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ISSN 2358-6060
A rteda DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i2.50157
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Cen A

T RÂNSITOS E P ERCURSOS DE
NO PROCESSO CRIATIVO DO ESPETÁCULO NJILAS: DANCE E ESQUEÇA SUAS DORES
A RTE-VIDA

“Transits and Routes of Art-Life in the Creative Process of the Theater Play
NJILAS: Dance e Esqueça suas Dores”

Renata Alessandra Weber*


Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
Universidade Federal de Uberlândia

Alexandre Silva Nunes**


Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa nas Artes da Cena
Universidade Federal de Goiás

RESUMO: O presente artigo traça uma breve análise do processo de


construção da personagem Afoju, no contexto do espetáculo NJILAS:
Dance e Esqueça suas Dores, buscando identificar, na singularidade
de uma prática cênica específica, importante aporte de reflexão sobre
aspectos universais da formação da atriz, além de fundamentos
metodológicos da prática e criação teatral.

Palavras-chave: Atriz; Mito; Processos de Criação.

ABSTRACT: The present paper provides a brief analysis about


the creation process of the Afoju character in context of the theater
play NJILAS: Dance e Esqueça suas Dores, in order to identify, in
the singularity of a specific scenic practice, important contribution
of reflection about universal aspects of the actress training, as also
methodological fundaments of the practice and creation theatrical.

Keywords: Actress; Myth; Creative Process.

Renata Alessandra Weber e Alexandre Silva Nunes - Trânsitos e Percursos de Arte-Vida


Revista Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 2, p. 108-119, jul-dez/2017.
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Para que um ponto de vista seja útil, temos que ritual. Neste sentido, a experiência que uso como
assumi-lo totalmente e defendê-lo até a morte. Mas,
referência reflexiva para o presente texto, possui
ao mesmo tempo, uma voz interior nos sussurra:
“Não o leve muito a sério. Mantenha-o firmemente, igual caráter intermediário, entrecruzando meus
abandone-o sem constrangimento”. próprios limiares de arte-vida.
(PETER BROOK)

Sob o ponto de vista de quem que está no


Gostaria de iniciar este artigo utilizando centro da construção da ação no teatro, o entre
uma imagem de referência, a imagem daquilo que emerge do dialogo estabelecido no processo
que estabelece relação/conexão entre duas ou de formação da atriz1 é passível de ser identificado,
mais coisas, na condição de liminaridade. Nossa tanto com os aspectos metodológicos quanto no
ideia de liminaridade provém etimologicamente que se refere ao âmbito humano, entrelaçando
do latim limes, termo que se refere à ideia de as formações social, cultural, emocional e
fronteira, de uma via que se estabelece entre artística. Compreendo aqui, portanto, o processo
dois campos distintos, sendo portanto um elo de de formação da atriz de modo amplo, capaz
ligação entre eles. Em inglês, o termo limen tem de abranger a totalidade da pessoa, como
sentido similar, e se tornou mais conhecido em observam diversos dos encenadores modernos
nosso meio, depois que alguns autores deslocaram e contemporâneos, que se dedicaram ao assunto.
seu uso, aplicando-o no contexto das artes da Sobre este assunto, é oportuno também observar
cena. Segundo Richard Schechner, limen é um que as primeiras impressões do indivíduo estão
termo originalmente utilizado na arquitetura diretamente ligadas ao olhar do outro, tal como
e significa literalmente “um limiar ou peitoril, o processo de formação da atriz se estabelece em
uma fina faixa, nem dentro, nem fora de uma relação às alteridades que lhe acompanham nesse
construção ou sala, ligando um espaço a outro. processo, tais como o encenador e o espectador,
É mais uma passagem/corredor/via do que um como sinaliza o encenador inglês Peter Brook:
espaço em si mesmo” (SCHECHNER, 2012, p.
64). Se, na estrutura arquitetônica de um edifício Os atores cedem facilmente à tentação de impor suas

teatral clássico, o proscênio constitui esse espaço próprias fantasias, suas teorias ou obsessões pessoais,
e o diretor deve saber o que incentivar e o que evitar.
entre cena e vida, Richard Schechner em uma
Deve ajudar o ator tanto a ser ele mesmo como a ir além
releitura do termo aproxima seu sentido original de si mesmo, para que possa surgir um entendimento
do conceito de performance, quando apresenta que supere a noção limitada que cada indivíduo tem
da realidade. (BROOK, 1995, p. 35)
esse espaço vazio de entres como local da ação

