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Victória da Encar-

nação e as Almas do
Purgatório
Fenômeno místico do século XVIII ocorrido entre as freiras do Convento do Desterro,
na Bahia. Os fatos foram documentados por ordem do Sr. Bispo da Bahia, Dom Se-
bastião Monteiro da Vide, publicados na Itália e, posteriormente, no Brasil, por Frei
Jaboatão em sua famosa obra “O Novo Ordo Seráfico”.

Índice

Pág. 2- Ligeiras anotações históricas sobre o Convento de Santa Clara do Desterro,


Salvador – Bahia
Pág. 6 - Origem da imagem de Nossa Senhora do Desterro venerada no Convento de
Santa Clara da Bahia
Pág. 10 – História da Madre Victória da Encarnação
Pág. 58 - Breve memória de Madre Antonia do Paraíso
Pág. . 59 - Vida e morte da Serva de Deus Maria da Soledade
Pág. 78 - Outras religiosas que deixaram fama de santidade no Desterro
Ligeiras anotações históricas sobre o Convento de Santa Clara do
Desterro, Salvador – Bahia

“A fundação do Convento do Desterro foi solicitada pelos Oficiais da Câma-


ra da cidade do Salvador, nobreza e povo, a El-Rei de Portugal, D. Afonso VI, para
que os vassalos de S. M. pudessem recolher as filhas desejosas de abraçar o es-
tado religioso, em virtude da falta de cabedais de alguns e dos perigos que, então,
ofereciam as viagens.
S. Majestade concedeu licença para a criação de um Mosteiro de Religio-
sas, cujo número de véu preto não passasse de 50 e fossem da observância de S.
Francisco, sem serem da primeira Ordem, sujeitas e governadas pelo ordinário da
Bahia, podendo ter de dote 8 mil cruzados de renda em foros de casa, fazendas e
currais de gado.
Os peticionários – Oficiais da Câmara, nobreza e povo – solicitaram, anteri-
ormente, ao Soberano a doação da Ermida de N. S. Do Desterro, para em torno
dela construírem o Convento sob alegação de ser o lugar mais decente e acomo-
dado que havia em toda a Cidade para vivenda e clausura das Religiosas. El-Rei
despacho favoravelmente a petição e, por uma provisão régia, datada de 7 de fe-
vereiro de 1665, fez saber sua decisão ao Vice Rei Capitão Geral do Estado do
Brasil, D. Vasco de Mascarenhas, Conde de Obidos, e aos Ministros da Justiça e
da Fazenda para que a cumprissem.
Do Papa Clemente IX os interessados obtiveram o Breve da fundação da-
tado de 13 de maio de 1669. Sabe-se por esse documento que algumas donzelas
do Brasil foram cativas dos piratas infiéis e outras pereceram em naufrágio.
Sob a responsabilidade do Senado da Câmara, iniciou-se, em 1671, a cons-
trução do Desterro. Entretanto, seis anos depois, em 1677, quando chegaram à
Bahia as fundadoras do primeiro Convento, edificado para senhoras no Brasil, as
obras estavam tão atrasadas que as religiosas tiveram de permanecer a bordo 10
dias, enquanto se preparavam os aposentos indispensáveis. Isso porque o Se-

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nado faltou às condições, a que se obrigara por uma Escritura, não concorrendo
para a construção nem para o dote das freiras, como se verifica pela declaração
do Arcebispo D. Frei Manoel da Ressurreição, escrita em 1 o. de agosto de 1689,
no livro da Fundação, na qual esclarece que o “Convento se fundou com esmolas
que lhe deram as pessoas que nele pretendiam recolher suas filhas e parentas, e
com dinheiro de concertos legítimos entre os pais da Religiosas, e o Mosteiro, e se
sustentam com a renda que tem resultado dos juros dos dotes das mesmas Reli-
giosas, com o que é livre do padroado do dito Convento”.
As fundadoras: Rev. Madre Soror; Margarida da Coluna – Abadessa, Madre
Soror Luiza de S. José da Gama – porteira, Madre Soror Jerônima do Presépio
Arnau, Vigária da casa, Madre Soror Maria de S. Raimundo, escrivã. Todas religi-
osas professas do exemplar Convento de Santa Clara de Évora, Portugal. Foram
conduzidas ao Brasil pelo muito Rev. Pe. Frei Francisco do Desterro, natural da
Bahia e Comissário da Ordem 3a. (Conforme o livro da fundação). Página edifican-
te e digna do nosso conhecimento, são as memórias dos princípios e nova funda-
ção do Mosteiro de Santa Clara do Desterro da cidade da Bahia, escrita pelas
fundadoras.
Os primeiros meses da fundação foram árduos e solitários. Em 28 de janei-
ro de 1678, duas jovens baianas ingressaram na vida religiosa do apenas come-
çado Convento de Santa Clara do Desterro da Bahia – Marta Borges de França e
sua irmã Leonor de Jesus.
Em solenidade memorável, realizada em 22 de outubro de 1679, depois do
santo sacrifício da Missa e pregação, presentes o Governador Roque da Costa
Barreto, clero, nobreza e povo, lançou-se a pedra para continuação das obras do
Convento.
Em 1683 tomou o hábito das Clarrisas Urbanistas D. Antonia de Góes, viú-
va de Manoel Pereira Pinto, senhora muito rica e nova, a quem se deve a constru-
ção dos 2 coros da igreja. Para esse fim aplicou da sua fazenda dez mil cruzados.
As obras dos dormitórios faziam-se pouco a pouco, à medida que se recolhiam ao
Convento as filhas de Manoel de Oliveira Porto, que, para aquelas obras, contribu-
iu com vinte mil cruzados, vultosa quantia para a época. Estas informações conti-

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das no precioso livro “Memórias da Fundação” confirmam a nota do punho do Ar-
cebispo D. Frei Manoel, não restando dúvida quanto à falta de cumprimento das
condições da Escritura, lavrada pelos Juizes Ordinários, Vereadores e Oficiais da
Câmara em 1671.
Há muito que ver e admirar no interior do Convento, na igreja, no coro, no
claustro e pelos corredores, para onde se abrem as portas das celas, outrora po-
voadas pelas Clarissas Urbanistas, Ordem que se extinguiu, no Brasil, com o fale-
cimento das 3 últimas religiosas, no começo do século XX. Algumas celas são,
hoje, salas onde se vêem móveis antigos, predominando mesas e cadeiras no es-
tilo Império, e outras peças raras, em cujo número as quase desaparecidas "mar-
quesas”, espécie de canapé largo, empalhado.

A Igreja
A igreja do Convento do Desterro foi radicalmente reformada no século XIX,
iniciando-se as obras em 1844 pela Capela-mor e zimbório. Da execução do novo
retábulo, tribunas e forro da capela-mor encarregou-se o entalhador Luiz Francis-
co da Silva que, não cumprindo o ajuste, foi substituído pelo competente artista
Cypriano Francisco de Souza.
Devido à grande interrupção dos trabalhos muita coisa se estragou, pelo
que coube ao segundo desses entalhadores reparar as colunas e executar o tro-
no, os 2 altares laterais, o arco cruzeiro, os púlpitos, 14 tribunas, 4 remates para
as portas e as obras da sacristia.
O douramento de toda a talha confiou-se ao conhecido artista Manoel Joa-
quim Lino.
O piso atual da igreja e do presbitério assentou-se durante a completa re-
forma citada. Para esse fim, recebeu-se grande quantidade de pedra mármore
procedente de Lisboa, de Gênova e notadamente pedra Lioz.
Uma das grandes atrações da igreja do Desterro consiste no belíssimo Ta-
bernáculo de prata lavrado no mais requintado estilo barroco, foi presente da Ma-
dre Maria da Soledade que vendeu tudo o que possuía porque “desejava perfeita
habitação para o Amoroso Deus Sacramentado” conforme se expressa o seu bió-

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grafo Jaboatão – Novo Ordo Seráfico Livro III – página 758. Valeu-se também dos
haveres de outra religiosa e o sacrário foi fabricado em Portugal. Doou também ao
Convento de castiçais e vasos de prata.
Soror Maria da Soledade nasceu em 1663, professou em 1688 e faleceu
em 1719. Jaboatão transcreveu em “Novo Ordo Seráfico” a vida de Soror Maria
da Soledade, escrita pela religiosa Clarissa Margarida da Coluna, segunda deste
nome no Desterro, através da qual sabemos que o primitivo sacrário da igreja era
de madeira.
Tomando-se por base a época em que viveu, no Desterro, Soror Maria da
Soledade – conclui-se que a peça monumental, que tão bem atesta a perícia dos
ourives portugueses, conta aproximadamente 250 anos”.

(Extraídas do Livro da Fundação e do Arquivo do mesmo Convento)

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Origem da imagem de Nossa Senhora do Desterro venerada no Con-
vento de Santa Clara da Bahia

O mundo tem a sua formosura na sua variedade, porque se ele não fora vá-
rio, não fora formoso: daqui nasce aquela grande inconstância com que o mundo
reparte ordinariamente as suas felicidades. Que esta conseqüência tenha lugar
nos mundanos, seja embora; porque na sua adoração podem ser a sua desculpa:
mas que tenha também lugar no filho de Deus e na Virgem Santíssima, que a gol-
fo de Cristo se ver adorado: “Venimus adorare eum”, se siga a pena de se ver fu-
gido: “Fugem Aegyptum”. E que à alegria de se ver Maria venerada por Rainha do
Céu, se siga a pena de se ver obrigada, das perseguições de Herodes a fugir com
o Santíssimo Filho, é muito para admirar. Que sendo a Providência Divina tão
grande, que é infinita; disponha que Maria se veja obrigada a se desterrar; e que o
Filho seja obrigado a fugir? Que as luzes, e mais as sombras sejam os mesmos
ditames e corram a mesma fortuna, grande maravilha! Mas alcançando-se o mis-
tério, cessará logo o espanto. Cristo e Maria eram luzes, era Cristo Sol: “Crietur
nobis Sol justitiae”; era Maria luz: porque era Lua: “Pulchra ut luna”. Justo era que
Maria com a ocasião desta pena, fosse luzir no desterro com o seu exemplo; e
que Cristo, fugindo à perseguição de Herodes, fosse luzir no Egito com o seu am-
paro, como diz Crisóstomo. Esta é a natureza das luzes. Os seus resplendores
são as suas influências. Os Astros em tanto luzem, em quanto aproveitam, que
senão aproveitaram, não luziram; e assim vão Maria e seu Santíssimo Filho des-
terrados para luzirem e para espalharem no Egito os resplendores de suas divinas
virtudes. E dispunha a Divina Providência, que as sagradas imagens de que com-
põem este soberano mistério, sejam levados pela devoção católica ao novo mun-
do da América para nele como lá se viu no Egito, arruinar os ídolos daquela Gen-
tilidade bárbara e inculta, ilustrando-as com suas luzes para o inflamarem e guia-
rem aos caminhos da verdadeira Religião, como aqui veremos.
Pouco depois de se dar princípio à Cidade de São Salvador, ou Bahia de
todos os Santos, foi isto pelos anos de 1560 sendo Governador Mem de Sá, se

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erigiu uma Ermida no Sertão, ou alguma cousa distante da nova povoação; aonde
uns devotos, não sem destino do Céu (porque havia escolhido aquele lugar para
Palácio), colocaram as imagens de Jesus, Maria e José. Imagens de vulto forma-
das de madeira, o menino, e São José com seus bordões. Era esta Ermida feita
de tábuas e o teto coberto de folhas de palma. O sítio desmatá-lo-iam; mas afrou-
xando a devoção, tornou a crescer o mato; e assim era muito infestada de animais
ferozes e peçonhentos, com cobras jibóias ou de veados muito grandes, jacarés e
outros que saíam das lagoas que lhe ficavam vizinhas. E, ou fosse que se aca-
basse de todo a devoção, ou que o temor de cair dos dentes daquelas feras cruéis
e medonhas, fez que se acabasse totalmente o ir a venerar a Senhora à sua Er-
mida. E assim se perdeu a devoção; e quando algumas pessoas (se iam lá) leva-
vam armas de fogo para se evitar qualquer perigo.
Pelos anos de 1567, sendo ainda Governador o referido Mem de Sá, se diz
por tradição comum, que fora um homem (ou Nossa Senhora lhe inspirou que lá
fosse). Ia este a cavalo para aquela parte e vendo Ermida, ou casa de palha, per-
guntou a uns negros o que aquilo era, e eles lhe responderam: era a casa de Nos-
sa Senhora do Desterro; mas que se não podia lá ir, porque era aquele sítio muito
reparo o homem, no que os presto referiram; e assim se resolveu a entrar na Er-
mida e ir fazer oração à Senhora do Desterro. Foi chegando, se apeou e entrou
dentro a encomendar-se à Senhora.
Depois de fazer a sua oração, saiu para fora e assentou-se à porta da Er-
mida, e ali encostado, dizem, que adormeceu. Despertou logo todo sobressaltado;
porque se viu cingido e cercado de uma grande jibóia, ou securiubam (1) a qual já
fazia diligência pelo tragar. Neste tempo, e neste perigo, invocou em seu favor à
Senhora do Desterro, e com ela animado puxou de ma navalha, que também dis-
pôs Deus que a levasse consigo; tal golpe e com tal sucesso lhe deu pela gargan-
ta que a degolou e caiu morta aquela fera e animal espantoso. Reconhecendo lo-
go de onde lhe viera o socorro, entrou dentro da Ermida a dar graças à Senhora,
que o havia livrado da morte. E depois saindo fora, carregou como pôde no cavalo
aquele medonho animal, e com ele se foi à praça da Cidade, apregoando a grande
maravilha e o favor que a Senhora lhe fizera. Tem aquele animal a pele tão dura,

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que dizem por encarecimento que tem sete couros. E é esta tão dura que parece
impenetrável, porque para o abrirem não bastavam os machados. E aqui se viu o
mais o portentoso do milagre, que sendo aquela pele tão dura e tão impenetrável ,
a fez o favor de Maria Santíssima tão e tão branda no pescoço que com uma na-
valhada pôde aquele homem degolar aquela grande fera. Esfolaram-na e depois
encheram a pele de algodão, e com a navalhinha na boca a foram oferecer à Se-
nhora do Desterro, em memória do benefício que fizera em livrar da morte aquele
seu devoto.
Com este grande milagre se ascendeu o povo em fervorosa devoção para
com a Senhora do Desterro, e tanto que o mesmo Governador Mem de Sá pediu a
todos os moradores que tinham pretos, aos que tinham seis, que dessem três, e
aos que tinham quatro, que dessem dois, e assim aos mais, para irem roçar todo
aquele mato, que estava em o circuito da Ermida da Senhora. Limpa toda a terra
até o sítio da casa da Senhora, trataram de lhe edificar outra mais grande e capaz
de pedra e cal, e alevantar casas junto a ela. E o mesmo Governador mandou ali
edificar uma casa nobre, ou palácio, para sua vivenda. E depois se foram fazendo
tantas casas, que a Cidade se estendeu até aquele sítio. O mesmo Governador
desejou logo, que naquele mesmo sítio se edificasse um Convento para religiosas,
que perpetuamente louvassem a Nosso Senhor e a Nossa Senhora, e fez as dili-
gências possíveis para que estes seus desejos se efetuassem. E porque ele o
não pôde conseguir em sua vida, o recomendou à Câmara daquela Cidade. E tão
certo estava de que a Senhora do Desterro havia de ser servida naquele lugar por
religiosas, que na sua morte deixou ao Padre Reitor do Colégio da Companha (2)
daquela Cidade mil cruzados em depósito, para que assim que chegassem as re-
ligiosas a tomar posse daquela casa lhes entregasse para a ceia daquele dia; co-
mo em efeito o executou, indo logo entregá-los ás religiosas. E reparando elas na
aceitação, o Padre Reitor as certificou, de que aquele dinheiro era seu, e que se
lhe havia deixado em legado para quando elas chegassem.
Isto mesmo testemunha ainda hoje uma companheira das Madres Funda-
doras, que vive no Convento de Santa Clara da Cidade de Évora (de onde saíram
para fundar) neste presente ano de 1705, a qual disse que estes mil cruzados de-

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positaram logo as Madres Fundadoras, para se dar com ele princípio a obra do
seu Convento. O ano em que as Fundadoras saíram do seu Convento de Évora,
foi o de 1676 em oito de novembro. E tomaram posse do Convento novo na Cida-
de da Bahia em nove de março de 1677. As Fundadoras eram a Madre Soror
Margarida da Coluna, que ia por Abadessa, a Madre Soror Luiza de São José por
Vigária, as outras duas eram a Madre Soror Maria de São Raimundo e Soror Je-
rônima do Presépio. E teve muito de mistério, que todas quatro voltaram a Portu-
gal e foram para o seu Convento, aonde se restituíram todas em oito de novembro
de 1686. Gastando dez anos justos e completos nesta obra, que podíamos dizer
fora profetizada por aquele pio e devoto Governador Mem de Sá. Esta casa da
Senhora do Desterro é juntamente paróquia daquele distrito; se o era já quando as
religiosas tomaram posse não me constou; mas já o devia ser. A imagem da Se-
nhora é de talha estofada, e por ornato lhe põem um rico manto, e assim a Senho-
ra como São José; e o soberano menino se vem com varas de prata por bordões,
a sua estatura da Senhora são cinco palmos. Obrou sempre, e obra muitos mila-
gres. A sua festividade se faz sempre com grandeza em dia de Reis, na qual se
acaba o seu septenário.

NOTAS:
1) Tudo indica que o autor quer se referir à cobra sucuri.
2) Refere-se à Companhia de Jesus.
(Transcrito do livro “Santuário Mariano e História das Imagens Milagrosas de Nos-
sa Senhora” – de Frei Agostinho de Santa Maria – Em Lisboa – 1722- págs.
28/30).
Nota: O trabalho de Frei Agostinho (“Santuário Mariano...”) foi feito sob encomen-
da do Bispo, Dom Sebastião Monteiro da Vide, que viu a necessidade de docu-
mentar todas as imagens milagrosas de Nossa Senhora que haviam na Bahia.

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Victória da Encarnação e as almas do purgatório

Entre as luminosas Estrelas, que nesta parte meridional do Seráfico Ordo


(1) do Brasil, e Empório (2) da Bahia, em que predomina e tem assento, e casa

aquele celeste Astro, sempre novo em luzimentos, e aquela luz cândida, e apura-
da sempre em resplendores, a gloriosa Virgem e ilustre Matriarca Santa Clara, foi
uma e muito especiosa como verdadeira filha sua e serva de Deus a Madre Victó-
ria da Encarnação. Desta venerável religiosa já se acha escrita a sua vida, e im-
pressa em Roma, há mais de quarenta anos no de 1720, em um livro de oitavo,
pelo ilmo. Arcebispo da Bahia, Dom Sebastião Monteyro da Vide, e assim só to-
mamos agora o trabalho de a trasladar, ou transcrever aqui na mesma forma; e
isto por várias razões, sendo a primeira o não termos presunção de o fazer, nem
com melhor retórica nem com mais apurado discurso, e também porque atais livri-
nhos se acham já hoje muito poucos; e como pequenos e avulsos, se podem per-
der, e acabar-se com eles a sua memória, e nesta Crônica, como de maior corpo,
e em lugar próprio poderá ter mais larga duração e chegar à notícia de todos. O
que só faremos aqui de mais sem lhe mudar a substância, é, reparti-la em capítu-
los, seguindo a forma e método que se pratica nas crônicas, começando pelo e-
xórdio de seu Autor.
Escrevemos na vida de uma Victória, repetidas e importunas batalhas, ha-
vidas com os mais poderosos e contínuos inimigos, alcançando delas sempre os
mais gloriosos triunfos, com os quais é de crer piamente se acharia coroada na
glória por vencedora; porque costuma Deus nosso Senhor, conforme diz São
Paulo, como justo juiz dar de justiça a coroa a quem sabe valorosamente batalhar,
e vencer o Mundo, o Diabo e a Carne, como fez a Madre Victória em todo o dis-
curso da sua vida, como se mostrará do que aqui dizemos, e nos constou das dili-
gências que mandamos fazer, e testemunhamos de pessoas dignas de todo o
crédito.
Nasceu esta Religiosa aos seis de março do ano de mil seiscentos e ses-
senta e um, na grande e populosa cidade de Salvador, Bahia de Todos os Santos,

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Metrópole e corte do Brasil, para que esta América Meridional, de uma e outra par-
te, oriental e ocidental, igualmente se jacta gloriosa e aplaudida. A ocidental por
dar no jardim Dominicano uma puríssima rosa, querida Esposa de Cristo, que tri-
unfou dos espinhos ou acleos (3) das paixões com o fogo do Amor Divino, e esta
por oferecer ao Seráfico Campo ao Senhor dos exércitos uma singular Victória.
Que com a vara de fumo de uma vida penitente e fervorosa oração, desbaratou e
venceu o Príncipe das trevas, reciprocando-se estes dois Empórios Americanos
de Lima e da Bahia em dar tosas triunfantes, e vitórias odoríferas.
Foram seus pais Bartolomeu Nabo Corrêa, valoroso capitão de Infantaria
paga, e Dona Luiza Bixarxe, insigne Matrona, ambos nobres por geração e muito
mais pelas virtudes, com que se ajustaram as leis do Santo Matrimônio, de cujos
virtuosos e louváveis procedimentos se conservam nesta nobilíssima cidade muito
vivas as lembranças, efeitos particulares da Divina Providência fazer eterna a
memória dos justos, para correção dos maus e mais fácil imitação dos bons, tendo
exemplos que seguir. Do castro matrimônio colheram estes bons casados cinco
frutos, um varão e quatro fêmeas, dos quais escolheu Deus Nosso Senhor para a
sua glória ainda mais da metade, levando-os na infância, para que sem dúvida
fossem lograr a felicidade eterna, e em prêmio da resignação cristã, com que seus
pais se sabiam conformar com a sua divina vontade, lhes deixou para consolação
duas filhas, as quais eles criaram com tal devoção e recolhimento, que em toda a
cidade foi notório, tanto assim que vulgarmente se comparava a casa do capitão
Bartolomeu Nabo Corrêa com a clausura do mais Religioso Convento de Freiras
Capuchas, porque nunca lhe viram porta ou janela aberta, grande documento para
os pais de família, tendo por certo que grande perigo correm as mulheres vendo,
como sendo vistas, pois pelas janelas dos sentidos entram as distrações dos cui-
dados.
Na Catedral da Bahia com o Santo Batismo lhe foi posto o misterioso nome
de Victória, como feliz vaticínio das muitas que havia de alcançar do Demônio, o
qual receoso delas procurou, quanto lhe foi permitido, dificultar os meios por onde
podia ser vencido mais facilmente. E como um deles e o mais eficaz é o do estado
religioso, de tal sorte se desafeiçoou dela a nossa Victória, que não tendo ainda

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idade competente para o escolher, teve valor para o rejeitar e dizer ao seu pai cla-
ra e resolutamente: Que primeiro, e com mais facilidade lhe cortaria a cabeça do
que consentir ela em escolher tal estado, resolução esta que só tem desculpa nos
verdes anos, em que costumam ser erradas as mais delas. Admirado, e sentido o
pai desta intrépida e não esperada prática em tão tenros anos, buscou logo o seu
confessor o R. P. João de Payva, Religioso da Companhia de Jesus, bem conhe-
cido nesta terra por excelentes virtudes, a quem pediu aflito e desconsolado, de-
pois de referir-lhe o que com a filha tinha passado, que a encomendasse a Deus.
O bom padre o consolou e alentou, dizendo-lhe que veria brevemente cumprido os
desejos que tinha de que sua filha fosse freira, porque não somente seria religiosa
mas uma grande religiosa; fiado sem dúvida na bondade Divina, que sempre com
mão liberal nos conde mais do que pedimos, se é para nosso proveito
O sucesso mostrou bem a verdade desta promessa; porque logo começou
Deus Nosso Senhor a dispor-lhe o ânimo e a inclinar-lhe a vontade com uns meios
tão suaves que totalmente a renderam, e foram eles por sonhos, como ela ao de-
pois sento religiosa contava a suas irmãs com santa simplicidade, (muito parecida
com a do Santo José com seus irmãos), dizendo-lhes que sendo menina sonhava
que lhe aparecia o Menino Jesus, com sua santíssima Mãe, e lhe mostravam u-
mas flores muito belas e cheirosas, e pedindo-lhe algumas lhe respondia o Meni-
no: Que se queria aquelas flores as fosse colher no campo do Desterro (4) , por-
que lá as havia com abundância: verdade, que já a Eliodoro escreveu São Jerôni-
mo dizendo-lhe que no Desterro abundou as flores do Menino Jesus. Ao que ela
respondeu: Pois com essa condição, eu as escuso. Tal era a aversão que tinha ao
convento do Desterro, aonde seu pai intentava que fosse religiosa! Tal o empenho
do demônio em dissuadi-la, ainda na ternura daquela idade. Não obstante este
primeiro e brando toque da mão divina, se seguiu o segundo, o qual a Serva de
Deus contava com a mesma sinceridade que o primeiro, dizendo que em outra
ocasião sonhara que em companhia do Menino Jesus andava num campo colhen-
do flores, e o Menino a levava por caminho que ela não sabia, e que advertindo
guiava para o Desterro, lhe dizia ela: Meu Menino, para o Desterro nada, ide vós
se quereis, mas eu não, e dizendo isto fugia de carreira para casa.

