Sei sulla pagina 1di 9

ARTIGO: RELER OS PROFETAS

SOARES, Sebastião Armando Gameleira. Reler os Profetas: notas sobre a releitura da


Profecia Bíblica. In: Revista Estudos Bíblicos 4: Profetas: Ontem e Hoje. Petrópolis:
Vozes, set/1990. p. 21-32.

O Profeta é o homem da crise

Só se entende o Profeta a partir de sua inserção na crise histórica. A atitude do


rei é a de quem pretende sobrepor-se à crise, tirar proveito dela, minimizá-la, encobrí-
la, considerá-la mera circunstância conjuntural, fazer com que o povo não perceba sua
gravidade; o sábio tende a encará-la com irônica superioridade; o sacerdote busca
canalizá-la na direção do curso do status quo, tenta justificá-la ideologicamente,
mistificá-la fazendo apelo a poderes sobrenaturais incontroláveis e até chega, certas
vezes, a jogá-la sobre os ombros do povo, culpabilizando-o (as religiões são sempre
tentadas a explorar o sentimento de culpa, o que, em última análise, só enfraquece o
povo e só aproveita aos poderosos!).

O Profeta, ao contrário, encara a crise frontalmente, enxerga-a de frente,


reconhece-a, assume-a e agrava-a porque se faz seu porta-voz. Quando outros estão
interessados em ocultá-la e encobrí-la, sua tarefa é desmascará-la e desvelá-la. Seu
olhar é tão límpido e tão fixo que a crise começa a refletir-se e espelhar-se em seus
próprios olhos e sua existência mesma se torna crítica, sua simples presença instaura
a krisis, agrava o julgamento, o discernimento, a divisão. Ele vai sendo visto como
homem perigoso, indesejável «sinal de contradição», «o homem da calamidade» (cf.
1Rs 22,1-28; 18,16-18; Lc 2,34).

Se atentarmos bem, os profetas de Israel se situam no centro da crise. Crise


purificadora, calamidade que não exclui, antes pelo contrário, a esperança. São eles
homens que têm a coragem de não iludir, de não se desviar pelos caminhos da
mentira que é o caminho dos ídolos, mas indicar a densidade da poeira na réstia
luminosa do meio-dia (cf. Jr 23,9-32).

Samuel é o homem da crise da conquista. Vão-se quebrando os antigos


valores e uma nova situação econômica, política e social vai exigindo novas estruturas
e novas formulações culturais. E chega-se a um momento muito grave: quando, a bem
da sobrevivência do povo, ameaçado de extermínio pelos filisteus, põem-se em risco
os fundamentos da própria fé — a soberania de Yahweh. Eis que o Profeta aparece
como o homem lúcido que, do seio da crise, faz ver o limite onde esbarram as
soluções humanas, a ambiguidade e a «impossibilidade» radical de qualquer projeto.
Era preciso uma mudança de estruturas, escolher um rei como condição de
sobrevivência. Só que esta solução seria, ela mesma, o germe da tragédia e da morte
do povo. Na verdade, reconhecer um poder sobre o povo, aos olhos de Samuel, era
abrir caminho para a opressão (cf. l Sm 8). E nada mais contrário à fé javista (cf. jz 9;
Dt 17,14-20). Só Yahweh é Rei. E deste fundamental artigo de fé nasce a luta pela
liberdade e a perene vigilância subversiva sobre o poder (cf. Dt 5,6-7).
Elias bebe até o fim o cálice da perseguição num tempo que hoje diríamos de
«entreguismo»: tempo de imposição dos modelos fenícios de convivência social.1 A
própria presença do Profeta, de per si, já agrava a crise porque lhe desmascara as
verdadeiras causas (cf. 1Rs 18,17).

Amós vive o período do «milagre econômico» israelita, no século VIII aC, e tem
a coragem de denunciar-lhe a podridão subterrânea. No Reino de Samaria é capaz de
ver por dentro dos palácios, por debaixo dos leitos de marfim, no fundo dos copos de
vinho dos banquetes dos ricos: «violência e rapina». E sua palavra perturba o rei, a
alta sociedade, os sacerdotes... sua presença de homem livre passando por entre
homens vinculados ao status quo é profundamente perturbadora e ofensiva. É crítica
e, por isso mesmo, insuportável: subversiva (cf. Am 7,10-17).