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Na dialética de minha formação pessoal, do texto, era possível dar asas à imaginação e
pude observar que as primeiras lições de produzir um material abstrato, mas que logo
moralidade, ética e padrões comportamentais, seria racionalizado pelos pensamentos que
tal como as primeiras lições teatrais em sala de determinariam a forma a ser reproduzida.
ensaio, basearam-se em regras rígidas e modelos Esse processo me acompanhou por anos e me
ideais a serem alcançados. Nascida mulher numa rendeu vícios que bloquearam a singularidade de
sociedade patriarcal, desenvolvi diversas marcas minha expressão, apesar dela permanecer viva e
da exigência sociocultural brasileira que, durante resguardada, entre as engrenagens do controle.
o processo artístico, mostraram-se mais brandas,
apesar de também padronizarem ferozmente Na busca pela formação acadêmica, passei
formas de expressão rígidas que se cristalizaram a ter contato com as grandes teorias de teatro e
em meu corpo até poucos anos atrás. metodologias de encenação/atuação, como as
apresentadas por Peter Brook (1925 –), Antonin
Como em minha vida pessoal fui educada Artaud (1896 – 1946) ou Jerzy Grotowski (1933
a controlar qualquer impulso capaz de desviar- – 1999). E apesar de estudá-las com dedicação,
me dos padrões considerados adequados, tive elas me pareciam distantes e quase inalcançáveis.
facilidade de adaptação quando, no teatro, fui Somente o exercício da leitura desses autores já se
conduzida nos primeiros passos de formação mostrava tarefa demasiado complexa, pois muitos
conforme um modelo artístico tido como de seus conteúdos se distanciavam da minha
adequado. Segundo esse modelo, a imitação de capacidade de compreensão e muito distantes
formas externas e pré-definidas seria o ideal de dos preceitos que carregava comigo. Apesar disso,
atuação, não havendo espaço para um processo permanecia interessada, porque identificava
criativo singular e autônomo. Senti-me até nessas ideias a possibilidade de contato com um
mesmo confortável nesse contexto e o conforto movimento interno que solicitava atenção e me
também logrou algumas recompensas, como o fazia acreditar que os modelos antes apreendidos
reconhecimento público e a identificação ilusória deixavam muitas lacunas em aberto.
com um sistema no qual me sentia familiarizada.
Essa dicotomia não é decerto nova e
Nesse modelo, o principal trabalho de remonta às próprias rupturas e transformações
preparação era o chamado trabalho de mesa, que o teatro moderno promoveu, mas gostaria
durante o qual, através de repetidas leituras de discutir o tema sob um ponto de vista

