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Introdução 15

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Introdução
A disciplina e a prática da
pesquisa qualitativa*

Norman K. Denzin e Yvonna S. Lincoln

A
pesquisa qualitativa revela uma longa, notá- educação (especialmente o trabalho de Dewey), a
vel e, por vezes, atribulada história nas disci- história, a ciência política, os negócios, a medicina,
plinas humanas. Na sociologia, o trabalho rea- a enfermagem, a assistência social e as comunica-
lizado pela “escola de Chicago” nas décadas de 1920 ções.
e 1930 determinou a importância da investigação qua- No primeiro capítulo da Parte I, Vidich e Lyman
litativa para o estudo da vida de grupos humanos. Na traçam muitos aspectos fundamentais dessa história.
mesma época, na antropologia, os estudos de Boas, Nessa análise agora clássica, eles observam, com cer-
Mead, Benedict, Bateson, Evans-Pritchard, Radcliffe- ta ironia, que a pesquisa qualitativa na sociologia e
Brown e Malinowski, que definiam a disciplina, tra- na antropologia “nasceu de uma preocupação em
çaram os contornos do método de trabalho de cam- entender o ‘outro’”. Além do mais, esse outro era o
po (Gupta e Ferguson, 1997; Stocking, 1986, 1989). outro exótico, uma pessoa primitiva, não-branca, pro-
A agenda era clara: o observador partia para um ce- veniente de uma cultura estrangeira considerada
nário estrangeiro a fim de estudar os costumes e os menos civilizada do que a cultura do pesquisador. É
hábitos de outra sociedade ou cultura (Vidich e claro que, muito antes dos antropólogos, já havia
Lyman, Capítulo 2; Tedlock, Volume 2,** Capítulo 6; colonialistas. No entanto, não fosse por essa menta-
Rosaldo, 1989, p. 25-45, em relação às críticas dessa lidade investigativa que transformou a figura do ou-
tradição). Em pouco tempo, a pesquisa qualitativa tro de pele escura no objeto do olhar do etnógrafo,
passou a ser empregada em outras disciplinas das não haveria uma história colonial, e, agora, nem uma
ciências sociais e comportamentais, incluindo a história pós-colonial.

*Agradecemos a todos que colaboraram com este capítulo, incluindo Egon Guba, Mitch Allen, Peter Labella, Jack Bratich e

Katherine E. Ryan. Subtítulo extraído de Guba e Ferguson (1997).


**N. de R. Este capítulo contém referências aos volumes 2 e 3 do Handbook of qualitative research publicado originalmente pela Sage.

