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Presidente

da República
Dilma Rousseff

Ministro da Cultura
Juca Ferreira

Fundação Nacional de Artes

Presidente
Francisco Bosco

Diretor Executivo
Reinaldo Veríssimo

Diretor do Centro da Música


Marcos Lacerda

Coordenador de Música Erudita


Flávio Silva

Coordenadora do Projeto Coral


Maria José Queiróz Ferreira

Organização: Eduardo Lakschevitz Revisão: Lucy Schimiti Capa:


Paula Nogueira Design e-book: Vanessa Maia (duo.me design)
Painéis Funarte de Regência Coral (2014 : Rio de Janeiro,
Brasil). P411 Cadernos do painel [recurso eletrônico] : a
preparação do regente / Eduardo Lakschevitz (org.) ; Angelo Dias
... [et al.] . – Rio de Janeiro : Oficina Coral, 2016.

1. Regência de coros - Congressos. 2. Regência (Música) -


Congressos. 3. Música – Instrução e estudo - Congressos I.
Lakschevitz, Eduardo. II. Dias, Angelo de. III. FUNARTE. IV.
Título.

CDD – 782.5
Índice
Autores
Apresentação
I - Entre mãos e corações
II - Contextos diversos, cantorias distintas
III - Um pouco de tudo
IV - Um gesto, múltiplos cantos
V - Muitas perguntas, muitos caminhos, muitas canções
VI - As múltiplas dimensões da prática coral
Autores
Eduardo Lakschevitz é Doutor em Música
pela Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO) e Mestre em Regência Coral
pela Universidade de Missouri-Kansas City
(EUA). É professor da UNIRIO, onde leciona a
cadeira de História da Música e coordena o
Programa de Mestrado Profissional em Ensino
das Práticas Musicais. É regente do Coro da
TV Globo. Pesquisador de aspectos
comportamentais na produção musical, realiza projetos em educação
empresarial nos quais aborda a música como ferramenta de
desenvolvimento cultural e humano.

Angelo Dias desenvolve intensa atividade


profissional no campo da música vocal, seja
como cantor (barítono), regente ou professor.
Desde 2007 tem participado como regente e
professor dos Painéis FUNARTE de Regência
Coral. Angelo é Doutor em Artes Musicais
(DMA, Canto e Regência Coral) pela University
of Oregon (USA), Mestre em Música (MM,
Canto) pela University of Wyoming (USA), e
Bacharel em Canto pela Universidade Federal de Goiás. Desde 1992, é
professor na EMAC/UFG.

Gisele Cruz é bacharel em música pela UNESP e mestranda pelo


Programa de Mestrado Profissional em Ensino das Práticas Musicais da
UNIRIO. Coordena várias atividades vocais do Centro de Música do
SESC Vila Mariana, entre elas o coral infantil com o qual participou do
CD e DVD da cantora Fortuna, Na Casa da Ruth. Também pelo SESC
editou o manual Canto, Canção, Cantoria – Como Montar um Coral
Infantil. É regente dos corais infantil e juvenil do Colégio Dante Alighieri.
Integra a equipe de professores dos Painéis de Regência Coral
realizados pelo Centro da Música da
FUNARTE, em todo o país. Escreveu para a
AAPG – Associação de Amigos do Projeto Guri
o “Livro Didático para Coral Infanto-Juvenil –
Básico I” – versão para o educador, e versão
para o aluno.

Lucy Maurício Schimiti é bacharel em Música


e Mestre em Letras. Atua há mais de 30 anos
na área de música vocal, dando aulas de
regência e conduzindo grupos corais
especialmente na Universidade Estadual de
Londrina, Paraná. Esteve à frente de vários
projetos nessa área, incluindo assessorias e
participação em festivais e simpósios dentro e
fora do país.

Samuel Kerr tem conduzido sua carreira


musical ao som da voz cantada, seja como
regente, arranjador, organista ou professor.
Dentre seus trabalhos corais estão os
realizados à frente do Coral Paulistano do
Teatro Municipal de São Paulo, Coral da
Unesp, por ele criado, Cia Coral, Associação
Coral Cantum Nobile, Coral dos Estudantes de
Medicina da Santa Casa de São Paulo,
Madrigal Psichopharmacom e muitos movimentos corais por ele
liderados. Foi também Diretor da Escola Municipal de Música de São
Paulo, Regente da Orquestra Sinfônica Jovem Municipal de São Paulo e
Professor do Instituto de Artes da Unesp. Atualmente tem participado
dos Painéis Funarte de Regência Coral
Vladimir Silva é Doutor em Música (Regência)
pela Louisiana State University (EUA). Já regeu
vários grupos vocais/orquestrais, atuando como
regente e solista (tenor) na Argentina, França,
Itália, Áustria, Alemanha e Estados Unidos.
Tem colaborado com diversas universidades e
participado de eventos musicais no Brasil, na
Europa e na América do Norte. Lecionou nos
Festivais de Música de Goiânia-GO (2007),
Londrina-PR (2009 e 2010) e nos Painéis FUNARTE de Regência Coral.
Atualmente, é professor da UFCG e Diretor Artístico do Festival
Internacional de Música de Campina Grande.
Apresentação
A atividade coral no Brasil está se transformando muito rapidamente.
Categorias e padrões que outrora serviram como referência parecem
não mais se aplicar à análise e à prática dessa música. Coros de todas
as origens estão expostos a idiossincrasias da vida contemporânea;
estas influenciam o comportamento dos cantores, a dinâmica de ensaio,
a escolha do repertório e os estilos de produção vocal, o que suscita um
questionamento de paradigmas até há pouco tempo aceitos como
universais. Para acomodar tais mudanças, regentes e professores de
música têm buscado caminhos de trabalho alternativos, que equilibrem
fidelidade a seus ideais artístico-musicais e maneiras de contextualizar a
música coral na vida contemporânea, de forma a motivar cantores e
instituições mantenedoras.
Mas a alta velocidade dessas mudanças é acompanhada com certa
dificuldade pelas instituições acadêmicas, cujas estruturas são
complexas e, naturalmente, pouco flexíveis. A bibliografia da área e os
programas de cursos regulares com frequência oferecem um tipo de
formação distante dos processos de trabalho da maioria dos regentes e
educadores brasileiros do século XXI.
O Painel FUNARTE de Regência Coral, entretanto, tem-se mostrado
um local privilegiado de observação da realidade coral brasileira.
Entende-se que, por sua curta duração 1 o Painel não se configura como
um espaço de formação básica de regentes, mas sim de discussão,
troca de experiências e realização de atividades práticas. O público do
Painel mistura regentes experientes e novatos, de nível técnico
diversificado, vindos das mais variadas tendências da atividade coral.
Juntos discutem questões relativas ao seu trabalho e preparam um
repertório, que é apresentado ao final do evento.
Dessa maneira, podemos pensar que o trabalho de preparação de
um professor para o Painel é semelhante ao da maioria dos regentes de
coros no Brasil, que lidam com grupos heterogêneos formados por
cantores voluntários, geralmente com tempo de ensaio reduzido e com
demandas institucionais a ser cumpridas. Tal configuração requer do
regente competências que vão muito além daquelas em torno das quais
gravita o ensino acadêmico de música, tais como planejamento,
flexibilidade, gestão do tempo e liderança.
Os artigos deste livro não se pretendem didáticos, não propõem
modelos, padrões ou metodologias e muito menos tentam esgotar o
tema. Os autores simplesmente comentam sua preparação para um
Painel, expondo aspectos musicais e não-musicais desse processo.
Abordam temas como a organização de repertório, o equilíbrio entre a
experiência e a expectativa pelo inusitado, o planejamento de ensaios e
a influência do curto tempo de trabalho no resultado final apresentado.
Mais ainda, mencionam questões que estimam como as mais presentes
no dia-a-dia dos regentes brasileiros da atualidade. Este não é um
manual de regência; tampouco segue formatação acadêmica. Os artigos
são conversas informais com os leitores, nas quais regentes experientes
expõem idéias sobre a realidade de seu trabalho: fazer música coral nos
dias de hoje.
O Painel FUNARTE de regência coral tem a duração de uma
semana. Dois professores e um pianista acompanhador trabalham com
regentes e educadores locais aspectos que vão da montagem de
programa à dinâmica de ensaio e ao gestual de regência. Por sua
abrangência nacional, o Painel oferece aos professores, também, uma
possibilidade de diagnóstico da atividade coral no país. Desde a
retomada desse projeto, em 2007, foram realizadas edições do Painel
em: Mossoró (RN), Aracajú (SE), Maceió (AL), Maringá (PR), São João
del Rey (MG), Santarém (PA), Rio Branco (AC), Teresina (PI), Mogi das
Cruzes (SP), Araxá (MG), Natal (RN), Belém (PA), Goiânia (GO),
Campina Grande (PB), Campo Grande (MS), Vassouras (RJ), Quixadá
(CE), São Carlos (SP), Ponta Grossa (PR), Cuiabá (MT), Mariana (MG),
Crato (CE), Sobral (CE), Palmas (TO), João Pessoa (PB), Boa Vista
(RR), Rio Branco (AC) e São Luis (MA), Belém (PA), Crato (CE) e
Curitiba (PR).
Entre mãos e corações
Ângelo Dias

1 No princípio era...

Escrever sobre o que fazemos é algo curioso. Quando nos


dedicamos a uma tarefa por longo tempo, com a mesma preenchendo
todos os espaços de nossa existência, nem sempre somos capazes de
traçar com perfeição de detalhes, desde a origem, todos os degraus que
subimos (ou descemos...) para acumular a farta bagagem que
carregamos conosco. As experiências vão-se acumulando, algumas
vezes ordenadamente, outras apenas se empilhando mesmo, e a
capacidade de avaliar, de apreciar e de realizar se torna simplesmente
parte de nós. Quando se está lá pelo que chamamos hoje de “tempos
idos” e se começa uma caminhada, não se imagina, nem de longe, a que
distâncias nossa vontade, nossa persistência, enfim, nossa teimosia em
manter a vida funcionando irão nos conduzir. Tudo se torna
simplesmente parte de nós. Por mais atenção que um médico, um
engenheiro, ou uma alegre costureira dediquem a seu trabalho no agora,
uma grande parte dos objetivos propostos é alcançada simplesmente
sem pensar, porque já sabem fazer aquilo à perfeição. A isso, chamamos
experiência.
Pensar sobre a aquisição deste know-how (utilizando-nos do jargão
emprestado da língua inglesa) é percorrer para trás o caminho dos tijolos
amarelos que levou Dorothy e seus amigos a Oz. Só que, na vida real, o
pavimento é totalmente irregular. Alguns trechos são íngremes, quase
impossíveis de serem galgados, outros repletos de farpas pontiagudas
que, ferindo-nos, tornam-se cicatrizes que nos marcam para sempre. Em
alguns momentos do percurso, é claro, as pedras são lindas,
arrumadinhas com gosto, mas sempre desembocam outra vez nas
partes áridas da trilha. E Oz é um lugar singular... Depois que se chega
lá, por bela que seja, descobre-se que a caminhada não terminou. Ao
contrário, precisamos agora descobrir o que fazer na cidade mágica.
Porque a caminhada nos deu mais perguntas que respostas. É sabido
que o importante é sempre fazer as perguntas certas, e a primeira que
fica na cabeça do viajante é justamente “por que mesmo eu vim para
cá?...” E é isto que nos perguntamos um dia após o outro. Para que
adquiri toda esta experiência? Qual o objetivo de me tornar um
profissional capacitado? De que me serviram as horas intermináveis de
estudo, de trabalho, de prática, de suor e de lágrimas (essas são
tantas...)? E a resposta não é “para um dia viver tranquilo, para me
aposentar tranquilo, para gozar a vida tranquilo”. É evidente que a
segurança material a que todos aspiramos faz parte do plano diretor da
vida, mas não é a meta central. Pelo menos, não deve ser. Se for, a vida
se converte em mero trabalho braçal, rotineiro, que alimenta o corpo e
deixa faminto o espírito. É preciso que o ser humano tenha algo mais
que o mova. Uma vontade, um impulso que o faz transcender. Ou, se
quisermos, um ideal...
Não é meu objetivo, neste dedo de prosa, tentar transformar ninguém
em filósofo de plantão, isto porque eu mesmo não o sou. Mas aprender a
reconhecer as necessidades fundamentais do espírito, além daquelas do
corpo, é o único caminho para a felicidade, para a paz. Ah, aí está
então... Todos nós queremos ser felizes! O problema é que, tão somente
saciados materialmente, nunca seremos realmente felizes, a menos que
haja aquele algo mais. Está na natureza íntima do ser a necessidade de
transcender, ainda que, muitas vezes, esta parte de nós não seja bem
compreendida. Claro que a posse do necessário é fator indiscutível para
a manutenção da dignidade do viver, da cidadania. Mas em qualquer
nível social ou econômico é possível avançar para mais além.
Lembro-me de uma história que ouvi certa vez numa conferência
proferida pelo querido professor José Raul Teixeira, do Rio de Janeiro,
sobre uma senhora do interior de Minas Gerais que passou sua
existência inteira fazendo bolos de noiva. Eram sua especialidade. E
tornou-se tão famosa que seu negócio caseiro cresceu e ultrapassou
fronteiras. Mas ela não era apenas mais uma confeiteira. Ela resolveu
transcender. Cada noiva que a procurava era convidada a sentar-se, a
comer um bolinho, e a conversar sobre a vida, sobre seus sonhos, suas
esperanças, seus temores. Somente depois de mergulhar no íntimo de
cada uma delas, a senhora sentia segurança para saber de qual bolo
cada nubente iria gostar mais. E ela nunca errava. Mas o mais curioso é
que sua cozinha se tornou uma espécie de consultório, onde se fazia
terapia sem pagar nada. Quantos casamentos ela manteve, dizia o
conferencista, quando as moças lá chegavam em desespero. Anos mais
tarde, ela ainda recebia fotos e cartas de muitas de suas clientes-
amigas. Ela poderia simplesmente ter um catálogo com belas fotos de
bolos já produzidos, mostrá-lo aos contratantes, e pronto. Mas não era
assim que ela via sua atividade. Ela transcendia.
É por isto que não consigo falar da minha profissão sem trazer à baila
a palavrinha transcender, ou seja, usar o que sabemos para além dos
limites técnicos. O aprendizado do regente, do professor, se converte
numa caixa de ferramentas em que estão contidas as perguntas e as
respostas, os problemas e as soluções que ajuntamos, a cada dia de
trabalho, ao longo da vida. E o mais fascinante nesta carreira é que todo
dia aparece algo novo, inusitado, impensado mesmo, no campo musical
e no pessoal, e que nos exige quebrar a cabeça sem encontrar nada de
definitivo na maleta do barbeiro. A gente abre, olha lá dentro e diz _
“Mmm... e agora?” Mas aí reside a beleza da vida: a novidade, a
inextinguível capacidade que ela tem para a renovação, para a
diversidade. Então, percebemos que com dois ou três apetrechos que
retiramos da maleta, acrescidos de um elemento novo que criamos na
hora, fazemos uma combinação mágica, uma poção, e o resultado lá
está: soluções musicais e humanas que são únicas. Os compositores
asseguram que seu trabalho é composto de uma pequena parcela de
inspiração e uma enorme de transpiração. Assim também somos nós,
regentes e professores. Mas nem sempre a coisa é assim, cor-de-rosa...
Infelizmente, a regência é uma atividade profissional e artística que
nem sempre é encarada com a mesma disciplina empregada em outras
áreas da música. É muito comum aparecerem regentes de todos os
matizes pelo mundo afora, alguns mesmo que literalmente caem de
paraquedas no trabalho, às vezes por necessidade financeira, por
circunstâncias inusitadas na escola ou na empresa em que trabalham,
ou porque uma amiga vai se casar e precisa de um grupo para fazer a
parte artística do evento. A lista de motivos não acaba. Talvez o caso
mais curioso seja o do aluno de música que sempre teve aversão à aula
de canto coral e acaba indo para uma escola justamente formar um coro.
E com alunos que têm aversão ao coral... No tempo de plantar, o aluno
avesso não percebeu o quanto lhe seria agradável e útil aquela parte de
sua formação. Aqui se faz, aqui se paga, dizia minha avó. Então, se a
pessoa tem alguma formação musical, toca um pouco de violão, teclado
ou outro instrumento qualquer, e surge um pedido para fazer um coro em
algum lugar, lá vai nosso intrépido aventureiro ajuntar aqueles
voluntários (os forçados são os piores...) e colocá-los para cantar. Caixa
de ferramentas? “Bem, eu trouxe a caixinha de rapé, serve?” Seria
realmente engraçado, se não fosse tão sério.
Em todas as atividades, das mais simples às mais complexas, a
formação antecede a execução, o aprender antecede o ensinar. Isto
porque só se dá o que se tem. Não estou dizendo que alguém que não
teve formação específica na área coral não deveria se converter em
regente da noite para o dia, se surgir a contingência. Digo que, se isto
acontecer, no mesmo dia se iniciará também a busca do neófito pelo
conhecimento especializado, pelo estudo da nova área a que passou a
se dedicar. Quem não sabe, que aprenda; quem não conhece, que
investigue; quem não realiza, que se mova. O ingrediente fundamental é
a vontade.
Conheço muitos regentes que começaram assim, estudando e
progredindo juntamente com o coro que formaram, “ralando”, termo
usado na gíria para caracterizar a atividade daquele que se debruça sem
trégua sobre alguma coisa para extrair dela o máximo em experiência e
aprendizado. E foram crescendo, acumulando conhecimento, e se
tornaram muito bons no que fazem. Mas estes não são maioria,
infelizmente, pois o número maior é o dos que entram numa “zona de
conforto” e dali não avançam mais. E o que é pior, ancoram seus grupos
eternamente no mesmo patamar, impedindo que eles continuem
crescendo além do ponto em que seu regente estacionou. Sempre me
chamaram a atenção certos anúncios de emprego que são postados por
aí: “contrata-se tal ou tal profissional, com no mínimo dois anos de
experiência.” Se ninguém contratar novatos, como adquirir a desejada
experiência? Um regente pode realmente brotar de outra área da
música, mas a formação básica está lá: leitura musical, conhecimentos
de harmonia e estrutura, treinamento auditivo. Eventualmente, um
professor de história pode até assumir uma aula de português em níveis
mais elementares, desde que se dedique a estudar as especificidades
que o conteúdo programático exige. Isto porque ele é alfabetizado, tem
familiaridade com a escrita e a leitura; em suma, tem a formação básica.
É claro que ele não terá o mesmo sucesso que um profissional formado
em língua portuguesa, mas poderá realizar um trabalho eficaz, dentro
dos limites impostos a ele. E crescer muito, estudar, e talvez se tornar
um excelente mestre na nova área. Trazendo o exemplo para nossa
área, o mesmo não se dá com os ditos regentes que não têm nem
mesmo noções de música, uma formação absolutamente elementar, que
seja. Como lidar com o que não se conhece? No instinto? Na
adivinhação? Pode até ser que funcione no primeiro dia, mas, a partir do
segundo encontro com seu grupo, que fazer? Mas os exemplos acima
não funcionam para todos. A maioria dos músicos de outra formação
nunca será regente, a menos que tenha aquele foguinho sagrado
guardado lá dentro, esperando para ser soprado com o estudo, a busca
do conhecimento e a prática. Esse foguinho é que dizem ser o talento?
Prefiro chamar de predisposição, inclinação natural. Mas é preciso
experimentar. Quantos regentes se descobrem tardiamente?
Somos todos seres em formação. Temos uma capacidade
assombrosa, divina mesmo de aprender. E todo cuidado é pouco, pois
isto nos serve para os dois lados da moeda... O regente, ou o candidato
a ser um deles, precisa estudar, ter curiosidade, mergulhar em assuntos
variados no campo que tem em vista. Só assim sua caixa de ferramentas
vai aumentando em quantidade e qualidade, de forma que possa
melhorar seu trabalho e promover o aprimoramento de seus
comandados. Se não, a meta maior do regente, que deveria ser a de
qualquer um, jamais será alcançada. E qual seria ela? Fazer uma
diferença na vida das pessoas. Ponto!
A música em grupo é considerada por muitos como o maior
instrumento de socialização e integração do indivíduo. Quem canta ou
toca em conjunto desenvolve habilidades cognitivas, percepções, e
compartilha sua intimidade com o outro de forma inusitada. Sem isto,
não haveria como fazer tanta gente diferente, reunida numa sala de
ensaio ou no palco, produzir sons tão variados e ordená-los de forma a
torná-los compreensíveis para quem escuta. E aqui vem a outra parte do
processo: o público. O ouvinte também tem que experimentar sua
parcela de transformação, ou nossa atividade musical de nada terá
valido. “E quem não está preparado para ouvir e absorver?”, dirão
alguns. Vamos fazendo música até isto acontecer, melhorando
estratégias e meios.
Poderemos então nos perguntar: a música é fim ou é meio? E a
resposta é: ambos! Para o artista, a excelência em sua prática diária é
uma meta a ser atingida, porque ele ama e respeita o que faz, e por isto
quer que seu produto profissional se confunda consigo mesmo. O artista
é sua arte. A música nasce da camada mais profunda do ser, aquela que
está lá na base de tudo, e percorre veloz ou lentamente, não importa,
todos os outros níveis acima dela até jorrar na nossa superfície visível.
Em sua ascensão, ela vai trazendo consigo um pouco do que encontra
no caminho e, quando surge finalmente, vem completa, plena de nós
mesmos, do que somos hoje, do que acumulamos ao longo da vida e do
que armazenamos nas nossas camadas interiores. Parece profundo. E é
mesmo. Nós atingimos as pessoas pela música porque por meio dela
conversamos com o outro. É um diálogo, porque o outro, o público,
nosso interlocutor, nos devolve vivamente suas impressões. É um
processo mágico, tão belo que vale cada alegria e cada percalço da
estrada de tijolos amarelos.
Portanto, para termos o que dizer aos nossos companheiros de
jornada, temos a obrigação de nos aperfeiçoarmos, pessoal e
profissionalmente, para que nossa música seja tecnicamente vitoriosa,
mas que nossa mensagem atinja também seus objetivos: transformar,
melhorar, estimular. A música coral é poderoso instrumento para isto,
mas as mãos que a manejam, por vezes, desperdiçam a oportunidade
que têm. Quanto mais se dedica o regente ao estudo, ao saber
específico da nossa arte, mais sutil, mais rica em detalhes vai sendo sua
comunicação com seus cantores e com seu público. E o resultado se
mostra quando o coro se sente feliz, realizado após uma apresentação.
E quando nós estamos ao volante, voltando para casa à noite, vamos
repassando cada música na cabeça e pensando: “foi tão bom, teve esta
derrapada aqui, aquela tropeçada acolá, mas foi tão bom”. Esta é a
matemática: estudo + escolhas embasadas + emoção = dever cumprido.
E o coro deve, igualmente, compreender o que significa fazer a
diferença na vida de alguém. Se não, nós regentes ficamos lá na frente
tentando aquecer um enorme bloco de gelo. O grupo, influenciado pelo
exemplo do regente, muito mais que pelo seu discurso, deve saber que
está ali por uma razão. Que cantar, fazer música; é uma desculpa
deliciosa, sublime quase, para algo muito maior. E há coros de todos os
formatos e coristas de todo tipo. Alguns vão compreender estes
conceitos de forma profunda; outros, só superficialmente. Há grupos em
que o intelecto vai ajudar a chegar ao objetivo; em outros, atrapalhar.
Mas há uma ferramenta que o regente vai afiando ao longo do tempo e
que é a mais importante da caixa: o sentimento. Tocar o coro produzirá
um efeito cascata que fará com que eles toquem o público, mas por
nosso intermédio. Que processo formidável! Se o regente domina seu
conhecimento técnico, então poderá sensibilizar mais facilmente, com
precisão, porque sabe como fazer. Mas só sentimento, muitas vezes,
não basta. Podemos chorar até nos desidratar quando um coro que tem
grandes limitações físicas e sociais canta uma música bem simplesinha
com todo amor. Mas quando vemos um grupo que tem potencial
apelando para o sentimentalismo (que é algo bem diferente),
desapontamo-nos; sentimos quanta energia está sendo desperdiçada,
quanto potencial transformador é jogado fora. Carpe diem. A quem muito
foi dado, muito será cobrado, não é assim?
O estudo do regente nunca termina, como não acaba o do médico, do
legislador, porque chegar em Oz é como chegar em novo começo. É
como se o estudo fosse um pré-começo, uma etapa introdutória, depois
da qual vem realmente o aprendizado. É fazendo que se aprende de
verdade, mas para fazer é preciso aprender primeiro. Não é um
espantoso paradoxo? Mãos à obra, então!