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Porém vendo a Divina bondade que ainda Victória se não dava por entendi-
da com tão continuados avisos, e que por sua pouca idade, ou falta de discurso,
não fazia neles a reflexão que mereciam, a tocou com mais pesada mão, posto
que em sonho também: mas não de flores, como os dois anteriores, mas de as-
sombros e medos para fazer em seu ânimo maior impressão, como antigamente
sucedeu a Nabucodonosor com a árvore sonhada. Sonhou em uma noite Victória
que navegava em uma nau grande e em companhia de muitos passageiros, dos
quais alguns sentados em cima da coberta soprando-lhe vento galerno, e favorá-
vel prosseguiam alegres e contentes sua viagem, e outros, entre os quais se a-
chava também a nossa Victória metidos debaixo da coberta, e quase submergidos
em águia fétida e corrupta (como costuma ser a que se tira da areia da bomba)
esperavam e temiam a morte por instantes. E perguntando ela, sem saber a
quem, a causa da desigualdade de uns e outros navegantes, lhe foi respondido:
(seria sem dúvida pelo seu Anjo da guarda que, qual outro Daniel, lhe interpretou
o sonho), que nos que estavam em cima da coberta se representavam os religio-
sos, que alegres sempre, e constantes pela paz e sossego da boa consciência
navegam na possante Nau da Religião o tempestuoso mar do mundo ao porto da
glória. E nos que debaixo da coberta temiam o naufrágio se significavam os Mun-
danos, que engolfados no turvo e fétido lodo de suas culpas, como desventurados
baixeis se vão pouco a pouco submergindo ao mar da morte e abismo de penas
infernais! Nos últimos paroxismos da vida se achava assim Victória, quando des-
pertou daquele horrendo sonho; e toda banhada em suores frios, arrependida uma
e muitas vezes do seu obstinado propósito, pediu à Divina Majestade perdão, pro-
pondo firmemente embarcar-se na segura Nau da Religião, para evitar o miserável
naufrágio que lhe prognosticava o triste e funesto sonho, de que se via livre.

Entra Victória no Mosteiro de Santa Clara, no Desterro


Na diligente presteza com que se executam os bons propósitos perante
Deus consiste a melhor prova de serem verdadeiros, e como tais bem aceitos do
mesmo Senhor. Logo na manhã seguinte a este último sonho, ou misteriosa visão,
com resolução intrépida (pelo que tinha mais acertada do que a primeira, em não

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admitir o estado religioso), pediu Victória, instantemente prostrada aos pés de seu
pai, que assim a ela como a sua irmã, as recolhesse no Mosteiro de Santa Clara
com maior brevidade que lhe fosse possível. Venturosa alma, que assim sabe o-
bedecer às divinas inspirações, ainda sonhadas! Muito se alegrou o bom pai, ven-
do tão repentina mudança em sua filha, considerando nela a poderosa mão do
Altíssimo; e depois de abraçá-la gozoso, qual outro pai ao filho pródigo que via
ressuscitado, a quem Victória se havia parecido, se não no licencioso da vida no
apartado da sua reta e santa direção, pedindo afetuosamente a Deus confirmasse
o que tinha começado. E assim aproveitando-se de tão oportuno tempo e conhe-
cendo, como capitão esperto, que este se não recuperava uma vez perdido, tratou
logo com toda a diligência, o discreto pai, da entrada de suas filhas, a qual com
efeito se conseguiu em vinte e nove de setembro do ano de mil e seiscentos e oi-
tenta e seis, pelas sete horas da manhã, mostrando neste madrugar o fervoroso
desejo de servir a Deus diligentes, e em nada pareceram servas ociosas; e neste
mesmo dia se vestiram do humilde e penitente hábito da Mãe de tantas virgens, a
gloriosa e nunca assaz louvada Virgem Santa Clara, apesar de Lúcifer, antigo
desprezador dos hábitos humildes, que submetido agora aos pés do invicto Prín-
cipe São Miguel, a quem era o dia dedicado, paga os orgulhos da soberba com
que desprezou o humilde hábito da natureza humana, quando com ele se lhe re-
presentou vestido o Verbo Eterno para nosso remédio.
Começou a Madre Victória e prosseguiu com tal fervor o seu noviciado,
que deu logo mostras evidentes de alta perfeição, a que aspirava o seu mais que
comum agigantado espírito, por ser nela incansável o uso contínuo das virtudes,
exercitando-as com tão religioso primor, que mais parecia antiga professora delas
do que moderna noviça, não deixando passar instante em que se fosse pergunta-
da o que fazia, não pudesse dizer com verdade: Que estava servindo a Deus,
Nosso Senhor, e tratando de sua salvação; tão alheia andava de outros quaisquer
mundanos pensamentos. E com razão; porque, se tanta diligência se põem em
trabalhar pela verdade, quanta se deverá pôr em trabalhar pela eternidade. Com
tais mostras de aproveitamento completou Victória o seu noviciado, aos trinta de
setembro do segundo ano; mas por devoção especial, em que a acompanhou sua

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irmã mais velha, a Madre Soror Maria da Conceição, quis professar, como o fize-
ram ambas a vinte e um de outubro, dia das onze mil Virgens, festejadas na Cida-
de da Bahia com alegre e pomposa celebridade, desposando-se com Cristo na
terra pelos votos solenes no mesmo dia em que o Céu pelo glorioso martírio se
tinham desposado com o mesmo Senhor estas prudentes onze mil Virgens, como
querendo as nossas noviças acrescentar o número, quanto lhes foi possível, fa-
zendo de si mesmas sacrifício. Assistiu o afetuoso pai com a Nobreza da terra à
profissão das filhas; e para total complemento da solenidade, assistiu também o
Divino Esposo destas almas puras, por Seu amor sacrificadas, com a Nobreza do
Céu com que sempre se acompanha no Diviníssimo Sacramento. Na solenidade
desta festa, pregou engenhosamente, como sempre costumava, e o mostram seus
escritos já impressos, Frei Euzébio de Mattos, religioso da antiga e sempre escla-
recida Família carmelitana observante.
Foi riquíssimo o tesouro de virtudes que no seu noviciado adquiriu a Madre
Victória da Encarnação para todo o decurso da sua vida, sem que jamais a dis-
pensasse nos fervores de noviça o estado de professa, e como quem sabia que
não é possível estar seguro o edifício a que falta o fundamento, nem haver virtude
sólida e perfeita faltando a humildade; nesta fez muito particular estudo, e era a
sua mimosa e regalada virtude. Tinha tão baixo conceito de si que não podia ouvir
nem uma mínima palavra em seu louvor, por lhe não servir esta de minorar em
algum modo a insaciável sede que tinha de opróbrios, invejando a seu Divino Es-
poso a sorte que conforme Jeremias lhe coube de ser farto deles. Freqüentemente
se dava a si mesma o nome de terra; e perguntada em certa ocasião porque se
borrifava com tanta água benta como tinha de costume; respondeu com modéstia
e religiosa galanteria: Que o fazia por regar aquela terra que estava mui seca. E
neste conhecimento do próprio ser, escreve São Jerônimo, consiste a perfeição
desta virtude. Muito se manifestava também esta sua humildade nos ofícios bai-
xos que exercia. Varria os dormitórios, cozinha e quintais; e ajuntando cisco em
que descobria preciosas pedras com que comprava o Reino do Céu, o levava à
cabeça em cestos para o lançar fora. Alimpava os canos recolhendo deles o lodo
com suas próprias mãos, tão contente e alegre como se nunca em sua vida se

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tivera visto em maiores limpezas. Levantava-se de madrugada, como solícita mas
não turbada Marta a ajudar as moças na cozinha em todos os seus ministérios,
empregando-se de melhor vontade naqueles em que sentia maior repugnância.
Bem se podia da Madre Victória nesta ocasião dizer o mesmo que disse a Rainha
D. Catarina, vendo na cozinha do religioso convento da Madre de Deus em Lisboa
a Dona Clemência, que antes de ser religiosa era senhora da notável Vila de Ar-
ronches, toda cheia de tisnaduras e mascarras, como sucede ordinariamente a
quem serve em tal oficina, chamou a Rainha as suas damas e lhes disse: Olhai
para a senhora de Arronches qual está! Afirmo-vos que nunca me pareceu mais
bela e formosa que agora. Mas que muito se agradasse tanto da humildade a Ra-
inha da terra, quando a Rainha dos Céus e Anjos confessa no seu divino cântico
do Magnificat que na sua humildade pusera Deus os olhos e os agrados.
Desta capital ou principal virtude nascia dar-se Madre Victória muito com as
mais humildes, servindo e comendo igualmente com elas, e até com os brutos u-
sava esta mesma lhaneza e simplicidade; por que em certa ocasião a acharam na
cozinha comendo com um cão em um mesmo prato. Exemplo que se em seus
tempos alcançara a Cananéia teria mais que alegar a Cristo para a não excluir de
seus divinos favores, os quais então mais seguramente se alcançam quando a
humildade do coração se deixa também ver nas ações exteriores, sem que por
elas se procure o aplauso vulgar; porque procurar este e ser humilde interiormente
não pode ser; porém, quando as ações humildes no exterior concordam com a
humildade de coração, que tanto nos encomenda Cristo Senhor Nosso, pondo-se
a si mesmo por nosso exemplar, resulta desta concórdia tão suave harmonia, que
enleva e arrebata as atenções do mesmo Deus. Em uma carta que escreveu a
Rustico, diz São Jerônimo que a verdadeira humildade não se prova nas palavras,
nem nos gestos, se não na paciência: E que bem provou Victória com a sua paci-
ência a sua humildade! É a virtude da paciência genuína irmã da humildade e sua
inseparável companheira, de tal sorte que nunca se achará uma sem a outra; e
não podia a Madre Victória, sendo tão humilde, deixar de ser paciente, como
quem tanto desejara conformar-se com o seu Divino Esposo, perfeitíssimo exem-
plar dela, e como quem sabia muito bem que com esta tão recomendada virtude

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se colhem seguramente os frutos das outras, e se possui a tranqüilidade da pró-
pria alma; e por esta causa a não viu nunca pessoa alguma com o mais mínimo
sinal de impaciência, como se naturalmente carecera do irascível e desconhecera
a paixão da ira, mostrando-se sempre no exterior o sossego interior do seu espíri-
to; qual um relógio bem apontado que no índice exterior manifesta o compassado
e uniforme movimento de suas interiores rodas.
A quem, violando as leis da caridade, a ofendia com algumas palavras de
opróbrio e desprezo, respondia com toda a mansidão: Vá, minha irmã, vá por dian-
te que ainda não diz tudo. E com semelhante humildade respondia a qualquer das
moças ou escravas que, com menos ajustadas palavras, lhe faltavam ao devido
respeito ou com alguma ação indecorosa, como lhe sucedeu em uma ocasião
sendo Provisora; pois estando repartindo a carne para as que não vão à comuni-
dade, chegou uma escrava (5) a tomar a ração para sua senhora, e dando-lha, a
não quis a escrava aceitar e atirando com ela furiosamente sucedeu dar em uma
face da dita Madre Victória Provisora tal pancada, por estar com a cabeça baixa,
que logo se lhe fez não vermelha por afrontada mas preta por indignamente ferida.
As pessoas que estavam presente se indignaram muito contra a inadvertida es-
crava; mas a paciente e virtuosa Provisora, sem queixar-se nem alterar-se, disse
com toda a mansidão: Isto que vem a ser? Assim sucede. E atou um lenço aque-
les dias, enquanto trouxe a face agravada; mas quanto mais o lenço encobria o
agravo da face, mais descobria os finos quilates da paciência no sofrimento de
uma tão grave injúria, feita por uma vil escrava, como notou Aristóteles escreven-
do das virtudes. Sobre isto lhe disse uma religiosa antiga se queixasse à Prelada
para que se desse à escrava o merecido castigo; mas ela respondeu: Que casta
de cara é a minha, ou que vem a ser isto para queixar-me? Diferente pararam as
minhas culpas à face do meu Criador, e mais ele não se queixou nunca de quem o
tratou tão mal. Oh, resposta digna de andar sempre na memória! Oh perfeita e
gloriosa paciência! Perfeita; porque não consiste somente na tolerância do mal
que se recebe, se não em amar, desculpando, a quem ofende; gloriosa porque é
grande a glória de quem podendo de qualquer modo satisfazer-se da injúria, recu-
sa por paciência todo o gênero de satisfação. Nesta forma sofria as injúrias que se

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lhe faziam como se não foram a ela feitas, praticando a doutrina de São Paulo, em
que nos ensina que a paciência nos é precisamente necessária para colhermos os
frutos das outras virtudes, que sem ela seriam infrutíferas.

Das muitas e rigorosas penitências da Serva de Deus


Ocupando o tempo nestes santos exercícios, e supondo de si grandes pe-
cados se tratava com os mais penitentes rigores. Debaixo dos vestidos comuns de
religiosa trazia ásperos cilícios de penitência, e não só se abstinha dos mantimen-
tos que podiam parecer regalo mas também daqueles que pudera admitir sem de-
lícia. Além do Advento, Quaresma, Vigílias do Senhor, da Virgem Santíssima e
dos Santos, nas quais todas comia sentada em terra ou de joelhos, e muitas vezes
pedindo por esmola o que havia de comer, jejuava também a Quaresma de São
Miguel, todas as sextas-feiras do ano e três dias da semana a pão e água, ainda
que algumas vezes admitia nos tais dias umas ervas mal guisadas e insípidas,
entendendo, como é certo, que ordinariamente a abstinência e a virtude dilatam os
anos, o pecado e a gula consomem os dias. Não se satisfazendo ainda com as
sobreditas abstinências, usava dos mais ásperos rigores. Nas sextas-feiras corria
de noite a Via-Sacra com uma pesada cruz ás costas e uma coroa de espinhos na
cabeça, e em cada uma das estações tomava uma larga disciplina que muitas ve-
zes durava mais de meia hora, e no fim descarregava em seu virginal rosto um
chuveiro de bofetadas tão cruéis que lhe inchavam e denegriam as faces, as quais
ao dia seguinte atava com um lenço para assim encobrir aquele lívido tumor, fin-
gindo dor de dentes, o que nunca padeceu em toda sua vida. Que traças não bus-
ca e acha a verdadeira humildade para disfarçar e encobrir tudo aquilo que pode
redundar em louvor próprio? Mas então toma Deus Nosso Senhor por sua conta
manifestá-lo, para maior glória sua e confusão dos pecadores.
Era muitas vezes preciso caiar as paredes do coro, por se acharem mati-
zadas de sangue. Em um dia Circuncisão do Senhor se achou nele tão complete
efusão de sangue que depois de o recolherem, levarem e esfregarem o pavimen-
to, não se pôde extinguir a nódoa, e foi preciso vir um carapina cepilhar o infecto
das tábuas. Indo certas religiosas uma madrugada ao coro a acharam alimpando

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com grande pressa e fadiga o sangue que nele havia derramado pela cruel disci-
plina que tomara naquela noite, admirando-se as que isto viram não só da temeri-
dade com que se disciplinava mas da humildade com que, andando descalça, a-
limpava e esfregava com panos molhados o lugar em que tomara aquela rigorosa
sangria, seguindo o conselho de São Jerônimo, que é ser Santo e não o parecer;
e daqui procede que os Justos procuram ocultar as sua virtudes, como se foram
vícios, em contraposição dos pecadores que se jactam dos vícios como se foram
virtudes.
A algumas religiosas referiu um secular que passando de noite em certa
ocasião por junto ao coro do Convento, e ouvindo os golpes de uma rigorosa dis-
ciplina, que nele se tomava, parara suspenso e atônito, até que cessando a disci-
plina, que durou um largo espaço de tempo, disse consigo: É possível que uma
delicada donzela se esteja disciplinando com tanto rigor, e eu miserável pecador
não só não faço outro tanto, se não que ainda vou ofender a Deus! Não será as-
sim por certo; e dizendo isto voltou para casa com propósito firme de emendar a
vida. Divulgou-se entre as religiosas este caso, assentaram todas ser a discipli-
nante a Madre Victória, que às tais horas costumava fazer tão exatas penitências.
Bem se pode chamar esta gloriosa Victória, pois para ela precedeu tão sanguino-
lento certame. Ainda que com grande cautela as encobria, bem se suspeitava, e
depois de seu falecimento se soube com certeza que usava de vários gêneros de
disciplina; umas de fios com pontas molestíssimas, outras de cordas de viola, ou-
tras finalmente de couro cru, que ela mesma torcia, e que depois das de ferro, de
que também usava, aturava mais os rigores com que se exercitava. Mui seme-
lhantes a estas alfaias eram as dos cilícios com que afligia seu virginal e delicado
corpo. Entre os mais instrumentos da sua penitência, se lhe achou uma tenaz de
ferro com dentes, com que parecesse despertava no tempo da oração ou quando
por alguma urgente causa não podia acompanhar a comunidade nas disciplinas
da Ordem. E qual alma santa, guarnecida de escudos se segurava com estas ar-
mas de toda a invasão dos inimigos.

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Espírito de oração, exercícios devotos
Aos exercícios de tão rigorosas penitências costumava a Madre Victória a-
juntar o da oração fervorosa, umas vezes em público, quando por falta de sol ou
chuva se temia a carência dos frutos da terra, instituindo procissões de penitência
com licença da Prelada, nas quais ela representava a figura da mais devota e pe-
nitente, outras vezes, e quase sempre, era a sua oração em particular, na qual se
enlevava o seu espírito, conhecendo que para com Deus é o mais grato obséquio,
e para a própria alma a mais poderosa arma para vencer os inimigos, como cla-
ramente se viu na Oração de Moisés contra Amelec, que só com ela era vencido,
e sem ela começava a ser vencedor, e por ser Amalec representação do demônio,
bem entendia a Madre Victória que com sua devota oração o venceria de todo.
Assim passava a noite em vigílias, não se recolhendo tanto para dormir quanto
para se mortificar, e então se recostava em uma dura tábua, dura para o corpo,
conveniente para a alma; porque quanto mais áspera e humilde a cama de uma
Esposa de Cristo, diz o Cardeal Hugo, tanto mais inseparável a companhia do Di-
vino Esposo; nela não tomava descanso senão quando o desvelo lhe trazia o so-
no, e era tão limitado que não excedia o tempo de duas ou três horas; e dada esta
breve mas precisa refeição ao corpo, gastava o resto da noite, que sempre era a
maior parte dela em o coro, velando como uma tocha acesa no amor Divino, dian-
te do Santíssimo Sacramento; já com os braços em cruz, como outro Moisés, já
prostrada por terra, como Cristo Senhor Nosso no Horto, já em alguma outra devo-
ta postura, e depois de larga oração corria, ora a Via Sacra, ora os Passos com a
cruz ás costas e coroada de espinhos; com muita propriedade, por certo, porque,
vencidos pela oração os perigos e tentações da vida humana, como Victória ven-
cia com sua oração, devia por-se a coroa para que a convida Cristo na Alma San-
ta.
Acabada a reza das Matinas, a que sempre pontual e devotamente assistia
(entendendo que é caminho quase infalível da salvação seguir os atos da comuni-
dade), a oração, que em comum costumam ter as religiosas; e saindo elas para
fora do coro, continuava a sua prostrada, em que persistia até a hora de Terça,
derramando o sangue do coração em lágrimas, com as quais achavam o coro re-

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gado as religiosas que vinham ouvir missa na dita hora. Bem conhecia a Madre
Victória a inestimável valia das lágrimas, e que se tiram a vista aos olhos do corpo,
e acrescentam muito clara aos olhos da alma; pois assim como elas vão correndo
por fora, vão afogueando a cegueira de dentro. Aqui mesmo, e no tempo em que
as outras religiosas se entretiam em alguma honesta e recreativa vista, estava ela
no coro rezando e olhando para o Santo Crucifixo que nele está. E perguntada
porque não chegava também a ver; respondia com santa sinceridade, mas altís-
sima compreensão, apontando para o Santo e lastimado transunto que tinha dian-
te dos olhos: Que posso eu ir aí ver, que aqui não vejo! Porque tudo se vê em
Cristo, dizia o seu Santo Patriarca Francisco ainda nesta vida; e fora de Cristo, diz
São Gregório Nisseno não há cousa agradável, nem bem algum que se veja.
Algumas vezes depois de correr a Via-Sacra pelo claustro baixo se pros-
trava em o cemitério sobre algumas sepulturas, aonde gastava grande parte da
noite chorando e soluçando, como costumava quando não podia reprimir o fervor
de espírito, o qual se afervorizava mais naquele funesto lugar com a lembrança
não só da morte, que havia de vir, mas da que já tinha vindo àquelas religiosas
que ali estavam sepultadas, vendo com a consideração o que adverte Santo Agos-
tinho, que os que vivem e luzem no mundo, e hão de ser pó, vejam aos que pri-
meiro que eles já foram pó e também luzirão. Eram as ordinárias matérias da sua
contínua meditação a Paixão de Cristo Senhor Nosso e os Novíssimos do Ho-
mem, ambas tão úteis para o espírito como necessárias para a perfeição; porque
na Sagrada Paixão, além de termos asilo e refrigério certo de todas as tentações,
temos a lição do melhor exemplar das Virtudes; a Obediência, que é a principal de
almas religiosas para com seus Prelados, a que Cristo teve com seu Eterno Pai; a
Caridade, rogando por seus inimigos; a Paciência, suportando tantas injúrias e
tormentos; a Pobreza, na desnudez da Cruz; e finalmente todas as Virtudes. Os
Novíssimos não é matéria menos útil para a perfeição espiritual, e para avivar-lhe
a lembrança da morte em que particularmente meditava, tinha a Madre Victória
várias caveiras, e entre elas a de seu pai, em cujo ser, que já não tinha se desen-
ganava do caduco ser, que dele havia recebido. Conselho é do Espírito Santo que,
quem se lembrar dos seus Novíssimos não perecerá eternamente; e porque a

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Madre Victória tomou este conselho tão deveras, como se só a ela fosse dado, por
isso conserva a sua alma não só livre de pecados, mas cada dia enriquecendo-a
de altas virtudes.
Todos os anos tomava os exercícios espirituais, que o glorioso Patriarca
Santo Inácio instituiu para tão grande proveito das almas próprias, como testemu-
nham todos os que chegam a experimentá-los, guardando exatamente a direção
que para os ter com fruto lhe ensinaram seus confessores, os Padres da Compa-
nhia, com quem sempre se confessou e comunicava as cousas de seu espírito,
escolhendo para este fim aqueles de cuja virtude se tinha melhor conceito; e nesta
escolha se deixava ver bem, e manifestava a grande prudência da Madre Victória,
porque se para nos defender uma demanda de cousas temporais e caducas, pro-
curamos o melhor letrado; para nos curar o corpo, que mais dia e menos dia se há
de tornar em pó, buscamos o melhor médico; com quanto mais razão devemos
procurar o Confessor para que encaminhe e guie a nossa alma, que é de inesti-
mável valor e há de durar por toda a eternidade.

