O Estado não é portanto absolutamente um poder imposto de fora à
sociedade; ele também não é "a realização da idéia moral", "a imagem e a realização", como pretende Hegel. Não; ele é uma produto da sociedade chegada a um estágio de desenvolvimento determinado; é o reconhecimento de que esta sociedade se embaraça numa insolúvel contradição consigo mesma, cindida por antagonismos irreconciliáveis, que ela é impotente para eliminar. Mas, a fim de que as classes antagônicas, interesses econômicos opostos, não se liquidem a si mesmos e à sociedade em lutas estéreis, tornou-se necessário que um poder, colocado aparentemente acima da sociedade, se encarregasse de diminuir o conflito, mantendo-o nos limites da "ordem". Tal poder, surgido da sociedade, mas que quer se colocar acima e dela se afasta cada vez mais é o Estado.
Em relação à antiga organização gentílica, o Estado caracterizava-se, a
princípio, pela repartição de seus jurisdicionados segundo critério territorial. As velhas associações gentílicas, constituídas e mantidas pelos laços de sangue, conforme vimos, tinham-se tornado insuficientes, em grande parte porque sua existência implicava na prerrogativa que, de há muito, já cessara. O território permanecia, mas os homens dispersavam-se. Tomou-se então a divisão territorial, como o ponto de partida e deixou-se que os cidadãos exercessem seus direitos e seus deveres nos lugares onde se estabeleciam, sem preocupação para com agens e a tribo. Esta organização de súditos do Estado segundo sua localização territorial é comum a todos os Estados. É por isso que ela nos parece natural; porém vimos quantas e quão penosas lutas foram travadas, antes de ter, em Atenas e Roma, tomado o lugar da antiga organização por ordem de raças.
O segundo ponto é a instituição de uma força pública, que não é mais o
povo armado. Esta força pública particular é necessária, porque uma organização armada autônoma da população tornou-se impossível desde a hora da cisão em classes. Os escravos pertencem também à população; os 90.000 cidadãos de Atenas formam, em face dos 350.000 escravos, uma classe privilegiada. O povo armado da democracia ateniense era, diante dos escravos, uma força pública aristocrática, impondo-lhes respeito; mas, para infundir também respeito aos cidadãos, uma polícia tornava-se necessária, como dissemos. Esta força pública existe em todo Estado; ela não consiste unicamente em homens armados, mas ainda em acessórios materiais, em prisões, em estabelecimentos penitenciários de toda sorte, dos quais a gens não conhecia nem sequer o nome. Ela pode ser pouco importante, quase insignificante, nas sociedades em que os antagonismos de classes não estão ainda desenvolvidos e sobre os territórios afastados, como acontece, em certos lugares e em certas épocas, nos Estados Unidos da América. Mas ela se reforça à medida que os antagonismos de classe se tornam mais agudos no seio do Estado e que os Estados limítrofes ficam mais poderosos e mais povoados. Basta observar nossa Europa atual, onde a luta de classes e a concorrência de conquistas elevaram a força pública a uma altura tal, que ameaça absorver toda a sociedade e até o próprio Estado.
Para manter esta força pública, são necessárias contribuições dos
cidadãos para o Estado. São os impostos. Estes eram completamente desconhecidos na sociedade gentílica. Atualmente podemos falar com segurança. Com o progresso da civilização tornaram-se insuficientes, o Estado emite letras de câmbio sobre o futuro, realiza empréstimos. São as dívidas de Estado. Ainda uma coisa de que a velha Europa pode contar novidades.
De posse da força pública e do direito de cobrar impostos, êis
funcionários colocados como órgãos da sociedade, acima da sociedade. O livre tributo de respeito, voluntariamente pago aos organismos do regime da gens, não é mais suficiente, admitindo que possam obtê-lo; portadores de um poder que se torna estranho à sociedade, é preciso fazê-lo respeitar por meio de leis de exceção, graças às quais gozam de uma santidade e inviolabilidade particulares. O mais baixo policial do Estado civilizado tem mais "autoridade" do que todos os organismos do regime da gens reunidos; mas o príncipe mais poderoso, o maior homem de estado ou de guerra da civilização pode invejar o respeito espontâneo e inconteste rendido ao menor chefe degens. É que um se move livremente dentro da sociedade, o outro é encarregado de representar alguma coisa fora e acima dela.