2 Com a mão na massa...

Vamos falar um pouco sobre os grupos que encontramos nesta vida.


Há os profissionais, os acadêmicos (de conservatórios, de escolas de
música etc.) e os leigos, também chamados de amadores. Por alguma
razão, o termo “amador” – que simplesmente quer dizer que alguém não
é especialista em alguma coisa, mas que ama fazer aquilo no nível que
consegue –, tornou-se algo depreciativo em nossa língua. Um amateur
choir nos Estados Unidos, por exemplo, pode ser um ótimo coro, sendo
formado por profissionais liberais, por donas de casa etc. Diferentemente
do que acontece no Brasil, em que o ensino de música nas escolas
regulares está apenas recomeçando, os amadores de lá leem música.
Só não são profissionais. Entretanto, em nosso país, por via de regra, os
leigos não têm formação musical teórica. É por isto que, aqui, parece
haver um consenso em usar-se, para o mesmo tipo de grupo, o título de
coro leigo. Para mim, tanto faz. Quem ama a arte coral ama e pronto.
Pois bem, os coros em que ninguém lê música são a absoluta maioria
dos grupos em nosso país. Há os de empresa, de escolas públicas,
comunitários, de igrejas (exceções, pois em poucas ainda há coros
mistos, ante a avalanche importada dos “conjuntos” e dos “corinhos”).
São basicamente pessoas que se reúnem porque querem cantar. E aí?
Um erro frequente é dizer que esses grupos leigos não são
“musicalizados”. Ser musicalizado não quer dizer somente que se
compreende a escrita musical e se pode decifrá-la. O termo nos mostra
também que aquele corista é capaz de sentir a força sonora e
interpretativa da música que executa, que balanceia sua voz com a do
seu companheiro do lado e com seu naipe, que compreende a dinâmica
de um trecho em virtude do que o texto diz naquela passagem da
partitura. E que, individualmente, faz parte de algo maior que si mesmo.
Isto também é ser musicalizado. Neste quesito, tenho visto coros
profissionais e acadêmicos que perdem fragorosamente para um bom
coro leigo...
É possível fazer música com um coro que não lê música? Sim, é
evidente. Se a leitura não está presente, todos os outros elementos
musicais devem ser explorados em profundidade, fugindo-se do
automatismo e do lugar comum, como o seria em qualquer grupo
familiarizado com a teoria musical. A música não está nas bolinhas, mas
por detrás delas, como o sentido de um texto está por detrás das letras.
Notas são sinais para que se decodifique a música verdadeira. Por isto,
o regente deve saber música, é claro, para ser o primeiro decifrador,
transmitindo ao grupo em seguida o que apreendeu de sua
decodificação dos sinais grafados, e do que está por detrás deles. A
performance se torna honesta, verdadeira, adaptada ao máximo que os
cantores podem oferecer, mas desafiando-os sempre. O leigo pode e
deve produzir constantemente, sem deixar de aprender a cada
experiência. A arte primorosa do repente é prova disto. Um repentista
pode ser incapaz de ler ou escrever, mas sua memória prodigiosa e seu
contato intenso com a realidade que o cerca lhe fornecem subsídios para
levar adiante seu trabalho. É claro que o estudo formal da língua
melhoraria ainda mais o nível das rimas, aumentaria o cabedal do
vocabulário, alargaria os horizontes de seu repertório. Mas ele desbrava
o sertão com o que tem. E faz arte. No nosso caso, cabe ao regente
desbravar a floresta para seus coristas leigos. Mas é preciso saber como
fazê-lo com segurança, estimulando-os sempre. Voltamos à mesma
cantilena: estudo, estudo, estudo...
O coro profissional, ou aquele da academia é o coro do sonho do
regente que não o tem. Nele, todo mundo lê música, o solfejo está em
dia (se bem que nem sempre...), a compreensão musical é elevada,
mas... Sempre tem o “mas”. O nível de exigência sobre o regente sobe à
estratosfera. Já que o corista é capaz de, por si mesmo, decodificar
muito do conteúdo do repertório, ao regente vai ficando a tarefa cada vez
mais especializada de ir além, de buscar o que ninguém achou, de
colocar uma cereja preciosa naquele bolo que já está extraordinário. E
isto é uma tarefa para poucos. Muitos regentes sonham com um coro
assim, mas não têm a menor ideia do que fazer com ele quando se
veem cara a cara com aquele soprano ou aquele baixo que o mede dos
pés à cabeça, para ver onde ele vai derrapar naquele dia, em que parte
do ensaio ficará surdo e não ouvirá o sol natural que está cantando de
propósito naquela peça atonal, e que deveria ser sustenido... Claro que
não são todos os coros que são assim, nem todos os coristas, mas uma
breve anamnese vai nos dizer que raridade é que não são.
Diz a voz do povo (que, há controvérsias, se diz ser a voz de Deus),
que dois regentes só concordam inteiramente um com o outro quando
falam mal de um terceiro. Os coristas são assim também, às vezes. E o
delicado equilíbrio entre regente e coristas, seja no coro leigo ou naquele
com conhecimento musical, é formado pela junção de dois fatores, um
profissional e outro pessoal. No primeiro quesito, a formação e o
empenho do regente ou do professor na busca do saber mostram que
ele respeita o posto que ocupa e as pessoas que arrebanhou para com
ele trabalhar. Demonstra, ainda, que ele tem o que ensinar, que pode
extrair da música significados sempre maiores para fazê-los chegar
primeiro aos coristas, depois ao público. Mas é no segundo quesito, o
pessoal, que muitos regentes destroem na base todo o edifício que
deveria ser erigido em função de tornar frutífera sua atividade. Por mais
capacitado profissionalmente que seja o regente, sua habilidade de
humilhar, rebaixar, reduzir a um galináceo pipilante seu melhor corista é
realmente notável. Ao invés de líder que congrega, que atrai, torna-se o
chefe que oprime, que repele. E ninguém, absolutamente ninguém
consegue fazer música diferenciada ante um regente cujo ego submete
a todos sem respeito pelo fato de que quem emite o som, quem é seu
instrumento é o cantor. Liderança é um elemento essencial para se fazer
qualquer coisa em grupo, e na produção de música coral não é de forma
alguma diferente.
Não quero dizer, é claro, que limites, fronteiras não devam ser
estabelecidas entre o que compete a cada um, na frente e atrás da
batuta. Mas o respeito mútuo, por meio de uma convivência a um só
tempo séria e amigável, tornará regente e coristas conectados,
interdependentes, necessários um ao outro. Um vai querer trabalhar
com, e pelo outro. E isto não é assegurado por títulos ou por posições;
são as pequenas conquistas do dia a dia, de cada ensaio, obtidas pelo
modo como corrigimos um problema técnico ou como resolvemos uma
situação humana ou disciplinar que precisa de esclarecimento. Quantos
regentes há por aí que seriam muito bem substituídos, e com vantagem,
por alguém que não tivesse todo o seu conhecimento, mas que fosse
uma pessoa com a qual seus coristas gostassem de trabalhar. E quantos
regentes dariam tudo para que certos cantores excelentes de seu coro
se mudassem em definitivo para o castelo da família na Transilvânia e
que, em seu lugar, entrasse alguém com uma voz menos dotada, mas
com o dobro de vontade de contribuir. Mas há também os regentes que
submetem seus grupos a uma meticulosa lavagem cerebral. São os
“pavões da batuta” e, como seus parentes emplumados, se der uma
chuvarada e as penas forem embora, não sobra lá muita coisa. Em
qualquer dos casos, o mais perturbador é que a maioria dos regentes e
dos coristas que são assim nunca vai admitir que age desta forma. Eles
perdem um tempo precioso da vida que poderia ser gasto construindo
algo de especial.

3 Que cantar?

Um dos grandes desafios do trabalho com coro é a escolha do


repertório. Afinal, se um coro tem como atividade primordial o cantar; se
com a música demonstra suas habilidades técnicas, seu potencial
artístico e transmite a mensagem transformadora que pretende levar,
uma peça mal escolhida interfere tremendamente nesse resultado. Nada
pior do que ouvir um grupo tentando forçar seu caminho por uma música
que está além de sua compreensão, seja técnica ou emocionalmente
falando. Por outro lado, uma peça excessivamente fácil não representará
desafio algum para este ou aquele grupo, desestimulando-os ao
trabalho. Já que tudo é fácil mesmo, prestar atenção para quê? Isto não
representa um libelo acusatório contra a música fácil, nem um louvor
perene ao repertório impossível. É, sim, um alerta para que o regente
entenda o seu grupo e se esforce por descobrir aquilo que poderá extrair
deles o melhor que possam oferecer. E estudar, ouvir, conhecer
repertório é um diferencial entre o bom regente e os, digamos... outros
regentes.
É claro que todo regente tem uma caixinha de Pandora de onde tira,
com maior ou menor frequência, coisas que gosta de executar com seus
grupos, peças com as quais se familiarizou e que realmente são boas
para se cantar. Mas fazê-las por trinta anos??? Mais do que preferência
por algumas músicas, isto demonstra estagnação, falta de interesse em
crescer, em ampliar horizontes. Com tanta música no mundo, por que
um regente faz o mesmo repertório em cada coro com que passa a
trabalhar?
Certa feita, ouvi falar de um colega, aí pelo Brasil afora, que tem dez
corais numa mesma cidade, quase todos leigos. Passado o susto,
confesso que me fiz alguns questionamentos. Qual o percentual de
cantores que, na verdade, só pula de um grupo para outro? Há quanta
gente “original” cantando nesses dez grupos? Onde ele arranja tempo e
disposição para tanto ensaio? Onde ele arranja repertório? Meu palpite é
que 80% das obras que executa nos grupos é a mesma. Não digo isto
para condenar o companheiro, mas porque conheço a dificuldade que é
arrumar música adequada para nossos coros. Repertório existe em
número incalculável por aí, mas demanda tempo e energia para ser
selecionado, testado, averiguado, para finalmente ser eleito para um
grupo. A menos que o regente seja arranjador, que é o meu caso
também. Daí, escolhemos uma música, arranjamos exatamente dentro
dos limites que nosso coro apresenta e ela sai na hora. Mas isto nos
torna legisladores em causa própria, nunca expondo nosso grupo a
linguagens e estilos diferentes do nosso. É um fator facilitador do nosso
trabalho, mas limitador do crescimento musical do grupo. Mea culpa...
Exceto pelos regentes que, uma hora antes do ensaio, pegam
qualquer coisa no famigerado (e cobiçado) “arquivo” ou nas “pastas” e
erram lamentavelmente (coisa que nunca admitiriam na frente dos
coristas), todos os outros dispendem bom tempo escolhendo música. É
sabido que, numa emergência, precisamos escolher rápido e vamos em
busca de algo que já deu certo em outro coro que era semelhante ao de
agora. Isto quer dizer que, dentro da caixa de ferramentas do regente, há
sempre uma gavetinha com essas joias que ele conhece bem, pois já as
executou muito. Mas lá vem o perigo da repetição. Se usado com
parcimônia, este recurso é válido, mas todo cuidado é pouco.
Escolhemos uma música porque gostamos dela, porque os coristas
vão gostar, porque o público vai gostar, porque todos vão aprender algo
novo com ela, porque o texto é excelente, porque a música é bem
escrita. Mas também porque o dono da empresa adora o sertanejão e
disse que é para fazer aquela da dupla tal na próxima apresentação do
coral... Esta relação com os “patrões” que querem se arrojar no posto de
diretor artístico funciona mais ou menos como a relação pais e filhos. Se
os pais cedem demais, os filhos tomam conta; se cedem pouco, eles
ficam irritados e rebeldes. No caso, os regentes são os pais e os filhos,
os patrões, claro. Negociar é preciso, porque patrão rebelde despede o
regente (coisa que muitos filhos gostariam de fazer em relação aos pais)
e coloca outro no lugar, às vezes por metade do preço. Mas educar
patrões, diretores de escolas, gerentes é uma necessidade que nos
assegura longevidade e qualidade no emprego. E autenticidade. A
música coral não comporta arranjos de qualquer natureza. Ou comporta?
Não sei, já vi cada coisa... Se o chefe quer “aquela”, na primeira vez
você já diz “esta não ficaria boa, mas podemos escolher outra. Que tal
uma destas?” Há muito sertanejo que até dá um arranjinho. Agora,
chame a atenção dele para outros detalhes, que a letra é imprópria para
o ambiente de trabalho e de apresentação, para a natureza do evento
etc. Mesmo que achemos que aquela letra seja imprópria até mesmo
para se cantar sozinho, à meia noite, no meio do descampado, não diga
nada num primeiro momento. Claro, não vamos ficar oferecendo música
religiosa como contrapartida, pois cada coisa tem seu lugar. Mas há
muitas alternativas para o gosto absurdo do chefinho. E, no coro, nós
temos que ser os chefinhos...
Há também as ocasiões em que ficamos num voo cego em relação a
este tópico, como ocorre quando vamos reger um grupo pela primeira
vez ou quando nos preparamos para ir para um festival de música
trabalhar com coro ou dar aulas de regência. Um exemplo clássico são
os Painéis FUNARTE de Regência Coral. Estou no time há anos e
confesso que sempre é um desafio escolher repertório para trabalhar em
um lugar em que nunca estive, pelo menos não com esta finalidade, e
produzir o máximo de resultado em benefício de todos os cantores e
regentes, que lá vão depositando sua confiança numa relação que
durará apenas uma semana. O coro que se vai encontrar é sempre um
mistério, por mais que a coordenação local se esforce em nos adiantar
diretrizes.
Em casos como esses, o processo, por incrível que possa parecer,
não muda muito daquele do nosso quotidiano; só se torna
vertiginosamente mais rápido. De início, sempre levamos uma ou duas
peças para a detecção da condição em que se encontra o grupo, de
suas habilidades, de seus pontos fortes e fracos. Os fortes têm que ser
elevados pelo repertório; os fracos, fortalecidos. Não é uma tarefa fácil.
Do primeiro encontro para o segundo, toda uma estratégia precisa ser
concebida com base no que foi visto. E o repertório vai brotando. Se for
muito difícil, não haverá tempo suficiente para preparar tudo em uma
semana e, na apresentação final, canta-se em uma música ou duas tudo
o que se esperava fazer em seis ou oito, mas as escolhas erradas já
previram que isto acontecesse. Sem falar que o tempo gasto nas
músicas erradas, que não foram aproveitadas, poderia ser usado com
vantagem em outra atividade durante o precioso tempo de ensaio. Se for
tudo fácil demais, não há crescimento, nem desafio, nem interesse e,
pelo terceiro dia, metade dos inscritos não volta mais. Então, o jeito é
ajoelhar no milho e trabalhar com a máxima concentração, usando todos
os recursos da maletinha. Um dos fatores que contribui enormemente
para o sucesso dos painéis FUNARTE é o fato de que nunca estamos
sós. São sempre dois regentes para tomar as decisões, e o bom senso
de um sempre entra em cena quando o outro fica megalomaníaco...
Claro, afinal, somos regentes.
Repertório, portanto, é o ponto delicado através do qual vamos ver ou
não nossos objetivos com o grupo levados a efeito. Não tenhamos medo
de arriscar, de ousar, mas dentro de limites razoáveis. Lembremo-nos de
que um bom resultado sempre depende de uma boa proposta. Sem isto,
como vamos enfrentar o ensaio nosso de cada dia? Achando que
estamos enganando nosso corista, nosso aluno? Algum dia, alguém nos
enganou de verdade? E estejamos sempre atentos à verdade: em
matéria de repertório, seja na escolha, na preparação ou no resultado
final, nunca agradaremos igualmente a gregos e a troianos...

Velas ao vento

Hora de partir, de levantar âncoras e velejar pela vida. Se quisermos


conservar alguma coisa deste dedo de prosa, asseguremo-nos do fato
de que todos nós, regentes, temos nas mãos uma responsabilidade com
nós mesmos, com nossos comandados e com nosso público. E este
dever é o de sermos transformadores de vidas. Fazer a diferença na vida
de alguém significa que havia algo dentro de cada um – nós mesmos,
nosso corista, nosso público –, que demandava um conserto imediato. E
pela experiência musical correta, bem feita, instigante, inspiradora,
tocante, este alguém foi capaz de repensar, teve ânimo para, talvez,
aguentar mais um dia de caminhada. Um conserto no concerto! Ninguém
muda ninguém, tenhamos esta certeza. Somente nós conseguimos
mudar nós mesmos, mas as ferramentas e a direção podem vir de
outrem. Nós, regentes, podemos oferecê-las com nosso trabalho e
empenho em realizarmos nossa arte com disciplina, com respeito
humano e cometimento ao estudo.
A arte coral, por sua natureza coletiva, é poderoso instrumento para
atingir o interior das pessoas, tanto de quem a executa (quiçá
principalmente) quanto de quem dela usufrui como ouvinte. Existe algo
de mágico em ouvir duas, três, oito dezenas de pessoas cantando
melodias separadas e que se juntam para produzir um todo em que cada
um desaparece individualmente para dar lugar a um ente coletivo, novo,
chamado coral. E este ser potencializa dezenas de vontades numa só
direção. O impacto é tremendo, quando bem feito.
Cabe a nós, regentes, nos aprimorar sempre, sem permitir que se
esgotem nossas forças, nossas ferramentas. A cabeça do regente
trabalha muito mais que seus braços. Vejo sempre uma preocupação
enorme por parte de certos colegas, em especial os mais jovens, em
esmerilar seu gestual até a perfeição. Isto é realmente importante, pois o
movimento é uma das vias de comunicação que temos à disposição.
Acho mesmo impressionante o balé dos gestos, mas no momento
seguinte percebo que, em muitos deles, não há a menor conexão com a
música. Lembro-me de uma cena de um filme sobre Beethoven, em que
o coro e a orquestra se desencontram e param, e ele continua de olhos
fechados, regendo a música que estava em sua cabeça. O gestual deve
traduzir o que o regente quer dizer, mas só se ele tiver o que dizer... Se
não tiver, o coro canta, apesar dele, ou ele rege sozinho, apesar do coro.
É preciso ouvir o que está em curso e reger a música, não a partitura!
Reger é como tocar um instrumento gigantesco, cujas teclas e cordas
estão espalhadas a nossa frente. O gesto vazio, ou o congestionado
alcançarão o mesmo resultado sonoro: o desequilíbrio
Encerro com um parágrafo do grande pensador Léon Denis (1846-
1927), extraído do capítulo final de seu livro O problema do ser, do
destino e da dor:
O fim mais elevado do universo é a beleza, sob todos os seus
aspectos: material, intelectual, moral. A justiça e o amor são seus meios.
A beleza, em sua essência, é, pois, inseparável do bem e ambas, por
sua estreita união, constituem a verdade absoluta, a inteligência
suprema, a perfeição!
Somos parte de algo maior que nós mesmos, de uma beleza que
transcende, de um bem que ainda excede qualquer compreensão
imediata. É preciso fazermos nossa parte. A música é nosso
instrumento. O outro, nossa meta.
Contextos diversos, cantorias distintas
Eduardo Lakschevitz

Participar do Painel FUNARTE de Regência Coral é sempre uma


experiência marcante. O público, os objetivos e o formato do projeto
exigem do professor um tipo de preparação muito específica, que alia
experiência, organização didática e domínio do conteúdo, associados a
uma dinâmica de trabalho flexível e objetiva. Sua capacidade de
perceber o ambiente e de trabalhar de acordo com o contexto pode fazer
a diferença entre o sucesso e o fracasso de uma empreitada como essa.
A cada edição do Painel, o trabalho dos professores se divide em: (a)
aulas direcionadas a regentes e professores de música, onde são
discutidos aspectos técnicos relativos à área, tais como repertório,
dinâmica de ensaio, gestual etc. e (b) prática coral, onde cantores de
coros locais (com ou sem experiência) se juntam à primeira turma para a
preparação de um repertório, que é apresentado num pequeno concerto
ao final do evento.
Neste texto, somente esta segunda faceta do Painel será abordada,
tratando de aspectos relativos à minha preparação como um dos
regentes do coro do Painel FUNARTE de Regência Coral, que ocorreu
em Maringá, em maio de 2014. Há muitas semelhanças entre o trabalho
do regente num Painel e as atividades da maioria dos regentes hoje em
dia; por isso, optei por escrever informalmente, como se estivesse numa
conversa com meus colegas regentes.
Uma conversa sobre esse assunto deve, então, se iniciar pela busca
de algum entendimento sobre a atividade da regência, que é comumente
descrita como: "o ato de liderar um grupo de pessoas a cantar um
repertório, o que se faz através de determinadas técnicas usadas
durante diversos ensaios de preparação, que culminarão numa
apresentação pública. Esta, então, acontecerá em cima de um palco,
para um público ouvinte, onde o regente atuará principalmente através
dos seus gestos.” O problema é que esta descrição não é universal e
nem tão óbvia assim. Há muitos detalhes que escapam à compreensão
estritamente musical desse trabalho, como também diversos elementos
variáveis entre diferentes tipos de coro. Instabilidade e heterogeneidade,
por exemplo, são características sempre presentes, uma vez que se
trata de uma atividade humana coletiva e contemporânea. Assim, antes
de encarar o desafio de reger um coro, cabe uma análise ampla do
contexto que o envolve, para construir um pensamento que baseie
nossas escolhas sobre as questões propriamente musicais.

