Criminal, o processo será
analisado pelas autoridades judiciais e não mais pelo Juízo dos Feitos da Saúde Pública. O
julgamento deste feito foi largamente discutido pelos juízes das Câmaras, que aproveitaram
mais uma vez a ocasião para “apreciarem a forma do processo adotado pela Junta Sanitária e
a estabelecida pelo nosso Código Penal”630, pois a forma com que os procedimentos dos
processos da Junta Sanitária seguiam, infligiam aos do judiciário.
Nosso praticante das artes de cura Vicente de Avellar obteve a revisão criminal
favorável, ou seja, foi reconhecido que ele não praticava a magia e seus sortilégios, que não
exercia ilegalmente a medicina e nem prescrevia remédios. Cabia ao acusado provar que suas
práticas eram religiosas. A percepção do juiz era um fator decisivo na absolvição ou condenação
do réu. Ele precisava ter o entendimento das categorias de religião e magia, do que figurava
como crença e como exploração. Resultando na equação que o religioso era legal e o ilegal seria
charlatanismo.
Avellar era espírita e como já ressaltamos acima, existia toda uma luta do espiritismo
para fazer-se reconhecer, também ao que parece era letrado. Num breve exame da conjuntura
da discussão aberta pelos espíritas com as prescrições do código. Sem muitos exageros, pode-
se dizer que a República não foi ação promovida pelas massas (CARVALHO, 1977:10), mas
de grupos que detinham algum poder, e interesse, para fazê-la. Desta forma, todos os demais
agrupamentos que não estivessem ligados aqueles, foram pegos de surpresa. Os espíritas
estavam nessa situação. Após a proclamação verdadeira enxurrada de dispositivos, alguns

629
De acordo com os artigos 156 e 157 do Código Penal, a pena máxima prevista era de seis meses de prisão
celular.
630
Biblioteca Nacional - Hemeroteca Digital, Rio de Janeiro, Gazeta de Noticias, 24/08/1904.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1278
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

enclausurados em demandas reprimidas por muitos anos, como o foi o caso da liberdade
religiosa e do casamento civil, ganharam liberdade (MARQUES, 2015:198). Estavam, no
entanto, amparadas por concepções antes da proclamação e que continuaram a tremular tanto
no ideário do novo regime de governo, quanto em vários grupos que, mesmo não participando
diretamente da inversão governamental, alimentavam a ideia de que a ciência poderia, e deveria
regular os rumos da nação em todas as suas esferas, como defendiam médicos e juristas. Por
outro lado, ao ser enquadrado nos “Crimes contra a saúde pública”, o espiritismo não faria parte
do conjunto de saberes e práticas tidas como legítimos do ponto de vista jurídico.

2- Banho de sapo: artimanhas do Ventura.

O delegado Adelino Maciel Paim no dia 25/03/1915 à noite, se dirigiu às terras de


Ricarda Machado, próximas da sede do município de Nova Friburgo, para averiguar denúncias
de práticas de feitiçaria pelo preto Ventura José Romão. Este foi preso e encaminhado à
delegacia local, junto com outras seis pessoas que lá estavam no momento do flagrante. A
relação dos objetos apreendidos descrevia os seguintes itens:
“Uma garrafa contendo líquido não identificado, muitas ervas amarradas, uma
imagem de Santo Antonio com pescoço colado, um embrulho contendo terra, 2 dentes
de um irracional, um pedacinho de madeira, uma perna de ave, dois quadros pequenos,
sendo um de Christo coroado de espinhos e o outro da imagem de Santo António, um
pedaço de pau cor amarelada, um santo dentro de um oratório, um gancho de ferro
com algumas frutas secas, uma cauda de animal seco,um pedaço de couro de cabrito
colado na parede”.631

Não somente no caso de Ventura encontramos referência ao uso das ervas, mas em quase
todos os casos analisados ligados as diversas práticas de curas vinculadas a religião professada
pelo agente de cura. Usadas para as mais diversas utilidades, desde chás, vomitórios, purgantes,
banhos e também para “feitiços de amor”. Constatamos em quase todos os artigos sobre
curandeiros e/ou feiticeiros publicadas nos periódicos ou nos processos criminais, nos relatos
dos objetos apreendidos as ervas sempre estavam incluídas. Juana Elbein (1995:58) em suas
análises voltadas para os nagôs no contexto da morte, na Bahia, diz que existem ervas para
quase tudo, para conseguir alegria, amor, dinheiro, paz. Também para as tristezas, misérias,

631
Arquivo Central do Tribunal do Júri do Estado do Rio de Janeiro - Inquérito Policial, Caixa 00.679.473-
7/RECALL, Vara Única de Nova Friburgo, ano 1915, Ventura José Romão.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1279
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

para vencer inimigos, atenuar sofrimento de alguém, para boa memória, teimosia, para escapar
da prisão, para achar objetos perdidos e ainda outros fins.
Na cosmogonia africana as ervas são utilizadas para vários ritos, inclusive para os
procedimentos de curas de doenças. O sistema de classificação das folhas esta diretamente
relacionada às propriedades que lhe são atribuídas. Ribeiro (1996:170) explica que Osanyn632
é o orixá da essência do mundo vegetal, conhecedor das possibilidades terapêuticas de todas as
plantas. É o segredo sagrado das folhas, que permite a esta divindade o acesso a um saber de
vital importância. Osanyn representa os segredos e as virtudes medicinais das ervas, ele detém
o encantamento capaz de “transformar” uma folha profana em sagrada. Osanyn é considerado
na cultura yorubana, a seiva da vida. As funções protetoras das ervas aparecem no discurso da
cura, como um arcabouço, sempre somadas a outros ritos, como rezas, orações, baforadas.
Proteção significa auxílio, ajudar, abrigar, dedicação à pessoa ou a coisas. A proteção estabelece
a ligação entre os dois mundos: visível e invisível. Nas religiões de matrizes africanas a vida
não pode ser pensada sem as ervas. Quando e como usar determinada erva? Qual é a indicada
para cada necessidade do cotidiano? (GEERTZ, 1989:108)633 Tudo irá depender a que finalidade
será destinada. Em qualquer caso do uso das ervas, a elas são sempre agregadas rituais e
simbolismos próprios a cada auxílio pretendido.
Nesse complexo cultural, medicina e magia recebem a mesma denominação em virtude
da semelhança de suas práticas:
Magia e medicina, estreitamente relacionadas, pressupõem a ação de forças
sobrenaturais no universo e a possibilidade humana de exercer controle sobre tais
forças. Enquanto artes do uso de recursos e forças naturais para preservar ou restaurar
a saúde, estando sob o domínio de Osanyn; apóiam-se na crença de que a divindade e
espíritos auxiliam a cura e que certas substâncias da natureza possuem qualidades
inerentes, de significados ocultos; fazem uso dos encantamentos (RIBEIRO, 1996:
171)

632
Osanyn é uma divindade do complexo cultural yorubano, tendo seu domínio na floresta e sendo o responsável
pelas ervas (folhas), portador dos encantamentos que sacralizam as plantas, tornando-as curativas. Na cosmogonia
africana as folhas são utilizadas em todos os ritos sagrado. Osanyn deu folhas para cada orixá do panteão yorubá,
mas o segredo e o encantamento guardou para si, quando se usa uma determinada folha , os orixás sempre o
reverenciam para que elas sejam portadores de axés (força) e seus ofós (que são cantigas de encantamento), sem o
que elas não funcionam.
633
CF o autor, argumenta de que os padrões culturais são modelos, que eles são conjunto de símbolos cujas relações
uns com os outros modelam as relações entre as entidades, os processos nos sistemas físicos, orgânicos, sociais ou
psicológicos. Os “modelos para” dizem respeito ao aprendizado automático, os “modelos de” dão significados a
forma psicológica e social, são as relações expressas no simbólico.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1280
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Maria Antonia Machado, uma das testemunhas encontradas no local, também foi a
denunciante, preta, de 22 anos, lavradora, solteira, morando perto de Ventura o procura para
socorrer seu irmão que estava doente. Maria falou que ele deu um “banho de sapo” em seu
irmão e após isso o mesmo veio a falecer. O que seria esse banho? Ela em seu testemunho, disse
que Ventura mandou pegar um sapo e o banhou por algum tempo, após retirou aquela água e
mandou que dessem um banho em seu irmão. Se o irmão (não é identificado) veio a óbito pelo
dito “banho de sapo” não teremos como saber, pois mais detalhes sobre o procedimento não
foram mencionados.
Ventura José era reconhecido na comunidade em que estava inserido por suas práticas
mágicas, de “feiticeiro”, de fazer “cangerê”, todas as testemunhas o acusam, dizendo que
sabiam de suas práticas. Não entendiam o que ele fazia, que “falava umas palavras que não
conheciam”, em uma “língua estranha, própria da feitiçaria”.
Ventura durante o interrogatório, disse chamar-se Ventura José Romão634, ter 36 anos,
ser nacional, viúvo e morar “por misericórdia” nas terras de Ricarda Machado, que lhe cedeu
uma casinha. Diz não ser feiticeiro, porque não fazia nada de mal às pessoas que o procuravam,
só “trata” delas, “que elas vão lá por sua livre vontade”, que onde mora é difícil encontrar um
médico, assim ele aprendeu com seu avô “certas coisas” para poder ajudar. No interrogatório,
lhe foi perguntado como ele procedia para socorrer as pessoas e como o fazia, ele responde: “...
com rezas, faço fechamento de corpo usando agulhas novas virgens, contra mordidas de cobra,
de cachorro, também compressas para febres dos pântanos...”, alega não saber fazer nada com
sapos, porque isso pertence aos “feiticeiros”, ou seja, a magia maléfica. Ele não se reconhece
como feiticeiro, embora nas páginas do Inquérito conste o “feiticeiro Ventura Romão José”,
escrito pelo delegado Paim. Alguns daqueles a quem socorreu pagaram pelo atendimento outros
não.
Com suas respostas Ventura tentava se livrar da prisão, mas não negou que usava de
práticas mágicas, que foram aprendidas por tradição oral. Reconhece que alguns socorridos
pagaram pelo seu atendimento. Instaurado o inquérito, foi confirmada a prisão do “feiticeiro”
Ventura, incurso nos artigos 157 e 158 do código pena republicano, pela prática da magia,

634
Arquivo Central do Tribunal do Júri, Rio de Janeiro, Caixa 00.679.473-7/RECALL, Cartório: Vara única de
Nova Friburgo, 1915; Ação: Curandeirismo, Ventura José Romão.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1281
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

espiritismo e seus sortilégios635. Confirmando as hipóteses de Maggie, que a autoria da


denúncia quando não está contida no “sujeito oculto”, integra o universo do acusado, aquele
que o conhece, nesse caso específico, a denunciante é vizinha e ex-cliente, não satisfeita com
os resultados obtidos através do “banho de sapo”.

Considerações Finais

A perseguição aos mais diferentes praticantes de cura, na maioria das vezes, esteve
ligada à repressão os cultos de negros e pobres, nos quais se identificavam matrizes culturais
de origem africanas, consideradas bárbaras, atrasadas e, por isso, um sério entrave aos padrões
europeus de civilização e cultura desejados para o Brasil. A herança colonial devia ser
extirpada, as práticas mágico-religiosas eram um dos sinais de atraso, levando há uma grande
perseguição aos curandeiros, principalmente os negros, classificados de charlatães pelos
médicos e atacados, tantas outras, pelos periódicos.
Avellar era espírita, mas para o entendimento das autoridades sanitárias e policiais, suas
práticas também poderiam estar contidas no universo mágico Nosso curandeiros/feiticeiro
Ventura José Romão pertencia ao estrato mais pobre da camada da população, era negro
detentor de saberes mágicos, provável ter aprendido com seus antepassados, transmitidos pela
tradição oral, que o fizera respeitado na comunidade em que estava inserido. Morador de
Friburgo faz-nos constatar que a repressão ao curandeirismo/feitiçaria esteve presente em
lugares mais distantes, além das fronteiras da cidade do Rio de Janeiro. A repressão aos cultos
religiosos de matriz africana não se fez somente pelo discurso de uma Capital Federal aos
padrões europeus.
A primeira República no Brasil foi contraditória e autoritária em várias situações. Em
relação às práticas de curas não foi diferente. O Governo Provisório torna lei uma das promessas
da República, a garantia de liberdade de cultos e a desvinculação entre Igreja e Estado. Mas o
Código Penal cria mecanismos que possibilitam a perseguição, prisão e ações de arbitrariedade
em relação a todos aqueles que se dedicavam os ofícios de cura
no âmbito da cultura popular, colocando-os à margem da legalidade.

635
Assim consta na capa do Inquérito Policial de Ventura José Romão.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1282
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BIBLIOGRAFIA

CALDAS, Glícia. Munganga Nzambiri: um estudo comparativo das concepções


populares de cura na corte imperial (1850-1888). Dissertação de Mestrado, Rio de
Janeiro: UFRJ/IFCS, 2008.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

COSTA, Valéria e GOMES Flávio (orgs.). Religiões negras no Brasil: da escravidão à pós-
emancipação. São Paulo,Selo Negro Edições, 2016.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.


MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 1992.

MARQUES, Marcos Moreira. Cura do corpo, da cidade e da alma. Medicina, política e


espiritismo na trajetória de Adolfo Bezerra de Menezes. Dissertação de Mestrado em História
Social, UNIRIO, 2015.

SANTOS, Juan Elbein. Os Nagôs e a Morte: Pàdè, Àsèsè e o culto Ègun na Bahia. 7ª,
Petrópolis: Vozes, 1993.

SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Sortilégios de saberes: curandeiros e juízes nos


tribunais brasileiros (1900-1990). São Paulo: IBCCRIM, 2004.

SOARES, Márcio de Souza. A doença e a cura - saberes médicos e cultura popular


na Corte imperial. Dissertação de mestrado de História. Niterói: UFF, mimeo., 1999.

RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Alma africana no Brasil – os Iorubás. São Paulo: Oduduwa, 1996.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1283
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Política e sociabilidade no século XIX: A relação entre o visconde de pelotas e o


Marquês do Herval.

GUILHERME DE MATTOS GRÜNDLING636


Programa de Pós-Graduação em História (UFRRJ)
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

Este trabalho de pesquisa destina-se a melhor compreender a relação constituída entre


os políticos e militares, Manoel Luís Osório (Marquês do Herval) e José Antonio Correa
da Câmara (2º Visconde de Pelotas), durante a fase final da Guerra do Paraguai,
especialmente, ao longo dos anos posteriores ao conflito, marcados pela ascensão de
Câmara à esfera política. Em outros termos, busca-se a análise do vínculo estabelecido
entre Osório e Câmara, por meio do estudo das suas correspondências pessoais, trocadas
ao longo do processo de emergência política de Câmara que ocorreu após a Guerra do
Paraguai. Portanto, em um contexto marcado pela formação de redes de sociabilidades,
pelo clientelismo político, bem como pela política de favorecimentos especialmente entre
membros da elite, procura-se por meio deste projeto trabalhar com dois indivíduos
membros da elite política sul-rio-grandense, com a finalidade de melhor entender a
dinâmica das relações políticas manifestadas ao longo do oitocentos.
Nesse contexto, procura-se entender em que medida a relação entre Câmara e Osório
auxilia-o no processo de emergência política, levando em consideração a relevância de
Osório no cenário político sul-rio-grandense e a sua maior facilidade de inserção nos
assuntos políticos da Corte, principalmente, após o grande empenho e os esforços
dispostos por Osório às tropas do exército imperial.
Nessa mesma perspectiva, ressalta-se, nas últimas décadas, entre os historiadores
vinculados à História Social e Política, uma nova interpretação do cenário político do
século XIX, pois as discussões políticas deixam de ser compreendidas exclusivamente
como acordos tradicionais definidos em espaços institucionais. Nesse aspecto, valorizam-

636
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Projeto sob Orientação da Prof. Drª Adriana Barreto de Souza. Linha de Pesquisa: Relações de Poder,
Linguagens e História Intelectual. Bolsista CAPES.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1284
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

se, na historiografia atual, locais e ocasiões que reafirmam os laços de afetividade e de


confraternização, isto é, momentos de aproximação entre os indivíduos e/ou grupos que
poderiam acontecer nos espaços urbanos, mas que, tratando-se da elite, em grande parte,
aconteciam por meio de jantares, de recepções, de festas particulares etc. (COMISSOLI,
2011, p.207)
Sobretudo em esfera acadêmica, a historiografia atual procurou ampliar as pesquisas
acerca do papel das elites locais no processo de formação do Estado Imperial brasileiro.
Nesse sentido, valorizam-se escalas mais específicas de análise, assim como o
aparecimento ou a maior utilização de outros aportes documentais de análise,
aproximando-se de ferramentas de pesquisa e de observação metodológica, de certa
forma, já difundidas em outras áreas ciências sociais, as análises de redes sociais, as
prosopografias, as biografias e a microhistória. Isto é, apoiando-se na
interdisciplinaridade e na variação de modelos de interpretação. (IMIZCOZ, 2001)
Dentro desse panorama, acredita-se que o estudo das relações entre indivíduos membros
da elite política do século XIX, diferentemente daquelas entre indivíduos socialmente
desiguais, marcadas pelos vínculos de dependência, pode-se salientar, geralmente,
ligação de amizade e de sociabilidade, reafirmadas pelas relações constituídas nos meios
sociais que esses indivíduos circulavam. Nesse contexto, lembra-se que a sociedade
brasileira, já no início do século XIX, acostumou-se com a ampliação dos espaços de
interação e de diálogo, favorecendo, em certa medida, a sociabilização. A partir disso,
destaca-se a importância de certos aportes documentais que, em certa medida, favorecem
a análise dos sujeitos e de suas relações, tais como: as correspondências, as
autobiografias, os diários etc. (IMIZCOZ, 2001)
Nessa perspectiva, acredita-se que atualmente a historiografia tem utilizado as
correspondências não apenas para a consulta de informações, mas também como objeto
de análise e compreensão de um indivíduo, em grande parte, devido à nova interpretação
do papel dele na história. Portanto, tornando a utilização das correspondências como fonte
reveladora da história. Nesse processo, o historiador, por intermédio da análise das
correspondências, busca se aproximar-se de aspectos “privados da vida”, das
expectativas, das experiências, das hesitações, das incoerências e das preocupações dos
indivíduos, questões que são inerentes à própria existência humana e que são expressas
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1285
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

numa conversa a dois, a fim de reduzir as distâncias entre os sujeitos envolvidos. Ou seja,
para o estudo dos indivíduos na história, as correspondências pessoais são vestígios
fundamentais para o ofício do historiador. “Trata-se de escrita de si, na primeira pessoa,
na qual o indivíduo assume uma posição reflexiva em relação à sua história e ao mundo
onde se movimenta” (MALATIAN, 2009, p.195).
Desse modo, na perspectiva de reduzir distâncias entre os atores históricos, as
correspondências simbolizam “uma escrita de si que constitui e reconstitui suas
identidades pessoais e profissionais no decurso da troca de cartas” (GOMES, 2005, p.52).
Por esse viés, pode-se inferir que a prática epistolar corresponde também a uma prática
cultural, a um hábito social de extrema relevância ao longo do século XIX. Logo, o estudo
da prática epistolar confere outra grandeza às relações de sociabilidade durante esse
século, uma vez que a “correspondência pessoal de um indivíduo é portanto um espaço
definidor e definido pela sua sociabilidade”. (VENANCIO, 2001, p.32) Sendo assim, no
presente estudo, adota-se, como o aporte documental e como fonte principal de análise,
as correspondências pessoais trocadas entre José Antônio Correa da Câmara (Visconde
de Pelotas) e Manuel Luís Osório (Marquês do Herval). Apresenta-se, a seguir, a tabela
expositiva referente às correspondências pessoais recebidas pelo Visconde de Pelotas,
entre os anos de 1869-1879, na qual se ressalta o grande fluxo de correspondências do
Marquês do Herval. Todavia, na perspectiva de melhor compreender a dinâmica dessa
relação, entende-se que é de grande importância também, a exploração das cartas
enviadas por Câmara ao general Osório, as quais se encontram disponíveis à consulta no
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
Remetente Número de Missivas Porcentagem

Manuel Luís Osório 84 28,0 %

Outros Correspondentes 139 72,0 %


(76
Indivíduos)

Total de Missivas 299 100,0 %


Correspondências encontradas no Fundo General Câmara do (IHGRS), de 1869 a 1879.
Desse modo, na perspectiva de reduzir as distâncias entre os atores históricos, as
correspondências simbolizam “uma escrita de si que constitui e reconstitui suas

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1286
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

identidades pessoais e profissionais no decurso da troca de cartas” (GOMES, 2005, p.52).


A prática epistolar, nessa perspectiva, anuncia a própria dinâmica de transformações que
ocorrem no transcorrer das trajetórias pessoais, as diferentes facetas que são assumidas
ao longo da vida de um indivíduo pertencente ao seu tempo histórico, dividido entre os
espaços de trabalho, de sociabilidade etc. Em outras palavras, ressalta-se a relevância dos
documentos pessoais, em especial as correspondências pessoais, para o estudo dos
indivíduos na história. Sobre essa questão, Ângela de Castro Gomes, em uma de suas
contribuições acerca da escrita de si, aponta que “o documento não trata de ‘dizer o que
houve’, mas de dizer o que o autor diz que viu, sentiu e experimentou, retrospectivamente,
em relação a um acontecimento.” (GOMES, 2004, p.14) Assim, entendidas não apenas
como objeto de aproximação entre os atores históricos, as correspondências desnudam
características, posturas e interpretações dos seus remetentes que, muitas vezes, não
observadas pelos historiadores ao trabalharem com outras fontes documentais.
De forma genérica, considera-se elite grupos de indivíduos que ocupam posição
privilegiada na sociedade da qual fazem parte. No entanto, entende-se que o conceito de
elite e as características que o compõe, de maneira alguma, são exemplos de concordância
entre cientistas políticos, historiadores e outros pesquisadores. Flávio Heinz, considera
que a interpretação do conceito de elite, não se resume à manifestação econômica ou
política, mas a uma série de outros elementos que devem ser considerados, tais como:
reconhecimento, status, entre outros. Nesse sentido, valorizam-se as contribuições do
autor nos seus estudos referentes à história das elites, desenvolvidas na obra, sobretudo,
pelas suas interessantes e necessárias reflexões metodológicas sobre o assunto. (HEINZ,
2006)
Nesse aspecto, pode-se visualizar atualmente a existência de certos estudos da
burguesia e das elites sob grande influência das teorias acerca do poder, desenvolvidas
por Foucault, que visam a defini-las originalmente por meio de suas relações sociais. Isto
é, especialmente a partir do olhar para um renovado grupo de fontes, outras esferas de
análise, pouco exploradas anteriormente tentaram explicar o conceito, tais como, a
correlação entre os serviçais e os senhores, bem como os delineamentos das
sociabilidades, que, em grande medida, influenciam na crítica a visão exclusivamente
econômica das elites. (CHARLE, 2006)
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1287
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nesse sentido, entende-se que a elite, mais especificamente a elite política, é definida
não somente pelo aparato burocrático estatal, ao contrário, a elite “possui uma origem
social descentralizada, muitas vezes estrategicamente articulada nas instituições da
sociedade civil” (NORONHA, 2008, p.26). Ou seja, a elite política não pode ser
caracterizada exclusivamente pelas suas proximidades embrionárias do tipo econômicas,
culturais e sociais, mas devem ser vistas como uma relação de troca ou possível
alinhamento estrutural. Tal alinhamento, por sua vez, muitas vezes, pode considerar a
garantia da reprodução ou os fundamentos necessários para a manutenção dessa prática.
De qualquer forma, nesta pesquisa não se pretende discutir de maneira mais ampla o
conceito de elite ou a própria Teoria das Elites. Contudo, observou-se a necessidade de
elaboração destas considerações, sobretudo, para definir quais os elementos e os limites
conceituais relevantes para o estudo de indivíduos pertencentes à elite política sul-rio-
grandense.
Oriundos de famílias com tradição na carreira militar, José Antonio Correa da Câmara
e Manoel Luís Osório ingressaram no exército ainda muito jovens, por volta dos 15 anos.
Manoel Luís Osório, natural da Vila de Nossa Senhora da Conceição de Arrôio, nasceu
em 10 de maio de 1808 e faleceu em 04 de outubro de 1879, na cidade do Rio de Janeiro.
Osório participou com grande destaque em diversos conflitos, como por exemplo, a
Guerra contra Oribe e Rosas (1851-1852). As suas contribuições com o Império,
aumentavam gradualmente a sua confiança e o seu prestígio político no Prata, bem como
a Corte. Como consequência disso, assume o comando do I Corpo do Exército Imperial
na Guerra do Paraguai e, após grande empenho, no ano de 1877, torna-se Marechal do
Exército.
José Antonio Correa da Câmara, o 2º Visconde de Pelotas, nasceu em Porto Alegre,
no dia 08 de Fevereiro de 1824 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1893. Ingressou na carreira
militar de forma voluntária, em 1839, atuou contra os farroupilhas e participou também
da guerra contra o Estado Oriental (1851-1852), bem como da Campanha do Uruguai
(1864-1865). Ao ingressar na Guerra do Paraguai, já possuía uma boa experiência em
campos de batalha, sustentando o posto de Tenente-Coronel. A atuação de Câmara, em
solo paraguaio, iniciou no ano de 1866, logo após, foi promovido a Coronel. Em 1868,
destacou-se em confrontos decisivos, chegando no mesmo ano, ao posto de Brigadeiro
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1288
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

do Exército. A participação de Câmara na Guerra do Paraguai chega ao fim quando tropas


sob o seu comando – uma escolta de cavalaria e infantaria – encontra e executa Solano
López, em 1º de Março de 1870. Esse desfecho, além de ter marcado o fim da Guerra do
Paraguai, torna-se um elemento importante no seu percurso de ascensão à esfera política
da Corte.
O desfecho da Guerra do Paraguai, em Cerro Corá, onde López foi encontrado, somado
a sua destacada atuação ao longo do conflito, possibilitou ao general Câmara a sua maior
integração a grupos políticos consideravelmente atuantes na política imperial. A
emergência política de Câmara e sua posterior chegada à Corte alinha-se a maior
participação dos sul-rio-grandenses na política imperial após o término da Guerra do
Paraguai (1864-1870), devido a maior facilidade de ocupação do poder político central
por indivíduos da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Isto é, o
encaminhamento, cada vez mais frequente das elites mineira e paulista aos seus
respectivos partidos republicanos, motivados por uma série de discordâncias referentes
ao centralismo político imperial, contribuiu decisivamente para a inserção mais frequente
dos sul-rio-grandenses nesse cenário.
Sendo assim, entende-se que a política e o Estado imperial brasileiro durante o século
XIX, foram constituídos e comandados por um grupo seleto de privilegiados. O
clientelismo e as práticas de favorecimentos, em vista disso, simbolizava, por um lado, a
ocupação de cargos ou funções político-administrativas, e, por outro, o amparo aos menos
favorecidos. Essas duas faces do clientelismo, por vezes, eram utilizadas na perspectiva
de estreitar os vínculos e de reduzir a amplitude existente entre as localidades e a Corte.
Assim, os indivíduos pertencentes à elite política, no período imperial, reconhecidos e
reverenciados em suas localidades, presenciavam o crescimento de sua clientela, da
“desigualdade socioeconômica dentro da província” e, cada vez mais, mantinham “a
permanência da sua posição de elite”. (VARGAS, 2008, p.45) Isto é, os membros da elite
política sul-rio-grandense, ao alcançarem certos cargos políticos, estabeleciam suas
formas de providenciar favores, concessões e, por conseguinte, aumentavam e
legitimavam os seus poderes locais. As disputas políticas, no interior da província, em
vista disso, também proporcionavam enfrentamentos de influência, de poder e de
favorecimentos entre os indivíduos da elite política.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1289
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Dessa forma, ao estudar o clientelismo no contexto oitocentista brasileiro, assim como


na tentativa de definir as manifestações marcantes dessas relações de sociabilidade, em
certa medida, pode-se visualizar algum descrédito por parte dos historiadores com relação
às eleições locais. A aparente não relevância e o grande descrédito à definição dos
postulantes ao Congresso, torna-se fundamental para essa interpretação. Entretanto, essas
eleições mediavam, avaliavam e evidenciavam a autoridade dos chefes locais.
(GRAHAM, 1997, p.17) Ou seja, as elites locais, buscavam por meio de sua autoridade,
aumentar a sua rede de dependência, que se manifestava de diferentes modos, mas,
sobretudo, por meio de suporte e de votos nas eleições realizadas nos potentados locais.
Em vista disso, valorizam-se na historiografia atual, locais e ocasiões que reafirmam os
laços de afetividade e de confraternização, isto é, momentos de aproximação entre os
indivíduos e/ou grupos que poderiam acontecer nos espaços urbanos, mas que, tratando-
se das elites, em grande parte, aconteciam por meio de jantares e de festas particulares.
(COMISSOLI, 2011)
Nesse sentido, José Antonio Corrêa da Câmara, como um sujeito que buscava seu
espaço dentro do cenário político, após anos envolvidos no conflito em terras paraguaias,
certamente, encontrava nesses espaços de sociabilidade uma boa oportunidade de
alinhavar compromissos ou intenções políticas futuras, reassegurando a boa convivência
com indivíduos pertencentes a sua sociabilidade. Desse modo, um dos principais
interlocutores de Câmara no período estudado, ou seja, entre 1869-1879, alinha-se à
figura de Manuel Luís Osório. Os seus diálogos, quase sempre, referendando assuntos
políticos, de certa forma, indicam uma considerável troca de informações que, se não
pressupõem um nível de intimidade maior, no mínimo, indicam uma certa coesão de
interesses entre os indivíduos.
Por essas razões, torna-se relevante frisar, também, que na própria província de São
Pedro do Rio Grande do Sul, nesse contexto, houve a ascensão do Partido Liberal a partir
de 1870, bem como o êxito desse partido nas eleições de 1872. Nesse sentido, certos
alinhamentos políticos, como o ingresso dos liberais progressistas no Partido
Conservador, enfraqueceram, no âmbito sul-rio-grandense, esse partido e, dessa forma,
acabou favorecendo a ascensão do Partido Liberal também no âmbito provincial.
(PICCOLO, 1992) Em correspondência do dia 12 de Janeiro de 1871, Osório exaltava o
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1290
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

êxito do Partido Liberal em algumas localidades da província, ao escrever a Câmara as


seguintes palavras: “Os nossos amigos do município de Jaguarão, vencerão as eleições
ali na cidade, no Herval e Arroio-grande e por isso o felicito” (12/01/1871) Fundo General
Câmara -IHRGS). Essa correspondência, em certa medida, reflete a própria ascensão do
Partido Liberal a partir de 1870, bem como o êxito desse partido nas eleições de 1872.
Ou seja, entende-se que o Partido Conservador, que permaneceu no domínio político
nacional até 1878, na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul não conseguiu superar
os conflitos internos decorrentes, sobretudo, da entrada dos liberais progressistas no
partido. Tais conflitos refletiram-se na estruturação de dois grupos dentro do partido, de
um lado, "os ‘lobos", representavam os conservadores "puros" e os "cordeiros", de outro
lado, simbolizados pelos "progressistas”. (PICCOLO, 1992) Em resumo, os problemas
internos dos conservadores, assim como a própria dissolução da Câmara dos Deputados,
por decreto imperial do dia 22 de Maio de 1872, viravam assunto também entre Câmara
e Manuel Luís Osório, ambos pertencentes ao Partido Liberal, como fica claro na seguinte
missiva do dia 23 de Maio de 1872, remetida por Osório ao amigo Câmara:
As manadas de lobos e cordeiros se tem achado em perfeita guerra: pelo
incluso telegrama verás, que os filhos da polícia, com o título de
representantes da Nação, foram esparramados na Côrte. Além do
telegrama da dissolvição da Câmara dos Deputados, nada mais se sabe;
nem a causa que o fez esparramar os rebanhos. Sempre às suas ordens
para seu serviço achará-me. ( 23/05/1872) (Fundo General Câmara -
IHRGS).
Portanto, dentro de um contexto marcado pela prática de favorecimentos políticos,
acredita-se que a relação de reciprocidade entre José Antonio Correa da Câmara e Manuel
Luís Osório, constituída na esfera militar em larga escala transcende este limite e passa a
favorecer no processo de escalada política de José Antonio Correa da Câmara. Ou seja,
salienta-se a relação constituída por Câmara e Osório nos anos finais da Guerra do
Paraguai, bem como dos anos posteriores ao conflito. Também procura-se entender em
que medida a relação entre Câmara e Osório auxilia no processo de emergência política
do Visconde de Pelotas, levando em consideração a relevância de Osório no cenário
político sul-rio-grandense e a sua maior facilidade de inserção nos assuntos políticos da
Corte, principalmente, após o grande empenho e os esforços dispostos por Osório às
tropas do exército imperial. Assim, a busca por um lugar no estreito cenário político do

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1291
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

século XIX, por membros da elite, de certo modo, não significava apenas o simples desejo
e a necessidade de representação com relação ao governo imperial. Pelo contrário,
simbolizava a “expectativa dos seus familiares, das suas clientelas e dos seus eleitores e
aliados políticos” pela diminuição da amplitude existente entre as suas localidades e a
Corte. (VARGAS, 2008, p.55-56)
Em missiva do dia 12 de Janeiro de 1872, da cidade de Pelotas, assim como nas cartas
supracitadas, de mesmo contexto, o general Osório mostrava ao general Câmara a sua
preocupação com os alinhamentos políticos da província e, além disso, sugeria a
introdução do colega nas próximas eleições. “Diga-me francamente se lhe parece que
devemos ou não tratar de eleições futuras e que providências tem tomado a respeito o
centro liberal de Porto Alegre” (12/01/1872) (Fundo General Câmara -IHRGS). As redes
de sociabilidades, em vista disso, uniam-se com o objetivo de elevar membros de sua
convivência ao cenário político. Tal conquista, lhes concederia “acesso mais qualificado
ao núcleo político do Império e lhes conferia o poder de captar recursos materiais (terras,
escravos, animais, cargos, dinheiro) e imateriais (títulos, favores e prestígio social) para
as suas províncias” (VARGAS, 2008, p.46)
Em outras palavras, neste trabalho ressalta-se a relevância dos documentos pessoais,
em especial, as correspondências pessoais, para o estudo dos indivíduos na história. Sobre
essa questão, Ângela de Castro Gomes, em uma de suas contribuições acerca da escrita
de si, aponta que “o documento não trata de ‘dizer o que houve’, mas de dizer o que o
autor diz que viu, sentiu e experimentou, retrospectivamente, em relação a um
acontecimento.” (GOMES, 2004, p.14) Exemplo disso, pode-se visualizar através de
trecho da correspondência enviada por Manuel Luís Osório ao Visconde de Pelotas, no
dia 24 de Abril de 1872, no qual o remetente, como sugerido por Gomes, como um
expectador do seu tempo, avalia a conjuntura política, próxima às eleições, da seguinte
forma: “[...] Sinto com efeito que os conservadores tem tanto o trabalho de
desacreditarem-se uns aos outros e neste estado só a preguiça dos nossos os pode salvar.”
(24/04/1872) (Fundo General Câmara - IHRGS)
Assim, entendidas não apenas como objeto de aproximação entre os atores históricos,
as correspondências desnudam características, posturas e interpretações dos seus
remetentes, muitas vezes, não observadas pelos historiadores ao trabalharem com outras
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1292
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

fontes documentais. A prática epistolar, nessa perspectiva, anuncia a própria dinâmica de


transformações que ocorre no transcorrer das trajetórias pessoais, as diferentes facetas
que são assumidas ao longo da vida de um indivíduo pertencente ao seu tempo histórico,
dividido entre os espaços de trabalho e de sociabilidade. Dessa forma, o estudo de cartas
pessoais, de caráter íntimo, como o próprio título indica, expressam relações diversas,
muitas vezes, carregadas de desejos e de interesses prévios, dispostos de forma intrínseca
nos documentos. (GOMES, 2004)
Retornando, em certos aspectos, os favorecimentos aos membros de sua
sociabilidade, devido ao grande prestígio de Manuel Luis Osório, em certa medida, já
eram praticados por ele antes mesmo de sua chegada à Corte. A exemplo disso, ressalta-
se novamente trecho da correspondência do dia 24 de Abril de 1872, no qual Osório
assegura ao amigo Visconde de Pelotas: “[...] Eu tenho estado aqui as ordens dos nossos
amigos para receber e dirigir para a Corte os serviços das qualificações e não estou tão
forte para viagens longas agora” (24/04/1872) (Fundo General Câmara - IHGRS). Ou
seja, Osório buscava, mais uma vez, reestabelecer os nós de sua sociabilidade e realinhar
favorecimentos e/ou apoios futuros.
Por conseguinte, entende-se que o estudo da ascensão política de José Antônio Correa
da Câmara, em certa medida, evidencia aspectos próprios da dinâmica política que
caracteriza o século XIX, ao mesmo tempo que expõe elementos singulares do passado.
Sendo assim, ressalta-se que a sua emergência nesse âmbito, elevou-o a uma posição de
liderança dentro do Partido Liberal, alcançando cargos políticos no governo imperial,
como Ministro da Guerra, do gabinete liberal de Saraiva e senador liberal, entre
18801889. Já na República, tornou-se o primeiro Presidente do Estado do Rio Grande do
Sul (15/11/1889 – 11/02/1890).

FONTES MANUSCRITAS
Correspondências recebidas por José Antônio Correa da Câmara. Fundo General
Câmara do (IHGRS).
Correspondências remetidas por José Antônio Correa da Câmara a Manoel Luís Osório
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
FONTES IMPRESSAS
CAMARA, Rinaldo Pereira da. Marechal Câmara: sua vida militar (v. 2). Porto
Alegre: Livraria do Globo, 1970.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1293
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CAMARA, Rinaldo Pereira da. Marechal Câmara: sua vida política (v. 3). Porto
Alegre: Livraria do Globo, 1979.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMADO, Janaína; FERRERA, Marieta de Moraes (orgs.). Usos e abusos da história
oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996.
CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem : a elite política imperial e
Teatro das Sombras: a política Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
_________________________.Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma
discussão conceitual. Dados, v. 40, n. 2, 1997. Em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581997000200003
CHARLE, Christophe. Como anda a história social das elites e da burguesia? Tentativa
de balanço crítico da historiografia contemporânea. In: HEINZ, F. (org.). 2006. Por outra
História das Elites. Rio de Janeiro : FGV.
COMISSOLI, A. A serviço de Sua Majestade: administração, elite e poderes no
extremo meridional brasileiro (1808c.-1831c.). Rio de Janeiro, RJ. Tese de Doutorado.
PPGHIS-UFRJ, 2011.
COMISSOLI, Adriano; COSTA, Miguel Ângelo da. Estrelas de primeira grandeza:
reflexões sobre o uso de redes sociais na investigação histórica. MÉTIS: história &
cultura – v. 13, n. 25, p. 11-30, jan./jun. 2014.
DORATIOTO, Francisco. General Osório: a Espada Liberal do Império. Companhia
das Letras, 2008.
DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
FERTIG, André; GRÜNDLING, Guilherme. O General Câmara na Guerra do
Paraguai através de suas correspondências. ESTUDIOS HISTORICOS, Uruguay,
Año V, Nº 10, Julio 2013.
FERTIG, A. A. . 'Minha querida Maria Rita': o General Câmara na campanha do
Uruguai (1864-1865) através de cartas a esposa. Revista Brasileira de História &
Ciências Sociais, v. 4, p. 231-245, 2012.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1294
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

FRANCO, Sérgio da Costa. Dicionário político do Rio Grande do Sul (1821-1937).


Porto Alegre: Suliani Letra&Vida, 2010.
GOMES, Angela Maria de Castro (Org.). Em família: a correspondência de Oliveira
Lima e Gilberto Freye. Campinas: Mercado das Letras, 2005.
GOMES, Angela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Ed.
FGV, 2004.
GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro:
UFRJ, 1997.
HEINZ, Flávio M. (org.). Por outra história das elites. Rio de Janeiro:Editora FGV,
2006.
HEINZ, Flávio M. Considerações acerca de uma história das elites. Revista Logos
(ULBRA). Canoas: v. 11, nº 01, maio, p. 41-52, 1998.
IMÍZCOZ, José Maria. Actores, redes, procesos: reflexiones para una historia más
global. Revisa da Faculdade de Letras- História, III Série, volume 5, Porto, 2004.
IMIZCOZ, José Maria. Actores sociales y redes de relaciones: reflexiones para uma
historia global. In: Redes familiares y patronazgo: aproximación al entramado
social del País Vasco y Navarra en el Antiguo Régimen (siglos XV-XIX). Bilbao:
Universidad del País Vasco, 2001.
IZECKSOHN, Vitor. “A Guerra do Paraguai”. In: GRINBERG, Keila
e SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil Imperial, v II: 1831-1870. Rio de
Janeiro:Civilização Brasileira, 2009.
LEMOS, Renato. Bem traçadas linhas: a história do Brasil em cartas pessoais. Rio de
Janeiro: Bom Texto, 2004.
LEVI, Giovani. “Usos da biografia”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO,
Janaína (Org.). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
LEMOS, Renato. Cartas da Guerra: Benjamin Constant na Campanha do Paraguai.
Rio de Janeiro: IPHAN; Museu Casa de Benjamin Constant, 1999.
MALATIAN, Teresa. “Narrador, registro e arquivo”. In: PINSKY, Carla e LUCA, Tania
(orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1295
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre


política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Tese de Doutorado. Rio
de Janeiro: PPG em História Social do IFCS-UFRJ, 2005.
NORONHA, Andrius. ANÁLISE TEÓRICA SOBRE A CATEGORIA “ELITE
POLÍTICA” E SEU ENGAJAMENTO NAS INSTITUIÇÕES DA COMUNIDADE
REGIONAL. Barbarói. Santa Cruz do Sul, n. 29, jul./dez. 2008.
PICCOLO, Helga. Vida política no século 19. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1991.
PORTO ALEGRE, Aquiles. Homens Ilustres do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
Erus, s/d.
REMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de janeiro, Ed. FGV, Ed. UFRJ,
1996.
SCHMIDT, Benito Bisso. A biografia histórica: o “retorno” do gênero e a noção de
“contexto”. In: Guazzeli, C.; PETERSEN, S.; SCHMIDT; XAVIER, R. Questões de
teoria e metodologia da história. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2000.
VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a corte: uma análise da elite política do
Rio Grande do Sul (1868-1889). Porto Alegre: UFRGS – PPGH, 2007. (Dissertação de
Mestrado)
VARGAS, Jonas. Marechal, marquês e senador. Política, nobreza e guerra no
Segundo Reinado a partir da trajetória do general Osório (1808-1879). História:
Debates e Tendências – v. 10, n. 2, jul./dez. 2010.
VARGAS, Jonas Moreira. “O círculo dos Grandes”. Os mediadores políticos e as famílias
de elite no Rio Grande do Sul (1868-1889). In: MILDER, Saul Eduardo Seiguer.(org.).
Recortes da História Brasileira. Porto Alegre: Martins Livreiro-Editor, 2008.
VENANCIO, Giselle Martins. Presentes de papel: cultura escrita e sociabilidade na
correspondência de Oliveira Vianna. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 28, 2001.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1296
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para o bom acolher, reformas! A Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores entre os
anos 1942-1952.
GUILHERME DOS S. C. MARQUES
PPGHS/UERJ-FFP. FAPERJ

A imigração representou em finais do século XIX e início do século XX elemento


fundamental da política imperial e republicana no Brasil. Tal período conhecido como “A
Grande Imigração” é marcado pelo deslocamento de milhões de europeus em direção aos
portos nas Américas. Estima-se que cerca de 31 milhões de europeus tenham
desembarcado no “Novo Mundo”.
É nesse quadro que se fomenta intensos debates acerca da recepção de tais levas,
que contava com apoio e patrocínio dos governos que buscava os atrair. Nesse sentido,
Vidal e Chrysostomo (2014) indicam que houve a necessidade de intervenção direta das
autoridades públicas, instituindo dispositivos administrativos para o controle e registro
dos imigrantes que chegavam em seus territórios. Desse modo, por toda a costa do
continente, dos Estados Unidos à Argentina, foram criadas tais estruturas, como as
hospedarias de Ellis Island (EUA), Hotel de los Inmigrantes (Argentina) e as Hospedarias
da Ilha das Flores e do Brás no Brasil (COSTA, 2015:39).
A Hospedaria da Ilha das Flores passou por diversas e diferentes intervenções em
sua estrutura durante seu período de funcionamento (1883-1966). Em 1907, por exemplo,
verificou-se a construção de mais três alojamentos para atender a demanda crescente de
imigrantes que ingressava naquele espaço, além de outros melhoramentos637. Esta seria a
última grande intervenção estrutural na hospedaria, de modo que no período entre guerras
nenhum movimento deste foi verificado.
Porém, diferentemente do que fora pensado para sua estrutura, o ano de 1942
marca a divisão do espaço da hospedaria com a instalação do presídio de guerra em parte
dos prédios dos alojamentos. A partir de então, verificamos que apenas pequenas
reparações continuavam sendo realizadas, a fim de manutenção do espaço. O resumo das

637
Além dos alojamentos, destacamos a construção de uma caixa d’água com capacidade para 400 mil
litros, que veio a solucionar o problema de falta na hospedaria; assim como a construção de dois tanques
biológicos visando o tratamento do esgoto produzido na hospedaria.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1297
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

atividades do período é enfático nesse sentido, sintetizado, como no ano de 1944, apenas
em “obras de vulto não foram iniciadas neste ano” (BRASIL, 1944).
Entendemos que a utilização do espaço da Hospedaria para fins prisionais
acarretou na deteriorização da própria estrutura de recepção ali existente, daí a uma
subutilização da hospedaria. As áreas não utilizadas com o mesmo vigor de outrora se
tornariam obsoletas gerando a necessidade de um novo incentivo e encaminhamento de
reformas e reconstruções na Hospedaria para a recepção das levas de imigrantes, com
destaque aos refugiados de guerra, que se anunciava com o término do conflito.
É na esteira dessas preocupações que, ainda no período de guerra, em 1942, o
presidente do Departamento Nacional de Imigração (DNI), o Sr. Henrique Dória de
Vasconcelos, retoma a Hospedaria da Ilha das Flores como centro dos debates sobre a
política imigratória. Em sua exposição ao ministro do Trabalho, Dória de Vasconcelos
deixa clara a necessidade de se intervir na Hospedaria, reaparelhando-a com o que há de
mais moderno para, além de reativar o centro administrativo de recepção do governo,
proporcionar conforto aos imigrantes em suas funções de recepcionar, alojar e
encaminhar (VASCONCELOS, 1942).
Para o fim de recepção e alojamento do afluxo que se avistava “após a guerra”,
segundo a exposição de Dória de Vasconcelos, as instalações da Hospedaria da Ilha das
Flores seriam suficientes e adequadas para hospedar durante seis dias, tempo previsto na
legislação. Todavia, a própria exposição contesta tal ponto de vista quando denota que
apenas 1.129 leitos estão disponíveis ao uso, distribuídos nos pavilhões 1, 2 e 4; estando
o pavilhão 3 “imprestável”. A este quadro, acrescenta que tão somente o pavilhão 4 estaria
em condições totalmente adequadas à recepção, estando de acordo com as exigências
requeridas para a hospedagem de imigrantes, tendo neste tão somente 369 leitos
(VASCONCELOS, 1942:41).
Seguindo o pensamento de Dória de Vasconcelos, era necessário um plano de
reformas das instalações presentes na Ilha para transformá-la numa “Hospedaria
moderna”. Através da comissão do Departamento, ficou constatada a necessidade de
obras e reformas nas seguintes edificações: cais de desembarque, pavilhão de recepção e
administração, refeitório e alojamentos de casais, cozinha e copa, pavilhão sanitário,
pavilhão de alojamento, pavilhão clínico, residências de funcionários, pavilhão de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1298
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

isolamento e as instalações de água e esgoto. Além destas, fica proposto na exposição a


construção de uma escola e de mais duas casas para funcionários.
Decerto, não podemos deixar de analisar o relatório de Dória de Vasconcelos, e
publicado pela Revista de Imigração e Colonização, a partir de seu viés político e os usos
que o então presidente do Departamento Nacional de Imigração poderia fazer com este.
As cobranças por melhorias estruturais, além das várias páginas na qual ressalta a
centralidade da Hospedaria nos processos de recepção em anos predecessores,
acreditamos, deve ser vista como um alerta sobre a funcionalidade daquele espaço.
Nesse sentido, não nos surpreende que o conteúdo de seu relatório se estruture
desta forma, afinal, 1942 foi justamente o ano de instalação do presídio dos
“quintacolunistas” nas antigas estruturas de recepção, acarretando uma subutilização do
espaço. Assim, nos parece crível que, politicamente falando, a exposição do presidente
do DNI visa fomentar o debate sobre a recepção, afinal a Ilha das Flores era a única
hospedaria oficial do governo brasileiro.
Decerto, o término do conflito trazia as mazelas geradas pela guerra, para além
dos milhares de mortos, pessoas deslocadas de seus locais originários, cidades destruídas,
dificuldades de reconstrução da vida dos sobreviventes. A imigração surgia, nesse quadro,
como importante alternativa à Europa devastada, ainda mais se somarmos àqueles que se
recusavam a retornar aos seus países de origem, sejam porque não mais existiam, seja
porque estavam agora sobdomínio de outra potência638.
No que se refere à legislação, no ano de 1945 seria promulgado o Decreto-Lei
7.967. Este decreto dispunha sobre a imigração e colonização, e se fazia necessária pois
que, como ressaltada no primeiro parágrafo deste, pois cessada a guerra mundial, dever-
se-ia imprimir a política imigratória do Brasil uma orientação racional e definitiva, que
atendesse os interesses nacionais, promovendo a defesa do trabalhador nacional, mas
igualmente atentando a imigração como fator de progresso ao país (BRASIL, 1945).
O artigo 38 do decreto supracitado versava sobre o processo de imigração dirigida,
categoria na qual os refugiados de guerra estariam inseridos. Afinal, a imigração dirigida
se desenvolvia a partir da seleção dos imigrantes em seu local de origem. Nesse artigo,

638
Nesse específico, nos referimos, em grande parte, a anexação de países do leste europeu pela União
Soviética (URSS).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1299
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

dispunha-se que a imigração dirigida, sendo esta feita pelo poder público, empresa ou
particular, promoveria a introdução dos imigrantes, os hospedando até os localizar em
seus destinos (BRASIL, 1945). Não obstante, o espaço receptivo, ainda que não
nominalmente descrito, mas que se caracteriza como o único oficial da União, era a
Hospedaria da Ilha das Flores.
No mesmo ano da promulgação do decreto-lei, um dos mais importantes jornais
cariocas noticiava que o Ministério do Trabalho havia autorizado a realização de obras na
Hospedaria. Como manchete, o Diário de Notícias (1945:4) direcionava que tais
empreendimentos tinham em vista o aproveitamento da “excepcional oportunidade que a
guerra está a abrir, de obtenção de uma volumosa e selecionada corrente imigratória”.
Assim, em meio a tantas mudanças na política imigratória, não surpreende que em
1946 a Revista do Comércio (1946) realizou uma mesa redonda com notáveis nomes da
política imigratória nacional, estando dentre eles: Artur Hehl Neiva (primeiro delegado
da Comissão de Seleção de Refugiados na Europa, seria nomeado em outubro de 1946),
Péricles de Carvalho (diretor do Departamento Nacional de Imigração) e João Martins de
Almeida (diretor da Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores), entre tantos outros
especialistas. O tema da mesa era sugestivo em um período que se anunciava a presença
de agricultores e técnicos espalhados por toda a Europa, enfim, questionavam-se: “O
Brasil Precisa de Imigrantes?
Nesse momento, nos deteremos apenas em um pequeno trecho de todo o debate.
A questão levantada pela mesa, e direcionada para João Martins de Almeida então diretor
da Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores, se referia ao problema da recepção e
hospedagem dos imigrantes e sua estreita relação à presença ou ausência de
aparelhamento para triagem sanitária destes nos serviços de hospedagem do país. A
resposta do então diretor da hospedaria de imigrantes chama a atenção por dois motivos.
Primeiro, ainda que passados quatro anos do debate levantado por Dória de Vasconcelos,
nada havia mudado significativamente no cenário da estrutura de recepção imigratória no
Rio de Janeiro. Segundo, Martins de Almeida já estava como diretor da hospedaria havia
oito anos, e compreendia as demandas para uma boa recepção por dentro do sistema, quer
dizer, vivia as dificuldades e necessidades de reaparelhamento da instituição que dirigia.
Nesse sentido, transcrevemos sua resposta:
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1300
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nosso serviço [quanto à recepção] consiste, principalmente, em


submeter o imigrante a uma triagem.
Em verdade, o Brasil no momento não dispõe de uma estação sanitária
em condições para proceder a essa seleção. O imigrante, ao chegar,
deve ser submetido a um exame bastante rigoroso, complementar do
que se presume ter sido feito no país de origem. [...] No momento,
depois de uma guerra tão cruel e devastadora, não sabemos qual seja
sua situação no particular [do imigrante].
No Rio de Janeiro, o Governo cogita de estabelecer uma estação
sanitária marítima, convenientemente aparelhada com técnicas
modernas, para fazer aqui o papel de filtro final (REVISTA DO
COMERCIO, 1946:25).

O primeiro elemento a ser destacado é a ideia de que o próprio serviço de recepção


e alojamento na Hospedaria estava inserido nos processos de triagem. Por triagem,
entende-se aqui enquanto sinônimo de seleção, neste caso do ponto de vista da saúde, se
encaixa a proposta feita por Dória de Vasconcelos quatro anos antes. Todavia, a
continuidade de sua resposta nos aponta a inexistência de qualquer iniciativa por parte do
governo em atender a exposição que fora realizada anteriormente. Seja na Ilha das Flores,
ou nas proximidades do Rio de Janeiro, a construção de uma estação sanitária continuava
tão somente como um projeto, afinal, como ressalta Martins de Almeida, “há tempos
existiu um serviço rápido na Ilha das Flores, deficientemente aparelhado”, mas nada havia
naquele momento (REVISTA DO COMERCIO, 1946:25).
Já em novembro de 1946 o jornal A Noite (1946) lança uma reportagem sobre a
Conferência dos secretários de agricultura dos estados brasileiros para debaterem a
política imigratória, seus problemas e potencialidades. O maior problema observado seria
a dispersão administrativa da questão imigratória em diversos Ministérios e seus
respectivos órgãos executivos, ademais, acrescentavam, urgia a necessidade de término
das reformas já iniciadas na Hospedaria da Ilha das Flores. Interessante observar que a
notícia estava exatamente nas mesmas páginas de uma reportagem sobre as atividades
realizadas pela Comissão de Seleção do Brasil ora na Europa, explicando ainda que os
interesses do Brasil estavam em pessoas qualificadas, fossem agricultores ou técnicos
industriais (HAEGER, 1946).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1301
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Essa estrutura do jornal supracitado deve ser encarada como uma técnica de
diagramação buscando passar ao leitor que todos os setores que compunham a política
imigratória de então, com destaque a imigração dirigida dos refugiados de guerra,
estavam em perfeito diálogo. Em consonância, os responsáveis pela imigração em âmbito
estadual mostravam suas preocupações e ideias para que se pudessem aproveitar, ao
máximo, as levas que ora se anunciavam. Ao fim desta reportagem, os secretários ainda
indicam que se poderia criar uma estrutura de informação, anexa às Hospedarias,
“convenientemente aparelhada de modo a permitir que os imigrantes sejam informados
previamente das condições dos contratos que irão firmar com os empregados ou empresas
de colonização” (A NOITE, 1946:3).
As maiores transformações na estrutura da Hospedaria visando à recepção e
acolhimento dos refugiados de guerra começam a ganhar fôlego a partir de fins de 1946
e início de 1947. Pois, é a partir da experiência da chegada das primeiras levas que de
fato se vê a necessidade de transformações. Afinal, foi em princípios de 1947, mais
especificamente em março, que se iniciou o recebimento de cotas de refugiados, através
do Acordo de Londres de 1946, por imigração dirigida. É exatamente neste ano que se
registra a entrada de 3500 refugiados (FIGUEIREDO, 1948).
Notadamente, a questão da recepção na Ilha das Flores foi igualmente abordada
por Hehl Neiva, quando da publicação de extenso material após seu desligamento como
delegado da Comissão de Seleção na Europa. Publicado em 1949, atesta Neiva que
enquanto permaneceu na Europa, entre fins de 1946 e agosto de 1947, não se preocupava
com a questão da recepção a qual o Conselho de Imigração e Colonização (CIC) deveria
se ocupar e lhe passar as informações. Porém, tais estudos não foram desenvolvidos,
verificando apenas na prática da recepção as necessidades do espaço. Neiva afirmava que
com o recebimento das primeiras levas imigratórias, o Brasil, “que todo mundo diz poder
receber centenas de milhares de imigrantes”, via seu aparelho imigratório engasgar com
pouco menos que 2.000 refugiados. A este fato, imputa ainda ao diretor do DNI a
declaração “estar a Ilha das Flores abarrotada e que eu [Hehl Neiva] não tinha a menor
consideração, pois lhe mandava novo navio com perto de 900 imigrantes” (NEIVA,
1949:76).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1302
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para tanto, o DNI em ambos os anos, realizou uma série de intervenções na


Hospedaria que, segundo o ministro Figueiredo, ligavam-se ao auxílio e recepção. As
obras de readaptação e reaparelhamento da Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores,
em seu total, chegavam à importância de Cr$ 1.500.000,00. As obras foram realizadas em
duas frentes. A primeira delas ocorreu entre julho e dezembro de 1946 para abrigar as
primeiras levas de imigrantes dirigidos, consumindo Cr$ 1.000.000,00. Todavia estas
intervenções foram feitas em caráter emergencial, consistindo na construção de uma
câmara provisória de expurgo; reforma e adaptação do pavilhão sanitário; limpeza e
pintura do pavilhão nº4, que passou por uma modificação geral, reforma do hospital Dr.
Mário Toledo, reparos gerais e pintura dos pavilhões nº 1 e 2, bem como pintura a óleo
de 1000 camas de ferro.
A segunda frente das reformas e readaptações realizou-se no ano de 1947, porém
com uma diferença em relação ao do ano anterior. Esta ocorreu por administração e o
contrato fora entregue à firma Boeckel Grazon & Cia Ltda, que vencera a primeira
concorrência. Com a aprovação do Plano de Obras, as seguintes modificações foram
mandadas executar pela Comissão de Obras:

1. Reforma integral do Pavilhão 3, de acordo com o anteprojeto e com


grandes melhoramentos, sobre este, nas instalações elétricas e
hidráulicas;
2. Reforma do Pavilhão 4, de acordo com o anteprojeto,
acrescentando-lhe um segundo pavimento, obra atacada em uma
terça parte, correspondente à cabeceira sul do pavilhão e melhorada
em relação ao anteprojeto, tanto nas instalações elétricas e
hidráulicas, como na estrutura de concreto armado, que foi preciso
erigir desde as fundações, uma vez que as paredes existentes não
poderiam suportar o segundo pavimento. Foi necessário projetar,
detalhar, calcular a estrutura e especificar todos os serviços;
3. Construção do depósito para combustíveis na Ilha do Ananás;
4. Construção de uma das 3 residências para funcionários constantes
do plano de obras, confortável e moderna, que está em fase de
acabamento;
5. Construção da nova cozinha, lavanderia, rouparia e refeitório para
empregados e passageiros, obra cujo anteprojeto não se adaptava à
topografia do terreno, pelo que foi necessário fazer um
levantamento topográfico bem como um novo projeto. Resultou
desse trabalho o aproveitamento do subsolo para a instalação da
secção úmida da lavanderia, das caldeiras, máquinas frigoríficas e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1303
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

padaria, tendo sido levantados muros de arrimo e caminho do


acesso às dependências do subsolo;
6. Reforma da rede de esgotos sanitários, cuja situação era deplorável,
tornando-se necessário rever o projeto existente e adaptá-lo às
condições reais do terreno;
7. Construção de uma fossa, cujos trabalhos se acham adiantados, com
capacidade para a serventia de 3000 pessoas;
8. Construção do entroncamento, trabalho dos mais difíceis, em vista
da dificuldade de se obterem embarcações para transportes de
pedras e de guindastes marítimos (FIGUEIREDO, 1948:13).

O primeiro ponto refere-se à reforma do pavilhão 3, o mesmo que, em 1942, foi


adjetivado por Dória de Vasconcelos como imprestável. Sendo uma reforma de grande
amplitude, com melhoramentos na parte hidráulica e elétrica. Ainda assim, não nos
afigura que tal obra tenha gerado uma utilização ostensiva durante a recepção dos
refugiados de guerra pela não modernização dos alojamentos e tão somente obras gerais
de manutenção.
O segundo ponto discriminado refere-se ao melhoramento da estrutura do
pavilhão 4, localizado na parte sul da Ilha das Flores. O acréscimo de seu pavimento vem
ao encontro do que dizia Dória de Vasconcelos cinco anos antes. Se à época este era o
edifício que melhor condição apresentava, com a construção do segundo pavimento tinha
sua utilização sobremaneira melhorada.
Os pontos 3 a 5 referem-se a intervenções que possibilitariam uma melhoria nos
serviços através do próprio corpo funcional da Ilha. O depósito de combustíveis na Ilha
dos Ananás servia igualmente como oficina das embarcações que faziam o trajeto entre a
Ilha das Flores e a Praça XV, no Rio de Janeiro.
Já os pontos 6 e 7 da exposição ratificam que as intervenções realizadas no início
da década, nos anos de 1940 e 1941, não foram suficientes para atender a demanda de um
“serviço moderno” de acolhimento, tanto assim que o ministro qualifica a rede de esgoto
como “deplorável”. Outro fato a ser observado é que a fossa construída fora planejada
para comportar 3000 pessoas, o que nos dá um indício de que havia um planejamento de
aumento da capacidade de hospedagem, tendo em vista que, naquele momento, haviam
em boas condições cerca de 1200 leitos.
Todavia, parece que as reformas não ocorreram como a apresentada pelo ministro,
ao menos para a imprensa oposicionista. Pois, o jornal Diário Carioca (1947:7),
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1304
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

concomitante as ocorrências das obras de reforma e reaparelhamento da Hospedaria,


informava que “alojamentos especiais” estavam sendo preparados para receber os 860
refugiados que trazia o navio norte-americano General Sturges. A utilização do termo
“alojamentos especiais” por si só denota que os alojamentos disponíveis, ou que mesmo
passavam por reformas, não estariam de acordo às modernas normas de recepção,
prefigurando um quadro de oposição ao relatório apresentado pelo ministro do Trabalho.
O debate pela readaptação da Hospedaria prossegue através dos anos analisados,
sem que se tenha uma mudança no discurso e mensagem dos periódicos. Em 1949, por
exemplo, a Gazeta de Notícias (1949:2) realizou uma reportagem com o então presidente
do DNI, Carlos Viriato Saboia, e este informava que as obras de ampliação da Hospedaria
da Ilha das Flores, infelizmente, não se achavam concluídas. Desse modo, ainda que se
abrigassem 2400 pessoas, a real capacidade estaria estagnada em 1500.
O jornal A Noite (1949:4) em março, ou seja, um mês após as reportagens feitas
pela Gazeta de Notícias (1949:2), rapidamente lançava uma nota em seu matutino
informando que o ministro do Trabalho havia designado o presidente do DNI, Carlos
Saboia, o diretor geral do departamento de Administração, Olavo Siqueira e Stelio Morais
para comporem uma comissão, sob a liderança de Saboia, a fim de administrar, orientar
e fiscalizar as obras de readaptação da Hospedaria da Ilha das Flores. Mais uma vez, uma
comissão fora escolhida para as tais readaptações que vinham sendo discutidas desde
1942 e, comissões após comissões, não haviam se concretizado.
Ademais, é interessante notar que o próprio A Noite (1949:10) realiza uma
reportagem com o seguinte título “14 mil os imigrantes que o Brasil recebeu nos últimos
quatro anos”. Nela, o jornal procura realizar um panorama positivado dos processos de
seleção e recepção dos deslocados e refugiados, a partir da visita da comissão mista
Brasil-OIR, com a presença de Viriato Saboia, presidente do DNI, Afonso Bandeira de
Mello, ex-presidente do DNI, Hélio Lobo, representante do Brasil e vice presidente da
OIR, e D. Stansby, representante da Organização no Brasil. Em um tom claramente de
defesa das ações do governo, transcrevemos abaixo as partes mais enfáticas do
depoimento de Bandeira de Mello à reportagem do A Noite:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1305
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Devo confessar que, devido às notícias divulgadas sobre a instalação


daqueles refugiados, esperava encontrar coisa muito diferente do que
realmente vi, porquanto fui agradavelmente surpreendido pelas
excelentes acomodações existentes na Hospedaria, onde há ordem,
disciplina e espírito de cooperação e de solidariedade entre a
administração e os refugiados.
Ao contrário do que pensava observar tive também a melhor impressão
dos refugiados de diversas nacionalidades, compostos de homens sãos,
robustos e bem constituídos, parecendo satisfeitos de terem sido
acolhidos com simpatia no Brasil [... (A NOITE, 1949:10).

Pelo trecho acima transcrito, percebemos que os argumentos mobilizados não se


direcionam para a estrutura das instalações presentes na Hospedaria. Na verdade, exalta-
se a “boa instalação” a partir do espírito de colaboração e cooperação da administração e
os refugiados.
Em maio de 1949 aconteceu a I Conferência Brasileira de Imigração e
Colonização, em Goiânia. Nela, o então recente ex-diretor da Hospedaria de Imigrantes
da Ilha das Flores, João Martins de Almeida, apresentava seu trabalho, que posteriormente
foi publicado pela Revista de Imigração e Colonização em 1951, intitulado “Hospedarias
de Imigrantes” (ALMEIDA, 1951). Nela, destacava o papel desempenhado pela
hospedaria na recepção e acolhimento, verificando necessidades e indicando caminhos de
reestruturação na Ilha das Flores. A partir deste, fica-nos ainda mais claro o papel
desempenhado por este, e a necessidade, à época, de reaparelhamento e adaptação para
receber as levas de deslocados e refugiados.
Ressalta, logo de início, que a Hospedaria da Ilha das Flores voltou à centralidade
dos debates em torno das políticas imigratórias justamente pelo ressurgimento do
movimento imigratório internacional, mas que ainda apresentava, em 1949, deficiências
nas questões de alojamento e hospedagem (ALMEIDA, 1951:16).
Almeida define quais seriam as atividades desenvolvidas por uma hospedaria,
estabelecendo um tripé baseado na recepção, assistência e hospedagem, sendo o primeiro
contato do “alienígena” com o país que o recebe. Deste modo, a primeira impressão, e a
influência psicológica que esta poderia ter sobre o imigrante, são de valor inestimável,
afinal serviria de norte quanto aos hábitos de higiene e trabalho e o sentido de ordem e
moralidade. Nesse sentido, destaca que a adaptação e, ainda mais importante, a
assimilação se inicia nesse primeiro contato, destacando ainda que, “Este aspecto em

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1306
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

relação ao imigrante hodierno é de grande importância, pois estamos recebendo


indivíduos já em nível cultural mais elevado, donde a capacidade de observação ser maior,
e as suas reações se verificarem de modo expressivo” (ALMEIDA, 1951:17).
Almeida destaca que como ponto inicial de recepção, a hospedaria deve dispor de
uma área suficientemente capaz de receber todos os dispositivos necessários para
indispensável acolhida, de maneira cordial e disciplinada. Assim, os serviços a serem
executados na hospedaria, destaca, são de recepção, reexame médico, registro,
identificação, classificação, hospedagem, assistência médica, assistência social e
religiosa, seção de colocação e encaminhamentos além da administração em geral
(ALMEIDA, 1951:21).
Igualmente, destaca o serviço de alimentação como de importância capital na
hospedaria, e suas dependências, como cozinha, copa, refeitório, devem ter um caráter
técnico, para o êxito da tarefa de acolhimento e, sobretudo, assimilação.
Os alojamentos, por seu turno, deveriam estar providos de bom sistema de
abastecimento de água, de instalações sanitárias e de luz, capazes de atender as demandas
da higiene, fiscalização e segurança, sem esquecer os depósitos para malas. Essa é a
descrição de uma hospedaria e serviços de alto padrão (ALMEIDA, 1951:23).
Lembremos, porém o que Almeida (1951:25) relata logo no início de seu artigo,
que a Hospedaria da Ilha das Flores não se encontrava ainda em condições perfeitas para
a boa execução dessas atividades. Ainda assim, previa que este espaço receptivo
constituiria o tipo padrão de acolhimento quando finalizadas as obras de reforma e
adaptação.
Ao fim e ao cabo, Martins de Almeida era partidário da hospedaria, além de suas
atribuições de acolher e recepcionar, funcionar igualmente como um espaço de reexame
profissional e readaptação deste, fazendo-a como um centro de triagem. Pois, ressalta,
ainda que a seleção seja feita in loco, o aspecto profissional nem sempre corresponde a
realidade, afinal muitos imigrantes lançam mão de estratégias para ser aceito,
sobremaneira se “atentarmos para o quadro da Europa atual, faminta e sobressaltada.”
(ALMEIDA, 1951:23). Assim sendo, as grandes massas dirigidas poderiam ser recebidas,
mantidas e aproveitadas sem ônus ao governo, com aproveitamento positivo na
agricultura, na indústria, pois que na hospedaria, encontraria os meios de demonstrar a
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1307
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sua capacidade profissional e ao mesmo tempo o trabalho pretendido viria atenuar, senão
compensar, a despesa com a hospedagem e assistência.
Após a análise de tal documentação, reafirmamos em nosso argumento a posição
central da Hospedaria da Ilha das Flores como espaço receptivo e de acolhimento, que,
para além de suas funções mais tradicionais, marcava o primeiro contato do refugiado da
Segunda Guerra no Brasil. Ali, entrava em contato pela primeira vez com a cultura do
país receptor, com sua comida, seus costumes e língua.
Desta forma, pela constante presença da reestruturação e readaptação da
hospedaria nas páginas de documentos oficiais, revistas especializadas e nos jornais, o
espaço receptivo era destacado enquanto tema importante a ser analisado, como etapa
fundamental no interior da política imigratória brasileira no pós-segunda guerra.

Documentação

14 mil imigrantes que o Brasil recebeu nos últimos quatro anos. A Noite. Edição 13155.
Rio de Janeiro, 16/04/1949. Hemeroteca Digital Brasileira/ Biblioteca Nacional.
860 Imigrantes no “General Sturges”. Diário Carioca. Edição 05790. Rio de Janeiro,
15/05/1947. Hemeroteca Digital Brasileira/ Biblioteca Nacional.
ALMEIDA, João Martins de. Hospedarias de Imigrantes. Revista de Imigração e
Colonização, Ano XII, nº2. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional. Segundo semestre de
1951. Acervo Biblioteca Nacional
A Readaptação da Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores. A Noite. Edição 13141.
Rio de Janeiro, 30/03/1949. Hemeroteca Digital Brasileira/ Biblioteca Nacional
BRASIL, Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Departamento Nacional de
Imigração. Resumo das ocorrências mais importantes na Ilha das Flores, desde o ano de
1939. Rio de Janeiro, 1944.
BRASIL, Decreto-Lei 7.967 de 18 de Setembro de 1945.
Estudos e reportagens - O Brasil precisa de Imigrantes?. Revista do Comércio. Nº8.
Volume II, Ano II. Rio de Janeiro, Julho de 1946. Hemeroteca Digital Brasileira/
Acervo Biblioteca Nacional.
FIGUEIREDO, Morvan Dias de. Relatório referente ao ano de 1947 apresentado ao
Exmo. Sr. Presidente da República. Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Rio
de Janeiro, 1948.
HAEGER, Charles. Dezenas de Milhares de Imigrantes para o Brasil. A Noite. Edição
12246. Rio de Janeiro, 26/11/1946. Hemeroteca Digital Brasileira/ Acervo Biblioteca
Nacional.
Imigração Intensiva para o Brasil. Gazeta de Notícias. Edição 00031 (1). Rio de Janeiro,
06/02/1949. Hemeroteca Digital Brasileira/ Biblioteca Nacional.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1308
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Medidas Urgentes para Fomentar a Imigração. A Noite. Edição 12426. Rio de Janeiro,
26/11/1946. Hemeroteca Digital Brasileira/ Acervo Biblioteca Nacional.
NEIVA, Artur Hehl. Deslocados de Guerra. A verdade sobre sua seleção. Rio de
Janeiro, 1949.
Recepção de Imigrantes. Diário de Notícias. Edição 06828. Rio de Janeiro, 25/01/1945.
Hemeroteca Digital Brasileira/ Acervo Biblioteca Nacional.
VASCONCELOS, Henrique Dória de. Hospedaria de Imigrantes da Ilha das Flores.
Revista de Imigração e Colonização. Ano III, Ns. 3 e 4. Rio de Janeiro. Imprensa
Nacional. Dezembro de 1942. Acervo Biblioteca Nacional.

Bibliografia
COSTA, Julianna Carolina Oliveira. Hospedaria da Ilha das Flores: um dispositivo para
a efetivação das políticas imigratórias (1883-1907). Dissertação de mestrado.
PPGHS/UERJ. São Gonçalo, 2015.

VIDAL, Laurent; CHRYSOSTOMO, Maria Isabel. Do Depósito à Hospedaria de


Imigrantes: gênese de um ‘território de espera’ no caminho da emigração para o Brasil.
História, Ciência e Saúde. Rio de Janeiro, vol. 21, nº 1. Jan/mar. 2014.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1309
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Cinema Brasiliano: representações dos debates sobre eugenia nos filmes O


Descobrimento do Brasil (1937) e Argila (1942).

GUILHERME FERREIRA MARIANO PRAÇA


PPGH/UERJ

1 – Introdução
Se o século XIX, na Europa, como bem sabemos, marca a ebulição de diversos novos
campos da ciência e de inovações tecnológicas, podemos facilmente destacar, neste
contexto, o surgimento em 1883 dos estudos de Francis Galton sobre a eugenia e, em 28
de dezembro de 1895, em Paris, a apresentação do “cinematógrapho” pelos irmãos
Lumière, que defendiam a máquina como um instrumento científico e sem o menor futuro
como espetáculo (BERNARDET, 1980). Ainda que durante a primeira metade do XX,
tanto a eugenia, quanto o cinema, tenham se expandido pelo mundo e, em muitos
momentos, distanciando-se de suas premissas originais, as propostas de Lumiére e Galton
não necessariamente se destoaram com o tempo.
Alguns modelos dessa relação entre cinema e eugenia podem ser encontrados em
pesquisas recentes, como no caso de Angela Smith (2012) e Kirby (2014), por exemplo,
que destacam a importância dos gêneros do Horror e da Ficção científica nas décadas de
1920 e 1930 na mobilização de representações sobre o tema. Neste sentido, entendo que
os filmes dirigidos por Humberto Mauro, com colaboração intelectual de Edgar Roquette-
Pinto, O Descobrimento do Brasil e Argila também se inseriam nesse universo de debates
sobre eugenia através de representações imagéticas que se articulam ao mundo social, de
certa forma, mantendo um diálogo com o real (CHARTIER, 1991).
Portanto, a defesa dessa relação entre cinema e eugenia, através de uma ainda breve
análise dos filmes, apresenta, acima de tudo, as primeiras impressões da pesquisa para
futura dissertação. Visto isso, antes de refletirmos sobre os filmes e suas representações,
observo a necessidade de compreendermos a diversidade na concepção de eugenia.
De forma geral, Nancy Stepan (2005) define o campo como uma ciência que
encorajava a administração “racional” da composição hereditária da espécie humana,
relacionando-a à raça, gênero e nacionalismo. No entanto, observando diferenças na
produção de discursos, a autora destaca dois grandes grupos separados, basicamente,
pelas suas percepções relativas à hereditariedade genética. Assim, enquanto aqueles
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1310
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ligados à escola francesa de eugenia, o Neolamarckismo, defendiam a possibilidade da


transmissão genética de características adquiridas durante a vida, os seguidores da
chamada eugenia mendeliana, por outro lado, negavam que existissem evidências dessa
relação. Vale ressaltar que, por ser um campo de estudos tão heterogêneo, os dois grupos
analisados por Stepan apresentavam, também, seus embates internos (STEPAN, 2005).
Como exemplo que será importante para o texto, as divergências entre Edgar Roquette-
Pinto e Renato Kehl marcam o cenário de discussão dos anos de 1920 e 1930. Apesar dos
dois mendelianos concordarem quanto à hereditariedade genética e a distinção entre
eugenia e higienismo, afastavam-se quando dispostos a pensar sobre raça e projetos de
nação (SOUZA, 2016). Enquanto Kehl, diretor do Instituto Brasileiro de Eugenia,
pensava em um aperfeiçoamento genético que via no padrão europeu um norte a ser
seguido, afirmando que a miscigenação seria um fator de degeneração racial, Roquette-
Pinto, por sua vez, percebia essas questões muito mais pela perspectiva do que cada “tipo
antropológico” poderia contribuir para a formação nacional (SOUZA, 2016). Para
Roquette-Pinto não havia evidências de uma inferioridade biológica entre negros, índios
ou miscigenados e sim a convivência histórica desses grupos com uma série de problemas
sociais, com o descaso dos poderes públicos e com as heranças da escravidão
(ROQUETTE-PINTO,1982).
Ao pensar um projeto de nação, Kehl via na imigração europeia uma oportunidade
para a melhoria genética do país e defendia que o Governo deveria, também, atuar
diretamente na conservação do patrimônio genético, por exemplo, com a esterilização de
degenerados. Roquette-Pinto percebendo esse modelo como uma eugenia negativa,
distante da proposta por Galton em 1883, afirmava que não cabia ao Estado intervir na
formação genética do país, mas sim na saúde pública, enquanto o povo, eugenicamente
consciente e educado, realizaria a seleção genética por conta própria, valorizando o
“aprimoramento” sem pensar na questão racial (SOUZA, 2016).
Tendo em vista essas múltiplas camadas da eugenia no Brasil, percebemos que as
disputas por uma noção hegemônica esbarravam com os próprios projetos de nação
elaborados na época. Afinal, pensar ciência em um contexto positivista estava ligado à
noção de progresso da nação e definir o que era a eugenia e como seria praticada, era
resolver, também, o que seria o Brasil moderno e o “brasiliano” do futuro.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1311
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

2 – A eugenia no cinema educativo.

A tarefa de produzir imagens do Brasil, desde os primeiros passos do cinema nacional,


sempre foi um tema muito debatido entre aqueles que se empenhavam na construção do
nosso cinema. Afinal, que Brasil deveria ser privilegiado? Como filmar esse país de tantos
contrastes? O que mostrar de nós para o outro, para os estrangeiros?
Como nos mostra Eduardo Morettin (2003), a defesa do cinema como ferramenta
educativa e propagandística, intensificou-se entre as décadas de 1920 e 1930, junto aos
próprios projetos de nação debatidos nesse período. Ainda seguindo este raciocínio, em
rápida passagem de seu livro, Morettin (2003) revela uma citação de Jeronimo Monteiro
Filho membro da Associação Brasileira de Educação, que se torna esclarecedora para o
desenvolvimento das reflexões. Na visão de Monteiro Filho (2003, p.148), a
popularização do rádio e do cinema nos Estados Unidos, em um contexto de alto índice
imigratório, foi fundamental para a “uniformização dos espíritos” e, consequentemente,
para a organização Nacional, naturalmente, uma afirmação contestável, mas não é nosso
foco. Para o autor, ainda em Morettin (2013, p. 148), o Brasil deveria se espelhar na
experiência dos E.U.A, pois, o cinema nacional teria a importante função de revelar a
“nossa grandeza, nossas realizações e nossos destinos”, lembrando ainda que o cinema é
“um forte subsídio, nas escolas, e na educação do povo, e uma força inestimável, para a
formação da pátria culta, uma e consciente”.
Pela mesma lógica, Roquette-Pinto pensava o filme educativo a partir de duas frases,
resgatadas por Gouvea (1955, p.37): “o cinema tem que ser no Brasil a escola dos que
não tiveram escola” e “o cinema no Brasil tem que informar cada vez mais o Brasil aos
brasileiros”. Para o antropólogo, em um país tão grande, os filmes revelariam aos homens
de todas as partes os aspectos mais diversos do seu território, as suas artes, os seus
pensadores e os seus hábitos, possibilitando, assim, que conhecessem e amassem cada
vez mais a sua terra. O cinema incentivaria, deste modo, a confiança do povo no seu
futuro e na sua união. O próprio presidente Getúlio Vargas, como mostra Morettin (2013,
p.150), também compartilhava da visão culturalista de Monteiro e Roquette-Pinto,
defendendo que o cinema:
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1312
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Aproximará, pela visão incisiva dos fatos, os diferentes núcleos


humanos, dispersos no território vasto da república. [...] os sertanejos
verão as metrópoles, em que se elabora o nosso progresso, e os
citadinos, os campos e os planaltos do interior, onde se caldeia a
nacionalidade do porvir.

No entanto, ao contrário de um cinema partidário da diversidade e pela união, Sheila


Schvarzman (2004) observa que, na década de 1920, um ideal eugênico, próximo ao
higienismo, já era projetado por Adhemar Gonzaga e seu grupo, também defensores do
cinema educativo. A fotogenia de uma sociedade branca e moderna deveria ser o foco das
lentes segundo Gonzaga que, em sua biografia, citada por Schvarzman (2004, p.34)
afirma que o cineasta brasileiro não poderia apresentar tipos maltrapilhos e pobreza em
suas imagens, como no cinema europeu, mas sim um Brasil bonito, moderno, e bem
vestido.
João Luís Vieira (2009) afirma que, o que aqui chegava da dominante produção
Hollywoodiana celebrava um “mal disfarçado racismo” e, tanto as revistas internacionais
quanto as nacionais, como a Cinearte, ao pensarem o cinema sobre essas bases,
valorizavam a “hegemonia de um padrão de beleza branco, onde a fotogenia era sinônimo
de ambientes luxuosos e higiênicos por onde circulavam, de preferência, os corpos jovens
e saudáveis”. Schvarzman (2004, p.35) ainda conclui afirmando que Gonzaga e a
Cinearte não eram os únicos que reproduziam esse pensamento, fruto de um elitismo, que
catalisava para as telas o “conflituoso embate pela definição de uma identidade nacional,
em que a eugenia estava implicada, com seu conteúdo moralizante, seu racismo contra
negros e mestiços [...]”.
Assim, devemos perceber que era neste contexto cinematográfico que o próprio
Humberto Mauro, nascido em Cataguases (Minas Gerais), estava inserido. Schvarzman
(2004), ao analisar as ligações do cineasta mineiro com os nomes vistos acima,
desconstrói a visão “purista” criada pelos críticos das décadas de 1950 a 1970, que
idealizavam um Mauro avesso à modernidade, íntegro e conservador (GOMES, 1974). A
autora, deste modo, observa um cineasta, já em Cataguases, muito menos obtuso do que
o projetado anteriormente, um Humberto Mauro atento às produções norte-americanas e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1313
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

europeias, às novas técnicas e tecnologias de filmagem e em diálogo constante com


pensadores das grandes capitais (SCHVARZMAN, 2004, p.65-66).
No mais, Mauro, mesmo que de forma inconsciente, era atravessado pelos
pensamentos de sua época e, durante os anos de atuação no Instituto Nacional de Cinema
Educativo, podemos supor que tomou conhecimento do pensamento eugênico
predominante no período e de muitas outras discussões intelectuais, visto a constante
colaboração de cientistas famosos para os filmes do instituto.
Algumas mudanças nas representações da pobreza e da higiene que o mesmo realizou
em suas obras ficam nítidas ao longo de sua carreira. Schvarzman (2004) mostra que,
apesar do cuidado de Mauro com a produção de imagens sobre o interior do país, com o
homem do campo e a natureza, inicialmente, suas representações da população mais
pobre estavam quase sempre ligadas à rusticidade, aos ambientes sombrios, como os
bares, frequentados por homens grotescos e ligados aos “venenos raciais” (STEPAN,
2005). Em Thesouro perdido (1927), filme do início da sua trajetória, Mauro, em uma
cena, realiza uma sobreposição de imagens para comparar um sapo com um cigarro na
boca a um homem negro fumando, poderia ser um pequeno detalhe, mas corresponde a
um pensamento eugênico que ligava os vícios principalmente aos negros (STEPAN,
2005).
Apesar de elementos dos debates sobre eugenia estarem presentes em diversos outros
filmes do diretor, a colaboração de uma referência na área, Roquette-Pinto, surge apenas
em O Descobrimento do Brasil. Neste momento, como afirma Paulo E. S. Gomes (1974),
Mauro encontra no antropólogo seu último mentor, antecedido por Cypriano Teixeira
Mendes, Pedro Comello e Adhemar Gonzaga.

3 – O Descobrimento do Brasil (1937) e Argila (1940).

Como já exposto, em diversos níveis, por uma recente historiografia sobre o tema,
O Descobrimento do Brasil, tratou-se inicialmente de uma encomenda do Instituto de
Cacau da Bahia (ICB), em 1935, à Brasilia Films, sendo produzido por Alberto Campiglia
e filmado por Alberto Botelho e Luís de Barros. Eduardo Morettin (2013) revela que, em
um primeiro momento, tratava-se da encomenda de dois curtas metragens, sendo uma
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1314
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

introdução histórica, um “film de Cabral”, e, em seguida, um curta sobre a região


cacaueira da Bahia. No entanto, como podemos perceber, o projeto tomou novos rumos.
Com o afastamento de Campiglia da produção, junto à contratação de Humberto Mauro
como novo diretor e o convite a Afonso de Taunay e Edgar Roquette-Pinto para a
colaboração intelectual, o filme traçou um novo caminho, muito mais educativo e pautado
em documentos históricos e etnográficos.
Almeida (1999), Schvarzman (2004) e Morettin (2013) compreendem que, apesar das
influências externas sobre o diretor, existiam limites impostos pela própria divisão de
trabalhos em uma produção, assim, entendem que a orientação, de fato, impregna diversos
aspectos de sua obra, mas não sua totalidade. De tal modo, como os autores citados,
defendo que Mauro possuía autonomia e suas influências se davam através do diálogo e
da convergência de pensamentos e não de uma imposição. Visto isso, também entendo
que, mesmo um diretor firmando seus próprios posicionamentos, sua produção de
imagens está imersa em um contexto histórico que o atravessa, muitas vezes,
inconscientemente, logo, os filmes não são eventos autônomos ou isolados (TURNER,
1997). Para Barros (2008), desenvolvendo mais essa questão, o cinema possui um caráter
“polifônico”, pois nele “cantam” todas as vozes sociais, independente do caráter da
produção fílmica, entre os textos e as imagens certamente penetram e circulam mensagens
que destoam ou se impõem ao discurso principal.
Portanto, no próprio O Descobrimento do Brasil, filme imerso no contexto de
discussões sobre eugenia, percebemos alguns pontos que abordam a própria questão da
miscigenação, vista anteriormente. O filme, no geral, celebra de forma épica a chegada
dos portugueses em 1500 com uma comunhão entre índios e brancos trabalhando juntos
ao som extradiegético de Nonetto (1923), composição de Villa-Lobos que mescla a
música erudita com elementos sonoros indígenas registrados por Roquette-Pinto
(MORETTIN, 264). Por mais que a interpretação do filme possa nos conduzir a um
romanceado elogio à colonização, não é este ponto que pretendemos refletir e sim a
questão dos contatos raciais e das representações dos debates sobre eugenia.
A obra, como um “film de Cabral”, de fato, começa e se desenvolve pela perspectiva
dos portugueses, adaptando a carta de Caminha para o cinema. A primeira parte do filme,
que revela as dificuldades dos exploradores também mostra que os desafios só puderam
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1315
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ser superados graças às tecnologias e ao grande conhecimento em navegação, matemática


e astronomia dos viajantes. Uma simples análise da mise-en-scène que compõe o interior
do navio já é o bastante para notarmos elementos como a bússola, a ampulheta, os mapas
e o astrolábio como protagonistas em diversos takes, revelando tanto o progresso dos
europeus quanto a importância desse conhecimento científico na resolução dos
problemas. Apesar de, como visto anteriormente, o filme se basear na carta como fonte
para a história, a obra cinematográfica realiza um trabalho de seleção, cortes e edição que,
obviamente, definem uma representação própria da história, ligada ao mundo social no
qual foi produzida. Assim, os enquadramentos, a escolha de cenas, a iluminação, a seleção
do que privilegiar na documentação e tantos outros detalhes que compõe o filme, como
um texto histórico, falam tanto do passado, ou seja, do que está sendo representado,
quanto do presente.
Como vimos anteriormente, tanto Mauro quanto Roquette-Pinto eram entusiastas das
técnicas e tecnologias modernas e, o antropólogo, muito ligado ao pensamento positivista,
via na ciência e na tecnologia as portas para a modernização e o desenvolvimento do país.
Se os índios, como menciona Roquette-Pinto em Rondônia (1975), ainda eram atrasados
culturalmente e não possuíam os avanços do mundo moderno, este atraso não ocorria por
uma incapacidade biológica dos nativos, mas sim por um atraso relativo à concepção da
existência de estágios evolucionários da civilização, que deveriam ser cumpridos pelos
indígenas naturalmente em busca do progresso (SOUZA, 2011). Assim, para alcançarem
esse progresso, Roquette-Pinto (1975) compreendia que uma relação amistosa entre as
duas raças e, posteriormente, de proteção do índio pelo “homem branco” deveria ocorrer.
Souza (2011) recorda que, em 1908, em texto publicado na Revista do Museu
Paulista, o diretor dessa instituição, Herman Von Ihering, defende que a população
indígena deveria ser exterminada, pois “não representavam um elemento de trabalho e
progresso” e que a miscigenação de indígenas e portugueses era uma má influência sobre
as populações rurais, sendo inviável contar “com os serviços dessa população indígena,
para os trabalhos que a lavoura exige” e, por fim, estariam “obstruindo a colonização das
regiões florestais por eles habitadas, parece que nenhum outro meio há, de que se possa
lançar mão, senão o seu extermínio” (SOUZA, 2011). A declaração polêmica de Ihering,
defendendo um modelo de eugenia radical que ganharia forças nos anos 1930, recebeu
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1316
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ataques tanto de Roquette-Pinto quanto de seus pares do Museu Nacional. Essa


perspectiva, do índio que deve ser exterminado é completamente oposta à defendida pelo
antropólogo e vista no filme. Como afirma Roquette-Pinto, o papel social do “homem
civilizado” não deve ser de explorar os nativos, ou de os tornar brasileiros, pois, “índio é
índio, brasileiro é brasileiro”, enfim, “A nação deve protegê-los, e mesmo sustentá-los,
assim como aceita, sem relutância, o ônus da manutenção dos menores abandonados ou
indigentes, dos enfermos e dos loucos”. (ROQUETTE-PINTO, 1975, p.236).
Em O Descobrimento do Brasil, Mauro revela um primeiro contato entre os nativos e
os portugueses através da passividade e do acolhimento. Em cena do filme, Cabral
anuncia, antes de mandar subir os dois “habitantes da terra” trazidos por Affonso Lopez,
que se iniciem os preparativos para os receberem como convidados de honra. Assim, após
o encontro pacífico, os portugueses cobrem os índios que, cansados, dormem no chão da
própria caravela.
Pensando em um contexto positivista, a perspectiva do português na organização dessa
miscigenação e a receptividade do indígena com os exploradores revela muito sobre a
maneira de ver o mundo que não só Roquette-Pinto e Mauro defendiam, mas que seu
próprio tempo possibilitava. Ainda que adotassem o nacionalismo como norte, a
modernização e o desenvolvimento do país deveriam levar em consideração, primeiro, as
grandes ideias e influências intelectuais do “homem branco”, resgatando, em seguida, o
que as outras raças e tipos antropológicos possuíam de melhor. Schvarzman (2004)
observa que o próprio pensamento de Roquette-Pinto relativo à difusão da ciência, de
uma forma geral, abarcava basicamente o que o mesmo considerava como cultura ou
conhecimento digno.
No entanto, apesar deste disfarçado elitismo do antropólogo, é preciso valorizar sua
luta na defesa dos “tipos” brasileiros e na resistência à eugenia negativa. Roquette-Pinto,
como visto acima, preocupava-se com o que cada raça, ou “tipo antropológico”, poderia
melhor contribuir com a formação nacional. Em O Descobrimento do Brasil esta
perspectiva é clara quando observamos as influências indígenas para esta construção
através de suas artes, das músicas, do conhecimento da natureza, do trabalho e da própria
expansão do território nacional. Os nativos, voluntariamente, em conjunto com os
portugueses, no final do filme, adentram a floresta na busca por materiais para a
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1317
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

realização da primeira missa. São esses dois grupos que, assim, desbravam o interior do
país através do trabalho e de um primeiro contato amistoso. Para os eugenistas europeus
(STEPAN, 2005), o Brasil possuía uma série de atributos que inviabilizariam seu
progresso, como o clima tropical, o exotismo e a mistura de raças, no entanto, Mauro
defende em suas imagens que, mesmo com todas essas características, representadas no
filme, essa formação é viável a partir do elemento do trabalho.
Enfim, o filme deixa a entender que, sem a exploração do “homem branco” à figura
do índio, o trabalho e a relação pacífica entre ambos poderia gerar, inclusive, o saudável
tipo sertanejo que ocupava o interior do Brasil e, para Roquette-Pinto (1975), era o mais
típico dos nossos elementos étnicos. Segundo Souza:

Eles seriam responsáveis, inclusive, pela adaptação e integração


de índios e brancos à cultura e ao modo de vida do sertão. Como
bem apontaram Lima, Santos e Coimbra (2005, 35), a
importância que Roquette-Pinto atribuí ao sertanejo “supera,
desse modo, a discussão sobre o caráter positivo da miscigenação
de brancos e indígenas”, uma vez que o sertanejo também servia
como elemento sociocultural de integração da população do
interior do Brasil ao projeto de nacionalidade, conforme foi
fortemente defendido nas primeiras décadas do século XX por
intelectuais e autoridades políticas do país. (SOUZA, 2011,
p.119)

Já em Argila, filme produzido em 1940, pela Brasil Vita Filmes, as relações raciais
representadas aparecem de forma muito mais conflituosas, tendo como personagem
principal, desta vez, um operário do interior, próximo ao tipo sertanejo descrito por
Roquette-pinto e já retratado em outros filmes de Mauro. O longa conta a história de
Gilberto, artista do interior paulista muito interessado na arte Marajoara que, ao trabalhar
para Luciana, mulher da elite carioca, envolve-se em um relacionamento proibido que
põe em conflito dois mundos distintos. Enquanto Luciana planejava reabrir seus famosos
salões de arte, incentivar um projeto artístico nacional sob bases populares e contar com
o talento de Gilberto como grande vetor desse ideal, o círculo de uma intelectualidade
carioca, que a mesma frequentava, questionava seu “novo hobby”, o interesse pela arte
indígena.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1318
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A obra, como destaca Claudio Almeida (1999), é atravessada por constantes


representações do debate eugênico que mencionamos, muito mais do que a primeira
parceria entre Mauro e Roquette-Pinto. Neste caso, um dos personagens mais
interessantes para pensar não só a questão da eugenia como, também, a visão dos autores
sobre a intelectualidade carioca, é o Dr. Barrocas, logo no início do filme definido pelo
pintor Cláudio como “[...] um homem instruído, um homem viajado[...]” (MAURO,
1942). Dr. Barrocas, sempre bem vestido e elegante, aparece diversas vezes no filme
defendendo as tradições gregas como as únicas referências artísticas possíveis e,
observando o interesse de Luciana por Gilberto e pela arte Marajó, questiona o que a
mesma via de tão interessante nesta “arte inferior”. Em uma cena específica, Dr. Barrocas
afirma que estava contra o projeto de Luciana e sua “bobagens” de índio Marajó, pois,
até então, ninguém havia descoberto, em suas palavras, “gregas na foz do Amazonas”.
Afinal, conclui o próprio Dr. Barrocas, gregas, de verdade, estão na Grécia, onde, para o
mesmo, encontra-se a verdadeira arte (MAURO, 1942).
O exemplo acima revela não só essa representação da elite carioca, ainda colonizada,
proposta pelos autores, como também de um próprio pensamento eugênico muito forte na
década de 1930. Segundo Stepan (2005), em 1921, o famoso evolucionista Alfonso L.
Herrera defendeu que, com o avanço da ciência, a possibilidade de construir “o sonho do
paraíso”, ou seja, um reino de supremo intelecto, beleza e virtude, seria viável. No
entanto, Stepan destaca que, para o autor, essa forma perfeita seria exatamente a
“helênica”. A autora ainda vai além e afirma que este sonho também foi muito
compartilhado por brasileiros que imaginavam um futuro onde nos transformaríamos em
“puros gregos” (STEPAN, 2005). Essa dimensão estética, fundamental na compreensão
da eugenia, também demarcava fronteira do campo com a questão racial, definindo raças
que esteticamente seriam mais belas que outras. A beleza, em relação à dicotomia
“europeus x brasileiros”, também é notada por Almeida (1999) em outro diálogo presente
no filme, desta vez, Luciana pergunta a Gilberto o que as napolitanas acharam dele em
sua visita à Itália, Gilberto não compreende, a mesma reforça questionando se não lhe
disseram que é um “tipo estranho de homem”, com a negação do operário, Luciana
conclui que as mulheres europeias não entendem nada de beleza (MAURO, 1942).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1319
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Neste caso, Luciana não estava interessada nos padrões estéticos europeus, vistos por
Dr. Barroca e muitos eugenistas como o padrão positivo para casamentos e procriação.
Luciana estava interessada no tipo miscigenado, brasileiro, revelando mais uma vez a
presença do debate estético eugênico no filme, no entanto, contrário à posição arianista.
Vale destacar também que, mesmo sendo um operário humilde, explorado pelo patrão
e muito apegado à cultura popular, Gilberto é visto como um grande artista, que já viajou
pelo mundo, possuidor de conhecimento e boa educação. Como nos mostra Roquette-
Pinto (1982) em seus textos, este é, de fato, o ideal brasileiro, o homem que, mesmo
miscigenado, não é inferior, biologicamente, a outros tipos ou raças. Gilberto é o
brasileiro que, além de saudável, trabalhador e educado, valoriza as culturas de seu
próprio país. Essa projeção, na realidade, estava muito além das palavras de Roquette-
Pinto, representando, de fato, como mostra Almeida, uma própria política varguista de
formação nacional do novo trabalhador.
Enfim, o ceramista, desta forma, representava um tipo que contrariava, de muitas
maneiras, os mais diversos ataques das correntes eugenistas que viam no homem do
interior o velho Jeca-Tatu, de Monteiro Lobato, como preguiçoso, eugenicamente
negativo e destinado às doenças. Tanto Gilberto, quanto seu relacionamento com Luciana,
que não se consuma, representa essa valorização da miscigenação e da cultura do interior
como resistência em um contexto arianista e de crescimento da eugenia negativa pelo
mundo.

4 – Conclusão.

Postas estas questões, podemos pensar, finalmente, no aprofundamento dessa possível


camada de estudos para a eugenia, que seria pela dimensão do cinema. Segundo Martin
Pernick (1999), esta aproximação da ciência de Galton e da invenção dos Lumière no
início do século XX, mostra que o cinema, tanto em suas entrelinhas, como de forma
clara, serviu também como um campo de batalha para as discussões sobre eugenia.
Ainda que, quanto aos filmes analisados anteriormente, Mauro não tenha se
empenhado nas discussões sobre eugenia tanto quanto Roquette-Pinto, o cineasta, como

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1320
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

vimos, estava imerso neste contexto e acreditava no potencial educador do cinema, como
ferramenta para construção de uma identidade nacional.
Deste modo, enquanto outras correntes defendiam seus posicionamentos em revistas,
como Renato Kehl, na literatura, como Monteiro Lobato, ou em jornais, como tantos
outros, era através principalmente do cinema educativo que Mauro e Roquette-Pinto se
posicionavam. Não só os filmes analisados demonstram isso, como, também, as centenas
de curtas-metragens produzidas pelo INCE para circularem em escolas e eventos
educativos, trazendo mensagens de higienização, incentivo à cultura e uma defesa dos
tipos nacionais e da miscigenação, opostas à eugenia negativa.

Filmes:
Argila. Direção: Humberto Mauro, produção: Carmen Santos. Rio de Janeiro (DF), Brasil
Vita Filmes, 1942.
O Descobrimento do Brasil. Direção: Humberto Mauro, produção: Instituto do Cacau da
Bahia, INCE, Ministério da Saúde e Educação. Rio de Janeiro (DF), 1937.
Thesouro perdido. Direção: Humberto Mauro, produção: Agenor Cortes de Barros e
Homero Cortes Domingues. Minas Gerais (Cataguases), Phebo Sul America Film, 1927.

Bibliografia:
ALMEIDA, Claudio A. O cinema como “agitador de almas”: Argila, uma cena do
Estado Novo. São Paulo: Annablume, 1999.
BARROS, José D'Assunção; NÓVOA, Jorge (Orgs.). Cinema-História: Teoria e
Representações Sociais no Cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, 11 (5), 1991.
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
FILHO, Pedro G. E. Roquette – Pinto: O antropólogo e educador. Rio de Janeiro: MEC
– INCE, 1955.
GOMES, Paulo E. S. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo:
Perspectiva/Edusp, 1974.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1321
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

KIRBY, David. The Devil in Our DNA. A Brief History of Eugenics in Science Fiction
Films. Literature and Medicine, N.26, 83-108, 2014.
LIMA, Nísia T.; SÁ, Dominichi M. de (Org.) Antropologia Brasiliana: ciência e
educação na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
MORETTIN, Eduardo. Humberto Mauro, Cinema, História. SP: Alameda, 2013.
PERNICK, Martin S. The Black Stork. Eugenics and the Death of “Defective” Babies in
American Medicine and Motion Pictures since 1915. Oxford: Oxford University Press,
1999.
ROQUETTE-PINTO, Edgar. Ensaios de Antropologia Brasiliana. São Paulo: Ed.
Nacional, 1982.
______. Rondonia: anthropologia – ethnographia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 6ª
edição, 1975.
SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. São Paulo: Ed.
UNESP, 2004.
SMITH, Angela. Hideous Progeny. Disability, Eugenics, and Classic Horror Cinema.
New York: Columbia University Press, 2012.
SOUZA, Vanderlei S. de. A eugenia brasileira e suas conexões internacionais: uma
análise a partir das controvérsias entre Renato Kehl e Edgard Roquette-Pinto, 1920-
1930. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v.23, supl. 1, p.93-110, 2016.
______. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro
(1905-1935). Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo
Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro. 2011.
STEPAN, Nancy L. “A hora da eugenia”: raça, gênero e nação na América Latina. Rio
de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.
TURNER, Graeme. O Cinema como Prática Social. São Paulo: Summus, 1997.
VIEIRA, João Luís. Industrialização e cinema de estúdio no Brasil: a fábrica Atlântida.
In: GATTI, André; e FREIRE, Rafael de Luna (org). Retomando a questão da indústria
cinematográfica brasileira. Rio de Janeiro: Tela Brasilis, 2009.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1322
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O impacto das frentes parlamentares na crise política do governo presidencialista


de João Goulart

GUILHERME LEITE RIBERO


PPGHIS - UFRJ
Bolsista CNPq

Introdução

A crise política vivida no Brasil na década de 1960 já foi revisitada por diversos
estudiosos que procuraramentender as motivações do golpe de 1964. Apesar de vários
objetos já terem sido analisados, a literatura política deixou de lado o papel das frentes
parlamentares naquele processo, e o nosso trabalho se propõe a pensá-lo.
Por serem extraoficiais e por causa da parca acessibilidade das fontes, a atuação
das duas frentes parlamentares existentes na República de 1946 foi deixada de lado e
olhou-se prioritariamente para os partidos políticos. O que pretendemos com esse trabalho
é mostrar que a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) e a Ação Democrática
Parlamentar (ADP) tiveram um papel relevante e intensificaram a crise política ao
materializarem projetos opostos e polarizadores.
A baliza temporal escolhida para a consecução da proposta são os anos de 1963 e
1964, por corresponderem ao período em que João Goulart se tornou chefe de governo e
chefe de Estado. Além disso, 1963 representa a única legislatura que começou com a
concorrência dos blocos suprapartidários, pois embora a FPN tenha sido criada em 1956
(legislatura 1955-1958), sua concorrente, ADP, só foi criada em 1961, com a legislatura
de 1959 já em andamento.
O trabalho está dividido em três seções. A primeira discute, em linhas gerais, as
principais características das frentes parlamentares. Serão observados também os
principais partidos políticos da época e suas relações com os blocos suprapartidários.Na
segunda seção, o foco residirá nas questões teóricas envolvendo a radicalização política
dos anos 1960. Assumimos a premissa da “paralisia decisória” (SANTOS, 1986) como
ponto de partida para entender a crise política, acrescentada às ideias de “veto players”,
que ajudam a entender o papel das frentes parlamentares no contexto. No último item,
iremos observar efetivamente a participação das frentes parlamentares no jogo legislativo.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1323
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A análise recai sobre as comissões parlamentares e as votações nominais, que podem


indicar o grau de participação das frentes no processo legislativo. Nossas principais
hipóteses são as de que os blocos suprapartidários influenciaram a nomeação de alguns
componentes para os cargos nas comissões e de que elas tiveram uma alta coesão
partidária em temas controversos nos anos 1960.
O texto que segue espera contribuir para um olhar mais abrangente sobre o sistema
partidário, olhando para aspectos até então negligenciados pela literatura. Embora não se
possa reduzir o papel fundamental dos partidos, é preciso que se observe outros atores
extremamente relevantes para a crise política da época.

As frentes parlamentares na República de 1946

Ao contrário do período pós-1988, em que há uma proliferação das frentes


parlamentares, na República de 1946 havia apenas dois blocos suprapartidários: a Frente
Parlamentar Nacionalista e a Ação Democrática Parlamentar. Nenhuma das duas era
prevista no Regimento Interno da Câmara. Suas fontes, pois, são escassas, um dos
motivos pelos quais foram pouco estudadas pela literatura política.
Em linhas gerais, a FPN agrupou políticos de vários partidos que defendiam a
bandeira difusa do nacionalismo. Criada em 1956, participou ativamente das lutas pelo
maior controle na remessa de lucros estrangeiros, por uma política externa independente
e pela aprovação das reformas. O grupo se caracterizou por uma “expressiva
heterogeneidade” (DELGADO, 2007, p. 369), ainda que majoritariamente formada por
integrantes do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
Sua contraface, a ADP, foi formada em 1961, e surgiu como um anteparo à FPN,
priorizando a luta contra o comunismo. Esse bloco conservador chegou a ter quase 150
deputados de cerca de dez partidos políticos (RIBEIRO, 2016), mostrando a forte repulsa
que existia na sociedade civil e, em particular, no Congresso Nacional, ao comunismo.
Mesmo com a variedade partidária, integrantes do Partido Social Democrático (PSD) e
da União Democrática Nacional (UDN) foram majoritários dentro do bloco.
Para entender o comportamento político das frentes parlamentares na década de
1960, é importante pensar nos principais partidos que a compuseram: o PSD, o PTB e a

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1324
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

UDN. O primeiro era o partido da “flexibilidade ideológica” (SOARES, 2001, p.90).


Maior legenda durante todo o período, foi a organização que mais se dividiu entre FPN e
ADP, embora tivesse maior destaque nessa última. Elegendo vários presidentes e
controlado a Câmara Federal, foi um dos principais fiadores daquele regime. Sua baixa
centralização permitiu que seus parlamentares participassem dos grupos suprapartidários.
A UDN era o partido “antigetulista” por excelência e teve a pecha de ser durante quase
todo o período – excetuando o interregno Jânio Quadros – a legenda da oposição.
Também foi conhecida por participar de algumas tentativas de golpe e suas principais
características foram o moralismo, o bacharelismo e o antiestatismo. Embora tivesse
alguns de seus componentes na FPN, principalmente através do grupo “Bossa Nova”, sua
proximidade ideológica com a ADP fez com que fosse um dos partidos com mais
representantes nesta frente parlamentar. Por último, o PTB foi o partido que mais cresceu
eleitoralmente no partido, sempre carregando a bandeira getulista. A maioria da FPN era
formada por petebistas (SOARES, 2001; DELGADO, 2008), embora também houvesse
alguns componentes na ADP. Nos anos 1960, o grupo progressista cresceu dentro do
PTB, assim como as ideologias do nacionalismo e do antiimperialismo (SOARES, 2001,
p.123).
Não interpretamos as frentes parlamentares como resultado de alguma
“fragilidade partidária”. Além de a caracterização de “partido frágil” ser contestável, essa
acusação “colide com os dados da realidade” (SOARES, 2001, p.132). No entanto, com
a crise política brasileira cada vez mais intensa nos anos 1960, que também reverberava
a dicotomia ideológica produzida pela Guerra Fria, as frentes parlamentares passaram
para o centro da radicalização, pois encarnavam projetos antagônicos e polarizadores.
Assim, no auge da crise, “quem orientava o conjunto dos partidos eram as duas
frentes”639.

A crise política dos anos 1960: radicalismo e polarização

Adotamos a terminologia de Wanderley Guilherme dos Santos para caracterizar a


crise política dos anos 1960 no Brasil: “paralisia decisória” (1986). Nela, muito se propõe

639
Entrevista de Saturnino Braga ao autor e a Maria Celina D’Araujo em dezembro de 2015.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1325
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

– quase sempre a partir de temas irrelevantes – e pouco se aprova. Tem-se um “impasse


permanente” (SANTOS, 1986, p.32) entre os principais atores envolvidos no processo
decisório, que, radicalizados, não conseguem chegar a acordos para mudar determinadas
políticas públicas.
Este trabalho se propõe a pensar na “paralisia decisória” a partir de dois atores
pouco vistos pela bibliografia que pensou a crise política dos anos 1960: as frentes
parlamentares. Para tanto, caracterizamo-las como “veto players” (TSEBELIS, 1997).
Embora Wanderley Guilherme dos Santos faça uma distinção entre “paralisia decisória”
e “veto players”, acreditamos que as duas teses, embora diferentes, não são
irreconciliáveis.
Segundo Tsebelis, “veto player” é “qualquer ator – institucional ou partidário –
capaz de bloquear a adoção de uma política” (TSEBELIS, 1997, p.100). Quanto maiores
o número, a incongruência entre eles e a coesão interna, maior a estabilidade das políticas,
ou seja, o status quo permanece inalterado. Sabemos que as frentes não foram os únicos
atores com poder de veto, mas aumentaram o número dos que já existiam (partidos
políticos, entre outros); o nível de incongruência entre elas era muito grande,
especialmente em um ambiente radicalizado, em que defendiam suas políticas com o nível
máximo de intensidade e, por fim, tinham um grau elevado de coesão interna a partir dos
seus temas prioritários: nacionalismo (FPN) e anticomunismo (ADP).
Para Wanderley Guilherme dos Santos, há dois problemas na teoria de Tsebelis:
(1) ter o poder de veto não significa necessariamente exercê-lo, pois isso aumenta os
custos políticos; (2) “do número de posições de veto não se segue que efetivamente uma
proposta de mudança será vetada” (SANTOS, 2003, p.205). Nos dois casos, o autor
lembra que tudo depende da intensidade das preferências dos atores.
Apesar de entendermos as objeções supracitadas, é importante dizer que a época
era de grande radicalismo ideológico. Assim, aumentar os custos políticos não seria uma
questão tão problemática para os atores envolvidos. Para nós, as frentes parlamentares
colaboraram ativamente para a manutenção do status quo, exercendo assim seu poder de
veto, uma vez que não procuraram a conciliação, mas contribuíram para barrar projetos
importantes, sobretudo relativos à reforma agrária.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1326
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Frentes parlamentares em ação: comissões parlamentares e votações nominais

As comissões temáticas se dividem em dois tipos: as permanentes e as


temporárias. Estas podem ser de várias ordens:especiais, externas e parlamentares de
inquérito. Para este trabalho, vamos olhar apenas para as comissões permanentes e as
temporárias especiais.
A escolha supracitada se dá pelo fato de as comissões permanentes serem
fundamentais para aprovação de projetos de lei e outros tipos de proposição legislativa.
As comissões temporárias especiais são criadas para dar parecer a determinados projetos,
sendo extintas em seguida. No caso da República de 1946, o Regimento Interno da
Câmara datado de 1949 previa que três comissões especiais diferenciadas “deveriam
subsistir através das legislaturas até que a Câmara resolvesse extingui-las depois de
atingidas suas finalidades” (SOARES, 2012, p.25). Assim, a Comissão de Valorização
Econômica da Amazônia, a da Bacia do São Francisco e a do Polígono das Secas
perduraram durante todo o período até o golpe de 1964.
Todas as comissões parlamentares, sejam temporárias ou permanentes, são
formadas por políticos indicados pelo líder do partido (SANTOS, 2002, p.250). Conforme
a proporcionalidade das bancadas, as legendas podem indicar um número x de membros
para determinadas comissões. Segundo Fabiano Santos, dois fatores são levados em conta
na indicação do líder partidário: expertise e lealdade política (SANTOS, 2002, p.251).
Nossa hipótese é a de que, no apogeu da crise política, as frentes parlamentares
representaram um contrapeso à indicação partidária, isto é, em determinadas comissões
estratégicas para os interesses dos blocos suprapartidários, os partidos e seus respectivos
líderes poderiam levar em conta o pertencimento a uma das frentes parlamentares para o
preenchimento das cadeiras que iriam compor as comissões.
Em trabalho anterior (RIBEIRO, 2016) coletamos os nomesdos integrantes das 16
comissões permanentes em vigor nos anos de 1963 e 1964, eaferimos que a análise dos
dados “não deixa dúvida sobre a participação dos blocos suprapartidários na escolha dos

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1327
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

nomes” (RIBEIRO, 2016, p.103). Como veremos na tabela a seguir, pode-se apontar uma
ingerência dos dois grupos nas indicações.

Tabela 1 – Quantidade de membros das frentes parlamentares em


comissões permanentes da Câmara
Membros da Membros Total de membros da
Nome da Comissão FPN + ADP
FPN da ADP Comissão
Agricultura e Política Rural 0 6 6 23
Constituição e Justiça 7 8 15 28
Distrito Federal 5 4 9 30
Economia 5 2 7 27
Educação e Cultura 1 4 5 17
Finanças 4 10 14 27
Fiscalização Financeira e
2 4 6 23
Tomada de contas
Legislação Social 3 3 6 17
Minas e Energia 8 3 11 23
Orçamento e Fiscalização
7 15 22 43
Financeira
Redação 0 3 3 7
Relações Exteriores 4 5 9 17
Saúde 1 6 7 21
Segurança Nacional 1 5 6 21
Serviço Público 0 3 3 21
Transportes, Comunicações e
1 5 6 21
Obras Públicas
Fonte: RIBEIRO, 2016

Quando somadas, as duas frentes parlamentares possuem mais de 50% dos


membros em 4 comissões: Constituição e Justiça, com 53,6%; Relações Exteriores, 53%;
Finanças, 51,8%; e Orçamento e Fiscalização Financeira, 51,2% (RIBEIRO, 2016: 103).
A primeira é a mais importante do Congresso Nacional; a segunda foi estratégica para os
blocos em razão da Política Externa Independente; e as duas últimas eram responsáveis
por discutir os impactos financeiros dos projetos em discussão. Por se tratarem de
comissões extremamente importantes, acreditamos que os blocos tiveram um peso na
indicação partidária.
A comissão com maior número de integrantes da FPN foi Minas e Energia
(34,8%), o que não é coincidência quando pensamos na centralidade dos temas do
petróleo e da energia elétrica para o movimento nacionalista do período. No caso da ADP,
a Comissão que teve mais representantes do bloco foi a de Finanças, cuja importância já

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1328
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

foi discutida no parágrafo anterior. A FPN esteve presente em 13 das 16 comissões; a


ADP, em todas.
Como outra forma de corroborar a importância que as frentes parlamentares
davam a certas comissões em detrimento de outras, confrontaremos os números
apresentados anteriormente com a composição das três comissões temporárias especiais
existentes à época. Nossa hipótese inicial é a de que os blocos não estiveram presentes
com força nesses espaços, pelo fato destesterem pouca relevância para as discussões mais
polarizadoras do período e por focalizarem em temas regionais, sem importância para as
frentes parlamentares. Seguindo a mesma metodologia usada na tabela 1, apresentamos
os números:
Tabela 2 – Quantidade de membros das frentes parlamentares nas
comissões especiais temporárias
Total de
Membros Membros
Nome da Comissão FPN + ADP membros
da FPN da ADP
da Comissão
Bacia do São Francisco 1 4 5 13
Polígono das Secas 0 4 4 11
Valorização Econômica
2 2 4 13
da Amazônia
Fonte: o autor

Tal como a tabela 1, a de número 2 também se refere à legislatura 1963-1964, por


se tratar da única que teve a atuação das frentes parlamentares desde o início. Os dados
acima mostram a baixa quantidade de membros dos blocos nas três comissões especiais
da época. Ao somar a quantidade de integrantes dos grupos em relação ao total de
membros das comissões, têm-se os seguintes números: Bacia do São Francisco, 38,5%;
Polígono das Secas, 36,4%; e Valorização Econômica da Amazônia, 30,8%.
A ADP teve mais representantes que a FPN nas três comissões apresentadas, mas
ainda assim, sem nenhum destaque. Os números confirmam a hipótese de uma
concentração de membros das frentes em comissões importantes e estratégicas para os
assuntos mais polarizadores da época, como Minas e Energia e Relações Exteriores.
Outra forma de olhar a composição das comissões é verificar os nomes presentes
nos principais cargos de comando desses espaços: presidente e vice. Para as 16 comissões
permanentes, já fizemos esse trabalho para verificar a quantidade de componentes dos
dois blocos suprapartidários (RIBEIRO, 2016). Constamos a centralidade desse lócus do
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1329
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

legislativo para as frentes parlamentares. Em 15 das 16 comissões permanentes


apresentadas, há, pelo menos, um integrante de bloco suprapartidário (FPN ou ADP) nos
cargos de comando (RIBEIRO, 2016, p.103). Além disso, vê-se que a Frente Parlamentar
Nacionalista esteve presente nos cargos de comando em metade das comissões. Já a Ação
Democrática Parlamentar teve membros nos principais cargos em 13 das 16 comissões.
Tal dado é ainda corroborado pela declaração do presidente da ADP, João Mendes (ADP),
que afirmara ao jornal A Tarde – e reproduzido por O Semanário – que “a ADP está nos
postos-chave da Câmara Federal, como sentinela avançada das instituições democráticas.
É um movimento vitorioso”640.
Para o caso das comissões especiais, todavia, acreditamos que as frentes não
teriam interesse em se fazer presente nos postos de comando, pelos mesmos motivos
expostos para a tabela 2. Vejamos:

Quadro 1 – Membros das frentes parlamentares nos cargos de


comando das comissões especiais temporárias
Nome da Comissão Presidente Frente Vice-presidente Frente
Teódulo de
Bacia do São Francisco - Edgar Pereira ADP
Albuquerque
Polígono das Secas Costa Lima ADP Arnaldo Garcez ADP
Valorização Econômica da
Lister Caldas ADP Gabriel Hermes -
Amazônia
Fonte: o autor

A Frente Parlamentar Nacionalista não possui nenhum representante nos


principais cargos das comissões especiais. Já a Ação Democrática Parlamentar está
presente nas três, com destaque para o Polígono das Secas, quando ocupa a presidência e
a vice. Assim, nossa hipótese encontra-se confirmada apenas para o caso da FPN, já que
sua contraface teve membros nos postos de comando das comissões especiais.
Concluímos que a ADP se preocupou mais com esse espaço legislativo do que a
FPN, mesmo em comissões que não tratassem de temas de interesse direto do grupo,
corroborando a fala do seu presidente. Em menor escala, a Frente Parlamentar
Nacionalista mostrou ser um agente importante na indicação de membros para

640
Jornal O Semanário, Ano VIII, n. 354.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1330
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

determinadas comissões permanentes, complexificando a ideia consensual da literatura


política que atribuiexclusivamente a indicação dos membros das comissões a fatores
como expertise e fidelidade partidária. Santos e Rennó (2004) admitem que a existência
de várias facções partidárias no período 1946-1964 poderia influenciar as nomeações,
sem entrarem em mais detalhes.Em um momento de radicalização política nos anos
anteriores ao golpe, é importante enxergar outros fatores no momento da indicação, como
o pertencimento a um dos blocos dicotômicos que polarizaram o debate político e
ideológico à época.
Para as votações nominais, contabilizamos 30 dentre as realizadas nos anos de
1963 e 1964 que tiveram algum grau de diferença entre sim e não. De acordo com a
literatura que estuda os dados desse tipo de sufrágio, a análise da coesão partidária só faz
sentido quando a discordância entre o sim e o não é de 10% (AMORIM NETO &
SANTOS, 2001). Portanto, foram 30 as votações que tiveram esse ponto de corte no
período.
Nenhum dos autores que são comumente mobilizados quando se pensa nas
votações nominais da República de 1946 apresentou dados sobre a coesão
especificamente entre 1963 e 1964. Amorim Neto e Santos (2001) chegaram perto disso,
mas olharam apenas a disciplina partidária, e não a coesão. Em outro trabalho, Fabiano
Santos (1997) calculou o Índice Rice641 para os principais partidos durante boa parte da
República de 1946, em que se percebe um alto índice de coesão para o PTB.
Em trabalho anterior, procuramos analisar a coesão partidária das frentes
parlamentares durante todo o governo João Goulart, desde o seu conturbado começo em
1961 até o golpe de 1964 (RIBEIRO, 2016). Naquela ocasião, observamos as 73 votações
nominais que tiveram o ponto de corte de 10% entre sim e não. Baseamo-nos na tipologia
de Wanderley Guilherme dos Santos (1986) para elaborar categorias de votações. O autor
utilizou essa estratégia pois defendia a tese de que a polarização nos anos 1960 se dava a
partir dos seguintes temas: reforma agrária, bancária, administrativa, fiscal, política e
regulamentação do capital estrangeiro (SANTOS, 1986, p.40).

641
Principal metodologia utilizada para aferir a coesão partidária, que consiste na diferença entre os votos
sim e não divididos pelo total, excluídas as abstenções.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1331
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Alguns dos resultados encontrados na dissertação mostraram que, quando


comparados os índices das frentes temáticas com os partidos entre 1961 e 1964, viu-se
que os maiores números registrados pela FPN estavam nas votações atinentes ao capital
estrangeiro, chegando a 0,94, idêntico ao PTB (RIBEIRO, 2016, p.116). Já a ADP não
foi coesa em nenhuma das categorias elaboradas, mas se mostrou extremamente unida
em votações dispersas no tema “parlamentarismo”, como na rejeição ao nome de San
Tiago Dantas a primeiro-ministro indicado por Goulart (0,80); na adoção do
parlamentarismo como sistema de governo (0,98), e na indicação de Auro de Moura
Andrade a primeiro-ministro (0,94) (RIBEIR, 2016, p.122). Por isso, “pode-se dizer que
a ADP, embora em muitas votações tenha se dividido, foi um agente estratégico em
determinados momentos” (RIBEIRO, 2016, p. 123).
Dessa vez, como uma forma de contribuir com a bibliografia que pensa o tema,
vamos reduzir o escopo temporal à última legislatura antes da interrupção do regime
democrático, iniciada em 1963, tal como feito para as comissões parlamentares. Como
foram apenas 30 votações nominais e muitas não se mostraram conflituosas, decidimos
fazer uma nova tipologia com apenas três categorias: “capital estrangeiro”, “reforma
agrária” e “outros”. Nossa hipótese é de que a FPN e a ADP tiveram seus maiores Índices
Rice nas duas primeiras categorias, por serem as mais polarizadoras.
Na primeira temática selecionada, foram realizadas apenas duas votações, que
projetavam a supressão das garantias de empresas de crédito brasileiras no financiamento
a empresas estrangeiras no Brasil, de autoria de Sérgio Magalhães (PTB-GB), presidente
da Frente Parlamentar Nacionalista. Sobre a reforma agrária, foram 10 votações atinentes
ao Estatuto da Terra, elaborado pelo conservador Milton Campos (UDN-MG). Ademais,
houve a famosa votação sobre a PEC feita pelo governo federal e apresentada por
Bocaiúva Cunha (PTB-RJ), da FPN, que estipulava novas regras para desapropriação de
terras. Ao todo, foram 17 votações incluídas na categoria “outros”, assim intitulada por
não ter ligação direta com os interesses das frentes parlamentares. Seguem os índices
coletados para os grupos suprapartidários e os partidos políticos entre 1963 e 1964:

Tabela 3 – Índices Rice das organizações partidárias entre 1963 e 1964


Categorias PSD PTB UDN FPN ADP

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1332
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Capital estrangeiro 0.15 0.88 0.07 0.84 0.58


Reforma Agrária 0.57 0.96 0.92 0.80 0.36
Outros 0,51 0.67 0,61 0,46 0,46
Total 0,41 0.84 0.53 0.70 0.47
Fonte: o autor

Na última legislatura antes do golpe civil-militar de 1964, podemos dizer que o


Índice Rice do PSD despencou em relação aos períodos anteriores. Isso fica ainda mais
evidente nas duas votações que versaram sobre o “capital estrangeiro”. A UDN aumentou
em relação à legislatura anterior, mas ainda sem atingir seu recorde, ocorrido entre 1955-
1958. O PTB ampliou seus índices, que já eram altos.
Em relação às frentes parlamentares, é importante lembrar que foi a primeira e
única legislatura que se iniciou com a concorrência dos blocos, como já dito em outros
momentos. Quanto aos números, a FPN só ficou atrás do PTB; a ADP teve uma coesão
mais alta do que a do maior partido da República de 1946, o PSD. Além disso, ficou a
poucos décimos da UDN. Como se pode ver, uma das razões explicativas para o
desempenho do PSD era seu baixo grau de centralização, adicionada à divisão de sua
militância entre FPN e ADP.
Antes de explorarmos os números das categorias consideradas como sendo de
maior interesse dos blocos, vale destacar algumas palavras sobre as votações contidas na
categoria “outros”. Tais sufrágios versaram sobre temáticas como abonos salariais,
regimento interno da Câmara, orçamento da União, entre outros. O maior índice da ADP
nessa categoria foi na votação acontecida em 22/05/1963, em que se requeria que não
fosse marcada sessão nem que houvesse expediente na Secretaria da Câmara no dia
seguinte, por ser o dia da Ascensão do Senhor (0,82). Quanto à FPN, sua maior coesão
na categoria “outros” foi no dia 22/11/1963, em uma votação que se discutia regular a
locação de prédios urbanos (0,86).
Nas votações sobre o “capital estrangeiro”, PSD e UDN tiveram um
comportamento pífio. FPN e PTB ficaram bem à frente das outras organizações e a ADP
obteve um índice razoável. O interessante é que na primeira votação sobre a temática,
foram 115 favoráveis à proposta e 52 não. Destes, metade (26) foram de membros da

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1333
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ADP. No dia seguinte, quando o projeto de lei foi mais uma vez à votação, 51,6% dos
que sufragaram contrários à proposta eram da ADP.
Em relação à “reforma agrária”, a ADP atingiu o menor número em relação às
demais organizações pesquisadas, enquanto a FPN obteve um alto índice, mas ainda
abaixo da UDN e, principalmente, do PTB. No entanto, é importante que se diga que a
“abstenção foi a tônica geral em votações sobre reforma agrária” (RIBEIRO, 2016,
p.126). Destacamos o excelente desempenho obtido pela FPN no dia 26/07/1963, em uma
das tentativas de se obter quórum para votar o Estatuto da Terra (Projeto n.93-A). A FPN
votou coesa (1,0), tal como o PTB. No Projeto de Emenda à Constituição apresentado por
Bocaiúva Cunha (PTB-GB), foi a ADP que se destacou, com Índice Rice de 0,89,
contribuindo sobremaneira para rejeição da proposta.
Assim, nossa hipótese se confirma apenas parcialmente. Pelos números, pode-se
inferir que a FPN orientou voto em plenário nas temáticas consideradas polarizadoras; já
a ADP, cujos índices em geral foram baixos, destacou-se em alguns casos quando
comparada aos partidos políticos tradicionais.

