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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

INSTITUTO DE CULTURA E ARTE


CURSO DE FILOSOFIA

“HELL YEAH!”

Por uma Filosofia do Rock e do Metal a partir do


Pensamento Estético-Musical de Nietzsche

Lucas Gurgel do Amaral Carleial

Fortaleza
2009
2

Lucas Gurgel do Amaral Carleial

“HELL YEAH!”
Por uma Filosofia do Rock e do Metal a partir do
Pensamento Estético-Musical de Nietzsche

Monografia apresentada no Curso de Graduação de


Filosofia da Universidade Federal do Ceará como
requisito parcial para a obtenção do título de
bacharel em Filosofia

Orientador: Prof. Dr. José Maria Arruda

Fortaleza
2009
3

Data da Defesa:____/____/____

Banca Examinadora:
José Maria Arruda ___________________________________________
Universidade Federal do Ceará
Curso de Filosofia

Fernando de Moraes Barros ___________________________________________


Universidade Federal do Ceará
Curso de Filosofia

Dilmar Santos de Miranda _____________________________________


Universidade Federal do Ceará
Curso de Filosofia
4

Ao Público Headbanger
5

AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal do Ceará em especial ao corpo docente do curso de


Filosofia da Universidade Federal do Ceará.
À minha mãe Célia Gurgel, pelo exemplo de determinação; meu Pai
Bernardino Carleial e irmãos Daniela e Bernardo.
Aos companheiros de banda e sonhos Joaquim Cardoso, Felipe “Delirius”
Ferreira (preciosas traduções), Clerton Holanda e Rodrigo “Panaca” (pela inércia mais
ativa já vista).
À ACR e Amaudson Ximenes (pela junção única entre teoria e prática no Rock
cearense e por ser o pioneiro no estudo do estilo na academia), Jolson Ximenes, Mary
Pimentel, Marcelo Paes e Karen Pedregal.
Talles Lucena, Tales Groo, Vicente Savage, Carlos James, Bruno Bruce e
Dalviane Pires pelas contribuições ao trabalho e Carlus pelo desenho que compõe a
capa.
Aos comparsas intelecto-headbangers Abda Medeiros, Márcio Mazela e Pedro
Alvim.
Aos amigos Raphael Barros, Arthur Cotó, Iana Soares, Dieguim, Nairo Régis,
Ítalo Forte, Sarah Luiza (por suas capacidades únicas de enxergar para além dos muros
da Universidade, encarando a vida com plenitude).
Aos amigos do curso de filosofia da UFC: Eduardo Mamede, Leandson
Sampaio, Gervânia, Marcela, David Kardec, Elivanda e Daniel Filipe. Inquietude
sempre.
Aos mestres influenciadores e responsáveis pelo despertar da verve caótica:
Steven Tyler, Tonny Iommi e James Hetfield.
Por fim quero agradecer ao CNPQ por ter financiado essa pesquisa com uma
bolsa PIBIC durante o período de agosto de 2008 a julho de 2009 e ao professor e
orientador, José Maria Arruda, por ter acreditado na viabilidade dessa pesquisa e me
dado oportunidade em desenvolver o tema.
6

Dioniso é, bem o sabemos,


também o deus das trevas
(EH, p. 107)
7

RESUMO

Esse trabalho procura explicitar as noções de metafísica da arte e estética da existência


de Nietzsche vinculando-as aos estilos musicais contemporâneos Rock e Metal,
respectivamente. O estudo desenvolve a hipótese de que a história da evolução do estilo
musical Rock pode ser melhor compreendida a partir da evolução do pensamento
musical de Nietzsche.
O trabalho aponta num primeiro momento para correspondências entre a metafísica do
artista e o Rock através de uma problematização das noções de dissonância, caos e
desmesura. Num segundo momento a pesquisa mostra o estilo Metal enquanto música
que condensa de maneira singular as noções de uma estética da existência ao se insurgir
contra as formas usuais de racionalidade, convertendo, assim, a experiência do absurdo,
do conflito e do trágico em uma manifestação estética.
O estudo aponta desse modo para uma compreensão do Rock e do Metal como formas
de concretização do pensamento estético-musical de Nietzsche na atualidade.

Palavras-chave: Metafísica da arte, estética da existência, Rock, Metal.


8

ABSTRACT

This work tries to explicitate the notions of the metaphysics of the art and the esthetics
of the existence of Nietzsche, linking them to two contemporary musical styles, Rock
and Metal, respectively. The study develops a hypothesis that the history oh the
evolution of the Rock musical style can be better comprehended connect with the study
of the evolution of Nietzsche’s musical thought.
The work points, in a first moment, to the correspondences between the metaphysics of
the artist and the Rock music through a problematization of the notions of dissonance,
chaos and unmeasurement. In a second moment, the research shows the Metal style as a
music that condenses, on a singular manner, the notions of a esthetics of the existence,
when it revolts itself against the usual forms of rationality, converting the experience of
the absurd, of the conflict and the tragic in a esthetical manifestation.
The study points, this way, to a comprehension of Rock and Metal as forms of
solidification of thee esthetical and musical thought of Nietzsche nowadays.

Keywords: Metaphysics of the Art, Esthetics of the Existence, Rock and Metal
9

ABREVIAÇÕES DAS OBRAS DE NIETZSCHE

BM – Além do Bem e do Mal.

CI – O Crepúsculo dos Ídolos.

CW – O Caso Wagner.

EH – Ecce Homo.

GC – A Gaia Ciência.

GM – Genealogia da Moral.

NT – O Nascimento da Tragédia.
10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 11

CAPÍTULO 1- A Metafísica da Arte e o Rock ............................................. 14

1.1. A Concepção de Arte em Nietzsche ............................................................ 14


1.2. Emparelhamento de Deuses ......................................................................... 15
1.3. Ditirambos, Música e Tragédia ...................................................................... 17
1.4. Notas Sobre a História da Música
Ocidental e o Diferencial Nietzscheano ............................................................ 20
1.4.1. Música e Racionalização ............................................................... 22
1.4.2. Música e Sociabilidade .................................................................. 24
1.5. Genealogia do Rock ...................................................................................... 27

CAPÍTULO 2 - A Estética da Existência e o Metal........................................ 35

2.1. Transvalorações de Fundamentos e Distanciamento dos Ídolos ................... 35


2.2. Novos Rumos do Pensamento Musical de Nietzsche ................................... 40
2.3. A Música Metal e as Correspondências com a Estética Musical
Nietzscheana ......................................................................................................... 44
2.4: Origem da Música Metal ................................................................................ 45
2.5: O Thrash e o Death Metal ............................................................................. 48
2.6: Estética da Existência e o Metal: Correspondências ..................................... 50
2.6.1. Metafísica, o Filósofo e o Conflito em Unleashed, Death e Slayer ........... 51
2.6.2. Cristianismo e Além Mundo: Behemoth e Venom .................................... 55
2.6.3. Transformando o Absurdo da Existência em Experiência Artística ........... 58

CONCLUSÃO ...................................................................................................... 62

BIBLIOGRAFIA.................................................................................................. 64

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ............................................................. 68

DOCUMENTOS SONOROS .............................................................................. 68

ANEXO ................................................................................................................. 69
11

INTRODUÇÃO

O pensamento filosófico de Friedrich Nietzsche não cabe em sistemas rígidos,


atravessados de ponta a ponta por uma lógica uniforme. A forma de exposição de suas
idéias assemelha-se a fluxos, entremeios de possibilidade e concepções múltiplas, ora
permeados por metáforas em que se buscam linhas de fuga para os truques da
linguagem, ora fazendo uso de uma crua acidez para com os modelos espistêmicos de
seus antecessores, implodindo discursos e dogmas tradicionais. A arte aparece dentro da
obra nietzschena como possibilidade para a criação de pensamentos e posturas contra-
hegemônicos em uma civilização que perdeu completamente sua dimensão trágica.
Segundo o filósofo, repousa nas duas divindades gregas, Apolo e Dionísio, o
fundamento a partir do qual se erige a civilização helênica e a tensão entre eles
determina o campo da própria criação artística. A concepção nietzscheana de arte irá
privilegiar sobremaneira a música, compreendendo-a como condição de afirmação da
existência e expressão dos sentimentos humanos para além da razão conceitual. Tal
idéia é concebida a partir da obra “O Nascimento da Tragédia”, onde se dá a atualização
da figura de Dionísio enquanto Deus da embriaguez, desmesura, desarmonia e
dissonância.
Tendo em vista a centralidade da música dentro do pensamento nietzscheano,
pretendo aqui problematizar suas concepções de arte dionisíaca, relacionando-a com o
estilo musical Rock, bem como a proposta nietzscheana de estetização da existência,
procurando no estilo Metal uma instância de concretização dessa proposta. Parto da
hipótese de que para uma compreensão do pensamento estético-musical de Nietzsche
não podemos negligenciar o Rock e o seu subgênero mais vigoroso, o Metal, enquanto
estilos musicais que representam de forma mais adequada a postura nietzschena em
torno da arte, tanto no que tange à metafísica de artista, quanto no que toca à estética da
existência, respectivamente.
O tema, pouco usual em estudos de filosofia, apresenta, por isso mesmo,
grandes desafios no que diz respeito à viabilidade de apropriação das categorias
utilizadas por Nietzsche em tais estilos musicais, surgidos décadas após sua morte.
Podemos observar que na música contemporânea o estilo Rock é portador de
elementos que no campo da semântica musical rompem com as rígidas articulações
melódicas e suas noções de justa ordem, harmonia e proporção; e no campo
12

comportamental expressa a desmesura, o excesso e ausência de limites possibilitando


emergir o ímpeto e pulsões não reduzidas à esfera do lógos1. O Metal enquanto
subgênero do rock aparece como estilo que radicaliza tais elementos frisando a
dimensão de imanência na música. Essa propriedade do Metal pode ser observada a
partir da postura e do discurso de bandas e adeptos do estilo contrapostos a um projeto
de domesticação dos instintos bem como de seu elemento caótico e agressivo.
Nietzsche, apesar de não se intitular um filósofo da arte propriamente dito,
propiciará elementos para a elucidação das manifestações estéticas contemporâneas. Sua
visão acerca da tragédia2 é o pano de fundo a partir do qual está estruturado o primeiro
capítulo deste trabalho. O capítulo apresenta um pequeno panorama das concepções de
música no Ocidente e salienta o diferencial de Nietzsche no contexto estético do século
XIX, ao introduzir a perspectiva acerca da arte ligada aos “impulsos artísticos” que
emergem da própria natureza, dirigindo atenção, também, para a figura do artista no
processo de criação. A partir daí, traço um esboço etnomusical acerca do estilo Rock,
expondo suas propriedades de dissonância, excesso e desregramento, que constituem
características próprias desde seu surgimento, em meados da década de 1950, e que
foram definitivamente solidificadas com o surgimento do Punk Rock na metade da
década de 1970. Procurei mostrar, a partir daí, de que maneira o Rock ‘n’ Roll e seus
estilos subseqüentes se inscrevem dentro da noção nietzscheana de arte dionisíaca e de
metafísica de artista, dadas as suas propriedades excessivas e provocadoras da
dissolução do si em uma comunidade de sentidos que se afirma em torno de uma música
pulsante e intensa.
No segundo capítulo, procurei analisar o pensamento de maturidade de
Nietzsche, apartado dos pressupostos metafísicos de sua juventude, os quais não podem
ser distanciados de uma outra perspectiva frente à arte. A ruptura com Schopenhauer e
Wagner serão fundamentais para compreendermos a arte como contraponto a uma
postura reativa, herdeira do platonismo decadente.
Nesse momento, a atividade artística estará ligada diretamente à própria
existência, compreendida como um processo de criação de si mesmo frente à ausência
1
Conforme Elvis Presley: “É difícil explicar o Rock n’ Roll (...) é uma batida que te pega você sente”
(apud CHACON, 1985, p. 16). Ou ainda “você pode teorizar o quanto quiser sobre o rock ‘n’ roll, mas ele
é essencialmente uma coisa não intelectual. É música e só” (WENNER apud, FRIEDLANDER, 2006, p.
13).
2
Ressalto que o pensamento acerca do trágico, apesar de possuir em Schelling as primeiras tentativas de
definição para além de suas propriedades formais, terá seu ápice com Nietzsche e – em um primeiro
momento – sua idéia de consolação metafísica, que interpreta a tragédia a partir de uma dualidade de
princípios, o apolíneo e o dionisíaco.
13

de um fundamento último da totalidade do real. O indivíduo, em permanente vir-a-ser,


assume a postura de criador ao enfrentar o sofrimento do mundo sem Deus e a
conseqüente vontade de negação da vida e domesticação dos instintos. A partir dessa
perspectiva, que Nietzsche irá definir como estetização da existência, a música não será
um mecanismo de redenção, lenitivo para a cultura ou promessa de acesso ao âmago da
vida. Ao contrário, ela estará intimamente ligada a uma postura que afirme a vida no seu
constante conflito de forças e constante vir-a-ser.
Nesse sentido, procuro ver no Metal elementos que permitem uma analogia
com o deslocamento no pensamento de Nietzsche de uma metafísica de artista para uma
estética da existência. Busco argumentos em favor da tese de que o processo de criar-se
a si mesmo é atualizado no referido estilo a partir das críticas a um plano transcendente,
ao discurso dogmático, à necessidade do conflito, ao cristianismo e à transformação do
absurdo da existência em um fenômeno artístico. Essa estética de existência, na música
Metal, é expressa de modo vigoroso através de letras e posturas dos adeptos do estilo
que se contrapõem às tentativas de conceber o indivíduo de forma fixa e imutável.
Para evitar mal-entendidos utilizo a terminologia Metal de forma genérica de
modo a compreender os subgêneros Heavy Metal, Thrash Metal, Death Metal, Black
Metal, Power Metal, Prog Metal, Glam Metal, Stoner Metal, etc.
Cabe ressaltar que a divisão dos capítulos tratando do estilo Rock a partir de
uma metafísica de artista e, em seguida, do Metal a partir de uma estetização da
existência é empreendida com fins metodológicos, pois não podemos conceber um
limite rigidamente estabelecido que separe as características sonoro-comportamentais de
ambos os estilos musicais3. Do mesmo modo, seria também inapropriado dividir em
fases completamente distintas as perspectivas estéticas de Nietzsche a partir de suas
obras. De fato, a noção de uma estetização da existência já é mencionada em sua obra
de estréia ao afirmar que “somente a música, colocada junto ao mundo, pode dar uma
noção do que se há de entender por justificação do mundo como fenômeno estético”.
(N.T, p.141).
Assim, o trabalho aqui desenvolvido não visa uma aplicação direta das noções
de metafísica da arte e estética da existência tout court. Conceber tal plano iria de

3
“O Metal forma parte do Rock. Tocar como nós tocamos é energia pura. Buscar uma definição para o
que fazemos me parece desnecessário. Tentar classificar um grupo em um estilo é limitá-lo”.
(TRUJILLO, 2009, p.22).
14

encontro às condições históricas distintas que separam nosso pensador dos estilos de
música tratados.
15

CAPÍTULO 1

A Metafísica da Arte e o Rock

Eu anuncio o advento de uma era trágica: a


arte mais sublime na afirmação da vida, a
tragédia, renascerá quando a humanidade,
sem sofrimento, terá atrás de si a
consciência de ter sustentado as guerras
mais rudes e mais necessárias
(NIETZSCHE, EH, p. 79-80).

1.1. A Concepção de Arte em Nietzsche

Em O Nascimento da Tragédia, obra que marca a transição de Nietzsche


pensador da filologia à filosofia, há o que se pode chamar de nascimento de um
julgamento estético para além do racionalismo socrático. Através de uma volta à
tragédia ática, Nietzsche propõe uma nova forma para compreender seu tempo, a
exemplo da sabedoria grega ao lidar com o trágico da existência por meio do véu
apolíneo da aparência.
Dessa maneira, Nietzsche irá reatualizar a figura de Dionísio concebendo a arte
como uma correlação dos “impulsos artísticos da natureza”: o apolíneo e o dionisíaco.
Diferentemente de boa parte dos helenistas germânicos de seu tempo como Wiclkeman
e Lesing que interpretavam a civilização grega a partir dos princípios de
serenojovialidade, harmonia e proporção, Nietzsche irá pensar a civilização helênica a
partir de sua “sabedoria trágica” compreendida enquanto superação do pessimismo da
existência através da arte. De fato, como o próprio autor considera em Ecce Homo,
outro subtítulo adequado ao seu livro de estréia seria “Helenismo e Pessimismo” como
uma referência direta à maneira com que os gregos superaram o pessimismo com os
meios que tinham às mãos.
16

O estudo da tragédia permitirá a Nietzsche explicitar o modelo de


racionalidade herdado de Sócrates abordando o modo com que o dionisíaco foi
sobrepujado com o aumento dos diálogos nas peças de Eurípides. A tragédia é a
manifestação dramática onde se une poesia, música e teatro, o que faz com que
Nietzsche, em sua juventude, encantado com a música de Wagner, proponha o resgate
da influência dos deuses Apolo e principalmente Dionísio como a única forma de tornar
a deformada arte do romantismo alemão em algo que pudesse, de fato, ser condizente
com a “autêntica cultura germânica”.
Enquanto gênero dramático que melhor expressa a correlação dos princípios
apolíneo-dionisíacos a tragédia ática exercerá fascinação para Nietzsche pelo fato de
possibilitar, com a música, a atualização do mito trágico através da figura do herói.
Como iremos ver, as propriedades apolíneas ligadas ao brilho, imagem e plasticidade
encontram na figura do herói trágico a condição para subsistir em meio a torrente
caótica dionisíaca da música. De outro modo, em meio à embriaguez e desmesura
dionisíaca não se tornariam plasmados aos nossos olhos a forma e a linguagem mítica, a
qual só pode ter fim com a interferência imagético-apolínea dada com a figura do herói.
A música com sua ausência de formas e de limites nos delineamentos visuais é
entendida como o espelho dionisíaco do mundo, a qual compartilha o caráter amorfo,
não formalizado daquele deus.