Para mais detalhes sobre esses volumes, os leitores devem procurar as obras originais.
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E é assim que bell hooks (1990, p. 126-128) in- respeito da pesquisa qualitativa e da teoria crítica
terpreta a famosa fotografia que aparece na capa de da raça (veja também neste volume Ladson-Billings,
Writing Culture (Clifford e Marcus, 1986), como um Capítulo 9; e no Volume 3, Denzin, Capítulo 13).
exemplo dessa mentalidade (veja também Behar, 1995, Conforme indicamos em nosso prefácio, utilizamos
p. 8; Gordon, 1988). A foto retrata Stephen Tyler fa- a metáfora da ponte para estruturar o que vem a
zendo um trabalho de campo na Índia. Tyler está sen- seguir. Para nós, este volume é como uma ponte que
tado a uma certa distância de três pessoas de pele es- liga momentos históricos, métodos de pesquisa,
cura. Uma criança aparece dentro de um cesto, só com paradigmas e comunidades de estudiosos interpre-
a cabeça para fora. Uma mulher esconde-se nas som- tativos.
bras de uma cabana. Um homem, com um xale xadrez
em preto e branco enrolado nos ombros, apoiando
o cotovelo no joelho e o rosto sobre uma das mãos, Questões conceituais
olha fixamente para Tyler. Tyler está fazendo anota-
ções em um diário. Tem uma tira de pano branco A pesquisa qualitativa é, em si mesma, um cam-
amarrada aos óculos, talvez para protegê-lo do sol — po de investigação. Ela atravessa disciplinas, campos
um pedaço de branquidade que serve para caracteri- e temas.1 Em torno do termo pesquisa qualitativa, en-
zar Tyler como o autor branco do sexo masculino contra-se uma família interligada e complexa de ter-
que estuda esses indivíduos passivos pardos e negros. mos, conceitos e suposições. Entre eles, estão as tra-
Na verdade, o olhar do sujeito pardo comunica algu- dições associadas ao fundacionalismo, ao positivismo,
ma vontade, ou alguma ligação com Tyler. Já o olhar ao pós-fundacionalismo, ao pós-positivismo, ao pós-
da mulher é totalmente encoberto pelas sombras e estruturalismo e às diversas perspectivas e/ou méto-
pelas letras do título do livro, que atravessam seu rosto dos de pesquisa qualitativa relacionados aos estudos
(hooks, 1990, p. 127). E, assim, essa fotografia da capa culturais e interpretativos (os capítulos da Parte II
do livro que talvez seja a mais influente obra da abordam esses paradigmas).2 Existem literaturas in-
etnografia da segunda metade do século XX repro- dependentes e detalhadas sobre o grande número de
duz “duas idéias que estão bem vivas na imaginação métodos e de abordagens classificados como pesqui-
racista: a noção do indivíduo branco do sexo mascu- sa qualitativa, tais como o estudo de caso, a política e
lino como autor/autoridade (...) e a idéia do homem a ética, a investigação participativa, a entrevista, a
passivo pardo/negro [e da mulher e da criança] que observação participante, os métodos visuais e a aná-
não faz nada, apenas observa” (hooks, 1990, p. 127). lise interpretativa.
Neste capítulo introdutório, definiremos o cam- Na América do Norte, a pesquisa qualitativa opera
po da pesquisa qualitativa e então navegaremos na em um campo histórico complexo que atravessa sete
história da pesquisa qualitativa nas disciplinas hu- momentos históricos (esses momentos serão discu-
manas, traçando e revisando-a, o que nos possibili- tidos detalhadamente a seguir). Esses sete momen-
tará situar este volume e seus conteúdos dentro de tos sobrepõem-se e funcionam simultaneamente no
seus momentos históricos. (Tais momentos históri- presente.3 Nós os definimos como o tradicional
cos são, de certa forma, artificiais; são convenções (1900-1950); o modernista ou da era dourada (1950-
construídas socialmente, quase-históricas e sobrepos- 1970); gêneros (estilos) obscuros (1970-1986); a cri-
tas. Entretanto, permitem uma “representação” das se da representação (1986-1990); o pós-moderno, um
idéias em desenvolvimento, facilitando também uma período de etnografias novas e experimentais (1990-
sensibilidade e uma sofisticação cada vez maiores em 1995); a investigação pós-experimental (1995-2000);
relação às armadilhas e às promessas da etnografia e e o futuro, que é a atualidade (2000-). O futuro, séti-
da pesquisa qualitativa.) Apresentaremos um esque- mo momento, trata do discurso moral, com o desen-
ma conceitual para que o ato da pesquisa qualitati- volvimento das textualidades sagradas. O sétimo mo-
va seja interpretado como um processo multicultu- mento pede que as ciências sociais e as humanidades
ral, marcado pelo gênero, e então forneceremos uma tornem-se terrenos para conversas críticas em torno
breve introdução aos capítulos seguintes. De volta da democracia, da raça, do gênero, da classe, dos Es-
às observações de Vidich e Lyman, assim como às tados-nações, da globalização, da liberdade e da co-
de hooks, concluiremos com uma breve discussão a munidade.
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O momento pós-moderno foi definido, em par- sadores deram continuidade a esse processo de afas-
te, por um interesse pelos tropos retóricos e literários tamento dos critérios fundacionalistas e quase-fun-
e pela virada narrativa, pela narração de histórias, dacionalistas (veja no Volume 3, Smith e Deemer,
por novos processos de composição de etnografias Capítulo 12, e Richardson, Capítulo 14; e neste volu-
(Ellis e Bochner, 1996). Laurel Richardson (1997) me, Gergen e Gergen, Capítulo 13). Buscaram-se cri-
observa que esse momento foi influenciado por uma térios de avaliação alternativos, critérios que se mos-
nova sensibilidade, pela dúvida, pela recusa em privi- trassem evocativos, morais, críticos e enraizados em
legiar qualquer método ou teoria (p. 173). Porém ago- compreensões locais.
ra, no início do século XXI, ocorreu a virada narrati- Qualquer definição da pesquisa qualitativa deve
va. São muitos os que aprenderam a escrever de um atuar dentro desse complexo campo histórico. A pes-
modo diferente, e também a situar-se em seus textos. quisa qualitativa tem um significado diferente em cada
Nossa luta hoje é no sentido de relacionar a pesquisa um desses momentos. No entanto, pode-se oferecer
qualitativa às esperanças, às necessidades, aos objeti- uma definição genérica, inicial: a pesquisa qualitati-
vos e às promessas de uma sociedade democrática va é uma atividade situada que localiza o observador
livre. no mundo. Consiste em um conjunto de práticas
Ondas sucessivas de teorização epistemológica materiais e interpretativas que dão visibilidade ao
atravessam esses sete momentos. O período tradicio- mundo. Essas práticas transformam o mundo em uma
nal é associado ao paradigma positivista, fundacio- série de representações, incluindo as notas de cam-
nalista. Os momentos modernista ou da era dourada po, as entrevistas, as conversas, as fotografias, as gra-
e os gêneros (estilos) obscuros estão ligados ao apa- vações e os lembretes. Nesse nível, a pesquisa quali-
recimento de argumentos pós-positivistas. Ao mes- tativa envolve uma abordagem naturalista, interpre-
mo tempo, adotou-se uma variedade de novas pers- tativa, para mundo, o que significa que seus pesqui-
pectivas qualitativas, interpretativas, incluindo a sadores estudam as coisas em seus cenários naturais,
hermenêutica, o estruturalismo, a semiótica, a feno- tentando entender, ou interpretar, os fenômenos em
menologia, os estudos culturais e o feminismo.4 Na termos dos significados que as pessoas a eles confe-
fase dos gêneros (estilos) obscuros, as humanidades rem.5
tornam-se recursos centrais para a teoria crítica, in- A pesquisa qualitativa envolve o estudo do uso e
terpretativa, e para o projeto de pesquisa qualitativa a coleta de uma variedade de materiais empíricos —
imaginado em linhas gerais. O pesquisador passou a estudo de caso; experiência pessoal; introspecção;
ser um bricoleur (veja a seguir), aprendendo como ex- história de vida; entrevista; artefatos; textos e produ-
trair conteúdos de muitas disciplinas diferentes. ções culturais; textos observacionais, históricos, in-
A fase dos gêneros (estilos) obscuros foi respon- terativos e visuais — que descrevem momentos e sig-
sável pela etapa seguinte, a crise da representação. nificados rotineiros e problemáticos na vida dos
Nesse ponto, os pesquisadores lutaram para encon- indivíduos. Portanto, os pesquisadores dessa área uti-
trar maneiras de situarem a si mesmos e a seus sujei- lizam uma ampla variedade de práticas interpretati-
tos em textos reflexivos. Ocorreu um tipo de diáspo- vas interligadas, na esperança de sempre consegui-
ra metodológica, um êxodo de duas vias. Os rem compreender melhor o assunto que está ao seu
humanistas migraram para as ciências sociais, em alcance. Entende-se, contudo, que cada prática ga-
busca de uma nova teoria social, de novos métodos rante uma visibilidade diferente ao mundo. Logo,
para estudar a cultura popular e seus contextos et- geralmente existe um compromisso no sentido do
nográficos e locais. Os cientistas sociais voltaram-se emprego de mais de uma prática interpretativa em
para as humanidades, na esperança de aprenderem a qualquer estudo.
fazer leituras estruturais e pós-estruturais comple-
xas dos textos sociais. Com as humanidades, os cien- O pesquisador qualitativo como
tistas sociais também aprenderam a produzir textos bricoleur e confeccionador de
que se recusassem a ser interpretados em termos sim- colchas
plistas, lineares, incontrovertíveis. Houve um obscu-
recimento da linha que divide o texto do contexto. O pesquisador qualitativo pode assumir imagens
No momento experimental pós-moderno, os pesqui- múltiplas e marcadas pelo gênero: cientista, natura-
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lista, pesquisador de campo, jornalista, crítico social, técnicas sejam inventadas ou reunidas, assim o pes-
artista, atuador, músico de jazz, produtor de filmes, quisador o fará. As opções de práticas interpretativas
confeccionador de colchas, ensaísta. A diversidade de a serem empregadas não são necessariamente defi-
práticas metodológicas da pesquisa qualitativa pode nidas com antecedência. A “escolha das práticas da
ser vista como soft science *, jornalismo, etnografia, bri- pesquisa depende das perguntas que são feitas, e as
colage, confecção de colchas e montagem. O pesqui- perguntas dependem de seu contexto” (Nelson et al.,
sador, por sua vez, talvez seja visto como um bricoleur, 1992, p. 2), do que está disponível no contexto e do
um indivíduo que confecciona colchas, ou, como na que o pesquisador pode fazer naquele cenário.
produção de filmes, uma pessoa que reúne imagens Essas práticas interpretativas envolvem questões
transformando-as em montagens. (Para saber a res- estéticas, uma estética da representação que extra-
peito de montagem, ver discussão abaixo e também pola o pragmático, ou o prático. A esta altura, cabe
Cook, 1981, p. 171-177; Monaco, 1981, p. 322-328. definirmos o conceito de montagem (Cook, 1981, p.
Sobre esse processo da confecção de colchas, veja 323; Monaco, 1981, p. 171-172). A montagem é um
hooks, 1990, p. 115-122; Wolcott, 1995, p. 31-33.) método de edição de imagens cinemáticas. Na histó-
Nelson, Treichler e Grossberg (1992), Lévi- ria da cinematografia, a montagem é associada ao tra-
Strauss (1966) e Weinstein e Weinstein (1991) escla- balho de Sergei Eisenstein, especialmente de seu fil-
recem os significados de bricolage e de bricoleur.6 Um me O Encouraçado Potemkin (1925). Na montagem,
bricoleur é um pau-para-toda-obra ou um profissio- diversas imagens diferentes são sobrepostas para criar
nal do faça-você-mesmo” (Lévi-Strauss, 1966, p. 17). um quadro. De uma certa forma, a montagem é como
Existem muitos tipos de bricoleurs — interpretativo, o pentimento, no qual algo que havia sido pintado,
narrativo, teórico, político. O bricoleur interpretativo mas que não pertencia ao retrato (uma imagem da
produz uma bricolage — ou seja, um conjunto de re- qual o pintor “arrependeu-se”, ou a qual ele rejei-
presentações que reúne peças montadas que se en- tou), ganha novamente visibilidade, criando algo novo.
caixam nas especificidades de uma situação comple- O novo é o que havia sido obscurecido por uma ima-
xa. “A solução [bricolage] que é o resultado do método gem anterior.
do bricoleur é uma construção [emergente]” (Weins- A montagem e o pentimento, assim como o jazz,
tein e Weinsten, 1991, p. 161) que sofre mudanças e que é a improvisação, criam a sensação de que as
assume novas formas à medida que se acrescentam imagens, os sons e as compreensões estão se mistu-
diferentes instrumentos, métodos e técnicas de re- rando, se sobrepondo, formando um composto, uma
presentação e de interpretação a esse quebra-cabeça. nova criação. As imagens parecem dar forma e defi-
Nelson e colaboradores (1992) descreve a metodolo- nição umas às outras, havendo a produção de um
gia dos estudos culturais “como uma bricolage. Ou efeito gestalt, emocional. Muitas vezes essas imagens
seja, sua opção de prática é pragmática, estratégica e combinam-se em uma seqüência fílmica veloz que
auto-reflexiva” (p. 2). Podemos aplicar essa compre- produz uma coleção de diversas imagens que giram
ensão, com restrições à pesquisa qualitativa. vertiginosamente em torno de uma seqüência ou de
Como bricoleur ou confeccionador de colchas, o um quadro central ou focalizado; esses efeitos são
pesquisador qualitativo utiliza as ferramentas estéti- geralmente empregados para representar a passagem
cas e materiais do seu ofício, empregando efetivamen- do tempo.
te quaisquer estratégias, métodos ou materiais empí- Talvez o mais famoso exemplo de montagem seja
ricos que estejam ao seu alcance (Becker, 1998, p. 2). a seqüência da Escadaria de Odessa em O Encouraça-
Havendo a necessidade de que novas ferramentas ou do Potemkin.7 O clímax do filme é o momento em que
os cidadãos de Odessa estão sendo massacrados pe-
las tropas czaristas na escadaria de pedra que desce
até o porto. Eisenstein desvia o olhar para uma jo-
vem mãe que empurra o carrinho com seu bebê no
*N. de T. Termo que engloba áreas de estudos que interpre-
patamar entre os lances de escada em frente às tro-
tam o comportamento humano, as instituições, a sociedade,
com base em investigações científicas para as quais é difícil pas de fuzilamento. Os cidadãos passam correndo por
estabelecer critérios exatos. Ex.: psicologia, antropologia, so- ela, fazendo sacudir o carrinho. Ela fica com medo
ciologia, etc. de descer com o carrinho até o próximo lance de es-
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cada. As tropas encontram-se em um patamar acima Quanto aos textos baseados nas metáforas da
dela, atirando nos cidadãos. Ela fica encurralada en- montagem, da confecção de colchas, e da improvisa-
tre as tropas e as escadas. Ela grita. Só se vê a fumaça ção do jazz, muitas coisas diferentes vêm ocorrendo
da explosão dos fuzis apontando para o céu. Sua ca- ao mesmo tempo — diferentes vozes, diferentes pers-
beça inclina-se para trás. As rodas do carrinho vaci- pectivas, pontos de vista, ângulos de visão. Assim
lam à beira da escadaria. Ela agarra a fivela prateada como os textos de performance, os trabalhos que utili-
de seu cinto. Logo abaixo, as pessoas estão sendo es- zam a montagem conseguem ao mesmo tempo criar
pancadas pelos soldados. Pingos de sangue mancham e representar o significado moral. Deslocam-se do
as luvas brancas da mulher. O bebê coloca a mão pessoal para o político, do local para o histórico e
para fora do carrinho. A mulher move-se para frente para o cultural. São textos dialógicos. Presumem uma
e para trás. As tropas avançam. A mãe cai para trás audiência ativa. Criam espaços para a troca de idéias
contra o carrinho. Uma mulher assiste à cena horro- entre o leitor e o escritor. Fazem mais do que trans-
rizada ao ver as rodas traseiras do carrinho desliza- formar o outro no objeto do olhar das ciências sociais
rem cruzando a beira do patamar. O carrinho ganha (veja McCall, Capítulo 4, Volume 2).
velocidade despencando escada abaixo, passando O foco da pesquisa qualitativa possui inerente-
pelos corpos dos cidadãos. O bebê é jogado de um mente uma multiplicidade de métodos (Flick, 1998,
lado para o outro dentro do carrinho. Soldados dis- p. 229). No entanto, o uso de múltiplos métodos, ou
param seus fuzis contra um grupo de cidadãos feri- da triangulação, reflete uma tentativa de assegurar
dos. Uma estudante grita ao ver o carrinho lançar-se uma compreensão em profundidade do fenômeno em
sobre os degraus, inclinar-se e virar (Cook, 1981, p. questão. A realidade objetiva nunca pode ser capta-
167).8 da. Podemos conhecer algo apenas por meio das suas
A montagem emprega imagens breves a fim de representações. A triangulação não é uma ferramen-
criar uma noção bem-definida de urgência e de com- ta ou uma estratégia de validação, mas uma alternati-
plexidade. Ela convida os observadores a construir va para a validação (Flick, 1998, p. 230). A melhor
interpretações que se baseiam umas nas outras ao maneira então de compreendermos a combinação de
desenrolar da cena. Essas interpretações são cons- uma multiplicidade de práticas metodológicas, ma-
truídas sobre associações baseadas em imagens con- teriais empíricos, perspectivas e observadores em um
trastantes que se combinam entre si. Por trás da mon- único estudo é como uma estratégia que acrescenta
tagem, está a suposição de que a percepção e a rigor, fôlego, complexidade, riqueza e profundidade a
interpretação das cenas, por parte dos espectadores, qualquer investigação (Flick, 1998, p. 231).
em uma “seqüência de montagem, não ocorre seqüen- No Capítulo 14 do Volume 3, Richardson con-
cialmente, uma a cada vez, mas sim simultaneamente” testa o conceito de triangulação, declarando que, para
(Cook, 1981, p. 172). O espectador agrupa essas se- a investigação qualitativa, a imagem central é a do
qüências em um conjunto emocional significativo, cristal, e não a do triângulo. Os textos de gêneros
como se lançasse os olhos sobre esta, de uma só vez. (estilos) mistos do momento pós-experimental pos-
O pesquisador qualitativo que emprega a mon- suem mais de três lados. Assim como os cristais, a
tagem é como um confeccionador de colchas ou um montagem de Eisenstein, o solo de jazz, ou os reta-
improvisador no jazz. Esse confeccionador costura, lhos que compõem uma colcha, esse texto de gêne-
edita e reúne pedaços da realidade, um processo que ros mistos, como observa Richardson, “combina si-
gera e traz uma unidade psicológica e emocional para metria e substância com uma infinita variedade de
uma experiência interpretativa. Há muitos exemplos formatos, de substâncias, de transmutações (...) Os
de montagem na atual pesquisa qualitativa (Diversi, cristais crescem, mudam, alteram-se (...) Cristais são
1998; Jones, 1999; Lather e Smithies, 1997; Ronai, prismas que refletem externalidades e refratam-se
1998). Utilizando múltiplas vozes, diferentes forma- dentro de si mesmos, criando diferentes cores, pa-
tos textuais e vários tamanhos e estilos de caracteres, drões, exibições, que se lançam em diferentes dire-
Lather e Smithies (1997) tecem um texto complexo ções”.
sobre mulheres HIV-positivas e mulheres com AIDS. No processo de cristalização, o autor conta a
Jones (1999) cria um texto de performance utilizando mesma história a partir de diferentes pontos de vista.
letras de blues cantados por Billie Holiday. Por exemplo, em A thrice-told tale (1992), Margery Wolf
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utiliza a ficção, as notas de campo e um artigo cientí- pela raça e pela etnicidade dele e daquelas pessoas
fico para fornecer um relato do mesmo conjunto de que fazem parte do cenário. O bricoleur político sabe
experiências em um povoado nativo. De um modo que a ciência significa poder, pois todas as descober-
semelhante, em sua peça Fires in the Mirror (1993), tas da pesquisa têm implicações políticas. Não existe
Anna Deavere Smith apresenta uma série de textos nenhuma ciência livre de valores. O que se busca é
de performance baseados em entrevistas realizadas com uma ciência social cívica baseada em uma política da
pessoas envolvidas em um conflito racial em Crown esperança (Lincoln, 1999). O bricoleur narrativo, mar-
Heights, Brooklyn, em 19 de agosto de 1991 (Den- cado pelo gênero, também sabe que todos os pesqui-
zin, Capítulo 13, Volume 3). A peça conta com múl- sadores contam histórias sobre os mundos que estu-
tiplas falas, incluindo conversas entre membros de daram. Logo, as narrativas, ou as histórias, que os
gangues, policiais e meninas e meninos anônimos. cientistas contam são relatos expressos e montados
Não há nenhuma forma “correta” de se contar esse dentro de tradições específicas da narração de histó-
evento. Cada forma de narrá-lo, tal como a luz ao rias, muitas vezes definidas como paradigmas (p. ex.,
atingir o cristal, reflete uma perspectiva diferente so- positivismo, pós-positivismo, construtivismo).
bre o incidente. O produto do trabalho do bricoleur interpretativo
Observada como uma forma cristalina, como uma é uma bricolage complexa (que lembra uma colcha),
montagem, ou ainda como uma performance criativa uma colagem ou uma montagem reflexiva — um con-
em torno de um tema central, podemos ampliar as- junto de imagens e de representações mutáveis, in-
sim a triangulação como uma forma de validade, ou terligadas. Essa estrutura interpretativa é como uma
como uma alternativa a esta. A triangulação é a ex- colcha, um texto de performance, uma seqüência de
posição simultânea de realidades múltiplas, refrata- representações que ligam as partes ao todo.
das. Cada uma das metáforas “age” no sentido de criar
a simultaneidade, e não o seqüencial ou o linear. Os A pesquisa qualitativa como um
leitores e as audiências são então convidados a ex- terreno de múltiplas práticas
plorarem visões concorrentes do contexto, a se imer- interpretativas
girem e a se fundirem em novas realidades a serem
compreendidas. A pesquisa qualitativa, como um conjunto de ati-
O bricoleur metodológico é um perito na execu- vidades interpretativas, não privilegia nenhuma úni-
ção de diversas tarefas, que variam desde a entrevista ca prática metodológica em relação a outra. É difícil
até uma auto-reflexão e introspecção intensivas. O definir claramente a pesquisa qualitativa como um
bricoleur teórico lê muito e é bem-informado a res- terreno de discussão ou de discurso. Ela não possui
peito dos diversos paradigmas interpretativos (femi- uma teoria ou um paradigma nitidamente próprio.
nismo, marxismo, estudos culturais, construtivismo, Como revelam as contribuições para a Parte Il deste
teoria queer) que podem ser trazidos para um deter- volume, há múltiplos paradigmas teóricos que ale-
minado problema. Entretanto, ele talvez não ache que gam empregar os métodos e as estratégias da pesqui-
os paradigmas possam ser misturados ou sintetiza- sa qualitativa, desde os estudos construtivistas aos
dos. Ou seja, é difícil esse deslocamento entre os pa- culturais, passando pelo feminismo, pelo marxismo e
radigmas como sistemas filosóficos de maior abran- pelos modelos étnicos de estudo. A pesquisa qualita-
gência que denotam ontologias, epistemologias e tiva é empregada em muitas disciplinas distintas, con-
metodologias específicas. Eles representam sistemas forme discutiremos a seguir. Ela não pertence a uma
de crenças que vinculam os usuários a visões de única disciplina.
mundo particulares. Já as perspectivas são sistemas Nem possui um conjunto distinto de métodos
não tão bem desenvolvidos, e o deslocamento entre ou práticas que seja inteiramente seu. Os pesquisa-
elas é mais fácil. O pesquisador no papel de teórico dores qualitativos utilizam a análise semiótica, a aná-
bricoleur trabalha dentro de perspectivas e paradig- lise da narrativa, do conteúdo, do discurso, de arqui-
mas concorrentes e sobrepostos, e entre eles. vos e a fonêmica e até mesmo as estatísticas, as tabelas,
O bricoleur interpretativo entende que a pesquisa os gráficos e os números. Também aproveitam e uti-
é um processo interativo influenciado pela história lizam as abordagens, os métodos e as técnicas da et-
pessoal, pela biografia, pelo gênero, pela classe social, nometodologia, da fenomenologia, da hermenêuti-
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ca, do feminismo, rizomáticas, do desconstru- compartilhadas pelos principais sociólogos pós-po-