E nem é preciso falar de Oséias, o marido dilacerado e em cuja própria vida


familiar se desenrola o drama da infidelidade e da prostituição do povo que se deixa
arrastar pelos valores e estilos de vida da civilização dos cananeus; nem de Jeremias,
este, por excelência, o homem da crise (cf. Jr 15,10).

Finalmente, gostaria de lembrar que os maiores profetas hebreus surgem todos


naquele arco de tempo que se abre e se fecha em torno das duas grandes crises da
nação: a queda do Reino do Norte sob os Assírios (Amós, Oséias, Miquéias, Isaías), e
a queda de Jerusalém sob o poder dos Babilônios (Jeremias, Sofonias, Ezequiel,
Dêutero-Isaías) e sob a dominação estrangeira (Profetas pós-exílicos).

O Profeta assume a luta política

Só se entende o Profeta a partir de sua inserção na política. Estamos


demasiadamente e perigosamente habituados a uma visão religiosa de nossa fé,
como se o Cristianismo fosse simplesmente uma religião ao lado das outras. É certo
que pode assumir formas religiosas, mas é ele, antes de tudo, uma interpelação
radical no coração da vida humana, testemunha da Palavra. Acontece, porém,
frequentemente, reduzirmos os profetas a reformadores religiosos, esquecidos de que
o tom mais forte de sua missão é de caráter político. É só quando nos situamos no
horizonte político que temos chance de alcançá-los: o horizonte das lutas pela
construção do povo. E a questão do Poder está no centro mesmo dessa construção.
Daí por que toda a vida dos profetas — que gira em torno dos acontecimentos
políticos do seu tempo e é tomada de posição no contexto das causas públicas — está
marcada pelo conflito com o poder estabelecido, de reis e de sacerdotes.

Diz-nos o exegeta judeu André Neher: «Durante os séculos que se seguiram à


instalação de Israel em Canaã, o poder político esteve nas mãos dos profetas. Os
juízes não são outra coisa; são profetas e isto é dito explicitamente de alguns deles.
Quando, a partir do século XI, o regime passa à realeza, são os profetas os árbitros do
poder. Há uma linha contínua que parte das confrarias proféticas da época de Samuel,

1
Cf. Neste caderno o artigo de Marcelo Augusto Veloso da Silva, Elias — o Juízo sobre a
Monarquia ou a Desfeita de BaaI.
o último dos juizes, e vai até Elias e Eliseu (século IX). As grandes crises políticas, o
estabelecimento das dinastias de Saul e Davi, o cisma após a morte de Salomão, a
sucessiva derrubada das dinastias no Reino do Norte, tudo isso tem sua origem nos
círculos proféticos onde se acham associados homens inspirados de envergadura
bastante medíocre e certas personalidades particularmente fortes — Samuel, Gad,
Nata, Aias, Elias, Eliseu, Miquéias filho de Jemla».2

Samuel vive o momento decisivo da luta para manter a posse da terra contra o
projeto «imperialista» dos filisteus. Tomou partido contra a instituição da monarquia e
teve de ceder à pressão dos fatos. Concordou com a aclamação de Saul e, em
seguida, com ele rompeu. É o grande símbolo desse momento de transição política
em Israel.

Natã opta politicamente por Salomão contra Adonias, outro filho de Davi (cf.
1Rs 1) e tem a coragem de, mesmo sendo assessor da corte, enfrentar o rei
denunciando-lhe a prepotência (cf. 2Sm 12) e opondo-se, em nome da memória
popular, à construção do santuário real em Jerusalém (cf. 2Sm 7).

Elias, ao reiniciar sua marcha missionária a partir do Horeb, o monte de


Moisés, recebe de seu Deus uma tarefa de caráter nitidamente político: deverá intervir
decisivamente na derrubada de dois reis (cf. 1Rs 19,15-17). E isto após toda a
atividade que empreendera na liderança da oposição a Acab e Jezabel.

Eliseu. Que dizer deste homem, comprometido até os cabelos com o golpe de
estado levado a efeito pelo general Jeu, e cuja influência sobe até o reino da Síria? (cf.
2Rs 9; 8,7-15).

Amós enfrenta de cara a política, hoje diríamos, «desenvolvimentista»,


«elitista» e «excludente» do rei Jeroboão II. Investiu contra a classe dominante da
Samaria. Viu-se expulso do território do reino como subversivo e agitador, denunciado
por um clérigo de alta posição.