Conclusão
A crise política vivida no Brasil na década de 1960 e que irrompeu no golpe de
1964 foi marcada por dois projetos distintos que se mostraram irreconciliáveis. De um
lado, umgrupo que lutava por questões que estavam na ordem do dia, especialmente as
Reformas de Base. Do outro, o medo de que essas reformas fossem uma porta aberta para
o comunismo. As frentes parlamentares materializaram esses projetos em um confronto
ideológico e radicalizado.
Atores que exerceram poder de veto pela intensidade das preferências, coesão
interna e incongruência de posições, os blocos suprapartidários intensificaram a “paralisia
decisória” dos anos 1960. Ao defenderem ideias distintas, sem possibilidade de acordos,
os grupos colaboraram para a manutenção do status quo.
Por meio da análise das comissões temáticas, destacando-se as permanentes,
vimos que as frentes tiveram muitos membros em espaços de alto interesse dos grupos,
como na de Relações Exteriores, cuja maioria era formada por integrantes dos blocos. Tal
hipótese se mostrou ainda mais plausível ao serem observados os cargos de comando das

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1334
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

principais comissões do período. No tocante às comissões especiais temporárias, embora


o número de membros pertencentes aos dois blocos fosse baixo, a ADP teve
representantes nos principais postos, mostrando ser um lócus de ação legislativa
estratégico para a frente parlamentar.
Nas votações nominais, que são uma das maneiras mais óbvias de se enxergar a
atuação política de determinado grupo parlamentar, percebe-se que a FPN teve um papel
ativo na indicação de voto, enquanto a ADP apresentou uma coesão baixa, mas ainda
assim, significativa em muitos momentos e que também pode ter influenciado nas
decisões de seus parlamentares. Nos sufrágios atinentes à reforma agrária e capital
estrangeiro, pertencer a FPN pode ter sido o fiel da balança na hora do voto.
Torna-se cada vez mais necessário que os estudiosos do tema, seja pelo viés da
Sociologia, Ciência Política ou História, enxerguem a crise política dos anos 1960 a partir
de um olhar mais abrangente, que não analise apenas o papel dos partidos políticos,
comprovadamente fundamental, mas que pensem no papel das frentes temáticas naquele
processo, dentro e fora do Congresso. Tais tipos de abordagens permitem encontrar
algumas das principais raízes que desencadearam no golpe de 1964. Como bem resume
Argelina Figueiredo, naquele processo, “as instituições democráticas do país ruíram sob
a pressão de forças polarizadas e radicalizadas a favor e contra a mudança social”
(FIGUEIREDO, 1993, p.22).

Documentação

Entrevista de Saturnino Braga ao autor e a Maria Celina D’Araujo em dezembro de


2015.

Jornal O Semanário.

Bibliografia

AMORIM NETO, O.;SANTOS, F. G. M. A Conexão Presidencial: Facções Pró e


Antigoverno e Disciplina Partidária no Brasil.Dados, Rio de Janeiro, v. 44, n.2, p. 291-
321, 2001.

DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Nacionalismo como projeto de nação: A Frente


Parlamentar Nacionalista. In: FERREIRA, Jorge (Org.); REIS, Daniel Aarão. (Org.). As

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1335
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Esquerdas no Brasil. Nacionalismo e Reformismo Radical (1945-1964). Vol. 2. 1ed.Rio


de Janeiro: Civilização brasileira, 2007.

______. Partidos políticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e conflitos na


democracia. In: FERREIRA, Jorge (Org.); DELGADO, Lucília de Almeida Neves
(Org.). O tempo da experiência democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil-
militar de 1964 (O Brasil Republicano).Livro 3, 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008.

FIGUEIREDO, Argelina C. Democracia ou Reformas? Alternativas democráticas à crise


política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

RIBEIRO, Guilherme L.Unidade na diversidade: a força das Frentes Parlamentares no


Governo João Goulart (1961-1964). Dissertação de Mestrado – Departamento de
Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2016.

SANTOS, F. G. M.Partidos e Comissões no Presidencialismo de Coalizão. Dados, Rio


de Janeiro, v. 45, n.2, p. 237-264, 2002.

SANTOS, F. G. M.; RENNÓ, Lucio. The Selection of Committee Leadership in the


Brazilian Chamber of Deputies. The Journal Of Legislative Studies, Oxon - UK, v. 10,
Nº 1, p. 50-70, 2004.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Sessenta e Quatro: Anatomia da Crise.São Paulo:


Vértice, 1986.

______. O parlamento brasileiro e a crise de 1964: a tendência à paralisia. In: ___. O


cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira. Belo Horizonte/Rio de
Janeiro: Editora UFMG/IUPERJ, 2003.

SOARES, G.A.D.A democracia interrompida. Rio de Janeiro: Editora da Fundação


Getúlio Vargas, 2001.

SOARES, Susan Margareth Sousa. O papel das comissões especiais na Câmara dos
Deputados: análise crítica da 51ª a 53ª legislatura. Monografia. Brasília: Câmara dos
Deputados, Centro de Formação, Treinamento e Aperfeiçoamento (Cefor), 2012.

TSEBELIS, G. Processo decisório em sistemas políticos: veto playersno


presidencialismo, parlamentarismo, multicameralismo e pluripartidarismo. In: Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v.12, n.34, 1997.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1336
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ngola Nzinga e a Resistência à Colonização Portuguesa

GUSTAVO SOUZA DE DEUS DA SILVA


PPGHIS-UFRJ

Introdução

O principal desafio para trabalhos que retratem o começo do período de


colonizações é o juízo das fontes. Muitos dos sobados e reinos menores na África não
mantinham registro dos acontecimentos, exceto pela transmissão oral, o que faz da
política do século XVI um período acessível pelos relatos do colonizador, não do
colonizado. Nesse sentido, o produtor de fontes escritas para a ocupação portuguesa das
terrasda atual Angola é geralmente um europeu católico.
Dentre as fontes que poderiam ser elencadas, foram escolhidos para o presente
trabalho trechos da obra de Antonio Cavazzi de Montecuccolo, de nome original Istorica
Descrizione de’ tre regni Congo, Matamba ed Angola. O livro hoje dispõe de tradução
para o português. A Monumenta Missionária Africana é uma compilação dos principais
escritos pelos emissários da Igreja na região e essencial para estudos desse período.
O principal relato da vida de Anna de Sousa Nzinga Mbandi foi escrito por
António de Oliveira de Cadornega. Mesmo tendo chegado em Luanda depois dos
principais acontecimentos a serem descritos, este autodidata português foi o responsável
pela documentação dos feitos na obra de três volumes História geral das guerras
angolanas, publicado em 1680.
Muitas obras que discutem a expansão do Império Português usam Cadornega
como fonte, mas elas não foram utilizadas de forma direta para o trabalho, uma vez que
a preferência, sempre que possível, é dada a Nzinga. Para este objetivo é de grande
importância a publicação de novas teses sobre a história da África, dentre elas a de Flávia
Maria de Carvalho, Os homens do rei em Angola: sobas, governadores, capitães
mores, séculos XVII e XVIII.
Outro trabalho importante é a dissertação de mestrado de Mariana Bracks
Fonseca, intitulada Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola, século
XVII. No texto, a autora interpreta a importância da ngola para um movimento
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1337
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

protonacional de enfraquecimento das ligações tradicionais e de resistência aos


portugueses. Por fim, é de particular referência a obra publicada pela UNESCO, História
Geral da África, Tomo V, em especial o capitulo escrito por Jan Vansina sobre a bacia
do Congo e seus arredores.

Contexto histórico

Entre os séculos XV e XVI, o principal estado da África Central era o Império do


Congo, administrado por um manicongoe por chefes patriarcais, ou sobas. Mais ao sul,
onde hoje se encontra Angola, esses sobados formavam uma instituição vassala do
império; o Reino do Ndongo. Ali também se encontravam o Reino do Matamba e uma
miríade de grupos nômades, conhecidos pela alcunha de jagas, que vinham de outras áreas
e costumavam ser contratados como mercenários.
A presença dos jagas foi um desafio inevitável às antigas famílias da região e
contribuiu para a reconfiguração das disputas. Mudanças econômicas e comerciais
também enfraqueceram o manicongo, dando poder para lideranças locais. Essas
inovações trazidas pelo comércio fortaleceram o pleito pela autonomia e pela secessão.
Este foium período de ensaios para novos estados interrompido pela colonização.Antes
que os europeus dividissem o território entre si, as lideranças políticas do Ndongo se
libertaram do controle do Congo e fortaleceram legitimidades regionais.
Desde o começo das grandes navegações, os portugueses tinham interesse pelas
riquezas minerais do Congo e acreditavam que a região era repleta de lavras. Os
manicongos se empenharam em manter o controle da extração no território e dificultavam
a exportação de cobre. Muito presente na economia africana por conta do tráfico de
escravos, Lisboa reagiu com um embargo à venda de embarcações aos congoleses,
monopolizando o transporte comercial entre a região, São Tomé e a Europa. O atrito entre
Portugal e o Congo também favoreceu a independência do Ndongo.

Ndongo e Portugal

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1338
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Por conta do comércio com São Tomé, os sobados do Ndongo passaram por um
período de rápido avanço tecnológicono século XVI. O desenvolvimento da metalurgia e
aprodução local de novas ferramentas colaboraram para a descentralização do Império do
Congo (FONSECA, 2012). O empoderamento econômico foi então acompanhando por
lideranças políticas favoráveis à independência. A década de 1560 também foi marcada
pelo afastamento de Portugal e suas contrapartes congolesas. Entre 1561 e 1567, os
manicongos mantiveramsuas possessões fechadas aos portugueses, colaborando com o
contrabando pelo Ndongo e com a prosperidade da secessão.
O reino que viria a ser administrado por Nzinga obteve gradativa autonomia
graças às inovações do comércio com os europeus e com as economias americanas. Entre
1548 e 1583, o milho foi introduzido aos campos da região, seguido pelo porco, a
mandioca, o tabaco e o feijão (VANSINA, 2011, p. 685). Em 1556, a batalha do
Ndandemarcou a ruptura do Reino do Ndongo, a partir de então uma entidade territorial
que se organizava em torno dos ngolas. A ocupação portuguesa da costa se estabelece em
concomitância à expansão do novo estado, o que explica a disponibilidade de aliados.
Os portugueses tinham conhecimento de assuntos africanos pela contratação de
funantes, guias nativos e informantes da política local. Além deles, muitos europeus
serviram como lançados, comerciantes que viviam no interior de um território ultramarino
não ocupado (CADORNEGA, 1680). Os dois papéis foram essenciais para o
estabelecimento de fortificações e feiras. Como Angola foi empreendida para exploração,
a monopolização do comércio e dos tributos é a principal causa das guerras que se
seguem.
Em 1560, o navegador Paulo de Novais chegou à costa do Ndongo e protagonizou
a primeiravisita oficial de europeus àquela corte. A expedição observou as feiras e os
recursos dispostos no território. Apesar do acordo de voltarem com vinte mil homens para
ajudar o ngola, os portugueses retornaram para fundar São Paulo da Assunção de Loanda
(1576). Seu governador era escolhido a cada três anos e comandava os tratos ao lado do
Conselho Municipal. O território foi dividido entre capitães militares que viviam em
presídios no interior e deviam obter contratos de vassalagem dos sobados vizinhos.
Com a União Ibérica vêm a rivalidade com os holandeses e a perda de espaço nas
Índias Orientais. Os comerciantes portugueses então se voltam ao Ocidente. Entretanto,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1339
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

fazer dinheiro no Brasil era diferente da compra de manufaturas. O território americano


carecia de mão-de-obra easolução encontrada foi intensificar o tráfico negreiro. Nesse
contexto, a independência do Ndongo tornou-se uma oportunidade, já que o novo reino
precisava de apoio para a centralização do poder. A partir de Luanda, os portugueses vão
usar de paciência para construir uma sequência de fortes às margens do rio Kwanza,
durante o reinado do avô de Nzinga,Kia Kasenda (1575-1592).
A ocupação de terras ao redor do Ndongo é um processo mais complexo que a
mera oposição entre pretos e brancos. Os europeusestavam divididosentre o Estado e os
negociantes, que frequentemente sabotavam a coroa em nome do laissez-faire e contra os
impostos. Do lado africano, a luta entre centralização e descentralização é invariável, uma
vez que o ngola tenta consolidar seu poder e os sobas buscam manter autonomias. Sua
estrutura social era similar a do Congo, porém menos centralizada. O território angolano
também era constelado de jagas, nômades independentes e tão forasteiros quanto os
portugueses. Esses grupos passam para o centro da política local à medida que os
europeus vão corroendo os poderes tradicionais.
O primeiro efeitoda fundação de Luanda foi o fim da hegemonia do Congo.
Muitos comerciantes portugueses saíram de Mbanza Kongo para negociar no empório de
Loango no mesmo ano de chegada de Paulo Dias de Novais (VANSINA, 2011, p. 677).
Esse período também é marcado pela invasão do território congolês pelos jagas. Esses
grupos vieram do interior para as regiões costeiras e passaram a lutar pelas feiras de
escravos, principal fator de enriquecimento da época.

Herança de Nzinga

Após a morte de Kia Kasenda, em 1592, seu filho Mbande Kiluanji assume a
responsabilidade de manejar os portugueses para seus objetivos. A relação do Ndongo
com Luanda passa por profunda deterioração em seu reinado, graças à cobrança cada vez
mais pesada de tributos e de escravos pelos ibéricos. A ocupação agora ditava as regras
na costa e na partebaixa do Kwanza. Além das costas, os portugueses passaram aorganizar
o interior do território com o controle de feiras e a construção de presídios.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1340
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A interiorização do poder português só é possível através de articulação política


com sobas insatisfeitos e pelo recrutamento de jagas. Sempre expansiva, a ocupação não
deixava mais dúvidas sobre o futuro da região. O ano de 1617 é decisivo nesse sentido.
Neleo pai de Nzinga falece, arrependido das apostas que fez para unificar o Ndongo, e é
substituído por Ngola Mbandi, seu filho. É também nessa época que o controle de Luanda
é passado para Luís Mendes de Vasconcelos e os portugueses inauguram o forte-presídio
de Ambaca, ao lado de Cabaça, capital do reino.
Os sobas que concordassem com a presença dos europeus e se dispusessem a
cooperar passavam por rituais de vassalagem à coroa ibérica. Estes deveriam fornecer
apoio militar aos portugueses, além dos tributos e da fidelidade política. O cerceio da
autonomia dos sobados era um preço pago pela promessa de proteção, uma vez que neste
período inicial o ngola também era uma ameaça centralizadora. Esse direito tributário se
baseou em regras já presentes no costume local sob o nome de baculamento. Antes da
fundação de Luanda, os chefes regionais o usavam para proteção em troca de parte de
suas colheitas e escravos.
Apesar da anterioridade do sistema de cobrança, os portuguesesapresentavam
pouco interesse em imiscuir-se nas querelas locais, não tinham os números necessários
para proteger o território cobravam cada vez mais escravos para o comércio de açúcar no
Brasil. O baculamento pago aos europeus passou a ser uma contradição para sobas que
tentavam evitar esse tipo de relação com o ngola. As demandas desgastaram o trato do
patriarcado local com os ibéricos, forçando Vasconcelos, já em posição ingrata por ser
cristão-novo, a fazer acordos clandestinos com jagas, para consolidar o controle pela via
militar.
A rebelião do soba Caita Calabalanga contra os tributos e a fortaleza de Ango foi
o estopim para as hostilidades. Ao invés de retaliar contra o sobado responsável pelos
problemas, Vasconcelos atribuiu a animosidade a uma conspiração de Mbandi e decidiu
atacar o Ndongo. O resultado dessa campanha foi o incêndio de Cabaça e a fuga da corte
para a fronteira leste.
Após o primeiro ataque, Vasconcelos organiza outra expedição, que ocupa
definitivamente Cabaça e força Mbandi a exilar-se na ilha de Kindonga, no alto Kwanza.
As investidas portuguesas eram compostas poralguns soldados reais, mercenários
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1341
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

europeus, uma vasta rede de informantes locais e jagas alistados por Luanda. Entre esses
últimos, três nomes se destacaram no começo da ocupação do Ndongo: os jagas Caza,
Donga e Cassanje. O acordo entre eles compreendia o ataque a um rival comum e o envio
de armas e vinho, trato ilegal para as capitanias.Portanto, atingir o objetivo português
fortalecia também os grupos contratados.O fato de serem pagos com armamento
consolidava ainda mais seu controle nos territórios dilapidados do Ndongo.
O Ndongo herdado por Nzinga reflete as decisões de Vasconcelos. O português
governou entre 1617 e 1621, um período de secas frequentes, e obteve o avassalamento
de 190 sobas, dos quais 81 tributários oficiais. Luanda foi bem-sucedida para a coroa e
superou o Congo e o Ndongo no número de escravos exportados (VANSINA, 2011, p. 701).
O fim da obrigatoriedade do tráfico por Mbanza Kongo marcou a decadência daquele
império e abriu o caminhopara os jagas.
Apesar do progresso, a lealdade jurada diretamente aos colonizadores escondia a
desorganização do território, pela falta de lideranças legítimas. Esse problema era
ofuscado pela expansão do jaga Cassanje. A região agora tinha europeus que gastavam
seus recursos para conter desobediências, um rei exilado no Kwanza e um jaga que
ocupava o espaço dos que se digladiavam.
O cenário de caosfoi fundamental para o trajeto de Nzinga. A corte do Ndongo
era historicamente avessa ao mando das mulheres, mas ela soube fazer-se necessária e
usou as ferramentas que as circunstâncias lhe deram. Em sua infância, Nzinga foi educada
sobre os costumes do reino e aprendeu a ler e a escrever na língua dos brancos, graças a
portugueses que faziam negócios no Ndongo.Sua proeminência é uma possível
explicação para que em 1617, quando seu irmão assume o trono, um de seus primeiros
atostenha sido assassinar o único filho homem de Nzinga. O novo ngolatemia ser
ofuscado, ou mesmo perder o trono, para a linhagem matrilinear de sua irmã.
O ano de 1621 marca a transição do controle de Luanda para João Correia de
Sousa, enviado para rearticular a ocupação. Ele convida um representante do Ndongo
para negociar a paz e recebe Nzinga na capital da colônia.
Nzinga fez a viagem até Cabaça e depois até Luanda com grande séquito. Ao
chegar na cidade era carregada por seus servos, exibindo símbolos de autoridade. Durante
a audiência, ela chamou atenção pelos enfeites e um grande número de escravas, doadas
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1342
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pelos sobas. Não houve exageros no gosto de Nzinga para a negociação. Suas muitas
penas, pedras e donzelas eram uma mensagem aos europeus que aspiravam dominar o
território. A vestimenta cerimonial personifica a legitimidade de uma instituição política
que competia com os portugueses, a despeito da coabitação. O Ndongo e seu ngola eram
os representantes oficiais daquela região.
Além dos distintivos, a audiênciafoi uma disputa de representação por outro
motivo. Na sala em que as discussões aconteceram só havia uma cadeira; a de João de
Sousa. Para o cerimonial do encontro, Nzinga deveria sentar-se no chão, denotando a
situação de vassalagem do Ndongo. Sem muitas alternativas à surpresa, a irmã do ngola
ordena que uma de suas criadas se ajoelhasse como um banco improvisado. A solução foi
uma mensagem eficaz aos portugueses. A emissária e o governador conversaram como
iguais, não como um pedinte a um senhor.
O principal do que foi acordado dizia respeito à restituição da paz entre o ngola e
o rei ibérico. O aceite dado pelo governador demonstra a percepção de que o Ndongo
esfacelado nunca seria lucrativo para a coroa. Entre os negociantes, oterrain d’entente era
a ameaça do jaga Cassanje, beneficiado pela corrosão dos poderes tradicionais. Ele que
fora um aliado da colonização agora era forte demais para estar entre os colonizados.
Apesar do inimigo comum, Nzinga se recusou a assinar a submissão. Em seus termos, o
reino deveria ser independente e aliado dos europeus.
Nzinga ficou mais tempo em Luanda e converteu-se ao cristianismo como Anna
se Sousa. Como cristã, Nzinga, que já ocupava um lugar de articulação entre duas
instituições, passa a estar mais próxima dos portugueses que seu irmão. A importância
dessa decisão pode ser evidenciada de duas formas. No Ndongo, ela acabara de ofuscar o
próprio ngola. Em Luanda, sua conversão assegurava o direito de corresponder-se com
cardeais e com o próprio pontífice, fortalecia seu pleito por igualdade como católica e
suscitava simpatia por seu papel como representante africana.
Num cenário em que Mbandi é o herdeiro legítimo, ofuscá-lo através da conversão
foi um gesto ousado, mas necessário. A visita de Nzinga como emissária foi uma
oportunidade para articular aceitação em Luanda e usar a colonização a seu favor. Sua
conversão significa o estabelecimento de relações de proximidade com o Ndongo.
Mbandi teve o tato político reprovado quando, após o retorno da comitiva, recusou ser
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1343
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

batizado por um padre negro, convertido na região e filho de ex-escrava. Os efeitos da


rejeição fortaleceram ainda mais a necessidade de Nzinga para o trato com europeus.
Em 1624, os holandeses, cobiçosos do comércio de açúcar, invadem Salvador.
Eles seriam repelidos no ano seguinte, mas esse era apenas o primeiro assédio às
possessões portuguesas no Atlântico. Ainda em 1624, o ngola Mbandi falece. Seu filho
foi confiado ao jaga Caza, agora inimigo dos portugueses. A despeito de seu esforço para
salvá-lo, a preponderância de Nzinga na resistência a aproxima do jaga, que afoga o
herdeiro no Kwanza. Em 1626, o Ndongo tem pela primeira vez uma rainha.
Desde o começo do seu reinado, Nzinga concedeu liberdade aos escravos que
fugissem de Luanda ou das feiras controladas por portugueses. Sua postura não deve ser
interpretada como parte de uma luta contra a escravidão, mas como tática de sua
campanha pelo enfraquecimento dos europeus na região do Ndongo. Os ngolas não só
possuíam escravos, como eram fornecedores para outros mercados. O controle deste
nefasto comércio era tido como uma atividade normal aos olhos de seus contemporâneos.
Entretanto, a concessão de liberdade aos cativos de portugueses e de seus aliados
enfraquecia a economia colonial e o abastecimento de Luanda.
Após dois anos de intrigas e tentativas de sabotagem como a mencionada, os
portugueses desistem de Nzinga. Em 1626, o governo de João de Sousa decide nomear
Ngola Ari, um soba aliado, o novo rei do Ndongo e considerar sua antiga rainha como
usurpadora e assassina do sobrinho herdeiro. A essa altura, as relações entre os europeus
e a antiga família real haviam voltado a um estágio de hostilidade aberta.
A reação dos portugueses é protagonizada pelo capitão mor Bento Cardoso,
escolhido para ser anfitrião de um encontro de sobas na fortaleza de Ambaca. Na reunião,
decide-se pela instauração de Are a Kiluanje no poder, substituindo Ngola Ari. Esse gesto
mostra que a legitimidade era o interesse principal dos europeus enquanto reordenavam
o território do Ndongo. A votação dos chefes patriarcais é uma emulação do processo
tradicional e tentativa de fortalecer a autoridade de uma marionete.
A troca de ngola também pode ser explicada pelo fato de que Ari era filho de uma
escrava doméstica da família real. Por isso estaria abaixo de seus oponentes. Are a
Kiluanje, por outro lado, era descendente de uma família nobre e rival dos velhos reis do
Ndongo. Nzinga decide então fortificar-se na ilha de Kindonga, antigo exílio de seu
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1344
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

irmão. Longe das forças de Luanda, ela enviava caravanas aos sobas que apoiavam os
portugueses, tentando convencê-los a trocar de lado, enquanto mantinha os canais abertos
com os europeus, como cristã e como súdita de D. Filipe.
A dissimulação de Nzinga era um modo de dissuasão; enquanto os portugueses a
vissem como um possível trunfo para a ordem no Ndongo, ela estaria protegida de
tentativas que a tirassem do jogo pelo poder. A evidência de suas intenções vem do ataque
surpresa que ordena contra o novo ngola, na saída da fortaleza de Ambaca. Caso tivesse
funcionado, o plano seria perfeito para o pleito de Nzinga. Com Kiluanje morto, ela seria
incontestável na disputa pelo trono. O problema é que 35 soldados dos que estavam na
fortificação foram deslocados para auxílio do ngola e, apesar de o terem protegido, 3 deles
morreram.
A morte dos portugueses na emboscada funcionou como o causus belli que João
de Sousa esperava para começar as expedições. Enquanto isso, Nzinga decide fazer uma
aliança com quem havia sido seu inimigo; o jaga Cassanje. Ambos viam no novo ngola e
nos europeus suas principais ameaças e decidiram cooperar para enfraquecê-los. Outra
providência foi seu acordo com os sobas do Matamba. O crescimento dos portugueses
havia convencido as lideranças ainda livres de que era preciso unir a resistência. Nzinga
foi então coroada soberana do Matamba, enquanto as elites do reino mantinham poderes
locais. Neste período ela também se tornou tembanza, sacerdotisa dos jagas.
A segunda coroação, a aliança com Cassanje e o título de tembanza mostram a
importância das legitimidades institucionais para o ambiente em que Nzinga se articula.
A personagem se torna um reflexo do momento vivido por toda a região. Seu gênio e suas
circunstâncias reais eram qualificações adequadas aos desafios da política de então,
chegando ao ponto de não haver rivais à altura para liderar a resistência.
A ocupação portuguesa e a mobilidade demográfica que ela desencadeia
reconfiguram de modo irreversível a composição do Matamba. A chegada de nova
população ao território teve no mínimo dois impactos favoráveis a Nzinga. O primeiro é
o enfraquecimento econômico e militar do lado europeu da disputa enquanto o número
de súditos do outro aumentava. Além disso, a forte onda migratória enfraqueceu os
sobados locais, dando mais preponderância ao poder central do reino. O novo cenário que

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1345
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

se desenhava nos arredores do Ndongo contribuía ainda mais para a projeção do


movimento de resistência e pró-autonomia.
Essa percepção é necessária para contextualizar os próximos atos de Nzinga.
Emissários são enviados aos principais líderes portugueses, prometendo fidelidade ao rei
ibérico e ao catolicismo em troca do reconhecimento. O governo em Luanda já sabia por
experiências recentes que as conversas tinham por objetivo enfraquecer os apelos por
mais intervenções. Com a mudança no cenário social da região agindo em seu favor,
Nzinga prometia qualquer coisa que lhe desse mais tempo para fortalecer a resistência.
Seu principal núcleo estava nas ilhas do Kwanza e ainda eram demasiado fracos para
escaramuças contra os brancos e seus aliados.
No final de 1626, os portugueses decidem acabar com qualquer começo de
negociação e reiniciar as ofensivas. Uma rápida expedição é organizada até o local, mas
quando toma o assentamento ele já estava vazio. Nzinga havia aproveitado o tempo obtido
com emissários para se reassentar na ilha de Ango. O rio Kwanza foi muito importante
para a organização da resistência aos portugueses, chegando a presenciar a formação de
uma grande confederação de núcleos autônomos em sua bacia.
Após a investida frustrada contra Nzinga, o jaga Kasa, seu principal apoiador,
passa a discordar de novos ataques. Enquanto ela via as negociações como uma
ferramenta para a via militar, ele considerava o meio diplomático como mais eficaz para
reorganizar a região. Essa diferença pode ser explicada pela origem dos dois. Nzinga
estava do lado das tradições e se fortalecia como líder da região através da resistência.
Quanto mais poder a oposição aos portugueses pudesse articular, mais poder seria
concentrado em sua pessoa. Para o jaga, apoiar lideranças legítimas sairia como um tiro
pela culatra, uma vez que não era parte das antigas famílias. Nesse contexto, o status
quoencontrado com o enfraquecimento do Ndongo era a melhor situação para grupos
como o seu.
Essas divergências ganham importância quando outro emissário, em nome de
Anna de Sousa, chegou a Luanda com uma proposta de acordo. Nzinga prometia o envio
de escravos e tributos à fortaleza de Ambaca em troca do seu estabelecimento na ilha de
Kindonga. Em concomitância à expedição, a líder da resistência ordena um ataque ao
soba Candelle dos Quezos, aliado dos portugueses e produtor de alimentos. Também
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1346
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

houve ataques a Andala Quesuba, importante feira de escravos. O emissário enviado por
seu grupo foi condenado à morte, ainda durante a visita.
Nzinga sabia que repetir a jogada não surtiria efeitos. É plausível considerar que
a embaixada aos portugueses tenha servido de simulação para sua própria base. Sabendo
do interesse do jaga em evitar novo cenário de guerra contra os europeus, a rainha do
Matamba fez uso de seus guerreiros pela última vez.Seu propósito erasabotá-lo
propositalmente para enfraquecer um produtor de seu inimigo.Essa possível explicação
se baseia também no fato de que, após o insucesso da negociação, o jaga Kasa rompeu
sua curta aliança com Nzinga.
Após a separação, o principal foco da resistência monta acampamento na ilha
Cataxecacollo, no Kwanza. Nessa época, a reação dos portugueses e a percepção de que
o Matamba poderia reincorporar a ameaça centralizadora do Ndongo faz com que o jaga
Calanda passe a apoiar os brancos. Na mesma época, Nzinga se aproxima do jaga Caiete.
Ela sabia que a legitimidade das grandes instituições não bastaria para vencer o conflito.
Pelo contrário, sua figura era um problema secundário para os líderes menores apenas por
conta dos portugueses.
O começo de 1627 trás boas notícias para Nzinga. O ngola apoiado pelos
europeus, Are a Kiluanje, havia morrido de varíola e desde dezembro era seu irmão,
Ngola Are, que controlava o Ndongo. Esse período é marcado pelas tentativas de
reorganização do controle por parte de João de Sousa. A capital é transferida de Cabaça
para Pedras de Maupungo, sobado dos Are. Em maio de 1627, Ngola Are batiza
Francisco, seu filho. Um mês depois, ele mesmo é batizado como Filipe, em homenagem
ao rei ibérico.
Em 1629 começa uma longa seca no Ndongo e esse período marca a época em
que a colonização ibérica perdeu força. O ano de 1630 é ainda mais dramático, pois além
da seca que devastava o território é quando os holandeses ocuparam o Nordeste brasileiro.
As guerras contra Nzinga haviam deixado claro que os europeus conseguiam fazer
incursões, mas não podiam estabelecer muito mais que fortificações. A eles faltavam
gente e alimentos para garantir o território. O controle do interior e a segurança do
abastecimento só poderiam vir de lideranças da região. Essa necessidade era ainda mais
asseverada em tempos de seca.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1347
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os portugueses reconquistam sua independência da Espanha em 1640, mas em


agosto de 1641 os holandeses invadem Angola e se aliam a Nzinga, num movimento que
complementa a ocupação do Nordeste brasileiro. Agora livre da União Ibérica, Lisboa
ainda teria o desafio de resolver a competição com as Províncias Unidas. O controle de
Luanda e de Recife significava monopólio colonial do comércio mais lucrativo do
Atlântico Sul e o abastecimento dos principais mercados europeus.
Nzinga e o manicongo se aliaram aos holandeses até que uma armada brasileira
retomou a colônia, em 1648. O retorno dos portugueses ao controle é confirmada por uma
aliança com o jaga Cassanje. Em 1671, o que restava do Ndongo foi anexado por Luanda
e a paz foi assinada com Nzinga, ngola do Matamba.

Conclusão

O começo da ocupação de Angola se manifestou em termos oficiais pelo


avassalamento dos sobados. O próprio nome dado à colônia refletiu o esforço pela
legitimação; ngola era o título dado ao soberano dos sobas da região. Quando esses
arranjos não bastavam para a segurança dos interesses da coroa, o governo local passava
a fazer uso dos jagas para impor sua vontade. A estabilidade da colonização se construiu
devagar, através dos fortes no Kwanza e dos presídios, que abrigavam soldados régios.
Esses eram a principal manifestação do jugo português para aquelas populações.
Entretanto, nem só de armas subsiste a ordem.
O tráfico negreiro foi mantido pelo baculamento e pelos acordos específicos entre
a coroa e os locais, ou entre comerciantes e recrutados. Mas a sustentação da colônia
dependia do controle das feiras e de sua tributação. Esse era o mundo de Nzinga e ela o
conhecia bem. Não adiantaria provocar escaramuças contra os portugueses, enquanto
atacar seu lado vulnerável era mais promissor. A resistência do Ndongo, que se torna uma
luta regional, passava pela desarticulação do abastecimento de Luanda. Se esta não
pudesse mais organizar a economia da vizinhança, estaria fragilizada demais para auxiliar
os que lhe jurassem vassalagem.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1348
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Até a chegada dos holandeses, Nzinga travava sua luta no campo das
representações e da legitimidade, mas também no ordenamento econômico do território.
Enquanto isso fosse assegurado aos portugueses, não haveria paz que não fosse contagem
regressiva para o controle total. A situação seria ainda mais grave com o tempo, porque
Luanda foi aos poucos compondo um exército considerável, que fortaleceria seus
monopólios e sua hegemonia na região.
Anna de Sousa Nzinga Mbandi é uma personagem decisiva, porque soube ser o
melhor que as circunstâncias lhe possibilitaram. Seu status de nobreza e o fato de encarnar
a legitimidade das tradições foram trunfos, mas seu papel estava acima da capacidade de
pessoas na mesma situação, como Mbandi, seu irmão. Nzinga soube usar sua
proeminência para atender as necessidades da resistência à colonização. Sua importância
pode ser apreendida pelo fato de era ela quem causava muitos dos problemas portugueses
e sua existência deixava claraa ilegalidade da ocupação.

Referências bibliográficas

BRÁSIO, António. Monumenta Missionária Africana. Lisboa: Agência Geral do Ultramar,


Divisão de Publicações e Biblioteca, 1958. Disponível em: <<http://memoria-
africa.ua.pt/Library/MonumentaMissionariaAfricana.aspx>>. Último acesso em 15/08/2017.

CADORNEGA, António de Oliveira de. História geral das guerras angolanas. Lisboa: Agência
Geral do Ultramar, 1972 (Original de 1680).

CARVALHO, Flávia Maria de. Os homens do rei em Angola: sobas, governadores, capitães
mores, séculos XVII e XVIII. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal Fluminense, 2013. Disponível em:
<<http://www.historia.uff.br/stricto/td/1502.pdf>>. Último acesso em 15/08/2017.

CAVAZZI, Giovanni Antonio. Istorica Descrizione de’ tre regni Congo, Matamba ed Angola.
Milão:Nelle Stampe dell’Agnelli, 1692. Disponível em:
<<https://archive.org/details/istoricadescritt00cava>>. Último acesso em 15/08/2017.

FONSECA, Mariana Bracks.Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola, século


XVII. 2012. Dissertação (Mestrado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível
em:<<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-14032013-094719/pt-br.php>>.
Último acesso em 15/08/2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1349
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

VANSINA, Jan. O Reino do Congo e seus vizinhos.In: OGOT, Bethwell Allan (Ed.).História
Geral da África, Tomo V. Capítulo VIII, escrito por Jan Vansina.São Paulo:Editora Cortez,
2011.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1350
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A institucionalização da policlínica de Botafogo (1900-1935): a difusão do modelo


de dispensário europeu na cidade do Rio de Janeiro

HARUMI MATSUMOTO
Programa de Pós-Graduação em
História das Ciências e da Saúde – Mestrado FIOCRUZ
Bolsa Fiocruz

I – Origem dos dispensários na Europa

Na Inglaterra, entre os séculos XVII e XVIII os dispensários surgiram como o


resultado de ações e motivações oriundas do interior da profissão médica que,articulando
valores morais e interesses profissionais, deram força a uma singular forma de praticar a
medicina combinada com a filantropia leiga ou religiosa.
Na historiografia sobre os dispensários ingleses há divergências em relação ao
período de sua origem: enquanto Charles Rosenberg (1932, p. 32) e Cope (1969, p. 29)
defendem que os dispensários surgiram no início século XVIII; para outros, o final do
século XVII seria o período inicial. Albert Rosenberg (1959, p. 41) atribui tal pioneirismo
ao Colégio de Médicos Royal College of Physicians, que,a partir de uma reuniãoem
1696,teria definido as estratégias de assistência médica aos londrinos pobres por meio de
um dispensário vinculado a esta instituição que, segundo Ellis (1965, p. 197) entrou em
funcionamento em 1698, oferecendo consultas para pacientes pobres e distribuindo
medicamentos de forma gratuita.
Segundo Rosenberg (1974, pp. 33, 35), o modelo assistencial dos dispensários –
a semelhança dos hospitais – foi tipicamente um fenômeno urbano, sendo rapidamente
espalhado pela Inglaterra e, depois, pela Europa e América, primeiramente nos Estados
Unidos. Esta difusão foi certamente favorecida pela simplicidade e baixo custo do modelo
quando comparado com os dispêndios exigidos para a manutenção de hospitais. Além
disso, os dispensários ofereciam suporte para ações de saúde pública, tais como socorros
médicos em tempos de epidemias e a vacinação antivariólica, constituindo-secomo
primeira linha de prevenção contra as doenças epidêmicas.
Uma característica típica dos dispensários foi sua organização administrativa. Para
Kilpatrick (1990, p. 257) nos estabelecimentos como os hospitais, a direção de leigos e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1351
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

religiosos gerou conflitos entre administradores e médicos que atuavam nas atividades
assistenciais. Este problema não pairava sobre os dispensários, cuja gestão era
exclusivamente composta por médicos e que, na visão de Sturdy; Cooter (1998, pp. 426,
427), resultou em uma organização corporativa que possibilitou o avanço mais rápido da
tendência da medicina à especialização. A divisão do trabalho técnico do médico, ao
refinar sua identidade, forneceu maior autonomia e responsabilidade profissional, criando
um ambiente fértil para o crescimento das ciências médicas, inclusive as ciências de
laboratório.
Pode-se considerar que a historiografia, segundo Rosenberg (1974, p. 54) aponta
para três fatores de fundo atuantes na emergência dos dispensários na fase de
transformação da Inglaterra em uma sociedade urbano-industrial: 1) a necessidade prática
de fazer frente aos problemas sanitários decorrentes do crescimento da pobreza urbana;
2) a força dos valores morais dominantes - protestantismo e utilitarismo - acerca da
pobreza enquanto um problema social e 3) os interesses da profissão médica no sentido
de ampliar seu status social e seu mercado de trabalho.
Em essência, Croxson (1997, p. 128) salienta que o objetivo dos dispensários era
atrair as populações pobres urbanas oferecendo a elas aconselhamento médico e
medicamentos gratuitos em seus serviços. Segundo Rosenberg (1974, pp. 35, 36) e Cope
(1969), os dispensários estavam voltados para o atendimento por meio de consultas para
diagnóstico de doenças e para a prescrição de medicamentos, sem que necessariamente
houvesse internação, tornando-se muitas vezes, sinônimo de prescrição de receitas
médicas. Enquanto os hospitais eram limitados e restritos em sua capacidade de
atendimento, os dispensários conseguiam, principalmente ao longo do século XIX,
ampliar em escala o número de atendimentos a pacientes alcançando a população urbana
e pobre, inclusive por meio da visita domiciliar,que tornou possível conhecer in loco as
condições de vida dos pobres, tornando-se, segundo Loudon (1981, p. 332), um dos
pontos de partida para a construção de um raciocínio epidemiológico que propunha a
relação entre a pobreza material e os hábitos culturais dos pobres e a incidência de
doenças. A visita domiciliar era, portanto, uma forma de exploração em território
desconhecido e a oportunidade dos médicos dos dispensários observarem as condições de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1352
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

falta de saneamento, pobreza, superlotação e a prevalência de febre contagiosa dos


pacientes.
A partir das considerações de Croxson (1974), os dispensários favoreceram
estratégias de legitimação social dando aos médicos a oportunidade de ampliar seus
conhecimentos e suas clientelas ao mesmo tempo em que incentivava a pesquisa por meio
de observações clínicas e terapêuticas.O serviço médico voluntário aos pobres nos
dispensários não apenastornou-se uma maneira de construir e qualificar a reputação
profissional, mas preencheu o “vazio pedagógico”, descrito por Rosenberg (1972, p. 39),
ao possibilitar o desenvolvimentodo ensino e da prática clínica,aos médicos e estudantes
de medicina, no ambiente dos dispensários.Com efeito, as relações entre o dispensário e
a educação médica fornecem a chave para entender o apoio voluntário dos médicos que
possibilitou aos dispensários sua sobrevivência e aos médicos um status intelectual.
Para Croxson (1997, p. 141), a sobrevivência dos dispensários foi possível por
meio da filantropia das elites, que contribuíam com doações diretas sem compromisso ou
por meio da assinatura de mensalidades. Outra forma comum era oengajamento da
aristocracia na organização de festas ou eventos visando à arrecadação de fundos para os
dispensários. A divulgação da prática filantrópica fornecia aos nobres a oportunidade de
serem publicamente associados a boas causas conferindo-os um status social, articulada
com a dimensão política.

II – A Policlínica Geral do Rio de Janeiro

No final do século XIX, para Silva (1999, p. 102), o crescimento urbano e


demográfico decorrentes da abolição do trabalho escravo e da imigração europeia
ocasionou mudanças na fisionomia da cidade do Rio de Janeiro. As modificações na
economia da cidade a partir de novas aplicações do capital se faziam acompanhar pela
proliferação de habitações populares, agregações de cubículos imundos desprovidos de
luz, ar e higiene – os cortiços – que, para os médicos da época, eram propícias para a
proliferação de doenças. Para Needell (1987), ao lado dos novos pobres urbanos emergia
uma força social, uma nova elite carioca que reunia profissionais liberais e empresários
influenciados por modelos comportamentais europeus. Baseado nos cenários descritos
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1353
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

por Silva (1999) e Needel (1987), nossa hipótese é que este contexto propiciou o encontro
de duas tendências: a pobreza e a doença que atingem a necessidade da população
decorrente das transformações urbanas e epidêmicas e o valor social filantrópico aspirado
tanto por uma formação de uma “nova” aristocracia heterogênea quanto pela classe
médica, que se reorganizava dentro das transformações do ensino e da prática clínica -
ambas buscando legitimação social.
As transformações urbanas da cidade do Rio de Janeiro também tiveram impacto
sobre a assistência médica, antes limitada basicamente ao hospital da Santa Casa de
Misericórdia. Neste período, Araújo (1982, p. 105, 107-211) ressalta que surgiram,em
1840,as Casas de Saúde que configuraram comoespaços alternativos de assistência
médicana cidade do Rio de Janeiro a partir da iniciativa de médicos que ofereciam,
geralmente deforma privativa, seus serviços por meio de consultas, internações e até
mesmo procedimentos cirúrgicos. Uma importante característica das Casas de Saúde
relaciona-se a tendência da especialização médica, uma vez que cada estabelecimento se
direcionava a assistência de um serviço específico, que poderia ser evidenciado no próprio
nome da instituição, como na “Casa de Saúde para Moléstias e Operações de Olhos e
Ouvidos”que deixava implícita ser uma clínica de otorrinolaringologia, ou por meio de
propagandas de jornais como, por exemplo, no anúncio da Casa de Saúde do Dr. Monat,
que descrevia o serviço voltado para a internação de pacientes com problemas de vias
urinárias.
Uma característica importante das Casas de Saúde é que muitos de seus diretores
também possuíam algum vínculo com a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
(FMRJ), que, juntamente com a Faculdade de Medicina da Bahia, figurava como única
opção para a graduação de medicina no país neste período. Dentre os professores de
medicina da FMRJ que também atuaram nas Casas de Saúde, destaca-se o professor de
anatomia Francisco Praxedes de Andrade Pertence, que, segundo Fonseca (1996), além
de fundar em 1864 a Casa de Saúde do Dr. Pertence, atuou no final da década de 1880,
na Reforma do Ensino Médico, liderando alunos e professores que se agruparam para
expor as precariedades na educação médica, tendo em vista o grande desiquilíbrio do
processo de aprendizagem entre a excessiva teoria e a ausência de prática clínica.
Segundo Edler (2014, pp. 31-49; pp. 99-132), a requisição de espaços para o ensino
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1354
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

clínico visava principalmente a instrução cirúrgica e obstétrica, pois o hospital da Santa


Casa de Misericórdia, que constituía o único e limitado espaço para os estudantes de
medicina da FMRJ, encontrava-se impossibilitado de suprir as necessidades científicas e
de ensino. Além disso, a sua administração era composta por uma irmandade que ditava
as próprias leis, dentre elas, a restrição do acesso dos alunos em vários serviços,
principalmente na enfermaria de gestantes.
De acordo com Sanglard; Ferreira (2010, pp. 440, 444), o médico Carlos Arthur
Moncorvo de Figueiredo, também teve participação ativa no movimento pela reforma do
ensino da medicina em prol de mudanças nos métodos da educação médica e defendendo
a instalação de ambientes alternativos à Santa Casa de Misericórdia para o treinamento
médico dos estudantes de medicina. Se por um lado o posicionamento de Moncorvo de
Figueiredo causou a rejeição de sua candidatura à Cátedra da FMRJ, por outro, o motivou
a reunir um grupo de médicos que, em 10 de dezembro de 1881, planejaram a fundação
da Policlínica Geral do Rio de Janeiro (PGRJ), inspirados no modelo de dispensário
europeu. A PGRJ, portanto, foi um desdobramento da Reforma do Ensino Médico.
Segundo Valverde (1932, p. 5, 7) a PGRJ foi inaugurada em 01 de agosto de 1882,
na Rua do Ourives, em um prédio cedido pelo Ministro do Império. Regulamentada pelo
Decreto nº 8587 de 17 de janeiro de 1882, a PGRJ tinha como proposta o desenvolvimento
do ensino de especialidades médicas e cirúrgicas, bem como a investigação científica,
destinando-se prioritariamente ao tratamento de doentes pobres, por meio de distribuição
de medicamento e consultas médicas gratuitas, que incluía visitas domiciliares. De acordo
com o Estatuto da PGRJ (1907, p. 04.), esta instituição era composta por dispensários,
descrita muitas vezes como gabinetes de consultas. Cada um desses serviços clínicos
tinha um chefe, a quem competia a sua direção científica e cabia ao médico o dever de
dar consultas diárias aos doentes provadamente pobres, que deveriam se apresentar no
horário previamente organizado.
Para Araújo (1982. p. 203.), de sua inauguração em 1882 a abril de 1883, a PGRJ
foi dirigida pelo seu principal idealizador, o médico Carlos Arthur Moncorvo de
Figueiredo. Posteriormente, até o ano a 1886, o cargo foi assumido pelo médico Henrique
Carlos da Rocha Lima, pai do famoso clínico tropicalista Henrique Rocha Lima (1879-

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1355
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

1956)descobridor do tipo exantemático daquela época. Em seguida foi a instituição foi


dirigida por 42 anos o médico José Cardoso de Moura Brasil.
Com efeito, a partir de um balanço geral realizado por Valverde (1932, p. 17)
verifica-se que do ano de 1882 até o ano de 1935 - cinquenta e três anos após a sua
inauguração da PCGRJ - este estabelecimento tratou ao total de 4442.503 pacientes,
prescrevendo 863.240 receitas e realizando 46.693 cirurgias.

III – A Origem e Organização da Policlínica de Botafogo

A partir da Policlínica Geral do Rio de Janeiro (PGRJ) surgiram outras


Policlínicas, tais como a Policlínica de Niterói fundada em 1888, segundo Silva (1904, p.
03) e a Policlínica de São Paulo, fundada em 1896, segundo Ayres Neto (1951, p. 85). Na
cidade do Rio de Janeiro destacou-se a criação da Policlínica de Botafogo (PCB) em 10
de junho de 1900, no bairro do Rio de Janeiro de mesmo nome, fundada pelo médico Luiz
Pedro Barbosa (1870-1949), formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
(FMRJ) no ano de 1891 ao defender a tese apresentada à clínica de ginecologia e
obstetrícia:“Desordens catameniaes”.
De acordo com Madeira (1917, p. 73), Luiz Barbosa foi um dos alunos do médico
Carlos Arthur Moncorvo de Figueiredo, principal fundador da PGRJ. Nesta instituição, o
Dr. Moncorvo de Figueiredo criou a primeira clínica infantil e o primeiro curso de
moléstias infantis. A vivência acadêmica de Luiz Barbosa o influenciou na escolha da
especialidade médica – a pediatria - e o inspirou na criação da PCB, espelhando-se no
formato da PCGRJ, exceto pela limitação de sua assistência ao bairro de Botafogo.
A PCB de acordo com Sanglard e Ferreira (2010) e Barbosa (1908) caracterizou-
se pela atuação paroquial, restrita aos moradores de Botafogo e adjacências e voltou-se
para a assistência aos pobres. Em suas publicações,Luiz Barbosa (1936, pp. 539-541;
1933, p. 335).descreve que o início do processo de criação da PCB ocorreu a partir de
uma reunião em 1889, onde foi planejado um modelo de dispensário. Em 10 de junho de
1900, deu-se a sua inauguração no prédio n. 45 da Rua Bambina.A primeira sede da PCB
situou-se no mesmo prédio da Sociedade Propagadora da Instrução aos Operários da
Freguesia da Lagoa, que segundo Limeira (2011, p. 119) foi fundada em 1872 e mantinha
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1356
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

o ensino primário noturno gratuito de operários da região e recebia subvenção financeira


do Estado Imperial.
Em consonância com O Paiz, de 22 de Janeiro de 1912, para a fundação da PCB,
Luiz Barbosa contou com a participação de médicosmoradores do bairro de Botafogo,
dentre eles o Conselheiro Catta Preta, Guedes de Mello, Carlos Eiras, Licinio Cardoso,
Eduardo Rabello, Francisco Eiras, Bento Ribeiro de Castro e Frederico Eyer.
De acordo com as publicações de Barbosa (1908, pp. 61, 63; 1935, pp. 534-536),
a administração eleita contava com o diretor presidente, subdiretor, secretário e
tesoureiro. O Estatuto de 1889 descreve a PCB como uma associação filantrópica e
científica, com finalidade de assistência médica gratuita em seus vários consultórios e nos
domicílios, aos indivíduos reconhecidamente pobres, sem distinção de idade, sexo,
religião ou nacionalidade.
A assistência médica da PCB, segundo Barbosa (1917 p.73-74; 1936, pp. 539-
541.), era realizada a partir de três formas: nas consultas por especialidade médica, em
enfermarias destinadas principalmente a casos que necessitavam de intervenção cirúrgica
ou obstétrica e no próprio domicílio do paciente. Esta última forma de assistência médica
praticada na PCB – e característica dos dispensários– permitiu a realização de consultas
e o acompanhamento de pacientes em suas próprias residências, atendidos de acordo com
a divisão do território do bairro de Botafogo em seis círculos ou zonas distintas, cada um
sob a responsabilidade de dois médicos. Os números de visitas domiciliares realizadas
eram contabilizadas e expressas em boletins mensais, contribuindo de forma significativa
para o conhecimento das condições de saúde da população pobre do bairro.
O serviço domiciliar, típica característica dos dispensários, funcionou desde os
primeiros dias de sua inauguração. Neste serviço, o médico assistia ao enfermo em sua
própria residência, obedecendo a uma divisão prévia dos logradouros, organizados em
oito áreas do bairro de Botafogo.
Nos primeiros anos de funcionamento da PCB, destacaram-se quatro serviços:
clínica de moléstias das crianças (pediatria), clínica de olhos (oftalmologia), clínica de
moléstias de garganta, nariz e ouvidos (otorrinolaringologia) e clínica de ginecologia e
obstetrícia e cirurgia geral. A assistência pediátrica era dirigida por Luiz Barbosa, a qual
se dedicou durante todo o período em que esteve a frente da direção da PCB. Segundo
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1357
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Barbosa (1908, pp. 69; 77-78), o serviço de oftalmologia, foi criada e chefiada pelo
médico Henrique Guedes Mello, atendendo as enfermidades oftalmológicas mais
frequentes como conjuntivite catarral, oftalmia em recém-nascidos, catarata e cisto
calázio. O serviço de otorrinolaringologia foi criado por Francisco Fernandes Eiras642 e
atendia os distúrbios mais comuns desta especialidade, como faringite catarral crônica,
faringite granulosa e rinite hipertrófica. Diferente destes serviços que possuíam apenas
um dispensário, a clínica de ginecologia e obstetrícia a princípio era dividida em dois
dispensários: um sob a direção de Candido de Andrade e o outro sob a responsabilidade
de Francisco Furquim Werneck, que também forneceu a maior parte do instrumental
médico para a clínica.
Ao se traçar uma comparação com a PGRJ em sua criação em 1882, verifica-se
que ambas as instituições possuíam dispensários para clínica cirúrgica, oftalmologia,
otorrinolaringologia, moléstias de sífilis e pele, moléstias do sistema nervoso e moléstias
de crianças. No entanto, na PCB não forma criados dispensários dedicados a moléstias de
coração e pulmões e patologia intertropical. Pelo contrário, na PGRJ não temos notícias
da existência de clínica dentária, vacinação, massagens e aplicações de eletroterapia. No
ano de 1907, segundo Barbosa (1908, p. 64.), a divisão de responsabilidades apresentava-
se mais organizada, com a definição dos cargos de chefe de clínica e de assistentes para
cada um dos serviços. Dessa maneira, a PCB passou a contar com quinze chefes de clínica
e vinte e dois médicos assistentes.
Considerando o balanço de sete anos descrito por Luiz Barbosa (1908, pp 66-67),
de 1900, ano do início das atividades até o ano de 1900, a PCB realizou 523063 consultas,
destacando-sepelo número de atendimentos a clínica pediátrica com 27099, a clínica
cirúrgica com 16637 e a clínica médica com 5265.
Em doze anos de funcionamento, a PCB realizou 117.058 atendimentos. A clínica
de cirurgia geral foi o serviço com maior atendimento, contabilizando 43.215 consultas,
seguido da clínica oftalmológica, clínica pediátrica e clínica médica, respectivamente
com 18.663, 12.014 e 8.748 atendimentos. Neste período a PCB realizou 1.216 operações
sendo 90% destes provenientes da clínica de cirurgia geral. As clínicas de obstetrícia e

642
Segundo Teixeira (2010), o médico Francisco Eiras foi o primeiro a discutir sobre o uso de eletroterapia
para retiradas de pequenos tumores cutâneos e em cirurgias de cânceres da boca.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1358
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ginecologia, oftalmologia, otorrinolaringologia e urologia, juntas, foram responsáveis por


apenas 10% dos casos cirúrgicos.
Para Barbosa (1908, p. 63), o fator fundamental para sobrevivência da PCB, ao
longo de sua trajetória, foi o seu financiamento viabilizado principalmente por meio de
doações da elite, que podiam ser avulsas, em forma de mensalidade ou no engajamento
de festas e eventos de caridades para angariar fundos. Além disso, existiram as
subvenções conferidas pelo poder público. Para Sanglard; Ferreira (2010, p. 52), neste
cenário, destacaram-se benfeitores como o conselheiro Catta-Preta, Eugenio José de
Almeida, Eduardo P. Guinle, Candido Gaffrée e senador Antonio Azeredo.
O financiamento da PCB, que possibilitou sua sobrevivência, era realizado
principalmente de doações da elite, donativos a partir de festas e eventos de caridades,
mensalidade dos sócios e subvenções conferidas da União e da Prefeitura, embora com
reduções súbitas, dado a crise político-econômica da nova república. Neste cenário, para
Sanglard; Ferreira (2010) destacaram-se benfeitores como o conselheiro Catta-Preta,
Eugenio José de Almeida, senador Antonio Azeredo, Oswaldo Cruz, Candido Gaffrée e
Eduardo P. Guinle.
De acordo com o balanço geral, realizado em 1908, por Dr. Luiz Barbosa (1908,
pp. 66-67),de 1900, ano da fundação da PCB, até o ano de 1907 foram realizadas
cinquenta e dois mil e trezentos e sessenta e três consultas. A clínica de moléstias de
crianças prestou assistência a 27099 pacientes.

FONTES DE JORNAIS E PERIÓDICOS MÉDICOS

Para a seleção das fontes impressas foram eleitos onze jornais - A Noite, Annuario
Fluminense, Correio da Manhã, Gazeta de Notícias, A Imprensa, A Notícia, Jornal do
Brazil, O Fluminense, O imparcial, O Jornal, O Paiz - e dois periódicos médicos - Brasil
Médico, União Médica, que circularam entre 1880 a 1935, fornecidos pela Hemeroteca
Digital e Biblioteca Nacional.

FONTES: DISCURSOS E PUBLICAÇÕES DO MÉDICO LUIZ BARBOSA

BARBOSA, Luiz. A Policlínica de Botafogo. Discurso proferido na festa de inauguração


da Policlínica de Botafogo em 10 de junho de 1900. Reeditado. Rio de Janeiro, 1934.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1359
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

_______________. Aspectos Gerais da Policlínica de Botafogo em 1935. O Hospital.


Publicações Médicas, v. 3, a. 8, maio 1936.

______________. Assistência domiciliária: instruções provisórias, 1920, p.73-74.

______________. Assistência médica no Rio de Janeiro: discurso proferido na cerimônia


da posse de membro honorário da Academia Nacional de Medicina em 22 de junho de
1916. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1916.

_______________. Farmacologia e Farmácia – Sua evolução, seu ensino e seu futuro.


Lição Inaugural de 04 de setembro de 1911.

______________. Novas iniciativas da Policlínica de Botafogo. Pediatria Prática. Revista


Mensal Clínica Infantil e Puericultura. Volume IV – Janeiro a Fevereiro de 1933 – F VIII
(I – 287,5,13, nº 1)

____________. Subsídios à história da Policlínica de Botafogo. Rio de Janeiro. Typ.


Bernard Fréres, 130, Buenos Aires, 1917.

______________. O primeiro distrito sanitário – Considerações Oportunas, s/e. Rio de


Janeiro, 1906, Pp. 01-44.

_______________. O Problema das Policlínicas – Alocução proferida na solenidade


comemorativa do 12º aniversário da Policlínica de Botafogo realizada em 23 de junho de
1912, Rio de Janeiro 1919, pp. 01-20.

_____________. Último quadriênio da Policlínica de Botafogo 1915–1919. Rio de


Janeiro, Imprensa Nacional, 1920.

BIBLIOGRAFIA

ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA. Membros da ACM. Disponível em <


http://www.anm.org.br/academicos.asp> acesso em 12 de maio de 2017.

AIRES NETO, José. A Policlínica de São Paulo. Um pouco da sua história. Separata.
Revista de Medicina e Cirurgia de São Paulo, v. 11, n. 02, 1951. pp. 47-54.

ARAÚJO, Achilles Ribeiro de. A assistência hospitalar no Rio de Janeiro no século XIX.
Ministério da Educação e da Cultura, Rio de Janeiro, 1982, p. 200-203.

ARAÚJO, Antonio José Pereira da Silva. Policlínica Geral do Rio de Janeiro. Discurso
proferido no dia 28 de junho de 1882. Rio de Janeiro, 1882, pp. 03-40.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1360
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BENCHIMOL, Jaime Larry; SÁ, Magali .Romero. Adolpho Lutz: Glossário. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.

BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario Bibliographico Brazileiro.


Imprensa Nacional, volumes I,II,III,IV,V,VI, VII. Rio de Janeiro, 1895.
BRASIL. Decreto nº 8587 de 17 de janeiro de 1882.

CORREA, Anderson Domingues et al . Similia Similibus Curentur: revisitando aspectos


históricos da homeopatia nove anos depois. Hist. Cienc. Saúde-Manguinhos, Rio de
Janeiro , v. 13, n. 1, p. 13-31, mar. 2006 .

COPE, Zachary. The influence of the free dispensaries upon medical education in britain.
Medical History, Vol. 13, Issue I. January 1969, pp. 29-36.

CROXSON, Bronwyn. The public and provate faces of Eighteenth Century London
Dispensary Charity. Medical History, 1997, 41: 127-149.

EDLER, Flávio Coelho. Ensino e profissionalização médica na corte de Pedro II.


UFABC, 2014. pp. 199-132.

ELLIS, Frank H. The background of the London Dispensary. Journal of the History of
Medicine and Allied Sciences. Julho, 1965.

FONSECA, Maria Rachel Fróes da. As 'Conferências Populares da Glória': a divulgação


do saber científico. Hist. Cienc. Saúde -Manguinhos, Rio de Janeiro , v. 2, n. 3, p. 135-
166, Feb. 1996 .

JACÓ-VILELA, Ana Maria. Dicionário Histórico de Instituições de Psicologia no


Brasil.Imago Editora, Rio de Janeiro, 2011.

KILPATRICK, Robert. Living in the light - dispensaries, philanthropy and medical


reform in late-eighteenth-century London. IN: CUNNINGHAM, Andrew et FRENCH,
Roger. The medical enlightenment of eighteenth century. Cambridge: Cambridge
University Press; 1990; p. 254-280.

LIMEIRA, Aline de Morais. Espaços mistos: o público e o privado na instrução do século


XIX. Rev. Brasileira de História da Educação, v. 11, n. 3 (27), 2011, p. 119.

LOUDON, I.S.L. The origens and growth of the dispensary movement in England. Bull
Hist Med., v. 55, n. 3, 1981 pp. 322-42.

MADEIRA, Almir. Evolução histórica e aspectos atuais da assistência médico-social da


criança brasileira, especialmente no estado do Rio. A Folha Médica, 25 de maio de 1947,
p. 74.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1361
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MARCÍLIO, M. L. A criança abandonada na história de Portugal e do Brasil. In:


VENÂNCIO, R. P. (Org.). Uma história social do abandono de crianças – de Portugal
ao Brasil: séculos XVIII-XIX. São Paulo: Alameda; Belo Horizonte: PUC-Minas, 2010.
pp.13-37.

NEEDELLL, Jeffrey D. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de


Janeiro na virada do século. Editora Schwarcz. Rio de Janeiro, 1987.

ROSENBERG, Albert. The London Dispensary for the Sick-Poor. Journal of the History
of Medicine and Allied Sciences. Vol. 14, n. 1., pp. 41.56. Janeiro, 1959.

ROSENBERG, Charles. Social class and medcial care in ninetheenth-century America:


the rise and fall of the dispensary. Journal of the history of medicine, janeiro 1974.

SANGLARD, G. Pobreza e filantropia: Fernandes Figueira e a assistência à infância


no Rio de Janeiro (1900-1920). Estud. Hist., Rio de Janeiro. v. 27, n. 53, 2014. p. 71-91

SANGLARD, G. Hospitais: espaços de cura e lugares de memória e saúde. Anais do


museu paulista. São Paulo. v. 15, n. 2. Jul-dez, 2007, pp. 257-289.

SANGLARD, G.; FERREIRA, L.O. Médicos e filantropos a institucionalização do


ensino da pediatria e da assistência à infância no Rio de Janeiro da Primeira República.
Varia Historia, Belo Horizonte, n. 44. vol. 26. jul/dez 2010 p.437-459,

SANTOS FILHO, L. de C. História Geral da Medicina Brasileira. Editora HUCITEC,


Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991. 480-485.

SILVA, Antonio Augusto Ferreira da. A policlínica de Niterói: seu estabelecimento, seus
serviços, suas estatísticas, de 1855-1890. Editora da Imprensa Local, 1904. pp. 03-91.

SILVA, André Felipe Cândido da. A trajetória de Henrique da Rocha Lima e as relações
teuto-brasileiras (1901-1956). Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro , v. 17, n.
2, p. 495-509, June 2010.

SILVA, André Felipe Cândido da. Um brasileiro no Reich de Guilherme II: Henrique da
Rocha Lima, as relações Brasil-Alemanha e o Instituto Oswaldo Cruz, 1901-1909. Hist.
cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro , v. 20, n. 1, p. 93-117, Mar. 2013 .

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Filantropia e imigração – A caixa de socorros de D.


Pedro V, Guanapá Gráfica e Editora, 1990, p.102..

SINDICATO DOS CIRURGIÕES DENTISTAS DO RIO DE JANEIRO. 85 anos do


SCDRJ, uma viagem ao tempo. Disponível em <http://scdrj.org.br/?page_id=56> acesso
em julho de 2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1362
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

STURDY, Steve; COOTER, Roger. Science, scientific management, and the


transformation of medicine in Britain c. 1870-1950. History of science. Vol. 36. N. 114.
Dezembro, 1998

TEIXEIRA, Luiz Antonio. O controle do câncer no Brasil na primeira metade do século


XX. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 17, n. 1, 2010.

VIEIRA, Paulo Ernani Gadelha. Assistência Médica no Rio de Janeiro (1920-1937).


Reformas Institucionais e transformações da prática médica. Dissertação apresentada à
Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social. Rio de Janeiro,
1982.

WITHEY, Alun. Medicine and Charity in Eighteenth-century Northumberland: The early


years of Bamburgh Castle Dispensary and Sugery, c. 1772-1802. Social History of
Medicine. Vol. 29, n. 3, p. 467-489. Maio 2016.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1363
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A ditadura civil-militar e os acordos nucleares Brasil-EUA e Brasil-Alemanha


Ocidental

HELEN MIRANDA NUNES


Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais
CPDOC/FGV

Introdução

O artigo analisa a ideia de nacional-desenvolvimentismo643 e sua relação com a


ditadura civil-militar (1964-1985). O objetivo é contextualizar, na historiografia, o
programa atômico brasileiro, em particular, os acordos nucleares entre Brasil-EUA e
Brasil-Alemanha durante a ditadura. O Brasil buscou parcerias internacionais para o
próprio desenvolvimento atômico. A pergunta de partida é: Quais fatores explicam as
motivações e os efeitos da tentativa de transferência de tecnologia nuclear desses acordos
para o Brasil? Segue a hipótese de que a ditadura retomou concepções políticas orientadas
pelo nacional-desenvolvimentismo em uma conjuntura histórica onde foi possível
escamotear o desenvolvimento da tecnologia sensível de ponta, o que gerou diversas
controvérsias e polêmicas tanto no âmbito doméstico quanto internacional. Além desta
breve introdução, o artigo contém uma seção dedicada ao estado da arte da literatura sobre
ditadura e outra sobre os acordos nucleares entre Brasil e EUA e entre Brasil e Alemanha
e a conclusão.

O Estado da arte da literatura sobre ditadura

Ao longo da história republicana, o Brasil esteve longe de alcançar um Estado


democrático consolidado. Atravessou crises políticas, econômicas e sociais. A ideia de
democracia entendida no passado não é a mesma que se entende hoje, mas, para o presente
artigo, é possível entendê-la como uma expectativa social por maior participação na

643
No Brasil, os novos esforços de desenvolvimento uniram-se para a promoção industrial. O projeto
defendia a propriedade estatal das indústrias de infraestruturas básicas e a coordenação da economia por
diferentes incentivos financeiros. Tal agenda foi baseada na Comissão Econômica para a América Latina e
o Caribe (CEPAL) e nas Comissões Mistas Brasil-EUA nos anos 50 e 40 (IORIS, 2017).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1364
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

construção do Brasil moderno inclusivo e igualitário. A transição para a democracia


“lenta, gradual e segura” feita de “cima para baixo” não aprofundou, plenamente, a
inserção dos desejos comuns e coletivos. Com o atual colapso da “Nova República”,
experiências autoritárias parecem estar de volta com roupagem judicial e policial como
solução para problemas estruturais. Nesta atual conjuntura, faz-se imprescindível retomar
o período autoritário para rediscutir um Brasil moderno, de fato, democrático, inclusivo
e sustentável.
Muitas análises sobre a ditadura (1964-1985) já foram feitas. Uma revisão recente
feita por Carlos Fico levantou importantes obras para discutir questões teórico‐
conceituais historiográficas como, o revisionismo feito por marxistas àqueles que acusam
Jango de golpista ou questionam o caráter democrático da esquerda ou lançam mão do
conceito de “cultura política” e evitam “classe social”; as questões de Daniel Aarão Reis
Filho à memória da luta armada; a retroalimentação entre luta armada e repressão; o
debate sobre nomes e datas; e o entendimento do autor sobre a saída da ditadura como
projeto de longa duração e maturação pouco influenciado pela oposição ao regime (FICO,
2017, p. 7-8).
Para Carlos Fico, até os anos 1980, os debates teóricos da ditadura diziam respeito
aos modelos de interpretação da Ciência Política. As informações provinham da
imprensa, de discursos e de memórias. No entanto, a escassez de fontes documentais não
existe mais porque, para o autor, o regime militar preservou acervos abertos à consulta, o
que expressa em “ditadura documentada”. Se o desafio anterior eram as fontes, agora
passou a ser o estabelecimento de novas interpretações e de hipóteses explicativas – etapa
epistemológica mais difícil (FICO, 2017, p. 7-8).
Um aspecto da ditadura a ser destacado neste presente artigo diz respeito à relação
direta e indireta dos militares com a classe empresarial. Em relação ao programa nuclear,
além dos interesses das forças armadas atraídas pelo desejo de obter tecnologia estratégica
para defesa e para o submarino de propulsão naval e dos cientistas para garantir recursos
para tecnologia, pesquisa e inovação, a energia atômica atraía também o interesse das
empreiteiras para obras da engenharia nuclear. Tais empreiteiros estiveram ao lado dos
militares desde o golpe. Quem demonstra isso é Pedro Henrique Campos (2014). Em sua
tese (2012) e em artigo (2017), Campos mostra a atuação da empreiteira baiana Odebrecht
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1365
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

no setor militar estabelecida a partir da Petrobras – onde Geisel havia sido presidente – o
que permitiu à Odebrecht obras de “segurança nacional”, como usinas nucleares e estação
naval. Essas experiências foram importantes para aquisição de projetos, sem
concorrência, como os estaleiros do submarino nuclear (CAMPOS, 2012, p. 116)
(CAMPOS, 2017, p. 261).
Outro autor importante para o debate é Rafael Ioris (2012). O autor analisou fontes
dos sindicatos dos metalúrgicos no governo Juscelino Kubitschek (JK), e não da ditadura,
mas chegou à seguinte conclusão:

Com seus esforços consistentes para ter suas visões levadas a sério, os
metalúrgicos influenciaram setores crescentes do trabalho industrial
com demandas e proposições que encontrariam progressivamente
ressonância entre setores diferentes da população brasileira. À medida
que a década de 1960 avivava o país, um caminho de mobilização
trabalhista crescente era cada vez mais notável, ao lado da polarização
política que atingia a maior parte dos segmentos da sociedade brasileira
como um todo. Esta tendência histórica culminaria no colapso da
administração populista e na chegada ao poder de um regime militar
cujas raízes históricas devem ser buscadas nas experiências de
desenvolvimento dos anos JK (IORIS, 2012, p. 284).

Para Campos, se, no período JK, as empresas brasileiras da construção pesada


conseguiram alcançar um patamar nacional, ao longo da ditadura, tais companhias se
converteram em grupos monopolistas e conglomerados econômicos com atuação
nacional e internacional. A ditadura é o período-chave para compreender o porte
alcançado por elas. Com Costa e Silva, a nova correlação de forças deu uma guinada,
resultando em forte política de investimentos públicos e incentivo ao crescimento
econômico, ativando, em escala inédita, as empresas brasileiras de construção. O
chamado “milagre” econômico foi favorável às construtoras nacionais e marcado por
altos lucros empresarias (CAMPOS, 2012, p. 131-132).
Para Napolitano, entre a democracia de 1946 e a ditadura de 1964, há diversas
conexões no plano econômico. Em ambos os momentos históricos, o principal
beneficiário do desenvolvimento foi o grande capital nacional e, sobretudo, o
internacional. A diferença é que a política econômica implementada após o golpe de 1964
veio provar que, entre os dois ramos do capital, havia mais complementaridades do que

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1366
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

conflitos (NAPOLITANO, 2014, p. 135). Para Campos, com empréstimos internacionais,


as agências estatais fizeram investimentos que repetiam, grosso modo, o Plano de Metas
de JK. No período Costa e Silva/Médici, houve amplos dispêndios em transportes com
ênfase no modelo rodoviário e em energia. No período JK, esses dois pilares eram
colocados sob “energia e transporte”. Desde então, representavam rodovias, hidrelétricas
e serviços de engenharia. A ditadura, além desses campos, se empenhou em robustos
projetos como aeroportos, portos militares, usinas e emissários nucleares, permitindo
novos nichos de atuação para as empreiteiras (CAMPOS, 2012, p. 131-132).
O presente artigo visa a realçar um aspecto da ditadura relacionado à participação
das empresas com ênfase no setor da energia nuclear. A ditadura militar teve apoio de
vários setores da sociedade e isso precisa ser mapeado e bem compreendido. Não se
pretende discutir aqui qual é a nomenclatura ideal para o período (ditadura civil-militar
ou empresarial-militar ou militar). O objetivo da presente análise é verificar os grupos de
interesse presentes na ditadura para a busca do desenvolvimento atômico brasileiro, suas
principais motivações, as conexões internacionais e as consequências disso tudo para a
sociedade.

Motivações e efeitos dos acordos nucleares entre Brasil-EUA e Brasil-Alemanha

Primeiramente, as relações nucleares Brasil-EUA durante a segunda metade do


século XX e a política nuclear do país precisam ser contextualizadas. Desde 1953, os
EUA estabeleceram o programa Átomos para a Paz para uso pacífico da energia nuclear.
Tal programa significava, para os não detentores do conhecimento nuclear, a continuação
de importadores da tecnologia e mero exportadores de matérias primas. Por meio deste,
o Brasil e os EUA assinaram um acordo em que o Brasil compraria, dos americanos,
reatores de pesquisa com a utilização da tecnologia do urânio enriquecido. Esse acordo,
contudo, gerou polêmica nos meios científicos, acirrando um conflito entre os que
defendiam a importação da tecnologia americana e os que desejavam outra tecnologia,
usando urânio natural e tório, para desenvolver uma política científica nacional (COSTA,
2017).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1367
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O primeiro choque do petróleo atingiu em cheio a economia brasileira. O


desenvolvimento com financiamento externo entrou em crise. A balança comercial, que
já era deficitária no “milagre”, passou a ter elevados saldos negativos, em função dos
gastos com importação de combustíveis e matérias-primas. Isso tudo levou à modificação
da estratégia de desenvolvimento, com reorientação do crescimento industrial para bens
de capital e, diante da limitada liquidez internacional, com amplo aporte estatal para
produção doméstica de materiais até então importados. O plano era substituir fontes
fósseis por alternativas como álcool, energia hidrelétrica e nuclear. No período Geisel,
houve uma reconfiguração do grupo empresarial dirigente, com ascensão de novas
frações e relativo afastamento de outras. Tiveram mais poder grupos alternativos, como
a empresa baiana Odebrecht. O II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) propunha
manter altas taxas de crescimento econômico por meio de investimentos estatais, cuja
capacidade deveria substituir a importação de insumos industriais. Novas obras – o que
incluiu usina nuclear – foram voltadas para atuação das grandes empresas em função do
potencial de capital técnico e político, em detrimento das pequenas e médias (CAMPOS,
2012, p. 426-428). Para Napolitano, a política econômica de Geisel visava evitar gargalos
energéticos e de bens intermediários para manter a produção de bens de consumo e
tentava reforçar o mercado interno, o protecionismo setorial e a autossuficiência
energética com recursos externos e endividamento estatal (NAPOLITANO, 2014, p.
137).
A compra do reator da empresa americana Westinghouse, em 1971, a ser instalado
na usina nuclear Angra I, representou a vitória daquele grupo favorável ao
desenvolvimento nuclear no país associado à tecnologia norte-americana. No entanto, a
expansão do mercado internacional de reatores nucleares e a decisão unilateral dos EUA
de suspender, em 1974, o fornecimento do urânio enriquecido forçaram o Brasil a
redefinir sua política nuclear. Nesse contexto, insere-se o acordo nuclear com a Alemanha
Ocidental em 1975. Por meio das negociações com a Alemanha, o Brasil se comprometeu
a desenvolver com a empresa Kraftwerk Union (KWU) (subsidiária da Siemens) a
construção de reatores nucleares para a geração de eletricidade e de indústria teuto-
brasileira para a fabricação de componentes e de combustível para reatores nucleares no
Brasil (COSTA, 2017).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1368
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para Rafael Brandão, a indústria nuclear mundial caracteriza-se pelo intensivo


investimento de capital, pela utilização da tecnologia sensível de ponta e pelo alto grau
de internacionalização (BRANDÃO, 2008, p. 109). Além disso, a energia nuclear possui
um caráter peculiar: a sua dualidade tecnológica usada tanto para fins pacíficos – como
em produção de eletricidade ou em reatores multiprópositos para detectar diagnósticos de
doenças - quanto bélicos – ou seja, bombas atômicas, o que por si só, é um elemento de
barganha geopolítica e estratégica nas relações internacionais.
O acordo teuto-brasileiro não prometeu a tecnologia do urânio enriquecido –
desejada pelos militares – mas uma tecnologia chamada jet-nozzle em fase experimental
que jamais foi plenamente desenvolvida. Para o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva,
pai do programa nuclear paralelo ao civil criado na ditadura e atualmente preso e ex-
presidente da Eletronuclear até o governo Dilma, o acordo nuclear com a Alemanha foi
“golpe comercial” (SILVA, 2014, p. 156). Adicionalmente, no cenário internacional,
naquela época, o Brasil não havia assinado o Tratado de Não Proliferação de Armas
Nucleares (TNP), mas firmou, em 1976, um acordo com Alemanha e Agência
Internacional de Energia Atômica (AIEA) de salvaguardas nucleares mais rígidas do que
as do TNP. Em face das falhas desse acordo teuto-brasileiro e da oposição estadunidense,
os militares passaram a desenvolver, secretamente, a partir de 1979, um programa nuclear
paralelo ao oficial visando à tecnologia para o enriquecimento de urânio com colaboração
do Centro Técnico Aeroespacial da Aeronáutica e do Instituto de Pesquisas Energéticas
e Nucleares de São Paulo (COSTA, 2017).
Apesar da tentativa norte-americana para cancelá-lo, o acordo Brasil-Alemanha
foi adiante com a construção da usina de Angra II. Segundo Campos, a Odebrecht ganhou
o direito de construir todas as usinas previstas sem nenhuma concorrência. Acerca disso,
Shigeaki Ueki, ministro de Minas e Energia, afirmou: “A referida construtora ganhou a
concorrência para Angra I e recebeu a extensão do contrato para Angra II e III, uma vez
que possuía a infraestrutura necessária a esse tipo de obra”. Além disso, em 1977, Geisel
nomeou o diretor da Odebrecht, Ângelo Calmon de Sá, para o Ministério de Indústria e
Comércio, assinando contratos para as usinas de Angra I e II, que permitiam apresentação
de custos suplementares sem limites para construtora. A partir de 1977, com os cortes
estatais, as verbas da construção das usinas experimentaram, porém, menos reduções do
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1369
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que outros empreendimentos. As usinas permaneciam a pleno vapor, o que permitiu à


Odebrecht manter seus serviços, enquanto outras empreiteiras passavam por falta de
contratos. Representantes da Companhia Elétrica de São Paulo (Cesp) tentaram
recorrentemente junto ao governo federal licença para construir usinas nucleares em São
Paulo. Por trás estavam a Camargo Corrêa e outras empreiteiras paulistas interessadas.
Geisel negou todos os pedidos, apesar da inclinação à Camargo Corrêa por seu ministro
Ueki (CAMPOS, 2012, p. 473-474).
Com problemas nas obras, a ditadura chegou ao fim com uma usina nuclear
funcionando precariamente (Angra I), conhecida como “vaga-lume”, via acordo
tecnológico da empresa americana Westinghouse; Angra II em obras; e a terceira em
trabalhos iniciais. Entre as críticas, sobressaíam o alto preço e o custo da construção. A
tese da necessidade das usinas pautada em leituras questionáveis dos grandes construtores
escondia a capacidade de pequenas centrais hidrelétricas. O aumento dos custos, a falta
de projeto de engenharia e a constante ação das empresas concorrentes levaram às
denúncias na imprensa e no Congresso - o que resultou na Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) de 1978 para investigar várias irregularidades denunciadas. Apesar das
críticas e da perda de Angra III pela Odebrecht, a construção das duas centrais nucleares
garantiu uma projeção nacional maior do que a Odebrecht já possuía. Os projetos da
ditadura incluíram grandes demandas de engenharia, atendendo as empreiteiras com
oportunidades exclusivas para erguer “estranhas catedrais”644 de uso das forças armadas
(CAMPOS, 2012, p. 475-479).
Para Patti, se o objetivo inicial era obter a tecnologia para produzir hexafluoreto
de urânio, o programa paralelo ao civil incluiu todas as etapas da produção da energia
atômica, a construção de reator para propulsão nuclear naval e, possivelmente, o
desenvolvimento de bombas. O programa paralelo das forças armadas não era ligado à
cooperação internacional, não era sujeito ao regime de salvaguardas internacionais e não
obedecia às restrições impostas pelos EUA e pelo Nuclear Suppliers Group - cartel de
países produtores de tecnologias nucleares. O programa paralelo só se tornou público

644
Referência à música “Vai passar” do Chico Buarque: “[...] Dormia a nossa pátria mãe tão distraída sem
perceber que era subtraída em tenebrosas transações... Seus filhos erravam cegos pelo continente, levavam
pedras feito penitentes, erguendo estranhas catedrais” (BUARQUE, 1984).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1370
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

após o fim da ditadura. Em 1987, Sarney anunciou publicamente que o Brasil tinha
alcançado a capacidade de enriquecer, autonomamente, urânio por meio de um programa
nuclear mantido secreto. O programa foi fechado no governo Collor quando unificado ao
programa civil baseado na cooperação com a Alemanha e com o fim de um campo de
teste de explosivos em base da Aeronáutica (PATTI, 2014, p. 9).
A construção das usinas nucleares brasileiras, na ditadura, é um escândalo com
várias denúncias. Para Campos, teve como elemento de bastidor o conflito de interesse
entre empreiteiras paulistas e de outras regiões. A realização das duas usinas em Angra
pela Odebrecht a fortaleceu intensamente, dando-lhe inserção em Furnas e nos meios
militares - com consequências até hoje. As obras de Angra I e II geraram tantas atividades
à empreiteira baiana que ela teve, em 1979, o segundo maior faturamento do país, superior
à Camargo Correia (CAMPOS, 2012, p. 473). Ademais, se a ditadura constituiu um
momento decisivo para ascensão dessas empreiteiras como grandes grupos empresariais,
a manutenção de seu poder se deve justamente ao vínculo, presença e até controle que
esse capital monopolista deteve sobre o Estado no período posterior à ditadura até os dias
atuais (CAMPOS, 2017, p. 269-270).
Apesar do foco do presente artigo ser o Brasil, Brandão afirma que as condições
impostas pela indústria nuclear alemã, para a participação na execução do amplo acordo
de cooperação nuclear propiciou, na verdade, uma reserva de mercado para a própria
tecnologia e equipamentos da Alemanha. Foram essas condições aceitas pelo Brasil na
visão do autor. Não houve, portanto, a tão sonhada independência econômica e
tecnológica propagada pelos defensores desse acordo nuclear (BRANDÃO, 2008, p.
113).

Considerações finais

O presente artigo é baseado na tese em andamento sobre tema correlato. Por isso,
mais questões do que respostas são levantadas: será que o acordo teuto-brasileiro foi uma
forma de desviar o desenvolvimento da tecnologia sensível que poderia ser usada para
fins bélicos? E por que um programa paralelo ao civil? Perguntas que merecem uma
profunda investigação. Que houve uma grande operação de favorecimento à Odebrecht
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1371
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

em detrimento das empreiteiras paulistas no governo Geisel está comprovado por Campos
e, por isso, o conflito entre os lobbies. O acordo teuto-brasileiro foi somente um golpe
comercial? Não houve pensamento geoestratégico e cálculo geopolítico? Muitas são as
facetas e polêmicas desse fascinante problema historiográfico. A tecnologia prometida
pela Alemanha não servia aos interesses dos envolvidos e, mesmo assim, o acordo foi
assinado. Apesar disso e de todos os escândalos, o Brasil alcançou a etapa completa da
produção da tecnologia nuclear, além de ter feito Angra I e II e iniciado Angra III.
Por fim, o modelo de desenvolvimento que modernizou o Brasil republicano veio
a partir da experiência autoritária com exclusão social pautada, em grande medida, nos
interesses dos “donos do capital” não apenas nacional, mas internacional. No período JK,
diz Ioris, o nacional-desenvolvimentismo já era criticado pelos trabalhadores organizados
quando exemplificou os movimentos em favor da carestia. Desse modo, há um profundo
desejo coletivo, histórico e acumulado de melhoria em itens básicos de consumo público
como educação, saúde e segurança. Com a ascensão do governo Lula, essas políticas
tomaram nova configuração. A ideia de um novo desenvolvimento voltou com força, o
que incluiu a retomada do programa nuclear, um exemplo, como parte da promoção do
desenvolvimento e da estratégia nacional de defesa. Apesar disso, o não investimento
público pesado em itens de consumo público e, não apenas privado, explica a enorme
diferença entre padrão de vida e qualidade de vida. Crescimento econômico com inclusão
via consumo não gerou a melhoria dos serviços públicos. Portanto, fica uma reflexão do
economista Lessa (2015), ex-presidente do BNDES, em que diz: “hoje a questão urbana
dramatiza escolhas que deverão modificar significativamente as prioridades do país, por
exemplo, transporte coletivo de qualidade ou/e multiplicação da frota de automóveis
individuais?” (LESSA, 2015). Ou seja, investimento pesado na mobilidade urbana com
transporte público de qualidade com pleno aporte em infraestrutura energética sustentável
e que funcione de verdade ou carro particular para todo mundo?

Referências

BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta. O negócio do século: O acordo de cooperação nuclear


Brasil-Alemanha. 2008. 129 f. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Ciências

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1372
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2008. (Orientador: Théo


Lobarinhas Piñeiro).

BUARQUE, Chico. Vai passar. In: Chico Buarque. Barclay/Polygram/Philips.1984.

CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. A ditadura dos empreiteiros: As empresas nacionais


de construção pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-
1985. 2012. 584 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2012. (Orientadora: Virgínia
Fontes).

______. Estranhas Catedrais: As empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-


1985. 2a ed. Niterói: Eduff, 2014. (Reimpressão 2017).

______. Os Camargo, os Andrade e os Odebrecht: As grandes famílias brasileiras da


construção civil. In: CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira; BRANDÃO, Rafael Vaz da
Motta (Org.). Os Donos do Capital: a trajetória das principais famílias empresariais do
capitalismo brasileiro. Rio de Janeiro: Autografia, 2017. p. 227-270.

COSTA, Célia Maria Leite. Fato e Imagens: artigos ilustrados de fatos e conjunturas do
Brasil. Acordo Nuclear Brasil-Alemanha. CPDOC/FGV website. Rio de Janeiro, 2017.
Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AcordoNuclear>.
Acesso em: 5 jul. 2017.

FICO, Carlos. Ditadura militar brasileira: aproximações teóricas e historiográficas.


Revista Tempo & Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 5-74. jan./abr. 2017.

IORIS, Rafael. ‘Fifty years in Five’ and What’s in it for us? Development promotion,
populism, industrial workers and carestia in 1950s Brazil”. Journal of Latin American
Studies, v. 44, p. 261-284, 2012.

______. Qual desenvolvimento? Os debates, sentidos e lições da era desenvolvimentista.


Jundiaí: Paco, 2017.

LESSA, Carlos. Entrevista concedida à Helen Miranda Nunes. InfoNEIBA: Jornal


Informativo do Núcleo de Estudos Internacionais Brasil-Argentina, Rio de Janeiro, Ano
III, n. 2, jul.-dez. 2015. Disponível em: <https://www.neiba.com.br/single-
post/2016/03/11/Nova-edi%C3%A7%C3%A3o-do-jornal-InfoNEIBA-201524>. Acesso
em: 15 jul. 2017.

NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo:


Contexto, 2014.

PATTI, Carlo. Introdução. In: PATTI, Carlos (Org.). O programa nuclear brasileiro: Uma
história oral. CPDOC/FGV website. Rio de Janeiro: FGV, 2014. Disponível em: <

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1373
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

http://ri.fgv.br/noticias/2015-03-24/lancamento-o-programa-nuclear-brasileiro-uma-
historia-oral>. Acesso em: 12 jul. 2017.

SILVA, Othon Luiz Pinheiro da Silva. Depoimento concedido a Marly Motta, Matias
Spektor, Tatiana Couto e Lucas Nascimento em 2010. In: _______. O programa nuclear
brasileiro: Uma história oral. CPDOC/FGV website. Rio de Janeiro: FGV, 2014.
Disponível em: < http://ri.fgv.br/noticias/2015-03-24/lancamento-o-programa-nuclear-
brasileiro-uma-historia-oral>. Acesso em: 12 jul. 2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1374
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os tempos do movimento slow e as políticas do tempo no regime presentista.


Outros tempos, novos desafios

HELIANA DE JESUS MACHADO


Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História Social645 – UNIRIO
Bolsista Capes

Recentemente falecido, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman foi um eminente


estudioso das condições sociais dos nossos tempos. De suas abordagens, destaca-se sua
tese sobre a experiência da “modernidade líquida” (BAUMAN, 2001). Nos termos do
autor, “vivemos em tempos líquidos onde nada é feito para durar”. É partindo da
experiência destes novos “tempos líquidos” (BAUMAN, 2007a) que podemos pensar
sobre a iminência de uma nova modalidade temporal na atualidade ocidental.
Denominado pelo historiador francês François Hartog, o regime de historicidade
presentista, característico destes novos tempos, constitui-se como a experiência de ser “o
presente único: o da tirania do instante e da estagnação de um presente perpétuo”
(HARTOG, 2013, p. 11). Não mais imaginado como um meio para um futuro glorioso,
tal como elaborado pela filosofia da história no contexto da Modernidade (KOSELLECK,
2006, p. 35), o presente dos nossos dias revelar-se-ia então como meio e fim de si mesmo.
Entretanto, mesmo tendo submetido a si as demais instâncias temporais do
passado e do futuro, o presente não tem sido capaz de se esquivar a outras formas de
imaginação e de percepção temporais frutos mesmo deste cenário. Neste sentido, a
emergência dos debates sobre as “políticas do tempo” (OSBORNE, 1995) ganha enorme
relevância por trazer à mesa a necessidade de serem pensadas outras formas de
elaborações temporais que se proponham mais democráticas e que extrapolem a já
criticada linearidade cronológica da disciplina histórica. Elencamos deste modo, o
movimento slow646 (ou movimento devagar) a fim de pensarmos sobre este assunto.

645
Sob orientação do Professor Doutor Rodrigo Turin.
646
De acordo com o site oficial do movimento slow (http://www.slowmovement.com/), a proposta slow
living caracteriza-se pela busca de uma maior conscientização individual quanto à necessidade de refrear
as imposições da aceleração na realidade contemporânea. Neste sentido, a ideia de pensar e agir mais
devagar deriva da consciência dos “custos biológicos” que a dinâmica de uma vida cada vez mais veloz
tem cobrado dos indivíduos. Assim, entende-se que, apenas a partir da desaceleração e da busca por uma
estruturação de vida mais simples é que o sujeito poderá atingir a harmonia consigo mesmo e com o meio
em que vive.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1375
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Assim, o primeiro problema que nos orientará será o de questionarmos como o


movimento slow se qualifica no âmbito das políticas de tempo a partir das dinâmicas de
aceleração e dessincronização próprias do capitalismo tardio. Como desdobramento,
tentaremos então responder a uma outra pergunta, desta vez mais abrangente: como o
slow ajuda a problematizar as políticas do tempo na contemporaneidade? Em se tratando
de estudo de caso, trabalharemos especificamente com a vertente slow food deste
movimento.
Se as premissas que orientam esta pesquisa são inegavelmente atuais e se o pano
de fundo que a configura é o conjunto das experiências que já tornaram clichê frases como
“não tenho tempo” ou a ideia de uma experiência angustiada do tempo, os estudos
históricos sobre o assunto, mais precisamente sobre o movimento slow, ainda são
incipientes. Nas investigações realizadas para a elaboração deste trabalho, não foi
possível encontrar qualquer esforço de pesquisa no âmbito da disciplina da História sobre
o assunto. Algumas das suspeitas que poderiam explicar esta situação envolveriam um
possível desconhecimento por parte dos historiados devido, primeiramente, à pouca
informação sobre o assunto, já que embora seja um movimento surgido ainda em meados
dos anos de 1980, apenas recentemente suas demandas e motivações têm sido difundidas
com maior abrangência via internet. Esta conjectura levaria a uma segunda possibilidade
que seria o desapreço daqueles que conhecem ao menos um pouco sobre este movimento
e que poderiam conceber a proposta de uma “mentalidade/vida slow” como mais um
dentre tantos modismos encarados sob a ótica nostálgica da moda retrô. Uma terceira
hipótese, por fim poderia ser atrelada à impossibilidade da implementação real das
premissas do slow, caracterizadas, sobretudo pela noção de desaceleração, desejo tão caro
àqueles que vivem e dependem do modus operandi das grandes cidades.
Logo, a intenção desta pesquisa parte também da evidência de uma lacuna na
disciplina histórica sobre o assunto. Assim, espera-se que seja possível contribuir para o
aprofundamento da reflexão sobre os problemas que envolvem as relações do tempo
contemporâneo precisamente a partir da consideração de dados ainda não explorados pela
ótica dos conceitos e da perspectiva historiográfica. Paralelamente, tal reflexão almeja o
diálogo interdisciplinar entendendo que o cerne da questão que aqui nos sobressai ao

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1376
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

interesse (o homem e sua relação com o tempo) não é exclusividade da História, mas
como pensado por Wihlem Dilthey, das “ciências do espírito”.
Deste modo, embora a História ainda não ofereça subsídios bibliográficos para
pensar sobre o movimento slow especificamente, este tem sido objeto de análise
principalmente no âmbito dos estudos sobre cultura, tecnologia e informação. Este é o
caso dos trabalhos de Sarah Sharma647, autora do livro In the meantime (SHARMA,
2014). E também de Lutz Koepnick648 autor do livro On Slowness: Toward an Aesthetic
of the Contemporary (KOEPNICK,2014) A despeito de não se debruçarem apenas sobre
o conceito e a forma de atuação do movimento slow, tais autores nos fornecem
interessantes perspectivas sobre o assunto. Partindo da premissa que caracteriza o slogan
do movimento, ou seja, a proposta de desaceleração, Sharma e Koepnick analisam o slow
também a fim de compreende-lo como mais uma faceta dos empreendimentos capitalistas
dos últimos tempos. Afinal, em um cenário no qual o tempo tem parece ter valor
monetário, a quem poderia ser dado o deleite de viver de maneira devagar? Qual é o preço
cobrado para conseguir desacelerar? Tais perguntas aventam uma perspectiva que pontua
como imprescindível uma consideração que relacione tempo e espaço no contexto destas
novas experiências e propostas. É partindo deste ponto de vista que Sarah Sharma
identifica que o seu livro “busca balancear o imaginário temporal com o imaginário
espacial”649 (SHARMA, 2014, p. 10). Assim, essas inquirições corroboram com a
maneira perspectivada com a qual Hartog discorre acerca do regime de historicidade
presentista. Segundo ele,

Longe de ser uniforme e unívoco, este presente presentista é


vivenciado de forma muito diferente conforme o lugar ocupado
na sociedade. De um lado, um tempo dos fluxos, da aceleração e
uma mobilidade valorizada e valorizante; do outro, aquilo que
Robert Castel chamou de précariat, isto é, a permanência do
transitório, um presente em plena desaceleração, sem passado –
senão de um modo complicado (mais ainda para os imigrantes, os

647
Sarah Sharma é atualmente professora e diretora do Mc Luhan Centre for Culture and Technology da
Universidade de Toronto
648
Lutz Koepnick atua como professor de alemão, cinema e media da GERTRUDE CONAWAY
VANDERBILT em Nashville.
649
“In the Meantime seeks to balance the special imaginary with a temporal imaginary”.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1377
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

exilados, os deslocados) -, e sem futuro real tampouco (o tempo


do projeto não está aberto para eles). (HARTOG, 2013, p.14).

Já citado, cabe agora tratarmos acerca da importância dos trabalhos de François


Hartog à presente pesquisa. Consideramos aqui sobretudo sua tese quanto aos chamados
regimes de historicidade, mais especificamente sobre a experiência presentista na
atualidade. Tal como pensado por Hartog, a noção de presentismo nos servirá como
instrumento de análise não apenas a fim de perscrutarmos as temporalidades que estão
em jogo no movimento slow, mas também quanto à reflexão acerca dos sintomas que
possibilitam usar a chave heurística dos regimes a fim de melhor compreendermos a
experiência temporal dos nossos dias. Portanto, ao proporcionar uma melhor
inteligibilidade quanto às “maneiras de ser no tempo”, o regime presentista nos fornecerá
as ferramentas necessárias a fim de que possamos examinar quais seriam os indícios que
nos possibilitam vislumbrar o presente como uma nova forma de experiência. A fim de
melhor desenvolver sua arguição, Hartog tomará de empréstimo as categorias meta-
históricas de “espaço de experiência” e “horizontes de expectativas” tal como formuladas
por Reinhart Koselleck. Do autor, também ganhará destaque a noção de “simultaneidade
do não simultâneo” (KOSELLECK, 2006, p.121), elaboração de fundamental
importância na medida em que permitirá discutir sobre a não-homogeneidade do
imperativo da aceleração – especialmente os efeitos de assincronia da aceleração –
pressuposto esse elementar quando relacionado às reflexões acerca das articulações entre
espaço e tempo para pensar.
Ainda no esboço de uma discussão bibliográfica, reitera-se a pertinência dos
trabalhos de Peter Osborne, principalmente a obra The politics of time: Modernity and
Avant-Garde. Ao tratar em recente artigo sobre as problemáticas inerentes às políticas do
tempo e ao surgimento de novas demandas originadas da recente condição pós-colonial,
o professor e historiador Arthur Ávila sugere de forma sucinta uma apropriada definição
para a noção de “políticas do tempo”. Segundo Arthur, o termo refere-se à “[...]
organização política do tempo histórico, isto é, um dado modo de se ordenar as relações
entre passado, presente e futuro e manifesta o âmbito performático de nossas relações
com ele” (AVILA, 2016, p. 190). Em outras palavras, a ideia de “políticas do tempo” está

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1378
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

relacionada ao debate acerca das temporalidades ora silenciadas em função do exercício


de uma temporalidade dominante, qual seja aquela sob orientação da própria disciplina
histórica oitocentista alicerçada sob os pressupostos civilizatórios da Modernidade. Trata-
se da constatação da existência de experiências temporais em conflito que devido a
visibilidade proporcionada pelos meios tecnológicos das mass media, atualmente
adquirem grande visibilidade no âmbito do debate público. Por conseguinte, ganham
destaque noções como memória, patrimônio, legitimidade histórica e identidade.
Também é necessário citar as contribuições de Hartmut Rosa, afinal a ele são
dados os créditos para o uso de noções como “aceleração social” e “dessincronização”
(ROSA, 2009). Segundo Rosa, a rapidez das mudanças engendradas pela aceleração do
ritmo de vida, ou seja a aceleração social, caracterizada especialmente a partir do advento
da terceira revolução técnica, não se dá de maneira sincronizada em todos os níveis que
demarcam a estrutura das sociedades ocidentais. Para o autor, o conflito entre as forças
de aceleração e os ritmos mais lentos de determinadas instâncias sociais (especialmente
a política e a economia) seria determinante para que, a partir de uma perspectiva
sistemática, fossem geradas as condições para um permanente estado de dessincronização
no ritmo total da sociedade. Logo, a dessincronização seria produto automático da
condição de existência de cadências temporais distintas responsáveis pela sensação de
desorientação do indivíduo e de sua perda na crença em instituições, como a política,
incapazes de acompanhar a velocidade das demandas populares.
No que tange à metodologia, este trabalho tomará como eixo as premissas da
antropologia histórica, tal como utilizadas por François Hartog. Segundo a historiadora e
professora Francine Iegelski, ao tecer sua tese acerca dos regimes de historicidade,
“François Hartog [...] retoma as questões fundamentais colocadas por Lévi-Strauss acerca
da história e da historicidade das sociedades humanas” (IEGELSKI, 2012, p.248).
Partindo da proposta do olhar distanciado, o autor elabora o projeto de uma análise
temporal que leva em conta a estrutura na qual agrupamentos humanos estão inseridos a
despeito de sua localização no tempo e no espaço. Logo, será a antropologia histórica
que nos proporcionará a forma de abordagem com que será tratado o nosso objeto. A
escolha desta metodologia de análise justifica-se devido ao fato de proporcionar o
distanciamento necessário a fim de que se possa enxergar com maior esmero o panorama
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1379
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

das articulações que corroboram o discurso das formas de ser e se perceber no tempo de
cada sociedade. Desta maneira, a função heurística e comparativa dos regimes de
historicidade poderá ser de valor fundamental para esta pesquisa para que possam ser
melhor assimiladas as distintas temporalidades que fazem parte da dinâmica slow food.
Assim, temos que, por exemplo, o tempo dispensado ao cultivo de alimentos
orgânicos não é o mesmo daquele logístico empregado na distribuição e venda destes
produtos. Semelhante comparação pode ser feita quanto ao tempo utilizado para o preparo
da culinária slow em restaurantes urbanos, somado ao tempo da dinâmica do trabalho dos
seus funcionários em geral e, em contrapartida, o tempo de que dispõe o sujeito que ali
pode calmamente se alimentar no prazo que lhe aprouver. Deste modo, a noção de
regimes de historicidade de Hartog – elaborada a partir da aproximação entre as leituras
de Lévi-Strauss e Marshall Sahlins e somada à reflexão das categorias koselleckianas -
nos auxiliaria a pensar em possibilidades de aproximação entre estas cadências temporais
de forma a melhor torná-las cognoscíveis no contexto macro que caracteriza a
possibilidade de existência do regime de historicidade presentista na atualidade. Importa,
contudo, salientar que a utilização das noções provenientes dos regimes apresenta forte
plasticidade capaz de por isso mesmo complexificá-lo, tal como será a proposta de análise
de estudo do caso slow food.
Diretamente relacionada à metodologia que orientará esta pesquisa, encontra-se a
sua matriz teórica. A construção epistemológica que nos guiará será aquela tal como
formulada pelo próprio Hartog, segundo o qual, a busca de uma aproximação entre a
história e a antropologia são fundamentais para a construção do conhecimento histórico.
É a partir deste abeiramento que as noções de regimes de historicidade inserem-
se na
[...] tradição do pensamento científico e filosófico que procura
mostrar a relação de complementaridade existente entre uma série
de oposições que constituem o campo das ciências humanas, a
exemplo das oposições entre estrutura e acontecimento, particular
e geral (IEGELSKI, 2012, p. 250).

Deste modo, ao buscarem estabelecer um diálogo entre estrutura e


particularidades, os regimes de historicidade reiteram seu aproveitamento neste trabalho

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1380
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ao permitirem um olhar que transcenda a instância do momento dos acontecimentos.


Neste sentido, reitera-se aqui a força que os acontecimentos têm na elaboração das
experiências temporais contemporâneas650. Igualmente, é preciso salientar que os regimes
fazem parte da elaboração de “um artefato que valida sua capacidade heurística. Noção,
categoria formal [que] aproxima-se do tipo ideal weberiano” (HARTOG, 2013, p. 13), ou
seja, eles não existem no mundo real. Portanto, é necessário dizer que se a proposta da
epistemologia histórica de François Hartog está sedimentada na antropologia estrutural
levistraussiana, esta por sua vez não nega o uso de modelos para a construção do seu
conhecimento. Como pontua Iegelski,

Lévi-Strauss pretende estabelecer uma análise objetiva e


totalizante dos fenômenos culturais com o auxílio de modelos.
[...]O modelo deveria permitir ao antropólogo colocar ordem em
um conjunto de fenômenos nos quais supostamente reinaria
somente a desordem (IEGELSKI, 2012, p. 65;76).

E assim também prevê os regimes propostos por Hartog. Ao identificar o


momento atual como caracterizado por um estado de crise, mais especificamente, de crise
dos paradigmas temporais, os regimes de Hartog buscam propor inteligibilidade quanto
ao que, em um primeiro olhar, corresponderia a um cenário de caos. Nesse sentido, a
metodologia de pesquisa e a matriz teórica aqui empregadas relacionam-se diretamente e
demonstram a sua complementariedade. A escolha pela “prática do olhar distanciado”
(HARTOG, 2006, p.10), interessado não apenas nos acontecimentos, mas também nas
estruturas, bem como proposta pela antropologia histórica, será o que possibilitará a
compreensão das articulações temporais em questão. Tratar-se-á de buscarmos ver além
da superfície, onde parece reinar apenas a confusão. Ressalta-se ainda a complexidade
deste problema quando a máxima em voga estimula-nos de maneira recorrente a pensar

650
Quanto à problemática referente ao valor que atualmente tem sido outorgado ao acontecimento, cita
Hartog, “Em todo o caso, o 11 de setembro leva ao extremo a lógica do acontecimento contemporâneo que,
se deixando ver enquanto se constitui, se historiciza imediatamente e já em si mesmo sua própria
comemoração: sob o olho da câmera. Nesse sentido, ele é totalmente presentista”. HARTOG, François.
Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Tradução de Andréa S. de Menezes,
Bruna Breffart, Camila R. Moraes, Maria Cristina de A. Silva e Maria Helena Martins. Belo Horizonte:
Editora Autêntica, 2013, p. 136.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1381
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

na hegemonia do ritmo da aceleração. Ou seja, a noção de regimes de historicidade será,


portanto, a chave fundamental a fim de que seja encarado o desafio de aferição e leitura
de outras temporalidades, outras cadências, que em um primeiro olhar passariam
despercebidas.
Pensando também nas relações entre a abordagem epistemológica em questão e o
debate bibliográfico que orienta esta pesquisa, é necessário revalidar primeiramente a
proposta elaborada por Hartog quanto a fazer dialogar instâncias que, a princípio,
permaneceriam polarizadas. Estamos falando, neste caso, do geral e do particular. Assim
situa-se, por exemplo, a chance de em um mesmo raciocínio poderem ser consideradas as
investigações de Sara Sharma, que recentemente trabalhou com reflexões acerca de casos
particulares e as análises de autores como Hartmut Rosa. Este que, a partir, de sua
perspectiva sociológica buscará compreender o conjunto de algumas das modalidades
temporais exemplificadas por Sharma, baseado em uma projeção sistemático-social.
Acerca destas considerações, ainda é valido citar o caráter relacional entre os conceitos
formulados por Hartog e alguns dos postulados por Koselleck. Segundo cita o próprio
Hartog, fora no intervalo entre a primeira vez que propôs a ideia dos regimes, em 1983 e
quando esta finalmente desabrochou, em 1994, que o autor familiarizou-se com as
categorias de “experiência” e “expectativa” de Koselleck (HARTOG, 2013, p.28) e as
incluiu em suas meditações.
Por fim, os esforços de elaboração das etapas que constituem esta pesquisa
poderiam ser melhor manifestos em um único raciocínio, qual seja: compreender como o
movimento slow é capaz de produzir inteligibilidade às relações de poder que sustentam
as variadas dinâmicas temporais destes novos “tempos líquidos”. Compreendendo,
entretanto, as limitações de tempo disponível para a execução desta pesquisa, sabemos
que algumas questões, igualmente relevantes, não poderão ser respondidas. Como, por
exemplo, como a história poderia contribuir para a reflexão acerca da dimensão da
experiência individual no âmbito desta miríade de temporalidades. Embora tendo falado
sobre particularidades e generalizações, sem dúvida o foco abordado foi e continuará
sendo a partir de uma perspectiva estrutural. Portanto, não apenas à esta provocação, mas
também a outras que certamente surgirão – pois como afirmou Weber, “Cada “realização”
científica levanta novos problemas e terá de ser ultrapassada” (WEBER, 2001, p. 438) –
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1382
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

os resultados desta pesquisa estarão abertos. Afinal, em um panorama de vida onde tudo
parece incerto e regido pelo efêmero, seria presunçoso ou até ingênuo acreditar que
mesmo uma pesquisa científica pudesse eximir-se do peso de vertiginosa rapidez como
as históricas são elaboradas no presente.
Bibliografia

AVILA, Arthur Lima. Povoando o Presente de Fantasmas: feridas históricas, passados


presentes e as políticas do tempo de uma disciplina. Expedições: Teoria da História e
Historiografia, v. 7, p. 189-209, 2016.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:


Zahar Editores, 2001.

_________. Tempos líquidos. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:


Zahar Editores, 2007a.

HARTOG, François. O Olhar distanciado. Lévi-Strauss e a história. Trad. Temístocles


César. In: Revista Topoi, v.7, n. 12, jan-jun. 2006.

_________. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo.


Tradução de Andréa S. de Menezes, Bruna Breffart, Camila R. Moraes, Maria Cristina
de A. Silva e Maria Helena Martins. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.

HUMBOLDT, Wilhelm. Sobre a tarefa do historiador. In: MARTINS, Estevão de


Rezende. (org.) A História pensada: Teoria e método na historiografia européia do
século XIX. São Paulo: Contexto, 2010.

IEGELSKI, Francine. A astronomia das constelações humanas: Reflexões sobre o


pensamento de Claude Lévi-Strauss e a História. 2012. 296 f. Tese (Doutorado) - Curso
de Programa de Pós-graduação em História Social, História, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2012.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1383
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

JAMESON, Fredric. O fim da temporalidade. In: ArtCultura, v. 13, n. 22, p. 187-206,


jan.-jun., 2011.

KOEPNICK, Lutz. On Slowness: Toward an Aesthetic of the Contemporary. New


York: Columbia University Press, 2014.

KOSELLECK, Reinhard. Futuro Passado: contribuição a semântica dos tempos


históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006.
OSBORNE, Peter. The Politics of Time: modernity and avant-garde. London:
Verso,1995.

ROSA, Hartmut. Social Acceleration: Ethical and Political Consequences of a


Desynchronized High-speed Society. In: Hartmut. ROSA, H.; SCHEUERMAN, W. E.
(Orgs.). High- speed society: social acceleration, power and modernity. Pennsylvania:
The Pennsylvania State University Press, 2009.

SHARMA, Sarah. In the Meantime: Temporality and Cultural Politics, Duke University
Press, 2014.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1384
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A Igreja Protestante no Brasil: História, tipologias e contribuições.

IDAURO DE OLIVEIRA CAMPOS JÚNIOR


Universidade Salgado de Oliveira – Universo.

Introdução

O protestantismo está completando 500 anos (1517 – 2017). Sua história está
relacionada a Martinho Lutero, um monge alemão, da ordem dos agostinianos, que
lecionava teologia na Universidade de Wittemberg na segunda década do século XVI.
Com uma tese em mãos - a de que o homem é justificado diante de Deus somente
pela fé - Martinho Lutero iniciaria um dos movimentos que se tornaria dos mais
significativos no ocidente medievo. Lucien Febvre, em sua obra sobre Martinho Lutero,
destaca:

Tudo o que ele trazia? Uma nova forma de pensar, de sentir e


de praticar o cristianismo, a qual não podendo ser esmagada na casca,
nem avalizada como tal, tampouco, digerida de maneira amigável pelos
chefes da igreja, tornou - se por isso e, muito naturalmente, uma nova
religião, um novo ramo do velho cristianismo. Religião geradoura de
uma nova raça de homens, ou, pelo menos, de uma nova variedade da
espécie cristã: a variedade luterana. Menos categórica na aparência
externa, menos abrupta, menos feita para disseminar além de seu lugar
de origem do que a outra variedade, vigorosa e prolífica, que, em um
intervalo de trinta anos, seria gerada pelo picardo João Calvino? Sem
dúvida. Tenaz, no entanto. Duradoura. Apta a se amoldar a
acontecimentos diversos. Capaz de atrair, a ponto de às vezes adulterar,
ao que parece, a variedade vizinha e inspirar temores aos guardiões
ciosos de sua pureza. Em todo caso, de considerável importância
histórica, uma vez que toma conta, sobretudo, de parte considerável da
Alemanha. E o espírito luterano adere fortemente à mentalidade dos que
o adotaram (FEBVRE. 2012.p.16).

Essa “nova forma de pensar, de sentir e de praticar o cristianismo” assumida por


Lutero, conforme as palavras de Febvre era a “justificação pela fé”, tese central do monge
alemão, do luteranismo e, posteriormente, de todo o protestantismo.
Justificação pela fé: percebe-se que quanto essa formulação,
inerte em aparência, encerra de força, alegre confiança, entusiasmo,
segurança invencível; percebe-se, às vésperas dos acontecimentos de
1517, o que ela significa para um Martinho Lutero: a convicção de ter

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1385
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Deus por si, consigo e em si, um Deus que não é a justiça imanente dos
teólogos, e sim uma vontade ativa e radiante, uma bondade soberana
agindo por amor e dando-se ao homem para que o homem se dê a Deus
(Ibid.p.82).

A tese de Lutero colocava o homem responsável por si diante de Deus. Sem


mediações institucionais. Isto é, a aproximação com o sagrado, aconteceria não por meio
dos programas litúrgicos e devocionais da Igreja, mas por meio da fé. Embora importante
na agenda luterana, a igreja ganha, na compreensão do monge, outro papel (da reunião
dos fieis), mas não mais de despenseira da graça.
Pensar a fé por si mesmo e responsabilizar-se perante o a priori mais importante
da Europa do século XVI – Deus - sinaliza importantes transformações que a região
experimentaria. De certa forma e em algum grau o protestantismo antecipou discussões
temáticas que ganhariam maior alcance no iluminismo651, como, por exemplo, “primado
da consciência individual, baseada na liberdade de exame” (BICALHO. 2008.p.43).
Parece simples demais que uma afirmação teológica carregada de valor e
significado somente para cristãos devotos tenha em si uma capacidade de influência sobre
tantos agentes em um período da história. Acontece que quando se considera a Europa
medieval é importante ater-se ao fato de que não havia o conceito de sociedade secular.

651
A Reforma Protestante promoveu o primeiro deslocamento do eixo acerca do conceito de autoridade/
verdade. Ao enfatizar os textos do Antigo e Novo Testamento como âncora e fundamento da realidade a
Reforma colocava em questão a noção de que a Igreja e sua Tradição eram as estruturas legitimadoras da
realidade. A leitura dos textos canônicos, por exemplo, antes um privilégio nobre e clerical, passou a ser
fundamental a todos os fiéis para a prática religiosa. Em seguida, enfatizou-se o critério racional: o texto
lido precisava ser compreendido. Finalmente, a religião precisava ser pessoal e experimental (“justificação
pela fé”). Dessa forma, termos o pavimento de três conceitos que seriam caros ao protestantismo acerca do
cristianismo: 1) A valorização da educação – implicada na canonicidade - (o cristianismo é uma religião
do livro. A educação para sua leitura é um imperativo. Uma exigência, portanto. Desenvolveu com isso o
postulado da Reforma: Sola Scriptura); 2) A valorização do intelecto (O livre – exame para a devida
compreensão da fé. A fé passa pelo crivo da razão que precisa ser convencida pela Escritura. O cristianismo
como uma religião racional); 3) A religião é pessoal e experimental (a justificação é pela fé. E a salvação é
individual). Esses conceitos que colidiam com o modus operandi da Igreja Católica medieval (onde a
espiritualidade era, na prática, mais ritualística, cerimonial, formal, sacerdotal, mediada e
institucionalizada) seriam refinados, expandidos e até mesmo exagerados no século XVIII pelo iluminismo,
que muito incentivou a leitura e a educação, o racionalismo e o individualismo. A Reforma antecipa de
algum modo, portanto, debates que seriam cristalizados e polarizados no Iluminismo. HURLBUT, Jesse
Lyman. História da Igreja Cristã. São Paulo: Vida, 1996.p.148.149. O historiador Edward McNall Burns
reconheceu, ainda que cautelosamente, uma relação de teorias renascentistas e reformistas (individualismo,
retorno às fontes e relação positiva com o trabalho e o capital). BURNS, Edwards McNall. História da
Civilização Ocidental. Porto Alegre: Editora Globo,1971.p.449-450.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1386
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A sociedade era religiosa. O a priori religioso era instrumento de hermenêutica,


ferramenta de análise e construção social.

I – A Inserção da Fé Protestante no Brasil: Tipologias e Consolidação.

Um protestantismo circunstancial:
Os primeiros registros de cristãos idenficados com a pertença protestante no
Brasil, remontam ao século XVI. Três alemães de tradição luterana contam como os
precursores de uma pertença protestante em territória nacional. Primeiro, um escrivão
radicado na provincia de São Vincente (SP) desde 1530, por nome Heliodoro Hessus.
Parece ter sido filho de Eobano Hessus, um amigo de Martinho Lutero. Em seguida, no
de 1534, Ulrico Schmidel participa da expedição de Pedro Mendonça652 ao Novo Mundo
(Argentia, Paraguai e Brasil)653. Finalmente, mais conhecido, Hans Standen. Jovem e
aventureiro, Staden sofre um naufrágio quando seu navio estava próximo do porto de São
Vicente em 1549.
Após trabalhar por um pequeno período em uma fortificação dos portugueses foi
capturado enquanto caçava por indios Tupinambás. Com medo dos rituais de antropofagia
que ouvira falar como sendo prática dos Tupinanmbás, Hans Staden fazia suas preces e
entoava cânticos de sua pertença cristã luterana. Conseguindo escapar do cativeiro,
retornou para Alemanha, publicando o que passara nas terras brasileiras.
A presença desses luteranos com a manifestação de algum sinal de pertença
(orações e cânticos e até memsmo a edificação da capela por Staden), contudo apenas
sinaliza o aspecto da fé pessoal, porquanto seus interesses em solo brasileiro
concentravam na exploração e economia, sem nenhum intuito de compartilhar a doutrina
protestante por estas terras.

652
Capitão Geral da esquadra que partiu da Espanha em 1534 em direção às terras da América do Sul
(Argentina, Paraguai e Brasil).
653
SANTOS FILHOS, Hildebrando Costa. Sinopse Histórica da Presença de Cristãos Protestantes no
Brasil. Edição do Autor: São Gonçalo, 2005.p.27.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1387
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

II – Protestantismo Colonial

1 - Os Huguenotes -

No dia 10 de janeiro do ano de 1557 chegava à Baia de Guanabara uma frota


francesa trazendo, além de artesãos, pessoas instruídas na religião cristã, de corte
protestante e reformado. Eram os huguenotes, ou calvinistas654 da França. A expressão
huguenote é disputada. Parece possuir uma relação com a expressão confederado (em
francês "Eidguenot", derivado do suíço-alemão Eidgenossen, termo que designava as
cidades e cantões helvéticos partidários da Reforma). Os huguenotes foram solicitados
por Nicolau Durand Villegaigon que desembarcara em 1555.
Um expressivo contigente com 280 calvinistas com intuito de colonização e
catequeze com destaque para os dois ministros, Peirre de Richier e Gulherme Chartier,
ambos da Igreja Reformada de Genebra, liderada por João Calvino. Um culto foi realizado
no mesmo dia do desembarque sob a direção litúrgica de Pierre de Richier, baseando a
exposição da prédica no saltério 27.4. Antes a liturgia fora marcada pelo cântico do
saltério 55. Essa liturgia marca o primeiro cerimononial protestante em terras brasileiras.
Havia, pois, um projeto político e econômico que acompanhava as intenções dos
franceses calvinistas, além da intenção de fuga do território francês, pois as tensões entre
protestantes e católicos se intensificavam continuamente e, preocupados com a segurança,
os huguenotes decidiram abandonar o país, temendo pelo pior, que terminaria
acontecendo em menos de duas décadas, na famigerada Noite de São Bartolomeu655.

654
O calvinismo foi a versão genebrina do protestantismo. A expressão é uma referência ao picardo João
Calvino que liderou o movimento de reforma religiosa em Genebra, consolidando-a nas terras suíças ao
publicar sua obra “As Institutas da Religião Cristã”, que se tornaria o padrão sistemático e doutrinário da
Reforma Protestante. O calvinismo foi vigoroso na Holanda (onde foi sistematizado e oficializado no
Sínodo de Dort em 1618 – 1619, como a expressão teológica das igrejas holandesas) Inglaterra (puritanos),
Escócia (presbiterianos) e Estados Unidos (congregacionais).
655
Na madrugada dia 23 de agosto de 1572, dia de São Bartolomeu, iniciou na França uma violenta
repressão ao protestantismo. Milhares de huguenotes foram feridos e mortos, inclusive, o comandante
Gaspar Colyigny, incentivador do envio de huguenotes ao Brasil, cuja cabeça fora cortada e enviada ao
Papa Gregório VIII. O conflito parece ter surgido em reação a um golpe de Estado perpetrado pelos
huguenotes.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1388
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Villegaignon, surpreendendo os franceses radicados, nega sua pertença calvinista,


assumi novamente a fé católica e estabelece uma relação beligerante e inquisitiva com os
mesmos. Muitos dos calvinistas conseguem retornar para a Europa, fugindo da
perseguição imposta por Villeiganon, ainda que cinco656 desses, por razões logísticas657,
ficaram em território brasileiro, sendo acusados de espionagem e presos. Esses calvinistas
foram os responsáveis pela redação pela Confissão de Fé da Guanabara658, considerada a
primeira do gênero de referência protestante no mundo659. Em 09 de fevereiro de 1558,
João de Bordel e Mateus Verneuil foram executados e, em 1567, Jaques Le Balleur teve
o mesmo destino, após permanecer preso por oito anos na Bahia, sendo executado por
Mem de Sá, no Rio de Janeiro. Anos depois, em 1575, o padre José de Anchieta
mencionará a inquisição de mais um francês, de nome desconhecido.
Data da primeira incursão francesa no Brasil a obra escrita pelo jovem artesão e
aspirante ao ministério Jean Lery, “Viagem a Terra do Brasil”660 e publicada em
originalmente em 1578.

2 - Os Reformados Holandeses

Na manhã do dia 15 de fevreiro do ano de 1630, Recife acordaria com a presença


de soldados holandeses em seu território. Às 11: 00 horas da manhã o comandante de uma
impressionante frota, Hendrik Corneliszonn Lonck661, posiciona seus navios diante das
fortificações (Forte do Mar e São Jorge) disposto a tomar a cidade do Recife. O mesmo
ocorre em Olinda, ao norte da região, na mesma hora e sob o comando do coronel
Diederick van Waerdenburch. Sem grandes dificuldades os holandeses implantaram seu
projeto colonial em Pernambuco. Seis anos antes, em 1624, já haviam tomada Salvador,
na Bahia. E, obviamente, no mesmo projeto colonial perpassava a perspectiva religiosa,
cristã, protestante e calvinista.
O interesse e a necessidade de se apoderar das terras brasileiras pode ser explicado
nas palavras abaixo de Francisco Leonardo Schalkwijk662:

656
Pedro de Bordoun, João de Bourdel, Mateus Verneuil, André Lafin e Jaques Le Balleur.
657
Problemas na embarcação e de provisões no navio.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1389
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

658
A Confissão de Fé da Guanabara: http://www.monergismo.com/textos/credos/confissao_guanabara
659
ANGLADA, Paulo. Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das Escrituras. São Paulo: Editora Os
Puritanos, 1998.p.190.
660
Titulo original: “Histoire d'un voyage fait en la terre du Bresil, dite Amerique".
661
DARÓZ, Carlos. A Guerra do Açúcar. As Invasões Holandesas no Brasil. Recife: Editora UFPE, 2014.
p.190.
662
Doutor em História pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP). Ministro da Igreja Cristã
Reformada da Holanda.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1390
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O crescente comércio ultramarino holandês organizou duas grandes


companhias para a maior cooperação e para melhor proteção contra os
espanhóis [...] a das Indias Orientais e das Indias Ocidentais. A área
desta última era o Atlântico. Sua diretoria era composta de dezenove
membros chamados ‘Senhores XIX’, representando as cidades
cooperadoras, da qual Amsterdâ era a principal. Sabedores de que as
maiores riquezas da Espanha, com que sustentava suas guerras,
provinham das Américas, começou-se a pensar não somente em viagens
corsárias, mas em conquistas de uma parte de suas colônias. A Bahia
parecia ser presa fácil. E a cidade de Salvador foi tomada. Depois de
um ano, porém, já se perdeu a conquista (1624 – 1625). Entretanto,
tendo capturado uma frota carregada de prata espanhola, decidiu-se por
outra tentatviva, agora em Pernambuco. A concretização desse plano
levou ao período do ‘Brasil Holandês’ (1630 – 1654) -
(SCHALKWIJK.. 1997. p.40).

Durante os anos de 1630 a 1645 Pernambuco se manteve na confssão de fé


protestante. E é justamente neste contexto confessional calvnista holandês onde teremos
o primeiro batismo de um brasileiro na pertença protestante, o indígena Pedro Poty663,
embora com o rito batismal celebrado fora das terras brasileiras664. Com os holandeses
temos o estabelecimento daquela que seria a primeira comunidade de fé protestante
institucionalmente erguida em solo brasileiro, ainda que em um projeto colonial, e com
batismos de muitos indígenas que consideravam os holandeses libertadores contras os
portugueses.
Com a expulsão dos holandeses em 1654 chegava ao fim também a pertença
protestante. As duas iniciativas de inserção protestante no Brasil colonial revela uma
mentalidade: a de que a religião era assunto do Estado. Chegando o colonizador junto
vinha a sua fé para ser compartilhada ou imposta.