Contexto

Ideias como a simulação substituindo a realidade, a estabilidade


flutuante,a incredulidade e o estado de transição aparecem com
frequência no trabalho de autores dedicados à análise das relações
humanas na sociedade contemporânea. Parece que vivemos um
momento histórico cuja maior característica é a mudança contínua, que
está sendo sentida, percebida e comentada diariamente, através dos
mais diversos meios. Sendo o canto coral uma atividade que reúne
pessoas, é natural que o estado constante de transição e instabilidade (a
"estabilidade flutuante", de Meyer 1, por exemplo), faça parte do
cotidiano e das expectativas dos seus participantes. Quando um regente
se coloca à frente de um coro, hoje em dia, lida com um número muito
grande de variáveis, e precisa levá-las em conta ao realizar seu trabalho.
Ao olhar o projeto de prática coral no Painel, algumas questões já
chamam a atenção imediatamente, como o pouco tempo de ensaio (que
é uma reclamação frequente entre todos os regentes de coro), a
participação de cantores voluntários, a composição heterogênea do
grupo (formado por uns cantores experientes e outros iniciantes) e a
responsabilidade de uma apresentação ao final do evento. Como líder
desse grupo, minha primeira tarefa deverá ser identificar os atores desse
processo, inspirando, assim, a criação de uma experiência que seja
significativa para todos e que cumpra as metas propostas.
Objetivamente, as primeiras questões serão: Quem são os cantores?
Qual seu nível técnico (estilo vocal, conhecimento de notação,
experiência musical)? Além dos cantores, quem são as pessoas
envolvidas no processo? Como é a relação entre elas? Quais suas
expectativas com relação ao Projeto? Qual o objetivo do grupo e como
poderemos atingi-los? Como essa experiência pode transformar as
pessoas que dela participam?
Os coristas, o público ouvinte, a FUNARTE, a instituição-parceira e
as instituições onde nossos alunos trabalham têm anseios e objetivos
quando se envolvem num projeto como o Painel, e é minha
responsabilidade, como regente, levar em conta cada um deles. A
experiência, é claro, me ajuda a compreender o funcionamento de
muitos processos num ensaio coral, a trabalhar de forma mais eficaz e
até mesmo a antecipar algumas situações, mas a chave fundamental
para um trabalho bem sucedido é a atenção às particularidades de cada
coro com quem trabalhamos. Neste texto, comento aspectos relativos à
importância do equilíbrio entre essas duas referências, no tocante à
escolha de repertório e à dinâmica de ensaio.

Repertório

Quantos de nós já não ouvimos um cantor reclamar de alguma peça


do repertório, tentar angariar apoio para sua "causa" junto a outros
cantores, ou até mesmo, numa situação mais extrema, deixar de
participar de um coro por falta de afinidade com o repertório escolhido?
Ou, por outro lado, quantas vezes já não percebemos uma melhor
aproximação do coro com a sua comunidade, a chegada de novos
cantores, ou o recebimento de mais convites para apresentações em
função da identificação das pessoas (cantores e público) com o
repertório executado? São situações que nos ensinam o quanto essa
escolha pode influenciar o trabalho de um coro. Não é difícil deduzir que
nós, regentes, dependemos diretamente da participação e do
engajamento dos cantores e, por isso mesmo, deveríamos sempre
selecionar peças que promovam essa atitude. Como na grande maioria
das vezes trabalhamos com cantores voluntários, é nossa
responsabilidade olhar com atenção para os fatores que mais os
motivam 2, dentre os quais está a escolha do repertório cantado que,
mesmo sendo objeto de sugestões vindas das mais diversas pessoas, é
uma prerrogativa do regente. Esse processo é anterior ao funcionamento
dos trabalhos do coro propriamente dito, mas tem influência direta neste.
No caso do Painel FUNARTE, o repertório tem que ser escolhido antes
mesmo de o coro existir.
Normalmente, o regente seleciona peças que, de acordo com certos
critérios,imagina que funcionarão bem. Mas que critérios são esses?
Quem os determina? A enorme variedade de tipos de coros hoje em dia
torna pouco provável que existam parâmetros universais, que funcionem
da mesma forma para todos os coros. Portanto há características
específicas no coro que regerei (formado pelos alunos do Painel) que
devem ser observadas na escolha do repertório.
Ao estabelecer referências para essa escolha, é importante
compreender particularidades do grupo, nos âmbitos musical e
comportamental. Mas que fique bem claro: conhecer e compreender um
grupo para encontrar um repertório apropriado não quer dizer
simplesmente optar por peças banais e nem relaxar a exigência com a
qualidade do que será produzido. Grupos corais são diferentes uns dos
outros, e as peças que cantam devem valorizá-los, provocando nas
pessoas um sentido de realização. Deve trazer-lhes orgulho por um
trabalho bem feito. Por outro lado, deve também instigá-los. Há sempre
alguma construção musical que os cantores ainda não experimentaram,
ou que ainda não conseguiram realizar bem. Quando o regente leva em
conta essas questões e sabe identificar as potencialidades do grupo,
atua de forma a facilitar a expressão máxima de um coro, ao mesmo
tempo em que promove o crescimento dos cantores. Um dileto professor
meu, ao discutir esse assunto, dizia que "só se pode lapidar um
diamante a partir de uma pedra bruta". Em outras palavras, um
repertório deve estar dentro das possibilidades de um coro, para, a partir
daí, desafiá-lo.
O termo customização, comum no meio corporativo, serve bem ao
regente coral, quando da escolha de peças. Repertório customizado é
aquele feito de acordo com o coro, escolhido (ou, melhor ainda, criado)
especialmente para aquele grupo de cantores. Pensando por esse viés,
um repertório deve ser adaptado ao coro (e não o contrário), num
processo cujos fatores que o constroem devem ser pensados
distintamente. Assim, questões importantes a ser analisadas no
repertório coral são a forma (a peça faz sentido?), o tratamento
harmônico (é tonal ? cromático? instável? qual a posição dos acordes?),
a condução de vozes (graus conjuntos, tipos de saltos e contornos,
"cantabilidade") e os aspectos rítmicos (andamento, padrões,
regularidade de pulso, uso de redundância). Algumas dessas questões,
porém, serão mais prementes na análise de repertório para o Coro do
Painel, pelas características anteriormente mencionadas: o texto, a
tessitura e a textura. É certo que a produção do som coral é resultado de
todas essas questões juntas, mas é importante que o regente seja capaz
de analisar esses fatores isoladamente numa peça.

Texto
Um cantor comunica idéias. O simples fato de o significado do texto
"sair da boca do cantor" o torna testemunha do que canta, como se
fosse um avalista das ideias sendo transmitidas. Isto é ainda mais forte
em se tratando de cantores voluntários, cuja participação num coro é
motivada por questões de ordem pessoal. Para estes, é praticamente
impossível separar suas ideias daquilo que seu corpo e sua voz
expressam no coro. Por isso, cantores sempre deixarão bem claro sua
discordância com qualquer conteúdo de um texto que lhes desagrada,
seja ela por razões de faixa etária – “meus alunos acharam esse texto
muito infantil”, comentam frequentemente alguns regentes – , religião,
política ou qualquer outra. Dessa forma, a identificação de um cantor
com a mensagem contida no texto de uma canção deve ser a base da
escolha do repertório. Não se trata de escolher repertório que o corista já
conheça, mas sim de buscar textos que promovam seu crescimento,
seja pela qualidade literária, pelas idéias que contém, ou pelo tratamento
que recebeu do compositor. Samuel Kerr, com quem colaboro nesse
Projeto, diz que um coro deve ser a voz de sua comunidade. Por isso,
conversamos muitas vezes a respeito do Painel em Maringá,
pesquisamos canções que dizem respeito àquela cidade, suas
características marcantes, clima, vegetação, população etc. Antes de
escolher peças, conversamos sobre o que queríamos falar, sobre a
mensagem que gostaríamos de deixar com cantores e ouvintes, e sobre
as relações que gostaríamos de estabelecer entre nossa cantoria e a
comunidade local.
Mas texto não é só conteúdo, significado. Há outros fatores a ser
analisados: Qual a sua qualidade literária? Tem originalidade? Como
está associado às melodias? É cantável? Todas as vozes têm
oportunidade de cantar trechos da letra, ou há alguma voz dedicada
apenas aos fonemas de acompanhamento (“tum, tum, tum” ou “lá, lá, lá”,
por exemplo), hoje tão comuns em arranjos e composições corais?
Todos devem ter a chance de comunicar o texto, a poesia. Às vezes
esse fato passa despercebido porque nós, regentes, tendemos a
analisar somente a visão geral, a sonoridade resultante. Mas todo cantor
gosta de melodia e de letra (alguns, mais inexperientes, até confundem
esses termos), e as peça que escolhemos devem proporcionar esse
equilíbrio.
E como é a prosódia desse texto? Somos capazes de compreendê-
la, bem como o sentido das frases musicais e poéticas? O sentido
musical acompanha o sentido do texto? O texto está adaptado à notação
musical com naturalidade? As acentuações do texto coincidem com as
da música? Há naturalidade na "entrega" de um texto para o ouvinte? A
definição mais precisa que já ouvi sobre a qualidade de um texto, e que
uso até hoje, é a seguinte: “Precisa ter qualidade literária, potencial
educativo (pessoas devem ter oportunidade de aprender com ele), e tem
que “ser bom de dizer”, o que significa ter prosódia equilibrada,
articulação justa e pronúncia fácil.

Tessitura

A voz humana é um instrumento que produz sons dentro de certos


parâmetros. Obviamente, não adianta imaginarmos que sons em
determinadas alturas sejam produzidos por vozes que simplesmente não
têm capacidade de fazê-lo. Isto é claro, e por esta razão os manuais de
instrumentação e de regência coral procuram indicar muito precisamente
em que região cada naipe deve cantar. Mas a maioria dos manuais é
escrita de forma generalizadora; muitos deles, influenciados por ideias
estabelecidas ainda no Séc. XIX, por exemplo, não levam em conta as
variadas referências culturais da produção vocal contemporânea.
De forma geral, hoje em dia pode-se perceber entre cantores de coro
no Brasil uma tendência ao registro médio (os motivos para tanto são
objeto de muitas discussões entre regentes e professores, mas, devido à
natureza da questão, ainda de forma especulativa). Não são tão comuns
as vozes extremas, como baixos graves, ou sopranos agudos. Para o
coro do Painel, o ideal será encontrar peças que se mantenham dentro
desse registro (lá1 ao ré4, podendo ir pouco mais acima
ocasionalmente). Importante também será manter uma postura flexível,
que permita alguns ajustes que venham a ser necessários no decorrer
dos ensaios, como designar determinados trechos a outras vozes ou
naipes. Há fatores que podem influenciar a tessitura das vozes, como
treinamento, idade, experiência, aquecimento etc., mas só
conheceremos as possibilidades reais do coro a partir do primeiro
encontro com o grupo.

Textura

A interação entre as vozes é um dos aspectos mais interessantes da


música coral, e a característica de repertório mais intimamente ligada a
ela é a variação textural. Ao tratar de relações entre as diferentes vozes,
como fios numa peça de tapeçaria, a textura pode determinar o nível de
dificuldade de uma peça, o interesse dos cantores, a inteligibilidade, a
dinâmica etc.
Como as vozes de uma peça se organizam? De forma monofônica
(uníssono), polifônica, homofônica, ou como melodia acompanhada? Há
texturas que se misturam? Há variedade de texturas numa peça? Muitas
vezes nos esquecemos de algo muito simples: cantores gostam de
cantar melodias! (perdoem a insistência). Efeitos vocais, como
mencionei anteriormente, até são interessantes também, mas se usados
como colorido, como acompanhamento. Uma peça cuja textura privilegia
somente uma das vozes com a melodia (frequentemente o soprano),
deixando as outras todas com função de acompanhamento, perde boa
parte do grande potencial expressivo de uma música coral. A textura
deve privilegiar a todos. Bem disse Machado de Assis, ainda no Séc.
XIX, ao se referir à importância da melodia na sensibilidade musical da
população: "o público carioca morre por uma melodia assim como
macaco morre por banana".3
Essa análise é importante, ao mostrar uma direção na escolha do
repertório para um coro. Mas, ainda assim, o prisma de observação
utilizado é o do regente. Uma aproximação com as possíveis sensações
do cantor só vem quando, como parte do nosso estudo, cantamos em
voz alta todas as vozes da peça estudada. A idéia pode soar redundante,
mas envolvimento físico e acústico dos participantes com a música está
na essência da atividade coral. Experimentar as linhas vocais é uma boa
forma de o regente se colocar no lugar de seus coristas, a fim de
entendê-los melhor.

Ensaio

O ensaio de um coro é muitas vezes descrito como um momento de


preparação para uma apresentação. A idéia lembra o ideal da Era
Industrial, que atinge seu ápice no início do Século XX, e que dissocia o
trabalho do prazer. De acordo com esse pensamento, primeiro vem a
obrigação, o esforço (e até mesmo o sacrifício). Depois a diversão, o
prêmio. Mas conceber o ensaio coral unicamente como um momento de
sacrifício necessário para a preparação e montagem de uma
apresentação, onde só então o corista receberá sua "recompensa", em
forma de reconhecimento do público, parece não condizer com o
trabalho realizado num Painel. Não consigo achar que pessoas vêm ao
ensaio para sofrer, mesmo que em nome da arte ou de uma recompensa
que só chegará muito adiante. As pessoas querem ter prazer no
processo de ensaio. Procuram uma atividade que seja de alto nível,
séria, produtiva (por vezes até cansativa), mas, ao mesmo tempo,
prazerosa e confortadora. Além disso, é no ensaio que se dá o maior
tempo de convívio entre os participantes de um coro, o que é mais um
motivo para considerá-lo precioso. Essa é uma questão ainda mais forte
para músicos voluntários, uma vez que estes não têm expectativa
salarial ou qualquer outra diferente da realização musical coletiva.
Por isso, a questão-chave para a preparação do regente de um coro
como o do Painel é sua capacidade de lidar com o tempo. Num mundo
onde as atividades humanas estão cada vez mais automatizadas e onde
há cada vez mais formas de entretenimento disponíveis, o ensaio do
coro é um compromisso individual com a coletividade. Pessoas dedicam
seu tempo para estar juntas, buscando um mesmo objetivo, sob a
liderança do regente. Mesmo assim, a simples presença dos cantores
não é suficiente. Se não estiverem engajados naquela atividade, nada de
interessante acontece. Mas como encontrar esse ponto de equilíbrio? E
o mais difícil: como manter seus coristas não somente motivados, mas
engajados nesse processo? Minha proposta é fazer do ensaio um
ambiente onde duas idéias estejam sempre na cabeça dos participantes:
realização e desafio. Para tanto, alguns detalhes da conduta do regente
podem facilitar muito o desenvolvimento do trabalho e o aproveitamento
do tempo de ensaio.
1) Sensibilização do conjunto: Quem faz música é o cantor, e não o
regente. Nossa função, é claro,é indicar possibilidades, mostrar
caminhos. Mas quem os trilha é o cantor. Num concerto, nós nem
mesmo somos vistos pelo público, porque estamos de costas (e, como
dizem por aí, “solo de regente” não existe). Por isso, promover o sentido
de equipe é uma das tarefas mais importantes para o regente. Isso se
faz, primeiramente, tratando os cantores com educação e gentileza.
Depois, cuidando da forma de comunicação com os cantores. Em nossa
relação com os coristas, os exageros atrapalham; tanto os verbais como
os visuais. Não adianta querer cantar pelo coro, ou dar palestras durante
o ensaio, gritar ou gesticular em demasia para alcançar os resultados
pretendidos. O melhor coro será aquele em que os coristas têm
propriedade sobre o que se canta, onde os coristas estão engajados. E
isso acontece quando o regente delega poder, quando o coro tem
sensibilidade para entender os mecanismos a ele relacionados e para
ouvir o "todo" musical. Há expressões muito comuns nos ensaios de
coro, que vão de encontro a essa sensibilização: "agora eu quero
assim", "cantem pra mim", ou “vocês estão errando”, por exemplo,
inconscientemente falam contra o sentido de grupo que quero cultivar no
ensaio. São dizeres que distanciam os cantores do regente, como se
fossem entidades diferentes. Até mesmo o uso da primeira pessoa do
singular nos ensaios prejudica essa sensibilização; afinal, se
entendemos que os coristas são aqueles que realmente se conectam
com o público e queremos sensibilizá-los para que assumam essa
responsabilidade, é bom que também os façamos perceber que regente
e cantores são partes de uma só organização. Constituem um só grupo
que se propõe a passar uma mensagem ao público, e não duas
unidades diferentes, ou seja, um regente e um coro. Um grupo que
compreende conceitos e os põe em prática, sem precisar de constantes
instruções do regente, chega bem perto de estabelecer uma relação
mais próxima com os ouvintes, e de emocioná-los.
2) Liderança necessária: A atividade de liderança só é eficiente se
for necessária, e um regente deve saber identificar esses momentos.
Qualquer atitude sua, seja gestual ou verbal, só se justifica se fizer
diferença, se tiver efeito perceptível. Um olhar histórico sobre nossa
atividade mostra que a presença do regente à frente de um grupo
sempre foi fruto de uma necessidade prática de execução musical. Só a
partir do Século XIX a figura do maestro, por uma série de razões extra-
musicais, começou a se transformar em algo que muitos consideram até
mais importante que o próprio conjunto. Mas isto está errado, e é fácil
notar tal inversão de papéis num coro como esse para o qual estou me
preparando. Minha atitude, como regente, será sempre a de atuar
quando for necessário. Um gesto, aliás, tem maior significado quando
destacado, e não quando repetido em sequência, sem algum motivo
aparente. Um professor com quem trabalhei insistia em dizer que
"regente neutro" não existe. Ou ele promove a produção de boa música
ou a atrapalha, não havendo meio termo entre essas situações. Quanto
mais passa o tempo e mais ganho experiência, mais eu concordo com
ele. Autoridade não significa autoritarismo. Para o bom líder, a exposição
pessoal não deve ser prioridade, mas sim o resultado obtido pelo grupo,
que passa pelo desenvolvimento do corista.
3) Atitude positiva: O momento do ensaio constitui-se na maior
parte do tempo que passamos juntos com o coro, onde são construídas,
tanto coletiva como individualmente, a maioria das lembranças que
conservamos. Seu bom andamento e sua fluência se darão, então,
através de experiências positivas e agradáveis, e não pelo medo de
errar. Os processos de ensaio parecem mais rápidos e mais fáceis
quando o regente impõe suas idéias e simplesmente exige que sejam
cumpridas pelo coro. Entretanto, esse é um comportamento que cria
muito mais problemas que soluções no trabalho coral. Mesmo que as
determinações de um regente possam até ser cumpridas pelos cantores,
há um limite para a excelência dessa realização musical, determinado
pelo engajamento dos participantes. Por vezes, uma forma hierarquizada
e vertical de lidar com os cantores deixa-se transparecer através de
pequenas atitudes do regente durante um ensaio e podem,
inadvertidamente, inibir esse engajamento dos participantes. Expressões
como "não", "negativo" e "está errado", por exemplo, têm o poder de
interromper uma linha de ação para iniciar outra. Mesmo funcionando
bem para esse propósito, seu uso exagerado acaba por gerar um padrão
de interrupção na cabeça dos cantores, acostumando-os com a idéia de
um ensaio como lugar de punição, de pouca fluidez, que é
diametralmente oposto à idéia da produção musical prazerosa.
Sensação semelhante tem o cantor ao participar de um ensaio
conduzido por uma abordagem de conserto, ou seja, onde o regente se
baseia no erro dos cantores e dedica a maior parte do seu tempo a
consertá-los. Uma atividade em grupo, em que se pressupõe que o
participante está sempre errado, nunca combinará com idéias como
engajamento, motivação e liberdade. Lembro-me muito claramente de
minhas aulas de clarinete com o José Botelho que, às vezes, mesmo
quando eu estava tocando as notas certas, dizia: " – Edu, parece que
você está tocando com o freio de mão puxado". O sentido de fluidez é
essencial no fazer musical, não importa o nível técnico ou o nível de
experiência dos cantores, e o regente deve sempre ter consciência disto.
É algo que só pode ser atingido num ensaio coral através de uma atitude
positiva.
4) Comunicação clara: A regência é uma arte de característica não-
verbal e requer modos não-verbais de comunicação. Daí se pode inferir
o quanto é importante a precisão das informações que passamos ao
coro. As expressões faciais, o equilíbrio do corpo, as relações entre o
movimento e a ausência do movimento, enfim, quaisquer outros tipos de
gestos, atitudes e jeitos do regente têm efeito sobre o som do grupo. Por
isso, todo o trabalho do regente deve fazer referência precisa ao produto
sonoro almejado. Padrões de regência são uma ótima ferramenta para
apurar as informações gestuais, mas devem ser utilizados criticamente,
pois não são o único tipo de código gestual capaz de transmitir
informações entre pessoas. São convenções, o que significa que, para
funcionarem de forma eficaz, é necessário que regentes e coristas
entendam exatamente o conteúdo dessas informações. Do contrário,
não se estabelece uma comunicação limpa. Mas além desses padrões,
pessoas entendem diversos outros tipos de informação 4 e, num coro
onde o tempo de preparação é curto, quanto mais extenso é o
vocabulário gestual do regente (e quanto mais confortável esse regente
está com seus gestos), melhor. Gestual bonito nunca deve ser o objetivo
do regente, mas sim aquele que demonstra clareza.
5) Uso do tempo: Muitas vezes ouvi meu avô e minha mãe, ambos
regentes corais, dizerem que "coro é uma atividade de longo prazo".
Pela análise feita neste texto, porém, tal conceito parece não mais se
encaixar na atividade coral contemporânea. Ao menos no caso do coro
do Painel, tema deste estudo, o pouco tempo de trabalho é uma de suas
principais características. Preciso cuidar desse tempo com esmero. Há
uma apresentação a ser feita, mas há poucos e curtos ensaios. Mais
ainda, esse é um coro de voluntários, ou seja, um grupo de pessoas que
dedica parte de seu tempo (precioso) para realizar um trabalho em
conjunto sob minha liderança, fato que aumenta minha responsabilidade
sobre o uso do tempo. E esse trabalho é cantar. Por isso, minha meta
nos ensaios desse grupo é fazer com que o maior número de pessoas
consiga cantar o maior tempo possível nos ensaios, dosando, também,
sua velocidade (ninguém consegue atuar com 100% de sua energia o
tempo todo). Dessa forma, sua capacidade de concentração estará
sempre mais aguçada e, consequentemente, também seu engajamento
no fazer musical. Até mesmo a ordem da distribuição das atividades no
ensaio me ajuda a torná-lo mais produtivo. Geralmente, os cantores
chegam pouco concentrados, cada um de um canto diferente. Depois,
têm seu ponto de maior foco e concentração na primeira parte do ensaio,
antes de começarem a se cansar (física e mentalmente). A observação
desses detalhes de comportamento é de grande ajuda na montagem de
um ensaio que aproveite ao máximo o tempo do corista.