Para tornar possível a música como arte distinta, foi imobilizado um


certo número de sentidos, sobretudo a sensibilidade muscular (ao
menos relativamente: pois, num determinado grau, todo ritmo ainda
diz algo a nossos músculos): de modo que o homem já não imita e
representa com o corpo tudo o que sente. No entanto, esse é o estado
dionisíaco normal, o estado original, de toda forma; a música é a
especificação dele, lentamente alcançada às expensas das faculdades
que lhe são mais afins (NIETZSCHE, CI, p. 69).

1.2. Emparelhamento de Deuses

Apolo e Dionísio são retratados por Nietzsche como impulsos artísticos da


natureza e necessários correlatos dentro do processo de pulsão e conflito que envolve a
criação artística. Conforme enuncia no início de O Nascimento da tragédia:

Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não


apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão de que
o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do
apolíneo e do dionisíaco(...) (NIETZSCHE, NT, p. 27).
17

Apolo representa o princípio da individuação, e, por conseqüência, lhe são


atribuídas características de deus plasmador, da arte plástica e da imagem. É ainda o
deus da razão (decorrência da luz que ilumina o mundo), da racionalidade, do
utilitarismo prático e teórico, manifestado através do estado fisiológico do sonho. É
também a representação do otimismo, pois sendo o deus da luz, o é também da verdade
superior, além de desfrutar da experiência onírica, ou seja, possui profunda consciência
da natureza reparadora do sonho e do sono. Apolo é a liberdade em face das emoções
mais selvagens, a limitação mensurada, sapiente tranqüilidade, é o sol, a bela aparência.
Diferentemente, Dionísio é o Deus do excesso, do vinho, cuja característica
fisiológica é a embriaguez. Suas propriedades mais destacadas são a desmesura, a
loucura, a síntese de deus e bode, a arte trágica, o coro trágico, o pessimismo, a
embriaguez, o todo sem formas, amorfo. No entanto, a maior característica do estado
dionisíaco é que, através dele, o homem acessa o uno primordial, retorna ao indivisível,
dissolve sua individualidade na comunhão com a natureza, e, dessa forma, sua arte não
pode ser figurada, é música; através dela o homem tem sentimentos impossíveis de
serem expressos pela palavra. É o oposto da beleza e do comedimento da cultura
apolínea.
Percebem-se, então, oposições indissociáveis entre o que representa Apolo e o
que representa Dionísio: harmonia-dissonância, ordem-desordem, medida-desmesura.
Ao invés de reconhecer os impulsos artísticos da natureza como antagônicos, no sentido
de que um aniquila o outro, Nietzsche reivindica uma “aliança fraterna”, um caminhar
paralelo entre ambos.
Para Nietzsche, a morte de Dionísio é anunciada a partir das peças de Eurípides
e da dialética socrática, quando o lógos passa a ser condição de legitimidade da arte e
desse modo o equilíbrio entre apolíneo e dionisíaco passa a ser subsumido em prol da
dialética. A música é expulsa da tragédia na medida em que Sócrates vincula a
possibilidade de prazer estético à compreensão racional assentada em bases dialéticas,
sendo o coro e a razão as causas do declínio da tragédia, para Nietzsche. Dito de outro
modo, com a afirmação da palavra ou do lógos socrático a música enquanto dotada de
um caráter amorfo e expressão da vontade humana é relegada a um plano secundário, o
que representa o momento em que a dimensão apolínea da razão sobrepuja o caráter
dionisíaco além-conceitual.
18

De fato, Sócrates alegava não compreender a tragédia, daí seu desinteresse por
ela, pois sua concepção de virtude estava atrelada à dialética, a uma crença num
princípio de inteligibilidade de onde derivaria o valor de todas as coisas. A consolação
metafísica que a música proporciona é substituída pela valorização do diálogo e da
palavra, como expressões da consciência, resultando no conceito estético de que tudo
deve ser consciente para ser belo, configurando assim, o chamado socratismo estético,
antítese máxima da arte dionisíaca.
Nietzsche, inconformado, propõe uma volta, um resgate da tragédia, para que,
desse modo, venha a se criar a possibilidade de seguir adiante com uma arte alemã já
refeita, realimentada, fortalecida pelo que existia de mais nobre na cultura grega. Deve-
se reconhecer na música a verdadeira postura estética frente à existência do homem,
pois é ela a única capaz de exprimir e capturar a essência do mundo.

1.3. Ditirambos, Música e Tragédia.

O caráter amorfo do estado dionisíaco, distante dos atributos de plasticidade


apolínea, associa-o à arte da música, em harmonias, ritmos e contraponto impetuoso à
esfera do conceito. Compreender sua origem e influência na arte da música é estabelecer
pontos de encontro com o pensamento de Nietzsche e visualizar a importância do êxtase
e entusiasmo em uma proposta de modelo estético desregrado dentro da esfera musical.
A passagem do período Arcaico (séc. 800-500 a.C.) ao Clássico (séc 500-338
a.C.) representa uma mudança de perspectiva no plano teórico e literário de uma
concepção mítica de explicação do real para um momento em que a racionalidade
adquire preponderância. Indo ao encontro de tais tendências, a figura do Deus Dionísio
é o contraponto aos pressupostos de ordem e comedimento buscados pela civilização
grega. Seu duplo nascimento esboça a duplicidade de seu caráter revelando ao mesmo
tempo um personagem associado à fertilidade e colheita do mesmo modo que também
representa uma dimensão impiedosa ao fulminar uma cidade (a exemplo da cidade de
Tebas em As Bacantes).
Contrapondo-se à máxima do “nada em demasia”, Dionísio vai de encontro às
noções de sujeito na medida em que traz em sua própria constituição a referência à
dissolução da individualidade. Conforme Guerra Neto:
19

Dionísio recusado, perseguido, mal recebido e hostilizado são temas


freqüentes na história do V Século a.C. Há incompatibilidade radical
entre os valores que Dionísio pretende instaurar e os valores
estabelecidos instaurados na Grécia dos séculos anteriores (1999, p.
40).

Visto como Deus do caos e da desmesura que instaura a integração do homem


com a natureza ou, conforme Nietzsche, restaura o encontro com o Uno Primordial,
Dionísio é o Deus estrangeiro e tratar de sua gênese é adentrar em um mundo singular
onde o trágico e a vida se confundem.
Dionísio é o fruto da traição, aquele nascido duas vezes (dis ónisos), cuja
origem remonta da união de Zeus com Perséfone. Descoberto por Hera, ciumenta
esposa de Zeus, acaba sendo trucidado pelos Titãs. Com apenas o coração salvo pela
filha de Zeus, Atenas, este o engole de imediato e engravida Sêmele, princesa tebana.
Hera, ao saber da traição, e ainda certa de que nenhum mortal resistiria à visão divina,
sugere que Sêmele peça a Zeus que este se mostre a ela no seu verdadeiro aspecto. Face
à visão, Sêmele morre, mas, já grávida, tem o filho retirado do ventre por Zeus, que o
costura em sua coxa até que nasça pela segunda vez. Porém Dionísio não é aceito como
deus, pois é filho de mortal com imortal. Enquanto busca se impor como divindade é ele
quem descobre a uva e dela faz vinho, passando a ser considerado o deus da colheita, da
fertilidade, do vinho e da embriaguez.
O Deus foi educado pelas ninfas, musas, sátiros, mênades e sobretudo por
Sileno – juntos, eles formam o cortejo dionisíaco em viagem pela Grécia, bebendo
vinho e espalhando alegria e esplendor. Ao descobrir o cultivo das vinhas, Dionísio
utiliza o vinho e a embriaguez como forma de libertação do homem, proporcionando
força superior, divina, levando também à selvageria e loucura.
Dionísio teve uma aceitação tardia dado o contexto em que foi introduzido
como divindade, de uma aristocracia urbana que via com maus olhos a entrada de um
deus estrangeiro predominantemente rural cujo culto assentava-se na embriaguez
desordenadora do si mesmo.

Como o culto a Dionísio simbolizava também uma quebra de tabus,


compreende-se o grande número de mulheres presente em suas festas.
É que, como se sabe, a mulher na sociedade grega era bastante
reprimida. Daí que somente nas homenagens a Dionísio é que elas se
libertavam do papel de submissão que estaria confinada a elas na
20

polis grega (BRANDÃO, 1992, p. 136, apud LOIOLA LOPES, 2004,


p. 13 ).

De seu culto originou-se a tragédia, gênero dramático que tem como origem a
festa do vinho novo em Atenas e em toda Ática onde os participantes, assim como os
companheiros de Baco, disfarçavam-se de sátiros, tidos pela imaginação popular como
“Homens-Bode”. Outras versões contam que se sacrificava um bode em sua honra, pois
conforme uma lenda, Dioniso teria se transmutado naquele animal para fugir dos Titãs.
Daí o surgimento da palavra Tragédia: tragos, bode e oidé, canto4.
A tragédia será então vista por Nietzsche como a manifestação dramática que
melhor representa o emparelhamento de Apolo e Dionísio sem primazia de uma ou
outra força. Segundo ele, o problema reside no predomínio do elemento apolíneo como
a máxima verdade do mundo fenomênico, quando de fato essa mesma realidade traz em
si um elemento dionisíaco por si só amorfo não esgotado somente em bases apolíneas.
Abaixo desse véu, um princípio de ímpeto, caos e força anseia por vir à tona.
Emergindo da própria natureza, o dionisíaco possibilita a união com o chamado Uno-
Primordial provocando, através da música, o êxtase e o entusiasmo. Para Nietzsche:

No ditirambo dionisíaco o homem é incitado à máxima intensificação


de todas as suas capacidades simbólicas; algo jamais experimentado
empenha-se em exteriorizar-se, a destruição do véu de Maia, o ser
Uno enquanto gênio da espécie, sim, da natureza (NT, p. 34-35).

Influenciado por Schopenhauer, Nietzsche atualiza sua noção de princípio de


individuação como diretamente associada à figura de Apolo, dadas a sua propriedade de
forma plástica que singulariza, carregando junto no espaço e tempo o uno essencial e
indiviso. Diferentemente, Dionísio é o responsável, nas palavras de Nietzsche, pela
dissolução do princípio de individuação, que proporciona a “aniquilação das usuais
barreiras e limites da existência” e “contém, enquanto dura, um elemento letárgico no
qual imerge toda vivência pessoal do passado” (ídem, p. 55).
Dessa forma, na tragédia, o dionisíaco – plasmado a nossos olhos através do
herói que fala e entusiasma os nossos sentidos através do coro ditirâmbico – faz-se
oposto ao ideal de si mesmo primado na civilização grega sob a égide de Apolo. No
cortejo a Dionísio rompe-se o princípio da individuação, chegando ao “cerne mais
íntimo das coisas”, ao Uno-Primordial e à dissolução máxima.

4
(BRANDÃO, 1985, p. 10)
21

O indivíduo, com todos os seus limites e medidas, afundava aqui no


auto-esquecimento do estado dionisíaco e esquecia os preceitos
apolíneos. O desmedido revelava-se como verdade, a contradição, o
deleite nascido das dores, falava por si desde o coração da natureza. E
foi assim que, em toda parte onde o Dionisíaco penetrou, o apolíneo
foi suspenso e aniquilado (NIETZSCHE, NT, p. 41).

Assim a tragédia, ao retratar o padecimento do herói trágico, representa para


Nietzsche o padecimento do próprio indivíduo, lançando-nos à essência do dionisíaco,
estado por excelência da música, arte sem formas e desprovida de um caráter plástico.

1.4. Notas Sobre a História da Música Ocidental e o Diferencial


Nietzscheano

Sem música a vida seria um erro, uma


tarefa cansativa, um exílio. (NIETZSCHE,
Cartas a Peter Gast, Nice, 15 de janeiro de
1888, apud DIAS, 2005, p. 9).

A noção de música desenvolvida por Nietzsche associa-se a uma perspectiva


cosmológica dada com a figura de Dionísio que sintetiza simbolicamente a
possibilidade de superação do pensamento conceitual tendo em vista uma proposta de
vida alegre e afirmativa distanciada de uma racionalidade fria e calculista. Dentro desse
contexto, o salto da concepção nietzscheana no campo do pensamento musical, reside
em uma superação de um método calcado na racionalização do material sonoro,
apregoado pela tradicional filosofia da música. Em meio à crítica incisiva que perpassa
grande parte de suas obras em relação à quimera da razão, sua atenção dada ao
fenômeno musical reside na análise de tal arte dionisíaca enquanto um duplo da
existência humana.
A palavra música tem relação ao conceito grego de mousiké, complexo de
práticas que compreende simultaneamente o estudo da poesia, dança e ginástica.
Também relacionada à noção de musas, mousiké faz alusão à deusa Mnemosine, filha
da recordação. De fato, o ato de memorizar perpassava tanto um poema quanto uma
canção e esta se ligava diretamente aos atos recitativos em que a música, com seus
ritmos e melodias, permanecia serva da palavra e base de apoio ao discurso falado.
Na Grécia Antiga, a música era apenas uma parte da mousiké
predominantemente cantada com as prosódias, encaixando-se aos compassos e seus
22

tempos fortes ou fracos. Para que esse encaixe fosse adequado, levava-se em
consideração o aspecto rítmico, associado à matemática – outra importante ferramenta
para o estudo e composição musical. Conforme os pitagóricos, os números são o próprio
constitutivo ordenador do cosmos e ordenar numericamente a música a partir das séries
harmônicas tinha como fundamento tornar o mundo, em sua totalidade, cognoscível.
Organizar numérica e harmonicamente os sons era uma maneira para a disciplinarização
da desordem do mundo. Assim, os pitagóricos inauguram, na Grécia Antiga, uma
concepção de arte intimamente ligada à esfera da episteme, com a fruição e valoração da
música atrelada ao seu modo de entendimento, culminando com a perspectiva platônica
da relação entre ethos e os modos musicais.
No Livro III da República, Platão irá atribuir à música uma importante função
ético-educativa na formação da sociedade como um todo, compondo uma ligação
indissociável entre harmonia, palavras e ritmo. Em nome de um princípio regulador da
ordem da pólis, ritmos pulsantes e determinadas séries harmônicas passavam a ser
proibidos, tidas como transgressoras tendo em vista o ordenamento sonoro como
espelho para o ordenamento social. Tal modelo incluía a proibição de determinados
instrumentos musicais como a flauta, atribuído à figura do deus Dionísio, e que impedia
a expressão do canto e do conceito. Conforme Miranda, isso explicita “a cisão que irá
traspassar épocas e lugares, entre a música das alturas, cívica, normativa, harmoniosa e
música rítmica, popular, pulsante, ruidosa, extática” (2005, p. 08).
Esse modelo irá reverberar na Idade Média em sua preocupação de unir o
conhecimento musical grego e hebraico aos ritos eclesiásticos. Nesse período, valoriza-
se ainda mais a música vocal, atribuindo-lhe a função de instrumento de propagação da
fé. Tanto para os gregos quanto para os medievos, a música é compreendida enquanto
detentora de um caráter moral, e será isso que durante a época de Nietzsche será posto
em questão. A relação matemática na música refletiria a própria ordem do cosmos,
concepção que, gestada pelos pitagóricos, será mantida pelos cristãos, valorizando ainda
mais os sons consonantes (apolíneos) em detrimento dos dissonantes (dionisíacos)
(MIRANDA, 2005).
Assim, determinados sons passaram a ser proibidos sob a acusação de
despertarem impulsos mais voluptuosos ou atribuídos a uma sonoridade “demoníaca”.
Como exemplo, determinadas relações intervalares dentro da escala diatônica tinham
sua harmonia e consonância comprometidas com a introdução do trítono, um intervalo
de três tons inteiros entre o dó e o fá# (também conhecido como diabolus in musica)
23

que ao gerar uma tensão passou a ser proibido durante a Idade Média (MIRANDA,
2008, p. 79). A aceitação desse intervalo só viria a acontecer no século XVI, ainda
como momento de passagem, com o surgimento do tonalismo, afinação uniforme dos
instrumentos e equalização dos 12 semitons da escala ocidental empreendida por Bach.
Nesse período, a época moderna e a confiança sem precedentes nas possibilidades da
razão dentro do século das luzes inauguram uma nova compreensão do fenômeno
musical.

