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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO – INSTITUTO

MULTIDISPLINAR
LICENCIATURA EM HISTÓRIA

CHRISTOPHER ALVES GUIMARÃES

ENTRE MORTADELAS E COXINHAS

Nova Iguaçu – Rio de Janeiro


2019
CHRISTOPHER ALVES GUIMARÃES

ENTRE MORTADELAS E COXINHAS

Monografia apresentada ao curso de História como


requisito parcial para a obtenção do Título de
Licenciado em História do Instituto Multidisciplinar
da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Nova Iguaçu
2019
CHRISTOPHER ALVES GUIMARÃES

ENTRE MORTADELAS E COXINHAS

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________
Professor Doutor Marcos Caldas

_______________________________________
Professora Doutora Lúcia Helena

________________________________________
Professora Doutora Surama Conde Sá
Primeiramente quero agradecer à minha irmã, melhor amiga e porto seguro:
Teca, que sempre me apoiou antes e durante a graduação e que sempre me
incentivou a ser eu mesmo. Este trabalho também não seria possível sem a
orientação de meu mestre Jedi Luke Skywal ... Professor Marcos Caldas, pelas
conversas nas reuniões de orientação, sua atenção, compreensão e por nunca ter
duvidado da viabilidade do tema e nem de minha capacidade para escrevê-lo (deve
ser difícil orientar um desorientando, mas ele conseguiu). Quero agradecer também
aos meus amigos de graduação, professores, colegas e funcionários, pelas
conversas, orientações e indicações.

Por último, quero agradecer a toda à equipe terceirizada do IM: desde os que
trabalham no bandejão aos que trabalham na limpeza. O funcionamento da
universidade, e o meu aprendizado e o de muitos, é devido ao trabalho, muitas
vezes despercebido e desvalorizado, destas pessoas.
RESUMO

O objetivo deste trabalho é trazer uma compreensão histórica do fenômeno da


polarização que ocorreu no Brasil nos anos 2015-18. Argumentamos que ao
contrário do que o discurso político e intelectual da esquerda afirma a polarização
mortadelas e coxinhas não configura uma polarização entre as classes e sim uma
divisão ideológica dentro da classe trabalhadora, especialmente a classe C que
ascendeu socialmente nos governos petistas. Este trabalho também se apresenta
como um esforço no sentido de desenvolver os estudos de história do tempo
presente, defendemos e utilizamos fontes primárias retiradas da internet. Esperamos
que este trabalho seja o primeiro de muitos no intuito de aprimorar a presença (e
escrita) da história no tempo presente.

Palavras-chaves: polarização, história do tempo presente.


SUMÁRIO

Introdução: de outubro a outubro. .............................................................................. 7

1. Verdade e história do tempo presente.................................................................. 10

1.2 Breve histórico. .................................................................................................. 11

1.3 Os annales e a história do tempo presente: um exercício. ................................. 18

2. A história do tempo presente................................................................................ 20

2.1 As fontes. ........................................................................................................... 20

2.2 Historicidade. ..................................................................................................... 23

3. Entre mortadelas e coxinhas. ............................................................................... 27

3.1 Quem são os Mortadelas e coxinhas? .............................................................. 34

3.2 Polarização à mortadela ..................................................................................... 36

3.3 O pobre de direita .............................................................................................. 40

4. Conclusão ............................................................................................................ 44

5. Cronologia dos fatos ............................................................................................ 48

6.Bibliografia ............................................................................................................ 51

7.Lista de E-links ...................................................................................................... 52

8.Anexos .................................................................................................................. 53
7

Introdução: de outubro a outubro.

Outubro de 2016, os alunos da UFRRJ, campus de Nova Iguaçu se reuniam


em assembleia para decidir se o campus iria ou não aderir a onda de ocupações de
instituições de ensino superior e escolas estaduais que tomou proporções nacionais.
O motivo: a votação de dois projetos na câmara dos deputados: o primeiro, uma
emenda constitucional que, caso aprovada, congelaria os gastos públicos pelos
próximos vinte anos e, segundo, uma reforma no ensino médio, que reduziria as
matérias obrigatórias para português e matemática.

O espaço da universidade seria a principal vítima dessas reformas; Primeiro


porque a sua capacidade de funcionamento e expansão de matrículas depende das
verbas repassadas; e, segundo, porque muitos dos cursos de licenciatura oferecidos
perderiam seu atrativo, correndo o risco de serem fechados. Portanto, o que estava
em jogo era não apenas o futuro da universidade pública (e de seu acesso), mas
também das condições de formação humana do aluno do ensino médio.

O interregno de Temer (2016-18) já é objeto de debates acadêmicos e de


trabalhos na área da sociologia, ciência política e educação. Seja com o seu início,
através de um golpe parlamentar, do seu modus operandi, através da compra de
votos ou uso da repressão, até aos seus legados mais amargos, como as suas
reformas e desmontes.

No entanto, o objeto desta monografia não é o interregno. O impeachment da


presidenta Dilma foi a consumação da articulação política e social de setores do
empresariado, parlamentares, ministros, militares, mídia e apoio (simbólico) da
classe média para depor a ex-presidenta numa clara manobra de golpe político,
onde o grande vitorioso foi um projeto de neoliberalismo sem regulações sociais
para o trabalho, autoritário e repressivo em nível político, e moralista, segundo o
cristianismo pentecostal, nos costumes sociais. E além disso, foi um momento de
manifestação do fenômeno da polarização, que germina com as jornadas de junho
de 2013, mas ganha os seus contornos com as eleições presidenciais de 2014 e
segue seu desenvolvimento ao longo da crise política.
8

Voltando para a assembleia de outubro. Como jovem historiador, momentos


como esse podem ser (e às vezes são) preciosos pois muito daquilo que fica
escondido nos discursos e que se perde no cotidiano de repente encontram um
espaço e tempo para se materializarem, e o que chamou atenção foi a explícita
divisão entre aqueles que concordavam com a ocupação e aqueles que não a
apoiavam. Podemos traçar um paralelo com uma situação semelhante que havia se
passado em outubro de 2014, isto é ao longo das eleições presidenciais, onde o
País, desde o “campus”, até o espaço familiar e as redes de amizade, ficou dividido
entre os números 13 e 45. Foi uma surpresa para o jovem historiador que nesses
dois exemplos, cada lado tinha não só suas próprias visões de si e do outro, mas
narrativas e modelos explicativos (que os orientavam naquela realidade) que caso
fossem confrontados com uma análise embasada em dados explicariam muito
pouco do que realmente estava acontecendo.

O objetivo deste trabalho é falar do pouco trabalhado e analisado fenômeno


da polarização política ocorrido no período da crise política do governo Dilma (2014-
16), e do interregno de Temer (2016-18). Entendendo que se trata de um fenômeno
recente e que, portanto, se enquadra no que se convencionalmente se chama de
história do tempo presente, este trabalho se apresenta tanto como uma tentativa de
compreender o que se passou, mas também como um estudo de caso para essa
área da história.

Nós defendemos a ideia de que o historiador do tempo presente é o


historiador da sociedade global, em toda a sua complexidade e alcance. Um
historiador desse tempo é também observador e participante das situações,
acontecimentos, hábitos e crenças que estão presentes nessa sociedade. Logo, um
historiador que vivencia aquilo que estuda incorre num problema: qual é a garantia
de que esse trabalho será confiável e de que as considerações feitas nele poderão
ser usadas para fins historiográficos? Para sanar essa dúvida, devemos apresentar
ao leitor as reflexões sobre a relação entre historiador e seu objeto, que serão feitas
no primeiro capítulo. Em seguida, iremos dissertar sobre a história do tempo
presente: seus desafios, a problemática das fontes e seu grau de historicidade.
Seguindo a argumentação de Estrella (ESTRELLA, 2013), nós defendemos que o
historiador do tempo presente não deve evitar as fontes produzidas em âmbito
virtual, pelo contrário, deve estudar o tempo presente através deste. A internet é tão
9

importante para a história do tempo presente como o mar mediterrâneo e atlântico


são importantes para o entendimento da antiguidade e da colonização,
respectivamente.

No terceiro capítulo faremos uma contextualização do período histórico


analisado, trabalhando os significados pré-políticos (isto é, os significados que as
palavras tinham antes da crise política) do que se convencionou chamar
“mortadelas” e “coxinhas”, bem como as conotações políticas de mortadelas e
coxinhas. Mortadela e coxinha são palavras que adquirem conotação política tal qual
insultos o que nos dá pistas de, não como coxinhas, por exemplo, enxergam o outro,
mas como essa visão do outro é uma visão de si. Indo além, relacionamos as
conotações de mortadelas e coxinhas com um paradigma explicativo presente nos
meios acadêmicos e nos discursos políticos da esquerda, paradigma este que
chamaremos de paradigma do reacionarismo político, que é um modelo explicativo
que defende que a manobra parlamentar de 2016 foi uma reação das elites à
ascensão social do trabalhador pobre e negro nos âmbitos do trabalho formal e do
ensino superior. Este paradigma, a nosso ver, encontra uma contradição na
realidade material: o pobre de direita, que tanto serve a interesses partidários como
também se constituiu como um obstáculo para a consciência de classe.

No quarto e último capítulo, apresentaremos nossas conclusões acerca da


análise empreendida no capítulo anterior: a polarização deve ser pensada como um
fenômeno que afeta apenas uma classe, a trabalhadora e não como algo que afete
as classes no geral. Esta confusão, sutil, impediu que a classe trabalhadora pudesse
se organizar contra as medidas de austeridade. E, além disso, dividiu-a em relação
aos projetos então em conflito.

Este trabalho se apresenta com duas finalidades: a primeira é a de servir


como um estudo de caso para o campo da história do tempo presente, acreditamos
e desejamos que este trabalho seja um estímulo a muitos neste campo. A segunda
finalidade é a de tentar sistematizar, ainda que de forma parcial e limitada, o período
conturbado de crise política que fora vivenciado desde as eleições presidenciais de
2014, almejando um entendimento menos histérico e mais sóbrio, haja vista que nos
encontramos numa nova conjuntura.
10

1. Verdade e história do tempo presente.

É incomum que o pesquisador apresente a si em um de seus trabalhos. Na


maior parte das vezes, ele está implícito na escrita e no desenrolar dos argumentos.
Os textos acadêmicos são pretensamente impessoais e não são escritos na primeira
pessoa do singular. Essa técnica serve como meio para tornar o argumento do texto
em algo à parte do próprio escritor, como se ele visse o seu objeto de fora. E
garante ao texto um traço de veracidade. Então por que que o historiador do
trabalho tempo presente precisa desse exercício, o de se posicionar, esclarecer a
quem lê seu posicionamento ao escrever um tema no qual deve manter distância?
Este não é apenas um simples problema de método e sim um problema mais
profundo, que é o da epistemologia do conhecimento, da sua produção e da sua
validade. Problematizar essa relação é tarefa de todo aspirante historiador, pois este
debate faz parte da ciência histórica, desde sua formação no século XIX até os dias
atuais. Debater e refletir sobre essa relação é se posicionar dentro do espaço
acadêmico ao mesmo tempo que se define a sua relação com o conhecimento e os
métodos utilizados. Discutir a relação entre historiador e objeto é também uma
discussão que envolve a própria validade daquele conhecimento e a credibilidade do
cientista que o produziu. Ou seja, até que ponto aquele cientista é ou não capaz
tratar aquele tema com o mínimo de objetividade.
Para a história do tempo presente, essa reflexão é necessária pois em
tempos de pós verdade e fake news onde todo conhecimento é passível de ser
reduzido a simples opinião. Não é incomum ver críticas não ao discurso ou ao seu
conteúdo, mas ao próprio locutor quer seja por suas posições políticas ou por sua
aparência, preferência sexual ou religiosa. Ao atacar aquele que faz o discurso o
eixo do debate passa a ser menos sobre o conteúdo e mais sobre qual é a
legitimidade que o locutor tem de discursar sobre aquilo, e a legitimidade do próprio
conteúdo do discurso. Portanto, ao problematizar aquela relação (e se posicionar
dentro dos debates) assume-se uma postura contrária não apenas a ideia de que o
conhecimento possa ser desacreditado acriticamente, mas a todos que se
beneficiam dessa ideia, isso porque os assuntos e objetos do tempo presente, como
também do passado, muitas das vezes se confundem com interesses de grupos
políticos e movimentos sociais, isto quando não de setores do empresariado. E, em
se tratando de política, onde cada ator possui as suas próprias explicações (que
11

sempre escondem um interesse), um historiador do tempo presente se encontra


entre fogo cruzado. Some-se a concepção moderna de epistemologia
(conhecimento) e teremos um cenário mais complexo. Portanto, será necessário um
breve histórico das concepções de conhecimento (e de verdade) que existiram no
decorrer dos séculos XVIII e XX.