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mais singular, ou seja, do modo como essas com seus corpos e a se reconciliarem com o
tansformações aconteceram em minha trajetória. prazer e com a própria feminilidade esquecida.
Para isso, tomarei como referência um processo A causa da epidemia é atribuída à chegada
específico de criação cênica experimentado no de um estrangeiro, Eliguá (correlação com
LABORSATORI TEATRO2, do qual faço parte. Dioniso), oriundo de Mpambu. Uma a uma,
Mais precisamente o processo de composição todas as mulheres de Lorum são contagiadas pela
do espetáculo NJILAS - Dance e Esqueça suas epidemia, com exceção da governante. Decidida
Dores. Nesse contexto, buscarei também discutir a conter o movimento que ameaça seu domínio,
a dinâmica que observei entre as dimensões da Eledá ordena a prisão do estrangeiro, o que não
formação pessoal e da formação artística, como se mostra muito eficaz. Ao fim, ela própria não
mencionado anteriormente. resiste à força da epidemia e também se entrega
às danças e rituais, oportunidade na qual se
Njilas é um espetáculo produzido e surpreende com a redescoberta de sua própria
encenado pelo LABORSATORI, tendo como natureza.
principal inspiração a tragédia grega As Bacantes,
de Eurípedes, bem como a Epidemia de Dança3 Apresento o espetáculo NJILAS como
de 1518, ocorrida em Estrasburgo. A montagem índice de referência destas reflexões por se
estabelece ainda um entrecruzamento mítico entre tratar de uma experiência artística que surgiu,
Grécia e África, a partir do contexto multicultural para mim, com a mesma força com que a figura
brasileiro, mesclando ritual, teatro, dança e vida. mítica de Eliguá surge em Lorum, levando-me/
levando-as a redescobrir, pelo contato com o
O enredo de referência, criado em corpo, a singularidade subjetiva e instransferível
colaboração com a dramaturga Luciana Lyra, de cada um. Revelando novos caminhos, no que
se desenvolve em duas cidades imaginárias: diz respeito ao processo criativo em teatro-vida.
Mpambu, onde tudo é terra, e Lorum, onde
tudo é céu. Eledá (correlação com Penteu, de As Nesse contexto cênico, de expressão
Bacantes), uma mulher de traços marcadamente corporal, dança, canto e música, fui desafiada a
rígidos, governa Lorum, sob a égide da ordem construir a personagem Afoju (correlação com
e da razão, quando uma estranha epidemia Tirésias, de As Bacantes), uma velha sábia e cega,
de dança se apodera das mulheres da cidade, que, tomada pelo movimento de Eliguá, dança
levando-as a estabelecer uma relação diferenciada pelas ruas de Lorum em contato direto com a

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potência de seus desejos e de sua feminilidade historicamente repressora. Encorajadas pelo
adormecida. movimento feminista e pelas conquistas alcançadas
em prol dos direitos de igualdade entre gêneros,
Tal como todas as demais personagens, mulheres adquiriram e acumularam papéis na
Afoju também experimenta, no espetáculo, um “vida acadêmica, científica, política e de negócios”
momento de crise/transformação, operado pela (PEDRAZA, 2002, p. 57), assumindo também
epidemia e pelo contato com a figura mítica um aspecto titânico, necessário ao cumprimento
do deus que a propaga. Mas a construção desse de tais demandas, porém relegando o contato
processo de transformação não foi tarefa fácil, com a própria intuição. Entendo que o retorno
para ela não havia modelos. Foi necessário simbólico a Dioniso é essencial para a reconexão
que me dedicasse a um auto-estudo corporal e com o corpo e a emoção, assim como destaca
psicológico, com a capacidade de provocar igual Rafael López-Pedraza:
transformação em mim, como atriz. É nessa
Com a repressão do Dioniso emocional, aparece a
altura do percurso que surge o conflito que me
repressão do corpo. Ivan Linforth (1973, 327) diz que
trouxe à necessidade de aprofundamento nas o corpo é sempre dionisíaco; disso podemos deduzir
práticas que me induziram a abandonar conceitos que Dioniso sempre é o corpo. Isto significa abandonar

prévios, e a desenvolver o que entendo como uma o intelecto e estar no corpo, sentir o corpo. Para mim,
o tesouro mais valioso que se possa alcançar em
inteligência sensorial pautada na vivência do
psicoterapia é o corpo emocional e isto, obviamente,
desejo, adotando como método a identificação e está relacionado com Dioniso. Poderíamos dizer que
a permanência no estado de prazer. Romper com existe um Dioniso em nosso corpo, que está esperando
a fim de ser contatado e nos dar acesso à riqueza de
as regras impassíveis de Eledá e se entregar às
suas emoções e sentimentos. (Ibid, p. 40)
mãos do estrangeiro (Eliguá) significou também o
rompimento com a formação teatral que carregava
Como já mencionado, o espetáculo
e que engessava minha singularidade de atriz, para
estabelece um entrecruzamento mítico entre
desenvolver outras formas de expressão.
Grécia e África. Então, se a cultura greco-romana
se manifesta como fundo estrutural dramático
Sob a forma de Eliguá, a energia dionisíaca
do espetáculo e coloca Eliguá-Dioniso como
do espetáculo é, notadamente, a condutora
provocador de transmutações psicofísicas, o
dessa dupla experiência. O espetáculo discute
imaginário africano ocupa o primeiro plano,
o lugar do corpo, e principalmente o lugar do
também em estreita relação com o corpo. Assim,
corpo feminino, em meio a uma sociedade
para a criação da mitologia particular de cada