1.4-1. Música e Racionalização

Voltando-se agora para as possibilidades de uma semântica musical, isto é, de


uma possibilidade de racionalização epistemológica do material sonoro, os estudos
modernos acerca da música conferiam-lhe um status de arte menor dada a sua
assemanticidade em relação às demais manifestações como a poesia, visto que não
possibilitava uma via de acesso a um conhecimento verdadeiro. Esse processo de
racionalização empreendido nos mais diversos âmbitos da cultura (pintura, arquitetura,
cartografia), será aplicado na música a partir dos cânones do tonalismo, das leis da
harmonia e do temperamento igual. A racionalização do material sonoro passa a ser um
dos objetivos principais dentro da estética da Aufklarung (iluminismo). Segundo
Waizbort, “racionalização do material sonoro e organização dos intervalos são o fato
fundamental da música ocidental durante os séculos XV a XVII se iniciando com
Pitágoras e atingindo o ápice com o temperamento igual” (1991, p. 26).
O embate entre razão e sensibilidade na esfera musical terá como principal
ponto de inflexão o Romantismo, que enxergará agora como virtude a “falta de
racionalidade” da música, invertendo por completo os preceitos estético-musicais do
Iluminismo.
O Romantismo inaugura um novo paradigma de crítica aos valores sociais e
morais da cultura ocidental estabelecendo uma via distinta dentro da dicotomia razão e
sentimento. A música passa a ser vista como uma linguagem dotada de regras distintas,
e expressão suprema do real, despojada de um fundo racionalista (MIRANDA, 2001, p.
34), destronando as palavras da posição de determinante de sentido. É o momento em
que a representação dos sentimentos confere status de relevância para esta arte. Fruto
desse tempo, Nietzsche concebe a música distante dos parâmetros racionalizantes da
Auflklarung e a vê como expressão da própria vontade, o que remete ao conceito por ele
24

já desenvolvido de Uno-Primordial. 5 O grande influenciador na construção filosófica de


seu pensamento musical, Schopenhauer, elabora um melhor acabamento do ideal
romântico de defesa da autonomia da música, destacando-a das demais artes. Conforme
Schopenhauer, a arte musical é diferente das demais não por ser uma manifestação das
idéias, da vontade, mas a vontade ela mesma e verdadeira expressão do mundo.
Assim, em Nietzsche, o valor atribuído à música reside no seu distanciamento
do caráter conceitual e ele vislumbra no mito trágico o lócus de realização do drama
musical. Distanciado do lógos, Dionísio sobe à cena estabelecendo a música enquanto
pura representação da vontade e efetividade do mundo. Esse distanciamento em relação
ao modelo de racionalidade socrática faz com que a música adquira uma proeminência
enquanto possibilidade de expressão de sentimentos, estados de consciência não
reduzidos ao âmbito da razão. Enquanto forma de acesso a uma realidade ainda mais
profunda não acessível por outros meios, a música torna-se central em seu pensamento,
a exemplo também de seus comentários sobre a referência ao modo de escrita de
determinados autores, análogo aos andamentos musicais presto, allegro.6 Ou ainda,
conforme vemos em meio às críticas da sociedade de sua época quando nos fala que: “O
alemão não lê em voz alta, não lê para os ouvidos, mas apenas com os olhos: ao fazê-lo,
põe os ouvidos na gaveta” (NIETZSCHE, BM, p. 140).
Ainda que Nietzsche supere determinados parâmetros da tradicional filosofia
da música, ele se inscreve no embate acerca da autonomia musical (e suas questões da
música instrumental enquanto portadora de sentido) pois não trata a questão da música
apenas do ponto de vista de uma semanticidade imanente à sua estrutura. Dentro desse
âmbito, a problemática da relação música versus palavra em Nietzsche toca em uma das
grandes questões da filosofia da música, a saber: se a música pode carregar uma
semanticidade própria, independente da palavra 7. Em seu turno, valoriza ainda mais sua
propriedade aconceptual não apenas enquanto um aglomerado de estruturas sonoras mas

5
O debate em torno dessa questão não é consensual, conforme comentário de Giaccoia acerca do
fragmento póstumo Nr. 12[1], da primavera de 1871:“ Por conseguinte, também para o jovem Nietzsche,
a despeito de seus vínculos com a metafísica de Schopenhauer, a ‘vontade’ não é essência do mundo, o
seu ‘em si’, mas unicamente a forma mais universal da aparência. Por essa razão, penso que não é
possível identificar o Uno-Primordial de O Nascimento da Tragédia a partir do espírito da música – e
também presente neste texto – com a vontade metafísica de que trata Schopenhauer”. (NIETZSCHE
Fragmento Póstumo Nr. 12[1], 2007, p. 170-171).
6
(NIETZSCHE, BM, p. 33).
7
“Em outras palavras, precisamos ser menos confiantes quanto a nossa compreensão teórica da
linguagem e mais – isto é, devidamente – confiantes quanto a nossa compreensão da música” (RIDLEY,
2008, p. 73).
25

enquanto impregnada de um conjunto de práticas humanas, não isoladas da


interpretação do fenômeno musical.

1.4-2. Música e Sociabilidade

Esse enlace entre música e formas de sociabilidade será trabalhado


posteriormente com maior afinco por Theodor Adorno. O pensador da escola de
Frankfurt – movimento que reatualizou o pensamento marxista a outras teorias
contemporâneas – herda o caráter não-sistêmico do pensamento nietzscheano inserindo
um novo olhar à problemática da racionalização musical. Para Adorno, a música reflete
diretamente o processo de racionalização no qual está inserida a sociedade moderna,
expressa principalmente, nesse caso, através do tonalismo. Se outrora, o embate entre
lógos e ímpeto é posto em equilíbrio através da introdução da música dionisíaca em
Nietzsche, Adorno problematiza a dimensão racional mostrando que, no campo da
música, a tradição tonal representa uma negação do sujeito e da dialética, sendo a
música atonal a via de escape a essa lógica composicional da tradição.
O pensador da Escola de Frankfurt herda de Max Weber a idéia de que a
história da música tem a ver com uma progressiva racionalização do material musical e
do procedimento composicional. Daí se segue que o modo tonal aparece para Adorno
como aquele que engendra padrões fixos dentro de um modo de produção em série,
posteriormente estandardizada pelos mecanismos da indústria cultural.
A proposta de uma “nova música” calcada nos moldes atonais e em prol de
uma emancipação humana representará, portanto, a superação dos modelos da tradição
enquanto modos de vida negadores do indivíduo. Por música atonal entendemos aquela
que foge à recorrência melódica, sem tonalidade predominante e não seguindo a escala
de sete tons ocidental. Para Adorno, essa “nova música” representa um esboço de uma
nova relação entre indivíduo e arte. Seu principal expoente é Arnold Schoenberg, que
no início do século XX funda o dodecafonismo, modelo composicional que “foge à
recorrência melódica, harmônica, rítmica, através de uma organização simultaneísta de
todos os materiais sonoros, de natureza polifônica e descentrada” (WISNIK, 1989, p.
162)
26

O dodecafonismo se constitui enquanto um estilo composicional desprovido de


uma tônica a partir da qual se hierarquizam as demais notas da escala diatônica,
retirando a previsibilidade da resolução e o centro tonal da composição8.
Em A Filosofia da Nova Música, a música atonal também pode ser interpretada
a partir das propriedades dionisíacas de dissonância, desarmonia, conforme a concepção
de Nietzsche, na medida em que vai de encontro a uma estandardização e modelos
rígidos segundo cânones de justa harmonia e resolução tonal.
Por outro lado, enquanto Adorno critica o estado de decadência da música com
a preponderância do modo tonal e conseqüente massificação, Nietzsche irá focar nos
malefícios da supremacia do lógos dados a partir das peças de Eurípides e com a
dialética socrática. Nesse sentido, o dodecafonismo ainda que seja uma total
contraposição ao modelo tonal da tradição ainda se insere num modelo composicional
rigidamente estruturado e de forte componente racional. De modo oposto, e enquanto
objeto de nosso estudo, o Rock estabelece a ruptura do modelo comportamental calcado
em moldes apolíneos desde sua origem e, em suas diversas vertentes, joga com a
semanticidade do mundo tonal com distorções, saltos intervalares não necessariamente
fixos ao modelo da escala diatônica.
Assim, se temos em Adorno a valorização de Schoenberg enquanto anunciador
de uma “Nova Música” que dê abertura à criação do indivíduo, com Nietzsche, a música
irá primar por um encontro com a própria vida. A diferenciação entre Nietzsche e
Adorno no que diz respeito às propostas de uma nova estética musical diz respeito ao
enfoque dado: enquanto Adorno centrará na forma composicional – a partir da qual
subjaz um reflexo do próprio modelo capitalista-racionalizante – Nietzsche não irá abrir
mão da dimensão comportamental para uma compreensão global da música,
constituindo-se o dionisíaco como o contraponto à dimensão do lógos.
O tema da autonomia musical, ainda que não seja propriamente o objeto de
nosso estudo, será tratado indiretamente ao explicitarmos o modo como o Rock se
manifesta enquanto estilo dionisíaco e, do mesmo modo, como ele se apresenta como
contraponto ao modelo apolíneo de arquitetura dórica dos sons, tocando artistas e
amantes do gênero não apenas no âmbito da palavra e/ou sentido. Indo para além das
tentativas contemporâneas de superação da tradição apolínea de composição – a

8
“A Série dodecafônica foge à recorrência melódica, harmônica, rítmica, através de uma organização
simultaneísta de todos os materiais sonoros, de natureza polifônica e descentrada; o minimalismo é uma
música francamente interativa, baseada na repetição de motivos melódicos e pulsos rítmicos que passam
por processos de defasagem” (WISNIK, p. 162).
27

exemplo do dodecafonismo – o estilo aponta para uma transvaloração de posturas


herdadas do socratismo estético que buscam aceitação e/ou legitimação de condutas
socialmente úteis.
De fato, tomando por base a postura nietzscheana de música diretamente
relacionada à esfera dionisíaca, distanciada de uma razão conceitual e ligada a um
comportamento afirmativo frente à vida, torna-se mais emblemática a análise do Rock
enquanto contraponto aos modos musicais da tradição. Conforme Baught (1994, p.15-
16): “qualquer tentativa de avaliar ou compreender a música do rock usando a estética
da música tradicional está condenada a resultar num mal-entendido” Diferentemente do
dodecafonismo e serialismo, onde a inovação restringe-se ao campo semântico-musical,
o Rock rompe com as noções tradicionais de música ao introduzir a dimensão dionisíaca
para além dos ruídos e batidas polirrítmicas. Como afirma Corrêa (1989, p.29): “E é
precisamente nisso que reside a força do rock, na medida e, que, ao produzir a ruptura
dos padrões musicais anteriores, também rompe com as convenções sociais que os
cercam”.
28

1.5. Genealogia do Rock

O fato de que o rock procure despertar e


expressar sensações transforma-se
frequentemente em acusação dirigida
contra ele, como se provocar a sensação
fosse algo “baixo” ou indigno de
verdadeira beleza musical (BAUGH, 1994,
p. 16) .

O Rock é o estilo de música cujo ritmo forte e o pulso marcante de seus


compassos figuram um não-aprisionamento aos cânones da música apolínea. Originado
na década de 50 a partir da fusão do Rythm and Blues9 com a música pop norte-
americana, ou seja, da música pulsante e percussiva africana com o modelo europeu das
alturas melódicas, o Rock se constituiu rapidamente como uma nova manifestação
sonoro-comportamental que viria a influenciar, em poucas décadas, as mais diversas
culturas em todo o planeta. Em sua base encontramos os cantos entoados pelos negros
nas lavouras de algodão estadunidenses, os working songs e spirituals os quais
posteriormente originarão o Blues, estilo que teve sua gestação a partir das vocalizações
dos cânticos tribais africanos com as harmonizações da música européia. Palavra que
significa tristeza e melancolia, “Blue” também era o adjetivo dado às pessoas de pele
escura pela sociedade branca estadunidense10.
De um outro lado, a música country & western, aceita e praticada pelos
colonos pobres brancos, também é parte da influência herdada pelo Rock, fundindo-se
com a vertente mais dançante e elétrica do blues, o Rythm and Blues. Conforme
Muggiati (1983, p.91): “Da fusão do grito africano com a tradição européia nasceu este
equivalente moderno da tragédia grega: o blues. E esse pathos dionisíaco/apolíneo
prossegue existindo no rock, extensão natural do Blues”.
Em meio a essa nova profusão de ritmos os Estados Unidos da América
vivenciavam sua ascensão à condição de potência econômica e política mundial dentro
do contexto do pós-guerra, após liderar a investida ocidental frente às tropas do Eixo e
que culminou com sua condição de credor no processo de reconstrução dos países
europeus. O crescimento econômico propiciou que um novo grupo social passasse a

9
“O rythm and blues aparece aí como o gênero dionisíaco adequado, estabelecendo um contraponto com
as apolíneas modalidades do jazz moderno” (BARBOSA & MACHADO, 1998, p.96).
10
Não é longínqua, portanto, a hipótese que o nome blues possa ter surgido a partir de uma referência
depreciativa feita à música pratica por esses grupos (“Blue’ songs”).
29

ditar novos modelos de lazer e entretenimento: a juventude. Posta em evidência através


de seu ingresso no mercado de trabalho, e detentora de renda própria, a juventude trazia
novas demandas em modos de diversão, roupas e sons, não tardando para que o rock
viesse a ser sua expressão musical mais significativa. A compra de discos de pequenos
selos independentes que eram catalogados como “música racial” era vista com maus
olhos pelas famílias tradicionais, que, no entanto, passaram a oferecer menor resistência
à aceitação dessa música, com a projeção dos cantores brancos de Rock Bill Haley e
Elvis Presley.
O surgimento do Rock é convencionalmente atribuído à canção Rock Around
The Clock interpretada por “Bill Haley and The Commets”, em 1957. O nome do estilo,
dado pelo DJ Alan Freed, locutor da emissora WJW de Cleveland, Ohio, era inspirado
na letra de uma canção de blues de 1922 regravado por Big Joe Turner, chamado “My
baby she rocks me with a steady roll”, título esse que portava uma dúbia conotação
sexual. O Rock `n` Roll passou a designar um estilo sonoro-comportamental chocante
para a sociedade da época, mas cujo ritmo agitado e dançante cativava os jovens
ouvintes e trazia à tona elementos dionisíacos expressos em novas métricas, alturas e
principalmente comportamentos desmedidos. Isso levaria Frank Sinatra a expressar
mais tarde: “O Rock and Roll é a marcha marcial de todos os delinqüentes juvenis sobre
a face da terra” (CHACON, 1985, p. 24). Já seria uma tentativa, de manter-se
“cautelosamente à distância aquele preciso elemento que, não sendo apolíneo, constitui
o caráter da música dionisíaca” (NIETZSCHE, NT, p. 12).
De fato, a presença do elemento corporal e o apelo à sensualidade que já se
fazia presente na música negra foram postos em evidência com o Rock ‘n’Roll, vide o
aparecimento de Elvis Presley e sua dança pélvica, o qual, em nome da moral e bons
costumes, foi proibido de ser exibido de corpo inteiro em programas de TV.11
Nesse segmento conservador em cujo seio, uma nascente “música dionisíaca
excitava nele espantos e pavores” (NIETZSCHE, NT, p. 34) tornava-se irreversível uma
nova relação com a música, manifesta em novas sensações no compasso da indústria
cultural12 da época.

11
Sobre esse tipo de postura, Nietzsche indaga: “A Moral não seria uma ‘vontade de negação da vida’,
um instinto secreto de aniquilamento, um princípio de decadência, apequenamento, difamação, um
começo do fim?” (NT, p. 20).
12
“Assim, a indústria cultural está sempre criando necessidades ao consumidor, que deve contentar-se
somente com o que lhe é oferecido, permanecendo sem chance de questionar sua condição passiva de
mero consumidor, de objeto manipulado” (MENDONÇA, 1999, p. 31).
30

Do outro lado do Atlântico também surgiam novos grupos, desta vez


influenciados pelos operários, pelo contexto da II guerra e o colonialismo. Na
Inglaterra, grupos como The Beatles, The Rolling Stones, The Who, refletiam em suas
letras os conflitos subjacentes na sociedade em que viviam, ao mesmo tempo em que
13
instauravam na música o elemento “ruidoso” de pulsações polirrítmicas onde se
quebra com a rigidez comportamental e fixidez tonal. Conforme Wisnik:

O rock é a superfície de um tempo que se tornou polirrítmico.