Procissão dos Passos dentro da clausura


Com cruel e lastimoso estrago de inumeráveis vidas, continuava na cidade
da Bahia, no ano de 1693, o pestilento contágio a que chamaram Bicha, pela se-
melhança sem dúvida que tinha com este venenoso animal que fere e mata em
brevíssimo tempo, sem que a arte da mais esperta medicina pudesse atalhar nem
aplicar remédio conveniente a tanto mal, e nesta universal aflição foi mais que
preciso recorrer aos divinos como divina foi a inspiração com que um religioso da
companhia instituiu e publicou uma adoração perpétua, ou Laus Perene, todas as
horas do dia e da noite, em honra do Senhor Sacramentado, e foi tão aceita esta
amorosa devoção que o Sumo Pontífice Inocêncio XII a aprovou com dois Breves,
em um dos quais concedeu um altar privilegiado, que é o do Santo Cristo na Igreja
do Colégio e em outro várias indulgências aos confederados para esta adoração
devota e tão eficaz para com Deus Nosso Senhor, que daí em diante foi cessando
visivelmente o pernicioso contágio. Uma destas almas devotas confederadas com
o contínuo obséquio do Santíssimo Sacramento era Madre Victória, e tinha cin-

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qüenta horas repartidas por vários dias, ou para melhor dizer, por várias noites do
ano, porque as mais delas eram noturnas, as quais, parece, pediu de propósito ao
padre que distribuía as horas desta Laus Perene, e sinalava cada um dos confe-
derados o dia, o mês e hora que havia de estar em oração, ou fazer alguma peni-
tência e o que nela havia de observar para lucrar as indulgências e aplacar a Divi-
na Ira. Como a Madre Victória era tão zelosa e vigilante, na continuação deste de-
voto exercício não queria houvesse falta nele, e para evitá-la acordava todas as
que sabia haviam de ter de noite a sua hora; e se alguma a não podia ter por mo-
léstia, ou outra causa superveniente, supria ela esta falta. Se diz Santo Agostinho
que Saulo apedrejava Santo Estêvão pelas mãos de todos aqueles que lhe atira-
vam as pedras porque lhes guardava as suas capas, e era réu de suas culpas;
bem podemos dizer que a Madre Victória orava e se penitenciava com todas as
que solicitava para a oração, e era participante de seus merecimentos orando com
todas e por todas as que ela despertava.
Com aquela singeleza de que era naturalmente dotada, referiu a devota
Madre que pouco tempo depois de professa sonhara uma noite que via caminhar
a Cristo Senhor Nosso com a sua cruz às costas e lhe dizia: - Segue, esposa mi-
nha, os meus passos. Se isto foi sonho ou foi visão, julgue-o quem, com devida
atenção, considerar as ações que nesta história se referem, dirigidas todas à ver-
dadeira imitação do Divino Esposo penitente, que a chamava, animava a segui-lo,
dando-lhe tal esforço que se resolveu a abraçar com fervor a Cruz da Religião, e
penitência em que era incansável. Desta visão, ou sonho, cremos lhe nasceu o
desejo de que no convento se imitasse a Procissão dos Santos Passos, conforme
o louvável costume de toda a Cristandade. E porque lhe faltava a imagem do Se-
nhor, que representasse o tal mistério, intentou fazer uma tunicazinha com que
vestisse ao Menino Jesus, com uma cruzinha às costas, dizendo que isto bastava
por entretanto para satisfazer aquele ano à devoção. Nestes pensamentos andava
quando inspiradamente apareceu na portaria um homem com uma imagem do
Senhor com a Cruz ás costas, perguntando se a queria comprar! Sabendo disto a
Madre Victória, com grande alegria chegou á porta, comprou a imagem e final-
mente introduziu a procissão que neste convento se faz com toda a devoção todos

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os anos na terceira Sexta-feira da Quaresma, tendo particular cuidado em que não
faltasse cousa alguma para o seu efeito. Quem andava e procurava com tanto ze-
lo se dessem tão agigantados passos na virtude sem dúvida findaria gloriosamen-
te a carreira de sua vida.
Quando hão havia religiosa que ficasse como Provedora, sempre ela estava
pronta, se bem, por rara humildade, não consentia que a nomeassem na eleição
com este honorífico título, o qual apropriava à comunidade, mas ouvindo-se assim
logo se entendia ser ela a Provedora, suposto que, como tal nunca pegava na va-
ra ou insígnia alguma, como usam as provedoras, e somente se abraçava com a
sua cruz e coroa de espinhos; e se lhe perguntavam porque não carregava com o
andor, ou levava algum dos martírios, respondia com alto e profundo juízo, ainda
que parecia simplicidade (porque a humildade é muito entendida e lhe não faltam
nunca razões para desprezar-se): - Que há de carregar uma vadia? Sutil lance da
virtude reputar-se inepta por fugir de tudo que pode ser honroso, porém entendam
os humildes que como esse fugir é merecer: quem mais foge da honra, mais me-
rece, por esta razão, quem mais se abate mais se levanta. Estando já a procissão
preparada, armava-se a Madre Victória com a sua cruz e coroa de espinhos, se-
guia de joelhos o andor do Senhor, e a poucos passos lhe brotavam nas faces
duas rosas, com cuja púrpura avivando-se o desmaiado e penitente do rosto, ar-
rebatava as atenções das que a viam, não podendo reprimir as lágrimas da devo-
ção que lhes causava esta devota penitente. Se a vara de Moisés figura da cruz
fazia brotar água de uma pedra dura, que muito que o lenho da Cruz figurado no
que tinha nas costas a Madre Victória, com tanta devoção fizesse mananciais fon-
tes nos olhos, ferindo corações brandos, pios e religiosos.
A cruz com que acompanhava a procissão, e de que muitas vezes usava,
era tão pesada que apenas podiam com ela duas religiosas, como mostrou a ex-
periência, pois pedindo-lhe em certa ocasião e carregando-a ambas se sentiram
depois da procissão tão debilitadas que não se atreveram a pedir-lhe segunda
vez, dizendo-lhe ao restituí-la: - Madre, nunca mais; pois não quer Deus que nos
matemos, não sabemos como pode com ela! A isto respondeu sorrindo: - Ela pe-
sa? Nunca lhe achei peso. E dizia nisto a verdade, porque o grande desejo que

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tinha de mortificar-se lhe fazia suave o jugo de Cristo, e a carga da cruz leve, na
certeza de que imitando quanto lhe fosse possível ao mesmo Cristo, levando nes-
ta caduca vida a cruz aos ombros, descansaria nos braços da mesma cruz na E-
ternidade, onde a cruz é e sempre será gloriosa. Na quinta-feira, véspera da Pro-
cissão dos Passos, era o seu maior cuidado preparar a imagem do Senhor, vesti-
la, consertar o andor, dispor todo o necessário para ela, e de tarde repartir velas a
toda a comunidade para levarem a dita imagem para o coro, a qual depois de co-
locada em lugar decente, cercava de tochas, assistindo-lhe toda a noite com vá-
rios atos de penitência e mortificação, como quem entendia eram estas as verda-
deiras lâmpadas acesas com que o Divino Esposo queria ser esperado das vir-
gens prudentes, amorosas e vigilantes.
Ajuntou algumas esmolas de pessoas pias para erigir uma capelinha em
que a devota imagem do Senhor estivesse com a devida decência, até que final-
mente se aperfeiçoou a obra. Acabou também todo o aparato que requeria a dita
procissão, para a qual alcançou de uma religiosa outra muito perfeita imagem. E
por remate deste seu devoto empenho deixou o que lhe pareceu bastante para
que se decorasse a capelinha, adquirindo tudo pelo seu grande zelo, respeito e
ardente amor, que se o humano, como dizem vulgarmente, vence todo o possível,
o Divino vence os mesmos impossíveis; e tais pareciam algumas dificuldades, que
o demônio ardia para impedir a dita obra; porque suspeita e temia que desta pe-
quena capelinha, como de grande e inexpugnável fortaleza, haviam de alcançar
dele não só uma Victória, mas quantas a imitassem, muitas vitórias.
Para que todos os seus passos fossem sempre dirigidos à memória da Sa-
grada Paixão, dispôs a Madre Victória outra Via-Sacra, além da comum que co-
meça na dita capelinha, passava pela sua pequena e humilde cela e terminava em
um quintalzinho, que na cerca fez com licença da Prelada, a qual cercou com vá-
rias e pequenas árvores e plantas, e no meio um montezinho com muitas flores, e
entre elas uma cruz, a que ela chamava o seu Monte Calvário. Entre flores se go-
za o Esposo Divino, como diz aquela alma mais experiente nos amores de Deus.
Victória por gozar do seu Divino Esposo de noite o buscava por entre estas flores;
como as flores do Calvário são as penas, mortificada com os braços da cruz, en-

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quanto não tocava a campainha para se recolher à comunidade, orava contem-
plando as dores que o seu Divino Esposo padeceu no Monte Calvário. Nesta cir-
cunstância de orar não só se descobre a imitação de Cristo, que deixando a casa
se retirava de noite para o Horto, mas também se deixava ver a especialidade com
que Deus favorecia a esta religiosa guiando-a por este modo a um Desterro, que é
o convento, para uma soledade, qual era o seu Monte Calvário, porque nas sole-
dades costuma Deus falar aos penitentes e devotos mais ao coração. Tinha a Ma-
dre Victória a Via-Sacra disposta em várias partes, e sucedia carregá-la quatro e
cinco vezes entre dia e noite. Venturosos passos, que dando-se em tais caminhos
não só mereciam para com nós outros o nome de Sacros, mas na estimação de
Deus merecem o título de formosos.
Todas as Sextas-feiras da Quaresma inventava o seu insaciável desejo de
mortificar-se uma nova penitência para correr os Passos, convidando as mais reli-
giosas a fazerem também a sua, em que sempre as excedia tanto que ficava inimi-
tável; como foi quando em uma Sexta-feira correu os passos levando na boca uma
canela de defunto ainda fresca e fétida, de que lhe procedeu andar mais de oito
dias continuamente babando, dizendo-lhe como por graça as religiosas que a viam
padecer tal fluxo de saliva, que a canela era sem dúvida de algum defunto a quem
o azougue havia penetrado os ossos. Ação foi esta da Madre Victória não só pe-
nitente pela mortificação, mas pia e misteriosa pelo fim; já quanto a substância
executada por Moisés por mandado de José trazendo consigo do Egito para Ca-
naã os ossos do Patriarca defunto, para que naquela vista lembrados os israelitas
do cativeiro que experimentaram, se empregassem fervorosos em habitar a terra
da promissão, figura da glória; e Victória trazia consigo o osso fétido de um defun-
to para que vendo nele as companheiras o estado a que as havia de reduzir a
morte, empregassem todos os cuidados da vida em adquirir a bem-aventurança
eterna.

Devoções aos Mistérios de Cristo e à Nossa Senhora


Do contínuo exercício da virtudes, que ficam referidas, resultava na Madre
Victória a cordial devoção que tinha para com Deus nos Mistérios da vida de seu

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unigênito Filho, em que era extremosa, e especialmente com o do Santíssimo Sa-
cramento, por ser uma perene memória da Paixão de Cristo, de quem era devotís-
sima. Recebia-o com terníssimo afeto todas as quintas-feiras, domingos e Dias
Santos, e vezes houve que o recebeu dois e três dias continuados por assim lho
mandarem seus confessores, que a julgavam capaz desta freqüência. Quando era
Madre das confissões, persuadia e obrigava com suas devotas palavras a muitas
Servas e Escravas do Convento para que, precedendo perfeita confissão, dispu-
sessem suas almas e chegassem dignamente à mesa da Sagrada Comunhão.
Efeito era este da caridade, a qual, se é bem ordenada, posto que comece por si
não há de acabar por si, se é verdadeira caridade; mas há de procurar, quanto for
possível, que todos participem do que logra, e principalmente de um Sacramento
que para todos foi instituído, do qual se colhem tantos e sazonados frutos, como
experimentam todos os que dignamente o recebem.
Não era menor a devoção que tinha ao Nascimento do Menino Jesus, a
quem todos os anos fabricava a sua lapinha para mais incitar em todos o afeto
que deviam ter em tão santo Mistério, preparando-se para receberem em suas
almas ao Menino Deus, renascido em um Presépio, e envolto ou desabrigado em
pobres palhinhas. Para este mesmo fim, introduziu neste convento aquele zelosís-
simo Prelado, verdadeiro Pai das religiosas dele, o Ilmo. Senhor Arcebispo D. Frei
Manoel, uma Novena a qual começa em dezesseis de dezembro e acaba em vinte
e quatro do mesmo, véspera desta Santa Celebridade, que ainda agora se conti-
nua todos os anos, assistindo a ela a comunidade, e esperamos em Deus que
persevere para glória sua e proveito das almas que devotamente a fazem. Pelo
copioso fruto que colhia da dita Novena a Madre Victória, não se satisfazia com
celebrá-la uma vez cada ano, mas em cada mês a repetia com ardentíssima de-
voção, e na noite em que considerava ser a do Nascimento, que era dos vinte e
quatro para os vinte e cinco de cada mês, se punha no coro pelas onze horas com
outras religiosas de semelhante espírito, que não faltam em tão reformado Con-
vento, a esperar o Nascimento do Menino Deus, preparando-se com as suas cos-
tumadas disciplinas, as quais acabadas se punha em oração, em que persistia até
às duas e as vezes até às três horas da manhã, abrasando na ardente frágua da

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meditação o seu devoto e amoroso coração, para dentro dele abrigar ao Santíssi-
mo Menino, a quem contemplava tiritando de frio no desabrigo de um portal, ao
pino da meia noite e no rigoroso tempo do mais congelado inverno.
Quem tanto amava ao Filho não podia deixar de amar ternamente a Mãe,
em quem venerava tantas e tão divinas graças, e excelentes, e de quem esperava
os maiores favores; e para os alcançar se encomendava continuamente á mesma
puríssima Virgem Mãe de Deus por um método que lhe ensinou o Pe. Jacob Clo-
cleo, religioso da Companhia, seu ordinário confessor. Qual fosse esse método
nos não consta, porque nem ao dito seu confessor o podemos perguntar por ser já
defunto, nem a Madre Victória o revelou em sua vida, mas conforme o espírito de
ambos e a regulada vida que fazia a Madre Victória, nos persuadimos a que seri-
am as três célebres devoções que mais agradam à Santíssima Madre de Deus, e
com as quais é infalível a salvação a quem as fizer. Não pareça isto temeridade,
porque a experiência o tem mostrado por coisa certíssima.
A primeira e principal devoção, e que mais agrada a Nossa Senhora, é não
ofender em nenhum caso a seu Bendito Filho, por quem ele é, e por não dar este
dissabor à sua Santíssima Mãe; pois é certo que sente esta Senhora, quanto é
permitido a quem está gozando a glória, as ofensas que se fazem a seu unigênito
Filho. É tão boa e útil esta devoção que só ela basta para segurar a salvação de
uma alma. A segunda é fazer todas as boas obras, principalmente as espirituais,
com a maior perfeição que for possível, em honra e louvor de Nossa Senhora, não
por agradar a Deus, mas também à sua gloriosíssima Mãe; porque assim se dá a
mesma Senhora por obrigada a apresentar e despachar com o mesmo Deus as
petições de seus devotos; e bem notório é o muito que importa que as petições se
apresentem a quem as há de despachar por pessoas que lhe sejam gratas, para
segurar o bom despacho. A terceira é rezar com muita devoção e atentamente o
Rosário cada dia, e bem podemos crer que esta devoção é admirável, e suma-
mente eficaz, e que veio do Céu à terra para levar as almas da terra ao Céu, como
foi revelado ao Patriarca São Domingos e a muitos outros santos; e são tantos os
exemplos desta verdade, que é quase impossível contá-los. É finalmente o Rosá-
rio da Senhora rezado com devoção um direito e certo caminho para o Céu.

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Devoção ao Arcanjo São Miguel, defensor das almas

Entre os muitos santos, que venerava a devoção da Madre Victória tinha o


primeiro lugar o Arcanjo São Miguel, por saber está cometido a este bendito Alfe-
res da Milícia Celeste o cuidado das almas do Purgatório, para alívio das quais
fazia muitas orações e sufrágios, oferecendo também por elas as obras de humil-
dade, que em serviço da Religião exercitava, por ter entendido a qualidade e rigor
das penas que elas padecem, que a serem cridas e consideradas moveriam os
mais duros corações, quanto mais aos devotos e pios; porque se padece um fogo
veementíssimo, e umas penas e tormentos tão intoleráveis, que não há pena nem
consideração humana que as possa dignamente ponderar. Assim o afirmam vários
santos, e consta de muitas revelações autênticas, entre as quais é celebérrima a
do glorioso São Patrício, quando na ilha de Hibérnia onde pregava fez abrir as en-
tranhas da terra, por permissão divina, e patentear o Purgatório a inumerável povo
que estava presente, de que resultou geral conversão dos habitantes daquela ilha.
Conheciam muito bem as benditas almas a propensão que tinha a favorecê-
las em rigorosas penas, encurtando-lhe o tempo de as padecer quanto lhe era
possível; por esta causa acudiam a ela com toda a confiança, como mostram os
casos seguintes. A alma de uma religiosa lhe apareceu uma noite junto à cama se
pode chamar a desta tão pobre, como penitente, pedindo-lhe de joelhos, e com as
mãos levantadas, lhe desse com que cobrir a sua desnudez pela qual não apare-
cia diante de Deus. Causou-lhe esta visão, ou verdadeira ou imaginária, grande
lástima, brotando em seus olhos duas fontes de lágrimas; e perguntada porque
chorava tanto, contava o sobredito com muito segredo e tanta sinceridade, que se
lhe dava crédito e juntamente pedia sufrágios por uma alma necessitada, pela qual
passou muitas noites em puras vigílias exercitando-se em estações e disciplinas,
acompanhada de outras religiosas, a quem convidava que a ajudassem nesta em-
presa, solicitando também de alguns religiosos Missas e sufrágios pela mesma
intenção.
Contava também, que indo em uma ocasião de maior silêncio da noite ao
coro, como costumava, e pondo-se em oração junto à grade ouviu um lastimoso

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gemido de certo defunto, que por chegar tarde á igreja ficara sem enterrar. Temeu
a Madre Victória, ao princípio algum tanto, porém como verdadeira caridade lança
fora todo o temor, como diz o Espírito Santo, cobrando ânimo lhe disse: “Por reve-
rência do Senhor, em cuja Igreja estamos, peço me declare quem é, e de que ne-
cessita?” Ao que respondeu o defunto: “Eu sou fulano F. (dizendo-lhe o nome,
pelo qual ela o não conheceu) e estou no Purgatório, peço-te me mandes dizer
tantas missas porque necessito muito delas”. Prometeu-lhe de assim o fazer e
continuou com a sua oração, como costumava; e no dia seguinte procurou-lhe dis-
sessem as missas, pelas quais veio depois o defunto dar-lhe os agradecimentos; e
é sem dúvida conforme o Doutor Angélico São Tomás, que diante de Deus lhe
faria bons ofícios; porque são as almas muito agradecidas, e quando chegam a
ver a divina face rogam muito pelo seus benfeitores; pois com suas orações e su-
frágio as livraram das intoleráveis penas que padeciam.
Estando uma noite dormindo em o seu aposento a ouviu a escrava, que lhe
assistia, por estar já então achacada, estar falando à meia noite, e não sabendo
com quem, assustada do grande clarão que via na cela levantou a voz, pergun-
tando-lhe: “Com quem senhora está a estas horas falando?” E dizendo-lhe a se-
nhora que se calasse e dormisse, ela sem poder sossegar, levantou a voz de tal
sorte que despertou a comunidade, na qual entrou também tal pavor que ampara-
ram umas religiosas nas celas das outras. Nessa perturbação, abrindo a Madre
Victória a porta levou a escrava para a cela de sua irmã e voltou para a sua, di-
zendo às mais religiosas que sem medo algum se tornassem a recolher. E no dia
seguinte, disse a uma religiosa que com mais instância lhe perguntava pelo su-
cesso que não sentira nela ânimo a alma de Luzia da Luz, escrava que fora sua, e
por isso lhe não falara, como intentara, portanto a encomendasse a Deus em suas
orações e lhe mandasse dizer algumas missas, de que necessitava, o que fez a
religiosa, persuadindo-se ser o aparecimento verdadeiro por ter visto na mesma
noite na sua cela uma claridade à maneira de relâmpago, e a teve por misteriosa
porque em tão santas obras, como se pediam, não podiam haver diabólicas astú-
cias.

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Eram tantas as vezes, que as benditas almas apareciam à Madre Victória
em forma visível, que já não lhe causavam medo, nem novidade, antes as contava
sem rebuço, como se semelhantes favores se concedessem a todos, como a ela
se manifestavam. Dizia que estando em um dia no coro rezando Prima, vira na
raia do sol, que por junto dela entrava uma rodinha, que andava em perpétuo mo-
vimento, e grande multidão de almas, que entrando e saindo por ela em forma de
alfinetes, se chegavam a ela como a pedir-lhe sufrágios. Por algumas vezes disse
a uma irmã que levantasse os olhos e visse subir ao Céu a alma de Madre Luzia,
mas não foi Deus servido que a irmã participasse desta alegre vista, a qual só lo-
grava a Madre Victória, recompensando-lhe Deus com este tão grande alívio as
contínuas lágrimas que chorava de compaixão pelo muito que as almas penam no
Purgatório.
Contava que, estando uma noite no coro debaixo em oração, e acabada e-
la, querendo sair para fora, a cercaram as almas de tal sorte que, por mais que
forcejava, não lhe foi possível sair, interessando as almas com este festejo, como
ela lhe chamava, a larga oração em que a fizeram estar até romper a aurora o es-
curo manto da noite. Com muita razão agradecidas, as almas festejavam a sua
benfeitora, ou por si, pelos anjos da sua guarda; porque, supostos elas, enquanto
padecem não possam ter semelhantes alívios, contudo conforme dizem muitos e
gravíssimos Doutores, é certo que os Anjos da guarda daquelas almas rogam efi-
cazmente a Deus pelos que a elas lhes fazem algum serviço, ou sufrágio, porque,
como ainda estão a seu cargo, lhes desejam alívio e consolação, o qual só podem
alcançar pelas orações dos devotos que estão nesta vida, ainda em estado de
merecer.
Estando já enferma da doença de que morreu, disse a uma religiosa: “Fula-
no veio aqui um dia pelas horas da sexta, a falar-me”; e dizendo uma delas: “Esse
não é morto há tempos?”. “Sim é, disse ela, e por isso veio”. Replicaram-lhe as
mais: “Isso, Madre, devia ser sonho”. „Sonho não, respondeu ela, porque eu vela-
va e o vi entrar por aquela porta, pela qual saiu também depois de pedir-me certas
coisas”. Em outra ocasião, mas já enferma, disse a uma religiosa: “Coitadinhas
das almas, que tanto padecem sem haver quem delas se compadeça, esteve até

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agora naquela porta uma alma em forma de uma ardente brasa, passando-lhe to-
das por cima sem haver dela compaixão; eu já não lhe posso ser boa”. Não houve
quem visse a tal brasa, porém todas creram que assim era porque ela o dizia. Tal
era o crédito, que para com todas tinha granjeado, pois nunca dissera nem a mais
leve mentira, julgando por coisa indigna de qualquer pessoa, e principalmente reli-
giosa, desviar-se da verdade. Nem foi esta a primeira vez em que se lhe represen-
tou semelhante metamorfose, pois já outras muitas antes vira pelos corredores as
almas em semelhantes formas, com que lhe explicavam o exercício de suas pe-
nas; e para que não imaginasse eram estas aparências meras ilusões, permitiu
Deus lhe imprimissem as almas santas em um membro como três dedos de fogo,
que ela mostrou a várias religiosas, dizendo-lhes como por graça: “Que não queria
nada com as suas amigas, (assim chamava as santas almas) pois a tinham caute-
rizado”. Temos por sem dúvida, que não por jactância, porque, como se tem visto,
era muito humilde a Madre Victória, mas por mais alto fim manifestava este sinal,
porque, se os cautérios de fogo se aplicam à parte sã para melhorar a enferma,
bem era que aqueles dedos de fogo se aplicassem á Madre Victória, e que ela os
manifestasse para curar o esquecimento que havia das santas almas e afervoras-
se a devoção para as socorrerem.