Organização
Todas essas são competências não-musicais fundamentais para o
desenvolvimento do meu trabalho como regente coral que, observado
com distanciamento crítico, consiste simplesmente em liderar um grupo
de pessoas a atingir um objetivo comum. Mas a compreensão clara
dessas questões tem sido uma dificuldade dos regentes corais hoje em
dia. Muitas vezes, a preocupação com questões técnico-musicais do seu
trabalho é tão dominante que este parece ser o único aspecto levado em
consideração quando, na verdade, essas deveriam ser apenas as suas
preocupações iniciais, pois constituem a base para o desenvolvimento
de um trabalho coral. A construção de uma sólida e ampla base musical,
nas áreas de análise, harmonia, contraponto, estilo, regência e
instrumento é de inquestionável importância, e deve ser desenvolvida
continuamente. São as ferramentas do dia a dia do regente,
fundamentais para a fluência de seu trabalho; fazem parte de sua
formação. Mas são meio, técnica, e não seu objetivo final. É inspirador
ouvir o Samuel Kerr dizer que "padrão com T de técnica vira patrão, e
convenção, também com T de técnica, vira contenção".
O regente é o líder de um grupo de pessoas e, por isso, as questões
relativas a esses processos coletivos de criação artística são as que
primeiro me vêm à mente. Assim, somente após analisar o coro com
quem trabalharei (as pessoas!), escolher o repertório e imaginar
potencialidades e dificuldades do trabalho eu posso começar a pensar
na parte musical, nos melhores processos e nas questões mais
importantes a serem abordadas nos ensaios. Esse trabalho musical
precisa ser organizado, coerente. Um dos aspectos mais difíceis para o
regente é levar o cantor a construir seu som de forma artística; esse
objetivo só poderá ser alcançado quando diferentes áreas do trabalho
coral forem tratadas isoladamente. Vou explicar.
Todo regente tem um som ideal em mente. Tenho a sorte de já ter
ouvido concertos de coros maravilhosos, de estilos e procedências as
mais variadas, de ter conversado com muitos regentes e professores e
de ter regido muitos coros diferentes (em situações as mais diversas, em
locais muito distintos). Tudo isso me ajuda a imaginar o som que
considero ideal. O gosto de um regente e seus ideais sonoros se
constróem a partir das referências adquiridas e das comparações
estabelecidas ao longo da vida.
Sempre que me coloco à frente de um grupo coral, tenho esse som
ideal em mente, como um objetivo, uma referência. Mas regência é uma
atividade intensamente dependente de outras pessoas e de múltiplos
fatores que, muitas vezes, propõem caminhos e sonoridades
alternativas. Assim, a mágica maior do trabalho coral é o caminho da
busca pelo som ideal, que é forjado no equilíbrio entre as referências do
regente e as situações que se lhe vão colocando. E a função mais
importante do regente é guiar os cantores a experimentar esse caminho,
sem cair na tentação de tentar trilhá-lo por eles.

Prioridades

Gosto musical e ideais estéticos são valiosos para o trabalho do


regente, pois o balizam e lhe servem como referência. Mas sua atividade
consiste em organizar a própria construção do som coral, e por isso lhe é
necessário aprofundar seu conhecimento sobre os elementos que o
constituem; precisa compreendê-los separadamente. A identificação e o
domínio dos processos formadores do som coral são ferramentas
fundamentais no desenvolvimento do grupo. Por isso, é preciso
organizar as prioridades de um ensaio (ou de um grupo num certo
momento do trabalho), quando se busca chegar ao melhor resultado
possível, em condições específicas e com número grande de variáveis à
mão. Aliás, quanto mais imprevisível for a situação encontrada pelo
regente, mais bem planejada deve ser sua atuação; afinal, é sua
responsabilidade apresentar os resultados daquele trabalho, dentro de
um prazo determinado (que quase sempre é mais curto do que gostaria).
Não é fácil descrever o som coral. Alguns autores até tentam fazê-lo,
mas acabam esbarrando em questões de gosto, de ponto de vista
cultural, e mesmo do caráter subjetivo do som, que é difícil de ser
expresso por palavras. Para mim, o som coral ideal, de que falei acima,
é natural. Gosto de produção vocal vibrante, livre, cheia de energia, com
boa projeção. Acho que o texto que cantamos é tão importante que o
público deve compreendê-lo com clareza (e em muitas situações a
projeção sonora e a clareza de pronúncia não se combinam). Os naipes
devem estar bem equilibrados internamente (colorido timbrístico) e
também equilibrados entre si (dinâmica). O ritmo deve ser preciso e os
cantores devem ter controle respiratório saudável, para dar suporte a
tudo isso. Particularmente, gosto de um som resultante de uma extensão
ampla, com boa ressonância tanto em graves quanto em agudos,
proporcionando ao ouvinte uma sonoridade com ampla gama de
frequências.
Mas apesar de todos esses fatores serem interdependentes, não se
pode abordá-los de uma só vez, o que acabaria criando confusão na
comunicação com os cantores e consequente desperdício do nosso
precioso tempo juntos. É impossível levar todos a pensar em diversos
assuntos ao mesmo tempo. O som coral ideal deve ser construído aos
poucos, num processo organizado. É claro que as circunstâncias irão
interferir (e, muitas vezes, mudar um planejamento de ensaio), mas esta
é uma razão para o regente estar ainda mais atento aos elementos que
formam o som do coro, para poder trabalhá-los da forma mais efetiva
possível.
No coro do Painel, pelas características que analisei, darei
preferência à dicção, entre os diversos elementos que compõem o som
coral (qualidade vocal, afinação, ritmo, equilíbrio, dicção, respiração,
dinâmica etc.). Primeiro, porque a competência mais importante do
artista no fazer da música vocal é ser compreendido pelos ouvintes.
Segundo, porque dicção é o que está mais próximo da realidade
cotidiana das pessoas, especialmente daquelas que não têm experiência
musical anterior. Todo cantor sabe falar, conhece dicção, mesmo que
nunca tenha pensado nela de forma organizada. Por isso, poderei falar
com todos juntos (cantores experientes ou iniciantes são capazes de
compreender este assunto), de forma a obter resultados e otimizar nosso
tempo de ensaio. Finalmente, o controle consciente das questões
relativas à dicção tem forte efeito em outros aspectos, que podem ser
aprimorados sem que sejam tratados especificamente (afinação,
equilíbrio e ritmo, por exemplo).
Dicção para instrumentistas é o título de um dos capítulos de Casals
e a arte da interpretação, livro que retrata ideias deste grande artista
sobre o tema. SSegundo ele, "o diminuendo é o que dá vida à música,
pois notas se destacam no discurso musical não por sua especial
intensidade, mas, principalmente, pela sombra que as precede" 5. O
respeito de Casals à clareza do discurso musical é inspirador e deve ser
lido com atenção pelo regente, pois trata-se de um tema central na
música coral, onde a comunicação do texto é material fundamental de
trabalho. A importância que confere ao discurso musical é confirmada,
ainda, por outra idéia sua: "nunca encoste o arco na corda com
indiferença". Em outras palavras, o compromisso do músico com seu
ouvinte deve ser completo, inteiro. No caso da música vocal, esse
compromisso exige a comunicação do texto cantado.
Ao conversar sobre a música coral com pessoas que não são
familiarizadas com esse universo, percebo o quanto nossa arte é
percebida como anacrônica e dissociada dos costumes da vida
contemporânea. Dentre os motivos que justificam tal afirmação, o mais
frequente é a pouca inteligibilidade do que se canta, que se relaciona,
também, com aspectos da dicção do texto: " – Não consigo entender a
letra", dizem. A comunicação clara e intensa entre coro e platéia é parte
importante dessa produção musical. Por isso, a análise de somente um
desses lados levará a diagnósticos incompletos de nossa atividade. O
regente deve estar atento a esse fato e considerar a percepção (auditiva
e social) dos ouvintes com o mesmo peso que dá à técnica vocal e aos
processos musicais. 6
Mas não adianta somente construir minha própria filosofia a respeito
da importância da dicção num coro. Precisarei, também, de uma
estratégia para passá-la ao grupo e de exercícios para fazer o corista
sentir, experimentar fisicamente os conceitos compartilhados,
conectando mente e corpo. Farei isso através das duas unidades
básicas de formação de qualquer discurso: vogais e consoantes. O
ensaio será mais fácil e fluente se os cantores compreenderem
separadamente a produção de cada uma delas. Mais ainda, a
naturalidade desse discurso musical (fundamental na relação do coro
com seus ouvintes) vem da percepção da direção das frases e da
prosódia, que são questões intimamente ligadas à dicção.
Algumas características das VOGAIS:
a) Funcionam através da vibração das pregas vocais. Relacionam-se
com a duração do som, por isso afetam diretamente, a “cor" do som do
coro, a dinâmica, a afinação, o equilíbrio e a projeção sonora;
b) Podem ser misturadas e até substituídas, sem prejuízo da
inteligibilidade do discurso;
c) Podem ser abertas, fechadas, orais, nasais, puras, em ditongos e
tritongos. Se ouvirmos atentamente, muitas vezes perceberemos
misturas de vogais produzidas de acordo com diferentes sotaques;
d) Permitem a diferenciação entre voz de cabeça e de peito.
Questões de tessitura também têm relação com a produção de vogais;
e) Podem alterar a afinação de um coro sem que esse assunto seja
sequer abordado diretamente; dependem da consciência dos cantores
quanto à sua produção.
Algumas características das CONSOANTES:
a) Duram muito menos tempo que as vogais e geralmente recebem
menos atenção do que deveriam receber durante o trabalho. São
responsáveis pela articulação da mensagem e pela consequente
inteligibilidade do discurso;
b) Há diversos tipos: de altura determinada, puras, sibilantes e
aspiradas. Algumas, mesmo que de tipos diferentes, têm formação
semelhante (p e b, por exemplo). A atenção a esse detalhe promove a
coesão sonora do grupo, afetando até mesmo a dinâmica e o equilíbrio
entre naipes;
c) Relacionam-se diretamente com a dinâmica (através da precisão
articulatória), com o ritmo, com o controle respiratório e,
consequentemente, com a afinação;
d) Têm capacidade de tornar um discurso claro e inteligível. A carga
dramática do texto está contida nas consoantes. Podemos regular sua
intensidade, modificá-las e até mesmo substituí-las.
Há que se pensar, também, no equilíbrio das duas, vogais e
consoantes, mantendo-se em mente uma questão acústica: conforme
aumenta o número de cantores num grupo, também aumenta o peso das
vogais no som resultante e as consoantes tendem a ficar perdidas, até
mesmo apagadas. Como resultado, o texto (e sua mensagem) ficará
menos claro. Por isso, num coro grande, o cuidado com a emissão clara
das consoantes é fundamental para a compreensão do texto cantado.
Para os coristas, esse conceito poderá gerar até certa estranheza,
especialmente se comparado à emissão da voz solo ou da voz falada.
Mas, uma vez compreendendo os benefícios do resultado sonoro final, a
ideia é sempre bem assimilada, especialmente quando os coristas se
percebem parte de um grupo cuja prioridade são os processos e o
resultado coletivo.

Conclusão

A formação musical de um regente é fundamental e constitui a base


de todo o seu trabalho. Para conseguir lidar com um coro formado num
Painel, a competência técnica do regente é ainda mais importante,
juntamente com sua concepção de som coral e sua metodologia de
trabalho. Neste texto, entretanto, foram abordadas questões mais
relacionadas ao fazer musical coletivo e à contextualização do trabalho
coral no mundo contemporâneo. Este, por estar em constante estado de
mudança, exige do regente uma postura crítica, mesmo em relação a
princípios já arraigados na formação e na práxis da música coral. O
regente coral no século XXI precisa questionar todos os aspectos dessa
arte, mesmo os mais básicos, como por exemplo a obrigação de o
corista olhar sempre para o regente; a dependência da notação musical;
a busca pelo “cantar certo”; a supremacia do texto musical sobre o texto
literário; a “subserviência” de todos para com o compositor e o regente; a
compreensão da atividade musical como a supremacia da “obra”, e não
da atividade. Para além de sua preparação técnico-musical, o regente
precisa olhar para a atividade coral e entender o que é meio (ferramenta)
e o que é fim (objetivo). A capacidade de contextualização de um
regente é, muitas vezes, limitada por valores estéticos que foram fixados
em outro tempo, e que não se sustentariam bem na produção coral
contemporânea, pois não levam aos objetivos pretendidos.
Neste texto procurei descrever a preparação de um regente para um
trabalho coral de contornos bem definidos, e sua necessidade de
entender essa música a partir de um prisma mais amplo e
contextualizado com a vida contemporânea. Mas coros são formados por
pessoas e, por mais que o regente esteja preparado, sempre haverá a
surpresa, o inesperado. E por isso que nosso trabalho fascina: é, ao
mesmo tempo, milenar e absolutamente novo. Que bom!
MEYER, Leonard B. History, stasis and change. In: ______. Music:
the arts and ideas. Chicago: University of Chicago Press, 1967.
Idéias sobre motivação intrínseca e extrínseca são comentadas por
Daniel Pink em Drive (New York: Riverhead Books, 2009.)
Em crônica publicada na Revista Ilustração Brasileira, em
15/07/1877.
O trabalho de Paul Ekman é uma das referências mais importantes
na área da comunicação gestual. As idéias de Rudolph Laban também
são largamente utilizadas por regentes corais interessados em
compreender melhor e expandir seu vocabulário gestual.
BLUM, David. Casals and the art of interpretation. Los Angeles:
University of Califórnia Press,1977.
O modelo de análise tripartite é um exemplo de análise musical mais
compreensiva, que pode servir como uma referência para essa idéia. Ver
NATTIEZ, Jean-Jaques. Music and discourse: toward a semiology of
music. Princeton: Princeton University Press,1990.
Um pouco de tudo
Gisele Cruz