Progresso, regressão, retorno, migração, liquidação, vários mitos do
tempo dançam simultaneamente no imaginário e no gestuário
contemporâneos, numa sobreposição acelerada de fases e defasagens.
(1989, p. 89)

Assim, o elemento dionisíaco na música encontrava paulatinamente no Rock


sua possibilidade contemporânea de expressão e efetivação e, conforme propunha
Nietzsche, a música soltava-se dos grilhões da palavra para uma autêntica afirmação da
existência. De fato, isso é o que podemos constatar desde a década de 1950 em músicas
como “Tutti Fruti” de Little Richards onde se usa das palavras como um jogo sonoro
(A-wop-bop-a-loo-wop-a-wop-bam-boom), ao mesmo tempo em que o dito faz
referência à conquistas afetivas, promiscuidades e aproveitamento do momento presente
daquela geração, não apresentando um sentido e/ou moral subjacentes em sua lírica. O
significativo nessa música é que ela indica o deslocamento da palavra da esfera sonora,
afirmando o apelo corporal do estilo para além da esfera do conceito. O que em
consonância com Nietzsche significaria:

Ao ouvinte que deseja captar com nitidez a palavra sob o canto


corresponde o cantor, pelo fato de falar mais do que cantar e de
aguçar nesse semicanto a expressão patética da palavra: por meio
desse aguçamento do phatos, ele facilita a compreensão da palavra e
subjuga aquela metade da música ainda restante. (NT, p. 113)

Tal como Dionísio, tardiamente acolhido na pólis grega face aos demais
deuses, o Rock, fruto de uma camada social marginalizada, não é facilmente aceito no
modelo de sociedade erigida sobre rígidos preceitos morais. Assim como Baco, suas
metamorfoses jogam com os rígidos modelos identitários que visam inserir as

13
Conforme Wisnik: “O ruído é aquele som que desorganiza outro, sinal que bloqueia o canal, ou
desmancha a mensagem, ou desloca o código” (1989, p. 29).
31

manifestação de excesso e desregramento no lugar-comum de uma postura danosa à


vida em sociedade.
Ao final da década de 1960 e início de 1970, assistimos o surgimento do
pacifismo, a irrupção dos movimentos de contra-cultura e a emergência de movimentos
como o “flower power”, em protesto contra as guerras e uma mentalidade da sociedade
armamentista.. É marcante também a influência de teóricos da chamada geração beat
como Jack Kerouac e Allan Ginsberg anunciando o Rock enquanto nova postura
poética. Rejeitando por completo qualquer forma de intelectualismo, os beatniks
buscavam modelos distintos de atuação política, dotados de um engajamento romântico
alternativos aos moldes da esquerda tradicional.
A profunda mudança por que passou a sociedade norte-americana era
evidenciada na música através dos grandes festivais como Monterrey (1967),
Woodstock (1969) e Altamont (1969) onde eram experienciadas novas formas de lidar
com a política, com a natureza e com a sexualidade. De igual modo, na Europa a
insatisfação contra os modelos de ensino, culminando com as barricadas de Maio de 68,
provocou uma nova postura frente à ordem destoante dos novos anseios da juventude.
Não tardou, portanto, para que o Rock se firmasse de vez como a expressão dessa
camada social insatisfeita com os modelos herdados da família e demais instituições
tradicionais.
Nesse período há uma mudança de uma postura de contestação estética para
outra mais profunda, através da qual se consolida o Rock como não mais um meio, mas
como fim a partir do qual se dá vazão à afirmação de uma vida alegre, afirmativa em
sua plenitude, contrapondo-se a uma ciência bélica negadora das vontades. Há uma
significativa inovação dentro do processo criativo nos diversos ramos da música. No
que diz respeito o campo da técnica, a década de 60 revelou novas possibilidades em
termos de recursos de amplificação do som ao mesmo tempo em que contribuiu para a
importância adquirida pela guitarra dentro do estilo. Músicos como Jimi Hendrix e Eric
Clapton (pioneiros do Heavy Rock) foram alguns dos pioneiros na virtuose através de
distorções e longos improvisos.
Ao final dessa década, o Rock também passava a incorporar novos elementos
em sua estrutura musical, e a partir de seu nascimento, marcado pelo elemento
excessivo e caótico da música, o Rock permite a entrada de elementos de racionalização
(apolíneos) em seu processo artístico. Confome Muggiati nos coloca relativo ao início
da década de 70:
32

No Rock’n’Roll de Elvis a balança pendeu para o dionisíaco, daí o


predomínio da dança. Dylan e os Beatles restabeleceram o equilíbrio
apolíneo/dionisíaco: o ritmo continuou pulsando interiormente,
vigoroso como nunca, mas e por isso mesmo tornando desnecessária
a expansão física na forma de dança. Bastava ao ouvinte marcar
apenas um compasso mental (1983, p. 91).

Essa incorporação de elementos racionais caracteriza, sobretudo, o Rock


Progressivo, com suas músicas de temas intrincados e estruturas musicais influenciadas
pela música clássica. Nessa nova vertente usam-se ritmos pouco comuns e métricas
diferentes a cada compasso, criando uma nova e elaborada textura sonora com uso de
teclados, sintetizadores e longos improvisos dos músicos. Com a racionalidade ainda
mais marcante nos modos de composição, o Rock Progressivo assimila a
monumentalidade da música clássica em suas longas músicas, juntamente com
experimentos associados aos elementos visuais dos shows. Cabe ressaltar, como
exemplo, o grupo britânico Pink Floyd, evidenciando a presença marcante dos modos
tonais da tradição em suas músicas além de contar em suas apresentações com recursos
visuais apoteóticos, os quais associados ao caráter imagético, como vimos, ligam-no
diretamente à arte apolínea.
Apesar de o caráter apolíneo ser predominante no Rock Progressivo, isso não
exclui o componente caótico e dionisíaco do estilo, pois conforme vimos, para
Nietzsche não podemos encontrar por completo uma música puramente dionisíaca visto
que o processo artístico se dá na correlação e na alternância dos impulsos apolíneo-
dionisíaco. “O rock de hoje não é apenas dionisíaco mas, assim como a tragédia grega e
o blues clássico, está ancorado no equilíbrio ideal entre dionisíaco e apolíneo – sendo
por isso o melhor veículo para refletir essa época de crise” (MUGGIATI, 1983, p. 92).
Ou o que para Nietzsche significaria:

Se pudéssemos imaginar uma encarnação da dissonância (...) tal


dissonância precisaria, a fim de poder viver, de uma ilusão magnífica
que cobrisse com um véu de beleza a sua própria essência (NT, p.
143).

O surgimento do Punk Rock, na metade da década de 1970, irá instaurar


definitivamente a presença do elemento dionisíaco no seio do estilo. De fato, o punk
inaugura um novo paradigma na história do Rock, pois traz de volta o elemento básico
de composição, além de influenciar diversos outros subgêneros (como o Hardcore e
33

Thrash Metal). Indo ao encontro do Rock Progressivo e de suas estruturas musicais


grandiosas, tem-se com o Punk o retorno aos elementos básicos da música com acordes
simples cuja métrica não era profundamente estudada por seus músicos. Tinha como
propósito mostrar a realidade em sua faceta mais crua, ainda que articulando
racionalmente um discurso contra a ordem estabelecida. Muggiati resume bem o
processo de radicalização da postura Punk na música:

O rock é como um míssil de múltiplos estágios. Ao ser lançado, nos


anos 50, seu significado era simples: sexo. Com o sexo como ignição,
o rock abriu o caminho para a nova moral dos anos 60. E o propelente
desta década foi a droga. Como sexo e droga se tornaram rotina nos
anos 70, os punks investiram contra o último tabu: a violência.
(MUGGIATI, 1985, p.72 apud AZEVEDO. In:
http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2007/etno
musicologia/etnom_CAzevedo.pdf, p. 08)

Poderíamos dizer, utilizando a descrição que Dias faz das propriedades


dionisíacas, que o Punk Rock representa um contraponto ao impulso apolíneo criador da
bela aparência, dando vazão ao seu correlato, o dionisíaco o qual “apontava para uma
realidade mais fundamental, de dor e excesso, em dilacerante contradição consigo
própria, revelando a parte mais obscura e absurda da existência” (DIAS, 2005, p. 76).
Sua origem está ligada ao contexto de declínio da economia britânica, com
uma boa parcela dos jovens de classes menos favorecidas sem acesso a emprego e
educação. No aspecto de sua realidade cultural, tal parcela da população não se
identificava mais com as bandas de Rock Progressivo14 e suas superproduções em
estádios, responsáveis, segundo eles, pelo distanciamento da música.
Gritos, distorções mais evidentes, sonoridade simples e excesso, em que a
inteligibilidade é transvalorada por dissonâncias e desarmonias as quais não estavam,
necessariamente, a serviço de um significado ou moral subjacentes, mas enunciavam a
decadência da sociedade de sua época. Assim como Nietzsche reclamava uma fraterna
aliança apolíneo-dionisíaca como forma de superação do socratismo estético, o Punk
Rock será o primeiro subgênero do Rock a radicalizar, de fato, uma postura contra
formas de vida (e aí se incluem também estilos musicais) que se propõem virtuosas pela
sua inteligibilidade e fácil aceitação.

14
Conta-se que a origem do grupo de Punk Rock Sex Pistols, teve origem com a visão de Malcom
McLaren – futuro empresário do grupo – de uma camisa de John Lydon com os Dizeres “eu odeio Pink
Floyd”.
34

O punk aparece então como uma música ágil e ‘autêntica’, ligada às


experiências dos jovens no cotidiano das ruas: uma música que faz
sentido de novo para os jovens e suas experiências reais. O resultado é
um retorno à estrutura básica do rock, um som seco, mais percussivo,
sem solos, gritado mais que cantado (ABRAMO, 1995, p. 44).

Contrapondo-se a uma postura estanque frente à determinada exigência do


status quo, os amantes desse subgênero passaram a recriar uma linguagem distinta,
dotada de simbolismos próprios através de suas roupas e posturas. Jeans rasgados,
jaquetas de couro e cabelos espetados aliando adornos destoantes entre si, junto de
cruzes, alfinetes e pregos num visual chocante e agressivo. Ainda segundo Nietzsche

É impossível, com a linguagem, alcançar por completo o simbolismo


universal da música, porque ela se refere simbolicamente à
contradição e à dor primordiais no coração do Uno-Primigênio,
simbolizando em conseqüência uma esfera que está acima e antes de
toda aparência (NT, p. 51).

Paralelo à repercussão mundial do Punk Rock assistimos o surgimento do


Heavy Rock, estilo que, também originado com as experimentações dos anos 1960,
passa a fundir os elementos do blues com uma batida mais forte de bateria a distorções
de guitarras mais saturadas. O Heavy Rock de bandas como The Who, Led Zeppelin e
Deep Purple representará o embrião do que mais tarde viria a ser conhecido como
Heavy Metal e irá frisar as possibilidades de rearranjos em termos sonoros e
comportamentais do estilo, que possibilitarão um aprofundamento no estudo das
propriedades do Rock não restrito ao âmbito da tragédia ática.
A rigor, a década de 1960 é também compreendida como a “era de ouro”
dentro da história do Rock, e, além de representar um marco no processo criativo da
música, põe em evidência múltiplas possibilidades de relação com o excesso, caos e
sensações. O Punk, juntamente com o Progressivo e o Heavy Metal são alguns dos
subgêneros que demonstram a evolução do estilo a partir dessa década, ora calcados em
moldes apolíneos como o foi o Rock Progressivo, ora através de uma manifestação da
dissonância e excesso dionisíacos, com o Punk Rock. A respeito da intensa dinâmica do
estilo e sua relação com a esfera conceitual nos diz Arnaldo Antunes:

Qualquer generalização classificatória parece insuficiente. O rock é


um rio de muitos afluentes. Heavy rockabilly punk tecno hardcore
pop rythm and blues progressivo new wave psicodélico ye ye ye
black metal and roll. Muitos grupos que se formam e/ou se extinguem
diariamente. Fusões com reggae funk blues sou samba jazz. Nada
35

disso satisfaz. Só uma coisa permanece e permite que continuemos


chamando-o de. Uma coisa que não está no som. Está na sede. O rock
tem urgência do agora. Presentidade. Vitalidade que assassina a
memória. Por isso é tão difícil catalogar. Dicionarizar.
Compartimentar. Ao mesmo tempo em que essa impossibilidade se
exibe, sentimos que há uma tradição a não passar impune (...)
(ANTUNES, 1987, p. 13 apud MARCUS DE SOUZA, 1995, p. 124).

Com o afastamento dos modelos filosóficos e musicais de sua juventude,


Nietzsche irá conceber a partir de uma guinada anti-fundacionista e de uma crítica à
tradição metafísica, a arte ligada diretamente a uma postura frente à vida. Sua mudança
de perspectiva em relação à figura de Wagner será central para entendermos o
afastamento dos ideais de sua juventude e seu reflexo na música o que, por conseguinte,
proporcionará elementos mais adequados para uma análise do Metal enquanto
subgênero distanciado dos caracteres metafísicos profundamente combatidos por
Nietzsche.
36

CAPÍTULO 2

A Estética da Existência e o Metal

Nós precisamos urgentemente de uma profissão de fé anti-romântica:


exigir da música que ela sirva não mais à ‘moral’, ou ao
‘melhoramento do povo’, mas à arte, ars, arte para artistas, uma
espécie de divina indiferença, uma espécie de alegria ilícita, em
detrimento de tudo que tem ‘importância’: a arte como sentimento
de superioridade e elevação; opondo-se à banalidade da política, a
Bismarck, ao socialismo, ao cristianismo etc...etc...(NIETZSCHE,
Cartas a Peter Gast, 19 de novembro de 1886, p. 438 e 439, apud
DIAS, 2005, p. 151). Grifo meu.

2.1. Transvalorações de Fundamentos e Distanciamento dos Ídolos

A partir das obras de maturidade de Nietzsche – cujo início é atribuído à


publicação de Humano Demasiado Humano (1878) – podemos perceber um
rompimento com suas concepções de uma metafísica de artista atreladas à figura de
Schopenhauer e Wagner. Este período marca o início de uma perspectiva anti-
fundacionista e de crítica à origem dos preconceitos morais. O conceito de vontade,
categoria central para a metafísica de Schopenhauer, será entendido dez anos mais tarde
por Nietzsche, no Crepúsculo dos Ídolos, como apenas uma palavra, não representando
qualquer fenômeno autônomo ou norteador da existência. A partir daí, a crítica ao
modelo de pensamento socrático-platônico já contida em gérmen no Nascimento da
Tragédia será aprofundada vigorosamente nos textos de Nietzsche.
Nietzsche irá empreender uma contundente crítica a Platão, a quem ele atribui
o erro fundamental da metafísica ocidental: a divisão da realidade em dois mundos
distintos – um mundo sensível e um mundo supra-sensível com a respectiva
hierarquização e valoração do mundo supra-sensível em detrimento do mundo sensível.
Ademais o autor da República faz da idéia do Bem o fundamento ontológico último do
real e, dessa forma, erige uma visão moral do mundo. Para Nietzsche, o discurso
37

metafísico tem origem, na necessidade psicológica humana de estabilidade e


permanência em oposição ao caos, à fluidez e ao devir.
Em seu livro de estréia, Nietzsche já havia identificado as posturas de Sócrates
e de Platão, como “sintomas de declínio, como instrumentos da dissolução grega” (CI,
p. 18), pois eles teriam abolido o caráter agônico e de disputa constitutivo da cultura
grega “buscando uma idéia transcendente de justiça norteadora do bom agir” 15. Daí a
caracterização de Sócrates e Platão como decadentes, “pseudogregos” ou “antigregos”,
os quais serão desmascarados, a partir dos usos que fazem da linguagem.

Minha desconfiança de Platão vai fundo, afinal: acho-o tão desviado


dos instintos fundamentais dos helenos, tão impregnado de moral, tão
cristão anteriormente ao cristianismo – ele já adota o conceito ‘bom’
como conceito supremo -, que eu utilizaria, para o fenômeno Platão, a
dura expressão ‘embuste superior’ ou, se soar melhor, idealismo,
antes que qualquer outra palavra (NIETZSCHE, CI, p. 102).

Nietzsche considera Platão como grande inimigo da arte, um “partidário do


além” e “caluniador da vida”, de tal modo que suas considerações ontológico-morais
exercerão profunda influência no pensamento cristão. Para Nietzsche, o cristianismo
representa a continuidade do modelo metafísico socrático-platônico de bipartição da
realidade em esferas distintas tais como contingente e necessário, verdadeiro e falso,
espiritual e o físico a partir do qual nossas ações são determinadas. É por isso que
Nietzsche denomina o cristianismo de um “platonismo para o povo” ou “um sistema,
uma visão elaborada e total das coisas” (CI, p. 65). Para Nietzsche, se retirarmos do
cristianismo “um conceito central, a fé em Deus, despedaçamos também o todo: já não
temos nada de necessário nas mãos” (CI, p. 65). Desse modo, declarar a morte de Deus
simboliza decretar o fim do platonismo, entendido aqui como uma defesa de um mundo
transcendente e supra-sensível.
A crítica de Nietzsche a Platão, porém, vai além do problema da bipartição
entre mundo sensível e supra-sensível. Ela toca também na pretensão do filósofo grego
de encontrar verdades universais e necessárias, o que, segundo nosso autor, configura
um dogmatismo. De fato, Platão herda de seu mestre a tentativa de elevar os valores
morais à condição de guias e juízes do conhecimento, o que, para Nietzsche, escamoteia

15
Trabalhamos a noção de ágon conforme Roberto Machado, segundo o qual “Ágon é o combate
individual que dá brilho à existência, tornando a vida do indivíduo digna de ser vivida não pela busca da
felicidade, como acontecerá a partir de Sócrates, mas pela busca do kleos, da glória” (MACHADO, 2006,
p. 204).
38

interesses inconfessos e, sobretudo, uma determinada perspectiva moral. Vale ressaltar


que a metafísica dualista de Platão determina também sua posição em relação à arte, o
que, especificamente na música, leva-o a uma idéia de íntima relação entre modos
musicais e as leis maiores da cidade (ROCHA JÚNIOR, 2007, p. 37). Essa concepção,
que prioriza determinados modos (a exemplo do dórico tido como o mais adequado para
uma postura cívica) é, para Nietzsche, fruto de uma metafísica baseada na idéia de um
mundo bipartido.
Nietzsche apesar de perceber na dialética socrática o surgimento de uma nova
forma de disputa, um novo ágon, irá conceber tal método como uma forma de legítima
defesa, em que a discussão sobre a fundamentação dos valores morais não irá tematizar
o que para ele constitui o aspecto principal: a questão do valor dos valores morais.
Segundo ele, nada merece ser levado mais a sério do que a moral outrora
tradicionalmente compreendida como um “dado”, algo válido para todos cujos preceitos
são obrigatórios para não importa qual indivíduo. Assim, faltava “a suspeita de que ali
havia algo problemático” (BM, p. 75).
Para Nietzsche, a moralidade não será uma simples conseqüência das
“condições objetivas” econômicas e políticas, mas o centro a partir do qual são erigidas
as estruturas que engendram uma série de valores de nossa civilização e que nunca foi
investigada de fato.

O julgamento moral tem isso em comum com o religioso, crê em


realidades que não são realidades. Moral é apenas uma interpretação
de determinados fenômenos, mais precisamente uma má
interpretação. O julgamento moral é parte, como o religioso, de um
estágio de ignorância em que falta inclusive o conceito de real, a
distinção entre real e imaginário: de modo que “verdade”, nesse
estágio, designa coisas que agora chamamos de “quimeras”
(NIETZSCHE, CI, p. 49).