cionismo, da etnografia, das entrevistas, da psicanáli- sitivistas. De um modo semelhante, os historiadores
se, dos estudos culturais, da pesquisa baseada em le- pós-positivistas e pós-estruturalistas trazem diferen-
vantamentos e da observação participante, entre ou- tes compreensões e empregos para os métodos e as
tras. 9 Todas essas práticas de pesquisa “podem descobertas da pesquisa histórica (Tierney, Volume
oferecer importantes insights e conhecimento” (Nel- 2, Capítulo 9). Todas essas tensões e essas contradi-
son et al., 1992, p. 2). Não se pode privilegiar ne- ções ficam evidentes nos capítulos deste volume.
nhum método ou nenhuma prática específicos em Esses empregos e esses significados múltiplos e
relação a qualquer outro método ou prática. isolados dos métodos da pesquisa qualitativa dificul-
Muitos desses métodos, ou dessas práticas de tam a tarefa dos pesquisadores de chegarem a qual-
pesquisa, são utilizados em outros contextos das dis- quer definição essencial do campo, já que este nunca
ciplinas humanas. Cada um carrega os traços de sua é apenas uma coisa.10 Ainda assim, para os propósi-
própria história disciplinar. Sendo assim, há uma lon- tos deste livro, precisamos estabelecer uma defini-
ga história dos usos e dos significados da etnografia ção. Tomamos emprestada e parafraseamos a tenta-
e da etnologia na educação (Fine, Weis, Weseen e tiva de Nelson e colaboradores (1992, p. 4) de definir
Wong, no Capítulo 4); da observação participante e os estudos culturais:
da etnografia na antropologia (Tedlock, Volume 2,
Capítulo 6; Ryan e Bernard, Volume 3, Capítulo 7; A pesquisa qualitativa é um campo interdisciplinar,
Brady, Volume 3, Capítulo 15), na sociologia (Gu- transdisciplinar e, às vezes, contradisciplinar, que atra-
brium e Holstein, Volume 2, Capítulo 7; Harper, Vo- vessa as humanidades, as ciências sociais e as ciênci-
lume 3, Capítulo 5; Fontana e Frey, Volume 3, Capí- as físicas. A pesquisa qualitativa é muitas coisas ao
tulo 2; Silverman, Volume 3, Capítulo 9), na mesmo tempo. Tem um foco multiparadigmático.
comunicação (Ellis e Bochner, Volume 3, Capítulo 6) Seus praticantes são suscetíveis ao valor da aborda-
e nos estudos culturais (veja Frow e Morris, no Capí- gem de múltiplos métodos, tendo um compromisso
tulo 11 deste volume); da análise textual, hermenêu- com a perspectiva naturalista e a compreensão in-
tica, feminista, psicanalítica, semiótica e da narrativa terpretativa da experiência humana. Ao mesmo tem-
no cinema e nos estudos literários (Olesen, no Capí- po, trata-se de um campo inerentemente político e
tulo 8; Brady, Volume 3, Capítulo 15); da análise de influenciado por múltiplas posturas éticas e políticas.
arquivos, da cultura material e histórica e de docu- A pesquisa qualitativa adota duas tensões ao mesmo
mentos na história, na biografia e na arqueologia tempo. Por um lado, é atraída a uma sensibilidade
(Hodder, Volume 3, Capítulo 4; Tierney, Volume 2, geral, interpretativa, pós-experimental, pós-moder-
Capítulo 9); e da análise do discurso e da análise con- na, feminista e crítica. Por outro lado, é atraída a con-
versacional na medicina, nas comunicações e na edu- cepções da experiência humana e de sua análise mais
cação (Miller e Crabtree, Volume 2, Capítulo 12; Sil- restritas à definição positivista, pós-positivista, hu-
verman, Volume 3, Capítulo 9). manista e naturalista. Além disso, essas tensões po-
A diversidade de histórias envolvendo cada mé- dem ser combinadas no mesmo projeto, com a apli-
todo ou estratégia de pesquisa revela como cada prá- cação tanto das perspectivas pós-moderna e
tica recebe múltiplos usos e significados. As análises naturalista quanto das perspectivas crítica e huma-
textuais nos estudos literários, por exemplo, muitas nista.
vezes tratam os textos como sistemas independentes.
Por outro lado, um pesquisador que adote uma pers- Essa afirmação um tanto complexa significa que
pectiva dos estudos culturais ou do feminismo inter- a pesquisa qualitativa, enquanto conjunto de práti-
pretará o texto em termos de sua localização dentro cas, envolve, dentro de sua própria multiplicidade de
de um momento histórico marcado por um gênero, histórias disciplinares, tensões e contradições cons-
uma raça ou uma ideologia de classe específicos. Um tantes em torno do projeto propriamente dito, inclu-
emprego da etnografia voltado para os estudos cul- indo seus métodos e as formas que suas descobertas
turais traria para o projeto uma série de compreen- e suas interpretações assumem. Esse campo esten-
sões do feminismo, do pós-modernismo e do pós- de-se entre todas as disciplinas humanas, atravessan-
estruturalismo. Essas interpretações não seriam do-as, e em alguns casos inclui até mesmo as ciências
22 O PL ANEJAMENTO DA PESQUISA QUALITATIVA

físicas. Seus praticantes têm compromissos diversos Os positivistas ainda alegam que os chamados
com as sensibilidades modernas, pós-modernas e pós- novos pesquisadores qualitativos experimentais es-
experimentais e com as abordagens à pesquisa social crevem ficção, e não ciência, e que tais pesquisado-
que tais sensibilidades implicam. res não dispõem de nenhum método para verificar o
que é declarado como verdade. A poesia e a ficção
As resistências em relação aos etnográficas indicam o fim da ciência empírica, e há
estudos qualitativos poucas vantagens ao se tentar um envolvimento com
a crítica moral. Esses críticos presumem uma reali-
As resistências em termos acadêmicos e discipli- dade estável, imutável, que possa ser estudada com a
nares à pesquisa qualitativa ilustram a política im- utilização dos métodos empíricos da ciência social
plantada nesse campo de discurso. São muitos os objetiva (Huber, 1995). A competência da pesquisa
desafios à pesquisa qualitativa. Os pesquisadores qualitativa é, portanto, o mundo da experiência vivi-
qualitativos são denominados jornalistas ou cientis- da, pois é nele que a crença individual e a ação e a
tas das áreas das soft sciences. Seu trabalho é conside- cultura entrecruzam-se. Dentro desse modelo, não
rado não-científico, ou apenas exploratório, ou sub- existe nenhuma preocupação com o discurso e com
jetivo. É chamado de crítica, e não de teoria, ou é o método como práticas interpretativas materiais que
interpretado politicamente como uma versão disfar- constituem a representação e a descrição. Dessa for-
çada do marxismo ou do humanismo secular (veja ma, a virada narrativa, textual, é rejeitada pelos posi-
Huber, 1995; Denzin, 1997, p. 258-261). tivistas.
Essas resistências refletem uma percepção incô- O fato de os pós-positivistas (veja a seguir) e os
moda de que as tradições da pesquisa qualitativa com- pós-estruturalistas oporem-se à ciência positiva é vis-
prometem o pesquisador com um crítica do projeto to então como um ataque à razão e à verdade. Ao
positivista ou pós-positivista. Porém, a resistência mesmo tempo, o ataque da ciência positivista à pes-
positivista à pesquisa qualitativa extrapola o “desejo quisa qualitativa é considerado uma tentativa de le-
sempre presente de manter uma distinção entre as gislar uma versão da verdade acima de outra.
hard sciences * e o saber das soft sciences” (Carey, 1989, Esse terreno político complexo define a diversi-
p. 99; Schwandt, Capítulo 7; no Volume 3, Smith e dade de tradições e de linhas de desenvolvimento da
Deemer, Capítulo 12). As ciências (positivistas) ex- pesquisa qualitativa: a tradição britânica e sua pre-
perimentais (física, química, economia e psicologia, sença em outros contextos nacionais; as tradições
por exemplo) são muitas vezes vistas como as gran- pragmáticas, naturalistas e interpretativas america-
des façanhas da civilização ocidental, supondo-se, em nas na sociologia, na antropologia, nas comunica-
suas práticas, que a “verdade” possa transcender a ções e na educação; as perspectivas estruturais e pós-
opinião e a tendenciosidade pessoal (Carey, 1989, p. estruturais, marxistas, semióticas, hermenêuticas,
99; Schwandt, 1997b, p. 309). A pesquisa qualitativa fenomenológicas alemãs e francesas; os estudos fe-
é vista como um ataque a essa tradição, cujos adep- ministas, os estudos afro-americanos, os estudos la-
tos geralmente refugiam-se em um modelo de “ciên- tinos, os estudos queer, os estudos das culturas indí-
cia objetivista livre de valores” (Carey, 1989, p. 104) genas e aborígenes. A política da pesquisa qualitativa
para defender sua postura. Raramente tentam expli- cria uma tensão que invade cada uma dessas tradi-
citar, ou criticar, os “compromissos morais e políti- ções citadas acima. Essa tensão propriamente dita é
cos em seu próprio trabalho contingente” (Carey, constantemente reexaminada e questionada à medi-
1989, p. 104; ver também Lincoln e Guba, no Capí- da que a pesquisa qualitativa defronta-se com um
tulo 6). mundo histórico inconstante, novas posturas inte-
lectuais e suas próprias condições institucionais e
acadêmicas.
Resumindo: a pesquisa qualitativa representa
muitas coisas para muitas pessoas. Tem uma dupla
*N. de T. Qualquer tipo de ciência na qual é possível quantifi- essência: um comprometimento com alguma versão
car dados com precisão e testar teorias. Ex.: física, geologia, da abordagem interpretativa, naturalista, com seu
astronomia, etc. tema e uma crítica contínua da política e dos métodos
Introdução 23

do pós-positivismo. Voltaremos nossa atenção agora Essas duas tradições da ciência positivista defendem
para uma breve discussão das principais diferenças posturas realistas críticas e ingênuas que dizem res-
entre as abordagens qualitativa e quantitativa à pes- peito à realidade e à sua percepção. Na versão positi-
quisa, para então discutirmos as diferenças e as ten- vista, afirma-se que existe uma realidade lá fora para
sões que ocorrem dentro da investigação qualitativa. ser estudada, captada e compreendida, ao passo que
os pós-positivistas defendem a idéia de que a reali-
Pesquisa qualitativa versus pesquisa dade nunca pode ser plenamente apreendida, apenas
quantitativa aproximada (Guba, 1990, p. 22). O pós-positivismo
confia em múltiplos métodos como forma de captar
A palavra qualitativa implica uma ênfase sobre as o máximo possível da realidade. Ao mesmo tempo, a
qualidades das entidades e sobre os processos e os ênfase recai sobre a descoberta e a verificação das
significados que não são examinados ou medidos teorias. São enfatizados os critérios de avaliação tra-
experimentalmente (se é que são medidos de alguma dicionais, como a validade interna e a externa, assim
forma) em termos de quantidade, volume, intensida- como o emprego de procedimentos qualitativos que
de ou freqüência. Os pesquisadores qualitativos res- se prestem à análise estruturada (às vezes estatística).
saltam a natureza socialmente construída da realida- Também podem ser empregados métodos de análise
de, a íntima relação entre o pesquisador e o que é que contam com o auxílio computacional, os quais
estudado, e as limitações situacionais que influenciam permitem as contagens de freqüência, as tabulações
a investigação. Esses pesquisadores enfatizam a e as análises estatísticas em níveis inferiores.
natureza repleta de valores da investigação. Buscam As tradições positivista e pós-positivista esten-
soluções para as questões que realçam o modo como dem-se como longas sombras sobre o projeto da pes-
a experiência social é criada e adquire significado. quisa qualitativa. A pesquisa qualitativa foi historica-
Já os estudos quantitativos enfatizam o ato de medir mente definida dentro do paradigma positivista, no
e de analisar as relações causais entre variáveis, e qual os pesquisadores qualitativos tentavam realizar
não processos. Aqueles que propõem esses estudos uma pesquisa positivista de boa qualidade utilizando
alegam que seu trabalho é feito a partir de um esque- métodos e procedimentos menos rigorosos. Alguns
ma livre de valores. pesquisadores qualitativos de meados do século XX
(p. ex., Becker, Geer, Hughes e Strauss, 1961) relata-
ram resultados da observação participante em termos
Estilos de pesquisa: Fazendo as mesmas de quase-estatística. Recentemente, em 1998, Strauss
coisas de um modo diferente? e Corbin, dois líderes da abordagem tipo grounded
Não há dúvidas de que tanto os pesquisadores theory à pesquisa qualitativa tentaram modificar os
qualitativos quanto os quantitativos “imaginam que cânones usuais da boa ciência (positivista) para ade-
sabem alguma coisa a respeito da sociedade que vale quá-los a sua própria concepção pós-positivista de
a pena contar para os outros, e empregam uma vari- uma pesquisa rigorosa (entretanto, ver Charmaz, Ca-
edade de formas, de veículos e de meios de comuni- pítulo 8, Volume 2; Glaser, 1992). Alguns pesquisa-
car suas idéias e descobertas” (Becker, 1986, p. 122). dores na linha da pesquisa aplicada, ao mesmo tem-
A pesquisa qualitativa difere da pesquisa quantitati- po em que alegavam serem ateóricos, muitas vezes
va em cinco aspectos significativos (Becker, 1996). Es- encaixavam-se automaticamente dentro do esquema
ses pontos de divergência giram em torno de dife- positivista ou pós-positivista.
rentes formas de abordar o mesmo conjunto de Flick (1998, p. 2-3) resume de uma maneira efi-
questões. Sempre retornam à política da pesquisa e a caz as diferenças entre essas duas abordagens à in-
quem tem o poder de legislar as soluções corretas vestigação. Ele observa que a abordagem quantitati-
para esses problemas. va tem sido empregada com a finalidade de isolar “as
causas e os efeitos (...) operacionalizando as relações
Os usos do positivismo e do pós-positivismo. Em pri- teóricas (...) [e] medindo e (...) quantificando os fe-
meiro lugar, essas duas perspectivas são influencia- nômenos (...) permitindo a generalização das desco-
das pelas tradições positivistas e pós-positivistas nas bertas” (p. 3). Mas, atualmente, esses projetos são
ciências físicas e sociais (veja a discussão a seguir). postos em dúvida, pois “a mudança social acelerada
24 O PL ANEJAMENTO DA PESQUISA QUALITATIVA