Isaías vive a grande crise da ascensão dos assírios e, em nome de Yahweh,


ergue a voz para denunciar os erros das tomadas de posição do governo. Entra e sai
do palácio do rei emitindo constantemente opiniões de «oposição»; denuncia as
alianças e os tratados de antemão fracassados. E basta pensar na série de oráculos
contra as várias nações, denúncia da opressão e da soberba política, anúncio da
desgraça e da queda! (cf. Is 13-23).

Jeremias se joga no meio do caldeirão fervente (cf. Jr 1,13-14) da crise que


antecede a queda de Jerusalém. É consultado frequentemente por um monarca
hesitante entre dois partidos opostos. Toma partido contra a ala dominante no
gabinete de governo. Denuncia a política de resistência à Babilônia como equivocada.
É ferozmente perseguido. Na luta desesperada dos judeus para impedirem a vitória
babilônica, toma uma decisão extrema: aconselha os combatentes a desertar. É
considerado traidor da pátria e tido, pelos babilônios, como colaborador (cf. Jr 39).

2
L’Essence du Prophétisme, Paris, 1972, p. 13.
Finalmente foi uma das vítimas do golpe de estado que se tramou contra o poder
babilônico (cf. Jr 41-43).

O Profeta faz opção pelos pobres

Só se entende o Profeta a partir de sua parcialidade em favor dos oprimidos.


Metem-se em política tomando o partido dos pobres. Optam, diríamos hoje, pela
classe proletária. Fazem, na verdade, uma «opção de classe», a exemplo do seu Deus
(cf. Dt 10,16-19).

Por isso, suas palavras vão sempre soar a certos ouvidos como
verdadeiramente escandalosas. Chamar as excelentíssimas senhoras da alta
sociedade de «vacas bem nutridas» (cf. Am 4,1) assenta a um homem de Deus?
Parece coisa de comunista panfletário e fanático. E, no entanto, Amós teve essa
ousadia. Avisar, inflamado de ira contra o rei Acab, ira que é a outra face do amor
apaixonado ao pobre Nabot, avisar que os cachorros iriam lamber o sangue do rei e
devorar as carnes da rainha, e fazê-lo no tom de quem roga uma praga merecida, será
que é comportamento de santo? É, para surpresa de nossas covardes delicadezas e
de nosso interclassismo cúmplice dos poderosos. É do santo profeta Elias (cf. 1Rs
21,17-24).

Isaías anuncia sem rodeios a sorte que aguarda os poderosos no dia da


matança: «Ai de vós que ajuntais casa com casa e que amontoais campo sobre
campo, até que não haja mais lugar e sejais os únicos proprietários do país! A nobreza
será atenazada pela fome e muitos secarão de sede... Deus se mostrará santo
fazendo justiça... a raiz deles se afundará na podridão e sua flor voará como a poeira»
(cf. Is 5,8-24). E no capítulo 3, v. 16-26, a patética descrição da sorte das grandes
damas da alta sociedade: em lugar de perfumes, podridão; em lugar de cinto, uma
corda; em vez de cabelos encaracolados, uma cabeça raspada; cicatriz, em vez de
beleza...

Zacarias, guardando a «memória dos pobres», projeta a esperança do povo


num rei «justo e vitorioso, pobre, montadosobre um jumento» (9,9), montaria dos
pobres e que contrasta com a montaria tradicional do rei, o cavalo, no qual repousa a
força de guerra. Por isso, serão eliminados os carros e os cavalos e o arco de guerra.
A paz será anunciada às nações. É a mesma linha que já vem expressa, antes, pelo
profeta Sofonias, para quem o país seria possuído por «um povo pobre e humilde»
(3,12). É esta a fonte de alegria da filha de Sião, o motivo dos seus gritos de júbilo (cf.
Sf 3,14; Zc 9,9).

Jesus terá a coragem de chamar o rei Herodes de «raposa», imagem do


agressor covarde (Lc 13,31-33). Denuncia os dirigentes da sociedade de seu tempo —
sacerdotes, escribas, fariseus, saduceus (cf. Mt 23). E desmascara a violência sobre a
qual se edificam os privilégios da classe dominante: «covil de ladrões» (Mc 11,15-19),
devoradores das casas dos pobres (cf. Mc 12,38-40), assassinos dos que ousam
levantar a voz para condenar a podridão do sistema (cf. Mc 6,17-29; Mt 23,33-36; Lc
3,19-20).
A experiência do Deus dos pobres

Só se entende o Profeta a partir de sua experiência pessoal de uma


indissolúvel aliança da causa de Deus com a causa dos necessitados.