Assim, por meio de uma tipologia baseada na distinção entre fortes e fracos,
Nietzsche demonstra em A Genealogia da Moral como a perspectiva moral se faz
presente nas relações humanas e sobretudo na linguagem. Para Nietzsche, o tipo forte
utiliza-se de pressupostos descritivos na apreciação de fatos do mundo, enquanto o fraco
irá empreender sua avaliação baseado em uma perspectiva moral. Assim, enquanto a
oposição do primeiro se dá entre bom e ruim, o fraco empreende sua distinção a partir
das noções de bom e mau. Nietzsche equipara a noção de forte ao homem nobre –
nobreza esta que não está necessariamente ligada à determinada condição
39

socioeconômica – cuja postura irá se contrapor ao mundo limitado dos fracos, ou dos
escravos. O tipo nobre é aquele que mais se aproxima de uma postura de afirmação da
vida, visto que:

A moral nobre, a moral dos senhores, tem suas raízes num triunfante
dizer-sim a si – é auto-afirmação, autoglorificação da vida, necessita
igualmente de sublimes símbolos e práticas, mas apenas “porque o
coração lhe está muito cheio” (NIETZSCHE, CW, p. 44).

Para Nietzsche, a lógica da obediência dos fracos e o discurso danoso


proclamado por eles têm como função domesticar o forte, o “animal de rapina”, que,
deixando de se utilizar das práticas cotidianas de domínio – intrinsecamente
relacionadas à própria vida – abre espaço para a entrada da culpa, do arrependimento ou
da má consciência.
A moral do nobre se constitui como um importante mecanismo para a
superação do espírito decadente herdado do platonismo, responsável pela negação do
vir-a-ser e pela criação de mundos fictícios originados a partir dos equívocos da
linguagem, cuja sedução e poder de “enfeitiçamento” se difundiram largamente ao
longo da tradição filosófica.
Ao eleger um mundo transcendente como um mundo “verdadeiro”, a filosofia
relega a multiplicidade do devir e da vida, em seu constante fluxo e tensão de forças, a
um plano secundário, e se posiciona de forma ascética diante da existência, procurado
minar assim toda e qualquer manifestação da vida. Contrapondo-se à postura ascética, o
filósofo do futuro será aquele que, liberado da moralidade do costume, torna-se
responsável pela transvaloração dos valores decadentes da modernidade, propondo um
“alegre saber” em detrimento de uma crença na onipotência da razão. O filósofo do
futuro ousa, portanto, romper a paralisia da vontade, diferentemente do décadent
moderno pois “eles não conhecem mais a independência no decidir, o ousado prazer no
querer – duvidam até em sonhos da ‘liberdade da vontade’” (NIETZSCHE, BM, p.
100).
Para Nietzsche a vida só tem sentido enquanto um excesso transbordante de
força e, assim, irá se contrapor em sua obra madura a seus antecessores que, segundo
ele, não souberam o verdadeiro sentido da palavra trágico. Nesse âmbito, o autor do
Crepúsculo dos Ídolos supera a noção de trágico proclamada pelos antigos e modernos
40

helenistas germânicos, deixando de restringir esse conceito a determinado desfecho de


um personagem e sua conseqüência na platéia, para associá-lo diretamente a uma
postura autêntica frente à existência. É nesse sentido que uma moral nobre não irá se
contrapor a uma postura trágica, entendida como aquela forma humana de existência
que abraça a vida na completude de seus fatos e acontecimentos, sejam eles positivos,
trágicos ou caóticos:

Se nós dizemos sim a um único instante, nós dizemos sim, através


disso, não apenas a nós mesmos, mas a toda a existência. Pois nada
existe por si só, nem em nós nem nas coisas; e se nossa alma, uma
única vez, vibrou e ressoou de alegria como uma corda, todas as
eternidades colaboraram em determinar esse único fato – e nesse
único instante de afirmação, toda a eternidade se encontra aprovada,
resgatada, justificada, afirmada (NIETZSCHE, fragmentos póstumos,
7 [38], KSA, vol.12, apud MOURA, 2005 , p. 307).

Decorrente disso, sua concepção de dionisíaco sofrerá um deslocamento


enquanto estado assentado em um pressuposto metafísico de acesso ao Uno-Primordial
para relacionar-se a uma postura que afirma a vida na sua totalidade:

O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos;


a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício
de seus mais elevados tipos – a isso chamei dionisíaco, nisso vislumbrei
a ponte para a psicologia do poeta trágico (CI, p. 106).

Lembremos que, diferentemente do que apregoava Aristóteles, a tragédia para


Nietzsche não terá a função de provocar uma descarga de temor e compaixão através de
uma identificação com o herói trágico. Ao contrário disso, Nietzsche considera que para
além do pavor e compaixão, o drama trágico é “em si mesmo o eterno prazer do vir-a-
ser – esse prazer que traz em si também o prazer no destruir” (CI, p. 106). A postura do
forte, portanto, equipara-se à postura dionisíaca, o que revela em sua filosofia a
indissociabilidade entre a filosofia do trágico e uma postura afirmativa da vida,
enquanto plenificação de instintos em completa oposição à perspectiva platônica.

O Nascimento da Tragédia foi minha primeira tresvaloração de todos


os valores: com isso estou de volta ao terreno em que medra meu
querer, meu saber – eu, o último discípulo do filósofo Dionísio – eu,
mestre do eterno retorno... (NIETZSCHE, CI, p. 107).

A concepção de dionisíaco aparece, nesse momento, como contraponto aos


estados decadentes, conforme Moura:
41

Enquanto a décadence se resume em um não dirigido à vida, para


Nietzsche a sua filosofia ‘quer, em vez disso, atravessar até o inverso
– até a um dionisíaco dizer-sim ao mundo, tal como é, sem desconto,
exceção e seleção (2005, p. 255).

Mas em que sentido essa nova perspectiva nietzscheana de inter-relação entre o


dionisíaco e a afirmação da vida redimensiona o seu olhar em torno da arte? De que
modo Nietzsche irá conceber um novo objetivo à música a partir da demolição dos
pressupostos fundacionistas? De que maneira tal arte passa a ser correlacionada aos
estados fisiológicos e induz a uma postura que afirme a própria vida enquanto fenômeno
estético?
Para responder a essas questões é necessário compreendermos o papel de
Richard Wagner na obra de Nietzsche a partir do qual o autor erige e desconstrói suas
idéias acerca da arte dos sons. E da vida.

2.2. Novos Rumos do Pensamento Musical de Nietzsche

O pensamento de Nietzsche acerca da arte em sua obra de estréia tem profunda


relação com certo furor juvenil despertado pela leitura dos dramas de Wagner e por seu
desejo de resgate da postura grega como meio de transformação da sociedade de sua
época. Em sua metafísica de artista, Nietzsche correlacionava a música à figura de
Dionísio como única via de acesso à vontade. Nesse período, a perspectiva nietzscheana
em torno do fenômeno musical não pode ser distanciada da figura de Richard Wagner e
seu marco fundamental dentro do movimento romântico, inovando o panorama da ópera
alemã.
Tido como o principal expoente do romantismo, Wagner inova em suas
estruturas de composição e harmonia, apresentando dramas caracterizados por uma forte
expressividade e marcados pelo leitmotiv, um recurso sonoro a partir do qual se
associava um tema musical a determinado personagem.
Para o jovem Nietzsche, tais aspectos faziam da música de Wagner grandiosa
e imponente, lançando esperança a uma Alemanha carente de uma aura mítica. Wagner
representava algo completamente novo. Um exemplo disso, é a célebre assimilação do
trítono no prelúdio à Tristão e Isolda, anunciando a assimilação do componente
irracional na música que ia de encontro aos modelos da tradição tonal, ordenadoras das
séries harmônicas. Em sua música, a palavra era como o remédio para a cultura,
42

possibilidade de reencontro de Dionísio e retorno do drama grego através da proposta da


arte total, fazendo do maestro poeta, artista plástico e músico. A admiração nutrida por
Nietzsche à figura do músico é tamanha, que o leva a afirmar que “toda a música
anterior aparece, em comparação com a wagneriana, rígida ou amedrontada, como se
não se devesse olhá-la de todos os lados e como se devesse se sentir envergonhada”
(NIETZSCHE, WB § 9. KSA, 1, p. 493, apud Burnet, 2007 p. 254).16
Será durante o ano de 1876 que Nietzsche começará a se distanciar da filosofia
de Schopenhauer e demonstrar desconforto com a música de Wagner, prenunciadas já
com a publicação da IV Extemporânea: Richard Wagner em Bayreuth. Nietzsche
mostra-se dividido, nesse período, entre a metafísica de artista e uma estetização da
própria existência, a partir da qual concebe a vida mesma como obra de arte. Ainda que
continue a idealizar o músico, a IV Extemporânea já traz um embrião do que viria a ser
a nova postura nietzscheana diante da música de Wagner, bem como seu distanciamento
em relação à metafísica de Schopenhauer, que compreendia a música enquanto
expressão suprema da vontade. A sua descrença numa perspectiva da música enquanto
consolo metafísico17 vem à tona a com a desilusão com a nova fase de Wagner,
presentificada nos dramas Parsifal18 e O Anel dos Nibelungos.
O afastamento definitivo se dá com a publicação do segundo volume de
Humano Demasiado Humano anunciando sua nova posição distante dos modelos
artísticos e filosóficos de sua juventude que agora, segundo ele, nada mais
representavam que caudatários de uma moral cristã. Conforme podemos verificar à
época de publicação do referido livro:

Eu quero expressamente declarar aos leitores de minhas obras


anteriores que abandonei as posições metafísico-estéticas que aí
dominam essencialmente: elas são agradáveis, porém insustentáveis
(NIETZSCHE, Fragmentos Póstumos 1876-1877, 23 [159]. Apud
DIAS, 2000, p. 16).

16
De fato, a influência e as inovações introduzidas por Wagner no panorama estético-musical de sua
época, pode ser equiparada, nos dias de hoje, segundo Malcom Dome, ao grupo de Hard Rock Deep
Purple tamanha a inovação e densidade de sua música (DOME, entrevista In: Metal: A Headbanger`s
Journey, 2005)
17
Conforme Dias: “O segundo volume de Humano, Demasiado Humano é assim porta-voz de um
deslocamento do centro de gravidade da filosofia de Nietzsche sobre a arte – a passagem da reflexão
sobre as obras de arte para uma reflexão bem particular, a vida mesma considerada como arte. E desse
modo Nietzsche diminui ainda mais a separação entre arte e vida, torna-a determinante na construção de
belas possibilidades de vida” (2000, p. 18).
18
A ópera Parsifal será o representante máximo dessa nova fase de crítica ao romantismo, o qual deixa de
ser compreendido como um período histórico-cultural específico e passa a ser descrito como um modo de
composição doente, à serviço de um sentido, da castidade e veículo para uma postura religiosa.
43

À medida em que se dá a aproximação de Wagner com o cristianismo e a


abordagem de caracteres moralizantes em seus dramas, Nietzsche inicia o rompimento
com o músico, tecendo-lhe, de fato, impiedosas críticas. Se outrora Wagner
representava o prenúncio de uma nova cultura e de uma nova vivência do trágico, nesse
segundo momento, Nietzsche irá considerá-lo um decadente por haver colocado a
música a serviço de uma mensagem moral, perdendo ela sua condição de soberana da
cena. Assim, ele irá lamentar “que a música tenha sido privada de seu caráter
afirmativo e transfigurador do mundo, que se tenha tornado música de decadência, não
sendo mais a flauta de Dionísio” (EH p. 110).
A música, indissociável de uma postura acerca da vida e intimamente ligada a
modos afirmativos de existência, passa a ir ao encontro, nessa nova fase de Wagner, a
um conjunto de ideais ascéticos apregoados pelo cristianismo. Tal postura, inaceitável
aos olhos de Nietzsche, leva-o a apontar o autor de Tristão e Isolda como “vitalmente
perigoso”, ou ainda, um “caluniador do mundo” 19.
Tal polêmica, expressa em O Caso Wagner, denuncia a postura de Wagner
que, ao tratar a música como arte subordinada, retira-lhe o status de elemento principal
do drama. Essa mudança de comportamento é vista por Nietzsche como resultado do
envelhecimento do compositor e de sua aproximação com a filosofia de Schopenhauer.
À época das Extemporâneas, Nietzsche já percebera que a postura de seu antigo modelo
filosófico era incompatível com em sua nova perspectiva frente à música:

A música não revela a essência do mundo e sua vontade como o


pretendeu Schopenhauer (que se enganara sobre a música como sobre
a piedade, e pela mesma razão – ele as conhecia ambas muito pouco
por experiência), a música não revela senão os Senhores músicos! E
eles ignoram a si mesmos! – E que sorte, talvez, que eles o ignorem!
(NIETZSCHE, Fragmentos Póstumos, 2 – W I 8. Outono 1885 –
outono 1886, 2 [29], apud DIAS, p. 129).

Sobre a postura de Wagner, que sucumbira aos “absurdos morais e religiosos”


(CW, p. 3), Nietzsche afirma que:

19
Por outro lado, apesar das duras críticas empreendidas ao seu antigo ídolo Nietzsche reconhece a
importância influência que Wagner exerceu em sua juventude e no contexto musical alemão: “Ainda hoje
eu procuro uma ópera duma fascinação tão perigosa, tão infinitamente terrível e doce como o Tristão;
procuro-a em todas as artes, porém inutilmente. As mais formosas e estranhas concepções de Leonardo da
Vinci perdem o atrativo diante dos primeiros acordes de Tristão. Essa obra é realmente o Nec plus ultra
de Wagner” (EH, p. 59).
44

Nada existe de cansado, de caduco, de vitalmente perigoso e de


caluniador do mundo, entre as coisas do espírito, que a sua arte não
tenha secretamente tomado em proteção – é o mais negro
obscurantismo, o que ele esconde nos mantos de luz do ideal (CW, p.
36).

A partir daí, a analogia entre estados de saúde e a arte de Wagner será


recorrente no Caso Wagner, onde Nietzsche afirma o distanciamento por que passou a
música do compositor em relação à dimensão sensual20, deixando de ser dionisíaca para
ser uma música doente. Essa análise fisiopsicológica das obras musicais, conforme
Barros (2007, p.117), marca um momento de aproximação da arte à esfera sensual e
corpórea, destituindo-se de um fundo metafísico apartado das vivências. Ou seja, há um
“filosofar que não sabe distinguir música e existência, que se torna cada vez mais o que
é quanto mais musical se torna” (idem, p. 117).
Nesse momento, que marca a ruptura de Nietzsche da figura de Wagner, há,
“um deslocamento do centro de gravidade da filosofia de Nietzsche sobre a arte – a
passagem da reflexão sobre as obras de arte para uma reflexão bem particular, a vida
mesma considerada como arte” (DIAS, 2000, p. 18). Assim, todas as esperanças que
Nietzsche atribuíra à Wagner de transformação de seu tempo através da arte e,
especificamente, da grandiosidade de sua música, nada mais representaram do que uma
revolução da forma, bem distante de uma sonhada revolução cultural21.
Nietzsche levará a cabo, nesse segundo momento, uma postura em torno da
arte distanciada de um propósito de redenção ou justificação metafísica. Sem Deus, ou
qualquer outro fundamento transcendente para a existência humana compete, então ao
homem, efetivar-se enquanto “artista de sua própria existência” o que será, para
Nietzsche, a expressão máxima de uma postura artística frente à vida. Conforme Dias:

Nessa tarefa de se tornar sem cessar o que se é, de ser mestre e


escultor de si mesmo para enfrentar o sofrimento do mundo sem
Deus, as técnicas do artista e principalmente as do poeta e do
romancista podem ser de grande valia, já que elas mostram como é
possível escrever para nós um novo papel, um outro personagem com
novo caráter (In: http://www.scribd.com/doc/3506375/Dias-Rosa-
Nietzsche-e-FoucaultA-vida-como-obra-de-arte-artigo, p. 8-9. Acesso
em: 27 mai. 2009)

20
Nesse período há uma aproximação de Nietzsche ao compositor Bizet através da ópera Carmen. Essa
mudança, em face da relevância de Wagner para história da música, é algo incompreensível para
determinados musicólogos.
21
A própria crítica à Wagner é empreendida sob forma de uma fina ironia e sarcasmo, a exemplo do título
“Crepúsculo dos Ídolos”: uma paródia em relação ao título da ópera wagneriana Götterdämmerung
(“Crepúsculo dos deuses”).
45

Nesse sentido, enquanto a figura de Wagner catalisa num primeiro momento as


posturas nietzscheanas de promessa para uma nova arte germânica, num segundo
momento uma nova visão de Nietzsche sobre a arte toma a postura dionisíaca como toda
aquela postura que não se deixa tornar refém do socratismo estético, ou seja, de uma
mensagem moral negadora da vida. A ausência de uma dimensão que estabiliza o devir
ou que visa uma imutabilidade do sujeito faz com que seja necessário assumir a própria
existência enquanto processo artístico. Conforme Nietzsche:

Guardemo-nos! – O caráter geral do mundo, no entanto, é caos por


toda a eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, mas de
ausência de ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que
se chamem nossos antropomorfismos estéticos (GC, p.118).

Ao conceber um plano de imanência no âmbito da arte, a existência será


entendida como um processo a partir do qual o ser humano passa a ser concebido da
perspectiva do artista, isto é, como aquele que cria a si mesmo.

A música, livre da submissão à palavra e da obrigação de veicular


um sentido, torna-se, ao contrário do que poderia parecer, de fato
comunicativa, pois desperta no ouvinte o que nele é exceção: o poder
de criar. Daí a chave da estética musical Nietzscheana: a música é
inseparável de uma experiência de afirmação da existência
(DIAS, 2005, p. 152).