Quando eu era criança, existiam poucas possibilidades de


entretenimento.
Além das brincadeiras de rua, das bonecas, restava assistir aos
escassos programas infantis que exibiam desenhos... em branco e preto!
Por muitos anos eu os imaginei coloridos e só muito tempo depois é
que pude ver os episódios de Tom e Jerry, Pica Pau e Pernalonga em
cores. Nunca mais me esqueci desse fascínio e até hoje adoro
desenhos. Eles fazem parte do meu imaginário e ficaram como registro
de humor e perspicácia.
Ao iniciar este texto sobre o Painel Funarte de Regência Coral,
lembrei-me de um desenho intitulado “Maestro Pernalonga”, mais
especificamente de uma parte em que o coelho se faz passar pelo
famoso Maestro Stokowski e faz todos os abusos de performance com
um cantor lírico, evidentemente, recorrendo a requintes de crueldade; ao
final, é simplesmente ovacionado pela plateia!
Vale dizer que os músicos o reverenciam e não percebem que se
trata de um impostor porque identificam nele os estereótipos de um
regente de sucesso: altivez, rigor, severidade e acenos caricatos e
descomedidos, com uma grande dose de autoritarismo e de vaidade.
Além das boas risadas que, sadicamente, essa cena proporciona,
acho impossível resistir à provocação de refletir sobre essa atividade
privilegiada de reunir pessoas e fazer música.
Penso que não é só o roteirista da animação que distingue o regente
com as características do desenho. Na realidade, acho que a maioria
das pessoas considera que para estar à frente de um coral, de uma
banda ou de uma orquestra, o fundamental é um gestual de efeito, de
preferência associado a acordes retumbantes e agudos estridentes.
Mas, então, que é necessário para ser um bom regente?
Treino? Talento? Aptidão? Conhecimento?
Esta é a pergunta que grande parte dos alunos que se inscrevem
para um Painel Funarte de Regência Coral fazem e que nós professores
daríamos tudo para ter uma resposta pronta e certeira.
Mais uma vez, encarando a dura constatação de que não é possível
formar um regente nos seis dias de duração de um Painel, a escassez
do tempo suscita outras questões que se colocam como norteadoras
nesse momento da preparação. Que cantar? Sobre o que falar? Que
abordar primeiro? Quais serão as necessidades dos alunos? Que
preparar para essa semana de imersão no canto coral? Quem serão os
participantes?
No canto coral, pessoas são imprescindíveis. Sem elas não há voz,
não há som, não há possibilidade de fazer música. O coral é o
instrumento através do qual o regente pode se expressar musicalmente.
Não fosse a generosidade das pessoas que colocam sua voz a nossa
disposição, poderíamos abanar as mãos o quanto quiséssemos que não
resultaria nenhum som, nenhuma música.
É uma parceria entre a dependência e a confiança de um grupo na
condução, nas escolhas e na orientação musical de um líder que, por
sua vez, precisa desse grupo para a realização de sua idéia musical.
Sendo assim, uma questão norteadora de qualquer atividade coral é
saber quem são as pessoas com quem se irá trabalhar, pois são elas
que definem quanto tempo de ensaio, qual repertório, sua dificuldade, a
dinâmica do ensaio, a orientação vocal, e até as possibilidades de
apresentação. Um coral de terceira idade, por exemplo, terá mais
dificuldades de se apresentar em uma cidade mais distante daquela em
que reside, do que um grupo constituído por jovens ou por adultos.
No que diz respeito ao ensaio, a atenção da criança e seu tempo de
aprendizado variam conforme a faixa etária. Geralmente, entre os sete e
os dez anos, absorvem bem ensaios com duração de uma hora a uma
hora e quinze minutos. Já acima dessa faixa etária é possível realizar
ensaios com uma hora e meia, como se dá com adolescentes e adultos
em geral. Por falar em adolescentes, se eles estiverem presentes no
grupo de cantores, principalmente os rapazes, é preciso estar atento à
mudança da voz e à extensão que conseguem cantar o que, sem dúvida,
irá interferir na escolha do repertório.
Também é muito importante considerar o espaço do ensaio. Sendo
de preferência claro, bem ventilado, protegido de ruídos externos, que
favoreça a emissão vocal sem abafar ou reverberar demasiadamente os
sons, é ele que definirá a quantidade de pessoas, se será possível
realizar dinâmicas que envolvam movimento corporal ou, ainda, em qual
formação serão dispostos os assentos, círculo ou semicírculo, formato
auditório ou outro formato. Em minha opinião, a melhor opção é aquela
que propicia ao regente ouvir todos os naipes de forma equilibrada, o
contato visual com o pianista correpetidor e com todos os cantores.
Ao atender a um convite para atuar como professora em um Painel
Funarte de Regência Coral, como a uma proposta no mercado de
trabalho, dificilmente saberemos ao certo quem iremos encontrar.
Podemos tentar traçar um perfil perguntando sobre a faixa etária, sobre
a quantidade de vozes masculinas e femininas que estão inscritas, se
possuem alguma experiência musical anterior, mas essas informações
muitas vezes não são precisas e na maioria dos casos a realidade acaba
sendo muito diferente do previsto.
Na atuação rotineira, o regente conhece seu coral e distingue suas
necessidades em cada etapa do seu desenvolvimento. Mas,quando não
há informações suficientes sobre o grupo, a escolha acontece embasada
pela experiência de situações similares e pelos poucos dados obtidos,
deixando uma folga considerável para mudanças de plano e para
substituíções.
O leque de escolhas é imenso uma vez que, a princípio, é possível
cantar tudo. Porém, penso que a atividade coral, mais especificamente a
que é oferecida em um Painel, deve proporcionar aquilo que dificilmente
será vivenciado pelos participantes em outra situação e, ao fazer
opções, considero a comunidade local. Creio ser importante pesquisar
uma canção ou um compositor de relevância regional; tento encontrar
músicas cujos textos falem do universo cultural da região, alinhando
essas possibilidades à faixa etária do grupo inscrito: adulto misto,
majoritariamente feminino ou masculino, infantil ou infanto- juvenil.
A formação musical e a experiência vocal do grupo também define se
o repertório será realizado em uníssono, a duas, três ou quatro vozes e
qual a tessitura utilizada. Um bom uníssono é, por vezes, mais difícil de
ser executado que uma música a mais de uma voz, e é uma excelente
ferramenta para o trabalho de técnica vocal, principalmente se o grupo
não teve uma atividade vocal anterior. E ainda, se utilizado com
criatividade, pode-se transformar em uma peça de efeito dentro do
repertório. Portanto, não creio que se deva ter ansiedade em iniciar o
canto a várias vozes e, tampouco, preconceito em relação a um trabalho
em uníssono. É preciso, isto sim , muito cuidado a fim de se evitar um
trabalho mal realizado.
No momento em que estou escolhendo um repertório observo,
também, que cada peça trabalhe um ou mais aspectos da técnica vocal
e da linguagem musical, de maneira que formem um conjunto onde
sejam encontrados os elementos para um desenvolvimento musical
global. Tento contemplar estilos e gêneros variados, diferentes graus de
dificuldade, músicas atraentes que despertem o interesse pela atividade,
que estejam dentro do registro médio da tessitura vocal, textos com bom
conteúdo e apropriados à faixa etária do grupo, e peças tecnicamente
acessíveis, mas que proponham desafios.
Aliás, este é um importante aspecto a ser considerado: o de não
perder de vista os limites entre a acomodação, o desafio técnico e a
frustração dos cantores, principalmente ao se tratar de uma atividade de
curta duração como acontece no Painel Funarte.
O repertório pode ser uma ferramenta muito eficiente para trabalhar
vários aspectos da técnica vocal, assunto que também suscita muito
interesse por parte dos alunos, como articulação, timbre, sonoridade,
extensão vocal; também pode proporcionar o desenvolvimento do ouvido
harmônico, da afinação, e do senso rítmico.
É também através da escolha de um repertório diferenciado e
diversificado que uma comunidade pode redescobrir e aprender a
valorizar sua própria riqueza cultural e musical e, simultaneamente,
ampliar seu universo de conhecimento cantando músicas de outros
países, peças originais compostas para coral, músicas em tonalidades
maiores, menores ou modais, atonais ou sem altura definida, e ainda
peças com e sem acompanhamento instrumental.
Apesar de a responsabilidade de escolha do repertório ser do
regente, os cantores podem e devem ser estimulados a contribuir com
sugestões que, se pertinentes, podem ser incorporadas. Por vezes
subestimamos gratuitamente a capacidade de um grupo.
A participação no coletivo enraíza o sentimento de pertencimento à
atividade despertando o senso estético e crítico, que é também função
da atividade artística.
Nos Painéis da Funarte, a equipe é constituída por dois regentes e
um pianista correpetidor de muita experiência. Ao pensar e selecionar o
repertório, lembro-me de que terei esses dois “luxos” que não estão
presentes no meu dia a dia: a possibilidade de dividir o trabalho com um
colega experiente e de ter o apoio melódico, harmônico e estilístico de
um (ou uma) pianista competente. Sendo assim, a listagem de
possibilidades ganha ainda mais opções: posso escolher músicas
originalmente compostas para piano e coro; posso ousar um pouco mais
no repertório porque há um instrumento para dar suporte, e posso
aumentar a dinâmica de leitura das peças e consequentemente sua
quantidade.
Apesar de todo esse conforto, quero fazer um parêntese de que não
há instrumento mais adequado para acompanhar uma voz do que outra
voz. E ainda bem, porque pianistas como esses dessa equipe são bem
difíceis de se encontrar.
Imagino que a maioria dos regentes tem como ideal que seu grupo
possa cantar a cappella. O canto a cappella possibilita que seja ouvida
toda a riqueza timbrística da voz humana, além de aguçar a percepção
auditiva de quem canta e de quem ouve.
Mas, é preciso considerar que vivemos em um contexto sonoro bem
diferente e, se os cantores nunca tiveram contato com a atividade vocal,
é mais difícil dominar essa prática rapidamente. Quanto tempo demora
para isso acontecer depende de cada grupo e de cada contexto. Cantar
a cappella tem como premissas uma atuação vocal rigorosamente
afinada, uma prática na execução de músicas a várias vozes, um
equilíbrio sonoro entre os naipes, um repertório adequado e uma
acústica favorável - reverberação bem dosada e ambiente não muito
amplo.
Assim, se o coro for inexperiente, um trabalho que precisa ser
desenvolvido em um curto espaço de tempo – como, por exemplo, o dos
Painéis - pode ficar inconcluso, ou um grupo que é iniciante pode perder
sua motivação e não sobreviver ao longo prazo necessário para a
consolidação dessa sonoridade.
Considerando tudo isso, a utilização de um ou mais instrumentos
acompanhantes na atividade pode ser entendida como uma ferramenta a
mais para o trabalho. O equilíbrio na sua utilização é fundamental para
que esse recurso não se transforme apenas em uma escora, e subtraia
do grupo a possibilidade de atuar de forma autônoma.
Deve-se tirar proveito das possibilidades harmônicas e timbrísticas
do, ou dos instrumentos, preferindo o acompanhamento com acordes,
evitando dobrar a linha melódica e prestando também muita atenção ao
volume, para que não se sobreponha ao das vozes. Muitas vezes, a
execução de um determinado trecho melódico pode ser facilitado por um
acompanhamento harmônico bem conduzido.
As habilidades de um profissional correpetidor incluem boa leitura à
primeiravista, domínio na execução do seu instrumento, facilidade em
fazer harmonizações e transposições, e bom senso na escolha da
“levada”. É necessário ter prática em ouvir simultaneamente os vários
naipes do coro e a si mesmo. Somente assim fará parte do conjunto,
apoiando o regente e o grupo no aprendizado, além de valorizar a
música com equilíbrio entre voz e instrumento.
O pianista precisa estar informado sobre o projeto musical do regente
e das suas pretensões de resultado com o coro, da mesma forma que o
regente deve conhecer bem a parte do piano ou ter uma concepção para
ela, a fim de explorar melhor suas potencialidades.
É importante pontuar que o piano ou o teclado não são os únicos
instrumentos indicados para o acompanhamento vocal. Na lista de
opções encontram-se o violão, o acordeão, a percussão, o órgão, o
quarteto de cordas e os instrumentos melódicos como flauta, clarinete ou
sax, que podem ajudar a compor um arranjo.
Sempre que possível, procuro envolver outros instrumentistas da
cidade onde está sendo realizado o Painel, pois, além de enriquecer os
arranjos é uma oportunidade para revelar, para comunidade local,
talentos desconhecidos ou ainda valorizar aqueles já existentes.
Qualquer que seja a escolha, é importante estar atento às
observações acima, bem como à competência dos instrumentistas.
São tantas as ponderações e os desdobramentos técnicos, que
poderíamos pensar que escolher um repertório adequado seja noventa
por cento da capacitação de um regente ou, neste caso, do trabalho
preparatório para um Painel.
Escolhido o repertório, deverá haver um planejamento para sua
realização; a concretização dessa etapa é outro momento igualmente
importante.
O Painel Funarte de Regência Coral não é só uma oportunidade para
uma atividade vocal prazerosa; é também um período para reciclagem
de informações sobre regência coral, para que alguns revejam essa
prática e outros se iniciem nela.
Sendo assim, um outro viés que será observado também nesse
momento de preparo é que o material escolhido deve contemplar uma
outra área de preparação do regente: a do conhecimento do gestual e do
domínio da sua prática.
Novos desafios se apresentam a mim pois, à semelhança dos
cantores, também desconheço quem serão os alunos-regentes, e não
posso perder de vista a curta duração do Painel.
Particularmente, observo se o material apresenta fórmulas de
compasso variadas, entradas e cortes em tempos diferentes,
andamentos distintos, polirritmias e outros importantes aspectos da
regência que poderão ser abordados de forma prática à frente do grupo
no momento da execução do repertório. Preparo, também, exercícios
para desenvolvimento da coordenação motora, consciência corporal,
independência de mãos e domínio do gestual.
Porém todo esse arsenal de procedimentos pode resultar em uma
mera coreografia, mecânica e sem significado se não ficar claro que
antes de qualquer gesto existe a música. É só a partir da identificação
dessa música que surge o gesto. E apesar de considerar importante que
o regente conheça os padrões tradicionais da regência, não acredito que
isso seja suficiente.
O gesto deve trazer à tona a escuta interior que antecedeu o ensaio
daquela música, as escolhas de fraseado, o andamento, a intensidade e
o timbre a serem trabalhados. Esse gesto pode ser comum, porém
eficiente e carregado de significado, obtendo para cada estilo de
movimento resultantes sonoras diferentes.
O gestual do regente não se restringe a um simples sincronizar de
movimentos com tempos de compassos "mas também em conjugar e
projetar, por assim dizer, tudo o que se discutiu e combinou durante os
ensaios, lembrando o coro no momento preciso através dos gestos aos
quais os cantores se acostumaram” (Oscar Zander).
É, antes de tudo, um exercício de liderança de quem arquiteta sons e
organiza as disponibilidades para construir um resultado sonoro.
Paradoxalmente e, ao longo do tempo, descobrimos que sua
necessidade pode ser bem menor do que se imagina.
Preciso terminar este texto na próxima página e, como também
acontece nos Painéis de Regência Coral da Funarte, não consegui
colocar tudo o que desejava.
Bem disse um amigo meu que dez laudas não seriam suficientes nem
para o começo daquilo que desejamos compartilhar sobre nosso preparo
para essa atividade.
Sei que esbocei apenas parcialmente algumas respostas à questão
inicial como formar um regente?
Porém, durante o processo de elaboração deste texto lembrei-me de
que há alguns anos, antes de me tornar participante da equipe de
professores do Projeto Coral da Funarte, fui aluna desse Projeto e
sempre voltei dos Painéis com muito material, com novidades técnicas,
com dicas para ensaios e com histórias incríveis. Mas trazia também na
bagagem muitas interrogações e reticências. Nem todas as minhas
incertezas eram resolvidas, nem todas as perguntas tinham apenas uma
resposta.
Considerei, então, o quanto isso foi significativo para mim e constato
que melhor do que a certeza é o leque de possibilidades que a dúvida
proporciona. Ou seja, não ter uma única resposta significa poder
experimentar várias opções, algo muito mais rico, mais interessante,
muito mais criativo.
O fato é que são as perguntas, mais do que as certezas, que
apontam o caminho para a descoberta, para o crescimento e
proporcionam um espaço onde é possível compartilhar o conhecimento e
a experiência profissional acumulada ao longo dos anos.
O escritor italiano Giani Rodari no prefácio do seu livro “Gramática da
Fantasia” diz “todos os usos da palavra para todos” parece um bom lema
sonoramente democrático. Não exatamente porque todos sejam artistas
mas porque ninguém é escravo.”
No último Painel em que atuei, no mês de maio de 2014, ao
perguntar aos participantes quais expectativas os motivavam e que
razões tinham para estar ali, obtive a seguinte resposta de um dos
alunos mais novos: “porque quero fazer diferença!”
Resposta certa!
Para finalizar, eu recomendo que você digite no Youtube _ Maestro
Pernalonga _ e gaste aproximadamente três minutos assitindo a essa
provocação.
Dê muita risada, reflita e procure suas respostas!
Um gesto, múltiplos cantos
Lucy Maurício Schimiti

Chegar a uma nova cidade, com expectativas diversas por parte dos
participantes, com inscritos vindos de contextos completamente
diferentes e possuindo diferentes formações acadêmicas é sempre um
enorme desafio. Cada Painel é muito diferente do outro. Se, por parte da
coordenação pedagógico-estrutural, na FUNARTE, sua gestação
acontece com meses de antecedência (nove?), para nós, professores, é
momento de também iniciarmos um processo de elaboração mental;
através dele, tentamos traçar metas cujas bases possam alcançar o
maior número de regentes-professores no desenvolver de seu trabalho
musical direcionado ao canto coletivo.
Hoje, somamos experiências advindas de grandes encontros dessa
natureza, pois atuamos como um dos professores convidados em Belém
(PA), São Luiz (MA), Palmas (TO), Crato (CE), Quixadá (CE), Mogi das
Cruzes (SP) e Maceió (AL). Estas cidades foram palco das mais
diferentes e intensas sensações, com momentos de congraçamento e de
trabalho árduo, locais onde desfrutamos do convívio com pessoas
ímpares: ora integrantes da banda local, ora alunos de Licenciaturas, ora
cantores de coros e seus familiares, ora integrantes de grupos vocais,
ora professores das redes estaduais e municipais ou mesmo
particulares, ora regentes de coros religiosos, ora curiosos tentando
assimilar as metodologias e as atividades para implementá-las em sua
prática pedagógica. Com tanta diversidade de interesses, com níveis
diversos de compreensão dos fenômenos musicais, inseridos em
comunidades com experiências tão díspares, que fazer em uma semana
de vivências? Estabelece-se uma questão fundamental: como alcançar o
regente, ou o professor que atua em escolas, ou o cantor interessado em
aprimorar seus conhecimentos na área coral, ou o estudante das
diferentes Licenciaturas, ávido por novas metodologias, por novas
dinâmicas, oferecendo-lhes alternativas para refletir sobre técnicas e
procedimentos que poderão redirecionar suas ações? Se por vezes não
redirecionam, esses procedimentos apresentados nos Painéis servirão
ao menos para ratificar atitudes saudáveis, justificadas por uma
bibliografia consistente sobre as abordagens ali feitas?
Com estas preocupações, iniciamos nosso planejamento para os
desafios de cada Painel. E cada um dos quais já fizemos parte
contribuíram para um crescimento ímpar: tanto para os alunos
participantes, por suas avaliações e seus retornos verbais expressos,
como também para nós, professores!
É sempre uma grande tarefa escolher o repertório a ser apresentado
como modelo de possibilidades de execução, selecionar atividades,
reunir bibliografia, separar textos, delimitar tópicos para discussão, e
ainda estruturar um repertório de canções a ser ensaiado como
culminância do processo que acontecerá durante a semana. Isto tudo
com variáveis que dependerão do perfil dos participantes, das
possibilidades espaciais do local de realização, da disponibilidade de
material xerográfico por parte da coordenação local do evento, do
horário a serem desenvolvidas as atividades.
Existe, como já afirmamos, um período necessário para a gestação
de um Painel; após a definição do trio responsável por sua
concretização_ dois professores e um pianista_ , o local de sua
realização(a) , o contato com a organização local (b)e a definição do
público alvo(c) passam a nortear muitas das decisões .
Com esses dados, ainda que com muitas alterações no decorrer do
processo, sua preparação, pelos professores, mescla fases de euforia,
de preocupação, de dúvida, de satisfação, de receio.
Em contextos em que o Painel FUNARTE pode apresentar-se como
uma das únicas oportunidades de aprimoramento de conhecimentos na
área coral, pela ausência de cursos específicos e sistemáticos em
diferentes regiões do país, a decisão por repertório adequado, a escolha
da metodologia, a definição de tópicos para reflexões conjuntas e a
elaboração de atividades práticas ganham outra dimensão. Serão estes
os momentos mais preciosos de experimentação, de vivência concreta,
de reflexão sobre os rumos de uma prática que já se consolidou como
uma grande oportunidade de convívio social, de canalização da emoção,
de prazer estético que outras atividades que não a coral são incapazes
de provocar.1
Mas quais as competências necessárias ao professor para o sucesso
dessa iniciativa? Trocando em miúdos, que investimentos são
necessários para o sucesso de cada Painel por parte de nós, seus
professores?
Não bastaria chegar ao local de sua realização e fazer ensaios das
peças sem planejamento, sem método, sem refletir sobre cada escolha
realizada. Esta já pode ser a rotina de ensaios de muitos grupos corais
em locais que ainda não subsidiaram um Painel FUNARTE. O Painel
tem de vir para provocar, para instigar, para propor outras alternativas,
para mostrar possibilidades de otimização de tempo de ensaio, para
sugerir métodos viáveis que possam ser aplicados pelos participantes
para enriquecer suas propostas cotidianas de ensaio coral. Sem esses
propósitos, seria improdutiva a realização de eventos dessa dimensão.
Em Belém (PA), o primeiro Painel desde que foi retomado o Projeto
pela FUNARTE, houve muita troca. Havia expectativas dos envolvidos
em relação a um projeto com crianças, pois montavam algumas peças
para serem executadas com uma orquestra jovem; um compositor local
ainda acabava de escrever as peças que seriam cantadas! Os
participantes eram bastante atentos, um grupo constituído por crianças
acompanhadas de alguns pais, além de professores e estudantes de
música que regiam grupos diversos. Houve necessidade de algumas
adaptações para a realização das peças anteriormente previstas por
nós, professores.
São Luiz (MA) foi surpreendente pelos interessados que se fizeram
alunos do Painel. Um grupo de integrantes da Banda local assiduamente
estava a postos, nos horários programados, para receber as orientações
e questionar essencialmente aspectos de técnicas de regência; estavam
ávidos por resolver problemas de regência buscando soluções para
aspectos específicos da condução, por exemplo, do Hino Nacional
Brasileiro. Mas muitos aspectos de dinâmica de ensaio e de
metodologias para ensino de canções foram bastante explorados ali.
Além desses alunos, a sala programada para acontecer o Painel estava
sempre lotada de interessados, que vibravam com cada proposta
lançada.
Em Palmas (TO), muitos integrantes de grupos vocais, além de
regentes de coros principalmente religiosos e vários professores
compunham o quadro de participantes do Painel. Foi desenvolvido um
repertório variado de canções, direcionado a grupos diversos, tanto
infantis como adultos e discutida muita metodologia de ensaio. As
atividades do Painel tentaram deixar uma amostragem de procedimentos
que tinham por escopo otimizar os ensaios vocais, propondo ações para
que fossem analisados aspectos dos ensaios que facilitassem a
aprendizagem do repertório pelos cantores.
Crato (CE) teve características distintas em termos de participantes:
vários alunos do curso de Licenciatura em Música, envolvidos em
atividades corais, mesclavam-se com professores de música e outros
interessados, ansiosos por bibliografia específica para pesquisa nas
áreas de canto coral e de regência. Foram realizadas atividades
bastante lúdicas e um repertório que atendia às expectativas do grupo,
pelo que pudemos verificar.
Quixadá (CE) também reuniu um bom número de interessados pelo
Painel. Professores de música, regentes de grupos vocais e
instrumentais tanto da cidade como de cidades próximas, professores de
escolas públicas, músicos que atendiam a Projetos com crianças e
adolescentes, estudantes, enfim, pessoas ávidas por conhecer
metodologias para trabalho com crianças , jovens e adultos e vivenciar
processos de educação musical através do canto coletivo.
Mogi das Cruzes (SP) mostrou-se ímpar em termos de organização e
motivação para o Painel. Seus participantes vibravam com todas as
atividades propostas! Questionavam, queriam experimentar a regência
das peças, buscavam bibliografia relativa ao canto coral, à regência, às
dinâmicas de ensaio, às metodologias desenvolvidas através das
práticas realizadas. Havia também integrantes de Bandas locais que se
faziam presentes diariamente para conhecer e refletir sobre
metodologias de ensaio desenvolvidas na semana de realização do
Painel.
Nossa experiência mais recente foi em Maceió (AL), onde um grupo
de aproximadamente 180 inscritos aguardava ansiosamente as
propostas do Painel, deixando evidente um interesse grande por
aspectos gestuais, por dinâmicas de ensaio, por indicações bibliográficas
na área vocal, por exercícios vocais que pudessem ser aplicados em
grupos iniciantes de diferentes faixas etárias, por repertório específico
para crianças. Muita disposição, muita vontade de experimentar novos
repertórios, muita dedicação principalmente de pessoas da comunidade
que demonstraram garra na realização de tudo o que foi proposto. Para
nós, professores, foram momentos desafiadores, compensados pela
alegria daqueles participantes que tentaram conduzir as tarefas até o
final do Painel, acreditando no que chegamos a pensar ser impossível de
realizar sob aquelas circunstâncias.
Praticamente em todas as cidades mencionadas, houve a
oportunidade de troca de experiências, de reflexão sobre procedimentos,
de indicação de bibliografia específica para consulta posterior pelos
alunos, de experimentação de um repertório variado de canções, de
apresentação de pedagogias que fossem adequadas a diferentes
momentos do ensaio. Desta forma, o Painel constituía-se como
oportunidade de reciclagem pessoal, de experimentação prática, de
abertura para novas possibilidades metodológicas de ensaio, fazendo
com que seus participantes ampliassem sua visão de como desenvolver
um ensaio vocal coletivo. Carlos Alberto Figueiredo, professor e regente
carioca, no capítulo em que inicia o livro “Ensaios: olhares sobre a
música coral brasileira”( 2006, p.18) sugere que o regente sempre volte
sua atenção ao ensaio coral, estando atento às possibilidades de
exploração musical que o próprio repertório propõe, ao afirmar:
Ensaiar é uma oportunidade para um processo permanente de musicalização. O
regente não pode desprezar qualquer oportunidade de transformar algum aspecto da
obra que está preparando num exercício para desenvolvimento da musicalidade de seu
cantor, seja no aspecto rítmico ou das alturas, melódica ou harmonicamente. (...)
(FIGUEIREDO et al., 2006, p. 18).
Concordamos com essa argumentação, tendo a absoluta certeza de
que podemos realizar uma verdadeira educação musical através do
trabalho de canto em grupo. Com esse objetivo em mente, temos de
voltar nossa atenção a todos os aspectos que possam advir das peças
que elegemos e que constituem nosso repertório para, daí, propiciarmos
momentos de exploração de parâmetros musicais, de criação, de
execução, de apreciação musical.
Assim que chegamos ao local de realização do Painel, esta nova e
desafiadora jornada se inicia! E nossas preocupações nos agitam:
conseguiremos realizar nosso intento? Quem serão os nossos alunos?
Que atividades atenderão melhor às ansiedades deles?Teremos de
readaptar nossos conteúdos de forma que todos possam acompanhar as
reflexões? Que peças trazidas realmente faremos?
São frequentes as questões levantadas pelos participantes em
relação a assuntos de ordens muito diversas. Que fazer com pessoas
que não afinam?Como resolver questões de disciplina?Como classificar
vozes de diferentes faixas etárias?Onde achar repertório fácil, e que
funcione bem com grupos iniciantes? Como desenvolver a habilidade de
cantar a vozes?Com que tipo de peças começar os ensaios se diante de
pessoas sem experiência vocal coletiva? Devemos cantar apenas em
uníssono no início do trabalho coral? Devemos realizar repertório
escolhido pelos cantores, ou peças que ouvem diariamente nas rádios?
(...) São tantas as questões levantadas! Tantas dúvidas!
Em nossa opinião, muitas dessas questões são de fundamental
importância para serem abordadas durante o Painel. Por elas,
poderemos traçar ações na busca de uma alteração do perfil dos
participantes, fazendo com que esses dados venham à tona durante as
aulas e tenhamos a oportunidade de refletir sobre cada tópico levantado.
É bastante comum a ausência de cursos básicos de regência no
contexto geral de nosso país, com pouca exceção além dos oferecidos
dentro dos cursos de Licenciatura; desta forma, em algum momento do
Painel faz-se necessária a abordagem de aspectos fundamentais de
condução gestual. Nesses momentos, nosso papel tem sido o de trazê-
los à reflexão sobre a funcionalidade dos movimentos, sobre sua
eficiência na obtenção de determinado resultado sonoro. Os movimentos
corporais sempre trazem uma mensagem que deverá ser compreendida
pelos cantores; os intérpretes, então, são a prova mais concreta de sua
eficiência. Sob este olhar, todo gesto deve ser pensado para não ser
excessivo em termos de informação, não gastar energia demasiada, não
sugerir articulação diferente daquela solicitada pela obra em estudo, não
executar apenas o diagrama indicado para determinado padrão sem que
haja emoção e “verdade” em sua realização, não confundir os
executantes. O gesto tem a função de encaminhar o intérprete para o
som imaginado pelo regente e dar vida musical à peça.
Sobre a questão dos exercícios vocais realizados por grande número
de regentes no início de seus ensaios (em geral), bem como aqueles
que antecedem as performances, vale observar que na maioria das
vezes mostram-se ineficientes e sem propósito. Grande parte dos
regentes não tem convicção sobre as diferentes funções das consoantes
e das vogais, não reconhecendo suas propriedades articulatórias ou sua
função no processo de emissão sonora. Algumas consoantes, por
exemplo, constituem-se valiosos elementos para desenvolver aspectos
respiratórios ou musculares, ou para explorar ressonância. Outras
podem ajudar a projeção do som, ou colaborar para que se evitem
golpes de glote. São as consoantes que dão forma ao texto, organizando
as significações! Por outro lado, são as vogais que conduzem a
sonoridade. Assim sendo, como utilizar as diferentes vogais, sem
observar também sua forma de articulação, ou seu papel na condução
das linhas melódicas? Se toda sonoridade é construída pela alternância
das vogais presentes nos textos, como realizar um som homogêneo sem
despertar o grupo para uma realização similar, sem procurar uma
mesma forma de produção? Em relação a esse tópico, tem sido muito
oportuno o Painel, oferecendo a oportunidade de levantamento de
questões a esse respeito e trazendo os regentes à reflexão sobre sua
responsabilidade na liderança dos grupos corais.
Escolha de repertório também tem sido tema recorrente nas reflexões
que acontecem nos Painéis; observemos, porém, que cada grupo tem
características peculiares que lhe dão personalidade própria. Desta
forma, o que pode funcionar muito bem para um grupo pode ser
catastrófico para outro, gerando frustração tanto para os cantores como
para o regente. Que tipo de repertório fazer com o grupo que temos
agora nas mãos? Como saber se o grupo vai conseguir realizar uma
obra que já elegemos como nossa preferida dentre as demais que nos
propusemos realizar, e que acabamos de trazer do curso mais recente
de que participamos?
Bem, caminhemos de pé no chão e por etapas. Reflitamos juntos
sobre estas questões. Quais são as características do coro que temos
nas mãos? Que funções ele vai desempenhar dentro da instituição da
qual faz parte?Quais são as expectativas dos seus integrantes, ou de
seus idealizadores? Quais são nossas expectativas em relação ao
grupo? Que tipo de repertório conseguimos realizar bem, hoje, e que
poderá trazer contribuições de diferentes ordens aos cantores? Seremos
capazes de adequar a escolha do repertório à capacidade atual dos
cantores?Ou seremos capazes de criar ou arranjar peças que sejam
adequadas ao nível de interesse e de realização do grupo, e que
possam contribuir para compor sua história dentro do contexto em que
ele se insere? Perguntas como estas sempre darão um suporte para que
possamos iniciar nossa busca por material vocal a ser explorado em
nossos ensaios.
Cabe ainda, porém, uma observação a respeito da interdependência
dos fatores relacionados a essa escolha: independentemente do nível de
dificuldade do repertório escolhido, será sempre a forma de sua
realização que poderá fazer toda a diferença no momento do ensaio.
Uma peça difícil pode-se tornar fácil nas mãos de um regente habilidoso.
Afinal, os cantores não sabem, muitas vezes, das dificuldades que terão
de enfrentar. É o líder que está à frente do trabalho que terá a missão de
transformá-la em algo fácil e prazeroso. As diferentes pedagogias nos
despertam para possibilidades infinitas de realizações metodológicas
para serem aplicadas nos ensaios, para que estes se transformem em
momentos mágicos. Basta que debrucemos sobre elas e busquemos
estudar as peças musicais, descobrindo os caminhos que elas mesmas
propõem para sua exploração. Ora o encaminhamento rítmico, ora o
melódico, ora o harmônico, ora o texto; todos estes elementos sugerem,
na maioria dos casos, formas de abordagem que facilitarão sua
execução até mesmo por pessoas completamente leigas em música.
Eric Ericson, regente sueco e um dos expoentes da música coral
mundial, já afirmara em seu artigo sobre método de ensaio que em
muitos casos o regente, por não sabe realizar determinadas peças, tenta
transferir essa incapacidade aos cantores. São palavras do maestro:
The statement `My choir will never be able to sing that piece, though commonly said,
only reflects on the conductor himself.` (p. 103).(ERICSON, Eric. Rehearsing Methods. In:
ERICSON, Eric; OHLIN,Gösta; Lennart SPÄNGBERG. Choral Conducting. Fort
Lauderdale,USA: Walton Music Corporation, [19-- ] , p. 99-103 ) 2
Vale registrar que enfatizamos também, nos Painéis, como a
utilização de recursos áudio-visuais, eurrítmicos e cinestésicos podem
alterar significativamente o resultado do trabalho coral, especialmente
com crianças e jovens. Esses recursos, quando utilizados nos ensaios,
dão concretude`a imaginação, deixam as referências mais claras,
possibilitam a compreensão dos parâmetros musicais através das
sensações oriundas dos movimentos corporais, além de darem mais
dinamicidade ao ensaio.
A utilização de recursos que os aproxima de um universo conhecido,
a saber, pião, bola, ioiô, bexiga, tubo de PVC, elástico, corda, mola
colorida, fantoche(e muitas outras coisas) permite um envolvimento dos
participantes em um nível mais lúdico e fascinante, trazendo mais
motivação ao momento do ensaio , simultaneamente ao fato de que esse
arsenal facilita a compreensão de muitas referências que, na ausência
dele , implicaria a necessidade de um tempo maior para sua assimilação.
Uma vez que no encerramento do Painel está prevista uma
apresentação final, como culminância do processo desenvolvido durante
a semana de atividades, vale a pena ressaltar a importância da
metodologia para a realização do repertório programado. Há uma real
necessidade de um planejamento cuidadoso em termos de otimização
do tempo para que esse repertório amplo de canções a 1, 2, 3 ou 4
vozes possa ser feito, paralelamente aos momentos de discussão sobre
condução gestual, sobre as etapas do trabalho vocal a serem feitas no
aquecimento, sobre preparação do ensaio, sobre a metodologia do
ensino de canções, sobre cuidados na escolha do repertório.
Como realizar rapidamente a leitura de peças vocais, envolvendo ora
dificuldades rítmicas, ora melódicas, ora harmônicas, ora timbrísticas,
ora de difícil articulação textual, num tempo exíguo, sem cansar os
cantores, sem deixar que o ensaio seja enfadonho, sem que os cantores
percebam o excesso de solicitações de repetição do mesmo trecho pelo
regente, ou sem deixá-los por muito tempo sem cantar? Sem um
planejamento cuidadoso do ensaio o regente nunca conseguiria seu
intento. É em situações como estas que percebemos a diferença de
estratégias metodológicas entre um regente e outro.
As atividades do Painel têm demonstrado a necessidade de estarmos
atentos a todos esses fatores. Uma semana intensa de atividades que se
alternam sob a orientação de dois professores/regentes e um (a)
pianista. Estes estão nas cidades hospedeiras se empenhando para
acolher os participantes com idéias, exemplos de ações, sugestões de
encaminhamento metodológico, materiais didáticos, dinâmicas
instigantes que os façam refletir sobre suas práticas e construir formas
de encaminhamento dos trabalhos corais de forma mais consistente,
com embasamento teórico que lhes dê amparo para sempre aprimorar
seus procedimentos.
Lembremos que as atividades desenvolvidas em todo ensaio coral
têm de servir para possibilitar aos cantores a construção de um
conhecimento musical através do canto em grupo. Nós,
regentes/professores, somos responsáveis pela exploração de todos os
dados musicais que afloram do repertório que elegemos, de forma que a
experiência coral que propiciamos aos nossos cantores seja rica em
conteúdos, dê-lhes a sensação de completude, por favorecer a aquisição
de conhecimentos sólidos em música, e lhes permita realizar
performances com habilidade e compreensão, conforme afirmou Doreen
Rao, regente americana, em seu livro “The art in choral music”
(RAO,Doreen, 1990, volume III, p. 4) ao comentar sobre a necessidade
de desenvolver “artistry” dentro da atividade coral. Tenhamos sempre em
mente o fato de que a performance de nossos grupos irá apresentar a
medida de nosso conhecimento na área. Assim sendo, pensemos na
amplitude de nossas responsabilidades e façamos de nossos ensaios
momentos que conduzam a uma verdadeira experiência estética; que
haja um deslumbramento em sua realização, permitindo um crescimento
pessoal artístico-cultural-musical que estimule o cantor nos primeiros
passos de uma caminhada musical de qualidade.
Estas são apenas algumas das reflexões levantadas pelos Painéis
FUNARTE de Regência Coral, quando de nossas “andanças” pelas
diferentes regiões do país. Que todos os regentes que deles já
participaram (ou que ainda irão participar) sintam-se tão provocados
quanto nós ao enfrentarmos o desafio de reger grupos corais, para que a
experiência do canto coletivo possa ser multiplicadora, satisfaça
condições psicológicas e sociais nos cantores e seja profunda em sua
tarefa de introduzir pessoas no universo da música.
Sugerimos a leitura do artigo “Que es lo que hace com que las
personas canten juntas? Perspectivas sócio-psicológicas y
transculturales sobre el fenômeno coral, escrito por Collin Durrant e
Evangelos Himonides, publicado no International Choral Bulletin,
abril,1999.
A afirmação “Meu coro nunca será capaz de cantar aquela peça”,
embora dita frequentemente, somente espelha o regente em si mesmo(
sua capacidade)”. (Tradução nossa).
Muitas perguntas, muitos caminhos, muitas
canções
Samuel Kerr