1.2 Breve histórico.

Até Kant (1781)1, alguns acreditavam que o conhecimento era produto da


razão e da metafísica (aquilo que está além do mundo físico, como o mundo das
ideias de Platão ou o paraíso segundo a filosofia cristã). Sendo assim, a razão seria
um instrumento que permitiria ao homem acessar a verdade que está além dos
nossos sentidos. Essa escola de pensamento, que começa com Platão, preconiza
um conhecimento (epistemologia) que seja ideal e puro. Ideal e puro porque tanto o
instrumento de acesso a ela (razão) como o próprio conhecimento (a verdade) não
estariam maculados pelos sentidos e/ou sentimentos. Séculos depois, a filosofia
liberal, que pregava a liberdade do indivíduo e seu direito à propriedade privada, e a
revolução industrial - que configurou novas relações de produção na sociedade
europeia- e científica do século XIX consolidaram um padrão de epistemologia
baseado na racionalidade, na evidência empírica e na imparcialidade não apenas
como pilares do conhecimento, mas também como princípios metodológicos, o
assim chamado paradigma positivista. Aqui podemos ver as influências kantianas -
já que a razão sozinha não prova nada sem a presença de evidências empíricas -
mas também algumas permanências no que diz respeito a objetividade daquele
conhecimento, que só será garantida se este for produzido por um cientista neutro.
Em contrapartida, na Alemanha, de industrialização tardia, o paradigma historicista
preconizava a subjetividade do historiador, ou seja, ele (historiador) também faz
parte da história e, portanto, seu conhecimento será imperfeito. A subjetividade para
os historicistas, tanto do homem como do historiador, não é vista como um obstáculo
mas aquilo que garante ao conhecimento histórico uma especificidade própria
(BARROS, 2011)2
Ambos os paradigmas concordam que o conhecimento precisa ter bases
materiais - empíricas - para ser válido. As divergências começam quando se fala do

1
Isto é, com a publicação de seu livro A crítica da razão pura
2
P.68.
12

caráter daquele conhecimento. Para o positivismo, é possível construir


um conhecimento puro. Para tanto, é primordial que o cientista seja imparcial na
escolha e análise dos dados. Outro termo que foi usado é o de neutralidade, que é
intercambiável com imparcialidade. O paradigma historicista afirma que a
subjetividade do historiador é um elemento que impossibilitaria a produção desse
conhecimento objetivo.
O século XIX, no que diz respeito à produção científica e a sua reflexão, viu-
se num embate entre estes dois paradigmas que mais do que uma simples
abordagem possível da história eram também discursos que buscavam responder
perguntas da filosofia sobre o que é o conhecimento e até que ponto ele é (ou não)
uma verdade. Os positivistas e historicistas do século XIX encontram-se, portanto,
num debate sobre até que ponto essa razão empírica pode servir de instrumento
para a produção de um conhecimento objetivo.
Concomitante à formação desses dois paradigmas surge também o
paradigma que viria a ser chamado de materialismo histórico dialético, elaborado e
proposto por Marx e Engels em seu livro a Ideologia Alemã, que não foi publicado no
século XIX por escolha dos próprios autores. O paradigma materialista histórico
dialético é formado por uma tríade que dá nome ao paradigma. É materialista porque
se opõe ao idealismo - a existência de uma metafísica e de uma razão pura - em
prol de uma análise das condições materiais existentes numa determinada
sociedade. (BARROS, 2011)3É histórico pois entende que a sociedade está inserida
numa temporalidade e esta possui um horizonte de ações e de condições materiais
possíveis. (BARROS, 2011)4Por fim, é dialético pois entende que o movimento
(síntese) das sociedades se dá através do choque de forças opostas (tese e
antítese), ou seja, as mudanças sociais (síntese) são fruto de contradições
5
presentes nas condições materiais daquela sociedade (luta de classes ou síntese).
A epistemologia marxista (concepção de conhecimento) encontra pontos de
contato entre os paradigmas positivista e historicista no que diz respeito à razão ser
um instrumento limitado pela materialidade. No entanto, se afasta do positivismo
porque não concorda com a neutralidade do cientista. O que um cientista ou
historiador positivista chama de imparcial, o marxista chamaria de ideologia. A

3
P.48-57.
4
P.41-48.
5
Ibidem.
13

ciência faz parte da consciência que a sociedade industrial tem de si, é, portanto
uma ideologia, uma falsa consciência. Para um historiador materialista histórico
dialético o conhecimento que não esteja aliado à uma práxis é alienante e faz parte
da ideologia.6 Há aqui um avanço em relação aos paradigmas mencionados
anteriormente: enquanto o positivismo entende que o conhecimento serve como um
instrumento para encontrar leis gerais da história , e o historicismo entende que o
conhecimento histórico sirva para uma melhor compreensão do passado e sua
singularidade, o materialismo histórico dialético entende que o conhecimento além
de servir para compreender a realidade (sem esgotá-la) é também um instrumento
de transformação do presente.
O paradigma do positivismo entra em declínio no auge do século XIX,
principalmente com a primeira guerra, que faz com que a crítica ao projeto de
racionalidade da modernidade entre em cheque. A crise de 29 e ascensão do
fascismo e a criação da União Soviética colocam novos problemas para a história.
Como a história factual poderia explicar um fenômeno profundo como a crise de 29?
Qual é o espaço, dentro da história política tradicional, para explicar a ascensão do
nazi-fascismo não apenas na Europa, mas no mundo?
O paradigma materialista histórico, com o sucesso da revolução de outubro
de 1917, ganha prestígio e passa a disputar espaço dentro do meio acadêmico.
Começam a surgir historiadores que pensam a história dentro do prisma proposto
por Marx e Engels. A escola marxista inglesa é um exemplo dessa tentativa dos
historiadores em aplicar propostas marxistas ao estudo da história.
Conjuntamente ao marxismo, as contribuições da “escola dos annales” (não
confundir com um paradigma) para a ciência histórica foram tamanhas que muitas
das suas propostas para pensar a história, hoje, fazem parte da matriz disciplinar da
história. Não se imagina hoje uma história que não seja problematizadora,
interdisciplinar e historicista. (BARROS, 2012)
Um pequeno parágrafo sobre a relação entre a escola dos annales e o
marxismo é necessário. Não há uma oposição ou rejeição total por ambas as partes
das contribuições propostas e elaboradas.. A escola dos annales não propunha, em
seu programa, a adesão a um paradigma, ou que seus membros se envolvessem

6
Importante ressaltar que o conceito de ideologia possui mais de uma acepção que varia de autor para autor.
A de ideologia como falsa consciência é uma delas e é a que nós escolhemos para fins deste trabalho.
14

politicamente, como o paradigma materialista histórico prevê. (BARROS, 2013)7. O


que quero dizer com isso é que a relação intelectual entre essa escola e este
paradigma se dera mais em interações e assimilações do que numa oposição.
As três principais contribuições da escola dos annales, para efeitos deste
trabalho, são aquelas que pensam o tempo nas suas múltiplas temporalidades, a
relação entre passado e presente e a história problema. Sobre a primeira, os
annales propõem pensar no tempo como tendo múltiplas temporalidades e
durações. O tempo, então, não é o mesmo para a economia, para a política e para
as mentalidades (o que viria a ser o campo da história cultural), seu ritmo é
diferente. (BARROS, 2012)Na relação de alteridade entre passado e presente, o
tempo presente, na concepção dos annales, produz a sua visão sobre o passado. O
historiador então, ao pesquisar certo tema ou sociedade do passado, está buscando
responder perguntas do seu tempo. A terceira contribuição é a da história problema,
essa concepção se opõe à história factual, porque nesta basta que o historiador
recolha os fatos para que eles, por si só, façam o trabalho de explicar o passado. Na
concepção dos annales, não é o fato que fala por si só, mas é a pergunta certa que
faz com que o fato diga algo sobre o passado (BARROS, 2012)8. E os fatos só têm
importância histórica quando eles podem responder a pergunta-problema do
historiador; deve-se lembrar também que as perguntas do historiador são as
perguntas do seu tempo presente (mas essa ideia será trabalhada mais adiante). A
proposta de pensar a história como uma ciência movida pela provocação de um
problema não respondido traz uma legitimidade não apenas a ciência histórica, mas
garante ao trabalho um propósito que ele não teria se se baseasse em contar os
fatos. As propostas dos annales precisam ser pensadas também para a história do
tempo presente que será feito mais adiante.
Contrariamente ao paradigma positivista, os marxistas e annales rejeitavam a
ideia de imparcialidade. Enquanto os marxistas afirmam que o conhecimento está
aliado a práxis - e que, portanto, escrever uma história imparcial e neutra é estar a
serviço da ideologia dominante - os annales aprofundaram ideias do paradigma
historicista sobre a relação de alteridade entre presente e passado e da
subjetividade do historiador.

7
P.194-206.
8
P.109-140
15

As décadas de 1930-70 marcam na historiografia o período da história


estruturalista e encontra-se neste período a convivência e interação das propostas
para pensar a história dos annales e o paradigma materialista histórico dialético. O
conhecimento histórico nesse período era marcado pela ideia de que o historiador
está imerso no tempo - e que suas questões/problema são as questões do seu
tempo e da subjetividade do historiador no que diz respeito a sua posição e
convicções políticas e filosóficas sobre a história. Assim, o conhecimento não era
perfeito, como no paradigma positivista, mas não era menos científico por isso, e
isso se explica tanto pelo método como também pela defesa da ideia de que era
essa subjetividade e imersão do historiador na sociedade e no tempo que
caracteriza as ciências humanas, elas não almejavam, portanto, equiparar-se às
ciências da natureza.
A década de 1970 traz mudanças nessa forma de pensamento. A crítica ao
paradigma marxista, o advento da Nouvelle Histoire e o movimento pós moderno -
que ganha força com a queda do muro de Berlim, são fatores chaves para que
possamos entender em quais pontos essas mudanças foram operadas. O que se
pode afirmar em princípio é que o que se pôs em xeque, em princípio e nos limites
da crítica, foi o caráter científico da história e a proposta de ver o ofício do historiador
como literatura.
Ao marxismo, as críticas dos pós modernistas da década de 1970 foram
direcionadas tanto ao socialismo real como ao determinismo econômico. Em
contrapartida, propunha-se uma história que desse relevância aos aspectos
culturais, que, segundo os autores da década de 70, fora ignorada pelos marxistas.
(A escola marxista inglesa, é muito importante ressaltar - cujos membros destacam-
se os trabalhos de E. Thompson - está também inserida nesse processo, embora ela
não marque uma ruptura com o pensamento marxista).
Aos annales, a crítica da Nouvelle Histoire mirou nas tentativas de contar uma
história totalizante, que pudesse dar conta de grandes aglomerados sociais e largos
arcos temporais. A história nova deveria então se concentrar no estudo de
realidades locais e regionais, ou aquilo que François Dosse chama de história em
migalhas. A micro-história também é outra forma de escrever história que surge
nesse período.
Embora o “front” do pós-modernismo tenha se entrincheirado em países
diferentes, a bandeira em comum que podemos destacar é a da crítica do
16

pensamento estruturalista, seja o marxista - econômico - ou dos annales - no que diz


respeito a uma história que almeja ser totalizante o que pode nos permitir se referir a
esse movimento (também) como pós-estruturalista.
Essas propostas de rever a história são em si atraentes, primeiramente,
porque elas mostram a complexidade da realidade através das experiências vividas,
do cotidiano e de alguns postulados, principalmente aqueles relacionados às
relações de dominação. Segundo, ao mostrar essa complexidade, podemos ver que
os indivíduos, grupos ou classes têm a sua própria percepção sobre a sua realidade
que podem ficar ocultas nas pesquisas de cunho serial ou econômico-estrutural. Um
problema dessas propostas, ironicamente, é que elas podem levar a uma
relativização das estruturas de dominação, políticas e econômicas, podendo levar,
em seu limite à negação total delas.
Feito esse breve histórico, qual é a condição do conhecimento na sociedade
global? Na introdução da coletânea Domínios da História (CARDOSO, 1997), um
conjunto de ensaios sobre teoria e metodologia da história, o historiador Ciro
Flamarion faz uma espécie de estado da arte da disciplina história onde ele enxerga,
no plano macro teórico, dois grandes paradigmas: o iluminista e o pós-moderno.
(CARDOSO, 1997)
Num esforço de dar conta de um universo tão diverso e plural, como é o da
produção acadêmica, fica claro que o autor comete grandes exageros em reduzir
esse mundo a dois grandes paradigmas, o próprio autor concorda com isso, mas
desenvolve esse argumento focando nos pontos centrais desses dois paradigmas, e
embora a coletânea tenha sido publicada no ano de 1997, essa visão macro teórica
de Flamarion ainda serve para orientar os recém chegados ou já experientes
profissionais da história.
Na tipologia de Flamarion, o paradigma iluminista, ou moderno, corresponde
tanto ao marxismo como a escola dos Annales. O autor afirma que esse paradigma
foi o mais influente ao longo do período 1929-69 e tinha como características
centrais a defesa de que a história é uma ciência e que sua produção é racional e
objetiva e deve ser feita através do diálogo interdisciplinar com as outras ciências
sociais. Além disso, tinham em seu “programa”, se é que podemos usar este termo,
a ausência ou até mesmo negligência dos aspectos subjetivos, como a cultura e a
política, produzindo um conhecimento histórico que dava primazia a grandes
17

aglomerados coletivos - como classes sociais, por exemplo - e análise das


estruturas, com destaque a econômica. (CARDOSO, 1997)9
Esse paradigma, buscava sempre escrever uma história explicativa e que
pudesse dar inteligibilidade para o objeto tratado, ao mesmo tempo que se
respeitava as especificidades do momento histórico. Sua concepção de
conhecimento(epistemologia) é a de que a história é uma ciência, porque é capaz de
tratar com racionalidade seus objetos, apesar de que ela, ao contrário das ciências
naturais, nunca chegará a uma verdade absoluta ou a leis gerais. Ao contrário, o
conhecimento histórico está sempre em construção porque cada época produz sua
própria visão do passado ao mesmo tempo que formula suas próprias questões
sobre ele (o passado) e sobre si.
Em contrapartida ao paradigma iluminista, surge, como crítica, o paradigma
pós-moderno, a partir do ano de 1969, com o movimento da Nouvelle Histoire e
também apoiado por fatos da história do século XX, como as guerras, o socialismo
real e o holocausto. Esse paradigma argumenta que o projeto de modernidade,
baseado no movimento do progresso, fracassou e que em grande medida a
racionalidade científica foi responsável por isso, na medida em que serviu para
justificar os fatos acima mencionados.
O paradigma pós moderno, portanto, se isenta de propor uma história que
seja racional, no sentido de dar uma explicação ao todo, em prol não de uma
história, mas de histórias, não uma história centralizada, mas histórias
descentralizadas (CARDOSO, 1997), em migalhas (DOSSE, F.). Para Flammarion,
os aspectos centrais desse paradigma são: (1) a dualidade natureza/cultura, que é a
ideia de que o objeto das ciências humanas são diferentes dos objetos das ciências
naturais, e que portanto, não é possível uma aproximação metodológica; (2) o lugar
do sujeito(como ator social e como observador do social), ou seja, dar enfoque para
o indivíduo ou pequenos grupos, mas também, por parte do observador, em
reconhecer a própria subjetividade e que ele é parte integrante daquilo que estuda;
(3) uma revisão dos critérios de validação, de modo que a história seja vista como
uma hermenêutica. Já que o historiador é um sujeito dotado de subjetividade, as
fontes e seu objeto também o são; o que acontece nesse diálogo é mais uma
interpretação subjetiva do historiador daquilo que ele estuda do que uma análise que