Tendo o Estado nascido da necessidade de segurar as rédeas dos
antagonismos de classe, em pleno conflito destas classes, em regra geral é o Estado uma força da classe mais poderosa, daquela que tem o domínio econômico, a qual, por seu intermédio, se torna também classe politicamente dominante e assim adquire novos meios de sujeitar e explorar a classe oprimida. É assim que o Estado antigo era antes tudo o Estado dos proprietários de escravos, para mantê-los sob jugo, assim como o Estado feudal foi o órgão da nobreza para sujeitar os camponeses servos e vassalos, e o Estado representativo moderno serve de instrumento à exploração do trabalho assalariado pelo capital. Entretanto, por exceção, produzem-se períodos por onde as classes em luta estão tão próximas de um equilíbrio que o poder do Estado adquire, como mediador aparente, uma certa independência momentânea perante as duas. É o caso da monarquia absoluta dos séculos XVII e XVIII que punha na balança a nobreza e a burguesia; é o caso do bonapartismo, do primeiro e sobretudo do segundo império francês, jogando o proletariado contra a burguesia e a burguesia contra o proletariado. A mais recente produção deste gênero, onde dominante e dominados desempenham idêntica figura cômica, é o novo império alemão da nação bismarqueana: aqui capitalistas e trabalhadores são colocados na balança uns contra os outros e igualmente roubados em proveito dos "abutres" prussianos degenerados. Na maioria dos Estados históricos, os direitos concedidos aos cidadãos são graduados de acordo com suas posses e, por conseguinte, é expressamente declarado que o Estado é uma organização para proteção das classes possuidoras contra os que nada possuem. Já era assim entre as classes organizadas conforme os bens de fortuna, em Atenas e Roma. O mesmo acontece no Estado feudal da Idade Média, onde o poder político era repartido de acordo com a propriedade territorial. Ainda o mesmo sucede nos censos eleitorais dos Estados representativos modernos. Entretanto, este reconhecimento político das diferenças de fortuna não é essencial. Pelo contrário, denota um grau inferior do desenvolvimento do Estado. A forma de Estado mais elevada --- a República democrática que, nas nossas condições sociais modernas, se torna cada vez mais necessária, e que é a forma de Estado sob a qual é possível travar a luta definitiva entre o proletariado e a burguesia --- a República democrática não reconhece mais oficialmente diferenças de propriedade.
Atualmente, a riqueza ainda exerce sua influência de maneira indireta,
porém mais segura. De um lado, sob a forma de corrupção direta dos funcionários, de que a América é modelo clássico; de outro, sob a forma de aliança entre o governo e a Bolsa. Esta aliança efetua-se tanto mais facilmente quanto as divisas de Estado crescem em valor e as sociedades por ações concentram, cada vez mais, em suas mãos, não somente os transportes, como também a própria produção, que, por sua vez, encontram na Bolsa seu ponto de convergência.
Além da América, a recente República francesa é um exemplo frisante,
assim como a heróica pequena Suiça. Para que uma República democrática não seja necessária a esta união fraternal entre a Bolsa e o governo é o que prova, depois da Inglaterra, o império alemão, onde não saberíamos dizer a quem elevou mais o sufrágio universal: se Bismarck ou Bleichroeder. Finalmente, a classe possuidora reina diretamente por meio do sufrágio universal. Enquanto a classe oprimida, no nosso caso o proletariado, não atingir a maturidade para sua própria libertação, julgará, em sua maioria , a ordem social existente como a única possível, e formará politicamente a reboque da classe capitalista, como sua ala extrema esquerda. Mas, à medida que se torna mais capaz de emancipar- se por si própria, constitue um partido à parte, elege seus representantes próprios e não os dos capitalistas. O sufrágio universal é uma espécie de índice de maturidade da classe trabalhadora. Entretanto, o sufrágio universal não é uma solução, nem nunca o será, dentro do Estado atual; mas não deixa de ser uma conquista. No dia em que o termômetro do sufrágio universal marcar para os trabalhadores o ponto de ebulição, eles saberão tão bem quanto os capitalistas o que lhes compete fazer.
O Estado não existirá, portanto, durante a eternidade. Houve sociedades
que viveram sem ele, que não tinham noção alguma de Estado nem de poderes de Estado. A um certo grau de evolução econômica, que era necessariamente ligado à cisão da sociedade em classes, esta cisão tornou o Estado uma necessidade. Nós nos aproximamos agora a largos passos de um estágio de desenvolvimento da produção, onde a existência dessas classes cessou de ser uma necessidade e se transformou num obstáculo positivo à produção. As classes cairão tão fatalmente como surgiram. Com elas inevitavelmente cairá o Estado. A sociedade, que reorganizar a produção sobre as bases de uma associação livre e igualitária dos produtores, carregará todo o maquinário do Estado para o local que será, daí para o futuro, o seu lugar: o museu de antigüidades, ao lado da roca e do machado de bronze.
( Trecho extraído de ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado, escrita e publicada em 1884)