Mais um Painel Funarte de Regência Coral. Privilégio. Escolhida a


cidade, começo a pesquisar a respeito do local, das suas tradições, da
sua história, do seu cancioneiro. O nome da cidade, qual o som desse
nome, qual a sua origem. Quais as igrejas e seus sinos, seus hinos.
Nomes ilustres? Um rio corta a cidade? Ah! É o mar que a emoldura?
Muitas perguntas, muitos caminhos, muitas canções... E um roteiro
musical se esboça. Canto coral: em quais momentos o povo da cidade
canta em conjunto? Existe uma história coral naquela região? Que
música corre pelas ruas, pelas janelas, pelas praças? Onde os corais
cantam? Que cantam?
Seria possível gravar os sinos das igrejas? Não há mais sinos?
Alguém ainda se lembra deles? E na praça, muitos pássaros? Ah! Muitas
buzinas...
A cidade tem um hino? Alguém poderia enviar-me a partitura ou uma
gravação? O compositor ainda é vivo? Ele tem outras músicas
compostas? Por favor, pergunte a ele, quem sabe ele tem músicas para
coral.
E os grupos folclóricos? Por favor, mande-me uma relação das
festas. Qual a festa mais importante e qual a música mais conhecida?
O professor de música do Colégio Estadual, sim, alguém poderia
ceder-me seu telefone ou e-mail? Ah, sim, já se aposentou... Não há
mais coral nas escolas, sim compreendo... E no coral da igreja matriz,
quem é o regente? Há o moço que toca violão... E em relação às igrejas
protestantes, haveria algum contato? Um rapaz toca bateria... Hum...
Posso estar sonhando, ou desmerecendo a cidade ou me
esquecendo de que a cidade é tão grande que os corais submergiram no
mar de sons de carros, motos, alto-falantes potentíssimos e foram
engolidos pela televisão ligada em todas as casas. As distâncias
desencorajaram os cantores em reunir-se para cantar juntos.
As fantasias poderiam continuar e imaginaríamos situações sem fim...
Mas se a Zezé Queiroz e o Eduardo Lakschevitz escolheram essas
regiões do Brasil para receber o Painel Funarte de Regência Coral é
porque lá existe um foco que pode ser estimulado.
Vamos lá.
Neste ano de 2014, fui indicado para a cidade de Maringá. Logo me
veio a lembrança da canção de Joubert de Carvalho e comecei a
imaginar um arranjo para levar. Entretanto, fui antes me informar se
“Maringá” estaria proibida de ser cantada, pela exaustão e obviedade da
lembrança. Pode fazer o arranjo, sim! Os jovens não a conhecem e os
mais velhos vão gostar de lembrar.
Boa! Já tenho, então, um ponto de partida! A sequência ficou por
conta da grande colônia japonesa na cidade e escolhi uma canção
japonesa atual, composta para inspirar o renascimento das comunidades
destruídas pelo recente terremoto no Japão: “Hanawa saku”.
Estou indo bem, pensei. O nome da cidade vai soar a quatro vozes e
uma faixa da população vai ser representada por uma música, desde
que eu consiga verter para coral as duas canções. Dois arranjos
inéditos, pois não? Eu ainda não sabia que haveria também uma
composição inédita! A cidade tem, nos quadros da Universidade
Estadual de Maringá, um compositor que fora meu aluno no Instituto de
Artes da Unesp, em São Paulo: o Prof. Rael Gimenes Toffolo. Entrei em
contato com ele, que se prontificou a compor uma música especialmente
para o Grande Coro do Painel. E já vai para a pasta dos cantores “O
Rio”, com o subtítulo “da lagoa da Estaca a Apolinário”, composição
baseada no poema de João Cabral de Melo Neto intitulado “O rio ou a
viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife”.
Eu não irei sozinho a Maringá. Eduardo Lakschevitz irá junto comigo
e também o pianista e arranjador Mario Cesar; eles também vão
colaborar com o repertório e terão oportunidade de justificar suas
escolhas.
Estou feliz por planejar fazer soar o nome da cidade, por levar dois
arranjos novos e ter provocado o surgimento de uma música nova! Por
isto já valeria o Painel, mas sei que outros assuntos do canto coral vão
pedir presença tendo em vista tantos regentes e cantores reunidos. Essa
reunião é um dos objetivos da Funarte, para fortalecer a atividade coral
na região onde se realiza o Painel.
As questões levantadas pelos regentes e cantores, em geral, são
relativas à regência, à técnica vocal, à montagem de programa, às
práticas de ensaio, à classificação vocal e muito mais. Desta vez,
Eduardo, Mário e eu, por sugestão da equipe de produção local do
Painel, levantaremos três assuntos com destaque especial: o coro de
empresa, o arranjo coral e a função do pianista no coral. Isto não quer
dizer que outros temas não possam ser abordados. A prática coral
durante a semana vai resolvendo cada dúvida, cada indagação,
enquanto as músicas são preparadas.
O item “coro de empresa” terá como interlocutor o Eduardo com a
sua larga experiência em corais corporativos e sua tese instigante sobre
o assunto. “O pianista e sua função no coral” será assunto desenvolvido
pelo Mário Cesar e a questão “arranjo coral” será abordada de maneira
prática pelo Eduardo, pelo Mário e por mim.
Maringá é uma cidade nova, uma cidade grande e vale perguntar, na
oportunidade desse Painel, como soa o canto coral na sua geografia
urbana. As respostas vão nos ajudar a traçar novos caminhos para a
atividade coral brasileira e a repensar a função do regente, a música que
se canta, os momentos de foco _ recitais? festas? canto comunitário?
encontros corais? _ e a função educativa e terapêutica do canto em
conjunto.
Muita coisa aflora nessa programação da Funarte, que tem o nome
de Painel pela extensão que a pintura das imagens corais alcança.
Muitas linhas, muitas cores, muitos estilos, muitas vozes, muita música,
muitos ecos, muitas histórias, muitas surpresas e muitas descobertas...
um grande painel coral... e também uma teimosa propaganda pela
retomada de uma prática coral renovada.
Escrevi “teimosa propaganda” porque não nos deveríamos conformar
com o esquecimento da prática do canto em conjunto diante do
crescimento dos recursos eletrônicos e da computação; recursos
fantásticos, mas que não deveriam emudecer a voz humana. É preciso
declarar, a todo momento, que cantar sempre será fundamental,
necessário e manifestação artística para o ser humano. Cantar é bom.
Um antigo ditado diz que “quem canta seus males espanta”.
Há que considerar que outros fatores, além dos tecnológicos,
abafaram o canto coral, tais como o crescimento das cidades, a poluição
sonora, a pressa em resolver tudo, a velocidade e a violência... Como
encontrar tempo pra se reunir pra cantar?... Como vencer as distâncias e
o cansaço?... Como não assistir ao novo capítulo da novela?... Como
fazer acreditar que cantar em conjunto é mais fascinante que o fascínio
da televisão?
Daí segue a frase “pela retomada de uma prática coral renovada”.
É interessante observarmos o que aconteceu com os corais de igreja,
tanto católicas como, e especialmente, protestantes: os corais, tão
importantes nas práticas litúrgicas, desapareceram. Nas igrejas
católicas, por interpretações apressadas das instruções do Concilio
Vaticano II e, nas igrejas protestantes, por terem sido substituídos por
uma atividade que passou a ser denominada “Louvor”, com guitarras e
baterias acompanhando solos com um repertório que dispensa o canto a
4 vozes, tradicional desde a Reforma do século XVI. Os corais
desapareceram das igrejas, assim como desapareceram das escolas e _
atenção! _ migraram para as empresas! Os corais corporativos herdaram
a prática, descobriram seus benefícios e criaram um novo repertório e
uma nova disposição (mas quem vai discorrer a esse respeito é o
Eduardo Lakschevitz).
Um novo repertório para o canto coral já vinha sendo estudado e
praticado desde a década de 1930 com Villa-Lobos e Mário de Andrade,
valorizando o canto em português (em brasileiro, como dizia Mário de
Andrade) e a temática vinda do folclore. Na década de 1960, um novo
sopro renovador faz uma ventania nas partituras de música coral:
Damiano Cozzella faz soar em coro a Música Popular Brasileira, a MPB.
A voz solo com violão e suas harmonias emprestam suas canções para
o canto coral.
Duas dinâmicas. Enquanto as práticas corais vão envelhecendo e os
cantores mudam para casas novas, largando no esquecimento o
repertório religioso, o repertório renascentista e até as esparsas
composições brasileiras de autores chamados eruditos, a força
subterrânea do canto coral vai aflorando por entre canções da bossa
nova, das marchinhas de carnaval e dos antigos sucessos populares da
primeira metade do século XX.
E mais: os corais em novos espaços (além das empresas, em clubes
e em hospitais), com novas canções, se despedem dos seculares
modelos europeus e tentam escapar das fórmulas norte-americanas, de
reconhecida eficiência, porém distantes da nossa realidade.
Toda essa mudança de paisagem não acontece sem dificuldades:
faltam lideranças, falta formação musical para os cantores e regentes,
faltam partituras editadas ou que sejam disponibilizadas pela internet e,
principalmente, falta apoio das entidades governamentais e mesmo
particulares para entusiasmar a formação de grupos, cuidar da
manutenção dos já existentes, que sofrem toda sorte de obstáculos para
resistir ao cotidiano dos ensaios e receber o reconhecimento do público.
Faltam espaços, falta verba para a sobrevivência dos grupos e dos
regentes; fugiram das igrejas e das escolas, ainda estão se adaptando
aos novos lugares...
E viva o Painel Funarte de Regência Coral! Atento às
movimentações, às reivindicações, oferecendo reciclagens aos regentes,
disponibilizando partituras. E reunindo as pessoas, criando pontes
através de várias regiões do país, fazendo todo mundo cantar.
Fazendo todo mundo cantar. Sim! Convidando a todos para um
convívio musical coletivo. Nada mais adequado para isso que o canto
coral. E um regente atento.
Durante o Painel, além dos três destaques propostos para Maringá
(coro de empresa; arranjos; o pianista), o atendimento aos regentes é
contínuo, pois percorre todos os momentos do evento de forma prática,
sempre cantando. O regente deve ser um cantor melhor que seus
cantores, vivenciando, dentro do coral, todas as etapas de um ensaio. A
partir dessa vivência, suas perguntas e suas dúvidas serão respondidas
no decorrer do preparo das partituras, tanto no horário dos regentes,
como durante o ensaio do coral comunitário; eles serão convidados a
atuar como regentes a todo o momento, caminhando do seu lugar de
cantor para o lugar de regente de todos os cantores. Uma vivência plena
na montagem da música coral proposta a priori, só não participando na
elaboração dos arranjos e não atuando como pianista. Por essa razão,
tempo especial será dedicado à questão do arranjo e à função do
pianista.
Uma semana só, encerrada com uma apresentação/relatório para o
público da cidade.
De volta para os seus corais, para o cotidiano do fazer musical,
teríamos atingido nosso objetivo de tornar os regentes músicos atentos à
importância do seu gesto de regência, que excede o momento à frente
do seu coral? Teríamos dado aos regentes a consciência de que devem
ser líderes na sua comunidade, atentos às características musicais da
região, atentos à memória musical e histórica da comunidade,
promovendo o intercâmbio entre corais e regentes e pesquisando todas
as fontes de partituras corais: as modernas fontes, via internet, e as
eternas fontes correndo pelas ruas da cidade, pelas praças, pelos ventos
e pelos sonhos?... Sonhos não só do regente, mas de toda a
comunidade... Se o regente tiver vinte cantores à sua frente, ele terá
vinte canções, vinte lembranças de sons guardados no coração das
pessoas, vinte histórias de músicas da comunidade que não podem ser
esquecidas... Um repertório novo a cada momento...
Teríamos dado, aos regentes, instrumental para o seu estudo
individual? O regente voltará ao seu estúdio, ao piano ou ao violão,
estudando, estudando, estudando?... Ao sair para o ensaio, ele será a
personificação da música que vai ensinar aos seus cantores?... Terá ele
feito despertar o seu talento de arranjador para que a música soe pelos
caminhos das harmonias e contrapontos por ele traçados para os seus
cantores? Tomara ele seja uma imagem segura para o desenvolvimento
vocal dos seus comandados! Tomara ele tenha se entusiasmado a
desenvolver pesquisas que poderão dar novos rumos ao repertório do
seu coral! Energizado pelo trabalho do Painel, ele vai envolver todos os
cantores em ensaios tão bonitos e tão musicais que ninguém mais vai
faltar ao seu ensaio, ao seu fazer musical... Até o desafinado já vai
afinando...
Teremos alcançado todos esses objetivos?
A semente foi lançada com esse propósito. Agora é esperar pelos
resultados.
Mas ainda não aconteceu nada disso.
Estou arrumando minhas malas, levando vários envelopes de
sementes. Um envelope para os “Gestos de Regência”, outro para
“Canto Coral e a memória das comunidades”, também um para
“Arranjos”, sem me esquecer dos envelopes para “Cuidados com a voz
dos cantores”, “Montagem de programa”, “Práticas de ensaio”,
“Sugestões para estudo de partituras”, “O regente e o pianista”, e outros
mais de um estoque que precisa ficar disponível para emergências.
O envelope para “Gestos de Regência”... Ah! Se as sementes desse
envelope produzissem gestos que os regentes identificassem no seu
cotidiano... gestos lindos que traduzam suas idéias musicais. Não nos
esqueceríamos das assinaturas métricas, nem das fermatas, nem das
anacruses, mas buscaríamos sempre gestos que esculpam as vozes dos
cantores com todas as sutilezas da voz humana.
“Canto Coral e memória das comunidades”. Preciso sempre tomar
cuidado com esse envelope porque as sementes germinam a todo o
momento, mesmo antes do plantio. Um fenômeno especial, creio que
causado pelo fato de que os regentes deveriam estar sempre atentos
aos sons das cidades, das praças, das ruas, das casas, das pessoas, da
canção que estão cantando e, se não registrarem logo, perderão a
oportunidade de ter um repertório exclusivo para os seus corais,
identificado com o universo sonoro que os rodeia. Façam o plantio logo!
Entrevistem as pessoas! Registrem as canções! Ouçam os sinos! Ah! É
tão bonita essa planta, por isso ansiosa por nascer...
O envelope “Arranjos” vem sempre em seguida, mas, ao contrário do
envelope anterior, leva tempo para germinar. Não sei fazer arranjo. Sou
fraco em harmonia. E contraponto, então? Como ser fraco em harmonia
se você está à frente de um coral que canta harmonias? Como não
gostar de contraponto quando você ensaia o tenor junto com o soprano?
Tenho um amigo que é bom em arranjos – atenção: ele conhece seus
cantores tanto quanto você os conhece? Ele poderá escrever linhas
inadequadas para eles. Estou exagerando. Você sempre poderá usar os
arranjos de outros arranjadores, mas não se esqueça de que você
também pode fazer seus arranjos.
“Cuidados com a voz” é uma planta que não se desenvolve sozinha.
Ela precisa ser plantada junto com “Gestos”, “Arranjos” e “Prática de
ensaio” e fica feliz se não aparece no canteiro. O gesto do regente
precisa sugerir a boa emissão; os arranjos precisam ser desenvolvidos
com boas tessituras; e a prática de ensaio precisa prever a graduação
no uso das vozes, evitando a exaustão, o machucar as cordas vocais (ou
pregas vocais como gostam de nomear os fonoaudiólogos) e,
principalmente, não jogar para cima dos cantores sua aflição em
preparar as músicas além de evitar chegar ao ensaio com problemas
pessoais. Regente irritado é igual voz irritada. É importante regar a todo
começo de ensaio com uma linda melodia em uníssono ou, ainda, em
cânone, para não ir direto às músicas do repertório e ir alcançando as
notas passo a passo, sem o automatismo dos vocalises, mas com o
prazer de fazer música desde o primeiro minuto de ensaio.
“Práticas de ensaio” e “Sugestões para estudo de partituras”
precisam ser semeadas em um mesmo canteiro. O estudo das partituras
corais vai gerar o roteiro do ensaio e as práticas de ensaio sempre vão
ensinar que é impossível fazer um bom ensaio sem o domínio da
partitura. O estudo, na intimidade da sua casa, será oportunidade
preciosa para o seu preparo de atuação no exposto da sala de ensaio
onde o regente é o foco da produção musical. Que o regente seja
exigentíssimo consigo próprio para poder atender a todas as demandas
do ensaio onde ele vai atuar com cantores totalmente dependentes do
seu preparo como músico.
“Montagem de programa” exige muitos cuidados na semeadura com
um bom preparo do solo e muitas doses de bom senso como, por
exemplo, evitar programas intermináveis ou apresentar músicas
interessantíssimas para o coral e seu regente (que aprendeu com esse
repertório) sem ao menos um preparo para o público desavisado
presente ao concerto. Ah! Concerto? Vamos precisar conversar muito a
respeito desse evento, lembrando que hoje podemos assistir tudo pela
internet sem sair de casa... Se o seu coral conseguiu levar um bom
público para o concerto, que ele não se arrependa... E volte sempre! Ou,
quem sabe, queira cantar junto! Eu acredito que, n’algum dia não muito
distante, todos vão preferir ensaiar a se apresentar, tamanho vai ser o
interesse pelo convívio musical.
“O regente e o pianista”, ou o regente e o organista, ou, ainda, o
regente que é o tecladista... E tem ainda o regente que é o violonista...
Todas essas possibilidades para garantir aos cantores o
desenvolvimento do discurso musical ouvindo o apoio instrumental.Todo
o cuidado para que esse apoio não se torne “muleta” para os cantores.
Nas partituras para música coral a cappella, impressas nos Estados
Unidos, é comum haver a redução para piano das linhas de canto, com a
anotação: “somente para o ensaio”.
É necessário que o regente se lembre de que o piano é um
instrumento de percussão, ao solicitar ao pianista que toque as linhas de
canto; este deve evitar “bater” o teclado. Quando o instrumento for um
órgão, um instrumento de sopro (mesmo que os eletrônicos não tenham
mais tubos soprando), a atuação do organista ficará mais próxima à
execução vocal. No caso do violão, com a “alma” do instrumento próxima
ao corpo e a mão esquerda do violonista/regente vibrando como a voz
humana, as linhas de cada naipe do coral serão executadas mais
cantantes (estou imaginando que o regente é o violonista e quando o
assunto for o “gesto” será bom fazermos um destaque bem interessante
a respeito desse caso).
Existe um grande repertório internacional em que o compositor
escreve para piano e coro, e também para órgão e coro. Existem peças
para violão e coro também. O acompanhamento faz parte da
composição. Nesses casos, o trabalho do instrumentista é integrado ao
do regente e se faz necessário um entendimento prévio da dupla para
acertos de estilo, de dinâmica; uma integração total dos elementos de
composição, antes do ensaio para que o ritmo dos trabalhos não seja
interrompido por ajustes regente/instrumentista. Entretanto, serão
enriquecedoras as observações decorrentes da integração de todos
durante o ensaio com o coral.
Parece óbvio falar de música coral com acompanhamento fazendo
parte da composição, mas creio ser necessário, pois atualmente é
comum os corais se apresentarem com acompanhamento nos arranjos
de música popular em que a parte instrumental não foi escrita pelo
arranjador. Basta a indicação das cifras e o acompanhador ou um
conjunto com piano, baixo e bateria executará a música dando a base
para o coro, como no período barroco em que o cravista ou organista
improvisava a partir do “baixo cifrado”.
Eis aí uma função específica para o instrumentista, quando o coral
canta música popular. Acrescentando que é importante o regente ter
muito claro quando o acompanhamento é realmente necessário, pois a
presença do pianista, que se torna indispensável no ensaio, acaba
criando acompanhamentos em todas as músicas do coral. Presença
imperiosa entre os corais amadores que precisa ser revista. Cantar a
cappella, isto é, sem acompanhamento instrumental, deve fazer parte do
desenvolvimento dos corais.
Estou me esquecendo de considerar as peças corais sinfônicas, que
exigem no seu preparo a redução da orquestra ao piano. As edições
dessas obras já trazem na partitura coral a parte para o pianista, a
chamada “piano score”. Há que considerarmos a oportunidade,
resolvida, com muito critério, de o regente programar apresentação coral
com essas reduções. O caso mais comum é dos corais do Oratório “ O
Messias”, de Handel. Conseguir uma orquestra é tarefa impossível para
os corais brasileiros.
Nossa! A semeadura “O regente e o pianista” parece ter ocupado o
jardim inteiro, tantas são as questões!
Vamos para algumas considerações finais.
Gosto muito de contar de uma Oficina Coral em Goiás. Dentre os
preparativos, telefonei para o coordenador local pedindo que
identificasse os sinos das igrejas da cidade. Quais as igrejas, quais as
notas dos sinos e se conheciam as inscrições ou os nomes dos sinos
fixados nas campanas. Ao longo da semana de aulas e ensaios,
trabalhamos o repertório coral rodeando um mapa da cidade feito em
papel kraft com os traçados das principais ruas pontuando as igrejas e
as características dos seus sinos. Entre uma música e outra cantávamos
o carrilhão resultante de todos os seus sinos. O encerramento foi
inesquecível. O coral deixou a sala de ensaio, foi para um ponto
estratégico da cidade e ao meio-dia ouvimos todos os sinos da cidade.
Emocionante!
Em Domingos Martins, ES, em um Festival de Inverno, cantamos
todas as notas dos sinos em cânone, com texto de uma poetisa da
cidade.
Mas por que estou contando essas histórias? Para instigar a
imaginação dos cantores e regentes a ouvir sua cidade e cantá-la. Às
vezes, as músicas já existem, como no caso de Maringá. Às vezes, é
preciso pesquisar, colecionar os sons, as canções antigas, levantar
histórias, como eu já escrevi no início deste texto. No Painel do ano
passado, 2013, na cidade de Rio Branco, no Acre, cantamos “Benke”,
uma música do Milton Nascimento. Essa canção é o nome de um
curumim do povo Kampa, composta e gravada no Acre nos anos 1980.
Quase deu certo de Benke, hoje líder da luta dos povos da mata, ir ouvir
o coral do Painel.
Tem também a história que eu já contei centenas de vezes do ritual
que havia em casa, liderado pela minha mãe, contralto no coro da igreja,
convocando meu pai tenor e eu, adolescente, classificado como baixo,
para estudarmos as músicas do coral, pois era inadmissível chegarmos
ao ensaio sem saber todo o repertório. Chegávamos ao ensaio
ensaiados. Lição para toda a vida: ensaio não é lugar para aprender,
mas para apreender. Apreender, fruir, gostar, reunir, descobrir, isto é,
cantar em conjunto! Canto Coral!
As múltiplas dimensões da prática coral
Vladimir A. P. Silva