9
P.22-38.
18

chega a uma conclusão de fato; (4) a inevitabilidade de uma multiplicidade de


interpretações para cada objeto estudado, isto é, já que a operação historiográfica é
uma interpretação, a leitura tanto sobre o trabalho final, como também do próprio
tema também serão interpretações próprias, de forma que existam múltiplas leituras
sobre um mesmo tema, trabalho e que todas elas sejam válidas, sem hierarquias.
(CARDOSO, 1997)10
Flamarion conclui dizendo que alguma das mudanças propostas pela nova
história vieram para ficar, e que é necessário que os historiadores ajam na
elaboração de um novo paradigma que saiba articular os aspectos chaves desses
dois paradigmas.
O saber científico das décadas de 1930-70 foi duramente criticado pelos
revisionistas. A queda do muro de Berlim e a vitória do modo de produção capitalista
não enterraram, mas serviram como golpe mortal ao paradigma marxista, que ficou
recluso em grupos de estudos em universidades, perdendo seu espaço social. A
história “acabou” e passou ter status de texto literário, sem caráter científico, uma
mera interpretação do objeto histórico. E os saberes passaram a ter valor tecnicista,
isto é, se um determinado saber não for útil para o trabalho ou para a sobrevivência
dos indivíduos, então ele não será assimilado. O aprender então, ficou limitado a
saberes tecnicista e a formação humana e intelectual é conteudista: mede-se não a
capacidade de organizar ideias e desenvolver pensamentos, mas sim a capacidade
com que você pode lembrar fatos, narrativas e personagens e os atuais intelectuais
da mídia vêm apenas para reforçar esse modelo, onde o ideal é saber um pouco de
tudo e muito de nada. Para a história isso significa que ela ficou circunscrita no
ambiente acadêmico.

1.3 Os annales e a história do tempo presente: um exercício.

As contribuições dos annales precisam ser pensadas na história do tempo


presente, e como foi dito anteriormente que deixaríamos essa discussão à parte,
aqui está ela. Para tanto, oferecemos ao leitor um pequeno exercício de imaginação.
Pareceu-nos ser uma forma mais didática de argumentação e também mais prática.

10
P.40
19

Imagine um projeto de historiador. Ele ainda não é um, está aprendendo a


ser. Agora imagine que ele trabalhe numa escola municipal a vinte minutos de
distância da sua casa. Todos os dias da semana ele sai e caminha até a escola.
Nesse trajeto, o historiador não encontra a história? Não pode a história tratar do
presente? Caso ele passe por uma pequena igreja evangélica, esta é uma igreja
isolada? Está ali desde sempre? Por que uma igreja evangélica e não católica? O
que a ausência de uma igreja católica ou terreiro de umbanda diz sobre aquele
lugar? Sobre as pessoas que moram perto? Por onde o historiador passa ele
encontra casas amontoadas em cima de casas, dentro de terrenos pequenos os
moradores usam e abusam do espaço que está ao lado e em cima para improvisar
casas e puxadinhos. Que relações com o espaço (e com a terra) essas imagens
traduzem? Talvez que o imóvel seja muito caro então as famílias convivam juntas
num mesmo espaço? Ou talvez seja um hábito das famílias de morarem juntas no
mesmo terreno? Por quê, então? Se as casas tiverem muros altos, arame farpado
ou cacos de vidro em cima do muro, o que isso diz sobre a sensação daquelas
pessoas? O que falar, então, da relação público/privado desse espaço? O espaço
público é seguro? Por que algumas usam arame farpado e outras cacos de vidro?
Se ele encontrar ruas asfaltadas, placas de sinalização, o que isso diz sobre
aquele espaço? Que ele está integrado ao resto do mundo? Que relações se
estabelecem, então? Se um caminhão da prefeitura passar recolhendo lixo, o que
dizer sobre políticas públicas? Sobre responsabilidade do Estado? E se o historiador
avistar uma ambulância de um hospital particular, poderá ele deduzir que a saúde
não é responsabilidade do Estado, mas que a coleta de lixo sim. Por quê, então?
Que condições possibilitaram que a saúde esteja nas mãos privadas e não públicas?
Digamos que esse historiador encontre, colado num poste, um adesivo de
campanha eleitoral da eleição anterior. Já desbotado, mal se pode ler o número de
cinco dígitos do candidato a deputado. O que isso diz sobre democracia? Que ele
encontre também um grupo de mulheres hasteando bandeiras para o atual
candidato a governador: que relação está sendo estabelecida ali? É exercício da
democracia ou relação capital e trabalho?
Imaginemos agora, que durante o trajeto, o historiador seja assaltado por dois
homens numa motocicleta. Que noções sobre trabalho, liberdade e individualidade
fazem parte da mentalidade daquela sociedade para que o assalto por dois homens
20

numa moto seja tipificado como crime e não como desconto na folha de pagamento?
O que esse acontecimento traduz sobre a moral dessa sociedade?
O propósito deste exercício foi o de mostrar que o nosso cotidiano é imbuído
de história. Sendo assim, o nosso presente também o é. Nossos questionamentos
sobre o presente nos levam a buscar a história. Nesse exercício trabalhamos o
presente (o cotidiano) a partir das três contribuições dos annales para a história. E
se neste conseguimos mostrar que um simples trajeto ao local de trabalho é história
então o que dizer de outras dimensões do presente? O historiador trabalha com
fontes, conjecturar sobre cada uma das perguntas feitas acima não é fazer história,
para que um trabalho de história do tempo presente seja um trabalho histórico, ele
precisa usar do método da observação histórica.

2. A história do tempo presente.

Escrever uma história do tempo presente é um desafio. Para os desavisados,


pode parecer um privilégio, pois acreditam que o historiador tem contato direto com
seu objeto, sem intermediários, acham que, por estarem mais próximos do objeto,
temporalmente, essa proximidade faz do seu trabalho histórico algo diferente do
trabalho histórico de alguém que estude o oráculo de Delfos. A história do tempo
presente é um desafio porque para escrevê-la traz três problemas: primeiro que o
historiador, por estar fazendo parte daquele momento histórico, pode não fazer uma
análise com objetividade, ainda mais se ele não refletir sobre a sua relação com o
objeto e com o tempo. Segundo, contraditoriamente, porque o historiador tem muitas
fontes à sua disposição o que pode fazer com que ele não faça escolhas corretas,
que prejudicará seu trabalho. Terceiro e último, o historiador do tempo presente
corre o risco de não escrever um trabalho historiográfico, e sim um trabalho de
sociologia, antropologia ou jornalismo. Seguimos então para tratar da questão das
fontes e da historicidade do trabalho.

2.1 As fontes.

A escolha das fontes é subjetiva, apesar do historiador almejar um trabalho


objetivo. Portanto, é necessário que o historiador entenda seu problema pois é a
partir dele que ele escolherá as fontes mais representativas.
21

Já foi dito e será repetido que o historiador do tempo presente é o historiador


da sociedade global é a base de todas as relações sociais da sociedade global é
pela internet. Pensar a internet apenas como um espaço virtual é ignorar suas raízes
no material. A internet é uma ferramenta constante e presente no cotidiano dos
homens desse tempo. É por ela que eles trabalham, procuram emprego, se
relacionam e negociam bens e serviços. Portanto, a internet deve ser vista como um
local onde o historiador possa buscar suas fontes e ser ela própria sua fonte. Da
mesma forma que um historiador da antiguidade não pode ignorar a importância do
Mediterrâneo, também não pode o historiador do tempo presente ignorar a internet e
sua importância.
A historiadora Amanda Estrella, em trabalho de monografia defendido em
2013 (ESTRELLA, 2013), escreve sobre as possibilidades da história na era digital,
ela argumenta que negligenciar a esfera digital no cotidiano das sociedades
modernas é negligenciar grande parte daquilo que essa sociedade produz e pensa
sobre si mesma (ESTRELLA, 2013). Um trabalho de história, feito e escrito com
suporte digital não é menos histórico e científico do que um que tenha sido feito em
visitas aos arquivos. A autora dedica um capítulo para as iniciativas que instituições
governamentais e internacionais têm de digitalizar arquivos, fontes, livros, imagens e
vídeos e disponibilizá-los em plataformas virtuais de livre acesso a todos
(ESTRELLA, 2013)11.Portanto, um historiador do tempo presente, isto é, da
sociedade global, deve estudar e analisar as fontes digitais como redes sociais,
blogs, jornais virtuais, canais de vídeo etc.
A historiadora também faz uma tipologia das fontes que se encontram no
meio digital. Seguindo a proposta de Almeida (apud ESTRELLA,2013.p.19) ela
divide as fontes em dois tipos: as fontes primárias e as “não primárias”, ou seja, as
primeiras seriam aquelas produzidas exclusivamente o meio digital e veiculadas na
internet. O segundo tipo (“não primárias”), são documentos primários, de variados
tipos que são digitalizados para a rede (ESTRELLA, 2013)12.
O que significa que essa trabalho usará como suporte as fontes digitais
primárias. Isto é, aquelas que são produzidas na internet para serem veiculadas na
própria (ESTRELLA, 2013).

11
P.33-35
12
Ibidem.P.30.
22

Sendo feita essa escolha, onde, na internet, um historiador do tempo


presente, que esteja estudando um fenômeno da política nacional, vai encontrar
suas fontes? As interações humanas via internet produziram uma cultura
globalizada, ainda que cada país e região mantenha suas especificidades, que se
sustenta no suporte audiovisual, isto é, o conteúdo que é produzido na internet, em
sua maioria, é composto desse formato. O texto perde cada vez mais espaço e
passa a ser mais curto e conciso, textos longos têm maiores chances de serem
ignorados na avalanche de fotos, memes e vídeos o que obriga o historiador a
também pensar a sociedade global através dessas fontes, e se seguirmos a
premissa de que toda imagem é também um texto, cabe ao historiador decodificar
esse texto tratando os conteúdos audiovisuais como fonte.
Como o historiador pesquisa essas fontes na internet? Atualmente existem
plataformas nacionais e internacionais de acervos e bancos de dados contendo
fotos, textos e até vídeos (ESTRELLA, 2013). No entanto, esses espaços guardam,
majoritariamente, fontes não primárias (aquelas que foram produzidas na internet
mas são trazidas para esta para serem circuladas) e ainda assim, faltam fontes mais
recentes nesses espaços, haja vistas a magnitude do trabalho de digitalização que
se impõe como uma tarefa interminável.
Como procurar pelas fontes, então? Tendo em vista que o objeto de estudo é
um fenômeno político recente e que sua grande novidade - se comparada a outros
momentos da política nacional brasileira - é o uso a nível nacional da internet como
espaço de produção de conteúdo então as fontes desse historiador ainda estão
frescas e não estão arquivadas, estão em circulação e disponíveis para visitantes
em links ainda funcionais. Ou seja, as fontes que usaremos serão encontradas nos
sites de jornais digitais, mas também podem ser encontradas com o auxílio da maior
ferramenta de busca da internet: o Google.
Parece uma ideia infantil, e até boba, escrever um trabalho de história
usando uma ferramenta tão comum no dia a dia da maioria da população. Pode-se
até afirmar que qualquer internauta pode escrever um trabalho de história: basta
pesquisar os termos chave na plataforma e inserir um intervalo de tempo para
restringir a busca e ali estarão os links para acessar várias “fontes” históricas. No
entanto, nós consideramos improcedente negligenciar essa plataforma para fins
deste trabalho. O historiador é alguém que é treinado no ofício da história, atividade
23

reflexiva, baseada na escrita e leitura sobre qualquer assunto que envolva os


homens no tempo.
O Google possui uma ferramenta de busca avançada, onde podemos
procurar por links, vídeos e imagens a partir de uma palavra, ou sentença específica,
podendo inclusive excluir certas palavras e ou sentenças dos resultados da
pesquisa. Podemos restringir os resultados a um intervalo de tempo, país de origem
da publicação e região. Como a maioria da internet, com exceção da “deepweb”,
está atrelada ao Google, muitas das notícias de jornais, vídeos e até charges de um
período específico (como por exemplo, junho de 2013) podem ser encontradas com
um ajuste na pesquisa. Dessa forma o historiador pode encontrar uma notícia sobre
os protestos de 13 de março de 2015, bem como vídeos de manifestantes no dia
como também pode (caso queira) ler as reações na seção de comentários ditas na
época. Este foi o caminho metodológico que escolhemos para a produção deste
texto e esperamos que sirva de estímulo para que outros historiadores participem e
aprimorem as técnicas e métodos de pesquisa.