São homens de uma profunda experiência pessoal de Deus. É este um dos


traços mais característicos do profetismo bíblico. Podem mesmo ser chamados de
místicos. Sua vida se passa num movimento de íntima comunhão com o mistério (cf.
Jr 1,5; Is 49,1; Jr 20,7). Não se pertencem, são «arrebatados pelo Espírito» (cf. Ez 2,2;
3,12-14, sentem-se possuídos por dentro e irresistivelmente impelidos a falar em Seu
Nome (cf. Ez 3,1-3; Is 6,5-8; Jr 1,9; 20,9). Por isso são poetas e poetas do Amor —
Oséias, Isaías, Jeremias...

Mas de que Deus se trata? Não, simplesmente, de um «deus geral» que


mantém a ordem do mundo e preside ao ritmo do tempo e ao suceder-se das
estações. E sim do Deus dos Patriarcas, peregrinos na esperança de possuírem a
Terra e de se multiplicarem num povo numeroso; do Deus de Moisés, da fuga do
Egito, da vitória sobre a dureza opressiva do poder do Faraó; do Deus da Aliança,
instância legitimadora de um novo estilo de convivência social, fundadora da unidade
de um povo livre e fraterno; do Deus de Josué, da ocupação e da posse da terra; do
Deus que, uma vez aceito pela fé das tribos do Norte da Palestina, levou-as à rebelião,
a quebrarem os vínculos da opressão, a deporem o jugo servil imposto pelos príncipes
das cidades cananéias, especialmente das cidades costeiras, à serviço do
imperialismo egípcio; do Deus dos juízes, força que os levantava para o combate em
defesa da independência e da liberdade do povo.

O Deus contemplado e experimentado pelos profetas é o Deus da História. Não


apenas no sentido de que preside soberanamente aos acontecimentos e tem a
respeito deles um desígnio. Trata-se de muito mais. É o Deus que se manifesta
através dos acontecimentos como a inapagável e invencível labareda alimentadora da
liberdade e da luta por sua conquista ou por sua preservação. Pelos fatos, revela-se
Redentor, quer dizer, libertador, justiceiro e vingador dos oprimidos e necessitados.3
Tem, assim, atitudes e comportamentos característicos. Entra na luta, assume seus
riscos e suas ambiguidades, apaixona-se, toma partido, levanta os humilhados e
oprimidos e derruba os orgulhosos e opressores (cf. Lc 1,46-55), castiga, mata até.
Não tem vergonha de ser o Deus de um povo, com tudo o que isto significa num
processo de construção histórica. Deixa-se chamar de «Deus de Abraão, de Isaac e
de Jacó» (cf. Mc 12,26)... em que pese a ambiguidade contida nesses nomes tão
humanamente parecidos com o nosso pecado!

Para os profetas é uma coisa só pensar em Yahweh e pensar na causa dos


pobres. Não é possível proceder de outra maneira, pois é por eles que Yahweh se
define: «Eu Yahweh teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão» (Dt
5,6). A libertação do povo é o sinal para o reconhecimento de Deus (cf. Is 49,23). Não

3
Cf. Elza Tamez, A Bíblia dos Oprimidos (A Opressão na Teologia Bíblica). São Paulo, Ed.
Paulínas 1980; José Porfírio Miranda. Marx y Ia Biblia, Salamanca, Ed. Sígueme, 1972; Idem,
El ser y el Mesias, Salamanca, Ed. Sígueme, 1973.
é Ele, na verdade, «o pai dos órfãos e protetor das viúvas» (SI 67,6; cf. Ex 22,23-24;
Lv 25,17; Ml 3,5)? Daí por que Jesus e Paulo vão dizer sem rodeios que o segundo
mandamento já está contido no primeiro, interpretando, assim, o Decálogo, segundo
uma visão na qual Deus não aliena do próximo, mas, ao contrário, e afirmado como
fundamento de novas relações inter-humanas: «Toda a Lei está contida numa só
palavra: Amarás a teu próximo como a ti mesmo» (Gl 5,14; cf. Mc 12,28-34). Aliás,
esta será a experiência dos santos: Francisco de Assis, João Bosco, Vicente de Paulo,
Marcelino Champagnat, Paola Frassinetti... Para todos eles, experimentar Deus é
simultaneamente abraçar a causa dos necessitados. Os dois termos se implicam
irresistivelmente (cf. Mt 25,31-46).