Os Painéis FUNARTE de Regência Coral têm desempenhado um


importante papel no cenário musical brasileiro, constituindo-se em uma
oportunidade ímpar para serem discutidas questões relativas à
metodologia de ensaio, à técnica vocal, ao repertório coral, bem como
aos aspectos sociais, culturais e educativos dessa atividade musical.
Este texto, fruto das minhas experiências e reflexões antes, durante e
após a realização dos vários Painéis de que já tive a oportunidade de
participar como professor convidado, aborda estes e outros aspectos da
prática coral, tendo como objetivo principal apresentar subsídios para o
trabalho pedagógico e artístico dos coralistas, dos professores de
técnica vocal e dos regentes.

1 Análise composicional e interpretação musical

A análise composicional é uma atividade necessária para a


consolidação da prática interpretativa; para realizá-la, é essencial que o
executante tenha uma sólida formação teórica que lhe permita utilizá-la
no processo analítico que precede qualquer execução. Os processos
analíticos abrangem múltiplas áreas do conhecimento musical, variando
quanto aos métodos, técnicas e objetivos. A compositora Ilza Nogueira,
no artigo “Análise composicional: o que, como, e por que”, publicado na
Revista ART (Salvador: UFBA, 1992), enumera três situações analíticas
distintas: 1) a concepção, 2) a partitura e 3) a percepção. Na primeira, o
analista posiciona-se em relação à imagem sonora na mente do
compositor, no momento da composição; na segunda, ele posiciona-se
diante da partitura stricto sensu; e na terceira, seu objetivo específico é a
imagem sonora que a partitura projeta. As situações analíticas atendem
a propósitos diversificados e a opção do intérprete por qualquer uma
delas deve ser determinada pela bagagem cultural que o mesmo dispõe
e pela adequação ao contexto obra-compositor.
O primeiro passo no estudo de uma partitura é a pesquisa sobre o
autor, o período e as características do momento histórico da obra para,
posteriormente, identificar seus elementos inerentes, isto é, harmonia,
ritmo, tempo, articulação, texto, dentre outros parâmetros. É preciso que
o regente desenvolva a capacidade de observar criticamente uma
partitura. Isto significa, primeiramente, averiguar o grau de confiabilidade
dela (se é original, manuscrita, fac-símile ou editada e, uma vez editada,
quais as semelhanças e diferenças que apresenta em relação ao original
e/ou às outras edições); em seguida, ponderar sobre as informações que
ela apresenta para atestar a compatibilidade com os princípios estéticos
pertinentes ao contexto histórico em questão. Esse posicionamento
crítico diante da partitura acentua-se quando o intérprete tem
consciência de que a notação de uma peça musical é, em certa medida,
sempre imprecisa; Stravinsky já observara, no livro Poética Musical, que
a dialética verbal é impotente para definir a dialética musical em sua
totalidade.
Também consideramos importante para o estudo e interpretação de
uma obra, além do aspecto analítico, o desenvolvimento de processos
eficientes de memorização, a criação de referenciais sonoros e de
imagens auditivas construídas pelo ouvido interno. É necessário
desenvolver um processo sistemático de retenção de conteúdo, baseado
na análise dos elementos estruturais da partitura.
O estudo prévio da composição permite identificar onde poderão
ocorrer os principais problemas de afinação, de respiração, de
articulação, de fraseado e de dinâmica contribuindo, assim, para a
realização de ensaios eficientes, na medida em que é possível antecipar
e solucionar os problemas, antes que eles aconteçam. A abordagem e o
conhecimento de uma obra se não nos asseguram a fluência do discurso
musical, no mínimo nos indicam os caminhos para uma interpretação
significativa.

2 O gesto, o corpo e o som

A expressão gestual do regente é uma ferramenta importante no


processo de interpretação musical e está diretamente ligada à
consciência e controle dos movimentos corporais. O desenvolvimento da
técnica gestual deve aliar, ao domínio dos gestos padrões, aspectos que
traduzam a individualidade do regente sem, contudo, priorizar os últimos
em detrimento dos primeiros.
A postura mais adequada à regência deve ser determinada de acordo
com o biótipo de cada indivíduo e em consonância com as necessidades
da obra interpretada e/ou do grupo dirigido. O regente deve equilibrar-se,
mantendo os pés firmes no chão com as pernas levemente afastadas,
enquanto os ombros precisam ficar soltos e frouxos, com mãos e braços
pendendo livremente para baixo e o antebraço levemente erguido à
altura do peito. Apesar da diversidade de orientações em torno das
técnicas de regência, pode-se dizer que existem dois princípios gerais
que orientam a atividade gestual do regente: o primeiro trata da
independência dos braços, ou seja, é importante evitar, na medida do
possível, que eles executem simetricamente movimentos idênticos; o
segundo faz referência aos movimentos da mão direita (tactus) e da mão
esquerda (expressão musical, agógica, dinâmica e/ou fraseológica).
O campo de trabalho do regente pode ser delimitado na região
localizada entre o baixo ventre e os olhos. É relevante observar ainda
que toda informação musical, seja no começo, no transcurso ou no final
da obra, será reforçada por intermédio da conjugação entre gesto e
expressão facial, recursos complementares imprescindíveis à
concretização das intenções musicais. Para obter o grau de precisão e
controle dos movimentos de forma ideal, é imprescindível, então,
recorrer sistematicamente à força expressiva do olhar, pois, como Sérgio
Magnani observa, os olhos chamam, estimulam, comunicam a cor
desejada do som e sublinham os contornos da frase. Além disso, os
olhos chamam outros olhos, mantêm desperta a atenção, estabelecem o
contato humano e a empatia emocional.
Todo gesto preparatório deve indicar as principais características da
composição, como o tempo, a intensidade, a articulação, a expressão e
o caráter. A intenção é necessária e antecede a criação dos gestos
musicais e é por esta razão que o regente deve possuir um domínio
soberano da representação mental da partitura, pois só assim será
capaz de recriar em sua fantasia a imagem sonora ideal da obra. Neste
sentido, Bernadete Zagonel, no livro O que é gesto musical, assegura
que, de algum modo, cada partitura escrita necessita de uma partitura
gestual que permite o nascimento da obra realizada. Assim, a
exteriorização gestual deve ser, portanto, o resultado das
representações mentais e da abstração da obra como um todo, e não
simplesmente uma ação mecânica e automatizada por meio de padrões
estabelecidos.

3 Teste e classificação vocal


O processo de seleção e classificação vocal basicamente envolve
duas etapas. Na primeira, realizam-se tarefas que permitem verificar a
percepção auditiva, nos seus aspectos rítmicos, melódicos e
harmônicos. Na segunda, analisam-se diversos parâmetros, dentre os
quais, a extensão, a tessitura e o timbre. Tais elementos devem ser
observados em conjunto, pois concebê-los isoladamente não é um
procedimento adequado. Utilizar a extensão como único critério de
avaliação pode comprometer a análise vocal, porque as vozes
tecnicamente limitadas poderão ser classificadas de forma equivocada
em virtude das referências associadas a esta ou aquela categoria vocal.
Além de observar os limites graves e agudos da voz, a classificação
deve ser feita com base no timbre de cada cantor.
A mudança de registro também oferece elementos significativos e,
nesse caso, a identificação exata das notas que estabelecem tais
fronteiras pode servir como uma referência auxiliar, corroborando com
outros parâmetros já analisados. Certamente este é um dos pontos
polêmicos na área do canto, pois as opiniões são diversificadas quanto
ao significado e quantidade dos registros vocais. Fundamentalmente, o
regente deve perceber quando ocorre a transição do registro grave para
o médio (primo passaggio) e do médio para o agudo (secondo
passaggio), bem como a zona de passagem intermediária entre estes.
O regente, ao apreciar a voz de um cantor, precisa perceber toda a
potencialidade latente e antecipar, de certo modo, o vir a ser desta voz,
isto é, a forma como se apresentará após o desenvolvimento de um
trabalho técnico eficaz. Somente a continuação do trabalho vocal permite
confirmar ou não a classificação inicial e, por isso, nenhuma
classificação vocal pode estabelecer um veredicto permanente, imutável,
pois a voz, ao ser (re)educada, passa por muitas transformações, sendo
essencial, nesse caso, não rotulá-la com uma nomenclatura específica,
mas guiá-la ao longo de um estudo que favoreça o desenvolvimento
máximo sem fadiga. É função do regente e/ou do professor de canto ou
de técnica vocal acompanhar esse processo, porque uma classificação
errada, associada ao uso inadequado numa região que extrapola a
tessitura mais cômoda e conveniente, pode estimular e favorecer o
surgimento de problemas vocais.
É imprescindível, portanto, observar os procedimentos desse
processo e avaliar precisamente a voz de cada cantor, tomando sempre
como referência a singularidade que lhe é inerente. Além dos fatores
técnicos, é indispensável acrescentar outras informações relativas ao
perfil psicológico, social e cultural de cada indivíduo, procurando
perceber não somente como ele constrói os seus modelos, mas qual a
imagem vocal que ele tem de si mesmo. O momento em que o regente
seleciona os seus cantores é uma das etapas mais importantes da
prática coral, pois é nessa ocasião que é definido o DNA da sonoridade
de um grupo.

4 O repertório coral

Todo ensaio coral, para ser eficiente e produtivo, precisa ser


planejado e organizado. O planejamento do ensaio começa sempre com
a escolha do repertório a ser interpretado; uma tarefa complexa porque
as obras selecionadas devem estar em consonância com o nível técnico,
musical e vocal do grupo, assim como com o perfil econômico, social e
cultural dos participantes e da instituição à qual o coro está vinculado. As
obras que constituirão o repertório semestral ou anual do conjunto
precisam ser definidas antes do início da temporada de ensaios. Elas
devem ser acessíveis e, ao mesmo tempo, desafiadoras. Após
selecionar o repertório, o regente elaborará o cronograma dos ensaios, o
calendário das apresentações, assim como os recursos financeiros,
materiais e humanos necessários à consecução dos projetos e metas
estabelecidos.
No Brasil, a edição e publicação de obras originais para coro ainda é
incipiente, fato que poderá dificultar as possibilidades de escolha do
repertório. Esta realidade tem levado muitos profissionais a optarem por
um repertório de qualidade duvidosa relegando, para um segundo plano,
a vasta literatura originalmente escrita para coro. Defendo que os
regentes selecionem os repertórios dos seus grupos pensando sempre
numa perspectiva artística e educacional, que promova o crescimento
técnico e expressivo dos cantores.
A internet é uma ferramenta de grande utilidade no trabalho de
pesquisa e de aquisição de repertório. Vários são os portais que têm
divulgado, gratuita e legalmente, a literatura originalmente escrita para
coro a cappella ou com acompanhamento instrumental. Entretanto,
muitas partituras apresentam problemas, merecendo um olhar mais
atento do regente, uma vez que podem ter sofrido grandes alterações
editoriais. Recomendo uma visita aos sites da Choral Domain Public
Library e do IMSLP Petrucci Music Library, por exemplo, que são bem
conhecidos dos estudantes e músicos profissionais e têm um acervo
organizado e variado.
Outra possibilidade são os pacotes promocionais que as editoras
norte-americanas e europeias oferecem aos seus clientes. O interessado
precisa cadastrar-se e pagar taxas específicas para receber, pelo
período de doze meses, uma cópia de cada uma das obras publicadas
pela editora selecionada. Dentre as mais conhecidas, destacam-se:
Oxford Music Publishing, Santa Barbara Music Publishing, Alliance
Music, Hinshaw Music, EarthSongs, Hal Leonard e Boosey & Hawkes.
Uma boa sugestão para ampliar o conhecimento do repertório é ouvir a
rádio online da American Choral Directors Association, que apresenta
obras corais diversificadas.
Com relação à música coral brasileira, muitos projetos têm-se
destacado nessa área. O Musica Brasilis, criado em 2009 e coordenado
por Rosana Lanzelotte, se dedica à difusão do repertório nacional de
diferentes épocas, estilos e autores. Além das partituras, no portal é
possível encontrar áudios, vídeos e o recurso da escuta guiada. Neste
processo de apreciação musical dirigida são apresentadas informações
importantes sobre as obras, tanto do ponto de vista estrutural quanto do
formal. Essa associação audiovisual colabora no processo de
compreensão das peças. A FUNARTE também tem disponibilizado, por
meio do site “Projeto Coral”, obras para vozes afins e mistas, incluindo
as coleções Música Nova do Brasil para Coro A Cappella e Arranjos
Corais de Música Folclórica Brasileira, ambas publicadas nas décadas
de setenta e oitenta. A produção mais recente da Instituição, na qual se
inserem as onze canções para Coro Juvenil (2009) e as oito canções
para Coro Infantil (2010), também podem ser obtidas no site.
O Museu da Música de Mariana, que se dedica à pesquisa do
repertório desde os tempos do Brasil Colônia, oferece, na seção
Restauração e Difusão de Partituras, relevante patrimônio da literatura
coral brasileira, destacando-se os seguintes projetos temáticos:
Pentecostes, Missa e Sábado Santo (2001); Conceição e Assunção de
Nossa Senhora, Natal e Quinta-Feira Santa (2002); Devocionário
Popular dos Santos, Ladainha de Nossa Senhora e Música Fúnebre
(2003). Todas as obras editadas estão também disponíveis em CDs, que
foram gravados por ícones do canto coral no país, dentre os quais
Naomi Munakata e a Orquestra Engenho Barroco; Júlio Moretzsohn e o
Grupo Calíope; e Carlos Alberto Pinto Fonseca e o Ars Nova Coral, da
UFMG, com músicos convidados. O Projeto SESC Partituras, iniciado
em 2007, contém o trabalho de vários compositores, abrangendo música
de câmara, sinfônica, coral e para solistas.
As iniciativas do Musica Brasilis, da FUNARTE, do Museu da Música
de Mariana e do SESC Partituras preenchem uma lacuna importante no
nosso mercado editorial, contribuindo para a preservação e para a
promoção da música coral brasileira. A prática coral é um espaço
privilegiado para a educação musical, e o foco do regente deve ser
dirigido para a sistematização pedagógica dessa atividade. É preciso
selecionar o repertório criteriosamente, em função da sua importância no
processo de aquisição e de compreensão da linguagem musical.