2.2 Historicidade.

Sobre o risco de seu trabalho não ser histórico, esse problema é envolvido
por um outro problema que é o de que: se questionar sobre história do tempo
presente é se questionar sobre o que é história e como ela se diferencia da
sociologia, antropologia e jornalismo. Ou seja, é entender qual a especificidade e o
objeto da ciência história.
Em relação ao campo da política, um sociólogo se pergunta sobre e/ou
analisa a correlação de forças, os atores políticos, as estruturas partidárias,
institucionais, os projetos em disputa, os interesses, as alianças, os programas da
conjuntura e do tempo que está inserido. O antropólogo problematiza, estuda e
analisa as relações de alteridade e identidade que existem em campos políticos
distintos e como eles se relacionam. Os jornalistas se questionam sobre coisas
factuais como quem faz acordo com quem, de quem é o triplex, quem ganhou a
eleição e quando, se a faca era de aço inox ou de plástico, quem é o delator, quem é
chefe da quadrilha e assim por diante. Tais considerações não tem como intenção
desmerecer nenhuma dessas disciplinas, pelo contrário, busca apenas mostrar as
suas especificidades. Aliás, a própria história aprendeu muito com os diálogos
interdisciplinares. Os historiadores, sociólogos, antropólogos ou jornalistas são
24

necessários porque eles suprem a demanda que a sociedade tem de entender a si


mesma. (lembrando que toda sociedade produz consciências sobre si), entender seu
papel é entender a sua especificidade, ou seja, o que define e delimita as fronteiras
dessas disciplinas.
Qual portanto, a fronteira da história? Qual é a sua especificidade? Um
historiador pode se questionar sobre todos os itens acima mencionados e ainda
assim escrever um trabalho de história. Onde está a diferença? A sociologia política
se preocupa, dentre outras coisas, com processos e momentos conjunturais, o
jornalismo está preocupado em responder questões factuais - quem, quando, como,
onde. O antropólogo se preocupa principalmente com a alteridade, a conjuntura e os
fatos apenas servem para explicar aquela.
O historiador pode se preocupar com todos os problemas acima desde que
ele os insira dentro do tempo e este “não é uma reta, nem uma linha quebrada feita
por uma sucessão de períodos, nem mesmo um plano: as linhas entrecruzadas por
ele compõem um relevo. Ele tem espessura e profundidade.” (PROST, 2008)13. Ou
seja, os aspectos que envolvem os homens - política, cultura, economia - tem seus
próprios tempos e seja próprios ritmos: às vezes eles se encontram, às vezes eles
atrasam os outros, mas entender as múltiplas temporalidades que envolvem os
homens em sociedade é um passo importante para compreender a especificidade
do trabalho do historiador.
Por trabalhar na dimensão temporal, o historiador deve tomar duas
precauções. A primeira é evitar “o mito das origens” (BLOCH), isto é, um historiador
não trabalha com os resultados de um processo, mas com as condições que
possibilitaram àqueles resultados (BLOCH)14. Segundo o historiador também deve
evitar cair em fatalismos, ou seja, não se pode tomar o processo histórico como algo
predestinado a acontecer. Por ver o processo histórico como um todo o historiador
corre o risco de enxergar nas fontes resquícios de uma linha mestra, como se os
atores que venceram pudessem antever a vitória antes que ela chegasse. O
processo histórico, e especialmente na política, é feito de avanços e recuos, bem
como de escolhas que levam os atores ao desfecho do processo tal como ele é.
Fossem feitas escolhas diferentes, talvez o resultado seria outro e este exercício não
é uma das tarefas do historiador.

13
P.114.
14
P.41-44.
25

Tendo respondido o terceiro problema, encontramos agora um novo: o que é


a história do tempo presente? Quão diferente é uma história do tempo presente para
uma história?

“Acredita-se poder colocar à parte uma fase de pouca extensão no


vasto escoamento do tempo. Relativamente pouco distante para nós,
em seu ponto de partida, ela abarca, em seu desfecho, os próprios
dias em que vivemos. Nela, nada, nem as características mais
marcantes do estado social ou político, nem o aparato material, nem
a tonalidade genérica da civilização, nela nada apresenta, ao que
parece, diferenças profundas com o mundo onde temos que nossos
hábitos. Ela parece, em suma, afetada, em relação a nós, por um
coeficiente muito forte de „contemporaneidade‟. Daí a honra ou a tara
de não ser confundida com o restante do passado.” (BLOCH, Marc,
p.45)

Nesse trecho Bloch faz uma crítica à um pensamento, no meio acadêmico,


que acredita que o presente é como um se fosse um bloco temporal à parte do resto
do passado.
Nessa perspectiva, o presente é área dos sociólogos, antropólogos e
jornalistas. O historiador não pode se esmerar nesse campo porque o presente, de
alguma forma, seria diferente do passado, de que ele requer métodos diferentes dos
que o historiador utiliza.
O tempo presente é diferente do passado. Não há mentira nessa afirmação
pois todo momento histórico é singular por si, ainda que tenha muitas semelhanças
com algum momento do passado. Agora afirmar que o presente não é área para o
historiador gera outras perguntas: qual a grande diferença do presente para o resto
do passado? Por que um historiador não pode pesquisá-lo como outro tempo
qualquer? Estudar o presente é tão diferente de estudar um outro período histórico
qualquer?
O ponto central dessa discordância está no fato de que o presente é visto
como um bloco de tempo separado do resto do passado, como bem disse Bloch.
Mas ora, podemos muito bem perguntar o que é o presente? Quando que ele
começa?
26

Para um historiador nascido no Brasil em meados da década de 90, o


presente começa a partir do século XX. Mas para um que viu a ditadura e o
processo de abertura democrática e da constituinte, a história presente começa nos
últimos vinte anos. A delimitação das fronteiras do presente são subjetivas e variam
de historiador para historiador. Pensar um fenômeno do presente a partir da
perspectiva histórica requer inserí-lo no tempo porque o método da história, a
observação histórica, é feita através da reconstituição do passado estudado através
das fontes e quanto mais longo o arco temporal mais compreensível esse fenômeno
se torna e isso pode fazer toda a diferença.
A delimitação do tempo presente além de ser uma questão subjetiva é
também uma questão de método. Método porque as fronteiras temporais de um
determinado objeto histórico, não são estabelecidas com números no calendário,
mas na natureza do seu objeto. Os historiadores estudam a ditadura militar brasileira
pois ela teve um início, meio e fim, teve suas coerências, encadeamentos e possui
(fato inquestionável) efeitos que reverberam até o presente momento. Ao poder ver
o objeto histórico com um distanciamento (de décadas) o historiador pode enxergá-
lo em sua totalidade o que facilita a observação. No caso de uma história do tempo
presente a observação é limitada pois o processo histórico ainda não
necessariamente encerrou. Isso não impossibilita o método histórico, mas limita os
problemas que podem ser levantados a partir dela, isto é, um historiador do tempo
presente não pode se perguntar sobre os efeitos históricos que seu objeto vai
provocar pois estes efeitos ainda não ocorreram, porém isso não o impossibilita de
perguntar, por exemplo, quais as condições que permitiram que determinada coisa
acontecesse da forma que aconteceu e\ou porque naquele momento e não em outro
etc...
Escrever uma história do tempo presente não é diferente de escrever uma
história sobre a idade média ou antiga. O método da história continua o mesmo, isto
é: a reconstituição do passado através das fontes. Além do mais, o pontapé inicial
de toda pesquisa histórica é o problema: é a partir dele que o historiador seleciona
as suas fontes e escolhe suas categorias conceituais.
Este trabalho começou como uma tentativa de um jovem historiador em
compreender o momento político brasileiro, dos processos e reformas que foram
feitas a partir de 2016 e de como havia chegado naquele estágio. Além disso esse
trabalho agora se propõe ser uma forma de pensarmos uma história do tempo
27

presente, tendo em conta as limitações que o formato de monografia possui e as


limitações do próprio autor, bem como suas circunstâncias no período em que ele
escreveu esse texto. Nós esperamos que essa monografia sirva ao propósito de
pensarmos uma história das sociedades do século XXI.

3. Entre mortadelas e coxinhas.

Esquerda, direita, pelego, golpista, governista, comunista, fascista, petralha,


petista, tucano, cidadão de bem, defensor de bandido, vagabundo, revisionista,
racista, machista, homofóbico, esquerdista, social democrata,
neoliberal, conservador, liberal-conservador, social-liberal, alt-right, Social Justice
Warriors (SJW), millennial, chicago boy, esquerdopata, abortista, feminista, esquerda
caviar, pobre de direita, mortadela e coxinha.

O universo da política é tão vasto quanto as interações humanas. Dar sentido


ao mesmo tempo que se organiza mentalmente tantas terminologias (e saber
diferenciar quais são denominações e quais são insultos) é tarefa de todo aspirante
às ciências humanas: seja ela a história, sociologia, antropologia, ciência política ou
jornalismo. Um campo tão complexo como esse sempre terá o risco de cair em
reducionismos baratos: distorções da realidade, das interações, ideologias e
pessoas envolvidas e posicionadas nos mais variados espectros políticos. Ocorre
que, tais reducionismos conseguem (às vezes) abranger uma gama vasta de
ideologias e posicionamentos.
As eleições de 2014, e seu resultado, marcaram o tom inicial do fenômeno da
polarização. Fenômeno este que foi trabalhado pela sociologia ao longo do período
da nova república (1988-2018). Pensadores como Singer (2012), Abranches (1988)
e Souza (2017), isto apenas para citar alguns, trouxeram suas contribuições para o
campo da sociologia para compreender como que essa polarização se configurava
no campo político brasileiro. É consenso, em Singer e Souza, que a polarização
brasileira é fruto da correlação e aglutinação de forças que criam uma polarização
baseada na díade pobres e ricos. Já em Abranches a polarização é um sintoma da
fragilidade do sistema político do presidencialismo de coalizão.
28

O papel da história, nessa história, não é o de elaborar uma análise de


conjuntura ou opinar sobre a polarização. O papel da história é investigar. Isto é, o
papel da história é entender como a sociedade brasileira, que no ano de 2010
apresentava indicativos de bem-estar acompanhados de otimismo, 15 se embrenhou
numa polarização que levou as instituições liberais democráticas brasileiras ao risco
de colapso e culminou na eleição de um presidente cuja notoriedade política foi
conquistada com o flerte desse próprio colapso? Afinal, por que é uma polarização
entre mortadelas e coxinhas? Por que não esquerda/ direita? Por que não petralhas
e golpistas? Quem são os mortadelas e coxinhas? Qual é a sua ideologia?
A nossa hipótese é de que a polarização é um fenômeno que se desenhou na
medida em que a crise política do PT ganhava contornos e aliados. Mortadelas e
coxinhas são termos apartidários, ao contrário de petralhas e golpistas, ou petistas e
tucanos. Essa polarização apartidária também é um legado das manifestações de
junho de 2013: o movimento (ou seriam os movimentos?) não quis, em momento
algum filiar-se ou comprometer-se com qualquer partido ou bandeira que fosse, de
uma certa forma, podemos argumentar que foi uma estratégia para os envolvidos
criarem uma ideologia(s) nova(s).Argumentamos que, ideologicamente, mortadelas
e coxinhas representem não uma ideologia, mas um conjunto de ideologias, os
chamados campos políticos, que se aglutinam, para o lado dos mortadelas, em um
social-liberalismo, com base no paradigma da nova esquerda e, no lado dos
coxinhas, em um conservadorismo-liberal, com base tanto na moral cristã
neopentecostal como nos preceitos econômicos da escola de Chicago. O indicador
disto está na própria forma como a polarização se desenvolveu enquanto fenômeno
político e fica mais claro nos seus momentos finais, o período eleitoral de 2018,
especialmente no segundo turno, podemos ver traços desses campos políticos a
partir de uma análise dois candidatos: do lado dos mortadelas, Haddad representava
um programa político que defendia políticas de combate a pobreza e de assistência
social, também defendia uma (re)inserção econômica do Brasil em nível regional e
internacional.16Do lado coxinha, as alianças de Bolsonaro evidenciam seu
posicionamento liberal-conservador: a escolha de Paulo Guedes, economista
formado na escola de Chicago e com filiações teóricas ao pensamento neoliberal,