663
SCHALKWIJK, Francisco Leonardo. Indios Evangélicos no Brasil Holandês. São Paulo: Fides
Reformata – Centro de Pós Graduação Andrew Jumper. Vol.II. Número:I, jan – jun, 1997.p.42. Pedro Poty
viveu nos Países Baixos por cincos anos, onde, além do batismo, foi instruído na religião calvinista. Ao
retornar ao Brasil, serviu aos holandeses com interprete e tradutor. Morrendo em 1652, em uma viagem
como prisioneiro dos portugueses.
664
Op.cit.p. 43. Outros indígenas seriam batizados em grande quantidade no Brasil.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1391
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

III – Protestantismo de Imigração

1 - Anglicanos:

Com o decreto de abertura dos portos do Brasil às nações amigas, assinado por
dom João e que beneficiaia, sobretudo, a Inglaterra, favorecendo o comércio e livre
circulação de mercadorias entre a colônia e a ilha britânica. Muitos ingleses se
interessaram em morar e trabalhar no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, onde, em
1808, já contavam com um núcleo de, aproximadamente, duzentos comerciantes e/ou
agentes665.
Neste contexto surgem os movimentos iniciais666 de implantação da primeira
comunidade de fé anglicana no Brasil que daria assistência devocional e pastoral aos
ingleses que atuavam no comércio e nos portos.
Em fevereiro de 1810 Portugal e Inglaterra assinaram o Tratado de Navegação e
Comérico, permitindo aos súditos da coroa britância que trabalhavam no Brasil liberdade
de consciência e culto, desde que não construissem capelas com aparência de templo, que
não usassem sinos e não promovessem catequese a brasileiros.
Os primeiros cultos dos anglicanos foram realizados a bordo de navios ancorados
ou na residência de autoridades inglesas radicadas no país. A frequência era limitada aos
ingleses. Um templo (Christ Church) fora construído em 1819, no Rio de Janeiro, com
seu endereço na Rua Evaristo da Veiga, sendo o primeiro da tradição edificado no Brasil.
Uma ação mais aberta aos brasileiros e proselitista por parte dos anglicanos
somente aconteceria a partir de 1890 com o envio de missionários norte-americanos
oriundos do Estado da Virgínia, atuando no Rio de Janeiro, Porto Alegre (RS) e em outras
cidades do estado sulista brasileiro, partindo dali para outras regiões do território
nacional.

665
FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: IEDUSP, 2015.p.67.
666
Em 1805 o ministro anglicano Rev. Henry Martin que passara quinze dias em Salvador ensaiou alguma
atividade religiosa, mas sem êxito.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1392
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

2 - Os luteranos novamente:

Com a Constituição de 1824 foi extendida a outras religiões o direito ao culto,


mesmo o catolicismo parmanecedo oficial.
Neste contexto surgem as primeiras inserções do protestantismo luterano
denominacional e intencional. Apesar da liberdade de acesso concedida, algumas
restrições permaneceriam nas leis do Império, como manter o juramente de fidelidade ao
catolicismo apostólico romano.
A Constituição que começara a ser elabora em 1823 contou com a participação
nos grupos de trabalhode vinte e dois clérigos católicos, explicando assim, portanto, as
restrições. Entretanto, os luteranos começaram a desembarcar no Brasil no mesmo ano da
promulgação da Constituição, fundando a primeira igreja de confissão luterana do Brasil
no dia 03 de maio de 1824, em Nova Friburgo667, região serrana do Rio de Janeiro.
No mesmo ano, em vinte e cinco de julho, outros grupos formados por alemães e
luteranos desembacaram em São Leopoldo (RS), onde, inclusive, realizaram o primeiro
culto de tradição protestante na região sul brasileira668. Em seguida foi a vez das cidades
Itaqui (1826), Campo Bom (1828) e Hamburgo Velho (1845), terem comunidades
luteranas organizadas.
Na cidade do Rio de Janeiro um templo luterano foi construído em 1827, sendo
acompanhada pela cidade de Petrópolis (1845). Dado histórico importante relacionado a
essas duas comunidades luteranas estabelecidas na região de maior influência do Império
foi a inicitiva do mesmo em remunerar ministros669 que dessem suporte aos trabalhos
evangélicos realizados. Um caso único, sem paralelo na história do protestantismo no
país.
Nessa fase da história brasileira a inserção protestante em comunidades
formalmente organizadas somente foi possível em face dos assentamentos de imigrantes
que viam para o país estimulados pelas condições de trabalho (lavoura, portos e
comércio).

667
Nova Friburgo iniciara como uma colônia de suíços. Estimulados pelo Príncipe – Regente Dom João
VI, mais de duzentas e sessenta famílias emigraram de Friburgo, um Cantão suíço em direção ao Brasil
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1393
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

IV – O Protestantismo de Missão

1 - Os Metodistas

Em 1836 chegou na capital do Império o primeiro missionário metodista, Foutain


E. Pitts, enviada pelo Junta de Missões Mundiais da Igreja Metodista dos Estados Unidos
da América, organizando uma congregação metodista no bairro do Catete com quarenta
estrangeiros e algumas crianças brasileiras que participavam da catequese (Escola
Dominical). Posteriormente auxiliado por Danniel Kidder e sua esposa e um casal de
professores que desembacariam no Rio de Janeiro em 1837.
O trabalho de inserção metodista não vingou, encerrando as atividades em 1841,
retomando somente em 1876, através do trabalho de Junius Estaham Newman que daria
início assim a fase de implantação permanente do metodismo no Brasil.
Os metodistas sempre tiveram uma agenda social engajada e compromisso com
temas sociais, além da atuação religiosa e evangelística.
No Brasil os metodistas fundaram escolas e faculdades e controlam até hoje a
Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Possuem uma relação ecumênica com a
Igreja Católica e procuram atuar na sociedade por meio de uma teologia pública.

2- Congregacionais.

No ano de 1855 desembarcou no Rio de Janeiro o casal Robert Reid Kalley e


Sarah Poulton Kalley. Era o dia 10 de maio. Por razões climáticas e sanitárias se
transferiram para Petrópolis, cidade com clima de montanha, bucólica e mais convidativa

entre os anos de 1819 e 1820 e se estabeleceram na região que recebera o nome em referência à cidade
europeia. Posteriormente, com a vacância de muitas famílias suíças que abandonaram às terras à procura
de outras mais férteis e acessíveis a distribuição fora oferecida as alemães.
668
Até a chegada dos alemães os cultos protestantes tinham sido realizados nas regiões do sudeste e nordeste
brasileiro. O Sul permanece até hoje, especialmente o Rio Grande do Sul, com a menor incidência no Brasil
da presença protestante, quando comparada a outras regiões do país.
669
Um desses ministros foi o Rev. Friedrich Oswald Sauerbronn que fora pastor em Becherbach na
Alemanha. Sendo contratado pelo próprio Imperador Dom Pedro I, exercendo seu ministério em Nova
Friburgo até o ano anterior à sua morte em 1867. Cf. GIRALDI, Luis Antônio. A Bíblia no Brasil Império.
Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.p.100-101.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1394
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

aos europeus e, além disso, de moradia do Imperador Dom Pedro II com quem os recém
- chegados estrangeiros construiriam reconhecida amizade670.
No mesmo ano, em 19 de agosto, o casal de missionários organizou uma classe
de catequese, chamada na tradição protestante de escola dominical onde cinco crianças
foram ensinadas sobre a história do profeta Jonas, personagem do Antigo Testamento.
Essa aula é considerada nos estudos sobre a religião no país como marco, pois lançou as
bases da missão protestante evangelizadora definitiva em língua portuguesa que deram
origem à Igreja Evangélica Fluminense, considerada a primeira igreja evangélica no
Brasil671 e núcleo dos congregacionais brasileiros672.

3 – Presbiterianos

A história do presbiterianismo no Brasil inicia em 1859 com o desembarque, no


Rio de Janeiro, de Ashbel Green Simonton, um jovem missionário de vinte e seis anos de
idade, formado em Princeton. Desejoso de desbravar as terras brasileiras com a pregação
cristã protestante organizou acompanhado de um português e outro norte – americano, a
Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro em 1862.
Sendo o Brasil um país com vocação agrícola e pastoril e com elevado índice de
analfabetos, os presbiterianos perceberam a necessidade de investir na abertura de
congregações nas zonas rurais, mais populosas, abrindo nas mesmas regiões, e, até
mesmo ao lado das congregações, pequenas escolas que se tornariam uma marca do
presbiterianismo no Brasil673. Para o trabalho de evangelização e fundação de

670
Há o registro nas memórias do Dr. Robert Raid Kalley de duas visitas (28 de fevereiro e 06 de março de
1860) à sua residência, realizadas pelo Imperador D. Pedro II por ocasião de sua condição física, abalada
por uma enfermidade. A visita revela a fraternidade entre o médico missionário e o imperador. Cf. DA
ROCHA, João Gomes. Dr. Robert Raid Kalley: Lembranças do Passado. Vol: 1. Rio de Janeiro, Novos
Diálogos, 2013.p.115-116.
671
LÉONARD, Émile G.Op.cit.p.57.
672
A Igreja Evangélica Fluminense, fundada em 11 de julho de 1858, está localizada na Rua Camerino nº
102, no centro da cidade do Rio de Janeiro e mantém regularmente o funcionamento de seus cultos e demais
serviços. Embora o trabalho do casal Kalley no Brasil tenha começado em 1855, a organização da igreja se
deu somente três anos depois, tendo como marco o batismo de Pedro Nolasco de Andrade, considerado o
primeiro brasileiro a ser admitido no rito sacramental em uma igreja do protestantismo de missão. Cf.
LÉONARD, Émile G. Op.Cit. p. 57.
673
A Academia ainda deve ao protestantismo brasileiro um estudo relevante sobre a contribuição das
escolas fundadas pelos missionários no interior (onde o poder público raramente chegava e os níveis de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1395
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

congregações, os presbiterianos contaram, já por volta do ano de 1865, com o intenso


trabalho de José Manoel da Conceição, um sacerdote católico em Brotas (SP), que
renunciaria seus votos e compromissos com a Igreja Católica, transferindo-se para a Igreja
Presbiteriana do Brasil onde foi ordenado ministro, tornando-se assim o primeiro
brasileiro a receber a investidura ministerial do protestantismo brasileiro.
Além da abertura de congregações no Rio de Janeiro, Pernambuco, São Paulo e
Minas Gerais e das escolas paroquiais os presbiterianos auxiliaram na criação de
hospitais, sendo os casos do Hospital Evangélico do Rio de Janeiro e o Hospital
Samaritano de São Paulo.
Com a ênfase na educação, fiel ao princípio reformado de Sola Scriptura,
tornando, portanto, a leitura necessária nos cultos, pois na tradição reformada o culto é
bíblico, isto é, a leitura e a exposição bíblica assumem a centralidade da cerimônia, os
presbiterianos construiriam uma reconhecida tradição teológica protestante no país,
formando uma elite cultural dentro deste ramo do protestantismo em terras brasileiras.

4 – Batistas

Imigrantes batistas norte-americanos organizaram em 1871, na cidade de Santa


Barbara D’Oeste (SP), a primeira igreja protestante imersionista674 no Brasil. Com o
apoio do Império cerca de dois mil com diferentes ocupações desembarcaram no país e
tendo na fé protestante um dos elos que auxiliariam o sentimento de unidade do grupo de
imigrantes.
No dia 10 de setembro de 1871 foi organizada a Primeira Igreja Batista em
território nacional, sendo composta a sua membresia exclusivamente de americanos e
sendo liderada pelo ministro Richard Ratcliff.
Com o envio dos disciplinados e operosos missionários Willian Bagby e Anne
Bagby em 1881 e, no ano seguinte, Zacarias Taylor e Katerine Taylor, os batistas

escolarização dos povoados eram baixíssimos) e até mesmo nas regiões centrais das maiores cidades
brasileiras do século XIX.
674
O batismo praticado por imersão tornou-se o selo de distinção dos batistas brasileiros, sendo o principal
símbolo de identidade denominacional e exigido, inclusive, de protestantes egressos de outras
denominações.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1396
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

iniciariam uma fase de intenso proselitismo e de expansão do grupo, alcançando um êxito


que não encontraria par em nenhum outro ramo protestante no Brasil, estando presente
em mais da metade dos municípios do território, constituindo o maior grupo do
protestantismo de missão, tendo além de templos, colégios e faculdades em diferentes
regiões do país.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1397
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O protestantismo brasileiro não se encerra com as igrejas históricas. Também


fazem parte da pertença evangélica brasileira o pentecostalismo e suas tipologias.

IV – O Pentecostalismo

É compreendido em três fases:


1 - Pentecostalismo clássico - Capitaneado pela Congregação Cristã (1910) e Assembleia
de Deus (1911), cujas histórias estão relacionadas no Brasil com o desembarque dos
missionários pioneiros destas duas denominações. Primeiramente, Luigi Francescon e,
em seguida, a dupla sueca Daniel Berg e Gunnar Vingren.
2- Deuteropentecostalismo - Com o advento do missionário Harold Williams, da Igreja
do Evangelho Quadrangular, seguido dos ministérios de Manoel de Mello (O Brasil para
Cristo) , Davi Miranda (Igreja Deus é Amor), Doriel de Oliveira (Casa da Bênção).
3- Neopentecostalismo:
Robert McAlister, Igreja de Nova Vida1960; Robson Rodovalho, Comunidade Sara
Nossa Terra – 1976; Edir Macedo, Igreja Universal do Reino de Deus – 1977; Romildo
Ribeiro Soares, Igreja Internacional da Graça de Deus 1980; Estevam Hernandes
Renascer 1986; Igreja Mundial do Poder de Deus – Valdomiro Santiago, 1998.

Considerações Finais

De acordo com o Censo Religioso de 2010 o Brasil tem mais de quarenta e dois
milhões de brasileiros que se identificam como protestantes. Sendo que mais de 60%
assumem sua relação de pertença religiosa com comunidades de fé de corte pentecostal e
neopentecostal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALENCAR, Gedeon. Protestantismo Tupiniquim: Hipóteses sobre a (não) contribuição


evangélica à cultura brasileira. São Paulo: Arte Editorial, 2005.

ANGLADA, Paulo. Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das Escrituras. São Paulo:
Editora Os Puritanos, 1998.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1398
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BICALHO, Maria Fernanda B.. A França Antártica, o corso, a conquista e a "peçonha


luterana". HISTÓRIA, São Paulo, 27 (1):2008.

BURNS, Edwards McNall. História da Civilização Ocidental. Porto Alegre: Editora


Globo,1971

CALVANI, Carlos Eduardo B. O Anglicanismo no Brasil. São Paulo: Revista USP,


nº.67.2005.p.36-47.

DA ROCHA, João Gomes. Dr. Robert Raid Kalley: Lembranças do Passado. Vol: 1. Rio
de Janeiro, Novos Diálogos, 2013.

DARÓZ, Carlos. A Guerra do Açúcar. As Invasões Holandesas no Brasil. Recife: Editora


UFPE, 2014. p.190.

DE SOUSA, Jaquelini. Igreja Reformada Potiguara (1625 – 1692): a primeira igreja


protestante no Brasil. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie – Dissertação de
Mestrado em Ciências da Religião, 2012.

FAUSTO, Boris.História Concisa do Brasil. São Paulo: IEDUSP, 2015.

FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012.

HURLBUT, Jesse Lyman. História da Igreja Cristã. São Paulo: Vida, 1996.

LÉONARD, Émile G. O Protestantismo Brasileiro. São Paulo: ASTE, 2002.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no


Brasil.São Paulo: Edições Loyola, 2010.

MENDONÇA, Antônio Gouveia. O Celeste Por Vir: A Inserção do Protestantismo no


Brasil. São Paulo: Edusp.2008.

SANTOS FILHOS, Hildebrando Costa. Sinopse Histórica da Presença de Cristãos


Protestantes no Brasil. Edição do Autor: São Gonçalo, 2005.

SCHALKWIJK, Francisco Leonardo. Indios Evangélicos no Brasil Holandês. São Paulo:


Fides Reformata – Centro de Pós Graduação Andrew Jumper. Vol.II. Número:I, jan – jun,
1997p.39-58.

TEIXEIRA, Faustino & MENEZES, Renata. Religiões em Movimento: O Censo de 2010.


Petrópolis: Vozes, 2013.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1399
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Entre o popular e a elite política, o associativismo recreativo de setores médios e


carnaval popular em Santa Cruz (1880-1920).

IGOR ESTEVAM SANTOS DE OLIVEIRA675

Introdução

Buscamos analisar o associativismo recreativo em Santa Cruz, como espaço


importante de sociabilidade, clientelismo e criação de identidades676.
Analisamos as dinâmicas sociais de grupos que se associavam para atividades
lúdicas e carnavalescas. Também a importância política de redes de sociabilidades e
clientelismo com oligarquias, nos ajudando a compreender algumas dinâmicas sociais do
bairro de Santa Cruz. Mesmo nas sociedades mais populares como as carnavalescas o
fomento das oligarquias era importante, afinal nada se move em Santa Cruz sem o
conentimento de um oligarca local. Pesquisa-se as possíveis fontes de financiamento
desse associativismo recreativo em Santa Cruz, através de estudos de caso de cada
sociedade. Tentamos também reconhecer trajetórias de alguns membros dos grupos
estudados, principalmente de diretores. Utilizamos como fontes jornais de grande
circulação e local — O Santacruzense677 —. Esse jornal nos revela muito das dinâmicas
locais de Santa Cruz e ligações políticas desse bairro rural. Além de estatutos e licenças
presentes no Arquivo Nacional e Eco Museu de Santa Cruz.

675
Doutorando do Programa de Pós-graduação em História, política e bens culturais. FGV/CPDOC.
676
O conceito de identidade, permite compreender laços de sociabilidade e clientelismo, conflitos e
barganhas assimétricas. Possibilitando criar valores e costumes compartilhados. Em resumo, a tessitura de
códigos sociais mutuamente reconhecidos entre os atores históricos envoltos nesse contexto associativo.
677
O periódico O Santacruzense, circulou no ramal de Santa Cruz entre 1908-1909, o jornal foi vendido nas
estações de trem próximas a Santa Cruz. Fundado por João B. Alves e Oscar Santos Pimentel. O jornal
buscou promover os interesses políticos da família Pimentel em Santa Cruz. O fim imediato do jornal era
promover a eleição de Honório Santos Pimentel para as eleições de intendente municipal. O periódico tinha
como alvo os negociantes e funcionários públicos das imediações onde circulou. Nossa escolha do
periódico para pesquisa se deu por ser o único jornal de Santa Cruz com um ano corrido de edições presentes
no setor de periódicos da Biblioteca Nacional. Tornando o jornal uma excelente fonte para o estudo do
associativismo recreativo em Santa Cruz.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1400
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

1. Sociedade Musical Francisco Braga e Ginásio Musical 24 de Fevereiro

678
A Sociedade Musical Francisco Braga era sediada na Rua do Mirante n.2 ,
em Santa Cruz. Fundada em 22 de janeiro de 1905, a Sociedade Musical Francisco Braga
tinha finalidade artística, musical e teatral. O nome da sociedade é uma homenagem ao
maestro Antônio Francisco Braga (Nascido em 15 de abril de 1868, falecido 13 de março
de 1945), patrono da sociedade. Em 1909 a infraestrutura da Sociedade Musical
Francisco Braga, era de um cinema e teatro, ela tinha uma banda que tocava ao público
nas praças e fazia concertos. A S.M.F.B. se sustentava com doações feitas pelos sócios.
A banda ainda tocava em eventos, gerando renda para sociedade, além das mensalidades
e joias679 — para ingresso na sociedade —. O aluguel do salão para associados para
realizarem festas particulares e outras atividades também parece ter sido uma fonte de
renda. Outra fonte, são as constantes quermesses e eventos feitos em benefício da
sociedade. As atividades da S.M.F.B. eram: dramáticas, saraus e préstitos carnavalescos.
As atividades dramáticas aferiam renda para sociedade através do ingresso.
Percebemos uma extensa rede de clientela e colaboração entre os associados,
mesmos membros em comum nas duas associações recreativas. Ao menos nas direções
que eram formadas por sócios mais elitizados e setores médios. Embora, houvesse
rivalidade entre as bandas dos dois grupos. 680

678
Depois se mudou para a Praça Dom Romualdo, 19. Nesse endereço está atualmente.
679
Não conseguimos saber o valor exato da mensalidade ou joia. Usa-se o termo joia para referir-se um
valor de quantia normalmente determinada nos estatutos, era prática comum em muitas sociedades o
pagamento da joia pelo novo membro ingressante.
680
Não era incomum, negociantes e operários conviverem na mesma sociedade. Um exemplo comparável
é o Clube Carnavalesco Progressos Do Paraíso do bairro vizinho Campo Grande (onde inclusive a
Sociedade Musical Francisco Braga tinha alguns associados residentes). Na lista de associados do clube
entregue a polícia também constam pessoas de diversas profissões entre: operários, funcionários públicos
e pedreiros. Definimos a S.M.F.B. como mais “elitizado” por sua infraestrutura e ênfase na atividade
dramática e óperas. Embora, ela congregasse vários estratos sociais dentro de si. Cf.: ARQUIVO
NACIONAL (Brasil). Secretaria de polícia do Distrito Federal. Fundo, GIFI Codex 6C366. Rio de Janeiro,
1911.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1401
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

2. Composição social e hierarquia interna

O Ginásio Musical 24 de Fevereiro era formado por comerciantes, funcionários


públicos, negociantes e médicos. Suas atividades não diferem muito da outra sociedade
que analisamos nesse tópico (Sociedade Musical Francisco Braga), mantendo uma banda,
talvez a diferença maior seja pela ausência de atividade dramática681. Em sua direção
temos também imigrantes portugueses, o presidente do ginásio era José Henrique
Fernandes, português, comerciante e funcionário do Matadouro Municipal do Rio de
Janeiro682. Fernandes possuía terras em loteamentos em Santa Cruz, além de um
botequim numa localidade de nome Largo do Bodegão683.
Os laços com imigrantes ficam claros quando vemos na lista de membros
pessoas como: Victor André Villon, funcionário público administrador do Matadouro
Municipal684, radicado no Brasil e da segunda geração de imigrantes franceses, pai do
ator de teatro e cinema André Villon685.

681
Ao menos não achamos indícios de atividades dramáticas.
682
O País, 17/09/1911.
683
O nome bodegão vem estabelecimentos conhecidos como bodegas. O maior deles é conhecido como
bodegão. Cf.: FREITAS, Benedicto. Santa Cruz. “O Matadouro de Santa Cruz (cem anos a serviço da
comunidade) ”. Rio de Janeiro: 1977. P. 45. Um grande ponto comercial de Santa Cruz, próximo ao
Matadouro Municipal. Segundo site do Ecomuseu de Santa Cruz: “Ali se encontravam marchantes, donos
de açougues, funcionários do Matadouro, boiadeiros e magarefes e as fartas feiras. O comércio no largo
cresceu com a prosperidade do Matadouro. ” Disponível em: <
http://www.quarteirao.com.br/matadouro.html>. Acesso em 22 de junho de 2015.
684
Victor era ajudante do administrador da diretoria do Matadouro, depois foi administrador do matadouro
Municipal de Santa Cruz. Cf.: Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro. 1924,
p.744. O País, 04/07/1926. A família Villon se perpetua nos cargos do Matadouro Municipal, consta o nome
de Ivan de Souza Villon em 1957, como diretor do Departamento da Renda de Transmissão. Cf.: Correio
da Manhã, 12/05/1957.
685
Filho de funcionário público, o ator fez parte das atividades dramáticas da S.M.F.B. e de outra sociedade
dramática Grêmio Procópio Ferreira na juventude, ambas em Santa Cruz. Vindo depois a obter fama
nacional no teatro e cinema. Cf.: André Villon e sua vida no teatro. P. 44. Jornal das Moças, 9/09/1954.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1402
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A diretoria da Sociedade Musical Francisco Braga (SMFB) que exerceu


mandato no ano de 1912 era formada por empregados do comércio, negociantes e
funcionários públicos686.

3. Clube Progressistas de Santa Cruz

Esse clube também fundado em 1913 tem a ênfase no desfile carnavalesco,


realizando também bailes internos. Os Progressistas possuíam desejo de expansão, pois
seu estatuto também tem números de ilimitados de sócios (inclusive quem frequentar o
687
clube por três vezes recebe um convite) , o ingresso era feito por indicação de
associados quites. A mensalidade dessa sociedade era de 1 mil reis688, valor acessível e
barato. O clube também se preocupava com imagem externa e interna, assim como os
outros clubes carnavalescos. Não aparenta haver grande hierarquia entre os sócios, já que
689
o voto é secreto e todos (associados) poderiam votar . Há uma distinção para o título
de benemérito por doação ou nomeação, mas sem nenhum grande privilégio
administrativo.
O clube também buscava prestar uma forma de auxílio mutuo entre os
associados, não apenas homenageando — com hasteamento do pavilhão caso de
falecimento do sócio—, também promovendo rateio para auxílio-funeral a família. Essa
informação nos ajuda a compreender a busca por união entre os associados. Levando a
um processo de formação de uma identidade comum ao grupo, estreitando os laços de
cooperação entre os membros. Victor Andrade Villon também era associado do clube
carnavalesco progressistas de Santa Cruz, sendo diretor690.

686
ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Secretaria de polícia do Distrito Federal. Fundo, GIFI Codex 6C365.
Rio de Janeiro, 1906.
687
ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Secretaria de Polícia do Distrito Federal. Fundo, GIFI Codex 6C366.
Rio de Janeiro, 1913.
688
Idem.
689
Idem.
690
JB, 27/01/1927.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1403
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

5. Clube Democráticos de Santa Cruz

Fundado em 1913, o clube possivelmente foi inspirado no tradicional Clube dos


Democráticos. “Número limitado de membros”, assim diz o estatuto do Clube
Democráticos de Santa Cruz, tal como na Inglaterra691, notamos a forte tendência à busca
da expansão do número de sócios. Muito embora, a maioria das sociedades explicitassem
em seus estatutos, que a forma de ingresso era feita por convite692, o só ingressava em
uma sociedade quem era tido como “membro cidadão”, ou seja, aquele reconhecido pelo
grupo como um igual. O desejo de expansão do número de associados cada vez maior
era natural693, porque quanto mais se expandiam as sociedades: mais prestígios
adquiriam, mais dinheiro arrecadavam e mais atividades faziam.
Outro fator que difere está sociedade é o carácter das atividades realizadas. Ela
propõe em seus estatutos que sejam carnavalescas e internas. As atividades internas
seriam bailes realizados: por associados, de aniversário, baile de datas comemorativas
(1°. de maio, Corpus Christi e Natal). A comemoração do dia do trabalhador em 1°. de
maio, explicita no estatuto chama atenção, nenhum dos estatutos das sociedades
estudadas continham essa ênfase. Mais interessante ainda é estar explícito no estatuto que
um dos temas relevantes para os Democráticos é o que chamam de “assuntos

691
O autor indica que sindicato Sociedade Londrina de Correspondência de carteiros também possuía tal
dizer em seus estatutos, afastemos comparações quanto composição social ou mesmo atividades das
sociedades. Queremos apenas indicar o desejo de expansão comum há muitas sociedades. Cf.;
THOMPSON, Edward. Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
P.15.
692
Elas possivelmente usavam do artifício do convite, não só para escapar da recusa de licença para
funcionar, mas também para afastarem indesejados.
693
Vemos que a sociedade tem esse desejo, pois a estrutura interna era mais burocrática que em outros
grupos que estudamos. Referimo-nos ao controle financeiro, como obrigatoriedade da apresentação dos
balancetes em assembleia de sócios, os secretários deveriam guardar as notas fiscais e apresentá-las no
balancete, dentre outros dispositivos notados estatuto. O que dá uma ideia de que a sociedade buscava a
construção de uma grande estrutura.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1404
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

operários”694. O estatuto também indica que boa parte dos sócios do grupo eram letrados,
afinal como vemos abaixo, ocorreriam “conferências literárias”.
Outra ênfase da importância da atividade carnavalesca do grupo é ter um cargo
chamado “1° e 2° diretores de sala” algo bastante similar aos mestres de cerimônia, além
de agregarem a função de mediadores de conflitos internos na comissão de “polícia
composta” por sócios695.
Não há como se saber se eram assuntos sindicais ligados a militância,
provavelmente não porque o estatuto diz ser proibidas discussões políticas no grupo. Se
era não explicitariam no estatuto submetido a polícia, com o risco de não aprovação. Essa
informação nos indica que haveria operários associados ao clube — em um número
significativo de associados talvez —, um dos fundadores dos Democráticos era Manoel
Felippe Thiago, condutor da E.C.F.B. (Estrada de Ferro Central do Brasil).
É possível afirmar, que outros trabalhadores membros do Clube dos
Democráticos, poderiam trabalhar na E.F.C.B, mesmo morar nas imediações no clube.
Afinal, Santa Cruz tinha uma estação ferroviária controlada pela companhia. O condutor
(cargo de Manoel) da companhia ganharia o suficiente para pagar a mensalidade do
clube, a saber 13$300.696 Quando estatuto do clube fala em “assuntos operários”, poderia
referir-se a membros operários da companhia (que se conheciam no trabalho e se
associavam no clube), e principalmente a uma cultura operária que esses membros
tinham, embora o estatuto faça questão de afastar assuntos políticos697.
A mensalidade do grupo era de 1 mil reis e joia de 5 mil reis 698, e com valores
baratos, portanto acessível a populares. O que também não quer dizer que qualquer um
poderia ter acesso ao quadro de sócios dos Democráticos, a seleção era bem rigorosa,

694
ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Secretaria de polícia do Distrito Federal. Fundo, GIFI Codex 6C366.
Rio de Janeiro. 1913.
695
Idem.
696
Idem.
697
ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Secretaria de polícia do Distrito Federal. Fundo, GIFI Codex 6C366.
Rio de Janeiro. 1913.
698
Idem
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1405
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

como a maioria das sociedades, pedia um convite de um membro quite e ser aprovado
pela diretoria. Ser reconhecido “cidadão entre iguais699” (no gozo dos direitos), levada à
proposta a votação em assembleia, o ingresso só é possível com a maioria positiva dos
votos. A hierarquia entre os sócios seria apenas simbólica e política, já que todos os
associados votam e podem ser votados.
Urge também mostrar como era importante a busca por união e cumplicidade no
seio dessa sociedade, está implícito no estatuto quando dá incentivo e prevê a formação
de grupos internos e “piqueniques familiares” 700
. O que também demonstra uma busca
por identidade comum no grupo, no sentido de “identificar-se”, com caraterísticas em
comum, “reconhecer” o outro semelhante.

Conclusão

Como percebemos nas sociedades estudadas acima, boa parte de seus associados
é ligado a um potentado político local. Mas o porquê dessas ligações? Não é simples
responder, mas tudo indica que é por ajuda financeira e por status e benesses com a
oligarquia. Pelo auxílio financeiro como percebemos, em certa reportagem em
homenagem a morte como benemérito dos: Clube Progressistas, Clube Democráticos de
701
Santa Cruz . A Sociedade Musical Francisco Braga também fazia eventos em
homenagem a Camará702. Das três principais sociedades carnavalescas de Santa Cruz no
final da década de 1910, Camará poderia ser apenas um entusiasta. Mas seria difícil esse
poderoso político que tinha forte base eleitoral em Santa Cruz e adjacências ser apenas
um entusiasta. Camará residiu em Santa Cruz e tinha interesses no bairro. Fica muito
evidente a rede de clientelagem de Camará, numa espécie de barganha assimétrica.

699
Já discutimos abundantemente a questão de estar no “gozo dos direitos”, o estatuto reforça ainda mais
quando restringe a entrada somente a pessoas com a maioridade e com “posição social definida”.
700
Idem.
701
Pelos Clubes, p.11. O Jornal, 19/12/1922.
702
O Século, 9/02/1909.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1406
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Seria do teria total interesse de Camará, se aproximar das sociedades, pois o


carnaval poderia ser um evento divulgador e uma forma de se promover politicamente,
conquistar votos de um grupo letrado que votava e compunha muitas direções dessas
sociedades como mostramos nas discussões acima.
Para as sociedades e seus membros o apoio do político, além de trazer obras
públicas de interesse de alguns703 membros. Facilitava a aprovação pela polícia ao
construir uma representação sobre si positiva, pois ter políticos como beneméritos afasta
a visão pela polícia de uma sociedade desordeira, com bebedeiras, bailes que virassem a
noite ou “ofendiam a moral”. Doações altas beneméritas eram em comuns, em sociedade
fundadas por trabalhadores como por exemplo algumas na Gávea, as doações também
eram praticadas. (COSTA, 2014). Os valores também variavam em torno de 500$000 rs—
valor até mais alto do que alguns clubes de Santa Cruz como Democráticos de Santa
Cruz—. Percebe-se assim que não era exclusividade das sociedades de Santa Cruz a
prática da inclusão de sócios beneméritos nos quadros sócias.
Mas era Camará, o único político que tinha rede de clientela com membros de
sociedades? Talvez com mais evidências que pudemos analisar e com mais provas
empíricas. Suspeitamos que como já se discutiu aqui, que a família Pimentel e Júlio
Cesário de Melo também tivessem. Nesse caso as frequentes reportagens no jornal O
Santacruzese de Oscar Pimentel dando ampla cobertura a Sociedade Musical Francisco
Braga e o Ginásio Musical 24 de Fevereiro, não são sem motivos ou aleatória.
Alguns dos associados da Sociedade Musical Francisco Braga principalmente
poderiam ter ligações com Honório Pimentel e seu filho Oscar Pimentel, como tinham
com Camará. Embora, não possamos comprovar vínculo direto dos Pimentel com as
sociedades — com o Ginásio Musical 24 de Fevereiro e as outras —, é apenas uma

703
Percebemos essa relação quando o Jornal Santacruzense de Oscar Pimentel, cobra da prefeitura, obras
de construção de um coreto e praça pública para a Sociedade Musical Francisco Braga e Ginásio Musical
24 de Fevereiro tocarem. Possivelmente faria parte da campanha para a eleição de intendente Municipal de
Honório Pimentel.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1407
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

possibilidade sugerida pela ligação do jornal com as sociedades e membros em eventos


da família dos mandões. Mesmo os comprimentos cordiais a Ernesto Pinho secretário da
Sociedade Musical Francisco Braga e membro do Ginásio Musical 24 de Fevereiro
demostram que haveria alguma relação de respeito mútuo704.

Referências

BATALHA, Claudio Henrique Morais. “Sociedades de trabalhadores no Rio de Janeiro


do século XIX: algumas reflexões em torno da formação da classe operária”. Cadernos
AEL, v.6, n.10/11, 1999

COSTA, Mariana Barbosa Carvalho da. “Entre o lazer e a luta: o associativismo


recreativo entre os trabalhadores fabris do Jardim Botânico (1895-1917) ”. Dissertação
(Mestrado em História) Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura.
PUC-RJ. Rio de Janeiro, 2014.

Dicionário de verbetes da Primeira República. Rio de Janeiro: FGV, 2009. P. 5.


Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/MELO,%20Ces%C3%A1rio%20de.pdf>. Acesso em: 22 de junho de 2015.

FRANCA, Lucia Pena. Dissertação- (Mestrado em História) Programa de Pós-


graduação em História. UFF. Niterói, 2011.

FREIRE, Américo Oscar Guichard. “Uma capital para a República: poder federal e
forças políticas locais no Rio de Janeiro na virada para o século XX”. Rio de Janeiro:
Revan, 2015. P.145.

FREITAS, Benedicto. Santa Cruz. “O Matadouro de Santa Cruz (cem anos a


serviço da comunidade)”. Rio de Janeiro: 1977.

MARQUES DA FONSECA, Vitor Manoel. “No gozo dos direitos civis:


associativismo no Rio de Janeiro, 1903-1916”. Rio de Janeiro/Niterói: Arquivo
Nacional/Muiraquitã, 2008.

MENDONÇA, Leandro Clímaco. “Nas margens: experiências de suburbanos com


periodismo no Rio de Janeiro, 1330-1920”. Dissertação de Mestrado em História,
Niterói, Programa de Pós-Graduação em História Social, UFF, 2011.

704
O Santacruzense, 3/01/1909.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1408
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “A Flor da União: festa e identidade nos


clubes carnavalescos do Rio de

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “E o Rio dançou”. Identidades e


tensões nos clubes recreativos cariocas (1912-1922). In: CUNHA, Maria
Clementina Pereira (org.). “Carnavais e outras f(r)estas”. Campinas: Editora
Unicamp, 2002.

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Prazer das Morenas: bailes, ritmos e


identidades nos clubes dançantes

SIQUEIRA, Uassyr de. “Entre sindicatos, clubes e botequins: identidades,


associações e lazer dos trabalhadores paulistanos (1890-1920)”. Tese - (Doutorado
em História) Programa de Pós-graduação em História da UNICAMP. Campinas,
2008.

THOMPSON, Edward. Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1987. P.15

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1409
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O “problema” negro: contexto e pensamento varnhageniano em relação à


escravidão africana em História Geral do Brasil

INGRID SILVA LUCAS


PPGH – Programa de Pós-Graduação em História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Esta discussão apresenta o complexo contexto em que se insere o historiador


sorocabano, Francisco Adolpho de Varnhagen (1816 - 1878), traçando um debate a
respeito de como a escravidão africana foi interpretada e tratada por este intelectual
conservador no capítulo “Escravidão Africana. Perigos Ameaçadores” em seu mais
famoso escrito História Geral do Brasil. A partir de uma breve análise do conjunto
político e social do qual participava Varnhagen (principalmente enquanto membro do
IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), analisaremos sua contribuição
historiográfica, da qual se compreendia muito mais do que partícipe, sentia-se
responsável por dar ao Império brasileiro uma memória. O trabalho busca, assim, trazer
à discussão a temática da escravidão pós-período regencial, já em um contexto do
Segundo Reinado, em que se buscava incessantemente o apaziguamento das tensões
políticas, que como defendemos nesta abordagem, não se encerraram com a subida de
Dom Pedro II ao trono.
Ao longo da década de 1830, bem como o período que se segue, no mesmo século,
está compreendido um complexo contexto político e social no Brasil. O conjunto
atribulado que compõe o período regencial (1831 – 1840) não se encerra nas décadas
seguintes; pelo contrário, embora com o chamado “Regresso Conservador”,
principalmente a partir de 1837 (com a Regência de Araújo e Lima) permaneça uma busca
pelo apaziguamento das situações conflitantes existentes no país, algumas questões serão
aprofundadas, seja para uma busca de uma ideia de calmaria política, com a vasta
utilização da figura imperial, por exemplo, seja para aprofundamento de crises já
existentes, como a questão da escravidão. Como afirma Schwarcz (1998), a figura do
Imperador é, antes de tudo, símbolo de conexão e vínculo do país; é o elo entre a Europa
e o Brasil. Sua característica está, sem dúvidas, voltada para a ideia de Europa nos
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1410
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

trópicos, vastamente abordada neste século, que é amplamente relevante para


compreendermos o pensamento varnhageniano, e que a imagem de Dom Pedro II
representa e corrobora.
Outro fator relevante para entendermos o contexto em que se insere o intelectual
analisado – Francisco Adolpho de Varnhagen – é a fundação do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro - IHGB (1838), ao molde de outras instituições que se iniciavam
neste período com os mesmos intuitos, principalmente na Europa, como é o caso do
Institute Historique de Paris - IHP, fundado em 1834. O IHP talvez tenha sido um dos
principais influenciadores, não somente do Instituto brasileiro, mas igualmente de outros
institutos com este viés em diversos locais da América, como aborda Wehling (1999, p.
25):
Todas as instituições, quer recentes, ou seja, já fundadas no clima da
pós-restauração, quer anteriores, refletiram em suas sessões e
publicações esse processo de ruptura e construção de um mundo novo,
sob a égide e com instrumentos racionalizadores das grandes
polarizações ideológicas da época – o nacionalismo, o historicismo e o
romantismo.

Portanto, a instituição em que se insere o sorocabano analisado, aquele


considerado por muitos como o Heródoto brasileiro, é de toda relevância para
compreendermos seu posicionamento, seu pensamento e suas concepções sociais e
filosóficas. Essas rupturas e construções estão presentes em seus escritos, sejam eles
historiográficos, diplomáticos, ou em suas missivas.
Para compreendermos Francisco Adolpho de Varnhagen, o visconde de Porto
Seguro (título dado pelo Imperador em referência ao local de chegada de Pedro Alvares
Cabral à Bahia), e seu pensamento, é importante apontarmos igualmente para o contexto
de sua inserção na instituição, como é o caso do projeto regressista em curso durante os
seus anos iniciais no IHGB (como primeiro secretário e diretor do museu do instituto).
Este chamado regresso na política traz consigo algumas características importantes a
serem ressaltadas a fim de dar continuidade ao tema que percorremos neste artigo: como
a construção historiográfica e memorialística de Varnhagen se porta frente à questão da
escravidão africana em História Geral do Brasil.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1411
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O projeto político regressista, como afirma Wehling (1999), tem no IHGB a sua
concretização mais bem acabada, no que tange à cultura. Algumas de suas principais
características, muitas delas presentes na trajetória do historiador analisado são: a ideia
da monarquia constitucional junto à afirmação do poder moderador; a estrutura política
centralizada mesclada à descentralização administrativa; o abolicionismo gradual; as
liberdades completas viabilizadas pelas instituições. Este conjunto de fatores nos
possibilita identificar pontos de defesa dos chamados liberais moderados (tendentes ao
conservadorismo), como destacou o professor Ilmar Rohloff de Mattos (2004).
Sem dúvidas, Varnhagen tem ideia e ao mesmo tempo toma para si a
responsabilidade do seu papel enquanto intelectual súdito do Imperador e partícipe da
construção nacional em uma instituição de tamanha importância para as construções
planejadas para o Império brasileiro. Neste sentido, vale ressaltarmos a abordagem
foucaltiana a respeito da relação entre intelectual e poder: para Michel Foucault (1989)
não é possível que haja separação entre estes. O intelectual é aquele capaz de produzir a
verdade, e a verdade para este é poder. Ou seja, o intelectual é o “portador de significações
e de valores em que todos podem se reconhecer” (Foucault, 1989, p. 11).
Podemos, assim, apresentar Varnhagen enquanto um ferrenho defensor da
monarquia portuguesa, como destacaram muitos de seus estudiosos; também defensor da
unidade territorial, fortemente abalada no contexto dos anos de 1830 pelas revoltas
regenciais; e um historiador demasiadamente preocupado com a ideia de veracidade de
suas contribuições historiográficas, característica esta que refletia o seu contexto e sua
ideia de história científica, profundamente influenciada por Leopold von Ranke (1795 –
1886). “Mesmo para aqueles que não o apreciam (e não parece, nem ontem nem hoje, que
sejam poucos) ele se converteu em uma figura incontornável para o entendimento da
história da história no e do Brasil” (CEZAR, 2007, p. 160).
Defendia a ideia do rigor, da imparcialidade científica e da pesquisa documental,
esta última que caracteriza profundamente seu trabalho como historiador, valendo-se dos
caminhos abertos que possuía enquanto diplomata, ou seja, sua característica
expedicionária, como afirma o professor Dr. Temístocles Cezar (2007). Está ligado ao
historicismo, porém faz parte de uma geração marcada pela desconfiança, como afirma

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1412
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Wehling (1999), em relação ao racionalismo iluminista, e muito mais influenciada pelo


Romantismo.
No entanto, não podemos classificar o nosso intelectual enquanto tal, já que, em
especial no Brasil, havia a famosa querela entre Varnhagen e os românticos, indianistas,
em especial, pela sua oposição ferrenha, ao que chamava, de forma pejorativa, de
caboclismo. Para o historiador “defender o indianismo não era apenas erro histórico, mas
um risco político para a obra de consolidação do Estado brasileiro.” (WEHLING, 1999,
p. 66). Além de oposições a questão do conhecimento histórico: no romantismo é viva a
ideia de forças instintivas que guiam o povo, já Varnhagen, como partícipe do pensamento
rankeano de História, se opõe totalmente à apreensão histórica sem embasamento e
objetividade.
Portanto, no pensamento varnhageniano, podemos destacar a influência romântica
em termos morais, sobretudo àqueles constituídos e difundidos pelo cristianismo, e
filosóficos; além da ideia romântica “da tradição e da autoridade, traço comum da
filosofia política da época (...) na concepção do Estado como ser vivo” (WEHLING,
1999, p. 57). Este conjunto pode ser destacado, sobretudo, pelo pragmatismo desta moral
em seu pensamento, ou seja, a utilidade dos valores que estipula enquanto fundamentais
em sua ideia de nação. Deseja constituir, ou ajudar a constituir o Império a partir do seu
contexto, “estudando uma sociedade, com etnias oriundas de três continentes, construía,
tanto ou mais que reconstituía seu passado no padrão ‘desejável’ para ela” (WEHLING,
1999, p. 55). Este padrão é o conservador.
Tal padrão é constituído por um conjunto de perspectivas com as quais o
intelectual compreende o mundo que o circunda e que nos permite levantar o debate a
respeito da complexidade na tratativa do pensamento e do conceito de conservadorismo.
Neste sentido podemos destacar a relevância de recordarmos a abordagem
koselleckiana da chamada História dos Conceitos, que nos permite trazer a complexidade
desta abordagem e como o tema que trataremos à frente nos permite discutir estas
nuances. Segundo Koselleck (apud. JASMIN, 2005, p. 33) “um conceito não é
simplesmente indicativo das relações que ele cobre; é também um fator dentro delas. Cada
conceito estabelece um horizonte particular para a experiência potencial e a teoria
concebível e, nesse sentido, estabelece um limite”. Pois bem, seguindo o mesmo
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1413
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pensamento, devemos destacar que o conceito possui a sua conjuntura, ou seja, está
eivado de perguntas e respostas, textos e contextos, como afirma o historiador
(KOSELLECK, 1992). Por isso abordaremos nesta narrativa um dos aspectos contextuais
para levantamento deste debate.
Assim sendo, argumentamos com a abordagem trazida pelo sociólogo Karl
Mannheim (2017) de estabelecermos um ponto crucial de início do pensamento
conservador que se encontra exatamente no século XIX, portanto, trata da importância
que tratávamos em linhas anteriores, da relevância do contexto, bem como do intelectual
analisado. Deste modo, podemos destacar que o conservadorismo embora se caracterize
neste período por “uma força política distinta, consciente e funcionalizada, ele transcende
a esfera política estrita e chega e implicar também uma forma particular de experiência e
de pensamento” (IDEM, 2017, p. 144), que não se incomoda com a estrutura vigente;
como defende o sociólogo, mas preocupa-se com as particularidades.
Neste sentido, podemos compreender um pouco mais o lugar de fala do
historiador e suas influências. Como argumenta Wehling (2013), dentro dos conflitos que
permeavam o ambiente político entre saquaremas e luzias, estava em debate qual era a
prioridade do Império brasileiro: ordem ou liberdade; conservadorismo ou liberalismo em
amplo sentido:
No próprio Varnhagen, embora faça questão de manter-se afastado dos
desdobramentos dessas questões tanto no plano teórico quanto no do
varejo político da época, as referências ao pacto social representado
pela Constituição e ao vulcão escravo demonstram seu conhecimento
do assunto e sua clara opção pela “ordem”, que na sua concepção
equivalia à estabilidade social, centralização política e homogeneidade
étnica (IDEM, 2013, p. 161).
Outro ponto relevante em Varnhagen, e é impossível não tratarmos deste aspecto,
diz respeito ao que foi destacado em linhas anteriores e que devemos aprofundar, ou seja,
sua relevância enquanto historiador e a importância da própria História neste período,
bem como de outras utilizações culturais que fomentassem o nacionalismo. Podemos
dizer que a explosão da memória (LE GOFF, 2003) no Brasil ocorre neste período, e que
estavam em disputa como esta memória seria constituída. Neste sentido, trazemos esta
expressão cunhada por Le Goff (2003) para apontar o fenômeno ocorrido no contexto da

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1414
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

França revolucionária, a qual pode caracterizar o ocorrido no Brasil em meados do século


XIX.
Segundo o mesmo historiador, compreende-se Memória enquanto um
“fenômeno individual e psicológico, (...) liga-se também à vida social.
Esta varia em função da presença ou da ausência da escrita e é objeto
da atenção do Estado que, para conservar os traços de qualquer
acontecimento do passado, produz diversos tipos de
documento/monumento, faz escrever a história, acumular objetos. A
apreensão da memória depende deste modo do ambiente social e
político (...)”. (LE GOFF, 2003, p. 419).
Esta é uma das tantas perspectivas que abrangem a discussão deste aspecto do
século XIX e este é o debate sob os escritos do autor; Varnhagen buscava oferecer uma
história verdadeira para o Brasil, como apontado em linhas acima, entenda-se, ser útil
para o projeto de nação. Vale destacar a esta altura um interessante trecho da dedicatória
de História Geral do Brasil ao Imperador Dom Pedro II:
(...) associando-me ao ponto de partida da história da civilização do
Brazil, são actos de Imperial Magnanimidade, que por si sós acusarão
aos leitores futuros o reinado fecundo que produziu a obra, bem que
ainda com defeitos, filha de aturado trabalho de uma vida sempre
votada ao estudo e à investigação da verdade.” (VARNHAGEN,
Dedicatória Tomo Primeiro, Segunda edição, 2017, p. 9)
Esta colocação do historiador demonstra tanto sua percepção historiográfica,
quanto sua consciência da contribuição dos seus escritos para a constituição da memória
nacional. Cabe aqui concordarmos com Ortega y Gasset (apud. REIS, 2006, p. 14) que “a
data de uma obra diz muito sobre ela, é a sua definição, pois revela o mundo histórico em
que foi produzida”, e nisto consiste este trabalho: compreender o mundo em que os
escritos do autor se inserem, trazendo para o debate a questão do seu pensamento neste
contexto; ou seja, analisar a ideia de conservadorismo com um caso específico, e
problematizar este conceito que ainda hoje trás debates, tanto no senso comum, quanto
no meio acadêmico.
Então como esta memória seria constituída? Quais eram os pressupostos do autor?
Quando apontamos Varnhagen como um conservador o que pode ser extraído desta
terminologia para compreensão do pensamento e do conceito?
É interessante, portanto, destacarmos antes de entrar no âmago da questão
colocada, como as forças liberadas durante o contexto da Revolução Francesa fazem-se

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1415
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

presentes durante o século posterior ao seu acontecimento. Sejam forças pró ou contra
suas diretrizes, como é caso do conceito de conservadorismo analisado nestas linhas.
Neste pequeno trecho retirado de Reflexão sobre a Revolução na França,
podemos notar uma importante característica do conservadorismo, deixando clara a
ressalva do diferente contexto em que se encontra Edmund Burke em relação ao universo
do Império brasileiro, mas dele pode se extrair pontos de conexão de diversas ideias
daquele que é considerado o fundador do conservadorismo na modernidade:
O senhor poderá observar que, da Magna Carta (sobre a Revolução de
1688) à Declaração de Direitos, a política constante de nossa
Constituição sempre foi a de reivindicar e afirmar nossas liberdades
como uma herança inalienável, deixada para nós por nossos
antepassados e a ser transmitida à nossa posteridade... (BURKE, 2014,
p. 55).
É constatável nesta colocação um fator que é interessante para compreensão do
conservadorismo: o apego à tradição; que está ligado, de certa forma, com a ideia de uma
mudança paulatina no status quo, quando necessária, tendo, portanto, premissas
contrárias às ideias progressistas. Como afirma Reis (2006), sobre o pensamento
varnhageniano, “a tese do ‘progresso linear e gradual’ é interpretada de modo conservador
(...). O passado resolverá seus problemas sem necessidade de ruptura (...)” (REIS, 2006,
p. 16).
Compreendermos, portanto, Varnhagen neste contexto político, social, bem como
os seus conflitos dentro do instituto do qual era integrante, nos possibilita trazer outros
aspectos que faziam parte do Brasil oitocentista, ou seja, de certa forma, as preocupações
que cercavam o Império. Como afirmou Arno Wehling (1999) os problemas durante a
regência significavam uma espécie de quebra da unidade, ou da busca desta. Durante o
Segundo Reinado estas preocupações serão “minimizadas”, porém, não serão dizimadas,
e as revoltas e insatisfações dos negros escravizados significavam isto. Podemos afirmar
até que esta foi uma das situações que se encorpou durante o Império, ao invés de ser
diminuída.
No contexto específico em que o capítulo da obra que discutiremos à frente foi
escrito e divulgado (“Escravidão Africana. Perigos ameaçadores” no livro História Geral
do Brasil), além das questões destacadas, algumas outras pairavam as preocupações sobre
o contexto social e político brasileiro, como esta trazida com maior aprofundamento que

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1416
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

é o caso da escravidão. Faz-se relevante, portanto, destacarmos que embora Varnhagen


esteja escrevendo sobre o passado, deixa a todo tempo seu rastro a respeito de suas
preocupações com o seu presente em seus escritos. Como afirma Reis (2006, p. 9), “cada
geração, em seu presente específico, une passado e presente de maneira geral original”.
A esta altura o Brasil possui um vasto número de escravizados em seu território.
A despeito de toda contrariedade do posicionamento europeu em relação à escravidão, o
Império permanece com o regime escravista, porém, paulatinamente, diversas leis contra
a escravidão surgem, principalmente com a grande pressão inglesa neste contexto e os
debates a este respeito ganham força ao longo do século. As leis que tratavam como
pirataria o tráfico negreiro em 1827; de eliminação total do tráfico da economia em 1831;
o Bill Aberdeen em 1845; “Eusébio de Queiróz” em 1850, que permitia a apreensão de
embarcações em território brasileiro em que houvesse escravizados, trazem pontos
relevantes a respeito desta temática.
O próprio Varnhagen, em sua história do Brasil, apontará que nestas ponderações
feitas não é de seu intento discutir a respeito da pele preta, de suas características
intrínsecas, “nem qual seja a teoria dos ângulos faciais, tudo o que deve ainda ser
submetido a novas observações para dar resultados seguros e simples, capazes de serem
aproveitados em uma história civil” (VARNHAGEN, 1956, p. 223). Este trecho é
demasiadamente relevante para a compreensão, sobretudo, de que o historiador tinha
ideia deste debate científico a respeito da raça existente em seu contexto, ou seja, ainda
que Varnhagen passasse muito do seu tempo fora do Brasil, como afirma Temístocles
Cézar (2007), e que este fato possa ser comprovado também ao pesquisarmos um pouco
sobre sua vida profissional, este estava inserido e preocupado com as questões discutidas
em solo brasileiro, como é esta questão do problema do negro.
Ainda que o pensamento varnhageniano não possua uma verdadeira abrangência
neste assunto, ao contrário do caso dos indígenas, por exemplo, Varnhagen se vê obrigado
a trazê-lo em sua História Geral do Brasil, fator este que torna ainda mais interessante a
análise destas poucas linhas, por três motivos: primeiro o desafio de Karl von Martius
lançado aos historiadores, para o qual podemos perceber muitas respostas de Varnhagen
à sua monografia, como trataremos à frente; o segundo aspecto é o seu profissionalismo
enquanto historiador e, igualmente, seu ferrenho compromisso com a verdade; o terceiro
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1417
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

e último aspecto é a consciência que possui de ser um construtor da memória nacional,


que necessitava de uma história a partir de sua realidade, mas que se encaixasse no ideal
conservador. Percebe-se claramente estes aspectos neste trecho:
A colonização africana teve uma grande entrada no Brasil, podendo ser
considerada um dos elementos de sua população, o que nos obriga a
consagrar algumas linhas a essa gente de braço vigoroso. Mas fazemos
votos de que um dia as cores de tal modo se combinem, que venham a
desaparecer totalmente do nosso povo as características da origem
africana e a acusação da procedência escrava de um dos troncos da
população brasileira (VARNHAGEN, apud REIS, 2006, p. 43).
Neste sentido, buscaremos abordar então nas linhas a seguir como o pensamento
varnhageniano se traduz neste aspecto e como podemos perceber a complexidade daquilo
que denominamos como pensamento conservador neste período. Dentre tantos outros
pontos que não trataremos aqui, a defesa da escravidão circunda o imaginário como um
dos aspectos conservadores por excelência no Brasil, no entanto, assim como o conceito,
a prática é igualmente complexa. Estamos diante de um intelectual que se opõe a
escravidão. Não se trata, porém, de uma espécie de abolicionista, sua oposição se
concretiza em bases conservadoras, sobretudo.
Trazemos aqui, então, uma citação de Karl von Martius em sua monografia
“Como se deve escrever a História do Brasil” e sua proposta àqueles que se propunham
a escrever uma história para o Brasil, no que diz respeito à preocupação com a inserção
do negro nesta conjuntura:
Não há dúvida que o Brasil teria tido um desenvolvimento muito
diferente sem a introdução dos escravos negros. Se para o melhor ou
para o pior este problema se resolverá para o historiador, depois de ter
tido ocasião de ponderar as influencias, que tiveram os escravos
africanos no desenvolvimento civil, moral e político da presente
população.
Mas, no atual estado das coisas, se faz mister indagar a condição dos
negros importados, seus costumes, suas opiniões civis, seus
conhecimentos naturais, preconceitos e superstições, os defeitos e as
virtudes próprias à raça em geral (...) (MARTIUS, 2017, p. 49).

Compreendemos então, a partir deste pequeno trecho esta obrigação em que


Varnhagen se insere, de dedicar estas poucas páginas ao caso da escravidão. Ao
analisarmos estas poucas páginas dedicadas a este tema em História Geral do Brasil
percebemos alguns pontos a respeito da opinião do historiador sobre a escravidão,
inclusive levantadas por seus comentadores.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1418
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Podemos salientar, que o seu posicionamento se opunha à escravidão por


compreender que “(...) o ato de escravizar era injusto, principalmente por não ser
empreendido por ideia filantrópica” (VARNHAGEN, 1956, p. 224). Neste sentido
podemos considerar a defesa de Varnhagen como influenciada pelo pensamento
iluminista, se opondo à escravidão por considera-la enquanto um “insulto à humanidade”,
que prejudicava o indivíduo escravizado, a família e o Estado a qual pertenciam, além de
não estar também em consonância com a ideia de felicidade, que era estabelecida,
segundo seu pensamento, com os pilares da religião e da moral.
Neste sentido, o pensamento varnhageniano, se comparado a outros intelectuais
considerados conservadores, se opõe, trazendo a complexidade das ideias que dizem
respeito a este tema. Podemos trazer à discussão o caso de José de Alencar, por exemplo,
como forma de traçar um comparativo para a compreensão da complexidade deste
assunto. O autor de Iracema da discussão a respeito do assunto com a redação de diversas
cartas endereçadas ao Imperador Dom Pedro II, defendendo a ideia da necessidade do
cativeiro, a ideia de domínio do homem sobre o homem (ALENCAR, 2008).
Na defesa alencariana, a escravidão faz parte da história da humanidade, caminha
junto com o homem, que precisa se aperfeiçoar e só tem o outro homem para isto, e é
também uma instituição que civiliza e preserva o próprio homem, porque este não mata
o seu oponente, mas o escraviza. Outra característica que pode ser observada na defesa
de Alencar é a escravidão como algo natural e a teleologia contida nesta abordagem, ou
seja, uma finalidade, neste caso: social, econômica, “educacional”, religiosa, entre outras.
Nestes dois últimos aspectos Varnhagen traz uma abordagem parecida com
Alencar, vê na escravidão uma oportunidade do africano se tornar mais civilizado do que
se continuasse em sua terra: “E o certo é que, passando para a América, ainda em
cativeiro, não só melhoravam de sorte, como se melhoravam socialmente, em contato
com gente mais polida, e com civilização do cristianismo” (VARNHAGEN, 1956, p.
224).
No entanto, Varnhagen não deixa de compreender a escravidão africana como
algo indesejável em uma sociedade, e o motivo pelo qual levanta isto é que nos interessa
e corrobora a afirmativa expressa em linhas anteriores de que este pensamento não faz
dele um abolicionista. No pensamento varnhageniano, para além das questões iluministas
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1419
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

apontadas, estes escravizados não compunham a ideia de nação estabelecida, a ponto de


o historiador afirmar que seria mais interessante ao Brasil abrir mão da vasta plantação
de cana-de-açúcar, ou ainda dar este trabalho aos colonos e indígenas, para evitar tamanha
abrangência de entrada de escravos no Brasil.
Dando continuidade a esta perspectiva, o historiador acentua que os africanos
“pervertiam os costumes por seus hábitos menos decorosos, seu pouco pudor, e sua tenaz
audácia” (VARNHAGEN, 1956, p. 225). Nestes trechos podemos compreender a
preocupação com este ideário que circundava as contribuições de Varnhagen, portanto,
este ideário complexo de nação existente no autor regia a sua forma de compreensão
moral e se traduzia naquilo que compreendia enquanto componentes do homem
brasileiro.
Nestas páginas abordamos e discutimos o vasto leque que o historiador Francisco
Adolpho de Varnhagen nos permite discutir enquanto partícipe, não só de uma
historiografia, mas da própria construção da política de seu período e como contribuiu
para a construção de um, de tantos “Brasis” possíveis que se apresentavam de acordo com
cada pensamento existente em meados do século XIX no Império. Este tema, ou seja, o
problema do negro é um daqueles que ainda se fazem latentes no contexto brasileiro e
trazer a abordagem do intelectual sorocabano para esta temática nos possibilita, como dito
em linhas anteriores, perceber a vasta possibilidade de análise do assunto, bem como uma
visão mais abrangente quando tratamos de um pensamento ou de um conceito tão
intricado neste período, como é o caso do conservadorismo.

Referência Bibliográfica:

ALENCAR, José de. Cartas a favor da escravidão. (Org. Tâmis Parron). São Paulo:
Hedra, 2008.

BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. São Paulo: EDIPRO, 2014.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1420
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CEZAR, Temístocles. Varnhagen em movimento. Breve antologia de uma existência.


Topói, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15, jul-dez. 2007. Disponível em:
<http://socialsciences.scielo.org.>

FOUCAULT, M. DELEUZE, G. Intelectuais e o poder. In: _______. Microfísica do


poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989, p. 41-46.

JASMIN, Marcelo. História dos Conceitos e Teoria Política e Social: referências


preliminares. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 20, n. 57. 2005.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v20n57/a02v2057.pdf>

KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos.


Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10. 1992. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1945/1084>
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.

MANNHEIM, Karl. O Significado de Conservantismo. In: _______. O Pensamento


Conservador. Karl Mannheim. USP, São Paulo. Disponível em:
<https://agentenaoquersocomidablog.files.wordpress.com/2016/03/mannheim-k-
significado-do-conservantismo.pdf>. Acesso em: jun. 2017.

MARTIUS, K. F. von. Como se deve escrever a história do Brasil. Disponível em: <
https://umhistoriador.files.wordpress.com/2012/03/martius-carl-friedrich_como-se-
deve-escrever-a-histc3b3ria-do-brasil.pdf>. Acesso em: 17 jun. 2017.

MATTOS, Ilmar R. O Tempo Saquarema. São Paulo: Editora Hucitec, 2004.

REIS, José C. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora


FGV, 2006.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1421
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SCHWARCZ, Lilia M. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos.


São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

VARNHAGEN, F. História Geral do Brazil. Vol. 1, 2ª Edição. Disponível em:


<http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/01819210#page/7/mode/1up>. Acesso em
jun. 2017.

________. História Geral do Brasil. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1956.


WEHLING, Arno. Estado, Hisória, Memoria: Varnhagen e a construção da identidade
nacional. Rio de Janeiro: IHGB, 1999.

________. O conservadorismo reformador de um liberal: Varnhagen, publicista e


pensador político. In: GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal; GLEZER, Raquel (orgs.).
Varnhagen no caleidoscópio. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2013.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1422
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O anticlericalismo nas páginas do periódico La voz de la mujer (Buenos Aires,


1986-1897)

INGRID SOUZA LADEIRA DE SOUZA


PPGH-UNIRIO

I
Esta comunicação é parte integrante da dissertação de mestrado que vem sendo
desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em História da UNIRIO e tem
como proposta analisar os traços do anticlericalismo presentes no periódico La voz de la
mujer. Este periódico anarquista circulou em Buenos Aires entre os anos de 1896-1897,
sendo lançado como o primeiro jornal de mulheres para mulheres da América Latina.
Os artigos sobre o anticlericalismo no periódico fazem parte de uma série de textos
contestatórios que tinham por objetivo final o levante feminino em busca de sua própria
emancipação. Para as libertárias, a Igreja fazia parte de uma rede de exploração e opressão
encabeçada pelo Estado e associada ao Capital, cujo propósito era a repressão e a
dominação das consciências femininas.
O periódico divulgava contos que pretendiam desmoralizar o clero, alertando as
mulheres sobre os perigos da religião, que nelas provocava completa ignorância e
alienação. Desmoralizar o clero significava, também, criticar a moral burguesa que
defendia a família regulamentada pelo casamento civil e disciplinada pelo enlace
religioso. Negar Deus era negar a Igreja, era defender a autonomia da mulher no que se
refere a escolha do companheiro e às práticas da sexualidade, optando ou não pela
maternidade.
Nessa perspectiva, o trabalho privilegia o combate que as articulistas do periódico
empreenderam contra a tradição religiosa e o domínio das consciências exercido pela
Igreja.
II
O periódico La voz de la mujer surgiu com uma proposta social diferente dos
demais periódicos que compunham o cenário da imprensa argentina na época, tanto no
que se refere a grande imprensa quanto à imprensa operária. Embora outros periódicos
trouxessem a questão da mulher para suas pautas, discutindo a situação social da mulher
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1423
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

na época, o La voz de la mujer priorizava a mulher, ou seja, era um jornal redigido e


organizado por mulheres e voltado para as mulheres. Todas as pautas do jornal eram
direcionadas para o processo de conscientização da mulher, que, segundo as articulistas,
nesse percurso, deixaria de ser apenas uma mulher e se transformaria na mulher libertária,
disposta a lutar por sua emancipação.
O La voz de la mujer entrou em circulação no dia 08 de Janeiro de 1896 quando
lançou seu primeiro exemplar e encerrou suas atividades no dia 01 de Janeiro de 1897.
No primeiro número do jornal J. Calvo (Josefa Calvo) aparece como diretora, mas, a partir
do segundo número, A. Bacla assume a diretoria do periódico. Algumas mulheres
aparecem como redatoras fixas, as quais produziam sistematicamente conteúdos para
publicação. Entre elas, dois nomes se destacam: Josefa M. R. Martinez e Pepita Guerra.
No seu corpo de colaboradores aparecem dez articulistas, que são: Una Striratrice,
Carmem Lareva, Rosario de Acuña, MilnaNohemi, Luisa Violeta, Tulio delBurgués,
Esther Buscaglia, Soledad Gustavo, E. Heine, J.C., Maria Muñoz.
As contribuições em forma de artigos, cartas de leitores e até mesmo a remessa de
recursos financeiros que poderiam ser enviadas para o endereço de correspondência
CasillaCorreo, 1277- Capital, que apareceu explicitamente no segundo exemplar do
periódico. Foram editados nove exemplares, sendo o jornal financiado por subscrição
voluntária – doações de leitores-, e por ajuda de pequenas gráficas conhecidas das
redatoras e que apoiavam a emancipação da mulher. Apesar da produção por pequenos
grupos militantes e periodicidade irregular, a tiragem girava em torno de mil e duas cópias
conforme consta na prestação de contas publicada sempre na última página de cada
exemplar. Vale ressaltar que a distribuição, grosso modo, era feita por homens que
apoiavam a causa da emancipação da mulher. (MOLYNEUX, 1997, p. 17)
O periódico seguia uma corrente do anarquismo crescente na Argentina de então,
o comunismo-anárquico, sistematizada por teóricos como Kropotkin e Malatesta.
Kropotkin expôs em seu livro A Conquista do Pão, o que a corrente sintetizava:
Toda sociedade que tiver rompido com a propriedade privada é obrigada, no
nosso entender, a organizar-se em comunismo anarquista. A anarquia conduz
ao comunismo, assim como o comunismo leva à anarquia, sendo ambos a
expressão da tendência das sociedades para a procura da igualdade.
(KROPOTKIN, 2011, p. 31)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1424
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para compor o quadro teórico do periódico, tanto as redatoras como as


colaboradoras estavam lendo, naquele contexto de propagação das ideias libertárias,
principalmente as mulheres anarquistas como Emma Goldman e Louise Michel, com as
quais as redatoras trocavam correspondências, o que nós dá indícios de uma rede
internacional envolvendo militantes nas Américas e na Europa. Outros teóricos libertários
que se preocupavam com a emancipação feminina e com os assuntos que diziam respeito
à mulher também estavam sendo lidos. Bakunin, Kropotkin e Malatesta preocupavam-se
com uma nova formação para homens e mulheres, ou seja, com a formação de uma nova
moral.
Em seu primeiro exemplar, o periódico La voz de la mujer veiculou um editorial
chamado Nuestros propósitos: Compañeros y Compañeras¡Salud!705que evidenciava sua
revolta em torno da posição social da mulher, tanto no seu papel clássico de esposa e mãe,
como no de agende social. Esse editorial afirmava os propósitos do periódico:
[...] Hastiadasya de tanto y tanto llanto y miseria, hastiadasdel eterno y
desconsolador cuadro que nos ofrecennuestros desgraciados hijos,
lostiernospedazos de nuestrocorazón, hastiadas de pedir y suplicar, de ser
eljuguete, el objeto de losplaceres de nuestros infames explotadores o de viles
esposos, hemos decidido levantar nuestra voz enelconcierto social y exigir,
exigir décimos, nuestra parte de placeresenel banquete de la vida. (LA VOZ
DE LA MUJER, 8 jan. 1896, p.1)706
Analisando o editorial podemos notar a presença de um despertar das consciências
por parte dessas mulheres. Perceberam em algum momento que precisavam reivindicar
seu lugar na sociedade e usufruir os seus prazeres. Através do jornal que estava iniciando,
como uma primeira experiência de luta, procuravam se firmar como mulheres que
pensam, que agem e que podem estar em posições de igualdade com os homens.
O segundo exemplar do jornal, que circulou em 31 de janeiro de 1896 indicava
que a criação do periódico foi mal recebida por alguns anarquistas, os quais teceram duras
críticas às mulheres redatoras. Em resposta às críticas recebidas, as articulistas decidiram
expor sua indignação a esses críticos e publicaram o artigo ¡AparecióAquello! (A

705
Nossos propósitos: Companheiros e Companheiras: Saúde!
706
Cansada de choro e miséria, cansada da imagem eterna e desconsolada oferecida por nossos filhos
infelizes, os ternos pedaços de nosso coração, cansadas de pedir e implorar, de ser brinquedo, o objeto dos
prazeres de nossos infames exploradores ou de maridos vis, decidimos elevar a nossa voz no concerto social
e exigir, exigir décimos, a nossa parte dos prazeres no banquete da vida.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1425
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

losescarabajos de laidea)707, no qual acusavam os anarquistas de não desejarem a


emancipação da mulher, de não serem realmente comprometidos com os ideais do projeto
libertário.
Pero es preciso señorescongrejos y no anarquistas, como mal os llamáis, pues
de tales tenéis tanto como nosotras de frailes, es preciso que sepáis de una vez
que esta máquina de vuestrosplaceres, este lindo molde que vosostros
corrompeis, éstasufredolores de humanidade, está yahastiada de ser un cero a
vuestro lado, es preciso, ¡oh!, ¡falsos anarquistas! quecomproendáis una vez
por todas que nuestramisión no se reduce a criar vuestroshijos y lavaroslaroña,
que nosostrastambiéntenemosderecho a emancipamos y ser libres de toda clase
de tutelaje, yasea social, ecónomico o marital.(LA VOZ DE LA MUJER, 31
jan. 1896, p.1)708

O periódico tratava de diversas questões vivenciadas pelas mulheres em várias


dimensões, como o amor livre, a livre união, o anticlericalismo, a exploração fabril, o
tráfico de mulheres, a posição social da mulher, a exploração do capital. Buscavam meios
para se desvincular dos homens e buscar por si próprias a liberdade, fazendo isso através
da luta pela Anarquia.
III
De origem francesa, o termo anticlerical surgiu pela primeira vez em torno de
1850, sendo apropriado por grupos extremamente heterogêneos. A própria palavra esteve
associada a diversos sentidos como: blasfematório, marxista, revolucionário,
pornográfico, jurídico, comunista, popular, terrorista, estatal, literário, maçônico,
ideológico, anarquista. Antes de se estabelecer na América como um todo, já era uma
palavra muito utilizada por grupos de extrema-direita e de esquerda na Europa. O
anticlericalismo seria a ruptura desses grupos heterogêneos com toda estrutura
eclesiástica e símbolos que poderiam representar a Igreja. (VALLADARES, 2000, p. 9)
(SANTOS, 2014, p. 49)
No decorrer das décadas dos século XVIII e XIX, os beatos, padres e madres
tiveram uma mudança em sua identidade religiosa, que se concretizou pela estagnação de

707
Apareceu Aqueles! (Para os besouros da ideia)
708
Mas é necessário senhores caranguejos e não anarquistas, como vocês são chamados, pois vocês tem
tantos de nós como frades, vocês devem saber imediatamente que essa máquina de seus prazeres, esse lindo
molde que você corrompe, sofre dores de humanidade, já está cansada de ser um zero ao seu lado, é
necessário, oh, falsos anarquistas! Para provar de uma vez por todas que nossa missão não é apenas criar
seus filhos e lavar sua sarna, também temos o direito de emancipar e ser livre de todos os tipos de tutela,
social, econômica ou conjugal.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1426
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

uma figura idealizada de sujeito, inclusive no campo literário. Segundo Cristian Santos,a
introdução da racionalidade como forma para o progresso dos povos, ou até mesmo a
defesa do conhecimento racional como modo para vencer preconceitos e ideologias
políticas tradicionais reduziu a atuação da religião, provocando aversão a instituição
clerical. (SANTOS, 2014, p. 49)
Se analisarmos os percursos que o anticlericalismo fez ao longo da história,
podemos afirmar que seu discurso sempre foi muito ácido e radical, enfatizando a falta
de benefício da estrutura eclesial para sociedade e para o indivíduo. No início do século
XVIII, o discurso anticlerical começa a ter uma definição mais especifica, fazendo críticas
aos prestígios e as influências da Igreja na esfera da vida pública, principalmente na
relação entre Igreja e poder estatal, pois os membros do clero, como representantes da
instituição Igreja os membros do clero indicavam pessoas para as fileiras do Estado,
reafirmando seu plano político de poder. (SANTOS, 2014, p. 50)
A relação entre Igreja e Estado, já no início do século XVIII e ao longo do século
XIX, começa a se tornar insustentável. Novos projetos políticos começam a surgir sem
contemplar as ideias do clero e estabelecem uma separação entre os dois poderes. Assim,
a Igreja vai deixando de interferir nas escolhas e indicações para cargos de poder do
Estado.
Após o surgimento e consolidação do anticlericalismo no seio de determinados
grupos sociais e políticos, todas as decisões da Igreja eram vistas como algo negativo e
as atitudes de padres, bispos, cardeais e até mesmo do Santo Papa passam a ser vistas
como antigas, arrogantes e incapazes de abranger um discurso mais racionalista. Até
mesmo o Papa “com seu séquito, bulas e solenidades, é encarado como a encarnação de
um passado triste e insepulto.” (SANTOS, 2014, p. 51)
Caro Baroja identifica três momentos do anticlericalismo na história do Ocidente.
Entre os três momentos, o segundo contempla a ideia da negatividade que vinha sendo
atribuía por parte da sociedade aos membros da Igreja, o comportamento de padres, bispos
que se desviavam da conduta religiosa adotada por eles mesmos no ato de entrar na escola
seminarista. Essa negatividade foi redirecionada a instituição Igreja, sendo os desvios de
conduta um reflexo da infidelidade da Igreja à Deus. Fazendo da instituição responsávela
pelas atitudes de seus membros. (BAROJA, 1980, p. 102)
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1427
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As mais variadas manifestações anticlericais no decorrer da História tenderam a


provocar movimentos de mudanças, construindo novos sentidos e rompendo com uma
importante instituição da sociedade.
[...] diversas e distintas manifestações anticlericais [...] constituíram-se em
fenômenos deflagradores de mudanças, trazendo em seu bojo uma
intencionalidade marcante de construir novos significados, o que,
evidentemente, pressupunha romper, em maior ou menor grau, com a
concepção discursiva de instituições e pessoas formadores de opinião. [...]
(SANTOS, 2014, p. 53)

A partir de determinado momento as mais diferentes correntes de pensamento


encontram-se em dois campos opostos: clericais e anticlericais. Cada uma das duas frentes
propagará diversos motivos para comprovar a sua verdade e reafirmar suas ideias no plano
religioso ou social, “ambas as malhas axiológicas são tecidas a partir da oposição de
atributos, desfiados num discurso antiético: luz e trevas, liberdade e escravidão,
modernidade e tradição.” (SANTOS, 2014, p. 58)
As acusações de que os anticlericalistas eram ateus foi encarada como uma
estratégia de desconfigurar o discurso do opositor. Mas, ser anticlerical não significava
ser ateu, embora o ateísmo fosse uma possibilidade do anticlericalismo.
[...] Declarar alguém ateu é negar validade as suas proposições, é fazê-lo
inimigo da sociedade que, mesmo em crises profundas, ainda se reconhece
como cristã. O grande desafio dos modernistas é opor-se ao pensamento
clerical da época sem se apresentarem como inimigos da fé.[...] (SANTOS,
2014, p. 60)

Em alguns grupos, as representações do movimento anticlerical são configuradas


a partir da ressignificação de elementos que são parte do clericalismo, as primeiras
manifestações do anticlericalismo para grupos de esquerda, por exemplo, se deram no
plano estético. Imagens, caricaturas colocaram um olhar de deboche sobre os membros
do clero, afim de ridicularizar e expressar seu repúdio sobre a instituição e seus
componentes.
IV
O anticlericalismoem suas diversas facetas também foi muito forte dentro do
movimento anarquista, tanto na Europa como na América, destacando-se exemplos de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1428
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Argentina e Brasil709. O anticlericalismo libertário constituiu-se em um movimento


político militante, reunindo uma gama de manifestações contra a instituição Igreja e seus
membros. Tais manifestações incluíam desde críticas ácidas explícitas e diretas, por meio
de artigos em periódicos, a poemas, contos, caricaturas, charges e desenhos temáticos de
padres obesos e depravados e madres imorais e pervertidas.
Para as libertárias do La voz de la mujer o anticlericalismo se resumia em uma
luta constante contra os padres, contra a Igreja, contra a agregação da Igreja com o capital,
contra a falta de liberdade individual de todos os homens e mulheres, contra a hipocrisia
dos representantes religiosos. A própria ideia de Deus, para os anarquistas, implicava a
anulação da liberdade humana já que instituía um sistema de relações hierarquizadas entre
Criador e criatura. O própriolema do jornal inclui “Ni Dios”710, negando assim Deus e a
sua instituição representante na terra, a Igreja.
O primeiro texto sobre o tema aparece no terceiro exemplar doLa voz de la
mujereditado no dia 20 de fevereiro de 1896. O artigo em questão, intituladoEnel
confessionário. El padre confesor y una niña de 15 años711, expõe casos de relações
sexuais entre padres confessores e meninas confidentes. A autora do texto narra a
conversa entre uma menina de 15 anos e um padre no confessionário, a confissão que
parece ser sobre algo banal, torna-se um caso de assédio e até mesmo de estupro.
Inicialmente a menina confessa que está diante do padre para contar que com uma
mãe enferma; razão pela qual a jovem tem faltado as missas: “‒ Padre; mi madre estaba
enferma, sinninguno que lacuidase, y yo no podíaabandonarla. ”712. Se para uma menina
religiosa esse parecia ser um “pecado” comum, para o clérigo não o foi. Ela, pois, acabou
recebendo uma repreensão do sacerdote “‒ Pero desgraciada, no sabeis que primero es el
alma y despuéselcuerpo, pero continuad.”713. (LA VOZ DE LA MUJER, 1896, p. 75).
Na sequência da confissão, o padre pressiona a menina a dizer quais outros
pecados ela está guardando. A jovem,então, confessa que se masturba e diz sentir prazer

709
O jornal anarquista carioca A Lanterna, fundado em São Paulo no ano de 1901, foi um importante
instrumento na luta anticlerical no Brasil, encontrando-se no campo das ideias anarquistas, uma vez que foi
fundado por iniciativa de militantes libertários. Existia, também no Brasil, uma Liga Anticlerical.
710
O lema original do jornal é: Ni Dios, Ni Patrón, Ni Marido
711
No confessionário. O padre confessor e uma menina de 15 anos.
712
‒ Padre, minha mãe estava doente, ninguém podia cuidar dela, e eu não podia deixa-la.
713
‒ Mas infeliz, você não sabe que primeiro é a alma e depois o corpo, mas continue.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1429
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

no ato. Quando questionada pelo vigário, a menina aponta o mesmo como responsável
por ensina-la a praticar tal ato:
‒Sí, padre; no os acordáiscuandoyotenía 10 añosvine aqui a confesar-me, y vos
me habéis preguntado si yo no me poníalos dedos en... esa parte que vos sabeis,
y yo os conteste que no sabíahacereso, y además me habéisdicho que todas
lasniñashacíaneso, y que era my bonito. Entonces a lanochequiseprobar, y
sintiendoplacerloseguíhaciendo.714 (LA VOZ DE LA MUJER, 1896, p. 76)

Pouco constrangido, o sacerdote segue se insinuando para menina, prometendo


mostrar a ela a felicidade de qualquer pessoa.Ambos se encaminham para cela715, onde o
assédio sexual continua, agora com o padre ficando nu diante da menina de 15 anos,
atacando a mesma com ferocidade. A pequena menina foge, escapando de um estupro.

[...] El padre confesorconlosojosencendidos y fuera de la órbita se desnuda,


laniña se averguenza al verlo comola madreloechó al mundo; el padre
confesorconla baba enla boca se abalanza sobre ella, laniña por instinto de
conservación abre lapuerta y huye. [...]716(LA VOZ DE LA MUJER, 1896, p.
76)

Decepcionada com a Igreja e seus corpo eclesiástico, a menina de 15 anos passou


a não frequentar mais a instituição. Acredita que a Igreja e seus membros são
representantes da hipocrisia e da falsa moral, “[...] nunca jamás se presentó al
confessionário ni tampouco va a laiglesia porque se há convencido de que es una farsa
que representanesosinfames.”717. (LA VOZ DE LA MUJER, 1896, p. 76)
Ao final do artigo, sua escritora confessa ser ela própria a menina de 15 anos
assediada sexualmente pelo sacerdote. Chama-se Luisa Violeta, diz está escrevendo sua
história para alertar pais de filhas para que não mande seus filhos a Igreja, pois o padre

714
‒ Sim, padre. Você não se lembra quando eu tinha 10 anos. Eu vim aqui para me confessar, e você me
perguntou se eu não coloquei meus dedos... a parte que você conhece e eu lhe disse que não sabia como
fazer isso e além disso você disse que todas as garotas fizeram isso, e isso era muito bonito. Então, à noite,
queria tentar e sentindo prazer segui fazendo.
715
Aposentos do sacerdote. Local pequeno, rustico.
716
[...] O padre confessor com os olhos virados e fora da órbita se despi, a menina tem vergonha de vê-lo
como a mãe o colocou no mundo, o padre confessor com baba em sua boca se joga sobre ela, a menina pelo
instinto de conservação abre a porta e foge. [...]
717
[...] nunca se apresentou ao confessionário e tampouco vai a Igreja porque está convencido de que é uma
farsa representada por aqueles infames.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1430
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

corrompe e ludibria as pequenas crianças. Segundo Violeta, o caso se passou na Igreja da


Piedad.
Outro caso relatado por Luisa Violeta, seria de duas crianças muito pequenas que
foram violentadas por um padre na igreja San Ponciano. As crianças encontravam-se
acamadas, os pais denunciaram o caso à polícia.
O artigo continua indagando a sociedade sobre sua responsabilidade diante de
inúmeros casos de assédio sexual cometidos por padres. O que diz a burguesia? O que diz
o clero? Não existe uma posição, os casos acontecem várias vezes e com várias crianças.
¿Qué disse de estola Voz de laIglesa? ¿quédice ele clero? ¿quédicela sociedade
burguesa? Pues nada, como si nada hubiera passado. Padres de família, alerta
contra esos mercadores de carne humana. 718 (LA VOZ DE LA MUJER, 1896,
p. 76)

Luisa Violeta conclui que apenas aderindo a Anarquia, conhecendo as questões


que afligem a sociedade, que afligem a mulher, as meninas ficaram protegidas de casos
de assédio sexual. Ficaram protegidas pela Igreja das investidas do clero e da doutrinação
da Igreja
Queridas niñas, estudiadbienlacuestión social y os convenceréis que
laAnarquía es la única idea verdadeira de laemancipación proletária, en donde
desaparecerán todas lasinjusticiassociales y en donde empezará una nueva era
de paz, armonía, libertad, progreso y amor.719(LA VOZ DE LA MUJER,
1896, p. 77)

Para os libertários, a confissão era um dos meios de a Igreja exercer seu poder
sobre as pessoas, dominando suas consciências. No início do século XIX, o clero
aconselhou aos seus féis que praticassem o ato da confissão. O intuito era fazer o fiel se
confessar, revelando seus pecados ao confessor com vistas à absolvição pelas faltas
cometidas, de modo a alcançar o perdão divino por meio da penitência. O medo da morte,
o receio de não entrar no paraíso, fazia com que os fiéis buscassem as igrejas para se
confessar quase todas as semanas. E ao confessar seus erros, recebia a penitencia aplicada
pelo sacerdote, na intenção de redimir seus pecados e conquistar o perdão divino. Ao

718
O que a Voz da Igreja disse sobre isso? O que ele diz? O que a sociedade burguesa diz? Nada, como se
nada tivesse acontecido. Pais da família, adverte contra os comerciantes de carne humana.
719
Queridas meninas, estude bem a questão social e convencerás que a anarquia é a única verdadeira ideia
da emancipação proletária, onde todas as injustiças sociais desaparecerão e onde uma nova era de paz,
harmonia, liberdade, progresso e amor começará. O grifo é original.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1431
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

mesmo tempo, pressupunha-se que os confidentes não cometesses novos erros.


(VALLADARES, 2000, p.72)
O ato da confissão começou a ser renegado pelos anticlericalistas e até mesmo por
fiéis da igreja, que acusavam os vigários de se intrometerem na vida privada das pessoas.
No ato de se confessar, o indivíduo, principalmente a mulher, revelava seus sentimentos,
ideias, fatos, permitindo o clérigo se imiscuísse na intimidade dos lares, das famílias, dos
casais, bem como reforçasse o poder religioso que protegia a si próprio.
Além disso, a confissão acabava sendo uma oportunidade para concretização de
atos libidinosos dos padres com mulheres, como no caso de Luisa Violeta, e até mesmo
com homens, rapazes e meninos. Na confissão os padres também espionavam as pessoas,
muitas vezes denunciados atos que considerava impróprias as autoridades. A questão da
confissão foi uma bandeira muito usada pelos anticlericalistas para respaldar suas
campanhas e ideias. (VALLADARES, 2000, p. 71-72)
No exemplar de número cinco, que circulou no dia 15 de maio de 1896, Luisa
Violeta volta a escrever sobre o acontecido com ela. Com um direito de resposta aos que
enviaram cartas ao periódico La voz de la mujer, o artigoLa inmunda cloaca
clerical720respondia àqueles que, segundo Violeta, duvidaram de seu relato, afirmando
que padres tem boas reputação.
Para ilustrar sua resposta, Luisa Violeta, que já escrevera sobre o assunto em um
diário chamadoGiordano Bruno,que circulou na capital argentina, revela nomes de padre
abusadores, suas vítimas. Explana que a Igreja acoberta os atos libidinosos de seus
sacerdotes, que a sociedade burguesa nada faz, que homens duvidam das vítimas para
desqualificar suas denúncias.
Para os anarquistas, o motivo de tantos casos de abuso e violência sexual, estaria
no celibato, um princípio contrário à natureza humana; fator que impulsiona tais atitudes
criminosas. Os padres, ao serem ordenados,adotavam uma vida de celibatário, uma vida
de renúncia, renúncia principalmente do casamento e da vida sexual. Entretanto, mesmo
impedidos pelo sistema clerical, padres e freiras mantinham relações sexuais.
V

720
A imunda cloaca clerical.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1432
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O anticlericalismo militante dos anarquistas pode ser definido como um ato de


denúncia contra a Igreja e seus membros. Como um ato de levante contra um dos poderes
que oprime a sociedade e principalmente que oprimi as mulheres, há tempos suas maiores
vítimas.
O objetivo das libertárias ao expor casos de assédio e abuso sexual seria
demonstrar o caráter duvidoso e preservo dos padres, a inércia da Igreja e sua “cultura
do silêncio” diante dos crimes sexuais dos clérigos; a omissão da sociedade burguesa, a
corrupção ética, as atitudes hipócritas, contraditórias e imorais. Desmoralizar os padres
com as denúncias tinha como resultado enfraquecer a Igreja como instituição que
pretendia guiar (e quase sempre guiava) as consciências, interferindo nos lares e
oprimindo as mulheres.
Para a conquistas da emancipação as mulheres deveriam libertar-se dos seus
opressores, libertar-se da Igreja e suas formas imorais de assegurar seu poder, seja no
plano público, controlando parte do Estado, quanto no plano privado, dominando a
consciência das mulheres e, por meio delas, mantendo sob vigilância suas famílias.
Deveriam libertar-se de seus confessores, do poder clerical, do sistema católico e da
tradição religiosa.
Empenhado em dessacralizar o clero, o periódico La voz de la mujer adquiria
assim,uma forte função social, principalmente entre as mulheres, tornando-se não só um
veículo de combate, mas um espaço de catarse às denunciantes e até mesmo as suas
leitoras. O papel social do periódico no que se refere a questão da Igreja era trabalhar pela
emancipação da mulher, degradando a figura do clero para minar sua autoridade diante
das consciências femininas alienadas pelos dogmas religiosos.

Fontes
La voz de la mujer- 1896-1897- 9 exemplares.
Referências Bibliográficas
BAROJA, Caro. Introducción a una História Contemporáneadel Anticlericalismo
Español. Madrid: Editora Istmo, 1980.
KROPOTKIN, Piotr. A Conquista do Pão. Rio de Janeiro: Achiamé, 2011.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1433
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MARTINS, Angela Maria Roberti. O grito e o riso em A Lanterna: anarquismo e


anticlericalismo (1909-1916). In: ROSITO, Valeria (org). Cidade fundida: tal centro, qual
periferia? Seropédica,RJ: Editora da UFRRJ,2012. p. 69-91.
MOLYNEUX, Maxine. Ni Dios, Ni Patrón, Ni Marido: Feminismo anarquista
enlaArgetinadelsiglo XIX. In: Feijoó, Maríadel Carmem (org). La voz de la mujer-
Periódico Comunista-Anárquico. Buenos Aires: Editora da Universidade Nacional de
Quilmes, 1997. p. 11-40.
SANTOS, Cristian. Devotos e Devassos: Representação dos Padres e Beatas na Literatura
Anticlerical Brasileira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2014.
VALLADARES, Eduardo. Anarquismo e Anticlericalismo. São Paulo: Editora
Imaginário, 2000.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1434
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Memórias da escravidão nas fazendas históricas do Vale do Café

IOHANA BRITO DE FREITAS


Doutorado em História Social da Cultura – Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (PUC-Rio) – CAPES

Em dezembro de 2016, uma reportagem de The Intercept Brasil denunciou a


prática de encenação dos tempos de escravidão, que permitia que turistas fossem servidos
por pessoas negras vestidas como escravas sem qualquer abordagem crítica durante visita
à Fazenda Santa Eufrásia, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional no Rio de Janeiro, em Vassouras/ RJ.
A situação foi objeto de investigação no Ministério Público Federal (Inquérito
Civil Público nº1.30.010.000001/201705) e o inquérito apurou a violação de direitos
fundamentais na programação turística da Fazenda Santa Eufrásia, bem como a possível
violação ao patrimônio histórico, tendo em vista a sua finalidade de educação e reparação
simbólica de violações de direitos perpetradas no local em tempos passados.
Em reuniões no Rio de Janeiro e Volta Redonda, com participação de lideranças
de comunidades quilombolas e jongueiras da região, da Comissão da Igualdade Racial da
OAB e de professores da Universidade Federal Fluminense, foi proposto um Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC)721, proibindo a continuidade das encenações e algumas
medidas reparatórias, como a instalação de placas explicando a história do local e com o
nome dos escravizados que trabalharam na fazenda, como dever de memória e
homenagem; afixação de cartazes alertando sobre o crime a prática de racismo; a
disponibilização de vídeos das comunidades negras durante as visitas e o
comprometimento dos responsáveis da fazenda em passar por processo de capacitação,
em curso a ser organizado e ministrado por representantes e lideranças negras da região
com o objetivo de conhecer sua história de resistência e de lutas, assim como as histórias
de seus antepassados.

721
O TAC da Fazenda Santa Eufrásia foi assinado no dia 06 de maio de 2017 e seu texto completo está
disponível no site do MPF: http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/prm-volta-redonda/tac-
fazenda-santa-eufrasia/view. Acessado em: 19/05/2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1435
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

De acordo com o Procurador da República Julio Araújo, em matéria publicada


no site do MPF em 02 de maio de 2017, a ideia é “contribuir para a superação da
associação da imagem do negro ao 'escravo' em nossa sociedade”. Neste sentido, afirma
que o TAC visa assegurar o reconhecimento da história e cultura negra e o combate ao
silenciamento dos efeitos da escravização de pessoas no Brasil, em especial na região do
Vale do Café, no Estado do Rio de Janeiro.
Vale destacar que não podemos creditar exclusividade ou ineditismo à Fazenda
Santa Eufrásia pela prática de explorar comercialmente o espaço da fazenda e seus
passados possíveis, sob a chancela do histórico. A propriedade integra um circuito de
mais de vinte fazendas históricas do Vale do Café abertas à visitação, onde, de acordo
com os receptivos turísticos e sites da região, “é possível fazer uma viagem até o tempo
em que os barões ostentavam poder e riqueza”, “respirar os ares do império” e “se
encantar com as histórias” 722
. Dentre os passados possíveis, opta-se, na maioria das
vezes, pela recordação da opulência da economia cafeeira, da promoção das estradas de
ferro, dos belos jardins e luxo ostentado pelos senhores, personificados em guias vestidos
de barão ou baronesa. Relega-se aos escravizados que viveram e cultivaram o café nas
fazendas, apenas vestígios da opressão materializados em ruínas de senzalas,
equipamentos de tortura e narrativas de busca a escravos fujões.
Ressignificadas, as casas sede das fazendas dão lugar a Museus Casas723,
deixando entrever para além de uma coleção de objetos do século XIX e início do XX,
traços sociais e simbólicos que re-presentificam, como afirma Fernando Catroga (2015),
as relações sociais de outrora. Arquivos ilustrados das relações de poder, estes museus
nos contam sobre a história de suas propriedades, e também das relações humanas com

722
O Vale do Café é uma denominação turística para a região do Médio Paraíba Fluminense, que abrange
os municípios de Barra do Piraí, Barra Mansa, Itatiaia, Pinheiral, Piraí, Porto Real, Quatis, Resende, Rio
Claro, Rio das Flores, Valença, Vassouras e Volta Redonda. Dentre as fazendas da região abertas à
visitação, destacam-se: Fazenda Aliança, Fazenda Arvoredo, Fazenda da Taquara, Fazenda Ponte Alta,
Fazenda São João da Prosperidade, Fazenda Florença, Fazenda União, Fazenda Cachoeira Grande, Fazenda
Vista Alegre, Fazenda do Paraízo, Fazenda das Palmas, Fazenda Santa Eufrásia, Fazenda Pau D’Alho,
Fazenda da Bocaina. O “circuito das fazendas históricas do Vale do Café” é divulgado em sites como:
http://www.portalvaledocafe.com.br/fazendas_historicas.asp; http://valedocafe.com.br/;
http://www.trilhaseaventuras.com.br/circuito-das-fazendas-historicas-do-vale-do-cafe-rj/.
723
A identificação destes espaços como Museus Casas seguiu a listagem do ICOM (International Council
of Museums), de acordo com o trabalho organizado por Ana Cristina Carvalho - Museus-Casas Históricas
no Brasil - 2013.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1436
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

estes espaços vividos. Possibilitam pensar a construção de leituras do passado permeadas


por estratégias de consolidação e/ou disputas de sentidos que hoje (re)afirmam
identidades e (re)definem patrimônios culturais.
Vale destacar que no Vale do Paraíba a escravidão enquanto instituição manteve
até tardiamente sua vitalidade. Nas décadas finais do século XIX a maior concentração
de africanos e descendentes escravizados estava na economia cafeeira. Como observam
Hebe Mattos e Ana Lugão Rios, ainda antes da abolição uma das preocupações centrais
dos senhores era a possibilidade dos escravos deixarem as fazendas nos quais foram
cativos. Dentre as estratégias senhoriais para evitar este abandono estava a de procurar
ligá-los a si e às fazendas por laços de gratidão, antecipando-se à abolição e concedendo
alforrias em massa. Contavam também com a característica local de grande parte dos
escravos estarem ligados entre si por extensas redes de parentesco, de por vezes até três
gerações em uma mesma fazenda, o que dificultava sua mobilidade. Assim, no pós-
abolição, boa parte dos libertos optou pela permanência na região em que já eram
conhecidos e nas quais já contavam com uma rede de parentes e amigos. Será neste
contexto de disputas entre a manutenção e instituição de novas práticas, que as memórias
da escravidão e os sentidos da liberdade serão construídos e darão forma a demandas por
inclusão, ou cidadania, perseguidas pela última geração de escravos e por seus filhos e
netos (MATTOS & RIOS, 2004: 178-180).
À medida que a lembrança da escravidão se desloca da memória coletiva para a
memória histórica (HALBWACHS, 2003), assume diferentes formas em espaços
públicos, narrativas, monumentos e museus, deixando entrever importantes disputas
políticas em torno da recuperação da memória. Como afirma Ana Lucia Araújo,

Collective memory becomes public when it is transformed into a


political instrument to build, assert, and reinforce identities of these
groups. In other words, collective memory is not related to individual
recollection of personal experiences and events, but is about the way
the past of a group is lived again in the present – the way a group
associates its common remembrances with historical events or with a
set of historical events. (ARAÚJO, 2012:02)

Ao abrir novamente as portas da Casa Grande, agora Museu Casa, (re)


constroem-se memórias e afloram disputas simbólicas que se tecem no processo de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1437
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

afirmação de identidades e de patrimônios. E o TAC assinado pela Fazenda Santa


Eufrásia em maio de 2017 deve ser compreendido neste contexto.

Museu, Memória e Patrimônio

O Conselho Internacional de Museus – ICOM define museu como “instituição


permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta
ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o patrimônio material e
imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e
deleite”724. Dentre os diferentes tipos de museu, os Museus Casas725 possuem a
singularidade de conectar seu espaço físico, as coleções expostas – em sua maioria
composta por bens originais da edificação ou representativo do período – e seus habitantes
(CARVALHO, 2013:08). A ideia de casa remete à residência e, portanto, a suposição de
que alguém tenha vivido ali, com suas memórias, amigos, vizinhos, negócios,
empregados. A intimidade humana e da vida privada se ressignificam nos valores
coletivos.
O Museu Casa é, antes de tudo, “lugar de memória” (NORA, 1993), local de
construção de narrativas de vida. Seu acervo remete à dimensão onírica do visitante,
despertando afetividades e emoções. Segundo Michael Pollak a memória é constituída
seja por acontecimentos vividos pessoalmente, seja por acontecimentos vividos pela
coletividade – “vividos por tabela” – dos quais o indivíduo nem sempre participou ou
mesmo são eventos que não se situam no espaço-tempo desta pessoa (POLLAK, 1992:
02-05). Neste contexto, a memória, para além de seu âmbito individual, deve ser
entendida como construção coletiva, submetida a flutuações e transformações, em

724
Definição de Museu – ICOM 2007. Disponível em: http://icom-
portugal.org/documentos_def,129,161,lista.aspx. Acesso em 27/07/2016.
725
Os Museus Casas foram categorizados por Pavoni no âmbito do DEMHIST - Comitê Internacional para
os Museus Casas Históricas - ICOM, em 2007, da seguinte forma: 1. Casas de Personalidade; 2. Casas de
Colecionadores; 3. Casas de Beleza; 4. Casas de Eventos Históricos; 5. Casas de Sociedade Local; 6. Casas
Ancestrais; 7. Casas de Poder Real; 8. Casas Clericais; 9. Casas Modestas. No arquivo final disponibilizado
na página virtual do DEMHIST foram acrescentadas mais duas tipologias: 10. Casas com salas cronológicas
e 11. Casas para Museus. Ver: CARVALHO, Ana Cristina (org.). Museus-Casas Históricas no Brasil. São
Paulo, Curadoria do Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo, 2013.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1438
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

reconstrução permanente, forjada na alteridade, de forma seletiva e conciliatória


(ABREU, 2016).
A transformação de uma casa em um museu está pautada no desejo de um grupo
de transmitir e preservar aquele legado às gerações futuras, baseado na memória do
patrono, no acervo que ele cultivou, em eventos históricos e até mesmo na importância
do edifício, ou seja, em um passado selecionado. Memória pública e privada interagem e
se formam em simultâneo. Note que não se trata de uma dialética entre memórias puras,
originárias, e sim de uma pluralidade de memórias tecidas de forma relacional no seio de
um horizonte comum, não consensual, que permite o reconhecimento e a compartilha. A
recordação, enquanto presente-passado, unifica os diversos tempos sociais em que
comparticipa, enraizando horizontes de expectativas em campos de experiência e
possibilitando organizar, à luz do passado, o percurso como projeto.
Recordar e esquecer moldam e articulam, assim, a representação de passados-
presentes possíveis que acionam a história como saber e refundam a memória histórica.
Vale ressaltar que as identidades culturais não estão alicerçadas na “recuperação do
passado” e sim nas diferentes maneiras que nos posicionam, e pelas quais nos
posicionamos, nas narrativas do passado (HALL,1996). Deve-se atentar que a esfera
social é viva, pulsante e em constante mudança, e as representações são apenas o referente
estático do que se encontra em constante movimento.
O uso de leituras de passado como argumentos legitimadores de interesses do
presente-futuro configuram assim utilidade político-ideológica. Em um mundo marcado
pela construção de um futuro que começa agora, expandindo o presente, o passado produz
a ressignificação do próprio presente (HARTOG, 2015). E a apropriação turística do
histórico é uma das expressões desse domínio. Recorre-se às memórias coletivas seja para
valorizá-las como herança atualizada à luz de novas ideias, seja para enraizamento de
antigos valores, desenvolvendo nos indivíduos o sentimento de pertença a uma dada
comunidade política. Não se trata do “uso passadista do passado, mas a exploração da sua
mais-valia como arma de legitimação de um regime de tempo de cariz prospectivo”
(CATROGA, 2015:82).
Neste sentido, compreender como as relações sociais oitocentistas são
representadas no universo museal do Médio Paraíba fluminense implica no diálogo com
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1439
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

representações atuais, construções simbólicas e leituras do passado possíveis por seus


diferentes sujeitos sociais.

Todo regime de representação é um regime de poder formado, como


lembrou Foucault, pelo binômio fatal “conhecer/poder”. Mas esse tipo
de conhecimento não é externo, é interno. Uma coisa é posicionar um
sujeito ou um conjunto de pessoas como o Outro de um discurso
dominante. Coisa muito diferente é sujeitá-los a esse “conhecimento”,
não só como uma questão de dominação e vontade imposta, mas pela
força da compulsão íntima e a conformação subjetiva à norma
(HALL,1996:70).

O museu possui, pois, dupla personalidade: “sua vocação de fazer história e seu
pertencer à história” (SANTOS, 2009:115). Deve ser apreendido como “um fenômeno,
lugar de encontro, instância relacional” (SCHEINER & ALVES, 2012:102), englobando
as instituições, os territórios, as experiências, ou mesmo os espaços imateriais, atento à
variedade de relações que os grupos sociais têm com os lugares que ocupam.
O museu dialoga diretamente com a ideia de patrimônio como construção social
e discursiva, que se expressa a partir de sujeitos, lugares, interesses, estratégias e suportes
diferenciados e, como tal, revela-se como itinerários simbólicos que produzem relações
de poder, saber, identidades, linguagens e práticas sociais.
O patrimônio enquanto categoria de pensamento sujeita a construções históricas,
resultante de processos contínuos de transformação, é usado não apenas para simbolizar,
representar ou comunicar, mas também "para agir", como afirma José Gonçalves, fazendo
a mediação sensível entre seres humanos e divindades, entre mortos e vivos, entre passado
e presente e outras oposições. O patrimônio não existe apenas para representar ideias e
valores abstratos e para ser contemplado; de certo modo, constrói, forma as pessoas.
(GONÇALVES, 2003:23-27)
Museu e patrimônio convergem então para o mesmo ponto, como "formações
discursivas que permitem mapear conteúdos simbólicos" (FONSECA, 2003:64) e, em
última análise, sustentam múltiplas identidades. Não se pode esquecer que a preservação
do patrimônio cultural é uma prática social, que implica um processo de interpretação da
cultura, como produção não apenas material, mas também simbólica, portadora de
referências à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1440
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sociedade. Valores estes que precisam ser constantemente reiterados a partir de critérios
que variam no tempo e no espaço (FONSECA, 2003:67).
Neste sentido, estes museus devem ser compreendidos como lócus de relações,
atuando na formação, transmissão e estabilização de uma série de categorias de
pensamento. Como afirma Márcia Chuva, o cerne da preservação do patrimônio, em seus
diferentes formatos, é a atribuição de valor que transforma bens ou práticas culturais em
patrimônio – compreendido como referência de pertencimento a grupos de identidade
(CHUVA, 2013:198).
Os Museus Casas são entendidos então como sujeito de práticas discursivas, mas
também como “espaços de fronteira, pontes entre culturas, como espelho multifacetado
da experiência humana” (SCHEINER, 2006:59), onde muitas narrativas e olhares se
cruzam e dialogam. Pensar os itinerários e estratégias de consolidação e/ou disputas de
sentidos como chave para a compreensão das representações sociais e de produção de
bens patrimoniais nos espaços destas fazendas pressupõe então compreender os processos
de memorialização da escravidão, os quais dão voz a (ou silenciam) relações sociais
marcadas pela desigualdade, por resistências e negociações.

Memórias da Escravidão, Usos do Passado

Não se pode perder de vista que estas fazendas e seus museus casas integram um
universo de práticas, interações e disputas culturais que marcaram a experiência de
indivíduos escravizados e seus descendentes no mundo atlântico entre os séculos XIX e
XX. A diáspora negra no Atlântico, marcada pelo tráfico de escravos, coloca em trânsito,
para além dos corpos, diferentes ideias, práticas e expressões carregadas de trocas
simbólicas e disputas políticas. Servirá de motor ao estabelecimento de novas e grandes
sociedades, à economia das plantations, ao processo de construção da nação nas
Américas, à colonização da África, ao movimento anticolonial e a luta pelos direitos civis
entre os descendentes de africanos em diferentes partes do globo. Marcará também a
criação de categorias raciais e a racialização das relações sociais, os diferentes usos dos
conceitos de raça e racismo e mesmo a ideia de emancipação. Como bem afirmou Livio
Sansone (2008:07), não só as ideias viajam, mas também os que produzem ideias.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1441
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Neste sentido, o processo de memorialização e patrimonialização da escravidão


não pode ser compreendido dentro dos limites do Estado Nacional, mas das múltiplas
estratégias tecidas a partir dos fluxos culturais que se cruzam e se fazem presentes na
construção das narrativas e experiências que tomam forma nos locais de memória que se
moldam nestes espaços. Não objetivo aqui, entretanto, dar conta destas questões, apenas
apontar sua importância ao pensar estes processos em um Atlântico negro moldado por
tensões, trocas e luta por cidadania entendida aqui como garantia de direitos sociais,
culturais e de memória.
Assim, a história pública da escravidão no Brasil, apesar de ganhar contornos
nacionais, não pode ser pensada apenas a partir do interesse de intelectuais engajados em
“(re)construir” a ideia de nação no pós-abolição ou de trocas fundadas na mobilidade de
escravos e descendentes. Precisa ser pensada a partir da ação de sujeitos sociais que
investiram (e investem) na luta pela cidadania no pós abolição e das disputas políticas e
identitárias então enfrentadas.
Vale destacar que, no começo dos anos 1990, os debates em torno da explosão
memorial e dever de memória aqueciam a reflexão sobre a memória da escravidão e seus
silenciamentos nas antigas sociedades escravistas do mundo atlântico726. Como apontam
Araújo e Santos (2007), a preocupação em construir um espaço, no interior da narrativa
histórica, de valorização da subjetividade, dos sentimentos e da experiência humana foi
se traduzindo, por um lado, no esforço constante de desvendar as mais sutis e camufladas
relações de dominação entre os homens – estabelecidas, muitas vezes, a partir do próprio
processo social de construção de memória(s); e, por outro, na intenção de resgatar
memórias, experiências e vivências ocultadas e silenciadas.
A UNESCO, ao tornar o patrimônio cultural protagonista na sua agenda,
pautando uma série de normas e iniciativas internacionais para a salvaguarda de bens
culturais, desempenhará papel de destaque nesse processo. Já na década de 1990, por

726
Desde os anos 1980, pesquisas apontavam que os cativos tinham expectativas próprias, ancoradas em
suas experiências e visões de mundo, valorizando categorias como “agência” e “experiência”. Marcada por
costumes comuns e noções de direito vindas de baixo, essa economia moral fazia dos africanos escravizados
senhores de suas vidas, indivíduos com interesses próprios, que agiram dentro do sistema escravista a fim
de construírem suas próprias histórias. Trabalhos como o de Sidney Chalhoub (Visões da liberdade: uma
história das últimas décadas da escravidão na Corte - 1989) e de Silvia Lara (Campos da violência: estudo
sobre a relação senhor-escravo na capitania do Rio de Janeiro - 1986) são exemplos desse movimento.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1442
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ocasião da sua 27ª Conferência Geral, cria o Projeto Rota do Escravo: Resistência,
Herança e Liberdade, com o objetivo de trazer à tona histórias ocultadas, intervir na
construção de memórias públicas e sensibilizar variados públicos para a tragédia humana
da escravidão e do tráfico.
Entre as diversas ações propostas, encontram-se o apoio à produção de trabalhos
científicos, o desenvolvimento de materiais pedagógicos para o ensino da história da
escravidão e do tráfico de escravos, a elaboração de atlas das interações e das diásporas
africanas, a criação de novas formas de representação da escravatura nos museus, a
organização de eventos, festivais e exposições que valorizem heranças culturais comuns,
a coleta e preservação de arquivos e tradições orais, a produção e divulgação de materiais
de informação e sensibilização, a escolha de datas e anos comemorativos e a iniciativa do
Inventário dos sítios e lugares de memória (MATTOS; ABREU & GURAN, 2014).
O projeto Rota de Escravo teve importante papel no reconhecimento da
escravidão e do tráfico de escravos como “crimes contra a humanidade” na Conferência
Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância, realizada em
Durban, África do Sul, em 2001 (ARAUJO, 2010). Tomada como dever de memória e
celebração das contribuições sócio-culturais da diáspora forçada de africanos, a
patrimonialização da escravidão e do tráfico atlântico de escravos aos poucos assume
contornos transnacionais, ultrapassando os limites das Américas, Europa ou África.
As tensões entre a pluralidade de memórias sobre o tráfico negreiro e o
movimento de patrimonialização da memória da escravidão como crime contra a
humanidade irão embalar, pois, uma série de abordagens. A multiplicidade de sentidos
atribuídos hoje à experiência da escravidão, a presentificação de sua memória e sua
apropriação política por movimentos antiracistas no Brasil e outros locais marcados pelo
tráfico transatlântico de escravos emprestam novas nuanças às complexas relações entre
história da escravidão, memória e usos políticos do passado.
Neste contexto, a emergência de memórias dos escravizados e seus
descendentes, marcadas por rupturas e lacunas, pela herança familiar e pela transmissão
do trauma, assim como as memórias dos descendentes de escravagistas, funcionam como
chave para novas leituras do passado. Ana Lucia Araujo (2011) demonstra que,
paradoxalmente, os projetos oficiais da UNESCO ajudaram a colocar acento não somente
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1443
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sobre as vítimas do tráfico atlântico de escravos, mas também sobre aqueles que
escravizaram e que venderam cativos africanos e que gradualmente, recuperam seu
capital político. O reverso desse processo é a produção de contra discursos públicos e
generalizantes sobre a história da escravidão e da abolição no Brasil e sua apropriação
por grupos marginalizados em luta por cidadania. A historiadora aponta ainda que embora
os descendentes das vítimas, dos sobreviventes e dos autores dos crimes experimentem
diferentes experiências em relação à pós-memória, esse tipo de memória não precisa se
restringir ao círculo familiar ou a um grupo que partilha as mesmas marcas étnicas ou
nacionais, mas também pode ser disponibilizada através de formas particulares de
identificação, adoção ou projeção (ARAUJO, 2011:47-48).
Assim, a articulação entre a nova agenda patrimonial de valorização de
expressões culturais afro-descendentes – elevadas a ícones da “resistência à opressão
histórica sofrida” e dever de memória – e as reivindicações por reparação parecem cada
vez mais se expandir no velho sudeste escravista, como demonstra Hebe Mattos e Martha
Abreu (2011). A memória da escravidão é então associada à valorização das expressões
culturais enquanto patrimônio cultural herdado e reconstruído pelos descendentes de
escravos. Apropriando-se desta associação, no novo contexto legal, as comunidades
portadoras destas práticas reafirmam politicamente sua trajetória histórica, ganhando
visibilidade e novas perspectivas de sobrevivência coletiva.
Este movimento envolveu, para além da patrimonialização das expressões
culturais, a percepção da própria história, memória e tradição oral do grupo como
patrimônios que precisam ser valorizados, lembrados e, desta forma, reparados. Neste
sentido, grupos começam também a reivindicar reparações materiais e simbólicas, em
nome de um “dever de memória” da sociedade brasileira em relação à escravidão e
ilegalidade do tráfico negreiro. Os descendentes dos escravizados passam a inserir-se,
para além da luta por terras tradicionais, em um esforço moral para que determinados
acontecimentos não sejam esquecidos, e, neste contexto, as memórias são firmemente
ancoradas na associação entre identidade negra e memória do cativeiro, seja como
reminiscência familiar, estigma ou expressão cultural.
As transformações sociais, culturais e simbólicas impelem os indivíduos e
grupos a procurarem no passado a sua legitimação. “E se, no que diz respeito ao tempo
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1444
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

jurídico, o pretérito pode prescrever sem ser julgado, na historiografia (tal como na
memória histórica) não deve existir o ‘imprescritível’. (...) E essa é a condição necessária
para que se possa alcançar uma memória justa e ascender ao reconhecimento e ao perdão”
(CATROGA, 2015:33).
Museu e patrimônio moldam então práticas interpretativas e operam na
reformulação de sensibilidades históricas. Analisar os Museus Casas destas fazendas
como campo de negociação e disputa de sentidos, memórias e afirmação de identidades
contribui para o fortalecimento de práticas sociais e políticas públicas que façam valer as
leis patrimoniais e a garantia de direitos culturais e de memória aos diferentes grupos.

Bibliografia:

ABREU, Regina. Memória social: itinerários poéticos-conceituais. In: GEIGER, Amir;


Vera Dodebei, Francisco R. de Farias, Jô Gondar (Org.) Por que memória social?
Rio de Janeiro: Híbrida, 2016. — Revista Morpheus: estudos interdisciplinares
em Memória Social: edição especial, v. 9, n. 15.
ARAUJO, Ana Lucia (org). Politics of Memory: Making Slavery Visible in the Public
Space (Routledge Studies in Cultural History). New York, London: Routledge,
2012.
ARAUJO, Ana Lucia. “Aquele que “salva” a mãe e o filho”. In: Patrimônio e memória
da escravidão atlântica: História e Política. Revista Tempo v.15, n.29, janeiro de
2011, pp.43-66.
ARAUJO, Ana Lucia. Public memory of slavary: victims and perpetrators in the South
Atlantic. Amhers, New York: Cambria Press, 2010.
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento & SANTOS, Myrian Sepúlveda dos, “História,
memória e esquecimento: Implicações políticas”, Revista Crítica de Ciências
Sociais, 79, 2007, pp. 95-111.
CARVALHO, Ana Cristina (org.). Museus-Casas Históricas no Brasil. São Paulo,
Curadoria do Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo, 2013.
CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Rio de Janeiro, Editora FGV,
2015. (Coleção FGV de bolso. Série História).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1445
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

CHUVA, Márcia. Para descolonizar museus e patrimônio: refletindo sobre a preservação


cultural no Brasil. In: Aline Montenegro Magalhães; Rafael Zamorano Bezerra.
(Org.). 90 anos do Museu Histórico Nacional: em debate. Rio de Janeiro: Museu
Histórico Nacional, 2013, v. 1, p.195-208.
FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla
de patrimônio cultural. In: Chagas, Mario e Abreu, Regina. Memória e
Patrimônio. DP&A editora, Uni-Rio, Faperj, 2003.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In:
Chagas, Mario e Abreu, Regina (org). Memória e Patrimônio. DP&A editora,
Unirio, Faperj, 2003.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução: Beatriz Sidou. São Paulo:
Centauro Editora, 2003.
HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. In: Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. nº 24, 1996. pp.68-75
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015 (Coleção História e Historiografia).
MATTOS, Hebe & ABREU, Martha. Remanescentes das Comunidades dos Quilombos:
memória do cativeiro, patrimônio cultural e direito à reparação. Iberoamericana,
XI, 42 (2011), pp. 145-158
MATTOS, Hebe; ABREU, Martha & GURAN, Milton. Por uma história pública dos
africanos escravizados no Brasil. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 27, nº
54, julho-dezembro de 2014, p.255-273.
MATTOS, Hebe Maria & RIOS, Ana Maria Lugão. A pós-abolição como problema
histórico: balanços e perspectivas. TOPOI, v.5, n.8, jan.-jun.2004, pp.170-198.
NORA, Pierre. Entre memória e história; a problemática dos lugares. Projeto História.
São Paulo. PUC-SP, 1993.
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, v.5, n.10. Rio de
Janeiro: 1992. Trad. Monique Augras.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Museu Imperial: a construção do Império pela
República. In: Regina Abreu, Mário Chagas (orgs.). Memória e Patrimônio:
ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. 2 ed. p.115-135.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1446
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SCHEINER, Teresa Cristina e ALVES, Vânia Maria Siqueira. Museu, Musealidade e


Musealização: Termos em construção e expansão. IN: SCHEINER, Teresa,
GRANATO, Marcus, REIS, Maria Amélia (Coord.). Termos e Conceitos da
Museologia: museu inclusivo, interculturalidade e patrimônio integral.
Petrópolis, novembro 2012. RJ: PPG-PMUS, UNIRIO/MAST, 2012.
SCHEINER, Teresa. Museologia e interpretação da realidade: o discurso da História. In:
Symposium Museology as a field of study: Museology and History. ICOM/
ICOFOM. ICOFOM STUDY SERIES – ISS 35. Alta Gracia, Cordoba: 2006.
p.53-60
Divulgação MPF TAC. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-
imprensa/noticias-rj/mpf-rj-celebra-acordo-que-poe-fim-a-encenacao-sobre-a-
201cescravidao201d-para-turistas-em-fazenda. Publicado em: 02/05/2017.
Acessado em 05/05/2017.
OLLIVEIRA, Cecília. Turistas podem ser escravocratas por um dia em Fazenda “sem
racismo”. Disponível em: https://theintercept.com/2016/12/06/turistas-podem-
ser-escravocratas-por-um-dia-em-fazenda-sem-racismo/. Publicado em:
06/12/2016. Acessado em: 19/05/2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1447
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Práticas culturais afro-brasileiras e pertença evangélica no quilombo da Rasa

IONE MARIA DO CARMO


PPGH/UNIRIO

A comunidade remanescente de quilombo da Rasa, localizada no Município de


Armação de Búzios, situado no Estado do Rio de Janeiro, recebeu em 4 de outubro de
2005, da Fundação Cultural Palmares/MinC a Certidão de Autorreconhecimento. Rasa
foi a oitava comunidade negra, do Estado do Rio de Janeiro, a receber o documento que
intitula as comunidades negras como “remanescentes das comunidades de quilombos”.
Como as demais 39 comunidades negras também certificadas pela Fundação Cultural
Palmares/MinC no Estado do Rio de janeiro, os moradores de Rasa fundaram uma
Associação e se autorreconheceram como “quilombolas”, atendendo às exigências da
Fundação Cultural Palmares/MinC para formalizar a existência da comunidade.
A certificação da comunidade quilombola é a primeira etapa a ser concluída dentro do
processo de legitimação do direito às terras ocupadas, de acordo com o artigo 68 do ADCT da
Constituição federal de 1988.Após cumprir esse requisito, a comunidade quilombola está
apta a solicitar a abertura do processo administrativo para a regularização de seus
territórios junto à Superintendência Regional do INCRA.Em seguida, o INCRA
encaminha à comunidade uma equipe interdisciplinar, que pode ser composta por
profissionais das áreas de Antropologia, Engenharia, Geografia, História, para produção
do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação - RTID, também chamado como
“relatório antropológico”.
Os RTIDs trazem, de forma recorrente, o registro de práticas culturais que foram
vivenciadas no passado pelos escravos e a permanência de tais práticas no presente. Nos
relatórios das comunidades do sudeste, o jongo, por exemplo, é um dos elementos
culturais destacados na construção do documento que ratifica a reivindicação de
determinadas comunidades quilombolas pela posse da terra. Associada ao passado
escravista e africano, o jongo é apresentado nos relatórios como elemento de organização
da memória coletiva da comunidade quilombola e como um instrumento importante na
legitimação do passado histórico. Algumas equipes de pesquisadores que produzem o

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1448
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

documento das comunidades quilombolas identifica práticas e rituais, pertencentes ao


continente africano, no jongo. No RTID da comunidade remanescente de quilombo de
Pinheiral, por exemplo, essa relação é evidenciada:

A tradição de reverenciar os mais velhos e pedir licença aos “pretos


velhos” e aos jongueiros antigos, quando se inicia atualmente qualquer
roda de Jongo, também encontra ligações com a valorização dos
guardiões e conselheiros de um grupo de descendência – os intérpretes
dos provérbios – da África central. O respeito aos anciãos é algo
marcante inclusive em toda a África.727(MATTOS; ABREU, 2010)

Desse modo, o RTID se caracteriza como um elemento significativo na


construção da identidade quilombola do grupo étnico, tendo em vista que é neste
documento que serão apresentados os referenciais identitários que comprovam o processo
histórico e social que levou o grupo a se autodefinir como comunidade quilombola.Na
construção dos RTIDs, as práticas culturais dessas comunidades negras, de um modo
geral, são ressaltadas pelos pesquisadores, em consonância com a definição do INCRA,
que define as comunidades quilombolas como:
grupos étnicos – predominantemente constituídos pela população negra
rural ou urbana -, que se autodefinem a partir das relações com a terra,
o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas
culturais próprias.728

A definição do INCRA se torna um parâmetro para as afirmações de


pertencimento às heranças culturais de matriz africana na construção da identidade
quilombola do grupo, a fim de legitimarem suas reivindicações de regularização dos seus
territórios.
Em determinados RTIDs percebemos a preocupação da equipe técnica em realizar
uma reflexão sobre a historicidade das comunidades negras, conduzindo a uma discussão
sobre a ligação desses grupos com a história da escravidão no Brasil, seja pela
descendência dos antigos quilombolas, seja por possuírem uma memória coletiva pautada
na ancestralidade escrava, ou ainda, na identidade étnica e cultural africana e negra. Nessa
perspectiva, o resgate e o fortalecimento das práticas culturais de matriz africana, muitas

727
728
Ver site www.incra.gov.br.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1449
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

vezes, são abordados de forma naturalizada quando refere-se à questão da construção da


identidade quilombola. No entanto, se optarmos por um outra escala de observação,
veremos que nem todas as comunidades quilombolas da atualidade se apoiam nos
mesmos referenciais culturais de matriz africana para legitimar sua identidade
quilombola. É possível observar nas falas de alguns quilombolas que a opção pelo
preterimento de alguns desses referenciais, no processo de construção da identidade
quilombola, está intimamente ligada às escolhas religiosas, como é o caso da comunidade
quilombola da Rasa:

As brincadeiras do jongo, da luta da capoeira e do Rei de Boi cederam


lugar, pouco a pouco, às práticas religiosas da Assembleia de Deus. Na
Rasa, a grande maioria dos seus moradores se converteu ao
protestantismo, que se iniciou na casa de Dona Donária. É ainda o
Pastor Luís quem nos diz: “… tenho lembrança forte da primeira
igrejinha, que era na casa da minha avó Donária, eu estava com 8 ou 10
anos… certamente era onde tinha o jongo, era a família que cantava o
jongo, que tocava o jongo, que o povo dançava… No momento que essa
família se tornou evangélica, acabou o jongo. Logo que a família
tornou-se crente, o jongo terminou.” No entanto, algumas pessoas
acreditam que outros fatores influenciaram o pretenso esquecimento
dessas tradições, como nos fala o Sr. Valmir: “foi se acabando essa
tradição, foi se modernizando, o jongo ficou cafona. Os rapazes daqui,
já queriam namorar as moças que eram daqui, mas que trabalhavam no
Rio. As moças daqui queriam namorar os rapazes que estavam
trabalhando no Rio, que eles viam de roupa mais bonitas, os sapatos
engraxados… foi modernizando e foi acabando.”. Este processo de
“modernização”, como diz o informante, tem sido por eles observado
há, aproximadamente, uns vinte anos. (COUTINHO; LUZ;
MALHEIROS; O’DWYER, 1999)

O trecho acima é composto pelo relato da equipe que elaborou o RTID da


comunidade da Rasa e da fala de dois moradores da comunidade. Nos relatos dos
quilombolas, o desaparecimento do jongo na comunidade está ligada basicamente a dois
aspectos: a introdução da Igreja evangélica Assembleia de Deus e o desinteresse pelos
mais jovens em praticar a dança. Nesse sentido, se para algumas comunidades negras
preservar ou resgatar o jongo enquanto um ícone de resistência e elemento de identidade
quilombola, o preterimento do jongo em Rasa durante o processo de construção da
identidade quilombola é um fenômeno que deve ser observado, sobretudo, pela influência
dos princípios religiosos evangélicos.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1450
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Independente do processo histórico de formação, as comunidades remanescentes


de quilombo no Brasil, sejam elas rurais ou urbanas, têm em comum o reconhecimento
da ancestralidade escrava na afirmação de suas identidades quilombolas. É comum que
muitas dessas comunidades tentem manter ou resgatar expressões culturais praticadas por
seus antepassados no contexto do período escravista. Práticas culturais, como o jongo,
que, muitas vezes, apresentam elementos de religiosidade. A manutenção ou a
recuperação dessas práticas, ressignificadas pelos moradores dos atuais quilombos,
apresentam-se em consonância ao direito garantido pela legislação, que se remete à terra
não somente no sentido de um espaço de produção, mas também como território, espaço
de reprodução cultural e social.729Quando os moradores das comunidades quilombolas
vivenciam tais práticas, de outras que compõem o patrimônio imaterial da cultura
afrobrasileira, estão não só legitimando suas lutas perante o processo de reivindicação de
suas identidades como remanescentes de quilombo. As diferentes formas de recriação das
práticas culturais demonstram também as continuidades de práticas culturais vivenciadas
pelos antepassados escravos, fortalecendo a memória pautada na escravidão e
estabelecendo relações sagradas com as matrizes africanas.
Nas comunidades quilombolas do sudeste brasileiro encontramos, além do jongo,
outras práticas vivenciadas pelas comunidades quilombolas apresentam um cruzamento
entre o sagrado e o profano, como a capoeira, o congado, a folia de reis, o jongo. O que
aparentemente pode ser interpretado apenas como uma diversão, analisando de forma
mais detida encontraremos elementos do universo religioso, que transformam a prática
num verdadeiro ritual. O hábito dos participantes em executar suas performances com os
pés descalços, por exemplo, como acontece na capoeira ou no jongo, é um costume
também presente no candomblé. Através do contato direto dos pés com a terra, na
interpretação da cultura yorubá, o indivíduo interage com o mundo dos ancestrais. Dançar
com os pés nus é uma forma de expressão que possibilita a comunicação com o sagrado.