5 Métodos e técnicas de solfejo

O canto coral, enquanto atividade educativa, configura-se como o


espaço ideal para o desenvolvimento de habilidades, dentre as quais a
aprendizagem do solfejo, uma atividade prática que, quando associada
ao repertório coral, torna o ensaio mais eficaz, contribuindo para o
processo de ensino-aprendizagem de conteúdos teórico-musicais. É de
fundamental importância, portanto, refletir sobre os pressupostos
metodológicos do ensaio coral, à luz da educação contemporânea,
contribuindo para o desenvolvimento dessa prática pedagógico-musical,
propondo estratégias dirigidas para a aprendizagem do solfejo e da
teoria musical, por meio da abordagem do repertório.
Nos métodos de solfejo fixo, as sílabas especificam o nome das
notas, independentemente da função que exercem. Muitos estudiosos
argumentam que o método é excelente para o desenvolvimento do
ouvido absoluto, o que ainda é matéria controversa. No solfejo fixo, a
notação musical é a referência, e as notas são sempre designadas pelo
mesmo nome: sol, sol bemol ou sol sustenido, por exemplo, serão
sempre cantados como “sol”; já os intervalos “dó-mi”, “dó sustenido-mi”,
“dó-mi bemol” ou “dó sustenido-mi bemol” serão sempre entoados como
“dó-mi”. Alguns professores focalizam a atenção no ensino dos
intervalos, isolando-os do contexto musical. Esse método parece ser útil
quando o regente precisa resolver problemas de afinação específicos,
nas passagens mais difíceis do repertório. O solfejo por intervalos é uma
boa estratégia para resolver problemas específicos, como, por exemplo,
saltos intervalares muito grandes. Uma das limitações é o seu caráter
fragmentário, visto que os intervalos são abordados de forma isolada,
fora do contexto melódico, rítmico e harmônico no qual se inserem.
Quanto ao solfejo relativo, também denominado móvel, os nomes das
notas são referências que ajudam a estabelecer a distância entre os
graus da escala, uma vez que a atribuição dos nomes das notas é feita
com base na análise harmônica e não apenas na notação musical. O
solfejo é funcional, e a transposição é a essência do método. Para
qualquer tom no modo maior, o modelo é sempre a escala de dó,
enquanto no modo menor a referência é a escala de lá. As notas
alteradas podem receber diferentes nomenclaturas, dependendo do
contexto no qual se inserem. Tomando dó como ponto de partida, temos
a seguinte escala cromática ascendente: dó, di, ré, ri, mi, fá, fi, sol, si, lá,
li, ti. Em sentido descendente, temos: dó, ti, te, lá, le, sol, se, fá, mi, me,
ré, ra, dó. O método móvel, que tem suas origens associadas ao sistema
hexacordal desenvolvido por Guido D’Arezzo, ganhou força e projeção
com o trabalho de Zoltán Kodály, na Hungria, na primeira metade do
século XX. Alguns educadores, no ensino do solfejo relativo, se utilizam
de números que especificam os graus da escala, ao invés de sílabas;
nesses casos, o primeiro grau é sempre a tônica. Critica-se, de forma
geral, a confusão conceitual que pode ser gerada, já que os números
são usados para definir altura e duração, simultaneamente. O uso dos
gestos (manossolfa) também contribui para a aprendizagem do solfejo
móvel, facilitando a internalização das relações entre as diversas alturas,
o que exige mais atenção do aluno.
Se, por um lado, o uso do método móvel mostra-se eficiente porque
permite que o cantor solfeje, em qualquer tom e modo, em pouco tempo,
por outro lado ele também apresenta certas restrições. Uma delas diz
respeito ao repertório, pois o método funciona muito bem com música
tonal e modal desde que não apresentem passagens cromáticas nem
mudanças de tom e de modo. A adequação das sílabas a cada novo
contexto harmônico e melódico pode comprometer o nível de
aproveitamento do ensaio. Os métodos móveis também podem ser um
problema para músicos que tocam com instrumentos que não são
transpositores. Há alguns anos, Ricardo Freire apresentou o Sistema
Fixo-Ampliado, elaborado a partir da análise dos elementos de
interferência identificados em vários sistemas de solfejo, tanto fixos
quanto móveis, propondo uma síntese entre os focos de aprendizagem
de cada um deles.
Cada método apresenta vantagens e desvantagens. Cabe ao regente
avaliá-las e escolher aquele que atende às suas necessidades, pois
mais importante que o método é a forma como o professor fará uso dele.
Além disso, se o educador domina o método, o resultado será refletido
no trabalho dos alunos. Com novas metodologias, a nossa prática coral,
ainda baseada na memorização do repertório através do exaustivo e
insignificante processo de repetição, poderá adquirir novo sentido e,
posteriormente, colheremos os frutos de uma ação planejada, objetiva e
sistemática.

6 (In)Expressividade musical

Quem participa de Encontros e Festivais sabe que as composições


originalmente escritas para coro, sejam elas a cappella ou com
acompanhamento instrumental, têm sido extirpadas do repertório dos
grupos; estes já não interpretam obras canônicas das literaturas
europeia, norte-americana e brasileira. Especialmente no Brasil, a vasta
produção vocal tem sido substituída pelos arranjos de canções
populares e folclóricas.
A inclusão desses arranjos no repertório de um coro tem vários
aspectos positivos, dentre os quais a acessibilidade do vernáculo, que
facilita a identificação sócio-cultural dos coralistas com a música e agiliza
o processo de ensino-aprendizagem. No entanto, o problema surge
quando os arranjos interpretados são desprovidos de senso artístico, de
criatividade e de beleza. Uma obra musical, seja ela original ou arranjo,
simples ou complexa, curta ou longa, precisa ser elaborada. É
necessário que o compositor/arranjador use técnicas diferentes para
manipular a métrica, a melodia, a harmonia e a textura, criando, através
das variações de dinâmica, tempo, andamento e articulação, momentos
de tensão e repouso, respeitando os vários estágios da narrativa. Para
indicar, com o máximo de precisão, todas as suas intenções musicais,
aquele(a) que cria deve recorrer aos mais sofisticados recursos da
notação musical, evitando a ambiguidade. Contudo, o que se constata é
exatamente o oposto. Muitos dos arranjos lançados no mercado, tanto
brasileiro quanto internacional, excluem detalhes sutis e importantes
para a interpretação musical que, em alguns casos, até comprometem a
essência da obra original que lhes serviu de referência.
Essa práxis composicional, se é que se pode assim considerá-la e
denominá-la, tem contribuído para banir a expressividade do contexto da
prática coral. À falta de concepção musical dos arranjos alia-se a
robotizada atuação dos regentes, que parecem desconhecer os
princípios básicos da interpretação musical. O desempenho dos coros se
restringe a poucos movimentos corporais, a algumas caras e bocas e a
outros adereços. A sonoridade é tão linear e plana quanto uma pintura
sem perspectiva. O interesse musical inexiste porque falta a
dramaticidade que é criada com os contrastes da articulação, da
intensidade e do timbre. Alguns desses elementos não são indicados na
partitura, tampouco apontados pelo regente, que muitas vezes não sabe
como criá-los a partir das idiossincrasias da obra.
Assim, os cantores vão aprendendo a cantar ignorando a dialética
relação entre staccato/legato, piano/forte, crescendo/decrescendo,
accelerando/ritardando, alheios ao fato de que o fraseado musical é que
dá sentido aos aspectos textuais, harmônicos e melódicos de uma
composição e à própria obra. Sem essa consciência do movimento
interno que a música evoca, a sua fruição fica comprometida. Capta-se
apenas o superficial, o efêmero. Independentemente do repertório que
se interpreta, cantar sem expressão é o mesmo que, estando vivo,
apenas existir e não viver.

7 O ensaio coral

Para assegurar a plenitude do processo de ensino-aprendizagem da


prática coral é fundamental que a sala de ensaios seja preparada
adequadamente. Deve-se cuidar da iluminação e da ventilação, natural e
artificial, pois o conforto térmico contribui para o bem-estar do coro. O
tratamento acústico do espaço é determinante para o sucesso do
trabalho, influenciando a realização do repertório e a sonoridade coral. O
espaço físico precisa ser adequado ao tamanho do coro e às atividades
que serão desenvolvidas. Cadeiras, armários, mesas, quadros, além de
outros equipamentos, tais como pianos, aparelhos de som e televisão
devem ser alocados em lugares estratégicos e acessíveis.
Na sala de ensaio, os cantores devem ter à disposição partituras
legíveis e bem editadas, papel em branco, lápis e borracha. Estes
recursos materiais podem ser utilizados para registrar as anotações
pessoais e as observações do regente. Ao contrário daquilo que
comumente ocorre na prática orquestral, coralistas ainda não
desenvolveram o hábito de anotar as indicações do regente na partitura.
É necessário estimulá-los, explicando-lhes as razões das solicitações ou
dos comentários, fazendo com que eles compreendam o texto poético e
musical das obras. Aproveitar cada momento desse encontro de
permutas e de aquisição de saberes é, portanto, o princípio norteador do
fazer pedagógico do regente, porque no ensaio coral ocorre um intenso
processo educativo, que é dialógico e fruto da parceria entre os cantores
e o regente.
Para que o ensaio se torne significativo, seria interessante substituir,
gradualmente, a ineficiente prática da aprendizagem por imitação e
repetição, que comumente ocorre quando o cantor reproduz
acriticamente aquilo que o regente lhe oferece, por uma forma mais
consciente de aquisição do conhecimento, na qual o coralista possa dar
uma contribuição mais efetiva e pessoal. O cantor, nesta perspectiva,
passaria a agir proativamente, enumerando compassos, marcando
respirações, solfejando partes e solucionando, sempre que possível e
por conta própria, os problemas rítmicos, melódicos e vocais
encontrados no repertório. Estas são iniciativas importantes que
deveriam ser estimuladas e incorporadas à práxis cotidiana dos nossos
coros. Certamente, os ensaios se tornariam mais instigantes, pois os
conteúdos e desafios impostos pelo repertório seriam superados de
forma sistemática, metódica, dinâmica, eficaz.
Recitais e concertos devem ser compreendidos, portanto, como os
produtos finais do trabalho desenvolvido ao longo de vários ensaios
criteriosamente planejados e organizados. Tais atividades artísticas são
ferramentas de avaliação importantes para a consistência da
interpretação musical. No entanto, concebê-las como primordiais, como
meta e objetivo exclusivos da prática coral, significa transferir o foco de
atenção do processo para o produto. Que o ensaio seja, assim,
entendido como construção coletiva, contando, em todas as suas
etapas, com a colaboração e o engajamento de cantores e regente,
favorecendo o crescimento musical, vocal, intelectual, afetivo e
emocional de todos.

8 Aspectos administrativos e organizacionais

Quando um coro decide viajar, os resultados são sempre muito


positivos. Os membros do grupo se sentem motivados e passam a
frequentar os ensaios assiduamente, atingindo um excelente nível de
participação e de aprendizagem. Antes da viagem, no entanto, é
importante que o regente estabeleça as regras para a convivência, seja
no avião, no ônibus, no hotel ou no teatro. É sempre bom lembrar aos
cantores que estes lugares são públicos e que qualquer comportamento
inadequado poderá comprometer a imagem do coro. Por isso, eles
devem agir com cautela, discrição e respeito.
É conveniente definir o cronograma de atividades e estabelecer
aquelas que são prioritárias, deixando espaço para a programação social
e turística, também relevante, porém secundária. Para auxiliar o
trabalho, deve-se elaborar uma lista com todos os artefatos que os
cantores precisam incluir nas suas malas, evitando, por exemplo, que
alguém se esqueça da farda do grupo. O mesmo vale para os remédios,
documentos pessoais, números de telefones para contatos em caso de
emergência, partituras, dentre tantos outros itens imprescindíveis. Para
impedir o excesso de bagagem, cada um deve levar apenas uma mala e
uma bolsa de mão, devidamente identificadas. Os cantores serão
responsáveis por seus pertences, transportando-os para todos os
lugares. É fundamental que o regente obtenha dados básicos sobre o
lugar a ser visitado, pois tais informações ajudam a entender o clima e a
compreender as particularidades econômicas, políticas, sociais e
culturais de cada comunidade. Crucial mesmo é conhecer os locais onde
serão realizadas as apresentações, visto que as condições acústicas do
teatro, da igreja ou do auditório serão determinantes para a escolha do
repertório a ser interpretado, para a organização e a disposição dos
cantores no palco.
A pontualidade é essencial para o sucesso das atividades que
envolvem muitas pessoas. Assim, o regente deve estabelecer o horário
de saída e de chegada do grupo durante a realização das tarefas
coletivas, e os cantores devem se preparar antecipadamente. É preciso
esclarecer, desde o princípio da viagem, o prejuízo provocado pelos
atrasos. É recomendável que os cantores fiquem atentos durante os
passeios e, sempre que possível, avisem ao chefe de naipe ou ao
regente para onde estão indo e com quem estão saindo. Isso ajudará a
reduzir as preocupações e os problemas.
A experiência da viagem em conjunto é sempre desafiadora e
enriquecedora, pois os cantores estreitam os vínculos afetivos, criam
novos laços de amizade, enfim, potencializam os aspectos humanos da
prática coral. Todavia, essa aventura fascinante requer organização,
disciplina, paciência e muita responsabilidade, elementos indispensáveis
à manutenção e ao equilíbrio do grupo, da arte e da vida.
9 Coro cênico versus coro tradicional

No Brasil, o coro cênico é uma tendência em expansão. Estou


apreensivo porque o coro tradicional poderá, brevemente, ser peça de
museu, coisa de regente conservador e ultrapassado. A definição desse
quadro pode ser consequência direta da falta de programas
permanentes de formação de regentes, que estão no mercado de
trabalho atuando de forma inadequada. Comumente, esses profissionais
têm recorrido ao placebo cênico como forma de mascarar as deficiências
que eles e os seus coros apresentam, pois o aspecto visual transfere o
foco de atenção do som para o gesto, para o adereço, para a trama
coreográfica, fazendo com que a afinação, a qualidade vocal, o fraseado,
as variações de timbre, de dinâmica e de articulação sejam relegadas ao
segundo plano.
A ideia de coro cênico remonta à tragédia grega, passou pelos autos
medievais, expandiu-se com os madrigais renascentistas e com a ópera
barroca. Mais recentemente, no auge dos experimentalismos e das
transformações ocorridas no panorama musical da primeira metade do
século XX, a prática ganhou mais força. A mudança técnica e estética no
canto coral se fez notar na relação entre regentes e cantores, no padrão
vocal, na postura corporal, no repertório, na vestimenta e na atuação
cênica e musical do coro; esse fato abriu espaço para a inclusão de
arranjos de música folclórica e popular brasileira e, dentre outros fatores,
permitiu um tratamento interpretativo mais adequado, sobretudo no que
diz respeito aos aspectos sonoros e gestuais. É na década de oitenta
que se constata no trabalho de alguns coros brasileiros a presença de
determinadas tendências, que incluem o uso de movimentos corporais e
o emprego de exercícios de expressão corporal no preparo das obras de
forma geral.
Nos Estados Unidos, essa prática é vigente, sobretudo em ambientes
escolares, no ensino médio. Em nosso contexto, a proposta tem sido
usada mais frequentemente por coros adultos e com diferentes objetivos,
incluindo os fins terapêuticos. Eu mesmo apresentei, entre os anos 80 e
90, dois espetáculos que misturavam música, teatro, dança, humor e
literatura. Foi uma experiência válida. No entanto, quando percebi que
estava deixando a matéria sonora para trás, na segunda fila, refleti e
decidi que era hora de voltar às origens e explorar a literatura
originalmente escrita para coro e ainda muito pouco interpretada por
nossos grupos, pois a experiência musical e vocal dos nossos cantores
precisa ser ampla e abrangente.
Combato o excesso. Critico aqueles que defendem o coro mexitivo,
como sabiamente definiu o compositor e regente Reginaldo Carvalho; os
regentes desse tipo de coro alegam que o repertório coral tradicional,
seja ele europeu, americano ou brasileiro, é difícil, chato e cafona. Sou
contra o frenesi que está em voga e que só serve para justificar a
incompetência dos aproveitadores de plantão. Defendo a coexistência de
múltiplas tendências, “cada uma com o seu cada qual”, desde que a
excelência vocal, a musical e a artística sejam a tônica, o centro, a razão
de ser da prática coral.

10 A plateia ideal

Todo músico sofre quando se depara com uma plateia despreparada,


que se comporta de forma barulhenta, irrequieta, inadequada. Creio que
a solução está na (re) educação do público, razão pela qual sugiro a nós,
regentes, a inclusão, nos nossos próximos programas, de um roteiro
com informações que conscientizem os ouvintes sobre a natureza do
nosso trabalho.
É muito importante que o concerto comece na hora prevista e que o
público chegue antecipadamente, com tempo para estacionar, comprar
ingresso e ler o programa. Aqueles que chegam atrasados devem
entender que o abrir/fechar das portas desconcentra os músicos e os
outros ouvintes. Por isso, eles só devem entrar na sala de concertos
durante os aplausos. O mesmo vale para aqueles que precisam sair
antes do término da apresentação. Melhor seria que estas pessoas
ficassem, discretamente, na última parte da sala, entrando/saindo sem
serem notadas
Ao entrar no teatro, todos devem desligar o celular, evitando deixá-lo
no modo silencioso ou vibratório, o que poderá ser perigoso e
embaraçoso, sobretudo se a pessoa tiver que atendê-lo. As pessoas
precisam entender que, num concerto, o mais importante é a música, o
som produzido pelos artistas, que passaram horas se preparando para
aquele momento. Todo e qualquer outro som poderá comprometer a
atuação dos intérpretes e a audição dos demais presentes, e passará a
ser classificado como ruído. Frequentemente, os ruídos que mais
incomodam são: o murmúrio produzido pelas pessoas que tentam
acompanhar a obra que está sendo executada; o abrir e fechar das
embalagens de bombons e similares; o manusear dos programas de
concertos; as conversas sussurradas; as tosses, os espirros e os
pigarros da plateia. Tudo isso pode ser controlado. Tudo isso precisa ser
evitado para não comprometer a compreensão do discurso musical, não
irritar as pessoas em derredor, não estragar a gravação audiovisual do
espetáculo. Outra coisa que atrapalha bastante é quando alguém resolve
filmar e/ou, em muitos casos, fotografar o espetáculo usando lâmpadas e
flashes que alteram a luz do ambiente, ofuscando a vista dos músicos no
palco. O pior é quando cinegrafistas e fotógrafos, mesmo possuindo
equipamentos modernos e potentes, se aproximam do palco para
capturar detalhes. Antes de fazer qualquer registro audiovisual,
certifique-se de que você tem autorização legal para tal finalidade.
O público também precisa aprender a aplaudir, respeitando as
especificidades de cada obra. Geralmente, as manifestações de apreço,
numa composição com vários movimentos, devem ser resguardadas
para depois do último movimento. Por isso é tão importante familiarizar-
se com o repertório e ler o programa antes do início do concerto. O
processo de (re) educação da plateia é longo, lento e fundamental para a
fruição estética em sua plenitude.

Considerações finais: sobre o extrínseco e o intrínseco à prática


coral

As discussões em torno dos aspectos extrínsecos e intrínsecos das


diversas práticas musicais têm sido constantes nas nossas conversas
formais e informais, na sala de aula e nos ensaios. O tema está em
evidência por conta da Lei 11.769/2008, que regulamenta a
obrigatoriedade da educação musical no ensino fundamental e médio de
todo o país.
Muitos administradores, pedagogos e pais têm destacado a
contribuição da música no processo de socialização das crianças e dos
adolescentes, estimulando-os criativamente, tornando-os mais sensíveis
e perceptivos. É certo que a música pode cooperar em vários processos
mentais, desinibindo os indivíduos, desbloqueando as suas emoções,
desenvolvendo as suas personalidades, transformando-os. No meu
trabalho como regente coral, acompanhei de perto as mudanças nos
perfis de vários cantores, gente que (re) descobriu o sentido do viver,
superou dificuldades, encarou desafios, assumiu uma nova postura
perante a realidade. Reconheço que a prática coral contribuiu para
despertar, nessas pessoas, tais possibilidades de mudança. No entanto,
confesso que, ao entrar na sala de ensaio, nunca tratei dos aspectos
extrínsecos à música nem tentei agir como psicólogo ou como terapeuta
ocupacional, procurando resolver os problemas pessoais dos meus
coristas.
Quando ensaiamos, focalizamos nossa atenção nos aspectos
objetivos e intrínsecos do fazer musical: ritmo, afinação, dinâmica,
articulação, respiração, projeção vocal, sonoridade, fraseado, dicção,
texto. Adotamos uma linguagem técnica: longo, curto; forte, fraco; alto,
baixo; lento, rápido; legato, staccato. A nossa referência se constrói a
partir de parâmetros materiais, físicos, temporais, vocais e acústicos. Só
depois de superada essa etapa inicial, que ocupa entre setenta e oitenta
por cento do tempo de trabalho, é que vamos em direção aos elementos
mais subjetivos, expressivos, emocionais e valorativos inerentes à
prática coral. E aí usamos o extramusical para motivar e provocar o
brilho no olhar. Keith Swanwick, no livro Ensinando música musicalmente
(São Paulo: Moderna, 2003), concebe a música como metáfora, como
elemento transformador e de transformação, destacando que toda e
qualquer ação pedagógica só será válida e eficiente se for concebida em
três estágios diferentes, caracterizados pelos atos de: 1) transformar
notas em gestos; 2) transformar gestos em frases; 3) transformar frases
em discurso expressivo, que tenha sentido, que tenha valor, que
correlacione conhecimentos acumulados e adquiridos através de uma
prática significativa.
Precisamos, portanto, concentrar nossas ações objetivamente,
visando ao amplo desenvolvimento técnico (musical e vocal) dos nossos
cantores e das suas potencialidades emocionais, sensoriais e
expressivas; desta forma, contribuiremos direta e decisivamente para a
emancipação do canto coral brasileiro, para a consolidação da cidadania
e, finalmente, para o desenvolvimento humano em todas as suas
dimensões. Para atingirmos tal meta, devemos avaliar a forma como
temos atuado diante dos nossos coros, identificando e definindo aquilo
que é (in) apropriado à nossa práxis musical cotidiana.

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