15
Revisto isto é nº 2128. 2010. Versão digital disponível em:
https://istoe.com.br/edicao/600_NUNCA+FOMOS+TAO+FELIZES/ (Acesso em: 21.02.2019)
16
Plano de governo (2019-2022): coligação O povo feliz de novo. (2018)
29

como ministro da economia para seu governo. E do lado conservador, aliou-se à


bancada evangélica que é contrária a pautas como casamento homoafetivo, aborto
e redução da maioridade penal e também se aliou ao movimento Escola Sem
Partido, que luta contra (uma suposta) doutrinação política e ideológica empreendida
por professores no espaço escolar e universitário.
A investigação histórica não pode cair no mito das origens: o tempo é
recortado, ampliado, pode ser trabalhado paulatinamente ou em saltos de meses,
anos ou décadas. Tudo isso é uma escolha do historiador. Escolha, às vezes,
imposta pela disponibilidade de fontes das quais o historiador pode acessar. Em se
tratando em história do tempo presente, a investigação histórica encontra tanto uma
benção como uma maldição: quais fontes usar numa sociedade que constantemente
produz conteúdo sobre si mesma? O caminho metodológico que escolhemos é
aquele proposto por Estrella e aquele discutido no capítulo anterior.
O historiador do tempo presente é o historiador da civilização globalizada. É o
historiador do modo de produção capitalista financeiro, da pós modernidade, da
internet. A sociedade global impõe uma contradição entre as comunidades locais e o
todo. Esse historiador não pode se permitir se esquecer do exercício de interligar o
fenômeno local que estuda ao globo, àquilo que acontece fora dos limites de seu
trabalho. Estudar as jornadas de junho de 2013, por exemplo, implica conhecer e
compreender a primavera dos povos árabes. Estudar a crise econômica e as
políticas de austeridade no interregno de Temer, implica estudar o processo que
culminou na crise financeira de 2008. Compreender a onda conservadora no Brasil
implica, encontrá-la e compreendê-la nos Estados Unidos e Europa. Mas não
esquecer também que o externo, o global, também é tão complexo e tão suscetível
quanto ao nosso interno.
Observando o processo de configuração da polarização, notamos que a
polarização mortadelas e coxinhas é um fenômeno que segue a crise política. As
intrigas, delações, audios vazados na internet, votações de projetos estruturais como
as reformas e as possibilidades de candidatura são o eixo que guiam a polarização.
Como a política brasileira está configurada naquilo que é chamado pela sociologia
de presidencialismo de coalizão (ABRANCHES, 1988), pensar uma polarização
ideológica que segue uma crise política num sistema político no qual o fisiologismo e
governismo norteiam as relações e alianças é ver essas ideologias como falsas. No
30

entanto, não é esse argumento que queremos defender, nosso argumento é de que
a polarização mortadelas e coxinhas não é falsa, mas frágil.
Personagens como Eduardo Cunha e Michel Temer se apresentam como um
incômodo aos mortadelas e coxinhas pois eles não se enquadram nessa
polarização. São exemplos em carne e osso do fisiologismo que é característico do
presidencialismo de coalizão17. Além disso, essas ideologias querem se firmar como
algo novo, inédito na política, descontaminado desses fisiologismos 18. Ainda que
seus referenciais tenham presença de longa data na política (e ainda que eles
também atuem conforme as regras do fisiologismo), eles servem como um
amálgama intergeracional dentro dos mortadelas e coxinhas: uma ponte entre o
velho e o jovem. É em figuras altamente controversas, rejeitadas e aprovadas
simultaneamente, que a ideologia mortadela e coxinha ganha representantes, mas é
nas conjunturas políticas que ela ganha conteúdo.
A polarização brasileira entre mortadelas e coxinhas é, portanto um fenômeno
político e social, urbano, construído no meio virtual e material. Esse é o retrato da
ideologia de mortadelas e coxinhas: firmar-se como uma ideologia virtual-material e
desprendida da velha política ao mesmo tempo que mantém referenciais desta.
O nosso marco temporal será o período analisado será aquele que vai de
junho de 2013, tendo as jornadas de junho como marco inicial e outubro de 2018,
com o fim do segundo turno e a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da
república. Escolhi as jornadas de junho como marco inicial por causa do alcance
nacional que elas tiveram, a ponto de terem provocado uma resposta da presidenta
eleita na televisão, mas também porque foram manifestações de múltiplas
ideologias, tornando-se o observador incapaz de enquadrá-las num espectro
ideológico, mas apenas afirmar de que esse era um movimento plural. Além disso as
jornadas de junho inauguraram a presença da internet na organização, agitação e
formação da ação política. Ela consagrou a importância da internet como
instrumento para organização e debate, instrumento este que desempenhou um

17
A discussão sobre o conceito de presidencialismo de coalizão será feita no momento oportuno neste
capítulo, mas para início de discussão o conceito serve para designar a característica do sistema político
brasileiro: o poder executivo é chefiado pela figura do presidente e a forma como este mantém a sua política e
executa seus projetos, isto é, a forma como ele exerce sua governabilidade, é feita através da formação de
coalizões partidárias e regionais, que estabelecem um programa com demandas e expectativas que definem o
campo de ação do presidente.
18
Fisiologismo aqui diz respeito ao comportamento político de se aliar às forças mais fortes do momento ou as
que estão com vantagem. É um comportamento desprovido de ideologia, já que sua motivação vem do
interesse, por parte dos atores políticos, de se manterem no jogo político.
31

grande papel na configuração da polarização mortadelas e coxinhas. Nosso


entendimento é que as jornadas de junho são uma oportunidade para a oposição
político-partidária aos governos petistas de se articularem, oposição essa que iria
ganhar força (e quase vitória) nas eleições presidenciais no ano seguinte.
As jornadas de junho de 2013, e as eleições de 2014, são fases preliminares
do fenômeno da polarização e as eleições de 2014 serviram como um ensaio para o
que estaria por vir é importante ressaltar que é só a partir de 2015 que a polarização
mortadelas e coxinhas passa a se materializar. Isso porque as eleições de 2014 e as
jornadas de junho de 2013, a nosso ver, constituem-se como antecedentes para a
crise política e são momentos importantes para entendermos em que condições
políticas e históricas o nosso objeto está inserido.
Como marco final do período, escolhemos a eleição de Jair Bolsonaro para a
presidência da República. Acreditamos que o período das eleições de 2018 foram
marcadas pela maturação da polarização mortadelas e coxinhas porque os pólos já
estavam bem definidos e se configuraram em torno da aceitação (ou rejeição) da
candidatura de Jair e porque ir além desse período seria escrever qualquer coisa
que não seja história. Além disso, a vitória de Bolsonaro na eleição põe um fim a
essa crise política (2015-18).
O período de junho de 2013 até às eleições presidenciais de 2014 é
antecedente à crise política. As manifestações de junho, de cunho apartidário,
começam na região sudeste e mobilizam o País inteiro. É a primeira vez, durante os
governos petistas, que manifestações sociais sem vínculo direto com o partido
ganham amplitude nacional, sob a defesa de que “não é só por vinte centavos”. As
jornadas de junho foram compostas por uma gama de reivindicações: transporte de
qualidade, corrupção, copa do mundo e até intervenção militar. Essa pluralidade
dissonante de reclamações se mostrou um desafio para a compreensão desse
fenômeno para aqueles que quiseram enquadrá-lo em algum espectro ideológico. O
que podemos afirmar é apenas que foram manifestações mobilizadas pelo aumento
das passagens de ônibus mas que acabaram por atrair outros anseios, demandas e
interesses de variadas classes. Não foi um momento de polarização pois não havia
um eixo que norteasse politicamente os atores envolvidos, foi um momento de
efervescência que teve consequências imediatas (como a integração do transporte
no rol de direitos e garantias fundamentais) e a aprovação do Marco civil da internet
no ano seguinte, haja vista que este foi o maior instrumento de mobilização e
32

formação política tanto dos manifestantes de junho de como seria também para os
mortadelas e coxinhas.
As eleições de 2014 foram polarizadas. No entanto, essa polarização, que se
localiza no período do segundo turno, é diferente daquela que começaria em março
de 2015, pois se trata de uma polarização eleitoral e partidária. Ainda não havia
crise política em outubro de 2014.
É com a crise política que teremos uma polarização entre mortadelas e
coxinhas, a crise fez com que os grupos que reivindicavam suas pautas em junho de
2013 se alinhassem politicamente em torno dos pólos mortadelas e coxinhas,
trazendo uma relativa clareza aos atores. Digo relativa pois as ideologias mortadela
e coxinha são frágeis pois tomam como referência a crise política e esta foi resultado
19
do desgaste da coalizão.
Para entender melhor da fragilidade das ideologias torna-se necessário, um
breve histórico da crise política. A crise que toma forma a partir de 2015, com a
possibilidade no horizonte de deposição da então presidenta Dilma Rousseff, tem
conjunturas bem definidas. Conjunturas estas que são representadas pelas palavras
de ordem que representam cada uma. A crise política brasileira segue conjunturas
que vão desde o “Fora Dilma” até o “Ele não!”. A conjuntura aqui é entendida como o
momento político em que determinado acontecimento na esfera política estava para
acontecer. As palavras de ordem são balizas interessantes pois elas indicam não
apenas a mudança na conjuntura mas quais pautas eram as mais relevantes do
momento.
Na conjuntura do “Fora Dilma!” o eixo central era o encaminhamento do
pedido de impeachment de Dilma Rousseff. A presidenta inicia seu mandato com as
medidas do ajuste fiscal, que fragilizam sua aprovação e dão espaço e munição para
a oposição se organizar. É nesse período que o termo mortadela surge como insulto
àqueles que defendem o mandato de Dilma Rousseff e também é nessa conjuntura
que coxinha passa a ser um termo reconhecido pelos próprios. Outro ponto
importante a ressaltar é a publicação do projeto “Ponte para o futuro”, do (P)MDB,
que mostrava ao empresariado o compromisso com as medidas de austeridade

19
Uma forma de provar essa fragilidade é com a facilidade com que tanto mortadelas como coxinhas se
apropriam de imagens, principalmente os “memes”, como charges e quadrinhos e nisso alteram seu conteúdo
para se adequar às suas visões de mundo. Vide anexo D e E.
33

fiscal, bem como com as reformas estruturais como a trabalhista e a previdenciária


(a única que não foi aprovada).
Com o encaminhamento do pedido de impeachment por Eduardo Cunha em
dezembro de 2015, a conjuntura muda e passa a ser não sobre o encaminhamento
ou não do pedido, mas pela derrota deste nas casas legislativas. Sob as palavras de
ordem de “Não vai ter golpe!” e “Tchau querida!” esse é um dos períodos mais
intensos da polarização mortadelas e coxinhas. Tal intensidade se deu nas ruas e
também, simbólica e materialmente, no muro que dividiu mortadelas e coxinhas em
frente ao Palácio do Congresso Nacional às vésperas da votação do impeachment.
20

Com a posse de Michel Temer, e a rápida aprovação e encaminhamento da


PEC 241 - que determinou um teto para os gastos públicos federais, reforma do
ensino médio - que retirou a obrigatoriedade do ensino de História da grade
curricular do ensino médio. Ambas aprovadas em 2016. Estas duas reformas foram
o estopim para a onda de ocupações por estudantes em escolas estaduais e
Institutos de Ensino Superior em todo o país sob a palavra de ordem “Fora Temer!”.
No ano seguinte, Temer aprovaria a reforma trabalhista porém não conseguiria
aprovar a previdenciária, já em final de mandato e com denúncias de compra de
votos de parlamentares o coro de “Fora Temer” perde força e cede lugar para a
expectativa da candidatura de Lula nas eleições presidenciais do ano seguinte.
Porém, a pauta mais significante daquele ano (2018) não seria nem a
liberdade de Lula ou sua candidatura, mas o impedimento da candidatura (e vitória)
de Jair Bolsonaro à presidência. Pauta esta que reuniu mulheres brasileiras e
personalidades nacionais e internacionais sob a palavra de ordem “Ele não!”.
Contudo, sua candidatura permaneceu e ele ganhou a eleição (com a maioria dos
votos na região centro-sul). Este também é um dos períodos mais intensos da
polarização mortadelas e coxinhas sobretudo pelo o que estava em jogo (isto é, os
próximos quatro anos de governo federal, bem como a vitória de uma ideologia
sobre outra).
Por ter como eixo a crise política e suas conjunturas a polarização pode ser
pensada como um fenômeno falso, forçado e caricato. Pois este mesmo sistema

20
https://www.nexojornal.com.br/demopub/colunistas/2016/Quando-a-met%C3%A1fora-vira-
realidade-reflex%C3%B5es-sobre-o-Muro-de-Bras%C3%ADlia-e-a-intoler%C3%A2ncia (Acesso em
20.02.2019)
34

político tem como característica o fisiologismo, ou seja, o que define as alianças não
são as siglas dos partidos ou suas ideologias, mas os interesses políticos e
particulares de quem essas siglas representam. Os partidos são esvaziados de
ideologia pois esta não possui função pragmática. Quem argumenta que a
polarização do período 2015-2018 é falsa com base no argumento acima ignora as
visões que mortadelas e coxinhas têm do outro (e, consequente, de si) e é isto que
faremos agora.