729
De acordo com o parágrafo 2º do artigo 1º do decreto 4887, de 20 de novembro de 2003, “são terras
ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para garantia de sua reprodução
física, social, econômica e cultural.”
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1451
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Além disso, retirar os sapatos ao entrar em um terreiro de candomblé significa respeito e


devoção aos orixás.730(SABINO; LODY, 2011)
Elementos tradicionais de caráter comportamental, como o ato de reverenciar os
mais velhos, estão presentes de um modo geral nessas comunidades quilombolas,
valorizados e mantidos por estarem dissociados de quaisquer tipos de religiosidade. No
entanto, durante a pesquisa de mestrado, observei que elementos tradicionais presentes
no jongo e, concomitantemente nas religiões de matriz africana, nem sempre são adotados
como referências culturais pelos remanescentes de quilombo. A presença dos “pretos
velhos” no jongo, por exemplo, mencionada em diversos depoimentos dos jongueiros, é
um aspecto importante a ser analisado. A aceitação da presença dos pretos velhos nas
rodas de jongo restringe-se, de um modo geral, aos adeptos ou simpatizantes das religiões
afro-brasileiras, já que trata-se de entidades espirituais presentes na umbanda, que estão
associados aos escravos que viveram no Brasil no período da escravidão. Desse modo,
para quilombolas evangélicos, que não possuem um diálogo com umbandistas, essa
característica pode ser vista como um dos elementos que compõem a justificativa do
afastamento do jongo, por conflitar-se com os princípios religiosos adotados. Por outro
lado, podemos observar, como destacou o babalaô Ivanir dos Santos, que o pertencimento
católico dentro das comunidades quilombolas possibilita uma tolerância perante esse
universo cultural que possui elementos religiosos afrobrasileiros.

Onde as comunidades mantém uma relação com o catolicismo, como


uma coisa muito sincrética permite uma maior sobrevivência dessa
cultura, que obviamente vai estar ali também a umbanda, vai estar ali a
espiritualidade negra. E aonde tem uma presença maior de evangélicos,
que acaba dominando, tende a arrefecer. Mas não quer dizer que
desapareceu. Não quer dizer que alguém dentro da sua casa não receba
um preto velho. Isso não quer dizer que não tenha, mas na verdade do
ponto de vista público, do espaço mais comunitário, como ponto de
mobilização, não.731

Os quilombolas, enquanto atores sociais, são compreendidos como capazes de


circularem entre diversas alternativas, ou de se utilizarem criativamente de um variado

730
731
Entrevista com Ivanir dos Santos, em 28/11/2016, concedida à Ione Maria do Carmo.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1452
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

repertório de possibilidades culturais. Nessa perspectiva, é importante considerar as


práticas culturais das comunidades negras herdadas pelos seus antepassados como
ressignificações que geram diferentes representações e que produzem significados que
dão sentido à experiência do grupo e daquilo que são. O jongo é uma das referências de
memória das lideranças da comunidade quilombola da Rasa. No entanto, após a
conversão ao protestantismo, o jongo deixou de ser praticado na comunidade da Rasa.
Dessa forma, a pertença religiosa desses atores sociais é fundamental para
entender o momento da decisão de inserir e como reconstruir as práticas culturais dos
seus antepassados. Ao passo que existe também a opção, que é o caso de Rasa, de preterir
tais práticas na formação de suas identidades e incluir outros elementos substitutivos que
façam sentido e que preencham essa lacuna de significados culturais, compatíveis com a
pertença religiosa. Essas representações são significativas dentro do processo de
construção das suas identidades quilombolas, tendo em vista que traduzem a compreensão
social e cultural desses sujeitos sobre sua realidade.(CHARTIER, 1991)
Na comunidade quilombola da Rasa, verifiquei, através do trabalho de campo, que
a conversão da comunidade da Rasa ao protestantismo demonstra uma resistência em
torno da reconstrução do jongo no grupo. Durante entrevista, Dona Uia, que ocupa a
função de diaconiza na Igreja Assembleia de Deus, lembra-se de assistir a prática do jongo
em Rasa, quando ainda era criança. A líder do quilombo da Rasa fala sobre a possibilidade
de pessoas de São José da Serra irem à Rasa realizar oficina de jongo, mas afirma não
existir muito interesse por parte dos jovens por motivo de escolha religiosa dos mesmos.
Marta, líder política do quilombo da Rasa, também é diaconisa da mesma instituição
religiosa de Dona Uia. Ao justificar a resistência da comunidade em praticar o jongo,
ressalta:

Não existe jongo como brincadeira. O jongo ele é o que é, e as cantorias


dele não é brincadeira, sempre têm influência das religiões de matriz
africana. Então a gente como evangélico não fica legal uma hora você
está dentro da igreja e outra hora você tá ali fazendo uma dança que a
gente sabe que acontece na umbanda, acontece no candomblé,
entendeu? Não que seja baseado só nisso, mas acontece, então a gente
não tem aqui.732

732
Entrevista com Marta da Costa Cardozo de Andrade concedida a Ione Maria do Carmo, 21/01/2012,
Quilombo da Rasa, Búzios – RJ.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1453
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Existe uma incompatibilidade entre a prática do jongo e a pertença evangélica. A


religiosidade de matriz africana existente no jongo percebido pelos quilombolas da
comunidade é visto como um elemento que não se adequa aos cânones estabelecidos pela
Igreja Assembleia de Deus. No entanto, o fato de assumirem uma identidade religiosa
evangélica, não significa que todos os sinais relacionados à cultura de matriz africana
tenham desaparecido. Um bom exemplo disso é a formação de um grupo musical batizado
de “Kindala” na Rasa, onde três adolescentes cantam músicas evangélicas em língua
africana. De acordo com o site do governo do estado do Rio de Janeiro, foi no ano de
2010 que o trio gravou seu primeiro cd, com músicas afrobrasileiras. Segundo o artigo:

A trajetória musical do trio começou há mais de dez anos, quando seu


pai, o pastor evangélico Luis Oliveira de Souza, convidou um grupo de
africanos para cantar em zulu tradicional em sua igreja. Daniele,
Gabriele e Liliane encantaram-se com o ritmo e decidiram estudar o
dialeto ancestral. A partir de então, as músicas evangélicas que
cantavam passaram a ter nuances da cadência africana. Liliane e
Daniele trabalham como professoras e Gabriele é estudante de Direito.
Nascidas na Rasa, moram na rua batizada com o nome do seu avô,
Justiniano de Souza, filho de um dos primeiros moradores do Quilombo
da Rasa e ex-escravo da Fazenda de Campos Novos. O grupo era
conhecido como Trio de Cantoras Quilombola Remanescentes de Rasa.
Com o aumento dos convites para shows, o nome foi trocado para
Kindala, que no dicionário africano significa “agora” na língua
kikongo-kimbundo, de Angola – berço dos escravos desembarcados na
Praia Rasa, em Búzios, no século XIX. Além de cantarem em dialeto
africano, as moças do Kindala compõem suas próprias canções, como
Mãe África, uma das faixas gravadas de seu cd que diz assim: “Eu quero
libertar/A cultura que há em mim/Pra todo mundo ver/Que eu sou feliz
assim/Não tenho medo de dizer/Falar dos ancestrais/Eu quero mesmo é
expressar/Ser negro é bom demais.733

Dos vários pontos observados no artigo acima, destacamos dois aspectos. Um


deles refere-se ao pastor evangélico Luis, que é o mesmo mencionado na citação anterior,
onde afirma que o jongo foi sendo substituído pelas práticas evangélicas com o
surgimento da Igreja Assembleia de Deus. E, ainda, o referido pastor é pai das três
adolescentes cantoras, que começaram a cantar em língua africana depois que receberam

733
Site mapadecultura.rj.gov.br/manchete/grupo-kindala (acesso: 10/10/2016).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1454
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

africanos cantando em língua materna a convite do próprio pastor Luis, o que nos
demonstra que não existe um afastamento total da cultura afro-brasileira. Um outros
aspecto significativo é observado na composição musical das adolescentes, que não se
restringe apenas a temas religiosos. Na letra exposta no artigo, a ancestralidade e a
identidade étnica aparecem como uma autoafirmação do grupo.
A importância de se observar o fenômeno religioso nas comunidades quilombolas
se dá pelo fato deste ser um dos elementos definidores de identidades. Nesta perspectiva,
Clifford Geertz define a religião como um sistema cultural na medida que esta modela
comportamentos, motiva ações e ordena o mundo daquele que crê, conferindo-lhe
sentido.(GERRTZ, 1989) Ao analisarem as comunidades dos agudás – ex-escravos e
seus descendentes retornados do Brasil ao Benim durante o século XIX – Manoela
Carneiro da Cunha e Milton Guran destacaram o papel do catolicismo como um elemento
modelador e distintivo do grupo em relação aos demais na Costa da África. A construção
da identidade dos agudás, assim chamados pelos autóctones, teve como base a diferença
cultural entre os antigos escravos retornados e os nativos, onde a religião foi um dos
componentes principais de definição da identidade coletiva do grupo. (CUNHA, 1986)
Embora a liderança da comunidade quilombola da Rasa reconheça o jongo como
uma prática cultural dos seus antepassados, é possível perceber, através do depoimento
de Marta, que a dança, por questões religiosas, não é um elemento de identidade
quilombola para o grupo. Ressalte-se que o motivo pelo qual a comunidade não pratica e
não demonstra a possibilidade de reconstrução da dança na localidade é justamente o fato
de perceberem aspectos da umbanda e do candomblé no jongo. No RTID da Comunidade
de Rasa, Bloco 4, relacionado às manifestações culturais da comunidade, o jongo é citado
como uma das tradições culturais de expressão na comunidade, juntamente com prática
da capoeira e a festa do Rei de Boi, que foi asfixiada pela religião protestante:

1. Festejos do grupo: as brincadeiras do jongo, da luta de capoeira, do


Rei de Boi, cederam lugar, pouco a pouco, às práticas religiosas da
Assembleia de Deus.
2. Religião/credo do grupo: a maioria da comunidade se encontra
frequentando os cultos evangélicos.
3. Religiosidade: os moradores se converteram ao protestantismo e não
frequentam a Igreja católica nem cultuam santos.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1455
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

4. Danças e cânticos principais: o Jongo era uma das tradições culturais


mais típicas dos negros dessa região. Seus versos eram feitos nas rodas
de dança, como este exemplo: “Embarca morena / Vamos embora pro
sul / O mar é verde e o céu é azul / Qual é o que é verde aí, o céu ou o
sol? / Depois do sol, o céu é o quê? / É o mar.” Esta alegria também se
repetia nas festas do Rei de Boi e nas rodas de capoeira. (COUTINHO;
LUZ; MALHEIROS; O’DWYER, 1999)

A rejeição da identidade religiosa umbandista de alguns jongueiros pode


representar a ausência ou rejeição – caso da comunidade da Rasa – desta relação em
determinada comunidade, mas também pode ser um indício de um cuidado em preservar
uma escolha religiosa devido ao preconceito com as religiões afro-brasileiras. No entanto,
a presença de elementos da religiosidade de matriz africana no jongo acaba por
possibilitar que observadores externos percebam semelhanças entre estas expressões
culturais, ocasionando inclusive a construção prévia de um perfil de determinados
jongueiros que pode não ser condizente com a imagem que se pretende transmitir. O
posicionamento da comunidade remanescente de quilombo da Rasa sobre em preterir o
jongo do conjunto de elemento que compõem sua identidade quilombola não significa a
negação de sua ancestralidade escrava, nem tampouco de uma identidade negra. A
pertença evangélica em Rasa parece não ter excluído totalmente os elementos da cultura
afro-brasileira. Por outro lado a escolha da recriação do jongo nas comunidades
quilombolas não está ligada a um determinado padrão da dança. Cada comunidade ao
fazer sua leitura sobre o jongo que se quer reconstruir. Os elementos religiosos poderão
estar presentes em maior ou menor intensidade, dependendo da imagem que cada grupo
quer transmitir de si. Existe ainda a possibilidade de uma comunidade quilombola
apresentar o jongo apenas como um entretenimento, preservando os componentes
religiosos apenas para os momentos restritos ao grupo. Enfim, é essa diversidade de
leituras e escolhas que devem ser observadas ao focalizar o preterimento do jongo ou a
incorporação deste como um elemento da identidade quilombola de uma determinada
comunidade negra.

BIBLIOGRAFIA

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1456
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ABREU, Martha; MATTOS, Hebe (orgs.) Pelos caminhos do Jongo/Caxambu:


Histórias, memória e patrimônio. Niterói: UFF. VEAMI, 2008.

ARRUTI, José Maurício. Mocambo: antropologia e história do processo de formação


quilombola. Bauru-SP: Edusc, 2006.

CARMO, Ione Maria do. “O caxambu tem dendê”: jongo e religiosidades na formação
da identidade quilombola de São José da Serra. Dissertação (Mestrado em História) Rio
de Janeiro: UNIRIO 2012.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados. v. 05, n. 11. São
Paulo, Jan/Apr. 1991.

COUTINHO, Adriano; MALHEIROS, Marcia; LUZ, Andréia Franco; O’DWYER,


Eliane Cantarino. RTID Comunidade remanescente de quilombo da Rasa. 1999.

CUNHA, Manoela Carneiro da. Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense/EDUSP,


1986.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.

GURAN, Milton. Agudás: os “brasileiros” do Benim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Ed.


Gama Filho, 2000.

MATTOS, Hebe; ABREU, Martha. Relatório Antropológico de Caracterização


Histórica, Econômica e Sócio-cultural do Quilombo de Pinheiral, Niterói, 2010.

OLIVEIRA, Anderson. Devoção negra: santos pretos e catequese no Brasil colonial. Rio
de Janeiro: Quartet: FAPERJ, 2008.

SABINO, Jorge; LODY, Raul. Danças de matriz africana: antropologia do movimento.


Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1457
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Trabalho feminino em fábricas de tecidos no Distrito Federal: questões sobre


maternidade e família (1899-1929)

ISABELLE CRISTINA DA S. PIRES


Mestranda do Programa de Pós-gradução em
História, Política e Bens Culturais do
CPDOC/FGV
Bolsista CPDOC

Introdução

A indústria têxtil foi um ramo que incorporou um considerável número de mão de


obra feminina em seus postos de trabalho. É importante destacar que o trabalho feminino
era simultaneamente associado à idéia de família. Enquanto o homem trabalhador era
associado ao universo público, em contraposição ao privado, espaço das relações afetivas
e familiares, as mulheres trabalhadoras, casadas e mães, eram constantemente
relacionadas à preocupação com a maternidade, questão que foi ponto de discordância
entre diversos setores que se posicionavam sobre o trabalho feminino (MARQUES, 2016.
p. 678).
Nesse sentido, gostaria de ressaltar, nessa pesquisa, as iniciativas que foram
implementadas pelos industriais da Companhia de Fiação e Tecidos Corcovado e da
Companhia América Fabril com o intuito de assegurar a permanência de mães operárias
em suas fábricas de tecidos, tais como creches e uma associação que concedia licença
remunerada para casamento e parto às associadas, visto que o trabalho feminino era
vantajoso nesses espaços de trabalho, bem como, privilegiar a incorporação de membros
de uma mesma família ao trabalho, com requisitos para o acesso à moradia que davam
preferência a famílias maiores.
Assim, tal argumentação propõe analisar tais estratégias de 1899 a 1929. A baliza
inicial dessa argumentação se justifica pela inauguração da creche da Companhia de
Fiação e Tecidos Corcovado, considerada a primeira creche para filhos/as de operários/as
de que se tem registro (JUNIOR, 1991, p. 18). A baliza final estabelece relação com o
Livro de Atas da Associação dos Operários da América Fabril que data de 1926 a 1929.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1458
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Trabalho feminino: Paternalismo, maternidade e família

É possível perceber, com base em estudos sobre companhias têxteis, que o


paternalismo permeava as relações de trabalho e não-trabalho da vida dos/as
trabalhadores/as734. Juçara Mello argumenta que é no embate de interesses diversos e,
muitas vezes, comuns, que podemos perceber a constituição identitária da classe
trabalhadora e seu entrelaçamento com a constituição da classe empresarial. Tais relações
se constituem a partir das tensões entre ambas as classes, mas também atravessadas pelas
ações de outros sujeitos, como o Estado, por exemplo (MELLO, 2013, p. 1).
Assim, nessa pesquisa gostaria de ressaltar políticas paternalistas implementadas
por industriais que procuraram privilegiar a incorporação de membros de uma mesma
família ao trabalho de suas fábricas e, com isso criaram formas de manter o trabalho de
mulheres operárias depois de casadas e da chegada dos filhos.
É importante destacar que tal questão não foi preocupação para outros
empreendedores do ramo têxtil. Alguns industriais por entenderem que o trabalho das
mulheres era uma atividade temporária, visto que a mão de obra feminina costumava
ingressar quando criança ou jovem e sair para casar, retornar caso o matrimônio fosse
desfeito ou regressar caso enviuvasse, privilegiavam empregar mulheres que não fossem
casadas. Junia de Souza Lima e Irlen Antonio Gonçalves afirmam que a orientação dos
proprietários da Companhia de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira, localizada em Minas
Gerais, era pela contratação de moças solteiras.
Em uma pesquisa que se utiliza de correspondências enviadas ou recebidas pelos
industriais dessa companhia, Lima e Gonçalves argumentam que a preferência por
mulheres “sós” foi uma estratégia adotada desde a fundação da Fábrica do Cedro (em
1872) e que entre 1916 e 1917 a condição de ser solteira tornou-se obrigatória
(GONÇALVES; LIMA, 2012, p. 237). O emprego de tal mão de obra pode ser encarado

734
Podemos citar como exemplos: LOPES, José Sergio Leite. A tecelagem dos conflitos de classes na
"cidade das chaminés". São Paulo: Marco Zero; Brasília: Editora da Universidade de Brasília; CNPq, 1988;
MELLO, Juçara da Silva Barbosa de. “Paternalismo industrial e leis do trabalho Brasil”. In: Anais do
XXVII Simpósio Nacional de História. ANPUH. 2013.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1459
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

como uma vantagem econômica, visto que as moças solteiras que precisassem de moradia
residiriam nos conventos das fábricas e a organização de tais habitações custava menos
do que a de uma vila operária, cada convento poderia abrigar de 20 a 30 moças, enquanto
que cada casa de vila, geralmente, comportava uma família. Além disso, os autores
destacam também a presença de um imaginário que privilegiava as funções de mãe e
esposa para as mulheres. Lima e Gonçalves ressaltam que tais proprietários procuraram
disciplinar a mão de obra feminina para o trabalho fabril, mas também educá-la para o
casamento e a maternidade (GONÇALVES; LIMA, 2012, pp. 238/242). Um exemplo de
incentivo nesse sentido está presente no trecho a seguir:
Nos nove anos que Vmcê. (sic) tem trabalhado aqui, tem desenvolvido sempre
uma atividade de dedicação tão acima do comum que raras têm sido as
companheiras que lhe têm igualado. Se seu trabalho nos tem sido lucrativo, seu
exemplo muito mais vantajoso nos tem sido. É, portanto, nosso dever, hoje, no
dia do seu casamento, manifestar-lhe o quanto lhe somos gratos, pedindo-lhe
haja de aceitar o pequeno adjutório, que incluso lhe oferecemos. Que Deus
abençoe o seu consórcio são os votos dos respeitadores e obrigados,
Mascarenhas e Irmãos [...] (GONÇALVES; LIMA, 2012, p. 238).
Percebemos no trecho da carta, o elogio dos proprietários a uma operária que
depois de nove anos de bons serviços prestados à companhia com um trabalho exemplar,
iniciaria uma nova etapa da vida, o matrimônio. Como forma de agradecimento, os irmãos
Mascarenhas oferecem um adjutório para ajudar nessa nova fase da vida. É interessante
ressaltar também que por serem proprietários de uma companhia com considerável mão
de obra de moças solteiras, os irmãos Mascarenhas procuram se descrever como
“respeitadores”.
No entanto, diversas companhias não tiveram como prioridade selecionar a mão
de obra feminina quanto ao estado civil, mas também não tiveram como preocupação
fornecer serviços que possibilitassem a permanência no trabalho de mães operárias. Maria
Auxiliadora Guzzo Decca, em um estudo que analisa as condições de vida do operariado
de São Paulo fora dos locais de trabalho, a autora procura abordar, por meio de
dissertações e teses médicas, a preocupação de setores da saúde pública com a qualidade
de vida dos/as operários/as. Destaco as considerações a respeito das operárias gestantes e
dos recém-nascidos:
Em São Paulo a administração sanitária, através do Código Sanitário, teria
garantido alguma proteção às mulheres e aos menores, mas quanto à “proteção
pré-natal e ao lactante”, seu artigo 214 seria ainda mais vago, sem limites
precisos. “Embora com resultados práticos duvidosos”, alguma coisa teria sido
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1460
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

feita em benefício dos “menores filhos de operários, depois de sua primeira


infância”, mas a mulher grávida e o recém-nascido estariam praticamente
abandonados. (DECCA, 1987. pp. 79-80).
Em sua tese de 1924, o médico Jaime Cardoso Americano criticava a ambiguidade
do Código Sanitário de São Paulo, de 1917, bem como o que instituía a Inspetoria de
Higiene Infantil (criada em 1923) incorporada ao Departamento Nacional de Saúde
Pública estabelecia, em seu regulamento, creches e salas de amamentação, pois afirmava
que mesmo na cidade do Rio de Janeiro, a aplicabilidade de tal regulamento não era
efetiva em virtude dos interesses dos industriais e da tolerância dos governantes. Mesmo
assim, o médico propunha “medidas práticas” para a proteção das gestantes e dos recém-
nascidos, como a criação de creches nos complexos fabris, onde os/as filhos/as de
operários/as pudessem passar o dia durante as horas de trabalho de suas mães (DECCA,
1987, p. 80).
De acordo com análises sanitárias, a Fábrica Maria Zélia, do industrial Jorge
Street, era apontada como um modelo em relação à higiene do trabalho entre as fábricas
de São Paulo e, segundo o médico, era “a única a manter um serviço de proteção à infância
organizado regularmente” (DECCA, 1987, p. 78/80).
A preocupação com o trabalho de gestantes também foi central no Rio de Janeiro.
O tema foi recorrente na fala masculina, tanto na imprensa operária, na perspectiva de
militantes e articulistas de tais jornais, quanto nas vozes de políticos em discursos
públicos ou no parlamento. A seguir destaco alguns desses posicionamentos acerca do
trabalho de gestantes: “É vergonhozo consentir que a mulher trabalhe muitas vezes até o
ultimo mez de gravidez e depois durante os mezes que amamenta, ou que devia
amamentar, dando assim á criança leite artificial,...” (A VOZ DO TRABALHADOR,
1913).
Assim, é relevante salientar que algumas políticas para possibilitar a mão-de-obra
de mães operárias foram implementadas mesmo antes da efervescência das questões
sobre a regulamentação do trabalho feminino ocorrida na Comissão de Legislação Social
em 1919735, como foi o caso da criação da creche da Companhia de Fiação e Tecidos

735
Sobre essa questão ver: FRACCARO, Glaucia Cristina Candian. Os Direitos das Mulheres –
Organização Social e Legislação Trabalhista no Entreguerras Brasileiro (1917-1937). Tese de doutorado.
Departamento de História – UNICAMP. 2016.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1461
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Corcovado em 1899, considerada uma iniciativa pioneira. No período de abrangência


dessa pesquisa, dois estabelecimentos fabris forneceram o serviço de creche para os/as
filhos/as de suas operárias: Companhia de Fiação e Tecidos Corcovado e Fábrica
Cruzeiro, de propriedade da Companhia América Fabril.
No tocante à sua creche, a Companhia de Fiação e Tecidos Corcovado era
considerada um exemplo para as demais fábricas no período. A denominada Creche
Angelica foi inaugurada em 8 de dezembro de 1899, e é considerada a primeira creche
para filhos de operários/as do Brasil. Tal iniciativa do administrador José da Cruz e dos
demais companheiros de diretoria, visava a permanência de mães operárias no trabalho
dessa fábrica, visto que a criação dos filhos era função das mulheres. De acordo com
informações encontradas nos periódicos Jornal do Brasil e na Gazeta de Notícias, D.
Zulmira Coelho fora diretora do estabelecimento entre os anos de 1900 e 1904 e contava
com o apoio de 5 senhoras para cuidar das crianças. Segundo consta na Gazeta de
Notícias:
As creanças são recolhidas pela manhã, ao começar o trabalho, sahindo quando
este termina, e são alimentadas as expensas da companhia. Para ás que são
alimentadas a leite a administração compra á vaccaria 10 litros de leite. É
permittido ás mães empregadas na fabrica irem duas vezes por dia amamentar
os filhos.
Após o almoço, ás 9 ½ da manhã, as crianças maiores são mandadas á escola,
de onde regressam ás 3 ½ da tarde, hora do jantar.
A créche só admitte crianças vaccinadas. (GAZETA DE NOTICIAS, 1904)

Percebemos então que as crianças passavam todo o período de trabalho de suas


mães na creche. Às mulheres que ainda amamentavam eram permitidas pausas para
alimentarem seus filhos. As crianças maiores mesclavam um tempo na creche e na escola,
possibilitando de suas mães pudessem se despreocupar com seus cuidados e se dedicarem
ao trabalho nas fábricas.
O Jornal do Brasil também tratou de publicar elogios à iniciativa de José da Cruz:
A creche dispondo de todo o necessario presta, optimissimos serviços aos
operarios que alli, sem dispendio de um real sequer, deixam cheios de
confiança os seus filhos os quaes hontem vestiam todos roupinhas de
excellente flanella cinzenta. (JORNAL DO BRASIL, 1901).
Os articulistas procuraram ressaltar que o serviço não era cobrado aos operários,
mas de acordo com a Gazeta Operaria, a creche custava mensalmente para a companhia
“2:000$ não entrando nessa verba nem o leite, nem a roupa, nem o calçado” (GAZETA

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1462
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

DE NOTICIAS, 1904). As crianças vestiam a mesma “flanella cinzenta” porque tiravam


as roupas que chegavam, usam um vestuário fornecido pela companhia e só colocavam
suas roupas de volta na hora de ir embora.
Reconhecendo a importância da creche para possibilitar o trabalho de mães de
crianças pequenas e a vanguarda da Companhia Corcovado na construção dessa creche
para filhos de operárias, alguns trabalhadores de tal fábrica, ao prestarem apoio a outros
operários em greve ressaltaram a relevância da creche:
Que [outras administrações de fábricas] estabeleçam as créches, onde os filhos
de nossos operarios encontrem durante ás horas do trabalho das suas mães, o
carinho que os nossos encontram na Créche Angelica. (JORNAL DO BRASIL,
1903).

No relatório da Corcovado, referente ao ano de 1914, consta que devido à creche,


a administração notou maior assiduidade dos operários em seus trabalhos (BIBLIOTECA
NACIONAL, 1915, p. 14). Provavelmente maior freqüência das operárias no trabalho,
visto que por possuírem um local seguro para deixar seus filhos e que, inclusive, contava
com um consultório médico, as mães operárias reduziam consideravelmente seus motivos
para faltas.
Em 1915, o doutor Moncorvo Filho escreveu uma carta acerca da mortalidade
infantil no Rio de Janeiro e ressaltou o pioneirismo da Fábrica Corcovado, como
empreendimento possuidor de creche:
As operarias deixam os seus filhos em casa entregues aos cuidados de outra
pessoa, sujeitando a creança á alimentação artificial. Porque? Porque nas
nossas fabricas não há créches onde as mães deixem seus filhos sob a vigilância
de uma empregada especial e as procure de 3 em 3 horas para amamental-as.
Nenhuma fabrica entre nós, possue uma creche siquer, a não ser, (parece-me),
a Fabrica Corcovado. (A NOTICIA, 1915).
A creche da Fábrica Cruzeiro, de propriedade da Companhia América Fabril, só
foi criada 24 anos depois da creche da Companhia Corcovado. Em 15 de setembro de
1923, foi inaugurada na Rua Barão Mesquita, nº 872, em uma casa reformada pelo
engenheiro Rocha Faria Filho seguindo as exigências sanitárias, que era habitada pelo
chefe do operariado da Cruzeiro, José Coelho Junior. Segundo registrado no jornal
Correio da Manhã, o estabelecimento contava com as seguintes dependências:
Além da secretaria, sala de banhos medicinaes com banheiros apropriados para
as creanças e rouparia, tem a “créche”, consultório medico, isolamento para
creanças portadoras de moléstias contagiosas, salas de esterilisação,
amamentação, repouso, etc. Tem ainda o novo estabelecimento beneficente,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1463
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

camara photographyca, lavatorios modernos,... (CORREIO DA MANHÃ,


1923).
À festa de inauguração compareceram: “professoras das creancinhas e pessoas
gradas os drs. Carlos Chagas, director da D.N.S.P. e Castlepoggi da Rocha Braga, director
da ‘creche’ e medico da America Fabril”. Também foi apresentada a composição da
primeira diretoria que administraria a creche: “Conde de Avellar, presidente; Antonio
Mendes Campos, gerente; dr. Carlos da Rocha Faria, secretario; Democrito Seabra,
thesoureiro; L. Andreson, technico e José Coelho Junior, chefe do operariado”
(CORREIO DA MANHÃ, 1923).
Observando os ocupantes dos cargos de diretoria da creche da Fábrica Cruzeiro,
é possível notar que diferente do estabelecimento da Companhia Corcovado, cuja
diretora, D. Zulmira Coelho, era uma mulher, apenas homens integraram tais posições.
As mulheres na creche da Cruzeiro somente ocuparam funções de cuidado direto com as
crianças, como, professora.
Nesse estabelecimento, as crianças eram deixadas pelas operárias quando
entravam para o trabalho pela manhã, podendo efetuar pausas de três em três horas para
se dirigirem à creche e amamentarem seus filhos, para isso, usavam uma blusa apropriada
para facilitar o processo (O IMPARCIAL, 1924).
Apenas a critério de comparação com outras creches, sob a perspectiva dos
próprios operários, destaco que entre as reivindicações dos têxteis grevistas e associados
à União dos Operários em Fábricas de Tecidos estava uma crítica a uma creche:
Casas arejadas, batidas de sol, limpas, com amas de leite e creadas que
conheçam o difficil mister da creação. São assim as creches do Rio, é assim a
creche do industrial dr. Street, [...], á exceção a creche da Cascatinha. Aqui
uma senhora, talvez respeitavel, mas rabujenta, sem nenhuma noção da tarefa
que desempenha guarda ás creanças como se fôra encarregada de um canil,
destribuindo os componentes sopapos para que o choro lhe não abale os nervos.
(A RAZÃO, 1919).
A partir desse trecho, pode-se perceber que além de reivindicar a criação de
creches nos locais de trabalho, como destacamos anteriormente, os operários também
atentavam para o tipo de serviço que era fornecido nesses lugares aos seus filhos, visto
que não bastava oferecer o espaço, mas ter a preocupação de selecionar profissionais
responsáveis para cuidar das crianças.
Como mais um exemplo de política paternalista empreendida pelos
administradores da Companhia América Fabril, destaco a criação da Associação dos
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1464
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Operários da América Fabril. Movida pelas greves e levantes de 1917 a 1919 e pelo
avanço da influência da União dos Operários em Fábricas de Tecidos em relação aos
trabalhadores do ramo, a administração da Companhia América Fabril incentivou a
criação da AOAF, fundada em 1919. Em cada fábrica havia um comitê composto de
operários empregados nestas e filiados a entidade, sendo cada comitê subordinado a uma
junta. A sede da associação se localizava próxima à Fábrica Cruzeiro, na Rua Barão de
Mesquita, nº 824.
Tal sociedade tinha cunho nitidamente assistencialista e propunha oferecer
auxílios financeiros em caso de afastamento temporário de seus associados, mas para se
tornar sócio, o/a operário/a tinha que estar em conformidade com a disciplina patronal e
preencher certos requisitos, nesse caso, era preciso apresentar atestado de boa saúde e
atestado de bons costumes e boa reputação fornecido pelas autoridades policiais. As
mulheres casadas só poderiam se associar, caso o marido já fosse sócio. A questão política
também era levada em consideração, sendo proibida a associação de pertencentes a
agremiações de caráter político, partidários do anarquismo, grevistas e expulsos do país
de origem (WEID; BASTOS, 1986, p.188/190).
Mediante o pagamento de uma mensalidade, os sócios, em geral, tinham direito a
auxílio-doença que variava de 30$ a 100$ e auxílio funeral, enquanto as mulheres, além
destes, contavam com auxílio de 100$ em caso de parto, casamento, proteção moral e
material aos órfãos com menos de 14 anos e para as viúvas inválidas (WEID; BASTOS,
1986, p.188).
Assim, a companhia por meio de tal associação procurou disciplinar sua mão de
obra e em contrapartida os/as sócios/as recebiam uma ajuda financeira em ocasiões de
afastamento. No caso das mulheres, estas poderiam receber o auxílio para: custear o
casamento e manter o vínculo com a fábrica para regressar mesmo depois de casada; dar
à luz, se afastar por um breve período e retornar ao trabalho com o recém-nascido já que
a Fábrica Cruzeiro possuía creche; manter órfãos menores de 14 anos; se manter, se
fossem viúvas inválidas.
Nesse sentido, tal recurso assistencialista funcionou como uma forma de fixar essa
mão de obra feminina disciplinada ao trabalho, mesmo depois do casamento da chegada

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1465
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

dos filhos. Sendo assim, utilizo o livro de atas das reuniões da AOAF e destaco alguns
trechos:
Comite Cruzeiro – dezenove admissões sendo os seguintes Joanna Pereira
Miranda, Olvino Henrique Amaral, Catharina Jesus Silva, Maria da Silva
Amarini,Eulina Tavares, Maria Bento Barboza, Maria da Silva, Maria de
Lourdes Andrade, Bayleu Baptista de Almeida, Alzira Costa Brites, Jose
Augusto Vasconcellos, Arlinda Vieira, Francisco Balthazar,Paulo Simoni,
Santos Domingos, Virgilio Lima de Oliveira, Antonio Martins, sendo todos
aceitos. [...] Comite Carioca _ sete requerimentos para admissões sendo os
seguintes, Philomena Garcia, Hilda Ferreira, Alzira Ferreira, Perpetua Simões,
Maria Joaquina da Silva, Nezia Maria das Dores, sendo todas aceitas, dois ditos
para readmissões sendo os seguintes, Porphirir Barboza e Azazarias Ferreira
Campos, também reaceitos, [...]. (ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO
DE JANEIRO. 1926. p. 6.)

Ressalto esse trecho como um exemplo de que as operárias dessas fábricas


aderiram consideravelmente à associação como uma forma de conseguir licença
remunerada em virtude de casamento, parto, doença, etc. A seguir, apresento alguns
exemplos de requerimentos das operárias:
Acta da sessão da Directoria realizada aos doze dias do mez de maio de mil
novecentos e vinte e seis, [...]. Comite Cruzeiro – Um requerimento para
auxilio de casamento de Octavia Justiniam, despachado com cem mil reis. Um
dito de Julieta Braga para parto despachado, com cem mil reis. Trez ditos por
doença sendo os seguintes, Alzira de Andrade despachado com cincoenta mil
por mez. Elvira Alvez despachado com cincoenta mil reis por mez. [Armmda]
Jose Penna despachado com sessenta mil reis por mez.
Acta da sessão da Directoria, [...] aos dois dias do mez de Fevereiro de mil
novecentos e vinte e sete.[...] Comite Carioca – Maria Cerrulo, pedindo auxilio
por doença, despachado com trinta mil reis (30$000). Guilhermina Teixeira,
Emilia Penetilho, Hercelina Pereira Pinto, Laura Orminda do Nascimento e
Paula Maria de Carvalho, pedindo auxilio em virtude parto, despachados com
100$000 (cem mil reis) cada um. Francisca Bendia, pedindo auxilio para
casamento, despachado com 100$000 (cem mil reis). (ARQUIVO GERAL DA
CIDADE DO RIO DE JANEIRO. 1926 / 1927. pp. 4/35-36.)

Nesses trechos podemos perceber que as operárias se utilizaram dos diversos


auxílios prestados pela associação, como, para casamento, parto e doença. Este último
variava de acordo com a doença, visto que uma operária recebeu 50$ e outra 60$. Em
certas sessões, o auxílio para parto foi consideravelmente solicitado, como no segundo
exemplo, em que 5 trabalhadoras o solicitaram na mesma reunião.
A preferência da Companhia América Fabril por admitir membros de uma mesma
família, além de se manifestar nos requisitos para filiação na AOAF, também se
apresentava em seus critérios para o acesso à moradia. Como o número de casas nas vilas

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1466
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de suas fábricas do Distrito Federal era menor do que a demanda operária, a companhia
estabeleceu alguns critérios à prioridade no acesso a moradia: preferencialmente
operários mais qualificados ou considerados imprescindíveis no trabalho; os mais antigos
ou com as maiores famílias, garantindo maior força de trabalho para a empresa; e, a partir
de 1921, era pré-requisito a afiliação à Associação dos Operários da América Fabril
(AOAF). O monopólio sobre a moradia próxima ao local de trabalho representava para a
companhia uma forma de reduzir o preço da mão de obra, já que o valor do aluguel era
descontado do salário, ampliar o controle sobre a mobilidade do/a trabalhador/a e induzir
o/a operário/a a permanecer no emprego (WEID; BASTOS, 1986, p. 167). Com a
preferência por membros de uma mesma família, a companhia podia fornecer uma casa
para vários/as trabalhadores/as de suas fábricas.

Considerações finais
Tendo em vista os exemplos de políticas paternalistas implementadas pelos
industriais de duas das principais companhias têxteis do Distrito Federal na Primeira
República, é possível perceber que diferente de outros empreendimentos do ramo que
privilegiaram a admissão de moças solteiras ou viúvas e dos industriais de São Paulo, que
exceto pela Fábrica Maria Zélia, não tiveram como prioridade, no início do século XX,
oferecer suportes pra afixar a mão de obra de mães operárias, observamos que os
administradores da Companhia de Fiação e Tecidos Corcovado e da Companhia América
Fabril implantaram formas de assegurar suas operárias ao trabalho mesmo depois do
casamento e da chegada dos filhos, além disso, privilegiaram a incorporação de membros
de uma mesma família no trabalho de suas fábricas de tecidos.
É importante destacar a relevância dessas políticas como meio de atrair as
trabalhadoras em um período em que a licença maternidade não era regulamentada e
pouquíssimos postos de trabalho ofereciam creches. Ainda, como as creches adquiriram
caráter de um direito conquistado pelos/as trabalhadores/as, visto que, em momentos de
greve, era uma demanda que as fábricas que não as possuíssem, criasse-as. Tais serviços
também merecem destaque no tocante ao controle da mão de obra, visto que as grevistas
e as indisciplinadas corriam o risco de perder o emprego e consequentemente, o acesso à
creche e às licenças remuneradas.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1467
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Referências bibliográficas

Fontes

A VOZ DO TRABALHADOR, Rio de Janeiro, 1913.


A NOTICIA, Rio de Janeiro, 1915.
A RAZÃO, Rio de Janeiro, 1919.
ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Livro de Atas da Associação
dos Operários da América Fabril. 1926-1929.
BIBLIOTECA NACIONAL. Rio de Janeiro. Relatorio da Companhia de Fiação e
Tecidos Corcovado. 1915.
CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, 1923.
GAZETA DE NOTICIAS, Rio de Janeiro, 1904.
JORNAL DO BRASIL, Rio de Janeiro, 1901.
O IMPARCIAL, Rio de Janeiro, 1924.

Bibliografia

DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo. A vida fora das fábricas: Cotidiano operário em São
Paulo (1920/1934). Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987.
FRACCARO, Glaucia Cristina Candian. Os Direitos das Mulheres – Organização Social
e Legislação Trabalhista no Entreguerras Brasileiro (1917-1937). Tese de doutorado.
Departamento de História – UNICAMP. 2016.
JUNIOR, Moysés Kuhlmann.“Instituições pré-escolares assistencialistas no Brasil (1899-
1922)”. Cad. Pesq., São Paulo, nº 77, 1991.
GONÇALVES, Irlen Antonio; LIMA, Junia de Souza. Formar, moralizar e disciplinar:
relações entre patrões e operárias no cotidiano de fábricas têxteis em Minas Gerais.
História Unisinos, Vol.16, nº 2, maio-agosto, 2012.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1468
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

LOPES, José Sergio Leite. A tecelagem dos conflitos de classes na "cidade das
chaminés". São Paulo: Marco Zero; Brasília: Editora da Universidade de Brasília; CNPq,
1988.
MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. A regulação do trabalho feminino em um sistema
político masculino, Brasil 1932-1943. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 29, no 59,
p. 667-686, setembro-dezembro 2016.
MELLO, Juçara da Silva Barbosa de. “Paternalismo industrial e leis do trabalho Brasil”.
In: Anais do XXVII Simpósio Nacional de História. ANPUH. 2013.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência
anarquista – Brasil 1890-1930. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1985.
SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e
resistência. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 1991.
WEID, Elisabeth von der; BASTOS, Ana Marta Rodrigues. O fio da meada: estratégia
de expansão de uma indústria têxtil: Companhia América Fabril: 1878-1930. Rio de
Janeiro, Fundação Casa Rui Barbosa, Confederação Nacional da Indústria, 1986.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1469
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A atuação de Rodrigo Melo Franco de Andrade no Conselho Consultivo do


SPHAN
JAMILE SILVA NETO
Programa de Pós-Graduação em História da Unirio
Bolsa CAPES

A formação do Conselho Consultivo do SPHAN


O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) foi criado pela
Lei nº 378 de 13 de janeiro de 1937. Junto ao órgão de preservação, foi criado o Conselho
Consultivo, o qual seria composto pelo “[...] diretor do Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional, dos diretores dos museus nacionais de coisas históricas ou artísticas,
e de mais dez membros, nomeados pelo Presidente da República.” (SPHAN, 1980, p.
107).
O Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza o órgão de
preservação, delimitou as atribuições do Conselho Consultivo. Dentre as funções do
Conselho, estava decidir, em última instância, sobre os casos em que o proprietário não
aceitasse a proposta do tombamento do bem. Ou seja, ao Conselho Consultivo caberia,
dentre outras funções, ajuizar sobre as impugnações oferecidas pelos proprietários. Anos
depois, a partir do Regimento Interno do órgão de preservação – Decreto-lei n° 8.534 de
02 de janeiro de 1946 –, o Conselho Consultivo passa a ajuizar sobre todos os pedidos de
tombamento.
Conforme Márcia Chuva (2014), o ato administrativo do tombamento, garantido
pelo Decreto-lei nº 25, traz garantias da tutela do Estado sobre o patrimônio histórico e
artístico nacional. Ainda segundo a autora, seria o Conselho Consultivo do órgão de
preservação a “[...] instância de consagração por excelência desse poder tutelar [...]”
(CHUVA, 2014, p. 201). Para além da garantia de proteção dos interesses da coletividade
– expressos na defesa do patrimônio histórico e artístico nacional identificado como “bem
comum” –, a elaboração do Decreto-lei n° 25 preocupou-se em conferir ao Conselho
Consultivo alto grau de poder de decisão sobre os casos de tombamento. Portanto, ao
Conselho do SPHAN, caberia a “palavra final” de quais bens seriam considerados
patrimônio da nação.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1470
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os estudos que tratam de alguma forma do Conselho Consultivo do SPHAN


enfatizam o grau de especialidade e reconhecidos saberes que representavam os membros
do Conselho (CHUVA, 2009; 2014; FONSECA, 2009; GONÇALVES, 2002; LENZI,
2013; SANTOS, 1996). Conforme Sônia Rabello (2009), os conselheiros eram
identificados como membros honoríficos do órgão. Márcia Chuva defende que os
membros do Conselho faziam parte de uma ampla teia de relações entre notórios
integrantes dos campos intelectual e político brasileiros, os quais estavam de algum modo
inseridos no Estado (CHUVA, 2009, p. 224).
A ideia do Conselho constituído por especialistas foi enfatizado pelo próprio
ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, que participou da reunião inaugural,
enfatizando em sua fala que o Conselho Consultivo era composto por “[...] por
especialistas de notável competência e de comprovado espírito público [...]” (ATAS, 10
maio 1938). Portanto, a constituição do Conselho Consultivo baseou-se na convocação
de especialistas de diferentes áreas do saber – Direito, Arqueologia, Antropologia,
História – para compor a esfera consultiva e deliberativa do órgão de patrimônio.
De 1938 a 1966, Rodrigo Melo Franco de Andrade presidiria as reuniões do
Conselho Consultivo do SPHAN. O período da gestão do SPHAN por Rodrigo Melo
Franco de Andrade mostra-se como momento crucial para a estruturação do órgão, a
consolidação das práticas de preservação e a construção das concepções de quais bens
seriam considerados patrimônio nacional, que perdurariam por muitas décadas. Durante
o tempo em que Rodrigo Melo Franco de Andrade esteve à frente do Conselho
Consultivo, 33 intelectuais passaram pelas cadeiras do mais importante fórum de
discussão do órgão de preservação, tendo alguns deles permanecido por longos anos no
Conselho, outros se afastaram da posição ocupada quando desempossavam da direção de
museus, e ainda alguns deixavam de pertencer ao Conselho por motivo de falecimento.736

736
Os 33 intelectuais que pertenceram ao Conselho Consultivo do SPHAN entre 1938 e 1966 foram: Afonso
Arinos de Melo Franco, Alberto Childe, Alcindo de Azevedo Sodré, Alfredo Galvão, Américo Jacobina
Lacombe, Antônio Joaquim Andrade de Almeida, Augusto José Marques Junior, Carlos de Azevedo Leão,
Edgard Roquette-Pinto, Eugênio Gomes, Francisco Marques dos Santos, Gilberto Ferrez, Gustavo Barroso,
Heloísa Alberto Torres, José Cândido de Mello Carvalho, José Otávio Corrêa Lima, José Roberto Teixeira
Leite, José Soares de Mello, José Wasth Rodrigues, Josué de Souza Montello, Lucio Costa, Luiz de Castro
Faria, Manuel Constantino Gomes Ribeiro, Manuel Bandeira, Miran de Barros Latif, Newton Dias dos
Santos, Oswaldo Teixeira, Paulo Ferreira dos Santos, Pedro Calmon, Raimundo Lopes da Cunha, Rodolfo
Gonçalves de Siqueira, Sérgio Ferreira da Cunha e Thiers Martins Moreira.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1471
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Assim, se legitimando e sendo legitimados, boa parte desses intelectuais permaneceu por
longos anos no Conselho. O grau de participação e importância desses intelectuais no
Conselho Consultivo teve forte influência das predileções e escolhas de Rodrigo Melo
Franco de Andrade.

Rodrigo Melo Franco de Andrade na presidência do Conselho Consultivo do


SPHAN
A reunião inaugural do Conselho Consultivo, a qual contou com a presença de
Gustavo Capanema, foi realizada em 10 de maio de 1938. Dentre outras questões, nessa
reunião, ficou acordado que o presidente do Conselho seria o diretor do órgão de
preservação, isto é, Rodrigo Melo Franco de Andrade. Tal questão não havia sido tratada
pelo Decreto-lei nº 25, e, por isso, a necessidade de ser debatido o tema na primeira
reunião, tendo a maior parte do Conselho concordado que o diretor do SPHAN deveria
ser o presidente do seu Conselho Consultivo. Todavia, Rodrigo Melo Franco de Andrade
pondera que “[...] tal era o empenho que punha em certas iniciativas tomadas no exercício
de suas funções administrativas, que receava constranger o próprio Conselho ao submetê-
las a aprovação.” (ATAS, 10 maio 1938). Para solucionar essa questão, os conselheiros
deliberam que Rodrigo Melo Franco de Andrade não tivesse direito de voto nas decisões
debatidas no Conselho Consultivo, o que afastaria suas intenções e inclinações nas
decisões acordadas pelos membros do Conselho.
Além disso, foi acordado, na reunião inaugural, como se daria a distribuição dos
processos de tombamento. O presidente do Conselho sugere que fosse adotado o mesmo
método dos “tribunais de 2ª instância” e o modelo de outros conselhos consultivo, qual
seria: o presidente distribuiria a um relator o processo de tombamento que deveria emitir
voto por escrito na reunião subsequente; os votos dos demais membros do Conselho
seriam colhidos logo após a explanação do voto do relator. O presidente levantou também
a questão quanto à escolha do relator, cujas opções eram distribuição por sorteio ou a
critério do presidente. Decidiu-se que, pelo fato da nomeação dos conselheiros ter sido
motivada pelo critério de especialização, a distribuição dos processos de tombamentos se

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1472
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

faria a critério do presidente do Conselho. Ou seja, Rodrigo Melo Franco de Andrade


seria aquele que escolheria, previamente, qual seria o conselheiro mais habilitado para
emitir parecer sobre o processo de tombamento posto em questão.
Os processos de tombamento seguiam geralmente um trajeto até chegarem ao
Conselho Consultivo. O SPHAN contava com quatro Distritos distribuídos pelo Brasil
que deveriam representar a organização da “área central” do órgão, mesmo tendo o
quadro de funcionários reduzido.737 Após passarem pelos Distritos e receberem pareceres
dos seus funcionários, os processos de tombamento eram encaminhados para as seções
técnicas do órgão, às quais estavam sediadas no Rio de Janeiro.738 Antes de chegarem ao
Conselho Consultivo, os processos de tombamento, com frequência, contavam com o
parecer de Rodrigo Melo Franco de Andrade, denominado “Parecer do SPHAN”. Desse
modo, percebe-se que o processo de tombamento seguia um longo trajeto, inclusive
recebendo parecer do diretor do órgão de preservação, antes de ir para as mãos do
conselheiro relator.
Apesar de ser amplamente enfatizada a presença dos intelectuais modernistas nas
agências ligadas à cultura durante o Governo Vargas (1930-1945) – sobretudo presentes
no órgão de preservação do patrimônio – (CHUVA, 2009; BOMENY, 1994; 2001;
SANTOS, 1996), os membros do Conselho Consultivo não eram majoritariamente
ligados ao modernismo. Desse modo, defende-se que, nos primeiros anos de atuação, os
intelectuais membros do Conselho faziam parte das diferentes correntes de pensamento
arregimentadas, segundo Bomeny, para elaborarem a construção do Estado nacional
(BOMENY, 2001). Portanto, a despeito de haver um grupo de intelectuais, sobretudo
mineiros, ligados diretamente a Rodrigo Melo Franco de Andrade – os quais participavam
com frequência das reuniões realizadas no gabinete do diretor do órgão de preservação

737
Os Distritos dividiam-se da seguinte forma: 1º Distrito, sediado em Recife, responsável pelos estados
do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco e de Alagoas; 2º Distrito, com sede em Salvador,
responsável pela Bahia e por Sergipe; 3º Distrito, estabelecido em Belo Horizonte, com atuação em Minas
Gerais; e, 4º Distrito, sediado em São Paulo, com a responsabilidade de atuar em São Paulo, Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul (CHUVA, 2009, p. 177).
738
A área técnica do SPHAN era composta pela Divisão de Estudos de Tombamento (DET), chefiada por
Lucio Costa, que compreendia a Seção de Arte e a Seção de História; e a Divisão de Conservação e
Restauro, dirigida pelo arquiteto Paulo Thedim Barreto, a qual se subdividia em Seção de Projetos e Seção
de Obras (CHUVA, 2009).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1473
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

739
(CHUVA, 2009; BOMENY, 1994; 2001; FARIA, 1995), não se conseguiu identificar
os mesmos laços de amizade entre Rodrigo Melo Franco de Andrade e boa parte dos
membros do Conselho.
Contudo, ainda que, possivelmente, Rodrigo Melo Franco de Andrade não
mantivesse relações próximas com todos os membros do Conselho, ao longo das reuniões
torna-se notória a sua admiração pela trajetória e conhecimento dos conselheiros. Nesse
sentido, os anos vivenciados juntos, as discussões e estudos acerca do patrimônio e outros
assuntos provavelmente aproximaram Rodrigo Melo Franco de Andrade de elementos da
intelectualidade que possivelmente, a priori, não possuíam laços de amizade. Assim, em
1968, em seu discurso de posse no Conselho Consultivo,740 Rodrigo Melo Franco de
Andrade declara que
[...] fiquei também comovido com a investidura, porque vim substituir aqui
meu dileto amigo Miran Latif, um dos mais distintos e influentes membros
deste colegiado, autor de livros notáveis pela originalidade da interpretação das
ocorrências do passado e do presente do Brasil, abalizado geólogo e
mineralogista, engenheiro e arquiteto talentoso, homem de gosto e grande
conhecedor do acervo de arte antiga do país, ao qual não faltava, antes impelia
sempre, um vibrante espírito público. [...]
Além da lembrança ainda muito viva e dolorida de Miran Latif,
ocorre-me igualmente, ao participar pela primeira vez como vogal dos
trabalhos deste Conselho, a recordação dos outros seus integrantes que
precederam na morte aquele caríssimo companheiro: Raimundo Lopes,
Alberto Childe, Rodolfo Siqueira, Roquete Pinto, Marques Júnior e Wasth
Rodrigues, todos os quais ilustraram este colegiado e dos quais conservo a
memória mais grata. (ANDRADE, 1986, p. 180-1).

Essas relações de amizade e de afinidade intelectual certamente influenciaram nas


escolhas de Rodrigo Melo Franco de Andrade para relator de processo de tombamento.
Ao longo dos anos, pode-se perceber a concentração da escolha de alguns membros do
Conselho para serem relatores de processos de tombamento. Como exemplo, o
homenageado Miran Latif de Barros pertenceu ao Conselho de 1946 a 1968, tendo
participado de 79% das reuniões. Durante esse período, relatou dez processos de
tombamento. Enquanto Francisco Marques dos Santos, que estava presente no Conselho

739
“[...] Íamos todas as tardes para o escritório do Rodrigo – um trabalhador infatigável – e eu tinha pena
dele, porque estávamos sempre lá. Eu não era ninguém face aos outros freqüentadores, pois iam para lá
José Lins do Rêgo; Gastão Cruls – também infatigável; Drummond, um funcionário muito discreto; Afonso
Arinos, de Minas e primo de Rodrigo; e vários outros intelectuais.” (FARIA, 1995, p. 28).
740
Após o término de sua direção do SPHAN, em 1967, Rodrigo M. F. de Andrade integrou, por curto
período, o Conselho Consultivo. Tendo falecido no ano de 1969.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1474
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

desde a sua reunião inaugural e permaneceu nele para além da direção de Rodrigo Melo
Franco de Andrade, tendo participado de 82% das reuniões realizadas até 1966, relatou
quatro processos de tombamento.
Outros exemplos poderiam ser elucidados, mas interessa perceber que alguns
conselheiros foram, durante a presidência do Conselho por Rodrigo Melo Franco de
Andrade, mais solicitados e escolhidos que outros. Além do engenheiro Miran Latif de
Barros, os conselheiros Afonso Arinos de Melo Franco, Paulo Santos e Pedro Calmon
formaram o quarteto daqueles que mais relataram processos de tombamento enquanto
Rodrigo Melo Franco de Andrade esteve à frente do Conselho Consultivo.741
Cabe notar que, apesar de no Decreto-lei nº 25/37 ser o Presidente da República
quem indicaria os dez membros para o Conselho, pode-se pensar que os primeiros
membros empossados por indicação eram proposições de Rodrigo Melo Franco de
Andrade. De todo modo, a partir do Regimento Interno de 1946, caberia ao diretor do
SPHAN propor ao ministro a designação dos membros para compor o Conselho
Consultivo (DPHAN, 1967, p. 52). Com exceção de Afonso Arinos de Melo Franco, os
demais que integravam o quarteto mais solicitado do Conselho Consultivo ingressaram
após o Regimento Interno do órgão de preservação, ou seja, foram indicações diretas de
Rodrigo Melo Franco de Andrade.
Na reunião inaugural, buscaram-se meios para separar as decisões do Conselho
Consultivo dos desejos do diretor do órgão de preservação, no entanto, Rodrigo Melo
Franco de Andrade foi, direta ou indiretamente, relator de seis processos de tombamento
enquanto ocupou a direção do Conselho. Consta na ata da 9ª reunião do Conselho, a
votação sem relator do processo de tombamento 0203-T-39 relativo ao monumento Casa
de Pedra, em Minas Gerais, o qual foi aceito por unanimidade, tendo o Conselho adotado
o “parecer do Diretor do Serviço” (ATAS, 15 maio 1939). Igualmente, na 13ª sessão, o
processo de tombamento nº 0371-T-47, referente às ruínas do Convento de São
Bernardino de Sena, situado em Angra dos Reis, foi debatido sem relator expresso e aceito
por unanimidade pelos conselheiros. Na 10ª sessão ordinária, realizada em 1940, os
processos de tombamento nº 0063-T-40 e 0223-T-40 referentes às Igrejas e aos

741
Para saber mais sobre as práticas e atual desses intelectuais no Conselho Consultivo, ver Jamile Silva
Neto (2015).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1475
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Conventos de São Francisco, São Bento e do Carmo, em João Pessoa, e ao prédio na praia
de Icaraí, em Niterói, respectivamente, foram levados sem relator às discussões e às
deliberações do Conselho. Enquanto na 5ª e na 42ª sessões ordinárias foram votados os
processos de tombamento referentes à Igreja da Penha, no antigo Distrito Federal –
processo nº 0052-T-40 – e ao Pico de Itabirito, estado de Minas Gerais – processo nº
0608-T-60 – cujo relator foi declaradamente o diretor do Conselho Consultivo. Portanto,
a despeito de ter ficado acordado que Rodrigo Melo Franco de Andrade não teria direito
de voto, percebe-se, ao longo dos anos estudados, sua intensa participação nas decisões
do Conselho Consultivo, até mesmo como relator dos processos de tombamento em
debate. Ademais, o próprio fato de Rodrigo Melo Franco de Andrade escolher os relatores
dos processos de tombamento já depositava nas deliberações do Conselho os desejos do
diretor do órgão de patrimônio.
Como exemplo, pode-se citar o caso do processo de tombamento 0223-T-40
referente aos três painéis de Eugênio Latour e Henrique Bernardelli, situados na fachada
do prédio à praia de Icaraí, em Niterói. No parecer de Rodrigo Melo Franco de Andrade,
dentre outros pontos, ressalta:
A fotografia anexa ao processo evidencia desde logo que o edifício,
como obra de arquitetura, não pode absolutamente pretender a proteção
federal. Sucede, porém, que a fachada do mesmo foi decorada pelos
pintores Henrique Bernardelli e Eugênio Latour, que aí pintaram os
painéis cujas fotografias acompanham igualmente e servem de
fundamento ao pedido.
Sem entrar na apreciação do valor artístico dos referidos painéis,
cumpre ponderar a respeito que a orientação adotada invariavelmente
por este Serviço, desde a sua criação, tem sido a de excluir dos limites
da aplicação da lei federal vigente toda e qualquer manifestação de arte
contemporânea, uma vez que o critério para a apuração de tais obras se
representaria sempre da falta de recuo necessário para apreciar-lhes
devidamente as proporções. Assim foi, em verdade, que o Decreto-lei
nº 25, de 30 de novembro de 1937, não se aplicou até hoje a nenhuma
obra datada da metade do século passado a esta parte, aplicando-se
apenas em raras oportunidades às da primeira metade do século XIX
(ACI-processo 0223-T-40, p. 3).742

742
Processo de tombamento disponível no Arquivo Central do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Rio de Janeiro).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1476
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Logo, fica claro o posicionamento contra o tombamento dos bens evidenciado na


fala do diretor do órgão de preservação.
O processo de tombamento dos painéis de Henrique Bernardelli e Eugênio Latour
não possui relator. Nesse caso, Rodrigo Melo Franco de Andrade não se coloca
claramente como relator do processo, todavia, a deliberação votada pelo Conselho recai
sobre o “parecer do SPHAN”, o qual não autentica os painéis como patrimônio nacional
porque foram pintados em 1914, e, por isso, não desfrutam do “recuo necessário” para
que se pudesse fazer uma “correta” avaliação dos bens como representativos da nação.
Além de não atender ao recuo de tempo necessário, segundo Rodrigo Melo Franco de
Andrade, não era possível afirmar o caráter “excepcional” dos respectivos painéis. José
Reginaldo Gonçalves chama atenção para a relação entre autenticidade e eleição de bens
como patrimônios nacionais; desse modo, “[...] A ‘aura’ de um objeto está associada a
sua originalidade, a seu caráter único e uma relação genuína com o passado. [...]”
(GONÇALVES, 1988, p. 265). Gonçalves assinala que a associação entre passado e
história nacional garante a “continuidade da nação no tempo”, traçando uma ligação entre
presente, passado e futuro (GONÇALVES, 1988, p. 267). Já bastante enfatizado em
outros estudos que tratam as primeiras décadas de atuação do órgão de preservação
(CHUVA, 2009; FONSECA, 2009; RUBINO, 1996; SANTOS, 1996), a fala de Rodrigo
Melo Franco de Andrade neste processo segue a opção pela seleção de bens para
tombamento pertencentes principalmente aos séculos com “recuo de tempo necessário”
– séculos XVII, XVIII e XIX –, os quais autenticavam a longevidade da nação e suas
claras relações com a civilização europeia (CHUVA, 2003).743
Conforme a análise, pode-se perceber que alguns conselheiros foram mais
solicitados para serem relator de processos de tombamento em detrimento de outros. Ou
seja, algumas vozes foram consideravelmente mais ouvidas que outras. Apesar de contar
com outras variantes, como disponibilidade e interesse dos conselheiros, tais assimetrias

743
Silvana Rubino (1996) e Maria Cecília Londres Fonseca (2001) chamam a atenção para a ausência de
tombamento por parte do órgão de preservação de bens pertencente à Primeira República. Conforme
Fonseca, “[...] As alusões a estilos pretéritos, características da arquitetura que predominou na Primeira
República, eram consideradas uma contrafação, historicamente falsa e esteticamente condenável. [...]”
(FONSECA, 2001, p. 94). Curioso notar que o edifício-sede do MES – construção iniciada em 1937 e
concluída em 1945 – foi tombado no Livro do Tombo de Belas Artes em 1948. Nesse caso, não foi adotado
o critério do “recuo de tempo necessário”.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1477
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

estavam relacionadas às escolhas de Rodrigo Melo Franco de Andrade, as quais tinham


o respaldo de seguir o caráter especializado do Conselho. Todavia, a concentração de
processos de tombamento remetidos a alguns conselheiros faz crer que eram utilizados
critérios outros para denominação do relator.
As primeiras décadas de atuação do Conselho Consultivo do SPHAN não podem
ser separadas da presidência de Rodrigo Melo Franco de Andrade. Uma vez que a partir
da indicação de intelectuais para compor o Conselho; a escolha dos conselheiros para
relatar os processos de tombamento; o fato do próprio Rodrigo Melo Franco de Andrade
ter sido, diretamente ou indiretamente, relator de processos de tombamento, percebe-se
que o diretor do SPHAN estava presente em todas as decisões do Conselho Consultivo,
imprimindo seus desejos e predileções na esfera destinada a ser fórum de discussão sobre
as questões do patrimônio.

Referências bibliográficas
Documentação
Atas do Conselho Consultivo do IPHAN (1938-1966), disponível em: <
http://portal.iphan.gov.br/atasConselho/>.
Processo de Tombamento 0223-T-40, disponível no Arquivo Central do IPHAN.

Bibliografia
ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Rodrigo e seus tempos. Rio de Janeiro: Ministério
da Cultura/Fundação Nacional Pró-Memória, 1986.

BOMENY, Helena. Guardiões da Razão. Modernismo mineiros. Rio de Janeiro:


UFRJ/Tempo Brasileiro, 1994.

______. Infidelidades eletivas: intelectuais e política. In: ______ (Org.). Constelação


Capanema: intelectuais e políticas. Rio de Janeiro: Ed. Funfação Getúlio Vargas;
Bragança Paulista (SP): Ed. Universidade de São Francisco, 2001. p.11-35.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1478
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BRASIL. Legislação brasileira de proteção aos bens culturais. Rio de Janeiro:


MEC/DPHAN, 1967.

CHUVA, Márcia. Patrimônio cultural no Brasil: proteção, salvaguarda e tutela. In: LIMA,
Antonio Carlos Souza (Org.). Tutela: Formação de Estado e tradições de gestão no Brasil.
Rio de Janeiro: e-papers, 2014. p. 201-218.

______. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado.


Topoi, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 313-333, jul.-dez. 2003.

______. Os Arquitetos da Memória: sociogênese das práticas de preservação do


patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Ed.UFRJ, 2009.

FARIA, Luiz de Castro. Nacionalismo, nacionalismos - dualidade e polimorfia: à guisa


de depoimento e reflexão. In Chuva, Márcia (Org.). A Invenção do Patrimônio:
continuidade e ruptura na constituição de uma política oficial de preservação cultural no
Brasil. Rio de Janeiro: IPHAN, 1995. p. 27-40.

FONSECA, Maria Cecília Londres. A invenção do patrimônio e a memória nacional. In:


BOMENY, Helena (Org.). Constelação Capanema: intelectuais e políticas. Rio de
Janeiro: Ed. Funfação Getúlio Vargas; Bragança Paulista (SP): Ed. Universidade de São
Francisco, 2001. p. 85-101.

______. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil.


3. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Iphan, 2009.

GONÇALVES, José Reginaldo. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural


no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/MinC-IPHAN, 2002.

______. Autenticidade, Memória e Ideologias Nacionais: O problema dos patrimônios


culturais. Revista Estudos Históricos, v. 1, n. 2, p. 264-275, 1988.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1479
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

LENZI, Maria Isabel. Para aprendermos história sem nos fatigar: a tradição do
antiquariado e a historiografia de Gilberto Ferrez. Tese (Doutorado em História) –
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.

RABELLO, Sônia. O ato de tombamento e seus requisitos. In: O Estado na preservação


de bens culturais: o tombamento. Rio de Janeiro: IPHAN, 2009. p. 53-74.

RUBINO, Silvana. O mapa do Brasil passado. Revista do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional, n. 24, p. 97-105. 1996.

SANTOS, Mariza Veloso Motta. Nasce a academia Sphan. Revista do Patrimônio


Histórico e Artístico Nacional, n. 24, p. 77-95, 1996.

SILVA NETO, Jamile. O Conselho Consultivo do SPHAN (1938-1966): trajetórias e


práticas. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em História) – Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

PROTEÇÃO e revitalização do patrimônio cultural no Brasil: uma trajetória. Brasília,


MEC-SPHAN pró-memória, 1980.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1480
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Aldeia Imbuhy: as de identidades de uma comunidade de tradição pesqueira no


interior de um forte militar localizado em área da União

JAMYLLE DE ALMEIDA FERREIRA


Programa de Pós- Graduação em História Social (PPGHS)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Introdução

Este trabalho tem como objeto a Aldeia Imbuhy, comunidade pesqueira que
iniciou uma disputa jurídica com o Exército na década de 1990 para manter suas moradias
e no ano de 2015 foi removida por decisão judicial.
A disputa ocorreu no interior do Forte Rio Branco, na entrada do Forte Imbuhy,
que teria dado nome à comunidade localizada no bairro de Jurujuba, Niterói-RJ.
Conforme versão dos moradores a ocupação teria se dado em 1886, quando da
chegada da jovem conhecida por Dona Yayá (1871-1963) e a fortificação teria sido
construída posteriormente, em 1901.
Aos 16 anos a jovem teria bordado a primeira Bandeira do Brasil Republicano
(1989) e acabou virando referência local, mesmo existindo registros de que a área já era
ocupada bem antes, desde meados do século XIX conforme afirma Motta (2017) e desde
o fim do século XVIII, conforme o Projeto de Resolução Nº 81/2015 que concedeu o
título de Benemérita do Estado do Rio de Janeiro "Post Mortem" à Dona Yayá.
A insegurança, que já era relatada por Dona Yayá em entrevista concedida a um
jornal da época na década de 1950 teria subsidiado o fortalecimento da identidade local
na figura da moradora, associada à história oficial como estratégia de sobrevivência da
comunidade, diante da ameaça de despejo.
Além disso, a pesca seria a principal atividade exercida pela comunidade, cuja
matriarca seria também, de acordo com o Projeto de Resolução Nº 81/2015, a esposa do
líder dos pescadores local744, o Sr. Francisco Jorge de Carvalho Bessa.

744
O marido de dona Yayá, o Sr. Francisco Jorge de Carvalho Bessa é referenciado em duas vezes em
jornais da década de 1960 como comerciante, o que pode ser justificado por ser comum o pescador
comercializar seu próprio peixe.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1481
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A história local e o modo de vida diferenciado embasaram a reivindicação de


reconhecimento da comunidade como tradicional e a solicitação de tombamento da área
pelas 32 famílias.
Se uma comunidade de pescadores já possui uma dinâmica diferenciada, uma
comunidade com essa característica, dentro de uma Área de Segurança Nacional
administrada por militares tende a ser muito mais peculiar, gerando uma disputa de usos
e de significados bem mais acirrada.
Trata-se de uma configuração complexa que envolveu, durante mais de cem anos
de convivência entre esses dois grupos, ao mesmo tempo, a construção da vida social dos
moradores e a manutenção do poder de dissuasão de um país que é considerado pacífico
justamente por dispor de áreas e meios (aéreos, navais e terrestres)745 próprios à segurança
nacional.
Cabe salientar que esses termos militares, por serem oriundos da área de defesa
são pouco conhecidos e discutidos tanto pela academia quanto pela sociedade brasileira.
Ao mesmo tempo tem se tornado cada vez mais comum os conflitos territoriais em áreas
militares. Entre os mais recentes envolvendo as Forças Armadas e com desfechos
completamente diferentes destacamos:
✓ No município do Rio de Janeiro- RJ, as áreas da Estação Rádio da
Marinha, na Ilha do Governador, e da Ilha de Marambaia, ambas de
tradição pesqueira. Os territórios, depois de anos de disputa, foram
cedidos à população pela Marinha;
✓ No município de Barcelos- AM, localizado a 401 km de Manaus, numa
região marcada por muitos conflitos territoriais envolvendo comunidades
tradicionais indígenas, pescadores, operadores de turismo, etc., há ainda a
disputa entre a Aeronáutica e a população de alguns bairros, compostos
por 700 famílias, que seriam desocupados para a construção de um
aeroporto;

745
Não pretendemos entrar no mérito da atualidade e capacidade de operação desses meios.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1482
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

✓ No município de Niterói-RJ a área do Forte Imbuhy a precedência da


ocupação da área é disputada entre o Exército e os descendentes de Dona
Yayá. Em 2015 os moradores foram removidos.

Diante dos problemas encontrados pelo Exército para manter a administração da


área do Forte Imbuhy, que se constitui numa área sujeita não só à dinâmica, mas a
exercícios militares e que abrigava uma comunidade civil, numa convivência em que
principalmente nos últimos anos as atitudes de um grupo incomodavam ao outro e vice e
versa, estimulando o aumento das tensões internas a cada episódio, a precedência da
ocupação da área do Imbuhy começou a ser disputada entre o Exército e os moradores.
Mais do que uma disputa de espaço social e de poder, ou seja, um conflito
territorial, trata-se de uma disputa entre a história oficial dos documentos e a história oral,
contada a partir de narrativas construídas. Ambos os lados estão munidos de diferentes
elementos, propiciados pelas suas posições sociais, que fazem a manutenção das relações
de poder estabelecidas entre si.
Nesse sentido a disputa se dá tanto no campo material quanto no simbólico, de
maneira que as formas de atuação e organização desses grupos aconteçam a partir das
suas práticas e dos seus discursos, levando-se em conta suas ações, suas estratégias, sua
mobilização, bem como a capacidade organizativa e de resistência diante da crise do seu
modo de vida.

O sentido da narrativa: Dona Yayá e a história local


De acordo com o Projeto de Resolução Nº 81/2015 desde o fim do século XVIII
há registros de nascimentos na localidade, mas a história oral relaciona a origem da Aldeia
ao estabelecimento da família SIMAS CARVALHO, em 1886, vinda do Recife e Márcia
Motta (2017) prova, através da figura local do Inspetor de Quarteirão, citado pelo
Almanaque Laemmert (1869) que pelo menos desde meados do século XIX havia
moradores na área.
Dona Yayá passaria a ser a figura representativa da cultura local porque teve sua
trajetória atravessada pela história oficial do Brasil, quando aos 16 anos recebeu do
Marechal Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisório, o pedido para bordar o

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1483
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

primeiro pavilhão nacional. A primeira bandeira teria sido confeccionada em tecido de


algodão e a segunda, em seda.
De acordo com Ferrarini (1979, p.67-69) a bandeira foi hasteada às 12 horas do
dia 19 de novembro de 1889, com solenidade na Câmara do Rio de Janeiro e foi
estabelecida como símbolo do Brasil pelo Decreto n.º 04, de 19 de novembro do mesmo
ano, porém o seu dia passou a ser oficialmente comemorado somente a partir de 19 de
novembro de 1908.
O Quadro A Pátria, pintado por Pedro Bruno em 1919, encontra-se no Museu da
República. Apesar das frequentes associações à Dona Yayá, de acordo com funcionários
do Museu não há relatos de que o mesmo se refira à sua figura, mas representaria o
nascimento da República, em substituição ao Regime Patriarcal, daí a presença de
mulheres e crianças, bem como um senhor de idade ao fundo e a provável presença de
Tiradentes e do Marechal Deodoro da Fonseca, proclamador e primeiro presidente
republicano, símbolos da República nos quadros da parede.
A artesã, que dominava uma técnica passada de geração em geração, assim como
a pesca, e que esteve associada à Proclamação da República por ter bordado a primeira
bandeira republicana, construiu sua família na comunidade, em convivência com os
militares, cenário que representa não apenas que essa convivência é possível, mas que
sociedade e defesa podem andar juntas.
Assim aparece a figura de Dona Yayá no tempo presente, mulher, artesã,
representante de uma comunidade tradicional pesqueira e símbolo da identidade local,
bem como as figuras dos grandes heróis forjados pela história oficial para construir a
identidade nacional no século XIX, mas com um agravante decisivo, ela foi eleita pela
comunidade.
Na Aldeia Imbuhy, comunidade formada majoritariamente por pescadores
artesanais, Dona Yayá conheceu e casou com o Líder dos Pescadores local, o Sr.
Francisco Jorge de Carvalho Bessa, e com ele teve sete filhos (Francisca, Hugo, Roberto,
Álvaro, Alice, Celina e Odila) e aproximadamente quarenta netos. De acordo com
moradores, e confirmado por seu trineto Carlos Antonio Raposo Vasconcellos, pelo
menos 40% da população era descendente desta mulher a qual foi conferido o papel
central no fortalecimento da identidade na comunidade.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1484
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Construindo a Metodologia da Pesquisa


Estão de um lado a memória, a cultura e a identidade da comunidade e todo o
arcabouço de conhecimento apreendido por ela cotidianamente no próprio ambiente
militar, passado de geração em geração pela oralidade e de outro a defesa do país e o culto
aos símbolos nacionais pelo Exército, com o patriotismo e a burocratização dos processos,
os documentos e a lei, tendo a seu favor a história oficial e a máquina estatal.
No trabalho que está em desenvolvimento para o doutorado serão utilizadas duas
metodologias diferentes para expressar os dois lados do discurso. Entrevistas e análise de
conteúdo para o lado que constrói o discurso baseado na História Oral e análise
documental para o lado que constrói o discurso baseado nos documentos e na História
Oficial.
Muitas são as dificuldades na aplicação da metodologia de História Oral. As
entrevistas com moradores da aldeia por diversos motivos ainda não puderam ser
concluídas, o que acontecerá ainda esse ano. Um dos moradores que estavam cotados
para isso faleceu aos 86 anos, um ano após ser removido da Aldeia. Sua família encontra-
se muito abalada com o falecimento.
A esposa, também idosa está muito doente e o filho, o Sr. Ailton Navega,
Presidente da Associação de Moradores, está bastante envolvido com esses problemas
familiares, mas garantiu que vai ceder documentos e as entrevistas em reconhecimento
ao apoio da comunidade acadêmica à questão do Imbuhy.
Com a dispersão dos moradores, devido à sua remoção, aumentam as
dificuldades para concluir essa etapa.
Buscando identificar como a comunidade construiu sua argumentação em defesa
da permanência na área, foi realizada uma pesquisa prévia em periódicos por década via
Hemeroteca Digital, disponibilizada pela Biblioteca Nacional, usando como palavra-
chave o nome da matriarca da comunidade, Flora Simas de Carvalho, conhecida como
Yayá ou Iaiá (codinomes também usados na busca), desde o ano do seu nascimento (1871)
até os dias atuais para averiguar sua participação na proclamação da República do Brasil.
Trata-se em sua maioria de entrevistas concedidas a jornais de grande circulação pela
própria protagonista da área, ou outras figuras representativas da comunidade.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1485
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nas duas primeiras décadas foram encontradas apenas ocorrências irrelevantes


(1910-1919 e 1920-1929).
A partir de 25 de março de 1956, ocasião em que o jornal A Cruz felicitou Dona
Yayá pelo seu 82º aniversário, relembrou-se ter sido por suas mãos bordada a primeira
bandeira brasileira republicana, tendo esse aparecido como o primeiro relato
documentado sobre o fato em jornais.
Temos então um total de 20 ocorrências, estando entre elas 16 ocorrências
relevantes no período compreendido entre 1910 e 2009 que aparecem a partir da década
de 1950.
No último período disponibilizado para consulta na Hemeroteca Digital (2010 a
2017) não constam ocorrências, o que não quer dizer que inexistam reportagens sobre a
área, sempre associada à figura de Dona Yayá, aliás nesse período é possível observar
grande número de publicações, mas foram contempladas aqui apenas as reportagens
encontradas na hemeroteca digital, aquelas disponibilizadas em outras fontes ainda não
foram anexadas ao estudo.

Ocorrências
PERÍODO TOTAL CLASSIFICAÇÃO
1910-1919 1 Irrelevante
1920-1929 3 Irrelevante
1950-1959 3 Relevantes
1960-1969 5 Relevantes
1970-1979 2 Relevantes
1980-1989 1 Relevante
1990-1999 2 Relevantes
2000-2009 3 Relevantes
2010-2017 0
TOTAL 20
Tabela1: Levantamento de ocorrências sobre Dona Yayá na Hemeroteca Digital entre 1871 e 2017.

Identificou-se que o jornal que mais possui ocorrências é o Jornal do Brasil, com
um total de cinco distribuídas da seguinte forma: uma na década de 1960, uma na década
de 1980, uma na década de 1990 e duas entre os anos 2000 e 2009. Algumas dessas
reportagens pode ter relação com a composição da redação do Jornal, pois uma jornalista
da família nele já trabalhou, resta averiguar em qual período.
O Jornal Última Hora e O Fluminense também apresentam um bom número de
reportagens sobre o tema, um total de três cada um, distribuídas da seguinte forma: no
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1486
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

primeiro na década de 1950 temos uma reportagem e na de 1960 há duas, no segundo na


década de 1910 aparece uma ocorrência e na década de 1920 mais uma, ambas
irrelevantes, mas na década de 1990 há uma ocorrência relevante.
Do outro lado da disputa, no campo da defesa, os materiais selecionados para
análise foram os documentos oficiais que definem as áreas de Segurança Nacional –
principal argumento utilizado pela União para a remoção da população –, a Constituição
Federal, a Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa (END).
Esse material está passando por análise que logo será disponibilizada.

Delimitação temporal e Objeto


A disputa que se trata aqui não se refere apenas ao território, mas também se
configura numa disputa de sentido. Quanto à delimitação temporal, ela gerou um conflito
territorial que se acirrou na década de 1990, não que antes já não existisse uma
insegurança e até mesmo uma situação de tensão ocasionada pelo fato de os moradores
não possuírem título de propriedade e estarem abrigados numa área militar.
Conforme abordado em matéria de 20 de novembro de 1959 do jornal Diário da
Noite, na qual a Dona Yayá, foi entrevistada, a situação já era de absoluta insegurança
por se tratar de terrenos situados em zona militar, podendo os que ali viviam a qualquer
momento receber ordem de despejo e terem suas casas derrubadas.
Já na década de 1960 discutia-se a propriedade da área, mas a insegurança e o
medo da remoção sempre existiram. Contudo, de acordo com Motta (2015), nem no
regime militar, em plena Ditadura, o governo ousou remover os moradores da área,
reconhecendo, de acordo com a autora, algum direito relacionado à história de ocupação
do lugar.
Discordamos que isso possa ter se dado por reconhecimento. Acreditamos que
possa ter acontecido devido ao falecimento de Dona Yayá, ocorrido em 1963, década na
qual, não por coincidência, se registra a maior quantidade de matérias sobre essa senhora
e seus feitos.
De acordo com Motta (2015) o histórico dos conflitos que envolve a região não se
constitui em algo recente. Em ofício datado de 26 de novembro de 1964, presente no
processo de Apelação Civil de 1969, a Diretoria do Patrimônio do Exército reconheceu
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1487
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

que a servidão militar ali existente poderia ser “próprio nacional sujeito a aforamento ou
de propriedade particular”.
Outra matéria, publicada em 20 de agosto de 1995 no Jornal do Brasil aponta que
em 1978 os moradores receberam notificações de despejo sob a alegação de que viviam
numa área militar. Na ocasião muitos teriam deixado a aldeia temendo perder móveis e
objetos pessoais. Os que permaneceram teriam continuado a ser incomodados.
Apesar das nossas investidas na questão do território, que pressupõe o conflito,
sem o qual a identidade apoiada em Dona Yayá não teria aflorado, o motivo pelo qual
não recortamos um período temporal maior para essa pesquisa, embora haja relatos de
que os embates entre o Exército e a comunidade pela exploração do local teriam se
intensificado no período militar, a partir da década de 1960, é o fato de nosso objeto não
ser o conflito em si e sim a identidade que, estrategicamente emergiu da memória coletiva
de uma comunidade que estava prestes a deixar de existir, o que veio à tona na década de
1990, quando os moradores ajuizaram ação de interdito proibitório contra a União em
razão de restrições de acesso à área impostas pela administração militar da época.
Obviamente é difícil chegar ao fortalecimento da identidade sem problematizar o conflito,
mesmo não sendo esse nosso objeto.
Portanto nosso marco temporal inicia-se na década de 1990 acompanhando o
marco legal citado acima. Além disso, identificamos em pesquisa prévia em periódicos
que das 16 notícias relevantes sobre a Dona Yayá e a bandeira, distribuídas em seis
décadas, o maior número ocorre na década de seu falecimento e (1960-1969), com cinco
ocorrências e de 1990 até os dias atuais constam outras cinco ocorrências. Teria sido a
partir de então que a comunidade passou a lançar mão da figura de Dona Yayá. Diante
das ameaças de despejo esta senhora, antiga moradora que viveu na área do Imbuhy entre
1886 e o início da década de 1960 passou então a ser mais frequentemente associada à
área e à história oficial como forma de defesa do território, o que, somado à ação judicial
dos moradores, pode apontar que o sentimento de insegurança ficava mais latente a partir
desta década.
Na década de 1990 começa a aparecer o direito de comunidades tradicionais – não
aplicado até então a comunidades pesqueiras – sobre o espaço necessário à manutenção
da sua cultura.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1488
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os moradores assumiram, dentre suas múltiplas identidades, aquelas que faziam


alguma referência ao passado, mas que ainda representava muito para o presente, tais
como as que:
a) Traziam alguma alusão à história oficial, mas ao mesmo tempo, ao que
pela convivência apreenderam do mundo dos militares em relação aos
seus valores: o patriotismo e o respeito aos símbolos nacionais. Temos
aí a exploração da figura de Dona Yayá, moradora que teria bordado a
primeira bandeira do Brasil republicano e cujos descendentes ainda
abrigavam a localidade. Um forte elemento para a permanência na área;

b) Remetiam a uma atividade tradicional, a pesca artesanal, ainda


explorada que poderia permitir que a Aldeia fosse reconhecida como
comunidade tradicional, já que a legislação vem evoluindo com relação
a essa problemática.

Com o fim do Regime Militar, consequentemente é minimizada a influência desse


grupo na vida da sociedade brasileira, porém na comunidade da Aldeia Imbuhy ocorre
justamente o contrário. Por situar-se em área militar, estando, portanto sob o seu domínio,
aumentaram as tensões comunitárias, pois a atenção dos militares passava a estar
concentrada no interior dos quartéis.
Foi nesse contexto de tensão que os moradores da comunidade nativa da Aldeia
Imbuhy aforaram no ano de 1995 a ação de interdito proibitório nº 95.0050453-7. Em
resposta o Exército, representado pela União Federal, requereu, no mesmo processo, a
reintegração de posse junto à Justiça Federal do Rio de Janeiro em 16 de fevereiro do
mesmo ano, exigindo a desocupação da área em litígio, daí nossa consideração pela
década de 1990, quando formalmente inicia-se a disputa territorial, com base legal de um
espaço que sempre foi tanto de uso tradicional quanto da Segurança Nacional.
Contraditoriamente a ação que durou duas décadas, entre idas e vindas na justiça
e terminou com a extinção da Aldeia Imbuhy foi movida pelos próprios pescadores e não
pelo Exército. Aqueles perderam na primeira e na segunda instância. Em decisão de 27
de abril do ano de 2015, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve determinação do
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1489
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Tribunal Regional Federal (TRF) que obrigava os moradores a desocuparem a área. A


remoção dos primeiros moradores iniciou no dia 23 de junho de 2015 e eles teriam até
outubro para deixar a área.
Temos o término de uma dinâmica social e de uma convivência de mais de cem
anos entre dois grupos que apesar de tão diferentes e com interesses completamente
diversos, por compartilharem da mesma área foram absorvendo por meio das experiências
elementos culturais e apreendendo o modo de viver do outro. São realidades que se
encontram. Alguns eram moradores e, talvez influenciados por aquele cotidiano serviram
ao Exército. Há ainda aquelas donas de casa que prestavam algum tipo de serviço
doméstico remunerado, como lavar e passar as roupas dos militares.
De acordo com a história oral, a comunidade nasceu antes da chegada dos
militares e do Forte Imbuhy ser erguido, já na versão do Exército a área teria um uso
anterior à ocupação, voltado para a Defesa Nacional746. A área em questão é administrada
pelos militares do Exército, e este alegou como um dos motivos para o pedido judicial de
reintegração de posse na década de 1990 o fato de a mesma ser considerada como área de
segurança nacional.747
A referida área seria de histórica e estrategicamente importante para a defesa da
entrada da Baía de Guanabara, abrigando, no âmbito militar, o 21.º Grupo de Artilharia
de Campanha e o Centro de Instrução de Operações Especiais do Exército, que construiu
um hotel de trânsito748 para militares e um centro de convenções.
É comum encontrarmos em trabalhos acadêmicos e matérias de jornais críticas
aos dois últimos usos citados749, que não deixam de se prestar a usos sociais, porém estão
voltados para um público específico, os militares, enquanto que a comunidade defendia

746
Conforme consulta ao sítio Forte Imbuhy. (Disponível em
<http://www.dphcex.ensino.eb.br/?page=imbuhy>. Acessado em 01/09/2015).
747
Área definida pela Escola Superior de Guerra, dentro da Doutrina de Segurança Nacional onde as
liberdades individuais, os princípios constitucionais e a legislação civil não têm efeito. São consideradas
áreas de segurança nacional todas aquelas que podem ser alvo de sabotagens e atos terroristas ou localidades
que podem desestabilizar a segurança do Brasil. Alguns exemplos atuais são as áreas de bases militares,
barragens de usinas hidroelétricas, geradoras de energia (termoelétricas e nucleares), fábricas de armas,
explosivos e munições, regiões fronteiriças internacionais, entre outras regiões sensíveis.
748
Os Hotéis de Trânsito têm como finalidade proporcionar hospedagem para os militares em trânsito ou a
passeio.
749

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1490
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

um uso social voltado para a questão da moradia. Outra crítica recorrente dos moradores
que podem ser encontradas nessas publicações é a questão da praia ser privativa, estando
disponível apenas para sócios.
Esses usos voltados para o entretenimento poderiam ser facilmente suspensos a
qualquer tempo em caso de necessidade da defesa do país, enquanto que a realocação da
comunidade seria mais demorada.
De um lado, a defesa do país, a rotina de funcionamento do quartel, o culto aos
símbolos nacionais e as tradições próprias de uma organização militar, que influenciava
o cotidiano da comunidade; de outro, o direito fundamental à moradia, a dinâmica
diferenciada de uma comunidade pesqueira, incluindo as manifestações religiosas e
culturais. É possível colocar os dois lados na balança, já que a sociedade precisa de
ambos?
O que sabemos, enquanto sociedade, governo e academia sobre os conceitos que
envolvem cada um desses lados?

Conclusão
Buscamos neste trabalho pensar a construção da identidade associada à produção
do território. Pretende-se fazê-lo através da memória coletiva para dar voz à comunidade
e via documentação oficial, para não fugir da forma com que trabalham as Forças
Armadas.
Na atualidade vem crescendo o número de minorias que querem ser representadas.
O direito de reconhecimento das comunidades tradicionais também aparece na
Constituição de 1988. É garantido aos povos e comunidades tradicionais o direito a seus
territórios. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais, instituída pelo decreto 6.040, de 7 de Fevereiro de 2007,
permite a autodeclaração grupos culturalmente diferenciados, os Povos e Comunidades
Tradicionais, porém não são mencionadas especificamente nesta categoria as
comunidades pesqueiras.
A partir dessa legislação os moradores da Aldeia Imbuhy conseguiram o seu
reconhecimento como Comunidade tradicional pela Prefeitura de Niterói.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1491
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A Lei Municipal nº 3.140, de 20 de maio de 2015 dispõe sobre o Tombamento do


conjunto arquitetônico, paisagístico, histórico e etnográfico da Aldeia Imbuhy, com base
nas manifestações favoráveis da Secretaria Municipal de Cultura e no apoio da
Universidade Federal Fluminense (UFF), na figura da Professora Dr.ª Márcia Motta,
reconhecendo os moradores da Aldeia como comunidade tradicional.
No entanto, esse tipo de medida de preservação do patrimônio cultural e histórico
não interfere diretamente no direito de propriedade, que no caso do Imbuhy, continuava
a pertencer à União, o que com a remoção das famílias, resultou na demolição das
habitações tombadas, sem reversão em qualquer tipo de indenização por parte da União
às famílias, já que pela Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946 não há possibilidade de
indenização sobre reintegração de terras da União. A mesma lei também estabelece que
os bens imóveis da União não estão sujeitos a Usucapião. Aos moradores foi oferecido
apenas o aluguel social, através da Prefeitura de Niterói no bairro de Itaipu, mas eles ainda
estão na justiça tentando indenização referente às construções, ou seja, a disputa ainda
não acabou. Trata-se de uma briga entre o Estado e a sociedade.

Bibliografia

● Legislação Municipal, Estadual e Federal:

NITERÓI. Lei Municipal nº 3.140/2015 de 20 de maio de 2015. Dispõe sobre o


Tombamento do conjunto arquitetônico, paisagístico, histórico e etnográfico da Aldeia
Imbuhy.

RIO DE JANEIRO (Estado). ALERJ. Projeto de resolução Nº 81/2015. Concede o título


de Benemérita do Estado do Rio de Janeiro “Post Mortem”à bordadeira da Primeira
Bandeira da República, Sr.ª Flora Simas de Carvalho, Dona Yayá. Rio de Janeiro, 2015.

BRASIL. Constituição Federal de 7 de fevereiro de 2007. Regulamenta a proteção dos


direitos e dos conhecimentos e saberes das populações tradicionais ou locais.

_______. Decreto nº. 6.040 de 7 de fevereiro de 2007. Regulamenta a proteção dos


direitos e dos conhecimentos e saberes das populações tradicionais ou locais.

● Periódicos

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1492
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BIBLIOTECA NACIONAL (HEMEROTECA DIGITAL): Jornais O Fluminense, A


Tribuna, JB, etc.

● Livros
ALBERTI, Verena. Manual de história oral.3 ed. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2005.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a BenedetoVechi/ ZygmuntBauman;


tradução, Carlos Alberto Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005

__________________.Comunidade: a busca de segurança no mundo atual. – Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2003

COIMBRA, Raimundo Olavo. A Bandeira do Brasil. IBGE. 1972.

FERRANINI, Sebastião. Armas, Brasões e Símbolos Nacionais. Curitiba, Paraná, Ed.


Instituto de Ensino Camões, 1979.

FERREIRA, Jamylle de Almeida. Controle do território, identidade e existência: a


histórica relação de poder sobre a Colônia de Pescadores Almirante Gomes Pereira-
Ilha do Governador- RJ. Rio de Janeiro/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ- FFP)/ Programa de Pós- Graduação em História Social, 2013.

FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). História Oral e Multidisciplinaridade. Rio de


Janeiro: Diadorim/FINEP, 1994.

____________________. História Oral: velhas questões, novos desafios. In.


CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. (Orgs). Novos Domínios da História.
Rio de Janeiro: Elsevier, p. 169-186, 2012.

____________________. Entre-vistas: abordagens e usos da história oral. Rio de


Janeiro:Editora da FGV, 1994.

____________________. & AMADO, Janaina. Usos & abusos da História Oral. 8 ed.
Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2006.

MOTTA, M. 2017. Antiguidade é posto: a Aldeia de Imbuí, conflitos e memórias


(séculos XIX e XXI). Unisinus . Vol. 21 Nº 1. p. 1-12 - janeiro/abril de 2017.

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

__________________.Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio de Janeiro,


APDOC, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1493
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

RESENDE, Alberto Toledo. O papel do Estado no controle territorial e sua relação com
a estruturação da atividade pesqueira brasileira na Primeira República.Rio de Janeiro/
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ- FFP)/ Programa de Pós- Graduação
em História Social, 2011.

VILLAR, Frederico. A Missão do Cruzador “José Bonifácio”: Os Pescadores na Defesa


Nacional. A Nacionalização da Pesca e Organização de seus serviços (1919-1923).
Subsídios para a História Militar do Brasil. Rio de Janeiro, Gráfica Laemmert Limitada,
1945.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1494
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Dos números aos nomes: as testemunhas recorrentes nos casamentos escravos e


forros da Freguesia da Candelária (c.1750 c. 1850)

JANAINA CHRISTINA PERRAYON LOPES


PPGH/UniRio - Bolsista CAPES

Os registros de matrimônio são fontes ricas em informações referentes a parentela


dos noivos e, nos casos de nubentes escravos ou forros, fornecem, não raras vezes, os
nomes de seus senhores ou ex-senhores. No entanto, outro dado presente de forma
reiterada em tais assentos é o nome das testemunhas da cerimônia, tendo em vista que a
assinatura das mesmas era uma exigência eclesial para que o rito fosse considerado
válido. As atas de casamento, portanto, nos deixam vestígios valiosos não só dos vínculos
parentais, mas, sobretudo, dos laços sociais estabelecidos e reforçados pelos nubentes na
ocasião do enlace.
Desse modo, a partir da análise dessa variável presente nos registros de
matrimônio de escravos e forros da Freguesia da Candelária entre a segunda metade do
século XVIII e primeira metade do século XIX, percebemos que alguns nomes
apareceram repetidamente em vários registros assumindo esse mesmo papel. Sendo
assim, o presente trabalho começa analisando o volume de testemunhas envolvidas em
tais casamentos, mas, na sequencia, procura rastrear os vestígios deixados por estes
personagens a partir do nome daquelas mais recorrentes. A intenção aqui é começar a
desvendar possíveis redes de relações sociais em que por ventura estivessem inseridos,
bem como perceber o papel que tais testemunhas desempenhavam no processo de
socialização dos noivos escravos e forros na Freguesia da Candelária.
Ao analisarmos o número de testemunhas envolvidas nos casamentos, conforme
o Gráfico 1, percebemos que na Candelária, os registros em geral continham no máximo
três assinaturas de testemunhas para cada assento. No entanto, a maior parte dos
casamentos teve a presença de até duas testemunhas o que, aliás, é o número previsto
pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Só nesta faixa encontramos 97%
dos casamentos no primeiro período e 87% no segundo.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1495
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Gráfico 1 – Casamentos (%) por faixas de testemunhas Freguesia da Candelária


(1750 a 1782 e 1809 a 1839)

Fonte: ACMRJ - Registros de Matrimônio Freguesia de Nossa Senhora da Candelária. Livros 6, 7 e 9 (1750-
1782 e 1809-1839).

Por outro lado, cabe destacar aqui que embora a presença de testemunhas na
cerimônia e sua assinatura nas atas também fosse uma exigência canônica, 1% dos
registros no primeiro período e 5% no segundo não contou com ninguém cumprindo tal
papel. Aliás, segundo as Constituições Primeiras no Título LXXIII do Livro I, havia a
previsão de pagamento de multa ao pároco que não cumprisse devidamente as normas
referentes aos assentos de matrimônio e o casamento poderia ser inclusive cancelado
diante da ausência delas. Desse modo, uma pergunta vem a tona: se a presença da
testemunha é importante, quem são estes que se casam sem elas? Estes noivos seriam
aqueles que não conseguiram inserir-se em qualquer tipo de relação e não puderam contar
sequer com uma testemunha na ocasião de seus enlaces? Pois bem, destacando apenas os
registros em que as testemunhas estiveram ausentes, temos um total de 21 assentos.
Nestes, temos a maioria, 16 casamentos, envolvendo nubentes escravos e forros. Porém,
os cinco restantes, são matrimônios entre um livre com outro nubente cuja condição

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1496
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

jurídica não foi informada. Poderíamos então pensar na possibilidade de serem livres
pobres e, por algum motivo, tão desarraigados socialmente quanto os demais. No entanto,
nos casos onde a documentação forneceu informações mais completas, verificamos tratar-
se de portugueses casados com mulheres com o título de “dona” e cujas profissões são
doutor, sargento mor de artilharia e alferes. Desse modo, a hipótese de desarraigo social
do casal como explicação para a ausência de testemunhas nos casamentos parece não se
confirmar, pois foram encontrados noivos com certo prestígio social.
Outra explicação possível recai sobre a provável falta de acuidade do padre
responsável pelo assento do sacramento posteriormente a cerimônia. Com frequência, a
tarefa de registrar os matrimônios realizados em um determinado período não recaia sobre
o pároco celebrante do casamento, mas para um coadjutor ou vigário da paróquia. Sendo
assim, é interessante perceber que dos 23 casamentos sem testemunha, 11 fornecem a
informação de quem os registrou, e neles o assento foi feito por um coadjutor ou vigário
distinto daquele responsável pela celebração. Além disso, o local da cerimônia de 6 desses
casamentos não foi a matriz da Candelária o que pode ter gerado perda de informação na
ocasião da transcrição do assento. Bem, fato é que não há nenhuma observação quanto a
nulidade do matrimônio em função da ausência de testemunhas. Deste modo, fica latente
a influência da acuidade do vigário na ocasião do assentamento dos dados e a completude
dos registros. Além disso, a dificuldade encontrada pela Igreja Católica, especialmente
na América portuguesa, de implementar as normas tridentinas pode ter perdurado até o
limiar do século XIX e gerado tais discrepâncias.
A partir da observação focada nos nomes desses personagens percebemos que
alguns deles estiveram presentes em vários registros. Desse modo, foi possível
contabilizar o número de vezes em que cumpriram o papel de testemunha e dispô-las de
forma decrescente em uma lista que se inicia com a testemunha mais recorrente. Além
disso, conforme a informação presente no registro quanto a natureza coletiva ou não das
cerimônias, também foi possível distinguir para cada uma das testemunhas o número de
participações em cerimônias simples, onde apenas um casal e suas respectivas
testemunhas comparecem a igreja, ou cerimônias coletivas, onde mais de um casal
recebeu o sacramento compartilhando a (as) testemunha (as). A Tabela 1 nos mostra o

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1497
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

número de casamentos envolvendo as testemunhas mais frequentes na Freguesia da


Candelária nos períodos de 1750 a 1782 e 1809 a 1839.

Tabela 1 – Número de casamentos envolvendo as testemunhas mais frequentes -


Freguesia da Candelária (1750 a 1782 e 1809 a 1839)

Período Nome da testemunha Coletivo Simples Total geral

Antonio Pereira da Costa 7 17 24


Antonio de Mello 0 17 17
Manoel Cardozo de
0 11 11
Almeida
Joze Joaquim Rodrigues
0 11 11
Barradas
1750- Alexandre Fidele de Araujo 0 10 10
1782
Manoel Luis França 0 7 7
Felippe Lopes dos Santos 0 7 7
Joze Pereira Maciel 0 6 6
Ignacio de Oliveira Maciel 0 6 6
Antonio Martins da Silva 0 5 5
Ignacio Gonçalves do
0 5 5
Monte
Antonio Luiz de Andrade 0 20 20
1809- Mathias Goncalves Ferreira 0 14 14
1839 Joaquim Jose Soares 0 8 8
Ignacio Manoel da Silva 2 5 7
Fonte: ACMRJ - Registros de Matrimônio Freguesia de Nossa Senhora da Candelária. Livros 6, 7 e 9 (1750-
1782 e 1809-1839).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1498
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Conforme vemos, em ambos os períodos houve personagens que repetidas vezes


foram chamados a participar de cerimônias de casamento como testemunha. Porém, logo
de início, salta aos olhos o fato de que no primeiro período o número de pessoas que se
encaixam no critério adotado é mais que o dobro da quantidade do período seguinte.
Alguns personagens se destacaram bastante dos demais quanto ao número de vezes em
que foi chamado, pois vemos personagens assumindo essa tarefa de 10 a 20 vezes. Um
caminho para o entendimento dessas diferenças no volume de testemunhas que se repetem
em um período e outro e a explicação para o fato de se repetirem, sem dúvida, passa pela
elucidação de quem foram esses personagens. Um passo nessa direção já pode ser dado
em função das informações contidas no próprio registro de matrimônio, pois, além das
assinaturas das testemunhas ao final do assento, por vezes, os registros de casamento
trazem também alguns outros dados sobre elas. No primeiro período, constatamos que as
testemunhas Antônio de Mello, Alexandre Fidele de Araújo, Jozé Pereira Maciel eram
padres, e Antônio Pereira da Costa, sacristão. Aparentemente, a interpretação vigente na
historiografia parece estar correta: as testemunhas repetidas nestes assentos eram, na
verdade, meros funcionários eclesiásticos e, pelo fato de estarem mais facilmente
disponíveis na ocasião da cerimônia, foram chamados impessoalmente para cumprir tal
papel.
No entanto, temos de levar em consideração que neste mesmo período, outros seis
personagens não foram identificados como membro da hierarquia da Igreja. Um deles,
Pedro Martins Duarte, foi designado como Capitão nos registros. Além disso, no segundo
período, nenhuma das quatro testemunhas foi identificada nos assentos como padre,
vigário, sacristão, ou algo parecido. Portanto todos, ao menos em princípio, eram leigos
e foram chamados reiteradas vezes a assumir a condição de testemunha. Desse modo, ser
funcionário ou membro da hierarquia da Igreja não parece ter sido a condição para ser
convocado a testemunhar casamentos repetidas vezes.
O número significativo de sacerdotes entre as testemunhas que se repetem no
primeiro período, e a ausência de personagens com tal designação no segundo, pode ter
alguma relação com o impacto das políticas pombalinas levadas a cabo a partir da segunda
metade do século XVIII na América portuguesa. A expulsão dos jesuítas foi o ponto
culminante, e bastante simbólico, de um projeto político que tinha como objetivo a
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1499
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

submissão da Igreja ao Estado e a diminuição cada vez mais acentuada do peso do clero
regular na sociedade portuguesa (SOUZA, 2015). Como consequência de tal conjuntura,
o clero secular acabou por ocupar um papel de maior proeminência no meio eclesiástico,
o que os tornou mais atuantes e presentes na vida dos fiéis. Desse modo, diferente do
segundo período que vai de 1809 a 1839, no primeiro período compreendido entre 1750
e 1782 a presença marcante de padres compondo o conjunto de testemunhas recorrentes
talvez seja consequência desse maior domínio do clero secular no cotidiano paroquial.
Enfim, a desconfiança de que as testemunhas de casamento cumpriam um papel
social que ia muito além de uma mera formalidade burocrática, fez transbordar uma série
de nomes que precisam ser investigados para que as questões suscitadas até aqui possam,
ao menos em parte, ser elucidadas com maior nitidez. Desse modo, será inevitável seguir
o rastro das recentes pesquisas em História social e operar, na medida do possível, a
reconstrução das trajetórias de vida de alguns desses personagens, tanto testemunhas
como nubentes, o que, definitivamente, só serão possíveis de se realizar a partir do
cruzamento com o maior número de fontes possível acerca desses personagens.

As testemunhas e seus rastros: os casos de Antônio Luiz de Andrade, Mathias


Gonçalves Ferreira e Cesário José da Silva

A repetição de alguns personagens assumindo a função de testemunha de


casamento, sobretudo entre nubentes africanos, na Freguesia da Candelária nos coloca o
desafio de investigar sobre quem foram essas pessoas a fim de entender o papel social
que cumpriam em relação a tais noivos. Como vimos, Antônio Luiz de Andrade e Mathias
Gonçalves Ferreira se destacaram entre os casamentos de escravos e forros realizados na
Freguesia da Candelária no início do século XIX pelo fato de terem sido recorrentemente
chamados a cumprir tal papel. Desse modo, tornou-se imperativa a necessidade de buscar
novos dados acerca desses personagens em fontes de natureza diversa de modo a nos
permitir conhece-los melhor. Para tanto, mantemos como referência seus nomes e
iniciamos o cruzamento das informações contidas nos registros de casamento com outras
fontes eclesiásticas e cartorárias referentes a eles.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1500
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Logo de início, a reincidência de tais personagens como testemunha parece dar


pistas de que poderiam ser funcionários eclesiásticos ou até mesmo sacerdotes. No
entanto, a busca dos nomes desses personagens no Almanaque da Corte do Rio de Janeiro
confirma a hipótese de que esses personagens não eram nem uma coisa nem outra (IHGB,
1810). Nesses pequenos livros editados em vários números da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, encontramos a lista de funcionários da corte, inclusive
os eclesiásticos, nos anos de 1811, 1816, 1817, 1824 e 1825. Neles não foi encontrado
nenhum Pároco, vigário de coro, capelão, sacristão, confessor, mestre ou ajudante de
cerimônias com o nome das ditas testemunhas.
Porém, para nossa surpresa, descobrimos dos anos de 1824 a 1825 no item
intitulado “Pessoas empregadas - Criados Particulares – Porteiros da Câmara de cavallo
do número”, o nome de um Cesário José da Silva. Esse nome, embora não tenha sido
mencionado até agora e não figure entre os personagens “notáveis” que hora
investigamos, também foi uma testemunha presente entre alguns casamentos da
Candelária.
Ao lado de seu nome havia a inscrição “Rua do Sabão”. Segundo Noronha Santos
(SANTOS, 1965:108), e Morales de los Rios (FILHO, 2000: 204), a referida rua, hoje
desaparecida por conta da abertura da Avenida Presidente Vargas, abrigou o primeiro
edifício do Paço Municipal de 1817 a 1873. E não é de se espantar que ficasse localizada
uma parte na Freguesia de Santana, e outra na Freguesia da Candelária.
A profissão de Cesário indicada no Almanaque da Corte nos revela que ele
ocupava um dos cargos do Passo Imperial subordinado a Casa Real, lugar onde segundo
Giovana Castro, eram estabelecidas muitas das relações de serviço prestadas diretamente
ao monarca (CASTRO, 2014). O Registro Geral de Mercê, disponível no Arquivo Digital
da Torre do Tombo, nos revela que tal ofício estava subordinado a Mordomia Mor e só
era concedido por meio de mercê. Nesse corpus documental encontramos inúmeros
Alvarás requerendo mercê para tal serviço e em um deles encontramos o seguinte
conteúdo: “Alvará de mercê do ofício de porteiro da Câmara de Cavalo do número com
500 réis de moradia por mês e 3 quartas de cevada por dia, concedido a Gaspar Ribeiro
Cirne.” (ANTT, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. Pedro II, liv. 1: p. 91v)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1501
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Em uma perspectiva de investigação cada vez mais qualitativa, a busca por


informações acerca desses personagens continuou em direção, sobretudo, a duas fontes
específicas: os processos ou “Banhos” de casamento, e os Inventários Post Mortem
(FURTADO, 2009). Michel Bertrand denomina os testamentos como fontes preciosas
para a reconstituição de estratégias relacionais e familiares quando cruzados com cartas
de dotes, registros de óbito e contratos matrimoniais (BERTRAND, 1999: 127).
Antônio Luiz de Andrade, pois foi o mais requisitado: compareceu a igreja quinze
vezes nessa condição, ao longo de dezoito anos: aparece pela primeira vez em 1816 e pela
última vez em 1834. E foi por Antônio que iniciamos nossas buscas por mais informações.
Em princípio, a respeito dele, encontramos seu Inventário Post-Mortem, sua Habilitação
Matrimonial, seu registro de casamento e de óbito. Documentos preciosos que nos
ajudaram a iniciar o processo de descobertas acerca desses indivíduos. A documentação
matrimonial que encontramos diz respeito ao segundo casamento de Antônio, viúvo de
Dona Eufrázia Zeferina de Queirós com quem teve duas filhas, e revelam que ele casou-
se novamente em 1827, com Dona Salvianna Carolina Alves de Andrade, com quem teve
mais dois filhos. Sabemos também, a partir delas, que Antônio era filho natural de pais
incógnitos já falecidos na ocasião, que era natural do Rio de Janeiro e havia sido batizado
na Freguesia da Sé (AN, Inventário Post-Mortem de Antônio Luiz de Andrade, Juízo de
Órfãos Ausentes, cx.912, n° 3857, Gal. A).
O Inventário de Antônio foi fundamental na pesquisa na medida em que o
testamento contido nele nos revelou também a presença de Cesário José da Silva. Nele
descobrimos que Cesário foi testamenteiro de Antônio, era padrinho de suas duas
primeiras filhas, havia dado a ela uma escrava de presente e, além disso, ficou incumbido
da função de tutor dos outros dois filhos mais novos. Com essas informações, além de
nos certificarmos que não se tratava da documentação de um homônimo do Antônio que
procurávamos, fica evidente a proximidade e o laço afetivo entre esses dois personagens.
Aliás, o testamento nos revela também que tal proximidade era também espacial. Ao final
do testamento o tabelião registra a passagem pela casa de Antônio, a fim de atestar a
sanidade do testador e, assim, registra seu endereço: Rua do Sabão, local onde trabalhava
Cesário José.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1502
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No registro de óbito de Antônio, datado de 1837, consta que morreu na Freguesia


da Candelária e foi “amortalhado em hábito preto” e sua alma foi encomendada e
sepultada por quinze sacerdotes juntamente com á Irmandade da Candelária e de Nossa
Senhora Mãe dos Homens (ACMRJ, Livro de Óbitos – N. S. da Candelária, n°15, 1809-
1838). Essas informações sobre Antônio Luiz nos dão conta de alguma distinção social,
sobretudo porque a Irmandade da Candelária é reconhecidamente frequentada por
comerciantes. Tamanha distinção na ocasião de sua morte e a presença da Irmandade em
seu sepultamento foi o ensejo para iniciarmos novas buscas sobre Antônio na
documentação da Irmandade da Candelária.
Os Registros das Atas da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Candelária,
depositadas na sede da irmandade em atividade até hoje, nos revela, a partir de 1818, que
Antônio Luiz de Andrade era o Andador da Irmandade (IRMANDADE DA CANDELÁRIA
- Arquivo Francisco Batista Marques Pinheiro da Irmandade da Candelária. Registro das
Atas da Mesa Administrativa da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Freguesia de
Nossa Senhora da Candelária, 1775/junho 03 – 1834/outubro 28). Antes que possamos
duvidar do prestígio de tal função, os requisitos e obrigações detalhadamente descritos no
Compromisso da mesma Irmandade apontam para um evidente destaque das atividades
do Andador.
Ao andador cabia uma variedade de funções. Na esfera religiosa era ele que ia
adiante do ostensório nas ocasiões de procissão ou em qualquer outra atividade da
irmandade e, nos enterros, era responsável por levar a cruz da Irmandade. Ao mesmo
tempo, no âmbito público e secular, era responsável pela cobrança de aluguel das casas
pertencentes a Irmandade e deveria estar disponível para as atividades que o provedor lhe
solicitasse executar. Tudo isso, aliás, mediante um pagamento de estipulado e lavrado no
próprio compromisso da Irmandade.
Vale lembrar que a Irmandade da Candelária era dona, e ainda é, de vários imóveis
em diversos pontos da cidade. Desse modo, não é difícil supor que Antônio gozava de
considerável prestígio entre seus pares e vizinhos não só por ser um funcionário da
Irmandade, mas também pela imensa capilaridade social que suas funções extra
irmandade lhe davam. Ele provavelmente era um dos rostos mais públicos da Irmandade
frente tanto à Freguesia como à cidade. Aliás, a distinção dispensada à Antônio na ocasião
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1503
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de seu sepultamento dão conta disso e talvez o fato de ter sido convidado tantas vezes
seguidas a testemunhar casamentos também.
As Atas da Irmandade ainda revelaram que, a partir de 1826, Mathias Gonçalves
Ferreira, uma das três testemunhas que buscamos rastrear, foi admitido pela Irmandade,
também como Andador. Antônio fez essa solicitação alegando excesso de trabalho, do
que foi prontamente atendido pela Mesa. É interessante que, imediatamente após a
admissão de Mathias, nas atas subsequentes, Antônio começa a ser referido como
primeiro Andador e Mathias, segundo. A partir da contratação de Mathias uma hierarquia,
antes inexistente passa a vigorar, refletida, inclusive na diferença de ordenado.
Seguindo a busca por Inventários, o de Cesário José também foi encontrado e
revela que, na ocasião de sua morte, deixou Miquelina Maria de Jesus como viúva e
inventariante, e três filhos maiores de idade (AN, Inventário Post-Mortem de Cezário José
da Silva, Vara Cível do Rio de Janeiro, 1 – N° 8147, Maço: 422, Ano 1845). Os bens que
deixa são relativamente fartos: além de mobília louças e roupas, deixou quatro escravos,
duas casas e nenhuma dívida. Nesse sentido seu Inventário confirma o relativo prestígio
de sua profissão.
Contudo o Inventário de Cesário revela um pouco mais. Encontramos nessa
documentação um caderno avulso onde consta o endereço dos imóveis deixados por
Cesário e neles encontramos as seguintes referências: uma casa térrea na Rua do Príncipe,
número 37 e uma casa de dois sobrados na Rua do Sabão, número 19. Já sabemos que
esta era a Rua onde morava Antônio Luiz de Andrade. No entanto, de posse das “Guias
de pagamento da Décima adicional e décima urbana”, referentes aos imóveis da
Irmandade da Candelária e depositados em sua sede, encontramos a guia referente a casa
número 19 deixada por Cesário em seu Inventário. Portanto, Cesário José da Silva muito
provavelmente, morava em uma casa cujo imposto da décima era devido à Irmandade
onde Antônio Luiz e Mathias Gonçalves trabalhavam.
Enfim, não restam dúvidas de que Antônio Luiz de Andrade, Cesário José da Silva
e Mathias Gonçalves Ferreira se conheciam. Isso ficou demonstrado não apenas pelo fato
de terem formado pares de testemunha em vários casamentos ou morarem próximos. Mas,
sobretudo, por que constatamos que Cesário José da Silva foi compadre, testamenteiro e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1504
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

tutor de uma das filhas de Antônio Luiz de Andrade e este, por sua vez, foi quem indicou
Mathias Gonçalves Ferreira como seu companheiro de trabalho.
Aliás, seja pelos bens deixados por Cesário na ocasião de sua morte, seja pela
pompa com que Antônio Luiz de Andrade foi sepultado, ou ainda pelo cargo exercido por
cada um deles, podemos inferir que esses personagens ocupavam, de fato, uma posição
social relativamente prestigiosa na ocasião em que foram convocados como testemunhas
de casamento. Desse modo, tendo em vista que os noivos que buscaram essas ditas
testemunhas eram majoritariamente africanos e escravos, talvez estejamos diante de
escolhas norteadas pela busca de inserção social que indivíduos com estatuto jurídico e
status social superior podiam oferecer. Não por acaso, Jean Baptiste Debret ao tecer
comentários a respeito da sua obra chamada Casamento de escravos de uma casa rica,
fala sobre o costume que estes tinham de escolher para padrinho alguém de “categoria
superior” (DEBRET, 1972: 174).
É importante lembrar que o africano era obviamente um estrangeiro em solos
coloniais. Independentemente de ser escravo ou forro, até podia optar por resistir ao
aprendizado de uma nova língua e dos costumes correntes, restringindo-se ao convívio de
conterrâneos africanos. Mas, ainda assim, teria a necessidade de criar mecanismos de
interação e arraigo, recriar identidades, forjar laços e solidariedades. O crioulo, indivíduo
que por definição havia nascido aqui, dependendo do tempo em que seus antepassados
aqui estivessem, poderia conhecer irmãos, tios e até avós. Os laços parentais e as redes
em que escravos e forros crioulos poderiam estar inseridos, portanto, eram
potencialmente maiores que a dos africanos. Desse modo, a escolha dessas testemunhas,
somente entre africanos, talvez indique a necessidade que esses noivos tinham de criar
vínculos e solidariedades e, sobretudo, que percebiam o quanto a escolha de determinadas
pessoas poderia ser uma forma privilegiada para inserção numa rede social que, até então,
ainda não lhes estava disponível.
Tudo indica que quanto mais tempo o casal tivesse de arraigo, mais ele poderia
prescindir da inserção trazida por uma testemunha de casamento comum a outros casais.
Logo, os crioulos eram os que poderiam se dar ao privilégio de ter uma “testemunha
personalizada”, que somente ele possuía. Os africanos que assumiram semelhante
comportamento eram os que estavam, do ponto de vista dos arraigo socio-cultural, mais
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1505
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

próximos dos crioulos e, provavelmente já haviam encontrado outras formas de


socialização e, quem sabe, se integrado a outros conterrâneos em algum tipo de irmandade
ou a partir de laços de compadrio, por exemplo. No entanto, esse parece não ser o caso
dos noivos africanos presentes na rede formada por essas testemunhas. Esses homens e
mulheres talvez estivessem diante da primeira oportunidade de conseguir, por meio do
casamento, mais um “parente” além do cônjuge. A testemunha, portanto, poderia ser uma
terceira pessoa potencialmente capaz de lançá-los para o interior de uma malha muito
maior que a formada por um casal com pouco ou nenhum parente, exercendo uma função
agregadora e de socialização.
Enfim, a recorrência da assinatura de alguns nomes nos registros de matrimônio
desses escravos e forros na condição de testemunha pode significar que estas pessoas não
foram pinçadas aleatoriamente pelos casais para cumprir uma mera formalidade, mas,
foram escolhias cuidadosamente e compareceram à cerimônia assumindo uma função
social e até afetiva em relação aos noivos. Fica claro que as testemunhas nesses casos
cumpriam um papel que ia além da mera validação burocrática da cerimônia.
Seguiremos adiante na tentativa de descortinar ao menos fragmentos dessas redes
de relação que vinculam esses noivos entre si e estes, por sua vez, a novos círculos,
apostando que o ponto de conexão talvez seja esses sujeitos que cumpriram o papel de
testemunha reiteradas vezes. De agora em diante os registros de matrimônio deixaram de
ser o eixo documental e se tornarão apenas o ponto de partida da investigação acerca dos
laços que unem essas pessoas e das estratégias de mobilidade desses homens e mulheres.

Fontes

1. Primárias manuscritas
1.1. ACMRJ – Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro
1.1.1. Livro de Casamentos – Freguesia da Candelária, N° 9, 1809-1837.
1.1.2. Livro de Óbitos – N. S. da Candelária, n°15, 1809-1838.
1.1.3. Habilitação Matrimonial - Antônio Luiz de Andrade, cx. 2895, n°68376.
1.2. AN - Arquivo Nacional
1.2.1. Inventário Post-Mortem
a) Antônio Luiz de Andrade, Juízo de Órfãos Ausentes, cx.912, n° 3857,
Gal. A.
b) Cezário José da Silva, Vara Cível do Rio de Janeiro, 1 – N° 8147, Maço:
422, Ano 1845.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1506
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

1.3. Irmandade da Candelária - Arquivo Francisco Batista Marques Pinheiro da


Irmandade da Candelária
1.3.1. Compromissos da Irmandade do Santíssimo Sacramento (1756-1757).
1.3.2. Registro das Atas da Mesa Administrativa da Irmandade do Santíssimo
Sacramento da Freguesia de Nossa Senhora da Candelária (1775/junho 03 –
1834/outubro 28).
1.3.3. Registros de pagamento da décima adicional das corporações de mão morta
e da décima urbana dos prédios da Rua do Sabão (1835-1873), cx. 10 – pac. 99.

2. Primárias Impressas
2.1. ANTT - Registo Geral de Mercês, Portugal, Torre do Tombo, Mercês de D. Pedro
II, liv. 1, f. 91v.
2.2. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia do anno de 1707. Introdução e
revisão cônego prebendado Idelfonso Xavier Ferreira. São Paulo: Typ. 2 de
dezembro, 1853.
2.3. DEBRET, Jean B. Viagem Histórica e pitoresca ao Brasil. São Paulo: Martins
Fontes/EDUSP, 1972.
2.4. IHGB - Almanaque da Corte do Rio de Janeiro para o Ano de 1824 a 1825. In:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Impressão
Régia, 1810.

Bibliografia

BERTRAND, Michel. “De la família a la red de sociabilidade”. In: Revista Mexicana de


Sociologia. México: vol.61, núm. 2 abril-junio, 1999.

CASTRO, Giovanna Milanez de. “Servir em vida, ritualizar a morte: a Casa Real
Portuguesa e as exéquias da Rainha D. Maria I no Rio de Janeiro do período
Joanino”. In: Anais do XVI Encontro Regional de História da Anpuh-Rio:
Saberes e práticas científicas. 2014 - ISBN 978-85-65957-03-8

FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

FILHO, Adolfo Morales de Los Rios. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro: Editora
Univercidade, 2000.

FURTADO, Junia Ferreira. “Testamentos e inventários: a morte como testemunho da


vida”. In: PINSKY, Carla. O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto,
2009.

LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, Ed.


Vozes, 6ª edição, Coleção Antropologia, 2010.

LOPES, Janaína Christina Perrayon. Casamentos de escravos nas freguesias da


Candelária, São Francisco Xavier e Jacarepaguá: contribuições aos padrões de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1507
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sociabilidade matrimonial no Rio de Janeiro (c.1800-c. 1850). Rio de Janeiro:


UFRJ – Programa de Pós-Graduação em História Social, 2006. Dissertação de
Mestrado.

NADALIN, Sergio Odilon. História e demografia: elementos para um diálogo.


Campinas: Associação brasileira de Estudos Populacionais – ABEP, 2004.

SANTOS, Noronha. As freguesias do Rio Antigo. Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro, 1965.

SOUZA, Everton Sales. “Igreja e Estado no período pombalino”. In: FALCON,


Francisco, RODRIGUES, Claudia. (orgs.) A ‘Época pombalina’ no mundo luso-
brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.

ZONABEND, Françoise. Da família: olhar etnológico sobre o parentesco e a família. In:


BURGUIÉRE, André (et.al). História da Família: mundos longínquos, mundos
antigos. Rio de Janeiro: Ed. Terramar: 1998.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1508
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A institucionalização da loucura no fim do século XIX e início do XX: o contexto


da assistência ao alienado na concepção da colônia agrícola na cidade do Rio de
Janeiro

JEANINE RIBEIRO CLAPER


Programa de Pós-Graduação de História da Ciência e da Saúde
Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ

INTRODUÇÃO
A loucura como uma marca na civilização que não pode ser apagada e é analisada
por Andrew Scull no cerne da civilização, nas discussões de artistas, escritores, cientistas
e médicos, e levando o autor a questionar se a “loucura é a negação da civilização”. Scull
responde ao questionamento afirmando que a relação loucura-civilização se revela um
paradoxo, ora, oposto e à margem do que é civilizado, ora, no cerne do que é civilizado
como marca de interesse e de mistério nas mais diversas manifestações artísticas e
científica (Scull, 2015, p.10).
As causas e consequências da loucura como a perda da razão dentro do senso
comum, para Andrew Scull, fazem parte da nossa experiência humana através dos séculos
em todas as culturas. “A loucura desafia nosso senso de limites e o que é ser humano”
(Scull, 2015, p.10). Desse modo, a loucura atravessa os tempos e os modos culturais
porque é inerente à existência humana.
A aplicação do termo loucura, para Scull, tem sentido e significado “na mais
profunda forma de sofrimento humano – tristeza, isolamento, alienação, miséria e morte
da razão e da consciência” (Scull, 2015, p.11). O que reforça o caráter subjetivo da
loucura, percebida de dentro para fora, desenquadrada, desajustada dos padrões sociais e
culturais.
Numa outra perspectiva Rafael Huertas refere-se à história da psiquiatria e da
loucura como uma ferramenta epistemológica que possibilita compreender “o caráter
histórico cultural dos transtornos mentais” (Huertas, 2016, p.28). Huertas propõe uma
história que pretende uma outra visão da psiquiatria que não privilegie a visão da
medicina e do médico, precisa de mudanças epistemológicas sobre a compreensão do
transtorno mental e sobre o protagonismo do paciente na gestão da loucura. O
protagonismo na história imputado ao paciente é caracterizado pelo autor como uma

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1509
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

dimensão epistemológica de uma “otra história para otra psiquiatria” (Huertas, 2016,
p.24)
Com a loucura como ferramenta epistemológica para entender a doença mental na
perspectiva de dar protagonismo à loucura e ao processo de institucionalização dela,
abordo duas perspectivas neste trabalho que é parte do desenvolvimento da pesquisa de
doutorado iniciada em 2016. A primeira é constatar o pressuposto científico e a
consequente terapêutica institucional da loucura onde a colônia agrícola foi parte do
tratamento acolhendo o louco e afastando-o das pressões urbanas e inserindo-o na
paisagem rural como ambiente e ‘locus’ terapêutico. A segunda, apresentar os dados e
informações resultado das análises de 66 prontuários de internos transferidos do Hospício
Nacional de Alienados (HNA) para as Colônias de Alienados da Ilha do Governador.
No Brasil, no fim do século XIX, os pressupostos do tratamento da loucura
transitaram da experiência do asilamento fechado como assistência pública ao modelo da
colônia agrícola, que era espelhado no tratamento humanitário da Colônia de Gheel
(Bélgica), onde o asilo fechado era substituído pelo asilo em regime semi-livre, o
isolamento, as habitações comuns e o trabalho rural como condições curativas da
alienação (Souza, 1888, p.150-151).
Cristiana Facchinetti relaciona a loucura com as correntes renovadoras do XIX e
XX, para quem a “loucura foi livre na Colônia; confinada a partir do Império; tornou-se
polícia das raças ao final do XIX e agente de higiene e educação no início do século XX”.
(Facchinetti, 2004, p.307)
As primeiras instituições de assistência ao alienado, no Brasil, na cidade do Rio
de Janeiro foram: o Hospício de Pedro II, na época do Império, em 1852, na Praia da
Chácara da Praia Vermelha; e a Colônia de São Bento e a Colônia Conde de Mesquita,
em 1890, na Ilha do Governador. Essas duas últimas instituições foram criadas por
decreto no início da República, mas há informações sobre a existência delas desde 1889,
quando foram mencionadas pelo Decreto 10.244 que criou o Conselho de Assistência
(Brasil, Decreto 10.244, 1889).