e a conseqüente diversificação dos mundos de vida quisadores procuram métodos alternativos para ava-
estão cada vez mais fazendo com que os pesquisado- liarem seu trabalho, incluindo a verossimilhança, a
res sociais defrontem-se com novos contextos e no- emocionalidade, a responsabilidade pessoal, uma ética
vas perspectivas sociais (...) metodologias dedutivas do cuidar, a práxis política, os textos de múltiplas vozes
tradicionais (...) estão fracassando (...) e assim a pes- e os diálogos com sujeitos. Em resposta a essa ques-
quisa é cada vez mais obrigada a utilizar estratégias tão, os positivistas e os pós-positivistas afirmam que
indutivas em vez de partir de teorias e testá-las (...) o o que eles fazem é uma ciência de boa qualidade, li-
conhecimento e a prática são estudados como co- vre da tendenciosidade individual e da subjetividade.
nhecimento e prática locais” (p. 2). Como se pôde observar acima, eles vêem no pós-
Spindler e Spindler (1992) resumem sua aborda- modernismo e no pós-estruturalismo ataques à ra-
gem qualitativa para os materiais quantitativos: “A zão e à verdade.
instrumentação e a quantificação são simplesmente
procedimentos empregados para ampliar e reforçar Uma forma de captar o ponto de vista do indivíduo.
certos tipos de dados, interpretações e para testar hi- Tanto os pesquisadores qualitativos quanto os quan-
póteses através de amostras. Ambas devem ser man- titativos preocupam-se com o ponto de vista do in-
tidas em seu devido lugar. Como um mecanismo de divíduo. No entanto, os investigadores qualitativos
segurança, é preciso evitar seu emprego prematuro imaginam que tenham condições de se aproximar
ou excessivamente amplo” (p. 69). mais da perspectiva do ator através da entrevista e da
Ainda que muitos pesquisadores qualitativos na observação detalhadas. Eles argumentam que os pes-
tradição pós-positivista venham a utilizar as medi- quisadores quantitativos raramente conseguem cap-
das, os métodos e os documentos estatísticos como tar as perspectivas dos sujeitos que estudam, pois
forma de localizar os grupos de sujeitos dentro de precisam confiar em materiais e métodos empíricos
populações mais amplas, raramente relatarão suas mais ilativos, remotos. Muitos pesquisadores quan-
descobertas em termos dos tipos de medidas ou mé- titativos consideram não-confiáveis, impressionísti-
todos estatísticos complexos para os quais os pes- cos e não-objetivos os materiais empíricos produzi-
quisadores quantitativos são atraídos (ou seja, cami- dos pelos métodos interpretativos.
nhos, regressão, ou análises log-lineares).
Um exame das limitações do cotidiano. É mais prová-
A aceitação das sensibilidades pós-modernas. O uso dos vel que os pesquisadores qualitativos venham a en-
métodos e das suposições positivistas, quantitativas, frentar e a deparar-se com as limitações do mundo
foi rejeitado por uma nova geração de pesquisadores social cotidiano. Eles vêem esse mundo em ação e
qualitativos ligados às sensibilidades pós-estruturais nele inserem suas descobertas. Os pesquisadores
e/ou pós-modernas (veja também Vidich e Lyman, quantitativos desviam sua atenção desse mundo e
no Capítulo 2; e no Volume 3, Richardson, Capítulo raras vezes estudam-no diretamente. Eles buscam
14). Esses pesquisadores argumentam que os méto- uma ciência nomotética ou ética baseada em proba-
dos positivistas são apenas uma forma de contar his- bilidades resultantes do estudo de grandes números
tórias sobre a sociedade ou sobre o mundo social. Es- de casos selecionados aleatoriamente. Esses tipos de
ses métodos talvez não sejam nem melhores nem piores declarações encontram-se acima e fora das limita-
do que quaisquer outros métodos; eles apenas con- ções da vida cotidiana. Os pesquisadores qualitati-
tam diferentes tipos de histórias. vos, por outro lado, têm um compromisso com uma
Nem todos têm essa mesma visão tolerante (Hu- postura baseada em casos, idiográfica, êmica, que di-
ber, 1995). Muitos membros das escolas de pensa- reciona sua atenção para os aspectos específicos de
mento da teoria crítica, construtivista, pós-estrutu- determinados casos.
ral e pós-moderna rejeitam os critérios positivistas e
pós-positivistas ao avaliarem seu próprio trabalho. Garantia da riqueza das descrições. Os pesquisado-
Eles entendem que esses critérios são irrelevantes para res qualitativos acreditam que descrições ricas do
seu trabalho e afirmam que tais critérios reprodu- mundo social são valiosas, ao passo que os pesquisa-
zem apenas um certo tipo de ciência, uma ciência dores quantitativos, com seus compromissos éticos,
que silencia um enorme número de vozes. Esses pes- nomotéticos, preocupam-se menos com esse tipo de
Introdução 25

detalhe. Os pesquisadores quantitativos são delibe- performance, textual. Snow e Morril (1995) afirmam
radamente indiferentes à riqueza das descrições, pois que “essa reviravolta da performance, assim como a
esse tipo de detalhe interrompe o processo de desen- preocupação com o discurso e com a narração de
volvimento das generalizações. histórias, nos afastará ainda mais do campo da ação
Os cinco pontos de divergência descritos ante- social e dos dramas reais da vida cotidiana, anuncian-
riormente (usos do positivismo e do pós-positivis- do, assim, o fim da etnografia enquanto iniciativa
mo, do pós-modernismo, a forma de captar o ponto empiricamente embasada” (p. 361). É claro que dis-
de vista do indivíduo, o exame das restrições da vida cordamos dessa idéia.
cotidiana e a garantia das descrições densas) refle- Munidos dessas diferenças entre essas duas tra-
tem compromissos com diferentes estilos de pesqui- dições, e dentro delas, cabe a nós discutirmos breve-
sa, diferentes epistemologias e diferentes formas de mente a história da pesquisa qualitativa. Dividimos
representação. Cada tradição de trabalho é controla- essa história em sete momentos históricos, atentan-
da por seu próprio conjunto de gêneros (estilos); cada do ao fato de que qualquer história é sempre de certa
uma delas tem seus próprios clássicos, suas próprias forma arbitrária e, ao menos parcialmente, sempre
formas preferenciais de representação, de interpreta- uma construção social.
ção, de fidedignidade e de avaliação textual (Becker,
1986, p. 134-135). Os pesquisadores qualitativos em-
pregam a prosa etnográfica, as narrativas históricas, os A história da pesquisa qualitativa
relatos em primeira pessoa, as imagens congeladas, as
histórias da vida, os “fatos” transformados em ficção e Como nos lembram Vidich e Lyman, no Capítu-
os materiais biográficos e autobiográficos, entre ou- lo 2, a história da pesquisa qualitativa revela que as
tros. Os pesquisadores quantitativos utilizam os mo- disciplinas das ciências sociais modernas assumiram
delos matemáticos, as tabelas estatísticas e os gráficos, a missão da “análise e da compreensão da conduta
e geralmente empregam uma prosa impessoal, em ter- padronizada e dos processos sociais da sociedade”. A
ceira pessoa, ao escreverem sobre sua pesquisa. noção de que essa tarefa poderia ser executada pres-
supunha a habilidade dos cientistas sociais de obser-
As tensões dentro da pesquisa varem o mundo objetivamente. Os métodos qualita-
qualitativa tivos foram uma das principais ferramentas para essas
observações.11
É um erro presumir que todos os pesquisadores Ao longo da história da pesquisa qualitativa, os
qualitativos tenham as mesmas suposições em rela- investigadores sempre definiram seu trabalho em ter-
ção aos cinco pontos de divergência descritos acima. mos de esperanças e valores, “fés religiosas, ideologias
Como revelará a discussão a seguir, as diferenças ocupacionais e profissionais” (Vidich e Lyman, no
positivistas, pós-positivistas e pós-estruturais definem Capítulo 2). A pesquisa qualitativa (assim como toda
e influenciam os discursos da pesquisa qualitativa. a pesquisa) sempre foi avaliada quanto ao “padrão
Os realistas e os pós-positivistas dentro da tradição que define se o trabalho nos comunica ou “diz” algo”
da pesquisa qualitativa interpretativa criticam os pós- (Vidich e Lyman, no Capítulo 2), com base no modo
estruturalistas por terem seguido a reviravolta narra- como conceitualizamos nossa realidade e nossas ima-
tiva, textual. Esses críticos sustentam que esse tipo gens do mundo. A epistemologia é a palavra que tem
de trabalho é incapaz de enxergar a sua volta, geran- definido historicamente esses padrões de avaliação.
do as condições “para um diálogo de surdos entre Neste período contemporâneo, como afirmamos aci-
esse mesmo trabalho e a comunidade” (Silverman, ma, muitos discursos geralmente aceitos sobre a epis-
1997, p. 240). Aqueles que tentam captar o ponto de temologia agora estão sendo reavaliados.
vista do sujeito em interação no mundo são acusa- A história de Vidich e Lyman abrange os seguin-
dos de um humanismo ingênuo, de reproduzirem tes estágios (de certa forma) sobrepostos: a primeira
“um impulso romântico que eleva o experimental ao etnografia (até o século XVII); a etnografia colonial
nível do autêntico” (Silverman, 1997, p. 248). (exploradores dos séculos XVII, XVIII e XIX); a et-
Outros ainda argumentam que a experiência vi- nografia do índio americano como “outro” (antro-
vida é ignorada por aqueles que seguem a virada da pologia do final do século XIX e início do século XX);
26 O PL ANEJAMENTO DA PESQUISA QUALITATIVA

a etnografia do “outro cívico”, ou os estudos da co- águas pós-moderno” exige “o abandono de todas as
munidade, e as etnografias dos imigrantes america- teorias e perspectivas e de todos os valores estabele-
nos (início do século XX até a década de 1960); os cidos e pré-concebidos (...) e dos preconceitos como
estudos da etnicidade e da assimilação (meados do recursos para o estudo etnográfico”. Nessa nova era,
século XX até a década de 1980); e a atualidade, a o pesquisador qualitativo faz mais do que observar a
qual denominamos de sétimo momento. história; ele desempenha um papel nessa história.
Em cada uma dessas eras, os pesquisadores foram Novas histórias extraídas do campo serão escritas, que
e continuam sendo influenciados por suas esperanças refletirão o engajamento direto e pessoal do pesqui-
e ideologias políticas, fazendo descobertas em suas sador com esse período histórico.
pesquisas que confirmam teorias ou crenças anterio- A análise de Vidich e Lyman cobre todo o âmbi-
res. Os primeiros etnógrafos confirmaram a diversida- to da história etnográfica. Já a nossa limita-se ao sé-
de racial e cultural dos povos em todo o globo, e tenta- culo XX, complementando muitas de suas divisões.
ram fazer com que essa diversidade se encaixasse em Começamos com o primeiro trabalho fundacionalis-
uma teoria sobre as origens da história, das raças e das ta dos britânicos e dos franceses e também de Chica-
civilizações. Antes da profissionalização da etnografia go, Columbia, Harvard, Berkeley e das escolas britâ-
no século XX, os etnógrafos coloniais promoveram nicas de sociologia e de antropologia. Esse primeiro
um pluralismo colonial que deixou os nativos por sua período fundacionalista estabeleceu as normas da
própria conta desde que seus líderes pudessem ser pesquisa etnográfica e da pesquisa qualitativa clássi-
cooptados pela administração colonial. ca (Gupta e Ferguson, 1997; Rosaldo, 1989; Stocking,
Os etnógrafos europeus estudaram os africanos, 1989).
os asiáticos e outros povos não-brancos do Terceiro
Mundo. Os primeiros etnógrafos americanos estu-
daram o índio americano a partir da perspectiva do Os sete momentos da pesquisa
conquistador, que via o mundo de vida do primitivo qualitativa
como uma janela para o passado pré-histórico. A
missão calvinista de salvar o índio logo foi transferi- Conforme sugerimos anteriormente, nossa his-
da para a missão de salvar as “hordas” de imigrantes tória da pesquisa qualitativa na América do Norte
que entravam nos Estados Unidos nos primórdios neste século divide-se em sete fases, e cada uma de-
da industrialização. Os estudos comunitários qualita- las é descrita a seguir.
tivos sobre o outro étnico proliferaram a partir do iní-
cio do século XX até a década de 1960, e incluíram o O período tradicional
trabalho de E. Franklin Frazier, Robert Park e de Ro-
bert Redfield e seus alunos, bem como de William Foote Chamamos esse primeiro momento de período
Whyte, dos Lynds, de August Hollingshead, de Herbert tradicional (o qual abrange a segunda e a terceira fa-
Gans, Stanford Lyman, Arthur Vidich e Joseph ses de Vidich e Lyman). Começa no início do século
Bensman. Os estudos da etnicidade após a década de XX, continuando até a Segunda Guerra Mundial.
1960 contestaram a hipótese do “melting pot” de Park e Nesse período, os pesquisadores qualitativos escre-
seus seguidores, e corresponderam ao surgimento dos veram relatos colonialistas, “objetivos”, das expe-
programas de estudos étnicos que viam os nativo-ame- riências de campo que refletiam o paradigma dos
ricanos, os latinos, os ásio-americanos e os afro-ame- cientistas positivistas. Sua preocupação estava em ofe-
ricanos tentarem assumir o controle sobre o estudo e recer interpretações válidas, confiáveis e objetivas em
seus próprios povos. seus escritos. O “outro” estudado era forasteiro, es-
O desafio pós-moderno e pós-estrutural surgiu trangeiro e estranho.
em meados dos anos de 1980. Questionou as supo- Temos aqui a discussão de Malinowski (1967) so-
sições que haviam organizado essa primeira parte da bre as experiências de campo na Nova Guiné e nas
história em cada um de seus momentos colonialis- Ilhas Trobriand nos anos de 1914 a 1915 e de 1917 a
tas. Como argumentam Vidich e Lyman no Capítulo 1918. Ele oferece seus hábitos em troca de dados de
2, a pesquisa qualitativa que atravessa o “divisor de campo:
Introdução 27

Não há absolutamente nada que me atraia aos estu- objetivo da cultura estudada. Esses relatos foram es-
dos etnográficos (...) De um modo geral, a impres- truturados pelas normas da etnografia clássica. Essa
são que tive do povoado foi bastante desfavorável. coleção sagrada de termos (Rosaldo, 1989, p. 31) or-
Notei uma certa desorganização (...) a balbúrdia e a ganizou os textos etnográficos como quatro crenças
insistência das pessoas que ficavam rindo, olhando e e compromissos: um compromisso em relação ao
mentindo de certa forma me desestimulou (...) Fui objetivismo, uma cumplicidade com o imperialismo,
até o povoado na esperança de fotografar alguns es- uma crença no monumentalismo (a etnografia cria-
tágios da dança bara. Distribuí ramos de tabaco, de- ria um retrato como o de um museu para registrar a
pois assisti a algumas danças e então tirei algumas cultura estudada) e uma crença no intemporal (o que
fotos — mas tive poucos resultados (...) eles não po- foi estudado nunca mudaria). O outro era um “obje-
savam o tempo necessário para concluir a fotografia. to” a ser mantido em um arquivo. Esse modelo do
Em alguns momentos, fiquei furioso com eles, espe- pesquisador, o qual também podia escrever teorias
cialmente quando, depois de eu lhes dar suas por- complexas, densas, sobre o que era estudado ainda
ções de tabaco, todos foram embora. (citado em existe nos dias de hoje.
Geertz, 1988, p. 73-74) O mito do Etnógrafo Solitário retrata o nasci-
mento da etnografia clássica. Os textos de Mali-
Em outro trabalho, esse pesquisador de campo nowski, Radcliffe-Brown, Margaret Mead e Gregory
solitário, isolado, frustrado, descreve seus métodos Bateson ainda são cuidadosamente examinados em
com as seguintes palavras: relação às informações que podem passar ao novato
quanto às formas de conduzir o trabalho de campo,
Quando se está em campo, é preciso enfrentar uma de registrar as notas de campo e de escrever a teoria.
confusão de fatos (...) nessa forma bruta, esses fatos Hoje essa imagem se quebrou. Muitos enxergam os
não são, de forma alguma, científicos; são absoluta- trabalhos dos etnógrafos clássicos como relíquias do
mente elusivos, e só podem ser determinados pela passado colonial (Rosaldo, 1989, p. 44). Embora mui-
interpretação (...) Somente as leis e as generalizações são tos sintam uma nostalgia por esse passado, outros
fatos científicos, e o trabalho de campo consiste ape- celebram sua passagem. Rosaldo (1989) cita Cora Du
nas e exclusivamente na interpretação da realidade Bois, uma professora aposentada de antropologia da
social caótica e na sua subordinação a regras gerais. Harvard, que lamentou essa passagem em uma con-
(Malinowski, 1916/1948, p. 328, citado em Geertz, ferência realizada em 1980, que refletia sobre a crise
1988, p. 81) na antropologia: “[Sinto que há uma distância] em
relação à complexidade e à desordem do que antes
As observações de Malinowski são provocativas. eu considerava uma disciplina justificável e contes-
Por um lado, depreciam o trabalho de campo, porém, tadora (...) É como deixar um famoso museu de arte
por outro, falam desse trabalho dentro da glorificada para ir para um bazar de garagem” (p. 44).
linguagem da ciência, com leis e generalizações mol- Para Du Bois, as etnografias clássicas são peças
dadas a partir dessa mesma experiência. do intemporal acervo de arte mantido por um mu-
Durante esse período, o pesquisador de campo seu. Ela se sente desconfortável no caos do bazar de
foi tratado como uma celebridade, transformado em garagem. Já Rosaldo (1989) volta-se para esta metá-
uma figura exagerada que ia para o campo e dele re- fora: “[O bazar de garagem] oferece uma imagem pre-
tornava trazendo histórias sobre pessoas estranhas. cisa da situação pós-colonial na qual os artefatos cul-
Rosaldo (1989, p. 30) descreve esse período como o turais circulam entre lugares improváveis, e nada é
do Etnógrafo Solitário, a história de um homem cien- sagrado, permanente, ou lacrado. A imagem da an-
tista que parte à procura do nativo que irá estudar tropologia como um bazar de garagem representa
em um país distante. Lá essa figura “encontrou o nossa atual situação global” (p. 44). Na verdade, mui-
objeto de sua busca (...) [e] enfrentou seu ritual de tos tesouros valiosos podem ser encontrados, haven-
passagem suportando a provação definitiva do ‘tra- do o desejo de se realizar uma longa e árdua busca
balho de campo’” (p. 30). Após retornar para casa com em lugares inesperados. Os velhos padrões não mais
seus dados, o Etnógrafo Solitário redigiu um relato se mantêm. As etnografias não produzem verdades
28 O PL ANEJAMENTO DA PESQUISA QUALITATIVA