Há um tema profético que revela a radicalidade da identificação de Deus com


os oprimidos, é o do conhecimento de Deus:

«Eu quero a solidariedade e não os sacrifícios


O conhecimento de Deus mais que os holocaustos» (Os 6,6)
«Ai daquele que construiu para si esse palácio com meios desonestos
e seus salões violando a equidade.
Ai daquele que faz seu próximo trabalhar sem paga e lhe
recusa o salário! (...)
Também teu pai comia e bebia, mas praticava a justiça (...)
Julgava a causa do pobre e do infeliz (...)
Não é isto conhecer-Me?
Palavra de Yahweh» (Jr 22,13-16).
«Não se fará mal nem dano em todo o meu monte santo
Porque a terra estará cheia do conhecimento de Yahweh
como as águas recobrem o fundo do mar» (Is 11,1-9).

É preciso voltar ao deserto

Só se entende o Profeta se se tem em conta a «negação da civilização».

Não é que sejam reacionários, apegados ao passado, refratários ao progresso.


É que têm nítida consciência de que toda obra humana está «originalmente» — na
origem, na raiz — marcada pelo pecado, pela ambiguidade, pela afirmação da vontade
de poder, pelo orgulho, pelo interesse, pela opressão... Por isso, continuamente, urge
discernir, julgar, destruir e recomeçar.

A cidade (civitas) é, por excelência, expressão e símbolo da obra humana, com


suas portas, seus palácios, suas torres, seus templos. São centros de decisão e de
poder e para ela são carreados os produtos da terra, os suores dos camponeses, os
frutos das conquistas. Nela a ostentação se faz zombaria da miséria dos necessitados.
Contra elas investem os profetas a denunciar o quanto o cimento que rejunta suas
pedras está misturado com sangue, o quanto o vinho que se bebe em suas festas é
extraído dos pobres «pisados» e «esmagados» como uvas no lagar (cf. Am 4,1).
Sucessivamente anunciam a destruição das cidades, centros da convivência civil, da
civilização (cf. Am 1 e 2; Is 13s). Aliás, pela Bíblia toda, do Gênesis ao Apocalipse,
passa uma corrente agudamente crítica em relação à Cidade, desde Caim, assassino,
«que edificou uma cidade», até Babilónia, símbolo maior da opressão (cf. Gn 4,17;
11,1-9; Is 46 a 47; Ap 17 a 19).4

Constantemente estão a repetir o convite a voltar ao Deserto. Quer dizer, a


negar a obra construída ou aceitar obedientemente sua destruição, a enfrentar o risco
da morte, experimentar uma nova solidariedade, necessária nas situações extremas
de perigo comum, a ter a coragem de recomeçar a marcha rumo a uma nova
construção, com fé, e, ao mesmo tempo, com a consciência da relatividade,
ambiguidade, contaminação de todas as obras humanas.

O tema do Deserto é intimamente ligado ao ideal nômade mantido sempre vivo


em Israel pelos profetas, pelos nazireus, pelos levitas, peios recabitas — todos eles
componentes da corrente dos movimentos de contestação ao poder, à corrupção, ao
enfraquecimento dos valores de Liberdade, originais do povo de Deus (cf. Am 2,11-
12). A recusa a valorizar o espaço é essencialmente abertura à História,
desinstalação, marcha permanente em busca do Novo e afirmação do ideal original da
Aliança: sob o ideal nômade, levantava-se a contestação à civilização agrária e
comercial fenicio-cananéia a que os judeus tentavam de alguma maneira adaptar-se.
Ora, a sociedade cananéia, organizada em cidades e baseada na propriedade da
terra, era fortemente marcada pelas desigualdades e pela opressão. Inteiramente
outro era o ideal da Aliança. «A comunidade hebraica era, a partir do Êxodo, no
deserto, uma sociedade de homens libertos. Não conhecia nem hierarquias, nem
privilégios. Homens nivelados por sua recente escravidão estavam aí diante de Deus,
prontos a aceitar tornarem-se seu parceiro. A cada um deles, em particular, como ao
grupo no seu conjunto, Deus podia sempre recordar o estado de escravidão de que
mal se tinham livrado. E é com essa sociedade de párias que se estabelece a aliança.
Para que a Aliança pudesse conservar esse seu caráter, era necessário que na
sociedade hebraica os pobres estivessem constantemente em relação com Deus».5
Os levitas (cf. Dt 10,8-9; 18,1-8; 26,11), os recabitas (cf. Jr 35) e também os profetas
são as testemunhas de que os problemas sociais têm a ver com o que constitui o
coração mesmo da Aliança de Deus. A negação da Cidade, a volta ao Deserto, o ideal
nômade são, em última análise, o julgamento dos pobres sobre a Civilização, são a
denúncia do preço da construção na voz de suas vitimas.