3.1 Quem são os Mortadelas e coxinhas?

O processo de estouro da polarização e sua configuração está atrelado


também aos significados e acepções que a sociedade brasileira tinha a respeito dos
termos mortadela e coxinha. Ambos não foram termos inventados no momento, mas
já faziam parte do imaginário social e tinham suas significações que, e é importante
ressaltar, não tinham a conotação política que viriam a ter. Portanto, para
entendermos como a polarização se construiu, precisamos antes de tudo,
compreender o local e as funções sociais e culturais que as palavras mortadela e
coxinha tinham na sociedade brasileira antes e depois de receberem conotação
política e por que elas receberam essa conotação.
Nossa pesquisa sobre os dois conceitos nos levou a três apontamentos: a
primeira é que tanto mortadela como coxinha são alimentos comuns no meio urbano
paulista. Isso é importante porque nos leva a concluir que a polarização que
estamos analisando não se construiu no meio rural, mas surge nos centros urbanos
e na cultura urbana, principalmente do estado de São Paulo.
A segunda é que tanto mortadela como coxinhas foram termos que ganharam
conteúdo político a partir do outro. Isto quer dizer que mortadela e coxinhas são
insultos, o que justifica nossa escolha por tratar dos dois temas, já que se
trabalhássemos com termos que mortadelas e coxinhas usam para se designar nós
estaríamos trabalhando com a visão que eles têm de si, é o que interessa é tratar da
visão que eles possuem do outro (que diz muito mais sobre como eles se vêem)
A terceira observação diz respeito ao significado pré-político dos termos:
coxinha, na década de 2010 era um termo usado em São Paulo para designar
aquelas pessoas que buscavam se diferenciar das classes mais populares,
consumindo produtos e experiências mais caros que a média para passarem a
impressão de pertencerem a uma classe mais abastada. Não é simples coincidência
35

que coxinha tenha ganhado essa significação no período em que a celebração da


classe C, ou como erroneamente foi chamada de “nova classe média", foi feita pelas
instituições e governo como conquista das políticas assistencialistas e de incentivo
ao mercado interno: a política econômica do lulismo e o sucesso dela - a ascensão
econômica via consumo das classes E e D - produziu o ambiente favorável para o
surgimento do coxinha.
Já a palavra mortadela, em seu significado pré-político, não se referia a
pessoa nenhuma. Mortadela é um alimento barato que se popularizou nos centros
urbanos da região sudeste, passando a ser associada com o público que a
consumia: as classes populares. Ambos os termos surgem em na região sudeste e
fazem parte da cultura local, mas só a partir da crise política, que se instaura
oficialmente a partir de 2015, é que elas ganham conotação política e amplitude
nacional.
Mortadelas e coxinhas passam a ser usados como insulto na medida que a
polarização se desenvolve e toma forma, isto é, na medida que a crise política se
instaura oficialmente no governo. O termo coxinha é o primeiro a ser usado, a partir
das jornadas de junho de 2013 para se referir a oposição, principalmente advinda da
classe média de São Paulo.
Já a mortadela entra no vocabulário político em março de 2015, com uma
manifestação contra o pedido de impeachment da então presidente Dilma Rousseff.
A notícia de que os manifestantes estavam recebendo sanduíches com mortadela
por participarem do protesto (13/03/2015) associou a palavra àquelas pessoas que
eram contra o impeachment da presidenta. Dois dias depois, àqueles a favor do
impeachment fazem um protesto de resposta, contra a corrupção e pela moralização
na política.
Quanto aos significados políticos que essas duas palavras recebem no
decorrer da crise política é importante relembrar que mortadelas e coxinhas surgem
como insultos, insultos estes que expressam a visão que o falante tem do outro, mas
sobretudo de si. Sendo assim, o mortadela é um pobre, trabalhador que foi
manipulado pelos governos petistas de que o partido é a sua melhor opção. Em
troca de pão com mortadela e bolsa família, o mortadela devolve com voto e apoio.
Trata-se de uma releitura da relação populista entre o líder carismático (Lula e
Dilma) e a massa (os mortadelas) em que o primeiro oferece uma dádiva (como o
bolsa família ou a mortadela) em troca do apoio da massa.
36

Em contrapartida, o coxinha é branco, tradicional, conservador, de classe


média. Frequenta escolas particulares e estuda nos cursos superiores de prestígio.
Viaja para a Disney nas férias e no verão vai para a praia de Miami ou Copacabana.
Em casa, não precisa se preocupar com os afazeres domésticos, pois sua
empregada negra “que é quase da família” desempenha todas essas funções. O
coxinha não se agrada em ter que pagar com encargos trabalhistas para as
domésticas, também não está satisfeito com a alta do dólar que restringe seu
consumo. Ele também não concorda com as cotas sociais para negros pois as suas
vagas estão sendo roubadas.

3.2 Polarização à mortadela

Nas duas acepções discutidas acima fica explícito o caráter de classe em


cada uma delas: enquanto o mortadela é alguém pobre que é manipulado em troca
de esmolas e dádivas o coxinha é um membro da elite que não quer perder seus
privilégios21. Estas são as visões que coxinhas e mortadelas possuem do outro, seu
significado político inicial. Indo além da mera exposição convidamos o leitor para
fazer uma reflexão sobre esses significados.
Como foi dito, o caráter de classe fica tão explícito que é possível propor uma
da polarização onde os mortadelas seriam a classe trabalhadora (pobres) e os
coxinhas seriam as elites e a classe média (ricos). Leitura esta que se alinha com a
de Singer sobre o conteúdo da polarização após o realinhamento eleitoral (SINGER,
2012) que também se alinha com a leitura de Souza (2017). Temos então as bases
para a formação daquilo que chamaremos de paradigma do reacionarismo das
elites. Chamaremos de paradigma mas este pensamento ainda não foi
sistematizado sob um título e embora já haja bibliografia acerca do período elas
tomam essa percepção da realidade como algo dado, no entanto este paradigma é
corrente tanto nas análises sociológicas (e aqui escolhemos dar destaque aos
trabalhos de Singer e Souza) como também nos discursos políticos de líderes como
Lula. Entretanto essa paradigma encontra problemas quando analisada à luz da
história.
Em linhas gerais, esse paradigma defende a argumentação de que o golpe
sofrido por Dilma Rousseff foi uma resposta das elites e da classe média à ascensão

21
Uma boa mostra disto está no anexo A.
37

social de grupos historicamente marginalizados chamados pela sociologia de


subproletariado (SINGER, 2012). As políticas petistas dos governos Lula e Dilma
alteram o posicionamento eleitoral, graças ao sucesso das políticas econômicas
lulistas, o que faria do PT um partido dos pobres (SINGER, 2012) ao passo que o
PSDB teria se mantido como partido dos ricos. Além de ser uma polarização
expressa na díade ricos e pobres ela também é regional, pois os votos petistas se
concentram na região nordeste enquanto que aqueles, leia-se classe média, que
votariam no PSDB se concentram na região centro-sul (SINGER, 2012)22. O sucesso
das políticas petistas possibilitou que grupos historicamente marginalizados
pudessem acessar as vagas do emprego formal e do ensino superior. A classe
média e a elite, movidas pelo desejo de manterem seus privilégios, acionam seu
pacto antipopular para a desmoralização e derrota política do projeto petista
(SOUZA, 2017). Dentro desta visão a polarização é um fenonômeno que engloba as
classes trabalhadora, média e a(s) elite(s) sendo que do lado mortadela ficaria a
classe trabalhadora e do lado coxinha as classes médias e a(s) elite(s).
Como todo paradigma ou explicação que se alicerça nas ciências sociais, o
paradigma do reacionarismo das elites não é livre de problemas. Afinal, todo
conhecimento é limitado e esta limitação não se constitui como uma ameaça a
cientificidade: não existe conhecimento imparcial tampouco existe um homem ou
mulher imparcial. O conhecimento serve a propósitos políticos e econômicos e isto
não o torna menos científico ou verídico, mas limitado. Daí a importância da ciência
como uma construção coletiva.
Para que possamos propor uma leitura histórica da polarização brasileira,
precisamos buscar os erros e acertos desse paradigma tão corrente no pensamento
intelectual e das esquerdas. É fato que houve um realinhamento eleitoral, indicado
sobretudo pelo mapa das votações nas eleições de 2010, 2014 e 2018: o nordeste
tem uma inclinação política aos partidos do PT. No entanto, não se deve esquecer
(ou ignorar) escolhas e posicionamentos dos governos petistas que evidenciam sua
relação com o capital financeiro e o agronegócio. Obviamente que políticas como a
reforma agrária e de habitação foram empreendidas pelos governos petistas. No
entanto, ignora-se que a reforma agrária foi empreendida em sua maioria na região
nordeste e centro-sul, retirando-a da região norte onde o capital do agronegócio se

22
O mapa da votação no segundo turno das eleições de 2018 ainda mostram essa divisão regional.
38

expandiu passando por cima de leis ambientais e territórios indígenas. Políticas de


habitação também foram empreendidas, mas os conjuntos de habitações foram
construídos distantes dos centros urbanos, locais onde o imóvel vale mais o que
abria espaço para a exploração econômica de construtoras. No campo da educação
tivemos uma expansão quantitativa do ensino, principalmente superior, sem que
houvesse políticas para a permanência destes novos alunos nas universidades. (A
própria distância das universidades e o preço das passagens, que foram o estopim
para junho de 2013, se torna um obstáculo à continuidade.) A educação fundamental
e média seguiu com seu processo de mercantilização e sucateio.
Embora os governos petistas tenham almejado resultados e condições
favoráveis às marginalizadas, afirmar que o partido dos trabalhadores é um partido
para os pobres conduz a um erro de análise, que em nosso entendimento, impede
uma leitura clara tanto da crise política como da polarização. Os governos petistas
configuram-se como governos de conciliação, típicos do presidencialismo de
coalizão.
O segundo erro deste paradigma, está em afirmar que o golpe é uma reação
das elites à ascensão das classes marginalizadas (SOUZA, 2017)23. Esta afirmação
explica o apoio da classe média ao impeachment e às reformas de Temer, para
tanto, basta observar os manifestantes de verde e amarelo na avenida paulista e seu
perfil sócio-econômico24. Ainda que o comportamento da classe média e das elites
seja racista (pois afinal, vivemos numa sociedade racista) essa explicação é
insuficiente para explicar o que motivou as elites - isto é, o capital financeiro,
industrial, internacional (representados em posicionamentos do FMI) e o
agronegócio, os verdadeiros protagonistas do golpe parlamentar - a mergulhar o
país numa crise política.
A crise política que se inicia em 2014 e termina com a eleição de Jair
Bolsonaro é um processo de desgaste paulatino do pacto social empreendido pelos
governos petistas. O sistema político brasileiro funciona segundo
o presidencialismo de coalizão, que é uma combinação do regime de
representação proporcional, pluripartidarismo e o presidencialismo organizado em

23
Outro suporte para essa afirmação se encontra no anexo A.
24
Disponível em: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2015/03/1604284-47-foram-a-
avenida-paulista-em-15-de-marco-protestar-contra-a-corrupcao.shtml (Acesso em: 19/02/2019)
39

coalizões, ou seja, o poder executivo que recebe sua legitimidade nacional ao aderir
a um pacto social com as forças políticas regionais (ABRANCHES, 1988).
A dinâmica desse sistema político é baseada na formação de grandes blocos
suprapartidários e regionais que aderem e negociam o programa de governo do
candidato à presidência. Dessa forma, o executivo pode governar sabendo que
alcança a maioria qualificada e que, portanto, seus projetos serão aprovados no
congresso sem dificuldades (ABRANCHES, 1988)25 em caso contrário, o governo
pode se encontrar em situação de paralisia decisória. Além de aprovar projetos que
compõem o programa, o presidente que conta com uma coalizão suprapartidária
pode se proteger da oposição e legitimar-se nacionalmente, isto é, perante as
regiões (e levando em conta as suas complexidades internas).
Fica evidente que os poderes do presidente são limitados devido aos
múltiplos compromissos que ele assume quando é eleito, caso ele rompa esse
pacto, ele perderá a sua base de apoio partidária e regional. Por causa disso, o
sistema do presidencialismo de coalizão corre altos riscos de instabilidade, já que o
presidente não pode governar com uma coalizão mínima. Essa instabilidade - fruto
das alianças partidárias e regionais que representam interesses sociais e
econômicos múltiplos - pode levar numa fragmentação da coalizão e numa
polarização. (p. 27). A única forma de superar essa polarização é através de um
novo pacto, ou seja, na formação de uma nova coalizão e na elaboração de um novo
programa mínimo.
O papel do programa é essencial pois ele diz quais pontos são inegociáveis,
ou seja, quais são os limites políticos e institucionais do presidente. Quanto mais
flexível e agregador o presidenciável (ou o partido), maiores as suas chances de
montar uma ampla coalizão, garantindo assim, sua vitória eleitoral e estabilidade26.
O problema está nos momentos de crise, em que muitas das vezes os interesses
entram em conflito, o que impede a formulação de um programa de âmbito nacional
que conforme os múltiplos atores partidários e regionais em jogo. Isso resulta numa
ruptura com a coalizão, o pacto, que leva tanto a um aprofundamento da crise, como
numa polarização.
A crise da coalizão liderada pelo PT tem seus primeiros ensaios com a
oposição parlamentar do líder do PMDB Eduardo Cunha que posteriormente seria

25
P.22.
26
Ibidem. P.28.
40

eleito para a presidência da Câmara (2015) onde encaminhará o pedido de


impeachment de Dilma Rousseff. O lançamento do programa “uma ponte para o
futuro” (outubro de 2015) é um indicador do novo programa mínimo da coalizão:
medidas de austeridade como teto de gastos para controlar o orçamento público e
reforma da previdência e trabalhista. O apoio estratégico do FMI às reformas de
Temer27 bem como a presença das propostas de reformas nos programas políticos
de dos três candidatos à presidência com mais votos28 indicam que essa era a
condição mínima para que a coalizão legitime a autoridade do executivo.
Sendo assim, a crise política é posterior à crise econômica, e é resultado do
insucesso das medidas do ajuste fiscal de Dilma bem como pela perda da base de
apoio - liderada pelo PMDB - que passou a operar no sentido de aprovar o processo
de impeachment e encaminhar as reformas e diretrizes do programa “Uma ponte
para o futuro”.
Se escolhermos pensar a polarização dentro do paradigma do reacionarismo
político nós encontraremos uma contradição que torna este paradigma inadequado
para compreender a realidade: o pobre de direita, que são aquelas pessoas
integrantes das classes populares, que se beneficiaram com as políticas
empreendidas pelo PT mas que se identificam com o outro lado. O pobre de direita
trabalha para manter os privilégios da elite sem se importar com isso, pois o
problema do País está no Partido dos Trabalhadores, com sua corrupção
desenfreada e políticas atrapalhadas que levaram o país para uma crise econômica.
Além disso o pobre de direita também sonha com a ascensão social e a
possibilidade de vivenciar os privilégios das classes abastadas. Como o pobre de
direita é visto pelos mortadelas?