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personagem, a mítica africana atuou como base início discussões mais específicas sobre o trabalho
composicional para construção física e imagética do ator e de sua formação (ROUBINE, 1998,
dos atores, além de colaborar na composição dos p. 170). Constantin Stanislavski (1863-1938)
demais elementos de caracterização. é considerado uma das principais referências
no assunto, sendo seguido ou combatido por
Afoju, por sua vez, é resultado do encenadores posteriores, como Vsevolod
entrecruzamento artístico do personagem grego Meyerhold (1874-1940), Antonin Artaud (1896
Tirésias, o velho adivinho cego de As Bacantes, e – 1948), Jerzy Grotowski (1933 – 1999), Bertolt
os orixás africanos Oxalá e Nanã Burukê. Nesse Brecht (1898 – 1956), Peter Brook (1925 –), entre
sentido, é importante observar a particularidade outros. Antes disso, apenas Denis Diderot (1713
unificante desses três arquétipos, relativa à – 1784) teria elaborado algumas ideias acerca do
experiência da velhice. Remontamos aqui a trabalho específico do ator (DIDEROT, 2000),
discussão sobre o corpo na sociedade, porém não entretanto a partir de uma visão demasiado
se trata mais, somente, de um corpo feminino e teórica e sem indicativos claros sobre método e
suas cicatrizes, mas de um corpo feminino e idoso. técnica.
No século onde a beleza e a juventude se tornaram
sagradas, viver a experiência da velhice torna-se Dentre os autores citados acima, Grotowski
sacrilégio, tal como “sentir a força da depressão, é aquele com o qual encontrei maior afinidade.
dolorosamente, na repentina diminuição da Especialmente preocupado com a prática
atividade física, na lentidão dos movimentos e teatral, em si, ele criou e desenvolveu técnicas
na perda da flexibilidade” (PEDRAZA, p. 79). De voltadas ao abandono de expressões cristalizadas,
modo dialético, entretanto, é na terceira idade que buscando conduzir seus atores ao conhecido
o mesmo autor entrevê o momento mais oportuno estado de desvelamento diante o público. Seus
para a vivência do corpo dionisíaco. processos apontam para a quebra das resistências
acumuladas, de modo a nos colocar em contínuo
Os estudos sobre a formação do ator são estado de desafio. Deste modo, seria possível
ainda relativamente recentes. Como observa acesso a zonas desconhecidas de si mesmo: “O
Jean-Jacques Roubine, é praticamente a partir homem que realiza um ato de auto-revelação é,
do surgimento da figura do encenador, no final por assim dizer, o que estabelece contato consigo
do século XIX, que o teatro passa a ser pensado mesmo” (GROTOWSKI, 1992, p. 48).
de modo mais autônomo, quando também têm