Favores obtidos através das almas do purgatório


Se na ocasião que fica relatada, repartiram as almas do Purgatório com a
Madre Victória alguma relíquia daquele intenso fogo que ali as atormenta, outras
muitas vezes lhe serviram de grande refrigério e consolação. Em uma noite de
muita calma, estando em fala com outra religiosa à porta da sua pobre cela, expe-
rimentou por benefício das almas o que os meninos pelo um Anjo na fornalha de
Babilônia. Sentiu mover-se o ar como se a estiveram abanando. Admirada a dita
religiosa de tão suave viração, perguntou-se donde procedia. Ao que respondeu,
com toda a sinceridade: “Isto são as minhas amigas, que me estão abanando e
defendendo da excessiva calma que faz. Oh, que consolação teria, madre, se vis-
se uma alma das que estão em estado de salvação! Neste aposento veio os dias
passados uma tão linda e resplandecente que excedia a luz do mesmo sol”. Com

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estes e outros favores visíveis se mostravam as almas e os Anjos da sua guarda,
agradecidos aos sufrágios com que a Madre Victória as aliviava em suas rigorosas
penas, e era causa de que outras religiosas se lembrassem de as socorrer com
suas orações e outras boas obras; porque o bem se consegue com a vizinhança
do bem, que se o mal tem contágio que se pega, a virtude tem luz que se comuni-
ca; e se os perversos fazem perversos, os santos também fazem santos.
Eram tão notórios no convento estes favores, que em se perdendo alguma
coisa logo recorriam à Madre Victória que a buscasse por intercessão de suas A-
migas, como se esquecessem de Santo Antonio, particular deparador de coisas
perdidas; e ela o fazia com tanta facilidade, como se verá nos casos seguintes.
Perderam as moças as chaves da cozinha, e por mais diligência que fizeram, lhes
não foi possível achá-la; recorreram à Madre Victória para as remediar, pois não
tinham outra chave para de madrugada irem preparar na cozinha o que era ne-
cessário. Ela lhes disse que se recolhessem, e que de madrugada voltassem, por-
que ele pediria às suas Amigas lha deparassem. Assim o fizeram, e voltando à
hora sobredita, bateram-lhe à porta, abriu ela e lhes deu a chave. Perguntada a-
onde a achara, respondeu que sobre a cama, porque ali lha haviam posto suas
Amigas. Semelhante a este caso foi o que sucedeu a outra escrava, procurando
outras chaves, e vendo-a muito aflita a Madre Victória lhe disse: “Ide e buscai na
vossa cozinha”. Respondeu-lhe a escrava: “senhora, já a varri toda, e muito bem,
e não as achei”. “Tornai, disse a venerável Madre, e levantai umas tigelas velhas
que lá tendes, e aí as achareis”. Assim fez a escrava, e voltou mui contente a dar-
lhe as graças pelo achado. Quando nestas miudezas se mostravam as almas
benditas tão cuidadosas, como se haviam de descuidar em coisas de maior impor-
tância?
Perdeu uma religiosa a chave da sua cela, e cansada já de buscá-la man-
dou com toda a confiança dizer à Madre Victória que pedisse às suas Amigas lhe
deparassem a sua chave. Chovia muito, quando se lhe deu o recado e respondeu
ela: “Pois com esta chave hei de mandar molhar as minhas Amigas, e meterem-se
pela lama? Deixem passar a chuva”. Daí a pouco chamou pela criada da freira e
lhe deu a chave cheia de lama, pela qual conheceu que inadvertidamente tinha

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caído na cerca, dizendo-lhe: “Tomai a chave, e ide rezar pelas minhas Amigas.
Coitadinhas, bem lhe custou irem buscá-la pela chuva”. Do sobredito ficaram to-
das admiradas porque era noite escura e muito chuvosa; e sem dar outros passos,
mais que entrar na sua casinha, deu logo a chave. O mesmo lhe sucedeu em fa-
zer que aparecesse uma galinha de uma escrava, e um frango a outra, depois de
já cansadas em buscar as ditas aves, e em se valendo da Madre Victória logo a-
pareceram. Desta prontidão com que as almas santas faziam o que lhes pedia,
bem se colige a grande familiaridade que com elas tinha e que sempre andava
delas acompanhada.
Não só para aparecerem as coisas perdidas, mas também para constar se
algumas pessoas ausentes estavam com saúde e chegariam com brevidade se
valia a Madre Victória das mesmas santas almas. Com muito grande aflição lhe
pediu uma religiosa das mais antigas que encomendasse muito a suas Amigas,
rogassem pelo bom sucesso de um navio em que vinha de Portugal um Provincial
do Carmo, pessoa muito de sua obrigação, e corria novas ruins de que se havia
perdido aquele navio; ao que respondeu: “Madre, descanse, que o navio não é
perdido e chegará brevemente a salvamento”. Assim sucedeu, porque dali a pou-
cos tempos entrou pela barra, como ela o havia dito. O mesmo sucedem em oca-
sião semelhante e com a dita religiosa, segurando-lhe, que o mesmo Provincial,
que segunda vez voltava do Reino, chegaria brevemente a salvamento e assim se
cumpriu. Célebre foi a receita que a Madre Victória deu a uma religiosa, que se lhe
queixada do pouco efeito que faziam tantos remédios aplicados por muitos cirurgi-
ões a um pretinho por espaço de dois anos, achando-se cada vez pior, ao que lhe
respondeu a Madre Victória: “Que lhe daria um remédio muito fácil, e que logo sa-
raria”. Contente lhe pediu a religiosa que lhe ensinasse tão fácil e eficaz remédio
para logo lho aplicar; então lhe disse a Madre Victória: “Mande-o batizar depois de
bem instruído (porque ainda era pagão), e logo sarará”. Assim se fez, e sem outra
alguma medicina sarou logo. Muito doutrina foi este remédio e muito parecido ao
que Cristo aplicou ao paralítico do Evangelho, a quem pela remissão dos pecados
se lhe restituiu a saúde, ensinando-nos também que devemos tirar os pecados da
alma se queremos sarar das enfermidades do corpo, pois é certo que estas são e

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foram sempre nascidas do pecado de nossos primeiros pais. Notório foi também o
vaticínio que fez da sua morte, dizendo que havia de ser a primeira que havia a-
companhar a sua Prelada (tinha falecido próximo a Madre Abadessa do Conven-
to), e replicando-lhe algumas religiosas que Deus lhe daria ainda muitos anos de
vida, respondeu afirmativamente: “Vida não, porque agora eu sou a subdita que
sigo a minha Prelada”. Cumpriu-se à risca o vaticínio; porque dentro do mesmo
ano faleceu. Dos casos referidos se deixa bem ver o quanto Deus ama as almas
do Purgatório, e o muito que se dá por bem servido dos devotos e devotas, que as
favorecem, pois lhes concede o dom de profecia, não só das coisas futuras, mas o
conhecimento das mui distantes, como se viu nos casos precedentes, para que
com estes favores se animem a continuar na devoção.

Aparições dos demônios para a distrair dos exercícios espirituais


Quanto mais Deus Nosso Senhor mostrava agradar-se das orações e exer-
cícios da Madre Victória, tanto com mais importunação intentava o comum inimigo
diverti-la; porque o maior empenho do demônio é perseguir os escolhidos, usando
de fantásticas aparências. Estando a Serva de Deus alta noite sentada à porta da
cela, rezando e fazendo assistência a uma enferma de quem curava, viu um como
fantasma de palhas, que muito acompanhado vinha do dormitório velho marchan-
do a som de marimbas, trombetas e tambores, com tal estrondo que lhe parecia
vir o dormitório abaixo; levantou-se atemorizada e fechou a porta. Mas vigiando
pelo postigo, viu que o horrível fantasma vinha a entrar por ele, e também o fe-
chou. Depois que sentiu haverem passado aqueles infernais espíritos, abriu a por-
ta e sentou-se outra vez a ela, e viu que dando volta a quadra se tornavam a reco-
lher para o dormitório velho donde haviam saído. Foi isto prognóstico das discór-
dias, que no dia seguinte houve entre algumas religiosas, das quais doendo-se a
Madre Victória, disse a uma fidedigna e antiga, que depois o contou: “Não sem
causa, Madre, andou o demônio esta noite festejando tão alegre as vésperas, por-
que por algum indício sabia o que hoje havia de suceder”. Na noite antecedente a
outra semelhante dissensão viu andar os demônios em figura de molequinhos bai-
lando, e com pandeiros, fazendo muitos trejeitos e monarias (6), as quais ela arre-

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medara com particular graça, e dizia: “Mas não há de ser nada, porque os cães
não podem morder e só podem ladrar, e como Senhor Soberano só Deus pode
tudo”.
É sem dúvida que as religiosas com sua discórdias, entristecendo os Anjos
de paz, “joyã” (7) a bem-aventurança que o Filho de Deus trouxe à terra e deixou
por morgado a seus discípulos, alegram aos demônios, que as fomentam, como
autores de todas, afugentam a Cristo de sua companhia, destroem a Religião,
porque cessa o culto e reverência a Deus; pois como diz o Evangelista São João,
enquanto duraram entre os Anjos as discórdias, que Lúcifer e seus sequazes urdi-
ram, nem os mesmos Anjos bons louvavam a Deus, porque até o mesmo céu se
turbara com as discórdias que causam os demônios, e só eles se alegram pelos
muitos e gravíssimos danos de que são causa.
Andando fora de horas correndo a Via-Sacra, e estando já na sétima cruz,
viu que um disforme pato, estendendo as asas e batendo com elas, fazia o som de
um tosco e dissonante chocalho, e atravessando com repetidos vôos o corredor
lhe passava por cima da cabeça, como que queria nela pousar. Não obstante po-
rém o grande pavor que lhe causou tão inopinada e temerosa vista, continuou as-
sim esta como outras vezes a sua costumada adoração. Contou também que indo
uma noite correndo a mesma Via-Sacra, como costumava, e olhando de uma va-
randa para a clausura baixa, viu nela uma como figura vestida de palhas, com um
fogareiro aceso à cabeça, e prosseguindo no seu devoto exercício, ao passar por
uma janela conventual a vira ir seguindo-lhe os passos pelo quintal, e chegando à
oitava cruz, querendo prostrar-se em terra, achara estirado no chão um velho ne-
gro, que ocupava todo o lugar em que havia fazer a adoração, de que ficou muito
sobressaltada e afligida, e recorrendo a Deus foi o mesmo Senhor servido dar-lhe
alento e valor pare vencer tão importuno e poderoso inimigo. Bem se pareceu a
Madre Victória nestes casos com Santo Antão Abade, zombando dos mesmos
medos como ele fazia, por conhecer o pouco que pode o demônio com todas as
suas astúcias contra uma alma que está fortalecida com a graça divina.
Como Deus queria que a Madre Victória vencendo o demônio ficasse sem-
pre vitoriosa, permitia que o inimigo a desinquietasse com noturnos fantasmas, de

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que ela já fazia o pouco caso, que eles merecem, como lhe sucedeu quando indo
com outra religiosa correndo a Via-Sacra uma noite, ouviram estar lavando e vi-
ram um vulto com a cabeça coberta; e tendo a religiosa muito grande susto, a Ma-
dre Victória a animou, e a recolheu na sua cela, e no dia seguinte souberam da
Provisora que não tinha ficado água na cozinha e a porta estava fechada. Tam-
bém não bastou para impedir-lhe a sua devoção quando viu na grade de ferro de
uma janela conventual andarem os demônios em figura de vultos negros fazendo
grande estrondo nos ferros, nem quando em figura de um disforme etíope, com
horrendo aspecto, intentava amedrontá-la, ora metendo-se no coro debaixo do
banco das cantoras e levantando-o no ar como quem queria lançá-lo sobre a ca-
beça, ora revolvendo os livros que estavam no coro, só a fim de divertir da oração
em que estava, mas a Madre Victória, como mulher forte, sempre triunfando, per-
severava constante no exercício das virtudes, sem deixar nem interpolar a oração,
a disciplina, e outras semelhantes mortificações.

Consolações espirituais e obras de caridade


Muito conveniente era que depois de tantas batalhas, tantos sustos e tantos
horrores, se cantasse a Vitória e celebrasse o triunfo; porque Deus não costuma
dilatar a remuneração do serviço que se faz por seu amor, e assim foi servido que
uma noite estando a Madre Victória recolhida na sua pobre cela, e deitada a tomar
repouso, ouvisse cantar no coro os Salmos de Prima, com uma tão suave melodia
e angélica toada que quase a transportavam e alheavam de si mesma, e querendo
gozar de perto tão celestial música, se levantou e foi para o coro; mas logo se ar-
rependeu, porque chegando a ela nem viu quem cantava nem ouviu mais a celes-
tial música. Algumas vezes ouvia cantar Matinas fora de horas no coro, que lhe
ficava vizinho à sua cela. Em certa noite lhe entrou uma religiosa pela cela dentro
dizendo-lhe: “Madre, vamos para o coro rezar Matinas, que é já madrugada”; dan-
do o aviso saiu para fora; levantou-se a Madre Victória, e querendo sair achou a
porta fechada, e buscando a chave que tinha debaixo da cabeceira, aonde a cos-
tumava sempre pôr, a achou, abriu a porta, caminhou para o coro, que achou soli-
tário e sem a religiosa que a tinha chamado; a qual adoeceu logo, e daí a poucos

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dias passou como é de crer a melhor vida, aonde os gostos são verdadeiros; por-
que os não altera pena alguma, e os desta vida não são gostos perfeitos, porque a
pena que sucede os diminui ou de todo os acaba e priva da perfeição do gosto.
Bem merecia também a Madre Victória estes favores do céu pela suma per-
feição com que guardava os três votos, com que na terra se tinha crucificado co-
mo com três cravos na cruz da Religião. Foi extremada na pobreza, e assim se
verificou no seu comer, vestir e descansar. No que toca ao comer já temos dito,
ainda que pouco, de sua parcimônia e abstinência. De ordinário vestia sempre a
modéstia Religiosa e recomendado, e nunca teve mais de um hábito. O seu enxo-
val de roupa branca não arribava a duas camisas de fio grosseiro, sendo que nas
matérias do espírito fiava a Madre Victória mui delgado. Viveu quase vinte anos
em uma celazinha, que ficava ao lado do coro, detrás de uma escada, que tinha
de comprido doze palmos e meio, e de largo seis somente. Limitado aposento pa-
ra tão grande espírito, mas muito próprio para tão profunda humildade. Desta ce-
lazinha se não tiraria nunca se não fora preciso aquele lugar para se acabar num
lanço do dormitório novo em que pediu lugar, que se lhe concedeu para fazer a
capelinha do Senhor dos Passos, junto da qual pediu também uma celazinha para
que ficando-lhe vizinha melhor cuidasse do asseio e limpeza dela, provendo-a do
que lhe fosse necessário para o seu ornato. Servia-lhe de cama uma pequena
banca de três palmos de largura, ajustada no comprimento à sua estatura, com
um pequeno lençol de algodão fiado por suas próprias mãos, e uma grosseira
manta com que se reparava do frio, descansando a cabeça em um pequeno mas
duro cepo, lembrando-se de que seu Divino Esposo não teve aonde reclinasse a
sua.
Era a sua guarda roupa um balaio, em que debaixo da pobre cama guarda-
va o pouco ou nada que possuía, porque tudo o que em algum tempo tivera, ven-
deu para dar aos pobres e fazer a capelinha, em cujo ornato empregava a maior
parte do que granjeava com o trabalho de suas curiosas mãos. Viveu, enfim, e
morreu tão pobre que, dizendo-lhe à hora da morte a Prelada que se desapropri-
asse do que tinha, respondeu que não tinha de que, se não fosse das chaves da
capelinha e da cela, servindo esta resposta de grande confusão às religiosas que,

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deixando o mundo e as esperanças vãs e caducas, do que nele podiam lograr, ao
depois se deixam cativar de coisinhas de pouco valor para a estimação, posto que
de muito peso para a consciência por serem contra o voto da pobreza que profes-
sam. Ó, se todas imitassem este raro exemplo da Senhora e Santa Pobreza, como
lhe chamava o mais pobre dos pobres o seráfico Padre São Francisco.
A virtude da castidade é tão agradável a Deus e aformoseia tanto aos que a
guardam, que os faz, em certo modo, semelhantes aos Anjos; porque, como diz
São Jerônimo, viver em carne e sem carne mais é próprio da natureza angélica do
que humana. E Santo Ambrósio diz que, ainda que esta virtude não é tão segura
nos homens como nos Anjos, é contudo mais gloriosas naqueles; porque estes
vivem sem carne e não tem contrário que lhes faça guerra, e aqueles vivendo em
carne triunfam dela. E porque a Madre Victória tinha entendido a verdadeira dou-
trina destes Santos, era o seu maior cuidado mortificar todos os seus sentidos,
para que não entrasse por eles cousa que despertasse nela algum mau pensa-
mento ou feia imaginação, adquirindo nesta forma o subido quilate da pureza, que
com razão se podia a sua chamar angélica.
Rogando-lhe ao glorioso São Francisco os seus religiosos, que lhes ensi-
nasse qual era a perfeita obediência, respondeu que um corpo morto a tinha, por-
que sem resistência se deixava levar para onde queriam, sem queixar-se deste ou
daquele lugar, e seguindo a Madre Victória a direção que inculca esta admirável
resposta do seu Santo Patriarca, foi na obediência exatíssima, fazendo com muita
presteza e alegria espiritual tudo o que lhe mandavam, por ter por certo que não
pode uma alma religiosa achar descanso senão na humilde sujeição por Cristo e
na renúncia da própria vontade, por ser esta a que nos faz mais cruel guerra, e o
verdugo que nos atormenta, não só nesta vida mas também na outra, e a que se
atreve a fomentar bandos contínuos contra Deus e contra os próximos; porém esta
obediente Serva do Senhor resignava a sua vontade não só aos Prelados e con-
fessores, senão também aos iguais, e o que mais é aos inferiores, quais eram as
servas e escravas do Convento, como se deixou ver nos casos seguintes. Trazen-
do-lhe em certa ocasião umas frutas, a que os brasis chamam araçá, que por a-
greste são de pouca estimação e menos valia, lhe mandou o confessor que fosse

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pedir licença à Prelada para as receber, o que ela logo fez; vencendo alguma re-
pugnância, que sentia, por não estar em uso pedir-se licença para semelhantes
miudezas. Mas se a desobediência de nossos primeiros Pais tornou tão amarga e
mortal para o gênero humano a fruta no Paraíso, comidos agora com obediência
os araçás, seriam sem dúvida não só gostosos, mas sadios. Com a mesma pron-
tidão lhe obedeceu quando lhe ordenou que fizesse um quase inventário do pouco
que possuía, pondo nele os livrinhos, cilícios e disciplinas, e o levasse á Prelada
para que com sua firma lhe ratificasse o uso de tudo. Desta ação ficou a Prelada
compungida, admirando nela o exercício de tantas virtudes, principalmente da po-
breza e da pontual obediência, na qual imitou a Madre Victória aos Religiosos do
célebre capítulo chamado das Esteiras (por serem as celas feitas destas fracas
paredes), aos quais mandou seu Padre São Francisco que lhe apresentassem
quantos instrumentos tinham das suas mortificações, e obedecendo pontualmente
se ajuntaram mais de quinhentos entre cilícios, cadeias e disciplinas de ferro. Tal
era o fervor daqueles santos e penitentes frades da primeira religião franciscana.
Passando certos missionários pelo Convento, se confessou a Madre Victó-
ria com um deles, o qual lhe deu de penitência que dissesse à comunidade em
voz alta: “Minhas irmãs, em sou santa, tomara vossas reverências ser como eu
sou”. A não ser o espírito de obediência de Victória tão alentado, podia escusar-
se de tão extraordinária e indiscreta penitência; nem é de crer que o confessor lhe
desse, se não entendera que havia nela valor para exercer tão heróico ato de
mortificação exterior. Duas vezes pois, como lhe era mandado, uma no coro e ou-
tra no refeitório repetiu o exótico pregão, com grandíssima edificação das que a
ouviram, e nas rubicundas cores do rosto leram o muito que lhes custava a tal o-
bediência, tanto mais meritória quanto mais custosa a sua profundíssima humilda-
de.
As sobreditas virtudes e outras muitas atava a Madre Victória com o fio de
ouro da Caridade, e assim como ele é o mais precioso dos metais, é ela a mais
perfeita das virtudes, e vínculo de todas, como lhe chama o Apóstolo São Paulo,
e sem ela não há e nem pode haver virtude sólida e verdadeira. Mal se pode ex-
plicar a ardente caridade que tinha para com Deus, em cujo amor ardia o seu a-

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mante coração; mas bem pode inferir-se da pontual observância dos divinos pre-
ceitos, e dos da Ordem, e fazer tudo o que fosse mais agradável ao mesmo Se-
nhor, desterrando de si todas as paixões humanas, pois na infalível guarda dos
mandamentos consiste o verdadeiro amor de Deus, como repetidas vezes lemos
no Sagrado Evangelho. E para que em nenhum tempo se apague em o seu peito
este fogo de amor divino, o acendia cada dia mais na frágua da oração e medita-
ção, em que era tão contínua como temos referido; e deste exercício se lhe forma-
ram muitas vezes nos joelhos empolas de sangue, as quais cortava com a tesoura
e depois de feitas em chagas as esfregava com sal e limão para sararem, como
dizia ás que a viam impossibilitada para as adorações externas, mostrando nesta
moléstia que padecia por Deus, o muito que estava adiantada no seu divino amor,
pois o padecer é correlativo do amar, como em seus escritos, e muito melhor em
seu exemplo, nos ensinou a doutíssima e insigne Madre de tão numerosa família,
a amante virgem Santa Teresa de Jesus, que tomou aquele glorioso timbre: Ou
padecer ou morrer.
Não é possível amar muito a Deus e não amar também ao próximo; porque
nestes dois mandamentos se funda a lei divina, como nos diz Cristo Senhor Nos-
so, e por guardar pontualmente a Madre Victória estes divinos preceitos amava ao
próximo como a si mesma; e porque é mais meritória a caridade que se exercita
com as enfermas, por serem as enfermidades as que mais entibiam o fervor, e
costumam causar tédio ainda aos maiores amigos, era nela a maior atenção com
que as servia. Carregava muitas vezes cântaros de água para a enfermaria, varri-
a-lhe as celas, fazia-lhe as camas e tudo o mais de que necessitavam, e não se
satisfazendo com servir as religiosas também se estendia a sua grande caridade
às servas. Sucedeu adoecer uma preta da comunidade, que estava dentro do
Convento, de um rendimento dos peitos, lançando muito sangue pela boca, de
que lhe resultou uma febre ética com escarros fétidos e asquerosos, para remédio
da qual enfermidade mandaram os médicos dar-lhe azougue. A Madre Victória lhe
foi assistir, e pela doença ser ruim e pegadiça e pelo nojo que causava, ordena-
ram que a tirasse de sua cela em que estava, e pela apartarem das religiosas pu-
seram a dita preta no dormitório velho, em uma casinha sem porta, a qual se fe-

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chava de noite com uma esteira. Neste triste e quase desamparado retiro a a-
companhou sempre a Madre Victória, tratando da enferma com o maior cuidado,
fazendo-lhe ela só todo o serviço, porque ela só lhe assistia, sofrendo as imperti-
nências do azougue e de noite ficava com ela só, velando, e sendo o lugar medo-
nho, porque além de ser solitário de noite, ficava junto à igreja e sobre o cemitério
das defuntas; mas nada atemorizava aquele caritativo coração, e antes se mostra-
va mui gozosa. Admiradas algumas religiosas, que com ela tinham mais confian-
ça, lhe perguntaram como se atrevia a ficar ali tão só, estando a enferma tão peri-
gosa? Ao que ela respondia, sorrindo-se: “Não está só quem está com suas Ami-
gas, e tão boas Amigas, que sempre me acompanham e fazem tudo quanto lhes
eu peço”. Porque a doença era de morte não escapou a preta, e por incurável foi
para fora do Convento, mas nem por isso ficou livre a Madre Victória do cuidado,
porque a mandou para a casa de seus pais, onde morreu com sinais mui próprios
de sua salvação, como quem tinha logrado a doutrina, educação e exemplo da
Madre Victória.
Também é digno de memória o que lhe sucedeu com outra serva parda,
que estava em sua companhia no Convento, e de quem as religiosas tinham boa
opinião por ser bem inclinada e boa cristã. Esta endoideceu de tal sorte, que de-
pois de vários remédios os médicos a julgaram por incurável, e às vezes estava
tão furiosa que era preciso prendê-la fortemente. Este terrível lhe durou quase
seis meses, e em todo este tempo lhe assistiu a Madre Victória com o maior cui-
dado e desvelo que se pode imaginar, e para estar calada de noite vigiava ela,
afagando-a e obrigando-a com força, e servindo-a de tudo; mas não podendo ven-
cê-la a que comesse, pela inédia, chegou a tal estado que lhe deram o Sacramen-
to da Unção; sendo que a Madre Victória nunca desconfiou da sua vida, dizendo
sempre: “Que Deus era grande, e que ainda lhe podia restituir o juízo”. Estando
nestes perigosos termos, eis que de repente começar a gritar a enferma com
grande ânsia e continuação, dizendo que queria ir para casa de sua senhora D.
Luzia. Era a mãe da Madre Victória, e vendo que teimosa loucura não cessava,
expulsaram a enferma da clausura, não só por consentimento mas por conselho

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da Serva de Deus, que sempre perseverou na esperança de que brevemente ha-
via de voltar livre de tão terrível achaque.
Nunca Deus falta a quem nele fielmente espera, e se viu nesta ocasião,
porque passados oitos dias chegou a enferma totalmente sã à portaria, pedindo
com toda instância que a recolhessem porque estava em seu perfeito juízo, mas
atendendo ao pouco tempo passado e às muitas loucuras que havia dito e feito,
ninguém lhe dava crédito. Tal foi porém a instante importunação da que tinha sido
enferma, dizendo que dali se não havia de apartar ainda que morresse; e tão
grande era a autoridade da Madre Victória para com os Prelados, que bastou afir-
mar que não tornaria a perder o juízo para que eles lhe concedessem licença para
entrar outra vez, dispensando no direito que proíbe nas educandas e servas se-
melhante regresso, salvo se quiserem entrar para freiras, atendendo também a ser
tão notória a causa da sua expulsão. Tanto que a dita parda se viu dentro da
clausura, como sabia o caminho, se foi logo ao coro dar graças a Deus, e muito
em seu juízo, com admiração de todos e dos médicos, e nunca mais lhe repetiu o
tal achaque; e dizia a Madre Victória: “Tudo isto são milagres de Nosso Senhor
dos Passos por intercessão de minhas Amigas”. E pudera sem falsa jactância a-
plicar também esta maravilha à sua boa fé e firme confiança, com que se persua-
diu sempre a que Deus a havia de melhorar por serem semelhantes maravilhas
pratos legítimos das sobreditas virtudes, como nos ensina o Sagrado Evangelho.