3.3 O pobre de direita

“O que é um burro? Um animal que empaca e não consegue sair do mesmo


lugar mesmo que vá se prejudicar… O que é um ignorante? Uma pessoa
que ignora coisas.

27
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-37491488 . Acesso em 19/02/2019
28
Dos treze concorrentes, selecionei aqueles que tinham as maiores intenções de votos: Jair
Bolsonaro (PSL), Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT). O único programa que propunha uma
revogação nas reformas empreendidas por Temer era o de Fernando Haddad. Para acessar o
programa de cada candidato, acesse o link: http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2018/propostas-
de-candidatos (acesso em 19/02/2019)
41

Uma pessoa pobre de direita é um burro e ignorante!” (Publicado 07/08/


2015)29

Este primeiro trecho, foi retirado de um blog.

“O pobre de direita é contrário às políticas sociais. Possivelmente passou


fome ou viu alguns dos seus passar; ou atravessou um mar de
necessidade, nos tempos em que o governo estendia a mão e junto o
cabresto. Viu crianças morrerem desnutridas e outras nascerem mortas. Viu
o suplício do nordestino com a seca e a morte dos seus rebanhos. Viu o
retirante partir para as grandes cidades, molambento, para se humilhar nas
portas das fábricas.”(10.04.2018)30

Este segundo trecho foi retirado de uma reportagem do jornal virtual


Pragmatismo Político. O trecho seguinte foi retirado de outro jornal, Brasil 247,
fundado no ano de 2011:

“O pobre de direita é um exemplo clássico de uso de instrumentos


midiáticos para manipulação das massas. Apoiou o golpe contra Dilma,
acreditando que protestava contra a corrupção; protestou a favor da reforma
trabalhista, sem perceber que eram seus direitos que estavam sendo
cassados; apoia a perseguição que sofre Lula, o presidente que mais
distribuiu renda na história. Ao consumir informação sem fazer um juízo
crítico, essas pessoas não se dão conta de que são exatamente os maiores
prejudicados pelas situações que apoiam. Gado que caminha feliz para o
abatedouro.” (14.07.2017)31

Por fim, apresentaremos mais um trecho que elenca as principais


características do pobre de direita, retirado de outro blog:

1. O pobre de direita não passa de um assalariado. Mas age na imaginação


como se fosse patrão.
(...)

29
https://torresdaheresia.wordpress.com/2015/08/07/pobre-de-direita/ (Acesso em 19/02/2019)
30
https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/04/pobre-do-pobre-de-direita.html (Acesso em
19/02/2019)
31
https://www.brasil247.com/pt/colunistas/guilhermecoutinho/306466/A-triste-sina-do-pobre-de-
direita.htm (Acesso em 19/02/2019)
42

3. O pobre de direita, acima de tudo, odeia as palavras: Esquerda,


Socialismo e Comunismo. Mas no geral é incapaz de dizer qualquer coisa
inteligível a respeito das mesmas.
(...)
6. O pobre de direita no geral nunca leu um livro. Mas quer dar opinião
sobre arte e cultura.
(...)
11. Enfim, o pobre de direita se acha o tal. Mas não passa de um ridículo e
risível otário (18.03.2018)32

Os quatro trechos mencionados acima são tentativas, à esquerda (ou à


mortadelas?) de compreender e definir o pobre de direita que é, inicialmente, alguém
que se posiciona contrariamente às políticas de alívio e ou assistência à pobreza,
principalmente àquelas empreendidas pelo PT. É um trabalhador que não consegue
escolher seus representantes de forma que eles façam valer seus interesses.
O pobre de direita é visto como um burro - animal - ignorante - pessoa que
ignora as coisas. Ele é uma espécie de pessoa animalesca, sem capacidade de
pensamento reflexivo e crítico e sem capacidade para saber o que é melhor para si.
Este é um item muito importante, pois quando se afirma que o pobre de direita não
sabe o que é melhor para si, afirma-se, entrelinhas, que os mortadelas sabem.
Somada a esse modo de ser animalesco e infantil, o pobre de direita é um
analfabeto político, pois não sabe dizer nada inteligível a respeito de comunismo e é
alguém que nunca leu um livro, mas opina sobre arte e cultura. Ou seja, além de ser
um animal quase que como um “gado que caminha feliz para o abatedouro” ele
também é um iletrado, isto é, alguém que não lê, cuja única fonte de informação e
conhecimento vem do Jornal Nacional.
O pobre de direita, por conta de sua condição natural de animal ignorante,
acaba por ser manipulado pelo interesse de poderosos, das elites e do
empresariado que passam reformas antipopulares que afetam diretamente seus
direitos sociais.33 Ele então, por sua condição, apoia esse grupo, por acreditar fazer
parte dele ou por desejar fazer parte.
Gostaria de compartilhar com o leitor mais uma citação de fonte, desta vez
escrita por um coxinha que define um mortadela. O texto é uma tentativa de fazer

32
https://www.deverdeclasse.org/l/as-cinco-principais-caracteristicas-dos-pobres-de-direita-leia-e-
compartilhe/ (Acesso em 19.02.2019)
33
Vide anexo B.
43

um mapa da esquerda, onde há a esquerda mortadela e a esquerda caviar. Segue


abaixo o trecho:

Já a “Esquerda pão com mortadela” encontra-se num estágio avançado de


alienação crônica. Para se ter ideia do tamanho da estupidez da galera da
“Esquerda pão com mortadela”, essa gente não consegue sequer perceber
que é usada como tropa de choque da “Esquerda Caviar”. Aceitam
passivamente vagabundear pela cidade vestidos com roupas vermelhas
estampando imagens de Che Guevara ou de símbolos marxistas, vivem
satisfeitos apenas por se apresentar como “revolucionários”, mesmo depois
de 27 anos da queda do muro de Berlin.

No jogo do poder, os vermelhos aburguesados dependem da massa


vermelha imbecilizada, pois é essa “Esquerda pão com mortadela” que
briga, agride, bate, quebra, destrói tudo e todos que se colocam no
caminho do projeto de poder da “Esquerda Caviar”, tudo em nome de um
suposto direito a protestar, reivindicar, lutar. (17.01.2016)34

Tendo lido o trecho acima, pergunto ao leitor: qual é a diferença de tratamento


sobre o pobre de direita ou esquerda mortadela feita pelo mortadela e coxinha? A
forma como o escritor da fonte acima se refere ao grupo dos mortadelas não é tão
diferente da forma como os mortadelas entendem o pobre de direita, aliás, se
trocássemos os termos por palavras correspondentes ao outro lado, manteríamos a
coesão e semântica do texto pois as fontes acima falam da mesma pessoa: alguém
que é pobre, ignorante e iletrado e que por essa condição (natural ou não) acaba por
ser manipulado por terceiros, de preferência com poder econômico e nível superior.
O que nos leva ao entendimento de que a polarização entre mortadelas e
coxinhas não afeta as classes trabalhadora (mortadela) e elite(s) e média (coxinha),
como o paradigma do reacionarismo das elites propõe. A polarização é um
fenômeno que afeta uma classe somente, e no caso específico, a classe
trabalhadora: o subproletariado, aquele grupo historicamente marginalizado que
alcançou a ascensão social via consumo e ingresso no ensino superior graças às
políticas econômicas lulistas e à expansão quantitativa do ensino superior. A

34
Ver anexo C e F ou http://editoramulticultural.com.br/capa/Entrada/558-esquerda-caviar-e-
esquerda-p%C3%A3o-com-mortadela-quem-s%C3%A3o-o-que-querem-por-que-lutam.html (Acesso
em 19.02.2019)
44

polarização afeta mortadelas e coxinhas sobretudo por causa da consciência de


eleitor consumidor35. Consciência esta que foi celebrada em 2008 como nova classe
média36 e posteriormente pelo governo federal como a maior prova do sucesso do
PT.
Esta transferência diluiu a consciência de classe dentro dos trabalhadores
fazendo com que eles passassem a ou não se reconhecer como trabalhadores ou a
resignarem-se a uma eterna gratidão aos líderes responsáveis pelo crescimento
econômico. Quando a crise econômica se instala e a política segue como
consequência desta a classe trabalhadora se encontra dividida entre um projeto de
austeridade social liberal, que é o ajuste fiscal implementado por Dilma no primeiro
ano de seu segundo mandato, e outro projeto de austeridade liberal conservador,
baseado nas diretrizes e prognósticos do projeto Ponte para o futuro do (P)MDB,
suas escolhas são limitadas a mortadelas e coxinhas muito devido a consciência de
que eles pertencem a esse grupo social (nova classe média e não classe
trabalhadora).

4. Conclusão

A primeira conclusão que tiramos da análise é a polarização não deve ser


pensada na díade ricos e pobres, ela é um sintoma de que a classe, em seu interior,
está polarizada. É importante ressaltar isto, pois explica o fracasso da classe
trabalhadora em resistir às medidas de ajuste fiscal empreendidas por Dilma em
2015, sua indecisão quanto ao processo de impeachment e sua incapacidade de se
organizar contra as reformas de Temer. Some isso com a incapacidade da esquerda
em estabelecer um diálogo que inviabilize (e não promova) a candidatura de Jair
Bolsonaro.
A segunda conclusão é de que o critério para a polarização no período
analisado deve ser outro que não seja o de classes, pelos motivos já mostrados e
provados. Nós propomos pensar a polarização seguindo um critério de base
ideológica.
O mortadela é social liberal e o coxinha é liberal conservador. Valendo
lembrar que esses campos políticos falam diretamente com a díade esquerda/direita,

35
(OLIVEIRA, 2007)
36
Esse termo entrou em moda com os resultados da pesquisa de 2008 coordenado por Marcelo Neri,
que posteriormente. Segue o link para acesso à
pesquisa:https://www.cps.fgv.br/ibrecps/M3/M3_TextoFinal.pdf (Acesso em 19.02.2019)
45

cujos referentes mudaram a partir da década de 1970. Ou seja, a esquerda


mortadela não faz crítica e contestações às relações de produção hegemônicas na
sociedade, filosoficamente, ela se enquadra no social-liberalismo, ainda que muitos
de seus referenciais sejam autores marxistas ou marxistas-leninistas ou sociais-
democratas..
O mortadela é social liberal, social porque é crítico da pobreza material -
(baixo poder de compra), política (leia-se falta de representação partidária) e social
(marginalização), isto é, o não acesso a universidade pública, bons empregos e
consumo. Mas é liberal porque acredita que a pobreza pode ser aliviada e superada
via mercado, ou seja, com acesso ao consumo ou com políticas de alívio à pobreza.
O coxinha é liberal conservador. Liberal porque defende o sistema econômico
capitalista e a inserção do Brasil nos quadros da economia internacional enquanto
exportador de matéria prima, defende a desregulação estatal na relação capital/
trabalho - como a reforma trabalhista e previdenciária - e o enxugamento do estado,
através de políticas de austeridade (como a PEC 55) e privatização. E é conservador
porque defende a superação da pobreza via trabalho, leia-se
meritocracia (contrariamente à políticas de alívio à pobreza) e a exploração da “ralé”
via empregos informais e a perpetuação deste grupo (a ralé).
Os critérios ideológicos que separam um mortadela de um coxinha estão
expressos na díade (extensa) social liberal/ liberal conservador. Politicamente
falando, o que separa um mortadela de um coxinha são os projetos políticos e
sociais em pauta, o que quer dizer clara e explicitamente que a polarização no
período 2015-18 se fez em cima da discussão de qual projeto de sociedade
neoliberal periférica o Brasil deveria ser, isto é, se o Brasil deveria ser um país
neoliberal inclusivo (social) ou neoliberal excludente (conservador), até o presente
momento, é o segundo projeto que está vencendo.
Muito da derrota eleitoral da esquerda mortadela nas urnas se deve ao fato de
que seu paradigma para explicar a crise política era o da díade ricos e pobres. Ao
tomarem a realidade de seu momento a partir dessa perspectiva, ela se tornou
incapaz de compreender os limites e contradições do pacto social lulista, o que
acabou por isolá-la dentro dos muros da universidade e desmoralizá-la na sala de
aula por acreditar que o espaço e legitimidade política das políticas petistas era algo
dado e não um espaço conquistado. Fruto do pacto social e das transformações
sociais e econômicas da primeira década do século XXI, a esquerda mortadela
46

passou a justificar a consciência de eleitor-consumidor que se concretizou com a


virada da década e o surgimento do coxinha, ou aquilo que ela chamou se pobre de
direita.
Palavras, conceitos e expressões como fascismo, cultura do estupro, dívida
histórica, racismo, ditadura, golpe, estado de direito são todas ao mesmo tempo
distantes e abstratas demais para o pobre de direita, que vive absorto no fluxo do
trânsito das grandes avenidas, temeroso pelo espectro do bandido, que está sempre
escondido no canto da sua mente e ocupado demais com sonhos de ascensão
social via trabalho enquanto vende sua força de trabalho em empregos precarizados
e mal remunerados. Tais palavras são tão distantes e abstratas que o pobre de
direita, ao ouví-las da boca de um mortadela pode jurar que se trate de alguma
piada ou de um exagero da realidade, pois como pode tais problemas serem mais
urgentes e importantes do que a sobrevivência diária?
Para o pobre de direita, a violência urbana, aquela perpetrada não pela polícia
ou “homem cordial”, que não aceita não como resposta, mas aquela que o “bandido”
representado pela imagem do negro, de short, descalço e numa moto - é que é o
grande problema cotidiano. A falência do sistema público para ele não é um projeto,
e sim resultado de uma cultura patrimonialista que nós de alguma forma herdamos
de Portugal. Sendo assim, o pobre de direita, espremido entre mortadelas e
coxinhas, acaba por achar necessário que “remédios amargos” sejam tomados e
que presidentes que não tenham medo de enfrentar a vontade popular tomem as
medidas necessárias para retirar o país da crise.
O historiador do tempo presente, e o observador, leitor ou vivente dessa
época, mais do que acusar o pobre de direita de idiota útil ou alienado, é importante
entender como que pessoas pertencentes a uma classe social trabalhadora
puderam ser convencidas de que o desmonte da máquina pública e dos direitos
trabalhistas é a solução para tais problemas. Entender isso também é entender
como que essa população flertou com o pequenino fascismo passivo agressivo de
Bolsonaro.
A polarização brasileira, sendo pensada na perspectiva global, é um mais dos
sintomas nacionais de que o mundo passa por uma crise humanitária 37. A