2.3. A Música Metal e as Correspondências com a Estética Musical


Nietzscheana

A partir dessa nova perspectiva nietzscheana, encontramos elementos mais


apropriados para uma compreensão do estilo Metal enquanto subgênero do Rock
diretamente ligado a uma postura afirmativa da vida e que ressignifica os símbolos mais
caros da moral tradicional. Partindo dos pontos trabalhados por Nietzsche a partir do
rompimento com os ídolos de sua juventude, verificamos no Metal o estilo dotado de
uma postura comportamental e musical melhor acabada de transvaloração da moral,
contraposta a um plano transcendente, de negação do discurso universalista e que aceita
o conflito como parte necessária da existência.
A nosso ver, a evolução do estilo Metal como um subgênero do Rock, que
ganhou paulatinamente autonomia e especificidade própria, pode ser compreendida a
partir de uma analogia com as concepções de música que encontramos na obra de
46

Nietzsche. Verifica-se nele a predominância de elementos associados à noção de uma


estética da existência sem perder a dimensão caótica, excessiva e desregrada,
relacionadas a uma metafísica da arte. Por outro lado, a especificidade da estética do
Metal reside na radicalização de uma dimensão imanente representando um processo de
estetização da existência, sobretudo pelas posturas críticas ao ascetismo, assumidas
através de letras, formas de conduta e expressões do imaginário das bandas e amantes
do estilo. As formas de criação de si mesmo permeiam seus diversos campos (líricos,
comportamentais e sonoros) através de críticas a um fundamento último responsável
pela uniformização do comportamento, na valorização do conflito, no ataque ao
cristianismo e na ressignificação de valores que visam domesticar a vida.

2.4. Origem da Música Metal

Vimos que a intensa criatividade musical dos anos 60 provocou a eclosão do


Rock progressivo e do Punk Rock, sendo acompanhado, mais tarde, do Heavy Metal. O
Heavy Metal nasce de uma ramificação do chamado blues-rock e psycodelic-rock
praticados na metade dos anos 60 (Cream, Jimi Hendrix, Led Zeppelin e outros) e é
caracterizado por uma exacerbação nos recursos de amplificação, com bateria marcante,
guitarra distorcidas e vocais intensos. Usualmente, o termo Heavy Metal é utilizado de
forma genérica para descrever estilos musicais mais pesados em relação ao Rock
‘n’Roll. No entanto, o gênero ganhou tal variedade que o Heavy Metal se tornou um
estilo de música específico dentro de um leque mais abrangente denominado Metal, que
contém os subgêneros Heavy Metal, Thrash Metal, Death Metal, Black Metal, Doom
Metal, etc.22
Ainda que não possamos fixar rigidamente uma data de surgimento do estilo
Metal, o termo Heavy Metal aparece pela primeira vez no início dos anos 1970 na letra
“Born to be Wild” do grupo Stepenwolf. A música, que é parte da trilha sonora do filme
Easy Rider, traz, em sua lírica, a expressão Heavy Metal Thunder, descrevendo o
barulho do motor das motocicletas. No campo literário, o termo Heavy Metal aparece

22
É importante ressaltar que uma das vertentes do Metal, o White Metal, utiliza-se da música como
veículo de propagação da mensagem cristã, com vistas à evangelização e disseminação das idéias das
Escrituras. Ainda que seja categorizado com um subgênero do Metal, sua aceitação não se dá de forma
homogênea dentre os adeptos do estilo. Dada a quantidade de bandas, fãs e espaços específicos dedicados
ao referido subgênero ser relativamente menor do que as demais vertentes da música Metal, o White
Metal não invalida os propósitos originais do estudo de pensar o Metal enquanto criação de si mesmo a
partir de uma crítica à esfera transcendente.
47

pela primeira vez no livro marco da geração Beat intitulado “O Almoço Nu”, de
William S. Burroughs. No que diz respeito ao aspecto musical, alguns estudiosos
atribuem à canção You Really Got Me do grupo The Kink’s o título de primeira música
no estilo musical Heavy Metal por utilizar em sua estrutura sonora os Power Chords,
técnica a partir da qual a nota mais grave ou tônica é tocada apenas com a dominante.
Em todo caso, dentro do contexto de profusão de ritmos musicais, a expressão “Heavy
Metal” mostrou-se bastante útil à imprensa da época pois permitia designar com um
único termo bandas que não se encaixavam nos padrões do Rock de até então e que
eram mais pesadas que os grupos de Rock Psicodélico.
O contexto social de criação do estilo musical Metal está intimamente atrelado
ao contexto sócio-econômico da Inglaterra, no início da década de 1970, sobretudo nas
cidades operárias ao norte daquele país, coincidindo com o fim das utopias da década
anterior (ilustrado emblematicamente com a frase de John Lenon: “o Sonho acabou”).
Nos Estados Unidos, a representação do que viria a se constituir como o Metal se dava
através de grupos como Iron Butterfly e Blue Cheer, pioneiras no uso das distorções
exacerbadas e formas de se portar no palco como conhecemos hoje: headbanging
(batendo cabeça), em que os músicos movimentam a cabeça para frente e para trás. Essa
postura se tornaria, mais tarde, marca registrada do modo de interação entre os amantes
do estilo e suas bandas favoritas.
Em termos sonoros, o estilo musical será marcado pela proeminência da
guitarra e dos pedais de distorção. Guitarristas virtuosos exibiam solos ricamente
elaborados e inseridos em estruturas musicais arranjadas, grande parte, a partir de riffs
(sequências de notas) seguindo escalas modais e cromáticas23. O trítono, outrora
condenado na Idade Média é incorporado sem restrição ao processo de composição
juntamente com diferentes escalas e modos condenados desde Platão em seu projeto de
cidade ideal.

23
Confira: http://encyclopedia.thefreedictionary.com/Heavy+metal+music#endnote_rf-8 Acessado em:
20 mai. 2009.
48

Assim, o heavy metal surge como uma mescla de rock psicodélico


pesado, com influências de blues e blues rock, notadamente os riffs,
solos e emotividade vocal, e de música erudita, apresentando uma
série de novas convenções – temáticas caóticas (aqui se encaixam os
temas de terror) e dionisíacas, riffs, power chords, solos, vocais
emotivos, peso, distorção intensa e permanente. E, sobretudo, a
conversão de símbolos sagrados do mal em convenções artísticas
esvaziadas de poder atemorizador - que caracterizam o nascimento de
um novo mundo artístico, revolucionário, com uma nova rede de
pessoas que produzem, consomem e atribuem à música produzida o
título de “arte” (LEITE LOPES, 2006, p.117).

O posto de primeira banda de Heavy Metal é atribuído, comumente, à banda


Black Sabbath, que é a grande referência no surgimento do estilo segundo a literatura
especializada e o imaginário dos amantes do gênero. O quarteto britânico iniciou suas
atividades em Aston, Birmingham no começo de 1969, e inovou dentro do panorama
das bandas de Heavy Rock de então. Diferentemente de suas contemporâneas Led
Zeppelin e Deep Purple, o Black Sabbath primava por composições mais densas, com
atmosferas soturnas e letras baseadas em filmes de horror. A música Black Sabbath é
estruturada basicamente no trítono, permeada por rajadas e barulhos de trovões.
Com o surgimento do Black Sabbath outros grupos passaram a incorporar uma
maior densidade musical em suas músicas, o que, ao final da década de 1970,
possibilitou o surgimento da Nova Onda do Heavy Metal Britânico (NWOBHM), que
injetou novos elementos ao estilo criado pelo grupo de Birminghan. Bandas como Judas
Priest, Samsom, Iron Maiden e Diamond Head trouxeram uma influência mais
melódica, rápida e pesada ao estilo de seus predecessores. Aglutinando também a
influência do Punk, a NWOBHM proporcionou novo fôlego ao Metal, contribuindo
para a criação de outros subgêneros, como o Thrash e o Death Metal.
Focalizarei nos subgêneros Thrash e Death Metal, pois eles condensam de
forma mais pungente as noções de crítica a um mundo transcendente e ao cristianismo,
do mesmo modo que metaforizam o caos da existência de forma correlata à proposta
nietzscheana de uma filosofia do futuro afirmadora da vida. Além disso, a escolha
dessas vertentes do Metal se dá frente aos limites da pesquisa, pois esmiuçar cada um
dos subgêneros do estilo – Heavy Metal, Glam Metal, Prog Metal, Speed Metal, Power
Metal, Doom Metal, Black Metal, Stoner Metal, etc. – tornaria meu empreendimento
inexeqüível.
49

2. 5. O Thrash e o Death Metal

O desenvolvimento do Thrash e Death Metal se dá durante a década de 80 com


uma mescla dos estilos das bandas da NWOBHM com a vertente mais agressiva do
Punk Rock: o Hardcore. Ambos os estilos possuem especificidades próprias em sua
parte lírica e sonora, mas são marcados pela influência da mesma banda: Venom.
Surgida na cidade de Newcasttle, Inglaterra no início dos anos 1980, o Venom
influenciou gerações de bandas, dado à sua postura e sonoridade agressiva, mesclando
letras sobre satanismo e duras críticas à religião. Seu álbum de estréia, intitulado
“Welcome to Hell”, arregimentou um grande número de fãs, identificados com sua
proposta mais extrema frente às demais bandas da época, servindo de grande inspiração
para os estilos subseqüentes.
A influência do Venom será marcante no cenário da Bay Area em São
Francisco, Estados Unidos, o que, em meados de 1982, favorecerá o surgimento do
Thrash Metal. Grupos como Metallica, Exodus, Dark Angel e Testament herdam das
bandas da NWOBHM o peso em relação aos estilos de Rock precedentes, do mesmo
modo que aglutinam a rapidez e o caráter despojado das bandas de Hardcore. A herança
do Punk favoreceu uma despreocupação em termos de imagem, contraposta às bandas
do chamado Glam Metal (abreviação de Glamorous Metal), cujos músicos exibiam um
visual espalhafatoso e colorido, além de utilizarem maquiagem e trajes femininos. A
influência do Hardcore faz-se presente, também, nos shows, a exemplo dos Stage
Divings (onde os fãs saltam do palco para a plateia) e nas rodas de pogo, local onde o
público se debate em círculos frente ao palco.
Thrash significa ao pé da letra “barulho”, batida (não confundir com “trash”
que significa lixo). Com o advento do estilo se dá também o surgimento dos
headbangers, ou “batedores de cabeça”, terminologia dada em referência ao modo com
que os amantes do estilo interagem com a música executada por suas bandas. Nos
Estados Unidos as pioneiras do estilo são Metallica e Slayer. Essa última,
diferentemente das bandas de Glam Metal americanas, optou por seguir um rumo mais
agressivo e extremado. O Slayer logo se tornou referência junto aos amantes do gênero
com letras abordando comportamentos humanos doentios, assassinatos e temáticas
anticristãs. O seu álbum de estréia já apresentava, no título de conotações nietzscheanas
(Show no Mercy/ Não Tenha Misericórdia), o viés polêmico a ser seguido pela banda.
50

Dentre os inúmeros adeptos do Venom, surge na Suíça o Hellhammer, grupo


que lançaria as bases do Death Metal. Nos Estados Unidos, o Death Metal teria como
representante o Possessed, que contribuiu significativamente para a criação de uma
vertente ainda mais rápida e pesada que o Thrash Metal, com ênfase em temáticas mais
soturnas e blasfemadoras. Marcado pela exacerbação da velocidade e pela
agressividade, o Death Metal utiliza-se da técnica do gutural nos vocais, em que o ritmo
é ainda mais acelerado e a melodia entremeada por riffs de guitarra mais rápidos. O
Death Metal irá se apresentar como um ritmo mais extremo, denso e com freqüentes
mudanças de andamento nas músicas.
No que tange à parte estética inaugurada com esse gênero, destacam-se as
capas de discos retratando corpos dissecados e mutilados, aliados a uma afronta à Igreja
e seus valores de piedade e resignação. Decorrente disso, tornou-se freqüente a censura
à determinadas capas de discos das bandas de Death Metal em alguns países, com a
alegação de afronta aos valores morais da tradição24. De fato, a exposição do corpo
retalhado e costurado vai de encontro à representação do humano enquanto criação
divina, além de dessacralizar o corpo em que, segundo o ideal cristão, repousa a
possibilidade de comunhão com a divindade transcendente25.
Vale ressaltar que o desenvolvimento dos subgêneros Thrash e Death Metal,
como se conhece hoje, está intimamente relacionado a temas como ocultismo, morte,
mitologia, guerras, conflitos nucelares, sexo, além de uma ode ao próprio estilo. De
maneira geral, os amantes de ambos os gêneros, utilizam-se de trajes pretos, jeans
rasgados, jaquetas com patches (pedaços de pano com logotipos de bandas), adornos na
cor prata e, ocasionalmente, spikes (espécie de pulseira com pregos ou material de
níquel).
Assim, tornam-se freqüentes os ataques e censuras ao estilo musical Metal por
parte de grupos religiosos e organizações de pais que dirigem a essa estética agressiva
alegações de obscenidade, apologia à violência e por conter, segundo eles, mensagens
subliminares que contrariem seus princípios morais.

24
Dentro desse âmbito, o grupo estadunidense Cannibal Corpse já teve as capas dos álbuns Eaten Back to
Life (“Devorado de Volta à Vida”), Butchererd at Birth (“Esquartejado ao Nascer”) e Tomb of the
Mutilated (“A Tumba dos Mutilados”) censuradas na Alemanha e na Nova Zelândia. O banda foi
obrigada também a refazer tais capas na Austrália. (SLAGEL, Entrevista In: Metal: A Headbanger`s
Journey, 2005)
25
Nas palavras de Nietzsche “(...) o cristianismo, que desprezava o corpo, foi até agora a maior desgraça
da humanidade” (CI, p. 97).
51

2. 6. Estética da Existência e o Metal: Correspondências

As críticas empreendidas ao estilo musical Metal refletem uma moral que


recusa as manifestações e expressões de vida dos amantes do estilo em seu fluxo e
multiplicidade, relegando a um plano secundário o sentimento de pertença a uma
comunidade de sentidos específica26 e seu conjunto de práticas artísticas
transfiguradoras do real. Representando uma “vontade de negação da vida”, os
representantes de uma moral ascética desconhecem as possibilidades do Metal de
ressignificar símbolos constantemente atribuídos ao domínio ontológico do mal27,
negligenciando “quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as ‘coisas boas’”
(NIETZSCHE, GM, p. 52). Herdeiros do socratismo estético, pais, grupos religiosos e
entidades a serviço da moral e dos bons costumes empreendem o distanciamento do
elemento caótico, da diferença, através de críticas e ataques ao estilo musical Metal por
se apropriar de símbolos da tradição em uma manifestação artística afirmativa da vida.
Face à transitoriedade do mundo e à ausência de uma fundamentação imutável
do sujeito, cabe ao indivíduo ser o artista de sua própria existência, e, assim, o estilo
Metal realizará tal empreendimento a partir de uma crítica a determinados discursos no
campo intelectual, religioso e moral e suas tentativas de domesticação da vontade de
vida, entendida aqui como a plenificação dos instintos.
Minha tarefa de uma atualização da perspectiva Nietzsche em torno de uma
estetização da existência dentro do universo do Metal não irá se restringir ao âmbito das
letras dos grupos. De outro modo, tal empreendimento iria de encontro ao projeto
nietzscheano de uma análise da música para além da razão conceitual. Analisaremos, a
seguir, as práticas e posturas associadas ao estilo para além do âmbito articulado do
discurso de determinados grupos, problematizando de que maneira o Metal manifesta a
criação de si mesmo a partir de uma contraposição ao modelo metafísico de
imutabilidade do devir que tem como pressupostos a domesticação do conflito e dos
instintos.

26
“Quando jovem era a música que representava a minha comunidade, a comunidade que eu me
identificava e fiz questão de pertencer. Eram os headbangers. Sujeitos estranhos, quase sempre cabeludos,
arredios, inteligentes acima da média. Ainda sinto quase a mesma emoção” (BRUCE, ver anexo).
27
Conforme Leite Lopes: “Ao converter símbolos religiosos associados ao domínio ontológico do mal
por tradições religiosas majoritárias – logo símbolos tidos como dados constituintes da realidade pelas
mesmas - em convenções artísticas questionadoras, muitas vezes positivadas e pertencentes ao domínio
do construído, o heavy metal gera desconforto entre os que não compreendem essa operação, e tem por
resposta preconceito e evitação por grande parte dos não adeptos”. (2006, p. 185)
52

2. 6.1. Metafísica, o Filósofo e o Conflito em Unleashed, Death e Slayer

A crítica a um mundo transcendente e à domesticação dos instintos pode ser


ilustrada dentro da estética do Metal a partir da música “Helljoy” do grupo sueco
Unleashed. O trecho da letra, que faz parte do álbum Sworm Allegiance, retrata um
claro exemplo da dimensão de imanência no Metal, que se contrapõe a um princípio
último ou a um télos que rege e fundamenta as ações humanas:

“Helljoy” – Unleashed (2004)


[Johnny]
There is no holy land
No better place to dwell
Here is our day of joy
Here and now is our hell
I am my own God
I am my own slave
There is no redeemer
To see me through the day

Helljoy – Pleasure of the flesh


Helljoy – indulgence ‘till death28

Ao afirmar-se enquanto “seu próprio Deus” ou “seu próprio escravo”, o grupo


aponta para a possibilidade de uma criação de si mesmo frente à vida desvinculando-se
de um modelo único, ontológico e naturalmente determinado. De igual modo, para
Nietzsche:

Não há sentido em fabular acerca de um “outro” mundo, a menos que


um instinto de calúnia, apequenamento e suspeição da vida seja
poderoso em nós: nesse caso, vingamo-nos da vida com a
fantasmagoria de uma vida “outra”, “melhor” (CI, p. 29).