intemporais. O compromisso com o objetivismo agora 1995; Taylor e Bogdan, 1998).12 O etnógrafo moder-
foi posto em dúvida. Hoje, contesta-se abertamente nista e o observador participante sociológico fizeram
a cumplicidade com o imperialismo, e a crença no experiências com rigorosos estudos qualitativos de
monumentalismo pertence ao passado. importantes processos sociais, incluindo o desvio e o
Os legados deste primeiro período começam no controle social em sala de aula e na sociedade. Foi
final do século XIX, quando o romance e as ciências um momento de efervescência criativa.
sociais passaram a se distinguir como sistemas isola- Nas disciplinas humanas, uma nova geração de
dos de discurso (Clough, 1992, p. 21-22; veja tam- alunos de graduação encontrou novas teorias inter-
bém Clough, 1998). No entanto, a escola de Chica- pretativas (etnometodologia, fenomenologia, teoria
go, com sua ênfase sobre a história de vida e o modo crítica, feminismo). Eles foram atraídos para as práti-
de abordar os materiais etnográficos retratando de- cas da pesquisa qualitativa as quais permitiriam-lhes
talhes da vida real, procurou desenvolver uma meto- dar uma voz à classe baixa da sociedade. O pós-posi-
dologia intepretativa que mantivesse a centralidade tivismo funcionou como um poderoso paradigma
da abordagem da história da vida narrada. Esse fato epistemológico. Os pesquisadores tentaram encaixar
levou à produção de textos que conferiram ao pes- o modelo de Campbell e Stanley (1963) da validade
quisador no papel de autor o poder de representar a interna e externa às concepções construcionistas e
história do sujeito. Escritos sob o manto do realismo interacionistas do ato da pesquisa. Eles retornaram
social livre de sentimentos, direto, esses textos utili- aos textos da escola de Chicago como fontes de ins-
zavam a linguagem das pessoas simples. Eles articu- piração (Denzin, 1970, 1978).
laram uma versão do naturalismo literário feita pela Boys in white continua sendo um texto canônico
ciência social, que muitas vezes produziu a agradável desse momento (Becker et al., 1961; Becker, 1998).
ilusão de encontrar soluções para problemas sociais. Firmemente entrincheirado no discurso metodoló-
Assim como os filmes que retratavam a delinqüência gico de meados do século XX, esse trabalho tentou
juvenil da era da Depressão e outros “problemas so- tornar a pesquisa qualitativa tão rigorosa quanto sua
ciais” (Roffman e Purdy, 1981), esses relatos roman- equivalente quantitativa. As narrativas causais ocu-
tizaram o sujeito. Transformaram o desviado em uma param papel central nesse projeto. Esse trabalho que
versão sociológica de um herói das telas. Essas histó- reúne múltiplos métodos combinou entrevistas aber-
rias sociológicas, assim como seus equivalentes ci- tas e quase-estruturadas com a observação partici-
nematográficos, geralmente tinham finais felizes ao pante e a análise criteriosa desses tipos de materiais
acompanharem os indivíduos por meio dos três es- em um molde estatístico, padronizado. Em um artigo
tágios da narrativa da moralidade clássica: estar em clássico, “Problems of Inference and Proof in Partici-
um estado de graça, ser seduzido pelo mal e a ele pant Observation” (Os problemas da inferência e da
sucumbir e, por fim, alcançar a redenção através do prova na observação participante), Howard S. Becker
sofrimento. (1958/1970) descreve o uso da quase-estatística:

A fase modernista Houve momentos em que as observações partici-


pantes foram reunidas em um molde padronizado
A fase modernista, ou segundo momento, baseia- capaz de ser transformado em dados estatísticos
se nos trabalhos canônicos do período tradicional. legítimos. Porém, as exigências do campo geralmen-
Ainda são valorizados o realismo social, o naturalis- te impedem que se colete dados de forma a ir ao
mo e as etnografias que expõem detalhes da vida real. encontro das suposições dos testes estatísticos, de
Essa fase estendeu-se ao longo dos anos do pós-guer- modo que o observador entrega-se a chamada “qua-
ra até a década de 1970, estando ainda presente no se-estatística”. Suas conclusões, embora implicita-
trabalho de muitos (para resenhas, ver Wolcott, 1990, mente numéricas, não exigem uma quantificação
1992, 1995; ver também Tedlock, Capítulo 6, Volu- precisa. (p. 31)
me 2). Nesse período, muitos textos buscaram for-
malizar os métodos qualitativos (Bogdan e Taylor, Na análise dos dados, observa Becker, o pesqui-
1975; Cicourel, 1964; Filstead, 1970; Glaser e Strauss, sador qualitativo toma como exemplo os colegas da
1967; Lofland, 1971, 1995; Lofland e Lofland, 1984, estatística. O pesquisador procura probabilidades ou
Introdução 29

um apoio aos argumentos que dizem respeito ao que rotulação, etnometodologia, teoria do conflito, feno-
se espera quanto a efetiva aplicação da conclusão em menologia, análise dramatúrgica.
um situação específica, e à freqüência com que ela se
aplica (Becker, 1998, p. 166-170). E assim, o trabalho E assim acabou a fase modernista.
no período modernista, de fato, revestiu-se da lin-
guagem e da retórica do discurso positivista e pós- Gêneros (estilos) obscuros
positivista.
Essa foi a era dourada da análise qualitativa rigo- No início do terceiro estágio (1970-1986), o qual
rosa, que na sociologia aparece encerrada por parên- denominamos o momento dos gêneros (estilos) obs-
teses de um lado por Boys in white (Becker et al., 1961) curos, os pesquisadores qualitativos já haviam esgo-
e de outro por The discovery of grounded theory (Glaser tado a cota de paradigmas, métodos e estratégias a
e Strauss, 1967). Na educação, a pesquisa qualitativa ser empregada em sua pesquisa. As teorias variavam
desse período foi definida por George e Louise Spin- do interacionismo simbólico ao construtivismo, pas-
dler, Jules Henry, Harry Wolcott e John Singleton. Essa sando pela investigação naturalista, o positivismo e o
forma de pesquisa qualitativa ainda está presente no pós-positivismo, a fenomenologia, a etnometodolo-
trabalho de pessoas como Strauss e Corbin (1998) e gia, a teoria crítica, a teoria neomarxista, a semiótica,
Ryan e Bernard (ver Capítulo 7, Volume 3). o estruturalismo, o feminismo e diversos paradigmas
A “era dourada” reforçou o retrato dos pesquisa- raciais/étnicos. Crescia a reputação da pesquisa qua-
dores qualitativos como românticos culturais. Imbuí- litativa aplicada, e a política e a ética da pesquisa qua-
dos de poderes humanos prometéicos, eles valoriza- litativa — implicada como estavam em várias aplica-
ram os vilões e os outsiders, considerando-os heróis ções desse trabalho — eram tópicos que despertavam
da sociedade dominante. Incorporaram uma crença um interesse considerável. As estratégias de pesquisa
na contingência do eu e da sociedade, e mantiveram- e os formatos de relatório de pesquisa variavam da
se fiéis aos ideais emancipatórios pelos quais “o indi- grounded theory ao estudo de caso e aos métodos de
víduo vive e morre”. Colocaram em ordem uma vi- pesquisa histórica, biográfica, etnográfica, clínica e
são trágica e muitas vezes irônica da sociedade e do de pesquisa-ação. Também havia diversas formas dis-
eu, e aderiram a uma longa linha de românticos cul- poníveis de coleta e de análise de materiais empíri-
turais de esquerda que incluía Emerson, Marx, Ja- cos, incluindo as entrevistas qualitativas (abertas e
mes, Dewey, Gramsci e Martin Luther King, Jr. (West, quase-estruturadas) e os métodos observacionais, vi-
1989, Capítulo 6). suais, da experiência pessoal e documentários. Os
À medida que esse momento vai chegando ao fim, computadores começaram a ser empregados, atingin-
a Guerra do Vietnã já se fazia presente em toda a do seu pleno desenvolvimento na década seguinte
sociedade americana. Em 1969, ao lado dessas cor- como ferramentas de auxílio à análise dos dados qua-
rentes políticas, Herbert Blumer e Everett Hughes litativos, ao lado da narrativa, do conteúdo e dos
encontraram-se com um grupo de jovens sociólogos métodos semióticos de leitura das entrevistas e dos
chamado de os “Irregulares de Chicago”, nas reuniões textos culturais.
da American Sociological Association realizadas em Dois livros de Geertz, The interpretation of culture
San Francisco, e com eles relembraram seus “tempos (1973) e Local knowledge (1983) definiram o início e o
de Chicago”. Lyn Lofland (1980, p. 253) descreve as final desse momento. Nessas duas obras, Geertz de-
reuniões de 1969 como um fendeu a idéia de que as velhas abordagens funcio-
nais, positivistas, comportamentais, totalizadoras às
momento de efervescência criativa — em termos disciplinas humanas estavam cedendo lugar a uma
políticos e de estudos. As reuniões de San Francisco perspectiva mais pluralista, interpretativa, aberta. Essa
testemunharam não apenas o evento Blumer-Hu- nova perspectiva tomou como ponto de partida as
ghes, mas uma “contra-revolução”. (...) quando, pela representações culturais e seus significados. Em um
primeira vez, um grupo chegou a (...) discutir os pro- apelo pelas “descrições densas” de certos eventos, ri-
blemas inerentes à condição de sociólogo e de mu- tuais e costumes, Geertz sugeriu a idéia de que todos
lher (...) parecia que havia literalmente uma explo- os escritos antropológicos são interpretações de in-
são de novas idéias nessa disciplina: teoria da terpretações.13 O observador não tem nenhuma voz
30 O PL ANEJAMENTO DA PESQUISA QUALITATIVA

privilegiada nas interpretações que são escritas. A ta- (Clifford, 1988). Essas obras tornaram a pesquisa e a
refa central da teoria é chegar à compreensão a partir redação mais reflexivas, e colocaram em dúvida as
de uma situação local. questões do gênero, da classe e da raça. Articularam
Geertz chegou a propor que os limites entre as as conseqüências da interpretação “gêneros obscu-
ciências sociais e as humanidades haviam se tornado ros” de Geertz para o campo no início da década de
obscuros. Os cientistas sociais agora voltavam sua 1980.14
atenção às humanidades em busca de modelos, de Novos modelos de verdade, de método e de re-
teorias e de métodos de análise (semiótica, herme- presentação foram buscados (Rosaldo, 1989). Houve
nêutica). O que estava ocorrendo era uma forma de um completo desgaste das normas clássicas na an-
diáspora dos gêneros: documentários sendo interpre- tropologia (objetivismo, cumplicidade em relação ao
tados como ficção (Mailer), parábolas que se fazem colonialismo, vida social estruturada por rituais e cos-
passar por etnografias (Castañeda), tratados teóricos tumes fixos, etnografias como monumentos para uma
que parecem diários de viagem (Lévi-Strauss). Ao cultura) (Rosaldo, 1989, p. 44-45; Jackson, 1998, p.
mesmo tempo, surgiam mais outras abordagens: o 7-8). As epistemologias críticas, feministas e não-
pós-estruturalismo (Barthes), o neopositivismo (Phi- brancas agora competiam por atenção nessa arena.
lips), o neomarxismo (Althusser), o descritivismo Questões como a validade, a confiabilidade e a obje-
micro-macro (Geertz), as teorias rituais do drama e tividade, que anteriormente eram consideradas está-
da cultura (V. Turner), o desconstrucionismo (Derri- veis, mais uma vez passaram a ser problemáticas. As
da), a etnometodologia (Garfinkel). A era dourada das teorias do padrão e as teorias interpretativas, em opo-
ciências sociais havia acabado, e uma nova era dos gê- sição às teorias lineares, causais, tornaram-se mais
neros interpretativos, obscuros, já se aproximava. O comuns à medida que os autores continuaram a con-
ensaio como forma de arte substituía o artigo científi- testar antigos modelos de verdade e de significado
co. No momento, o que está em questão é a presença (Rosaldo, 1989).
do autor no texto interpretativo (Geertz, 1988). Como Em seu trabalho de campo entre os Songhay do
é possível o pesquisador falar com autoridade em uma Níger, Stoller e Olkes (1987, p. 227-229) descrevem
era na qual não mais existe nenhuma regra estabeleci- como a crise da representação foi sentida. Stoller faz
da no que diz respeito ao texto, incluindo o lugar do a seguinte observação: “Quando comecei a escrever
autor neste, seus padrões de avaliação e seu tema? textos antropológicos, seguia as convenções de meu
Nesse período, os paradigmas naturalistas, pós- treinamento. ‘Coletava dados’, e uma vez que estes
positivistas e construcionistas ganharam força, espe- estivessem organizados em pilhas bem-definidas, ‘eu
cialmente na educação, nas obras de Harry Wolcott, os registrava’. Certa vez, eu reduzi os insultos dos
Frederick Erickson, Egon Guba, Yvonna Lincoln, Songhay a uma série de fórmulas claras e lógicas” (p.
Robert Stake e Elliot Eisner. Até o final da década de 227). Stoller ficou insatisfeito com essa forma de es-
1970, já havia diversos periódicos qualitativos, inclu- crever, em parte porque aprendeu que “todos tinham
indo Urban Life and Culture (atual Journal of Contempo- mentido para mim e (...) que os dados que eu havia
rary Ethnography), Cultural Anthropology, Anthropology me esmerado tanto para coletar eram inúteis. Apren-
and Education Quarterly, Qualitative Sociology e Symbolic di uma lição: os informantes geralmente mentem para
Interaction, bem como a série de livros Studies in sym- os antropólogos” (Stoller e Olkes, 1987, p. 9). Essa
bolic interaction. descoberta levou a uma segunda descoberta — de
que ele, ao seguir as convenções do realismo etno-
A crise da representação gráfico, omitiu sua presença em seu texto. Essa pos-
tura o fez produzir um tipo diferente de texto, uma
Em meados dos anos de 1980, ocorre uma pro- memória, na qual ele tornou-se personagem princi-
funda ruptura. O que denominamos de quarto mo- pal da história que contou. Essa história, um relato
mento, ou crise da representação, aparece com An- de suas experiências no mundo dos Songhay, trans-
thropology as cultural critique (Marcus e Fischer, 1986), formou-se em uma análise do choque entre seu mun-
The anthropology of experience (Turner e Bruner, 1986), do e o mundo da feitiçaria dos Songhay. Logo, a jor-
Writing culture (Clifford e Marcus, 1986), Works and nada de Stoller representa uma tentativa de confrontar
Lives (Geertz, 1988) e The predicament of culture a crise da representação no quarto momento.
Introdução 31