Não é mero acaso que o Evangelho se abra com a figura de João Batïsta no
Deserto, convidando todos a deixarem as cidades e a caminharem em busca de
recomeçar. Como não é por acaso que o núcleo de sua pregação seja o julgamento
que pesa sobre uma sociedade fundada na desigualdade e presidida por um poder
que tem a imagem da serpente venenosa (cf. Mt 3,7) e tenta abafar no calabouço a
voz que a desmascara (cf. Lc 3,1-2.19-20): converter-se é dividir o pão e os vestidos,
acolher o anúncio de que «montanhas e vales estão para ser nivelados» (cf. Lc 3,5.8-
14). Seu projeto é proclamar a partir do Deserto o «Ano da Remissão das Dívidas» (cf.
Mc 1,4; Lv 25,8-55).6

4
Cf. Joseph Comblin, Théologie de Ia Ville, Ed. Universitaires, Paris, 1968.
5
André Neher, op. cit., p. 158.
6
A palavra empregada pelo Evangelho para dizer remissão é, em grego, àphesis, termo que,
na Bíblia dos LXX, serve de maneira constante para designar o Ano do Jubileu, é o «Ano da
Os acontecimentos fundadores do Cristianismo têm de ser vistos na
continuidade da Profecia bíblica, na continuidade de sua Palavra de contestação e de
anúncio do Novo (cf. Mc 1,2-9: o aparecimento de João e de Jesus se dá «conforme
está escrito» nos profetas Malaquias e Isaías).

O Profeta denuncia a alienação religiosa

Só se pode entender o Profeta como denúncia da alienação religiosa.

Se, como vimos, para eles a causa de Deus é a causa dos necessitados, dos
pobres e oprimidos, se conhecer a Deus não é contemplá-lo no vazio de nossa
imaginação, mas experimentá-lo em nossa relação de solidariedade (hesed) com o
outro, se é assim, então as religiões idealistas e ritualistas devem ser denunciadas
como idolátricas, desviantes, ópio e alienação das massas. Bem antes de Karl Marx,
são os profetas os arautos da denúncia da alienação religiosa, os grandes críticos que
têm a coragem de negar os deuses. O «ateísmo» é dimensão interna da Profecia,
como, aliás, de toda sã Teologia («Teologia negativa»). Não foram os cristãos
chamados «ateus» no Império Romano? A fé bíblica é libertação do homem mediante
a negação de todos os deuses, para que o homem permaneça em busca de Deus,
movido pela atração de uma irresistível saudade. «Ninguém jamais viu a Deus» (Jo
1,18). Seu Nome Ele se recusa a revelar. Garante somente que deixará experimentar
com a Presença Libertadora que está aí (Yahweh - Eu Sou, Cf. Ex 3-12-18), como
Dinamismo, vendaval impetuodo que não se sabe donde vem, nem para onde vai
arrasta os seus (cf. Jo 3,8)

Toda a Profecia está pervadida pelo combate à idolatria. O ídolo é a expressão


suprema de uma religião projetiva, fundada na imagem fabricada e, por isso mesmo,
manipulável, retrato de seu artífice (cf. Is 40,18-20). Não pode salvar, pois já é reflexo
da busca de salvação daquele que o faz. É obra humana, diante da qual o homem se
dobra para adorar — «homo incurvatus», a ela se oferece e se imola, isto é, adora e
se imola a si mesmo (cf. Is 44,7-20; 46,1-13). É a obra humana em busca de justificar-
se a si mesma. É por isso que o ídolo preside a um sistema de opressão e de morte,
pois na idolatria se está num círculo fechado, infantil, narcisista e, por isso, de
autodestruição, sem abertura ao Outro. Ora, é a abertura e a acolhida da diferença
que fecunda o ser e lhe possibilita o crescimento.7