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Por outro lado, a concepção de encenação LUME4, fundado oficialmente em 1985, Burnier
de Peter Brook mostra-se mais próxima da que passou a ser referência importante na criação e
venho experimentando no LABORSATORI, desenvolvimento de técnicas de representação,
assim como sua distinção em relação aos conceitos como importante legado, no que se refere aos
clássicos de direção parecem apontar diretamente processos que visam a quebra de resistências.
para as questões que venho discutindo, ou seja, Como em Grotowski e em Eugênio Barba,
entre os modelos de expressão pré-definidos e as também em Burnier o trabalho físico intenso é
perspectivas abertas, que permitem a redescoberta prerrogativa de trabalho:
da origem do teatro a cada dia. Nas palavras do
Uma vez ultrapassada essa fase (do esgotamento
próprio Brook:
físico), ele (o ator) estará em condições de reencontrar
um novo fluxo energético, uma organicidade rítmica
Os ensaios devem criar uma atmosfera na qual os atores
própria a seu corpo e à sua pessoa, diminuindo o lapso
sintam-se livres para mostrar tudo que puderem trazer
de tempo entre o impulso e ação. Trata-se, portanto, de
para a peça. Por isso é que nas primeiras fases de ensaio
deixar os impulsos “tomarem corpo”. Se eles existem
tudo está em aberto e não imponho absolutamente
em seu interior, devem agora ser dinamizados, a
nada. Em certo sentido, isto é diametralmente oposto
fim de assumirem uma forma que modele o corpo e
à técnica pela qual, no primeiro dia, o diretor faz uma
seus movimentos para estabelecer um novo tipo de
preleção sobre o que a peça significa e o modo pelo
comunicação. (BURNIER, 2001, p. 27)
qual pretende abordá-la. (BROOK, 1995, p. 20)

Numa linha distinta, mas também se


Com o avanço das pesquisas acadêmicas,
solidificando como referência na criação de
muitas reflexões vêm sendo realizadas nesse
procedimentos metodológicos claros destinados
campo, comumente traçando-se referências diretas
ao trabalho do ator, é possível mencionar o
e/ou indiretas com os principais encenadores
trabalho do encenador Antunes Filho. Junto ao
dos séculos XX e XXI. Dentre estas, grande é
CPT5 (1982 –), Antunes foi o responsável pelo
o número de pesquisas baseadas em processos
que Sebastião Milaré chamou de “uma das mais
práticos específicos, através dos quais teoria e
discutidas e festejadas manifestações do teatro
prática podem se encontrar.
brasileiro contemporâneo: o prêt-à-porter”
(MILARÉ, 2010, p. 337). Descrito como um
O ator, pesquisador e diretor brasileiro
exercício de naturalismo, mas não
Luís Otávio Burnier (1956 – 1995) é exemplo
recorrente de um artista que uniu suas pesquisas o naturalismo ainda praticado em nosso teatro, eco do
acadêmicas à prática artística. Com a criação do século XIX, mantenedor da emoção e do sentimento

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como ferramentas expressivas, (e sim) o recém nascido subjetividade é também objetiva e coletiva: as coisas
falso naturalismo, que permite ao ator desenvolver na são almadas (Hillman). (NUNES, 2005, p. 153)
cena grandes emoções, não se deixando contaminar
por elas (Ibid, p. 337).
De certa forma, essa perspectiva de
coisas almadas, nas palvras de Hillman, pode
No caso específico das experiências
ser aproximada da fórmula nietzscheana de
levantadas aqui, é fundamental observar também
correlação entre o apolíneo e o dionisíaco, ou
que o processo criativo do LABORSATORI, no
seja, entre perspectivas que apesar de aparentarem
qual venho trabalhando já há cerca de sete anos,
oposição, mostram-se capazes de interação. Como
tendo participado de sua própria fundação,
observou Renato Cohen, ainda em seus estudos
mantém-se como fonte primária e independente
cênicos sobre a linguagem da performance,
de reflexão, ainda que se utilize de procedimentos
similares ou se aproxime/afaste de diversos outros Não há também, como coloca Jacó Guinsburg, o
grupos e encenadores. Uma das bases formativas elemento dionisíaco sem o apolíneo. Uma “criação”
dionisíaca só se corporifica através de uma “forma”
do grupo é também o desenvolvimento de
apolínea. Um não existe sem o outro, como na imagem
processos que oportunizem ao ator o encontro do Tao não existe o yin sem o yang. É a união das
com sua expressão singular, numa relação antinomias. (COHEN, 1989, p. 63)