Clough (1992) descreve em detalhes essa crise e 15) e Ellis e Bochner (Volume 3, Capítulo 6) desen-
critica aqueles que argumentariam que novas formas volvem os argumentos expostos acima, examinando
de redação representam um caminho para sair da a redação como um método de investigação que se
crise. Ela afirma: desloca por meio de estágios sucessivos de auto-re-
flexão. Como uma série de representações escritas,
Embora muitos sociólogos que agora fazem comen- os textos do pesquisador de campo fluem da expe-
tários sobre a crítica da etnografia enxerguem na re- riência de campo, passando por trabalhos inter-
dação um ponto “completamente central para a ini- mediários, até o trabalho mais recente, chegando, por
ciativa etnográfica” [Van Maanen, 1988, p. xi], os fim, ao texto da pesquisa, que consiste na apresenta-
problemas da redação ainda são considerados dife- ção pública da experiência etnográfica e narrativa.
rentes dos problemas do método ou do próprio tra- Assim, perde-se a nitidez entre o que é trabalho de
balho de campo. Assim, a solução que geralmente se campo e o que é redação. Em última análise, não existe
oferece é a das experiências na redação, ou seja a auto- nenhuma diferença entre a redação e o trabalho de
consciência em relação à redação. (p. 136) campo. Essas duas perspectivas invadem-se ao longo
de cada capítulo destes volumes. Nesses aspectos, a
É necessário analisar essa insistência quanto à crise da representação desloca a pesquisa qualitativa
diferença entre a redação e o trabalho de campo. (Ri- para novas e críticas direções.
chardson é bastante articulado em relação a esse tema
no Capítulo 14 do Volume 3.) Uma tripla crise
Na redação, o pesquisador de campo reivindica a
autoridade moral e científica, o que permite aos tex- Atualmente, a autoridade do etnógrafo continua
tos etnográficos realistas e experimentais funciona- sendo atacada (Behar, 1995, p. 3; Gupta e Ferguson,
rem como fontes de validação para uma ciência em- 1997, p. 16; Jackson, 1998; Ortner, 1997, p. 2). Os
pírica. Eles mostram que o mundo da verdadeira pesquisadores qualitativos defrontam-se com uma
experiência vivida ainda pode ser apreendido, ao me- tripla crise de representação, legitimação e práxis nas
nos nas memórias do escritor, nas experiências ficcio- disciplinas humanas. Implantadas nos discursos do
nais, ou nas leituras dramáticas. Porém, esses traba- pós-estruturalismo e do pós-modernismo (Vidich e
lhos correm o risco de afastar a atenção das formas Lyman, no Capítulo 2; e Richardson, Capítulo 14,
pelas quais o texto constrói indivíduos situados se- Volume 3), essas três crises são codificadas em múl-
xualmente em um campo de diferença social. Tam- tiplos termos, possuindo múltiplas denominações e
bém perpetuam a “hegemonia da ciência empírica” associações com as reviravoltas crítica, interpretativa,
(Clough, 1992, p. 8), já que essas novas tecnologias lingüística, feminista e retórica na teoria social, as quais
de redação do sujeito transformam-se no terreno problematizam duas suposições essenciais da pesqui-
“para a produção do conhecimento/poder (...) [ali- sa qualitativa. A primeira, de que os pesquisadores
nhado] ao (...) eixo capital/Estado” (Aronowitz, 1988, qualitativos não podem mais captar diretamente a
p. 300; citado em Clough, 1992, p. 8). Esse tipo de experiência vivida. Essa experiência, acredita-se, é
experiência primeiro depara-se com a diferença en- criada no texto social escrito pelo pesquisador. Esta é
tre a ciência empírica e a crítica social, e depois afas- a crise representacional, a qual defronta-se com o
ta-se dessa diferença. Muitas vezes, deixa de envol- inescapável problema da representação, porém assim
ver-se plenamente em uma nova política da textuali- o faz dentro de uma esquema que problematiza o elo
dade que “rejeitaria a identidade da ciência empíri- direto entre a experiência e o texto.
ca” (Clough, 1992, p. 135). Essa nova crítica social A segunda suposição torna problemáticos os cri-
“interferiria na relação da economia da informação, térios tradicionais para a avaliação e a interpretação
da política do Estado-nação e das tecnologias de co- da pesquisa qualitativa. Essa é a crise da legitimação,
municação em massa, especialmente em termos das que envolve uma séria reconsideração de termos
ciências empíricas” (Clough, 1992, p. 16). E esse ter- como a validade, a capacidade de generalização e a confia-
reno, sem dúvida, é ocupado pelos estudos culturais. bilidade, termos que já foram reteorizados nos discur-
Richardson (Volume 3, Capítulo 14), Tedlock sos pós-positivistas (Hammersley, 1992), constru-
(Volume 2, Capítulo 6), Brady (Volume 3, Capítulo cionistas-naturalistas (Guba e Lincoln, 1989, p. 163-
32 O PL ANEJAMENTO DA PESQUISA QUALITATIVA

183), feministas (Olesen, Capítulo 8), interpretativos momentos históricos anteriores ainda está em ação
(Denzin, 1997), pós-estruturais (Lather, 1993; Lather nos dias de hoje, seja na forma de um legado ou como
e Smithies, 1997) e críticos (Kincheloe e McLaren, um conjunto de práticas que os pesquisadores con-
Capítulo 10). Essa crise propõe a seguinte pergunta: tinuam a seguir ou a contestar. As múltiplas e frag-
como os estudos qualitativos devem ser avaliados no mentadas histórias da pesquisa qualitativa agora pos-
momento contemporâneo, pós-estrutural? As duas sibilitam que qualquer pesquisador vincule um
primeiras crises influenciam a terceira, a qual questio- projeto a um texto canônico de qualquer um dos mo-
na se é possível realizar mudanças no mundo se a mentos históricos descritos acima. Múltiplos critérios
sociedade é apenas e sempre um texto? É evidente de avaliação tentam chamar a atenção neste campo
que essas crises entrecruzam-se e confundem-se, (Lincoln, no prelo). Segundo, o campo da pesquisa
assim como as soluções para as questões que elas qualitativa agora caracteriza-se por um embaraço de
suscitam (Schwandt, Capítulo 7; Ladson-Billings, Ca- opções. Nunca houve tantas estratégias de investiga-
pítulo 9; e no Volume 3, Smith e Deemer, Capítulo ção, tantos paradigmas, ou métodos de análise, para
12). os pesquisadores utilizarem. Terceiro, estamos em um
O quinto momento, o período pós-moderno da momento de descoberta e de redescoberta, à medi-
redação etnográfica experimental, empenhou-se em da que se debatem e se discutem novas formas de
entender essas crises. Foram exploradas novas for- observar, de interpretar, de argumentar e de escrever.
mas de compor a etnografia (Ellis e Bochner, 1996). Quarto, o ato da pesquisa qualitativa não pode mais
As teorias passaram a ser interpretadas como narra- ser visto a partir de dentro de uma perspectiva posi-
tivas do campo. Os autores empenharam-se de dife- tivista neutra ou objetiva. A classe, a raça, o gênero e
rentes maneiras para representar o “outro”, ainda que a etnicidade influenciam o processo de investigação,
agora novos interesses representacionais os acom- fazendo da pesquisa um processo multicultural. E é
panhassem (Fine et al., Capítulo 4). De grupos ante- para esse tópico que agora voltamos nossa atenção.
riormente silenciados, surgiram epistemologias tra-
zendo soluções para esses problemas. Abandonou-se
o conceito do observador distante. No horizonte, deli- A pesquisa qualitativa enquanto
nearam-se os contornos de uma pesquisa mais volta- processo
da para a ação, para a participação e para o ativismo. A
busca pelas grandes narrativas está sendo substituída Três atividades genéricas, interligadas, definem o
por teorias mais locais, de pequena escala, que se ajus- processo da pesquisa qualitativa. Elas seguem uma
tem a problemas específicos e a situações particulares. variedade de rótulos diferentes, incluindo os de teo-
Estamos entrando no sexto momento (pós-ex- ria, método, análise, ontologia, epistemologia e metodologia.
perimental) e no sétimo (o futuro). Hoje, as etnogra- Por trás desses termos, está a biografia pessoal do
fias ficcionais, a poesia etnográfica e os textos de pesquisador, o qual fala a partir de uma determinada
multimídia são incontestáveis. Os autores pós-expe- perspectiva de classe, de gênero, de raça, de cultura e
rimentais procuram vincular seus escritos às neces- de comunidade étnica. Esse pesquisador marcado
sidades de uma sociedade democrática livre. As exi- pelo gênero, situado em múltiplas culturas, aborda o
gências de uma ciência social qualitativa sagrada e mundo com um conjunto de idéias, um esquema (teo-
moral vêm sendo efetivamente exploradas por inú- ria, ontologia) que especifica uma série de questões
meros autores recentes provenientes de várias disci- (epistemologia) que ele então examina em aspectos
plinas diferentes (Jackson, 1998; Lincoln e Denzin, específicos (metodologia, análise). Ou seja, o pesqui-
Capítulo 6). sador coleta materiais empíricos que tenham ligação
com a questão, para então analisá-los e escrever a
Uma leitura da história seu respeito. Cada pesquisador fala a partir de uma
comunidade interpretativa distinta que configura, em
A partir desse breve período da história, tiramos seu modo especial, os componentes multiculturais,
quatro conclusões — observando que estamos dian- marcados pelo gênero, do ato da pesquisa.
te de uma história de certa forma arbitrária, assim Neste volume, trataremos dessas atividades ge-
como o são todas as histórias. Primeiro, cada um dos néricas em cinco tópicos, ou fases: o pesquisador e o
Introdução 33

pesquisado como sujeitos multiculturais, os princi- perene sobre os métodos interpretativos, qualita-
pais paradigmas e as perspectivas interpretativas, as tivos.
estratégias de pesquisa, os métodos de coleta e de Recentemente, conforme se observou acima, essa
análise dos materiais empíricos, além da arte, das prá- postura e suas crenças foram atacadas. Os pós-es-
ticas e das políticas de interpretação. Por trás de cada truturalistas e os pós-modernistas contribuíram para
uma dessas fases, e dentro delas, está o pesquisador a compreensão de que não existe nenhuma janela
situado biograficamente. Esse indivíduo entra no pro- transparente de acesso à vida íntima de um indiví-
cesso de pesquisa a partir de dentro de uma comuni- duo. Qualquer olhar sempre será filtrado pelas lentes
dade interpretativa. Essa comunidade possui suas da linguagem, do gênero, da classe social, da raça e
próprias tradições históricas de pesquisa, as quais da etnicidade. Não existem observações objetivas,
compõem um ponto de vista distinto. Essa perspec- apenas observações que se situam socialmente nos
tiva leva o pesquisador a adotar determinadas visões mundos do observador e do observado — e entre esses
do “outro” que é estudado. Ao mesmo tempo, a polí- mundos. Os sujeitos, ou indivíduos, dificilmente con-
tica e a ética da pesquisa também devem ser conside- seguem fornecer explicações completas de suas ações
radas, já que essas preocupações permeiam cada fase ou intenções; tudo o que podem oferecer são relatos,
do processo de pesquisa. ou histórias, sobre o que fizeram e por que o fizeram.
Nenhum método é capaz de compreender todas as
variações sutis na experiência humana contínua.
O outro enquanto sujeito de Conseqüentemente, os pesquisadores qualitativos
pesquisa empregam efetivamente uma ampla variedade de
métodos interpretativos interligados, sempre em bus-
Desde seu surgimento na forma interpretativa, ca de melhores formas de tornar mais compreensí-
moderna, no início do século XX, a pesquisa quali- veis os mundos da experiência que estudam.
tativa tem sido assombrada por um fantasma de duas A Tabela 1.1 representa as relações que vemos
caras. Por um lado, os pesquisadores qualitativos su- entre as cinco fases que definem o processo de pes-
punham que os observadores competentes, qualifi- quisa. Por trás de praticamente todas essas fases, está
cados, pudessem relatar com objetividade, com cla- o pesquisador situado biograficamente. Esses cinco
reza e precisão suas próprias observações do mundo níveis de atividade, ou de prática, introduzem-se gra-
social, incluindo as experiências dos outros. Em se- dativamente por meio da biografia do pesquisador.
gundo lugar, os pesquisadores mantiveram-se fiéis à Começaremos a estudá-las brevemente aqui; discu-
crença em um sujeito real, ou em um indivíduo real, tiremos essas fases em mais detalhes nas introduções
que está presente no mundo e que, de certa forma, de cada parte deste volume.
tem a habilidade de relatar suas experiências. Muni-
dos dessas idéias, os pesquisadores puderam mistu- Fase 1: O pesquisador
rar suas próprias observações com os auto-relatos
fornecidos pelos sujeitos através de entrevistas e da As observações que expusemos acima indicam a
história de vida, da experiência pessoal, do estudo de profundidade e a complexidade das perspectivas da
caso e de outros documentos. pesquisa qualitativa tradicional e aplicada nas quais
Essas duas crenças levaram pesquisadores quali- ingressa um pesquisador socialmente situado. Essas
tativos de várias disciplinas a buscarem um método tradições situam o pesquisador na história, nortean-
que lhes permitisse fazer um registro preciso de suas do e ao mesmo tempo restringindo o trabalho a ser
próprias observações ao mesmo tempo em que reve- feito em cada estudo específico. A diversidade e o
lavam os significados que seus sujeitos traziam para conflito sempre caracterizaram esse campo, e consti-
suas experiências de vida. Esse método confiaria nas tuem suas tradições mais duradouras (ver Greenwood
expressões escritas e verbais subjetivas do significa- e Levin, no Capítulo 3 deste volume). Portador dessa
do trazidas pelos indivíduos estudados como janelas história complexa e contraditória, o pesquisador tam-
que se abrem para a vida íntima dessas pessoas. Des- bém deve defrontar-se com a ética e a política da pes-
de Dilthey (1900-1976) que essa busca por um mé- quisa (Christians, no Capítulo 5). A era da investiga-
todo nas disciplinas humanas tem levado a um foco ção livre de valores para as disciplinas humanas
34 O PL ANEJAMENTO DA PESQUISA QUALITATIVA