Continuam as obras de caridade


Com outros casos semelhantes confirmou Deus a grande caridade da sua
Serva. Deram bexigas em duas pretinhas, uma da Madre Victória e outra de sua
irmã, e por ser mal mui contagioso, principalmente no Brasil, requereram as religi-
osas que se lançassem fora da clausura as ditas enfermas para evitar tão mani-
festo risco, visto como a experiência o tinha mostrado em ocasião semelhante.
Porém, dizendo a Madre Victória: “Que deixassem estar as negrinhas na sua cela,
que ela as curaria, e estivessem sem medo porque da dita cela não haviam sair as
bexigas para fora”. Assim o assegurou e disse a Madre Victória; e bastou que as-
sim o dissesse para todas lhe darem crédito e estarem confiadas na sua promes-

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sa, tanto assim que dando as bexigas em outra pretinha de uma religiosa, lha le-
vou para a cela , dizendo-lhe: “Madre, já que as suas negrinhas pegaram bexiga à
minha, aqui lha entrego para curar também dela”; ao que a Serva de Deus res-
pondeu: “Com muito boa vontade, Madre, deixe-a ficar, que igualmente trataremos
dela”. E assim o fez com a sua costumada caridade e paciência; e todas as três
escaparam, e não tocaram as bexigas mais em pessoa alguma, o que se atribuiu
à particular mercê de Deus e às orações da Madre Victória, que curava os enfer-
mos mais com orações do que com outros remédios: porque os divinos sempre
são mais eficazes que os humanos.
Não só com as enfermas, mas também com as que tinham saúde se exerci-
tava a sua grande caridade; e sendo alheia dos cargos da Religião aceitou por
duas vezes o de Provisora, assim porque a obediência o dispunha, e ela não tinha
vontade própria como por entender que no tal ofício lhe não faltariam ocasiões de
exercitar as virtudes, e compadecendo-se das servas da cozinha as acompanhava
e ajudava no trabalho, como se fora qualquer delas. Indo uma madrugada para a
cozinha lhe disseram as servas que não havia lenha para o fogo, ao que ela res-
pondeu: “Que Deus proveria, e que em se abrindo a clausura achariam à porta
alguma lenha”. Correspondeu o sucesso à promessa, porque em chegando ao
dito lugar acharam dois feixes, e carregando ela um e uma das moças outro, os
levaram para a cozinha com tenção de o pagar; porém por mais diligências que se
fizeram se não pôde saber quem era o dono da milagrosa lenha, com que o Su-
premo Provisor de todo o criado houve por bem remediar a falta a esta caritativa
Provisora do Convento.
Era esfera limitada o âmbito do Convento para a intensa caridade desta
grande Serva de Deus, e por esta causa os seus efeitos brotavam fora da clausura
favorecendo aos pobres com quanto lhe era possível, e quando era Porteira, ou
Roleira, lhes tirava esmolas no refeitório comum e pelas celas das religiosas, e as
repartia pelos pobres necessitados que a estavam esperando, os quais agradeci-
dos do modo que podiam a intitulavam com o decoroso nome de sua esmoler.
Passando a caridade da Madre Victória ainda as raias da mesma vida, também
abrangia aos mortos. Se tinha notícia que algum era tão desamparado, que até a

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sepultura, que a todos os mortais sobeja, lhe faltava, socorria com tudo aquilo que
para decente enterro era necessário. E se sucedia lançarem algum defunto no
adro, mandava buscar quem lhe abrisse a cova e a pagava à sua custa, imitando
nestas ações, no modo que lhe era possível, ao Santo Tobias, a quem elas fize-
ram tão célebre na Sagrada Escritura. Foi finalmente tão caritativa para os pobres,
que não tendo já que lhes dar ultimamente lhe entregou a banca que lhe servia de
leito, e a mantazinha com que se cobria, ficando por esta causa dormindo no chão
sobre uma esteira, coberta com o lençol de algodão; e este foi o motivo porque
desejando tanto morrer na sua cela, junto à capelinha do Senhor dos Passos, o
não pôde conseguir por não ter onde encostar-se, e foi preciso levarem-na para a
cela de sua irmã, onde faleceu. Parecendo esta mudança acaso não careceu de
mistério; porque tendo a Madre Victória demitido de si com tanto desapego tudo
quanto tinha; pois propriedade não era possível tendo feito voto de pobreza, era
bom que sem o uso da cela tivesse e pudesse com verdade dizer, como Jó, seu
cousa alguma estreei no mundo e sem cousa alguma me despeço dele.

Última enfermidade da Serva de Deus, a Madre Victória


Das cousas terríveis, diz Aristóteles, é a morte a mais terrível de todas, e
por esta causa nos amarga tanto a sua memória, porque com ela se acabam os
passatempos e gostos desta vida caduca e transitória, e se dá princípio a uma
eternidade que há de durar para sempre, para sempre, para sempre. Estão contu-
do as almas puras e justas tão longe de a temerem, que antes a desejam como
preciosa aos olhos de Deus, com a qual compram a vida eterna, mas os pecado-
res com razão temem a sua morte péssima, começando por ela a eternidade das
penas que por sua ruim vida têm merecido. Justamente trazia sempre na memória
e repetia muitas vezes um famoso anacoreta aquelas palavras, dignas de todos as
trazerem sempre no sentido: “Ó momento de que depende uma eternidade de gló-
ria, ou pena!” Sem dúvida, que guiada destas considerações, dizia a Madre Victó-
ria: “Que não havia cousa melhor que a morte, porque dava fim aos males desta
vida e princípio aos bens da outra”. E se lhe replicavam: “E não serão os males da
outra que por nossas culpas merecemos?” Respondia: “Ainda então é de estimar

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porque com ela deixamos finalmente de ofender a Deus e satisfazemos a sua di-
vina justiça”. Resposta certamente digna de um coração tão abrasado no amor de
Deus como era o seu, que com estas notáveis sentenças explicava o muito que
desejava ver-se livre do penoso cárcere, como dizia São Paulo, do corpo e lograr
os braços de seu Divino Esposo.
Ouviu Deus as vozes desta sua amada esposa e quis satisfazer aos seus
merecidos desejos, e para que os seus merecimentos fossem mais avultados e
conforme a eles a coroa da glória; veio esta Serva de Deus a cair em luta tão peri-
gosa, como prolongada doença, cuja tolerância é aos divinos olhos de maior esti-
ma que todas as penalidades que escolhe a eleição própria. Foi a enfermidade de
dois contínuos fluxos que lhe duraram seis anos, o de sangue obedecendo aos
remédios cessou finalmente, não para sua melhora, como se esperava, mas para
se lhe formar por todo o ano seguinte, que era já o sétimo de suas dores, uma
grande apostema interior. Como outro Jó se cobria de impaciente sarna, muito
semelhante a lepra, a qual coçando-a de dia e de noite sem sossego a punha em
uma viva chaga. Sobrevieram-lhe também uns frunchos (8) malignos, a que cha-
mam antrazes, em cuja cura se viu mais a sua grande paciência e sofrimento, pois
havendo-se o cirurgião na cura tão sem piedade, como pedia a arte, não se lhe
ouviu nem uma só palavra de queixa, colhendo desta grandíssima paciência os
frutos que ela costuma dar, não sendo o menor a posse da própria alma, como
nos ensina Cristo Senhor Nosso.
Em dia da gloriosa Ascensão do Senhor, em que foi quase arrastando-se a
ouvir missa, se descobriu a perigosa e mortal enfermidade da apostema, que até
então se ocultava, e entristecendo-se muito as religiosas pela pouca esperança de
vida que lhe davam os médicos, ela se alegrou extremosamente, vendo que se
chegava o tempo de ir para a casa do Senhor, como cantava Davi, e se livrava
das misérias e trabalhos desta cansada vida temporal, que só tem de bem quando
se deixa para ir lograr a eterna. Nesta alegria perseverou enquanto lhe durou a
enfermidade, dando por esta causa ao médico tantas ocasiões de admiração,
quantas eram as vezes que a visitava, considerando a muita abundância com que
o Espírito Santo atinha enriquecido a esta mulher forte com seus divinos frutos,

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quais são a paciência e alegria com que faria aos seus escolhidos servos fiéis.
Sem melindre algum tomava os medicamentos que lhe aplicavam, por mais re-
pugnantes que fossem à natureza, em reverência das Chagas de Cristo, com cuja
memória os suavizava todos, e vendo as religiosas que obrava com eles, imagina-
vam que escaparia; às quais ela disse: “Não se enganem minhas irmãs, que este
mal é de morte e o remédio é só morrer”. Quem nesta forma e com esta confiança
falava na morte bem mostrava que lhe não tinha horror. Se o claro conhecimento
da morte é tão poderoso e eficaz que os grandes pecadores volta em justos, que
faria a uma alma tão justificada como a da Madre Victória? Era inexorável o fastio
que padecia e totalmente lhe impedia de tomar o sustento preciso, e quando a
importunavam que comesse alguma cousa para se alimentar, respondia: “Esta
boca não apetece senão a terra, em que cedo se há de tornar”. Todo o seu fastio
era das cousas da terra; porque todo o seu apetite tinha posto nas delícias do céu,
que somente devem ser desejadas e apetecidas.
Dia do Corpo de Deus disse à Prelada que se queria confessar geralmente
e comungar para ganhar o Jubileu das horas, e assim o fez com edificação da
comunidade. Tendo-se também preparado a véspera para comungar no dia se-
guinte, que era dedicado à solene comemoração de Nossa Senhora do Monte do
Carmo, as religiosas as viram tão ansiada das onze para a meia-noite, que pare-
cendo-lhes estava nos últimos períodos da vida, chamaram a Abadessa, a qual
perguntou-lhe se queria receber o Santíssimo Sacramento por viático; que pela
manhã o receberia. Instaram as religiosas que o recebesse logo, porque talvez
não chegaria ao dia seguinte, ao que ela respondeu: “Que haveria querer Deus
que chegasse”. Assim o desejava para solenizar nas últimas despedidas do mun-
do a festa da Senhora, a quem sempre tivera uma afetuosa e cordial devoção.
Mas, como as religiosas a vissem cada vez mais ansiada, lhe disse a Abadessa
que convinha sem mais demora tomar logo o viático porque estava em evidente
perigo, e que sendo já depois de meia-noite bem podia satisfazer a devoção que
tinha de comungar no dia da Senhora. Obedeceu logo, sem réplica alguma, como
quem bem sabia que na pronta obediência consiste o maior merecimento, pois
aceita Deus com mais agrado um ato obediente do que muitos sacrifícios. Chega-

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do o Santíssimo Sacramento, o recebeu por viático, que juntamente é caminho,,
verdade e vida dos peregrinos, com terníssima devoção, banhada em rios de lá-
grimas, e com muitos e repetidos atos de Fé, Esperança e Caridade, e desfazen-
do-se em fervorosas ternuras; que como o seu coração andava tão acostumado a
semelhantes atos, era fácil derreter-se tendo tão próximo o fogo do amor divino
sacramentado que com ela se unia.
Pediu logo a Santa Unção com grande alegria e fortaleza de ânimo, expe-
dindo ela mesma as mãos para lhas ungirem. A uma religiosa que lhe ficava mais
perto, disse: “Eis aqui o que vi por sonhos, porque sonhava alguns dias antes que
recebia este salutífero sacramento, assistida das religiosas, que ao tempo da un-
ção recitavam os Salmos Penitenciais”. Para este último sacramento se preparou
com a limpeza não só da alma, com muitos atos fervorosos de contrição e de a-
mor de Deus, mas também do corpo, pedindo lhe lavassem os pés; e depois de
lavar ela mesma as mãos e o rosto, encomendou às circunstantes preparassem
um pouco de algodão para lhe administrarem o sacramento, o qual por então se
lhe não concedeu, por julgar o médico não era ainda tempo, porém se lhe adminis-
trou em tempo, que ela estava ainda em seu perfeito juízo, não esperando, como
erradamente acontece a muitos, que lhe faltassem os sentidos; porque ainda que
os Sacramentos obrem por si mesmo, contudo nos adultos é bem que ajude a
própria disposição do recipiente, porque sem ela não obram eles.
Com a bênção e perdão, pediu à Prelada de esmola a sepultura, encomen-
dando-lhe que se não tratasse do caixão em que a enterrar; que lhe deixasse mo-
er e quebrar aqueles ossos, que nunca souberam servir a Deus como deviam, e
que depois de expirar lhe mandasse tirar uma esmola pelas religiosas do mais
velho hábito e pior que tivessem para se amortalhar, e que não lhe mandassem
ornar a cabeça com capelo de flores e palma na mão, mas que esta suprisse um
pequeno olho de cana e aquela uma coroa de espinhos. Pios e piíssimos são es-
tes legados, e muito semelhantes aos que deixou em seu solene testamento o
glorioso Patriarca de Alexandria, São João, por antonomásia chamado o Esmoler.
Assim testam (9) os pobres de espírito e humildes de coração. Pediu-lhe também
que a mandasse levar à sepultura pelas moças da casa. Respondeu-lhe a Prela-

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da, mais com lágrimas que com palavras, faria quanto estivesse em sua mão por
lhe fazer a vontade. Perguntaram-lhe ao depois algumas religiosas porque razão
pedia à Prelada o que não podia fazer, nem era bem que fizesse; como seria se
mandasse que a levassem à sepultura as moças da casa, se elas não podiam en-
trar na comunidade! A isto respondeu, em presença de muitas religiosas: “Que se
a não carregassem as moças, de nenhum outro modo a poderiam levar à sepultu-
ra”. Resposta que por então se avaliou em pouco, mas brevemente lhes mostrou
a experiência que fora dada com superior ilustração, porque os Servos de Deus,
até quando parece que falam simplesmente profetizam; e quer o mesmo Senhor
que as suas palavras sejam estimadas como profecias.
Querendo as religiosas fazer em vida a esmola que a Madre Victória lhes
pedia para depois da morte, foi cada uma à sua cela e lhe traziam, uma a camisa,
outra o hábito, esta o véu, aquela a toalha, aquela outra o manto, e finalmente ou-
tra a fita para lhe atarem as mãos e os pés, entregando-lhe a ela mesma, que a-
ceitava estas esmolas mui humilde e agradecida, fazendo depositária de tudo a
uma irmã religiosa, a quem tinha pedido por caridade a amortalhasse; procurando
morrer tão pobre de tudo, que até os últimos ofícios, que por piedade cristã se fa-
zem ao corpo já sem alma, pedia de esmola.

Últimas ações e último trânsito da Serva de Deus, a Madre Victória


Em uma quinta-feira, dois dias depois da sobredita festa de Nossa Senhora,
tornou por sua devoção a refazer-se com o escolhido e Angélico Pão dos Escolhi-
dos, e passado algum espaço de tempo, e acabada a missa em que comungou,
pediu-lhe trouxessem alguma colação (10), a qual tomou com tanta alegria que
bem se coligiu dela a tinha visitado a saúde por não faltar a Serva de Deus com a
política, que de ordinário usa com os que estão às portas da morte. Sobreveio-lhe
depois uma modorra que lhe durou até às sete horas da noite, em que conservou
sempre o uso dos sentidos sem jamais delirar; não permitindo Deus que nem ain-
da por breve espaço delirasse um entendimento, que em toda a navegação de sua
vida se tinha guiado pelo norte fixo de seu Divino amor. Das sete horas por diante
começou a entrar em ânsias, entre as quais desejava como sequiosa serva do

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amor Divino, aparecer diante de Deus para lhe refrigerar a sede com aquela delei-
tosa torrente, que sem fim participa aos bem-aventurados. Perguntou-lhe várias
vezes uma religiosa, a quem encomendara lhe lesse a Protestação da Fé, a Via-
Sacra e Paixão do Senhor, pelas horas em que estavam, respondia prontamente,
significando-as pelos Passos da Paixão em que cada uma delas costumava medi-
tar, tanto as recomendava à memória pelo largo e costume uso, que deste santo e
útil exercício tinha; porque os bons sempre lembram, e os maus e ruins tarde se
perdem; e ninguém se persuada que poderá facilmente acabar bem, e como cris-
tão, se tem vivido mal como gentio.
Assim angustiada e aflita chegou a Sexta-feira em que voltando o médico
lhe disse que se não cansasse mais em aplicar-lhe os remédios da arte, que nada
valem se Deus ordena o contrário; e lhe agradeceu muito com demonstrações de
humilde o cuidado com que até então lhe tinha assistido, e o despediu com sua
costumada afabilidade, que nesta ocasião enterneceu não menos ao médico que
as religiosas assistentes, e se as despedidas ainda que sejam com esperanças de
voltar a quem se aparta e fica, tanto magoam, que farão aquelas que são para
nunca mais. Sendo quase meio dia perguntou-lhe a caritativa enfermeira assisten-
te pela hora: “Estamos – respondeu -,na em que foi o Senhor crucificado”. Pergun-
tou-lhe mais se seria aquela a sua hora! Respondeu: “Que não, porque lhe restava
ainda que padecer nesta vida”. Não parou aqui a curiosidade da assistente, por-
que desejava saber se tinha alguma revelação da hora de seu trânsito. E assim
lhe perguntou por último, não sem cavilação, se seria a hora de noa! Esperando
acertaria, ou anuindo ou assinalando incautamente outra hora. Porém não falta-
ram á enferma termos e palavras com que satisfizesse a pergunta simulada, dei-
xando na mesma dúvida a quem a fazia e respondeu somente que: “Deus o sabi-
a”. Se o Rei da Glória, como cremos, lhe tinha manifestado este segredo, mostrou
esta virgem em encobri-lo, que era das Prudentes e seguia o conselho do Espírito
Santo, que tanto louva a quem sabe guardar os segredos do Rei.
Eram afetuosas e ardentes as jaculatórias que por este tempo enviava ao
céu, como se com estas violentas e amorosas lanças o quisesse conquistar de
novo, e repetia muitas vezes com Davi: “Pretiosa in conspectu Domini mors Sanc-

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torum ejus” Usava mui freqüente das palavras com que o cego mendigo implorou
a misericórdia do Senhor do mundo, apelidando-o não por Filho de Davi, como o
cego, mas por Filho de Maria, como ensinara às religiosas deste convento um
douto e espiritual Padre da Companhia, significando-lhes o quanto seriam aceitas
ao Filho pelos louvores da Mãe que em si continham. Destas usava também agora
a devota moribunda para pedir ao Salvador perdão de suas culpas, dizendo-lhe
repetidas vezes: “Jesus, Filho de Maria, havei misericórdia de mim”. Com temor
pedia perdão, e tão confiadamente esperava o agrado do Filho por intercessão da
Mãe, pois em seu puríssimo Ventre lhe dera com a humanidade o amor e compai-
xão dos pecadores esta Santíssima Senhora e Mãe de Piedade. Também pediu
logo perdão a toda a Comunidade da pouca edificação e menos exemplo com que
nela vivera. Porque pagam os justos lá no Céu os empenhos com que foram cá na
terra, se ofereceu para o que prestasse diante de Deus, de cuja beatífica vista es-
perava gozar por sua infinita misericórdia, mas não por seus merecimentos, por-
que as almas justas então se fazem mais dignas da vista de Deus quando se jul-
gam e reputam por mais indignas delas. Despediu-se das moças e servas do
Convento, dando-lhes saudáveis conselhos, e ultimamente de sua irmã, e como a
mais velha lhe pediu perdão e a bênção, que lha lançou a irmã importunada, pe-
dindo-lhe também e tomando-lhe a sua em recompensa, despedindo-se uma da
outra com dois saudosos e últimos abraços, e correndo-lhes as lágrimas em fios,
representavam a mais lastimosa imagem da maior mágoa.
Feitas estas últimas despedidas, pediu às religiosas que a levantassem por
três vezes, não consentindo ela nunca que lhe pegassem, o que elas fizeram com
muito amor, reclinando-a sobre o peito, mas durava pouco espaço, porque logo
pedia a deitassem outra vez, o que elas atribuíram seria a imitação das quedas
que deu Nosso Redentor na Rua da Amargura, porque logo pediu a levantassem a
quarta e última vez, e a pregassem na parede, mas porque não era fácil serviu de
parede o peito de uma das moças do Convento, e tanto que se viu reclinada, a-
brindo os braços e estendendo os pés mui direitos se pôs em forma de cruz. Es-
tando nesta postura, e já sem fala, sendo três horas, indo os religiosos da Compa-
nhia lhe assistirem na última hora, ouviu tocar a campainha, e logo pediu por ace-