viva com seus entre-lugares. Nesse caso, uma


aproximação com o campo do imaginário Retomando as reflexões sobre o processo
mostra-se bastante importante, o que qualifica criativo do espetáculo, mesmo adotando
o trabalho do grupo de modo independente, metodologia semelhante à proposta por
pelo cruzamento singular que estabelece entre Brook, no que diz respeito ao desapego inicial
diferentes teorias e experiências. Como observa diante de ideias pré-definidas, o processo de
Nunes: construção de Afoju apontava também para
a necessidade de uma criação de partituras
O trabalho criativo de atuação necessita entrar em
corporais correlacionadas a imagens arquetípicas
contato com o fluxo ininterrupto do imaginal, do
devaneio, que vai levando as coisas (uma após a outra, bem definidas no imaginário, de modo a
porque é assim que o mundo físico está estruturado, estabelecer conexões sólidas com os referenciais
com tempo e espaço) a se fazerem por si sós, numa
mencionados. Deste modo, retornamos ao limen,
cadência de devires infinitos. Eu sou muitos (como
Deleuze e Guatarri também concluem) e não parece
agora como o espaço vazio no entre em que essa
mais haver razão para descrever rupturas entre personagem foi desenvolvida. Como um corredor
sujeito e objeto. Em tudo há um devir de sujeito e a que leva de um cômodo a outro da casa ou uma

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via que interliga duas esquinas, o corpo curvado uma mitopoética própria, já distante das fontes
de velha que abandona essa condição para dançar originais.
foi concebido durante experimentação corporal
de suas imagens míticas de referência: Tirésias, Nesse processo, que era não apenas
Nanã e Oxalá. pessoal como tambem coletivo, a transformação
psicofísica da personagem acompanhou uma
A primeira etapa desse processo de criação construção de partituras não apenas com base
se deu pela busca por imagens e representações nas referências imagéticas de cada personagem,
destas figuras que enfatizassem seu potencial mas também do contágio advindo da relação
físico. Depois, partimos para a corporificação das com a corporeidade das outras personagens –
mesmas, a partir de uma reprodução física fiel à Labalaba (signo da beleza), Frau (tempestade),
conformação original da figura, permanecendo Eledá (poder) e Elikan (servidão). Esse trânsito
nela por longos períodos, de modo a integrar colaborou como revelação de faces desconhecidas
profundamente a lógica corporal do mito. Esse de si mesma, como alteridades de si.
processo se repetiu continuamente por diferentes
períodos de tempo, para que essa compreensão Como o subtítulo do espetáculo sugere
interior emergisse, numa espécie de renascimento (Dance e Esqueça suas Dores), a dança de cada
individual do mito. personagem é tida como sintoma de sua própria
transformação. Assim, fui conduzida à criação
Na seqüência, a experiência com as imagens de uma dança sem qualquer proximidade
se mostrou mais potente quando passamos a com a noção habitual de coreografia, mas uma
explorar não a imagem em si, mas as construções dança como expressão espontânea de desejos
de transição entre uma imagem e outra, nas e prazeres através dos quais seria possível
elaborações corporais que emergiam a partir transgredir preceitos delineados pelo pensamento.
do movimento transitório entre uma e outra. A principio, tentei dominar o pensamento, mas
Experiência de um vazio pronto a ser preenchido essa escolha não se mostrou acertada, já que
com devaneios subjetivos. Pois foi nesse percurso travei uma batalha que se configurou em mais
de construção e desconstrução, no limiar das resistência para ceder aos impulsos. Aceitar o
fronteiras entre cada figura, que emergiram material racional, portanto, fez escorrer pelo
posturas e deslocamentos que constituíram a mesmo corpo resistente, diferentes qualidades
base corporal da personagem, conferirindo-lhe de tensão.