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LOUCURA: A INFLUÊNCIA MENTAL UMA DISCUSSÃO SOBRE O


URBANO E O RURAL

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1510
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O tratamento da loucura, que parece ter sido aplicado nas primeiras colônias
agrícolas do Brasil, tinha como ideário cientifico o tratamento moral compatível com os
pressupostos preconizados por Philippe Pinel. A psiquiatria clássica teve suas bases
lançadas, em Paris, por Philippe Pinel, quando escreveu a primeira edição publicada em
1801 do “Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental ou a Mania” que
introduziu o conceito de tratamento moral que segundo Jan Goldstein, era uma inovação
no campo da medicina e uniu a experiência da prática com o ideal do novo homem pós-
revolucionário no tratamento da loucura,
tratamento moral significa o uso de métodos para a cura da insanidade
que são operados diretamente na direção do intelecto e das emoções,
oposto aos métodos tradicionais da sangria e expurgos aplicados no
corpo dos loucos (Goldstein,2001, p.65).

Na primeira publicação do Tratado de Pinel, o tratamento moral considera a


instituição como parte do processo terapêutico do alienado e que poderia conduzir a
recuperação da razão perdida. O hospício deveria, assim, conter espaço separado para
cada tipo de alienação, estar implantado em sítio em meio à natureza onde podiam ser
desfrutados “ todos os gozos e a calma dos costumes campestres” (Pinel [1800], 2007,
p.194).
O tratamento moral utilizava a observação do interno e princípios como a
classificação das alienações, o trabalho mecânico, o isolamento como condição
terapêutica praticados num regime semi livre na instituição e conduzido por um médico
alienista. Outro ponto importante no tratamento moral de Pinel, era a preparação dos
funcionários do hospício que deveriam ter atitudes de brandura, mas, também, de controle
e disciplina para que fosse possível manter a ordem moral e física do hospício (Pinel
[1800],2007, p.105). Esses pressupostos parecem ter influenciado a Diretoria de
Assistência Médico-legal na criação e funcionamento da Colônia para Alienados, no
período Republicano.
As primeiras colônias agrícolas do Brasil, inauguradas em 1890, foram as
Colônias de Alienados da Ilha do Governador, na freguesia da Ilha do Governador, no
Rio de Janeiro. As Colônias que tiveram prédios adaptados a nova finalidade, eram
compostas de dois conjuntos de atendimento a Colônia Conde de Mesquita implantada

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1511
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

na Fazenda do Galeão e a Colônia São Bento implantada no antigo asilo de mendicidade


dos padres beneditinos, também na Ilha do Governador.
Do sistema público de colônia para alienados, na Primeira República, no Rio de
Janeiro, pode-se destacar dois aspectos: a sustentabilidade econômica do doente crônico
e o modelo terapêutico de tratamento do alienado onde o ambiente rural e as instalações
físicas eram parte do tratamento moral e com possíveis desdobramentos de inserção do
alienado na sociedade.
As Colônias de Alienados da Ilha do Governador objetivavam “socorrer os
enfermos alienados, nacionais e estrangeiros, que carecerem do auxílio público, bem
assim os que mediante determinada contribuição derem entrada em seus hospícios”
(Brasil, Decreto 206-A, 1890).
As Colônias de São Bento e Conde de Mesquita estavam subordinadas à Diretoria
de Assistência Médica e Legal dos Alienados que também abrangia o Hospício Nacional
de Alienados - antigo Hospício de Pedro Segundo. As fotografias 04, 05 e 06 apresentam
panorama da área e vistas dos prédios das Colônias São Bento e Conde de Mesquita.

Fotografia 04, vista da ponte do Galeão ao fundo a Colônia de São Bento


Fonte: Album de fotografias das Colônias da Ilha s/data – nº 46. Acervo: BRRJ IMASNS/ Iconografia

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1512
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Fotografia 05, vista aérea da Colônia de São Bento


Fonte: Album de fotografias das Colônias da Ilha s/data – nº 46. Acervo: BRRJ IMASNS/ Iconografia

Fotografia 06, vista parcial das instalações e internos Colônia Conde de Mesquita
Fonte: Album de fotografias das Colônias da Ilha s/data – nº 46. Acervo: BRRJ IMASNS/ Iconografia

O acesso do centro urbano do Rio de Janeiro às duas colônias era feito por mar.
Os transportes marítimo era feito pela lancha Esquirol de propriedade da Assistência
Medico-Legal e, o terrestre, entre as colônias para internos, funcionários e médicos, era
feito por transporte puxado a bois e a cavalo como apresentado nas fotografias 07 a 09.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1513
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A distância entre São Bento e Conde de Mesquita era de 2,5 km. A infraestrutura
local também era precária. Não havia água potável canalizada, o banho dos internos era
no mar sob a vigilância dos guardas e a lavagem de roupa era feita na lavanderia do
Hospício Nacional de Alienados (Acervo IMASJM, 1891).

Fotografia 07, vista do desembarque de suprimentos nas Colônias


Fonte: Album de fotografias das Colônias da Ilha s/data – nº 46. Acervo: BRRJ IMASNS/ Iconografia

Fotografia 08, vista da lancha Esquirol da Diretoria de assistencia medico-legal


Fonte: Album de fotografias das Colônias da Ilha s/data – nº 46. Acervo: BRRJ IMASNS/ Iconografia

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1514
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Fotografia 09, transporte de funcionários e Diretoria das Colônias


Fonte: Album de fotografias das Colônias da Ilha s/data – nº 46. Acervo: BRRJ IMASNS/ Iconografia

Era proposta da Assistência a Alienados que as Colônias da Ilha fossem auto


sustentáveis. Nesse sentido, os alienados trabalhavam na plantação de frutas, legumes e
hortaliças e na criação de pequenos animais – suínos, gado e lanígeros. Também havia
oficinas de costura e pequenos consertos para atender aos internos. Parte da produção
dos alienados era para consumo da instituição e parte era vendida. Da parte vendida, um
percentual ia para o Tesouro Nacional e 10% revertia em benefício dos alienados
trabalhadores (Acervo IMASJM, 1891,1892). As fotografias 10 e 11 retratam a rotina do
trabalho agrícola e com pequenos animais na Colônia Conde de Mesquita.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1515
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Fotografia 10, internos no trabalho agrícola da Colônia Conde de Mesquita


Fonte: Album de fotografias das Colônias da Ilha s/data. Acervo: Instituto Municipal Nise da Silveira/RJ

Fotografia 11, internos no trabalho com aves na Colônia Conde de Mesquita


Fonte: Album de fotografias das Colônias da Ilha s/data. Acervo: Instituto Municipal Nise da Silveira/RJ

A Colônia de Alienados da Ilha do Governador foi criada para ser extensão do


HNA, o modelo colonial implantado no Rio de Janeiro, reproduz o já aplicado
internacionalmente na Escócia, na Alemanha, na Inglaterra, adotando regime semi livre
baseado no trabalho ocupacional rural do interno. Esse modelo institucional, implantado

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1516
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

no fim do século XIX tanto no Rio de Janeiro quanto em outros países da América Latina,
guarda similaridades sendo as essas instituições rurais uma extensão para doentes
crônicos do hospício urbano.
O critério de cronicidade previsto na legislação da colônia brasileira, não pode ser
percebido nos levantamentos realizados, até agora, nos prontuários dos internos das
Colônias da Ilha. Nessa análise preliminar dos prontuários não se detectou um padrão,
uma similaridade de critérios adotados pelos médicos brasileiros para a transferência de
internos do HNA para as Colônias de Alienados da Ilha do Governador.
A movimentação de internos para as Colônias da Ilha do Governador percorriam
um fluxo definido que seguia determinadas etapas. Primeiro, o interno era trazido pela
Polícia acompanhado de uma ficha com identificação e anamnese assinada pelo médico
do serviço médico legal. Segundo, o interno ficava em observação no Pavilhão de
Observação anexo ao HNA que era ligado à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. O
tempo de permanência no Pavilhão de Observação variava entre 1 e 15 dias após esse
período era admitido no Hospício e transferido para o Pavilhão pertinente do HNA. Após
tempos variados de internação no Hospício era transferido, se fosse o caso, para as
Colônias de Alienados da Ilha do Governador, segundo critérios ainda não identificados.
Para verificar a movimentação dos internos entre o Hospício Nacional de
Alienados e as Colônias de Alienados da Ilha do Governador foram analisados 65
prontuários de pacientes internados entre 1911 e 1916. Esses prontuários continham a
foto, os dados de identificação do doente, a procedência, o número de entradas no
Hospício, o diagnóstico e as datas de internação, transferências além de licenças, altas e
óbitos. Apensos aos prontuários há dois documentos: o primeiro a Guia Policial onde
consta a identificação, a procedência, a anamnese, o diagnóstico do doente; o segundo a
Ficha do Pavilhão de Observação do HNA. O prontuário era preenchido pelo médico
alienista quando na admissão do HNA, a Guia Policial era preenchida pelo médico do
serviço médico legal da polícia quando realizada a anamnese inicial e a Ficha do Pavilhão
de Observação era preenchida no momento da entrada e assinada pelo médico alienista
do Pavilhão.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1517
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para caracterizar o fluxo de movimentação de internos entre o HNA e as Colônias


Alienados da Ilha do Governador adotou-se um recorte no universo dos 66 prontuários e
analisado a seguir.

A MOVIMENTAÇÃO DE PACIENTES INTERNADOS NO HOSPÍCIO NACIONAL DE ALIENADOS


(HNA) PARA AS COLÔNIAS DE ALIENADOS DA ILHA DO GOVERNADOR – 1911 A 1916

Trata-se de um universo de análise de 66 prontuários de alienados, homens,


internados, no período entre 1911 e 1916, no Hospício Nacional de Alienados e
transferidos para as Colônias de Alienados da Ilha do Governador. As análises foram
baseadas nas informações dos prontuários onde constavam: a identificação do interno
(nome, nação, cor, etc.), o diagnóstico, o local de procedência, as datas de entrada,
movimentações, alta, licença e óbito e o motivo do óbito.
Os dados e as informações dos prontuários foram analisados de modo a conhecer
e dar protagonismo ao interno das Colônia de Alienados da Ilha do Governador. As
análises estão representadas nos gráficos a seguir e contemplam a nacionalidade, a idade,
a profissão, os diagnósticos e as causas de óbito dentre outras.
Do número total de 66 internos transferidos, entre 1911 e 1916, do HNA para as
Colônias, 35 tinham cor branca descrita no prontuário, 17 tinham cor parda e 14 tinham
cor negra e estão representados no gráfico 01 onde foram separados por nacionalidade.

Gráfico 01 – Número de internos nas Colônias da Ilha do Governador por cor e nacionalidade

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1518
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Fonte: Acervo do IMNS, Prontuários. Elaboração própria.

Como pode ser observado no gráfico 01 a proporção de internos na cor branca era
de 53%, parda 26% e negra 21% em relação ao total de internos. O que nos leva a concluir
que mais do dobro de internos brancos foram transferidos para as Colônias no período
analisado.
Quanto a idade dos internos, apresentada no quadro 01, pode se observar que o
maior número de internos está concentrado na faixa entre 21 e 40 anos, portanto uma
idade considerada produtiva para o trabalho na colônia agrícola
Quadro 01 – Idade dos internos nas Colônias de Alienados da Ilha do Governador
número de internos
Tota
Idade brancos pardos Negros
l
até 20 anos 4 1 1 6
21 a 40 anos 23 14 11 48
41 a 50 anos 6 1 1 8
acima de 51 anos 1 1 2
Vazias 1 1 2
total
66
Fonte do quadro 01, Acervo do IMNS, Prontuários. Elaboração própria.
No gráfico 02 está representada a análise da incidência de diagnósticos dos
internos que foram transferidos para as Colônias de Alienados.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1519
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Gráfico 02 – Número de internos nas Colônias da Ilha do Governador por diagnóstico e por cor

Fonte: Acervo do IMNS, Prontuários. Elaboração própria.

No período analisado, o diagnóstico mais incidente foi o alcoolismo, seguido pela


debilidade mental e loucura maníaco depressiva e em menor incidência a sífilis cerebral.
Tendo como base a informação dos prontuários analisados - o diagnóstico de alcoolismo
- podemos inferir que a maior parte dos internos transferidos teve um diagnóstico curável,
o que pode contradizer que a Colônia de Alienados era local para doentes incuráveis.
Entretanto, do total de 66 internos transferidos para Ilha, 30 vieram a óbito o que
corresponde à 45,5% do total. Os óbitos são atribuídos a várias causas conforme
apresentado nos gráficos 03 e 04.

Gráfico 03 – Número de internos, por cor anotada no prontuário, transferidos para as Colônias da
Ilha do Governador que vieram a óbito

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1520
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Fonte: Acervo do IMNS, Prontuários. Elaboração própria.

Conforme demonstrado no gráfico 03 o número de óbitos, por cor anotada no


prontuário, acompanha a proporção entre 40% e 52% já mencionada na análise total do
número de óbitos dos internos. Não era usual o interno vir a óbito nas instalações das
Colônias, sendo que, na maioria das vezes, era precedido da devolução/transferência do
interno, pelo Diretor da Colônia, para o HNA quando o interno era acometido ou
apresentava sintoma de moléstias distintas daquelas que os levou às colônias, como se
observa no gráfico abaixo.

Gráfico 04 – Número de internos movimentados por causa da morte

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1521
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Fonte: Acervo do IMNS, Prontuários. Elaboração própria.

De acordo com o gráfico 04, a enterocolite e a tuberculose pulmonar, foram as


causas de morte mais incidentes nos internos transferidos para as Colônias de Alienados
da Ilha do Governador. Dos 66 prontuários analisados só se encontrou dois internos cuja
causa mortis foi o estado do mal epiléptico, cujo diagnóstico estava relacionado ao
motivo da internação. Outro diagnóstico atípico foi queimadura de 1º e 2º o que pode
apontar para uma possível tentativa de suicídio que causou a morte do interno uma vez
que não eram raras as tentativas, conforme o próprio diretor aponta.
O tempo de permanência nas Colônias de Alienados da Ilha do Governador está
representado no quadro 02. Dos 66 internos movimentados, 30 vieram a óbito, 27 tiveram
anotação de alta e licença no prontuário.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1522
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Quadro 02 – Tempo de permanência por número de internos nas Colônias de Alienados da Ilha
do Governador

Fonte do quadro 02, Acervo do IMNS, Prontuários. Elaboração própria.

Como analisado e apresentado no quadro 02 a maior incidência de permanência


nas Colônias está concentrada na faixa de até 1 mês, com 12 internos e mais de 1 ano,
com 18 internos. Como no caso dos diagnósticos de alcoolismo que apresentou a maior
incidência entre os internos transferidos para as Colônias da Ilha do Governador, o curto
tempo de permanência pode ser também um indicativo de possibilidade de cura desses
internos.
Como mencionado, anteriormente, não foi possível identificar o critério adotado
para a transferência dos internos do HNA para as Colônias de Alienados da Ilha do
Governador. Não há anotações nos prontuários analisados e os dados levantados não são
suficientes para conclusão. Mas observou-se anotações de internos que não se adaptaram
à rotina da Colônia e retornaram ao HNA por decisão do médico alienista das Colônias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As colônias agrícolas para alienados, fundadas no fim do século XIX, no Brasil e
em alguns países da América Latina, eram uma extensão rural do hospício urbano. No
caso brasileiro, numa análise preliminar, embora ligada ao hospício urbano, essas
instituições funcionavam administrativamente e cientificamente de forma autônoma. A
autonomia, até agora, pode ser percebida pelos divergentes diagnósticos muitas vezes
observados no prontuário de um mesmo doente. O médico do serviço médico legal da
Polícia apontava um diagnóstico na Guia Policial, o médico do HNA outro e um terceiro

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1523
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

podia ser apontado pelo médico alienista das Colônias, mas as pesquisas precisam ser
aprofundadas para a compreensão desse fato.
Outro aspecto que pode evidenciar a autonomia das Colônias em relação ao
Hospício se deve ao fato do Diretor das Colônias demandar orçamentos, obras e reformas
diretamente ao Diretor da Assistência e atendido pelo Ministério da Justiça e Negócios
Interiores (MJNI) ao qual era subordinado e autorizado por meio de rubrica independente
do Hospício Nacional de Alienados. Essas demandas, também, eram atendidas pelo
Escritório do Engenheiro ou por qualquer outra Diretoria do MJNI.
No tocante à internação do alienado, as anamneses e observações clinicas que
embasavam o diagnóstico eram realizadas no momento da admissão do interno em todas
as instâncias já comentadas. Não foram encontradas nos prontuários anotações sobre a
evolução ou mudança de diagnósticos dos internos, há apenas anotações administrativas
posteriores como: altas, licenças, óbitos, movimentações e transferências.
Nas primeiras colônias ainda não foi possível sistematizar na análise dos
prontuários o critério do médico alienista de movimentação/transferência entre os
pacientes do Hospício para as Colônias de Alienados e entender que habilidades ou que
diagnósticos os internos deviam ter para serem transferidos para as Colônias de Alienados
da Ilha do Governador. Um dado que parece relevante, analisado no quadro 02, é a maior
incidência de número de internos na faixa de idade de 21 a 40 anos, o que pode apontar
para uma idade capaz de suportar o trabalho agrícola nas Colônias.
Os motivos anotados nos prontuários, pelo Diretor das Colônias de Alienados da
Ilha do Governador, para a devolução de internos para o Hospício Nacional de Alienados
eram: agressividade, desobediência, turbulência; não adaptação do interno; embriaguez
sucessiva; a pedido do próprio e por ser agitado; sucessivas tentativas de suicídio e/ou
evasão.
Vale ressaltar que nos Relatórios Anuais de 1891 e 1892, preparados pelo Diretor
Geral para serem encaminhados ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, consta que
estavam asilados 212 internos, dentre os quais 169 homens e 43 mulheres, que foram
devolvidas em 1892 ao HNA, sendo que 3 mulheres vieram a óbito. Ainda não pode ser
conhecido o motivo da transferência dessas mulheres para as Colônias de Alienados da
Ilha do Governador no início da sua implantação (Acervo IMASJM, 1891,1892).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1524
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

As Colônias Conde de Mesquita e São Bento estavam implantadas na fazenda do


Galeão e na propriedade dos padres beneditinos, respectivamente, na Ilha do Governador
e foram criadas em 1890, como instituições de assistência pública e funcionavam como
extensão rural do hospício urbano. As Colônias de Alienados da Ilha tiveram as
instalações adaptadas para a assistência ao alienado segundo os pressupostos do
tratamento moral e recebiam de uma forma geral os internos masculinos do HNA.
Este trabalho é fruto do primeiro contato com as fontes e apresenta mais
inquietações do que conclusões, que serão trabalhadas ao longo da tese de doutorado.

Referências

Acervo do Núcleo de Documentação e Pesquisa do Instituto Municipal de Assistência à


Saúde Juliano Moreira( IMASJM)

Relatórios da Asssitencia Medico-Legal de Alienados 1891 e 1892

Acervo Instituto Municipal Nise da Silveira (IMNS)


Prontuários
Álbum das Colônias da Ilha

Bibliografia

BRASIL, Decreto 10.244 de 31 de maio de 1889. Disponível em:


http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-10244-31-maio-1889-
542521-publicacaooriginal-51581-pe.html

BRASIL. Decreto n º 206-A, de 15 de fevereiro de 1890. Disponível em:


http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-206-a-15-fevereiro-
1890-517493-publicacaooriginal-1-pe.html.

FACCHINETTI, Cristiana. O brasileiro e seu louco: notas preliminares para uma análise
de diagnóstico. In: Nascimento, Dilene Raimundo do; Carvalho, Diana Maul de. Uma
História brasileira das doenças. Brasília: Paralelo 15, 2004, p. 295-307.

GOLDSTEIN, Jan. Console and Classify: The French Psychiatric Profession in the
Nineteenth Century, Chicago: University of Chicago Press, 2001

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1525
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

HUERTAS, Rafael. Otra historia para otra psiquiatria. Madri: Xoroi Edicions, 2016.

SOUZA, Teixeira de. Exame e apreciação das disposições para Assistência pública dos
alienados. Brazil – Medico, Rio de Janeiro, ano 2, vol3, janeiro a dezembro de 1888.

PINEL, Philippe. Tratado médico filosófico sobre a alienação mental ou a mania.


Tradução de Joice Amorim Galli. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

SCULL, Andrew. Madness in Civilization: A cultural history of insanity from the Bible
to Freud from the Madhouse to Modern Medicine. New Jersey: Princeton University
Press, 2015.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1526
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Narrativas docentes: Representações da América Portuguesa e usos do


livro didático

JESSICA GABRIELLE DE SOUZA


Mestranda PPGH/UNIRIO

Esta comunicação apresenta um estudo de caso a partir de nossa pesquisa ainda


em andamento sobre representações (CHARTIER, 2002: 16) da América Portuguesa
presente nos relatos de narrativas dos docentes da educação básica em sua experiência
em sala de aula e dos manuais didáticos por eles utilizados.
Para iniciar as discussões que irão nortear esta pesquisa, acreditamos ser
indispensável refletir sobre a origem e a justificativa da designação “América
Portuguesa” para o presente projeto. A escolha deste conceito se prende às formulações
propostas por Fernando Novais quando chama a atenção para a carga de etnocentrismo e
anacronismo que envolve expressões como: “descobrimento do Brasil” e/ou
“descobrimento da América”. Novais denuncia que o uso dessas designações contempla
uma visão etnocêntrica, porque se relaciona apenas com a visão do ‘conquistador’
europeu, numa clara intenção de atribuir à Cabral a fundação de um novo país que, por
sua vez, só vira a se constituir como nação no século XIX, envolvendo, portanto, também
um anacronismo.

Quando se fala da viagem de Cabral ao Brasil é preciso fazer duas


críticas: a crítica do etnocentrismo que está presente na palavra
“descobrimento” e a crítica ao “anacronismo” que está na palavra
“Brasil”. É essa distinção que as pessoas não percebem. É fazer a
história da colônia como se ela estivesse destinada a se tornar uma
nação (NOVAIS, 2000).

Inserida nas discussões do campo curricular do ensino de história, acreditamos


que esta pesquisa ganha relevância na medida em que se acirram os debates em torno da
última versão da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) apresentada em maio de
2016. Não é nosso objetivo, contudo nos posicionarmos a favor ou contra essa diretriz
curricular mas propor uma reflexão sobre o lugar de História do Brasil em meio as
diferentes concepções em disputa em torno da história como disciplina escolar.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1527
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O referido documento tem gerado algumas críticas por parte da comunidade


acadêmica e também de professores da educação básica. Carmem Gabriel, atenta para as
tensões advindas de um currículo que pretenda ter um alcance federal a partir da
mobilização de dois significantes que adjetivam a base em questão: o nacional e o
comum.

A pretensão em ensinar um conhecimento comum e de abrangência


nacional contida no documento da base reatualiza a tensão entre
universal e particular fazendo com que o jogo político no qual os
significados atribuídos à cada termo que ocupa um dos seus polos,
bem como a fronteira entre os dois seja reativado. Que sentidos
de nacional e comum estão em disputa nessas discussões? Que
interesses políticos sustentam a reafirmação desses diferentes
significações (LEITE, apud, GABRIEL, 2016: 101)?

Disto podemos inferir que a dimensão pedagógica da disciplina sempre esteve


indissociada do senso de memória coletiva, fusão esta, portanto já presente no momento
da própria emergência deste campo disciplinar no século XIX, uma vez que sua
constituição pode ser explicada e justificada pela necessidade de elaboração de uma
memória nacional (GABRIEL, 2006:24).
Nessa perspectiva, a História escolar relaciona-se aos esforços de construção de
uma identidade que legitimasse a própria constituição do Império do Brasil, que saído das
lutas pela independência buscava seu reconhecimento sob os alicerces de um “saber
Histórico legitimo”, e por sua vez, conversor das regiões rumo à unidade de uma história
nacional (TOLEDO, 2005:8).
Propondo um paralelo entre passado e presente, Ana Maria Monteiro denuncia a
permanência desta versão legitimadora de uma ordem política a despeito das
transformações paradigmáticas sofridas neste campo educacional (MONTEIRO, 2002:
67).
Contudo, Mauro Cezar Coelho aponta estarmos vivendo um período de mudança
na maneira como a produção didática recente tem abordado o tema da nacionalidade,
abrindo espaço a outras releituras de um passado comum, não mais centrando-se pelo que
definindo-nos nos unifica, mas abrindo espaço à diferença, desta forma:
O discurso sobre a nacionalidade no livro didático vive uma inflexão:
em lugar de pautar-se pela ótica da mistura, segundo o qual a sociedade
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1528
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

brasileira é constituída pelo amálgama das três raças formadoras, ele


passa a fundar-se na premissa de que a sociedade brasileira é diversa,
de modo que o fator estruturante da narrativa sobre a nacionalidade
(COELHO, 2015: 7-8).

Na construção de narrativas históricas que povoam o universo cultural dos


indivíduos é impossível ignorar o papel desempenhado pela tríade escola, professor
e livro didático na formação da ideia de história presente no senso comum da maioria da
população, constituindo-se os últimos em poderosos “instrumentos culturais de
primeira ordem” que, ao lado dos meios de comunicação de massa, constroem uma “
base para a criação de um consenso cultural mínimo que assegure a vertebração social à
integração da comunidade”(SACRISTÁN, apud, KAZUMI, 2013:1).
Contudo, sem ignorarmos o contexto de produção e circulação dos livros
didáticos, interessa-nos sobretudo a questão dos usos atribuídos à prática docente em
relação ao material de que dispõem, como atenta a professora Circe Bittencourt:

Ao considerar de consumo do livro didático não se pode omitir poder


do professor. Cabe a este, na maioria das vezes, a escolha do livro e sua
leitura em sala de aula. Os capítulos selecionados, os métodos de leitura
em grupo ou individual, assim como as tarefas decorrentes da leitura,
são opções exclusivas do professor, mesmo quando inseridas e
limitadas pelo projeto pedagógico estipulado pela escola.
(BITTERNCOURT, 2008:74)

Nesse sentido, acreditamos que as contribuições teóricas da história oral podem


ser muito férteis à uma reflexão sobre quais estratégias discursivas os docentes se utilizam
no processo de dessincretização do saber (CHEVALLARD, apud, GABRIEL e MONTEIRO,
2007:11) da História escolar - entendida como lugar de fronteira, “onde há produção de
saberes a partir de diálogos, de trocas e do reconhecimento das diferenças.” (MONTEIRO
e PENNA, 2011, p. 192).
Pressionados, muitas vezes, a assumirem uma posição que justifique a existência
de sua própria disciplina, professores de História se veem na difícil tarefa de configurar
sentido aos temas elencados pelas diretrizes curriculares para públicos heterogêneos, com
diferentes demandas identitárias.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1529
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para Mattos, a aula de História pode ser vista como um texto de criação individual
e coletiva. Portanto, longe de possuir um significado concreto, professores e alunos
estarão sempre reelaborando as informações recebidas. Nessa perspectiva, urge
complexificar a análise desse objeto de estudo de maneira a apreender também as
narrativas orais ou escritas, os programas e os planos de curso, os textos dos manuais
didáticos selecionados que irão compor, norteados pela escolha dos professores, a
dinâmica de suas aulas. Ao referenciar o papel da autoridade dos professores nesse
processo, o autor destaca:

Na aula como texto, os conteúdos aparecem em uma sequenciação e


gradação; ênfases estão definidas; nela, a narrativa de acontecimentos
em ordem de sucessão ocupa um lugar e um papel restrito, a
importância residindo na narrativa de determinadas durações, cuja
explicação e compreensão dependem, em larga medida, dos conceitos
históricos com os quais os alunos deverão operar. (MATTOS, 2006: 14-
15)

A necessidade de pensar as formas pelas quais a matéria de ensino é transformada


“conhecimento do professor” em “conteúdo de instrução”, isto é, a maneira pela qual os
professores produzem explicações nos processos de atribuições de sentido aos temas de
estudo a partir de sua experiência de formação e de vida pessoal, é sugerida pelos autores
a partir da proposta de Shulman. Segundo o autor:

(...) as formas mais comuns de representação das ideias, as analogias


mais poderosas, as ilustrações, os exemplos, explicações e
demonstrações, ou seja, os modos de representar e formular o assunto
de forma a torná-lo compreensível para os outros. Inclui também aquilo
que faz a aprendizagem de um assunto fácil ou difícil, possível
(SHULMAN, apud, MONTEIRO e PENNA, 2011:197).

Desta forma, Fernando Penna e Ana Maria Monteiro sugerem a adoção do


conceito de narrativa histórica, instrumento da área de teoria da História, para investigar
a ação do docente enquanto narrador. Isto é, evocam a construção operada pelo saber
histórico escolar produzido nas aulas para tornar possível uma “intriga compreensível”,
que auxilie os alunos a atribuírem sentido aos fatos e processos em estudo. (REIS, apud,
MONTEIRO e PENNA, 2011:197).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1530
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nesta pesquisa em particular, propomos como estratégia metodológica a História


Oral temática750 de maneira a possibilitar, por meio de pesquisas colaborativas751, uma
análise sobre como os professores constroem seus saberes e experiências docentes, tendo
como lócus privilegiado de análise a temática da América Portuguesa no contexto da
histórica escolar. A ideia, por nós defendida, tomando de empréstimo às sugestões de
Selva Fonseca, é “dialogar com o professor, trocar saberes e experiências. Buscar
significados nas relações e no trabalho que esses professores produzem, tendo em vista
sua realidade material, intelectual, emocional e profissional” (RASSI e FONSECA,
2006:110).
Para Fonseca, assumir essa epistemologia teórica é romper com uma tradição
escolar que coloca o trabalho dos professores como algo meramente técnico e desta
forma, passível de racionalização, daí a necessidade se “ir além de uma perspectiva
reprodutivista para poder entender que lecionar é inventar saberes próprios à sua situação
de trabalho” (FONSECA, 1997: 10). Em obra sobre as experiências dos docentes de
História da educação básica, Fonseca busca compreender a relação entre a experiência
pessoal e profissional dos professores entrevistados, a partir das contribuições
metodológicas História oral de vida.

O historiador que exerce o trabalho pedagógico é um educador, um


profissional docente, cujo ofício consiste no domínio e na transmissão
de um conjunto de saberes através de processos educativos
desenvolvidos no interior do sistema de educação escolar. Esse saber
docente é, de acordo com a literatura da área, um saber plural,
proveniente de diversas fontes. É constituído pelo conhecimento
especifico da disciplina, no caso, o conhecimento historiográfico, os
saberes curriculares (objetivos, conteúdos, métodos e materiais), os
saberes pedagógicos (concepções sobre a atividade educativa) e os
saberes práticos de experiência (FONSECA, 1997:22).

750
“Com a História Oral Temática, a entrevista tem caráter temático e é realizada com um grupo de pessoas
sore um assunto especifico. Essa entrevista – que tem característica de depoimento – não abrange
necessariamente a totalidade da existência do informante. Dessa maneira, os depoimentos podem ser mais
numerosos, resultando em maiores quantidades de informações, o que permite uma comparação entre eles,
apontando divergências, convergências e evidencias (...)” (FREITAS, 2006: 21-22). Para esta pesquisa,
sublinhamos que o registro das narrativas dos professores será complementado com outros materiais
escritos, como leis, diretrizes, currículos, documentos institucionais, etc.
751
Tomamos aqui de empréstimo a expressão “pesquisa colaborativa” apontada por Goodson para sugerir
pesquisas orais voltadas à educação na relação entre o professor-investigador em colaboração com seus
pares, cujas vantagens se verificariam na menor exposição dos professores e na possibilidade de trocas de
dados e conhecimentos (GOODSON, Ivor, 1992: 76).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1531
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Segundo Goodson, tais dados mais gerais tenderiam a ser menosprezados por
alguns pesquisadores devido a sua carga de subjetividade, contudo o autor chama a
atenção para complexidade do objeto, uma vez que “o estilo de vida do professor dentro
e fora da escola, as suas identidades e culturas ocultas têm impacto sobre os modelos de
ensino e sobre a prática educativa” (GOODSON, 1992:72). Nesse sentido, a história oral
serviria como importante ferramenta à apreensão das relações do indivíduo-professor com
a história do seu tempo, na intercessão de sua história de vida e suas escolhas profissionais
(GOODSON, 1992: 75).
Nessa perspectiva, os saberes docentes são plurais, compósitos,
flexíveis, temporais, logo se inserem em uma historicidade. No caso, os
saberes dos professores de História, por exemplo, são constituídos pelos
saberes históricos e historiográficos, os saberes curriculares, os saberes
didático-pedagógicos advindos das ciências da educação; os saberes
sociais, os saberes oriundos das múltiplas linguagens e os saberes
experienciais, ou seja, aqueles adquiridos, construídos no cotidiano
da sala de aula, da escola, da vida. Daí, o consenso: o professor se forma
ao longo de sua trajetória pessoal e profissional (RASSI e FONSECA,
Selva Guimarães, 2006:109).

Rejeitando uma posição que hierarquize os conhecimentos historiográfico e


escolar, nossa escolha por colaboradores, primou por aqueles indivíduos que transitem
nos dois espaços: isto é, na pesquisa acadêmica e também na educação básica, sem
embargo de maiores classificações. A titulação, idade, o tempo de experiência no
magistério até o presente momento, têm se mostrado diversificados, como diversificado
é o perfil desses profissionais em território nacional.
Trazemos como base empírica do presente artigo a narrativa de uma
professora da educação básica realizada por ocasião de nossa pesquisa de mestrado.
Juliana752 é uma jovem professora, doutoranda em História Social e atualmente atua na
educação básica numa escola de classe média alta. Na ocasião, a professora foi
incentivada com as seguintes indagações: como aconteceu o início de sua carreira
docente? E como via o papel da disciplina de História e do professor da disciplina nos

752
Por tratar de pesquisas não nominais, modificamos o nome da professora entrevistada de maneira a
melhor nos adequarmos às disposições da Resolução 510 do Comitê de Ética da Unirio referente as
pesquisas na área das humanidades.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1532
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

dias de hoje? Pretendíamos, a partir desses questionamentos analisar os discursos sobre


como a entrevistada considera ser professor de história e as concepções, subjacentes ou
explicitas que orientam sua prática pedagógica.

Juliana Pra mim a escolha pela História se deu muito por conta dos
bons professores de história que passaram por mim, principalmente no
ensino médio e que fizeram eu me identificar mais com a disciplina,
que me fizeram sentir muita facilidade e entrosamento, identificação
mesmo com a disciplina [...] a educação básica é o princípio formador
de todo o ser humano, né? Princípio formador de senso crítico, de
ideais, de reflexões, de postura, de visão de mundo.... Não que sem a
educação básica o indivíduo não possa adquirir isso, pelo contrário. as
experiencias de vida estão aí para fornecer isso ao indivíduo também.
Mas a educação básica, sendo obrigatória e tendo tudo o que ela tem
para oferecer...acho que ter história nessa fase de escolaridade... a
história realmente se constitui num dos pilares de formação de tudo isso
que eu disse. Então a educação básica só com exatas, ou só com
geografia, ou só com biologia... seria como se estivesse faltando um
braço. Porque o indivíduo não está na escola para ser um robô, para
aprender a ser um robô, na verdade. Ele está na educação básica,
teoricamente deveria estar, para se tornar um cidadão. E a história ela
contribui para essa formação [...] porque a história, eu costumo dizer,
tem esse poder: tem esse poder de dar liberdade. O conhecimento
histórico é libertador, né? Sobretudo agora diante dessas amarras
histéricas, dessas amarras conservadoras, dessas amarras violências que
desencadeiam uma série de acontecimentos perigosos, que
desestruturam mesmo a sociedade. Então eu acho que pensar a história
nos dias de hoje é pensar no quanto ela foi negligenciada e continua
sendo negligenciada na sua condição básica. Que é ser libertadora, que
é ensinar a sociedade a ser livre, livre de preconceitos, ser autônoma...

A noção do professor marcante (MONTEIRO e PENNA, 2011:208) aparece


frequentemente nos relatos dos professores quando indagados do porquê terem escolhido
a carreira de professor de História. Nesse sentido, o professor que marca a trajetória do
aluno é um papel o qual os docentes também aspiram conquistar no exercício de sua
profissão. E isto se relaciona à importância do ensino da disciplina e do papel do professor
é propiciar um pensamento mais crítico, levar o aluno a refletir sobre a realidade a qual
ele se insere, contribuir enfim para uma sociedade mais justa e igualitária. O trecho acima
também é revelador no sentido de exemplificar que a relação entre a história de vida
pessoal da professora e a maneira como ela enxerga a função da disciplina. Para ela,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1533
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

história é muito mais do que um curso para profissionalizar, é uma questão


existencial, uma ferramenta à manutenção da autonomia do pensamento.
Sobre a temática que elegemos como porta de entrada para análise de como se
operam esses discursos a partir de um assunto obrigatório nos currículos escolares, nos
diz a professora sobre como trabalha os conteúdos de América Portuguesa em sala:

Juliana: sempre começo norteando essa questão de alteridade... e para


trabalhar o outro, a questão do outro... justamente para tentar dar um
enfoque, mas particular nas relações sociais do que nas informações por
assim dizer, técnicas sobre o assunto. Claro que essas informações
técnicas vão aparecer e o que eu estou chamando de informações
técnicas, assim? São informações que o aluno vai mais decorar, do que
entender. O que é a colônia de exploração? O que é colônia de
povoamento? É claro que isso tem que ser apresentado ao aluno, isso
vai ser apresentado. Mas esse não é o princípio norteador do conteúdo
de américa portuguesa. Então, meu princípio norteador é trabalhar essas
relações sociais, né? Que foram se dando, justamente para tentar trazer
essa questão das minorias à tona [...] mas esse tipo de trabalho ainda
encontra resistências muito fortes. Porque a escola considera isso uma
forma de doutrinação, de querer induzir o aluno aquilo. É a mesma
lógica que nos proíbe falar de partidos políticos em sala de aula, é como
se você tivesse induzindo o aluno a fazer parte daquele partido. São
dessa forma que as escolas interpretam, né? Então, falar de
religiosidades, sincretismo religioso é importantíssimo, não deve ser
deixado de ser apresentado, não deixo de apresentar mas acaba sendo
construído em sala de aula dessa forma mais engessada, de apresentar
a construção dessas religiões (de matriz indígena e africana) [...] A
própria apostila que utilizamos não nos deixa muito espaço a essas
discussões e de uma certa forma, acaba deslegitimando a fala do
professor na abertura de outros temas. Os pais cobram, né? Por que eu
tô falando disso, porque estou deixando de falar daquilo... e a
preferência, é sobretudo para um ensino mais tradicional, voltado aos
temas considerados mais importantes para as provas [...] é muita luta,
sabe? Muita luta pelo currículo da disciplina escola, pelos conteúdos
que iremos abordar, muita luta [...]

A importância concedida a outras formas de organização social e cultural, como


clamor de outros setores menos desprestigiados na história - já aparece como
determinação nos parâmetros curriculares nacionais, nos editais de avaliação dos livros
didáticos e até das provas de avaliação de abrangência nacional como o Enem. Ainda
assim, a professora relata “resistências” na forma como esses conteúdos tendem a ser
apresentados, ficando muitas vezes marginalizados, ou “engessados” como ela coloca.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1534
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nesse sentido, destacamos que o papel da docência hoje também se constitui um espaço
de lutas pela inclusão de temas no currículo escolar na esteira das pressões autoritárias e
conservadoras as quais está sujeita o currículo da disciplina.753
A fala da professora aponta ainda a importância da escolha do livro didático como
material que legitime a presença de outros assuntos a serem discutidos em sala de aula.
Sobretudo na rede particular de ensino, onde pais cobram mais dos professores a
utilização do material didático por eles adquirido. Na entrevista, a professora comenta
que não foi consultada na escolha das apostilas mas que procura, na medida do possível
e naquilo que o estreito calendário escolar permite, trazer esses assuntos.

Conclusão

O tema da relação entre os relatos dos professores sobre sua prática docente
levanta algumas questões importantes para refletirmos sobre as contribuições da história
oral no campo da história escolar. Pois é através desse diálogo que temos a possibilidade
de apreender a forma como professores constroem sentido em suas narrativas
pedagógicas na interlocução com seus saberes de experiencia e de formação.
Independente das determinações curriculares, cumpre-nos destacar que são os professores
que mobilizam, com relativa autonomia, o conteúdo temático pedagógico referente às
suas disciplinas, conteúdo este que não se dissocia de suas memórias, seus valores e sua
forma de pensar e agir no mundo. Desta forma, a contribuição da história oral em
interlocução com as discussões da didática docente podem ajudar-nos a ver o indivíduo
em relação com a história de seu tempo, permitindo-nos encarar a intersecção da história
da vida com a história da sociedade” (GOODSON apud FONSECA, 1997, p. 31).

753
Exemplificamos a seguir dois desdobramentos dessa conjuntura:
1. A MP 746/2016 que retira a obrigatoriedade do ensino de cultura afro-brasileira nos 3 anos do Ensino
Médio. Mais informações disponíveis no site: https://jus.com.br/artigos/54207/a-mp-746-2016-e-o-
impacto-no-ensino-da-historia-e-cultura-afrobrasileira
2. Pressão dos setores conservadores para a retirada desses conteúdos de religiosidade afro brasileira, assim
considerados “doutrinadores”: http://deolhonolivrodidatico.blogspot.com.br/ (página sugerida pelo site do
Escola sem Partido: http://www.escolasempartido.org/).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1535
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Bibliografia

BITTENCOURT, Circe. “Livros didáticos entre textos e imagens”. In: BIITENCOUT,


Circe (org.) O saber histórico na sala de aula. 11 Ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 74.
CHARTIER, Roger. A História Cultural – entre práticas e representações. Lisboa:
DIFEL. 2002
CHEVALLARD, apud, GABRIEL, Carmen Teresa e MONTEIRO, Ana Maria.
Currículo, ensino de História e narrativa. Associação Nacional de Pós-Graduação e
pesquisa em educação – ANPED. GT12 – currículo, ano 2007.
COELHO, Mauro Cezar. “A diversidade na história ensinada nos livros didáticos:
mudanças e permanências nas narrativas sobre a formação da nação” Revista História e
Diversidade online, UNEMAT Editora. Vol. 6, nº. 1, 2015.
FONSECA, Selva Guimarães. Ser professor no Brasil História oral de vida. São Paulo,
Papirus,1997.
FREITAS, Sônia Maria. História oral: possibilidades e procedimentos. 2ª edição. São
Paulo: associação Editorial Humanitas, 2006.
GABRIEL, Carmem Teresa. “Memória e ensino de História” Espaços educativos e ensino
de História. Boletim 2, Abril 2006.
GOODSON, Ivor F. Dar voz ao professor: as histórias de vida dos professores e
o seu desenvolvimento profissional. In: NÓVOA, António (Org.). Vidas de
professores. Porto: Porto Editora, 1992.
LEITE, apud, GABRIEL, Carmen Teresa. Nação, diferença e temporalidade: uma análise
discursiva da BNCC de História. In: CANDAU, Vera (org.). Interculturalizar e
descolonizar e democracia: uma educação outra. Rio de Janeiro: Editora 7 letras, 2016.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. “Mas não somente assim! Leitores, autores, aula como texto
e o ensino aprendizagem da História.” Revista Tempo. Rio de Janeiro, volume 11, n.21,
2006.
MONTEIRO, A.M.F.C.Ensino de História: entre saberes e práticas. Tese de doutorado.
Programa de Pós graduação em Educação da PUCRIO. Rio de Janeiro, 2002.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1536
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MONTEIRO, Ana Maria e PENNA, Fernando de Araújo. Ensino de História: saberes em


lugar de fronteira. Educ. Real., Porto Alegre, v. 36, n.1, jan./abr., 2011.
NOVAIS, Fernando. “A Invenção do Brasil” In: Teoria e Debate. Revista Trimestral da
Fundação Perseu Abramo. Ano 13, n.44, abr/mai/jun 2000.
RASSI, Marcos Antônio Caixeta; FONSECA, Selva Guimarães. Saberes docentes e
práticas de ensino de história na escola fundamental e média. SAECULUM – Revista de
História, n. 15, João Pessoa, jul./dez, 2006.
SACRISTÁN, Gimeno, apud, KAZUMI, Munakata. “O livro didático e o professor: entre
a ortodoxia e a apropriação”. Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação:
História, Política, Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2013.
Artigo disponível em: http://ojs.fe.unicamp.br/ged/FEH/article/viewFile/5393/4303.
TOLEDO, Maria Aparecida Leopoldino Tursi. “A disciplina de História no Império
Brasileiro”. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.17, p. 1 - 10, mar. 2005.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1537
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Nossa Senhora Aparecida: a rainha do Brasil – processo de construção de uma


nova identidade brasileira para a igreja católica

JESSICA MARIA M. RABELLO


PPGHS – UFF

Introdução

Este artigo é uma breve reflexão inicial sobre o tema da pesquisa que estou
desenvolvendo no Mestrado, acerca da coroação de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida754 como Rainha do Brasil ser o culminar de um processo de disputas políticas
e sociais entre a Igreja Católica e o Estado Brasileiro. A necessidade de se legitimar no
novo regime político e perante a sociedade gerou uma reestruturação da Igreja, liderada
pelo bispos, que teve como símbolo Nossa Senhora Aparecida, uma figura híbrida, que
possui elementos que simbolizam diferentes grupos das camadas sociais.
Nesse processo de legitimação política, utilizou-se a veneração à Virgem
Aparecida para afirmar o catolicismo como religião brasileira genuína, transformando um
ícone religioso regional em um símbolo de devoção nacional. Esse processo têm como
principal líder o Cardeal Joaquim Arcoverde, arcebispo da Arquidiocese do Rio de
Janeiro, partindo da cidade as principais motivações para a coroação.
Conforme indica o título, buscarei apresentar como ocorreu esse processo de
construção de uma nova identidade para a Igreja Católica no Brasil, procurando observar
as motivações que guiaram essa mudança, bem como os conflitos e a utilização de N. S.
Aparecida como símbolo de unificação entre o clero e aos devotos – e como uma proposta
de representação da nação – que tem como o principal episódio a coroação da Virgem
Aparecida em 8 de Setembro de 1904, um dia depois da comemoração da Independência
do Brasil.
A reflexão a que se propõem esse artigo é realizar uma análise sobre como a
devoção à Nossa Senhora Aparecida foi moldada no final do século XIX e início do século
XX a fim de auxiliar na legitimação de uma nova visão sobre a Igreja Católica, buscando

754
É importante destacar que, para os católicos, Maria recebe diversos nomes de acordo com as suas
aparições ou devoções populares, mas todas representa a mesma pessoa.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1538
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

afastar-se da concepção que era atrasada. A coroação de N. S. simboliza o momento


político e social da Igreja no Brasil e sua relação com a República e com a sociedade.
Nossa Senhora Aparecida: o nascimento de uma devoção

Vinda do interior de São Paulo. De cor negra. Católica. Manto azul com a bandeira
do Brasil. Coroada e proclamada Padroeira do Brasil. A imagem de Nossa Senhora da
Conceição Aparecida755 é conhecida por todos os brasileiros, a qual muitas vezes é
chamada de Mãe dos habitantes desta terra de Santa Cruz. A história da aparição da
imagem é um transmitida oralmente até hoje pelas famílias e faz com que tenhamos
lembranças, mesmo que breves desse relato.
Segundo a tradição devocional, conta que pelo final do mês de outubro de 1717,
o Conde de Assumar (Pedro de Almeida Portugal), que acabara de ser convidado a exercer
o cargo de governador da Capitania de São Paulo de das Minas Gerais, viajou em visita
à Vila de Guaratinguetá756. Durante a estadia do governador na região alguns pescadores
teriam sido chamados para pescar e levar todos os peixes à Câmara Municipal a fim de
que fosse preparado um jantar para a recepção. Entre eles, estaria Felipe Pedroso, João
Alves e Domingos Garcia. Os três teriam lançado insistentemente suas redes no Rio
Paraíba, mas não conseguiram pescar nada. João Alves ao jogar novamente a sua rede
teria sentido um peso ao puxá-la. Ao retirá-la da água, os pescadores perceberam um
objeto escuro que seria o corpo de uma imagem de Nossa Senhora, porém, sem a cabeça.
Eles guardaram a imagem no barco e logo após jogaram a rede de novo no rio. Ao
puxarem a rede novamente, teriam encontrado a cabeça da imagem. Então, quando
voltaram para a pesca, teriam tido grande sucesso, a ponto de encherem o barco e ficarem
com medo de afundar (SOUZA, 2001, pp. 80-81).
Após a pesca milagrosa, a imagem encontrada foi identificada como sendo de
Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Um dos pescadores, Felipe Pedroso, foi quem
ficou com a imagem e construiu um altar e um oratório para ela em sua casa. A família
de Pedroso realizou diversas reuniões com a comunidade em torno da imagem para rezar.

755
Durante o texto usarei algumas nomenclaturas diferentes para me referir a Nossa Senhora Aparecida,
são elas: Virgem Aparecida, Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Santa e Maria.
756
Em 1928, Guaratinguetá perde os territórios de Aparecida do Norte, surgindo um novo município.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1539
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Durante o governo paroquial do padre José Alves Vilela, clérigo da Paróquia Santo
Antônio de Guaratinguetá757, a devoção a Nossa Senhora de Conceição Aparecida foi
crescendo por causa da sua proximidade com a família dos pescadores e do apego popular
à santa. Em 1743, o padre José Vilela pediu ao Bispo do Rio de Janeiro 758, Dom João
Cruz, a oficialização da devoção pela Igreja Católica, que é concedido no mesmo ano. O
nome “Aparecida” foi acrescentando pela devoção popular ao nome da santa por ela ter
aparecido no rio.
Esta narrativa está presente em dois documentos oficias da Igreja Católica, o
primeiro foi escrito trinta e três anos após a aparição, em 1750, pelo padre jesuíta
Francisco da Silveira que estava em missão pela região; o segundo foi escrito quarenta
anos depois, em 1757, pelo Pároco de Guaratinguetá Pe. Dr. João Morais e Aguiar no I
Livro do Tombo759 da Paróquia de Santa Antônio de Guaratinguetá. Ambos comentam
sobre a visita do Conde de Assumar e relatam a história de aparição da imagem no Rio
Paraíba (BRUSTOLONI, 1998, pp. 38-41).
Desde 1740, existem registro de romarias para a capela dedica a Aparecida. Ao
longo do século XIX houve um aumento das romarias, sendo poucas acompanhadas por
padres e bispos devido a uma regra imposta pelo regime do padroado que impedia a
passagem de clérigos de um estado para o outro sem autorização imperial. Após a
proclamação da república e com o fim do padroado, tivemos um aumento considerável
das peregrinações acompanhadas pelo clero e também divulgadas em jornais e revistas
da época.
No ano de 1894, a Congregação do Santíssimo Redentor – os redentoristas –
assumiram administração do Santuário, sendo responsáveis por organizara história de
Aparecida e pela romanização e sacralização do culto a santa. Durante o século XX, temos
a grande expansão do culto a Nossa Senhora Aparecida, com a construção do santuário
novo, separação de datas para a peregrinação anual de cada diocese do Brasil, a separação

757
Principal paróquia da região naquele período.
758
Mesmo a região de Guaratinguetá do Norte fazendo parte de São Paulo, o bispo do Rio de Janeiro que
era responsável pela sua administração.
759
É um livro ainda usado nas paróquias que tem por finalidade narra os fatos e notícias importantes da
paróquia, assentar documentos e disposições de autoridades eclesiásticas, noticiar realizações pastorais,
visitas pastorais e conter históricos de capelas e entidades.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1540
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

dos municípios de Guaratinguetá e Aparecida do Norte (1927) e a assembleia geral dos


bispo acontecer em Aparecida.
Em minha pesquisa do mestrado tenho como objetivo analisar o processo que
levou a figura de Nossa Senhora Aparecida a ser declara como Rainha do Brasil em 8 de
Setembro de 1904 e como se deu a invenção de uma nova tradição mariana em torno
desse símbolo, tendo como recorte espacial e temporal a cidade do Rio de Janeiro, a antiga
capital federal e a cidade de Guaratinguetá, que naquele período ainda envolvia o
município de Aparecida entre os anos 1903 e 1904.

Igreja Católica e o Estado: disputas políticas

O Padroado era uma carga pesada que estava atada à nossa religião, que
fê-la definhar entre nós não somente à míngua de proteção do Estado,
como à força de perseguição, e perseguição terrível, que se acobertava
com o manto da proteção, e que tendo em suas mãos todos os domínios,
deles se servia somente para entorpecer a marcha da religião. (VIEIRA,
2016, p. 10)

Dom Luís Antônio dos Santos, Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, 21 de


Janeiro de 1890.
Desde meados do século XIX, a Igreja Católica estava insatisfeita com o padroado
pelas diversas limitações que essa regulamentação a impunha. No Brasil, mesmo com a
proclamação da independência o regime do padroado é mantido até a proclamação da
república. Como no período monárquico cabia ao rei criar dioceses, decidir sobre a
ordenação do clero e a investidura dos bispos, nomear os párocos, construir igrejas e
capelas e ainda criar e gerir associações e irmandades, a atividade pastoral dos bispos era
reduzida a realizar missões e cuidar da formação e obediência do clero (HAUCK, 2008,
pp. 80-81).
A administração da Igreja Católica no Brasil acabou sendo de responsabilidade
dos leigos por causa do regime do padroado, cabendo às instituições governamentais
decidir sobre as ordenações, as criações de dioceses e a fundação de seminários. Durante
todos o período monárquico, a Igreja tinha apenas uma arquidiocese e onze dioceses760.

760
Estrutura organizacional da Igreja Católica na qual cada diocese é responsabilidade de um bispo. As
dioceses tornam-se arquidioceses devido a sua antiguidade.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1541
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Não houve uma expansão dessas regiões administrativas pelos estados e municípios, o
que impediu o avanço do a todas as partes do país, dificultando também a administração
da atuação do clero e dos missionários em comunidades mais distantes das capitais. Dessa
forma, a grande extensão territorial e as poucas dioceses dificultavam o alcance a todas
as regiões, assim como a unificação do discurso religioso (HAUCK, 2008, pp. 80-81).
Esse número aumentou bastante nos primeiros anos de República passando a ter 17
arquidioceses, 50 dioceses e 20 prefeituras apostólicas (ALMEIDA; MOURO, 2004, p.
330).
Durante o século XIX, podemos perceber uma aproximação da Igreja Católica no
Brasil com a Santa Sé. O estreitamento das relações com o papado fez parte de uma
tomada de consciência do clero brasileiro sobre a universalidade da Igreja e da
importância desse vínculo para gerar unidade. Segundo João Fagundes Hauck, houve um
estimulo do pontífice romano, Papa Pio IX, para uma centralização maior dos bispos ao
seu redor a fim de fortalecer a Igreja e de universalizar as tradições católicas (HAUCK,
2008, pp. 182-183).
Para que houvesse uma propagação maior da doutrina católica nos países, a Igreja
Católica no Brasil e em outros lugares passou por um processo de “romanização”.
Consistindo em um intercâmbio de religiosos de congregações para diversas regiões do
país, como os redentoristas e os lazaristas761, que ficaram responsáveis pela formação dos
seminaristas em diversas dioceses. Também foram incumbidos de realizar missões para
diminuir a religiosidade popular que era muitas vezes vista como superstição. Houveram
também alguns padres enviados para Roma com o objetivo de voltarem “romanizados” e
de serem investidos como bispos no Brasil posteriormente (HAUCK, 2008, pp. 83-84).
Segundo Lucia Lippi Oliveira, o atrito entre Igreja e Estado no final do século
XIX estava ligado com reformas que aconteciam dentro da própria Igreja. O pensamento
católico ultramontano762, reforçado pelas resoluções do Concílio Vaticano I (1870),
divergia do liberalismo e do cientificismo presente entre as elites brasileira no final do

761
Congregação fundada por São Vicente de Paulo na França em 1616, seu carisma é desenvolver missões
para formar, dentro da doutrina católica, leigos, padres e pobres. Informação disponível em:
http://www.vocacionalpbcm.com.br/quem-somos/ Acesso: 17 de Agosto de 2017.
762
Doutrina que se apoio na Cúria Romana defendendo a infalibilidade papal em relação a fé e a disciplina.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1542
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Império. Ao rejeitar os princípios do liberalismo, o compêndio de Syllabus condenava


qualquer espaço liberal, como também o catolicismo liberal que defendia uma “Igreja
livre no Estado livre”. Essa expressão doutrinária esteve presente durante todo o papado
de Pio IX (OLIVEIRA, 1900, pp. 159-160).
A instituição de um novo regime político foi para o episcopado brasileiro uma
moeda de duas faces: libertando a Igreja do regime do padroado, mas, acabou separando-
a do Estado, colocando a Igreja Católica a margem dos assuntos políticos. O Papa Leão
XIII (1878-1903) promoveu uma reconciliação com o mundo moderno e com o governo
brasileiro, consagrada na promulgação da encíclica Rerum Novarum – que propõem uma
aproximação entre fé e razão. Durante o seu papado, a Santa Sé reconhece o novo regime
político em 1890 (OLIVEIRA, 1900, p. 163).
Além da separação entre Estado e Igreja, alguns pontos decretados na nova
Constituição brasileira de 1891 não foram bem recebidos pelo episcopado brasileiro,
como: a liberdade de crença e culto, a precedência do casamento civil em relação ao
religioso, o ensino leigo nas escolas públicas e a legislação dos bens de mão morta
(permissão da alienação de conventos e terras pertencentes a ordens religiosas sem
autorização dos bispos), geraram uma reação por parte da Igreja Católica (OLIVEIRA,
1900, p. 24).
Com a constituição de 1891, a Igreja perdeu uma série de privilégios garantidos
pelo regime do padroado mas recuperou sua liberdade de ação dentro do território
brasileiro sem a interferência do Estado. Com a perda do espaço político, a Igreja Católica
buscou reforçar seus laços com a sociedade e dentro dela procurou legitimar a sua
importância para o país. As cartas pastorais, escritas pelos bispos, desse período
demonstram um apoio ao novo regime político ao mesmo tempo demonstravam uma
preocupação com os leigos pedindo que mantivessem a sua fidelidade.
Buscando manter-se no poder, a Igreja Católica utilizou-se do imaginário social
para fortalecer sua relação com a população, frente às diversas perdas de espaço na
sociedade e na política. A devoção a Nossa Senhora Aparecida foi estruturado dentro do
discurso oficial da Igreja neste momento. Dentre as análises feitas até o momento,
acredito que a escolha foi baseada no fato de ser um elemento que já permeava a
religiosidade popular, existindo documentação de peregrinações desde 1740 para
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1543
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Guaratinguetá; pela sua proximidade com a padroeira de Portugal (que também foi
padroeira do Brasil no período colonial), Nossa Senhora da Imaculada Conceição, sendo
uma ruptura que representa também uma continuidade; e, na tentativa de afastar-se de
uma imagem retrograda, apresentam Aparecida como um novo um novo símbolo para
representar a nova fase da Igreja Católica no Brasil, tentando aproximar-se da
modernidade.

A construção de uma identidade: coroação de N. S. Aparecida

(...) o nacionalismo não é somente um movimento político e social, mas


utiliza também uma linguagem e símbolos religiosos. (HAUCK, 2008,
p. 78)

É no imaginário social que os grupos humanos constituem sua identidade e


diretrizes, forjam heróis e inimigos e organizam sua história. Sendo um aspecto da vida
social e das atividades de seus agentes, tendo suas formas de se manifestar, reproduzir e
renovar dependendo do momento histórico. Por imaginário social, compreendemos a
participação da atividade imaginativa individual em um fenômeno coletivo. “Todas as
épocas têm as suas mobilidades específicas de imaginar, reproduzir e renovar o
imaginário” (BAZCO, 1985, p. 309). A imposição de um novo regime político caracteriza
um desses momentos de renovação do imaginário social, de apagamento e/ou de
deterioração de símbolos que representem os regimes passados e a sua substituição por
novos elementos que permeiem o imaginário coletivo.
A proclamação da República no Brasil foi fruto de demandas políticas e de
influência da Igreja Católica que almejava o fim do padroado. O início de um novo regime
gerou uma intensa disputa de símbolos que tinham o papel de legitimar o novo regime
perante a população. As ideias de progresso, do liberalismo e do cientificismo fascinavam
políticos e intelectuais que buscaram através de novos símbolos representar a “verdadeira
essência do brasileiro” e os heróis da nação.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1544
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Dentre as disputas pelos símbolos nacionais, a devoção a Nossa Senhora


Aparecida começou a ser estimulada de diversas formas pelo alto clero brasileiro, no qual
podemos destacar a figura de Arcebispo do Rio de Janeiro Joaquim Arcoverde. Devoto
da Virgem, Arcoverde preocupou-se em organizar o culto dentro do projeto de
romanização, enviando os missionários redentoristas para cuidar do santuário em 1894.
A separação entre Igreja e Estado deu aos bispos católicos e a Santa Sé a liberdade
que faltava para concluir o processo de romanização do clero e da população católica no
Brasil. Nossa Senhora Aparecida foi utilizada nesse momento como símbolo da
unificação do clero e dos católicos em torno da Igreja. Entretanto porquê ela sendo que já
existiam outras devoções mais conhecidas estabelecidas como Nossa Senhora da Penha,
por exemplo. A escolha de Aparecida tem haver com o momento político e social
enfrentado pela Igreja Católica naquele período.
Um dos primeiros pontos que podemos destacar é o fato dessa aparição de Maria
ser “brasileira”, ter acontecido no próprio país, diferente das outras que foram importadas
da Europa. Muitos intelectuais no final do século XIX e início do XX questionavam a
viabilidade do país devido as suas características mestiças por causa da influência do
darwinismo social e procuravam redefinir, a partir de uma imagem republicana, o que era
ser brasileiro. Além disso, a imagem de Aparecida era negra, havia sido escurecida pelo
tempo que ficou submersa no rio Paraíba do Sul, cor que representava grande parte da
população brasileira e que estava a margem da sociedade.
Por ser uma devoção recente, o culto a Aparecida poderia ser organizado e
romanizado segundo os padrões da Santa Sé. Os redentoristas foram os responsáveis para
organizar sua história, validar quais milagres dedicados a ela fariam parte de sua narrativa
e seria utilizados como exemplos para a catequese das gerações futuras. Eles tiveram um
papel importante na construção da história desse símbolo, pois foram os responsáveis por
arquivar toda a documentação referente a santa.
Outro fator importante é pela imagem de Nossa Senhora Aparecida ser
originalmente a imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, padroeira de
Portugal e antiga padroeira do Brasil no período colonial. Virgem Aparecida é uma
ruptura com a cultura devocional europeia ao mesmo tempo que representa uma
continuidade desse período, sendo o mesmo ícone com uma nova aparência exterior. As
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1545
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

principais características que eram exaltadas são referentes aos milagres que ela realizava,
a ideia de mãe que atende aos aflitos e aos menos favorecidos, atende aos pedidos
daqueles que se comportam de acordo com a fé católica e acolhe a todos indiferente da
classe social e da cor da pele.
É importante destacar as diferenças existentes entre a vivência do catolicismo
pelos populares e pelo clero. O processo de romanização tinha como objetivo acabar aos
poucos com os exageros e deturpações da religiosidade popular. Em relação a N. S.
Aparecida, os redentoristas escreveram as sua impressões sobre a relação dos devotos
com a santa.

o costume do povo de rezar diante da imagem (de Nossa Senhora


Aparecida) e beijar as fitas que pendiam do nicho, entretanto, vinha do
início do culto. Com o tempo, introduziram-se alguns abusos. (...)
Peregrinos que pernoitavam nos cubículos das naves laterais da igreja,
quando a sós, retiravam a Imagem de seu nicho e andavam com ela pela
igreja cantando e dando de beijar a seus companheiros e familiares,
muitas vezes com falta de cuidado e respeito. (BRUSTOLONI, 1998,
p. 94)

Ao mesmo tempo em que temos a repressão de algumas manifestações populares


de religiosidades podemos perceber uma valorização de atitudes autênticas da fé popular
que passaram a ser vistas como expressão da nacionalidade brasileira. Isso é perceptível
através da análise dos manuais de devoção763, onde existe a tentativa de organizar a
maneira com que as pessoas rezam, mostrando como devem se portar na missa ou diante
da imagem mas dedicam um grande espaço do mesmo as expressão daqueles que tiveram
alguma graça alcançada por Aparecida, e pedindo que enviem seus relatos para o
santuário.
A devoção a Nossa Senhora é uma experiência com diferentes significados para
três dimensões da sociedade brasileira: populares, elite política e intelectual, e para a
Igreja Católica. Por meio de Aparecida, os populares e devotos vivenciam a cidadania
cultural absorvendo alguns práticas apresentadas pela romanização e dialogando com a
sua religiosidade própria fazendo com que esse símbolo seja resignificado e utilizado

763
É um livro pequeno que cada peregrino possui para participar das celebrações da peregrinação.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1546
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

como ponte entre as culturas africanas e populares. A santa foi absorvida especialmente
pelas religiões afro-brasileiras na qual representa, no Rio de Janeiro, Mamãe Oxum, a
deusa das águas doces e seu dia é comemorado no mesmo dia da Imaculada Conceição,
8 de Dezembro (FERNANDES, 1988, p. 104).
A elite intelectuais e política anseia por um Brasil Moderno neste período e que
seria oposto a desordem e a falta de civilização que haviam sido a colônia e o império.
Nossa Senhora Aparecida ofereceu uma imagem de ordem e disciplina, características
importante para aqueles que queria ter uma graça alcançada da mesma. Somado a isso,
promovia uma imagem pacificadora e de identificação com as camadas mais baixas da
sociedade, valores que eram estimados para o novo regime político que estava tentando
se legitimar perante a população. Vários políticos visitam Nossa Senhora Aparecida e
inclusive estiveram presente na cerimônia de coroação da imagem.
Nossa Senhora Aparecida era a possibilidade de um diálogo com a modernidade
para a Igreja Católica visto que ao mesmo tempo que valorizava a tradição da Santa Sé
destacava a importância da religiosidade do povo da mesma forma que diversos
jornalistas e viajantes que passaram pelo santuário comentavam como o botânico francês
Saint-Hilaire que ao passar pela capela em 1822 escreveu “ a imagem que ali se venera,
passa por milagrosa e goza de grande reputação, não só na região mas nas partes mais
longínquas do Brasil. Aqui vem ter gente, dizem, de Minas Gerais e Bahia, a cumpri
promessas feitas a Nossa Senhora Aparecida” (BRUSTOLONI, 1998, p. 76). Esse ícone
possibilitou uma legitimação da Igreja Católica dentre da sociedade, atingindo não apenas
as camadas populares mas as esferas mais altas também, gerando uma nova identidade
para ela na república brasileira.
A promoção desse símbolo na cidade do Rio de Janeiro ocorreu através de
diversos periódicos, dentre eles destacamos “O Apostolo”, jornal da Arquidiocese do Rio
de Janeiro, e o “Jornal do Brasil”, por ser o que mais publicou sobre Nossa Senhora
Aparecida neste período. Esses dois periódicos foram muito importantes para a
construção simbólica de Aparecida por transmitirem mais que informações sobre a santa,
comentavam sobre a importância da Igreja para a sociedade.
O periódico “O Apostolo” foi um instrumento importante utilizado na elaboração
dessa nova identidade mariana. Por ser o meio de comunicação da Igreja Católica entre o
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1547
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

clero e a população promoveu a devoção a Nossa Senhora Aparecida através da


publicações de notícias que explicavam a história da santa, contando milagres e
convocando os católicos para as peregrinações da Arquidiocese do Rio de Janeiro.
Através desse jornal, a Igreja Católica conseguiu se aproximar da sociedade e apresentar
suas ideias em relação a República e a Nossa Senhora Aparecida.
O “Jornal do Brasil” não é um periódico católico mas conservador e que possui
diversas publicações sobre Aparecida. Algumas das notícias foram publicadas na “secção
religiosa”, dirigida pelo padre Giacomo Vicenzi que tinha como objetivo fazer
“propaganda santa da fé catholica”764. O periódico apresentava diversas matérias sobre
Aparecida e divulgava frequentemente todas as peregrinações organizadas na cidade do
Rio de Janeiro. Somado a isso, realizou uma cobertura da cerimônia da coroação da
imagem, apresentando várias notícias sobre o evento na primeira página do jornal.
Ambos os jornais auxiliaram, de maneiras distintas e de acordo com seus próprios
interesses na construção simbólica de Nossa Senhora Aparecida e também da identidade
da Igreja Católica, dialogando com seus públicos, apresentaram um modelo de pessoa a
ser seguido pela população e que tornaram um evento simples e religioso como a coração
em um ato que dominou as notícias no mês de setembro, superando as notícias da
comemoração da Independência do país.
A cerimônia da coroação de Aparecia foi marcada para o dia 08 de setembro, dia
em que os católicos comemoram a natividade de Maria, com o propósito de coroar a
imagem que não havia recebido uma coroa, uma prática bem comum nas paróquias e
dioceses. O que destaca essa coroação de tantas outras é o fato dela ser a primeira e da
escolha do dia ser tão próximo de uma data importante para o governo. Através de um
gesto simples e de uma grande movimentação de pessoas para o santuário de N. S.
Aparecida a Igreja Católica buscou reafirmar sua importância para o Estado mostrando
como era capaz de mobilizar a sociedade em torno de um novo símbolo.

Considerações Finais

764
“Jornal do Brasil”, 28 de Dezembro de 1900, edição 00362, p. 1. Disponível em: Biblioteca Nacional
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1548
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A coroação de N. S. da Conceição Aparecida como Rainha do Brasil é uma data


importante neste processo por marcar publicamente a primeira mobilização realizada em
torno desse símbolo e a reunião do alto clero, dos padres e fiéis de diversos grupos sociais
em torno de um único símbolo. Sendo uma demonstração para o Estado de qual tipo de
identidade brasileira a Igreja estava a favor.
O hibridismo desse símbolo possibilitou a Igreja Católica a alcançar as diversas
camadas da sociedade de diferentes formas, por meio das noticias, peregrinações,
manuais de devoção e dos sermões nas paróquias. Por meio da documentação, estou
buscando compreender a construção de uma nova identidade assumida pela Igreja
Católica na 1ª República que utilizou Nossa Senhora Aparecida como unificação da
mesma pelo país.
Através da documentação, estou procurando entender os elementos do presentes
no imaginário social do período e que giravam em torno dos símbolos nacionais que
foram escolhidos pelos jornais, cartas pastorais e pelo manual de devoção para se
referirem a Nossa Senhora Aparecida. Observando a resposta dos devotos através das
cartas envidas pelos devotos, e que estão presentes no jornal “Santuário D’Apparecida”.
em agradecimento pelas graças alcanças pela intercessão de Aparecida quais elementos
são por eles e se dialogam com a proposta da Igreja Católica.
Nossa Senhora da Conceição Aparecida mais que uma devoção mariana do
catolicismo, passa a ser um símbolo que permeia as outras religiões brasileiras, como as
de matriz africana, e o imaginário ligado a identidade nacional, vindo a ser transformada
em Mãe dos brasileiros, aquela que intercede por todos da nação brasileira mas que para
cada grupo possui um significado próprio.

Fontes

● Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital


Periódicos: Jornal do Brasil (1900-1904)
O Apostolo (1903/1904)

● Centro de Documentação de Memória Santuário Aparecida


Manual de devoção (1904 /1928)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1549
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

● Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro


Série: Carta Pastoral, caixa 807, notação 064, “Pastoral Colletiva, Província Ecclesiastica
de São Sebastião do Rio de Janeiro ao Clero e aos fieis de suas dioceses pelo 50º
anniversario da definição do dogma da Immaculada Conceição de Maria Santíssima”, Rio
de Janeiro, 1903.

Série: Carta Pastoral, caixa 807, notação 067, “Pastoral Colletiva dos Bispos da Província
Ecclesiastica Meridional do Brasil comunicando ao Clero e fieis o resultado das
Conferências dos mesmos, no Santuário da Apparecida”, 1 a 7 de Setembro de 1904.

Referências Bibliografia

ALMEIDA, José Maria Gouvêa de. MOURO, Sérgio Lobo de. A Igreja na Primeira
República. In: BORIS, Fausto. (org.). “História geral da civilização brasileira. O Brasil
Republicano”. 7ª ed. São Paulo: BERTRAND BRASIL, 2004, Tomo III, vol. 2, 2004.

BACZO, Bronislaw. "Imaginação social". In: Enciclopédia Einaudi. Anthropos-Homem,


vol.5. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985.

BEOZZO, José Oscar. A Igreja entre a Revolução de 30, o Estado Novo e a


Redemocratização. In: BORIS, Fausto. (org.). “História geral da civilização brasileira.
O Brasil Republicano”. São Paulo: DIFEL, 1984, Tomo III, vol. 4.

BRUSTOLONI, Júlio J. História de Nossa Senhora da Conceição Aparecida: a Imagem,


o Santuário e as Romarias. Aparecida. São Paulo: Editora Santuário, 1998.

FERNANDES, Rubem César. Aparecida: nossa rainha, senhora e mãe, savará!. In:
SACHS, Viola…[et al]. Brasil & EUA: Religião e Identidade Nacional. Tadução dos
textos em inglês e francês Sergio Lamarão. – Rio de Janeiro: Graal, 1988, p.85-111.

HAUCK, João Fagundes. [et. al.]. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação
a partir do povo: segunda época, século XIX. 4ª ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2008.

OLIVEIRA, Lucia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo:


Brasiliense, 1990.

PETERS, José Leandro. Nossa Senhora Aparecida do discurso da Igreja Católica no


Brasil (1854-1904). Dissertação (Mestrado em História)—Universidade Federal de Juiz
de Fora, Juiz de Fora, 2012.

SOUZA, Juliana Beatriz Almeida de. Virgem Mestiça: devoção à Nossa Senhora na
colonização do Novo Mundo. Tempo – Revista do Departamento de História da UFF, Rio
de Janeiro, V. 6, N. 11, 2001.

VIERA, Dilermano Ramos. História do Catolicismo no Brasil (1889-1945): volume II.


São Paulo: Editora Aparecida. 2016.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1550
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1551
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Efeitos da Música”: Terapia Musical e Cultura da Sensibilidade no século XVIII


(1750 - 1789).

JOÃO LUIZ GARCIA GUIMARÃES


PPGHCS – Fiocruz /FAPERJ

I. Introdução
“A saúde é tão musical, que a doença nada mais é
que uma dissonância” (François de La Mothe Le
Vayer, Discours sceptique sur la Musique)765.

Apesar de ser um tema pouco conhecido, a ideia de que a música tem potenciais
curativos é muito antiga, datando, ao menos, do quarto século antes de Cristo. Em um
clássico diálogo, Sócrates afirmava que “para o corpo, dispomos da ginástica e para a
alma, da Música” (PLATÃO. A República, p. 376 b – e). A ideia expressa em Platão foi
apropriada por diversos outros autores ao longo dos séculos. No presente artigo, busquei
analisar as teorias do médico Jean-Joseph Ménuret de Chambaud (1739 – 1815)766 sobre
os poderes curativos dos sons. Minha fonte principal é o verbete “Efeitos da Música”
(MÉNURET, 1765, v. X, p. 903-909), escrito por Ménuret para a Enciclopédia de
Diderot. Conforme tentei demonstrar, o verbete nos auxilia na compreensão das etapas
de desenvolvimento de um pensamento médico que se dizia inovador, o vitalismo de
Montpéllier, ao qual Ménuret pertencia. No que diz respeito à terapia musical, o que
busquei sublinhar é a constante interferência de questões de estética e teoria no
pensamento médico de Ménuret.
Para poder atingir meus objetivos, busquei reconstituir elementos do contexto
histórico, cultural e intelectual de Ménuret, elementos esses com alta probabilidade de
terem exercido influência em seu pensamento. Após trata-los em separado, busquei, na
seção IV, entender como convergiram para informar as suas análises.

765
LE VAYER, François de la Mothe. Oeuvres completes, t. IV. Paris: Billaine, 1669, p. 227.
766
Filho de François Ménuret, um oficial de artilharia, se tornou doutor em medicina pela Universidade de
Montpéllier em 1757. No ano seguinte, o médico se encontra em Paris, onde ficaria até 1761. Durante esse
intervalo, ele foi apresentado a Diderot por um amigo da universidade, o químico Gabriel-François Venel
(1722 – 1775), oportunidade que provavelmente surgiu no salão mantido por Paul-Henri Thiry, o Barão
d’Holbach (1723 – 1789). Após 1765 ele retorna para sua cidade de origem, onde atuará como a maior
parte da sua vida como simples médico de província.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1552
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

II. O vitalismo de Montpéllier


As ideias médicas do vitalismo encontraram grande espaço na Enciclopédia de
Diderot, publicada a partir de 1751, que retirou quase todos os seus colaboradores em
medicina da escola de Montpéllier. Essa cidade era o lar de uma das maiores faculdades
de medicina da Europa, que formava mais profissionais do que qualquer outro centro
universitário. A grande quantidade de médicos, apotecários e cirurgiões causou
transformações significativas na prática de medicina, obrigando, primeiramente, os seus
profissionais a atender pessoas de estatutos sociais mais variados – em vez de frequentar
exclusivamente uma clientela aristocrática –, o que os dotou de uma visão aguçada dos
fatores condicionantes da saúde e da doença em seu contexto local (WILLIAMS, 2003,
p. 16 – 17).
Localizada no Sul francês, a Montpéllier do século XVIII era capital de uma
região extremamente pobre, marcado pelas pesadas sanções da Coroa que, no século
XVII, tentara extirpar o protestantismo do Reino, proibindo ou limitando a atividade
editorial no Languedoc. A forte competição intraclasse, condicionada pelos altos números
de profissionais, a crescente necessidade de demonstrar utilidade, fomentada por uma
cultura local que valorava as artes construtivas, foram grandes fatores socioculturais a
moldar as ideias de seus médicos (WILLIAMS, 2003, p. 17). Suas teorias, embora
variadas e muitas vezes abertamente dissonantes, formaram o que hoje se denomina
“doutrina vitalista”, “vitalismo” ou “escola de Montpéllier”. Os vitalistas defendiam a
ideia de que a doença e a saúde são produtos de fatores sociais (WILLIAMS, 1994, p. 9).
Consequentemente, os médicos dessa escola tinham especial interesse no estado
psicológico, nos costumes e hábitos que um indivíduo partilha em sua vida, entendidos
como fundamentais para a sua recuperação.
Até as primeiras décadas do século XVIII, a atitude mais comum dos médicos era
a de tratar o corpo “à parte” (REY, 1997, p. 117), deixando instancias que eram o domínio
da alma – raciocínio, memória, hábitos de pensamento e sentimentos – para outros agentes
sociais, sobretudo aqueles da esfera do sagrado (EDLER; FREITAS, 2013, p. 267;
HUNEMANN, 2007, p. 623). Essa divisão do trabalho, ora tácita, ora declarada, foi sendo
desafiada aos poucos por pensadores que negavam a separação absoluta entre essas duas
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1553
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

esferas do indivíduo, alegando que ambas viviam em uma relação absolutamente


fundamental para compreendê-lo e curá-lo. O vitalismo traz em seu bojo um modelo de
compreensão do homem que nega a possibilidade de conhecê-lo apenas a partir das leis
universais da mecânica, como se ele fosse uma máquina inanimada – paradigma médico
dominante à época – conduzida por uma alma imaterial e imortal.
Ao contrário das correntes mecanicistas que buscavam na máquina o seu modelo
heurístico, os membros da escola de Montpéllier tentavam encontrar um conceito que
fizesse jus ao caráter integrado do corpo. Isto porque o organismo vivo mantém
temperatura e pressão estáveis, apresenta evidencias constantes de interação entre funções
de partes distantes, jamais se desagrega totalmente ao perder uma delas e, entretanto, ao
cessar a vida, ainda pode manter-se inteiro por algumas horas (REY, 1997, p. 130). Para
os vitalistas, a insuficiência das respostas oferecidas pelo modelo mecanicista clamava
por uma teoria que entendesse o fenômeno da vida nos seres animados de um modo mais
integrado – através da observação muito mais do que da experimentação –, atentando às
particularidades dos seres dotados de vitalidade (WOLFE; TERADA, 2008, p. 540).
Na máquina as causas atuam linearmente; no homem, é impossível diferenciar
efeitos de causas: a alma age sobre o corpo, e vice-versa, e não há razão de buscar a
origem das afecções, sejam elas mentais ou físicas, pois o que é mais importante é que o
tratamento contemple todas as esferas componentes do indivíduo (WOLFE: TERADA,
2008, p. 542)767. O nome dado pelos vitalistas à essa descrição do funcionamento do
homem é “economia animal” (MÉNURET, 1765, v. XI, p. 360). A economia animal era
o resultado da circulação de estímulos entre as moléculas, fibras ou órgãos. Cada uma
dessas partes elementares era capaz de responder quando excitada porque era dotada de
“sensibilité” (sensibilidade)768. Como resumiu bem uma estudiosa do vitalismo: “no ser
vivo tudo é vivo” (REY, 1997, p. 122). Essa concepção mais integrada do homem cria
condições para uma reinterpretação dos efeitos da música sobre a saúde dos indivíduos.

767
A voga do par ação-reação, de criação newtoniana, tem enorme importância na fundamentação dessa
ideia. Cf. STAROBISNKI, Jean. Ação e reação: vida e aventuras de um casal. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
768
Paul-Joseph Barthez (1734 – 1806) definiu a vida como uma incógnita de cuja existência se toma
conhecimento ao estudar os corpos vivos e perceber neles aquilo não se pode explicar pela simples ação
das forças físicas ou químicas. Como a gravidade que, não sendo visível, empurra os corpos para o centro
da terra, o “princípio vital” torna o corpo animado e integrado.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1554
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Considerada uma arte capaz de mover o coração, a música acompanha de perto o novo
lugar que as emoções e sentimentos – as “paixões da alma”, no vocabulário da época –
ocupam na economia animal (HUNEMANN, 2007, p. 623).

III. Música, Sociedade e Medicina em Paris – 1750.


Desde o século XVII, a ideia de som vinha assumindo um caráter cada vez mais
matematizado, na esteira dos desdobramentos intelectuais do projeto racionalista
cartesiano ou newtoniano (PESIC, 2014; FUBINI, 1990; COHEN, 1984). A música
também passou a ser concebida de um modo comparativamente mais materialista e, ao
raiar do século XVIII, tanto a estética quanto a medicina já haviam começado a explicar
sua influência em termos de nervos e de sensibilidade individual (KENNAWAY, 2012;
ROUSSEAU, 2004).
Como nicho para essas ideias, uma cultura urbana e letrada descobria novas
sociabilidades e novos subterfúgios emocionais para fugir a um código de corte rígido.
Chamada de “cultura da sensibilidade” (REDDY, 2014), esse novo conjunto de hábitos e
práticas dotou a capital parisiense de cafés, lojas maçônicas, concertos públicos e salões,
ambientes nos quais a especulação musical, muitas vezes, andava lado a lado com a sua
execução. A década de 1750, especialmente, foi uma das décadas em que mais se
polemizou e politizou a música na França, sobretudo a partir de debates intelectuais que
em grande parte excluíam aqueles que faziam dessa arte o seu ganha pão (GEOFFROY-
SCHWINDEN, 2015, p. 65)769.
O evento mais notável desse momento foi a Querela dos Bufões, iniciada em 1752
após representação da ópera La serva padrona, de Giovanni Battista Pergolesi (1710 –
1736). O conflito contribuiu para fazer borbulhar um caldeirão de intrigas e panfletos que
já vinham sendo trocados desde 1751, e que versavam sobre as vantagens da música
italiana sobre a francesa ou da primeira sobre esta última770. Por música italiana ou
francesa, entenda-se o espetáculo mais bem reputado e mais considerado pelos

769
Pouco antes, em 1749, O Caso dos Quatorze, um escândalo envolvendo cantigas de escárnio e maldizer
supostamente dirigidas à Madame de Pompadour (amante de Luís XV), já antecipava o poder de
deflagração das práticas culturais francesas (DARNTON, 2014).
770
A Querela leva esse nome em função da companhia italiana que representou La Serva Padrona¸ os
Bufões.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1555
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

intelectuais: a Ópera, que reunia todas as artes – escultura, pintura, construção de


mecanismos, entre outras – sobre um palco ao qual tinha acesso um público razoável de
conhecedores da arte.
Embora houvesse uma diversidade de opiniões, o conflito intelectual se resumiu
em duas posições bem definidas. De um lado, os enciclopedistas com sua “política
coletiva” favorável à música italiana surgida da necessidade de apoiar Rousseau, que
havia deflagrado as discussões mais virulentas da querela em 1753, por meio dos
argumentos contidos na sua Carta sobre a música francesa (O’DEA, 2003, p.113). Para
o genebrino, a música francesa era artificial demais, muito voltada para o intelecto e por
demais concentrada na harmonia – essa uma simples convenção – para ter qualquer
expressão. Ela não falava aos sentimentos mais íntimos, mas apenas agradava aos
ouvidos. A ópera francesa negligenciava, a seu ver, a verdadeira linguagem dos
sentimentos: a melodia. As óperas italianas, ao contrário, eram infinitamente mais
melódicas, e por isso, podiam confiar na simplicidade da montagem e no elenco pequeno
que, que de resto, representava personagens do mundo cotidiano.
Do outro lado, o gosto aristocrático e a personalidade do organista Jean-Philippe
Rameau (1683 – 1764) afirmavam ser a tragédie lyrique771 a mais expressiva, pois falava
ao sentimento pela verdadeira forma de comunicar que era a Harmonia. Para Rameau, a
harmonia era a linguagem dos nossos instintos mais arraigados, por ser totalmente natural
(RAMEAU, 1754, p. VI). Na verdade, a sua pretensão não era apenas a de defender o
valor de uma música cuja tradição remontava à corte do Rei Sol, mas também a de colocá-
la no rol das ciências (FUBINI, 1990, p 116). Para ele, a grande variedade de práticas
musicais disponíveis em seu tempo podia ser explicada por um único princípio físico
natural, que chamou de “princípio da harmonia”: os acordes (conjuntos de três ou mais
notas) utilizados na música existiriam naturalmente, podendo ser depreendidos dos sons
fundamentais (dó, ré, mi, fá, etc.). As consonâncias que formam os acordes e nos dão o
sentido de satisfação ao ouvi-las estariam, assim, na Natureza. O prazer, por conseguinte,
ganha um caráter universal. Onde Rousseau enxergava uma enorme confusão de

771
Termo pelo qual se se chamava o gênero operístico na França.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1556
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

elaborados artifícios matemáticos e teóricos que acabavam por anular o poder expressivo
da música, Rameau via a própria busca da verdade científica:
O princípio [da harmonia] de que se trata, não é apenas aquele de todas
as artes de Gosto [...], mas ainda o de todas as Ciências submetidas ao
cálculo: o que não podemos negar, sem negar ao mesmo tempo que
essas Ciências sejam fundamentadas sobre proporções e progressões,
das quais a Natureza nos dá a conhecer no Fenômeno do Corpo Sonoro,
em circunstâncias tão notáveis, que é impossível se recusar a reconhecer
a sua evidência: quem dirá negá-la! (RAMEAU, 1754, p. XV – XVI;
tradução nossa).
O que há de político no apoio à música italiana e na crítica à francesa é o fato de
que é impossível separar o gosto do pertencimento de classe. A ópera francesa era uma
arte de corte, e a tragédie lyrique é justamente o âmbito simbólico de construção do mito
do Rei. Assim, o que se conclui é que “o gosto era política” (SAISSELIN, 1992, p. 44).
A Querela faz parte dos inícios do Iluminismo enquanto movimento filosófico, e lega
para as décadas seguintes uma série de questões que julgo serem incontornáveis para a
maior dos intelectuais dispostos a discutir música nesse período, mesmo os médicos. O
momento em que Ménuret escreve sobre terapia musical é, portanto, um dos mais
significativos da história dessa arte no século XVIII francês. Como a música foi
concebida em seu pensamento e que relações guarda com os temas colocados pelos
debates até então travados entre os intelectuais?

IV. Tratar o corpo, curar a alma


A maior parte dos verbetes sobre música contidos na Enciclopédia são de autoria
de Rousseau. As suas ideias, já expostas no item anterior, constituíram parte significativa
do que esse dicionário tem a dizer sobre a natureza da música e sua prática. Rameau,
sempre com um olho no que se publicava, chegou a fazer imprimir duas críticas ao que
ele chamou “Erros sobre a Música na Enciclopédia” (1755). O grande compositor,
contudo, faleceu um ano antes da publicação do volume X, que conteria a mais
significativa afirmação de Rousseau para a questão da terapia musical, o verbete
“Música”. Ele reconhece, nesse contexto, a ação do som com base em experiências
acústicas conhecidas de longa data:
Se nossa música exerce pouco poder sobre as afecções da alma, ela é
capaz de agir fisicamente sobre os corpos [...] todos esses exemplos cuja
maior parte pertence mais ao som que a Música, os quais a física pode
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1557
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

explicar [...] (ROUSSEAU, 1765, v. X, p. 899 – 900; grifo nosso;


tradução nossa).
Como crítico do poder expressivo da música francesa, Rousseau não lhe atribui
poder sobre as emoções, mas não nega seu poder geral enquanto onda física. A distinção
entre efeitos físicos e efeitos morais/emocionais também aparece em Ménuret. As linhas
que o médico dedica ao tema da terapia transpiram bastante as questões levantadas
durante a década de 1750, sobretudo as do debate entre Rousseau e Rameau. Ele admite
que a música dos modernos seja menos capaz de mover as paixões, o que para ele é culpa
da “desatenção dos nossos músicos”772. Mas, conforme penso, ele não dá tanta
importância ao elemento expressivo e sim ao caráter físico:
Pode-se distinguir, a partir dos efeitos da música, duas formas
principais de agir; uma puramente mecânica, dependente da
propriedade que a Música possui, como o som de se propagar, de pôr o
ar e os corpos vizinhos em movimento, sobretudo quando eles estão em
uníssono; a outra maneira de agir rigorosamente redutível à primeira,
é mais particularmente ligada à sensibilidade da máquina humana,
ela é um resultado da impressão agradável que produz em nós o prazer
excitado pelo som modificado, ou Música (MÉNURET, 1765, v. X, p.
907ª; grifo nosso; tradução nossa).
Como indicado na passagem acima, a segunda forma de agir pode ser
“rigorosamente reduzida” à mecânica. É o corpo humano que detém a chave dos efeitos
musicais. Aí reside uma distinção importante: a capacidade de ser afetado
emocionalmente pela música – a “sensibilidade da máquina humana” – ainda está mais
associada ao elemento físico. Para Rousseau, ao contrário, é uma questão de cultura. O
amadurecimento de seu pensamento ao longo de toda uma década de debates e de
reflexões o levaria a dizer que os sons apenas nos tocam pela sua associação com
memórias e identidades, não por termos nervos mais ou menos sensíveis. Vejamos uma
passagem do Ensaio sobre a origem das línguas, concebido por volta de 1762:
Enquanto se continuar considerando os sons unicamente pela excitação
que despertam em nossos nervos, de modo algum se terá verdadeiros
princípios da música, nem noção de seu poder sobre os corações. Os
sons, na melodia, não agem em nós apenas como sons, mas como
sinais de nossas afeições, de nossos sentimentos. Desse modo
despertam em nós os movimentos que exprimem e cuja imagem neles
reconhecemos. [...] Se o maior dos impérios que sobre nós possuem as
nossas sensações não advém de causas morais, por que então somos nós
tão sensíveis a impressões que são nulas para os bárbaros? Por que as

772
Esse argumento também se encontra no Discurso Preliminar.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1558
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

nossas músicas mais comovedoras não passam, ao ouvido de um


caraíba, de um ruído qualquer? Seus nervos são de natureza diversa da
dos nossos? Por que não são também eles atingidos? Ou por que essas
mesmas comoções afetam tanto a uns e tão pouco a outros?
(ROUSSEAU, 1781, p. 191; grifo nosso; tradução nossa).
Para Ménuret, contudo, a música nos acessa muito mais pelas nossas
características físicas, pelos nervos e pela nossa tendência a apreciar consonâncias:
[...] a Música é uma construção, um encadeamento, uma sequência de
tons mais ou menos diferentes; não emitidos por acaso e segundo o
capricho de um compositor, mas combinados segundo regras
constantes, unidos e variados segundo os princípios demonstrados
da harmonia, de que todo homem bem organizado porta ao nascer
uma espécie de regra; eles [os princípios] são certamente relativos à
organização da nossa máquina, e dependem ou da disposição e de um
movimento determinado das fibras da orelha, ou de um amor natural
que temos por um arranjo metódico (MÉNURET, 1765, v. X, p. 907b;
grifo nosso; tradução nossa).

A fala de Ménuret soa fortemente como uma apologia à Rameau 773 e seu
“princípio da harmonia”, cujos traços estariam também na nossa natureza. Para aplicar a
música, é necessário ajustá-la ao estado e ao gosto do doente, embora o que prevaleça
seja uma apreciação da sensibilidade nervosa:

Assim, quando se desejar aplicar a Música à Medicina, o compositor


deve fazer suas melodias se adequarem ao estado do doente, escolher
os tons mais apropriados a inspirar as paixões que parecerem
convenientes; o músico deve, portanto [...] contribuir à ilusão e a
complementar; por esse meio poder-se-á tornar confiante uma pessoa
tomada de medo, acalmar os furores de um frenético, encantar, por
assim dizer, as dores vivas que atormentam um gotoso; nós ajudaremos
um melancólico, um hipocondríaco, ao fixar sua imaginação em objetos
agradáveis, os desviando da consideração perpétua de seu estado,
consideração esta que agrava, que aumenta a sensibilidade dos
nervos e torna o mal-estar mais inquietante e as dores
insuportáveis: nós poderemos diminuir, dissipar o sofrimento, e
prevenir assim as suas funestas consequências: nós chegaremos mesmo
a apreensão que frequentemente as acelera e as dispõe, ocasiona e torna
pioras e mais difíceis de combater, daí sua utilidade contra a hidrofobia,
reconhecida por diversos autores, doença que é bem frequentemente
determinada pelo medo e pela tristeza que o paciente mordido

773
A guisa de exemplo, basta comparar o trecho recém citado com o seguinte: “Para gozar plenamente dos
efeitos da Música, é necessário estar em um puro abandono de si mesmo, e para poder julga-los, é ao
Princípio mediante o qual se é afetado que se deve recorrer. Esse Princípio é a própria natureza, e é dela
que mantemos esse sentimento que nos move em todas as nossas Operações musicais, ela nos forneceu um
dom que podemos chamar de Instinto [...]” (RAMEAU, 1754, p. III; grifo nosso; tradução nossa).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1559
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

experimenta [...](MÉNURET, 1765, v. X, p. 908a; grifo nosso;


tradução nossa).

Os limites entre o que nos afeta no físico e no moral estão sempre sendo
desafiados. Enquanto Rousseau critica a ideia da diferença na natureza dos nervos,
Ménuret afirma que “existem pessoas mal organizadas, que não sabem distinguir nem
tom nem compasso, elas não ouvem nada além de um tom fundamental”. Para essas
pessoas
[...] são necessárias as árias alegres, vivas, animadas, que comovem
fortemente as fibras que a natureza, o uso e o habito não tornaram
muito sutis; os compassos binários e terciários os agradam muito [...];
os tons agudos os afetam muito mais que os graves (MÉNURET, 1765,
v. X, p. 908a; grifo nosso; tradução nossa).

O gosto é importante, mas não é fundamental para a cura pela música: mais uma
vez, é a natureza física, a organização, que constitui o elemento mais importante:
2º. Não é necessário ser um conhecedor para sentir prazer quando se
ouve boa música, basta ser sensível; o conhecimento, e o amor, ou o
gosto que o segue de perto, podem aumentar esse prazer; mas não o
produzem completamente: em muitos casos, pelo contrário, o
diminuem: a arte prejudica a natureza. [...] o prazer nasce da
consonância, e ele é particularmente fundamentado sobre a
facilidade que o ouvido possui de captá-la (MÉNURET, 1765, v. X,
907ª; grifo nosso; tradução nossa).

Aqui se encontra um importante elemento de confirmação da conclusão a que


chegou Charles T. Wolfe sobre a relação entre físico e moral no vitalismo: “o
conhecimento da economia animal lança luz, em caráter reducionista, sobre o nível físico
subjacente às ‘ações morais’” (2008, p. 540). A música, mesmo sendo uma força física e
da ordem do material, atinge as paixões da alma exatamente porque os limites entre físico
e moral estão borrados. O problema, contudo, é que ao contrário do que se pensava, o
vitalismo não supera ou anula o mecanicismo: ele é, em si, um “mecanicismo expandido”
(WOLFE; TERADA, 2008, p. 555)774.
Entre Rameau e Ménuret parece haver uma profunda concordância no que diz
respeito ao caráter natural e racional da música. Conforme apontou Enrico Fubini, essa
ideia de natureza teria o sentido de um sistema de regras e leis matemáticas (1990, p.

774
Note-se que Ménuret mantém a expressão “máquina humana”, uma permanência vocabular significativa.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1560
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

117). Já Rousseau escreve majoritariamente de um ponto de vista estético (O’DEA, 2003,


p. 114):
Todos os homens do universo experimentarão prazer ouvindo belos
sons, mas, se inflexões melodiosas que lhes sejam familiares não os
animarem, esse prazer não será delicioso, nem se transformará em
voluptuosidade. Os mais belos cantos ao nosso gosto sempre
impressionarão mediocremente um ouvido não acostumado a eles.
São uma língua cujo dicionário se precisa conhecer. A harmonia
propriamente dita encontra-se em situação ainda menos favorável.
Possuindo apenas belezas de convenção, jamais agrada a ouvidos que
não se instruíram a esse respeito e só com reiterado hábito poder-se-á
senti-la e saboreá-la. (ROUSSEAU, 1781, p. 189; grifo nosso; tradução
nossa).
Para Rousseau a música é uma questão de compreensão, não de percepção – como
em Ménuret. Isto porque ele busca ir contra “o modo como os médicos usavam as ideias
de Rameau para sustentar as suas opiniões sobre os poderes terapêuticos da música” (LE
MENTHÉOUR, 2009, p. 43). Nervos sensíveis são uma prerrogativa de classe em quase
toda a retórica médica do século XVIII, marcando uma presença constante na teoria de
Ménuret. O vitalismo mantinha olhos atentos nos tipos variados de indivíduos e nas suas
condições particulares de existência, de modo que a questão da sensibilidade nervosa não
era incompatível com ele.

V. Considerações Finais
No atual estágio de minhas análises, espero estar satisfatoriamente levantada e
reforçada a hipótese da imbricação entre medicina e estética na proposta terapêutica de
Ménuret. Em uma época em que a especulação musical era reputada como um tema
delicado, passível de tratamento apenas pela “opinião polida de Paris” (GEOFFROY-
SHWINDEN, 2015, p. 65), me parece razoável supor que especulações sobre gosto
exercessem influencia no pensamento médico sobre a música. Considerar esta última
como dotada de regras constantes e ligadas à própria estrutura do corpo humano saudável
significa, a meu ver, um forte reforço de concepções que associam essa arte à ordem e
estabilidade, relação notada por Kennaway (2012, p. 38). Quanto as etapas de
desenvolvimento do pensamento da escola de Montpéllier, o verbete “Efeitos da Música”
aponta as diversas permanências de extração mecanicista nas formas que ele assumiu em
meados do século XVIII. Por fim, o estudo aponta o fato de que a relação entre música e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1561
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

medicina evoca constantemente as relações sociais e estas últimas determinam as


associações possíveis entre uma e outra.

VI. REFERÊNCIAS
V.I. Documentação
CHAMBAUD, Jean-Joseph Ménuret. Effets de la Musique. In: DIDEROT, Denis;
D’ALEMBERT, Jean le Rond. (orgs.). Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des
sciences, des arts et des métiers. Paris: Briasson/David/Le Breton, 1751 – 1780, t. X, p.
903 - 909. Disponível em: http://arflx.uchicago.edu/cgi-bin/philologic/encyclopedie0110.
Acesso em: 10/06/2017.
______________________________. Oeconomie Animale. In: DIDEROT, Denis;
D’ALEMBERT, Jean le Rond. (orgs.). Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des
sciences, des arts et des métiers. Paris: Briasson/David/Le Breton, 1751 – 1780, t. XI, p.
360. Disponível em: http://artflsrv02.uchicago.edu/cgi-
bin/philologic/getobject.pl?c.10:1194:2.encyclopedie0416. Acesso em: 17/06/2017.
LE VAYER, François de la Mothe. Oeuvres completes, t. IV. Paris: Billaine, 1669.
RAMEAU, Jean-Philippe. Erreurs sur la Musique dans l’Encyclopédie. Paris: Jorry,
1755.
_____________________. Observations sur notre instinct pour la musique sur son
principe; Où les moyens de reconnoiter l’un par l’autre, conduisent à pouvoir se render
reaison avec certitude des différens effets de cet Art. Paris: Prault
Fils/Lambray/Duchesne, 1754.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Carta sobre a música francesa. Trad. José Oscar Marques e
Daniela Garcia. Campinas, IFCH – Unicamp, 2005. Disponível em:
http://www.unicamp.br/~jmarques/trad/ROUSSEAU-Carta_sobre_a_musica_francesa.pdf.
Acesso em: 23/06/2017.
______________________. Ensaio sobre a origem das línguas. In: Rousseau. São Paulo:
Editora Abril, 1983.
______________________. Musique. In: DIDEROT, Denis; D’ALEMBERT, Jean le
Rond. (orgs.). Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1562
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Paris: Briasson/David/Le Breton, 1751 – 1780, t. X, p. 899 - 903. Disponível em:


http://artflsrv02.uchicago.edu/cgi-bin/philologic/getobject.pl?c.9:2337.encyclopedie0416.
Acesso em: 17/06/2017.

V.II. Bibliografia
COHEN, H. F. Quantifying Music: The Science of Music at the First Stage of Scientific
Revolution 1580 – 1650. Dordrecht: Springer, 1984.
DARNTON, Robert. Poesia e Política: Redes de Comunicação na Paris do Século XVII.
São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
EDLER, Flávio Coelho; FREITAS, Ricardo Cabral. O “Imperscrutável vínculo”: corpo
e alma na medicina lusitana setecentista. VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 29,
nº 50, p.435-452, mai/ago 2013.
FUBINI, Enrico. La estética musical desde la Antiguedad hasta el siglo XX. Madrid:
Alianza, 1990.
GEOFFROY-SCHWINDEN, Rebecca D. Politics, the French Revolution, and
Performance: Parisian Musicians as an Emergent Professional Class, 1749 – 1802.
2015. 262 f. Tese de Doutorado (Doutorado em Filosofia) – Departament of Music,
Graduate school of music, Duke University, Durham, 2015.
HUNEMAN, Philippe. “Animal Economy”: Anthropology and the Rise of Psyciatry from
the “Encyclopédie” to the Alienists. In: WOLFF, Larry & CIPOLLONI, Marco (ed.) The
Anthropology of the Enlightenment. California: Stanford University Press, 2007, 432 p.
KENNAWAY, JAMES. Bad Vibrations: History of the Idea of music as Cause of
Desease. UK/USA: Ashgate Publishing, 2012.
LE MENTHÉOUR, Rudy. The Tarantula, the Physicians, and Rousseau: The Eighteeth-
Century Etiology of an Italian Sting. Proceedings of the Western Society for French
History, Worchester, v. 37, 2009. Disponível em:
http://hdl.handle.net/2027/spo.0642292.0037.003. Acesso em: 16 / 05 / 2015.
O’DEA, Pierre. Rousseau contre Rameau: musique e nature dans les articles pour
l’Encyclopédie et au-delà. Rechercer sur Diderot e l’Enciclopédie, n°17, 1994.
PESIC, Peter. Music and the making of modern Science. Massachusetts: MIT, 2014.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1563
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

REDDY, William M. Framework for the History of Emotions. Cambridge: Cambridge


University Press, 2014.
REY, Roselyne. L’ame, le corps et le vivant. In: GRMEK, Mirko; FANTINI, Bernardino.
(eds.). Histoire de la pensée médicale en occident: de la Renaissance aux Lumières. v.2,
Paris: Éditions du Seuil, 1996.
________________. Naissance et développement du vitalisme em France: de la
deuxième moitié du 18ème siècle à la fin du Premier Empire. Oxford : Voltaire
Foundation, 2000.
ROUSSEAU, George S. Nervous Acts: Essays on literature, Culture and Sensibility. New
York: Pelgrave Macmillam, 2004.
SAISSELIN, Rémy G. The Enlightenment Against the Baroque: Economics and
Aesthetics in the Eighteenth Century. Berkeley: University of California Press, 1992.
STAROBINSKI, Jean. Ação e reação: vida e aventuras de um casal. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
WILLIAMS, Elisabeth. A Cultural History of Medical Vitalism in Enlightenment
Montpellier. UK/USA: Ashgate Publishing, 2003.
__________________. The Physical and the Moral: Anthropology, Physiology, and
Philosofical Medicine in France, 1750 – 1850. Cambridge: Cambridge University Press,
1994.
WOLFE, Charles T & TERADA, Motoichi. The Animal Economy as Object and Program
in Montpellier Vitalism. Sciencie in context, v. 21, nº 4, 2008.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1564
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O comércio ilegal de escravos através de Manoel Pinto da Fonseca (1835-1853):


primeiros apontamentos.
JOÃO MARCOS MESQUITA
PPGH/UNIRIO, CAPES

Da proibição ao contrabando

A Lei de 07 de novembro de 1831, decisivamente, representou a vitória de duas


questões centrais que estavam no jogo político brasileiro desde meados da década de 1820
e início da década de 1830. A primeira é a capacidade que ela teve de manifestar o
exercício da soberania dos órgãos representativos, acabando com qualquer possibilidade
de se entender que no Império brasileiro a monarquia constitucional era frágil, como pôde
parecer em outros momentos, como na assinatura de um tratado internacional que
legislaria sobre a nação sem passar pelo Legislativo (Parron, 2011, p. 89).
A outra é que essa deu o tom extraparlamentar do antiescravismo brasileiro775, ou
seja, fez com que a população brasileira, desde as camadas mais pobres até os negociantes
de grosso trato acreditassem e aceitassem a abolição do comércio de africanos. Tal fato
justifica que no período entre 1826 e 1835 as posições em defesa do fim do tráfico de
escravos e, até mesmo, da própria escravidão, estava em voga nos diversos espaços de
discussão política do império brasileiro, fossem nos jornais, nas Assembleias ou nas
Câmaras. À luz das ideias externas e com a conjuntura nacional abalada pelas revoltas
escravas, parecia que a “lei para inglês ver” realmente seria eficaz.
Para além das opiniões antitráfico, foi possível observar uma queda brusca na
entrada de africanos nos primeiros três anos após a imposição da lei de 1831. Se nos
últimos anos da década de 1820, a média de cativos desembarcados no Brasil era de 37
mil ao ano (Florentino, 1997, p. 43-51), entre 1831 e 1834 essa média foi reduzida para
11.500 ao ano (Estefanes; Parron; Youssef, 2015, p. 130-159). Dessa maneira, não
podemos duvidar que a lei foi de grande relevância para o momento.

775
Na primeira metade do século XIX, no Brasil, as posições antiescravistas se confundiam com as
convicções contrárias ao comércio atlântico de africanos, ou seja, até 1850 ser abolicionista significava ser
contra o tráfico e não, necessariamente, contra a instituição da escravidão. Cf. MATTOS, Hebe.
“Racialização e cidadania no Império do Brasil”. In: CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lucia Bastos
Pereira das (orgs.). Repensando o Brasil do oitocentos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009;
PARRON, Op. Cit. Capítulos 1 e 2.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1565
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Entretanto, não podemos esquecer que se, por um lado, a instabilidade vivida no
país durante a década de 1830 foi incorporada pela opinião pública como argumentos
antitráfico, por outro, ela fortaleceu os anseios de um grupo que cada vez mais via seus
rendimentos diminuir e, diferentemente da Corte, a variedade de investimentos era muito
menor. Um exemplo que pode ser dado nesse sentido é a decadência da produção
algodoeira maranhense, totalmente dependente do comércio de africanos e sem inovações
técnicas, frente à concorrência do sul dos Estados Unidos, onde a política de reprodução
vegetativa dos escravos e as inovações manufatureiras e agrárias garantiam uma produção
em maior escala e com menor preço, principalmente após a introdução das ferrovias
(Marquese, 2004, p. 337).
A situação não era diferente para os produtores açucareiros da Bahia, que crescera
largamente nos últimos anos da década de 1810, da lavoura pernambucana, que em razão
das questões políticas (1817 e 1824) não conseguiu acompanhar os passos baianos, e,
ainda, da região de Campos do Rio de Janeiro. Após a reestruturação da lavoura
açucareira das Antilhas e do açúcar cubano, que contava com o desembarque maciço de
africanos, a produção brasileira não conseguiu acompanhar a dinâmica estabelecida
(Parron, 2011, p. 92).776
No início da década de 1830, o café ainda não era o principal produto
brasileiro, no entanto, já mostrava sinais de seu futuro promissor. Na contramão da
produção açucareira e algodoeira os polos cafeeiros concorrentes, como o Suriname e a
Jamaica, estavam em decadência. Aliados a ausência dos produtores tradicionais e a
abertura irrestrita dos mercados após o fim das guerras napoleônicas, a produção
brasileira tomou conta do mercado de café francês, inglês e, principalmente,
estadunidense, onde o consumo aumentou, de 1821 a 1842, em 980% (Marquese;
Tomich, 2009, p. 341-374).
Em 1835 já não havia mais dúvidas, o café havia se tornado o principal
produto de exportação, sobretudo na região da Bacia do Paraíba777, e o porto do Rio de

776
Cf. GALLOWAY, Jock. The sugar cane industry: an historical geography from its origins to 1914.
Cambridge: Cambridge University Press,p.159-169, 1989.
777
Entendo como Bacia do Paraíba como Orlando Valverde, no sentido de que o Vale do Paraíba era uma
região para além de seus limites geográficos, ou seja, também era uma região que se expandia econômica
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1566
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Janeiro se alocou como o centro das operações cafeeiras. Desse momento em diante, o
desembarque de cativos no Império do Brasil voltou a crescer, com o ingresso de
aproximadamente 37 mil africanos em 1835 e no ano seguinte cerca de 50 mil. Assim, o
tráfico de escravos, novamente, se articulou em escala sistêmica, só que dessa vez sob a
forma de contrabando (Estefanes; Parron; Youssef, 2015).

A proeminência de Manoel Pinto da Fonseca no contrabando de escravos

Um ponto importante para buscar compreender o tráfico após a sua proibição em


1831 é identificar quem eram os agentes desse comércio. Manolo Florentino, ao perceber
que muitos traficantes venderam seus navios logo após a abolição do comércio infame,
entendeu que a maioria dos traficantes de grosso trato abandonaram seus negócios
referentes ao comércio com a África e voltaram seus investimentos para outras áreas,
como no mercado imobiliário (Florentino, 1997, p. 194-204). Dessa maneira, é possível
sustentar a hipótese de que os traficantes que faziam o contrabando formavam uma nova
camada de empresários que ascenderam com a saída das antigas firmas que
monopolizavam o comércio em sua época legal.
Nesse sentido, é válido ressaltar que a atuação dos negociantes de escravos após
1831 não se constituiu como uma continuidade do período do tráfico legal. No entanto,
uma estratégia na composição das firmas se manteve, elas eram, em sua maioria,
empresas familiares. A manutenção desta estratégia se dava por questão de segurança, em
razão da crescente repressão internacional ao tráfico no Atlântico, enquanto no período
do comércio legal de cativos esse método era utilizado como forma de reforçar o
monopólio familiar (Ferreira, 1996, p. 156-158).
Uma das diferenças entre o tráfico legal e o contrabando se dá pela forma do
financiamento das viagens. Após 1831, uma das formas mais comuns de se atuar era
através das joint stocks, que eram um conjunto de pequenas empresas que investiam
recursos para a expedição negreira. O funcionamento desse esquema de financiamento se
dava através da aquisição de fazendas a crédito em prazos dilatados com os negociantes

e socialmente. Cf. VALVERDE, Orlando. A fazenda escravocrata de café. Revista Brasileira de Geografia,
Rio de Janeiro: IBGE, v. 29, n. 1, p. 37-81, jan.-mar. 1967.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1567
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

estrangeiros, no geral ingleses e estadunidenses. Posteriormente reuniam os pequenos


investidores para comparem também a crédito as mercadorias, no entanto, com prazos
mais curtos e com altos juros, além desses fazerem o pagamento do frete das mercadorias
para a África e dos escravos para o Brasil – independente do sucesso ou não da expedição.
Dessa maneira, as grandes firmas efetuavam as viagens negreiras a partir do lucro obtido
em cima dos pequenos comerciantes.778
Um dos traficantes de maior importância no período do contrabando foi Manoel
Pinto da Fonseca. Natural de Portugal, filho de Francisco Pinto de Lemos e Violeta
Ribeiro da Fonseca e irmão de Joaquim Pinto da Fonseca e Antônio Pinto da Fonseca,
seus aliados no comércio infame. Há registros de sua presença no Império do Brasil desde
o início da década de 1830779, no entanto, obteve notoriedade no período em que atuou
no infame comércio, entre 1837 e 1851 (Capela, 2007, p. 2007).
A partir de meados desta década as publicações em jornais que fazem referência
ao nome de Manoel Pinto da Fonseca se tornam mais frequentes e, assim, pode-se supor
o seu enriquecimento e sua maior importância na praça comercial do Rio de Janeiro.
Corroborando com esta ideia, na seção “Annuncios” do Jornal do Commercio, no dia 13
de janeiro de 1835, foi publicado que a partir do dia 31 de dezembro do ano anterior a
sociedade entre Manoel Pinto da Fonseca e Luiz Gomes dos Santos, sob a firma Luiz
Gomes dos Santos E Comp., estava encerrada, ficando a cargo da firma de Manoel Pinto
da Fonseca as dividas ativas e passivas de tal sociedade.780 As análises ainda são iniciais,
no entanto, suponho que esta cisão entre as firmas tenha sido o ponto de partida para o
enriquecimento de Fonseca, o que permitiria a aproximação de sua companhia ao
comércio ilícito de cativos.
No período entre 1837 e 1851, Manoel Pinto da Fonseca foi o traficante de
escravos que mais expedições realizou entre a África e o Brasil, acompanhado de perto
pelas que ocorreram em nome de José Bernardino de Sá, outro homem de destaque nesse
comércio infame (Capela, 2007, p. 13). Fonseca, entre os anos de 1838 e 1844, foi

778
Para melhor compreender as joint stocks Cf. KARASH, Mary. The Brazilian Slavers and the Illegal
Slave Trade, 1836-1851. Madison, University of Wisconsin, 1967, pp.28-30.; ELTIS, David. Economic
Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade.New York, Oxford University Press, p. 155, 1987.
779
Biblioteca Nacional, Jornal do Commercio. Editorial.16 maio de 1832, Notícias Particulares, p. 3.
780
Biblioteca Nacional, Jornal do Commercio. Editorial, 13 de janeiro de 1835, Annuncios, p.4.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1568
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

responsável por 22% das consignações ou propriedades de navios negreiros, sendo o


sexto do Rio de Janeiro. Já entre 1844 e 1851 se destacou como o primeiro na quantidade
de viagens, sendo o agente de 36% de todas as viagens negreiras em direção ao Atlântico
ocidental. Em números totais, foram, ao menos, quarenta e três viagens realizadas às
ordens do traficante (Marques, 2016, p. 149).

Imagem 1 - Número de viagens realizadas em nome de Manoel Pinto da Fonseca


entre 1836 e 1855

Fonte: Dados retirados do site: www.slavevoyagers.org.


Acessado em 10/04/2017.

Um dos indicativos para perceber a grandeza da firma gerida pelo traficante


Manoel Pinto da Fonseca é a rede de sociabilidade formada com outros negociantes
brasileiros e estrangeiros, tanto do comércio legal quanto do contrabando, através das
joint stocks. Há um caso em que é publicada uma petição no Jornal do Commercio, na
seção de correspondências, no dia 14 de janeiro de 1840, uma petição garantindo a
conduta lícita do traficante de escravos.781 O interessante dessa publicação é a grande
quantidade de assinaturas que o abaixo-assinado obteve, sendo a maioria das assinaturas

781
Biblioteca Nacional, Jornal do Commercio. Editorial. 15dejaneiro de 1840,Correspondencias, p.2.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1569
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

em nome de outras firmas, brasileiras e estrangeiras, que provavelmente tinham relações


com a empresa de Fonseca.
Dentre as empresas que assinaram tal requerimento deve-se dar destaque às
firmas norte-americanas Maxwell, Wright &Co782 e James Birckhead, pois foram as
principais responsáveis pelas consignações de navios fretados e vendidos para traficantes
nos anos iniciais da década de 1840, em especial o Manoel Pinto da Fonseca. Segundo
Leonardo Marques:
By consigning and selling ships to Manoel Pinto da Fonseca and other
slave traders, Maxwell, Wright & Co. facilitated the transportation of
goods and slave-trading equipment in outbound trips under the US flag,
contributing to the success of illegal slave-trading voyages in a context
of increasing British pressure (Marques, 2016, p. 154-155).

Portanto, a relação do negociante de escravos com essas firmas dava a


possibilidade aos contrabandistas de utilizar a bandeira dos Estados Unidos da América
em suas embarcações, o que devido ao aumento da repressão era uma estratégia para
diminuir as investidas inglesas. Contudo, é válido ressaltar que os investimentos dessas
firmas estadunidenses no comércio ilegal também detinha um lado lícito importante, pois,
essas empresas se tornariam as principais exportadoras de café brasileiro para os Estados
Unidos em meados dos anos de 1840 (Marques, 2013). Sendo assim, talvez seja possível
pensar que os investimentos no tráfico tinham como objetivo o comércio legal.
Por outro lado, não podemos esquecer que a diversificação nos investimentos é
uma tendência das empresas do século XIX e, principalmente, para os negociantes de
africanos após 1831. Dessa maneira, creio que seja conveniente recordar da definição de
negociante de Théo Lobarinhas Piñeiro:
era o proprietário de capitais que atuava na esfera da circulação, do
financiamento, investisse no tráfico de escravos e mesmo no
abastecimento, controlando os setores chaves da economia urbana, e
que, por sua posição no fornecimento da mão-de-obra, influía
diretamente na economia escravista colonial (Piñeiro, 2014, p. 28-29).

Assim, o comércio lícito, não necessariamente, teria como função encobrir o


ilícito e sim ampliar a os ganhos dos negociantes e suas firmas.

782
Para uma análise da firma Maxwell Wright &Co. Cf. RIBEIRO, Alan dos Santos. “The Leading
Comission-House of Rio de Janeiro”: A firma Maxwell, Wright & Co. no comércio do império do Brasil
(c.1827 – c.1850). Niterói: UFF, 2014. (Dissertação de Mestrado em História da UFF)
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1570
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Entretanto, segundo Roquinaldo Ferreira (1996), o investimento em atividades


lícitas era um relevante método utilizado pelos traficantes e pelos financiadores do
comércio de africanos no período da ilegalidade, já que para além de ser necessário na
aquisição de escravos no continente africano e sua alimentação, também servia para
encobrir as atividades ilícitas. Manoel Pinto da Fonseca, dessa maneira, também de
utilizava desse método, investindo em diversas fazendas com a intenção de garantir
mantimentos, como cereais e aguardente, por exemplo, para a execução de suas
atividades, o que por sua vez, incluía diretamente os grandes proprietários de terras neste
comércio atlântico e, ao mesmo tempo, garantia proteção e crédito para os negociantes de
escravos.
No continente africano, Cabinda, Ambriz e a foz do Rio Zaire eram os principais
portos de atuação dos traficantes de escravos na década de 1830 e 1840. Cabinda era
onde, na África, Manoel Pinto da Fonseca detinha suas relações comerciais e era tão
respeitado quando no Rio de Janeiro. Lá era onde detinha um barracão de escravos, que
era uma propriedade indispensável para o eficaz funcionamento do comércio ilícito, pois
dava agilidade ao embarque dos cativos. Esse espaço funcionava como um armazém de
escravos, enquanto esperavam os navios negreiros, e, junto a eles, ficavam as mercadorias
estocadas para serem trazidas para o Brasil, como forma de minimizar os vestígios do
comércio de africanos (Ferreira, 1996, p. 31-32).
Em 1842, o barracão de Manoel Pinto da Fonseca em Cabinda foi um dos oito a
serem destruídos por tropas da marinha inglesa. Ao saber da destruição, o comerciante
promoveu uma ação judicial contra os oficiais responsáveis pelas tropas e, sobretudo,
contra lorde Aberdeen, a quem atribuía o desmantelamento de sua propriedade. Segundo
os advogados de Fonseca, essa foi uma represália a uma tentativa frustrada de apreender
sua embarcação John Bobb na costa da africana, que “navegava com a bandeira dos
Estados-Unidos, e a seu bordo nada havia, segundo nos informão, que excitasse
suspeitas”. Destarte, como não haviam conseguido apreender a embarcação seguiram
para a destruição da propriedade de Pinto da Fonseca:
Serião 4 horas da manhãa quando a feitoria foi sitiada por tropa,
marinheiros e officiaes pertencentes à fragata ingleza Madagascar e do
brigue Water Witche, os quaes, de baionetas armadas, não deixarão
mais entrar nem sahir as pessoas empregadas na mesma feitoria, e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1571
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

tendo-a cercado completamente, começarão a assalta-la, a roubarem e


a senhorearem-se de tudo que lhes fazia conta; Isto é, de cerca de 100
escravos, diversos fardos, pipas de vinho e de aguardente, o que tudo
levárão e conduzirão para bordo dos navios de guerra, deixando e
abandonando o resto aos nativos para que o saqueassem; e
conservando-se passivos espectadores até que a violência e o
derramamento de sangue dos negros uns com os outros, para se
senhorearem do espolio, tivessem acalmado. Então completando a obra
do desenfreamento e da destruição, incendiarão e reduzirão a cizas
tudo quanto ainda restava.783

As estratégias utilizadas pelos contrabandistas de escravos com intenção de fugir


da repressão se multiplicaram e tornam-se cada vez mais dinâmicas ao longo da década
de 1840, devido à força que a repressão ao infame comércio alcançara. Juntando-se ao
Foreign Office e outras sociedades antiescravistas, em 1839 a Society for the Extinction
of the Slave Trade and for the Civilization of Africa e a British and Foreign Antislavery
Society foram fundadas por Thomas Follow Buxton e Joseph Sturge, respectivamente,
com objetivo de introduzir o cristianismo e o comércio lícito e a segunda para extinguir
a escravidão na América (Parron, 2011, p. 197).
Nesse sentido, Estados Unidos da América, França, Portugal e Rússia se juntaram
à Inglaterra no combate ao contrabando de escravos, enviando tropas para a costa
ocidental africana. A efetividade dessas medidas foi imediata, segundo Tâmis Parron,
entre 1831 e 1838 apenas um tumbeiro brasileiro foi interceptado pelas forças antitráfico,
enquanto nos anos entre 1839 e 1842 foram 150 apreendidos. O aumento das capturas
dos negreiros na costa africana reverberou no número de escravos trazidos para o Brasil,
que de 55 mil escravos desembarcados em 1839 diminui para 25 mil em 1842 (Parron
2011, p. 198).
Nessa perspectiva, é válido ressaltar que a ampliação da luta antitráfico levou
problemas a Manoel Pinto da Fonseca, já que um de seus principais consignatários e
vendedores de embarcações, a Maxwell, Wright & Co., se distanciou do comércio ilícito
e em 1844 já não detinha nenhuma relação o comércio ilegal, devido ao aumento das
tensões com os oficiais estadunidenses no Rio de Janeiro (Marques, 2016, p. 160-168).

783
Biblioteca Nacional, Jornal do Commercio. Editorial. 09 de agosto de 1843, Publicações a pedido, p.3.
Em ambos os fragmentos escolhi por manter a grafia original, colocando em itálico as palavras que
deveriam ser atualizadas.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1572
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Contudo, apesar de ter sido uma adversidade, longe de ter afetado negativamente
os negócios Manoel Pinto da Fonseca. Se agora não tinha firmas americanas ao seu lado,
outra estratégia foi adotada e que, a princípio, parece ter ampliado a importância de
Fonseca no comércio. Este novo meio consistia na utilização de pequenos negociantes
individuais, no geral ex-capitães e marinheiros já conhecedores das transações atlânticas,
que se aventuravam no intermédio entre as empresas estadunidenses e os traficantes.
Nesse contexto, é válido ressaltar que, como a maioria destes pequenos comerciantes era
dos EUA, a utilização da bandeira desta nação continuou recorrente.
Nesse mesmo período, as pressões diplomáticas da Inglaterra, que em vias de
finalizar o acordo comercial anglo-brasileiro de 1826, colocou como ponto central para o
estabelecimento de novos tratados o fim do tráfico intercontinental de escravos. Em
síntese, a reação brasileira se deu em duas frentes, com objetivo claro de defender a
soberania do império quanto às decisões internas: a Tarifa Alves Branco de 1844 e o fim,
unilateral, da convenção anglo-brasileira do tráfico de escravos (Parron, 2011, 219-230).
Em contrapartida, imediatamente a diplomacia inglesa respondeu com a
promulgação da Bill Aberdeen, que autorizava a marinha inglesa abordar navios
brasileiros que fizessem o contrabando de escravos, além de conceder aos tribunais do
Almirantado britânico julgar os responsáveis capturados junto às embarcações. Tal
impasse levou ao isolamento diplomático do Brasil perante as nações antitráfico, no
entanto, as pressões inglesas foram de suma importância para manutenção do projeto
conservador, que em nome da soberania nacional, todos os brasileiros deveriam defender
o contrabando.
Nesse sentido, é possível perceber que os contrabandistas de escravos se situavam
em posição de destaque do império. Assim, a influência de Manoel Pinto da Fonseca pode
ser percebida não só no plano econômico, mas também em âmbito político –
provavelmente em razão de sua importância dentro do contrabando. Não por acaso Barão
de Cairu se referiu ao traficante em conversa com um representante inglês, no ano de
1847:
[...] Quem mais requestado, quem mais festejado nessa cidade do que
Manuel Pinto? Todo mundo sabe que ele é o grande traficante par
excellence do Rio. Contudo, tanto ele quanto dezenas de outros
traficantes menores vão à Corte – sentam-se à mesa dos cidadãos mais

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1573
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ricos e respeitáveis – ocupam cadeiras na Câmara como nossos


representantes e até têm voz no Conselho de Estado [...]. O senhor
conheceu o meu horror a este maldito tráfico – mas com homens desses,
que é que eu posso fazer [...]? Por onde devo começar? Com meus
colegas – é inútil. Com o Conselho, não adianta, não me dariam
ouvidos. Na Câmara, me chamariam traidor. Na rua, me apedrejariam
[...].784.