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nos que lhe cobrissem a cabeça com o véu; e tendo já os braços e mãos quase
frios, tirou pelo hábito, significando pelo exterior o hábito interior, de que a tinham
vestido os repetidos da modéstia e compostura religiosa.
Havia encomendado às religiosas que lhe assistiam, que estando para mor-
rer lhe dessem uma pouca de água, mas como entre as mortais agonias lhe fal-
tassem por esquecimento com este refrigério, o pediu por acenos, e depois de o
tomar pegou no crucifixo e na vela: tocando-se neste tempo ao coro para hora da
Noa, lhe perguntou a assistente: Somos minha irmã chegadas à hora de Noa, pa-
rece-lhe que expirará nela por imitar nela o seu Divino Esposo, que também nela
expirou? A isto anuiu com a cabeça, levantando os olhos ao céu, atendendo com
santo sossego a recitação do ofício da Agonia que de joelhos lhe rezavam os pa-
dres, e o credo que lhe cantavam as religiosas, e chegando estas com o canto á
última palavra: Amém, largou o crucifixo e a vela, que tinha nas mãos, as quais
cruzando sobre o peito e inclinando a cabeça deu a Madre Victória da Encarnação
o seu venturoso espírito ao Criador, coroando com tão santa morte a vida que com
tanto fervor empregara em servi-Lo.
Ficou o corpo exalando tão maravilhosa fragrância, que ainda antes de en-
trar na cela se deixava perceber, julgando-se por mais que natural. Tendo as
mãos mui grosseiras de contínuo trabalho em que as exercitava, lhe ficaram mui
brandas e delicadas, flexíveis e tratáveis, que lhe abriam e fechavam dedo por
dedo como se estivessem ainda animados. Sucedeu porém que daí a sete horas
lhe começou a inchar e denegrir o rosto de tal sorte que causava horror a quem o
via. Admiravam-se as que até então estavam como suspensas e embebidas com
a sua boa presença, mas durou-lhes pouco a admiração, lembrando-se que muito
tempo antes lhes dissera a defunta: “Que depois de morta ficaria mui feia e horro-
rosa”. Semelhante transformação da formosura e galhardia da Imperatriz D. Isa-
bel morta fez de um duque de Gandia um São Francisco de Borja. Tanto obram
estas quase repentinas mudanças de semblantes, se acham os corações dispos-
tos.
Jazeu o corpo toda a noite na capelinha do Senhor dos Passos, de onde
pela manhã o levaram para o coro, em o qual fazendo-lhe o ofício de corpo pre-

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sente, andou um mui alegre e veloz passarinho dando voltas, primeiro pela capeli-
nha, e depois por todo o Convento, não sem admiração das pessoas que o viram
e tiveram por um mudo emblema da velocidade e alegria com que discorria pelas
moradas eternas a bendita alma da Serva de Deus, livre já das prisões do corrup-
tível corpo. “Que nos impede os vôos do Espírito”. Acabado o ofício, trataram em
dar-lhe sepultura; mas sucedeu no caminho um caso prodigioso, que querendo as
religiosas que levavam o esquife descer por uma escada que guia ao coro de bai-
xo, não o puderam conseguir por mais que se empenharem em ajudá-las os dois
sacerdotes que com elas iam na pompa funeral. Vendo-se pois as religiosas com
um peso mais que suas forças, e sem poderem dar passo adiante, chamaram pe-
las moças do Convento para a carregarem, as quais em tomando o esquife passa-
ram logo adiante sem impedimento. Então se lembraram as religiosas do que a
Serva de Deus lhes dissera, que se não carregassem as moças de nenhum modo
a levariam á sepultura; em a qual finalmente lhe deram o último vale, em idade de
cinqüenta e quatro anos, quatro meses e treze dias, que findaram em uma sexta-
feira pelas três horas da tarde de dezenove de julho de mil e setecentos e quinze;
dos quais viveu na religião vinte e oito, nove meses e vinte dias com a exemplar
vida, que temos referido, senão com a eloqüência que mereciam tão relevantes
virtudes, ao menos com a verdade que moralmente pudemos alcançar.

Milagres com que, depois da morte, Deus confirma a grande santidade da


Serva de Deus
É Deus Nosso Senhor sempre glorioso em seus santos, e para maior glória
sua não só depois de mortos, mas ainda em vida lhes concede muitos e particula-
res favores, sendo um deles o dom da profecia, a qual parece concedeu sua Divi-
na Majestade á Madre Victória, como se colhe de alguns casos de que já temos
feito menção. Mas não deve ficar em esquecimento o que agora se viu depois de
sua morte, anunciado por ela sendo viva, e lhe aconteceu com uma educanda.
Andava esta muito triste e desconsolada porque havia mais de quinze anos que
assistia no Convento esperando lugar para ser religiosa nele, e não o havendo por
estar o número completo, lhe disse a Madre Victória em uma ocasião: “Que se não

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desconsolasse porque cedo seria freira”. E perguntando-lhe a dita educanda pelo
quando e em que lugar? Respondeu ela: “Logo, em meu lugar”. Madre, lhe tornou
a educanda, não permita Deus tal, vossa Reverência o logre por muitos anos, que
a troco disso já me não enfadarei de esperar. Mas persistindo no que tinha dito,
lhe tornou a asseverar: “Que sem dúvida alguma lhe sucederia no lugar”. Pareceu
então que esta prática não passava de consolateria e epítome contra a tristeza,
mas brevemente se viu a sua verdade, que sem pessoa alguma falasse ao Prela-
do (como nos consta certamente) a favor da educanda, antes havendo várias pre-
tendentes, foi ela preferida quando menos o esperava, cumprindo-se assim a
promessa da Serva de Deus, que por sua altíssima Providência tudo dispôs de
sorte que nela não houvesse falta.
Não foram inferiores às sobreditas as mercês que o mesmo Senhor fez a
esta sua Serva também depois da sua morte, recompensando-lhe a humildade
profunda que professava em vida com extraordinárias honras em seu falecimento.
Tanto que pelo dobrar dos sinos constou de sua morte, não é crível o número de
gente que concorreu à portaria pedindo-lhe tocassem contas, medalhas, benti-
nhos, cruzes e lenços no corpo da freira santa falecida. Ao princípio repararam as
porteiras, porém vendo que crescia o povo e com ele o tumulto, fundado na devo-
ção, houveram de condescender com as gentes por se não arriscarem a algum
excesso, e persuadidas também que tão grande instância e tão repentina notícia
mostrava superior inspiração; e com efeito se tocaram no corpo defunto muitas
alfaias para ficarem em memória viva; mostrando-se nestes efeitos a grande opi-
nião que todos geralmente tinham das virtudes da Madre Victória.
Como ela havia prometido às religiosas, que se chegasse à presença divina
se lembraria sempre delas, fiadas nesta promessa confiadamente a imploram por-
que sem dúvida a supõem presente ao divino acatamento. Sucedeu poucos dias
depois da sua feliz morte dar uma terrível dor de ouvidos em uma menina de oito
anos, que esteve como doida, sem querer a teimosa dor obedecer a remédio al-
gum dos muitos que lhe aplicaram, e nesta aflição começou a mesma menina a
gritar, dizendo: “Minha senhora Madre Victória, tirai-me esta dor; minha Madre Vic-
tória, acudi-me”; pedindo juntamente às religiosas lhe dessem alguma relíquia da

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dita Madre com muita instância, e de crer é que com viva fé lhe deram um cordão,
com que a Serva de Deus se cingia, o qual a menina dobrou e o pôs no ouvido da
moléstia e se deitou sobre ele sem mais abrir boca nem se lhe ouvir gemido al-
gum. Pegou em sono até pela manhã, e quando acordou estava o cordão impres-
so no rosto da menina, sinal de que em toda a noite não tinha dado volta na cama,
e levantou-se sã dizendo a havia curado a Madre Victória, e lhe não repetiu mais a
tal dor, mostrando Deus que ouvira as vozes da inocente enferma e atendera á Fé
das religiosas e aos merecimentos da sua Serva.
A uma das religiosas das mais antigas costumava dar uma tal dor, que a
cingia toda, e lhe deu em uma noite pelas dez horas, e lhe durou até pela manhã
sem lhe valerem os remédios que lhe aplicavam, antes com eles se via ás portas
da morte. Neste grande aperto lhe lembraram as religiosas que lhe assistiam a
poderosa intercessão da Madre Victória para com Deus; recorreram a ela dizendo:
“Minha afilhada do meu coração, vós não éreis tão caridosa em curar os doentes
quando vivia, não prometestes que se vos vísseis diante de Deus nos havíeis de
socorrer? Pois vos peço que me valhais e me alcanceis do mesmo soberano se-
nhor tirar-me esta dor que tanto me atormenta”. Aplicou o mesmo cordão sobre a
dor e, afirma a dita religiosa, e é pessoa fidedigna, que de repente lhe passara a
dor como se nunca a tivera, e também diz que costumando dar-lhe por várias ve-
zes lhe não repetira mais. E assim devia ser, porque os favores que Deus costuma
fazer por intercessão dos seus Servos são grandes, firmes e estimáveis por todos
os títulos, e não como os que fazem os homens, que sempre padecem o dezar
(11) de limitados e caducos.

É ainda ao presente tão grande a fé que tem as religiosas no valimento da


Madre Victória para com Deus, que sempre recorrem a ela em suas aflições. Afli-
gidíssima uma religiosa de véu branco que por haver tido um grande fluxo de san-
gue, que como se fora de uma veia ferida não parava, lhe durou todo o dia sem
estancar, zombando dos vários remédios humanos que se lhe faziam, em cujos
termos acudiu aos divinos, que devendo ser sempre os primeiros, nossa pouca fé
os conta por últimos, mas agora com muita pediu à Madre Victória que lhe acudis-
se como tinha prometido, e aplicou à boca uma relíquia sua e ficou sem queixa.

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Assim o contou e refere ainda a religiosa para glória de Deus e honra de sua Ser-
va.
Com excessivas dores de garganta, e nela tumor interno e externo, estava
padecendo uma religiosa, e com evidente perigo por não poder engolir coisa al-
guma, e ainda com muita dificuldade a mesma saliva, sem obedecer a importuna
dor e inchação nem a sangrias e ventosas sarjadas nas costas, nem a outros vá-
rios medicamentos que os mais peritos médicos lhe aplicavam com tanta pronti-
dão, como pedia o evidente perigo que lhes reconheciam, o qual uma noite deu
maior cuidado, porque parecia não só fechava a garganta para a respiração, mas
também da esperança para os remédios. Então se lembrou a enferma da interces-
são que prometera a Madre Victória, se chegasse a estar na divina presença, e
pegando-lhe pela palavra, ansiosamente lhe rogou se lembrasse dela em tão peri-
goso aperto. E para do modo que podia obrigar a Serva de Deus, e mostrar o mui-
to que venerava qualquer relíquia sua, mandou desfazer em uma xícara de água
pouca porção de terra da sua sepultura, e a bebeu com viva fé e molhou a parte
exterior inchada. Sucesso maravilhoso! Logo se foram mitigando as dores, houve
algum sossego que deu lugar ao sono, dormiu o restante da noite, o que nas ante-
cedentes não tinha feito, e amanheceu desfeito o tumor, com assombro das religi-
osas que viram em tão breves horas tão extraordinários efeitos. E para que não
parecesse acaso, e se duvidasse de quem tinha feito a maravilha, ficou a dita xí-
cara conservando um cheiro suavíssimo, que admirou a quantas religiosas o che-
garam a experimentar, que foram muitas. Com terra feita em lodo curou Cristo
Nosso Senhor ao cego de nascimento; com terra da sepultura da Madre Victória
desfeita em água curou Deus esta enfermidade; e bem se deixa entender, se com
devida atenção se considerar, que é eficacíssimo colírio a terra de uma sepultura
para curar muitas vezes as enfermidades do corpo, e sempre e em todo o tempo
as enfermidades da alma.
Esta é a breve história da virtuosa e exemplar vida da Madre Victória da
Encarnação, cuja saudosa memória esperamos que seja eficaz estímulo às reve-
rendas religiosas deste reformado e muito religioso Convento de Santa Clara da
Bahia, para correrem a largos passos pela patente estrada da perfeição, que pro-

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fessaram, até chegarem ao monte santo da glória, aonde piamente supomos des-
cansa para toda a eternidade.

(Transcrito do “Novo Ordo Seráfico”, de Frei Jaboatão, págs. 685/746)

NOTAS
1) – Ordo Seráfico – Refere-se à Ordem Franciscana, também chamada de Ordo Seráfico
por causa do termo alusivo a São Francisco de Assis, um “Santo Seráfico”.
2) – Empório – Termo comum na linguagem quinhentista para designar a região ou o es-
tado.
3) – Acleo – Termo desconhecido, provavelmente o Autor quis se referir ao “fogo das pai-
xões”.
4) – Desterro – Convento do Desterro, das irmãs clarissas de Salvador.
5) – Escrava – Era permitido às freiras levar as escravas de sua casa para lhes auxiliar no
que precisassem.
6) – Monarias – macaquices.
7) – “Joyã” – Palavra de difícil sentido, mas provavelmente quer dizer que perdiam a bem-
aventurança ou então que a diminuíam.
8) - furúnculos.
9) – Deixam em testamento.
10) – Leve refeição.
11) - O autor quer se referir provavelmente à palavra desaire, que quer dizer descrédito.

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Breve memória de Madre Antonia do Paraíso

Por não variarmos a ordem e cronograma dos anos, e ficar entre o de 1715
de que acabamos de escrever, e o de 1718 de que adiante havemos de tratar,
este de 1717, que se segue, foi preciso fazermos dele capítulo particular, ainda
que muito abreviado, desta religiosa. Foi filha legítima de Baltazar de Vasconcelos
de Albuquerque, e de sua mulher D. Antonia de La Penha Deus-dará. Por seu pai
era a Madre Antonia do Paraíso descendente dos Albuquerques e Cavalcantes de
Pernambuco; porque seu pai Baltazar de Vasconcelos Cavalcante era filho de
Francisco de Vasconcelos Cavalcante, casado na Bahia, e era este filho de Anto-
nio de Vasconcelos Cavalcante, o qual com seu irmão Lourenço Cavalcante havia
passado de Pernambuco à Bahia, e eram filhos estes de D. Filipa de Albuquerque,
casada com Antonio de Olanda de Vasconcelos, filho de Arnao de Olanda, natural
de Utreque, e este filho de Henrique de Olanda Baravito de Rheneoburg, e a dita
Filipa de Albuquerque era filha de D. Catarina de Albuquerque, casada com Filipe
Cavalcante, fidalgo florentino, e esta sua mulher D. Filipa de Albuquerque era filha
de Jerônimo de Albuquerque, cunhado do primeiro donatário de Pernambuco, e de
D. Maria do Espírito Santo Arcoverde. De idade de quinze anos tomou o hábito
neste mosteiro a dois de fevereiro de 1690, e professou a 24 de julho de 1691 com
o nome de Antonia do Paraíso, a sobredita religiosa chamada antes D. Antonia de
La Penha Deus-dará. Estes dois nomes que teve em religiosa e secular bem mos-
traram ser o de secular um como prognóstico do que havia ser quando religiosa;
porque sendo em religiosa um Paraíso fértil de todas as virtudes, vida exemplar e
penitente, isto sem dúvida lhe prometia o primeiro nome havia Deus dar. Assim
completou os dias aos 25 de fevereiro de 1717, com uma opinião muito certa de
predestinada; o que se confirmou com o que depois da sua morte disse a uma
religiosa desta casa certo Religioso tido por Servo de Deus, que a alma da Madre
Antonia do Paraíso lhe aparecera certificando-o da sua salvação; e perguntando-
lhe uma religiosa o como, respondeu que ela estava no Céu, e que ele não podia
dizer mais, e que isto bastava para consolação sua, incentivo às mais e darem-se
a Deus por tudo as devidas graças. (Id. Ib. pp. 746/747).

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Vida e morte da Serva de Deus Maria da Soledade

À saudosa e veneranda recordação da Madre Victória, se segue a da religi-


osa e também veneranda Soror Maria da Soledade, companheira sua nos exercí-
cios da virtude e exemplar da vida. Esta escrevemos da mesma sorte que a outra,
sem pôr da nossa parte mais que o trabalho da escrita e traslado, assim como a
deixou recopilada e exposta a Madre Margarida da Coluna, segunda deste nome
entre as religiosas do seu Mosteiro, e uma das que o ilustrou também com seu
bom exemplo e virtuosos exercícios, e companheira nele de Soror Maria da Sole-
dade. A vida desta religiosa assim escrita a alcançamos do R. Doutor João Borges
de Barros, Tesoureiro Mor ao presente e cônego nesta capital da Bahia, e sobri-
nho da sobredita religiosa, o qual em um livro M S (1), entre outros muitos e curio-
sos papéis conserva este. Nele não acrescentamos de mais, que o reparti-lo em
capítulos e dessecando-o somente em algumas repetições menos necessárias, e
nem foi possível o fazer isto em outras muitas partes dele, porque então seria for-
çoso mudarmos a escrita e total narração dela, e perderia a Autora o seu trabalho
e o zelo com que o fez para crédito seu, de suas irmãs e da Religião de quem é
filha, e também foi mãe como Prelada e Abadessa no próprio Mosteiro. Começa
assim a vida que escreveu da Madre Soror Maria da Soledade.
Nasceu esta venerável religiosa nesta cidade da Bahia na Freguesia da
Santa Sé, aos vinte e quatro de agosto do ano de 1668, à uma hora depois da
meia noite. Foram seus pais o capitão João Borges de Macedo, natural da Vila do
Cadaval, do arcebispado de Lisboa, e sua mulher D. Maria de Barros, natural des-
ta mesma cidade da Bahia. Pessoas nobres e nela bem conhecidas. Do seu casto
consórcio houveram estes bons casados nove filhos, sete machos e duas fêmeas.
Dos machos faleceram dois em tenra idade, e os mais ocuparam vários empregos,
assim como no eclesiástico, como no secular. Das fêmeas passou também uma
de poucos anos à melhor Pátria, e ficou esta também ditosa, e sendo única, que
por esta razão a amaram seus pais com extremo, e a criaram com toda a devoção
e recolhimento, e no santo amor e temor de Deus. Na igreja catedral se batizou
em oito de setembro do mesmo ano, dia do Nascimento da Mãe de Deus, e lhe foi

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posto em o santo batismo o nome de Maria pelo dia em reverência da Senhora,
em cuja devoção a criou sua boa mãe, rezando-lhe desde então o seu terço, medi-
tado pelos mistérios até sua morte.
Com tanto recolhimento e boa educação criavam seus pais esta filha que
parecia ser a mais observante religiosa, e também inclinada, que toda a sua ocu-
pação foi logo coser e fazer rendas para o concerto dos altares, e plantar flores as
mais cheirosas para o ornato deles, e pedia à sua mãe lhe mandasse fazer alam-
biquinhos onde estilasse as flores para borrifar as roupas dos altares. Assim foi
crescendo e criando-se nesta boa doutrina, com tanto recolhimento que dizia de-
pois ela nunca ouvira sermão se não depois de religiosa no Convento.
Morto seu pai, ficou com sua mãe e irmãos, os quais com a vissem com i-
dade competente lhe quiseram dar o estado de casada com um nobre cavaleiro
vindo da Índia, chamado Cristóvão de Souza Coutinho; ao que ela sabendo resis-
tiu grandemente, dizendo sempre que só queria ser religiosa. Veio a descobrir a
sua mãe havia feito voto de pureza a Maria Santíssima em idade de dez anos,
com a qual resolução condescendeu a boa mãe, como santa mulher e piedosa
matrona, e tratou logo de lhe dar o estado de religiosa, como com efeito o fez en-
trando no Convento no ano de 1687, em dois de fevereiro, dia da Purificação de
Nossa Senhora, pelas seis horas da manhã, mostrando neste madrugar o fervoro-
so e ardente desejo que conservava de servir a Deus diligente; e no mesmo dia e
hora se vestiu do penitente hábito de Nossa Madre Santa Clara; e logo os primei-
ros passos que deu foram o ir do coro de baixo em procissão com as religiosas em
comunidade, como é seu louvável costume fazer-se todos os anos com a Senhora
em um andor, que vão carregando quatro religiosas levando todas velas acesas
nas mãos, e nela foi também a nossa noviça, com a mesma vela com que havia
tomado o hábito, muito contente e satisfeita, tendo primeiro assistido ao ato da
comunidade do Ofício Divino logo com o seu breviário, tudo indícios evidentes de
que depois havia de ser tão incansável em assistir a ele.
Começou o seu noviciado e o prosseguiu com tal fervor, que logo deu mos-
tras da perfeição a que aspirava o seu elevado espírito, exercitando-se nas virtu-
des de tal sorte que fazia ou parecer repreensível a vida das mais religiosas, novi-

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ças e companheiras, ou as mais perfeitas menos adiantadas. Este era o exemplo
de nossa noviça, mas todo o seu cuidado era esconder o que a podia avaliar de
perfeita; e este lhe durou enquanto viveu e guardou até a hora da sua morte. Pro-
fessou no ano seguinte de 1688 em quinze de fevereiro, dia da trasladação de
Santo Antonio de Pádua, e de tal sorte ordenou a sua vida de perfeita religiosa e
com tal fervor continuou a servir a Deus, que sendo de poucos anos parecia ser a
mais antiga entre as religiosas; e as suas muitas virtudes a faziam respectiva e
venerada. Nunca mais falou a seus irmãos e parentes, nem a pessoa alguma de
fora, nem foi a parlatório algum, mais que a falar a sua mãe os poucos anos que
viveu, uma ou duas vezes no ano, e essas tanto que tangia o primeiro sinal do
sino para o coro já a deixava na grade e se ia para a comunidade, e depois de
acabada então tornava. Falecida sua mãe, nunca mais viu parlatório algum, nem
falou a outra qualquer pessoa que fosse em toda a sua vida; e se lhe diziam as
religiosas como não falava a seus irmãos e sobrinhos, respondia que não queria
jamais trato, que com aqueles com quem vivia que eram as suas irmãs religiosas.
E nisto mostrou a virtude da perseverança, que sempre teve, pois aquilo que uma
vez começava, e era de virtude, e para perfeição, o não deixava mais; e por esta
razão costumava dizer, que não era amiga de tomar muitas devoções; e que entre
todas, para ela, eram as suas particulares somente quatro. E perguntando-lhe as
religiosas quais eram, dizia: “Missa, ofício Divino, Oração e o Terço de Nossa Se-
nhora pelos mistérios”. Coisa foi esta que tiveram as religiosas por favor especial
e do céu dizer ela isto; porque nada do que fazia o manifestava a alguém; antes
costumava dizer que ela era uma árvore sem fruto, que nada bom fazia, e em na-
da agradava a Deus; mas pelo contrário a viam obrar de sorte que a todos servia
de exemplo.