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Diria que essa experiência de construção complexidade e o fenômeno em toda a sua escala
da própria dança de transformação da mediando o sujeito expressante no bojo da cena”
personagem, que era também minha dança (COHEN, 1998, p. 26).
de transfomração criativa, constituiu um dos
cernes mais importantes do proceso, mantendo- Por fim, essa abertura criativa para a
se viva até hoje, enquanto processo contínuo de reconstrução de determinadas partituras conforme
construção, desconstrução e reconstrução. Trata- o estado psicofísico de cada momento de atuação,
se de uma experiência de jogar com a própria mostrou-se importante elemento no processo
efemeridade, visto que sua execução, a cada formativo, porque define a formação não como
sessão de espetáculo, está diretamente ligada ao algo que se inicia e termina, mas como uma meta
estado psicofísico do momento da atuação. O que sempre em movimento. Aqui nos aproximamos.
não invalida o processo anterior de criação, ao E tudo isso não seria possível sem a conexão
contrário, evidencia sua importância, no diálogo direta entre mito e cena, técnica e contexto. Essa
fundamental entre atriz e diretor. Como diz perspectiva foi muito bem delineada por Cohen,
Brook, quando atento a isso, você “verá que um funcionando como referência fundamental ao
diretor compreensivo, mas rigoroso pode ajudá- trabalho que empreendi:
lo a distinguir entre intuições que conduzem à
Particularmente, acrescento um outro operador – a
verdade e sensações autocomplacentes” (BROOK,
operação do mythos – que vai dar corporeidade,
1995, p. 36). mitificação e enlevo à criação espetacular. Estabelecendo
arques de contorno, mitologias pessoais ao performer,

As experiências descritas acima ilustram o contato com o grande texto da cultura inseminando
memória e mito, a operação mitologizadora organiza o
parte da investigação teórico-prática que
topos psíquico, sensório e paracognitivo do espetáculo,
geraram a personagem. Identifico-os como sendo criando planos de imanência. (Ibid, p. XXVIII)
apenas parte, visto que outros aspectos também
participaram e continuam em processo, de modo Aqui passeamos por diversas experiências
tão essencial quanto os primeiros, incluindo e autores, num transe teoria-prática diversificado.
aqueles que se formulam no ato da interatividade Mas se colocadas frente a frente as diferentes
com a “voz do receptor-autor”, que interfere e linhas de pensamento que suscitam o processo
cria, lavrando terreno fértil para um movimento de criação de uma atriz, de forma inerente
de constante experimentação, incorporando estaremos revelando os pontos de contato e
“o acaso, a descontinuidade, a assimetria, a de distanciamento com a formação artística e

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A rteda DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i2.50157
revista

Cen A
pessoal da mesma. Na experiência de montagem sobre o próprio corpo, o que levou à morte (por
exaustão) um número significativo de pessoas.
do espetáculo analisado nesse artigo, declinei-
Várias foram as especulações acerca das causas do
me ante o conflito vigente entre a proposta de fenômeno, uma delas a crença de que se tratava de
encenação que, em suas provocações se mostrava uma maldição. Esse episódio possui documentação
incompatível com minhas possibilidades. escassa, havendo apenas algumas fontes bibliográficas
disponíveis, como o livro de autoria de John Waller,
Portanto foi necessário trabalhar em função do
A Time to Dance a Time To Die: the extraordinary
nascimento da personagem sincronicamente ao story of the dancing plague of 1518 (WALLER, 2009).
(re)nascimento da atriz. No espetáculo, fazemos um entrelaçamento entre
a história de Estrasburgo, o mito de Dioniso e o
contexto das religiões afro-brasileiras, num Brasil
cristão.

N
4
Núcleo interdisciplinar de pesquisas teatrais, da
UNICAMP.

OTAS 5
Centro de Pesquisas Teatrais.
1
Aqui, o substantivo feminino atriz será utilizado
frequentemente e com sentido amplo, podendo
se referir também ao trabalho do ator, de forma
indiferenciada. O aritgo foi escrito a duas mãos, mas