Talvez por esse motivo que um dos agentes de Fonseca em Cabinda afirmou em
conversa que Manoel Pinto da Fonseca poderia fazer o que ele desejasse com brasileiros
e americanos.
Outro fato que é oportuno comentar, em relação ao destaque de Manoel Pinto da
Fonseca na política brasileira, é que o traficante de cativos concorreu em 1848 para
Senador do Império brasileiro pela Província do Rio Grande. No entanto, dos sete
concorrentes, ficou em sexto.785
A atuação de Manoel Pinto da Fonseca no Brasil foi até 1853, um pouco após o
fim definitivo do tráfico de escravos com a lei Eusébio de Queirós. Segundo o Relatório
de Joaquim de Paula Guedes Alcoforado, Fonseca e seus irmãos Antônio e Joaquim foram
acusados de executar o tráfico ilegal de escravos e, assim, se tornaram procurados pela
Polícia da Corte, todavia, Manoel se adiantou às buscas e retornou para Portugal antes
mesmo de ser preso.786
Por fim, é possível supor que sua posição como um dos principais contrabandistas
de escravos o fez enriquecer e aumentar o capital de sua firma. Com o término dos
negócios negreiros para o Brasil e sua expulsão, os cabedais que havia acumulado durante
os anos do comércio ilegal devem ter sido investidos em outras áreas que o
multiplicassem. Assim, outro ponto em aberto para a futura pesquisa é buscar saber em
quais setores foi aplicada a fortuna de Manoel Pinto da Fonseca.

Referências Bibliográficas

Fontes:

784
Citado em correspondência de Hudson e Palmerston, 12 de jan., 1847, apud RODRIGUES, Op.
Cit.,p.134.
785
Biblioteca Nacional, Jornal do Commercio. Editorial. 13 de janeiro de 1848, Rio de Janeiro, p.2.
786
Arquivo Nacional, Série Justiça – IJ6-525.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1574
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BIBLIOTECA Nacional. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional.

ARQUIVO Nacional. Série Justiça, IJ6-525.

Bibliografia:

CAPELA, José. Dicionário de negreiros em Moçambique (1750-1897). Porto: Centro de


Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2007.

ELTIS, David. Economic Growth and the Ending of the Transatlantic Slave Trade. New
York: Oxford University Press, 1987.

ESTEFANES, Bruno Fabris; PARRON, Tâmis; YOUSSEF, Alain El. Vale Expandido :
contrabando negreiro, consenso e regime representativo no Império do Brasil”. In:
MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo. O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos
quadros da segunda escravidão. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.

FERREIRA, Roquinaldo. O Relatório Alcoforado. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de


Janeiro, n. 28, p.219-229, 1995.

FERREIRA, Roquinaldo. Dos sertões ao Atlântico: Tráfico ilegal de escravos e comércio


lícito em Angola, 1830-1860. Dissertação. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1996.

FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: Uma História do tráfico de escravos entre


a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras,
1997.

GALLOWAY, Jock. The sugar cane industry: an historical geography from its origins
to 1914. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

KARASH, Mary. The Brazilian Slavers and the Illegal Slave Trade, 1836-1851.
Madison: University of Wisconsin, 1967.

MARQUES, Leonardo. Os Estados Unidos no Trafico de Escravos para o Brasil. VII


Encontro de Escravismo do Brasil Meridional. Florianópolis, 2013.

MARQUES, Leonardo. The United States and the Transatlantic Slave Trade to the
Americas, 1776 -1867.Connecticut: Yale University Press, 2016.

MARQUESE, Rafael. Feitores do corpo, missionários da mente. Senhores, letrados e o


controle de escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

MARQUESE, Rafael e TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do


mercado mundial do café no século XIX. In: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1575
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(orgs.). O Brasil Imperial, Volume II: 1831-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
p. 341-374, 2009.

MATTOS, Hebe. Racialização e cidadania no Império do Brasil. In: CARVALHO, José


Murilo de; NEVES, Lucia Bastos Pereira das (orgs.). Repensando o Brasil do oitocentos.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

PARRON, Tâmis. A Política da escravidão no Império Brasileiro, 1826-1865. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. “Os simples comissários” negociantes & política no


Império do Brasil. Niterói: Editora da UFF, 2014.

RIBEIRO, Alan dos Santos. “The Leading Comission-House of Rio de Janeiro”: A firma
Maxwell, Wright & Co. no comércio do império do Brasil (c.1827 – c.1850). Niterói:
UFF, 2014. (Dissertação de mestrado em História na UFF)

VALVERDE, Orlando. A fazenda escravocrata de café. Revista Brasileira de Geografia,


Rio de Janeiro: IBGE, v. 29, n. 1, p. 37-81, jan.-mar. 1967.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1576
Para além de uma instituição: a polícia do Antigo Regime e sua [re]criação no Rio
de Janeiro oitocentista

JOICE DE SOUZA SOARES


Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) - Unirio

Introdução

Os estudos sobre a constituição das instituições policiais no Brasil ainda podem


ser considerados exíguos. Com ressalvas a alguns marcos historiográficos importantes
em relação ao tema, é possível estabelecer que a história da polícia no Brasil tem
caminhado a passos lentos787.
Tal aspecto guarda estreita relação com a relativa novidade dos estudos sobre a
polícia, que ganharam espaço na historiografia somente a partir da década de 1960,
quando a renovação da história social marxista atentou para o estudo da polícia como
“[...] mais um dispositivo estatal de dominação de classe” (HAY et al., 1975; BAILEY,
1981 apud GONÇALVES, 2011, p. 2).
A partir da década seguinte, os estudos sobre a constituição dos sistemas policiais
estariam voltados para a história da polícia a partir de uma perspectiva que, a priori,
vinculava as instituições policiais às transformações do Estado e, posteriormente, se
preocuparia com a dimensão colonial do policiamento (BRODGEN, 1987 apud
GONÇALVES, 2011). Destarte, os estudos naquele período estariam alinhados tanto a
uma historiografia interessada nos aspectos legais e institucionais, quanto àquela mais
diretamente preocupada com aspectos sociais do exercício da atividade e da organização
dos corpos policiais (MAUCH, 2007).
No tocante à abordagem que fora prioritariamente utilizada nas pesquisas, de
maneira geral, as obras existentes estiveram vinculadas a temas mais comumente
relacionados à história social. Já no que tange aos esquemas explicativos, destacam-se
prioritariamente aqueles em que, numa ótica mais vinculada à linha liberal, a polícia “[...]
fazia parte das instituições do progresso moderno, parte pouco significativa de um Estado
que se fazia melhor, mais racional e democrático”; por sua vez, nas perspectivas de cunho
marxista, as instituições policiais estariam vinculadas “[...] ao arsenal repressivo, agindo

787
Um balanço interessante sobre a produção historiográfica neste campo pode ser encontrado no artigo
elaborado por Marcos Bretas e André Rosemberg (2013).
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sob as ordens de um Estado ou de uma burguesia opressora” (BRETAS; ROSEMBERG,


2013, p. 163). Ainda nesse sentido, torna-se importante mencionar que os ângulos mais
tradicionalmente trabalhados nas obras até então estiveram marcados pelo binômio
repressão – resistência para dar conta das múltiplas relações entre os agentes policiais e
os alvos de suas ações.
No caso da historiografia brasileira sobre a polícia, as temporalidades que
primordialmente foram tratadas nas análises historiográficas se relacionam ao período
republicano, mormente sobre as instituições policiais do século XX788. Por seu turno, no
que se relaciona às temáticas abordadas, ganharam destaque as formas de recrutamento
dos agentes policiais, os grupos e classes sociais a que pertenciam, as formas de ação
desses agentes, as atividades cotidianas de repressão e de resistência dos alvos prioritários
da atuação policial, sem traçar relações com aspectos políticos de natureza mais ampla789.
Conquanto os estudos sobre a polícia tenham se debruçado sobre questões
relativas ao que fazia, por meio de quais agentes e com que formas de atuação, de forma
articulada ou não, há aspectos que têm sido desconsiderados ou, no limite, não analisados
de forma detida. Dizem respeito à dimensão do político, em uma abordagem um tanto
mais filosófica, segundo a qual a polícia “[...] não é um simples meio da política, mas um
elemento constitutivo de sua estrutura, de que participa a definição de seus fins e que não
está desprovida de sentido” (L’HEUILLET, 2010, p. 14, tradução nossa).
Assinala-se, desse modo, a dificuldade de escrita de uma história sobre a
constituição das instituições policiais conferindo demasiada importância às ações
cotidianas de repressão ou preocupadas com as formas de controle social impostas por

788
Entre algumas obras sobre a polícia para períodos anteriores, incluindo marcos historiográficos sobre o
tema, destacam-se a de Thomas Holloway (1997) “Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa
cidade do século XIX” e a de Marcos Luiz Bretas (1997) “A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do
Rio de Janeiro”. No entanto, esta última tem como recorte cronológico a virada do século XIX para o XX,
centrada nas transformações trazidas pela Primeira República. Ressalta-se ainda a obra de Francis Albert
Cotta (2012) “Matrizes do sistema policial brasileiro”, que oferece um panorama sobre as forças pré-
policiais, por falta de melhor termo, em Minas Gerais no período colonial.
789
Exceção que merece destaque é a obra de Berenice Cavalcante Brandão, Maria Alice Rezende e Ilmar
Rohloff de Mattos (1981), intitulada “A polícia e a força policial no Rio de Janeiro: estudo das
características histórico-sociais das instituições brasileiras, militares e paramilitares, de suas origens até
1930” que tentou estabelecer uma ligação entre a construção do aparato policial no Império, a formação do
Estado e a constituição da chamada classe senhorial no oitocentos.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1578
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

essas instituições, mas que não se interrogue a respeito das questões políticas e
ideológicas, por assim dizer, que estariam na base dessas ações.
Além disso, faz-se importante explicitar que

[...] explicações da polícia a partir de sua função de controle social


correntemente pressupõem uma instituição homogênea e uma
identificação automática de seus membros com os objetivos de
imposição da lei e da ordem determinados pelo Estado e pelas elites,
bem como tendem a não focalizar as tensões e os fracassos na
imposição desse controle e a sua constante recriação. [...] Assim,
embora a polícia desempenhe função de controle social, nem todas as
suas práticas devem ser rotuladas a priori como tal, a fim de que possam
ser estudadas em suas várias dimensões.
De forma semelhante, a utilização da noção de resistência supõe que
atitudes de revolta da população com relação a ações policiais possuam
um sentido (oposição a um projeto articulado de disciplinarização
promovido pelas classes dominantes ou à polícia como braço repressor
do Estado), quando é difícil qualificar o que é ou não é uma ação de
resistência no relacionamento diário de policiais com a população.
Mesmo quando a documentação indica resistência clara e aberta à
polícia, nem sempre se trata propriamente de oposição à polícia vista
como instituição, e sim a algumas das funções dos policiais,
principalmente as mais claramente repressivas e violentas (MAUCH,
2007, p. 113).

O reconhecimento da importância dos estudos historiográficos empreendidos até


então sobre a polícia no Brasil não impede, nesse sentido, que se estabeleça a necessidade
de ir além das perspectivas já apresentadas. Assim, considerando o tema de estudo da
pesquisa em desenvolvimento – a relação entre o processo de constituição e legitimação
das instituições policiais no século XIX e sua relação com o processo de formação do
Estado imperial –, assevera-se a importância de tentar compreender o que era a polícia
para os homens oitocentistas e, por conseguinte, entender a natureza da ação policial, a
defesa e o rechaço de determinados modelos institucionais, bem como a coexistência de
instituições policiais assentadas em moldes distintos.
Dessa forma, parte-se do pressuposto de que compreensão desses aspectos pode
trazer contribuições significativas no que se relaciona à identificação do papel atribuído
ao Estado na manutenção da ordem, da segurança e da propriedade – elementos que se
tornariam fundamentais para a dinâmica política imperial.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1579
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A partir de uma abordagem vinculada à dimensão do político, preocupando-se


sobremaneira com os discursos políticos na medida em que defendiam ou se
contrapunham a ideias sobre as instituições policiais, seus modelos de organização e de
ação, torna-se de suma importância entender a lógica que tornou possível a criação das
instituições policiais ao longo do século XIX e, no limite, serviu como base de
legitimidade para as suas ações ou foi de encontro a elas. Nesse sentido, tal abordagem
auxilia na compreensão dos pressupostos que validavam ou obstavam as formas
cotidianas de repressão e do exercício do poder policial nas ruas.
Sob essa perspectiva, postula-se a importância de que os estudos sobre a
constituição das instituições policiais no Brasil sejam empreendidos considerando a
indissociável relação entre polícia e política, com uma perspectiva que confira ao domínio
do político, enquanto meio de compreensão das realidades históricas, lugar de destaque.
Tal ótica se alinha ao posicionamento teórico que tenta

“[...] reconstituir o modo por que os indivíduos e os grupos elaboraram


a compreensão de suas situações; de enfrentar os rechaços e as adesões
a partir dos quais eles formularam seus objetivos; de retraçar de algum
modo a maneira pela qual suas visões de mundo limitaram e o
organizaram o campo de suas ações” (ROSANVALLON, 2010, p. 76).

Assim, torna-se relevante analisar o processo de constituição das instituições


policiais no Brasil oitocentista a partir de sua relação com a própria lógica de formação
do Estado imperial. Para tanto, contudo, reconhece-se a necessidade de compreender as
ideias sobre polícia em voga nos anos finais da época moderna, buscando os elementos
que estariam na base da formação da Intendência Geral da Polícia de Lisboa, ainda na
segunda metade do século XVIII, e que fundamentaram a criação das primeiras
instituições policias no Brasil no século XIX.
Durante os anos oitocentistas, sobretudo na primeira metade do século, diferentes
instituições foram criadas e outras reformuladas a fim de adequá-las ao primado das leis
e da Constituição no Estado que se formava. No que se refere à polícia, tal processo não
foi diferente. A primeira instituição nomeadamente policial foi criada no Brasil em 1808,
guardando – conforme seu Alvará de estabelecimento – profunda similaridade com

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1580
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

aquela existente em Lisboa, criada em 1760. No ano seguinte, fora estabelecida também
a Guarda Real da Polícia, de forma análoga à existente em Lisboa desde 1801.
Entretanto, com a emancipação política do Brasil em relação a Portugal no início
da década de 1820 e a outorga da Constituição por D. Pedro I pouco depois, passariam a
funcionar no seio do Estado monárquico-constitucional uma série de novas instituições.
Outras tantas seriam reformuladas uma vez que, conforme os discursos dos
contemporâneos, não seriam conciliáveis, enquanto criadas sob o Antigo Regime, com a
nova organização política do Império. Nesse ínterim, a Intendência Geral da Polícia e sua
Guarda Real seriam alvos constantes de ataques nos discursos políticos liberais,
mormente na imprensa periódica e nas sessões da Assembleia Geral, como elementos
despóticos que ameaçavam a nova ordem constitucional790.
Assim, neste trabalho objetiva-se demonstrar que os pressupostos que embasaram
a criação das primeiras instituições policiais no início do século XIX no Brasil guardavam
profunda relação com as noções de polícia que fundamentaram a criação da Intendência
Geral da Polícia de Lisboa. Dessa forma, a ideia de polícia presente no início dos anos
oitocentistas estaria amparada em uma concepção muito mais ampla, relacionada à
política e à arte de governar do século XVIII.
Tal perspectiva se torna fundamental para compreender a dificuldade no processo
de transição das instituições policiais criadas no início do século XIX, inspiradas na
concepção de polícia presente nos anos finais do Antigo Regime, para as instituições
policiais que seriam criadas a partir da década de 1830 no Estado imperial, já sob a
influência dos ideais liberais. Processo esse, aliás, que seria marcado por disputas e
embates, relacionados inclusive à própria concepção do papel do Estado, bem como por
mesclas e hibridizações791.

790
A dificuldade para conciliar as instituições existentes, oriundas da organização política do Antigo
Regime, e os princípios liberais seria frequentemente tema de debates na imprensa periódica, sobretudo nos
anos finais da década de 1820. Nesse sentido, as instituições policiais criadas quando da chegada da família
real portuguesa no início do século XIX seriam sempre lembradas como marca indelével do despotismo
absolutista. As críticas, na maioria das vezes, assegurariam a completa incompatibilidade entre as
instituições policiais existentes até então e a Constituição.
791
Apresentar as disputas e embates em torno das ideias a respeito da natureza da atividade policial e o
lugar que ocupariam no seio do Estado imperial, bem como os enfrentamentos acerca dos modelos
institucionais pretendidos e implementados, constitui um dos objetivos a ser alcançado na tese de doutorado
em elaboração.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1581
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“A polícia é o que deve assegurar o esplendor do Estado” 792

O estudo das instituições policiais não pode desconsiderar as significações


atribuídas ao vocábulo “polícia” nos diferentes momentos históricos. Ainda que não se
pretenda elaborar uma história do conceito793, torna-se de suma importância observar que
as transformações no significado conferido à palavra podem auxiliar na compreensão a
respeito de como os homens no Brasil do século XIX pensavam as instituições policiais;
ajudam a revelar, no limite, as formas como os indivíduos compreendiam – e até mesmo
tinham dificuldade para definir em um período de transição e acomodação de ideias – a
natureza de suas ações e o seu papel na organização do Estado em formação794.
Nesse sentido, assevera-se que as transformações na significação do termo,
sobretudo no período de transição do século XVIII para o XIX – e, ainda, durante os anos
oitocentistas – se vinculavam a algo mais que modificações institucionais. Estariam
relacionadas a aspectos políticos mais abrangentes em que, na passagem da organização
política do Antigo Regime para os Estados nacionais, o termo “polícia” deixaria pouco a

A noção de hibridizações aqui é entendida a partir da formulação de François Xavier-Guerra (2003, p. 211-
212) sobre o que o autor denominou como modernidade política, que teria sido uma “[...] conceitualização
de algo que, obviamente, nunca existiu em toda sua pureza em nenhum lugar, nem desenvolveu todas as
suas potencialidades imediatamente”. A modernidade estaria vinculada ao período iniciado com as
revoluções ocorridas no final do século XVIII, marcado pela primazia dos princípios liberais e que teria se
espraiado por diversas regiões do mundo ocidental. De todo modo, jamais existira de forma pura e total em
parte alguma, sendo determinada “[...] por combinações múltiplas – verdadeiras hibridizações – entre
imaginários e práticas antigas e modernas”.
792
Menção de Foucault (2008, p. 422) a Louis Turquet de Mayerne, um dos primeiros teóricos, por assim
dizer, a respeito da polícia enquanto técnica e ciência de Estado. A polícia seria, sob sua ótica, “[...] tudo o
que pode proporcionar ornamento, forma e esplendor à cidade”. No artigo “‘Omnes et singulatim’: uma
crítica da razão política”, Foucault (2012) analisa algumas das teorias acerca da polícia, entre elas a de
Mayerne e a de J.H. Von Justi em sua relação com a razão de Estado e arte de governar da época moderna.
793
Partilha-se, nesse sentido, das impressões trazidas por Koselleck (1992) ao definir conceito como uma
noção que, a partir de um determinado momento na história, tornou-se teorizável.
794
Importante mencionar, contudo, que não se pretende vislumbrar um entendimento único, sob uma lógica
uníssona, acerca do que era e/ou deveria ser a polícia, a natureza de suas ações, os modelos de organização
das instituições policiais e os princípios norteadores de suas práticas. Ao contrário, na pesquisa em
desenvolvimento busca-se demonstrar que as divergências e enfrentamentos sobre o tema estariam
profundamente relacionados ao próprio processo político de constituição do Estado brasileiro no século
XIX, em que elementos liberais combinavam-se àqueles oriundos da tradição política do Antigo Regime,
em um amálgama de ideais e princípios aparentemente divergentes, mas que se combinavam sob uma lógica
própria. Nesse sentido, busca-se lançar luz sobre os distintos pontos de vistas que legitimaram e, muitas
vezes, refutaram as posições oficiais acerca da constituição das instituições policiais no Brasil naquele
período.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1582
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pouco de definir algo como “administração” para caracterizar, grosso modo, uma
instituição responsável pela garantia da manutenção da ordem, da segurança individual e
do direito de propriedade. Processo, aliás, que estaria relacionado à própria natureza do
liberalismo no período, que pressupunha a limitação do poder central – muitas vezes
entendido como absoluto e despótico pelos contemporâneos – na organização política das
sociedades.
Durante parte da época moderna, a ideia – ou teoria – de polícia esteve vinculada
à razão de Estado, cabendo a ela definir a natureza dos objetivos de sua atividade racional.
As teorias de polícia elaboradas ao longo dos séculos XVII e XVIII não se vinculavam à
noção de “[...] uma instituição funcionando no seio do Estado, mas [a] uma técnica de
governo própria ao Estado; domínios, técnicas, objetivos que apelam a intervenção do
Estado” (FOUCAULT, 2012, p. 369).
A concepção de polícia como uma espécie de instrumento do aparelho estatal –
noção que ganhou predominância a partir do advento dos Estados nacionais do século
XIX –, não se traduz em possibilidade única de entendimento. Vinculada ao processo de
racionalização do Estado, de centralização do poder monárquico e de esvaziamento dos
poderes periféricos, a polícia esteve relacionada na época moderna à

“[...] gestão interna da cidade nos aspectos que mais afetavam seu dia a
dia. Construção e conservação de ruas, abastecimento de água, limpeza
urbana, prevenção de incêndios, controle de pesos e medidas do
comércio – tudo isso se inseria no âmbito da ‘polícia’ urbana”
(SEELAENDER, 2009, p. 77).

Essa noção de polícia estaria associada nesse sentido, ao desenvolvimento das


potencialidades do Estado, visando sobremaneira seu engrandecimento e prosperidade. É
sob essa lógica que a atenção do poder político se voltaria, ainda, para a população e para
as questões a ela relacionadas, para os indivíduos, para as ocupações dos sujeitos, para
tudo aquilo que pudesse se associar e possibilitar a perfeição do Estado. Assim, o “[...]
objetivo da polícia é, portanto, o controle e a responsabilidade pela atividade dos homens
na medida em que essa atividade possa constituir um elemento diferencial no
desenvolvimento das forças do Estado” (FOUCAULT, 2008, p. 433).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1583
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Esse aspecto é sobremodo importante, pois se torna um dos elementos-chave para


o entendimento da dificuldade e dos conflitos entre ideias e modelos acerca da polícia na
transição do arranjo político do Antigo Regime para aquele predominante nos Estados
oitocentistas.
A uma visão de polícia que se preocupava com todos os aspectos da vida dos
homens, mas de uma perspectiva relacionada ao aperfeiçoamento do Estado, contrastava-
se outra; surgia no cenário político, com a emergência dos princípios liberais e a
necessidade de limitação do poder monárquico, a polícia enquanto instituição balizada
pela lei e pela Constituição. Ainda sobre a concepção de polícia predominante nas
sociedades de Antigo Regime, sobretudo durante os séculos XVII e XVIII:

A polícia engloba tudo, mas de um ponto de vista particular. Homens e


coisas são considerados em suas relações: a coexistência dos homens
sobre um território; suas relações de propriedade; o que produzem; o
que se troca no mercado. Ela se interessa também pela maneira como
eles vivem, pelas doenças e pelos acidentes aos quais estão expostos. É
um homem vivo, ativo e produtivo que a polícia vigia” (FOUCAULT,
2012, p. 371).

De fato, houve em parte da Europa na época moderna um esforço de teorização


acerca da polícia enquanto uma ciência de Estado, por meio da qual seria possível
legitimar “[...] a desconsideração de barreiras jurídicas ao poder monárquico. Não por
acaso, a expansão do absolutismo foi acompanhada – e sinalizada – pela criação de
cátedras de ‘polícia’ em universidades [...] e pela multiplicação de agentes e órgãos de
‘polícia’ (como os intendentes)” (SEELAENDER, 2009, p. 77).
Entretanto, cumpre ressaltar que o processo de teorização acerca da ideia de
polícia não se deu de forma igual nas diferentes partes da Europa. Em Portugal, embora
a criação da Intendência Geral da Polícia datasse de 1760, com inspiração nas concepções
de polícia em voga tanto nos textos germânicos quanto nos franceses, as reflexões
portuguesas sobre o assunto dataram apenas de fins do século XVIII. Ainda assim, é
possível estabelecer que o pressuposto base da criação da Intendência se vinculava à
compreensão da polícia como “[...] administração iluminada, profundamente
interventiva, com múltiplos braços, associada à figura de um rei-legislador” (GAMA,
2016, p. 182).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1584
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Criada sob o governo do Marquês de Pombal, a Intendência Geral da Polícia de


Lisboa estaria relacionada a uma série de medidas cujo objetivo principal se
consubstanciava no aumento do poder central e na reformulação da justiça (HESPANHA,
1987). No limite, estaria ainda vinculada à necessidade administrar o caos que se instalara
após o terremoto de 1755 (SUBTIL, 2009) e empreendeu atividades em diversas áreas
como

[...] censos de nascimentos, casamentos e óbitos, registros de


mortalidade endêmica e do estado sanitário das populações. Quando o
desembargador Diogo Inácio de Pina Manique tomou posse
(20.05.1780), a sua jurisdição era alargada à reedificação da cidade
(pontes, calçadas, fontes, limpeza de ruas, fiscalização das obras e
demolição das barracas) cuja legislação urbanística já tinha afirmado o
“interesse público” como objetivo político do novo traçado da cidade,
da expropriação e/ou venda forçada de terrenos, melhoramento da
higiene e segurança das construções e a avocação dos recursos judiciais
sem apelo nem agravo (SUBTIL, 2011, p. 266).

Além disso, a polícia sob o controle de Pina Manique despendia esforços para
questões relacionadas à “[...] assistência ‘aos merecedores’ e repressão sobre os ‘válidos’
para os transformar em trabalhadores ativos, ficando a esmola reservada aos enjeitados,
inválidos e caducos de ‘velhice’” (SUBTIL, 2013, p. 308).
A emergência de um Estado de polícia em Portugal, ainda que tenha ocorrido
muito mais por razões de ordem prática do que como resultado de um exercício de
teorização, foi marcada por conflitos entre autoridades tradicionais, típicas da
organização política portuguesa descentralizada durante boa parte da época moderna, e
as novas autoridades – sobretudo no tocante às atividades empreendidas pelo Intendente
(SUBTIL, 2013). Fora sob essa lógica de centralização do poder e aumento do arbítrio
dos agentes da Coroa na vida dos súditos que a polícia portuguesa funcionou durante os
anos finais do Antigo Regime; fora essa mesma lógica que esteve na base da criação da
Intendência Geral da Polícia da Corte no Rio de Janeiro, no início do século XIX.

Considerações finais

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1585
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

No início do oitocentos, a polícia da Corte, por meio de seu Intendente, cuidava


do controle dos espetáculos e festejos populares, fichava os moradores da cidade,
informava às autoridades superiores sobre a conduta dos habitantes, interferia nos
conflitos familiares e conjugais, realizava devassas, perseguia marinheiros desertores,
colaborava com o recrutamento para o serviço militar, cuidava dos elementos urbanísticos
da cidade (SILVA, 1986), aprisionava escravizados fugitivos (HOLLOWAY, 1997).
Inegável, no limite, a presença da ideia de uma polícia responsável por tudo e por todos,
uma polícia que objetivava dirigir os mais variados aspectos da vida dos indivíduos.
A essa polícia iriam se opor os discursos liberais após a promulgação da
Constituição de 1824. Concebida como um “flagelo das monarquias absolutas”795, a
polícia criada sob a organização política do Antigo Regime seria acusada de completa
incompatibilidade com o sistema constitucional e alvo de ataques frequentes nas páginas
dos periódicos. “Inútil, perigosa e imoral”796 seriam alguns dos epítetos atribuídos à
Intendência Geral, acusada de ambicionar o controle sobre a vida de todos os
“cidadãos”797.
Entretanto, a modernidade política não se instalou de forma definitiva em parte
alguma; os princípios liberais não seriam adotados de forma tácita, sem quaisquer
acomodações com aqueles que marcaram a experiência política de outrora. No tocante à
polícia, mais especificamente sobre a constituição das novas instituições policiais, o
processo não seria diferente. Os embates e enfrentamentos nos discursos seriam
frequentes durante boa parte das décadas de 1820 e 1830.
Cabe, nesse sentido, tentar elucidar as mesclas que se fizeram presentes na
acomodação entre princípios vinculados a uma polícia de pretensão absoluta e o ideário
político liberal que, a priori, estaria na base da constituição das novas instituições
policiais a partir da década de 1830 e, no limite, da formação do Estado imperial
oitocentista798.

795
Expressão sobre a polícia da Corte presente em uma edição do periódico Astréa, em 1827.
796
Ibidem.
797
Importante observar a modificação no termo utilizado pelos contemporâneos: com a primazia das leis e
da Constituição, nos discursos já não se concebia a existência de súditos, mas sim de cidadãos.
798
De fato, cumpre mencionar que as mesclas e acomodações entre elementos vinculados à tradição da
ilustração portuguesa e os ideais liberais permearam todo o processo de formação do Estado brasileiro no
século XIX. Destaca-se, nesse sentido, a importância da formação comum da elite política durante a
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1586
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Referências

BRANDÃO, Berenice C.; REZENDE, Maria Alice; MATTOS, Ilmar R. de. A polícia e
a força policial no Rio de Janeiro: estudo das características histórico-sociais das
instituições brasileiras, militares e paramilitares, de suas origens até 1930. Rio de Janeiro:
PUC/RJ, 1981.

BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

BRETAS, Marcos Luiz; ROSEMBERG, André. A história da polícia no Brasil: balanço


e perspectivas. Revista Topoi, v. 14, n. 26, p. 162-173, jan. /jul. 2013.

CARVALHO, José Murilo de. A Construção da ordem: teatro das sombras. 5ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

COTTA, Francis Albert. Matrizes do sistema policial brasileiro. Belo Horizonte:


Crisálida, 2012.

FOUCAULT, Michel. Aula de 29 de março de 1978. In: ______. Segurança, território,


população: curso dado no Collége de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes,
2008, p. 419-448.

FOUCAULT, Michel. “Omnes et singulatim”: uma crítica da razão política. In:______.


Ditos e Escritos, Volume IV: Estratégia, Poder-Saber. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2012, p. 348-378.

GAMA, Maria Luísa Gama. As ciências de polícia em Portugal: teoria, reformismo e


prática nos finais do Antigo Regime. Anais... História e Ciência: Ciência e Poder na
Primeira Idade Global. Porto, 2016, p. 180-211.

GONÇALVES, Gonçalo Rocha. Modernização policial: as múltiplas dimensões de um


objeto historiográfico. CIES e-Working Papers, Lisboa, n. 116, 2011.

GUERRA, François-Xavier. De la política antigua a la política moderna: algunas


proposiciones. Anuario IEHS, Buenos Aires, n. 18, p. 201-212, 2003.

HESPANHA, António Manuel. Da ‘Iustitia’ à ‘disciplina’: textos, poder e política penal


no antigo regime. Anuario de historia del derecho español. Madrid, n. 57, p. 493-578,
1987.

primeira metade do oitocentos, formada majoritariamente na tradição do absolutismo ilustrado português,


sobretudo na Universidade de Coimbra. Sobre o tema, ver obra a clássica de José Murilo de Carvalho (2010)
“A construção da ordem: teatro de sombras”.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1587
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa


cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos.


Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 134-146, 1992.

L’HEUILLET, Hélène. Baja política, alta policía: un enfoque histórico y filosófico de


la policía. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2010.

MAUCH, Claudia. Considerações sobre a história da polícia. Métis: história & cultura,
v. 6, n. 11, p. 107-119, jan. /jul. 2007.

ROSANVALLON, Pierre. Por uma história filosófica do político. São Paulo: Alameda,
2010.

SEELAENDER, Airton C. L. A “polícia” e as funções do Estado: notas sobre a “polícia”


do Antigo Regime. Revista da Faculdade de Direito, Curitiba, n. 49, p.73-89, 2009.

SILVA, Maria Beatriz Nizza da Silva. A Intendência-Geral da Polícia: 1808-1821.


Acervo: revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 137-251, jul./dez. 1986.

SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. Actores, territórios e redes de poder, entre o
Antigo Regime e o Liberalismo. Curitiba: Juruá Editora., 2011.

SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. O direito de polícia nas vésperas do Estado liberal
em Portugal. In: FONSECA, Ricardo Marcelo. As formas do direito: ordem, razão e
decisão. Curitiba, Juruá Editora, 2013, p. 275-332.

SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. O terramoto político (1755-1759): memória e


poder (1755-1759). Lisboa: UAL, 2007.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1588
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Raízes, conflitos e mudanças: a participação da Academia Militar das Agulhas


Negras no Golpe Militar de 1964.

JORGE LUIS GREGORIO DE ALMEIDA


PPGHB-UNIVERSO

Este artigo é uma síntese da minha pesquisa que terá como objetivo analisar a
participação da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) no Golpe Militar de
1964, ano em que, sob o comando do General Emílio Garrastazu Médici (1963-1964), a
AMAN participou do golpe militar que derrubou o presidente da República, João Goulart
(1961-1964), e instaurou a ditadura militar no Brasil.
Sabe-se, por meio das fontes e das bibliografias existentes, que um dos motivos
da transferência da Escola de Formação de Oficiais do Exército Brasileiro, do bairro do
Realengo para a cidade de Resende, ambas no Rio de Janeiro, em 1944, era afastar os
cadetes do cenário político que envolvia a Capital Federal, a fim de torná-los profissionais
e apolíticos. Principalmente após a Revolta do Forte de Copacabana em 1922, onde
muitos alunos das Escolas Militares, envolvidos na revolta, foram presos ou até mesmo
expulsos.
No entanto, com o levante comunista de 1935, o anticomunismo que já havia se
instaurado no Exército Brasileiro, se intensificou, passando a fazer parte da rotina de
várias unidades do Exército, inclusive das Escolas Militares. Nesse sentido, iremos
analisar como a repulsa ao comunismo se instituiu na AMAN, desde a sua chegada em
Resende, em 1944, até ao golpe militar de 1964.
Desde a sua criação, por meio da Carta Régia escrita pelo Conde de Linhares, em
4 de dezembro de 1810, a Academia Militar passou por várias mudanças de sede, além
de diversos conflitos internos e externos que estavam ocorrendo no Brasil, da Monarquia
à República, amalgamando-se com a própria história do Brasil e do Exército Brasileiro.
O primeiro deles foi na Revolução Pernambucana de 1817, quando vários alunos
tiveram que trancar a matrícula e foram enviados por D. João para compor as fileiras da
tropa da Corte a fim de sufocar a revolta. Segundo Motta (1998, p.36), até os professores
deixaram suas cátedras com o mesmo destino.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1589
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Em 1821, a ascensão de D Pedro I, ocasionada pelo regresso de D. João a Portugal,


assinalou o início do movimento de independência no Brasil. Novamente a Academia iria
se ver envolvida em mais uma revolta, só que dessa vez não seria em campanha, mas sim,
no campo das ideias. Nessa revolta, alguns lentes799 da Academia participaram de forma
ativa, escrevendo em jornais de combate, aliciando grupos de resistência, ou integrando
o Parlamento após 1824 (MOTTA, 1998, p.36). Apesar de não ter encontrado registros,
Motta considera que dificilmente os alunos ficariam completamente alienados a revolta,
devido principalmente à proximidade da Academia do Rocio, palco em 1821 de comícios
políticos e militares, e ainda, pelo fato de ter sido realizadas várias prisões de oficiais
brasileiros pelos portugueses, mexendo com o brio da jovem oficialidade.
Após a independência e sendo constituído o Império do Brasil, o nome da
Academia Real Militar foi modificado para Imperial Academia Militar (CASTRO, 2004,
p. 107). Essa época foi de muitas dificuldades para o Exército que se refletiam na
Academia, pois a Revolta Constitucionalista de 1824 e as novas lutas no Sul em torno da
Província Cisplatina, no período de 1825 a 1828, mostraram que as atividades militares
realizadas na Academia estavam totalmente diversas daquelas praticadas em campanha,
o que desencadeou na sua primeira reforma, em 1832.800
Em 1831, com a abdicação de D. Pedro I e o início a Regência (1831 a 1840) e
posteriormente do Segundo Reinado (1840 a 1889), a situação do Exército se modificou,
passando a ser inclusive mais valorizado801 (SCHULZ, 1994, p. 26). Com o término da
Revolução Praieira de Pernambuco, em 1849, cessou também a série de diversos conflitos
internos do país. Surge então, o momento oportuno para se pensar a formação do oficial
do Exército Brasileiro, levando alguns generais a voltarem a sua atenção para a educação
do corpo de oficiais (SCHULZ, 1994, p. 26).
Porém, em 1865 eclode a Guerra do Paraguai, desvirtuando a atenção dos generais
para a formação dos oficiais, que nesse momento voltou-se para a guerra. Nessa guerra,

799
- Como eram conhecidos os professores.
800
-A primeira reforma após 1810, aconteceu apenas em 1832, depois disso, pelo menos cinco reformas
surgiram na academia, em um período de pouco mais de 10 anos: 1832, 1833, 1839, 1842 e 1845. Ver
MOTTA, Jeovha. p, 57.
801
- Em 1837 o Regente conservador, Pedro de Araújo Lima, promulgou um Decreto trazendo grande
número de oficiais de volta à ativa e restabelecendo de fato o Exército. In SCHULZ, John. O Exército na
Política. Origens da Intervenção Militar (1850-1894). EDUSP: São Paulo, 1994, p.26.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1590
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

as Escolas de Formação de Oficiais do Exército se veem envolvidas em mais um conflito,


só que agora, com proporções nunca antes vistas na América do Sul. Acreditando-se que
a guerra seria rápida, resolveu-se paralisar parcialmente as atividades das Escolas,
enviando instrutores e alunos para o campo de batalha. Por conta desse fato “há Escola
passou cinco anos inativa, reduzidos os seus trabalhos ao ensino de preparatório.
Seguiram para o front o seu comandante, seus instrutores, os alunos e seu batalhão de
engenheiros” (MOTTA, 1998, p. 125).
No entanto, após a Guerra do Paraguai, em 1870, o engajamento político da jovem
oficialidade da Escola Militar, que agora estava situada na Praia Vermelha, se
intensificou, principalmente após a entrada do positivismo disseminado pelo seu ex-aluno
e agora mestre, Benjamin Constant (CARVALHO, 1990, p. 42).
Os discursos acalorados feitos por Benjamin Constant, muitos deles direcionados
a mocidade militar, exaltando a insatisfação do Exército com o Império, contagiou a
jovem oficialidade. Nesse momento, o inconformismo técnico-profissional adquiridos no
período pós- guerra do Paraguai sai de cena nas Escolas e nos quartéis militares, para dar
lugar as questões como o Abolicionismo e o Republicanismo.
Vale destacar também, que nesse período surgiram várias associações contra o
abolicionismo, tanto no Exército quanto fora dele. Na Escola Militar surge a Libertadora
da Escola Militar, essas associações tinham por objetivo manter vivo o movimento,
aliciando ativistas, organizando a participação do povo nas conferências, comícios e
passeatas, promovendo a proteção dos escravos fugidos e, escrevendo e publicando
artigos (MACHADO, 2015, p. 337). Os alunos também participavam de comícios, ora
protegendo os oradores contra a sanha dos senhores de escravos, ora oferecendo
segurança a Rui Babosa durante os seus comícios (MOTTA, 1998, p. 201).
Clubes Republicanos intensificaram suas atividades nesse período. Desde 1878,
já funcionava o Clube Republicano da Escola Militar, com sede em uma casa em
Botafogo, onde os alunos reuniam-se secretamente e correspondiam-se com outras
associações republicanas.
A Questão Militar802 penetrou na Praia Vermelha inicialmente como forma de

802
- que ocorreu quando o Império puniu os militares, Coronel Cunha Matos e o Tenente-Coronel Sena
Madureira, que se manifestaram na imprensa a respeito de questões relativas à política e ao Exército.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1591
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

reunião de alunos, realizada em 2 de outubro de 1886, onde foi constatado que os alunos
da Praia Vermelha iriam prestar solidariedade aos oficiais que haviam sido punidos pelo
Ministro da Guerra, Alfredo Chaves, por ato de indisciplina. O problema se agravou,
tomando maiores proporções, a ponto do Ministro da Guerra considerá-la como vivendo
“(um) ambiente de franca sublevação” e sugerir ao Imperador o seu fechamento
(MACHADO, 2015, p. 202).
Outro episódio que também marcou a participação da Escola no evento
Republicano, foi o comparecimento em massa dos alunos no desembarque de Deodoro
da Fonseca na Corte, em 23 de janeiro de 1887, o que ocasionou a demissão de seu
comandante, Severiano da Fonseca, que era irmão de Deodoro, e a punição dos alunos.
Já em 1889, quando a propaganda republicana se intensificou, era constante a presença
dos alunos à frente dos comícios.
A proclamação da República foi efetivada na manhã do dia 15 de novembro de
1889, passando a ser considerado um momento- chave no surgimento dos militares como
protagonistas no cenário político brasileiro (CPDOC.FGV). Na madrugada desse dia, a
Escola, atendendo ao chamamento de Benjamin Constant, se pôs em forma, sob o
comando do major Marciano Botelho de Magalhães, e rumou para a cidade, a fim de
juntar-se às tropas em rebelião (MOTTA, 1998, p. 205).
Portanto, proclamada a República, agora era preciso consolidá-la. Nesse período
tivemos duas Revoltas da Armada, a primeira em 1891, para depor o presidente Deodoro
da Fonseca, e a segunda em 1893, para depor o presidente Floriano Peixoto, que se negou
a deixar o cargo até que terminasse o mandato. Na segunda Revolta da Armada a Escola
Militar se fez florianista. Segundo Motta (1998, p. 208) “os alunos foram tudo e fizeram
tudo: foram combatentes de linha de frente, agentes de ligação, escolta de presos políticos,
e organizadores de batalhão populares.”
Em novembro de 1904, quando eclodiu a chamada Revolta da Vacina, os alunos
da Praia Vermelha e do Realengo, que ainda respiravam ares do positivismo,
abandonaram as sedes de suas Escolas, no dia 14 do mesmo mês e ano, e marcharam, sob
o comando do general Silvestre Travassos, rumo ao palácio do Catete, onde foram
contidos por tropas do governo (CPDOC.FGV). Segundo Rodrigues ( 2008, p. 58):

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1592
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Após a sedição militar que envolveu seus alunos, em 14 de novembro


de 1904, durante a Revolta da Vacina, a Escola Militar do Brasil foi
fechada e dividida em quatro escolas: a Escola de Guerra de Porto
Alegre, a Escola Preparatória e Tática do Rio Pardo, a Escola
Preparatória e Tática no Realengo e a Escola de Aplicação de Artilharia
e Engenharia no Realengo, que tinham como ideia principal abandonar
o cientificismo anterior e imprimir um conceito mais prático e objetivo
na formação do oficial do Exército. As quatro Escolas que sucederam a
Escola Militar do Brasil foram sendo unificadas até serem
transformadas, em 1913, na Escola Militar do Realengo.

Agora situada no bairro do Realengo-RJ, Escola Militar se envolveu no


movimento tenentista ocorrido em 5 de julho de 1922. Esse movimento tinha por objetivo
impedir a posse do presidente Arthur Bernardes (1922 a 1926), depois do conturbado
episódio das “cartas falsas”, em que atribuíam a ele a autoria das cartas que continham
comentários desrespeitosos sobre os militares. Levantaram-se contra Arthur Bernardes a
Escola Militar, o Forte de Copacabana, e a Guarnição Federal do Mato Grosso. Portanto,
o levante não obteve êxito e, em 15 de novembro de 1922, Arthur Bernardes assume a
presidência do país (RODRIGUES, 2008, p. 114). Como resultado desse levante, muitos
alunos foram expulsos, instrutores foram presos e houve mudança de comando na Escola.
Para Rodrigues (2008, p. 154), o fracasso do levante “facilitou a aceitação na
Escola da Missão Militar Francesa em 1924803, já na gestão do Ministro da Guerra,
General Setembrino de Carvalho, que realizou, na época, nova reforma no Regulamento
da Escola Militar.” A reforma iniciada pela Missão Francesa tinha por objetivo mesclar
os conhecimentos profissionais e a cultura geral dos oficiais.
Portanto, a ideia de tirar a Escola Militar do centro da Capital Federal e colocar
no subúrbio, longe dos acontecimentos políticos, e as ideias implementadas pela Missão
Militar Francesa, uma delas era tornar o Exército profissional e apolítico, não surtiram o
efeito desejado.
E como prova dessa afirmativa, foi que em 1930 a Escola se envolveu novamente
em outro movimento de cunho político, que foi a Revolução de 1930. Nesse episódio
também marcante para a história política do Brasil, a Escola foi para o centro do Rio de
Janeiro, fez guarda a pontos considerados estratégicos, cuidou do trânsito e, quando o

803
- Embora chegasse em 1918, a Missão Militar Francesa ainda não tinha implantado seu programa de
reorganização do Exército, que começou apenas em 1924.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1593
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

chefe da Revolução chegou ao Rio de Janeiro para assumir o governo, os cadetes fizeram
a sua “guarda de honra” (ARAGÃO, 1959, p. 2009).
Em outubro de 1930, assumiu o comando da Escola Militar do Realengo, o
Coronel José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque (1930-1934), o idealizador da AMAN.
O novo comandante assumiu a Escola Militar decidido a estruturar uma nova formação
para o oficial do Exército Brasileiro, criando uma nova mentalidade, afastando-o das
principais influências decorrentes das atividades políticas desenvolvidas na Capital
Federal, que punham em risco as atividades de ensino.
Entretanto, em novembro de 1935, apesar da Escola não ter se envolvido
diretamente no conflito, que foi chamado pejorativamente pelos opositores de Intentona
Comunista, teve o seu ambiente totalmente tomado pelo pesar daquela revolta. Nesse
período, principalmente devido a simpatia que tinham por Luís Carlos Prestes804, muitos
oficiais e praças aderiram ao movimento comunista.
Essa adesão dos militares e o belicismo do levante fizeram com que o
anticomunismo se intensificasse após 1935, passando a fazer parte da rotina de várias
unidades do Exército, inclusive nas escolas militares, pois segundo a historiadora Marly
Vianna, a Escola Militar do Realengo, sob o comando do general José Pessoa, enfrentou
neste período três manifestações sob a orientação do Partido Comunista, na terceira,
segundo a autora, cerca de oitocentos cadetes se rebelaram contra as ordens de seu
comandante (VIANNA, 1992, p. 79). A historiadora Fernanda Nascimento também
contribui para essa análise, ao dizer que o PCB, através do Comitê Militar
Revolucionário, desenvolveu grande atividade na Escola Militar do Realengo em 1930.
Segundo a autora, o PCB possuía planos para arregimentar militares para a revolução
dentro das próprias Escolas da Vila Militar (NASCIMENTO, 2010, p. 211).
Portanto, para combater esse “novo inimigo”, nos finais dos anos de 1950, uma
nova doutrina formulada pela Escola Superior de Guerra (ESG), como peça central da
Doutrina de Segurança Nacional, passou a desempenhar um papel importante nas Forças
Armadas “a teoria de guerra revolucionária”, introduzida e disseminada nos estados-
maiores e escolas militares brasileiras, consolidando esse novo papel das Forças Armadas

804
- Líder do Movimento Tenentista de 1922. Ver VIANNA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários
de 1935:sonho e realidade. 3.ed. São Paulo. Expressão Popular. 2011. p . 87 - 125.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1594
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

na luta contra guerra revolucionária no contexto da Guerra Fria (CHIRIO, 2012, p. 22).

A Academia Militar das Agulhas Negras: do anticomunismo ao golpe militar de 1964.

Durante os recentes acontecimentos, a Academia Militar das Agulhas


Negras foi o cenário de importantes decisões. Para começar, os próprios
cadetes, liderados pelo comando, tomaram posição a favor do
movimento. (Revista Manchete, de 10 de Abril de 1964).

Com esses acontecimentos marcantes na história republicana do Brasil, a


Academia Militar, agora instalada em Resende-RJ desde 1944, e que não estava alheia ao
que estava acontecendo no país e principalmente dentro do Exército, e também, por não
querer que as insubordinações ocorridas na Escola Militar do Realengo voltassem a se
repetir, passou a se envolver na política contra esse “inimigo interno diferente”, o
comunismo, levando-a a participar do golpe militar de 1964.
Neste momento da pesquisa, verificamos que em 1950 alguns oficiais superiores
considerados ativistas do comunismo passaram a atuar na Diretoria Geral de Ensino
(DGE), órgão no qual a AMAN estava diretamente subordinada, conseguindo inclusive
aprovar um novo Regulamento na AMAN, que passou a ser conhecido como o
regulamento de 1958. Segundo o general António Jorge Corrêa805, esse regulamento
descaracterizava a essência básica da Escola de Formação de Oficial do Exército,
deformando o espírito militar e seus padrões, tornando-se nas palavras do general “mais
uma Escola leiga do que uma Academia” (MOTA, Ariclides.2003, p. 31).
Ao assumir o comando da Diretoria Geral de Ensino, em 1960, o General de
Divisão Humberto de Alencar Castello Branco, buscou dar a Academia o mesmo perfil
militarizado que havia outrora. Em seus discursos, Castelo Branco sempre alertava para
os “perigos da ideologia comunista”, afirmava que os militares que colocassem a doutrina
comunista acima do compromisso de defender as instituições da nação deveriam
exonerar-se das forças armadas (CPDOC.FGV). E uma das medidas tomadas pelo
General foi afastar os antigos oficiais da Diretoria e substituir o comando da AMAN,

805
- Membro do Conselho de Segurança Nacional e Ministro de Estado Chefe do Estado-Maior das Forças
Armadas, Instrutor da Missão Militar brasileira de Instrução no Paraguai e Subcomandante da AMAN em
1964.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1595
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pelos seguintes oficiais: Comandante, o general de brigada Alberto Pereira dos Santos;
Subcomandante, o coronel Emílio Garrastazu Médici; e comandante do corpo de cadetes,
o coronel Antônio Jorge Corrêa.
O novo comando da AMAN, procurou identificar e eliminar as supostas células
comunistas existentes na Academia, e uma delas foi o professor da Cadeira de Português,
coronel Manoel Cavalcante Proença, por suspeita de ligação com a União Nacional dos
Estudantes (UNE).
Em 1961 o general Castello Branco revogou o Regulamento de 1958, estava em
vigor nesta época a Doutrina da Guerra Revolucionária, e por conta disso, cumprindo
uma determinação do Estado-Maior do Exército, em abril de 1962, uma equipe de oficiais
da AMAN foi designada para frequentar um estágio realizado pela Diretoria Geral de
Ensino (DGE), para uniformizar os procedimentos relativos à Guerra Revolucionária.
Segundo a Nota de Instrução nº 1, do Estado-Maior do Exército, expedida em 06
de novembro de 1961, e que tratava do assunto, o objetivo do estágio era: Preparar o
Exército, psicologicamente e materialmente, para opor-se a qualquer tipo de ação
subversiva, através: - do fortalecimento do militar – ativa e reserva – quanto a consciência
dos valores fundamentais que caracterizam a democracia brasileira; - do conhecimento
das finalidades da doutrina, dos processos e das técnicas utilizadas pelo comunismo, para
que se tornem claras as suas características contrárias à formação brasileira e a
necessidade da utilização de uma técnica para neutralizá-lo e combatê-lo; - da instrução
relacionada com a tática e técnica da guerra revolucionária e das especiais.
De acordo com o general Jorge Corrêa, em 1963 o general de brigada Pedro
Geraldo de Almeida foi substituído no comando da AMAN, pelo general de brigada
Emílio Garrastazu Médici, ex- aluno da Escola Militar do Realengo. Contribuiu para a
sua escolha o fato de já ter sido o subcomandante da AMAN de 1960 a 1962 e por isso a
conhecia muito bem (MOTA, Ariclides.2003, p. 32).
Convicto do avanço do comunismo na conquista de postos de governo e na
tentativa de subverter a ordem nas Forças Armadas pela inversão da hierarquia e pela
indisciplina, abalando a sua coesão, o general Médici resolveu empregar na AMAN, um
Grupo Especial de Trabalho (GET), para a intensificação do estudo da Guerra
Revolucionária, sendo chefiado pelo agora subcomandante Antônio Jorge Corrêa e
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1596
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

constituído por quatro grandes grupos: 1) Oficiais do Corpo de Cadetes e do Batalhão de


Comando e Serviço (BCSv); 2) Cadetes; 3) Subtenentes e Sargentos do BCSv e 4)
Oficiais do Magistério e da Administração (MOTA, Ariclides, 2003, p.33).
O GET tinha por finalidade, acompanhar a evolução dos acontecimentos no país,
planejar o emprego da tropa, prever o controle das atividades na área de Resende e tudo
que pudesse advir em caso de anormalidade nas áreas política e militar. Corroborando
para essa análise, o capitão Ivany Henrique da Silva806 afirma que o GET realizou nesta
época, um estudo para verificar quais os militares tinham ligação com o comunismo e que
não se poderia contar em caso de um movimento revolucionário, até mesmo entre os
cadetes, pois entre eles havia um que era filho do coronel subchefe da Casa Militar do
Presidente, mas nada foi constatado, o cadete inclusive participou das missões que foram
entregues a eles no dia do golpe (SILVA. p. 58).
Visando intensificar a doutrina anticomunista na Academia, os professores tinham
aulas sobre Guerra Revolucionária, ministradas pelo próprio comandante ou pelo
subcomandante, e nas salas de aula eles repassavam aos cadetes o processo de
“comunização” pelo qual estaria passando o Brasil e ao perigo de infiltração subversiva
nas Forças Armadas.807
Portanto, quando eclodiu o golpe militar de 1964, oficiais, cadetes e praças da
Academia, pelo menos boa parte deles, já tinham o seu posicionamento a respeito do
comunismo, devido sobretudo, a constante ideologia anticomunista que se formou
naquele ambiente acadêmico. “Antes que as tropas chegassem, oficiais e cadetes já
haviam formado uma trincheira quase que inexpugnável para contrapor-se ao I Exército.”
(Revista O Cruzeiro, edição de 10 de abril de 1964).
Sendo assim, verificamos que a Academia Militar atravessou um longo processo
de lutas, mudanças e intervenções militares ao longo de sua história, da Monarquia a
República. Desde a sua chegada em Resende-RJ, em 1944, um “novo inimigo” já
afrontava o Exército Brasileiro, atravessando os muros das Escolas Militares, o
comunismo. A Academia Militar, assim como ocorreu durante toda a sua história, não

806
- Instrutor do curso de Engenharia da AMAN em 1964.
807
- Homenagem a 31 de março de 1964. A AMAN e a Revolução. Rio e Janeiro. Revista do Clube Militar,
nº. 381, março 2001, p. 20.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1597
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ficaria alheia a esse novo enfrentamento, o que a levou a participar, em 1964, do Golpe
Militar que derrubou o presidente da República, João Goulart (1961-1964), e instaurou a
ditadura militar no Brasil, se opondo as tropas que vinham do Rio de Janeiro, que eram a
favor de João Goulart, para se confrontarem com as tropas que estavam vindo de São
Paulo, que eram contra o presidente. Tema que é o objeto da nossa pesquisa.

Referências:
Academia Militar: dois séculos formando oficiais para o exército/Academia Militar das
Agulhas Negras. São Paulo: Editora IPSIS, 2011.

ARAGÃO, José Campos de. Cadetes de Realengo. Rio de Janeiro. Bibliex. 1959.

CARVALHO, José Murilo de. A formação das Almas: o imaginário da República no


Brasil. São Paulo. Companhia das Letras. 1990.

CASTELO BRANCO, Humberto de lencar. Disponível em:


http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/humberto-de-alencar-
castelo-branco. Acesso em: 9 Jun 2017.
CASTRO, Celso, O espírito militar: um antropólogo na caserna. 2.ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed. 2004.

CHIRIO, Maud. A política nos quarteis: revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar
brasileira. Rio de Janeiro. Zahar, 2012.

MACHADO, Elton Licério Rodrigues. A Evolução da Formação Militar: Escolas e


Reformas no Ensino do Exército Brasileiro. In DURLAN, Puppin de Faria, (org).
Introdução a História Militar Brasileira. Resende. Academia Militar das Agulhas Negras,
2015.

MOTA, Ariclides de Morais. 1964 – 31 de março: o movimento revolucionário e a sua


história. Rio e Janeiro. Biblioteca do Exército editora. V.1. 2003. p. 31.

MOTTA, Jehovah, Formação do Oficial do Exército: currículos e regimes na Academia


Militar, 1810-1944. Rio de Janeiro. Biblioteca do Exército, 1998.

NASCIMENTO, Fernanda de Santos et al. A revista A Defesa Nacional e o projeto de


modernização do exército brasileiro (1931-1937). 2010.p.211.
Revolta da Vacina. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/REVOLTA%20DA%20VACINA.pdf.> Acesso em: 15 de maio de 2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1598
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

RODRIGUES, Fernando da Silva. Uma carreira: as formas de acesso à Escola de


Formação de Oficiais do Exército Brasileiro no período de 1905 a 1946. Tese de
doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008.

SCHULZ, John. O Exército na Política. Origens da Intervenção Militar (1850-1894).


EDUSP: São Paulo, 1994.
SILVA, João Barbosa da. A ação do Exército Brasileiro na manutenção da ordem interna
na proclamação da República até a II Guerra Mundial. In DURLAN, Puppin de Faria,
(org). Introdução a História Militar Brasileira. Resende. Academia Militar das Agulhas
Negras, 2015.
SVARTMAN. Munhoz Eduardo. Formação Profissional e Formação Política na Escola
Militar do Realengo. Revista Brasileira de História, São Paulo, V.32, nº 63, 2012.
_____. Guardiões da Nação: Formação profissional, experiências compartilhadas e
engajamento político dos generais de 1964. 2006. Tese de Doutorado. Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre.
VIANNA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários de 35: sonho e realidade.
Companhia das Letras, 1992. p. 79.

15 de novembro de 1889: A proclamação da República. Disponível em: <


http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/ProclamacaoRepublica>. Acesso em
11 de maio de 2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1599
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(Re)invenções de presos políticos num presídio da ditadura militar

JOSÉ AIRTON DE FARIAS


Dinter Universidade Regional do Cariri - Universidade Federal Fluminense

Um espaço para chamar de seu

Num presídio, as atividades dos internos tendem a serem as mesmas, realizadas


em conjunto, nos mesmos horários, com todos os presos sendo tratados de forma idêntica,
conforme as determinações dos funcionários e dirigentes. Os presos dormem, trabalham,
se divertem, se alimentam em grupo, num mesmo ambiente e horário, sob a inspeção de
uma autoridade (GOFFMAN, 1974). Não obstante, por suas especificidades, de inimigos
do governo, os militantes da esquerda armada mantidos encarcerados no presídio cearense
Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), escaparam a tal constatação. Mais ainda: em suas
vivências cotidianas, os presos políticos deram outros sentidos a alguma das estruturas
físicas do presídio e às imposições e desejos do corpo dirigente prisional. Agiam, não
raro, conforme os ideários de sua cultura política comunista, marcada pela solidariedade
e coletivismo (MOTTA, 2013: 22). Os revolucionários mantidos presos no Instituto Penal
Paulo Sarasate (IPPS), no Ceará, abriram brechas na estrutura carcerária da ditadura,
desenvolveram práticas, táticas e estratégias, realizaram reconstruções e ressignificações,
todas de relevos para a redefinição de suas identidades e projetos políticos. Não obstantes,
o viver não cabe em esquemas rígidos e as práticas levaram igualmente a
questionamentos, dúvidas, atritos com a própria cultura comunista, ensejando mudanças
nas visões de mundo e comportamento dos militantes. Assim, buscaremos abordar neste
artigo como os presos políticos do IPPS deram outros sentidos e usos a alguns ambientes
do presídio e como tal processo impactou em suas trajetórias pessoais e políticas.
Michel de Certeau distingue as categorias lugar e espaço.

Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem


elementos nas relações de coexistência. (...) um lugar é portanto uma
configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de
estabilidade.
Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção,
quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1600
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos


movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas
operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam
a funcionar em unidades polivalentes de programas conflituais ou de
proximidade conflituais (CERTEAU, 2004: 22).

O lugar se definiria pela disposição dos elementos. O espaço seria a significação


dessa disposição, a vinculação desses elementos através da prática humana e do discurso
humano. Nas práticas do cotidiano, os indivíduos subvertem programações disciplinares
e estruturas. Os indivíduos se apropriam e ressignificam os lugares e os transformam em
espaço, conforme suas necessidades, criatividade e condições de vida. O espaço é o lugar
praticado. O lugar é a ordem, as normas, a estabilidade; o espaço, a contraordem, a
subversão, a instabilidade. O lugar apega-se aos limites, o espaço os viola, os transgrede,
dependendo da tática para ser praticado. Certeau (2004: 176) trata da “fala dos passos
perdidos”, referindo-se a um caminhar urbano (mas aplicável a outros contextos), de
como as pessoas atualizam os mapas urbanos ao andar, apropriando-se dos mesmos e
praticando e produzindo espaços.
Podemos entender os diversos ambientes do Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS)
como lugares, construídos e planejados com determinadas estruturas e fins:
encarceramento e controle dos internos, sua “ressocialização”, punição... Os internos (e,
porque não, os funcionários e os dirigentes do presídio), com sua suas práticas, ocupações,
apropriações e vivências, transformaram aqueles ambientes em distintos espaços. Ao
viverem, dormirem, circularem, se relacionarem, as pessoas dão vida a um lugar,
apropriam-se, inventam e reinventam, criando o espaço, estabelecendo significados que
nem sempre é o esperado por quem o instituiu. “(...) as idas e vindas, as variações ou as
improvisações da caminhada privilegiam, mudam ou deixam de lado elementos
espaciais.” (CERTEAU, 2004: 178). Os indivíduos referidos, em suas caminhadas,
percursos cotidianos, a partir de inferências corporais e cognitivas, deram outros
significados ou ressignificaram o presídio. Esses processos permitiram aos
revolucionários reconfigurarem suas identidades pessoais e moldar novos projetos
políticos, como bem demonstrou Pilar Calveiro (2013) ao tratar dos encarcerados pela
ditadura argentina.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1601
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Um dos primeiros ambientes do Instituto Penal Paulo Sarasate ressignificados


pelos militantes da esquerda armada foram as próprias celas, que ganharam outros
objetivos mediante as invenções e necessidades dos presos políticos. Numa prisão, um
dos problemas é o da individualidade e da falta de privacidade (GOIFMAN, 1998). Pela
descrição dos entrevistados e pelo que pudemos constatar em nossa ida ao presídio em
março de 2017, o resguardo da intimidade era problemático, por mais que as celas do
IPPS fossem para apenas uma pessoa.
As celas eram padronizadas, iguais para todos os internos, os quais não podiam
fazer nenhuma alteração no ambiente, nos primeiros tempos da prisão. Para complicar,
ainda nesses primórdios do presídio, conforme relatado pelos entrevistados, era vedado
que os presos políticos tivessem objetos pessoais nas celas. Em geral, num presídio,
busca-se despojar o interno de seus bens pessoais, com o estabelecimento providenciando
alguns outros bens, não raro, padronizados e de qualidade inferior. Ora, um conjunto de
bens individuais apresenta relevância para o individuo. Despojar, pois, o interno de bens
usuais é uma forma de desfiguração pessoal, de atacar sua identidade e individualidade
(GOFFMAN, 1974).
Encontrar-se num presídio a exemplo do IPPS, conforme expressão do ex-
militante do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário) Mário Albuquerque,
é estar num “casamento forçado”, referindo-se aos contatos diuturnos dos revolucionários
atrás das grades, que podiam provocar indisposições, irritações, pequenos
desentendimentos, muitas vezes. Como lembra Goffman (1974), o contato excessivo em
instituições como a prisão é contaminador, matriz de antipatias, atritos. De modo geral,
no IPPS, o militante da esquerda armada quase nunca estava inteiramente sozinho.
Realizava atividades em conjunto com seus companheiros, constatação que se
enquadrava dentro do próprio coletivismo comum à cultura comunista, e se encontrava
numa situação na qual era visto, percebido ou ouvido por outras pessoas, mesmo que
fossem apenas os colegas de internamento ou os funcionários do presídio, numa espécie
de concretização do modelo do panoptico abordado por Foucault (1987). Assim, o
“casamento forçado”, a dificuldades de obter privacidade e a constante vigilância
levavam presos a ficarem com “nervos a flor da pele”, por vezes, gerando algumas

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1602
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“discursões bobas”, conforme nos revelou outro ex-preso do IPPS, Fabiani Cunha, ainda
que destacando a convivência respeitosa na maior parte do tempo.
Dessa forma, eram necessários para os presos alguns momentos para se “afastar”
do resto do grupo, buscar um espaço para si, pensar, estudar, questionar – talvez lamentar,
chorar... –, num exercício que ajudava na reconstrução psíquica dos militantes, dentro de
um presídio em que viveriam forçadamente por meses ou anos. Gravar numa cela uma
marca pessoal era firmar uma identidade, denotar a personalidade daqueles homens que
haviam sonhado com outra sociedade, mais igualitária e socialmente justa, e que foram
derrotados e, não raro, humilhados e torturados pela ditadura, mas que agora necessitavam
recomeçar, repensar ou manter seus princípios e sonhos. Após os primeiros anos de
intenso controle e restrições, os presos políticos do IPPS conseguiram brechas através das
quais buscaram firmar a individualidade e a privacidade. Não era apenas tornar a cela
mais atraente ou confortável, visando um ambiente, dentro do possível, melhor de viver
e lúdico. Era buscar escapar a descaracterização desejada pela ditadura, dar uma “cara
própria” às celas, firmar a condição de presos políticos e de indivíduos.

Com o tempo eu fui dando minha cara à cela. Tinha uma mesa para
escrever, eu escrevia e lia muito lá. Tinha um rádio, um mosqueteiro,
porque tinha inseto. Tinha um mergulhão [aquecedor], para esquentar a
água, porque eu tinha problema de calafrios. Coloquei uns quadros na
parede, mas eram paisagens, não eram políticos, não. (...) Havia
companheiros que buscavam papelão na grade toda para obter
privacidade. William Montenegro, ex-membro da ALN (Ação
Libertadora Nacional).

Outros internos montariam pequenas estantes de livros, poriam quadros, fotos


de parentes, retratos de mulheres nuas nas paredes e havia ainda os que priorizassem os
instrumentos musicais, discos e rádios. Houve mesmo quem dividiu a cela com um gato
selvagem e uma criação de pássaros, como foi o caso do citado, Fabiani Cunha. ex-
militante da ALN. Não obstante, havia limites para a individualização das celas. Pôsteres
de líderes políticos, como de Che Guevara, não eram tolerados, muito menos os livros
“vermelhos” comunistas. Vez por outra, agentes penitenciários, policiais federais e
membros da Auditoria Militar inspecionavam as celas, confiscando bem dos presos e os
intimidando, denotando a violência e o autoritarismo do regime e da instituição prisional.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1603
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Era o mundo “real”, externo, lembrando aos militantes da esquerda armada a sua condição
de preso político.

Todo poder à cozinha

Estando os presos políticos separados dos demais internos e sendo seu número
menor, havia celas vazias nas “ruas” dedicadas a eles no pavilhão sete. Com isso, algumas
dessas celas, lugares destinados, a priori, ao cumprimento de uma pena, foram
transformadas, conformes as necessidades cotidianas e pretensões e projetos políticos dos
internos, em cozinha, dispensa, oficina, biblioteca, discoteca e sala de aula, sem falar nas
salas da burocracia que viraram espaços para encontros íntimos com namoradas e esposas.
Ou seja, as práticas cotidianas dos presos, suas necessidades e aspirações, deram outros
sentidos às celas.
O presídio apresentava uma cozinha, chamada de “rancho”, onde trabalhavam
alguns presos comuns de melhor comportamento. Ali também eram servidas as refeições.
Numa prisão, os internos são obrigados ou veem-se obrigados a ingerir os alimentos
dados pela instituição, por menos agradável que sejam. A qualidade da comida no IPPS
não era das melhores, motivo de reclamação dos presos. De início, igual os demais
internos, os militantes da esquerda armada tinham de consumir essa mesma alimentação,
servida em suas celas, onde estavam reclusos. Não por acaso, seriam os presos comuns
que levavam as refeições os primeiros a se aproximarem dos “subversivos” do IPPS. Ante
o processo de acomodações, pressões, embates e negociações que desenvolveram ao
longo dos anos junto à direção do presídio, os presos políticos conseguiram, após algum
tempo, permissão para prepararem seus alimentos à parte. Para a direção do presídio, não
deixava de ser vantajosa a concessão, afinal, não precisaria se preocupar com a logística
de ter funcionários ou presos comuns para levar as refeições dos “subversivos”, recolher
pratos, etc. Para os militantes de esquerda encarcerados, afora a possibilidade ter refeições
de melhor qualidade, era uma vitória, um tento na busca de autonomia dentro de uma
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1604
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

estrutura autoritária. Numa prisão, a alimentação é fundamental e, agora, seriam os presos


políticos que se responsabilizariam por ela. Não era apenas um trunfo momentâneo.
Constituía-se uma vitória que ensejava lutar por outras melhorias e reivindicações. Se
fosse um sucesso essa experiência de produção de alimentos pelos presos política,
também seria se trabalhassem em outras ocupações, estudassem...
A autorização para uma cozinha dos “subversivos” não era extensiva aos demais
internos do IPPS, denotando mais uma vez o tratamento peculiar que a própria ditadura
ofertava aos presos políticos, ainda que no discurso oficial não os reconhecesse como
tais.... É possível ponderar se uma cozinha para os presos comuns seria viável, visto que
o funcionamento daquele espaço entre os militantes de esquerda foi viabilizado pela
proximidade pessoal entre os presos políticos e ao ideário comunitário da cultura política
da esquerda. Os guerrilheiros passaram a receber do presídio porções dos produtos crus
(feijão, arroz, macarrão, carne), os quais eram juntados com os mantimentos trazidos
pelos parentes nos dias de visita e postos em uma cela, até então vazia. Tal cela, assim,
virou dispensa e cozinha dos militantes de esquerda, sob o controle e administração do
coletivo. Era chamada simplesmente de “a cozinha”, um dos ambientes mais relevo
dentro do pavilhão dos presos políticos do IPPS.
A cozinha trazia, não obstante, alguns “desconfortos” para os militantes de
esquerda. “Desconforto” vinculado, por exemplo, à origem e condição social dos
revolucionários, gente vinda, com exceções, da classe média (RIDENTI, 1993), e não
muita afeita a realizar ou valorizar quem lidava com os fazeres da cozinha e limpeza
doméstica. “Desconforto” também político, afinal, aqueles homens estavam presos
porque eram ativistas, rebeldes que desejavam mudar o mundo, revolucionários que antes
haviam empunhado armas e, agora, faziam “humilhantes trabalhos”, manuseando panelas
e vassouras. “Desconforto” porque faziam nos cárceres “trabalho de mulher e gay”,
reproduzindo o machismo da sociedade e do qual a esquerda não escapava.
Bem de acordo com a cultura política comunista, de tratamento igualitário e
responsabilidade solidária (MOTTA, 2013), todos os presos deveriam trabalhar na
cozinha, mesmo que não tivessem nenhuma habilidade. Alguns dos militantes, se não
tinham como se livrar daqueles afazeres, apelavam para soluções inusitadas para minorar
a sua “falta de dotes culinários". Era o inventar em cima do inventado.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1605
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Com a história da igualdade, era levada ao nível cômico e extremo.


Todo mundo tinha que passar pela cozinha. Só que tinham gente que
não tinha o menor jeito. Lá em Recife, ficou conhecido um
companheiro como “bife mergulhão”. Por quê? O que ele fazia? Botava
agua no fogo, pegava a carne, tacava dentro da água, punha um tempero
e pronto. Era um sabor horrível [risos]. Aqui, o Auto Filho, intelectual,
o que que ele fazia no dia da cozinha dele? Ele mandava comprar
feijoada enlatada [risos]. Ele servia. Todo mundo tinha que cumprir a
norma de ir para a cozinha. Mário Albuquerque, ex-militante do PCBR.

Assim, com certo incômodo ou falta de habilidades para aquelas atividades


manuais e uma qualidade “a desejar” das refeições, o dia na cozinha poderia ser “terrível”
tanto para quem preparava os pratos e como para quem os consumia... Ao longo dos anos,
não obstante, os internos foram dominando a labuta, os parentes, especialmente as
esposas e irmãs, nos dias de visitas davam dicas, levando os revolucionários a perceberem
com outro olhar a importância do trabalho doméstico. As necessidades da existência dos
presos políticos levaram-no a novas práticas e, porque não, concepções de mundo.

Mãos que fazem

Há um discurso, ainda comum hoje, de enxergar o trabalho dentro do sistema


penitenciário como maneira de redimir os presos e ressocializá-los. Como diz Kiko
Goifman (1998), o trabalho numa prisão, porém, tem sentido distinto daquele do mundo
externo, onde a atividade laboral visa a um pagamento, lucro, acumulo de riqueza ou
prestígio. No presídio, o trabalho geralmente fica restrito aos internos de menor
periculosidade, que têm atualmente na labuta uma forma de redução das penas, conforme
a legislação processual penal criada em 1984 (Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984). A
grande massa carcerária, assim, está afastada das atividades laborais. Para os presos, o
trabalho é uma forma de passar o tempo com uma atividade “produtiva”, atenuando a
maçante rotina carcerária – numa prisão o tempo a ser preenchido é enorme e as atividades
a serem feitas, poucas (GOIFMAN, 1998). Vira também uma forma de tutela pela direção,
visto que, caso os internos cometam alguma conduta proibida, irão perder o direito ao
trabalho. Em geral, os presos são postos em função mais simples, como limpar, lavar

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1606
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

roupas, cozinhar, etc., vistas como degradantes ou menores pelos funcionários e


dirigentes da instituição prisional (GOIFMAN, 1998).
Os presos políticos, não obstante, estavam impedidos de trabalharem em tais
atividades. A coibição liga-se possivelmente à postura da direção do presídio de evitar
contatos dos “terroristas” com os demais detentos e à peculiaridade dos crimes
“subversivos” praticados – temor que as “ideias e táticas comunistas” fossem passadas a
marginalia ou que os internos contaminassem os revolucionários com o comportamento
“de malandro e vagabundo”, criando mais um problema para o presídio, segundo um dos
ex-funcionários do IPPS entrevistado, Epifânio de Carvalho. Não se pode também
esquecer a condição social dos presos políticos, pessoas de classe média, tais quais, via
de regra, os funcionários e diretores do IPPS, que concebiam como “menor” o trabalho
manual. Mesmo sendo “terrorista”, não seria propicio ou aceitável que “gente estudada”
trabalhasse em serviços simples como∕para os marginais “pretos e pobres”.
Isso não quer dizer, porém, que os presos políticos deixassem de trabalhar –
iriam ser responsáveis pela limpeza e cozinha apenas do pavilhão sete, onde estavam
recolhidos, por exemplo. Apesar da referida origem social de classe média e das restrições
iniciais (“somos revolucionários, não lixeiros”, diria um dos presos), tais serviços
ganhariam relevo na reconstrução da vida daqueles homens, uma quase terapia, uma
ocupação para preencher o tempo e a mente. Acreditavam que realizando as atividades
estavam cada vez mais ganhando autonomia dentro do sistema autoritário prisional e
ditatorial vigente e sendo responsáveis por melhores condições de sobrevivência dentro
do IPPS. Tão importante para os guerrilheiros o trabalho que uma de suas maiores lutas
e reinvindicações, depois atendida, foi a instalação de uma oficina de artesanato. “Com o
tempo, começou a haver um certo diálogo com a direção, mas com dificuldade de
liberação das coisas. Mas a gente conseguiu o artesanato, termos os instrumentos para
fazer nosso artesanato”, afirmou o ex-militante da ALN, Wiliam Montenegro.
Também ali, pela natureza das atividades desenvolvidas numa oficina, os
revolucionários passaram acessar e a manusear facas e outros objetos perfurocortantes
(pregos, tachas, estiletes, serras, etc.). A postura da direção foi de concessão e tolerância
tácita com os revolucionários.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1607
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Não obstante essa liberação, a oficina, bem como a cozinha (onde igualmente se
manuseavam facas), ficava nas primeiras celas da ala dos presos políticos, nas
proximidades do portão de entrada da galeria, área por onde transitavam funcionários e
seguranças do presídio. Se estes eram “coniventes” com a oficina, provavelmente
estavam de olho no que era produzido e nas armas manuseadas pelos ditos
“subversivos”... O primeiro dinheiro para a obtenção da matéria-prima era possibilitado
geralmente pelos familiares, como no caso de Wilson Montenegro, que comprou com
seus recursos couro, cola e tintas para o trabalho do irmão, William Montenegro. Depois,
com os lucros da oficina, os militantes passaram a se autofinanciar, ainda que não tenha
cessado a ajuda e apoio de familiares.

Pensando a esquerda

Na fase da luta armada, os militantes, de modo geral, caracterizavam-se pela


pouca teoria (AARÃO, 1990). Como acreditavam na iminência da vitória, não davam
muita atenção a pressupostos teóricos. Não raro, é comum ver os ativistas confessarem
que só foram conhecer e estudar o marxismo e outras teorias políticas em profundidade
na prisão. No IPPS, uma das celas foi transformada em grupo de estudos. A princípio,
eram grupos que visavam à melhor formação intelectual dos presos, para que se
preparassem visando uma posterior conclusão dos estudos, prestassem vestibular ou
retomassem as vidas acadêmicas ou ao ensino médio (“segundo grau” à época). Tais
grupos de estudos estavam em consonância com a estratégia e discurso da direção do
presidio em “recuperar” os presos políticos, gente de classe média que tinha e via na
educação um importante componente de ascensão social (TELES, 2011). Aos presos
políticos já era, inclusive, franqueado o acesso à biblioteca do presídio, biblioteca
considerada “bem rica” em quantidade de livros, conforme os entrevistados. Constituía-
se hábito dos presos políticos frequentarem esse ambiente na hora dos banhos de sol. Tão
grande essa frequência que um dos revolucionários teria namorado a bibliotecária... “A
gente lia tudo na biblioteca, política, economia, tudo que era jornal”, relatou William
Montenegro. Por vezes, usavam os livros dali nos grupos de estudo.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1608
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Não obstante, as práticas dos militantes deram aos grupos de estudos outros
propósitos. Pelas “brechas” da autorização para estudar, os presos políticos fizeram dos
grupos espaços para debater política e seus projetos socialistas. Ali poderiam ocorrer
aulas sobre marxismo, economia, história, etc., ministradas por alguns dos presos – alguns
eram professores – ou debates feitos após a leitura de textos, uma didática muito comum
em universidades ainda hoje, denotando a origem dos internos – vários dos guerrilheiros
haviam sido estudantes universitários.
Apresentando objetivos que foram se distinguindo daqueles pretendidos pela
direção do IPPS, os grupos de estudos apresentavam problemas na obtenção dos livros e
revistas para as leituras cotidianas. Muitas vezes os livros eram trazidos clandestinamente
por parentes nos dias de visitas e até por carcereiros, conforme um dos entrevistados, José
Machado, ex-integrante de ALN e PCBR. Não foi coincidência que um dos motivos de u
a greve de fome de 1974 teria sido o de franquear o acesso a mais livros e revistas, o que,
por fim, acabou atendido. Não obstante, mesmo com essa liberação, ainda havia a censura
interna feita pela direção do IPPS sobre o conteúdo do que seria lido. Para a direção, não
fazia sentido prender os inimigos do regime para que continuassem a manter ou a
aprofundar seus pensamentos anteriores, “subversivos”. A “recuperação dos presos
políticos e sua ressocialização” passavam pela destruição de sua ideologia “perigosa”.
Ante as restrições impostas pelo corpo diretivo, uma das reivindicações constantes dos
presos passou a ser o fim dessa censura interna do presídio. Usavam a argumentação que
aquelas obras, ao serem publicadas, já haviam passado pelo crivo da censura do governo
federal, não existindo por que haver uma outra censura, interna, no IPPS. Seria mesmo
um “desrespeito e uma desqualificação” do trabalho de estratos superiores do Estado,
conforme disse-nos o ex-militante do PCBR, Mário Albuquerque. Após muita pressão
dos presos, a direção aquiesceu e acabou com essa censura interna aos livros.
Além de ocupar o tempo, o estudo em grupo permitia uma maior reflexão sobre
a própria experiência da ação armada, os limites e críticas das ações e trajetórias das
esquerdas, ou seja, no jargão dos militantes, a “autocrítica”. Tais reflexões permitiram
mesmo que alguns dos militantes passassem a valorizar a democracia com um valor
político fundamental. Não custa lembrar que na fase da luta armada, a democracia tida
“burguesa” não era tão valorizada, e quando o era, não passava de uma forma os
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1609
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

revolucionários alcançarem uma “esta política posterior”, a do socialismo (RIDENTI,


1993). Diz Mário Albuquerque:

Pela primeira vez, a gente começou a pensar. Porque antes era ação
direta. O Partido Comunista, os grupos trotskistas têm uma formação
teórica. Mas os grupos de ação armada eram de ação direta. Então, na
prisão, pela primeira vez, eu fui realmente começar a ler, refletir sobre
mim mesmo, sobre eu estava ali, sobre o socialismo, entender a luta
contra a ditadura, sobre valorizar a liberdade. Foi um processo de
reestruturação geral. Foi quando eu descobri o valor da democracia.
Porque para nós a democracia era muito estigmatizada, era burguesa e
tal. Era mais uma forma do capital [dominar] e tal. Comecei a ler e
estudar Gramsci. Abriu meus olhos.

Com o fim da censura interna dos livros no presídio e o passar dos anos, os presos
políticos foram organizando uma biblioteca própria, estabelecida numa cela, que
igualmente servia de discoteca. Tornou-se um dos espaços mais apreciados pelos
revolucionários. Ler não só como forma de obter conhecimentos ou fazer reflexões, mas
como maneira de preencher o tempo, o eterno desafio dos que passam temporadas numa
prisão. “Havia muitos livros, muitos livros, não sei para onde depois foram esses livros,
mas não eram poucos. Discos também, nos davam muito de presente”, afirmou em seu
depoimento William Montenegro.

Conclusão

Sonhando em fazer a revolução, os membros da esquerda armada foram


derrotados e encarcerados pela ditadura. No caso do Ceará, os guerrilheiros cumpriram
pena no Instituto Penal Paulo Sarasate. Ali, buscaram transformar as estruturas físicas do
presídio, buscando não só melhores condições de vida, mas também a reconstrução de
suas identidades e projetos políticos.

Referências

AARÃO, Daniel. A revolução faltou ao encontro. São Paulo: Brasiliense, 1990.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1610
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

________. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988.


Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina.


São Paulo: Boitempo, 2013.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Ed. Vozes, 2004, p. 202.

FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito. Niterói: EdUFF; Rio de Janeiro: MAUAD,


2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petropólis: Vozes, 1987.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Editora Perspectiva,


1974.

GOIFMAN, Kiko. Valetes em slow motion: a morte do tempo na prisão. Campinas-SP:


Editora da UNICAMP, 1998.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.

MILLS, C. Wright. Sobre o Artesanato Intelectual e outros ensaios. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2009.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A cultura política comunista. In: ________;


NAPOLITIANO, Marcos; CZAJKA, Rodrigo. Comunistas brasileiros: cultura política e
produção cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 22 e seguintes.

RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora da


Universidade Estadual Paulista, 1993.

SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2012.

SENNETT, Richard. O Artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009.

SILVA, Geruza. Artesanato: identidade e trabalho. 2014, 180 f. Tese (Doutorado em


Sociologia) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014.

TELES, Janaína de Almeida. Memórias dos cárceres da ditadura: os testemunhos e as


lutas dos presos políticos do Brasil. 2011, 519 f. Tese (Doutorado em História) –
Universidade de São Paulo, 2011.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1611
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Manoel Bomfim: racialismo, mestiçagem e índios

JOSÉ GERALDO DOS SANTOS


UNIVERSO

Introdução

Analiso aqui a refutação das teorias racialistas europeias por Manoel Bomfim,
bem como esse autor pensou a positivamente a mestiçagem do povo brasileiro. Interesso-
me pelos embates deste autor com os intelectuais brasileiros que ressignificaram a ciência
raciológica vinda da Europa e dos Estados Unidos da América. Abordo, em especial, os
confrontos de ideias entre Bomfim, Sylvio Romero e Oliveira Vianna.
Por fim, faço uma análise da tese defendida por Bomfim sobre o protagonismo
dos indígenas no processo de formação nacionalidade brasileira.
Meu embasamento teórico se assenta em Jean-François Sirinelli com as suas
proposições metodológicas sobre a história dos intelectuais. Antônio Cândido, ao
desenvolver o conceito de intelectual radical, auxilia-me no entendimento do
posicionamento crítico e ideológico de Manoel Bomfim face aos autores racialistas Por
fim, Francisco Falcon ao mostrar a crescente historicização das ciências sociais e a
crescente apropriação de conceitos destas ciências pela história me possibilitou o
entendimento do perfil multifacetado de Manoel Bomfim. O corte temporal vai do final
do Oitocentos às três décadas iniciais do século XX.

Manoel Bomfim face aos racialismos europeu e brasileiro

Manoel Bomfim (1868-1932), médico de formação, professor, pedagogo,


psicólogo, jornalista, sociólogo e historiador, elaborou uma obra intelectual multifacetada
que propôs um diálogo com as várias ciências humanas na busca de soluções/explicações
para as questões sociais e políticas de seu tempo: analfabetismo, cidadania restrita,
pobreza e indigência das camadas populares brasileiras, racialização dos fenômenos
sociais com o fito de justificar as desigualdades sociais por um viés racial.
Bomfim foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a refutar as teorias
racialistas europeias chegadas ao Brasil em meados do século XIX. Ao escrever A
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1612
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

América Latina: males de origem, ele ficou em posição contrária àqueles autores que
ocupavam as posições de destaque no cenário intelectual brasileiro da Primeira
República, como Sylvio Romero, Nina Rodrigues, Euclydes da Cunha e Oliveira Lima.
Sylvio Romero escreveu 25 artigos na Revista Os Anais, em 1905, os quais viraram o
livro A América Latina (Analyse do livro de igual titulo do Dr. M. Bomfim) [1906],
atacando Manoel Bomfim e refutando todas as teses do seu livro inaugural. Bomfim focou
em Romero e suas teses racialistas e nos defensores da teoria da inferioridade das raças
no Brasil ao publicar A América Latina: males de origem.
O racialismo europeu chegou ao Brasil por volta de 1870 com muita força, logo
despertando a atenção de muitos intelectuais que estavam nas faculdades de medicina e
de direito, nos institutos históricos e nos museus etnográficos. Lilia Moritz Schwarcz
afirma que alguns lentes que atuaram nas faculdades brasileiras nos séculos XIX e no
alvorecer do século XX apropriaram-se e ressignificaram as teorias racialistas europeias,
analisando, assim, em estudos rudimentares a gênese e o desenvolvimento do povo
brasileiro. Muitos “homens de ciência” brasileiros, do final do Oitocentos e das primeiras
décadas do século XX, fizeram-se publicistas das teorias racialistas europeias que foram
justificadoras dos imperialismos europeus e norte-americano e ajudaram a difundir uma
visão pessimista sobre o presente e o porvir do Brasil e dos demais países latino-
americanos caracterizados pela larga mestiçagem de sua gente (SCHWARCZ, 2014). O
fato é que os “homens de ciência” do Brasil daquela época viram nas teorias racialistas
uma forma de justificarem pela raça e, por conseguinte, na mestiçagem, as hierarquias
sociais existentes em nosso país (BOTELHO, 2014).
Os teóricos do racialismo defendiam a existência de povos superiores e
inferiores, cujos primeiros podiam dominar/explorar o nosso planeta, porquanto a sua
ação transformadora do mundo acabava propagando os valores da civilização (COMAS,
1964; LEVI-STRAUSS, 1952). Na época acreditava-se que os outros povos que não
estavam no estágio evolutivo dos europeus tinham alguma inaptidão inata e que por mais
progresso que fizessem, jamais chegariam à superioridade dos povos europeus mais
evoluídos, os germânicos – esta era a leitura de muitos teóricos do racialismo europeu
(BOMFIM, 1998; BOTELHO, 2014; SCHWARCZ, 2014; PEREIRA, 2013;
HOFBAUER, 2006).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1613
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O racialismo europeu não só condenava a priori os povos africanos, asiáticos e


os ameríndios, como indicava um final trágico para os povos miscigenados. E o Brasil,
segundo o naturalista suíço Louis Agassiz, era um laboratório racial “que qualquer um
que duvide dos males da mistura das raças, e inclua por mal-entendida filantropia, a botar
abaixo todas as barreiras que a separam, venha ao Brasil” (AGASSIZ apud SCHWARCZ,
1996:84).
Tzvetan Todorov definiu racismo e racialismo. Para o autor, “O racismo é um
comportamento antigo e de extensão provavelmente universal [...]” (TODOROV,
1993:107-108). Já o racialismo é “um conjunto coerente de proposições, que se
encontram no tipo ideal ou versão clássica da doutrina, podendo algumas estar ausentes
em certas versões marginais ou revisionistas” (TODOROV, 1993:107-108).
André Botelho analisou o papel ideológico desempenhado pelas teorias
racialistas e a forma como elas preconizaram as relações entre os europeus e os povos dos
outros continentes. Ele mostrou a função ideológica do racialismo europeu e seu impacto
sobre os intelectuais brasileiros e latino-americanos que ressignificaram a ciência
raciológica de acordo com as suas conveniências. Segundo Botelho,

Sob o influxo do determinismo e do darwinismo social, em particular,


o biológico foi adotado no período como modelo epistemológico
cientificamente legítimo de explicação da realidade social,
configurando, assim, ideias como a de uma luta universal dos
organismos pela sobrevivência e, derivação necessária, de uma
hierarquia natural que dividiria a humanidade em raças superiores e
inferiores. [...] Tomando esses dogmas como leis científicas, não
apenas a intelectualidade brasileira, mas a latino-americana em geral,
formulou uma série de diagnósticos sobre o trágico destino reservado
às nações egressas do sistema colonial em função das suas constituições
étnicas – teses aprendidas no Ensaio sobre a desigualdade das raças
(1853) do publicista do colonialismo europeu Arthur de Gobineau
[1816-82] (BOTELHO, 2013:2).

Para Bomfim, “A noção de raça, todos o sabem, baseia-se não só nos traços
anatomicos como nos caracteres psychologicos. Entre os animaes, nós vemos que a
hereditariedade transmite os caracteres morphologicos como as qualidades intellectuaes
e Moraes” (BOMFIM, 1905:163).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1614
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Bomfim fez uma análise generalista dos teóricos dos racialismos europeu e
norte-americano. O autor, em seus livros histórico-sociológicos, escolheu aleatoriamente
intelectuais racialistas para a efetivação de suas críticas antirracistas. Contudo, alguns
teóricos do racialismo aparecem com mais frequência em suas obras histórico-
sociológicas – Gobineau, Agassiz , Lapouge, Le Bon e Oliveira Martins. Para Bomfim,

Os conceitos desse valor podem multiplicar-se em nome, mas vêm


todos das mesmas origens, no mesmo critério – Agassiz, Pearson,
Lapouge... Não há razão para resenhar outros, que são, todos, mais para
lastimar do que para corrigir. Lastimemos, sobretudo, que o talento dos
bem-intencionados se perca nesses desvios, donde saíram os negreiros
e as suas misérias, e se gastem em procurar o remédio para os povos
cruzados, fora do próprio caso: pretendem que das nossas origens possa
sair outra coisa que não uma população de mestiços (BOMFIM,
1997:194).

O autor refutou os teóricos do darwinismo social, “os lebons”, “os lapouges”


(BOMFIM, 1905) e Oliveira Martins. Todavia, Bomfim não superou o paradigma racial.
O que o colocou na vanguarda da ciência racialista da época foi o fato de não concordar
com a hierarquização das raças no sentido de justificar a dominação dos europeus e norte-
americanos brancos sobre os povos negros e mongólicos e seus descendentes
miscigenados (SKIDMORE, 1976).
Bomfim fez crítica cáustica aos intelectuais racialistas brasileiros. Ele
apresentou muitas objeções aos ressignificadores da ciência raciológica europeia em
nosso país. Para o autor, “A resposta leva-nos diretamente à questão de raça – para reduzir
à inanidade do próprio merecimento, as baboseiras, pretensiosas e erradas, dos que,
brasileiros, e das classes dirigentes, têm feito para esta pátria um estigma de irremissível
inferioridade [...]” (BOMFIM, 1998:570).
Bomfim não hesitou, desde A América Latina, de 1905, até O Brasil Nação, de
1931, em ensejar um embate duro contra os defensores brasileiros de Le Bon e de
Lapouge que estavam nos centros produtores de ciência – faculdades, museus e entidades
científico-culturais oficiais. Para o autor,

Aliás, tudo se explica, porque o Sr. Oliveira Viana se enfarta na


antropologia dos Lapouge e Le Bon, e essa Lapouge é o que,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1615
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

reproduzindo Pearson, garante que, sem dúvida, dentro de um século o


Brasil constituirá um imenso estado negro; a menos que não volte a
barbaria. Le Bon, com o reforçar Lapouge, é o que todas aquelas
injúrias para as nações latino-americanas. Pearson, ao menos, previa
somente o domínio dos negros, e, não a negralização completa. Foi,
sem dúvida, essa erudição que levou o etnólogo oficial a desbancar
índios e negros. Ele está na fase de crença em dolicofabancar índios e
negros (BOMFIM, 1997:193-194).

Ficou evidente, aqui, o teor provocativo da crítica que Bomfim fez aos ilustres
racialistas europeus e ao prestigiado defensor do racialismo no Brasil, Oliveira Vianna.

Manoel Bomfim: a mestiçagem e o protagonismo indígena na formação da


nacionalidade brasileira

Segundo alguns historiadores e antropólogos que analisaram o surgimento, o


desenvolvimento e o declínio das teorias racialistas, a mestiçagem é um fenômeno social
muito antigo na história da humanidade. Destarte, Todorov referindo-se a Joseph Ernest
Renan (1823-1892) afirmou que “[...] Renan se coloca em novo caminho. Parte da
observação de que não existem mais raças puras, após inumeráveis misturas que
marcaram sua existência passada” (TODOROV, 1993:153). Da assertiva de Todorov
sobre a visão de mistura racial na obra de Renan, conclui-se que a mestiçagem entre os
povos europeus é bastante remota. Juan Comas também afirmou algo parecido – “A
migração é tão antiga como a raça humana e implica necessariamente o cruzamento de
grupos, a mestiçagem. É bem possível que o tipo “Cro-Magnon” do Paleolítico Superior
se tenha cruzado com o homem de Neanderthal [...]” (COMAS, 1960:19). Ainda se
referindo a mestiçagem, Juan Comas ressaltou:

A miscigenação humana tem sido assunto de intermináveis debates. As


opiniões sobre o assunto variam em função das ideias dos disputantes
quanto à noção de raça e diferenças raciais. Os adversários da
miscigenação partem do princípio da desigualdade das raças, enquanto
que os seus defensores adotam o ponto de vista de que as diferenças
entre grupos humanos não são tais que possam constituir um obstáculo
à sua união (COMAS, 1960:18).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1616
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ao apropriarem-se das teorias racialistas vindas da Europa, Sylvio Romero e João


Baptista de Lacerda se colocaram contra uma das premissas de grande parte dos teóricos
do racialismo – a condenação da miscigenação, por supostamente causar a
degenerescência racial. Destarte, Lacerda se notabilizou por lançar uma tese eufemística
sobre a mestiçagem do povo brasileiro. Ele propôs a tese do branqueamento do povo
brasileiro, algo semelhante já pensado por Sylvio Romero em seus estudos sobre a gênese
e o desenvolvimento da literatura brasileira (SKIDMORE, 1976).
Para o antropólogo Luiz de Castro Faria, o centro de excelência dos estudos
sobre a mestiçagem foi o Museu Nacional, que desde as últimas décadas do século XIX
desenvolveu estudos sobre essa questão, destacando-se lá – João Baptista de Lacerda e
Edgard Roquette-Pinto. Para Faria, “Já, em termos de mestiçagem, temos o período do
homem brasileiro que se colocará com Roquette-Pinto e outros autores que se filiam a
ele, em termos de sugestões para pesquisa e de temas relevantes” (FARIA, 2006:18).
Segundo este autor,

Depois, teríamos a mestiçagem, que é um problema que ocupa todos os


autores brasileiros durante um largo período, porque também na Europa
se discutia muito o problema da superioridade ou inferioridade do
mestiço. Nessa época, o problema da mestiçagem era um problema
colocado pela biologia. [...] O Museu Nacional foi a instituição mais
destacada em termos de todo esse trabalho sobre mestiçagem e
populações indígenas (FARIA, 2006:18).

Bomfim assegurou que todas as vicissitudes das nações americanas eram de


ordem política e deveriam ser compreendidas a partir do processo de colonização que
esses países foram submetidos. Destarte, não tendo conexão alguma com a larga
mestiçagem ocorrida nos países latino-americanos. Bomfim contrariou o diagnóstico de
muitos racialistas europeus sobre a instabilidade política e social da América Latina,808

808
Bomfim fez referência às leituras dos teóricos do racialismo europeus sobre a situação social e política
dos países latino-americanos e da impossibilidade destes progredirem. Segundo ele, “Os Le Bom sorriem
destes sentimentalistas e latinos incorrigíveis; e, agora é, é que proclamam alto o seu ideal: a fortuna, os
cabedaes accumulados, muito commercio, filas de cifras... Riquezas! Riquezas! Ainda que sejam o fructo
das peiores violencias e injustiças. Veja-se, por exemplo, o tom com que, lá do alto de sua philosophua, ele
menospreza todos esses ‘dithyrambos sobre o direito e a justiça’, que no seu entender, têm tanta influencia
sobre o progresso como os açoites de Xerxes sobre o mar. Em compensação, pobre philosopho! Para basear
uma sociologia sobre essas doutrinas immoraes, elle cae em taes contradicções, que faz pena, até, accentual-
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1617
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pois ele não atribuiu jamais o atraso e a pobreza de nosso povo à “teoria da inferioridade
das raças”, e, muito menos a mestiçagem recente do povo brasileiro (BOMFIM,
1905:310).
Giralda Seyferth chama atenção para o fato de que Manoel Bomfim em sua
apaixonada defesa dos benefícios da mestiçagem do povo brasileiro jamais descambou
para a apologia da teoria do branqueamento (SEYFERTH, 2015:139).
Manoel Bomfim não deixou de criticar em sua última obra histórico-sociológica
aquele a quem chamou de sociólogo oficial, Oliveira Vianna. Alheio ao prestígio que
Vianna granjeava nos meios acadêmicos e nas esferas governamentais, defendendo as
teses racialistas que as elites brancas do país tinham apreço; Bomfim elegeu o combate
teórico contra este, como uma de suas derradeiras lutas na refutação dos preconceitos
contra a mestiçagem. Para o autor, “Todos esses preconceitos de inferioridades raciais se
encontram no sr. Oliveira Viana, sob a responsabilidade do governo do Brasil. É um
julgamento oficial, sobre a Evolução das raças, através de muita etnologia, eugenia e
antropologia...” (BOMFIM, 1997:193).
Manoel Bomfim também objetou os arrazoados dos racialistas acerca da
capacidade cognitiva dos mestiços se comparados aos indivíduos brancos puros. O autor
fundamentou-se no que havia de mais atual na antropologia europeia: Ribot, Zabrowski
e Topinard. Além desses antropólogos, Bomfim “Citava também outros cientistas (Waitz,
Martin de Moussy e Quatrefages) em defesa de sua tese de que os mestiços não são menos
inteligentes que os membros das raças individuais que os produziram” (SKIDMORE,
1976:133).
A abordagem da história indígena por Manoel Bomfim, da época colonial até o
início do século XX, diferiu de outros estudos historiográficos realizados por alguns
autores conservadores e até intelectuais progressistas do século XIX e do início do século
XX, porquanto este autor acabou “transformando o índio no ator principal, junto com o
português, o português e o índio nesse sentido” (SEYFERTH, 2015:139).

las; dão a impressão de uma inconsciência sem remissões, e levam-no a fazer prognosticos capazes de o
cobrir de ridículo, ainda que as sua theorias tivessem a originalidade de um Nietzsche, ou a belleza moral
de um Tolstoi.” - BOMFIM, Manoel. A America Latina- males de origem. Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier,
Livreiro-Editor, 1905, p. 384-385.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1618
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Manoel Bomfim colocou o índio brasileiro como um dos protagonistas do


processo de formação da nossa sociedade. Ele, inicialmente, lançou mão de cronistas e
historiadores do período colonial, como, Jean de Léry e Frei Vicente do Salvador.
Bomfim dedicou ao Frei Salvador o livro O Brasil na América, escrito em 1926 e
publicado em 1929. O autor acentuou o índio na obra do frade-historiador: “Nessa mesma
história do Frei Vicente, o índio é citado no mesmo tom que o branco e, por ela,
verificamos que a sua influência foi decisiva” (BOMFIM, 1997:137). Aqui sua
historiografia baseada em Frei Salvador reiterou o papel do indígena:

De tudo isto, resultou que o índio é, para a nação brasileira, um fator


essencialmente importante, de certo modo decisivo, sem
correspondência na formação dos outros povos americanos. [...] só o
Brasil se tornou um povo, com capacidade de nação, é que houve, aqui,
[...] esse gentio, que fornecendo o trabalho, dando a experiência da
terra, nem por isso se desobrigava de ser autônomo e forte (BOMFIM,
1997:198).

Manoel Bomfim debruçou-se sobre a história dos nossos índios e das suas
culturas, reiterando a importância deles na constituição da sociedade brasileira. Bomfim
apontou a influência indígena em vários setores da sociedade colonial, desde o seu papel
fundamental na formação do povo brasileiro, que pelo número ínfimo de reinóis nos
tempos iniciais da colonização, não pôde a coroa portuguesa prescindir dos laços de
sangue entre os seus e as mulheres indígenas (BOMFIM, 1997).
Manoel Bomfim ao historiar o indígena na formação de nossa nacionalidade
indicou a influência deste no surgimento de um léxico característico do Brasil. A herança
linguística é indicada por ele como uma das principais influências indígenas em nossa
formação nacional. A respeito da importância e da riqueza da língua tupi, vários cronistas
e historiadores se pronunciaram desde a época colonial. Gonçalves Dias referiu-se ao
valor da língua tupi, comparando-a com as línguas dos antigos gregos e dos romanos.
Para esse estudioso das línguas indígenas, “A língua tupi, chamada vulgarmente língua
geral, tinha uma gramática que pelo bem ordenado de cada uma de suas partes mereceu
de ser comparada à grega e à latina: demonstra mais hábito de reflexão do que o
encontramos no povo que a falava [...]” (DIAS, 2013:194).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1619
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

E ainda sobre o valor da língua tupi-guarani uso outra fonte de Manoel Bomfim,
o general Couto de Magalhães. Este pesquisador da história e das culturas indígenas do
Brasil exaltou as qualidades da língua geral dizendo que “Pelo lado da perfeição, ela é
admirável; suas formas gramaticais, embora em mais de um ponto embrionárias, são
contudo tão engenhosas que, na opinião de quantos a estudaram, pode ser comparada às
mais célebres” (MAGALHÃES, 1975:28).
Manoel Bomfim apontou a incorporação de milhares de vocábulos do tupi-
guarani ao português falado no Brasil. Segundo o autor, no primeiro século da
colonização do Brasil, a língua falada por grande parte da população era a indígena.
Destarte, Bomfim afirmou que “Durante o primeiro século da vida colonial, a língua geral
do gentio, espalhada pela massa do povo, era mais usada por ele que o próprio português”
(BOMFIM, 1997:110).
Na visão deste autor, o falar do brasileiro é muito peculiar, guardando muitos
elementos do tupi-guarani. Ele distingue-se bastante do vernáculo português por ter
incorporado milhares de palavras da língua indígena. Segundo Bomfim,

Não será exagero admitir que, tudo computado, o léxico brasileiro,


contém de três a quatro mil palavras filiadas ao tupi-guarani. Uma tal
injeção de termos diz muito bem o largo contato que tivemos com o
indígena, mesmo nessa época em que ele ainda estava preso ao seu falar
primitivo. A língua geral, meramente aglutinativa – polissintética,
caracterizando-se nas acumuladas composições, e a ausência de
flexões, não poderia ter influência na sintaxe do português. Apesar
disto, há facilidades de expressão no falar popular, tão patentes no
recurso à composição de palavras, que traem a influência das ingênuas
incorreções do caboclo habituado a justapor imediatamente os termos
na feição das idéias... (BOMFIM, 1997:112).

Bomfim ponderou sobre os modos como os índios produziam sua sobrevivência


que acabaram por condicionar o modus vivendi do colonizador português em terras
brasileiras. O autor, apoiado em Frei Vicente do Salvador e Robert Southey, indicou a
apropriação das técnicas agrícolas indígenas pelos portugueses nos primeiros tempos da
colonização do território brasileiro. Destarte, a agricultura tupi possibilitou ao
colonizador português às rações alimentares necessárias a sua sobrevivência orgânica.
Exemplo disso é a farinha de mandioca que se tornou um alimento indispensável à dieta

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1620
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

alimentar dos brasileiros e estrangeiros que viveram aqui desde os primórdios da


colonização – “é o fato de ter sido adaptada, para alimento nacional brasileiro, a farinha
de mandioca, a mesma farinha que o índio usava como base do seu sustento” (BOMFIM,
1997:115 – itálico do autor). Bomfim mostrou em O Brasil na América... a importância
da agricultura tupi para o êxito da empresa colonizadora lusa. Para Bomfim,

Dos tupis, aproveitaram os portugueses, não só os mantimentos


imediatos, como sementes e a mesma prática agrícola: a derruba,
queimada e coivara, ainda em uso na nossa lavoura arcaica, eram do
gentio selvagem, nas mesmas formas de agora. [...] Abundantemente
agrícolas, os tupis, tão sedentários já eram, que as suas edificações
nunca duravam menos de quatro anos. Junte-se, agora, à boa
experiência da terra, a excelência da escolha das povoações (BOMFIM,
1997:151-152).

Manoel Bomfim também não deixou de salientar em seus livros histórico-


sociológicos a influência indígena no modo de ser dos brasileiros, sobretudo ele indicou
a influência do gentio na formação da “alma brasileira”, um conjunto de características
socioculturais inerentes aos brasileiros, em especial aos nordestinos e nortistas – “E
encontramos ali, nas palavras nuas e sinceras dos jesuítas, o palpitar dos caracteres
simples e vivazes que, nos nossos dias, ainda formam a massa da população do Nordeste”
(BOMFIM, 1997:109).
Seyferth também analisou o conceito de alma brasileira de Bomfim, que,
segundo ela, tem grande peso da cultura indígena. Para a autora, quando Manoel Bomfim
fala em alma brasileira, “Ele está falando do espírito nacional, da ideia de espírito
nacional” (SEYFERTH, 2015:139).
Bomfim ao falar da influência indígena no desenvolvimento da alma brasileira,
estava, sim, esboçando tipificar o caráter nacional brasileiro a partir de uma herança não
só portuguesa e africana, mas, sobretudo, dos distintos povos nativos que foram
amalgamados no processo de instituição desta nação.

Conclusão

Bomfim abordou o racialismo europeu e seu influxo no Brasil com contundência


que seu livro A América Latina: males de origem, foi criticado com virulência por Sylvio
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1621
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Romero. O crítico de Lagarto tomou para si a tarefa de defender os racialistas europeus e


nacionais, bem como apoiou o paradigma excludente da teoria da inferioridade das raças
– negando a originalidade de Bomfim na refutação dessa ciência raciológica. O tempo
julgou os dois – As Américas Latinas desses autores tiveram destinos distintos, a de
Romero ficou no limbo da história, e a de Bomfim emerge em sucessivas edições.
Já a teoria da mestiçagem de Bomfim inspirou autores, como Roquette-Pinto,
Gilberto Freyre e Arthur Ramos, indo de encontro ao que Michel Foucault (2002) chamou
de fundador de discursividades – isto ocorre, quando uma obra intelectual dá origem a
outras produções bibliográficas na mesma vertente.
Por fim, sobre a tese indigenista de Bomfim que defende o protagonismo do
indígena na formação de nossa nacionalidade é possível afirmar que ela tem consistência
e vem suscitando acaloradas discussões entre seus analistas, desde Freyre com Casa-
Grande & Senzala a José Carlos Reis com As identidades do Brasil.

Fontes

BOMFIM, Manoel. A America Latina: males de origem. Paris/Rio: H.Garnier, Livreiro-


Editor, 1905.

_______________. A América Latina: males de origem. 3ed. Rio de Janeiro: Topbooks,


1993.

_______________. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira. 2ed. Rio


de Janeiro: Topbooks, 1997.

_______________. O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação política.


2ed. Rio de Janeiro: Topbooks; Belo Horizonte: Editora PUCMINAS, 2013.

_______________. O Brasil Nação. Rio de Janeiro: Record, 1998.

DENIS, Ferdinand. Brasil. Coleção Reconquista do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1980.

DIAS, Antônio Gonçalves. Brasil e Oceania. Coleção Nordestes. Fortaleza: Armazém da


Cultura, 2013.

MAGALHÃES, José Vieira de Couto. O selvagem. Edição comemorativa do centenário


da 1ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1975.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1622
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ROMERO, Sylvio. A America latina (Analyse do livro de igual titulo do Dr. M. Bomfim).
Porto: Livraria Chardron, 1906.

Referências bibliográficas

ABDALA JUNIOR, Benjamin. Sílvio Romero; História da Literatura Brasileira. In:


MOTA, Lourenço Dantas. Org. Introdução ao Brasil: um banquete no trópico 2. São
Paulo: Editora SENAC, 2001.

AGUIAR, Ronaldo Conde. O Rebelde Esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim.
Rio de Janeiro: Topbooks/ANPOCS, 2000.

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro:
FGV Editora, 2010.

ALVES FILHO, Aluízio. Manoel Bomfim: combate ao racismo, educação popular e


democracia radical. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

BAHIA, Joana; MENASCHE, Renata; ZANINI, Maria Catarina Chitolina. Orgs.


Pensamento social no Brasil por Giralda Seyferth: notas de aulas. Porto Alegre: Letra &
Vida, 2015.

BOTELHO, André. Cientificismo à brasileira. In: Achegas, Rio de Janeiro, 2013.

BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Orgs. Um enigma chamado Brasil: 29


intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

BOURDIEU, Pierre. Espaço social e gênese das classes. In: O poder simbólico. Lisboa:
Difel, 1989.

CANDIDO, Antônio. Recortes. 3. ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2004.

________________. Radicalismos. Estudos Avançados, São Paulo, 4(8), 1990, p. 5-18.

CARULA, Karoline. Dasrwinismo, raça e gênero: Projetos modernizadores da nação em


conferências e cursos públicos (Rio de Janeiro, 1870-1889). Campinas: Editora da
UNICAMP, 2016.

COMAS, Juan. Mitos raciais. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Educação, Ciências
e Cultura, 1964.

____________. Os mitos raciais. In: COMAS, Juan; LITTLE, Kenneth I. etal. Raça e
ciência I. São Paulo: Perspectiva, 1960.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1623
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

FALCON, Francisco José Calazans. Estudos de teoria da História e Historiografia. V.1.


São Paulo: Hucitec, 2011.

FARIA, Luiz de Castro. Antropologia: duas ciências: notas para uma história da
antropologia no Brasil. Rio de Janeiro: CNPQ/MAST, 2006.

_________________. Oliveira Vianna De Saquarema à Alameda São Boaventura, 41 –


Niterói: O autor, os livros, a obra. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Núcleo de
Antropologia da Política/UFRJ, 2002.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Apud: FARIA, Luiz de Castro. Oliveira


Vianna De Saquarema à Alameda São Boaventura, 41 – Niterói: o autor, os livros, a obra.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 21ed. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio Editora, 1984.

HOFBAUER, Andreas. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São


Paulo: Editora da UNESP, 2006.

________________. O conceito de “raça” e ideário do “branqueamento” no séculoXIX


– bases ideológicas do racismo brasileiro In Revista Teoria e Pesquisa 42 e 43 – São
Paulo, 2003., p.63-110.

LEVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. Lisboa-Portugal: Editorial Presença, 1952.

PEREIRA, Amílcar Araújo. O mundo negro: relações raciais e a constituição do


movimento negro contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas/FAPERJ, 2013.

POLIAKOV, Léon. O mito ariano. São Paulo: Perspectiva/Editora da Universidade de


São Paulo, 1974.

REIS, José Carlos. Identidades do Brasil 2 de Calmon a Bomfim: direita ou esquerda?


4reimpr. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015.

RIBEIRO, Berta. O índio na história do Brasil. 10ª ed. São Paulo: Global Editora, 2001.

ROQUETTE-PINTO, Edgar. Ensaios de antropologia brasiliana. 3ed. São Paulo:


Companhia Editora Nacional; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças cientistas, instituições e questão


racial no Brasil 1870-1930. 12ª reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

______________________. Usos e abusos da mestiçagem e da raça no Brasil: uma


história das teorias raciais em finais do século XIX In Afro-Ásia, 18, p.77-101, 1996.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1624
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento


brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana.


Vol. I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

VIANNA, Oliveira. Raça e assimilação. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1934.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1625
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A modernização econômico-industrial do Estado do Rio de Janeiro nas falas de


Amaral Peixoto: uma análise preliminar

JOSÉ LUÍS HONORATO LESSA


Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais/PPHPBC
Fundação Getúlio Vargas

Apresentação

Amaral Peixoto foi quem por mais tempo esteve à frente do executivo fluminense.
Foram praticamente doze anos de governo. No período compreendido entre novembro de
1937 a outubro de 1945, foi Interventor Federal no Estado; e entre 1951-1954, fora eleito
pelo voto popular809. Celso Peçanha810 o caracteriza como “um político tecnicista,
pragmático e realista” (PEÇANHA, 1997, pp. 63-64). No período posterior à sua
interventoria não se verifica o isolamento político do Comandante. Eleito deputado
federal, a influência de Amaral Peixoto no cenário político fluminense manteve-se
forte811. Evidência disso está no seu retorno ao governo do Estado do Rio de Janeiro812
nas eleições de 1950, com ampla margem de votos.
A obra Artes da política: diálogos com Amaral Peixoto organizada por Aspásia
Camargo, Lúcia Hippolito, Maria Celina Soares D’Araújo e Dora Rocha Flaksman reúne
a maioria das memórias do personagem em tela (veja referência completa na secção -
Documentação). O texto que sistematiza e sintetiza o depoimento do mesmo ao Programa
de História Oral do CPDOC percorre fatos de sua vida pessoal, familiar e do homem
público. Na perspectiva das autoras, a obra trata do Amaral Peixoto expectador e agente
de uma época, delimitada entre as décadas de 1930 e 1980 e expõe as principais tensões
fluminense, nacional e internacional vivenciadas pelo líder. Sua forte influência regional

809
Quando nos referirmos ao período de governo entre 1937 a 1945, usaremos como expressão - interventor
ou interventor federal. Para o quadriênio de governo entre 1951 a 1955, usaremos - governador ou
governador eleito.
810
Celso Peçanha é originário de uma influente família do interior fluminense (cidade de Campos dos
Goytacazes). Seu irmão, Nilo Peçanha, foi governador do Estado por dois mandatos (1903/1906;
1914/1917) e presidente da República no período 1909/1910. Celso Peçanha governou o Estado do Rio de
Janeiro entre 1961 e 1962, antes, havia ainda ocupado o cargo de prefeito em dois municípios fluminenses:
Silva Jardim e Rio Bonito. Passou também pela Câmara Federal.
811
É preciso verificar se esta característica foi comum a outros interventores.
812
A partir deste momento ERJ.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1626
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

espraiou-se para o cenário nacional, pois além de ajudante-de-ordens do presidente


Vargas e interventor no ERJ, Amaral também exerceu as seguintes funções: deputado
federal; governador eleito; presidente do Partido Social Democrata (PSD); articulador e
líder da campanha presidencial de Juscelino Kubitschek (JK); no governo JK assumira a
embaixada do Brasil em Washington e depois o ministério da Viação e Obras Públicas;
no governo João Goulart foi ministro do Tribunal de Contas da União em que deixou o
cargo para assumir a ministério Extraordinário para a Reforma Administrativa; senador
da República a partir de 1970 e presidente do Partido Democrático Social (PDS).
Ressaltamos que Amaral Peixoto assumiu a interventoria fluminense sem que
houvesse organizado previamente um programa de governo, conforme entrevista do
próprio comandante ao CPDOC. A partir de 1938, com o processo de organização
financeira do ERJ e tornados eficientes os mecanismos de arrecadação, – surgiram os
primeiros estímulos aos investimentos no campo do desenvolvimento econômico. A
administração do Interventor elegeu como principais metas: a concessão de isenções à
agricultura, ao comércio e à indústria e a captação de empréstimos para a consecução de
obras públicas fundamentais ao desenvolvimento e à chamada refundação do Estado.

Artes da política: diálogos com Amaral Peixoto

No campo da indústria, o governo fluminense se espelha na experiência nacional


para reequipar o parque fabril regional. Daí a importância de pensar o papel dirigente da
administração Amaral Peixoto para o desenvolvimento, modernização industrial e
refundação do ERJ em consonância com o projeto nacional. Dito de outra forma, o
reequipamento do setor produtivo fluminense foi galvanizado por meio de forte influência
do processo de modernização capitalista-industrial em curso no país desde a década de
1930.
Quanto a obra indicada no item – O homem e a política -, este documento traz em
seu conjunto um amplo depoimento do Comandante, principalmente sobre sua trajetória
pública. A ideia é identificar as articulações desfechadas por Amaral Peixoto
essencialmente voltadas para modernizar a matriz econômico-industrial fluminense.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1627
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Sob esse prisma, o próprio personagem nos oferece relevantes apontamentos aos
principais embates enfrentados pelo seu governo. Quando fora nomeado Interventor
Federal no ERJ, o Estado encontrava-se com dificuldades financeiras até mesmo para
pagar o funcionalismo: uma das primeiras medidas foi organizar a política tributária, o
que não existira nas administrações anteriores. Tributos que não eram efetiva e
eficazmente pagos, dentro da lógica da nova administração, passaram a ser cobrados
impostos sobre vendas e consignações além do imposto territorial, por exemplo.
O Conselho Econômico e Financeiro do Estado – órgão de cooperação econômica
e administrativa - organizou as Secretarias do Estado bem como estudou e viabilizou
alguns projetos. No campo econômico, surgiu o banco público estadual: a Caixa
Econômica do Estado do Rio de Janeiro e, ao que parece, o Conselho exerceu raio de
influência nas ações do governo federal ao recomendar a criação do Instituto Nacional do
Sal e da Companhia Nacional de Álcalis (CNA), sobre esta última, acompanhemos de
perto:

O Gileno foi meu auxiliar direto, não só no caso do açúcar, mas


sobretudo no da álcalis. Ele apresentou um projeto à Comissão de
Comércio Exterior, que foi aproveitado pelo governo federal para a
elaboração de Companhia Nacional de Álcalis, cuja constituição foi
feira na minha mesa no Ingá, pois era uma coisa vital para o Estado do
Rio. (CAMARGO et al, p. 174)

O auxiliar direto trata-se de Gileno de Carli. Membro da Confederação Nacional


da Indústria (CNI) redigiu o projeto que deu origem ao Instituto Nacional do Sal e foi
conselheiro técnico da CNA. Conforme Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós
1930, organizado pela Fundação Getúlio Vargas, entre as décadas de 1930 e 1970, Carli
ocupou cargos no campo da agricultura em diferentes governos e entidades de classe. Até
o presente turno não encontramos qualquer outra referência de sua participação no
Governo Amaral Peixoto. Quanto ao caso do açúcar o interventor federal enfrentou os
usineiros da cidade de Campos dos Goytacazes com legislação de amparo ao produtor e
depois com a lei federal que resultou no Estatuto da Lavoura Canavieira, entre outras
normas, os usineiros só podiam beneficiar 50% de sua plantação, os 50% restantes teriam
que ser comprados de produtores.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1628
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Vemos assim o nascedouro da CNA no Palácio do Ingá, sede do governo estadual.


Amaral Peixoto ainda afirma que foi ele quem fez o projeto, os estudos e as comparações
para o advento da Álcalis. Fala igualmente dos critérios técnicos para implantação da
Fábrica Nacional de Motores (FNM) e da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e das
acusações que recebera em função do favorecimento do ERJ pelo governo federal. A
fonte indica ainda que, para a construção da Usina Hidrelétrica de Macabu (UHM), o
governo recorreu ao Conselho Administrativo - criado em cada estado pelo governo
federal para controlar os interventores – e, a uma Comissão do Ministério da Justiça que
aprovava os empréstimos. Indagado sobre a política do ERJ para o setor industrial,
responde:

Havia a Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio, mas toda a


parte de indústria e comércio era eu que fazia diretamente. Meu assessor
nessa área era o Frânzio Sales. Chegava alguém interessado em montar
uma indústria, eu o colocava em contato com o Frânzio. Eles corriam o
estado, escolhiam o local e negociavam diretamente comigo através de
um corpo técnico do qual o Frânzio fazia parte. (CAMARGO et al, p.
251)

Até o momento não encontramos nenhuma outra referência que pudesse esclarecer
melhor a figura de Frânzio Sales. Em conversa realizada em 06 /07/17 com a pesquisadora
do CPDOC - Regina da Luz Moreira a mesma relatou que Sales era engenheiro e genro
de Vicente de Paulo Galliez. Galliez, industrial, atuou em vários órgãos empresariais,
como na Federação Industrial do Rio de Janeiro e na Confederação Nacional da Indústria.
Isso pode ser um demonstrativo de proximidade que Amaral Peixoto tentou estabelecer
com o empresariado fluminense e nacional. Ainda segundo Regina da Luz, Vicente
Galliez viria ser parente do General José Galliez: ajudante- de- ordens de Getúlio Vargas.
Já em seu segundo governo, Amaral Peixoto cria, em 1952, a Comissão de
Desenvolvimento Industrial. Embora afirme que a Comissão não desempenhou atuação
muito forte, pode revelar que, por outro lado, a questão industrial ganhou contornos
personalizados - “quem atuava mais era o Frânzio, diretamente comigo.” (CAMARGO,
et al. 1986, p. 251). Pela riqueza do relato, convém acompanhar com mais proximidade
a fala do governador:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1629
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para cada indústria que desejava se instalar no estado era feito um


decreto dando isenção do imposto de transmissão para a compra do
terreno. Era um imposto insignificante, mas a isenção sempre agrada à
empresa. Eu dava também isenção do imposto de indústria e profissão
pelo prazo de cinco anos, e as empresas eram obrigadas a pagar desde
o início apenas o Imposto sobre Vendas e Consignações, que é a base
da arrecadação estadual. Com isso atraí muitas indústrias. Se elas
precisavam de auxílio técnico para resolver problemas como energia
elétrica, o meu pessoal também tratava disso. A Antártica, por exemplo,
ia fazer uma grande fábrica em Nova Iguaçu, e eu fiz uma estrada até o
local. Acabaram não fazendo a fábrica, e quem se instalou lá foi a
Merck. Talvez esse auxílio técnico representasse até mais que as
isenções, que serviam apenas de estímulo. (CAMARGO et al, p. 251).

Queremos destacar com o trecho acima a preocupação em atender ao amplo setor


industrial, não necessariamente apenas àqueles de base, já elencados. Aliás, a CSN, FNM,
CNA e a UHM trouxeram em sua calda, variadas atividades industriais para a região em
que se situavam: um exemplo a ser dado e estudado está na região do Vale do Paraíba
cuja modernização esteve capitaneada pela CSN.
Insistindo e recuperando um pouco mais a fala de Amaral Peixoto:

Dei também muito auxílio à indústria. Dava isenção do imposto de


transmissão, do imposto de indústria e profissão. Ajudava a resolver
dificuldades de financiamento, dificuldades técnicas. Com isso umas
cem indústrias vieram para o estado, e eu aumentei a renda estadual.
(CAMARGO et al, p. 282).

No prosseguimento da pesquisa, é este movimento da fala a ser balizado e


entrecruzado com um conjunto de fonte que pretendemos analisar e, como decorrência,
identificar, a partir dos dados, como a administração Amaral Peixoto estava baseada em
uma confiança no futuro de progresso da terra fluminense no período analisado.