Exercícios espirituais da Serva de Deus


Foi incansável no exercício de ouvir as Missas que nesta igreja se diziam;
a todas assistia, ouvindo-as sempre de joelhos e com tão grande devoção que
tanto que o padre saía da sacristia punha-se ela de joelhos na presença de Deus;
e começando o padre a Missa, benzia-se, dizia a confissão punhas as mãos le-

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vantadas, a cabeça algum tanto inclinada, e sem mais movimento ou ação algu-
ma, ficava como imóvel ou extática, de tal sorte que ainda chegando a ela, ou que-
rendo-a mover, a nada dava atenção; e reparavam as religiosas que ainda dizen-
do-se outra Missa, ou mais, quando nelas se levantava a Deus não olhava, nem
para adorar ao Senhor, por não tirar os olhos da Missa que estava ouvindo, e en-
quanto não começava outra vez o coro das nove horas se sempre haviam Missas
não cansava de as ouvir, e quando havia muitas então estava mui alegre e con-
tente; convocando as mais para as ouvirem, e fazendo sinal no sino para virem; e
se sucedia haver uma missa só, ou duas, mostrava grande pena, e pedia às ou-
tras religiosas para convidarem aos padres parentes e conhecidos para virem di-
zer Missa à igreja, e sempre buscava para ouvir as missas daqueles que já tinha
experiência as diziam com mais devoção, ainda que fossem ou gastassem nelas
mais tempo.
Do mesmo modo assistiu sempre ao Ofício Divino, e de tal sorte que, em
trinta e quase dois anos que foi professa, e com o de noviça, nunca faltou ao coro
nem a ato algum da comunidade, mais que os três dias antes de sua morte. Às
cinco horas da manhã já estava de pé, preparando-se para ir ao coro, e quanto
saía sempre era com tal pressa, que era quase de carreira, como que lhe faltava o
tempo, e quem assim a via cuidava ir fugindo de alguma coisa, e sem falar às que
encontrava , e da mesma sorte entrava pelo coro, e como uma esfaimada, já com
os olhos no Sacrário, ajoelhava na sua acostumada postura, com as mãos levan-
tadas, e assim estava até que a Prelada fizesse sinal para se começar o Ofício
Divino, e levantando-se tomava a sua cadeira, com os olhos no Breviário, sem
mais dar atenção a coisa alguma; e se outra religiosa lhe perguntava depois por
alguma, se tinha ido ao coro ou se foram muitas, não sabia dar razão de nada, e
tão alheia se achava como se nele não fora a sua contínua assistência. Rezava
sempre o Ofício Divino de pé, e raras vezes se sentava e só com grande necessi-
dade, pedindo para isso licença. As Matinas de todas as celebridades de Nossa
Senhora rezava com tão grande devoção que incitava as outras que nela repara-
vam, pois a viam toda elevada com os olhos no céu e rindo-se para ele; e com
mais excesso se eram as Matinas cantadas.

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Na oração foi tão permanente que se podia dizer estava de contínuo em o-
ração; porque ia pelas cinco horas para o coro e dele não saía senão pelo meio-
dia, e algumas vezes pela uma hora, e fora da reza do Ofício Divino com o coro, a
viam sempre de joelhos ou em oração, por todo aquele tempo. À noite, tanto que
saía do refeitório, a que também nunca faltou, se punha de joelhos ao coro diante
do Santíssimo Sacramento, e nem mais a viam mover até as oito ou nove horas,
que se levantava fazendo muitas genuflexões, se recolhia para a cela, na qual es-
tava também sempre ocupada em fazer rendas e costura para os altares e igrejas
até a meia-noite, e de dia os espaços de tempo que lhe restavam do coro e comu-
nidade; e se lhe perguntavam para que cosia tanto, respondia: “Estou fazendo
rendas para os lenços de meu Esposo”, e isto era logo com os olhos arrasados
em lágrimas pelo amor que lhe tinha, e fazia tudo com tanta vontade, fosse de
quem fosse, tanto que via era coisa do culto divino, e desta lhe nascia e da sua
muita curiosidade para as tais coisas, que tudo o que tocava aos altares cortava e
fazia; e ainda aos poucos dias que teve da doença, que foram três, esteve dando
ordem a acabar uma obra da comunidade com grande ânsia para o tempo neces-
sário, como com efeito se acabou, e eram umas capas de asperges roxas da ca-
sa, as quais a primeira vez que serviram foi no seu próprio enterro. Deste contínuo
exercício de cortar assim as coisas dos paramentos dos altares, que fazia com tal
reverência, que a tesoura com que as cortava não servia para outra coisa, como
de cortar os hábitos das religiosas, e ajudá-los fazer, tinha os dedos cheios de ca-
los, porque esperava do Senhor haviam aparecer na Eternidade. Tal era a atenção
com que o fazia; e cosendo de contínuo nunca deu ponto que não fosse para
Deus e para o seu santo serviço, de sorte que as suas próprias camisas mandava
fazer por qualquer pessoa, ou bem ou mal cozidas, por se não tirar de seu fre-
qüente exercício de coser para Deus, e com estas coisas gastava a sua tença (2) ,
e para si achava tudo tão mal empregado que não queria nem fazia nada, e vivia
como a mais reformada capucha que podia haver; porque os seus hábitos eram
de pano o mais grosseiro, e sucedeu fazer para si hábitos de pedaços emenda-
dos, qual outra Santa Coleta que usava do mesmo. As toalhas da cabeça eram
das mais velhas e das que as outras religiosas muitas vezes deixavam; o que se

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supunha era por não fazer caso de si e desprevenir-se. Só quando comungava se
compunha com toalha e véu asseado para aparecer diante da Divina Majestade e
receber o seu Esposo, o Senhor Sacramentado.
Vivei sempre com tanta observância e pobreza como se não tivera tença,
com que podia passar sem experimentar faltas e necessidades, mas repartia em
obras de caridade e para si só deixava os rigores e pobreza, de sorte que nunca
admitiu servo para a servir em todo o tempo que viveu neste Convento, e por sua
mão varria a sua cela, fazia a cama e todo o mais serviço que lhe era necessário;
e quando lhe diziam porque não admitia, como as mais, a sua serva, respondia
que não, porque enquanto Deus lhe dava saúde bem podia servir-se por si, e nem
pote de água tinha na cela, e quando a queria beber ia com um pucarinho (3) à
casa de outra religiosa a pedi-la; que entendiam elas que como desejava viver
pobremente o fazia com disfarce, e nele a pedia por esmola, e assim era o mais.
Quando tinha ou lhe mandavam os seus alguma coisa, na mesma hora dava tudo
sem reservar para si coisa alguma, e dizendo-lhe as amigas como não deixava
também para si respondia com disfarce que não podia ter pensões; e do que re-
partia com as mais se lhe davam ao tempo da refeição alguma daquelas coisas
para comer, o aceitava já não como seu, mas como esmola, de que desejava vi-
ver, e esta observância praticou em toda a sua vida.
Foi tão abstinente, que nunca enquanto viveu tomou refeição fora da mesa,
e das duas vezes costumadas de jantar e ceia; e nos dias de jejum era mui dimi-
nuta a consoada, que parecia impossível poder sustentar-se sem esforço divino, e
se podia dizer que era nela o jejum perpétuo, não faltando nunca aos da Regra, do
Advento e da igreja, fora dos seus em particular, e muitos de pão e água. Tão hu-
milde foi, que podia ser a todas bem vivo retrato desta virtude. Viveu sempre tão
encolhida e apoucada que parecia, entre as mais, a mais moça; e daqui lhe nascia
não querer os ofícios altos, dizendo que não tinha préstimo para coisa alguma, e
só aqueles mais baixos e humildes que lhe não tocavam, e porque não fizesse
vista é que desejava lhe dessem estes, para exercitar assim a sua interior humil-
dade e modéstia, buscando sempre nas comunidades o lugar das mais modernas.

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Na virtude da Caridade foi também mui exercitada para com os pobres, re-
mediando-lhes as suas necessidades, e tirando muitas vezes da boca para dar-
lhes, assistindo-lhes aquelas horas que não eram do coro, e de noite até às duas
horas que se recolhia por não faltar às Matinas, a que era tão assistente, servindo
a todas no que podia: e as consolava, falando-lhes em Deus; e pela sua boa práti-
ca e companhia lhe rogavam, quando se apartava, que tornasse, e estavam espe-
rando aquelas mais desocupadas para terem esta consolação, que confessavam a
tinham muito grande.
Foi observantíssima da virtude do silêncio, não falando nunca alto nas ho-
ras dele, e fazia que o guardassem as que estavam com ela, e de contínuo não
falava até o meio-dia, porque estava sempre assistindo no coro, e só falava para
mandar tocar sino para as missas, dizendo assim: “Toquem lá a missa”, que era
fazer sinal para as outras virem ouvir missa; e para dizer tais palavras saía para
fora do coro, porque nele nunca falou guardando ali perpétuo silêncio, e se lhe
perguntavam alguma coisa respondia por acenos, e se era forçoso falar saía da
porta do coro para fora, e aí dava a resposta. E ainda fora do coro, antes de co-
meças as matinas também não falava, e se da sua cela para o coro se encontrava
com alguém que a saudasse, não respondia, nem a pressa com que ia lhe dava
lugar.
Não murmurava de coisa alguma, nem consentia que em presença o fizes-
sem as mais, e se chegava a tempo, que ouvia murmurar, com tanta sagacidade
entretinha ali uma prática espiritual, e de Deus, que a pouco espaço se achavam
todas falando no mesmo e tão gostosas, que não queriam se acabasse a prática,
ainda que fosse por muitas horas. Mas, nem com ser tanto e tão notado o seu si-
lêncio deixou de ser criminada por alguns gênios discordes e mal afetos, de que
falava em as falta comuns de pessoas particulares, e de serem pouco observantes
de sua Regra, o que sendo assim sempre nela se devia entender zelo da Religião
e não crítica, ou mal dizer, como o supuseram, e por isso foi encarcerada pelos
Prelados por tempo de onze dias. Na sua prisão a iam espreitar algumas curiosas
pelo buraco da chave, e viam que, ao tempo em que estavam as mais no coro, se
punha ela de joelhos rezando o Ofício Divino, para o qual se compunha de véu e

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toalha tanto que o sino começava a tocar, e o mesmo fazia para a Missa quando
se tocava; posta de joelhos no oratório se benzia, e com as mãos levantadas, co-
mo sempre, e os olhos no céu, a viam com o rosto resplandecente e a cor muito
encarnada, indo umas e vindo outras a vê-la e todas louvando a Deus e ficando
mui edificadas. Dizia ela depois, que o não ouvir Missa naqueles dias e não assis-
tir no coro ao Oficio Divino, fora o que mais sentiu, e falando-lhe algumas nesta
sua prisão, dizia, rindo-se: "Eu ainda que fosse muito penitenciada, e ainda sem o
véu, não o sentira, contanto que fosse à comunidade; e assim andava mui conten-
te e sem pena alguma, como a não tenho mais que disso; mas, como foi pela o-
bediência, está bem feito”. Além destes desconsolos do seu abrasado espírito lhe
sobrevieram nesta prisão outras moléstias corporais; porque lhe rebentou a cabe-
ça e se lhe inflamou o rosto com febres e frios, que mal os podia tolerar, mas tanto
que a soltaram, de carreira se foi meter no coro aos seus costumados exercícios
como se nada houvera passado por ela, e sem outra alguma mezinha ficou sã
como de antes.

Devoção fervorosa ao Santíssimo Sacramento


Foi um destes, e no qual se mostrou sempre extremosa a cordial devoção
que tinha ao Santíssimo Sacramento. Do seu “Laus Peremne” tinha vinte e quatro
horas, que lhe fazia com tal devoção que muitas se acabava a hora e levava outra,
e mais, que parecia estava elevada naquele amor sacramentado, em que de con-
tínuo andava absorta. As mais destas horas eram de noite por lhe não tirar os
seus costumados exercícios, que tinham de Ofício Divino Missas e estar cosendo
para o seu Altar, e adorando-o no coro; e foi muito para notar, que em tantos anos
quantos são os sobreditos que habitou neste Convento, nunca se abrisse o Sacrá-
rio, nem de dia, nem de noite, que ela se não achasse presente; e isto, ou fosse
para dar a comunhão ou saísse fora o Senhor por Viático, e ela sempre o ficava
acompanhando de joelhos até tornar, e se havia janela por onde o fosse ver pas-
sar, não perdia a ocasião e tornava logo ao seu perene exercício. Quando comun-
gavam as religiosas descia do coro de cima ao de baixo a assistir à comunhão, e
não tirava os olhos do Senhor enquanto ali estava, e recolhendo-se dava o lavató-

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rio às religiosas e tornava para o coro. No dia em que estava o Senhor exposto,
ainda que fosse por todo o dia, não se apartava do coro, indo pelas cinco horas da
manhã para ele assistir aos ofícios divinos e o mais, e só saía acompanhando a
comunidade; e indo as mais para o refeitório, tornava para o coro até se tocar as
Vésperas, e de joelhos e em pé levava o dia até se encerrar o Senhor, e depois de
tudo acabado ia então para a cela tomar alguma refeição; porque até aquelas ho-
ras levava em jejum, coisa que admirava às mais religiosas. Quando comungava
não dizia palavra alguma, nem fora do coro, por reverência do Senhor, até depois
de uma hora de sair do coro dos seus costumados exercícios, e pelo dia adiante
não falava mais que o necessário, e era tanto o fervor que tinha em tal dia, e o
amor que lhe ardia no coração, que lhe saíam pela faces rosas encarnadas, e de
tal sorte andava enlevada que parecia estar-se rindo só; e quando recebia o Se-
nhor, recolhia-se a um canto, coberta com o seu véu, e ali estava até se acabar o
ato; e quando descia o véu para tornar o lavatório, para o qual a chamavam mui-
tas vezes, a viam tão formosa e rosada que parecia resplandecer-lhe o rosto
Deste grande amor ao Diviníssimo Sacramento lhe nasceu um ardente de-
sejo de lhe fazer a sua casa, que como a que tinha não era tão boa, por ser de
pau e já antiga, davam-lhe ânsias, e de contínuo andava vacilando o como lhe
poderia fazer outra capaz e perfeita para habitação do amoroso Deus Sacramen-
tado, sem que fosse sabido, como era seu costume ocultar tudo, quanto fazia de
virtude para que a não tivessem em boa conta, valendo-se para isto do mesmo
Senhor, a quem pedia com muita instância lhe desse caminho por onde o conse-
guir se fosse para glória sua. Isto se soube por se ela fiar de outra religiosa, por
via da qual vendeu tudo quanto tinha, pedindo licença para isso aos Prelados, e o
foi dispondo aos poucos, e indo juntando até fazer certa quantia; e vendo que não
chegava, valeu-se de outra religiosa para com um devoto que era do Senhor Sa-
cramentado, e mandou fazer a obra, como com efeito o fez, e veio de Portugal um
perfeito Sacrário de prata, e ela se mostrava muito alheia no exterior para não
suspeitarem nela, e par isto pediu às ditas duas religiosas guardassem segredo;
porém no interior estava tão contente e alegre que não cabia em si de ver a seu
Senhor Sacramentado, que era como sempre o nomeava, já com aquele obséquio

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e veneração que se lhe devia, e ela tanto desejava. E quando pelo tempo adiante
se achava menos asseado, ela o mandava alimpar à sua custa, e sempre por in-
tervenção de outra religiosa, dando-lhe ela com que o fazer em segredo, por se
não saber era ela a benfeitora da obra.
Trabalhava sempre por fazer castiçais e vasos de prata para a comunhão, e
tudo o mais que era necessário para este ministério. Quando acabava do coro dos
seus quotidianos exercícios sempre era com cinco visitas ao Santíssimo Sacra-
mento, e quando passava por junto do coro ou perto dele, o não fazia sem entrar
nele a visitar o seu Senhor Sacramentado, e não se contentava com entrar uma
vez, se não muitas, não se satisfazendo com o ver, de sorte que às outras religio-
sas causava admiração, vendo que esperando-a algumas vezes não acabava de
chegar. Quando lhe queriam pedir alguma coisa que ela não deixasse de a fazer,
era pelo seu Senhor Sacramento; porque ainda que fosse o mais impossível, o
não deixava de fazer. Se tinha susto de alguma, as suas palavras eram: “Jesus
Sacramentado!” ou “Valei-me meu Deus Sacramentado!”

Devoção ao Menino Jesus


Foi também muito devota do mistério do Nascimento de Deus Menino. Fa-
zia-lhe todos os anos a sua lapinha com muita perfeição na sua cela, e para ter os
seus colóquios com ele entrava em exercícios na véspera, confessando-se primei-
ro. De tarde, já perto da noite, metia-se no coro e não falava mais a ninguém, as-
sistindo com as mais às solenidades das Matinas, comungando com a comunida-
de se punha a ouvir Missas na sua costumada postura até pela manhã; indo-se as
mais recolher ela ficava só, e quanto tornava a comunidade a rezar a Prima de
manhã a achavam no seu canto junto à grade de joelhos, que ficavam confusas
não ter esta Serva de Deus sono, e poder com aqueles exercícios em tais dias em
que todas se achavam desveladas, e acabavam os seus exercícios que eram os
de Santo Inácio, dia do Nome de Jesus, depois de comungar e satisfazer as suas
devoções, às horas costumadas que eram a uma ou duas depois do meio-dia. Efoi
tanta a sua devoção, que mandou buscar umas imagens muito perfeitas para fa-

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bricar uma capela do Nascimento para o que dava a sua mesma cela, acomodan-
do-se em uma antiga se houvesse para isso licença dos Prelados.

Devoção à Virgem Mãe de Deus e às almas do purgatório


Da mesma sorte da Virgem Mãe de Deus foi devotíssima. Celebrava-lhe as
suas festas com jejuns, mortificações, comunhão e oração dobrada. Rezava-lhe o
Terço do seu Rosário meditado pelos mistérios, o qual sempre rezou no coro de
joelhos sem falar nem se mover, que parecia absorta e elevada, e muitas vezes a
viram estar em cruz todo o tempo que o rezava, que fazia admirar as mais o ver
como podia aturar assim tanto tempo. Nas Missas das suas celebridades, e nas
matinas estava tão elevada que quase não atinava ao que se fazia, e sucedendo
darem-lhe alguma antífona, não a dava nem sabiam as mais a causa, se seria por
reverência e reconhecer-se indigna de o fazer, ou era por não atinar; só viam pôr-
se de joelhos e fazer penitência pela falta, como é uso.
Também era devota das almas, sendo sua irmã e mandando-lhe dizer Mis-
sas, e quando ficava no coro, ainda fora das suas horas costumadas, e lhe per-
guntava alguma mais sua familiar que fazia lá àquelas horas, que podia ter de al-
gum descanso, então dizia estava rezando Rosário pelas almas, por ser Domingo
ou Dia Santo, por lhe não tirar o tempo do trabalho nos dias dele, porque costu-
mava dizer que ela era cativa do seu Senhor Sacramentado, e assim com aquela
intenção tomava ela mesma tarefa como cativa, e se não levantava da almofada,
salvo para as comunidades ou para alguma obra de caridade, sem que acabasse
a sua tarefa.
Teve esta Serva de Deus, logo que professou, um confessor da Companhi-
a, o Pe. Estêvão Gandulfi; porém tanto que foi conhecendo ele o seu relevante
espírito, ela o deixou. Daí a alguns anos tomou o Pe. Antonio Maria Bonuci, e co-
mo este a foi também conhecendo, e por dizer a algumas religiosas que era a Ma-
dre Maria uma boa pedra preciosa lavrada e perfeita, fugiu também dele e nunca
mais quis ter confessor certo. Entendiam as religiosas era isto por ocultar a sua
virtude, como o fazia em tudo o mais.

69
Fez Deus Nosso Senhor a esta sua Serva e Esposa o benefício de lhe con-
servar a saúde em todo o tempo que viveu neste Mosteiro, que sendo o lugar bas-
tante doentio, ela logrou sempre saúde, para não faltar como nunca faltou às suas
comunidades e contínuos exercícios, em que vivia sempre fervorosa e ocupada; e
reparando as religiosas nisto diziam confusas umas ás outras: - Dá-lhe Deus Nos-
so Senhor esta saúde pelo fervor com que o serve, e porque a sabe empregar tão
bem; e ainda que algumas vezes tivesse suas queixas, as dissimulava de tal sorte
que não entendessem as mais as tinha ela, por lhe não proibir o ir ao coro, a que
não desejava faltar.
Nestes fervorosos exercícios andava esta Serva de Deus tão abrasada de
contínuo no seu Divino Amor que daqui lhe nasciam os desejos grandes que tinha
de morrer, que algumas vezes dizia que se não fora ofensa de Deus tomar a cria-
tura a morte por suas mãos, a tomara ela pelos grandes desejos que tinha de mor-
rer; e dizendo-lhe as outras não dissesse aquilo, ela o ratificava, acrescentando:
“Digo que se não fora ofensa de Deus, que sendo guarde-me o Senhor”; e logo
com os olhos arrasados em lágrimas, dizia com disfarce e submissão: “Eu de que
sirvo neste mundo para desejar vida?” e isto dizia para que se lhe não entendes-
se era por ver e gozar de quem tanto amava, e por quem de contínuo suspirava.
Outras vezes se punha em parte onde pudesse estar vendo o céu, olhando para
ele e levantando o coração a Deus; porque ainda que o ela disfarçava, reparavam
as coisas que se lhe enchiam os olhos de lágrimas; e dando suspiros dizia: “Quem
merecera ver-se com o seu Deus no céu!” Algumas vezes chamava pelas outras
com muita pressa, dizendo, venham cá, venham cá, cheguem aqui. Vinham elas e
perguntando-lhe o que queria, tornava ela: “olhem para o céu, vejam como está
bonito e lindo! E quando isto é ao avesso, que será ao direito! Que irá lá dentro!
Em que lugar estará nossa Madre Santa Clara! Que será ver aqueles coros de
Virgens e religiosas, que souberam agradar a seu Deus e Senhor!”. “Ora agora –
tornava ela -,olhem para a terra e vejam como está feia e triste! Que fúrias infer-
nais não estarão por ela! Miseráveis dos seus habitantes que desagradaram ao
seu Deus!” E isto dizia tão repetidas vezes que as mais se retiravam, e ela ficava,
se era noite, por muitas horas com os olhos no Céu, e de sorte elevada, que as

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vizinhas das outras janelas estavam reparando no largo tempo que ali a viam es-
tar, e isto era em as mais das noites que havia luar e estava o céu estrelado, de-
pois que acabava os seus costumados exercícios do coro. Seria do fervor com
que saía da oração e presença de Deus e seu Senhor Sacramentado, e vinha en-
tão para a cela.
Algumas vezes tinha por uso em Domingos, ou Dias Santos, naquelas ho-
ras que não eram do coro, dizer, vamos divertir a uma janela conventual, e ia adi-
ante a uma que ficava de fronte de uma igreja, que tinha Sacrário, a visitar dali o
Santíssimo Sacramento, e quando as outras chegavam ainda a apanhavam re-
zando, e com os olhos na igreja já arrasados em lágrimas, e logo mudava o pro-
pósito com o seu costumado disfarce, mas era falando sempre em coisas do céu;
e quando fazia a sua oração na capelinha interior do Senhor dos Santos Passos,
por se estar consertando o nosso coro, reparavam as outras que também ali esta-
vam, que primeiro que se pusesse de joelhos, assim que entrava ia à janela da
mesma capelinha que fica defronte da mesma igreja, que é de Nossa Senhora do
Carmo, e lá estava um pouco, e então vinha para a sua oração, onde levava uma
e duas horas, e o mesmo fazia quando acabava., e para não o entenderem fazia
que ia escarrar fora; mas como fosse continuada, observaram ia ali pôr-se na pre-
sença do Senhor Sacramentado, visto que então se não ia ao coro, pelo qual cho-
rava ela muitas lágrimas, e dizia, quando a advertiam que não chorasse, que logo
se ia acabar: “Não sou eu Maria a que vou rezar mais a ele”; e isto repetia muitas
vezes com lágrimas; mas as missas nunca deixava de as ouvir fosse por onde
fosse; e dizendo-se-lhe que visse lá não lhe caísse de cima do coro algum pau ou
pedra , respondia: “Não fio eu tão pouco de meu Senhor Sacramentado, que sa-
bendo vou ali por seu amor, me há de matar; não por certo enquanto estou ouvin-
do Missa ou em sua presença”. E assim era tanta a sua fé, que a quaisquer horas
da noite estava só no coro, e muitas vezes ás escuras por se apagar a lâmpada, e
dizia não tinha medo algum, nem temor de outra coisa estando diante do Santís-
simo Sacramento, porque ali não temia nada; e assim era porque estando uma
vez orando no costumando cantinho junto à grade do coro já tarde, sucedeu ficar
outra religiosa junto a ela também no mesmo exercício, ouviram ambas um ruído

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ou estrondo do mirante para o coro, como que caía; (disse a outra) uma pipa de
pedras, por ali a baixo, e causou tão grande pavor, que a religiosa se abraçou logo
com a Madre Maria, e tremendo começou a gritar; ela para que se não ouvisse,
entrou a animá-la, dizendo, “cale-se que não é nada”; mas a religiosa não tendo
ânimo desmaiou, e ela puxando-a a trouxe arrasto para fora do coro, como um
corpo morto, e esteve com ela até tornar a si; e então lhe encomendou muito não
dissesse nem falasse naquilo, que não era nada.
Outra vez, estando ela na sua costumada oração, e assistiam outras religi-
osas e as noviças com sua Mestra, sucedeu ouvir-se também um grande estron-
do, que parecia cair o mirante abaixo, e se ouviam juntamente rinxaduras (4) de
cavalos, roncar porcos, uivar cachorros e outras desentoadas vozes, que não só
ouviram as que estavam dentro do coro, mas também as que se achavam fora,
que todas corriam a ver o que era; e as do coro correram para fora; e Madre Mari-
a, tal foi o estrondo, correu também, e passando todas sem moléstia só ela, diziam
as mais, veio dos ares e pelas escadas abaixo, e se estendeu no chão como mor-
ta, e ficou toda pisada, e por milagre de Deus não abriu a cabeça em um armário
que ali ficava, em que se guardam papéis e outras coisas pertencentes ao coro,
levaram-na para a cela em braços, e a mandaram à força sangrar e emplastar (5).
O que ela passou no coro depois das outras saírem, ou se viu mais alguma coisa
não se sabe, porque ela não o disse, mas a presunção das mais foi atribuírem se-
ria o inimigo comum a respeito seu, pela qual causa atirou com ela como pelos
ares; porém nem a causa de ficar pisada e sangrada foi bastante para privá-la do
seu fervor e ir a todas as horas do Ofício Divino, da maneira em que estava e po-
dia.
Fazendo uma vez concerto com outra religiosa, também de espírito, que
quando morressem, se fosse ela primeiro lhe viesse aparecer diante do Santíssi-
mo Sacramento para lhe falar, e que dissesse ela como queria lhe aparecesse ou
em que parte, disse-lhe a outra, que lhe viesse aparecer em sonhos. Respondeu-
lhe ela que estava bem. Mas a outra, falta de ânimo, tornou a dizer-lhe, não queria
estar pelo concerto; disse-lhe a Madre Maria: “Pois teme vir-lhe só aparecer em
sonhos!” Disse-lhe então a religiosa: “Eu por mim não o faço, mas é porque não

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sei em que estado lhe aparecerei que a não assombre”. “Não, Madre, diante do
Santíssimo Sacramento não temo, porque ali estou capaz de brigar com todo
o inferno”. E isto dizia pela grande fé com que estava diante do Senhor Sacra-
mentado. E é sem dúvida, que se o repentino susto que teve no coro, e o exemplo
das mais a não movera nesta ocasião a sair com as outras fora dele, como o não
executou da outra vez, ficara como então ilesa e vencedora do inimigo, pois se
não atrevera a ela na presença do seu Senhor Sacramentado. Não quis contudo a
sobredita religiosa admitir o concerto para quando morressem.