Essa postura traz em si um ataque aos decadentes e suas fábulas acerca de um


“verdadeiro mundo”, um outro mundo que não este.

E para que sua reprovação e condenação ganhem então seu máximo


direito de cidadania e sua legitimidade última, o decadente vai
inventar a hipóstase de um mundo diferente do mundo dado, em
função do qual a afirmação da vida seja vista como algo em si
reprovável (MOURA, 2005, p. 246-247).

28
Prazer Infernal - Não há terra prometida /Nenhum lugar melhor para viver / Esse é nosso dia de glória /
Aqui e agora é nosso inferno / Eu sou meu próprio Deus / Eu sou meu próprio escravo /Não há salvador /
Que me veja durante o dia / Prazer infernal– prazeres da carne/ Prazer infernal – indulgência até a morte.
Todas as traduções das letras de bandas são de autoria de Felipe Ferreira
53

A vida, destituída de uma finalidade, aparece como um grande problema para a


tradição filosófica a qual, por meio de “vontade de verdade”, busca uma estabilidade
para o continuum de mudanças do vir-a-ser. Segundo Nietzsche, os filósofos não têm
consciência do quanto a vontade de verdade precisa de uma justificação, isso:

porque o ideal ascético foi até agora senhor de toda a filosofia, porque
a verdade foi entronizada como Ser, como Deus, como instância
suprema, porque a verdade não podia em absoluto ser um problema
(GM, p. 140).

Nesse sentido, a separação entre a falsidade e veracidade de um discurso e a


valoração da “verdade” em detrimento da aparência “não passa de um preconceito
moral” (NIETZSCHE, BM, p. 39). A crítica a essa absolutização do discurso e de
defesa de uma única perspectiva do pensamento empreendida pelos filósofos é
denunciada pelo grupo estadunidense Death:

“The Philosofer” – Death (1993)


[Chuck Schuldiner]
(...)
What sounds more mentally stimulating
Is how you make your choice
So you preach about
How I’m supposed to be
Yet you don't you know your own sexuality
Lies feed your judgment of others
Behold how the blind lead each other
The philosopher
You know so much about nothing at all29

O trecho da letra tematiza a maneira com que o discurso filosófico assentado


em bases metafísicas opõe-se à efetivação do espírito livre, aquele que mesmo se
dedicando ao conhecimento não se deixa iludir com a veneração das massas. Conforme
Moura:

o pecado capital dos filósofos é prévio à sua megalomania: se eles


pretendem fundar a moral, é porque partem do prejuízo de que existe,
por princípio, uma moral universal, logo, única ( 2005, p.81).

29
O Filosófo – O que soa mais mentalmente estimulante/ É como você faz sua escolha/Então você prega
sobre/ Como eu deveria ser/ Você ainda não conhece sua própria sexualidade/ As mentiras alimentam seu
julgamento/ Observe como os cegos guiam uns aos outros/ O filósofo/ Você sabe muito sobre coisa
alguma.
54

Esse tipo de filósofo, gestado com o pensamento platônico e nutrido com o


idealismo alemão, é alvo de Nietzsche por ter suprimido um dos caracteres básicos da
civilização grega: a disputa. “Mas os filósofos são os décadents do helenismo, o
antimovimento contra o gosto antigo e nobre (- contra o instinto agonal, contra a pólis,
contra o valor da raça, contra a autoridade da tradição)” (CI, p. 104).
Em um mundo permeado pela tensão de forças, a disputa e conflito são
constantemente valorizados no universo do Metal30 e são expressos com maestria pelo
grupo Slayer, na Letra de Catalyst do álbum Christ Illusion (Ilusão de Cristo):

“Catalyst” - Slayer (2006)


[ Kerry King ]
Attitude is my addiction
I live life with no regret
Unlike it's my conviction
That sets me apart from the rest

I live for competition


Your cynicism only makes me stronger
I am the culmination
Setting the Standard that all will follow

I live it every day


Don't know another way

Within my eyes
There is devastation an fury
You can't understand
In my fight
Win by attrition
I bring it with that I fucking am

You never dealt with such rejection


Licking your wounds that won't fucking heal
You've never seen so much aggression
I am the scream to your fucking silence

I live it every day


Don't know another way

Attitude is my addiction
I live life with no regret
Unlike you it's my affliction
That creates the template of all that I am

You know I know


No matter what you say
You'll be beaten today
Like every other day

30
“Vindo das negras matas do norte o Mortificy lança seu 1º registro composto por cinco odes ao caos e
ao conflito” (RICARDO, Tadeu, 2006. p. 36) .
55

Something about you


Keeps you from letting go
Of lame obsessions
Built up inside you
Forget the guesswork
You're starting at the source
Gazing into my eyes
You'll see there's no remorse
'cause this is my war
All day and every day
It's all about the conflict
Yeah!

Bring on the competition


Your pessimism only makes my stronger
I am the culmination
The fucking Standard that all will follow

I live it every day


Don't know another way31

O ágon entendido aqui como conflito e o tensionamento de forças em


permanente processo não irá se restringir, no estilo musical Metal, ao aspecto da lírica.
De outro modo, as associações constantes a temas como força, guerra e virilidade são
manifestas em capas de discos, dentro das rodas de pogo – onde violência e a força são
uma necessária condição para a permanência frente ao palco – e na valorização dos
atributos masculinos.

O Metal é provavelmente o último baluarte de uma verdadeira


rebelião, verdadeira masculinidade, verdadeiros homens agrupando-
se e batendo no seu peito. É perfeitamente normal que homens vão a
um concerto de Metal, tirem a camiseta, agitem-na sobre sua cabeça e
se pareçam loucos, em lugar de tratar de ser idiotas sensíveis ou o que
seja. Adoro as mulheres e lhes tenho muito respeito, mas ao mesmo
tempo sou um homem. Gosto de me juntar com homens e fazer
idiotices, simples assim. Creio que o Metal é um dos poucos lugares
em que se pode fazer isso. (TAYLOR, In: Metal: A Headbanger`s
Journey, 2005).

31
Catalisador – “Atitude é meu vício/ Eu vivo a vida sem arrependimento/ A não igualdade é a minha
convicção/ Que me separa do resto/ Eu vivo pela competição/ Seu cinismo só me faz ficar mais forte/
Eu sou a culminação/ Determinando o padrão que todos seguirão/ Eu vivo isto diariamente/ Não conheço
outra forma/ Dentro dos meus olhos/ Há devastação, uma fúria/ Você não consegue compreender/ Em
minha luta/ Venço por atrito/ Eu a trago com a porra daquilo que eu sou/ Você nunca lidou com tal
rejeição/ Lambendo suas feridas que não vão curar/ Você nunca viu tanta agressão/ Eu sou o grito para a
porra do seu silêncio/ Eu vivo isto diariamente/ Não conheço outra forma/ Atitude é meu hábito /Eu vivo
a vida sem arrependimento/ Ao contrário de você, é a minha aflição/ Que cria o modelo de tudo que eu
sou/Você sabe que eu sei/ Não importa o que você diga/ Você será batido hoje/ Como qualquer outro dia/
Algo sobre você/ Não o deixa partir/ De obsessões capengas/ Construídas dentro de você/ Esqueça as
conjeturas/ Você está iniciando junto à fonte/ Fitando em meus olhos/ Você verá que não há remorso/
Pois esta é a minha guerra/ O dia todo e todos os dias/ O conflito está em toda parte/ É!/ Traga a
competição/ Seu pessimismo só me faz ficar mais forte/ Eu sou a culminação/A porra do Padrão que
todos seguirão/ Eu vivo isto diariamente/ Não conheço outra forma”. Grifo meu.
56

Conforme Bruno Bruce:

Estava olhando fotos antigas de shows de Power/Thrash Metal -


datadas de 20 anos atrás - que comprovam o que escrevo. Não há uma
simples mulher que apareça nessas fotos, pelo menos na frente do
palco, lugar mais disputado pelos old school metallers! Local
apropriado a quem, a cotoveladas, baseado em sua força e peso
corporal, merecia estar na frente, suado como um animal, vitorioso
pela conquista da proximidade com a banda, poder urrar a plenos
pulmões todas as letras que aprendera. (BRUCE, “Cosa Nostra”. In:
Rock Potiguar, http://rockpotiguar.com.br/?cat=100. Acesso em 20
mai. 2009).

Tais falas relacionam-se com as noções de Nietzsche acerca da íntima relação


entre ofensa, violência e destruição à própria vida, que não pode ser concebida sem tais
caracteres, visto que “abster-se de ofensa, violência, exploração mútua, equiparar sua
vontade à do outro isso é uma vontade de negação da vida e princípio de dissolução e
decadência” (BM, p. 154). Segundo ele, os estados de direito são estados de exceção,
restrições parciais da vontade de vida que visa o poder, pois:

A vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que


é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas
próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração
(NIETZSCHE, BM, p. 155).

2. 6-2: Cristianismo e Além Mundo: Behemoth e Venom

À luz da perspectiva nietzscheana, o cristianismo pode ser compreendido como


um marco, dentro do processo civilizatório ocidental, de domesticação do elemento,
caótico, agressivo e pulsional. No estilo Metal, ainda que o ataque ao ideário cristão
possua maior expressividade no Black Metal32, podemos encontrar também no Death
Metal uma recorrente associação a temas anti-religiosos, fruto da influência, como
vimos, de bandas como Venom e Black Sabbath.
É uma presença constante nas bandas de Thrash e Death Metal a afirmação dos
caracteres humanos destituídos de uma justificação transcendente da existência. Um
bom exemplo é o seguinte trecho música da música “Demigod” da banda polonesa
Behemoth.

32
“Do que falam então os versos do Black Metal? Ódio, dor, raiva, escuridão, sofrimento, angústia,
guerra... Até então sem problemas, afinal, muitos destes elementos não pertencem somente ao estilo em
questão” (FERREIRA. “Satanismo e Black Metal”. In: Whiplash,
http://whiplash.net/materias/opinioes/088015.html Acesso em: 23 abr. 2009)
57

“Demigod” – Behemoth (2004)


[Nergal]
Hear me! o vermim!
How couldst Thou fall so low?
Redemption thru denial!
Restriction becomes a sin
Mankind! So pure…
Castrate Thy impotent god
Vomit forth the blasphemy
And forever shalt Thee win33

Nergal, guitarrista/vocalista e principal letrista da banda, tece um comentário


acerca da letra:

I chose to take as my own: individuality, life affirmation,


ambition, determination and vitality, musically it’s just pure sream
of energy, and every time I listen to the opening theme I see the
berseking, frenzied, undefeated Roman Legions34 ( BEHEMOTH, In:
Demigod, 2004, Faixa 02). Grifo meu.

Essa valorização da “individualidade”, “afirmação da vida” e “vitalidade” é


associada a civilizações pré-cristãs as quais assenhoravam-se de suas conquistas e
glórias tornando-se contrapostas à tradição cristã, comumente assentada nos
pressupostos de perdão e resignação. Para Nietzsche:

Aqueles grandes viveiros para um forte, a mais forte espécie de gente


que até hoje existiu, as comunidades aristocráticas da espécie de
Roma e Veneza, entendiam a liberdade no mesmo exato sentido em
que eu entendo a palavra: como algo que se tem e não se tem, que se
quer que se conquista (CI, p. 89).

Representando a “metafísica do carrasco” (NIETZSCHE, CI, p. 46), “asco e


fastio da vida na vida” (NT, p. 19), o cristianismo para Nietzsche apresenta-se como a
completa negação da natural hierarquia entre os diferentes em oposição a uma postura
ativa frente à vida.

33
Demigod - “Ouça-me! Oh verme! /Como pudeste cair a tão baixo nível?/ Redenção pela
negação!/Restrição se torna um pecado /Humanidade! Tão pura... /Castro vosso impotente Deus /Vomito
a blasfêmia /E para sempre venceremos”
34
“Escolhi para mim mesmo: individualidade, afirmação da vida, ambição, determinação e virtude,
musicalmente são pura energia, e toda vez que escuto o tema de abertura eu vejo as guerreiras, furiosas e
inderrotáveis legiões romanas”.
58

O cristianismo foi, até hoje, a mais funesta das presunções. Homens


sem dureza e elevação suficientes para poder, como artistas, dar
forma ao homem; homens sem longividência e força suficientes para,
com uma sublime vitória sobre si, deixar de valer a lei primordial das
mil formas de malogro e perecimento; homens sem nobreza suficiente
para perceber o hiato e a hierarquia abissalmente diversos existentes
entre homem e homem (BM, p. 61).

A tematização acerca de um ente absoluto (Deus), no universo do Metal é


permeada por controvérsias, ora como uma afronta ou simples inversão dos valores
cristãos, ora como uma postura em prol de uma vida sem justificações além-mundo35.
Cronos, baixista e vocalista do Venom, comenta sua visão acerca do tema:

É nesses termos que nós usamos o satanismo, ou seja, pensando no


lado positivo de todas as coisas. Se você é um desses católicos,
cristãos ou sei lá o quê, está sempre preso aos seus medos. Ao invés
de tentar ser perdoado por seus pecados, por que não assumi-los?
Ninguém é responsável por eles, a não ser você mesmo. Por outro
lado, se você fez algo incrivelmente bom, deve receber o crédito
também. Se dê um tapinha nas coisas ao invés de dizer “obrigado,
Deus” e aceite as coisas ruins e as coisas boas (CRONOS, 2006, p.
57)

A crença em “outra” ou “melhor” vida representa para Nietzsche a tipificação


de um ideal ascético, que passa a compreender a vida como uma ponte para outra
existência e distanciada de uma possibilidade de plenificação dos instintos. Assim, o
combate ao ideal cristão significa ir além da debilitação da vontade e de uma moral
negadora do devir. Há, nesse sentido, no estilo Metal, a perspectiva para uma música
afirmativa da existência ao criticar a maneira com que ao cristianismo engendra o
ascetismo, a vida que nega a si mesma, abrindo a possibilidade para o ser humano dar
forma a si frente à transitoriedade do real.

35
Determinados grupos de Death e Black Metal não passam imunes a anacronismos no que diz respeito à
compreensão nietzscheana de Deus, entendido aqui como um nome que simboliza qualquer noção de
absoluto a partir do qual o real é justificado. Ainda que estes assumam uma postura crítica ao ideal cristão
e seguidores de uma postura calcada no elemento humano/materialista, verifica-se ainda a afirmação de
um Deus – leia-se: em um princípio absoluto a partir do qual suas ações tornam-se justificadas.
Personificando na imagem de Satã (um ente transcendente e além-mundo) algumas letras dessas bandas
revelam o descompasso entre um discurso que prega a liberdade mas que, por outro lado, reproduz a
servidão a uma entidade da qual se afirmam discípulos e seguidores – ainda que contraposta ao Deus
cristão. Um bom exemplo é o grupo Hellhammer no trecho da música Maniac de 1983 de Tom Warrior.
(...)/ Midnight - Satan claims my soul/ Feels right - Mayhem is my goal/ Twelve times - Tolls the deadly
bell/ Moonrise - Messenger of hell/ I'm a maniac, fight for hell/ Devil's on my back, obey him well/
(…)
(Meia-noite – satã clama por minha alma/ Sinto bem - mutilação é meu objetivo/ Doze vezes – badala o
sino mortal/ O nascer da lua – mensageiro do inferno/ Eu sou um maníaco, luto pelo inferno/ O diabo é
meu próximo, devo obedecê-lo).
59

2.8.3. Transformando o Absurdo da Existência em Experiência Artística

Nietzsche irá consolidar, portanto, em suas obras de maturidade, uma


perspectiva em torno da arte em que esta não esteja voltada para uma domesticação ou
anestesia dos instintos, mas que, pelo contrário, seja uma expressão de força e autêntica
afirmação da vida.
Viver em um mundo sem Deus implica numa aceitação da transitoriedade da
existência em cada uma de suas expressões36. Diante do sofrimento e do absurdo da
existência, a postura artística que implica no empreendimento “de se pôr em cena frente
a si mesmo” ganha importância. Para isso, Nietzsche recorre ao teatro como metáfora de
criação constante de novos papéis frente à vida.

Pelo que deveríamos ser gratos – Apenas os artistas, especialmente


os do teatro, dotaram aos homens de olhos e ouvidos para ver e ouvir,
com algum prazer, o que cada um é, o que cada um experimenta e o
que quer; apenas eles nos ensinaram a estimar o herói escondido em
todos os seres cotidianos, e também a arte de olhar a si mesmo como
herói, à distância e como que simplificado e transfigurado – a arte de
se “pôr em cena” para si mesmo (GC, p. 89).

A tarefa em prol de uma estetização da existência é empreendida a partir de


uma analogia com a figura do poeta e do ator, como aqueles que escrevem e atuam nos
papéis a serem desempenhados frente à vida. Lembremos, por outro lado, que essa idéia
não exclui a influência da música no processo de estetização da existência visto que a
própria criação poética tem por base uma “disposição musical” (CAVALCANTI, 2007,
p. 189) e “a música constitui a atmosfera da criação” (idem, p. 192). 37
É nesse sentido que Nietzsche retoma o modelo da sabedoria helênica capaz de
transformar o absurdo e o sofrimento que permeiam a existência em um processo
artístico. Ao criar o gênero trágico a civilização grega foi capaz de (utilizando-se do véu
apolíneo da aparência sobre a torrente avassaladora dionisíaca) gestar uma manifestação
artística capaz de superar o sofrimento, tornando a existência apesar de todas as coisas

36
“Não importando o ponto de vista filosófico em que nos situemos hoje: o caráter errôneo do mundo
onde acreditamos viver é a coisa mais firme e segura que nosso olho ainda pode apreender” (BM, p. 38).
37
Segundo Cavalcanti: “A música desempenha, assim, um papel central na reflexão nietzscheana sobre o
processo de criação. Ela representa o estado indeterminado, sem objeto definido, que caracteriza o mundo
interno e ao mesmo tempo, o princípio criador, associado à natureza e às pulsões artísticas, a partir dos
quais são engendrados imagens e símbolos” (2007, p. 193).
60

“suportável ainda”. O sofrimento, antes de ser evitado, passa a ser um importante


mecanismo para a criação e engrandecimento do homem.