A fé no Deus vivo implica em abertura à História, ao outro, em não parar diante


do objeto fixo e manipulável, ern escutar, na obediência, um chamado continuamente
crítico e deslegitimador de nossas obras. A fé no Deus vivo nos abre, nos desinstala,
nos devolve à Vida em toda a riqueza de seus apelos sempre novos. A fé no Deus

Remissão», ideia que nos primeiros tempos da ocupação da Terra, quand a estrutura social
não se baseava na apropriação privada e, consequentemente, não havia classes sociais.
7
Cf. Gerhard Von Rad, Teologia del Antigno Testamento, I. Teologia de Ias Tradiciones
Históricas de Israel, Salamanca, Ed. Sígueme, 1972 (edição brasileira da ASTE); Vários, A
Luta dos Deuses (Os ídolos da Opressão e a busca do Deus Libertador), São Paulo, Ed.
Paulinas, 1982; Franz Hïnkelammert, As Armas Ideológicas da Morte, São Paulo, Ed. Paulinas,
1983.
vivo é obediente escuta do Mistério envolvente da Vida, é engajamento e luta para
resgatar a Existência e redimi-la. Por isso nos diz a Escritura que só há uma imagem
em que Ele se deixa contemplar, aquela que não é produto do homem, mas o próprio
homem feito por Deus (cf. Gn 1,26s).

A maneira de falar da Bíblia — e no Profetismo isso tem clareza especial —


manifesta a consciência de uma relação com Deus em que não é sobretudo o homem
que O invoca, mas Deus que o convoca para Sua Obra. Daí por que a Profecia está
nos antípodas da religião-força de integração social, função do sistema estabelecido,
legitimação ideológica das classes dominantes. O engajamento com o Deus vivo é
radicalmente desalienante, é devolução do homem a si mesmo. Pois a experiência
que se faz não é a da afirmação de «urn ser estranho, de um ser acima da Natureza e
do Homem»8, mas o sentir-se transportado por um dinamismo «mais íntimo que seu
próprio íntimo» (Agostinho) a ultrapassar-se sem cessar («superior supremo meo»).

Devemos voltar a escutar palavras como as que Isaías pronunciou no seu


julgamento da religião de Israel: «De que me serve a Mim a multidão de vossas
vítimas? (...) Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem, respeitai o direito, protegei
o oprimido, fazei justiça ao órfão, defendei a viúva!» (Is 1,10-20). Como as que teve a
coragem de pronunciar Oséias (6,6) e Miquéïas (6,6-8), e Jeremias na sua denúncia
do papel ideológico e legitimador do Templo (7,1-34). Amos é especialmente enfático:

«Buscai-Me e vivereis!
Não busqueis o santuário (...)
Betel será degradada de 'casa de Deus' em 'casa do vazio'
Buscai o Senhor e vivereis! (...) Buscai o bem e não o mal e vivereis (...)
Detestai o mal, amai o bem e fazei reinar a justiça em vossas instituições»
(Am 5,4-15).

Em continuidade com a Profecia, o Novo Testamento vai proclamar que Deus


não habita em templos feitos por mãos de homens — as «obras de suas mãos» são
os ídolos (cf. At 7,40-50; 1Cor 3,16-17); que não há sacrifícios, a não ser a própria
existência na obediência à Sua voz (cf. Fl 2,17; 1Cor 11,17-34; comp. Mq 6,6-8); que
não há mais sacerdotes mediadores, pois só o Cristo é o único mediador e n'EIe todo
o povo tem direto «acesso ao trono da graça» (Hb 4,16; cf. 7,19.25; 9,11; 10,19-25; Ef
2; Rm 5,2; Cl 1,22), sendo «a nação santa, consagrada, sacerdotal» (IPd 2,4-10).
Qualquer templo, qualquer sacrifício, qualquer sacerdócio só podem ser
compreendidos como sacramentos, sinais que apontem para Cristo realmente
presente e vivo no seu Corpo, os homens vivos, «glória de Deus», como dizia Santo
Ireneu (cf. 1Cor 12). Qualquer fuga da realidade concreta histórica para o mito ou para
o rito está excluída e deve ser denunciada como alienação e idolatria!

Sebastião Armando Gameleira Soares


ITER-DEPA
Rua do Giriquiti, 48
50000 Recife, PE

8
Karl Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844.

Potrebbero piacerti anche