TABELA 1.1 O processo de pesquisa é o ser humano? Qual é a natureza da realidade?),


Fase 1: O pesquisador como sujeito multicultural epistemologia (Qual a relação existente entre o in-
tradições da história e da pesquisa vestigador e o conhecido) e metodologia (Como co-
concepções do eu e do outro nhecemos o mundo, ou adquirimos conhecimento
ética e política da pesquisa ao seu respeito?) (ver Guba, 1990, p. 18; Lincoln e
Fase 2: Paradigmas e perspectivas teóricas Guba, 1985, p. 14 e 15; ver também Lincoln e Guba,
positivismo, pós-positivismo Capítulo 6). Essas crenças influenciam o modo como
interpretativismo, construtivismo, hermenêutica
feminismo(s) o pesquisador qualitativo observa o mundo e nele
discursos racializados age. O pesquisador é “preso dentro de uma rede de
teoria crítica e modelos marxistas
modelos de estudos culturais
premissas epistemológicas e ontológicas, as quais —
teoria queer independente da verdade suprema ou da falsidade —
Fase 3: Estratégias de pesquisa tornam-se parcialmente autovalidadoras” (Bateson,
planejamento do estudo 1972, p. 314).
estudo de caso A rede que contém essas premissas epistemoló-
etnografia, observação participante, etnografia da performance
fenomenologia, etnometodologia gicas, ontológicas e metodológicas do pesquisador
grounded theory pode ser denominada paradigma, ou esquema inter-
história da vida, testimonio pretativo, um “conjunto básico de crenças que ori-
método histórico
pesquisa-ação e pesquisa aplicada entam a ação” (Guba, 1990, p. 17). Toda a pesquisa é
pesquisa clínica interpretativa; é guiada por um conjunto de crenças
Fase 4: Métodos de coleta e de análise e de sentimentos em relação ao mundo e ao modo
entrevistas como este deveria ser compreendido e estudado. Al-
observação gumas crenças podem ser incontestadas, invisíveis,
artefatos, documentos e registros
métodos visuais apenas supostas, ao passo que outras são extrema-
auto-etnografia mente problemáticas e controversas. Cada paradig-
métodos de controle de dados
análise auxiliada por recursos computacionais
ma interpretativo exige esforços específicos do pes-
análise textual quisador, incluindo as questões que ele propõe e as
grupos focais interpretações que traz para elas.
etnografia aplicada
Simplificando ao máximo, são quatro os princi-
Fase 5: A arte, as práticas e a política da interpretação e da apresentação pais paradigmas interpretativos que estruturam a
critérios para julgar a adequação
práticas e políticas da interpretação
pesquisa qualitativa: positivista e pós-positivista,
redação como interpretação construtivista-interpretativo, crítico (marxista, eman-
análise de políticas cipatório) e feminista-pós-estrutural. Esses quatro
tradições de avaliação
pesquisa aplicada paradigmas abstratos ganham maior complexidade
no nível de comunidades interpretativas específicas
concretas. Nesse nível, é possível identificar não ape-
nas o paradigma construtivista, mas também múlti-
acabou (ver Vidich e Lyman, Capítulo 2 e Fine et al., plas versões do feminismo (afrocêntrico e pós-estru-
Capítulo 4). Hoje, os pesquisadores lutam para de- tural)15, bem como de paradigmas específicos étnicos,
senvolver a ética situacional e transituacional aplicá- marxistas e dos estudos culturais. A Parte II deste vo-
vel a todas as formas do ato da pesquisa e às suas lume examina essas perspectivas, ou esses paradigmas.
relações de ser humano a ser humano. Os paradigmas examinados na Parte II deste vo-
lume funcionam em oposição aos modelos positivis-
Fase 2: Paradigmas interpretativos tas e pós-positivistas, e ao lado desses modelos (e al-
guns dentro desses modelos). Todos eles trabalham
Todos os pesquisadores qualitativos são filóso- dentro de ontologias relativistas (múltiplas realida-
fos no “sentido universal de que todos os seres hu- des construídas), de epistemologias interpretativas (o
manos (...) são guiados por princípios extremamente conhecedor e o conhecido interagem e influenciam-
abstratos” (Bateson, 1972, p. 320). Esses princípios se mutuamente) e de métodos interpretativos, natu-
combinam crenças sobre ontologia (Que tipo de ser ralistas.
Introdução 35

A Tabela 1.2 apresenta esses paradigmas e suas do trabalham juntos na criação das compreensões) e
suposições, incluindo seus critérios para avaliar a um conjunto naturalista (no mundo natural) de pro-
pesquisa, e a forma que uma declaração interpretati- cedimentos metodológicos. As descobertas são nor-
va ou teórica geralmente assume em cada paradig- malmente apresentadas como critérios da grounded
ma.16 Esses paradigmas são explorados em muitos theory ou das teorias do padrão (Lincoln e Guba, Ca-
detalhes na Parte II por Lincoln e Guba (Capítulo 6), pítulo 6; no Volume 2, Charmaz, Capítulo 8; e no
Schwandt (Capítulo 7), Olesen (Capítulo 8), Ladson- Volume 3, Ryan e Bernard, Capítulo 7). Termos como
Billings (Capítulo 9), Kincheloe e McLaren (Capítu- credibilidade, transferibilidade, confiança e confirma-
lo 10), Frow e Morris (Capítulo 11) e Gamson (Capí- bilidade substituem os critérios positivistas usuais da
tulo 12). Já discutimos os paradigmas positivistas e validade interna e externa, da confiabilidade e da ob-
pós-positivistas. Eles funcionam a partir de uma on- jetividade.
tologia realista e crítico-realista e de epistemologias Os estudos feministas, étnicos, marxistas e cul-
objetivas, e dependem de metodologias qualitativas turais e os modelos da teoria queer privilegiam uma
experimentais, quase-experimentais, de levantamen- ontologia materialista-realista; ou seja, o mundo real
tos e rigorosamente definidas. Ryan e Bernard (Capí- faz uma diferença material em termos de raça, de
tulo 7, Volume 3) desenvolvem elementos desse pa- classe e de gênero. Também são empregadas episte-
radigma. mologias subjetivistas e metodologias naturalistas (ge-
O paradigma construtivista supõe uma ontolo- ralmente etnografias). Os materiais empíricos e os ar-
gia relativista (existem realidades múltiplas), uma epis- gumentos teóricos são avaliados quanto às suas
temologia subjetivista (o conhecedor e o entrevista- implicações emancipatórias. Talvez apliquem-se cri-

TABELA 1.2 Paradigmas interpretativos

Paradigma/
teoria Critérios Forma de teoria Tipo de narração

Positivista/ validade interna/ embasada na lógica e relatório científico


pós-positivista externa na dedução

Construtivista fidedignidade, credibilidade, substantivo-formal estudos de caso


transferibilidade, interpretativos,
confirmabilidade ficção etnográfica

Feminista afrocêntrica,experiência crítica, do ponto de vista ensaios, histórias,


vivida, diálogo, redação experimental
cuidados, responsabilidade,
raça, classe, gênero,
reflexividade, práxis, emoção,
embasamento concreto

Étnica afrocêntrica, experiência do ponto de vista, crítica, ensaios, fábulas,


vivida, diálogo, histórica dramas
cuidados, responsabilidade,
raça, classe, gênero

Marxista teoria emancipatória, crítica, histórica, econômica histórica, econômica,


falsificável, dialógica, análises socioculturais
raça, classe, gênero

Estudos culturais práticas culturais, práxis crítica social teoria cultural como
textos sociais, subjetividades crítica

Teoria queer reflexividade, crítica social, análise teoria como crítica,


desconstrução histórica autobiografia
36 O PL ANEJAMENTO DA PESQUISA QUALITATIVA

térios (emocionalidade e sentimento, cuidados, res- quisa, o qual, imaginado em linhas gerais, envolve
ponsabilidade pessoal, diálogo) do gênero e das co- um nítido foco sobre a questão da pesquisa, os obje-
munidades raciais (p. ex., afro-americanas). tivos do estudo, “que informações responderão me-
As teorias feministas pós-estruturais enfatizam lhor as questões específicas da pesquisa, e quais es-
os problemas encontrados no texto social, em sua tratégias são mais eficazes para obtê-las” (LeCompte
lógica, e em sua eterna incapacidade de representar e Preissle, 1993, p. 30; ver também no Volume 2, Ja-
plenamente o mundo da experiência vivida. Os crité- nesick, Capítulo 2; Cheek, Capítulo 3). Um planeja-
rios positivistas e pós-positivistas de avaliação são mento de pesquisa descreve um conjunto flexível de
substituídos por outros termos, incluindo o texto re- diretrizes que vinculam os paradigmas teóricos pri-
flexivo, de múltiplas vozes, embasado nas experiên- meiro às estratégias de investigação e, em segundo
cias dos oprimidos. lugar, aos métodos para a coleta de materiais empíri-
Os paradigmas dos estudos culturais e da teoria cos. Um planejamento de pesquisa serve para situar
queer têm múltiplos focos, aproveitando muitas linhas os pesquisadores no mundo empírico, relacio-
diferentes do marxismo, do feminismo e da sensibili- nando-os a terrenos, a pessoas, a grupos, a institui-
dade pós-moderna (ver Frow e Morris, Capítulo 11; ções específicos e a grandes volumes de materiais in-
Gamson, Capítulo 12; e no Volume 3, Richardson, terpretativos relevantes, incluindo documentos e ar-
Capítulo 14). Há uma tensão entre os estudos cultu- quivos. Um planejamento de pesquisa também
rais humanísticos, os quais enfatizam as experiências especifica como o investigador abordará as duas crí-
vividas (significado), e um projeto mais estrutural da ticas questões da representação e da legitimação.
área dos estudos culturais, que enfatiza os determi- Uma estratégia de investigação também com-
nantes estruturais e materiais (a raça, a classe e o gê- preende um monte de habilidades, suposições e prá-
nero) e os efeitos da experiência. É claro que toda a ticas que o pesquisador emprega ao deslocar-se do
moeda tem dois lados, e que esses dois lados são ne- paradigma para o mundo empírico. As estratégias de
cessários e, na verdade, críticos. Os paradigmas dos investigação dão início aos paradigmas da interpre-
estudos culturais e da teoria queer empregam os mé- tação. Ao mesmo tempo, as estratégias de investiga-
todos estrategicamente — ou seja, como recursos para ção também ligam o pesquisador a métodos específi-
compreender as estruturas locais de dominação e para cos de coleta e de análise de materiais empíricos. Por
produzir resistências a estas. Os estudiosos podem exemplo, o estudo de caso depende de entrevistas, de
fazer leituras textuais cuidadosas e análises de discur- observação e da análise de documentos. As estratégias
so dos textos culturais (ver Olesen, no Capítulo 8; Frow de pesquisa implementam e ancoram paradigmas em
e Morris, no Capítulo 11; e no Volume 3, Silverman, terrenos empíricos específicos, ou em práticas meto-
Capítulo 9), e também conduzir etnografias locais, en- dológicas específicas, tais como a transformação de
trevistas abertas e observação participante. O foco está um caso em objeto de estudo. Entre essas estratégias,
no modo como a raça, a classe e o gênero são produ- estão o estudo de caso, as técnicas fenomenológicas
zidos e representados em situações historicamente es- e etnometodológicas e o emprego da grounded theory,
pecíficas. bem como os métodos biográficos, auto-etnográfi-
Munido do paradigma e da história pessoal, con- cos, históricos, de ação e clínicos. Cada uma dessas
centrando-se em um problema empírico concreto para estratégias está vinculada a uma literatura complexa,
examinar, o pesquisador agora passa para o estágio sendo que cada uma tem sua própria história, suas
seguinte do processo de pesquisa — isto é, trabalhar obras exemplares e seus modos preferenciais de dar
com uma estratégia específica de investigação. início à estratégia.