37
Para citar alguns exemplos: A crise de refugiados da Síria, o boicote social e político ao governo Venezuelano
que gerou uma massa de imigrantes que se concentra nas fronteiras do País, a falência do Estado do Rio de
Janeiro, que cria condições propícias para o estouro da violência urbana e cotidiana, a invasão de terras
47

polarização brasileira trouxe consigo uma banalização do mal que em seus limites
torna legítimo à população a contestação e desmonte de garantias constitucionais e
do estado democrático de direito, bem como atos cotidianos de crueldade seja
contra negros suspeitos ou à população LGBT. Não é uma polarização que traz uma
radicalidade para uma revolução social, não é uma polarização que põe o
trabalhador consciente de frente com as elites dirigentes, mas é sim uma
radicalidade em que a classe consome a si mesma pelo ódio, violência e apatia
enquanto a soberania nacional se esvazia cada vez mais e as condições de
reprodução da classe trabalhadora se tornam cada vez mais desafiadoras.
A polarização entre mortadelas e coxinhas mostra, em profundidade, a
incompatibilidade entre democracia e capitalismo financeiro 38. Nessa configuração a
formação do indivíduo não o transforma em um cidadão democrático mas num
eleitor consumidor, que escolhe seus representantes usando os mesmos critérios
que usa para comprar uma televisão:o bolso. Isto é o eleitor escolhe, aprova ou
rejeita seu candidato, com base na expectativa de que seu consumo não seja
afetado, já que é a única via pela qual ele pode acessar o mundo. Da mesma forma
que o eleitor pega um empréstimo em 48 vezes para comprar uma televisão de alta
resolução ou carro do ano, sem saber se vai conseguir pagar as prestações em
quatro anos, também elege seu candidato sem possuir garantias de que ele
cumprirá com seu programa.
Sobre o primeiro capítulo, é importante afirmar que não existe uma verdade
que seja pura e imaculada, tampouco existe ou existiu homem ou mulher neutro ou
imparcial o suficiente para descobrir tão verdade. Todo conhecimento é oriundo das
condições materiais de um dado tempo numa dada sociedade, são esses dois
fatores que definem os horizontes de caminhos e ações possíveis. O conhecimento
histórico é, portanto, limitado pelo tempo e espaço no qual está inserido o
historiador. Essa limitação, mais do que um defeito ou falha, é uma característica de
todo conhecimento. Todo conhecimento é limitado pelo tempo e espaço, pelo
momento político, pelas limitações biológicas do cientista e pelo o quanto já se sabe

indígenas nas fronteiras agrícolas do agronegócio, a ascensão de grupos supremacistas brancos nos EUA
neonazistas na Europa.
38
Por capitalismo finaneceiro entendemos que seja uma formação social, que é também a fase atual do modo
de produção capitalista, onde a organização da economia ( levando em conta a influência que a organização da
economia tem numa sociedade de mercado) é baseada na lógica do capital financeiro, isto é, aquele capital
que se reproduz na esfera financeira da sociedade.
48

sobre determinado assunto. Sendo assim, toda ciência está em construção. O


conhecimento não é uma construção individual do cientista e sim o resultado de
múltiplos esforços, simultâneos, diretos ou indiretos que permitem ao cientista
investigar e divulgar suas descobertas, ele é, portanto, um patrimônio imaterial dos
homens.
Enquanto estudo de caso para a história do tempo presente este trabalho
possui as suas limitações. Limitações estas que foram discutidas e apresentadas ao
leitor no primeiro capítulo. Se este trabalho puder servir a algum propósito para os
historiadores é de que a história do tempo presente não é impossível. Ela exige uma
postura de reflexividade do historiador que se encontra à deriva num mar de
informações, textos, imagens, hiperlinks e vídeos. É fácil se perder na sociedade de
informação e é mais fácil ainda falar de muita coisa sem possuir profundidade
nenhuma. Com a postura reflexiva, o historiador exercita o seu ofício no próprio
presente, deixando os fatos e intrigas do tempo factual passarem enquanto se
debruça sobre aquilo que lhe incomoda - o problema. Dessa forma é necessário ao
historiador refletir sobre as questões de sua época, buscando um saber mais
sistematizado e não se preocupando em absorver tudo que acontece ao seu redor,
pois em retrospecto, os aspectos de um determinado período que se sobressaem
são aqueles que passam pelo problema, o pontapé da investigação histórica.

5. Cronologia dos fatos

Tendo em mente a controvérsia de escrever um trabalho de história com o


apoio de uma cronologia, nós acreditamos que, por se tratar de um objeto recente
da história, torna-se necessário apresentar uma breve cronologia, com uma seleção
dos fatos que acreditamos ser mais relevantes para o entendimento do nosso objeto.

1988 – Assembleia Nacional Constituinte


Publicação do artigo “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional
brasileiro.

1994 – Instituição do Plano Real

2002 – Publicação da “Carta ao povo brasileiro”

2003 – Luiz Inácio Lula da Silva toma posse como Presidente.


49

2005 – Escândalo do mensalão

2006 – Reeleição do Presidente Lula

2008 – Início da crise financeira nos Estados Unidos

Publicação da pesquisa “A nova classe média”.

2010 – Vitória eleitoral de Dilma Rousseff para presidência da república.

2013 – Jornadas de junho provocadas pelo aumento da tarifa das passagens de


ônibus.

2014 – Eleições presidenciais. É a primeira eleição presidencial, em dez anos,


marcada pela acirrada polarização eleitoral.

2015 – Março: Protestos pró (13) e contra (15) o governo Dilma Rousseff marcam o
início da crise política e da configuração da polarização mortadelas e coxinhas.´Tem
início a primeira conjuntura da crise política, representada pela palavra de ordem
“Fora Dilma!”

Outubro: É publicado o texto “ponte para o futuro” que serve como indicativo
para entender o programa mínimo que seria executado.

Dezembro: O pedido de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff é aberto.


A partir deste momento, a conjuntura se concentra em derrotar (ou não) o pedido de
impeachment da Presidenta na câmara, inicia-se a conjuntura marcada pela frase
“Tchau querida!”.

2016 – Abril: Votação, na câmara dos deputados, do pedido de impeachment,


aprovado por 367 votos favoráveis e 137 contrários. Tem início a conjuntura “Fora
Temer!”

Agosto: Michel Temer assume como Presidente Interino.

Outubro: Assembleia geral dos estudantes de história da UFRRJ-IM decide


pela ocupação do instituto, aderindo assim, à onda de ocupações contra à reforma
do ensino médio e a PEC 55 (antiga PEC 241).

Novembro: Aprovação da PEC 55, anunciando o congelamento dos gastos


públicos pelos próximos vinte anos.
50

2017 – Fevereiro: Reforma do ensino médio é aprovada.

Julho: Reforma trabalhista é sancionada pelo governo Temer.

2018 – Fevereiro: Intervenção militar no Rio de Janeiro é sancionada por Michel


Temer.

Abril: O ex-presidente, Luiz Inácio, entrega-se para a Polícia Federal.

Maio: Tem início a greve dos caminhoneiros contra o preço do óleo diesel.

Setembro: O movimento “ele não!”, contra a candidatura de Jair Bolsonaro,


toma as ruas nas vésperas das eleições presidenciais

Outubro: Jair M. Bolsonaro é eleito presidente da República.


51

6.Bibliografia

ABRANCHES, S. H. H. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional


brasileiro. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, p. 29, 1988.
BARROS, J. D. Teoria da História. 2ª. ed. Petrópolis, Rj: Vozes, v. II, 2011.
BARROS, J. D. Teoria da História. 1ª. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, v. V, 2012.
BARROS, J. D. Teoria da História. 3ª. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, v. III, 2013.
BARROS, J. D. Teoria da História. 4ª. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, v. I, 2013.
BLOCH, M. A apologia da história. [S.l.]: Zahar.
BOLLE, M. B. D. Como matar a borboleta azul: uma crônica da era Dilma. 1ª. ed.
Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.
CARDOSO, C. F. História e paradigmas rivais. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R.
Domínios da História. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997. Cap. Introdução, p.
32.
ESTRELLA, A. C. A ciberhistória: as possibilidades para o historiador na era digital,
a importância do saber pesquisar. Nova Iguaçu: [s.n.], 2013.
MOTTA, M. M. M. História, memória e tempo presente. In: CARDOSO, C. F.;
VAINFAS, R. Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 2012. Cap. 1,
p. 15.
NOBRE, M. Imobilismo em movimento. 1ª. ed. São Paulo: Companhia das letras,
2013.
OLIVEIRA, F. Política numa era de indeterminação: opacidade e reencantamento.
In: OLIVEIRA, F. D.; RIZEK, C. A era da indeterminação. [S.l.]: [s.n.], 2007. p. 29.
OLIVEIRA, F. D. O momento Lênin. Novos Estudos, p. 24, Maio 2006.
PROST, A. doze lições sobre história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
SANTOS, R. D. O. C. D. O que teve de reforma agrária no governo Lula? Campo
território, p. 15, 2011.
SINGER, A. Os sentidos do lulismo. 1ª. ed. São Paulo: Companhia das letras,
2012.
SOUZA, J. A elite do atraso: da escravidão à lava jato. 1ª. ed. [S.l.]: Leya, 2017.
52

ane7.Lista de E-links

Documentos disponíveis na internet:

http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2018/propostas-de-candidatos

https://www.cps.fgv.br/ibrecps/M3/M3_TextoFinal.pdf

https://www.fundacaoulysses.org.br/wp-content/uploads/2016/11/UMA-PONTE-
PARA-O-FUTURO.pdf

http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2015/03/1604284-47-foram-a-
avenida-paulista-em-15-de-marco-protestar-contra-a-corrupcao.shtml (Acesso em:
19/02/2019)

Notícias de jornal:

https://www.nexojornal.com.br/demopub/colunistas/2016/Quando-a-
met%C3%A1fora-vira-realidade-reflex%C3%B5es-sobre-o-Muro-de-
Bras%C3%ADlia-e-a-intoler%C3%A2ncia (Acesso em 20.02.2019)

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-37491488 Acesso em 19/02/2019

https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/04/pobre-do-pobre-de-direita.html
(Acesso em 19/02/2019)
https://www.brasil247.com/pt/colunistas/guilhermecoutinho/306466/A-triste-sina-do-
pobre-de-direita.htm (Acesso em 19/02/2019)

Blogs:

https://torresdaheresia.wordpress.com/2015/08/07/pobre-de-direita/ (Acesso em
19/02/2019)
https://www.deverdeclasse.org/l/as-cinco-principais-caracteristicas-dos-pobres-de-
direita-leia-e-compartilhe/ (Acesso em 19.02.2019)

http://editoramulticultural.com.br/capa/Entrada/558-esquerda-caviar-e-esquerda-
p%C3%A3o-com-mortadela-quem-s%C3%A3o-o-que-querem-por-que-lutam.html
(Acesso em 19.02.2019)
53

8.Anexos

Anexo A – “Se os cartazes fossem sinceros” Xêidiarte.

Anexo B – Pobre de direita


54

Anexo C - Esquerda caviar e esquerda pão com mortadela: quem são? O que
querem? Por que lutam?
55

Anexo D – Charge de Ivan Cabral 2016 ( à esquerda) e sua apropriação (direita).


Apropriações como essas foram comuns no período da polarização onde charges,
textos e imagens tinham seu significado político alterado fosse com a adulteração da
imagem ou com mudança no contexto.

Anexo E – O Coxinha. Charge de Latuff publicada em 2014 e sua adulteração (à


direita)
56

Anexo F – Esquerda e direita, autor desconhecido.

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