O conceito de progresso industrial no Brasil pós 1930 e suas articulações com o caso
fluminense: análise introdutória

É consenso na historiografia a guinada urbano-industrial que se verifica no Brasil


pós 1930 e o papel decisivo do Estado neste processo sob a fórmula do nacional
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1630
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

desenvolvimentismo. Em outros termos, o progresso da sociedade brasileira capitaneada


pelo Estado atendeu pela política desenvolvimentista através de várias agências criadas
para a modernização capitalista no Brasil. Este, por exemplo, é o cerne da análise de
Ricardo Bielschowsky (veja citação completa nas referências bibliográficas).
Vemos assim, em Bielschowsky, que o desenvolvimentismo brasileiro entre 1930
a 1964 consistiu na ação planejada do Estado brasileiro com vistas a promover a
industrialização via processo de cooptação de forças do setor produtivo. Considerando o
Estado como promotor de mudanças estruturais e contrapondo a tradicional vocação
agrária do país, ao menos em tese, argumenta-se que estava incutida na política
desenvolvimentista a expectativa de que a industrialização brasileira seria uma etapa de
superação da pobreza e de combate ao subdesenvolvimento, reduzindo as diferenças entre
países ricos e pobres.
Há de se destacar uma variação no conceito de desenvolvimentismo que assume
nuances interpretativas e na formulação de propostas para o problema do
desenvolvimento brasileiro. As diversas correntes desenvolvimentistas são assim
identificadas por Bielschowsky: a) desenvolvimentismo privado - com interferência
relevante da Confederação Nacional da Indústria e da Federação das Indústrias do Estado
de São Paulo; b) desenvolvimentismo público não nacionalista - com defesa de
participação do capital estrangeiro e interferência da Comissão Mista Brasil Estados
Unidos e o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e, c) desenvolvimentismo
público nacionalista - sob interferência também do Banco Nacional do Desenvolvimento
Econômico, somadas as interferências da Assessoria Econômica de Getúlio Vargas e do
Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Esta última corrente esteve mais próxima às
ideias cepalinas - Comissão Econômica para a América Latina.
A gestação da política desenvolvimentista se dá com a ascensão de Getúlio Vargas
ao governo federal, tal perspectiva de desenvolvimento alcançou maturidade na década
de 1950. Como já dissemos, o desenvolvimentismo resultou da ação incisiva do Estado
brasileiro com objetivos de promover a modernização capitalista de forma a cimentar, de
acordo com determinados contextos históricos, interesses públicos nacionais (sob a forma
de nacionalismo ou estatismo) e interesses privados ora nacional, ora estrangeiro: o
conceito de progresso passava por estes vieses.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1631
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Sobre as origens do desenvolvimentismo, acompanhemos Bielschowsky:

(...), a partir de 1930 e sobretudo durante o Estado Novo, foi criada uma
série de agências voltadas para a administração de problemas de alcance
nacional. Automaticamente seus técnicos civis e militares foram
levados a pensar questões do desenvolvimento econômico nacional de
uma forma integrada e abrangente, gerando a ideologia
desenvolvimentista. (BIELSCHOWSKY, 2004, p. 78)

Neste sentido, as principais agências nacionais criadas podem ser assim


sintetizadas: Departamento Administrativo do Serviço Público; Conselho Federal do
Comércio Exterior; Conselho Nacional do Petróleo, Conselho Nacional de Águas e
Energia; Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico; Conselho Técnico de
Economia e Finanças; Coordenação de Mobilização Econômica; Conselho Nacional de
Política Industrial e Comercial; Comissão do Planejamento Econômico; Carteira de
Crédito Agrícola e Industrial; Carteira de Importação e Exportação; Comissão Nacional
de Gasogênio; Conselho Nacional de Minas e Metalurgia; e a Comissão de Indústria e
Material Bélico.
Amaral Peixoto, como um dos agentes do desenvolvimento econômico fluminense
não pode ser tomado como mero caudatário das formulações federais, ainda que seu
governo tenha beneficiado de sua proximidade pessoal e familiar com Vargas. Por outro
lado, é inegável que sua administração tenha extraído benefícios deste contexto:

No Estado do Rio, Amaral Peixoto soube aproveitar-se com habilidade


da situação excepcional a seu favor. Levou a efeito uma política pessoal
que lhe assegurou prestígio popular, porque atendia tanto aos interesses
imediatos dos correligionários como as questões locais do agrado
destes. Realizou obras de vulto, contando com apoio do governo federal
que nada lhe negou. (PINHEIRO, 1955, p. 191).

Desse modo, podemos elencar as agências correlatas criadas pelo governo Amaral
Peixoto para conduzir o progresso fluminense: Departamento das Municipalidades;
Departamento Administrativo; reorganização da Secretaria de Finanças; Conselho
Econômico e Financeiro do Estado; Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio;
Comissão de Estradas e Rodagens; Caixa Econômica do Estado do Rio de Janeiro;

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1632
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Companhia de Expansão Econômica Fluminense S.A e a Comissão de Desenvolvimento


Industrial.
Uma das etapas da pesquisa consiste em estudar a homologia destas agências
nacionais e fluminenses. Entender a correspondência entre estes órgãos, em especial,
aqueles do ERJ, permitirá mapear o caminho seguido pelo Comandante para formular a
política de desenvolvimento fluminense. Informamos acima dois aspectos: a) o fato de
que Amaral Peixoto assumiu a administração fluminense sem que houvesse planejado um
programa de governo e - não obstante, do ponto de vista da administração e da
modernização capitalista - b) seu governo refundou o ERJ.
Nestes termos e, a título de conclusão, é importante indicar dois paralelos:
a) ao assumir a interventoria Amaral Peixoto se deparou com um quadro de precariedades
diante da crise do tesouro estadual: Estado deficitário; gastos internos excessivos;
dificuldades na obtenção de créditos; dívidas contraídas por governos anteriores;
dificuldades para pagar funcionários e credores; crise agrícola e industrial; sem uma rede
minimamente satisfatória de escolas e hospitais; falta de estradas e de energia elétrica e
sem redes de água e esgoto. Esta é a análise central da obra de Eurico Pinheiro – três anos
de realização do governo Amaral Peixoto (veja citação completa nas referências
bibliográficas).
b) se despediu do governo fluminense com o seguinte legado: organização administrativa
aliada à reconstrução econômica e financeira.
Em 1943 a arrecadação do Estado já era três vezes superior ao orçamento de 1937,
de modo que ao término do seu segundo mandato em 1955, o ERJ estava incluído “entre
os de maior progresso da Federação” (SOARES, 2005, p. 3). Ainda que a indústria do
ERJ tenha crescido abaixo da média nacional a partir de 1920, esta estagnação não pode
ser tomada como sinônimo de esvaziamento industrial. Leva-se em conta a comparação
com a industrialização paulista813 que desde o censo industrial de 1920 já superava a
indústria fluminense. Pós 1930 tem-se no ERJ “investimentos em indústrias de base e de
bens intermediários” (SILVA, 2012, p. 46).

813
O paradigma paulista para explicar a industrialização fluminense é criticado Maria Bárbara Levy. Veja
citação completa nas referências bibliográficas.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1633
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Pelo esboço apresentado, cabe concluir que as falas do Amaral Peixoto denotavam
um grau de otimismo. O ERJ marcharia ao encontro do futuro: sua recuperação e
modernização econômico-industrial. O entendimento e ampliação desta questão passam
pela análise de um conjunto variado de fontes que, pela natureza deste texto, não convém
aqui arrolar, inclusive àquelas de natureza censitária.
Amaral Peixoto marcou uma época de progresso fluminense. Ao organizar o ERJ
sob a forma administrativa, política e econômica, o Comandante reposicionou o Estado
no conjunto da federação e angariou dividendos políticos ao notabilizar-se como uma das
mais expoentes lideranças nacional e regional até década de 1980. Interpretar o passado
da administração Amaral Pexoto pode ser um importante guia para entender a situação
do ERJ na atualidade e, guardados os devidos anacronismos, quiçá contribuir para
algumas saídas da crise fluminense.

Documentação

CAMARGO, Aspásia; HIPPOLITO, Lúcia; D’ARAUJO, Maria Celina Soares;


FLAKSMAN, Dora Rocha. Artes da política: diálogo com Ernani do Amaral Peixoto.
2ªed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. (Coleção Brasil século 20).

Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC,


2001.

Bibliografia

BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do


desenvolvimentismo. 5.ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

LEVY, Maria Bárbara. A indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades


anônimas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura. 1995. (Coleção Biblioteca
Carioca).

PEÇANHA, Celso. A planície e o horizonte: memórias inacabadas. Niterói: Cromos,


1997.

PINHEIRO, Eurico. Três anos de realizações do governo Amaral Peixoto. Niterói:


Dias Vasconcellos, 1940.

PINHEIRO, Maria Esolina. O líder Soares Filho. Rio de Janeiro: Editado pelo Jornal do
Comércio por encomenda da Câmara dos Deputados, 1955.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1634
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SILVA, Robson Dias da. Indústria e desenvolvimento regional no Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2012.

SOARES, Emmanuel de Macedo. Cem anos do comandante Amaral Peixoto.


Suplemento especial do Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro. Niterói, Imprensa
Oficial do Estado do Rio de Janeiro, julho 2005.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1635
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Afirmação de uma identidade negra nas páginas do periódico Quilombo e a


influência dos “poetas da négritude”.

JOSÉ MANUEL FARIA


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História
Universidade Salgado de Oliveira – Universo

A primeira metade do século XX no Brasil passou por importantes elaborações


sobre a modernidade. Novas instituições políticas surgiram no rastro dos conflitos
políticos entre setores das elites ou ainda entre estas elites e as camadas populares. Busca-
se em diversos locais e momentos uma europeização dos espaços e costumes, ou ainda,
incentivando à imigração de rosto europeu, tendo em vista o “ideal de branqueamento”
das elites da época. Esta elite debatia as políticas de imigração tendo como pano de fundo
a suposição de que os brasileiros estavam ficando mais brancos e continuariam nesse
caminho, talvez acreditando na afirmação do importante antropólogo João Batista de
Lacerda que em 1911 teria profetizado que em cem anos não haveria mais negros no
Brasil. Vejamos, por exemplo, um dos mais destacados defensores deste “ideal de
branqueamento”, o sociólogo e jurista conservador Oliveira Vianna, na visão do
historiador americano Thomas Skidmore:

A posição de Oliveira Vianna como teórico do branqueamento – um dos


principais elementos da filosofia racial da elite – acabou sendo apagada das
interpretações históricas por culpa da ênfase exclusiva dada por ele a
expressões oriundas das teorias obsoletas do racismo cientifico – “ariano”,
“superior”, “inferior”, “raças primitivas” e as medidas cranianas
comparativas não eram mais expressões usadas pelos brasileiros
esclarecidos na década de 20. Ainda assim, Oliveira Vianna usou esse
léxico para chegar a uma conclusão incompatível com as premissas do
racismo científico: que o Brasil estava chegando à pureza étnica por meio
da miscigenação. O impacto público favorável das ideias de Oliveira
Vianna se deu principalmente entre os brasileiros que prestavam mais
atenção a terminologia arcaica, ou preferiram acreditar que ela não
prejudicava a validade da conclusão. Em certo sentido, a contradição entre
premissas e conclusões era extremamente tranquilizadora: se um
acadêmico erudito que conhecia e esposava as prestigiosas teorias do
racismo científico da Europa e da América do Norte concluía que o futuro

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1636
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

étnico do Brasil estava assegurado, os brasileiros podiam se sentir


realmente confiantes (SKIDMORE, 2012, p. 279-280).

Porém esta tentativa de modernização terá uma “área de sombra”: uma identidade
nacional ostensivamente polarizada, marcada pela enorme distância entre brancos e
negros. Podemos afirmar que, neste momento, o Brasil ganhou definitivamente um
“povo”, inventando para si uma tradição e uma origem. No entanto, uma pergunta deve
ser respondida: Quem é este povo?
Esta tensão fica evidente, por exemplo, analisando o pensamento de Nina
Rodrigues, nesta citação de seu livro Os africanos no Brasil, quando ele afirma:

Ao brasileiro mais descuidado e imprevidente não pode deixar de


impressionar a possibilidade da oposição futura, que já se deixa entrever,
entre um a nação branca, forte e poderosa, provavelmente de origem
teutônica, que está constituindo nos estados do Sul, donde o clima e a
civilização eliminarão a Raça negra, ou a submeterão, de um lado; e, de
outro lado, os estados do Norte, mestiços, vegetando na turbulência estéril
de uma inteligência viva e pronta, uma associada à mais decidida inércia e
indolência, ao desânimo e por vezes à subserviência, e assim ameaçados de
converterem-se em pasto submisso de todas as explorações de régulos e
pequenos ditadores. É esta, para um brasileiro patriota, a evocação
dolorosa, do contraste maravilhoso entre a exuberante civilização
canadense e norte-americana e o barbarismo guerrilheiro da América
Central (RODRIGUES, 2010, p. 15).

Uma das mais importantes interpretações deste “povo” será apresentada, por
exemplo, nas concepções de Gilberto Freyre. Nesta visão, não existem raças humanas,
com diferentes qualidades civilizatórias inatas, mas sim diferenças culturais, como
ensinava seu mestre, o antropólogo Franz Boas. O Brasil passa a se pensar como uma
civilização híbrida, miscigenada, não apenas européia, mas produto do cruzamento entre
brancos, negros e índios, no que ficou estabelecido como o “mito das três raças”, que já
vinha sendo construído desde o século XIX na tradição de pensadores como Silvio
Romero e Joaquim Nabuco. Esta miscigenação seria capaz de absorver e até criar algo
novo, abrasileirando as tradições e culturas dos outros povos por aqui chegados
(rejeitando obviamente apenas aquelas que fossem incompatíveis com a modernidade
desejada, por exemplo, africanos).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1637
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Assim, segundo esta interpretação, nós não teríamos uma “raça”, afinal não
somos mais brancos, índios e negros, mas uma nação e um povo mestiço. Entre os anos
de 1930 a 1950, a exaltação de uma identidade nacional, pautada na pluralidade cultural
e baseada no “mito das três raças”, escamoteou o preconceito e a condição de
subalternidade do negro na sociedade brasileira.
Seria importante assinalar que para a República, os negros e índios, neste projeto,
são apropriados como objetos culturais, símbolos e marcos fundadores de uma civilização
brasileira. Este mito fundacional é construído para dar um sentido, que localiza a origem
da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado distante, porém, não no seu
tempo “real”, mas de um tempo “mítico”. Para oferecer um sentido “real” a esta
mitologia, seria necessário “concessões simbólicas”, como se depreende do trecho
seguinte de Antonio Sergio Guimarães:

Tal constelação simbólica se manifesta, no campo político, por concessões


igualmente simbólicas. Lembre-se que a existência mesma do movimento
negro contradiz o ideal de mistura, reificando um dos elementos de
formação, que não deveria ter encarnação política, mas apenas cultural.
Pois bem, quando essas concessões são feitas, elas correm o risco de
permanecerem no papel. Isso é válido tanto para a absorção de símbolos da
identidade afro-brasileira à cultura nacional, como até para a incorporação
à ordem jurídico-normativa das reivindicações políticas do movimento
negro, tais como os princípios constitucionais da não-discriminação e da
integração socioeconômico dos negros (GUIMARÃES, 2002, p. 121-122).

Se for verdade que agora somos um “povo”, como dizia o mito, então teríamos
que ter uma incorporação pela nossa “identidade nacional”, dos símbolos, não de apenas
um dos segmentos, os brancos, mas também dos símbolos da população negra e indígena,
e isto não ocorre. Se é verdade que agora somos um “povo”, mestiço como diz o mito,
por que da ocorrência da segregação racial contra essas populações e a permanência da
discriminação racial? Isto é importante na medida em que a ‘identidade nacional’ é
forjada, em grande parte, por meio daquilo que Benedict Anderson denominou de
“comunidades imaginadas”. Já que não existe nenhuma “comunidade natural” em torno
da qual se possa reunir as pessoas que constituem um determinado agrupamento nacional,
ela precisa ser inventada, imaginada. É necessário criar laços imaginados que permitam
“ligar” pessoas que, sem eles, seriam simplesmente indivíduos isolados, sem nenhum
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1638
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“sentimento” de terem qualquer coisa em comum. (ANDERSON, 2008, p. 16) Como


fazer esta “liga” dentro do contexto da situação do negro no pós-guerra, quando eles se
percebem como cidadãos de segunda classe, como ter um sentimento de pertencimento a
esta comunidade imaginada se uma grande camada da população negra se vê excluída da
sociedade?
Estes questionamentos foram examinados pelos membros da segunda geração de
militantes negros que aqui estudamos e que observamos nas páginas do periódico
Quilombo. Estes questionamentos não ficaram sem respostas e, mesmo quando
encontramos diversas ambiguidades nos seus discursos, podemos afirmar que esta
geração iniciou uma nova jornada e um novo modo de se ver como negro.
Para isto, buscaram como solução virarem seus olhares para o Atlântico, e ir além,
e se conectar com a África. Nossa hipótese de trabalho aponta para que esta conexão tenha
sido produzida com o contato entre os militantes negros que fundaram o TEN e os
intelectuais do movimento que ficou conhecido como da Négritude.
O conceito da Negritude foi introduzido no Brasil por esta geração de militantes.
Durante o I Congresso do Negro Brasileiro, um dos mais importantes militantes do TEN,
Ironides Rodrigues apresentou sua tese denominada A estética da Negritude, o que causou
sérias divergências com Édson Carneiro e grandes contestações por parte de alguns
intelectuais como o sociólogo L. A. Costa Pinto, como podemos deduzir em seu livro O
negro no Rio de Janeiro. Relembrando destes debates, Abdias Nascimento em seu livro
O negro revoltado de 1968, assinala que:

Tanto Édson Carneiro como L. A. Costa Pinto se insurgiram, negaram a


Negritude e tentaram mesmo leva-la ao ridículo. Com a publicação do
volume em preparo, Negritude Polêmica, a sair brevemente, se constatará,
através das notas taquigrafadas, a consagração pelo Congresso em peso –
o povo negro, o povo-massa-de-cor – do conceito da Negritude, numa
lúcida antecipação do fenômeno histórico que conduziu as nações africanas
à afirmação de sua independência (NASCIMENTO, 2013, p. 99).

Neste mesmo livro, Abdias apresenta sua interpretação do que seria a Negritude.
Abaixo iremos realizar uma breve síntese historiográfica sobre este tema, porém, antes

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1639
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

transcreveremos a citação na qual Abdias concebe o que ele entende ser a Negritude já
em 1968, ou seja, a posteriori, do surgimento do conceito no Brasil:

A Negritude, em sua fase moderna mais conhecida, é liderada por Aimé


Cesaire e Leopoldo Sedar Senghor, mas tem seus antecedentes seculares,
como Chico-Rei, Toussaint Louverture, Luís Gama, José do Patrocínio,
Cruz e Souza, Lima Barreto, Yomo Keniata, Lumumba, Sekou Touré,
Nkrumah e muitos outros. Trata-se da assunção do negro ao seu
protagonismo histórico, uma ótica e uma sensibilidade conforme uma
situação existencial, e cujas raízes mergulham no chão histórico-cultural.
Raízes emergentes da própria condição de raça espoliada. Os valores da
Negritude serão assim eternos, perenes, ou permanentes, na medida em que
for eterna, perene ou permanente a raça humana e seus subprodutos
histórico-culturais (NASCIMENTO, 2017, p. 50-51)

Como já foi possível observar, uma das características mais importantes desta
geração da imprensa negra e de seus militantes foi a procura por estabelecer contatos e
diálogos com outras realidades internacionais, em temas e preocupações que seriam
comuns aos negros aqui no Brasil. Relatando esta experiência da imprensa negra no
Brasil, Elisa Larkin Nascimento escreve:

O que parece diferenciar as organizações e a imprensa dessa época é uma


consciência internacional mais evoluída. Um dos objetivos da Frente Negra
Trabalhista, por exemplo, era a “defesa da igualdade dos povos e das
relações internacionais, sem distinção de cor” (“Frente Negra Trabalhista”,
Quilombo I, dez., 1948, p.3). Todos os jornais negros referidos têm artigos
sobre acontecimentos em todo o mundo e nas Nações Unidas. O Novo
Horizonte,em outubro de 1947, publicou uma reportagem a respeito das
posições da ONU sobre o racismo em sua reunião de Luke Success. O
Mundo Novo estampou um artigo de fundo em seu primeiro número (26 de
agosto de 1950), intitulado “Em estudo a criação dos Estados Unidos da
África: difícil solução dos problemas africanos à base das fronteiras
atuais”. No Rio de Janeiro, o jornal Quilombo, órgão do Teatro
Experimental do Negro, mantinha constante correspondência com a
direção da revista Présence Africaine, em Paris e Dacar, porta-voz da
Négritude, bem como com figuras de renome internacional como Langston
Hughes, Alioune Diop, Katherine Dunham, George S. Schuyler e Ralph
Bunche. Frequentemente, esse periódico publicava artigos sobre eventos
em Uganda, Etiópia (Abissínia), Haiti e Cuba, como exemplificam as
reportagens sobre Antonio Maceo, o “Titã de Bronze” de Cuba, ou sobre a
Ku Klux Klan dos Estados Unidos. Assim, se evidencia que, na medida em
que lhes era possível, considerando as dificuldades de comunicação e de
acesso à informação, os movimentos e a imprensa negra tentavam de forma
consistente inserir-se no processo internacional do mundo africano,
naquele momento histórico de luta pela emancipação (LARKIN
NASCIMENTO, 2008, p. 118-119).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1640
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Este olhar mais distante terá um claro impacto para esta geração. O próprio jornal
Quilombo, em três das suas 10 edições publicou anúncios da revista francesa Présence
Africaine editada por Alioune Diop, publicação que era a grande porta-voz do movimento
e até hoje é editada na França. Esta constante correspondência com a direção da revista,
como afirma Elisa Larkin, também pode ser comprovada pelo próprio testemunho de
Abdias do Nascimento quando informa estes contatos para Cristine Douxami, em artigo
para a revista Afro-Ásia de 2001:

Abdias estava em contato, pelo correio, com um negro militante da


negritude, que morava em Paris. Alioune Diop. Abdias do Nascimento
explicou-me esse fato na entrevista de 31.07.98.”Nossas correspondência
com Alioune Diop, desde os anos 30, ele que criou também um teatro negro
em Paris e fundou a revista Présence Africaine, eram, antes de tudo,
informativas. A influência dele não vinha transformar o que eu estivesse
fazendo. Mas ele me considerava como um dos diretores importantes do
teatro e estimava importante o nosso contato, e eu também, porque
achávamos que era uma maneira de divulgar o fato de que o negro, apesar
das diferenças de línguas, e das dificuldades que isso criava, sabia o que se
passava no mundo”. Ele conhecia quase desde o seu início, nos anos 30, a
literatura dos poetas da negritude de língua francesa (Aimée Cesaire,
Senghor) e estava ligado ao crescente movimento norte-americano
(DOUXAMI, 2001, p. 322).

Neste ponto, seria interessante expor nossa interpretação sobre o conceito de


negritude. Para isto, utilizaremos como linha argumentativa, o texto do professor
Kabengele Munanga, Negritude, usos e sentidos, no qual Munanga traça um histórico do
conceito e seus principais debates e questionamentos. O autor parte do princípio de que o
negro em certo momento busca uma ruptura e recusa o que ele vai denominar da
“assimilação branca” sofrida durante os anos de colonização. Munanga nos indica que
os primeiros intelectuais negros que utilizaram o conceito de Negritude foram os
americanos W. E. B. Du Bois e Langston Hughes.
Influenciando diversas gerações de intelectuais negros e líderes dos movimentos
de independência africanos, Du Bois, segundo Munanga, vai reagir contra os estereótipos
e preconceitos sobre o negro, determinando o passado e a cultura negra como ferramentas
na luta pela emancipação do negro: “Tratava-se de ter a liberdade de expressar-se como
se é, e sempre se foi; de defender o direito ao emprego, ao amor, à igualdade, ao respeito;

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1641
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de assumir a cultura, o passado de sofrimento, a origem africana”, diz Munanga a


respeito do pensamento de Du Bois.
A confluência de jovens africanos e caribenhos nas universidades europeias
mudou as condições em que estes jovens se viam e suas visões das potências europeias
colonizadoras de seus próprios povos. Particularmente nas universidades de Paris, estes
jovens iniciam um questionamento sobre o modelo civilizatório europeu, tendo observado
as duas grandes guerras mundiais, proporcionando a ocorrência de uma verdadeira
desmistificação e produzindo uma nova consciência racial. Esta geração de intelectuais
negros nas colônias, principalmente os de origem francófona, propunham um retorno às
suas tradições e denunciam a produção cultural de seus lugares de origem, baseados na
imitação da cultura colonizadora. Neste campo, encontraremos autores como, o haitiano
Price Mars e caribenho René Maran.
Na década de trinta, uma nova geração de estudantes e intelectuais, como o
martiniquense Aimé Césaire, o guianense Léon Damas e o senegalês Léopold Sédar
Senghor, entre outros, iniciam a publicação de revistas, como Légitime Défense e
L`edudiant Noir, os quais terão como objetivos, divulgar suas ideias a respeito do que
eles entendiam sobre o termo Negritude.
Mas o que será, afinal, a Negritude? A dificuldade de defini-la persiste ainda que
já se tenha passado muitos anos desde seu surgimento. Senghor, por exemplo, tentou dar-
lhe um conteúdo que lhe propiciasse um sentido universal e mítico: “... uma maneira de
ver e entender o mundo, um certo tipo de “existencialismo”, uma filosofia “enraizada na
Terra-mãe, que desabrocha ao sol da Fé e pressupõe presenças na vida ... no mundo
...comunhão do homem com as forças cósmicas, do homem com os outros homens ...e,
além disso, com tudo o que existe, do seixo à Deus”. Negritude esta, que surgiria por
necessidade vital, de dentro de cada negro que se dispõe a contrapor, aos valores brancos
que lhes foram impostos por uma educação que sempre visou sua assimilação cultural,
em contraposição aos seus próprios valores, entre eles uma maneira própria de ver e sentir
o mundo.
Segundo Munanga, quando ele analisa as diferentes acepções da Negritude, este
conceito abarca duas grandes linhas de interpretação: a mítica e a ideológica:

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1642
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Percorrendo a história do conceito, poder-se-ia descobri-las. Segundo Bernard


Lecherbonnier, as diversas definições da negritude giram entre duas
interpretações antinômicas: a mítica e a ideológica. A primeira chama a si, em
função da descoberta do passado africano anterior à colonização, a perenidade
de estruturas de pensamento e uma explicação do mundo, almejando um
retorno às origens para revitalizar a realidade africana, perturbada pela
intervenção ocidental. A segunda propõe esquemas de ação, um modo de ser
negro, impondo uma negritude agressiva ao branco, resposta a situações
históricas, psicológicas e outras, comuns a todos os negros colonizados
(MUNANGA, 1986, p. 50-51)

Examinando o periódico Quilombo, podemos considerar que em diversas


passagens, e desde seu início, iremos encontrar este víeis mítico de que nos fala Munanga
e representado também acima no discurso de Senghor. Na nossa visão, este periódico
expressou de uma forma contundente, e como já identificamos, mesmo com suas
ambiguidades, um discurso que auxiliou na afirmação do protagonismo negro no Brasil,
na afirmação da identidade de homens e mulheres negros, por intermédio do
autorreconhecimento e, consequentemente, da valorização da ancestralidade, memória e
identidade afrodescendente, o que é a essência da Negritude.
Mesmo que o termo Negritude só tenha aparecido na última edição do Quilombo,
já vimos anteriormente esta utilização em outros momentos por parte destes militantes.
Deste grupo, quem tratou de categorizar, de uma forma mais consistente e bem próxima
do que afirmavam os negros em Paris, foi Guerreiro Ramos, no artigo Apresentação da
Negritude, no próprio Quilombo:

Esta é a nossa profunda convicção. No momento em que lançamos na vida


nacional o mito da negritude, fazemos questão de proclamá-la com toda
clareza. [...]
A negritude, com seu sortilégio, sempre esteve presente nesta cultura,
exuberante de entusiasmo, ingenuidade, paixão, sensualidade, mistério,
embora só hoje por efeito de uma pressão universal esteja emergindo para a
lúcida consciência de sua fisionomia. É uma atitude de glória e de orgulho
para o Brasil o de ter-se constituído no berço da negritude a doce e estranha
noiva de todos nós brancos e trigueiros (NASCIMENTO, 2011, p. 117)

Mesmo com todo o sentido nacionalista que é expresso a todo o momento no


jornal, encontramos uma urgente e necessária defesa do perfil da cultura negra, assim
como um conjunto de valores do mundo negro em diáspora que devem ser reelaborados

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1643
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

na conjuntura da sua época, mas sempre partindo da Negritude. Por fim, concordamos
com a opinião de Antonio Sérgio Guimarães que, analisando o Quilombo nos diz: “Neste
sentido, o jornal exalava negritude, tendo sido, na verdade, responsável pela formação de
uma negritude brasileira e nacionalista, como muito bem salientou Bastide. Mas, trata-se
de compromisso, de negociação de uma identidade racial e cultural, que precisava ser
brasileira para aspirar à singularidade”.

BIBLIOGRAFIA
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a
difusão do nacionalismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.

DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos


históricos. Revista Tempo/UFF, Departamento de História, Vol. 12, Nº 23, Jul.-Dez., Rio
de Janeiro, Departamento de História da UFF, 2007.

____________________. A Nova Abolição. São Paulo: Selo Negro, 2008.

DOUXAMI, Cristine. Teatro Negro: A realidade de um sonho sem sono. Revista Afro-
Ásia. Nº 25-26, 2001.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo:


Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 2002.

LARKIN NASCIMENTO, Elisa. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no


Brasil. São Paulo: Summus, 2003.

____________________. (Org.). Cultura em movimento: matrizes africanas e


ativismo negro no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2008.

MUNANGA, Kabengele. Negritude, usos e sentidos. São Paulo: Editora Ática, 1986.

NASCIMENTO, Abdias do, e SEMOG Éle. Abdias do Nascimento: o griot e as


muralhas. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.

NASCIMENTO, Abdias do. Quilombo: vida, problemas, e aspirações do


negro/Edição fac-similar do jornal dirigido por Abdias do Nascimento. São Paulo,
Editora 34, 2011.

_____________________. O negro Revoltado. Biblioteca Digital da USP, 2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1644
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. Biblioteca Virtual de Ciências


Humanas, Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, Rio de Janeiro, 2010.

SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento


brasileiro (1870-1930). São Paulo, Companhia das Letras, 2012.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1645
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Reconfigurando o ofício do ilustrador: automodelação em J. J. Grandville

JOSÉ ROBERTO SILVESTRE SAIOL


Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde
Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz/Capes

Introdução

Neste trabalho, procuramos discutir as estratégias de automodelação adotadas por


Grandville em seu esforço de reconfigurar sua identidade socioprofissional como
ilustrador. Forçado a abandonar a imprensa política depois da promulgação das leis da
censura em 1835, o artista encontrou no ofício de ilustrador de livros famosos como as
Fábulas de La Fontaine, uma alternativa de trabalho e também uma forma de aquisição
capital simbólico. Contudo, as limitações impostas à sua criatividade por um texto
preexistente a ser meramente ilustrado esbarravam nas aspirações criativas de Grandville
que, durante os anos seguintes de sua carreira, se envolveu em disputas por meio das quais
procurou garantir seu lugar como autor de histórias a serem descritas. Como explica
Philippe Kaenel, tais disputas eram decorrentes de uma configuração sócio-histórica
bastante específica:

Il n’en reste pas moins que les années 1830-35 virent pour la première
fois (abstraction faite du cadre spécifique de l'illustration scientifique)
la réunion et la concetration dans un même espace - le livre illustré -
des corps professionnels des éditeurs, des écrivains et de celui des
artistes, avec leurs traditions, leurs pratiques, leurs formations, leurs
préventions réciproques et leurs intérêts respectifs. (Kaenel, 1984: 48)

A consciência de uma individualidade passível de ser modelada não é uma


novidade do século XIX; nem sequer da modernidade. Mas é no século XVI que Stephen
Greenblatt localiza uma mudança significativa nas estruturas intelectuais, sociais,
estéticas e psicológicas que governavam a geração de identidades, através da qual a
modelação da identidade humana (de si e de outrem) passou a ser entendida, cada vez
mais, como um processo de astúcia e manipulável. Nesse sentido, a automodelação se
encontra inscrita no campo das representações, uma vez que seus sentidos estão
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1646
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

associados a práticas, comportamentos e à adesão a certos códigos culturais que


evidenciam o caráter fluido das fronteiras entre a vida social e a literatura. Para o autor,
“it invariably crosses the boundaries between the creation of literary characters, the
shaping of one's own identity, the experience of being molded by forces outside one's
control, the attempt to fashion other selves”. (Greenblatt, 1980: 03) Assim, Greenblatt se
apropria da noção de cultura proposta por Geertz, que a define como conjunto de
mecanismos de controle sobre o governo dos comportamentos, e caracteriza a
automodelação como a versão renascentista desses mecanismos de controle.
Nas páginas que se seguem, procuramos examinar quais as particularidades da
automodelação na era romântica, os limites e condicionantes desse processo. É verdade
que Grandville não teve que se confrontar com uma cultura cortesã que teve como um de
seus papeis a legitimação cognitiva de uma nova ciência – ou mesmo com o tribunal da
Santa Inquisição – como no caso de Galileu (Biagioli, 2003); é verdade também que ele
gozava de uma certa autonomia criativa que foi negada a Mozart, também no contexto da
sociedade de corte (Elias, 1995). No entanto, em sua trajetória, o artista francês teria que
se defrontar com o fenômeno da proletarização dos artistas, com o ritmo e as demandas
de uma sociedade cada vez mais industrializada e com a submissão da sua produção a um
mercado consumidor cada vez mais ampliado. O que todos esses casos têm em comum é
o fato de que, como demonstra Biagioli, a automodelação é um processo marcado por
tensões e descontinuidades por meio das quais os atores históricos assumem e renegociam
os papeis sociais e os códigos culturais existentes.

O ilustrador como inventor

L'illustrateur se considère lui-même comme un inventeur et non


comme un simple exécutant, car il a le sentiment d'investir dans son
travail beaucoup d'imagination et de talent. (Georgel, 1999: 119)

Na virada para a década de 1830, Grandville havia alcançado o reconhecimento


público e estabelecido uma rede de sociabilidades que reunia artistas, jornalistas e homens
de letras, através da qual pôde se inserir no circuito de editores e impressores parisienses
do período. Nessa época, passou a colaborar sistematicamente com Charles Philipon que,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1647
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

após o desfecho das jornadas de julho de 1830, fundou um hebdomadário de caráter


político e satírico – La Caricature (1830-35) – por meio do qual travou uma “luta sem
misericórdia contra a monarquia” (Renonciat, 2006: 07). Nery (2006: 145) recupera a
descrição do empreendimento feita por William Thackeray em seu The Paris Sketchbook:
“era uma luta entre meia dúzia de pobres artistas de um lado e Sua Majestade Luis Felipe,
sua augusta família, e um número incontável de partidários da monarquia do outro”.
A redação do periódico de Philipon, que em 1829 havia fundado também a Maison
Aubert, casa especializada na impressão de sátiras gráficas, reunia nomes como Honoré
Daumier, Paul Gavarni e Eugène Forest, entre outros. Com sua arte marcada pelo
simbólico e pela alusão, pelas metáforas e alegorias e mesmo por um lado assustador e
sangrento, sobre os quais insistem Champfleury (s/d: 289) e Baudelaire (apud Nery, 2006:
145), Grandville produziu registros de alta potência crítica.
Contudo, os julgamentos constantes, as pesadas multas impostas ao periódico e a
seu editor e, sobretudo, a publicação das leis da censura de setembro de 1835
inviabilizaram a continuidade da publicação, que foi interrompida no mesmo ano. (Nery,
2006: 146) É consenso na historiografia que a publicação das leis de censura, baixadas
após um atentado contra a vida de Luis Felipe, marcaram o ocaso da imprensa política
satírica, forçando tanto a imprensa de forma geral quanto os atores ligados a ela a uma
redefinição de suas agendas de trabalho e à tomada de novos rumos.
A situação de Grandville durante a segunda metade da década de 1830 era,
portanto, bastante ambígua. Por um lado, ele gozava de prestígio no meio artístico e frente
à opinião pública da época e possuía expressivo capital simbólico, o que garantia seu
lugar de destaque no circuito da editoração. Por outro, essa posição de prestígio pode
facilmente ser relativizada por dois motivos: em primeiro lugar, diferentemente de outros
caricaturistas de sua época ou um pouco posteriores como Honoré Daumier, Gustave
Doré e Paul Gavarni, Grandville não era, como remarca Kaenel (1984: 60), pintor de
formação, não tendo assim uma carreira paralela como os demais. Isso fez com que o
desmantelamento da imprensa militante tivesse sobre ele um efeito duplamente brutal.
Em segundo lugar, dado o estatuto inferior da caricatura na hierarquia das artes e,
portanto, do caricaturista na dos artistas, os melhores contratos de Grandville, apesar de
garantirem alguma segurança material ao artista, nem se comparam com os de Eugène
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1648
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Sue, por exemplo, embora ambos estivessem submetidos à mesma dinâmica da literatura
industrial. Embora uma parcela dessa disparidade se deva a fatores de ordem mais prática
como o público bem mais ampliado da literatura folhetinesca de Eugène Sue se
comparada à dos livros ilustrados de Grandville, e ainda ao custo elevadíssimo desse tipo
de produção, nada nos leva a crer que a outra parcela dessa disparidade não estaria ligada
à situação subalterna da caricatura.
A chance de Grandville de reverter essa situação de subalternidade teria vindo,
segundo Renonciat (2006: 08-09), com o novo fôlego adquirido pelo mercado editorial
com as possibilidades oferecidas pela utilização de uma nova modalidade de xilogravura
– a gravure sur bois de bout –, cuja técnica importada da Inglaterra facilitava a
conjugação, numa mesma página, de texto e imagem. Aos olhos dos editores, as imagens
associadas aos textos constituíam um dispositivo capaz de conquistar novos públicos.
Além disso, a prática de distribuição dos livros ilustrados em fascículos tornou-se
sistemática.
Em 1837, Grandville é convidado por Henri Fournier, editor com quem ele
continuaria colaborando até o fim de sua vida, para ilustrar as Fábulas de La Fontaine.
Mas logo a contrapartida do empreendimento ficaria evidente para o ilustrador: muito
rapidamente Grandville sentiu a perda do controle do processo criativo de suas obras. Isso
porque, como já comentamos, a dinâmica da produção de um livro ilustrado era
extremamente complexa e envolvia uma série de profissionais com formações e papéis
distintos – além, é claro, de um texto preexistente a ser interpretado. (Kaenel, 1984;
Renonciat, 2006; Nesci, 2012)
Em primeiro lugar, um novo ator fundamental entrava em cena: o gravador. A
adoção da gravure sur bois de bout obrigava Grandville a entregar suas composições
meticulosamente trabalhadas e retrabalhadas ao profissional, que era encarregado de
transferir o desenho para a matriz de impressão de madeira. Esse processo de gravação
frequentemente provocava uma distorção ou outra em relação aos originais do ilustrador,
que reclamava incansavelmente sobre a forma como as gravuras traíam seus desenhos.
(Blanc, 1855: 66-68) A produção de livros ilustrados envolvia ainda a figura do livreiro-
editor, que considerava a si mesmo como investidor, mediador e organizador do trabalho;
era ele que reunia a equipe de trabalho, fechava os contratos e cuidava da impressão e da
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1649
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

distribuição dos livros. Para se ter ideia do tamanho do empreendimento, Keanel (1984:
50) estima entre seis e dezoito o número de gravadores necessários para trabalhar na
produção de cada um dos livros de Grandville, dependendo do número de gravuras de
cada livraison. Além disso, vez por outra, como no caso de Pierre-Jules Hetzel, que
escrevia sob o pseudônimo de P.-J. Stahl, o livreiro-editor ainda colaborava com os textos.
Por fim, quando o livro a ser produzido não era uma reedição, mas sim uma nova obra,
outro ator entrava na disputa: o escritor. Tratava-se, portanto, de uma reunião de
profissionais marcada por um processo constante de negociação e disputa.
Para fazer frente a seus concorrentes e remodelar sua identidade socioprofissional,
Grandville lançou mão de uma série de estratégias através das quais procurou garantir seu
lugar na direção do processo criativo de suas obras, como em seus tempos de caricaturista.
Embora Charles Blanc (1855) insista mais de uma vez na personalidade tímida, modesta
e reservada do artista, assim como em seu amor e dedicação sem fim à sua família, o
mesmo admite – e é consenso na literatura – que o espírito genioso e combativo de
Grandville e seu humor ácido não estavam a serviço apenas de suas sátiras gráficas, mas
antes, constituíam uma de suas armas fundamentais na disputa pela nobilitação de seu
estatuto profissional e artístico.
Ciente das assimetrias nas relações que mantinha com os demais profissionais à
sua volta e, portanto, dos limites em sua margem de negociação, Grandville assumia
nessas disputas tons que variavam de acordo com o renome de seus adversários. Ora suas
críticas eram feitas de forma aberta, ora num certo tom de condescendência. Em outras
ocasiões, empregava ironia e humor e, por vezes, exprimia suas críticas através de seus
desenhos.
Tensas e ambíguas eram também as relações de Grandville com seus editores,
especialmente com Hetzel, com quem teria colaborado até 1842. A parceria teria chegado
ao fim no momento imediatamente posterior à publicação bem sucedida de Cenas da vida
privada e pública dos animais, distribuída em cem fascículos entre 1840 e 1842. Hetzel
assinava a organização do volume, que contava ainda com textos de Charles Nodier,
Balzac e George Sand. O motivo da ruptura teria sido uma acusação feita por Grandville
ao famoso editor de Balzac e Jules Verne de se apropriar de sua ideia para um livro no
qual pretendia trabalhar, que viria a ser Um outro mundo (Nesci, 2012; Kaenel, 1984: 53).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1650
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Todavia, a tensão entre ambos durante a produção das Cenas ficou registrada na obra, e
seus ecos se fizeram ouvir mesmo depois da morte de Grandville em 1847.
Em seu estudo detalhado acerca da reinterpretação dada por Hetzel às gravuras
originalmente produzidas para Um outro mundo (1843), Nesci (2012:06) assinala uma
verdadeira mudança na postura de Hetzel após a morte do ilustrador: se na primeira edição
das Cenas Hetzel assumia um papel muito mais modesto, descrevendo-se como que a
serviço do talento de Grandville, anos mais tarde, por ocasião da publicação de uma nova
edição do volume – e mesmo posteriormente, para a publicação d’O diabo em Paris
(1868), Hetzel assume uma posição nada subalterna. Segundo a autora, apesar da prática
de reciclar imagens fosse comum durante o século XIX, a remodelação promovida pelo
editor precisa ser encarada com um olhar crítico, já que ela envolve a eliminação de uma
série de quadros narrativos e personagens importantes do enredo da obra. Além disso, a
autora destaca a forma como Hetzel procura celebrar o papel de inevitável mediador
assumido pela figura do editor como “salvador” dos autores. (Nesci, 2012: 03, 12-15)
Contudo, apesar do contrato de exclusividade imposto a Grandville por Hetzel, e de toda
a tensão durante a produção das Cenas, o ilustrador parece ter levado a melhor na disputa
para se livrar de sua condição subalterna durante o processo criativo. (Renonciat, 2006:
10)
Muito menos conflituosa parece ter sido a relação do artista com Henri Fournier,
com quem publicou até sua morte. A título de hipótese, gostaríamos de sugerir que essa
diferença poderia estar ligada ao fato de que, diferentemente de Fournier, Hetzel mantinha
uma carreira de escritor paralela à sua de editor. Nesse sentido, o capital tanto simbólico
quanto material de que dispunha o inseria na disputa pela primazia sobre o processo
criativo das obras desempenhando simultaneamente dois papéis, o que de alguma forma
aumentava expressivamente seu poder de negociação.
No âmbito da produção gráfica, Grandville apoiado na noção romântica de autor,
associada aos conceitos de originalidade e gênio, muitas vezes recorria a estratégias que
remontam à sua atuação no La Caricature, sempre com o objetivo de legitimar e valorizar
sua produção. Segundo Kaenel (1984: 56), o artista apostava na prática de codificar ao
máximo suas imagens, fornecendo a elas uma “legibilidade” que, por sua vez, demandava
uma decodificação discursiva:
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1651
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Le surcodage des textes par l’illustration dénie à cette dernière em


fonction purement descriptive em instaurant le ríncipe de l’écart
interprétatif qui donne la mesure de l’”originalité”, de l’”intelligence”
créatrice de l’artiste. (Kaenel, 1984: 56) [grifo do autor]

Estratégias dessa natureza estão inscritas também no campo da auto-


representação. Isso porque, ao almejar fazer de si mesmo um “desenhista filósofo” e se
apresentar socialmente como tal, Grandville estava fazendo frente não apenas à disputa
entre os profissionais envolvidos na produção de livros ilustrados; o artista procurava
também garantir que o produto de seu trabalho, embora realizado a partir das
possibilidades abertas pela dinâmica de reprodução em escala industrial, por se tratar de
uma obra de inteligência que exigia complexas operações mentais e se dirigia a um
público deliberadamente elitizado – o que também tem a ver, na prática, com o preço dos
volumes –, era muito diferente dos produtos culturais que eram objeto de crítica no
virulento debate suscitado pela industrialização da produção artística e literária814
(Kaenel, 1984: 59-60; Georgel, 1999: 119).

Apoteose? A publicação de Um outro mundo

Na virada para a década de 1840, Grandville havia alcançado o auge de sua


carreira. Nessa época, movido pelo desejo de elevar sua produção a um novo patamar, o
autor das Metamorfoses do dia começa a trabalhar em seu projeto mais ambicioso, que
viria a ser distribuído em 36 fascículos no decorrer de 1843 por Henri Fournier.
Impulsionado pela consciência de seu prestígio e, ao mesmo tempo, dos limites em seu
poder de barganha, Grandville resolve garantir a satisfação de seu desejo de figurar como
autor principal de uma obra associando-se com Taxile Dalord que, à época, era editor do
Le Charivari. A colaboração com um jornalista – e não com um romancista relativamente
famoso, por exemplo – garantia a Grandville uma pluma satisfatoriamente submissa aos
seus desenhos. Não à toa, Kaenel (1984: 56) chama a atenção para o fato de que o nome
de Dalord só aparece em Um outro mundo numa gravura do epílogo – mas que, mesmo

814
Sobre o debate, ver: Mollier (2008).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1652
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

assim, nem se compara ao “G” monumental que representa a inicial do ilustrador (fig. 4).
Nos frontispícios da obra, Dalord não é sequer citado. Essa situação só se transforma em
colaborações posteriores como, por exemplo, em “Les fleurs animées” (1847), onde o
jornalista aparece explicitamente citado no frontispício. Por outro lado, “Cent proverbes”
(1845) não só não carrega nenhuma referência sobre seu redator, como ainda vem
assinada por Grandville e “por três cabeças usando um gorro” (fig. 5). Ainda que seja
possível que alguma das cabeças represente o[s] escritor[es] da publicação, é interessante
notar como logo abaixo delas estão desenhadas três plumas amarradas.
Cabe, portanto, insistirmos na forma como, muitas vezes, as disputas envolvidas
na produção dos livros ilustrados se encontram expressas na publicação final815. De
acordo com Kaenel (1984; 47), por meio de autorretratos, prefácios, frontispícios e do
destaque gráfico concedido a cada um dos autores envolvidos no processo, é possível
observar a forma como “os diferentes agentes da edição definiram e promoveram suas
profissões”.

815
Embora estejamos atentos para o fato de que essas representações estejam inscritas no campo da ficção
e que, portanto, não se tratam de simples reflexos do real. O conceito de ficção que informa este trabalho,
tomamos emprestado de Gallagher (2009).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1653
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Figura 5 – Detalhe do frontispício de Cent


proverbes, 1845. Disponível em: gallica.bnf.fr.

Obra profundamente autorreferenciada, Um outro mundo conduz o leitor através


de uma narrativa quase teatral por uma viagem fantástica do fundo do mar até os confins
do infinito, passando por diversos mundos, criações, costumes e pontos de vista, por
alegorias e alusões, por metamorfoses e transformações, insistindo na interdependência
entre as ordens natural, social e técnica. Concebido como a obra prima da carreira de
Grandville, Um outro mundo cataloga um inverso de possibilidades infinitas e
vertiginosas, inaugurado pelo novo papel em que se encontrava a humanidade a partir de
então: o de segundo criador, capaz de dar vida a seres e objetos inanimados. (Tresch,
2012: 176) No livro, somos levados a acompanhar os três “neodeuses” Dr. Puff (também
poeta, inventor e publicista), Hahblle e Kracq em suas jornadas, observações e criações
em busca de um novo mundo, uma vez que a Terra já não era mais suficiente para
satisfazer “a imaginação dos artistas, a curiosidade dos leitores e as especulações das
livrarias”. (Grandville, 1843: 01; Tresh, 2012: 177)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1654
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Mas essa viagem só pôde ser narrada depois que o crayon finalmente se libertou
da “tirania” da pluma, propondo a ela uma nova forma de associação. Daquele momento
em diante, sua única obrigação seria de redigir as impressões de viagens narradas pelo
crayon, como uma espécie de secretária. De ilustrador dos escritos da pluma, o crayon
assumia a partir daquele momento o lugar de autor de histórias a serem descritas (fig. 6).
No epílogo do livro, a pluma e o crayon voltam a discutir seus papeis e importância na
obra que haviam acabado de produzir, depois que este último acusa a pluma de estar
tentando disputar com ele a glória de sua obra, um mundo que ele havia criado:

La Plume - [...] vous avez bouleversé les lois fundamentales de la


littérature, et vous avez manqué votre but. Vous avez cru qu'il suffisait
d'avoir de l'imagination pour plaire, d'être ingénieux pour être amusant:
vous vous êtes complétement trompé. Le public veut du roman; lui en
avez-vous donné? [...] Toutes les Plumes de Paris vous feront payer
cher votre orgueil outrcuidant.
Le Crayon - Que me reprochent donc vos soeurs, les Plumes de Paris?
La Plume - Elles vou reprochent d'être obscur, monotone,
hiéroglyphique. [...] Elles ajoutent que vous n'êtes que satirique là où
vous voulez être philosophique, mauvais plaisant quand vous vous
croyez spirituel; que vous ne respectez rien, que la plupart de vos
dessins ne sont que des logogriphes [...]. (Grandville, 1843: 289-290)

A contenda só chega ao fim graças à intervenção do canivete, que convence ambos


os personagens a dedicar o epílogo não à suas disputas, mas ao elogio mútuo entre eles –
“é a moda hoje!”.
Tanto o prefácio do livro quanto seu epílogo nos levam a pensar em duas coisas:
em primeiro lugar, a forma como Grandville se colocava como personagem de suas
histórias, ora explicitamente, ora via alusões. Isso pode estar associado à forma como o
próprio artista se entendia como parte daquele mundo em transformação e à maneira como
ele procurava se representar em seu interior como objeto e agente dessas transformações;
em segundo lugar, a “decodificação” desse diálogo constitui um registro satírico muito
rico para refletirmos sobre as disputas e as questões envolvidas na produção de um livro
ilustrado. Embora a contenda traduza as aspirações de Grandville numa moldura
caricatural, tanto uma leitura cuidadosa da cena, quanto um olhar mais atento sobre a
trajetória do ilustrador, nos levam a rejeitar o chamado “mito da reversão”, ou seja, da
superioridade do crayon sobre a pluma. (Kaenel, 1984: 46) Isso porque é necessário estar

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1655
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sempre atento às motivações socioprofissionais que associam, sempre em situação de


concorrência e de dependência mútua, texto e imagem nesse contexto.

Figura 6 – O crayon parte em sua jornada com sua pasta de pasta de croquis.
In: Un autre monde, 1843, pp. 08. Disponível em: gallica.bnf.fr.

Ironicamente, a avaliação da pluma sobre a obra do crayon se mostrou profética.


Segundo Renonciat (2006: 12), a linguagem alusiva adotada por Grandville em Um outro
mundo foi mal compreendida por seus contemporâneos, uma vez que demandava
operações mentais demasiadamente complexas, o que teria rendido ao autor uma mancha
de quase um século em sua reputação. Champfleury endossa os rumores sobre a loucura
do ilustrador:

Voilà pourquoi, tout en constatant la faiblesse des organes cérébraux


que l'artiste fatigua outre mesure, je préfère ses oeuvres de jeunesse à
celles de sa maturité. Grand danger pour certaines natures que de
vouloir approfondir et réduire à l'état de science ce qui était sentiment
et instinct. (Champfleury, s/d: 293)

Grandville não se faz de surdo aos rumores: inclui em Cent Proverbes (1845) um
autorretrato no qual ele se representa assinando seu nome numa muralha branca cujo
nome era “papel de louco” (fig. 7).
Mesmo com a recepção negativa de Um outro mundo, até sua morte no ano de
1847 em decorrência das complicações de uma difteria, Grandville concluiria diferentes
projetos como a edição ilustrado do romance satírico Jérôme Paturot em busca de uma
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1656
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

posição social (1845) e As flores animadas (1847), fruto também de sua parceria com
Taxile Dalord. A obra do artista só viria a ser revisitada décadas mais tarde, inspirando
figuras como Lewis Carrol e John Tenniel, o ilustrador da edição de 1865 de Alice no
país das maravilhas. Mais tarde, na década de 1930, os surrealistas atribuiriam a ele o
título de precursor do movimento. (Nesci, 2012: 05; Renonciat, 2006: 13)
Ao compararmos o momento de auge na carreira do artista no final da década de
1830, e os anos trágicos da década de 1840, tanto na vida pessoal quanto na vida
profissional de Grandville, é impossível não retornarmos a Greenblatt. Isso porque, para
o autor, modelar-se e ser modelado pelas instituições culturais são processos intimamente
ligados, inscrevendo o conjunto de escolhas de seus atores em meio a possibilidades
estritamente delineadas pelo sistema social e ideológico em que estão inseridos.
(Greenblatt, 1980; 256) Além disso, as escolhas e apostas desses atores se defrontam com
os condicionantes socio-históricos de sua época, e seu retorno é quase sempre incerto.
Em sua época, Grandville abraçou os avanços técnicos que permitiram a ele não apenas
aperfeiçoar sua arte, mas também garantir sua difusão. A intervenção mecânica sobre o
processo de criação tinha uma dimensão dupla: por um lado, muitas vezes deixavam o
artista insatisfeito; por outro, a denúncia constante dessa interferência oferecia a ele a
possibilidade de se justificar diante de críticas a eventuais imperfeições em suas gravuras.
(Kaenel, 1984: 60)
Entretanto, a adesão de Grandville aos avanços técnicos de sua época não veio
dissociada de um esforço de diferenciação: em seu processo de automodelação, o
ilustrador adotou uma série de estratégias por meio das quais procurou marcar a distinção
entre sua obra e os demais produtos culturais produzidos a partir de uma lógica industrial.
Esse esforço de distinção é perceptível também na forma como ele esteve sempre
empenhado em reconfigurar sua identidade socioprofissional no sentido de sua
nobilitação. Desempenhando ofícios tradicionalmente considerados menores, como o de
caricaturista e mais tarde, ilustrador, Grandville passou a vida buscando formas de se
apresentar como uma espécie de “desenhista-filósofo”. Como postula Greenblatt (1980:
09), “a automodelação é alcançada em relação a alguma coisa percebida como diferente,
estranha ou hostil. Esse outro ameaçador deve ser descoberto ou inventado de forma a ser
atacado ou destruído”.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1657
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Essa modelação de si em busca de um estatuto cultural e social mais gratificante


sempre envolve, como esperamos ter evidenciado, conflitos profissionais e lutas
concorrenciais. Vez por outra, essas questões se traduzem ora em documentos, como os
contratos, cartas, etc; ora nas próprias obras, que servem como suporte para a definição
dessas competências profissionais (Kaenel, 1984: 47).

Figura 7 – Grandville registra seu nome no muro conhecido como


“papel de louco”. In: Cent proverbes, 1845, pp. 354. Disponível em:
gallica.bnf.fr.

Documentação

BLANC, Charles. Grandville. Paris: Émile Audois Éditeur, 1855.

CHAMPFLEURY. Histoire de la caricature moderne. Paris : E. Dentu Éditeur, s/d.


Disponível em : gallica.bnf.fr/ Bibliothèque nationale de France.

GRANDVILLE, J. J. Cent proverbes. Paris: H. Fournier Édtiteur, 1845.

______. Un autre monde. Paris: Hi Founier Éditeurs, 1843. Disponível em:gallica.bnf.fr


/ Bibliothèque nationale de France.

HETZEL, Pierre-Jules; GRANDVILLE, J. J. Scènes de la vie privée et publique des


animaux. Paris: J. Hetzel Éditeur, 1842.

Referências
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1658
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BENJAMIN, W. “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”. In: ______.


Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. São
Paulo, Brasiliense, 1987.

______. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Ed. Brasiliense,
1989.

BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São


Paulo: Companhia das Letras, 2007.

BIAGIOLI, M. Galileu, cortesão. A prática da ciência na cultura absolutista. Porto: Porto


Editora, 2007.

CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n.


11, p. 173-191, Abril 1991.

ELIAS, N. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.

GALLAGHER, C. Ficção. In: MORETTI, F. O Romance – A cultura do romance. São


Paulo: Cosac Naify, 2009.

GEORGEL, P. Philippe Kaenel, Le métier d’illustrateur, 1830-1880. Rodolphe Töpffer,


J.-J. Grandville, Gustave Doré. Romantisme, n.º 104, p. 119-120, 1999.

GREENBLATT, S. Renaissance self-fashioning. From More to Shakespeare. Chicago;


Londres: The University of Chicago Press, 1980.

HARTOG, F. “Tempos do mundo, História e Escrita da História”. In: GUIMARÃES, M.


L. L. Salgado (org.). Estudos sobre a escrita da história. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
pp. 15-25.

HOBSBAWM, E. J. A Era das Revoluções: Europa (1789-1848). Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1981.

KAENEL, P. Autour de J.-J. Grandville: les conditions de production socio-


professionelles du livre illustré “romantique”. In: Romantisme, n.º 43, p. 45-62, 1984.

KURY, L. As artes da imitação nas viagens científicas do século XIX. In: ALMEIDA,
M. de; VERGARA, M. de R. Ciência, História e Historiografia. São Paulo: Via
Lettera; Rio de Janeiro: MAST, 2008. pp. 321-333.

MOLLIER, J.-Y. A leitura e seu público no mundo contemporâneo ensaio sobre a história
cultural. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1659
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

MOTA, I. M. As fisiologias cariocas produzidas pela Semana Ilustrada: notas de


apresentação e origem da fórmula. Revista Maracanan, v. 12, n. 14, pp. 310-321, 2016.

NESCI, C. Images déplacées, images détournées ? D’Un Autre Monde de J.-J. Grandville
au Diable à Paris de P.-J. Hetzel. Textimage, Le Conférencier - L’image répétée. 2012.

NERY, L. A caricatura: microcosmo da questão da arte na modernidade. Tese de


doutorado (PUC-RJ). Rio de Janeiro: PUC, Departamento de História, 2006.

________. Cenas da vida carioca. Raul Pederneiras e a belle époque do Rio de Janeiro.
Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, 2000.

RENONCIAT, A. J. J. Grandville. Paris: Delpire Editeur, 2006.

SECORD, J. Visions of Science. Books and readers at the dawn of the Victorian Age.
Oxford: Oxford University Press, 2014.

STIÉNON, V. “La technique au quotidien. Poétique de la modernité industrielle dans les


Physiologies”. Romantisme, n.º 150, p. 11-21, 2010/4.

TRESCH, J. The romantic machine: utopian science and technology after Napoleon.
Chicago; London: University of Chicago Press, 2012.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1660
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

INQUICE: Indício arqueológico de Territorialidade Banto no Território da Cidade


do Rio de Janeiro?
JOSEFA JANDIRA NETO FERREIRA DIAS
PPGHC-IH-UFRJ /
Instituto de Arqueologia
Brasileira- IAB

A Curadoria arqueológica realizada pelo Instituto de Arqueologia Brasileira – IAB


em 2015/2016 sobre os materiais arqueológicos coletados em campo pela equipe da
arqueóloga Tânia Andrade Lima (Museu Nacional), no Porto Maravilha - fase I
2009/2011 trouxe à luz grande e variado número de artefatos. Poucos e raros foram
aqueles referentes ao período de ocupação do território na Pré-história; surpreendentes e
em número razoável foram aqueles oriundos da época da Conquista (contato
indígena/europeu) e abundantes os relativos ao período Histórico. Dentre este último,
aqueles alusivos à presença da cultura africana, sejam como objetos de uso cotidiano
como cachimbos e panelas de barro, sejam como objetos de uso ritual como as contas,
búzios, otás e... inquices feitos sobre osso.
Figura 1 e 2: Peça 7 e Peça 5

Fonte: Acervo Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB), 2016.


Minkisi ou Inquice é um termo usado genericamente na língua Banto do Congo e
de Angola para conceituar seres intermediários entre Zambi (Deus criador) e os homens.
Em outras línguas africanas como a Yorubá corresponde ao mesmo que “Orixá” no

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1661
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“Candomblé”, "Vodun" é a palavra para “espírito” nas línguas Gbe (Fon-Ewe do Benim) e
se refere à tradição religiosa baseada nos ancestrais.
Os artefatos arqueológicos feitos sobre material ósseo animal, acima
exemplificados e coletados durante as pesquisas arqueológicas na área do Cais do
Valongo na Cidade do Rio de Janeiro nos parecem associados a cultos de matrizes
africanas, e este artigo pretende especular a possibilidade de serem, aqueles, parte do farto
“arsenal memorial trazido da África” e aqui adaptado e utilizado como forma de
resistência política e ideológica (religiosa?) neste território desde a chegada dos primeiros
aportes humanos aqui trazidos já nos séculos XVI, no início mesmo do período
escravocrata brasileiro.
O Homem africano que foi trazido para o Brasil era profundamente identificado
com seu território de origem e ligado à noção de pertencimento a este ou aquele grupo
em sua terra natal, e sua sobrevivência e formas de resistência se fizeram justamente pela
capacidade de se manter conectado a essa noção através da energia vital de vinculação
com suas crenças de origem – o axé.

Organização social do Território (ou territorialidade) da área da cidade do Rio de


Janeiro entre os séculos XVI e XVIII
Os modelos de organização social determinam o modo como se estrutura a
ocupação do espaço biofísico, ou seja, sua territorialização (ação ou dinâmica de ocupar
o território). O conceito de territorialidade (ocupação social do território) aparece nas
áreas da sociologia, da psicologia social e de outras ciências e é abordada em sua gênese
como uma conduta ou atitude instintiva dos animais (incluindo o próprio ser humano) que
visa promover a defesa do território de sobrevivência que ocupam, a qual, no caso dos
seres humanos, também está relacionada com a cultura. A circunscrição de territórios pelo
Homem Sapiens (“Homo Sapiens neanderthal” e nossa própria espécie, “Homo Sapiens
sapiens”, ocorre desde a Pré-história há, pelo menos, 300.000 anos. Inferir essas
experiências para o território do Rio de Janeiro, tendo como alvo a ocupação do território
da Cidade do Rio de Janeiro é a nossa pretensão.
Estudos antropológicos, como os de Little (2002, p.3) e consolidados por
pesquisas arqueológicas ao redor do mundo, já confirmam que todas as formas de

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1662
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

organização social humana, como Sociedades de Bando, Sociedades Tribais, Sociedades


de Cacicados (chefias ou reinos) e Sociedades de Estado, passaram necessariamente pelas
discussões sobre o uso do território.816 Tal hipótese vem sendo, na atualidade, objeto de
análise de distintas áreas do conhecimento científico, desde a Etologia, da qual surgiram
as formulações iniciais sobre territorialidade, se estendendo para os estudos da História,
da Ciência Política, da Antropologia e da Sociologia, até aportar finalmente na Geografia,
disciplina na qual se constitui um dos conceitos básicos e através da qual se perpassa por
diferentes campos.
Mas é no campo da própria Geografia que diferentes definições de território
demonstram essa condição. Os sentidos dessas definições variam desde perspectivas
jurídicas, sociais, culturais a afetivas, mas os vínculos apontados são sempre ancorados
nas relações que qualquer organização social estabelece com a natureza do lugar, sejam
elas mediadas por mecanismos de apropriação, dominação, ocupação ou mesmo pela
posse de uma fração do espaço. Seja como for, é essa relação que faz emergir a
fragmentação do espaço com distintas funções, cuja organização, gestão, manutenção ou
mesmo reorganização conjugam os interesses dos sujeitos envolvidos.
Haesbaert, (2004, p.56) pesquisador da UFRJ é nossa fonte de reflexão para a
sequência dessa apreciação já que este autor agrupa várias concepções de território em
quatro vertentes básicas: política, ideológica (cultural), econômica e natural e chama a
atenção para o fato de que essa separação é meramente teórica, pois a dinâmica territorial,
via de regra, conjuga várias outras dimensões. Segundo ele, Território, na sua Dimensão
Política, se refere às relações espaço-poder, em geral, ou jurídico-político e dizem
respeito às relações espaciais que se estabelecem na esfera do Estado-Nação, ou seja,
nesta dimensão o território é conceituado como um espaço delimitado e controlado,
através do qual se pratica um determinado poder na maioria das vezes, mas não
exclusivamente, relacionado ao poder político do Estado.

816
A renovação da teoria de territorialidade na antropologia tem como ponto de partida uma abordagem
que considera a conduta territorial como parte integral de todos os grupos humanos. Defino a territorialidade
como o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela
específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu “território”, ver: LITTLE, E Paul.
Territórios Sociais e Povos tradicionais no Brasil: Por uma Antropologia da Territorialidade – Brasília.
2002 inn: Série Antropologia 322.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1663
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Quanto ao Território sob a expressão da Dimensão Ideológica/Cultural é o


conteúdo cultural ou simbólico-cultural que o delimita a partir da teia de representações
e subjetividades que se enraízam em porção do espaço /território, dando-lhe identidade.
Nesta acepção, o território é visto como fruto da apropriação/valorização simbólica de
um grupo em relação ao seu espaço convivido.
No que se refere à Dimensão Econômica do Território, a vertente econômica
focaliza o espaço como fonte de recursos e/ou este é incorporado no embate entre classes
sociais. Ou seja, ver a relação capital-trabalho, como produto da divisão territorial do
trabalho.
Já o Território em sua Dimensão Natural, emprega uma noção de território
baseada nas relações entre sociedade e natureza, especialmente no que se refere ao
comportamento natural dos homens em seu ambiente físico. Por ser uma noção mais
antiga é pouco difundida nas Ciências Sociais da atualidade, mas no que se refere à
territorialidade ou à “contextualização territorial”, é a que sustenta ser esta inerente à
condição humana. Genericamente é vista como a simples “qualidade de ser território”, e
assim é muitas vezes incluída e entendida no domínio da dimensão simbólica do território.
Mas, para Santos (1978, p.145), é “a utilização do território pelo povo que cria o
espaço”, ou seja, nesta área arqueológica é possível perceber a diferenciação entre
território (meio ambiente geográfico) e territorialidade (espaço ocupado socialmente),
entendendo que o território pode ser considerado, por exemplo, apenas como área
delimitada e composta pelas relações de necessidade de subsistência, como deve ter sido
quando de sua ocupação pelos grupos pré-históricos, ou área de poder do Estado na
dependência dos usos que dele se fez por outros ocupantes nos séculos seguintes. O
importante é que depois de fisicamente delimitado, este pôde ser utilizado como espaço
e fonte de recursos de subsistência; pôde ser construído e desconstruído por essas mesmas
relações de poder e que, seja como for, as evidências arqueológicas ali encontradas
demonstram que muitos atores o territorializaram, seja como bem natural, sociocultural,
econômico ou político em suas ações com o passar do tempo.
Os vestígios encontrados do Porto Maravilha – Fase I e estas pesquisas, em
especial, evidenciam as interações socioculturais daqueles que ali viveram e deixaram
suas "ilhas de histórias" em inesperados artefatos abandonados nos liames do tempo.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1664
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Para melhor compreensão desta proposta de análise recuaremos a um tempo em


que o uso dos territórios possuía um caráter cíclico (variando com o tempo), móvel
(deslocando-se nos mais diferentes espaços) e se organizando a partir de redes
interligadas pelo fluxo de informações ou contatos relacionados a mais elementar das
causas – necessidade de sobrevivência. E sobrevivência se assenta sobre pilares
fundamentais, tais como comer, abrigar-se, reproduzir-se e deslocar-se em busca de mais
alimentos e abrigos.
As Sociedades de Bando foram provavelmente os primeiros grupamentos
humanos a chegarem até o território da Cidade do Rio de Janeiro (embora ainda não
tenham sido encontradas evidências arqueológicas deste grupo na área especifica da
pesquisa). Estas formas de sociedades com organização social mais simples eram
baseadas na família nuclear e conhecidas antropologicamente, como Sociedade de Bando
ou de Caçadores-coletores817, cuja pretensão era apenas garantir a própria sobrevivência
diária na medida em que dependiam exclusivamente da natureza.
A Sociedade Tribal é algo mais complexo e podia se organizar em grupos de mais
de 400 pessoas. Viviam em territórios de propriedade comunal, mas com ausência de

817
Adotamos um sistema classificatório em uso pelos arqueólogos, cujos termos foram postulados há muito
tempo pelos pesquisadores e embora seja em sua origem de caráter evolucionista, desta teoria se afasta por
diversos pontos. O primeiro é que não é obrigatório que uma sociedade de tecnologia mais simples venha
a “evoluir” para uma mais complexa. Assim não há uma obrigatoriedade dos bandos passarem para tribo,
estas para chefias e estas se tornarem civilizações ou Estado. Uma sociedade de bando, tribal ou de cacicado
pode se manter assim por milhares de anos e por influência externa se adaptar um Estado centralizado
(muitas das vezes mantendo antigas práticas originais). A exemplo temos os “aborígenes australianos” na
Austrália e no Brasil as tribos assentadas atualmente no Alto Xingu. Outra diferença em relação ao
evolucionismo é que quaisquer desses padrões culturais podem “evoluir” de sociedades mais complexas,
para mais simples, por questões ambientais, crises sociais, guerras, etc. Como exemplo a Cultura Marajoara
da Amazônia que de cacicado “retrocedeu” para sociedade tribal, adaptando-se às mudanças ambientais e
pressões externas. Uma diferenciação ainda mais importante diz respeito ao fato de que o sistema é usado
somente como um auxiliar na descrição e definição ampla da cultura e não exige correspondência nos três
níveis de manifestações culturais. Ou seja, culturas de bando ou caçadores coletores, de tecnologia simples
e dependentes do meio ambiente, podem desenvolver traços culturais em outros ramos do conhecimento
até mais complexos do que sociedades tribais ou cacicados, que podem se dar na relação entre indivíduos,
nos sistemas de cura, conhecimentos astronômicos e outros. Ex. povos da Tradição Itaipu embora
pertencessem a Sociedades de Bando tal como os povos de Tradição Sambaquieira, apresentam uma
tecnologia lítica altamente diferenciada, não só daqueles, mas também dos povos da Tradição Una que
pertenciam a Sociedade Tribal na mesma época. Para finalizar, afasta-se da teoria evolucionista quando
defende que não são os mais fortes ou mais adaptados que vencem a corrida da vida e sim os mais
adaptáveis. E o homem, com a cultura se tornou o mais adaptável ser vivo do planeta. DIAS, O. O Índio no
Recôncavo da Guanabara. Rio de Janeiro: IHGB, 1998.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1665
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

classe social. Sua organização social se baseava no sexo do indivíduo, sua idade e seu
valor pessoal dentro da comunidade. Os casamentos eram baseados na linhagem
matrilinear, monogâmicos e, antropologicamente, é considerada ainda hoje a melhor
forma de convívio social humano.
Sociedades de Cacicados (chefias ou reinos) – O Cacicado foi um modelo de
instituição inicial de liderança sob o governo de um cacique. Surgiu politicamente
quando sociedades tribais precisavam ocasionalmente se unir em torno de um chefe
principal (o cacique), para combater e/ou aprisionar um inimigo comum, geralmente em
disputas de poder por territórios. Uma aldeia era então escolhida para chefiar as outras e
seu cacique se tornava assim o “rei” ou “chefe”. O costume oral (e não leis escritas)
consolidava essas formas de liderança em outras dimensões sociais, como as de conteúdo
simbólico-cultural que delimitavam o espaço social a partir de uma teia de variadas
relações. De base patriarcal e poligâmica, os casamentos passavam a ser extrafamiliares
(filhas mulheres de cada tribo subsidiária se casavam com o “rei” e seus descendentes
passavam a ser os sucessores legítimos do trono). Estabeleciam-se assim, as matrizes das
“classes sociais” e a hereditariedade das funções e não mais o valor pessoal como na
sociedade tribal. Cresciam as representações religiosas.
O rei/sacerdote, como meio de controle social, usava o poder dos mitos, a
religiosidade e a superstição e também outras subjetividades de ordem mais pessoal,
como o poder de vida e morte sobre os desafetos ou inconvenientes ao regime e também
à escravização de pessoas ou grupos conquistados, como parte do processo econômico
para gerar excedentes. O poder se enraizava no espaço/território; assim um cacique líder
chefiava vários outros caciques, criando uma apropriação/valorização simbólica de um
grupo em relação ao seu espaço convivido. Na dimensão econômica, a aldeia do cacique
principal se fortalecia quando por qualquer motivação (religiosidade, poderio militar ou
outra qualquer), passava a usar a mão de obra escrava para aumentar e receber o excesso
de produção das aldeias subordinadas e o redistribuía como artifício político de
fortalecimento social (germe do capitalismo selvagem, que explora a pobreza ou a miséria
do outro).
Quando esse sistema era adotado permanentemente por diversas tribos, ele podia,
mas não necessariamente, se transformar em cacicados complexos, como, por exemplo,
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1666
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

o do Reino do Congo na África, o do Havaí nas ilhas do Pacífico e o dos Pueblos na


América do Norte. Caracterizava-se, portanto, pela existência de uma aldeia principal,
controlando a produção e a autonomia de aldeias subsidiárias. Este controle era
geralmente exercido pelo poder dos Mitos, como por exemplo, aquele que explica a morte
do capitão inglês James Cook no Havaí, Sahlins (2003), mas, sobretudo, por controle
religioso, superstições ou outros manejos. As aldeias principais se tornavam complexas
e o seu chefe, com apoio de diversas famílias, poderosos. Foram desse tipo de sociedade
que chegaram, oriundos do Reino do Congo quinhentista, os primeiros povoadores
africanos para o Rio de Janeiro no século XVI.
Para este artigo, em especial, foram as contribuições oriundas dos prováveis
descendentes genéticos e culturais do cacicado do Congo africano (ou das aldeias
subsidiárias de Angola) encontradas nos remanescentes arqueológicos do Porto
Maravilha - Fase I que nos deram a segurança do caminho a seguir. Dentre outros
artefatos destacamos artefatos arqueológicos em osso nos quais pensamos jazer
manifestas informações de uso em cultos afro-brasileiros. Estes e outros elementos da
vida cotidiana, como restos de cerâmica de Tradição Neobrasileira relativas à tralha
doméstica, atestam a territorialidade presente e relevante destes grupos para a pesquisa
ainda em andamento.

De onde vieram os falantes da língua Banto para o Brasil?


Os registros cartográficos de uma publicação oficial do governo de Agostinho
Neto, (sem data) - provavelmente de 1980 nos forneceram um mapa que certamente
facilitará a compreensão do que pretendemos refletir.
Este primeiro mapa mostra o agrupamento de reinados do território angolano
entre os séculos XIII e XIX. Para nosso recorte estudaremos a configuração relativa para
os reinos africanos congoleses existentes nos séculos XVI e XVII, período para o qual
inicialmente apontam os achados arqueológicos supracitados já que os povos de origem
Nagô só começam a chegar ao Rio de Janeiro no início do século XVIII e este material
apresenta traços culturais da cultura Banto, tais como a cruz dos bakongos escarificada
em alguns pontos das peças.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1667
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Figura 3: Peça 1 – Cosmograma Bakongo?

Fonte: Acervo Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB), 2016.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1668
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Figura 4: Mapa dos Reinos Históricos de Angola

Fonte: (Services Officiels Angolais - Angola: (1980?) – Editions Delroisse - Boulogne –


France - ISBN 2.8518.060-0).

O Reino do Congo já é apontado no mapa acima como existente desde o século


XIII (1.azul) e no século XVI é aquele que vai entabular as primeiras relações comerciais
com Portugal (GONÇALVES, 2005). Para os séculos XVI e XVII foram mapeados os
Reinos da Matamba e Ndongo (2.amarelo), o Reino da Kissama (3.vermelho) e o Reino
de Kassange (5.verde escuro). Os Reinos do Planalto (4.laranja) e os do Sudoeste (7.verde
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1669
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

claro) surgem no século XVI e se estendem até o século XVIII. Já o Reino da Lunda
Tchokwé só aparece no século XVII (6.vermelho escuro) mas tem continuidade até o
século XIX. Outros grupos aparecem como comunidades pouco fixadas (8. Lilás).
O que este mapa aponta de forte interesse para nós é o modelo de organização
social dessas comunidades quanto à ocupação desse território para o período em estudo.
“As sociedades pré-coloniais que haviam de constituir a Nação Angolana encontravam-
se no século XV em diferentes estádios de evolução e em todos eles a organização tribal
assumia papel determinante” (SERVICES OFFICIELS ANGOLAIS, 1980?).
Em seguida, de certa forma contradiz a informação do que conceitualmente se
conhece por sociedade tribal quando informa que:
Essas sociedades, em que coexistiam diferentes relações de produção,
apresentavam-se quase todas como estados organizados. [grifo nosso]
(...) o nível de desenvolvimento das forças produtivas permitia que a
agricultura, o artesanato e o comércio [grifo nosso] desempenhassem
papel de relevo (SERVICES OFFICIELS ANGOLAIS, 1980?, p.11).
Pode-se perceber novamente a “confusão” do autor ao atribuir a categoria de
comerciantes à sociedade tribal.

O desenvolvimento dessas sociedades foi violentamente interrompido


pela chegada dos portugueses que praticavam uma política de
destruição sistemática dos antigos Reinos [grifo nosso] (...) Na primeira
fase da colonização, a principal atividade econômica dos colonialistas
era, com efeito, o comércio de escravos. Para os obter moviam guerras
contra os Estados (...) as chamadas guerras de kuata-Kuata e
escravizavam os homens livres (SERVICES OFFICIELS ANGOLAIS,
1980?, p.11).

Outra fonte foi por nós considerada para este artigo, na medida em que
entendemos que ela “conversa” com aquele mapa. É a publicação de 1962 de Eduardo
dos Santos - Estudos, Ensaios e Documentos, Nº 96 - Sobre a Religião dos Quiocos –
Junta de investigações do ultramar – Lisboa 1962; nela consta o Carimbo do Centro de
estudos de Antropologia – Lisboa – Portugal - Ministério do Ultramar Junta de
investigações do Ultramar.
SANTOS (1962, p.15/s) nos informa que o subgrupo Banto Lunda-Quiocos vive
a Nordeste de Angola próximo a Cuango. Reza a lenda que os grupos Lunda e Quioco
seriam oriundos de um reino existente às margens do rio Cajidíche governado pela

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1670
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

poderosa governante Luéji lua Kôndi. Um dia atraído pela abundante e variada caça
apareceu um audacioso caçador chamado Ilunga, talvez vindo do reino de Luba. Luéji e
Ilunga se apaixonaram apesar do relacionamento não ser bem visto pelos grandes do reino
e anunciaram o casamento.
Tchingúri irmão de Luéji, que havia sido deserdado anteriormente pelo pai, viu
ali um bom pretexto para separar-se do reino e reunindo sua gente atravessou o Cassai,
fixando-se em Angola.
Após o casamento Luéji teria enviado uma embaixada ao irmão pedindo-lhe para
voltar – “Aióku à ku Tchingúri” (ide ter com Tchingúri). Este fato desencadearia todo o
processo, pois a palavra “Aióku” (ide do verbo ir, provavelmente deu origem a “idos”
palavra etimologicamente associada aos Quiocos, ou seja todos aqueles que tinham ido
embora com Tchingúri e mais todos os outros dissidentes e insatisfeitos com o casamento
que se juntaram posteriormente ao grupo sob a chefia de Dumba uá Têmbu.
Embora o casamento tenha sido malquisto pela maioria dos “sobas” dele nasceu
Iânvu que deu origem a dinastia Muatiânvuas (muata + Iânvu = o senhor Iânvu). Mas
embora Iânvu fosse o herdeiro legitimo, é de De Dumba uá Têmbu que se originaram
todos os Chissengues, (seriam os mesmos “cassanges” que vieram para o Rio de Janeiro?)
tornando-se este o Muatchissengues, ou seja, o rei dos Quiocos.
Os Quiocos que permaneceram fixados no atual distrito de Luanda (1962)
conseguiram manter mais vivas as suas tradições e as fizeram sobrepujar sobre os demais
grupos indígenas menores, já muito fragmentados por todo um condicionamento
colonialista mais favorável aos seus propósitos.
Este mapa nº 1 mostra os povos Lunda Tchokwé como habitantes do nordeste do
Reino do Congo no século XVII. Cruzando, portanto, esses elementos pela proximidade
das datas indiciadas nestes acontecimentos, cremos poder considerar a possibilidade de
estes dados virem a constituir uma importante fonte de informações sobre as bases da
religiosidade dos povos de língua banto aportados no Brasil seiscentista que, embora
originalmente tenham sido levados para a Bahia, desde cedo foram trazidos para a cidade
do Rio de Janeiro bem no início de sua fundação.
Etnólogos que estudaram grupos negros primevos na África observaram a perfeita
interdependência existente entre as suas manifestações sociais, políticas, econômicas e
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1671
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

religiosas. E aqueles que conseguiram se afastar de facciosismos de escolas e sistemas,


como Delafosse, apontam que: “Aucune institution n’existe que ce soit dans le domaine
social ou dans le domaine politique, voire même en matière economique, qui ne repose
sour un concept religieux ou qui n’ait la religion pour pierre angulaire.” (DELAFOSSE
apud SANTOS, 1962, p.16)
Ou seja, todos os que estudam estas instituições são obrigados a concluir que eles
são um dos povos mais religiosos da Terra. É de todo sabido que os povos africanos
trazidos pela força eram completamente despojados de seus bens materiais e
provavelmente de seus suportes de proteção religiosa, como fios de conta, patuás ou
outros. Sem muito esforço podemos concluir que tudo que possuíam doravante era sua
cultura imaterial enraizada em sua mente, a qual era preciso se agarrar emocionalmente
com todo o empenho da memória e tentar reproduzi-las de cor e dentro das possibilidades
que o seu Senhor lhes permitisse fazer.
Figura 5: Peça 7 – Inquice?

Fonte: Acervo Instituto de Arqueologia Brasileira (IAB), 2016.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1672
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Figura 6: Artefato de metal conhecido como Ankitá.

Este artefato em metal foi fotografado em um bazar de artigos


religiosos registrado como Bazar Diana no Jardim Gláucia,
bairro de São João de Meriti – RJ. Segundo a informante é uma peça
de culto utilizada nos assentamentos para Exu, conhecida como Ankitá.
Fonte: Arquivo Jandira Neto, 2015

Entendemos ser necessário diferenciar e precisar o que genericamente estamos


chamando de manifestações religiosas, ou contrafações, do que é stricto sensu religião.
Até porque essa confusão trouxe muitos dissabores e sofrimentos nos séculos seguintes
para toda uma descendência desses grupos. Para este artigo queremos apenas pontuar as
categorias de modo basal. Em Santos (1962) podemos interpretar que a mitologia, a
superstição e a magia são contrafações da religião; o totemismo, o naturismo o animismo
e o tabuísmo não são ainda religião.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1673
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Não sendo, portanto, as manifestações religiosas dos Quiocos filosofia nem


teologia, a análise de sua religiosidade carecerá de sentidos e conexões para ser
compreendida lá e principalmente o que dela restou aqui no Rio de Janeiro no emaranhado
de todas as contrafações que lhes permearam quando das tentativas de preservá-las e
reimplementá-las em culto.
Se assim foi, por que tanto esforço em materializar suas crenças e costumes numa
terra tão distante da sua? Para qualquer pessoa o nascimento e a conservação da vida é
uma preocupação constante; imaginemos isso para uma pessoa completamente
desprovida de condições medico-sanitárias mínimas, num universo de plantas e animais
desconhecidos. Quanto mais desprotegido e ameaçado pelos elementos naturais tanto
mais esse Homem buscará formas de garantir um espaço-território, por menor que seja,
em que possa implantar suas práticas de magia e exercer sua religião através do culto.
Criar um espaço de caráter, condição ou qualidade territorial, é passo fundamental
do eto comportamental da dimensão animal humana e está relacionada à sua necessidade
de defesa do território contra invasores. Esse “sentimento” esse bio eto nascido do puro
instinto de sobrevivência desenvolveu neste Homem um sentido de territorialidade tão
forte que o fez enfrentar toda a loucura da bestialização através da manutenção de suas
tradições religiosas, fossem elas cultuais ou contrafações.
É neste sentido que entendemos ser a Territorialidade político-religiosa
afrodescendente brasileira um jeito de recuperar a humanidade perdida.

DOCUMENTAÇÃO
SANTOS, Eduardo dos. - Estudos, Ensaios e Documentos, Nº 96 - Sobre a Religião dos
Quiocos - Junta de investigações do ultramar – Lisboa – 1962. Carimbo: Centro de
estudos de Antropologia – Lisboa – Portugal - Ministério do Ultramar Junta de
investigações do Ultramar.
SERVICES OFFICIELS ANGOLAIS - Angola: (1980?) – Editions Delroisse - Boulogne
– France - ISBN 2.8518.060-0.

BIBLIOGRAFIA
DIAS, Ondemar. O Índio no Recôncavo da Guanabara. Rio de Janeiro: IHGB, 1998.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1674
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

GONÇALVES, António Custódio. A história revisitada do Kongo e de Angola. Lisboa:


Estampa, 2005.
HAESBAERT, Rogério. O Mito da Desterritorialização: do fim dos Territórios à
Multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
LITTLE, Paul. Territórios Sociais e Povos Tradicionais no Brasil: Por uma antropologia
da territorialidade. In: Série Antropologia 322. Brasília: Universidade de Brasília, 2002.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
SANTOS, Milton. Por uma Geografia nova. São Paulo: Hucitec-Edusp, 1978.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1675
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Mulheres na lavoura de cana-de-açúcar

JULIA CHEQUER
CPDOC/FGV
Bolsista Capes

Introdução

Este projeto nasceu de um envolvimento anterior com o tema, durante a pesquisa


para o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), o livro-reportagem intitulado Três
Centímetros do Chão: a indústria da cana da perspectiva das cortadoras, de graduação no
curso de Jornalismo da PUC-SP. Nesse período, o contato com as histórias de vida de
mulheres que por muitos anos ganharam seu sustento no corte de cana e já haviam deixado
a atividade, despertou o interesse por uma investigação mais profunda a partir deste olhar.
Nesse sentido, está entres as grandes motivações deste projeto a percepção da
singularidade da lembrança de pessoas idosas, dentro da perspectiva de Ecléa Bosi:

Nelas é possível verificar uma história social bem desenvolvida: elas já


atravessaram um determinado tipo de sociedade, com características
bem marcadas e conhecidas; elas já viveram quadros de referencia
familiar e cultural igualmente reconhecíveis: enfim, sua memória atual
pode ser desenhada sobre um pano de fundo mais definido do que a
memória de uma pessoa jovem, ou mesmo adulta, que, de algum modo,
ainda está absorvida nas lutas e contradições de um presente que a
solicita muito mais intensamente do que a uma pessoa de idade (BOSI,
2015, p. 60).

Nesse processo, a sensibilidade a respeito dos movimentos da memória, de


seleção e (re)elaboração, no discurso presente, de acontecimentos do passado a partir de
vestígios, despertou ideia de uma História viva e aberta a diferentes interpretações e
versões. Assim, a possibilidade de acessar as memórias e experiências dessas mulheres
diante de tamanhas transformações, e em um momento em que a produção de álcool é
novamente central na economia do país, orientou o desejo de construir a pesquisa de
mestrado.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1676
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Ao estudo da memória dentro da historiografia contemporânea, somou-se a


análise histórica da modernização do campo na região de Ribeirão Preto e seus efeitos
nas populações rurais, com atenção especial aos movimentos de desenraizamento que
envolvem os fluxos migratórios. Entre os trabalhos acadêmicos recentes, destacamos os
de Andrea Vettorassi (2006, 2010) e de Juliana Dourado Bueno (2011).
Em sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal de São Carlos, Andrea
Vettorassi (2006) analisa construção de identidades e sociabilidades entre os
trabalhadores rurais que migraram, em diversos períodos, para Guariba (SP). O estudo é
centrado nos diversos aspectos da dicotomia entre os denominados “nativos” (de
descendência europeia, moradores do centro e representantes da classe média) e os “de
fora” (migrantes mineiros e nordestinos de diferentes gerações e moradores dos bairros
periféricos) que permeia as relações sociais no município.
Em sua tese de doutorado (2010) pela Universidade Estadual de Campinas,
Andrea Vettorassi analisa a atual migração em busca de trabalho para o município de
Serrana (SP), traçando um paralelo com Guariba (SP). Para tanto, com dados
quantitativos e qualitativos, examina cuidadosamente como se articulam as redes sociais
formadas nos locais de origem e de destino, as particularidades dessas redes nos dois
municípios, e elementos de ordem subjetiva, como memórias, identidades, e sentimentos.
Bueno (2011), por sua vez, em sua dissertação de mestrado, analisa a
transitoriedade das tarefas realizadas por mulheres que residem em São Carlos e Itambé
(interior paulista), no decorrer de suas vidas. Trajetórias que passam pela experiência
rural, de cultivo familiar em pequenas propriedades, pelo trabalho nas lavouras de café e
laranja e em abatedouros de frango. Aí destacamos as reflexões acerca das idas e vindas
entre o campo e a cidade e de que maneira isso constrói a identidade dessas mulheres.
Anterior a tais pesquisas, uma das obras mais significativas sobre o tema é o livro
Errantes do fim do século, de Maria A. Moraes Silva. O livro, publicado em 1999, é
resultado de pesquisas realizadas entre 1987 e 1990 e baseado no texto do seu trabalho de
livre-docência, defendido em 1996. Nele, a autora, em minuciosa pesquisa de campo,
observa como se deu o processo de expropriação e exclusão do campesinato, no bojo da
modernização do campo, e seus efeitos considerados trágicos: a concentração de terra e

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1677
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

renda, a dissolução do trabalho familiar do campo, os fluxos migratórios, o êxodo rural e


a proletarização do trabalhador rural.
Assim, Silva analisa o conjunto de leis que operaram uma expropriação dos
camponeses no Vale do Jequitinhonha, comparando também com a forma como tal
processo se deu no campo paulista, sobretudo com a introdução do cultivo da cana-de-
açúcar. Entre essas leis, destacamos aqui algumas, na tentativa de sintetizar sua análise.
No Brasil, a apropriação da terra sob a forma capitalista tem início em 1850, com
a Lei da Terra, que marcou o fim do regime de posses livres. As terras consideradas
devolutas eram monopólio do Estado e, a partir de então, só poderiam ser apropriadas por
meio da compra. Era o período de imigração estrangeira e o governo queria garantir mão-
de-obra para a cafeicultura paulista, na medida em que o preço não permitia a compra de
terras por trabalhadores estrangeiros ou brasileiros.
A região do Vale do Jequitinhonha foi então considerada devoluta, ou seja,
inabitada e imprópria para a agricultura, alienando, assim, uma população que ali
cultivava uma série de produtos agrícolas. Seu acesso à terra passa a ser legitimado apenas
mediante à compra. “É por meio do monopólio sobre as terras que a expropriação de
posseiros e a não-regulamentação das posses serão atos do direito público” (SILVA,
1999, p. 30).
No que avalia como uma inflexão benevolente, provavelmente decorrente de
tensões sociais na região, a Lei n.6177, de 14 de novembro de 1973, considerou a
possibilidade de registro da terra pelo posseiro, mediante comprovação de “boa fé”,
cadastramento da gleba no INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária) e solicitação feita no prazo de um ano, após a vigência da lei. Ainda assim, um
preço considerado simbólico deveria ser pago, além das taxas para a expedição do título.
Sem poder arcar com as despesas e com medo de terem suas terras tomadas pelo Estado,
muitos as “venderam” a qualquer preço ou “(...) simplesmente as entregaram aos
mercadores de terra provenientes do Estado de São Paulo ou às grandes companhias
estatais ou privadas de reflorestamento. É preciso reforçar que estes camponeses
inseriram-se numa economia de valor de uso, na qual o dinheiro era praticamente
inexistente” (SILVA, 1999, p. 38).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1678
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A autora ainda verificou, em documentos de compra e venda de terras na região,


que tal processo foi acompanhado de uma concentração fundiária, na medida em que as
pequenas propriedades eram rapidamente revendidas às grandes companhias.
Expulsos, muitos camponeses migraram permanente ou temporariamente, em
busca de trabalho, para outros estados, em especial São Paulo. Com o Proálcool, a
migração para o campo paulista ganhou novo impulso, na medida em que o aumento da
produção de álcool combustível derivado da cana-de-açúcar passou a ser uma das
prioridades do Estado brasileiro, e Ribeirão Preto a região modelo.
Tal programa é, para a autora, fruto de um debate acerca da necessidade de
aumentar a produtividade agrícola, processo que chama de “modernização trágica”. É
nesse contexto que analisa a implementação do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), Lei
n.4214, de 2 de março de 1963, como transformador da paisagem rural. O Estatuto
estendeu as leis trabalhistas aos trabalhadores rurais, além de estabelecer a indenização
por demissão sem justa causa, estabilidade no emprego e regulamentação do trabalho da
mulher e da criança. A lei, entretanto, não definiu regras para o trabalho volante, de forma
que os proprietários acabaram por expulsar os parceiros, meeiros, colonos e arrendatários
para evitar gastos.
Assim, a história de Guariba, município situado a 50 km de Ribeirão Preto, se
insere entre a de uma série de cidades que surgiram com o avanço do café, sobretudo com
a extensão das estradas de ferro. Na virada do século, a região consolidou a chamada
“economia de terra roxa” (MARTINS, 1995), baseada não exclusivamente818, mas
principalmente na força de trabalho imigrante, estruturado por meio do colonato819.

818
De acordo com (VETORASSI, 2006, p. 23), em 1870 havia na região onde, mais tarde, seria fundado o
município de Guariba, algumas famílias mineiras. Ali, implementavam culturas de subsistência e criação
de gado. Por volta de 1895, numerosos grupos de baianos chegaram para o cultivo do café, antes da chegada
massiva de imigrantes. Ver também (STOCKLE & HALL, 1983) para um panorama das diferentes formas
de contrato de trabalho na cafeicultura paulista.
819
Particular das fazendas de São Paulo, os colonos viviam em casas geminadas na propriedade e recebiam
uma parte do pagamento em dinheiro, pelo trabalho da família, e outra por meio de permissão para ter uma
pequena roça de subsistência, ou seja, plantar e criar animais de pequeno porte. (SILVA, 2004, p. 18). A
indústria doméstica era extremamente importante nesse sistema. “Seu sucesso dependia da capacidade das
mulheres de aproveitarem ao máximo as vantagens desse regime de trabalho, que lhes permitia conjugar
trabalho de casa com o da roça e do cafezal” (SILVA, 2007, p. 556).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1679
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Se, nessa “cidade do café”, a sociabilidade se dava sobretudo nos finais de semana,
nas missas, nas festas populares e quando habitantes das áreas rurais levavam seus
produtos para serem vendidos e compravam outros, a paisagem começou a se transformar
com a decadência dessa cultura.
A subida do preço do açúcar, na década de 1930, deu o primeiro impulso para a
produção de cana. Surgiram as primeiras usinas e muitos ex-colonos se empenharam no
cultivo, em pequenas propriedades adquiridas das antigas fazendas de café.
Na medida em que a produção de álcool combustível ganha centralidade política
e econômica, principalmente a partir do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), uma
massa de migrantes rurais chega à região em busca de trabalho820. No entanto, as relações
de trabalho agora os mantém fora das fazendas e os pequenos municípios rapidamente se
transformam em cidades-dormitório.
Com essa migração, surge, na década de 1950, o primeiro bolsão periférico de
Guariba, com o loteamento do Bairro Alto, conhecido como João-de-Barro por causa do
estilo das casas construídas pelos próprios habitantes, com lajotas de barro. Nas décadas
seguintes, novos bolsões surgiram, principalmente nos arredores do Bairro Alto.
A história dos canavieiros e canavieiras de Guariba também é marcada pelas
greves de 1984 e 1985, precursoras de um movimento que se espalhou pela região e gerou
consequências que transformaram a vida, as relações de trabalho e as formas de
organização da categoria.

Justificativas
A pertinência da presente pesquisa, em primeiro lugar, consiste na constatação da
relevância do feminino como objeto de pesquisa histórica. A partir desta ideia, também
se considera fundamental o debate acerca de novas fontes de pesquisa, em especial as
fontes orais, e seu impacto na historiografia contemporânea.
O valor desse cruzamento da história oral com a história das mulheres para a
historiografia é destacado por Maria Paula Araújo e Myrian Sepúlveda dos Santos por
“(...) trazer para a história uma dimensão da experiência e da vivência humana

820
Entre 1970 e 1991, a população do município subiu de 11.448 para 28.911 (Censo Demográfico IBGE).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1680
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

inteiramente ignorada porque alicerçada na subjetividade feminina, excluída da narrativa


histórica” (ARAÚJO e SANTOS, 2007, p. 108).
Do ponto de vista do campo brasileiro, o projeto se justifica por vermos hoje os
efeitos de um modelo de modernização, suas mudanças e permanências. Além disso,
pode-se dizer que, a partir de 2003, o Proálcool foi de certa forma reeditado, na medida
em que indústria da cana é mais uma vez apresentada pelo Estado como um importante
setor da economia.
Para a história oral, essa questão pode apresentar um valor mais profundo, pois
tanto a apreensão, quanto formulação da fonte é realizada no presente. “Rememorar não
é o mesmo que viver novamente, mas sim a releitura do sujeito que a produz, numa
sociedade que se deferência daquela à qual se refere a lembrança” (LUCENA, 1997, p.
397).
Assim, este projeto se justifica pelo valor de compreensão de como as lembranças
daquele período serão formuladas hoje, tanto pela idade das entrevistadas, quanto pelas
alterações recentes no campo paulista. O que buscamos, nesse sentido, não é uma “nova
verdade”, mas outras memórias, outros pontos de vista formulados em outro momento a
partir de outras trajetórias e tradições.

Temáticas e problematizações
A temática fundamental deste trabalho é tentar compreender como se deram os
deslocamentos nas relações de gênero a partir dessa inserção feminina no trabalho
individualizado, na lavoura de cana-de-açúcar e como elas compreendem possíveis
transformações em seu papel na família. Tal questão, no entanto, passa pela compreensão
de aspectos identitários, ligados aos fluxos migratórios que marcam a população local, e
às lutas sociais na região.
Para Silva (1999), a expulsão da terra e a migração produziram uma metamorfose
nas identidades, na medida em que o modo de vida e os espaços de sociabilidade
mudaram. Enfática nos danos causados, ela afirma que “(...) a ‘acumulação primitiva
deste proletariado’ conduziu à formação de um mercado de trabalho caracterizado pelo

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1681
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

desenraizamento sociocultural e pela diferenciação social821 sob rubrica da lei” (SILVA,


1999, p. 74). Nesse sentido, as identidades também são transformadas diante do outro (o
paulista, o antigo morador da cidade, o branco, pobre ou rico), que os nomeia como
“mineiros” ou “baianos”, uma “gente estranha”, verdadeiros estrangeiros, que vivem em
guetos (SILVA, 1999, p. 237).
Para os migrantes, o espaço de sociabilidade se dava sobretudo na região do Bairro
Alto, onde o alto fluxo de chegada ia aos poucos “apertando” os moradores. O resultado
foi a construção de cômodos e barracos nos fundos das casas e a coletivização do uso de
tanques, varais e espaços fora da casa (SILVA, 1999, p. 232). Esse desarmônico processo
de ajustamento muitas vezes provocou brigas e cenas de violência.
Ao passo que, de modo geral, a presença dessa população – marcada pelo estigma
racial e cultural – não era bem vista em outros bairros e no centro da cidade, o espaço
feminino era ainda mais restrito. Sua vivência se dava essencialmente no espaço das
tarefas domésticas, nos mercados e na igreja, na medida em que os homens circulavam
plenamente pelos bares e ruas do bairro.
Para a autora, os movimentos grevistas de 1984 e 1985 tiveram papel fundamental
na reelaboração dessa identidade “desenraizada”. Para ela, a resistência às formas de
“exploração-dominação” produziu uma noção de pertencimento que transformou
fundamentalmente a auto-representação individual e coletiva.
Nesse sentido, inspirada no conceito de “economia moral” de E. P Thompson,
Maria A. G. Penteado remonta a narrativa da greve de 1984 a partir do Inquérito Policial
instaurado. Cruzando os depoimentos, ela desmonta, ponto a ponto, as formas de
explicação do movimento encontradas nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de São
Paulo: uma espécie de revolta da fome, espontânea e descontrolada, provocada pelo
desespero, em que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) seria a liderança por trás da
multidão.
Todavia, sua apuração revela uma movimentação anterior, nos bares e nos bairros
de Guariba, auto-organizada pelos trabalhadores e localiza a lógica de auto-representação

821
Trata-se aqui de diferenciações sociais e hierárquicas de gênero e raça-etnia, que, mesmo já existindo
antes, manifestam-se de maneiras diferentes nesse novo contexto.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1682
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

desses agentes, o significado da atuação da CPT na região, e uma tradição de luta,


revelada no depoimento de um militante do Partido Comunista.
Em diálogo com a obra de Silva, Vettorassi (2006) analisa os vários aspectos da
dicotomia entre os denominados “nativos” e os “de fora”, relações permeadas pela
discriminação e pela violência simbólica e que também definem os espaços de circulação
geográfica dos grupos. Por outro lado, a autora destaca o processo de reenraizamento,
sobretudo por parte dos migrantes que se estabeleceram na cidade, na medida em que
estes “(...) aprenderam que o modo de vida camponês, que mantinham em suas terras
natais, pode também ser reproduzido na ‘moderna’ cidade paulista, a partir de um espírito
comunitário construído entre os iguais” (VETTORASSI, 2006, p. 111).
Trata-se, porém, de um processo carregado de contradições, na medida em que já
há uma geração de filhos e netos de migrantes que muitas vezes não compartilha da
experiência camponesa de seus pais e avós. “No entanto, são incorporados em uma
mesma, injusta e contraditória relação dialética: são impreterivelmente ‘de fora’, mesmo
que guaribenses natos, porque são negros e pardos, pobres ou moradores do Bairro Alto.
É preciso tomar consciência de que esta ‘ausência’ de identidade entre a segunda e a
terceira geração de migrantes pode ter sérias consequências, como a participação deste
grupo em atos violentos na cidade” (VETTORASSI, 2006, p. 112). E conclui:

Frente aos estigmas do grupo nativo a que estão submetidos,


percebemos que os ‘de fora’, por serem um grupo heterogêneo, têm
reações diversas e multifacetadas, que podem ser divididas em três
subgrupos: os ‘de fora’ migrantes sazonais, isolados em suas próprias
pensões e becos, os ‘de fora’ migrantes estabelecidos em Guariba há
décadas, que conquistaram as ruas e espaços de seus bairros periféricos,
e os ‘de fora’ pertencentes à segunda e terceira geração de migrantes,
que por se considerarem (e serem) cidadãos guaribenses, entendem que
todos os espaços são seus por direito, e por isto estão mais expostos às
relações de violência (VETTORASSI, 2006, p. 118).

Se, na produção de Silva, as questões ligadas à identidade aparecem de forma


conflituosa e ganham sentido e conteúdo a partir do movimento grevista, em Vettorassi
elas se mostram relativamente mais assentadas. A ênfase dada por esta na constituição de
novas formas de sociabilidade e nas redes sociais confere um olhar positivo sobre as

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1683
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

identidades, as formas de vida e resistências cotidianas, mas, ao mesmo tempo, aponta


uma fragmentação destes trabalhadores, que não se enxergam enquanto grupo unitário.
Tal deslocamento também é verificado na memória das greves. Ao passo que
trabalhos mais antigos trazem depoimentos em que o orgulho pela participação nas
mobilizações é latente822, em outros mais recentes, tal memória dá lugar a uma certa
vergonha e ao esquecimento823. Para Vettorassi, nos depoimentos, a “(...) greve não é
entendida enquanto um direito, mas sim enquanto potencializadora de discriminações e
de perdas de trabalho assalariado” (VETTORASSI, 2006, p. 115).
Do ponto de vista do trabalho feminino, em outra publicação, Silva (2007) aponta
como se deu inserção das mulheres como trabalhadoras rurais individualizadas,
diferentemente das relações existentes em formas híbridas de trabalho (como a
parceria824, o arrendamento825 e a colônia826), predominantes no campo paulista até a
década de 1950827. Nesse contexto, a indústria doméstica era extremamente importante,
e “(...) dependia da capacidade das mulheres de aproveitarem ao máximo as vantagens
desse regime de trabalho, que lhes permitia conjugar trabalho de casa com o da roça e do
cafezal” (SILVA, 2007, p. 556).
Eram elas as responsáveis pelo tratamento das carnes, produção de conservas, de
farinha, de polvilho, beneficiamento do arroz, costura, produção de sabão, cuidado dos
filhos e irmãos mais novos entre outras tarefas. Além disso, ainda desempenhavam
funções na roça de subsistência e no cafezal, porém, não eram reconhecidas como
trabalhadoras individualizadas, “(...) seus trabalhos eram englobados no trabalho familiar,
controlado pelo pai-marido-patrão” (SILVA, 2007, p.557).
Como trabalhadoras “individualizadas, elas agora têm sua remuneração, mas
enfrentam uma realidade com outros tipos de contradição: formas de diferenciação no

822
Ver (ALVES & NOVAES, 2002a), (SILVA, 1999) e (PENTEADO, 2000).
823
Ver (ALVES & NOVAES, 2002b), VETTORASSI (2006 e 2010).
824
Na parceria, o proprietário concedia terra aos trabalhadores para a realização de um determinado plantio,
e ficavam com metade da produção. (SILVA, 2004, p. 19).
825
Neste caso, os trabalhadores pagavam pelo uso da terra. (SILVA, 2004, p. 19)
826
Particular das fazendas de São Paulo, os colonos viviam em casas geminadas na propriedade e recebiam
uma parte do pagamento pelo trabalho da família em dinheiro e outra por meio da permissão para ter uma
pequena roça de subsistência, ou seja, plantar e criar animais de pequeno porte. (SILVA, 2004, p. 18).
827
Até a década de 1950, 20% dos trabalhadores eram colonos, 50% eram parceiros, arrendatários ou
pequenos produtores, ao passo que os assalariados “puros” representavam apenas cerca de 30% (SILVA,
2007, p. 561).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1684
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

trabalho e na vida social; novas maneiras de precarização do trabalho; desvalorização e


perda do saber ligado à indústria doméstica.
Em artigo acadêmico, Rosa Ester Rossini (2010) descreve os resultados parciais
da pesquisa qualitativa de campo que desenvolve desde 1977828 com famílias que contém
pelo menos uma mulher trabalhando na agricultura canavieira, na região de Ribeirão
Preto. Entre os resultados, destaca: “(...) aumento do número de trabalhadores na família;
diminuição do número de residentes na casa; crescente procura de participação da mulher
na força de trabalho; maior escolarização; queda no número de filhos; e aumento de
desemprego/desocupação de homens e mulheres na última década. O fato mais marcante
desta última década foi a diminuição dos postos de trabalho e a masculinização nos novos
engajamentos, tendo apenas homens operando máquinas” (ROSSINI, 2010, p.125). A
pesquisa também aponta o aumento, em todos os períodos, do percentual de casas
chefiadas por mulheres e a diferença salarial entre homens e mulheres.
Na esfera doméstica, Rossini afirma que “(...) com a entrada da mulher na força
de trabalho (...), a atividade doméstica passou a ser considerada secundária e realizada
nas horas extremas, muito cedo ou à noite, ou o final do sábado e domingo (...) Seu tempo
de repouso passa a ser cada vez mais exíguo, enquanto para o homem ele permanece
quase o mesmo(...)” (ROSSINI, 2011, p. 210).
Nesse sentido, o objetivo é notar de que maneira as mulheres responderam a essas
transformações. “‘Parece que foi uma mulher’ que começou um movimento que atingiu
várias cidades do estado de São Paulo, além de outros, e que trouxe, apesar da violenta
reação da polícia e dos patrões, inúmeras vantagens aos trabalhadores, tais como, registro
em carteira, mudança no sistema de sete para cinco ruas, dentre outros direitos”(SILVA,
2007, p. 571) 829.
Nos parece importante compreender de que maneira as mulheres estavam
inseridas nesse processo de luta social e as razões pelas quais a presença feminina nos
sindicatos continuou extremamente minoritária. Além das lutas no campo político, é

828
Os resultados apresentados são referentes a entrevistas feitas em 4 etapas: 1977; 1985/86; 1995/96;
2003/06.
829
A maior e mais violenta greve de cortadores de cana ocorreu em Guariba, em 1984. O movimento obteve
eco nos municípios vizinhos, e outros episódios grevistas se verificaram em 1985, 1988 e 1989.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1685
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

fundamental a atenção aos deslocamentos e resistências também no espaço privado, nas


formas de sociabilidade e no espaço de trabalho.

Referencias bibliográficas

ALBERTI, Verena. Manual da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2013.


ARAÚJO, Maria Paula N. e SANTOS, Myrian S. dos. História, memória e esquecimento:
implicações políticas. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, nº. 79, Dezembro/2007, p.
75-111.
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios sobre a psicologia social. São Paulo:
Atelier Editorial, 2003.
BUENO, Juliana Dourado. De camponesas a operárias: experiências do transitar
feminino. Dissertação (Mestrado). São Carlos: UFSCar, 2011.
LUCENA, Célia T. “Memórias de famílias migrantes: imagens do lugar de origem”. In:
Projeto História. São Paulo, nº. 17, Novembro/1998, p397-413.
MARTINS, A. L. Guariba – 100 anos: 1895 – 1995. Prefeitura Municipal de Guariba,
1996.
NOVAES, J. R., ALVES, F. Guariba 1984 (vídeo). São Paulo: FERAESP, UFRJ e
UFSCar, 2002a.
_______. Guariba - 1984 (vídeo). São Paulo: FERAESP, UFRJ e UFSCar, 2002a.
_______. A memória em nossas mãos (vídeo). São Paulo: FERAESP, UFRJ e UFSCar,
2002b.
_______. Califórnia à brasileira. Centro Ecumênico de Documentação e Informação –
CEDI, 1991.
_______. Migrantes: trabalho e trabalhadores no complexo agroindustrial canavieiro (os heróis
do agronegócio brasileiro). São Carlos: EdUFSCar, 2007.
PENTEADO, Maria Antonieta Gomes. Trabalhadores da cana: protesto social em
Guariba – maio de 1984. Maringá: Eduem, 2000.
PORTELLI, Alessandro. Tentando Aprender Um Pouquinho. Algumas reflexões sobre
a ética na História Oral In: Projeto História. São Paulo, nº. 15, Abril/1997, p.26.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1686
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

ROSSINI, Rosa Ester. Geografia e Gênero. In: Revista Latino-americana de Geografia e


Gênero. Ponta Grossa, v.1, nº1, p.121-133, Janeiro/2010.
SILVA , Maria A. Moraes. Errantes do fim do século. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
_______. A Luta pela Terra: Experiência e Memória. São Paulo: Editora UNESP, 2004.
______. De Colona a Bóia Fria. In: História das Mulheres no Brasil. PRIORE, Mara
Del(org.). São Paulo: Editora Contexto, 2007. p. 554-577
ROSSINI, Rosa Ester. Geografia e Gênero: recuperando a memória de uma pesquisa
sobre a força de trabalho na agricultura canavieira na micro-área de Ribeirão Preto (SP-
Brasil) 1977-2008. In: Revista Latino-americana de Geografia e Gênero. Ponta Grossa,
v.1, nº1, p.121-133, Janeiro/2010.
VETTORASSI, Andréa. Espaços divididos e silenciados: um estudo sobre as relações
sociais ente nativos e os “de fora” de uma cidade do interior paulista. Dissertação
(Mestrado), UFSCar, 2006.
______. Laços de trabalho e redes dos migrantes: um estudo sobre as dimensões
objetivas e subjetivas presentes em redes sociais e identidades de grupos migrantes de
Serrana – SP e Guariba – SP. Tese (Doutorado), UNICAMP, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1687
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Musas ou heroínas? A construção da figura da mulher militante na literatura


memorialística no pós-redemocratização

JULIANA MARQUES DO NASCIMENTO


PPGH – UFF

Introdução
O projeto de pesquisa tem por objetivo principal mapear os ciclos de memória,
constituídos no período democrático (1985-atualmente), sobre a ditadura civil-militar
(1964-1985). Pretendemos analisa-los levando em consideração a perspectiva de gênero
e, por isso, as fontes escolhidas são biografias sobre mulheres que atuaram na luta armada:
Iara Iavelberg (Judith Patarra, 1993, editora Rosa dos Tempos), de Carmela Pezzuti
(Maurício Paiva, 1996, editora Mauad), de Maria do Carmo Brito, a Lia (Martha Vianna,
2003, editora Record) e de Dilma Rousseff (Ricardo Batista Amaral, 2011, editora
Sextante). Apesar de ser um volume grande para ser estudado em uma dissertação de
mestrado, optamos por mantê-los no trabalho para que fosse possível fazer uma análise
que diferenciasse os contextos e processos de produção de cada livro. Este artigo abordará
os avanços e mudanças da pesquisa, iniciada no primeiro semestre de 2017 e discorrerá
sobre os resultados parciais alcançados.

Pesquisa: balanço das fontes e avanço das questões


Se na primeira versão do projeto a questão de gênero e da atuação política
feminina na ditadura civil-militar era o mote central da pesquisa, atualmente – após a
leitura das fontes – o trabalho configura-se muito mais como um mapeamento dos ciclos
de memória830 sobre o período. A questão de gênero, se inserida e relacionada com esses
ciclos, torna-se muito relevante, pois mostra como em cada época se construiu e se
apropriou de determinada representação da atuação política feminina. Neste sentido, as
narrativas biográficas serão observadas enquanto construções do presente sobre o

830
Este termo foi sugerido pela Profa. Marina Franco (Universidad Nacional de San Martín, Argentina),
em discussão sobre o projeto realizada durante o minicurso “Ditadura, transição e tempo presente”,
realizado na UFF em maio/2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1688
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

passado, influenciadas por demandas e disputas memoriais que dizem respeito a seu
próprio tempo – e não ao que pretendem retratar.
Apesar que ainda de maneira inicial, identificamos quatro ciclos memoriais, sendo
cada um correspondente a um dos livros.

Década de 1980
No ciclo da década de 1980 se enquadra a biografia da Iara Iavelberg que, apesar
de ter sido publicada já no início da década de 1990, foi constituída pela jornalista Judith
Patarra por durante cerca de 8 anos831. É posterior ao boom da literatura memorialística
do fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, que teve livros de grande destaque, em sua
maioria autobiográficos832. O texto, que possui características de cobertura jornalística –
vide o título Iara: reportagem biográfica –, com reconstituições de situações vividas e
diálogos, buscou abranger todo o período de vida de Iavelberg, desde a chegada da família
de origem europeia ao Brasil, até sua morte, aos 27 anos. Essas reconstituições do
cotidiano de Iavelberg são justificadas pela própria Patarra: “a minha maior preocupação
foi reconstruir aquele pedaço da nossa História, que não podia ser esquecido. (...) Ela
[Iara] era uma moça de família conservadora, que fez inúmeras descobertas e vivenciou
as mudanças de comportamento, a revolução sexual833”. Tal fala é muito indicativa de
uma linha de narrativa muito presente do livro, cujo ponto central é o engajamento de
Iavelberg no feminismo. Iara é apresentada por Patarra em diversas situações como
mulher feminista, com acesso a textos tradicionais sobre o assunto – Simone de Beauvoir
e Betty Friedan, por exemplo –, e ações no dia a dia que revelavam tal posicionamento,
como evidencia o seguinte trecho:

Quando [Iara] almoçava no Ipiranga escolhia temas polêmicos.


– Por que não dormir com o namorado? Por que tem de casar virgem?
(PATARRA, 1993, p. 82).

831
GIUDICE, C.; PATARRA, J. História revisitada. Entrevista: Judith Patarra. Revista Veja, 12 de agosto
de 1992.
832
Todos tratando de personagens masculinos, como Renato Tapajós, Fernando Gabeira, Reinaldo Guarany
e Alfredo Sirkis.
833
GIUDICE, C.; PATARRA, J., op. cit.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1689
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Os próprios relacionamentos de Iara (o casamento e, após a separação, os


namorados), profundamente detalhados no livro de Patarra, depreendem uma liberdade
sexual excepcional da biografada, explicitada em falas atribuídas a ela:
– Eu sou uma mulher livre. Absurdo você, um socialista esclarecido, ter
preconceitos (PATARRA, 1993, p. 112).

Com a ideia posta anteriormente de que os livros se constituem enquanto


memórias do passado como construções do presente, é importante observar que, durante
a década de 1980, as discussões sobre o movimento feminista estavam em evidência no
Brasil. Segundo a antropóloga Cynthia Sarti,

Nos anos 1980 o movimento de mulheres no Brasil era uma força


política e social consolidada. Explicitou-se um discurso feminista em
que estavam em jogo as relações de gênero. As idéias feministas
difundiram-se no cenário social do país, produto não só da atuação de
suas portavozes diretas, mas também do clima receptivo das demandas
de uma sociedade que se modernizava como a brasileira. Os grupos
feministas alastraram-se pelo país. Houve significativa penetração do
movimento feminista em associações profissionais, partidos,
sindicatos, legitimando a mulher como sujeito social particular (SARTI,
2004, p. 42).

A autora aponta ainda que se desenvolveram demandas mais especializadas, como


ONGs com papel de atuação e cobrança nas áreas da medicina dirigida à mulher,
emergindo o campo dos “direitos reprodutivos” (SARTI, 2004). Além disso, assuntos
como violência contra a mulher e tutela masculina nas relações conjugais são amplamente
discutidos e reverberam na Constituição de 1988.
As análises iniciais sobre o ciclo de memória da década de 1980 apontam para
uma valorização do discurso feminista e de direito das mulheres, que ecoa diretamente
no livro da jornalista Judith Patarra.

Década de 1990
O livro Companheira Carmela: a história da luta de Carmela Pezzuti e seus dois
filhos na resistência ao regime militar e no exílio, biografia de Carmela Pezzuti, é o que
corresponde ao segundo ciclo de memória identificado. Escrito pelo engenheiro Maurício
Paiva, ex-integrante do COLINA e amigo de Ângelo e Murilo Pezzuti, filhos da
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1690
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

biografada, foi publicado em 1996, quando Carmela tinha 70 anos e morava em Minas
Gerais.
O livro não pretende fazer um relato imparcial: “não espere o leitor, neste livro,
um relato imparcial. Não falseio os fatos, não os deformo, não os invento. Mas vejo-os a
partir da perspectiva que me é dado vê-los: a da minha trincheira” (PAIVA, 1996, p. 9).
Há a reconstituição de alguns diálogos e falas de determinados personagens, opiniões e
críticas do autor a determinadas situações e/ou pessoas e ocultamento de alguns nomes
(como o do político amante de Carmela, referido apenas como Senador).
O autor tem outros livros publicados anteriormente834, entre os quais se destaca
sua obra autobiográfica, O Sonho Exilado, de 1986. Ainda não foi possível identificar os
motivos que o levaram a escolher a história de vida dos Pezzuti para contar, mas pode-se
fazer algumas suposições iniciais. A proximidade de Maurício com Ângelo desde a época
do curso de Medicina na UFMG, durante toda a militância e posteriormente no exílio,
vínculo que se estendeu para os outros membros da família – como Carmela –, pode ser
uma das principais razões. Importante salientar que Carmela, em 1996, era a única viva.
Seus dois filhos haviam morrido anteriormente: Ângelo faleceu em um acidente ainda no
exílio, no final da década de 1970, e Murilo se suicidou já de volta ao Brasil, no início
década de 1990. Em artigo de opinião enviado para o Jornal do Brasil em 13 de setembro
de 1996835 – ano de lançamento do livro – o autor afirma que é hora de lembrar os vivos:
“sem esquecer os mortos, lembremos, entretanto, os vivos. Em certos casos, melhor
diríamos, os sobreviventes836”.
Carmela foi sobrevivente. Essa linha de narrativa é priorizada pelo autor em todo
o livro – de diversas maneiras –, que inicia o relato da vida da biografada, de maneira
breve, a partir de seu casamento, aos 17 anos, para explicar as circunstâncias do
nascimento de seus filhos. A história passa a ficar mais detalhada com o desquite, aos 36
anos. Na ótica do autor, esse parece ser um diferencial de Carmela: seu envolvimento na

834
Poder Popular: um projeto político? (1975), O poder popular em Portugal (1976), Transição ao
Socialismo: as lições do Chile (1984) e O sonho exilado (1986).
835
Este artigo trata da indenização às famílias de Lamarca e Marighella concedida neste ano. O autor não
menciona a publicação de seu livro ou qualquer fato relacionado à Carmela e sua família, mas é possível
detectar vestígios de suas intenções em suas palavras.
836
PAIVA, M. Hora de lembrar os vivos. Jornal do Brasil, 13 set. 1996.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1691
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

política se deu, diferentemente da grande maioria dos militantes, aos 40 anos, após o
rompimento de um casamento e, portanto, de uma vida tradicional. Os momentos de
maior tensão e sofrimento são os que recebem maior destaque no livro: a clandestinidade,
as prisões, as torturas, o exílio, as dificuldades financeiras, as mortes. A heroicização de
todos os integrantes da guerrilha, os “resistentes”, permeia toda a obra, como evidenciam
os trechos a seguir:

E chorou todas as lágrimas que teve. E sentiu mais forças para


continuar, a qualquer custo, aquela luta desigual – a sua luta, luta do
Ângelo, do Murilo, do João Lucas, de tantos outros companheiros que
desafiavam os enormes riscos e jogavam as próprias vidas no projeto
generoso de mudar radicalmente a face injusta deste país (PAIVA,
1996, p. 49).
O que os movia a esse caminho de idealismo, a entregar-se a uma
atividade que só prometia sacrifícios? Todos os idealistas são
messiânicos. E, mais que a consciência, os movem instituições e
sentimentos. Pois, se não é possível mudar radicalmente a situação
iníqua que nos governa, subvertendo a própria lógica que a reproduz –
já que os tempos não estão para isso – é preciso pelo menos dar as mãos
ao povo nessa difícil travessia (PAIVA, 1996, p. 220).

A imagem de Carmela é sempre associada à de mãe – não por coincidência o livro


se encerra na morte de seu segundo filho: seu engajamento só ocorre por influência dos
filhos, aos quais dedica basicamente toda a sua vida. Essa narrativa está em conformidade
com a atuação de Carmela e sua irmã Ângela em movimentos de luta por creches
comunitárias na época da publicação do livro.

Década de 2000
O terceiro ciclo corresponde à década de 2000. O livro Uma tempestade como a
sua memória: a história de Lia, Maria do Carmo Brito de Martha Vianna, foi publicado
em 2003. A autora teve histórico de militância na Ação Popular e é amiga de infância da
biografada. O livro é organizado em trechos curtos temáticos, intercalando excertos de
poesias, músicas, textos literários, depoimentos da própria Maria do Carmo e o discurso
da autora. O resultado é uma narrativa diferenciada, com caráter literário e poético, não
encontrada nos outros livros analisados.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1692
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A obra apresenta a trajetória de vida de Lia, desde a infância em Minas Gerais e


início da militância até a volta ao Brasil.
Este foi o último livro lido para a pesquisa, por isso ainda não foram feitas
problematizações mais profundas.

Década de 2010
O último livro selecionado é A vida quer é coragem: a trajetória de Dilma
Rousseff, a primeira presidenta do Brasil, de Ricardo Batista Amaral, publicado em 2011.
Este foi o primeiro ano da primeira gestão da presidenta, eleita em 2010. O autor não
considera a obra uma biografia autorizada ou livro oficial 837, mas uma extensa
reportagem. Ricardo Amaral foi assessor de imprensa da Casa Civil enquanto Dilma era
chefe e, posteriormente, assessorou a campanha eleitoral de 2010.
O livro narra toda a vida de Rousseff até a data da publicação, desde o casamento
de seus pais e seu nascimento, até o discurso de posse, em 1° janeiro de 2011. Serão
analisados na pesquisa primordialmente os capítulos que tratam do período da ditadura
civil-militar.
Em entrevista, o jornalista autor do livro afirma que a decisão de escrevê-lo se deu
após o fim da campanha e resultado das eleições, em meados de outubro de 2010838. Se
essa informação proceder, a obra foi constituída em menos de um ano, o que parece
impossível devido à sua extensão e complexidade. Amaral afirma ainda que:

seria importante explicar, especialmente para os mais jovens, os


contextos históricos e políticos que levaram à eleição da primeira
presidenta do Brasil, da primeira mulher presidenta. E contextos que
fossem capazes de explicar por que foi Dilma Rousseff essa mulher que
alcançou pela primeira vez essa posição. Por que eu achei isso
necessário? Não que a presidenta Dilma fosse desconhecida ao final da
eleição. Muito pelo contrário, ela era conhecida e reconhecida. Tanto
que teve uma votação espetacular. Mas a imagem pública dela, eu
percebi que era formada pelo que eu chamo de fragmentos dramáticos.
A imagem dela era... as pessoas se lembravam, ou tinham como
referência dela alguns momentos: a luta contra o câncer, que ela

837
Entrevista com Ricardo Amaral no Em Pauta, Globo News, exibida em 28 dez. 2011. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=oKH625-5Uzw&t=1s>. Acesso em: 10 ago. 2017.
838
Entrevista com Ricardo Amaral no Gente que é Gente, TVC-BH, exibida em 25 mar. 2012. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=rvKQhlTIQqM>. Acesso em: 10 ago. 2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1693
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

superou; a participação dela nas organizações revolucionárias que


lutaram contra a ditadura, a fase guerrilheira, digamos assim; e aquela
reputação que ela tinha também de administradora eficaz, durona, uma
pessoa que cobra, mas excelente gestora839.

Com efeito, durante a campanha, o passado de Dilma e sua atuação durante o


período ditatorial foram muito utilizados pela grande imprensa e mídia num geral, de
diversas maneiras. As memórias estavam em disputa. A compilação destes elementos de
seu passado em um livro escrito por um jornalista ligado diretamente – e oficialmente –
a ela pode consistir numa tentativa de consolidar uma versão oficial, uma versão
“verdadeira”.
Essa versão, no entanto, no que tange ao passado de atuação política nas
organizações armadas, suaviza o envolvimento direto de Rousseff em ações polêmicas.
Há uma preocupação do autor em sempre situar os “contextos históricos” de todos os
momentos da vida pessoal de Dilma, como um pano de fundo. Por vezes, não há um
vínculo claro entre o engajamento da biografada e estes acontecimentos. Quando narra os
eventos do período ditatorial, ocasionalmente encontramos páginas sem que sequer seja
mencionado o nome de Dilma, apenas com informações sobre o panorama político e
social do momento, nacional e internacional: história das organizações, do golpe,
descrição das leis (os atos institucionais, por exemplo) – uma “grande história”. Apesar
de ser frequentemente descrita como “ser político” e muito inteligente, a imagem de
guerrilheira é neutralizada, em prol de um discurso mais pacifista: “Dilma criticava o
viés que a luta ia tomando, marcadamente militarista, mas seria acusada de vacilante se
abrisse seus receios a qualquer um” (AMARAL, 2011, posição 926).