A disciplina do sofrer, do grande sofrer – não sabem vocês que até


agora foi essa disciplina que criou toda excelência humana? A tensão
da alma na infelicidade, que lhe cultiva a força, seu tremor ao
contemplar a grande ruína, sua inventividade e valentia no suportar,
persistir, interpretar, utilizar a desventura, e o que só então lhe foi
dado de mistério, profundidade, espírito, máscara, astúcia, grandeza –
não lhe foi dado em meio ao sofrimento, sob a disciplina do grande
sofrimento? No homem estão unidos criador e criatura: no homem
há matéria, fragmento, abundância, lodo, argila, absurdo, caos; mas
no homem há também criador, escultor, dureza de martelo, deus-
espectador e sétimo dia – vocês entendem essa oposição?
(NIETZSCHE, BM, p. 118).

Vemos que na estética do Metal o horror da existência em suas múltiplas


facetas (na tematização acerca da morte, na estética agressiva, na violência e críticas
empreendidas) é retratado de maneira artística fortalecendo o sentimento de pertença a
determinado grupo. Não é raro presenciarmos, em relatos de bandas de Metal, a
tematização do caos, ódio e hipocrisia como fonte de inspiração para suas letras,
transformando tais temáticas em uma manifestação artística ruidosa, intensa e visceral.
Conforme expõe Gordoroth Vomit Noise do grupo capixaba Catacumba:

Nihilismo, ódio, caos, e sarcasmo negro são alguns dos tópicos


abordados em nossa primeira [fita] demo e o título ‘Birkat Haminim’
representa exatamente a frase ‘A benção dos hereges’, que nada mais
é que um título de uma oração usada pelos judeus para amaldiçoar os
cristãos quando os mesmos cultuavam nas sinagogas para reverenciar
a falácia metafísica vulgarmente conhecida como Deus, Jeová,
Criador e etc.... (2006, p. 38-39).

A influência da dor e do sofrimento perante a existência e a relação entre


aquilo que nos debilita mas que, por outro lado, engrandece é exposto pelo grupo
Metallica:
61

Broken, Beat and Scarred – Metallica (2008)


[Hetfield]
You rise, you fall, you're down then you rise again
What don't kill you makes you more strong
You rise, you fall, you're down then you rise again
What don't kill you makes you more strong

Rise, fall, down, rise again


What don't kill you makes you more strong
Rise, fall, down, rise again
What don't kill you makes you more strong

Through black days


Through black nights
Through pitch black insights

Breaking your teeth on the hard life coming


Show your scars
Cutting your feet on the hard earth running
Show your scars
Breaking your life, broken beat and scarred
But we die hard

The dawn, the death, the fight to the final breath


What don't kill you makes you more strong
The dawn, the death, the fight to the final breath
What don't kill you makes you more strong

Dawn, death, fight, final breath


What don't kill you makes you more strong
Dawn, death, fight, final breath
What don't kill you makes you more strong

They scratch me
They scrape me
They cut and rape me

Breaking your teeth on the hard life coming


Show your scars
Cutting your feet on the hard earth running
Show your scars
Bleeding your soul in a hard luck story
Show your scars
Spilling your blood in the hot sun's glory
Show your scars
Breaking your life, broken, beat and scarred
We die hard38

38
Falido Fatigado e Ferido – Você sobe, você cai, você está por baixo e então você sobe novamente/ O
que não te mata te torna mais forte/ Você sobe, você cai, você está por baixo e então você sobe
novamente/ O que não te mata te torna mais forte/ Sobe, cai, por baixo, sobe novamente/ O que não te
mata te torna mais forte/ Sobe, cai, por baixo, sobe novamente/ O que não te mata te torna mais forte/
Através de dias negros/ Através de noites negras/ Através de soturnos vislumbres/Quebrando seus dentes
na dura vida que te chega/ Mostre suas feridas/ Cortando seus pés na dura terra que tu corres/ Mostre suas
feridas/ Quebrando sua vida, falido, fatigado e ferido/ Mas nós morremos com honra/O alvorecer, a
morte, a luta até o último suspiro/ O que não te mata te torna mais forte/Alvorecer, morte, luta, último
suspiro/ O que não te mata te torna mais forte/Eles me arranham/ Eles me raspam/ Eles me cortam e me
estupram/ Quebrando seus dentes na dura vida que te chega/ Mostre suas feridas/ Cortando seus pés na
dura terra que tu corres/ Mostre suas feridas/ Sua alma sangra numa estória de má sorte/ Mostre suas
62

A letra, que apresenta trechos semelhantes ao aforismo Da escola da guerra da


vida do § 8 de Crepúsculo dos Ídolos39, retrata a dor e o sofrimento como importantes
mecanismos para a criação e superação de si. Diferentemente do pressuposto budista de
distanciamento do desejo, como forma de evitar o sofrimento, o estilo Metal revela e
explicita a dimensão da morte, da dor e do sofrimento como instrumento artístico para a
criação.
Nietzsche, do mesmo modo entende que a maldade e a crueldade são
constituintes do próprio ser humano visto que “ver-sofrer faz bem, fazer sofrer mais
bem ainda” (GM, p. 56). O excedente de força, antes de se voltar a uma resignação e
apaziguamento dos instintos, deve ser empreendido com vistas à criação.
Desse modo, ao abordar temáticas condenadas pela moral da tradição de
maneira não dicotomizada entre bem versus mal, o estilo Metal recria valores a partir de
novas convenções artísticas (LEITE LOPES, 2006) frente à realidade. Ao revelar o
trágico da realidade em sua faceta mais crua, bandas e amantes do estilo Metal
empreendem uma postura afirmativa frente à vida na sua totalidade, visto que “até no
ferimento se acha o poder curativo” (CI, p. 7).

feridas/ Derramando seu sangue na glória de um sol escaldante/ Mostre suas feridas/Quebrando sua vida,
falido, fatigado e ferido/ Mas nós morremos com honra.
39
“Da escola da guerra da vida – O que não me mata me fortalece” (CI, p. 10).
63

CONCLUSÃO

A partir da perspectiva estético-musical de Nietzsche espero ter mostrado a


viabilidade em tecer correspondências com o Rock e Metal, enquanto estilos que
condensam de forma sui generis uma postura marcada pelo caos, excesso e vontade de
vida. Em termos nietzscheanos, tais estilos revelam-se dotados de propriedades
dissonantes, ruidosas e anti-fundacionistas, que fazem da existência um processo a ser
experienciado de maneira excessiva, inventiva e plena.
Através da apropriação das categorias de uma metafísica da arte propus que o
desenvolvimento do Rock remete a um primeiro momento da perspectiva nietzschena
em torno da arte, em que a inter-relação das propriedades apolíneas e dionisíacas faz
correspondências à maneira com que artistas e adeptos do referido estilo superam a
razão conceitual em seu modo excessivo e desregrado de afirmação da vida. A
consideração leva a pensar de que maneira o Rock seria “mais dionisíaco” que os
demais estilos musicais contemporâneos, e aqui frisamos a música atonal com sua
completa fuga do caráter de resolução de melodias. De fato no que diz respeito à
semântica musical, a música atonal surgida no início do século XX é também antitética,
de recorrências melódicas, rítmicas e repetitivas. Porém, a peculiaridade do Rock resulta
em deixar aflorar o dionisíaco para além de seu material sonoro, tocando também no
âmbito comportamental40.
Num segundo momento, ao romper com Schopenhauer e Wagner, Nietzsche
passa a conceber a música como importante ferramenta para uma superação de um
pensamento ascético, visando uma postura afirmativa da vida e distanciada de todo e
qualquer pano de fundo metafísico. O caos, fluidez e constante vir-a-ser do mundo serão
condições determinantes para uma postura criadora de um indivíduo despido de
fundamentações transcendentais que visam estabilizar seu devir.
Esse processo que Nietzsche denomina estetização da existência, no âmbito da
música revela o estilo Metal como uma das formas mais representativa ao reapropriar
símbolos da tradição e manifestar uma afronta a uma rede de códigos instituídos com
base no socratismo estético, valorizando a vontade de vida e seus caracteres de força e
ímpeto.

40
Ao contrário da música erudita, que exige o silêncio e o bom comportamento da platéia, o rock
pressupõe a troca, ou melhor, a integração do conjunto ou do vocalista com o público procurando
estimulá-lo a sair de sua convencional passividade perante os fatos (CHACON, 1985, p. 12).
64

Ao trabalhar as críticas do estilo Metal ao mundo transcendente, ao discurso


com pretensões de verdade, ao cristianismo e sua valorização do conflito percebe-se um
posicionamento contrário a uma necessidade metafísica de fixidez do devir. A nosso
ver, o Metal aponta para uma efetivação da vontade de vida através de múltiplas
possibilidades de criação de si mesmo geradas por meio de uma afronta à docilidade
apregoada por um modelo de civilidade e de domínio dos instintos a partir da razão.
Decorrente disso, o que se verifica são posicionamentos reativos feitos aos amantes da
estética musical do Metal, que se encontram no âmbito da moral, como se existisse de
fato um juízo estético definido e previamente dado, não concebendo o ser humano
enquanto um constructo de práticas ou devires. No campo da arte isso se dá por meio de
resistências ao elemento estranho, ruidoso e através de tentativas de barrar um processo
de se efetivar enquanto criador de si mesmo.
Assim, o estudo sobre o Rock e, especificamente, o Metal não tem como base
uma promessa de expurgo para as mazelas de nosso tempo (como apregoava Aristóteles
em relação à tragédia). Para além dessa proposta, concebo ambos os estilos como
dotados de relevância filosófica dentro do âmbito antropológico e musical os quais
encontram em Nietzsche, e em sua perspectiva nômade em torno da arte dos sons,
elementos que expressam e revelam as propriedades de uma música dionisíaca, caótica
e afirmadora da vida.
Nesse sentido urge superar uma concepção valorativa da música enquanto
atrelada exclusivamente a um lógos nas palavras de Nietzsche. Do contrário, cabe um
mergulho em suas implicações corpóreas, sensitivas e (por que não?) subversivas que
por si só fazem do Rock e do Metal a antítese dionisíaca, criativa e afirmativa da vida
em relação às manifestações estético-musicais que não possuem um excesso
“transbordante de força”.
Aventuro-me, portanto, em considerar que tanto o adepto da música Rock
como da música Metal, assim como o artista trágico,“não é um pessimista – ele diz
justamente Sim a tudo questionável e mesmo terrível, ele é dionisíaco...” (CI, p. 29)
65

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Cerebral. São Paulo: Madras, 2008
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Fortaleza: Edições UFC, 2003.

DOCUMENTOS SONOROS

METALLICA. Broken, Beat and Scared. In: Death Magnetic. Manaus, Vertigo/
Universal, 2008. 1 CD. Faixa 03.
BEHEMOTH. Demigod. In: Demigod. Manaus, Century Media, 2004. 1 CD.
Faixa 02.
UNLEASHED. Helljoy. In: Sworm Allegiance. Manaus, Century Media, 2004.
1 CD. Faixa 05.
SLAYER. Catalyst. In: Christ Illusion. Manaus, American, 2006. 1 CD. Faixa
02.
HELLHAMMER. Maniac. In: Demon Entrails. Paranoid Records, 2008 2 CD.
Faixa 05.
DEATH. The Philosopher. In: Individual Thought Patterns. Manaus, Century
Media, 1993. 1 CD. Faixa 10.
70

ANEXO

Entrevistas com integrantes de grupos, produtores e fãs da música Metal. As


entrevistas a seguir foram realizadas pelo autor através de comunicação pessoal pelo
sítio de relacionamentos MSN entre os dias 28 e 30 de abril de 2009.

Entrevistado: Bruno Bruce (produtor e colunista do site Rock Potiguar)

1- Há quanto tempo você escuta Metal?


Desde 1985, certamente

2- O que representa e qual sensação desperta em você ao ouvir esse tipo de


música?
Uma emoção que, agora, lembra toda a minha juventude. Quando jovem era a música
que representava a minha comunidade, a comunidade que eu me identificava e fiz
questão de pertencer. Eram os headbangers. Sujeitos estranhos, quase sempre
cabeludos, arredios, inteligentes acima da média. Ainda sinto quase a mesma emoção.

3- Que diferencial você vê no Metal em relação aos demais estilos?


Heavy Metal é puramente testosterona. É jovialidade inconseqüente e fúria. Tudo o que
fugir deste conceito é um arremedo de Metal.

Entrevistado: Vicente Savage (músico)

1- Há quanto tempo você escuta Metal?


Há uns 17 a 18 anos

2- Que sensação desperta em você ao ouvir esse tipo de música?


Varias, um certo estupor seguido adrenalina, alivio assim como sensação de prazer
auditivo liberado e as vezes aguçado.

3- Que diferencial você vê no Metal em relação aos demais estilos?


71

Metal é menos preso a dogmas, padrões de mídia, apesar de dentro dele existir os
padrões a certo ponto. Não é limitado e capaz de se expandir sem se acomodar aos
simples fatos de um momento ou moda tão comum em outros estilos.

Entrevistado: Carlos James (músico)

1- Há quanto tempo você escuta Metal?


Faz uns 18 anos.

2- Que sensação desperta em você ao ouvir esse tipo de música?


Acho que é um sentimento de sinceridade. Dependendo do meu estado ela me diz o que
eu quero, sem qualquer sentimento falso. De amores perdidos ou de atitudes rebeldes
que nunca aconteceram de verdade. O Metal me trás a MINHA(sic.) verdade do jeito
que eu quero. Se uma musica é triste, se é “malvada”, se é agressiva, se ela é uma
“viagem”, se ela me faz bem, tenho certeza que aquilo é verdadeiro. A música foi feita
de coração. Sem mentiras. Quando ela não é sincera, é facilmente perceptível.

3- Que diferencial você vê no Metal em relação aos demais estilos?


Acredito que a fidelidade ao Metal. Quem gosta, NUNCA(sic.) deixa de gostar.

Entrevistado: Tales “Groo”Ribeiro (músico e produtor)

1- Há quanto tempo você escuta Metal?


25 anos

2- Que sensação desperta em você ao ouvir esse tipo de música?


Poder absoluto beirando o limite da falta de controle

3- Que diferencial você vê no Metal em relação aos demais estilos?


Na parte lírica, no metal há mais honestidade, o que pode revelar agressão, sarcasmo,
ironias, tristezas, diversões, extremismo, inconseqüências, fantasias, insultos e
provocações. Na parte musical, os mesmo itens anteriores, só que transformados em
notas, melodias, escalas, harmonias e ritmos.
72

Entrevistado: Samuel Slanderer (músico e jornalista)

1- Há quanto tempo você escuta Metal?


Não sou uma pessoa em sintonia com a sorte, ela na maioria das vezes não está ao meu
lado. Mas, tive a sorte de nascer em um lar onde irmãos mais velhos e papai ouviram
muito rock´n´roll. Quando criança era comum brincar com meus brothers ouvindo Iron
Maiden, Saxon, Accept etc. Não esqueço jamais a camisa Black Metal do Venom que
um dos meus irmãos usava, isso na copa do mundo de 85. Não esqueço também a
camisa do Judas Priest que outro irmão usava e eu achava bonito. Cresci vendo criaturas
medonhas e som barulhento, diferente dos meus amiguinhos de escola. Esta foi minha
sorte! Pena que nenhum dos meus irmãos se envolveu com instrumentos, mesmo porque
eles começaram a trampar desde cedo. Em 87, 88, eu já estava bem ligado no que rolava
na cena Metal, inclusive informado com uma publicação do mesmo nome e a outra mais
popular que foi a Rock Brigade. Considero esta época meu ponto de partida, quando
ganhei do meu pai o Seventh Son e o Zepellin IV. Esta foi a época do “escutar”. Em
1991, 92, inicio a fase do envolvimento com a cena, era então o momento das colas nos
selos, fitas demos maravilhosas e toda a magia do underground, culminando com a
edição de um zine nos fins de 92.

2- Que sensação desperta em você ao ouvir esse tipo de música?


Hoje, 22 anos depois, a sensação de infância e juventude... Saudades talvez! Sinto-me
confortavelmente entorpecido! E quando mais ouço, mais tenho que aprender a ouvir,
mais bandas antigas e desconhecidas a reconsiderar, aliando as novas bandas dos mais
diversos subterrâneos. Enfim, a sensação que ainda estou apenas começando.

3- Que diferencial você vê no Metal em relação aos demais estilos?


Em meu caso, o diferencial seria a questão da amizade entre pessoas tão distintas e de
diversos lugares. Algo como irmandade, sociedade secreta; acolhimento e respeito
quando estamos em outra cidade, região. Mas, sei que estilos musicais mais “culturais”
e funcionais neste sentido, de forma até didático-social como a cultura Rasta e Hip-Hop.
Não vejo também motivo para o Metal ser algo diferente, socialmente aceita.
Independente de sentimentos e qualquer coisa é apenas um estilo de música, com todas
as falhas e sujeiras do show business e fãs alucinados e comportamento de adolescente.
Quando você amadurece, então começa a dar outro sentido ao estilo, algo como uma
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música Clássica, por exemplo. Inteligente, pensante e algumas vezes chutando o pau da
barraca de forma descontraída e irônica. Quero dizer que o diferencial é um processo
individual, independente dos outros, mesmo que estejamos em grupos.

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