R
a primeira autora é sujeito do discurso, de modo que
a opção pelo substantivo feminino considera esse
dado, bem como constitui uma opção ideológica
que se conecta a aspectos da pesquisa que serão EFERÊNCIAS
desenvolvidos ao longo do texto.
BROOK, Peter. O Ponto de Mudança: quarenta
2
LABROSATORI – Núcleo Multidisciplinar de anos de experiências teatrais. Rio de Janeiro:
Pesquisa nas Artes da Cena, coordenado pelo Prof. Civilização Brasileira, 1995.
Dr. Alexndre Silva Nunes, da Universidade Federal
de Goiás. BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da
técnica à representação. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 2001.
3
A Epidemia de Dança foi um episódio ocorrido
no ano de 1518 em Estrasburgo, na França, na COHEN, Renato. Performance como linguagem:
época ainda sob o domínio do Império Romano- criação de um tempo-espaço de experimentação.
Germânico. Segundo relatos, uma mulher conhecida São Paulo: Perspectiva, 1989.
como Frau Troffea pôs-se a dançar freneticamente e,
um mês depois, várias pessoas foram tomadas por COHEN, Renato. Work in Progress na Cena
essa espécie de dança que não permitia o controle Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1998.

Renata Alessandra Weber e Alexandre Silva Nunes - Trânsitos e Percursos de Arte-Vida


Revista Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 2, p. 108-119, jul-dez/2017.
Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 118
A
ISSN 2358-6060
A rteda DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i2.50157
revista

Cen A
DIDEROT, Denis. Paradoxo sobre o comediante.
Lisboa: Guimarães Editores, 2000. * RENATA ALESSANDRA WEBER é mestranda
em Artes Cênicas pela Universidade Federal de
GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro Uberlândia - UFU. É Licenciada em Artes pelo
pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Centro Universitário Filadélfia - Unifil (2015),
1992. Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade
Federal de Goiás - UFG (2011), Técnica em
LÓPEZ-PEDRAZA, Rafael. Dioniso no exílio: Artes Dramáticas - Ator pelo Serviço Nacional
sobre a repressão da emoção e do corpo. São de Aprendizagem Comercial - SENAC/MT
Paulo: Paulus, 2002. (2005) e professora substituta nos cursos de
Teatro e Direção de arte da Escola de Música
MILARÉ, Sebastião. Hierofania: o teatro e Artes Cênicas (EMAC) na Universidade
segundo Antunes Filho. São Paulo: Edições SESC Federal de Goiás - UFG. É atriz e pesquisadora
SP, 2010. do LABORSATORI - Núcleo Multidisciplinar
de Pesquisa nas Artes da Cena. Foi atriz e
NUNES, Alexandre Silva. ATOR & ALMA: A preparadora de elenco na Cia. de teatro Sala 3,
Morte como Método. Dissertação (Mestrado em de 2006 a início de 2016. Foi atriz e produtora do
Artes) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Grupo Experimental de Teatro - GET, de 2012 a
de Campinas, Campinas, 2005. final de 2015.

SCHECHNER, Richard. Performance e **ALEANDRE SILVA NUNES é Doutor em Artes


Antropologia de Richard Schechner. Seleção Cênicas, pela Universidade Federal da Bahia -
de ensaios organizada por Zeca Ligiéro. Rio de UFBA (2010), Mestre em Artes pela Universidade
Janeiro: Mauad X, 2012. Estadual de Campinas - UNICAMP (2005) e
Licenciado em Artes Cênicas, pela Universidade
WALLER, John. A Time to Dance a Time To Federal de Pernambuco (2000). É Professor
Die: the extraordinary story of the dancing plague Adjunto da Universidade Federal de Goiás
of 1518. Londres: Icon Books, 2009. (UFG), na área de Artes da Cena, e coordena
o curso de Direção de Arte. É editor-chefe da

 revista Arte da Cena e líder do grupo de pesquisa
ÍMAN - Imagem, Mito e Imaginário nas Artes
da Cena. Coordena o LABORSATORI - Núcleo
Multidisciplinar de Pesquisa nas Artes da Cena.
É autor do livro ATOR, SATOR, SATORI - Labor
e Torpor na Arte de Personificar, publicado pela
Editora da UFG.

Artigo submetido em: 08/11/2017


Aprovado em: 26/12/2017

Renata Alessandra Weber e Alexandre Silva Nunes - Trânsitos e Percursos de Arte-Vida


Revista Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 2, p. 108-119, jul-dez/2017.
Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 119

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