Para os políticos, como Dilma, aquele dinheiro seria suficiente para a


sobrevivência da VAR-Palmares sem ter de recorrer aos arriscados e
violentos assaltos. Para os militares, como Lamarca, serviria para
comprar terras e armas modernas e deslanchar a guerrilha no interior do
país (AMARAL, 2011, posição 1048, grifos do autor).

839
Entrevista com Ricardo Amaral no Gente que é Gente, TVC-BH, exibida em 25 mar. 2012. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=rvKQhlTIQqM>. Acesso em: 10 ago. 2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1694
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

De fato, toda vez que há menção a alguma ação armada ou assalto, o autor enfatiza
de que Dilma não participava desse tipo de ato. Quando menciona o treinamento militar
feito por ela, afirma que, apesar de ter aprendido a montar e desmontar um fuzil, ela nunca
utilizou uma arma, devido à miopia.
****
Apesar de constar no projeto, a ideia de questionar e analisar a recepção e
circulação dos livros foi mais aprofundada neste primeiro semestre. Em todas as vezes
que o projeto foi discutido a questão das demandas editoriais foi colocada em pauta. Quais
os interesses das editoras em publicar livros com essa temática? Haveria demandas da
sociedade pela abordagem destas trajetórias de vida?
Os dois primeiros livros – biografias de Iara e Carmela – foram publicados em
uma década que retomou as discussões sobre a ditadura. A minissérie Anos Rebeldes
estava sendo exibida na época de publicação do primeiro livro e teve grande impacto no
movimento dos caras-pintadas, pelo impeachment do presidente Fernando Collor840.
Esses fatos com certeza impactaram a decisão de escrita da segunda obra.
Esses são apenas alguns dos dados levantados até o momento. O objetivo é
aprofundar essa análise sobre os livros, para mapear de maneira mais complexa os quatro
ciclos de memória, principal avanço da pesquisa nesse semestre.
Tomamos também a decisão de ampliar as fontes utilizadas. Já durante a discussão
realizada acima, foram incorporados outros documentos, complementares aos principais,
majoritariamente advindos da imprensa. Além disso, serão incorporados, se possível,
dados sobre tiragens e vendas dos livros, para que possamos estruturar melhor o alcance
entre o público leitor.
Uma nova questão a ser feita é sobre a relação entre biógrafos e biografados. Qual
o motivo de escolha específico destas mulheres? Através da leitura dos livros, percebe-se
que todas se conheciam e tinham relações estreitas: Dilma e Lia eram muito amigas de
Iara, Lia se casou com o filho de Carmela, Dilma morou com Lia e etc. Além disso, todos
os livros foram produzidos com autorização e colaboração das mulheres, com exceção de

Cf. ABDALA JUNIOR, R. Brasil anos 1990: teleficção e ditadura – entre memórias e história. Revista
840

Topoi, vol. 13, n. 25, dez. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2237-


101X2012000200094&script=sci_arttext>. Acesso em: 10 ago. 2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1695
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Iara, que já havia morrido – porém, sua família e amigos também contribuíram muito
através de entrevistas. Em que medida essa cooperação pode influenciar na escolha do
que é destacado e do que é omitido na narrativa? Na construção das personagens, com
exaltação de determinadas características que sejam de seu interesse? Estas são perguntas
a serem levadas em consideração no decorrer da pesquisa.

Debate historiográfico: uma análise crítica


Os trabalhos que abordam a literatura memorialística ou literatura de testemunho,
em sua maioria, tratam dos livros publicados no boom de biografias e autobiografias, em
fins da década de 1970 e década de 1980. Essas obras são escritas por homens, sobre
trajetórias masculinas, primordialmente: Em câmara lenta, de Renato Tapajós; A festa,
de Ivan Ângelo; Zero, de Ignácio de Loyola Brandão; O que é isso companheiro?, de
Fernando Gabeira; Lamarca, o Capitão da Guerrilha, de Emiliano José e Oldack
Miranda; entre outros.
A historiadora Denise Rollemberg fez pesquisas significativas utilizando estas
fontes. Durante os anos 2000 realizou um projeto de pesquisa “Memórias da luta armada”,
quando produziu diversos estudos neste sentido. O artigo Uma vida, duas autobiografias,
de 2006, é um deles, no qual a autora analisa o caso específico de Reinaldo Guarany e
suas duas autobiografias: Os fornos quentes (1978) e A fuga (1984). Ela analisa as
divergências entre ambas as narrativas que, apesar de terem sido escritas pela mesma
pessoa, são histórias diferentes.
Em Esquecimento das memórias, também de 2006, Rollemberg trata da disputa
por memória sobre a ditadura e questiona o porquê de algumas (auto)biografias terem
recebido maior destaque que outras, como a de Fernando Gabeira. Aborda conceitos
como memória coletiva, de Halbwachs, e de memória e esquecimento, de Pollak. Este
artigo é um ponto de partida de questões teóricas muito pertinente para o desenvolvimento
desta pesquisa.
O livro Os escritores da guerrilha urbana: literatura de testemunho,
ambivalência e transição política (1977-1984), originado da dissertação de mestrado em
Sociologia de Mário Augusto Medeiros da Silva, de 2008 pela UNICAMP, é muito
influenciado pelas análises de Rollemberg. A proposta de pesquisa é muito parecida com
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1696
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

o atual projeto para a UFF: o sociólogo analisa as obras de quatro autores ex-guerrilheiros:
Renato Tapajós, Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis e Reinaldo Guarany. Os grandes
diferenciais são a temporalidade – todos os livros estudados por Mário Medeiros foram
constituídos ainda no período civil-militar, ou na “transição” –, o fato de serem escritos
pelos próprios sujeitos que viveram tais situações – a narrativa de si – e a abordagem de
perspectiva sociológica, em virtude da formação do autor.
O conceito de ficção política é muito trabalhado, já que os enredos possuem
caráter ficcional – como forma de despistar a censura, ainda em vigor e, não menos
importante, conforme aponta o sociólogo, como inserção em tradições literárias. Sua
principal hipótese e chave de análise é a da ambivalência do sujeito e bifrontalidade dos
discursos, aspectos observados através da autoavaliação feita pelos autores sobre suas
trajetórias que, apesar de estarem no tempo passado, não estão tão distantes assim, já que
as estruturas políticas vigentes continuam as mesmas. A questão da memória sobre o
período, neste trabalho, tem mais o viés de um balanço do percurso das esquerdas
armadas, muito influenciado pelas vivências do exílio.
Sobre as memórias da perspectiva especificamente das mulheres, os estudos são
mais recentes. A historiadora Julia Bianchi Reis Insuela, em sua dissertação de mestrado
Visões das mulheres militantes na luta armada: repressão, imprensa e (auto)biografias
(Brasil 1968/1971), de 2011, na UFF, estuda as representações do engajamento das
mulheres na guerrilha, analisando fontes diversas, em diferentes camadas de tempo.
Algumas dessas fontes são as autobiografias de Mariluce Moura e Marília Guimarães e
as biografias de Iara Iavelberg, Carmela Pezzuti e Maria do Carmo Brito. Apesar de as
fontes daquele trabalho serem quase as mesmas deste projeto, constituem apenas a parte
final do trabalho, já que previamente a historiadora estudou arquivos da repressão e
notícias da grande imprensa. O trabalho, portanto, é bem extenso e o exame das fontes
memorialísticas é pouco aprofundado, Iara Iavelberg, focando apenas em alguns trechos
específicos. No entanto, as questões colocadas por Julia Bianchi foram muito pertinentes
para o estabelecimento deste projeto.
O trabalho mais recente encontrado no levantamento bibliográfico foi a também
dissertação de mestrado da historiadora Vanessa Maria Pereira Calaça, intitulada
Testemunhos da ditadura: a construção da memória no livro Memórias das Mulheres no
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1697
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Exílio, de 2016. A autora trata dos depoimentos das ex-guerrilheiras exiladas no livro
mencionado no título, de 1981, segundo volume de Memórias do Exílio. Por ter sido
encontrada mais recentemente, a dissertação ainda não foi lida por completo, mas consiste
em um importante trabalho para mapear a memória sobre o período ditatorial.

Considerações finais
Este trabalho consistiu num relato sobre as mudanças e avanços da pesquisa no
primeiro semestre de curso do mestrado em História, abrangendo as contribuições das
disciplinas cursadas, discussões do projeto e leituras. Ficou evidente durante todo o
semestre que é necessário historicizar as fontes. Esse é um ponto chave para a pesquisa.
Outra ótima contribuição foi no sentido de enxergar a documentação não por suas
menções a determinados fatos, mas sim as seleções, omissões e destaques dados por ela.
É isso que este projeto de pesquisa vem tentando fazer.

Referências

Documentação
AMARAL, R. B. A vida quer é coragem: a trajetória de Dilma Rousseff, a primeira
presidenta do Brasil. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.
CHIARELLI, S. Memórias tortuosas da luta contra a ditadura. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 20 de mar. 2004. Ideias, p. 4.
Entrevista com Ricardo Amaral no Gente que é Gente, TVC-BH, exibida em 25 mar.
2012. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rvKQhlTIQqM>. Acesso
em: 10 ago. 2017.
Entrevista com Ricardo Amaral no Em Pauta, Globo News, exibida em 28 dez. 2011.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=oKH625-5Uzw&t=1s>. Acesso
em: 10 ago. 2017.
GIUDICE, C.; PATARRA, J. História revisitada. Entrevista: Judith Patarra. Revista Veja,
12 de agosto de 1992.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1698
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

PAIVA, M. Companheira Carmela: a história de luta de Carmela Pezzutti e seus dois


filhos na resistência ao regime militar e no exílio. Rio de Janeiro: Mauad, 1996.
PAIVA, M. Hora de lembrar os vivos. Jornal do Brasil, 13 set. 1996.
PATARRA, J. Iara: uma reportagem biográfica. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.
VIANNA, M. Uma tempestade como sua memória: a história de Lia, Maria do Carmo
Brito. Rio de Janeiro: Record, 2003.

Bibliografia
ABDALA JUNIOR, R. Brasil anos 1990: teleficção e ditadura – entre memórias e
história. Revista Topoi, vol. 13, n. 25, dez. 2012. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2237-
101X2012000200094&script=sci_arttext>. Acesso em: 10 ago. 2017.
CALAÇA, V. M. P. Testemunhos da ditadura: a construção da memória no livro
Memórias da Mulheres no Exílio. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2016.
CAMARGO, A. L. O dever de memória do Estado no processo de justiça de transição no
Brasil. Idéias - Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, v. 7,
n. 1, 2016. Disponível em:
<https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ideias/article/view/2291>. Acesso em: 10
ago. 2017.
INSUELA, Julia Bianchi Reis. Visões das mulheres militantes na luta armada: repressão,
imprensa e (auto)biografias (Brasil – 1968/1971). Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2011.
ROLLEMBERG, D. Esquecimento das memórias. IN: MARTINS FILHO, João Roberto
(org.). O golpe de 1964 e o regime militar. São Carlos: Ed. UFSCar, 2006, pp. 81-91.
________________. Uma vida, duas autobiografias. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
n. 37, janeiro-junho 2006, pp. 190-200.
SARTI, C. A. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória.
Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 12(2): 264, maio-agosto/2004. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ref/v12n2/23959.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2017.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1699
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

SILVA, M. A. M. Os escritores da guerrilha urbana: literatura de testemunho,


ambivalência e transição política (1977-1984). São Paulo: Annablume, 2008.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1700
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Tornar-se africano livre:


uma condição jurídica é capaz de homogeneizar um grupo?

JULIANA SANTOS DE LIMA


Mestranda do PPGH-UFF Bolsista Capes

Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e


nem todos gostavam da escravidão. [...] A fuga repetia-se, entretanto.
Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas
comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade.

[...] Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho
levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o
nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a
quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa:
"gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação".
(Machado de Assis, Relíquias da casa velha, Pai contra mãe, 1906,
p.114)

Em seu conto Pai contra mãe, Machado de Assis, tece uma rígida crítica a
sociedade brasileira que durante muito tempo manteve como base a lógica escravista. E
nesse sentido, a fuga de escravos era constante, bem como a reincidência. Desta forma,
era necessário investir em ferramentas para reaver sua propriedade, habitualmente
informava-se sobre a fuga nos periódicos da cidade.
Como um bom observador social, não se fez despercebido, a Machado de Assis,
o comércio ilegal de escravos, após a proibição do tráfico negreiro em virtude da
promulgação da lei de 7 de novembro de 1831. Nessa perspectiva, o conto tem muito em
comum com nosso objeto de pesquisa. As diretrizes da legislação anti-tráfico deixavam
expressos o impedimento da importação de escravos, bem como, asseguravam a liberdade
aos eventuais africanos que entrassem em portos brasileiros. Contudo, a lei de 1831 não
foi suficiente para barrar completamente o tráfico, que acontecia clandestinamente. Como
assegura Sidney Chalhoub, mais de 750 mil africanos entraram ilegalmente no Brasil nas
duas décadas seguintes à aprovação de Lei de 1831. (CHALHOUB, 2012, p.42).
Por ora, focaremos nossa análise nos africanos que foram trazidos para o Brasil
após a proibição do tráfico de escravos e apreendidos pelas autoridades. Eles compuseram
a ambígua condição jurídica dos africanos livres. Essas pessoas foram submetidas a
tutelas de repartições públicas ou particulares, devendo cumprir um período de 14 anos
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1701
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de trabalho compulsório841, como uma forma de aprendizagem para que pudessem estar
preparados para a “plena liberdade”, quando fossem emancipados. Ou seja, gozavam de
uma liberdade vigiada e tutelada. (MAMIGONIAN, 2005, p. 391)
Thompson nos alerta sobre o risco das “generalizações universais da “cultura
popular”, pois elas “se esvaziam”, e neste âmbito percebemos que com os africanos não
é diferente, é necessário compreender cada elemento que constitui este grupo, não só
juridicamente, mas na diversidade cultural e étnica do qual é composto. “E na verdade o
próprio termo “cultura”, com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair
nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes
dentro do conjunto”. (THOMPSON, 1998, p. 17)
A condição jurídica que conferia a esses africanos o status de livres, os atribuía
uma nova identidade em detrimento de suas raízes e culturas. Passaram a ser, todos eles,
africanos e livres, independentemente do lugar de onde vinham, da idade que possuíam,
da religião que seguiam, e para além disto, sua liberdade estava condicionada à vontade
de outrem, o que caracterizava a precariedade desta liberdade842. (CHALHOUB, 2012,
p.228;)
A noção de grupo de procedência criada por Mariza Soares nos faz refletir sobre
as identificações construídas pelo tráfico. Segundo a autora, “a procedência é uma forma
de identificação atribuída, que o próprio grupo internaliza, passando então a se
reorganizar segundo seu formato” (SOARES, 1998, p.117). Esta dita procedência por
vezes não esteve atrelada a origem do africano de fato. Esta identificação funcionou como
um grande guarda-chuva étnico, que abrigou dentro de uma nomenclatura povos diversos.
Nessa abordagem, a ênfase recai sobre a experiência do indivíduo na diáspora, e
não apenas em bases culturais que pudessem ter sido trazidas da África e mantidas
intocadas nas Américas. As identidades são, dessa forma, produzidas na diáspora. Como
enfatizado por Juliana Farias, Flavio Gomes e Carlos Soares, categorias como “africano”,
“negro” e “nação”, que até o momento do apresamento pelo tráfico não eram conhecidas

841
De acordo com as disposições do Alvará de 26 de janeiro de 1818.
842
A precariedade da liberdade institucionalizava-se nos modos de atuação do poder público, em especial
de autoridades locais de várias espécies, tais como a polícia, juízos de paz, juízos municipais
(CHALHOUB, 2010, p.24)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1702
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

pela maioria das populações da África, passam a existir. Produzia-se o escravo e


inventava-se o africano, da mesma maneira que nascia o africano livre, fruto das
identificações da diáspora. (FARIAS; GOMES; SOARES, 2005, p.8).
Assim, preconizaremos analisar as especificidades do grupo, evitando uma única
concepção que diga respeito a uma cultura global dos africanos livres, respeitando sua
pluralidade, seus conflitos e embates. No qual, este grupo complexo e misto estava ligado
pela liberdade limitada que lhes foi atribuída pela Lei.
Compreender a distinção jurídica entre escravos, africanos livres e libertos, não
significa separá-los do convívio social, muito pelo contrário, nos interessa compreender
para além dos atributos de sua condição jurídica. Trazendo para o centro da nossa
discussão suas vivências e as zonas de confluência que possibilitaram as trocas de
experiências e construção de redes de sociabilidade. Entre as fronteiras da escravidão e
da liberdade, tais personagens eram agentes de sua própria história, sendo nossa intenção,
recompor os retratos deste protagonismo (CHALHOUB, 2010, p.7).
As páginas de jornais se mostraram campos férteis e dispostos a dar subsídio ao
historiador para elucidar como era o modo de vida dos africanos livres, como seus
concessionários os viam, e o que os próprios africanos demonstram saber do seu status
diferenciado, nos mostrando as estratégias, e formas de resistência criada por eles durante
a tutela.

O interesse pelas representações imagéticas dos diferentes africanos, os


tipos, as etnias, as roupas, cabelos, gestual não foi concretizada apenas
nas gravuras, desenhos e fotografias oitocentistas. Nos anúncios
registra-se também o interesse e certa atração pelo escravo em
descrições que incidem sobre a visualidade e a exteriorização dos
códigos sociais. (STOLZE, 2012, p.363)

Através dos anúncios de fugas de africanos livres encontrados nos periódicos


Diário do Rio de Janeiro e Jornal do Comércio, é possível perscrutar biografias, com
base no que o africano deixou-se revelar a quem estava a sua volta, lhes conferindo não
só o status de livre, mas suas características físicas, sua personalidade, sua idade, suas
preferências de nomes e nações a que se identificavam. Em sua maioria, os anúncios eram
bem curtos. Cabendo reafirmar sua expressividade e sua linguagem própria, que as vezes
parece imitar a oralidade, apesar do seu poder de síntese.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1703
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O ano de 1850 é um marco na abolição do tráfico de escravos. Em meio aos


trâmites legislativos e jurídicos, as acirradas discussões na Câmara e a pressão da Grã-
Bretanha sucedeu-se a proibição definitiva do comércio de escravos. Com a sanção da
Lei Eusébio de Queiróz de 4 de setembro deste ano, ficou previsto punição àqueles que
praticassem o crime de tráfico de escravos, e estendia também para os cúmplices do
comércio ilegal. A promulgação desta lei, não continha teor mais drástico que as outras
legislações, mas, sim uma nova postura governamental frente a proibição. “Não por
acaso, a segunda proibição do tráfico alterou completamente a tramitação dos processos
judiciais. [...] o governo procurava responder definitivamente às acusações de
conveniência com os traficantes por retirá-los da alçada das comissões mistas anglo-
brasileiras” (RODRIGUES, 2000, pp.130-131)
Enquanto os magistrados decidiam o que fazer para barrar definitivamente o tráfico,
nos jornais, vimos que os africanos, provenientes de tal prática ilegal, vislumbravam outros
meios para livrar-se da precária liberdade ao qual eram submetidos. Agindo como um sujeito
de suas escolhas, nos deparamos com a história do africano livre Henrique, que na verdade,
preferia ser chamado de Joaquim, e assim protagoniza esta análise por ocasião de sua fuga,
que não era a primeira, e tão pouco seria a última.
Os anúncios de fuga eram permeados por descrições que se assemelham a retratos
falados, pois seus dados poderiam auxiliar a identificação do suspeito em via pública
(GALEANO, 2012, p.729). Desta forma, Henrique é descrito como um homem alto, com
pele bem escura, chamado de “retinto”, tinha “ponta de barba” e em uma das pernas,
acima do tornozelo, um grande “formigueiro”.
Cabe salientar que, estes anúncios eram feitos pelos concessionários dos africanos,
desta forma, as informações neles contidas podem não refletir na autentica identidade, ou
características que eram retratadas, mas sim, como eram vistas por seus tutores. Portanto, é
preciso problematizar esse discurso, buscando entender suas entrelinhas.
Tanto na coleta de dados etnográficos quanto na de elementos para
compor um retrato falado o pesquisador/perito, assim como o
informante/testemunha vão descrever o evento usando códigos
simbólicos e as representações apreendidas em seu sistema cultural. Por
isso é de suma importância o perito consiga perceber como os
preconceitos vão construir estes elementos, é o descortino da
subjetividade semiótica. (REIS, 2008, p. 18)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1704
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

É possível delinear melhor essa complexidade na descrição das características


realizadas pelo olhar do outro sobre o africano, no anúncio de fuga de Dionízia, Crisogno
e Mathias:

Fugiu da casa n.97 da rua do Lavradio, a africana livre de nome


Dionízia, nação Benguela, confiados os seus serviços ao major Luiz
Gonzaga de Moura; tem os sinais seguintes: alta fula, olhos grandes,
pés bastante grandes e mal fritos, e pele dos mesmos mui grossa e
esbranquiçada, e está lhe nascendo um lombinho por cima do olho
esquerdo, tem um dedo da mão direita com uma unha arruinada e traz
os cabelos grandes, à moda; levou toda sua roupa, e mais alguma que
não lhe pertence, em um baú, e ainda não se pode saber se roubou mais
alguma coisa. Protesta-se desde já contra quem a tiver acoitada pelas
perdas e danos que tiver causado; assim como roga-se aos Srs. Pedestres
de polícia empregarem todas as diligencias para a captura da mesma
africana, que serão bem recompensados pelo seu trabalho. (DRJ:
18/10/1850, p.4) (Grifo meu)

O major Luiz Gonzaga de Moura buscou lembrar traços bem detalhados para
recompor o retrato falado de Dionízia, africana livre, sobre sua tutela. Retratando-a como
uma mulher alta, de cor fula, com olhos grandes e pés bastante grandes, mal feitos e com
a pele dos mesmos muito grossa e esbranquiçada, além disto, estava nascendo um
“lombinho” por cima do olho esquerdo. Contudo, tinha os cabelos grandes “à moda”.
Essas características podem denotar qual era a imagem que o tutor conseguia reter mesmo
sem a presença da africana, pode ser uma tentativa de individualizar através dos defeitos
físicos para que possa ser reconhecida caso seja vista nas ruas. Mas também, demonstra uma
certa depreciação, quiçá, com intenção de incentivar a devolução, pois não possuía muito
valor, o que fica subentendido com o protesto “contra quem a acoitar”. Além de expor
possíveis desvios de caráter, como sendo susceptível ao roubo, quando o anunciante expressa
que a africana levou em baú toda a sua roupa e mais alguma que não lhe pertence, deixando
em aberto a possibilidade de ter roubado outras coisas.
No caso do africano livre Crisogno a descrição é ainda mais pejorativa:

Fugiu da rua d’Ájuda n.64, no dia 28 de janeiro, o africano livre de


nome Crisogno, com os sinais seguintes: baixo, representa ter 40 anos
pouco mais menos, gordo, muito feio, beiços grossos e pés estragados;
quem o apanhar e levar ao n. acima será recompensado, e protesta-se
usar dos meios judiciais contra quem o tiver acoitado. Fonte: (DRJ:
20/02/1849, p.4) (Grifo meu)

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1705
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Consta que o africano livre de aproximadamente 40 anos, era baixo, gordo, muito
feio, com beiços grossos e pés estragados. Nesta definição não aparece nenhum ponto
positivo, o que nos faz redobrar a atenção, uma vez que nos preocupamos em reconstruir
a identidade desses africanos, não sendo possível confiar piamente no que lemos. Ao
invés disso, é preciso sempre questionar qual era a real intenção de quem escreve, que no
caso, é reaver os serviços que lhes são prestados pelo africano.

O fato de Mathias ser um africano livre de aproximadamente 9 anos, ainda boçal


e ter empreendido em uma fuga, nos levanta uma série de questões, sobretuto, nos
perguntamos com quantos anos esse africano chegou em portos brasileiros? Desde
quando estava servindo ao seu tutor? E como conseguiu fugir sem conhecer
geograficamente sua região, suas autoridades e a própria língua?
Da rua do Senhor dos Passos n.149, sobrado, fugiu no dia 30 de maio
as 4 horas da tarde o africano livre, Mathias, ainda boçal, nação Congo,
idade presumível 9 anos, marca F no peito direito, muito magro, mãos
e pés bem feitos, cara feia, olhos e beiços grandes, levou jaqueta verde
escura, calça de riscado e camisa de cinta, tudo usado; quem o levar a
cada acima será gratificado. (DRJ: 02/06/1847, p.4) (Grifo meu)

O nome de seu tutor não aparece no anúncio, sabemos apenas que morava no
sobrado da rua Senhor dos Passos, nº 149. Sendo, Mathias, descrito como um africano
livre muito magro, marcado no peito direito com a letra F, possuindo mãos e pés bem
feitos, cara feia, olhos e beiços grandes. Ou seja, nos três casos citados, é possível
perceber que os africanos são descritos à revelia de sua vontade. Deixando claro que a
imagem apresentada é um retrato falado, e não um espelho das concepções do africano
sobre si mesmo, mas, aquilo que o olhar do outro conseguiu enxergar.
No anúncio de fuga de Mathias, sobretuto, encontramos um leque de
possibilidades, pois além de sua pouca idade, foi descrito como boçal, ou seja, aquele que
ainda não tinha o domínio da linguagem, não sabendo falar quase nada de português. É
interessante notar, que a categoria de boçal geralmente está relacionada a ideia de
transição e não algo definitivo. O termo “ainda boçal” reforça a ideia de que logo
passariam a ser ladinos, isto é, seriam capazes de se comunicar com fluidez, entendendo
e fazendo-se entender através de sua boa habilidade linguística. (STOLZE, 2012, p.360)
E a esta altura, novamente, a história de Henrique, se faz presente. Pois, ao
contrário de Mathias que não compreendia a linguagem imperial, a boa habilidade
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1706
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

linguística Henrique nos impressiona. Sendo classificado como bem-falante, estando


habituado a trocar o nome, para o de seu tutor, Joaquim. Andava com galos brigadores e
jogos de búzios843, também andava calçado, pois dizia-se forro.
Seus serviços foram concedidos a Joaquim Antonio de Oliveira que residia na
Cidade Nova, na Rua de São Pedro nº37. E possuía um estabelecimento de loja de
armador, sabemos sobre seu ofício em uma publicação feita por Joaquim para explicar
que havia aparecido uma pessoa com mesmo nome nos boletins da polícia, preso por
ébrio, porém não se tratava dele, ainda que morasse na mesma freguesia (DRJ:
02/08/1851,
p.3).
Essas informações são muito caras para nós, visto que trazem elementos que
fomentam os anúncios três anúncios sobre a fuga de Henrique. O primeiro de fevereiro
de 1850, onde consta que o africano havia fugido no dia 20 do mesmo mês. O segundo
em setembro de 1851 e o terceiro em março de 1852, porém, o único que consta a data da
fuga é o anúncio de 1850. O que não nos permite afirmar se Henrique foi capturado e
voltou a fugir, ou se Joaquim Oliveira postava outros anúncios pelo fato do africano não
ter sido encontrado. De toda forma, percebemos indícios de que poderia se tratar de novas
fugas, pois a descrição vai se tornando mais densa, com novos elementos, além de que a
ferida que o africano possuía em uma das pernas, no primeiro anúncio aparece como
sendo “um grande formigueiro”, no segundo consta que “inda a pouco curado”, já no
terceiro faz menção aos “sinais de um formigueiro”.
O anúncio publicado em 1852, mostra características bastante inusitadas sobre
este caso. Henrique, agora além de mudar o nome para Joaquim, também era muito
conhecido por “Joaquim Armador”. Não sabemos ao certo o que significa nesse contexto
a titulação de “armador”, se ela fazia menção a um comportamento ardiloso do africano,
que pode ser compreendida como tal se forem conectadas com as informações de que,
Henrique, se intitulava forro, mudava de nome, era adepto a “capoerage” e quando dormia
“esta[va] com os olhos abertos”. Entretanto, ao conhecermos a profissão de seu
concessionário, nos perguntamos se a forma como era “muito conhecido”, “Joaquim

843
No anúncio de fuga de 1852, o jogo de búzios torna-se apenas “jogo”.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1707
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Armador”, correspondia a imitação do ofício de seu tutor, que possivelmente possa ter
aprendido durante a tutela.
O africano livre Henrique, conseguiu deixar na memória de seu tutor, mais do que
seus defeitos físicos, expressou suas vontades e opções, mostrando como gostava de ser
chamado (ou como fazia para não ser facilmente reconhecido), assim como traços de sua
cultura, como a capoeira e o jogo de búzios, além da sua aptidão por andar com galos de
briga, fazendo que seu retrato falado mostrasse suas cores, marcas e falas. (STOLZE,
2003, p.36)
O que denota que o africano era perspicaz e atroz, deixando transparecer que
também havia uma relação de medo, em dois dos anúncios o título faz referência a um
“aviso aos senhores pedestres” que o africano estava fugido. A adesão a prática de
capoeira, pode ter acentuado este quesito, pois a capoeira era uma combinação de dança
e luta, utilizada pelos escravos como uma forma de defesa, jogo e manifestação cultural.
Acredita-se que este elemento cultural tenha sido trazido ao Brasil pelos angolanos, e
logo, a capoeragem, como era conhecida, contagiou toda a população escrava. O objetivo
era criar artimanhas para distrair, desequilibrar e derrubar o adversário, também eram
utilizadas facas ou navalhas. (SOARES, 2007, p.270)
Os praticantes desta luta-dança eram fortemente reprimidos pela polícia, que
constantemente decretava prisão aos seus praticantes. Na sessão de repartição de polícia,
que é anexada ao periódico Diário do Rio de Janeiro, encontramos inúmeros casos que
comprovam essa vigilância e repressão. E as estratégias para esconder esses “elementos
utilizados na capoeira” e driblar a polícia eram bem vastas. Em maio de 1851, o africano
livre Domiciano foi preso a ordem do subdelegado da Freguesia de Santa Rita, por ser
encontrado uma navalha na barba (DRJ, 06/05/1851, p.3). Já em 1856, Luiz, africano
livre foi preso na Freguesia de Santana por praticar capoeira e o uso de armas proibidas
(DRJ,07/12/1856, p. 2). De igual forma, o africano livre de nome Ouvidio foi preso pela
acusação de “juntamento” e “motim”, diante da repressão essas pessoas percebem que
“precisavam aprender e evitar movimentos e práticas culturais que colocassem em perigo
a liberdade limitada que lhe cabia” (CHALHOUB, 2012, p.233). A capoeira transpõe uma
ressignificação da cultura africana, também faz menção a um “ato de rebeldia

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1708
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

permanente, ainda que ele não se dirigisse contra a instituição do cativeiro”. (SOARES,
2007, p.272)
Nos três anúncios que relatam as fugas de Henrique, também há referências de
uma enfermidade do africano, um “formigueiro”, que ora é descrito na perna direita, ora
na perna esquerda. Esta doença caracterizava-se por uma úlcera que acomete as pernas, e
seu nome popular é formigueiro. Podendo a ferida se estender ou cicatrizar e voltar a
aparecer em outro lugar. Podendo suas causas ser distintas:

Ás vezes é uma ferida simples, que não se cicatriza, porque o doente


não guarda repouso e anda sem cessar. Outras vezes provém das veias
varicosas que se desenvolvem na perna, e de algum obstáculo na
circulação. Enfim, pôde resultar do vicio syphilitico, escrophuloso,
scorbutico e dartroso. (Grifo meu) (Pedro Luiz Napoleão Chernoviz,
Diccionario de medicina popular e das Sciencias accessarios para uso
das famílias, 1890)

De forma geral, o tratamento desta doença está intrinsecamente relacionado com


o repouso, evitando andar, e deixando a perna em uma posição horizontal. Em 1850, o
anunciante descreve que por conta do grande formigueiro, Henrique, tinha a perna
enferma mais grossa que a outra. Em 1851 parece haver apenas cicatrizes do formigueiro,
que tinha sido curado a pouco tempo. E no ano seguinte aparece com “sinais de
formigueiro”, a linguagem empregada no anúncio não é técnica, e não nos permite
delimitar com precisão qual o tipo exato do formigueiro, ou se realmente foi curado. Mas,
certamente, o quadro de Henrique, foi agravado pelo que tudo indica, por seu
comportamento, que fazia tudo, menos repousar.
Após o anúncio de 1852, não obtivemos mais notícias sobre o paradeiro de Henrique,
quer por outros anúncios de fuga ou sendo encontrado. Entretanto, sua história não termina
aqui, em 28 de julho de 1852 na seção de “arrematações” do Diário do Rio de Janeiro,
descobrimos o falecimento de seu tutor, Joaquim Antonio de Oliveira.
Arrematações

Quinta feira, 29 do corrente, em praça do Juiz dos órfãos e ausentes,


serão arrematados dois escravos, móveis, roupas, e os objetos da loja
de vidros e de armador, pertencentes a herança jacente do finado
Joaquim Antonio de Oliveira. A praça terá lugar a porta da residência
do Exmº juiz, em lotos, podendo ver-se a divisão deles em o cartório do
escrivão Vianna, ou no dia da praça das 8 horas em diante na rua de S.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1709
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Pedro da Cidade Nova n.14, onde poderão também ver-se todos os


objetos, que tem que ser arrematados. (DRJ: 28/07/1852, p.4)

Entre os bens a serem arrematados havia “dois escravos, móveis, roupas e os


objetos da loja de vidros e de armador pertencentes a herança jacente do finado”. Mas,
nenhum vestígio sobre o africano livre que estava em sua tutela. Nos indagamos acerca
da possibilidade do escrivão que redigiu a publicação, ter considerado o africano livre
como um dos escravos. Mas em todo caso, saber que existiam dois escravos que
conviviam com o africano livre Henrique, apenas corrobora com a nossa assertiva de que
as pessoas dessa sociedade se relacionavam e estabeleciam redes de sociabilidade
independentemente de suas condições jurídicas.

Considerações Finais
Nesta análise buscamos elucidar as diferentes perspectivas sobre a caracterização
do nosso objeto: os indivíduos que foram trazidos do continente africano para serem
escravizados quando o tráfico de escravos já era considerado, e assegurado por lei, uma
prática ilícita. E, portanto, deveriam ser considerados livres.
Consideramos, no entanto, que os africanos apesar de serem livres não gozavam
plenamente de seus direitos. Sua força de trabalho foi explorada, e sua liberdade
precarizada. Entender a categoria jurídica dos africanos livres por esta perspectiva nos
ajuda a problematizar as diferentes formas de trabalho do século XIX, e as origens do
trabalho livre. Reservando-lhes uma condição muito peculiar, uma vez que não eram
escravos, mas ao mesmo tempo, viviam em constante vigilância e tutela.
Utilizando como fonte os anúncios de fugas de jornais, nos propomos a perscrutar
as biografias de alguns africanos livres, na intenção de ir além da limitação de sua
liberdade. Alinhavando o que foi possível interpretar através dos símbolos e sinais
expressos em suas atitudes.
Por meio da reconstrução da trajetória do africano livre, Henrique, podemos
perceber que este africano, assim como muitos outros, não só aprendeu o idioma, mas
também criou estratégias para ludibriar o sistema, seja trocando de nome para Joaquim,
intitulando-se forro ou andando calçado, nas palavras do anúncio tornou-se conhecido por
“Joaquim Armador”, aquele que “dorme de olhos abertos”. Além disso Henrique, ou
Joaquim, como gostava de ser chamado, nos mostra que conhecia bem a região, as

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1710
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

autoridades, era muito arisco e criou suas próprias estratégias para enganar e fugir do
julgo da tutela, deixando fincados os seus elementos culturais, onde nem mesmo a doença
e a dor foram capazes de lhe fazer recuar.
Uma tarefa complexa, de interpretar as entrelinhas dos anúncios, analisando o
discurso do dominador, para ouvir a voz do dominado. Procuramos compreender o modo
de vida desses africanos, entendendo as especificidades destas pessoas, nos esforçando
para evitar as generalizações, encarando suas identidades como plurais e não plenamente
explicadas e decifradas com a denominação de africanos livres. Sublinhando a
necessidade de outras pesquisas que contemplem a categoria dos africanos livres como
mista e heterogênea, esperamos assim, ter contribuído com a historiografia do tema que
vem avançando nos últimos anos.

Referências Bibliográficas

Fontes

Hemeroteca Digital

Diário do Rio de Janeiro 26/02/1850, p.4;


Diário do Rio de Janeiro 04/09/1851, p.4
Diário do Rio de Janeiro 02/03/1852, p.4
Diário do Rio de Janeiro 20/02/1849, p.4
Diário do Rio de Janeiro 18/10/1850, p. 4
Diário do Rio de Janeiro 02/06/1847, p.4
Diário do Rio de Janeiro 02/08/1851, p.3
Diário do Rio de Janeiro 28/07/1852, p.4

- Coleção de Leis do Brasil (1830-1890)


http: // www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio

Bibliografia

ALMEIDA, Marcos Abreu Leitão de. As línguas centro-africanas no Atlântico Negro


(1831-1850c.). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo,
julho de 2011, p. 6.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1711
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

AMANTINO, Marcia. Os escravos fugidos em Minas Gerais e os anúncios do Jornal “O


Universal” – 1825 a 1832. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 12, n.2, p. 59-74,
2006.
ASSIS, Machado de. Pai contra mãe. In: Páginas Recolhidas; Relíquias da casa velha;
edição preparada por Marta de Senna. São Paulo: Editora VMF Martins Fontes, 2008.
BETHELL, Leslie. O Brasil no mundo. In: A construção nacional: 1830-1889, volume 2
/ coordenação José Murilo de Carvalho. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. (História do
Brasil Nação: 1808-2010 ; 2).
CAVALHEIRO, DANIELA. Africanos livres no Brasil: tráfico ilegal, vidas tuteladas e
experiências coletivas no século XIX. Dissertação de Mestrado em História Social,
Seropédica, RJ, UFRRJ, 2015.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
_________________. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil
oitocentista. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 2012.
_________________. Precariedade Estrutural: o problema da liberdade no Brasil
escravista (século XIX). História Social, n.19, segundo semestre de 2010.
CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleao. Diccionario de medicina popular e das Sciencias
accessarios para uso das famílias. Sexta edição : Pariz, a. Roger & f chernoviz 7 . Rua
des grands-augustins, 7 1890.
CONRAD, Robert Edgard. Tumbeiros. São Paulo, Brasiliense, 1985
FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos, SOARES, Carlos Eugênio
Líbano. No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX:
tentativa de interpretação antropológica, através de anúncios de jornais brasileiros do
século XIX, de características de personalidade e de formas de corpo de negros ou
mestiços, fugitivos ou expostos à venda, como escravos, no Brasil do século passado. –
4. Ed. – São Paulo: Global, 2010.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1712
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

GALEANO, Diego. Identidade cifrada no corpo: o bertillonnage e o Gabinete


Antropométrico na Polícia do Rio de Janeiro, 1894-1903. Boletim do Museu Paraense
Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, v. 7, n. 3, p. 721-742, set.-dez. 2012.
LIMA, Ivana Stolze. Escravos bem falantes e nacionalização linguística no Brasil – uma
perspectiva história. Est. Hist., Rio de Janeiro, vol. 25, nº 50, p. 352-369, julho-dezembro
de 2012.p. 352-369
LIMA, Ivana Stolze. Língua Nacional, histórias de um velho surrão. In: CARMO, Laura
e LIMA, Ivana Stolze (Org.). História Social da Língua Nacional. Rio de Janeiro: Edições
Casa de Rui Barbosa, 2008. p. 215-245
MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Do que o Preto Mina é Capaz: etnia e resistência entre
africanos livres. Afro-Ásia, 24, pp.71-95, 2000.
___________________________. Revisitando a transição para O Trabalho Livre: a
Experiência Dos Africanos Livres. In: Manolo Florentino "Tráfico, Cativeiro e
Liberdade". Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. 5ªedição, São Paulo: Editora Hucitec,
2004.
MOREIRA, Alinnie Silvestre. Liberdade tutelada: os africanos livres e as relações de
trabalho na Fábrica de Pólvora da Estrela, Serra da Estrela/RJ (c. 1831-c.1870).
Dissertação de Mestrado em História Social da Cultura, Campinas, SP, Unicamp, 2005.
MOURA, Zilda Alves de. “Africanos livres no Mato Grosso: experiências familiares e
trabalho”. Anais do 6º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional.
Florianópolis, UFSC. Maio de 2013.
REIS, Sérgio Lopes. A natureza mista do retrato falado: método de investigação e meio
de prova. Brasília: UNIEURO. (Monografia)
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de
africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp / CECULT, 2000.
SOARES, Luiz Carlos. O “Povo de Cam” na Capital do Brasil: A escravidão Urbana no
Rio de Janeiro: Faperj – 7Letras, 2007.
SOARES, Mariza de Carvalho. Mina, Angola e Guiné: Nomes d’África no Rio de Janeiro
setecentista. 1998.
SOUSA, Gustavo Pinto de. Africanos livres. 1ªed. Rio de Janeiro : Multifoco.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1713
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.


São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1714
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Charles Perrault e a questão da esfera pública durante a Querela dos Antigos e dos
Modernos844
JULIANA TIMBÓ MARTINS
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Bolsista CAPES
Introdução
Segundo o sociólogo alemão Jürgen Habermas, a esfera pública, tal qual
apresentada pelo filósofo Immanuel Kant (1724-1804) como um espaço onde pessoas
privadas exercem o uso público da razão discutindo questões diante de um “conjunto do
público que lê”, teve sua emergência datada de meados do século XVIII, mais
especificamente, a partir do afastamento entre o Estado e a sociedade civil e da crescente
produção de impressos que cada vez mais autônomos em suas ideias teriam dado início a
formação de uma opinião pública que buscava exercer certa influência nas questões
políticas, sociais e culturais da época (KANT, 2016, p.3).
Contudo, a análise dos discursos literários e ideias do poeta francês Charles
Perrault (1628-1703) produzidas durante a Querela dos Antigos e dos Modernos do século
XVII, uma série de debate entre intelectuais que mobilizou toda a Academia Francesa e
algumas parcelas da sociedade, bem como o estudo de Joan DeJean sobre o conflito de
letrados, nos levam a questionar a afirmação de Habermas. Ora, ambos os autores, tanto
o poeta francês quanto a historiadora estadunidense, nos fazem acreditar que nas últimas
décadas dos Seiscentos uma esfera pública, composta não somente por burgueses,
começava a se configurar em torno dos cafés franceses, onde tanto questões referentes à
querela quanto acerca da produção artística e letrada da época começavam a ser debatidas,
fazendo surgir uma opinião pública e crítica literária que deu bases para a constituição da
primeira esfera pública no sentido kantiano já nesse período.

A esfera pública em Kant e Habermas


Buscando responder a pergunta sobre O que é o Esclarecimento?, em 1783
Immanuel Kant levava à público sua resposta para a questão. No texto, o filósofo

Este ensaio foi produzido como trabalho de conclusão da disciplina “Estado e Revolução: conceitos e
844

debates políticos nos séculos XVII, XVIII e XIX”, ministrada pelo prof. Dr. Fabiano Vilaça e pela profa.
Dra. Bruna Soalheiro no Programa de Pós-Graduação em História da UERJ no primeiro semestre de 2017.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1715
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

prussiano defendia de forma direta e clara o esclarecimento enquanto a saída do homem


de sua minoridade pela qual ele próprio é responsável. Para o autor, a minoridade não
proveria da falta de entendimento do homem, mas sim de sua negação, devido a preguiça
e covardia, ao uso da razão a partir de seus próprios julgamentos e sem a influência de
tutores. Nesse sentido, para Kant, apenas a prática do livre pensamento poderia libertar o
homem da minoridade a qual ele se impôs. Por sua vez, tal liberdade deveria ser exercida
inclusive e principalmente através daquilo que chamou de “uso público razão”, entendido
na concepção kantiana como a livre expressão de sábios entre um “conjunto do público
que lê” (KANT, 2016, p.3).
O uso público da razão se oporia ao uso privado da mesma, não incentivado pelo
filósofo uma vez que para ele a esfera privada era compreendida como o espaço onde um
indivíduo exerce funções alheia à sua pessoa e da qual é encarregado, estando sujeito a
regras de uma determinada instituição ou cargo. Assim, afirmava Kant que, por exemplo,
“seria nocivo que um oficial, tendo recebido uma ordem de seus superiores, ponha-se
durante seu serviço a raciocinar em voz alta sobre a conveniência ou utilidade dessa
ordem”, cabendo a ele apenas obedecer (KANT, 2016, p.4). Logo, a esfera pública,
compreendida por Kant como o espaço onde um erudito possui a liberdade ilimitada de
discutir com o público suas ideias, seria, portanto, o lugar do exercício do esclarecimento
e do uso público da razão, posto que nele seria possível o debate livre entre homens e,
consequentemente, a saída desses da minoridade através do rompimento com a tutela de
terceiros.
Adotando a ideia de uso público da razão de Kant, Jürgen Habermas em
Mudança estrutural da esfera pública (2014) nos ajuda a compreender melhor a gênese
e consolidação da esfera pública. Considerando a esfera pública burguesa como uma
categoria sociológica e histórica, o sociólogo propõe um estudo desse objeto a partir de
suas bases sócio-históricas, desde sua origem na Antiguidade até a Modernidade, período
onde as ideias habermasianas e kantianas de esfera pública começam a convergir.
Assim, iniciando sua investigação com a historicização dos conceitos
norteadores de sua pesquisa, Habermas afirma que as categorias de público e privado
tiveram sua origem na Grécia Antiga, onde a esfera privada era constituída como o espaço
de exercício do poder do pater familias sobre sua esposa, filhos e escravos, enquanto a
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1716
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

esfera pública era compreendida como o espaço onde esse patriarca, enquanto homem
livre, detinha o direito de exercer sua liberdade de forma deliberativa.
Avançando pelo período da Idade Média, Habermas afirma que a tentativa
precária de aplicação dos preceitos do direto romano nas relações jurídicas de dominação
e vassalagem feudais acabou por não deixar indícios de que, de fato, tenha havido uma
distinção entre a esfera pública e a esfera privada no medievo. Nesse sentido, tendo um
senhor feudal a posse privada de suas terras, e por isso o direito de dominação doméstica
sobre os servos que a elas estão presos, não há separação entre a esfera pública e o
domínio privado. Ora,
se entendermos a terra como a esfera do público, então estamos tratando
o poder exercido na casa e pelo senhor como um poder público de
segunda ordem, que, certamente, é um poder privado em vista da terra
a qual está subordinado, porém, um outro sentido, não é privado se
considerarmos a ordem moderna do direito privado. Assim, parece-me
mais esclarecedor entender que as capacidades de domínio “públicas”
e “privadas” se fundem em uma unidade indivisível, de modo que
ambas resultam de um poder único, estão presas à terra e ao solo podem
ser tratadas como direitos privados legítimos. (BRUNNER apud
HABERMAS, 2014, p.99)
Contudo, para o autor, o conceito de público já era utilizado no medievo também
para definir aquilo que era destinado ao uso comunal. Por sua vez, privado era
compreendido como aquilo de pertence ou posse particular. Desse modo, Habermas nos
explica que o senhor feudal, enquanto vassalo detentor de certo status, seria um elemento
neutro em relação aos critérios de público e privado no período. Entretanto, tal senhor
também seria um legítimo representante do poder conferido por seu suserano, sendo,
portanto, a personificação de um poder superior que se apresenta diante dos demais
publicamente. Para o autor, essa seria então a origem do que chamou de “esfera pública
representativa”, que se constituiria não como uma esfera de publicidade, mas sim como
a representação de uma dominação diante do povo, e não para o povo (HABERMAS,
2014, p.103).
Na Modernidade, por sua vez, a esfera pública representativa teria se mantido,
porém, agora nas cortes dos príncipes onde grandes cerimônias eram realizadas para
demonstrar o poder do anfitrião. De acordo com o estudo de Habermas, foi na corte de
Luís XIV que a esfera pública representativa atingiu sua mais elevada concentração

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1717
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

cortesã. Entretanto, nesse mesmo período a esfera pública representativa já se encontrava


em decadência devido ao capitalismo mercantil. Isso porque com o processo cada vez
mais acelerado de movimentação de mercadorias e informações, que passam a não se
basearem mais em uma economia doméstica fechada, as relações de dominação
estamentais antigas começam a se dissolver. Ademais, tem-se início certa
“nacionalização” da economia das cidades, onde o Estado, diante de sua crescente
necessidade financeira, torna-se aparato fiscal e a administração pública das finanças o
cerne de sua gestão. Desse modo, aquilo que Habermas denominou de esfera pública
representativa se dissolve dando lugar para uma nova esfera: a esfera do poder público,
agora sustentada pelas competências do aparelho estatal.
A modificação da esfera pública representativa para a esfera do poder público
no contexto do capitalismo mercantil do século XVIII, consequentemente, passa a se
refletir também no vocabulário da época. Destarte, Habermas percebe em seu estudo que
as palavras destinadas ao conceito de privado, tanto na Alemanha quanto na França e
Inglaterra, já possuem o sentido de “sem cargo público” no período. Nessa lógica, o uso
do conceito público esboça uma compreensão cada vez mais latente do Estado e suas
instituições como um “poder público”, enquanto privado passa a se referir aquilo que, por
não ter vínculo com o Estado, não possui participação nesse mesmo poder. Assim, público
se torna sinônimo de estatal, enquanto as pessoas privadas, submetidas ao monopólio
legítimo da violência do Estado e sua administração, formam o ente destinatário das ações
do poder público (HABERMAS, 2014, p.121).
Por fim, Habermas conclui que somente com a consolidação da sociedade civil
burguesa e o desenvolvimento de uma impressa que, paulatinamente, deixa de servir a
administração pública e passa a privilegiar a escrita de suas próprias ideias e
posicionamentos, uma esfera pública burguesa começa a se delinear. Isso porque com a
crescente produção de impressos e periódicos, agora mais autônomos em suas ideias, tem-
se início a formação de uma esfera crítica que busca compelir “o poder público a se
legitimar diante da opinião pública”, composta majoritariamente por pessoas cultas dos
quais estão inclusos uma nova camada de burgueses que não se destinam mais
exclusivamente a funções mercantis (HABERMAS, 2014, p.134). Uma vez apropriada
pela sociedade civil, tal esfera crítica onde se formaria uma opinião pública é denominada
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1718
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

por Habermas como esfera pública burguesa, espaço onde pessoas privadas discutiriam
diante de um público composto por pessoas privadas questões referentes a política pública
a fim de influenciar o poder decisório das autoridades, tal qual no conceito de esfera
pública apresentada por Kant em 1783.
Em síntese, para Habermas é a partir do afastamento da sociedade civil e do
Estado que a esfera pública burguesa começa a se delinear em oposição a esfera privada.
Esse processo de apartamento teria se intensificado também com a constante
decomposição das instituições feudais a quais a esfera pública representativa estava
atrelada, como a Igreja, o principado e a nobreza. Desse modo, a centralização da
autoridade política e econômica nas mãos dos Estados Modernos, bem como as mudanças
na composição da classe burguesa, teriam contribuído para uma maior conscientização
da distinção entre uma sociedade civil, composta por pessoas privadas sem poder de
decisão nas ações do Estado, e o poder público enquanto detentor exclusivo do poder de
decisão sobre a política. É, portanto, diante da consciência da sociedade civil como
adversária do Estado que a esfera pública se forja, quando “o interesse público na esfera
privada da sociedade civil deixa de ser percebido apenas pela autoridade e começa a ser
levado em consideração pelos súditos como uma esfera de seu próprio interesse”
(HABERMAS, 2014, pp.130-131).

A questão da esfera pública em Charles Perrault e na Querela dos Antigos e dos


Modernos
O cenário francês de fins do século XVII ficou marcado por um rico e intenso
debate entre intelectuais da Academia Francesa que movimentou toda a República das
Letras e alguns salões nobres, onde a elite se consolidava como tal também a partir do
acesso à cultura. Conhecido como a Querela dos Antigos e dos Modernos, este embate de
letrados opôs, de um lado, aqueles que ainda admitiam a exemplaridade da Antiguidade
na produção artística da época e, de outro, os defensores da legitimidade do moderno, que
viam no século de Luís XIV a grandeza que outrora pertenceu aos antigos e defendiam a
autonomia de cada artista pautado em seu gosto pessoal.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1719
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

É nesse contexto que Charles Perrault, poeta e intelectual burguês, emerge como
deflagrador845 e catalisador dessa disputa cultural e política que colocou em xeque o ideal
de perfeição pautado na Antiguidade e tornou a arte literária francesa a partir de fins do
século XVII cada vez mais diversificada, liberal e moderna. Em meio ao embate, a
literatura foi não apenas objeto de disputa entre modernos e classicistas, visto que o que
estava em jogo era a regulamentação do que era considerado próprio ou impróprio tanto
para produção quanto para publicação, mas se tornou também meio de propaganda para
esses e aqueles. Dessa forma, ao defender que a limitação da produção literária e artística
pautada nos exemplos da era clássica só servia para frear a criatividade e menosprezar os
artistas de sua época, Perrault através de suas obras escritas durante esse contexto
apresentou a seus pares aquilo que acreditava ser o melhor da arte de seu tempo e para a
arte seu tempo, defendendo o que considerava ser moderno.
Assim, publicando suas obras de maior sucesso durante o reinado de Luís XIV,
mais especificamente em meio ao embate entre Antigos e Modernos, Charles Perrault e
suas obras se encontravam imersos numa esfera pública ainda representativa, segundo a
cronologia de Habermas. Todavia, o estudo dos debates em meia a querela, bem como a
análise da historiografia sobre o evento em questão, principalmente da obra Antigos
contra Modernos (2005) de Joan DeJean, nos levam a crer que, apesar da afirmação de
Habermas, tal esfera se encontrava em intensa mutação já em fins do século XVII. Ora,
essa já dava suas fortes demonstrações de que logo culminaria na esfera pública moderna,
entendida tanto pelo sociólogo quanto por Kant como um espaço em que pessoas
privadas, a partir do livre debate, forjam uma esfera crítica onde a opinião pública é
utilizada para dar voz a sociedade civil diante do poder público.
Como aponta Joan DeJean, ao longo do século XVII francês a expressão le
public passou por algumas transformações até atingir seu significado moderno. Assim, a
partir de uma derivação semântica, a expressão que antes era atribuída na definição de

845
Atribui-se à leitura do poema Le siècle de Louis, le Grand, escrito por Charles Perrault e recitado
Academia Francesa em 1687, o estopim do embate entre Antigos e Modernos na França do século XVII.
Escrevendo em comemoração à recuperação de Luís XIV de uma delicada cirurgia, Perrault ousou através
de seu poema comparar o século do monarca francês ao século do imperador romano Augusto, contrastando
de forma passional e parcial o legado artístico, filosófico e científico de antigos e modernos. Foi com a
leitura de seu poema mais polêmico que Charles Perrault encontrou principalmente na figura do historiador
e poeta Nicolas Boileau-Despréaux seu opositor e adversário assumido, dando início, assim, à querela.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1720
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

“um corpo político” ou “o estado”, passa a designar “as pessoas, em geral”, atingindo no
final do século o sentido de “uma audiência”, porém mais voltada para o sentido crítico
do que literário (DEJEAN, 2005, p.61). Contudo, de acordo com a autora, se por um lado,
na querela, a noção do público como audiência crítica apresentou-se para uns como
preocupação, para outros foi concebida como novas possibilidades. Ora, estando a
produção literária e sua recepção no centro do embate em questão, enquanto
Antigos [...] consideravam a literatura um meio de preservação do status
quo, de garantirem que a posição da elite intelectual tradicional francesa
não seria modificada mesmo quando práticas educacionais começaram
mais e mais a serem consideradas prerrogativas do estado francês, e,
portanto, podiam potencialmente abrir-se às tendências
democratizantes. Modernos como Perrault [...] concebiam a literatura
de forma oposta: como o principal meio pelo qual a cultura poderia ser
feita sempre mais pública e através do qual o novo público – mais e
mais diverso em termos de gênero assim como de classe – poderia ser
trazido à principal corrente cultural e encorajado a participar no
desenvolvimento da opinião pública. [Grifos meus] (DEJEAN, 2005,
p.49)

A afirmação da autora nos leva a compreender que no final dos Seiscentos


intelectuais franceses como Perrault já percebiam e debatiam o nascimento de um novo
público que começava a se fazer ouvir através das primeiras manifestações da formação
de uma opinião pública no campo literário. Entretanto, apenas a partir dos conflitos entre
Antigos e Modernos, principalmente com a defesa desses últimos ao direito individual de
interpretação da Arte e da Literatura sem a influência de visões tradicionais e do direito
ao gosto pessoal, que o público passa a despertar o interesse de ambos os lados da arena
francesa no fim do século.
É possível compreendermos o interesse de Antigos e Modernos nessa nova
esfera crítica que se forjava a partir de um novo público posto que o embate de
intelectuais, para além de colocar em disputa as bases das Artes e Literatura do período,
também levantou importantes debates, principalmente por parte dos Antigos, acerca das
consequências que mudanças culturais poderiam causar na sociedade francesa da época,
“criando uma atmosfera de medo em torno do que poderia representar, como retrocesso,
a perda da unidade e a explosão da ordem” (RODRIGUES, 2000, p.260). Não à toa, para
DeJean, o surgimento de um novo público literário além de evidenciar uma verdadeira

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1721
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

mudança no campo social e cultural na França em fins dos Seiscentos, também


evidenciava no “imaginário daqueles membros da antes estável elite cultural que viam as
mudanças como prova de que o mundo como o conheciam – não só a república das letras,
mas a própria república, la chose publique – beirava o colapso” (DEJEAN, 2005, p.65).
Por outro lado, enquanto Antigos viam com temor a possibilidade de não-
pertencentes a elite interferirem em questões culturais, Modernos como Charles Perrault
compreendiam o surgimento desse novo público literário não como uma ameaça à
integridade social e cultural da França. Ao contrário, se distanciando da visão do público
enquanto uma audiência crítica de poder estritamente julgador, os Modernos viam nesse
uma força com potencial beneficente para se apelar e valendo a pena ser conquistada.
Nesse sentido, é possível encontrarmos já em algumas das obras de Perrault publicadas
durante a querela a preocupação com o gosto e a crítica do público, como a exemplo da
primeira edição assinada de seus contos maravilhosos publicados em 1694. Neles, o
escritor francês demonstrava a importância por ele dada a avaliação do público em geral
a sua obra. Assim, ao afirmar que havia lido Grisélidis a alguns colegas da Academia e
que todos haviam feito diferentes críticas ou sugestões à escrita do conto, o autor esclarece
que
Se eu tivesse cedido a todas as diferentes opiniões que me foram dadas
sobre a obra que ora lhe envio, nada teria restado, além do conto seco e
sem adornos, e nesse caso teria sido melhor não o tocar e deixa-lo como
sempre esteve, no romanceiro popular, durante tantos anos. [...] Em
suma, tive o cuidado de corrigir as coisas que eles me mostraram ser
ruins por si mesmas; mas aquelas que, segundo percebi, tinham o único
defeito de não serem do gosto de algumas pessoas talvez um tanto
delicadas, achei que devia deixar como estavam. [...] Seja como for,
achei que deveria consultar o público, que sempre julga bem. Com ele
ficarei sabendo no que devo acreditar e seguirei fielmente seu parecer,
se por ventura eu vier a fazer uma segunda edição desta obra. [Grifos
meus] (PERRAULT, 2012, pp.123-26)
A passagem a cima, retirada de uma dedicatória anexada por Perrault ao fim do
conto, demonstra não apenas a importância dada pelo autor a opinião do público enquanto
uma audiência de pessoas críticas no campo literário, mas também evidencia a
preocupação do escritor em adornar os próprios contos, frutos da cultura popular
transcritos pessoalmente pelo autor, com o objetivo de melhor atender as expectativas de
seus futuros leitores. Robert Darnton (1986) conforma nossa colocação, posto que para o

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1722
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

historiador os contos franceses enquanto narrativas orais retratavam o mundo em sua


forma mais nua e crua aos adultos e crianças camponesas que os cultivaram por tempos
incontáveis. Por esse motivo, uma vez recolhidos no que o autor chamou de “Idade de
Ouro da pesquisa dos contos populares na França no fim do século XVII”, os contos que
nos chegam hoje por obras que se propuseram a transformar em textuais produtos da
cultura oral tiveram que passar por um processo de modificação e adequação ao público
letrado, como no caso de Perrault (DARNTON, 1986, p.32).
Desse modo, acreditando no poder da crítica justa de um público que, em sua
visão, independente da classe era sempre dotado de uma sensibilidade para o que era claro
e de bom-senso, Charles Perrault ousou não apenas defender a liberdade, a força de
inovação do artista e o direito de gosto pessoal em meio ao intenso debate que tomou a
República das Letras francesa; o poeta se permitiu, também, defender a abertura da
própria Academia para um público de diferentes segmentos sociais com base em suas
convicções modernas. Nessa lógica, a disputa pelo público leitor emergente e cada vez
mais diversificado, tanto em classe quanto em gênero846, acabou por suscitar, igualmente,
uma tomada de consciência nos próprios componentes dessa esfera crítica literária em
construção. Ora, os leitores “não os eruditos ou especialistas, mas os leitores comuns –
um verdadeiro público literário –” começaram a perceber “que eram competentes para
decidir que tipo de obras deveriam ser produzidas, e como essas obras deveriam ser
interpretadas” (DEJEAN, 2005, p.94). Bem como Joan DeJean coloca em nota, entendo
aqui por leitores “comuns” aqueles que, mesmo dentro das possibilidades de acesso à
alfabetização na França do século XVII, haviam sido excluídos do processo de leitura e
avaliação das obras literárias. Processo esse que, até as últimas décadas do século XVII,
se manteve restrito às academias e salões nobres onde apenas a aristocracia e alguns
burgueses eram, ao mesmo tempo, os únicos escritores, leitores e críticos literários.

846
Segundo DeJean, as mulheres tiveram um importante papel na criação da primeira esfera pública na
França em fins do século XVII. Para a autora, já no período da querela “as mulheres desempenharam um
papel ativo, por vezes até o mais ativo, na democratização da cultura”. Diferente do que admite Habermas,
para DeJean, o gênero, e não exatamente a classe, pode ter sido um fator determinante para a criação da
esfera pública, tanto a partir das discussões literárias em salões quanto em cafés. Não à toa, para os Antigos,
a maior ameaça em meio a querela não era a de aburguesar o gosto francês, mas sim o potencial de feminizar
tal gosto, uma vez o julgamento pessoal, o direito ao gosto individual e à crítica pessoal, principais anseios
dos defensores da perspectiva moderna, tornou-se durante o conflito sinônimo de julgamento feminino
(DEJEAN, 2005:71/166).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1723
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Em suma, com base nas argumentações de Joan DeJean e nas ideias defendidas
por Charles Perrault no período da querela entre Antigos e Modernos aqui apresentadas,
podemos afirmar que os dois autores, tanto a historiadora americana quanto o poeta
francês, ao evidenciarem em fins dos Seiscentos o nascimento de uma audiência literária
que já estava em vias de forjar uma opinião crítica considerada importante para os autores
da época, como no caso de Perrault, nos levam a questionar algumas considerações de
Habermas quanto a esfera pública no sentido kantiano como um fenômeno burguês
projetado apenas no século XVIII pelo Iluminismo. Ademais, como expõe claramente
DeJean, “a república das letras abriu-se ao debate popular pela primeira vez na França
como resultado de um ímpeto de fin de siècle”, e não a partir dos anos 1730, como propôs
Habermas ao afirmar que a interferência do público nas questões literárias teria sua
origem na Inglaterra no fim do século XVII, chegando a se espelhar no cenário francês
apenas no século seguinte (DEJEAN, 2005, p.71).
Mais ainda, os argumentos de DeJean nos levam a discordar diretamente de
Habermas quando este afirma que “a aristocracia cortesã do século XVII não representa
propriamente um público leitor” devido a manutenção de literatos como servidores, o que
em suas premissas tornava a produção dentro da lógica do mecenato mais “um tipo de
conspicuous consumption do que à leitura séria de um público interessado”
(HABERMAS, 2014, p.154). Para o sociólogo, apenas com a substituição do mecenas
pelo editor nas primeiras décadas do século XVIII um público verdadeiramente
interessado teria emergido e com ele uma legítima opinião pública literária crítica.
Ao fazer tal afirmação, Habermas parece desconhecer o fato de que nas últimas
décadas dos Seiscentos, mais particularmente no contexto da querela, como coloca o
historiador brasileiro Antonio Edmilson Rodrigues (2000), enquanto os Antigos se
detinham aos salões de Versalhes, aristocratas liberais como “os Modernos se lançavam
a um movimento de ação sobre a França, inicialmente buscando os espaços dos cafés de
Paris, nos quais apresentavam suas novas composições, ampliando o espectro de ação de
suas críticas” em uma cidade que já adquiria sua monumentalidade e primazia de capital
(RODRIGUES, 2000, p.269). Ora, como afirma o próprio sociólogo, esses cafés, que
teriam florescido entre 1680 e 1730, no período em questão já eram conhecidos por serem
espaços cujo acesso era livre não apenas àqueles competentes em assuntos literários, mas
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1724
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sobretudo também à membros das camadas de estamentos médios, incluindo artesões e


merceeiros; já se constituindo, portanto, como espaços forjadores de um público que, para
além de burgueses e aristocratas, incorporava desde já as camadas mais medianas da
sociedade francesa entorno das discussões literárias que envolviam tais ambientes
(HABERMAS, 2014, p.145).
Nesse sentido, é inevitável não compreendermos esses cafés, destinados à um
público cada vez mais diversificado em termos de classe, mas também em termos de
gênero com a passagem do século, como uma esfera pública na qual pessoas privadas
debatiam assuntos literários mediante seus próprios julgamentos e que, juntos, já
forjavam uma opinião pública literária. Ademais, nos parece que foi nesses cafés onde o
projeto político e cultural dos Modernos foi implementado com sucesso, uma vez que
nesses espaços de sociabilidade e discussões literárias, tanto a camada média da sociedade
francesa quanto alguns de seus mais ilustres intelectuais, se reuniam em posição de
igualmente para julgar, a partir de seus próprios cabedais, questões referentes a Literatura
e, com o passar dos anos, também assuntos envolvendo a esfera do poder público e suas
deliberações. Seguindo nessa lógica, acredito que podemos, inclusive, ousar dizer que
nesse contexto uma esfera pública moderna já começava a se configurar tal qual no
sentido kantiano, onde o uso público da razão era colocado em prática diante de um
conjunto do público que lê, ou ouve-se ler.

Considerações finais
Em suma, é inegável a importância e riqueza do estudo de Habermas sobre a
esfera pública a partir de seu sentido apresentado por Kant em 1783. No entanto, uma
revisão bibliográfica mais atenciosa às disputas culturais e políticas na França no final do
século XVII torna impossível não questionarmos algumas afirmações feitas pelo autor no
decorrer de sua obra. De fato, o estudo do sociólogo alemão parece se fixar em uma
rigorosa cronologia da evolução da esfera pública até atingir seu sentido moderno. Desse
modo, Habermas entende o contexto histórico aqui debatido apenas dentro da lógica de
uma esfera pública ainda representativa, na qual essa seria uma representação da
dominação de um soberano diante do povo, ignorando a possibilidade de existência de
duas modalidades de esfera pública num mesmo período, uma ainda reclusa a esfera
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1725
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

cortesã e outra já em vias de tomar os espaços públicos, se abrindo como centro de debates
e discussões literárias.
Assim, a cronologia rígida de Habermas, por vezes, não coincide com a análise de
fontes e historiografia ligadas à querela, como no caso de Charles Perrault que já
compreendia nas últimas décadas do Seiscentos a existência de um público dotado de
razão e capaz de julgar, conforme seu próprio gosto, a produção literária de seu tempo.
Igualmente, o surgimento e ascensão dos cafés, onde esse público literário – intelectual
ou não – já se reunia entorno das discussões sobre o assunto, principalmente no contexto
da querela francesa, nos leva a concordar com Joan DeJean quando esta afirma que “o
desenvolvimento de uma cultura pública crítica já tivera lugar antes mesmo do
lançamento do iluminismo” e, mais ainda, “que a esfera pública literária foi, tanto quanto
a esfera pública política, em sua origem, um fenômeno francês”, não tendo se tratado
também de um fenômeno estritamente burguês, como propôs Habermas (DEJEAN, 2005,
p.71).

Referências Bibliográficas
DARNTON, Robert. Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe
Ganso. In: O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa.
Editora Graal, 2006.
DEJEAN, Joan. Antigos contra modernos: as guerras culturais e a construção de um
fin-de-siécle. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigação sobre uma
categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
PERRAULT, Charles. Contos da Mamãe Gansa. São Paulo: L&PM Pocket, 2012.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento?. In: Cátedra Unesco
de Bioética. Brasília: Universidade de Brasília, 2016. Disponível em:
https://bioetica.catedraunesco.unb.br/wp-content/uploads/2016/04/Immanuel-Kant.-O-
que-é-esclarecimento.pdf
RODRIGUES, Antônio Edmilson M. A querela entre antigos e modernos: genealogia
da modernidade. In: FALCON, Francisco; RODRIGUES, Antônio Edmilson M.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1726
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Tempos Modernos: ensaios de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


2000.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1727
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O meio ambiente como patrimônio: percursos históricos e o tombamento do litoral


fluminense
JULIENE TARDELI
PUC-Rio

Patrimônio em perspectiva histórica


De acordo com Silvia Helena Zanirato e Wagner Costa Ribeiro (2016), os
acontecimentos históricos do século XX repercutiram na noção de patrimônio. Até
meados deste século, o conceito de patrimônio restringia-se ao caráter histórico e aos bens
materiais de uma coletividade, tendo como finalidade o fortalecimento do Estado,
mediante a valorização de uma memória nacional oficial. As ações de patrimonialização
eram permeadas por uma visão de história que se baseava em grandes acontecimentos e
privilegiavam edificações materiais e obras de arte, de valor contemplativo.
Os autores apontam que a partir da década de 1931, com a Conferência de Atenas
para o patrimônio Mundial e a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em
1945, o campo do patrimônio passou por um processo de ampliação, mediante ao
crescente interesse antropológico. A adaptação das ações de patrimônio ao conceito
antropológico de cultura promoveu a contemplação de novos atores sociais e campos da
atividade humana. A reformulação no conceito de patrimônio ocorreu principalmente no
contexto após a Segunda Guerra Mundial. As catástrofes impostas às cidades europeias
devido aos conflitos fizeram emergir questões sobre a preservação da memória dos países
envolvidos. Neste contexto, fora criada a Organização das Nações Unidas para a
educação, a ciência e a cultura (UNESCO) em 1945, como uma instituição para a
promoção da paz e respeito entre as nações.
Tendo como um de seus objetivos a preservação dos patrimônios e valorização
das culturas nacionais, a UNESCO gerou diversos encontros, como a Convenção
Internacional sobre a Proteção do Patrimônio Cultural adotada em Haia em 1954847.
Grande parte das mudanças conceituais sobre o papel do patrimônio nas políticas culturais
diz respeito à abertura para ações empreendidas em países do considerado “terceiro

847
Neste encontro, se expandiu o conceito de Patrimônio Histórico para Patrimônio Cultural, compreendido
por monumentos arquitetônicos, sítios arqueológicos, objetos e estruturas de valor histórico, cultural e
artístico; ou seja, bens que representassem fontes culturais de uma sociedade ou grupo.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1728
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

mundo” e de países asiáticos. Márcia Sant’Anna afirma que no mundo ocidental, o


entendimento sobre o patrimônio intangível (imaterial) teve como gatilho os
acontecimentos pós-guerra, sendo este um processo lento de transformações e
influenciado pelas práticas orientais e terceiro mundistas: “No mundo oriental, os objetos
jamais foram vistos como os principais depositários da tradição cultural [...] De acordo
com essa concepção, as pessoas que detêm o conhecimento preservam e transmitem as
tradições, tornando-se mais importantes do que as coisas que as corporificam”
(SANT`ANNA, 2009, p.52).
Zanirato e Ribeiro (2016) apontam que a visão patrimonial muda de acordo com
a História, e por isso deve ser historicizada. Neste sentido, os autores mostram que existe
uma ordem internacional ambiental em vias de construção desde o início do século XX.
Relatam, assim, que a temática ambiental é latente desde a criação da ONU e a realização
de conferências internacionais, como as de Estocolmo em 1972 e Rio de Janeiro em 1992.
Os autores citam ainda a formulação de programas de ação específicos, como o Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA de 1973 e a Agenda XXI de 1992.
Com a participação da UNESCO em diversos países, especialmente, a partir de
1972, quando ocorreu a Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, “países
do Terceiro Mundo reivindicaram a realização de estudos para a proposição, em nível
internacional, de um instrumento de proteção às manifestações populares de valor
cultural. ” (SANT’ANNA, 2009, p.53). O diferencial desta convenção se deu em relação
à patrimonialização dos lugares, que “deveriam ser entendidos como as obras do homem
e as obras conjuntas do homem e da natureza” (ZANIRATO; RIBEIRO, 2016, p. 258).
A definição de patrimônio desta Convenção foi resultante da compreensão de que a
identidade cultural de um povo é forjada no meio em que este vive e de que as obras
humanas mais significativas obtêm parte de sua beleza no lugar aonde se encontram
instaladas.
A questão patrimonial conflui ainda com as mudanças no meio historiográfico,
visto que é também na década de 1970 que se solidifica a corrente da História Ambiental.
De acordo com José Augusto Pádua (2010): “A publicação de análises substantivamente
histórico-ambientais, no entanto, algo bem diferente da simples proposição de influências
naturais na história humana, já vinha se delineando desde a primeira metade do século
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1729
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

XX e, em certa medida, desde o século XIX” (PÁDUA, 2010, p. 81). O autor esclarece,
porém, que o diferencial na discussão ambiental na cultura contemporânea é a atenção ao
modo como as sociedades humanas se territorializam e se referenciam culturalmente ao
mundo natural, “construindo seus ambientes a partir de interações com espaços concretos
de um planeta que possui grande diversidade de formas geológicas e biológicas”.
(PÁDUA, 2010, p. 83).
A ampliação do conceito patrimonial e consequente admissão da existência de
patrimônios naturais/ambientais aproximam-se dos temas da História Ambiental, que
busca problematizar as relações dos homens com a natureza, “a sua influência sobre o
comportamento humano e as formas de delimitação dos territórios como o espaço da
nação, da região, do urbano, das fronteiras, etc.” (ARRUDA, 2006, p. 116). De acordo
com Pádua (2010), as questões elucidadas pela História Ambiental inspiraram ações que
extrapolavam os muros da academia; se inserindo no imaginário coletivo, mediante às
diversas pautas sociais, educacionais e permeadas pela cultura de massa.
No Brasil, as mudanças no campo patrimonial começaram a serem sentidas a
partir da década de 1960, passando-se ao progressivo aumento de discursos, que
enfatizavam a diversidade cultural como novo valor para as ações de patrimonialização.
De acordo com Lia Motta (2000), tais discursos se tornaram oficiais das agências de
patrimônio, fossem de escala municipal, estadual ou federal. Nesta conjunta, destaca-se
a criação do Conselho Federal de Cultura (CFC) em 1966. O conselho teria assumido
uma função executiva, que promoveria a relação entre municípios, estados e federação.
Como um de seus objetivos centrais, o Conselho de Cultura tinha a criação de uma
política para a cultura, incluindo um Plano Nacional de Cultura; o intercâmbio entre
instituições e universidades, a difusão da cultura nacional e a proteção do patrimônio
cultural.
Entre 1970 e 1971 foram lançados dois documentos que incentivariam a
descentralização das políticas de preservação dos bens culturais. Tratam-se do
Compromisso de Brasília e o Compromisso de Salvador. Tais documentos são elaborados
nas reuniões de governadores que tiveram como gestores o conselho Federal de Cultura,

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1730
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

o IPHAN848 e o Ministério da Educação (MEC). As recomendações apresentadas nesses


encontros se tornariam o início para a uma articulação entre as esferas dos poderes
executivos dos governos federal e estaduais, arquivos e sociedade civil. Encabeçada pelo
IPHAN, surgia a ideia de uma rede de relações, formada por órgãos de patrimônio dos
estados, municípios e a federação.
O primeiro órgão regional a ser criado, a partir do Decreto nº. 346 de 31/12/64 foi
o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro. O instituto foi uma
derivação da Divisão do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio de
Janeiro/DPHAERJ, gerado após a criação do Estado da Guanabara. Lia Motta afirma que
a divisão fora criada numa conjuntura de ameaça da mudança da sede do IPHAN para
Brasília, inaugurada em 1961, pois “julgava-se que o Rio de Janeiro ficaria desprotegido”.
(MOTTA, 2000, p. 45). De acordo com Simone Teixeira (2008), a partir da fusão entre
Guanabara e Rio de Janeiro (Belacap), o DPHAERJ torna-se INEPAC e passa por uma
redefinição de paradigmas: “Batizada como Instituto Estadual do Patrimônio Cultural
(INEPAC), em substituição ao Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico do
Estado da Guanabara (DPHA), a nova instituição já continha em seu nome um conceito
mais amplo de patrimônio” (MOTTA, 2000, p. 60).
De acordo com Motta (2000), a ideia amplificada de preservação do patrimônio
(cultural ou natural) estava presente no discurso nos órgãos de patrimônio como uma
pretensão de viabilização do crescimento urbano em concomitância à preservação dos
aspectos históricos e referências culturais para as gerações vindouras. Tal ideia
relacionava-se ainda ao pressuposto de criação de um Brasil composto pela diversidade.
Neste sentido, nota-se que na constituinte de 1987/88 foram delineados os primeiros

848
A Lei de nº 378, no governo de Getúlio Vargas de 13 de janeiro de 1937 – cria o Serviço de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Sphan) e em 30 de novembro de 1937, o decreto-lei de n° 25 organiza a
“proteção do patrimônio histórico e artístico nacional”. Em 1946 o Sphan passa a se chamar Departamento
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Dphan) e já em 1970 o Dphan se transforma em Iphan. Em
1979 o Iphan se divide em Sphan – órgão normativo - e Fundação Nacional Pró-memória (FNpM) – órgão
executivo. No ano de 1990 há a extinção do Sphan e da FNpM e criação do Instituto Brasileiro do
Patrimônio Cultural (IBPC). Finalmente, em 06 de dezembro de 1994, por medida provisória, o Instituto
Brasileiro do Patrimônio Cultural – IBPC e o Instituto Brasileiro de Arte e Cultura – IBA passem a
denominar-se, respectivamente, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e
Fundação de Artes – FUNARTE. Para que a leitura do projeto seja facilitada, será utilizada a sigla IPHAN.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1731
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sinais para o estabelecimento de uma política voltada para o um conceito de patrimônio


amplo, ou integral, como vem sendo chamado por alguns autores849.
O período de redemocratização, após o período de governo militar, trouxe
redimensionamentos para as práticas patrimoniais e redefiniu as relações entre Estado e
sociedade, tendo sido a culminância da efervescência cultural e política dos anos
anteriores. Os artigos 215 e 216 da nova constituinte estipulava a valorização e a difusão
das manifestações culturais e definia como patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial. Os debates sobre proteção patrimonial foram fomentados,
o que possibilitou a inserção da sociedade civil nos processos de elaboração das políticas
culturais.
Maria Cecília Londres Fonseca (2009) afirma que este processo ampliou ainda o
conceito de cidadania, pois passou a reconhecer os direitos culturais de grupos diferentes.
Desta conjuntura, vale ressaltar a importância do aparecimento da noção de patrimônio
imaterial na Constituição de 1988, pois esta categoria aponta para a relação intrínseca
entre indivíduos e grupos com o meio ambiente. O patrimônio imaterial (ou intangível) é
tido como práticas, representações, conhecimentos e técnicas, ligados ao ambiente em
que vivem comunidades e grupos e passou a ser reconhecido sob diferente perspectiva, a
qual se ressalta transmissão e continuidade da prática cultural e não a conservação do
bem, como se faria em relação aos patrimônios materiais.
De acordo com Cristiane Magalhães (2015), apesar da discussão sobre a existência
de patrimônios que integrem cultura e natureza, as ações de patrimonialização destes bens
passaram a ser concretizados apenas na década de 1990 e 2000, com o surgimento da
Chancela de Paisagem Cultural. A autora aponta que a acepção do patrimônio como
produto na união entre cultura e natureza é resultado de inovações teóricas no campo da
geografia. “Podemos considerar que, pelo menos desde a década de 1940, o termo
"paisagem cultural" era veiculado e abordado no Brasil com as acepções que conhecemos
atualmente, da Geografia Cultural”. (MAGALHÃES, 2015, p. 307).
O conceito da Paisagem Cultural como representante da soma nos testemunhos da
interação entre homem e natureza passa a ser discutido pelos gestores do patrimônio no

849
Cf. HERNANDEZ (1994); CONDE; MARTINI; ZABALA (2010); CARVALHO; SHEINNER (2010)
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1732
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Brasil após o ano de 2007, com eventos nos Estados do Rio Grande do Sul e Mato Grosso
do Sul. Nesta conjuntura, merece destaque a Carta de Bagé850 (RS) em que é estabelecido
o conceito de Paisagem Cultural como “um bem cultural, o mais amplo, completo e
abrangente de todos, que pode apresentar todos os bens indicados pela Constituição,
sendo o resultado de múltiplas e diferentes formas de apropriação, uso e transformação
do homem sobre o meio natural”. (RANGEL, 2016, p.12).
A chancela da Paisagem Cultural como instrumento de preservação patrimonial
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), se deu pela Portaria
nº 127, de 30 de abril de 2009. Servindo como uma certificação, a chancela funciona
como meio de estabelecer normas para a gestão e uso da paisagem, determinando em
conjunto com as populações diretamente envolvidas uma gestão compartilhada do
território. Segundo Magalhães (2015), a chancela se mostra inovadora, pois traz uma
noção de patrimônio que integra bens de caráter material e imaterial, marcados pela ação
da natureza e também da cultura.

O tombamento do litoral
O tombamento do Litoral Fluminense foi publicado em 09 dezembro de 1985 e
confirmado em 11 de maio 1987. A ação de proteção aos trechos do litoral do estado do
Rio de Janeiro teve dois fundamentos principais: “contribuir para preservar alguns dos
mais belos e importantes ecossistemas da nossa costa e garantir a permanência nessas
áreas das comunidades tradicionais de pescadores. ”. (LERNER apud CAVACO;
VASQUES, 2016). Pode-se dizer que o tombamento representa a concretização de um
discurso de renovação no campo do patrimônio, pois se destaca pelo caráter inovador, ao
enfatizar a importância da relação dos grupos sociais abarcados pela ação de
patrimonialização e a natureza. “Pela primeira vez, será reconhecido o valor cultural de
uma associação espacial, e, por assim dizer, simbiótica, entre povoados tradicionais de
pescadores e a faixa de terra emersa das águas oceânicas” (INEPAC: Litoral Fluminense,
fl.3.).

850
Ou Carta das Paisagens Culturais. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/899/
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1733
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

O tombamento abrange as localidades de Paraty, São João da Barra e Niterói. Tem


como escopo impedir a devastação das praias, relevo e vegetação existentes nos trechos
englobados, mediante a possíveis ameaças do “turismo predatório” (INEPAC: Litoral
Fluminense, fl.4). Mostra ainda clara preocupação com a cultura caiçara851, enfatizando
a necessidade de preservação do ambiente litorâneo como meio de manutenção das
tradições da pesca artesanal. Na cidade de Paraty, a patrimonialização se estendeu da foz
do rio Paraíba do Sul, até a Ilha de Trindade, praia do Sono, Ponta do Caju, Enseada do
Pouso, Ilha de Itaoca, Saco e Manguezal de Mamanguá, enseada de Paraty Mirim, Ilha
das Almas, praia Grande, Ilha do Araújo, Praia de Tarituba.
Segundo o INEPAC, o tombamento destas áreas de Paraty justifica-se devido à
grande modificação concernente afluxo de pessoas após a construção da estrada Rio-
Santos (BR-101), nos anos de 1970. Em decorrência da implementação desta via de
acesso ao município, a dinâmica ocupacional foi modificada, facilitando o acesso, até
então difícil, ao Município de Paraty e provocando uma grande modificação na dinâmica
de ocupação da região, que se tornou passiva da especulação imobiliária. Neste local, o
tombamento estipulou uma faixa de 50 metros a partir da orla, para garantir o direito de
permanência de grupos de pescadores artesanais e suas condições de trabalho, assim como
espaço para a puxada de rede e a ancoragem das embarcações.
No município de São João da Barra, o tombamento compreende a foz do rio
Paraíba do Sul, seu manguezal e Ilha da Convivência (divisas com São Francisco de
Itabapoana) e as outras áreas vizinhas. O tombamento desta área se justificou pela
necessidade de preservação do ambiente que viviam diversos tipos de animais em
extinção e pela valorização do modo como a população se adaptou a natureza naquele
local. Já na cidade de Niterói, a ação se aplicou ao Canto Sul da praia de Itaipu, as ilhas
da Menina, da Mãe e do Pai. O tombamento em Itaipu considera igualmente a relação

851
A formação de várias das comunidades marítimas e litorâneas no Brasil se deu entre o vasto período que
vai do século XVIII ao início do século XX, cujos membros viviam, sobretudo ou parcialmente, de atividade
pesqueira. Em tais comunidades, dispersas por todo o litoral, modos de vida e culturas locais específicas
puderam emergir, diferenciando seus membros de outros grupos (Silva, 1993). Este é o caso das
comunidades caiçaras, cujos habitantes, durante longo período, ficaram relativamente isolados na Mata
Atlântica e no litoral dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. Desta forma, desenvolveram uma
cultura particular que os diferencia das comunidades tradicionais do interior desses estados (Diegues,
1988a; Luchiari, 1992 e 1997). Cf. HANAZAKI; MOLINA; RAMIRES (2007).

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1734
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

entre vivência com a pesca artesanal e a ambiência, assim como a existência de


comunidades tradicionais, como a do Morro das Andorinhas852 e de um patrimônio de
“Pedra e Cal”, as ruínas do Recolhimento de Santa Teresa853.
Como o tombamento de trechos do litoral fluminense busca preservar as
condições do exercício da pesca artesanal, se considera necessária a realização de uma
breve explanação sobre esta modalidade de pesca enquanto prática cultural. De acordo
com a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca, a
pesca artesanal é aquela “praticada diretamente por pescador profissional, de forma
autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou
mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações de pequeno
porte” (BRASIL, Lei 11.959 de julho de 2009).A pesca artesanal diz respeito à
modalidade de captura do pescado com embarcações de pequeno porte, realizada por rede
de arrasto, esmalho, arrasto simples, duplo, tarrafa, linha, anzol etc.
Entende-se as populações caiçaras como comunidades tradicionais pela
identificação do pescador, legitimada pela ancestralidade, sua relação com os recursos
naturais e suas relações de trabalho: “Em geral, observa-se que os saberes da arte de
pescar, de reparar o barco ou a rede vêm de conhecimentos pretéritos transmitidos pela
oralidade, nas relações familiares e/ou vizinhança.” (RESENDE, 2011:13). Luiz
Fernando Dias Duarte aponta que a formação de uma identidade comunidade pesqueira
através do trabalho: ‘A essa representação de uma identidade pelo trabalho no mar vem-
se acrescentar uma identidade pelo trabalho em “embarcações” e pela produção de
“pescado”’ (DUARTE, 1999, p.35). Rinaldo Arruda e Antônio Carlos Diegues
(ARRUDA; DIEGUES, 2001) afirmam que se podem classificar como comunidades
tradicionais aqueles grupos que mantêm certa distância da sociedade ampla por
apresentarem maior relação com uso e manejo dos recursos naturais, dando importância
à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de parentesco ou compadrio para
o exercício das atividades econômicas, sociais e culturais.

852
Encontrando-se a leste da praia de Itaipu, o Morro das Andorinhas é sitiado por moradores há alguns
séculos.
853
Tombado pelo IPHAN em 1955 e abriga desde 1987 o Museu de Arqueologia de Itaipu (MAI).
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1735
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Além do caráter familiar, pode-se considerar como característica que delega aos
grupos de pescadores abarcados a menção de tradicionais a “noção de território ou espaço
onde o grupo social se reproduz econômica ou socialmente” (ARRUDA; DIEGUES,
2001, p.26). De acordo com Duarte (1999), a identidade do pescador é marcada pela
vivência com o mar, por estruturas específicas ao trabalho pesqueiro, à manutenção de
uma ordem hierárquica de atividades, ao método de captura do pescado e ao tipo de
embarcação utilizada.
A noção de território ou espaço onde a comunidade se reproduz econômica e
socialmente é ampla, visto que não restringe ao local que habitam e sim no diálogo com
a natureza, trabalho e modos de vida: “na análise das relações entre a pesca artesanal, o
território e o Estado, incorporamos a cultura como possibilidade de compreender aquilo
que não é visto imediatamente, que são o sentido das ações e dos saberes. ” (SILVA,
2014, p.17). Para o pescador, o território depende não só do tipo do meio físico utilizado,
mas também das relações sociais existentes, assim, o espaço marítimo tem suas marcas
de posses e simbologias.
Além de possibilitar a manutenção da pesca artesanal, vista como inseparável de
sua espacialidade, demarcar as áreas de pesca como patrimônio legitima a prática da pesca
artesanal e até mesmo à manutenção do espaço ocupado pelos pescadores. Segundo
Cavaco e Vasques (2016), os trechos do litoral fluminense englobados pela ação de
patrimonialização do INEPAC foram isolados durante séculos, o que promoveu a
ocupação espontânea das comunidades pesqueiras. Estas comunidades se adaptaram à
natureza, sem agredi-la. Porém, a partir da década de 1970, com a especulação
imobiliária, os grupos que habitam o litoral têm travados lutas pela preservação dos meios
de trabalho e pela conservação cultura da pesca artesanal.
A ideia de patrimonialização remete-se a ao poder de afirmar identidades e valores
que um bem obtém. Neste sentido, evidencia-se que ações como o tombamento do litoral
fluminense demonstram toda complexidade dos processos de patrimonialização, pois
mais do que construir ou preservar memórias, o patrimônio permeia conflitos e relações
de poder, tendo a capacidade de conferir legitimidade a determinado grupo ou indivíduo.
Os embates vividos pelos pescadores artesanais relacionam-se ao direito à propriedade,
mas também à identidade, pois não são travados apenas pela manutenção do domínio
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1736
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

sobre terra ou sobre os recursos marítimos, mas pelos usos que deles são feitos. Lutar
pelo território em que vivem significa manter as condições de vida, de cultura e do
trabalho.
Os territórios devem ser vistos em sua perspectiva histórica, pois “O território é o
chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo
que nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e
espirituais e da vida, sobre as quais ele influi” (SANTOS, 2003, p. 96). Para Milton
Santos, o território deixa marcas nos indivíduos, assim como é marcado por eles. Desta
maneira, o autor trabalha com a ideia de “territórios usado”, evidenciando que ao passar
do tempo, os espaços se modificam e modificam os homens mutualmente, influenciando
nos processos de construção de identidade.

Considerações Finais
A proteção aos trechos do litoral do estado do Rio de Janeiro feita pelo Instituto
Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC) representa a concretização de um discurso de
renovação no campo do patrimônio, por buscar a manutenção das condições do exercício
da pesca artesanal, enfatizando a necessidade de preservação do ambiente litorâneo como
meio de manutenção de suas tradições. Neste sentido, abordar esta modalidade de pesca
enquanto prática cultural a coloca como produtora de uma identidade, veiculada ao
trabalho e ao meio ambiente.
Entende-se as populações caiçaras como comunidades tradicionais pela
identificação do pescador à natureza, legitimada pela ancestralidade de suas relações com
o trabalho. O texto aborda ainda a história das políticas de patrimônio em nível
internacional, nacional e fluminense, buscando pensar a relação entre esta e o
tombamento do litoral. No que concerne ao processo de Tombamento abordado, se vê a
nítida relação entre as justificativas da ação de patrimonialização e a direção do INEPAC
à época.
O caso do tombamento do litoral fluminense pode ser visto como exemplar ao
processo de ampliação da noção de patrimônio. Apesar de não constar nos documentos
do INEPAC o termo “patrimônio ambiental” ou “paisagem cultural”, constata-se que o
tombamento em questão representa uma ação de vanguarda no Brasil, pois exprime a
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1737
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

preocupação concernente à manutenção das condições de vida e trabalho dos pescadores


artesanais; Condições essas que são intimamente ligadas ao ambiente natural e aos marcos
simbólicos que as comunidades caiçaras elaboram em relação a este.
O presente artigo pretende incentivar discussões acerca do reconhecimento das
relações entre homens e natureza, através de ações de patrimonialização. Como citado
anteriormente, o território está intimamente ligado à constituição de identidade e no caso
do abordado, tombar áreas pesqueiras significa dar um aporte de legitimidade dessa
identidade construída a partir do território usado (SANTOS, 2003). Esclarece-se,
entretanto, que este trabalho não esgota as discussões sobre o patrimônio ambiental, mas
aponta para o tombamento do litoral fluminense como um estudo de caso, ao passo que
este elucida que a valorização das relações entre homens e natureza, mediante à
patrimonialização se coloca como um recurso às ameaças à manutenção dos meios de
trabalho e de produção cultural das comunidades tradicionais; cumprindo-se como um
valioso aporte para políticas de identidade (SARLO, 2007)854.

Referências Bibliográficas
ABREU, Martha. Cultura Imaterial e Patrimônio Histórico Nacional. In: ABREU,
Martha; Antônio ABREU, Izaias da Costa. Municípios e topônimos
fluminenses: histórico e memória. Imprensa oficial do Rio de Janeiro, 1994.
ARRUDA, Gilmar. O chão de nossa história: Natureza, Patrimônio Ambiental e
Identidade. In: Patrimônio e Memória: UNESP – FCLAs – CEDAP, v.2, n.2, 2006.
ARRUDA, Rinaldo; DIEGUES, Antônio Carlos (org.). Saberes Tradicionais e
Biodiversidade no Brasil. Brasília - Ministério do Meio Ambiente: São Paulo, USP, 2001.
Xxx p. (Biodiversidade4).
ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Memória e Patrimônio: Ensaios contemporâneos.
Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. Imprensa da Universidade: Coimbra, 2013.

854
Beatriz Sarlo remete-se a este conceito para explicar o crescente fenômeno de grupos utilizarem-se de
argumentos de identidade coletiva e tradição em contraponto aos problemas sociais enfrentados na
atualidade.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1738
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

BRASIL, Presidência da República, Casa Civil-Subchefia para Assuntos Jurídicos. LEI


Nº 11.959, DE 29 DE JUNHO DE 2009.
CAVACO, André Farias; VASQUES, Viviane Sampaio. Preservação e Gestão da
Paisagem Tombada. In: 4ª Colóquio Ibero- Americano: Paisagem Cultural, Patrimônio e
Projeto. Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. 3ª Ed. São Paulo: UNESP, 2006.
DIEGUES, Antônio Carlos A Sócio Antropologia das Comunidades de Pescadores
Marítimos No Brasil: uma síntese histórica. Texto de trabalho. Centro de Culturas
Marítimas-CEMAR/NUPAUB, Universidade de São Paulo. Disponível em:
http://nupaub.fflch.usp.br/sites/nupaub.fflch.usp.br/files/color/leal1.pdf. Acesso em 10
de fevereiro de 2017.
DUARTE, Luiz Fernando Dias. As Redes do Suor. A reprodução social dos trabalhadores
da pesca em Jurujuba. Rio de Janeiro: Editora UFF, 1999.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política
federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Iphan, 2005.
CRUZ, Juliene do Valle Tardeli. Memórias de Itaipu: Políticas de Identidade e Proteção
ao Patrimônio na Vila de Pescadores. Dissertação (mestrado), Rio de Janeiro: UERJ,
2015.
DAMASCENO, Daniel Pinheiro Caetano. A Volta dos Exilados: Darcy Ribeiro, Leonel
Brizola e Cultura do Povo-Novo para o Rio de Janeiro 1983-1986. Tese (doutorado),
Campos dos Goytacazes: UENF, 2014.
FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além de pedra e cal: para uma concepção ampla
de patrimônio. In: Memória e Patrimônio: Ensaio contemporâneos. ABREU, Regina;
CHAGAS, Mário (orgs). 2ª ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.
FUNDAÇÃO DARCY RIBEIRO. Fazimentos (caderno 8- Tombamentos). Rio de
Janeiro, Darcy Ribeiro, 1991.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda: os discursos do patrimônio
cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; IPHAN, 1996.
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1984.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1739
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

INEPAC. Inventário do Tombamento de trechos do litoral fluminense: Paraty, São João


da Barra e Niterói - Número do processo: E-18/300.459/85.
LAVINAS, Laís Villela. Um animal político na cultura brasileira: Aloísio Magalhães e
o campo do patrimônio cultural no Brasil (anos 1966-1982). Dissertação. Rio de Janeiro:
UNIRIO, 2014.
LIMA, Roberto Kant; PEREIRA, Luciana F: Pescadores de Itaipu: Meio Ambiente
conflito e ritual no litoral do Estado do Rio de Janeiro. Niterói, RJ: EDUFF, 1997.
MOTTA, Lia. Patrimônio urbano e memória social: práticas discursivas e seletivas de
preservação cultural - 1975 a 1990. Dissertação. Rio de Janeiro: UNIRIO 2000.
PÁDUA, José Augusto. As bases teóricas da história ambiental. In: Estudos Avançados
24 (68), 2010.
RIBEIRO, Wagner Costa; ZANIRATO, Silvia Helena. Patrimônio cultural: a percepção
da natureza como um bem não renovável. In: Revista Brasileira de História. São Paulo,
v. 26, nº 51, p. 251-262 – 2006.
SANT’ANNA, Márcia. A face imaterial do patrimônio cultural: os novos instrumentos
de reconhecimento e valorização. In: Memória e Patrimônio: Ensaios contemporâneos.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. – São Paulo:
Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
SILVA, Cátia Antônia da. (org). Pesca artesanal e produção do espaço: desafios para a
reflexão geográfica. Rio de Janeiro: Consequência, 2014.
TEIXEIRA, Simone. Um olhar sobre o papel do Instituto Estadual do Patrimônio Cultual
/INEPAC na construção da identidade do Estado do Rio de Janeiro. In: IV Simpósio
Nacional de História Cultural: Sensibilidades e Sociabilidades. 13 a 17 de outubro de
2008. Goiania, Goiás.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1740
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A formação do campesinato negro no Rio de Janeiro no final do século XIX e início


do XX: o Sertão Carioca

JÚLIO CESAR DE SOUZA DÓRIA


PPGHIS -UFRJ

O presente artigo tem como proposta contribuir para a reflexão sobre as formas
de organização socioeconômica de libertos, forros, negros livres e escravos no Rio de
Janeiro – em específico na freguesia rural de Jacarepaguá (FRIDMAN, 1999. Pp. 125-
130)- entre as últimas décadas do século XIX e início do século XX. O objetivo é
identificar e ao mesmo tempo compreender as formas específicas de organização e ação
dos negros livres e cativos no contexto de desestruturação do sistema escravista e
instauração da República no Brasil (ALONSO, 2002. Pp. 87-96; LEMOS, 2010. Pp. 403-
437; e HOLANDA, 2010. Pp. 145-160.).
Ao findar este artigo espero ter conseguido apresentar ao leitor os aspectos
constitutivos deste universo dos negros de parte de uma freguesia rural da cidade do Rio
de Janeiro, a partir de suas experiências, necessidades, limitações, anseios, possibilidades
e expectativas. Neste sentido, a tentativa aqui exposta é a reconstrução de uma história e
um passado voltado para a compreensão dos sentidos que os fatos e os processos
históricos tiveram para os seus sujeitos específicos e como estes escolheram e/ou puderam
agir diante da realidade que se apresentava (THOMPSON, 1998. Pp. 204-266).
Para compreendermos os sentidos da organização socioeconômica em um
contexto rural iremos recorrer à analise de um projeto de nação que tinha como base a
reorganização social e do trabalho – principalmente o rural – como pontos centrais de
construção da civilidade e progresso da sociedade brasileira.
Ao longo dos anos 1880, uma instituição abolicionista atuou de modo decisivo no
processo de abolição da escravidão no Brasil e, principalmente, no Rio de Janeiro, a
Confederação Abolicionista (DÓRIA, 2015). Dentre as diversas formas e métodos de
ação destacamos o projeto de nação abolicionista que então se destacava com os

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1741
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

principais pontos a seguir: reforma político-administrativa, a reforma agrária e a reforma


do ensino (Idem. Pp. 84-126.).
A heterogeneidade das lideranças intelectuais da Confederação Abolicionista e a
influência que recebiam das teorias cientificistas e positivistas do século XIX
engendraram um projeto de nação ambíguo em seu seio. Ao mesmo tempo em que
pleiteava a divisão da terra para que ex-escravos pudessem ter o acesso a ela e formassem
assim um campesinato negro, condicionavam a existência e produção deste como
apêndice da grande propriedade rural ou os chamados engenhos centrais.
Mesmo com o fim da escravidão e a derrota do projeto abolicionista o projeto
continuou na pauta nacional com o advento da República, levado adiante pelos
republicanos que vieram a formar a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) e mais
tarde, criaram o Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Identificamos este
projeto – modificado por diversos fatores que não será possível apresentar neste artigo –
como tendo sido oriundo dos debates e pautas da Confederação Abolicionista que tinha
principalmente na concessão de pequenas propriedades de terras um objetivo para o
estímulo da agricultura de subsistência, fortalecimento de um mercado interno e controle
da população rural, como pontos centrais.
Contudo, este não foi o projeto adotado institucionalmente pelo Estado
republicano brasileiro para a agricultura nacional no pós-1889 (GOMES, 1983. Pp. 92.),
que em síntese deixou de lado uma possível reforma rural autoritária burguesa em favor
de outra, aristocrática (Idem. Pp.50-51 e 86-92). Em última instância a não adoção deste
projeto não se deu apenas em favor de uma política rural contrária ao fomento da pequena
propriedade. Este projeto também sofreu resistência por parte do campesinato negro que
se consolidava no pós-abolição.
Compreendemos desta forma que as estratégias de sobrevivência e os significados
de liberdade e autonomia de escravos e ex-escravos em áreas rurais do país, como nas
freguesias rurais do Rio de Janeiro, foram elementos fundamentais na construção de
formas de organização e associação entre comunidades negras rurais, fossem elas livres,
cativas ou aquilombadas (MARTINS, 2005. Pp. 117-134; GOMES, 2015. Pp. 17-33, 75-
76, 120,123 e 126; GUIMARÃES, 2009. Pp. 53-59, 129-136, 142-144 e 148-161; RIOS
& MATTOS, 2007. Pp.57-60.). E estas formas de organização não se alinhavam aos
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1742
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

projetos elitistas, nem mesmo àquele que se colocava favorável à concessão de terras aos
ex-escravos855. Vejamos os motivos.
Se a busca por direitos e participação política pelos negros da Corte ganhavam
contornos de uma luta por direitos civis, a busca por uma cidadania positiva era comum
a todos aqueles que vivenciaram de alguma forma a experiência da escravidão (COSTA,
2014. Pp. 83-107; GOMES, 2011; DOMINGUES, 2011.). As experiências urbanas do
Rio de Janeiro oitocentista que engendraram diferentes formas de associativismo negro
também se fizeram presentes no meio rural. Por mais que não ocorressem da mesma
forma que as experiências nos espaços urbanos e, principalmente, não tivessem a
imprensa como mecanismos de difusão de seus projetos, anseios e ações, o associativismo
negro no meio rural não foi menos politizado.
O “não quero” de cativos, forros, libertos e quilombolas já era ouvido desde os
tempos coloniais e obrigavam senhores escravistas e autoridades – igualmente escravistas
– a negociar com esses indivíduos ou comunidades as formas de organização e a própria
dinâmica do meio rural. As relações estabelecidas de forma dialógica não eram
harmoniosas e, por vezes, abria-se o conflito (SILVA & REIS, 1989.; MARINHO, 2014;
e Op. Cit. GOMES, 2006. Pp. 7-22 e 34-120)856. Não havia uma regra e nem um modelo
de organização social desta comunidade negra, que se estruturava dentro das
possibilidades e do acúmulo de experiências pregressas para o estabelecimento dos seus
interesses diante da situação de opressão do cativeiro.
Per si, estas formas de organização de espaços, situações e experiências de
autonomia da população negra e mestiça – livre ou escrava – impunham à sociedade

855
A nossa referência é o projeto de reforma agrária defendida pela Confederação Abolicionista e,
posteriormente, apresentada pela SNA e o MAIC (Ministério da Agricultura Indústria e Comércio).
856
Apesar da perspectiva da negociação e conflito ter sido apresentada pioneiramente na historiografia
brasileira por Eduardo Silva e José Reis, para analisar a relação entre senhor e escravo, autoras e autores
como Celia Marinho e Flavio Gomes ampliaram esta perspectiva analítica para toda as relações sociais
existentes na sociedade escravista. Desse modo, a obra de Célia Azevedo Marinho sobre o imaginário das
elites dirigentes e econômica do país durante o século XIX, aponta para o receio vivido por esses
personagens diante das rebeliões e revoltas escravas – internas e externas – e da possível – e necessária -
libertação em massa dos cativos do país. A autora insere os projetos feitos nesse período voltados para a
libertação ou emancipação dos escravos como componentes do processo de transição e instalação do
capitalismo no Brasil. O abolicionismo então seria um movimento interessado em organizar e preparar a
mão de obra escrava para a nova realidade que se apresentava com vistas a inserir o Brasil no contexto das
nações civilizadas.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1743
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

escravista certas limitações e práticas que se antagonizavam ao(s) projeto(s) de controle


desta população. As reações de senhores escravistas e autoridades oscilavam entre a
violência e a aceitação da autonomia negra – livre ou escrava.
Concessão de terras, arrendamentos, direito a sua própria roça, herança de
propriedades, entre outras coisas, representaram as diversas formas de acesso à terra por
forros, libertos e escravos, mas também representaram espaços e experiências de
autonomia que eles mesmos conquistaram obrigando senhores e autoridades a constantes
mudanças em seus projetos particulares e de administração pública (Op. Cit. MARTINS,
2005. Pp. 117-134. ; Op. Cit. GOMES, 2015. Pp. 17-33, 75-76, 120,123 e 126.; Op. Cit.
GUIMARÃES, 2009. Pp. 53-59, 129-136, 142-144, 148-161.; e Op. Cit. RIOS &
MATTOS, 2007. Pp. 56-60.).
Em Jacarepaguá, freguesia rural do Rio de Janeiro, os beneditinos adquiriram por
doação uma sesmaria em fins do século XVII e partir dela construíram três grandes
fazendas: a Camorim, a Vargem Pequena e a Vargem Grande (OLIVEIRA, 2010. Pp. 26.;
e Op. Cit. FRIDMAN. Pp. 59). Até fins do século XIX os beneditinos possuíam estas
fazendas e as terras ao redor, equivalente aos atuais bairros do Camorim, parte da Barra
da Tijuca, Recreio, Vargem Grande e Vargem Pequena, uma região que ficou conhecida
como Sertão Carioca (CORRÊA, 1936)857.
Como de costume na administração beneditina, os cativos de suas fazendas tinham
o direito de ter a sua própria roça e os proventos que dali auferisse, além dos finais de
semana e dias santos para trabalharem para si. A rotina de trabalho dos escravos nas
fazendas dos beneditinos se encerrava às 15h, além disso, era muito comum o
arrendamento de terras dentro de suas propriedades, inclusive para forros (GOMES, 2006.
Pp.46-47).
Sabemos que este cenário era comum nas terras dos beneditinos e em Vargem
Grande, Vargem Pequena e Camorim, não foi diferente, ali se formou ao longo do século

857
O termo aqui apresentado tem sua origem na concepção de Magalhães Corrêa. Para uma compreensão
histórica do termo e sua ressignificação, ver ENGEMAN, Carlos; SILVEIRA, Angela Maria Rosa;
OLIVEIRA, Rogério Ribeiro de. Magalhães Corrêa, o viajante do século XX. In: As marcas do homem na
floresta: história ambiental de um trecho urbano da Mata Atlântica. (org.) OLIVEIRA, Rogério Ribeiro de.
Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2010. Pp. 75-84.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1744
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

XIX uma extensa rede de pequenos agricultores que viviam da subsistência, mas também
da caça, pesca e da extração de recursos diversos da mata (Idem, GOMES).
Flávio Gomes destacou que os maiores quilombos de Iguaçu localizavam-se nas
terras dos beneditinos e os aquilombados estabeleciam uma ampla rede de comércio local,
além de uma relação bem estreita com a senzala da fazenda dos beneditinos (Ibidem, Pp.
48-52). Tal configuração também se apresentava nas terras dos beneditinos no Sertão
Carioca - guardada as devidas especificidades – possibilitando-nos a identificar ali a
formação de um campo negro858.
Quando os beneditinos alforriaram todos os seus escravos, em 1871 (SANTOS,
2005. Pp. 97), os espaços de autonomia da comunidade negra da Fazenda Vargem Grande
eram consideráveis. A formação de núcleos familiares nas encostas do Maciço da Pedra
Branca, na sua vertente sul – Vargem Grande, Vargem Pequena e Camorim – estava
repleta de famílias, comunidades e aquilombados. Estes detinham uma produção rural de
subsistência voltada para o mercado local e as trocas entre as famílias, comunidades e
aquilombados do maciço (DÓRIA, Renato, 2015; e Idem, SANTOS. Pp. 39-46).
No final do século XIX as terras e propriedades dos beneditinos foram vendidas
para a Companhia de Engenho Central e no ano seguinte passaram para as mãos do Banco
de Crédito Móvel859. Tal situação foi denunciada pelo jornal Gazeta da Tarde sob o título
História de um Sacrilégio,enfatizando que ali viviam famílias de agricultores pobres e
ex-escravos das fazendas dos beneditinos, que por sua vez, eram posseiros da terra e
formavam um campesinato negro.

Em vista da comunicação feita pelo Jornal do Commercio, tornou-se


público notório que mosteiro de S. Bento, sem utilidade manifesta, sem
urgente necessidade (...) vendeu à Companhia Engenho Central de
Jacarepaguá, três grandes fazendas que lhe foram doadas, com
gravíssimos ônus, em benefício do cultivo divino e patrimônio dos
pobres. Estas três grandes fazendas: Camorim, Vargem Grande e
Vargem Pequena ocupam cinco ou seis léguas terras, as mais férteis das
que possui a capital federal e estão situadas nos limites das freguesias

858
O termo designa as diversas relações estabelecidas entre negros livres, cativos, forros e aquilombados
com senhores, autoridades, comerciantes, lavradores e etc., onde a partir de suas experiências e ações
puderam construir redes sociais específicas e articuladas, que em última análise, permitiam através de
práticas econômicas garantirem a autonomia destas comunidades e grupos negros.
859
Gazeta da Tarde, 13 de junho de 1891.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1745
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

de Jacarepaguá e Guaratiba. Mais de seiscentas famílias, que em sua


maior parte foram escravos do Mosteiro e que trabalhavam nessas
fazendas, hoje habitam ahi na plenitude da miséria; sem educação
religiosa; sem instrução civil; sem hospital; sem médico, nem
cemitério; assim vivem eles na maior ignorância, desconhecendo até a
dignidade própria do homem. Dentre quatro e cinco mil pessoas não se
encontram cem indivíduos que saibam ler ou escrever!
Pois bem, todo este grande patrimônio, doado por uma virtuosa senhora
(...) foi alienado por 350:000$ à Companhia E. C. de Jacarepaguá, que,
por seu turno, alguns dias depois, vendeu á C. de S. Lazaro pela enorme
quantia de 1.000.000$000!!
Não satisfeito o Mosteiro, de ter alienado, sacrilegicamente as fazendas,
alienou também as dívidas de seus arrendatários. (...)
Agora já lá estão os agentes de C. S. Lazaro ameaçando com mandado
de despejo essas pobres famílias, se até o dia 15 do corrente não
satisfizerem o débito860.

Segundo Fania Fridman, a Companhia Engenho Central havia adquirido as


propriedades com capital do Banco de Crédito Móvel, parte destas terras foi repassada à
Empresa Saneadora Territorial Agrícola S.A (Op. Cit. FRIDMAN. Pp. 134-135). Parte
do imbróglio com o Banco foi “resolvido” com a compra das propriedades pelos antigos
posseiros861, porém, faltava a adequação da região aos padrões de desenvolvimento
econômico e civilizatório preconizado pelos intelectuais e governantes da Corte como
apresentado no artigo acima.
O artigo publicado no Jornal Gazeta da Tarde nos esclarece vários aspectos
daquele território formador de um campo negro, mas também, nos esclarece como o
mesmo era visto pelos intelectuais republicanos que redigiram o texto publicado. Assim,
diante do quadro apresentado compreendem-se as cruzadas higienistas e modernizantes
projetadas para os espaços rurais do país – e o Sertão Carioca não estava fora desse plano
(Op. Cit. SANTOS. Pp. 45-58; SANTOS, 2010. Pp. 15-29; CRUZ, 2010. Pp.31-38.;
DIAS, 2014; NOFUENTES, 2008; MENDONÇA, 1997. Pp. 37-67.; e MENDONÇA,
862
1998. Pp. 321-325.) - como parte de um determinado projeto de nação que se
apresentava.

860
Op. Cit. Gazeta da Tarde, 1891.
861
SANTOS, Leonardo Soares dos. Estado e Capital contra a sociedade em Jacarepaguá: ontem e hoje.
Disponível em < http://ihbaja.blogspot.com.br/2015/01/estado-e-capital-imobiliario-contra-o.html>.
Acesso em: 12 de julho de 2017.
862
Ao destacar os intelectuais que fundaram a SNA como uma elite política de segunda ordem, diante da
hegemonia política alcançada pela oligarquia paulista, a autora aponta para uma diferença de projetos de
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1746
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

Contudo, as experiências de autonomia construídas naquele campo negro


inviabilizavam o projeto de modernização rural autoritária preconizada por intelectuais e
pelo Estado republicano que se instaurou após o golpe de 15 de novembro. Não queremos
dizer que esta resistência se deu de forma coletivamente articulada, mas ocorreu de forma
normal(SCOTT, 2011. Pp.217-243), através dos “não quero”: não profissionalização, não
submissão da produção a um mercado interno, não trabalhar para outros fazendeiros, a
preguiça, a indolência, todas essas foram formas de demonstrar a não conformidade e
aceitação dos projetos de nação que se impunham ao campesinato negro.
Os modelos e projetos civilizatórios preconizados por administradores públicos e
intelectuais na virada do século XIX para o XX para as diferentes partes da cidade
procuraram excluir da paisagem e da participação da vida pública àqueles que eram
considerados inferiores e despreparados, incultos, mas, sobretudo que traziam na cor da
pele a sua ascendência africana – considerada selvagem – e a cor preta – marcando o
passado escravista, portanto, incapacitado e despreparado para uma vida autônoma na
sociedade moderna que se construía no Brasil.
Por não se atrelarem aos valores e práticas capitalistas estas comunidades negras
construíam em paralelo o seu próprio mundo baseados em uma economia moral (Op. Cit.
THOMPSON. Pp. 19-21). Por vezes, o não enquadramento voluntário aos padrões
civilizatórios tomaram a forma de infantilidade, burrice, preguiça e outras coisas mais,
porém, eram formas de resistência normal ao sistema de dominação normal que as elites
econômicas e políticas do Brasil tentaram impor a uma grande parcela da sua sociedade,
os negros e mestiços que foram escravizados ou tiveram seus pais e parentes na mesma
situação.
Entre o Morro Redondo e o Santa Bárbara, passando pelo Pico da Pedra Branca,
em Vargem Grande – no Sertão Carioca – o campesinato negro se organizou em núcleos
familiares inseridos em uma lógica local e ancestral baseada em suas experiências comuns

nação e modelo de República defendido por estes grupos. A principal estratégia de reforma social para esse
grupo estava na educação e na organização do trabalho. Em maio de 1896, reunido com outros 47 indivíduos
lança as bases de uma Sociedade Agrícola, voltada para modernização de tal setor econômico do país,
formando-se no ano seguinte sob o nome de Sociedade Nacional de Agricultura. A SNA defendia dentre
outras coisas a instrução do agricultor para uma melhor produção de sua lavoura e a reforma agrária. Temas
esses levados às sessões de debates no MAIC.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1747
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

(Op. Cit. CÁCERES). Formou-se assim, uma comunidade alicerçada em uma rede de
parentesco que sobreviveu do apoio mútuo num ambiente rural, desinteressada em certa
medida dos padrões de produção econômica das grandes propriedades.
A organização de um campesinato negro não alinhado aos modelos de
propriedades rurais preconizados por intelectuais e administradores públicos representava
uma escolha não apenas econômica e social de organização de sua própria comunidade,
mas, sobretudo era uma escolha política que igualmente interferia nas decisões e projetos
do Estado brasileiro – principalmente a partir da República.
Em síntese, o associativismo negro não se restringiu aos espaços urbanos, na
cidade do Rio de Janeiro, nas freguesias rurais, formou-se durante o Império um proto-
campesinato negro e com abolição da escravidão e o advento da República consolidou-se
um campesinato de fato que construiu formas próprias de organização e subsistência,
muitas vezes se colocando – mesmo que de forma sutil ou dissimulada – contra os projetos
de transformação de espaços e de seus cotidianos.
Estas foram lutas importantes travadas pelos Homens de Cor que somente podem
ser mensuradas de forma diminuta, aqui, tentei compreender os significados e
experiências destes sujeitos históricos como contrapontos às interpretações mitológicas e
anacrônicas.

Referências Bibliográficas

ALONSO, Angela. Ideias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil Império.


São Paulo: Paz e Terra, 2002.
AZEVEDO, Celia M. Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das
elites século XIX. São Paulo: Annablume, 2004.
CÁCERES, Luz Stella Rodríguez, « Paisagem, memória e parentesco no quilombo de
Vargem Grande, RJ », Etnográfica [Online], vol. 21 (2) | 2017, Online desde 09 Julho
2017, consultado em 12 Julho 2017. URL : http://etnografica.revues.org/4908
CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca. Rio de Janeiro: Ed. IHGB, 1936.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1748
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

COSTA, Rafael Maul de Carvalho. Escravizados na liberdade: abolição, classe e


cidadania na corte imperial. Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio/Casa Civil/Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro, 2014.
CRUZ, Aline Torres Dias da.Controlando e deslocando práticas “insalubres”;
repreendendo e apreendendo “crioulos”, “pretas”, “vadios (as)” e “desordeiros”: embates
e disputas na instauração de um modelo de urbanidade para o Rio de Janeiro pós-
emancipação e republicano. In: De cidades e territórios. FRIDMAN, Fania (org.). Rio de
Janeiro: PoD editora, 2010.
DOMINGUES, Petrônio. Cidadania levada a sério: os Homens de Cor no Brasil. In:
GOMES, Flávio dos Santos & DOMINGUES, Petrônio (org.) Experiências da
emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980).
São Paulo: Selo Negro, 2011.
DÓRIA, Júlio C. de S. A Confederação Abolicionista e o abolicionismo na Corte: projetos
e estratégias de inserção do negro na sociedade brasileira. Dissertação de mestrado. Rio
de Janeiro: UFRJ, junho de 2015.
DÓRIA, Renato de Souza. Memória e história da ocupação e dos conflitos de terra no
Sertão Carioca. In: POTENGY, Gisélia Franco. & VENANCIO, Ana Teresa A. O asilo e
a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira. Rio de Janeiro: Garamond, 2015.
DIAS, AMÁLIA. “Pelo salutar manejo da enxada e do arado”: o correio da lavoura e a
causa da instrução em Nova Iguaçu (1917-1950). Recôncavo – Revista de História da
Uniabeu, Nova Iguaçu: UNIABEU. vol 4, nº 6, janeiro/junho, 2014.
ENGEMAN, Carlos; SILVEIRA, Angela Maria Rosa; OLIVEIRA, Rogério Ribeiro de.
Magalhães Corrêa, o viajante do século XX. In: As marcas do homem na floresta: história
ambiental de um trecho urbano da Mata Atlântica. (org.) OLIVEIRA, Rogério Ribeiro
de. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2010.
ENGEMAN, Carlos; GUIMARÃES, Maria Aparecida de Oliveira. ; MUSITANO, Mirtes
Cavalcanti.; SILVEIRA, Angela Maria Rosa. Marcas das mãos. In: As marcas do homem
na floresta: história ambiental de um trecho urbano da Mata Atlântica. (org.) OLIVEIRA,
Rogério Ribeiro de. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2010.
FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Garamond.
Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz
Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1749
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

GOMES, Eduardo Rodrigues. Campo contra cidade: o ruralismo e a crise oligárquica no


pensamento brasileiro (1910-1935). – In: Revista Brasileira de Estudos Políticos. Belo
Horizonte, Minas Gerais: UFMG, janeiro de 1983.
GOMES, Flávio dos Santos. História de quilombolas: mocambos e comunidades de
senzalas no Rio de Janeiro (século XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
______________________. Mocambos e Quilombos: uma história do campesinato negro
no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.
______________________. “No meio das águas turvas”: raça, cidadania e mobilização
política na cidade do Rio de Janeiro (1888-1889). In: GOMES, Flávio dos Santos &
DOMINGUES, Petrônio (org.) Experiências da emancipação: biografias, instituições e
movimentos sociais no pós-abolição (1890-1980). São Paulo: Selo Negro, 2011.
GUIMARÃES, Elione Silva. Terra de Preto: usos e ocupação da terra por escravos e
libertos (Vale do Paraíba Mineiro, 1850-1920). Rio de Janeiro: Editora da Universidade
Federal Fluminense, 2009.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de história do Império. São Paulo: Companhia
das Letras. 2010.
LEMOS, Renato. A alternativa republicana e o fim da monarquia. In: GIRNBERG, Keila
e SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial, vol. III (1870 – 1889). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009.
MARTINS, Robson Luís Machado. Os caminhos da liberdade: abolicionistas, escravos e
senhores na província do Espírito Santo (1884-1888). Campinas, SP: Unicamp/CMU,
2005.
MENDONÇA, Sonia Regina de. O ruralismo brasileiro (188-1931). São Paulo: Hucitec,
1997.
__________________________. A Escola Superior de Agricultura e Medicina
Veterinária do Rio de janeiro: Agronomia, classe dominante e Estado na Primeira
República. In: Campo Aberto: O rural no Estado do Rio de Janeiro. CARNEIRO, Maria
José; GIULIANI, Gian Mario; MEDEIROS, Leonilde Sérvulo de; RIBEIRO, Ana Maria
Motta. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1750
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

NOFUENTES, Vanessa Carvalho. Um desafio do tamanho da nação: a campanha da Liga


Brasileira Contra o Analfabetismo (1915- 1922). Dissertação de mestrado em História.
PUC: Rio de Janeiro, 2008.
OLIVEIRA, Rogério Ribeiro de. Os cenários da paisagem. In: As marcas do homem na
floresta: história ambiental de um trecho urbano da Mata Atlântica. (org.) OLIVEIRA,
Rogério Ribeiro de. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2010.
RIOS, Ana Maria & MATTOS, Hebe Maria. Pra além das senzalas: campesinato, política
e trabalho rural no Rio de Janeiro pós-Abolição. In: Quase-cidadão: histórias e
antropologias da pós-emancipação no Brasil. (ORG.) CUNHA, Olívia Maria Gomes da.
& GOMES, Flávio dos Santos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
SILVA, Eduardo & REIS, João José. Negociação e Conflito. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
SANTOS, Leonardo Soares dos. Um sertão entre muitas certezas: a luta pela terra na zona
rural do Rio de Janeiro (1945-1964). Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 2005.
_________________________. Estado e Capital contra a sociedade em Jacarepaguá:
ontem e hoje. Disponível em < http://ihbaja.blogspot.com.br/2015/01/estado-e-capital-
imobiliario-contra-o.html>. Acesso em: 12 de julho de 2017.
_________________________. A desruralização da cidade como expressão da ruptura
do metabolismo entre cidade e campo: exemplo do Rio de janeiro de fins do século XIX.
In: De cidades e territórios. FRIDMAN, Fania (org.). Rio de Janeiro: PoD editora, 2010.
SCOTT, James C. Exploração normal, resistência normal. Revista Brasileira de Ciência
Política, nº 5. Brasília, janeiro-julho de 2011.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Fontes
Gazeta da Tarde, 13 de junho de 1891.

Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. COC/Fiocruz


Rio de Janeiro, 16 a 20 de outubro de 2017.

1751
Anais do 5º Seminário Fluminense de Pós-Graduandos em História
ISBN 978-85-65957-12-0
_______________________________________________________

A defesa de um capitalismo democrático pela ACRJ

JÚLIO CÉZAR OLIVEIRA DE SOUZA


PPGHS / Bolsista CAPES

A investigação e o debate sobre o modo de produção capitalista, na concepção de


Marx, tem como fulcro o trabalho. Nos manuscritos econômico-filosóficos, o trabalho é
apresentado como forma efetivadora do ser social. Ele é a mediação entre o homem e a
natureza, derivando dessa interação todo o processo de formação humana. O homem é
um ser social, assim, sua relação com a sociedade é indissociável. A partir desse
pressuposto, a centralidade da crítica marciana está relação trabalho-propriedade privada-
troca.
Com base no instrumental teórico de Marx, nossa proposta é realizar, de forma
sucinta, um debate sobre o conceito de capitalismo democrático e a inexistência de
conflito entre classes, ambos difundidos por frações da classe dominante. Como estudo
de caso, nossa discussão permeará a narrativa utilizada na Revista do Empresário, veículo
de comunicação da Associação Comercial do Rio de Janeiro. O recorte cronológico
estabelecido é o final da década de 1980.

O velho travestido de novo


Em editorial publicado em fevereiro de 1990, intitulado de “A nova hora”, a
Revista do Empresário discorre sobre expectativas em relação ao novo mandatário da
República e, como contraponto, fazia críticas à gestão política anterior, tanto do executivo
quanto do parlamento.
A linha argumentativa lançou mão de expressões como falta de confiança nas
instituições democráticas, administrações passivas e corruptas. A sobreposição do
interesse pessoal em detrimento do coletivo, caracterizando o individualismo, servia de
objeto de crítica à classe política, assim como a falta de valores ligados à nacionalidade
e a causas sociais. Destacando a questão moral, era “exigida” a restauração de padrões
mínimos de compostura e o respeito à coisa pública (ACRJ, 1990, nº 1256, p.3).
Do ponto de vista do capital no Brasil, nos parece que o discurso tem o propósito
de deslocar da questão econômica para a moral toda a problemática envolvendo a opção
po

Potrebbero piacerti anche