Fase 3: As estratégias de Fase 4: Métodos de coleta e de


investigação e os paradigmas análise dos materiais empíricos
interpretativos
O pesquisador dispõe de diversos métodos para
A Tabela 1.1 apresenta algumas das principais a coleta de materiais empíricos.17 Esses métodos são
estratégias de investigação que um pesquisador pode mencionados na Parte I do Volume 3. Variam da en-
utilizar. A Fase 3 inicia com o planejamento de pes- trevista à observação direta, passando pela análise de
Introdução 37

artefatos, documentos e registros culturais e pelo uso pretativa. Como afirmamos anteriormente, o que exis-
de materiais visuais ou da experiência pessoal. O pes- tem são múltiplas comunidades interpretativas, cada
quisador também pode empregar uma variedade de qual com seus próprios critérios para avaliar uma
métodos diferentes de leitura e de análise das entre- interpretação.
vistas ou dos textos culturais, incluindo as estratégias A avaliação de programas é um dos principais
do conteúdo, da narrativa e semióticas. Deparando- terrenos da pesquisa qualitativa, e os pesquisado-
se com grandes volumes de materiais qualitativos, o res qualitativos podem influenciar as políticas so-
investigador busca formas de administrar e de inter- ciais em importantes aspectos. As contribuições de
pretar esses documentos, e é nesse ponto que os Greenwood e Levin (Capítulo 3), Kemmis e
métodos de controle de dados e os modelos de aná- McTaggart (Volume 2, Capítulo 11), Miller e Crabtree
lise auxiliados por recursos computacionais podem (Volume 2, Capítulo 12), Chambers (Volume 3, Ca-
ter utilidade. Ryan e Bernard (Volume 3, Capítulo 7) pítulo 11), Greene (Volume 3, Capítulo 16) e Rist
e Weitzman (Volume 3, Capítulo 8) discutem essas (Volume 3, Capítulo 17) traçam e discutem a riqueza
técnicas. da história da pesquisa qualitativa aplicada nas ciên-
cias sociais. É nesse terreno crítico que a teoria, o
Fase 5: A arte e a política da método, a práxis, a ação e as políticas se juntam. Os
interpretação e da avaliação pesquisadores qualitativos podem isolar as popula-
ções-alvo, mostrar os efeitos imediatos de certos pro-
A pesquisa qualitativa é infinitamente criativa e gramas sobre esses grupos e isolar as restrições que
interpretativa. A tarefa do pesquisador não se resu- agem contra as mudanças das políticas nesses cená-
me a deixar o campo levando pilhas de materiais rios. Os pesquisadores qualitativos voltados para a
empíricos e então redigir facilmente suas descober- ação e para a área clínica também podem criar espa-
tas. As interpretações qualitativas são construídas. Em ços para que quem é estudado (o outro) fale. O avalia-
primeiro lugar, o pesquisador cria um texto de cam- dor transforma-se no canal através do qual essas vo-
po que consiste em observações de campo e em do- zes podem ser escutadas. Chambers, Greene e Rist
cumentos provenientes do campo, o que Roger Sanjek desenvolvem explicitamente esses tópicos em seus
(1990, p. 386) denomina “indexação” e David Plath capítulos.
(1990, p. 374) chama de “trabalho de arquivo”*. No
papel de intérprete, o autor passa desse texto para o
texto da pesquisa: as notas e as interpretações feitas Uma ponte que liga momentos
com base no texto de campo. Esse texto é então re- históricos: o que vem depois?
criado como um documento interpretativo de traba-
lho que contém as primeiras tentativas do autor de Ellis e Bochner (Volume 3, Capítulo 6), Gergen e
compreender o que ele aprendeu. Por fim, o autor Gergen (Capítulo 13) e Richardson (Volume 3, Capí-
produz o texto público que chega ao leitor. Essa últi- tulo 14) sustentam a idéia de que nós já estamos no
ma narrativa extraída do campo pode assumir diver- “pós” -pós-período — pós-pós-estruturalista, pós-
sas formas: confessional, realista, impressionista, crí- pós-modernista, pós-pós-experimental. Ainda não
tica, formal, literária, analítica, grounded theory e assim está claro o que isso significa para as práticas etno-
por diante (Van Maanen, 1988). gráficas interpretativas, mas o certo é que nada mais
A prática interpretativa de entender as descober- será como antes. Estamos em uma nova era na qual
tas do indivíduo é tanto artística quanto política. Hoje os textos confusos, incertos, de múltiplas vozes, a crí-
existem múltiplos critérios para avaliar a pesquisa tica cultural e os novos trabalhos experimentais se
qualitativa, e aqueles que enfatizamos realçam as es- tornarão mais comuns, assim como o serão as for-
truturas situadas, relacionais e textuais da experiên- mas mais reflexivas de trabalho de campo, de análise
cia etnográfica. Não existe uma única verdade inter- e de representação intertextual. O tema de nosso en-
saio final neste volume é o quinto, o sexto e o sétimo
momentos. Como já disse o poeta, é verdade que o
*N. de T. “Trabalho de arquivo” (filework) em contraste com ponto central não mais se mantém. Podemos refletir
“trabalho de campo” (fieldwork). sobre o que passará a ocupar destaque central.
38 O PL ANEJAMENTO DA PESQUISA QUALITATIVA

E, assim, voltamos no tempo. Retornando a nos- 3. Jameson (1991, p. 3-4) nos lembra que qualquer hi-
sa metáfora da ponte, os capítulos a seguir condu- pótese de periodização é sempre suspeita, mesmo
zem o pesquisador em um vaivém através de cada aquela que rejeita modelos lineares como os de está-
fase do ato da pesquisa. Como uma ponte, os capítu- gios. Nunca fica claro a qual realidade um estágio se
refere, e é sempre discutível o que separa um estágio
los proporcionam um movimento de duas vias, um ir
de outro. Nossos sete momentos destinam-se a indi-
e vir entre os momentos, as formações e as comuni- car mudanças discerníveis em estilo, gênero, episte-
dades interpretativas. Cada capítulo examina as his- mologia, ética, política e estética.
tórias relevantes, as controvérsias e as atuais práticas 4. Também organizamos algumas outras definições. O
que estão associadas a cada paradigma, estratégia e estruturalismo considera que qualquer sistema é com-
método. Cada um dos capítulos também traz proje- posto por um conjunto de categorias opositivas im-
ções para o futuro, informando onde um paradigma, plantadas na linguagem. A semiótica é a ciência dos
uma estratégia ou um método específicos estará da- signos e dos sistemas de signos — um projeto estru-
qui a 10 anos, aprofundando-se nos anos formado- turalista. De acordo com o pós-estruturalismo, a lingua-
gem é um sistema instável de referentes, logo, é sem-
res do século XXI.
pre impossível captar totalmente o significado de uma
Ao ler os capítulos a seguir, é importante lem- ação, de um texto ou de uma intenção. O pós-moder-
brar que o campo da pesquisa qualitativa é definido nismo é uma sensibilidade contemporânea, que vem
por uma série de tensões, contradições e hesitações. se desenvolvendo desde a Segunda Guerra Mundial,
Essa tensão age em um vaivém entre a ampla e incer- sem privilegiar nenhuma autoridade, nenhum méto-
ta sensibilidade pós-moderna e as concepções posi- do ou paradigma. A hermenêutica é uma abordagem à
tivistas, pós-positivistas e naturalistas mais definidas, análise de textos que enfatiza o modo como compre-
mais tradicionais, desse projeto. Todos os capítulos a ensões e preconceitos anteriores influenciam o pro-
seguir envolvem-se nessa tensão e a articulam. cesso interpretativo. A fenomenologia é um complexo
sistema de idéias associado às obras de Husserl, Hei-
degger, Sartre, Merleau-Ponty e Alfred Schutz. Os es-
tudos culturais são um campo interdisciplinar, comple-
Notas xo, que funde teoria crítica, feminismo e pós-estrutu-
ralismo.
1. A pesquisa qualitativa tem histórias independentes e 5. É evidente que todos os cenários são naturais — ou
distintas nas áreas da educação, do trabalho social, seja, locais onde se desenrolam as experiências do
das comunicações, da psicologia, da história, dos es- cotidiano. Os pesquisadores qualitativos estudam pes-
tudos organizacionais, da ciência médica, da antro- soas que fazem coisas juntas nos lugares em que es-
pologia e da sociologia. sas atividades acontecem (Becker, 1986). Não existe
2. Organizamos aqui algumas definições. O positivismo nenhum terreno de campo ou um local natural onde
declara a possibilidade de se fornecer relatos objeti- o indivíduo vai fazer esse tipo de trabalho (veja tam-
vos do mundo real. Para o pós-positivismo, é possível bém Gupta e Ferguson, 1997, p. 8). O terreno é cons-
produzir relatos apenas parcialmente objetivos do tituído por meio das práticas interpretativas do pes-
mundo, pois todos os métodos para examiná-los são quisador. Os analistas normalmente traçam distinções
imperfeitos. De acordo com o fundacionalismo, pode- entre os cenários de pesquisa experimental (labora-
mos ter um fundamento último para nossas alega- tório) e os de pesquisa de campo (natural), de onde
ções de conhecimento em relação ao mundo, e este provém o argumento de que a pesquisa qualitativa é
envolve o emprego de epistemologias empíricas e po- naturalista. A teoria da atividade elimina essa distin-
sitivistas (Schwandt, 1997a, p. 103). O não-fundaciona- ção (Keller e Keller, 1996, p. 20; Vygotsky, 1978).
lismo acredita que podemos fazer declarações sobre o 6. De acordo com Weinstein e Weinstein (1991), “o sig-
mundo sem “recorrermos a uma prova definitiva ou nificado de bricoleur no francês popular é “alguém que
aos fundamentos para esse conhecimento” (p. 102). utiliza suas próprias mãos em seu trabalho e emprega
Segundo o quase-fundacionalismo, podemos alegar cer- meios tortuosos se comparados aos do artesão” (...) o
tos conhecimentos sobre o mundo com base em cri- bricoleur é prático e conclui seu trabalho” (p. 161). Os
térios neo-realistas, incluindo o conceito da corres- autores fornecem uma história do termo, relacionan-
pondência da verdade; existe uma realidade indepen- do-o às obras do sociólogo e teórico social alemão
dente que pode ser mapeada (veja Smith e Deemer, Georg Simmel, e, por implicação, a Baudelaire. Ham-
Capítulo 12, Volume 3). mersley (no prelo) contesta o modo como emprega-
Introdução 39

mos esse termo. Na mesma linha de Lévi-Strauss, ele 14. Essas obras acabaram marginalizando e minimizan-
vê no bricoleur um criador de mitos. Ele sugere que o do as contribuições da teoria e da pesquisa feminista
termo seja substituído pela idéia de um construtor de do ponto de vista para esse discurso (veja Behar, 1995,
barcos. Hammersley também critica nosso modelo de p. 3; Gordon, 1995, p. 432).
“momentos” da pesquisa qualitativa, argumentando 15. Olesen (Capítulo 8 deste volume) identifica três li-
que este implica uma noção de progresso. nhas de desenvolvimento da pesquisa feminista: em-
7. Brian De Palma reproduziu essa cena do carrinho de pírica dominante; do ponto de vista e dos estudos
bebê em seu filme Os Intocáveis, de 1987. culturais; e pós-estrutural, pós-moderna. Ela classifi-
8. No porto, os bocais dos dois canhões do Potemkin vol- ca os modelos afrocêntricos e outros modelos não-
tam-se lentamente em direção à câmera. Na tela, lê- brancos nas categorias pós-moderna e dos estudos
se a seguinte informação: “Os canhões do navio de culturais.
guerra são uma resposta do poder militar brutal”. Uma 16. É claro que estas são as nossas interpretações para
famosa seqüência de montagem de três tomadas mos- esses paradigmas e esses estilos interpretativos.
tra primeiro uma escultura de um leão adormecido, 17. Materiais empíricos é o termo escolhido para o que
depois um leão despertando de seu sono, e, por últi- normalmente se descreve como dados.
mo, o leão rugindo, como um símbolo da raiva do
povo russo (Cook, 1981, p. 167). Nessa seqüência,
Eisenstein utiliza a montagem para expandir o tem- Referências
po, criando uma duração psicológica para esse horrí-
vel evento. Ao prolongar essa seqüência, ao mostrar o Aronowitz, S. (1988). Science as power: Discourse and ideology in
bebê no carrinho, os soldados atirando nos cidadãos, modern society. Minneapolis: University of Minnesota Press.
o sangue nas luvas da mãe, o carrinho descendo os Bateson, G. (1972). Steps to an ecology o f mind. New York:
degraus, ele sugere um nível de destruição de grande Ballantine.
magnitude. Becker, H. S. (1970). Problems of inference and proof in
9. Aqui é relevante traçar uma distinção entre as técni- participant observation. In H. S. Becker, Sociological work:
cas utilizadas através das disciplinas, e os métodos que Method and substance. Chicago: Aldine. (Reimpressão de
são utilizados dentro das disciplinas. Os etnometo- American Sociological Review, 1958, 23, 652-660)
dologistas, por exemplo, empregam sua abordagem Becker, H. S. (1986). Doing things together. Evanston: Nor-
como um método, ao passo que outros selecionam thwestern University Press.
esse método tomando-o emprestado como técnica Becker, H. S. (1996). The epistemology of qualitative rese-
para suas próprias aplicações. Harry Wolcott (comu- arch. In R. Jessor, A. Colby, & R. A. Shweder (Eds.),
nicação pessoal, 1993) sugere essa distinção. Também Ethnography and human development: Context and meaning
é relevante fazermos distinções entre tópico, método in social inquiry (pp. 53-71). Chicago: University of Chi-
e recurso. Os métodos podem ser estudados como cago Press.
tópicos de investigação; ou seja como se conclui um Becker, H. S. (1998). Tricks of the trade: How to think about
estudo de caso. Nesse sentido etnometodológico, irô- your research while you’re doing it. Chicago: University of
nico, o método é tanto um recurso quanto um tópico Chicago Press.
de investigação. Becker, H. S., Geer, B., Hughes, E. C., & Strauss, A. L. (1961).
10. Na verdade, qualquer tentativa de se oferecer uma Boys in white: Student culture in medical school. Chicago:
definição essencial da pesquisa qualitativa exige uma University of Chicago Press.
análise qualitativa das circunstâncias que produzem Behar, R. (1995). Introduction: Out of exile. In R. Behar &
esse tipo de definição. D. A. Gordon (Eds.), Women writing culture (pp. 1-29).
11. Nesse sentido, toda a pesquisa é qualitativa, visto que Berkeley: University of California Press.
“o observador encontra-se no centro do processo de Bogdan, R. C., & Taylor, S. J. (1975). Introduction to qualitati-
pesquisa” (Vidich e Lyman, Capítulo 2 deste volume). ve research methods: A phenomenological approach to the so-
12. Para ver uma ampliação e um detalhamento dessa tra- cial sciences. New York: John Wiley.
dição em meados dos anos de 1980, consulte Lincoln Campbell, D. T, & Stanley, J. C. (1963). Experimental and
e Guba (1985), e, para ampliações mais recentes veja quasi-experimental designs for research. Chicago: Rand
Taylor e Bogdan (1998) e Creswell (1997). McNally.
13. Greenblatt (1997, p. 15-18) oferece uma leitura des- Carey, J. W (1989). Communication as culture: Essays on media
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40 O PL ANEJAMENTO DA PESQUISA QUALITATIVA

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