Enfermidade e morte da Serva de Deus


Ouviu Nosso Senhor as vozes repetidas e ansiosos desejos desta amada e
amante Esposa sua, e quis satisfazer-lhe os seus rogos e dar-lhe a coroa devida
aos seus merecimentos e perseverantes serviços que lhe havia feito em toda a
sua vida, e assim andando nestes costumados exercícios deu-lhe uma febre bas-
tantemente aguda, com a qual andou de pé alguns dias sofrendo, e não querendo
manifestá-la por lhe não proibirem ir ao coro, e parecendo-lhe como outras vezes,
que quando lhe sobrevinha alguma moléstia a levava de pé, poderia também com
esta, não afrouxou em nada, nem quis ter compaixão de si, sendo que a tinha
grande para com as mais; e vendo as religiosas andar ela tão descorada, e com
um fastio mortal naquelas duas vezes que tomava a refeição necessária, lhe dis-
seram que visse andava muito doente, e que tomasse algumas sangrias para ali-
viar; que o podia fazer de pé; e ela repetia, isto não é nada; mas como a queria já
o Senhor premiar, foi-se acrescentando a febre cada vez mais, até que um dia lhe
disse a Prelada, vendo-a daquela sorte, que não fosse mais ao coro e se reco-
lhesse para se curar, que nisso mesmo agradava a Deus. Obedeceu ela, dizendo
que a deixasse ir ao coro aquelas vésperas para se despedir dele, que seria a úl-
tima vez.
Era uma sexta-feira, vinte e sete de outubro, e como a Prelada a visse com
tanta ânsia e vontade de ir ao coro rezar as vésperas, consentiu na petição; e as
rezou com a mesma devoção e espírito; e como ainda se não rezava no coro por
se estar consertando acabou as vésperas, e foi como era costumada ao coro visi-

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tar seu Senhor Sacramentado e lá se deteve largo tempo. Recolheu-se à cela, e
dizendo-lhe uma religiosa, “ainda Madre Maria foi ao coro e tardou tanto para vir
sangrar-se?” E ela respondeu: “Fui despedir-me de meu Senhor Sacramentado”.
E despindo os hábitos, dobrou as todas à obediência da Prelada, que lhe disse se
havia mostrar ao médico; porque nunca tinha visto este ou outro algum. Veio o
médico, e mandando-a logo sangrar, lançou um sangue tão podre que deu indício
do que havia de ser; mas ela com muito sossego esteve três dias de cama com
notável sofrimento; e tanto que via as mais religiosas começarem o Ofício Divino,
que se rezava perto da sua cela, sentava-se enquanto pôde, benzia-se e rezava, o
que por comutação lhe havia assinado (6) a Prelada, e acabada a obrigação se
tornava a deitar; logo no sábado, que era Dia Santo, disse ela a uma religiosa, das
que lhe assistiam, a mandassem carregar por duas escravas e levá-la ao coro pa-
ra ouvir Missa; e querendo a religiosa fazer-lhe a vontade, não foi possível, por
não estar já em termos disso; e vendo que não podia ser, conformando-se com a
vontade de Deus, disse: “Não quer já o Senhor, e eu quero o que for sua vontade;
porque eu já me resignei nela para o que for servido”. Com esta mesma resigna-
ção se sujeito a tomar os medicamentos que lhe aplicava o médico, por mais re-
pugnantes que fossem; e com tanta mansidão e paciência que julgavam as religi-
osas não ser a moléstia coisa de tanto cuidado; mas como temiam perdê-la, pelo
muito que a amavam por suas virtudes, viviam assustadas sempre, e ela pressen-
tindo isto, dizia-lhes: “De que irmãs se assustam? Eu para morrer nasci; aqui es-
tou para o que Deus quiser dispor de mim”. E como lhe fosse continuando a ar-
dente febre, que era o mal que a provava com muita secura, de que ela se absti-
nha grandemente por lhe dizerem não bebesse muitas vezes água, que lhe fazia
mal.
Na segunda-feira, terceiro dia da doença, e último de sua vida, disse às re-
ligiosas que lhe assistiam, lhe fizessem uma cama no chão e lhe dessem o seu
manto para se cobrir com ele, e pediu a pusessem ali; e posta nela, pediu água
para tomar na boca, e em todo o dia não descansou de a ter; não se soube atribu-
ir, se seria por secura, porque nos mais dias o não havia feito, ou se era por estar
em silêncio, como costumava rezando ou meditando no Terço da Senhora, e o fez

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naqueles dias benzendo-se com a cruz do Rosário; e agora chamou por uma reli-
giosa pedindo-lhe tirasse um nó, ou laço que tinha dado em uma conta com a qual
repartia o Terço, e tirado o nó lançou o Rosário ao pescoço, como dizendo o não
havia mais rezar; e costumava dizer era o Rosário o seu precioso colar de quinze
jóias. Tornou a tomar na boca água, no que dizia achava alívio; e vindo o médico
visitá-la não desconfiou dela e ficou com algum sossego, sem mostrar mais acha-
que que a sua febre.
Das sete para as oito horas da noite, lhe sobreveio uma ânsia, e como a
não tinha sentido naqueles dias, aumentou o susto ás religiosas, e saindo estas do
coro, uma de mais experiência tomando-lhe o pulso, e não o achando com aquele
sossego que antes tinha, lhe disse: ”que é isto Madre Maria? Que sente demais,
que a não acho como a deixei?”. Respondeu ela: “Esta ânsia”. “Pois que ânsia é
esta!”, replicou a religiosa. E ela lhe replicou: “é a da morte”. “Pois, quer se con-
fessar para comungar logo?” E ela respondeu: “Eu desejava fosse para dia de
Todos os Santos, seja como ele o ordena. Pediu lhe chamassem logo o Pe. Mes-
tre dos noviços do Colégio (7), e indo-se chamar começou ela a fazer um Ato de
Contrição em voz alta, o qual nos havia ensinado o Pe. Mestre Domingos Ramos,
nosso confessor e diretor, e com a mão fechada a bater nos peitos com tanta força
quanta podia, e reparando as religiosas que ela nunca dizia coisa que se ouvisse,
porque tudo o seu era oculto, caíram que o fazia agora assim pelo que o dito Pa-
dre ensinava; que para fazer contrição disseram o Ato desta em voz alta; e por
esta razão o fazia ela agora assim, por lhe ser necessária para aquela hora. Nes-
ta lhe deu uma ânsia muito grande, com a qual pôs os olhos em alvo, que parecia
a todos expirava; e começando-lhe uma religiosa a lembrar o nome de Jesus, pe-
diu lhe trouxessem o Senhor da Boa Morte, que é um Santo Cristo de Indulgências
que o mesmo Padre trouxe para se guardar na capelinha, para quando as religio-
sas estão em artigo de morte, lhe meteram nas mãos. Também pediu com muita
instância lhe trouxessem a Imagem de Nossa Senhora; e perguntaram-lhe se a
maior ou a mais pequena, disse ela a mais pequena que veio do Colégio; e é uma
que deu o mesmo Padre para também estar na capelinha do Senhor. Veio esta
imagem e a do Senhor; com esta se abraçou, tendo nas mãos da Senhora, e pa-

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receu fazer os últimos termos. A este tempo chegou o Padre para a confessar, e
vendo-o ela disse: "“Este não é o padre que eu pedi, mas é o que Deus quer e eu
também”. Rogou ao Padre pedisse por ela perdão a toda a comunidade, assim de
alguma ofensa que lhe houvesse feito, como do mau exemplo que lhe teria dado.
Também pediu à Prelada a sua bênção, e desapropriando-se do nada que tinha,
lhe fizesse esmola de um hábito para se amortalhar e cova para a sepultura, o que
tudo fez o Padre em seu nome. E logo com sua costumada devoção, recebeu o
Senhor por viático e, tomado o lavatório, cerrou os olhos e a boca, seu usado cos-
tume, e não disse mais palavra. Deram-lhe o Santo Sacramento da unção, e co-
meçou a rezar o Padre o ofício da agonia, e no fim deste se foi desta vida presen-
te para a eterna, composta, com a brandura de um suave sono, que nem deu
mostras de que havia expirado, e foi necessário fazerem-se algumas experiências
para certeza de que estava morto aquele corpo, que tão vivo foi sempre para o
serviço de Deus. Estando tão quebrado e consumido das penitências e mortifica-
ções, que a vista parecia um cadáver em vida, ficou depois da morte tão formosa
que parecia estar na primeira idade dos seus anos; e não sendo de cor muito alva,
então o ficou sendo. Romperam as religiosas em lágrimas, que até ali represavam
por lhe não causarem turbação, e pelo respeito com que sempre a veneravam pe-
las suas virtudes, lamentando a perda de um tal tesouro e a falta de uma tal religi-
osa, como era a Madre Maria da Soledade. Compuseram as religiosas o seu cor-
po e o levaram para a capelinha do Senhor dos Passos, onde esteve aquela noite
depositado, e na manhã seguinte rezaram aí as Matinas, e estando no esquife a
defunta, com tão agradável presença que parecia estar viva pela extraordinária
formosura de que se achava revestida. Foi o seu ditoso trânsito em uma segunda-
feira pelas dez horas da noite, em o dia trinta de outubro de 1719, tendo de idade
cinqüenta e um anos, dois meses e seis dias, e de hábito de Religião trinta e dois
anos, oito meses e vinte e oito dias.

(“Novo Ordo Seráfico”, de Frei Jaboatão, págs. 747/770)

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NOTAS
1) – O Autor quer se referir, provavelmente, ao tipo de impressão do livro: M S.
2) – Tença era a pensão ou mesada que as religiosas recebiam de seus familiares,
do Governo, ou mesmo de parentes e amigos.
3) – Pequeno pote para água;
4) – Relinchos.
5) – Tratamento da época, à base de sangria para fazer sair o sangue pisado e em-
plastro para cobrir o ferimento.
6) – Assinalado.
7) – O Colégio era como se chamava a primeira escola dos Jesuítas, inaugurada em
1549 pelo Pe. Manuel da Nóbrega.
8) -

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Outras religiosas que deixaram fama de santidade no Desterro

Entre as oito noviças de que já se fez menção sem se lhe declarar o nome,
tomaram o hábito nos primeiros anos da fundação deste Mosteiro, desde agosto
de 1683 até março de 1684, foi uma a Madre Soror Brites da Esperança, filha legí-
tima de Francisco Corrêa Lima e de sua mulher Ana Vieira, natural de Goruguaia,
distrito da vila de Sergipe do Conde, no Recôncavo da Bahia. Em o primeiro de
setembro do ano de 1683, com doze de idade, tomou o hábito, dando seu pai, a-
lém de seu assinado, por esmola para as obras do Mosteiro oitocentos mil réis.
Não se declara nos livros do convento quando professou, e só diz um memorial
que dele nos deram que professara tendo a idade competente. Com os dotes, que
participou da natureza de bom entendimento, formosura pessoal e outros mais,
soube merecer também os da graça pelas muitas virtudes que praticou no estado
de religiosa, com uma vida em tudo exemplar. Foi Mestra da Ordem, e ainda hoje
se conservam entre as religiosas que a conheceram, saudosas memórias do bom
exemplo e doutrina com que criou e soube instruir como boas Mestras suas discí-
pulas, e edificar a todas as mais. Com estas mostras de exemplar e religiosa virtu-
de, faleceu em idade de cinqüenta e nove para sessenta anos, diz referida memó-
ria que nos deram, sem lhe assinar o ano em que faleceu; e se havia tomado o
hábito em 1683 com doze anos de idade, e faleceu com cinqüenta e nove para
sessenta de vida, devia ser no de 1730 para trinta e um.
Com o papel em que estava escrita a vida da Madre Maria da Soledade,
que já fica lançada aqui em seu lugar, nos fez também entrega o R. Doutor João
Borges de Barros de outro papel, em que se achava o assento seguinte: Em três
de outubro do ano passado de 1738, véspera do Padre São Francisco, faleceu
com grandes mostras de predestinada no Convento de Santa Clara do Desterro
da Bahia, com oitenta e oito anos de idade, a M. Soror Martha de Cristo, natural
da mesma cidade e das principais famílias do Brasil; havendo sido a primeira reli-
giosa que professou no dito Convento, em que tomou o hábito a 28 de janeiro de
1678, e primeira Abadessa dele por eleição em 16 de julho de 1686, em que se

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ausentaram as religiosas fundadoras para o seu convento de Santa Clara da cida-
de de Évora.
Este assento pela forma e termos em que está lançado, mostra ser feito
não por religiosa do convento; porque sendo por alguma delas, quando diz – Pelas
três horas da tarde, véspera de S. Francisco – não devia falar desta sorte; mas
assim: - Véspera de N. P. S. Francisco, - e conforme entendemos foi feito pelo R.
Doutor João Borges de Barros, que me fez dele a entrega, e naquele tempo era já
cônego na Sé da Bahia, e contraía parentesco com esta religiosa, que no século
se chamava D. Martha Borges de França. Foi feito este assento logo depois da
morte da sobredita religiosa, como do mesmo se colhe, quando diz – Em três de
outubro do ano passado; e por esta circunstância digna de crédito; além de que
tudo o que se refere se confirma com o que já atrás fica escrito e se conserva na
memória de religiosas antigas, que ainda existem no mesmo Convento, que trata-
ram e conheceram a Martha de Cristo por uma das grandes Servas de Deus, co-
nhecida e venerada como tal por todas. Não declara o assento quem foram seus
pais e só que eram das principais famílias do Brasil, o que assim era; pois como já
em outro lugar fica declarado, era D. Martha Borges de França, que assim se
chamava, filha legítima de Salvador Corrêa Vasconcelos e de sua mulher D. Mar-
garida da França Corte Real, dos quais se conserva ainda nobre descendência.
Tomou D. Martha o hábito em idade de vinte e oito anos no já referido de 1678 em
28 de janeiro, sendo a primeira religiosa, como fica dito, que passados alguns dez
meses depois de chegarem de Portugal as religiosas Fundadoras, e estarem no
recolhimento do Desterro todo este tempo sem o efeito a que tinham vindo, de se
receberem noviças para ela pela dificuldades que já ficam também referidas, foi D.
Martha, como dizemos, a primeira que abriu caminho às mais, e não só serviu de
norte , e guia às que se foram logo seguindo; mas para todas foi sempre nos dila-
tados anos que no Convento viveu religiosa um incentivo de virtudes e exemplar
de perfeição. Pelas mesmas dificuldades referidas se dilatou a ela, e as mais que
se lhe seguiram, alguns três anos a profissão, e a fez em 22 de abril de 1681. Pela
conta dos anos, que diz o assento acima viveu, que foram 88, entrando na Religi-

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ão de 28 de idade, foi o de seu feliz nascimento no de 1650, vivendo religiosa ses-
senta anos.
No ano de 1686, aos 18 dias do mês de dezembro, entrou neste convento
para religiosa de véu preto, sendo Abadessa a R. M. Martha de Cristo, Margarida
Dias Jardim, que depois se chamou Margarida da Coluna, segunda deste nome,
filha legítima de Domingos Dias e de Ignácia da Costa Jardim, natural da vila de
Cayru, batizada na igreja de Nossa Senhora do Rosário da mesma vila, no ano de
1662. Contava de idade quanto entrou vinte e quatro anos. Em religiosa desem-
penhou o nome que escolheu porque foi uma grande e forte coluna deste Conven-
to, sendo dotada de bom entendimento, escreveu a narração que já aqui fica lan-
çada da vida de Madre Maria da Soledade, companheira e coadjutora dos seus
santos exercícios. Serviu o cargo de Vigária da Casa, e na era de 1732 foi eleita
em Abadessa, cargo que exerceu com grande zelo e cabal satisfação. Cuidou
sempre e muito no aproveitamento e bem espiritual não só daquelas pessoas que
tinha a seu cargo, mas em comum de todas, procurando por meio de santos exer-
cícios conduzir a todos ao caminho da salvação. Todas as noites lia uma lição es-
piritual, a que ela chamava Lenda, e para que todas a ouvissem o fazia na capela
do Senhor dos Passos, a qual acabada começava a rezar o Terço da Senhora
para o que compôs muitas jaculatórias, e obrigava a todas as servas do Convento,
sendo Prelada, para que o fossem rezar; e ao sábado o fazia cantar, e não sendo
Prelada convidava para isso as religiosas músicas. Ela deu princípio aos exercí-
cios de Santo Inácio, Boa Morte e Via-Sacra, e todos os mais que ainda hoje se
praticam no Convento se devem ao seu zelo e devoção. Convidava a todas as
pessoas para ganharem as indulgências plenárias da ordem, das quais tinha feito
um caderno para melhor lembrança delas. Foi companheira nas penitências da
Madre Victória, e em velarem toda a noite e dia no coro nas mais devoções, e as
ficou continuando depois de morta a companheira. Tinha mais de oitenta anos de
idade e nunca dispensou com a obrigação do coro, no qual assistia desde Matinas
até a hora de Noa, ficando aí em oração e ouvindo todas as missas; e o mesmo
fazia depois de vésperas, de sorte que no coro era toda a sua assistência. Nunca
teve o tempo ocioso, porque ainda algum que lhe restava dos seus espirituais e-

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xercícios e outras ocupações, o gastava em ensinar a umas a língua latina, que
sabia muito bem, e a outras a Doutrina Cristã.
O jejum foi nela indispensável, pois além daqueles a que pela Igreja e Re-
gra era obrigada, muitos dias o fazia por devoção e penitência, ou mortificação.
Também foi contínua no rigor da disciplina e cilício com que castigava o seu débil
e enfraquecido corpo. Advertiram as religiosas que a compuseram depois de mor-
ta, que no tempo da enfermidade também não dispensara nesta mortificação pelas
pisaduras e sinais que lhe acharam. Também notaram que entre as aflições da
doença muitas vezes se punha em cruz sobre a cama, mostrando lembrar-se da
Agonia que o Senhor padeceu na cruz. Faleceu esta Serva de Deus aos vinte e
dois de dezembro do ano de 1743, tendo de idade oitenta e um e de Religião al-
guns cinqüenta e sete. Depois de alguns anos, abrindo-se a sua sepultura se a-
chou sobre a sua caveira um Rosário de contas brancas que levara ao pescoço
quando a sepultaram, o qual estava disposto ao modo de uma capela ou coroa, e
tão novo que não parecia estar entre a terra; daqui se ficou inferindo o quanto se-
ria agradável à Mãe de Deus a devoção do seu Terço, que ela com tanto zelo re-
zava e fazia rezar todas as noites, além de outros muitos serviços que fazia à
mesma Senhora. Nestes santos exercícios por morte da Madre Victória, ficou con-
tinuando com a Madre Maria da Soledade, que todas três floresceram ao mesmo
tempo, ficando por morte da Madre Victória as duas companheiras, a Madre Maria
da Soledade e a Madre Margarida da Coluna. Esta sem dúvida foi aquela que as-
sistia no coro à oração com a Madre da Soledade, quando lhe aconteceu o caso,
que fica referido na sua vida, da perturbação e arrojo que fez dela o inimigo co-
mum lançando-a do coro pelos ares, caindo fora dele pela escada como morta; e
por isso escrevendo a Madre Margarida da Coluna este caso, e dizendo estava na
oração e coro com a Madre Maria da Soledade outra religiosa, não declara quem
fosse esta. Da Madre Margarida da Coluna, sendo ainda viva, testificou uma reli-
giosa que entrando na sua cela às três horas da madrugada a espertá-la para o
coro, a achou dormindo com um tal resplendor que não parecia ser ela. Tudo o
referido consta de uma breve relação, que com as que já referimos nos deu o so-
bredito Doutor Tesoureiro Mor João Borges de Barros, que pelos caracteres mos-

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tra ser antiga e concorda em tudo com outra moderna que agora se nos comuni-
cou por ordem da Madre Abadessa deste Mosteiro.
Com o bom exemplo destas religiosas, criada com a sua doutrina e compa-
nheira também dos seus virtuosos exercícios e boas operações, viveu bastantes
anos ainda depois delas, conservando sempre na alma o santo fervor do espírito,
que delas havia participado a Madre Florência da Ressurreição. Foi filha legítima
do capitão Simão da Silva de Andrade e de sua mulher Catarina Vieira. Na Sé Ca-
tedral desta cidade foi batizada.
De onze anos tomou o hábito aos oito dias do mês de setembro de 1689, e
no mesmo dia e mês do ano de 1695 fez a profissão como discípula e companhei-
ra de três Mestras, e por participar por graça superior de uma condição mansa e
um natural brando e humilde, viveu sempre religiosa perfeita e com opinião de vir-
tude, tendo de idade oitenta e três anos, e de Religião setenta e dois, completou
os dias aos quinze de abril de 1761 pelas três horas da tarde. No outro dia se deu
à sepultura o seu cadáver, e lhe foram fazer os ofícios e honra fúnebres, e assistir
ao enterro os religiosos deste convento da Bahia com o seu Guardiam, querendo-
lhe pagar com estes obséquios o sincero e verdadeiro amor que a todos mostrava,
tratando-os por seus Irmãos assim na presença como na ausência, e o afetuoso
do seu espírito, com que parece se arrebatava quando falava e ouvia nomear o
Santo Patriarca, chamando-o com profunda reverência, “Meu Padre S. Francisco”,
que no céu lhe pagara esta veneração assim como na terra lhe pagaram os filhos
o santo amor que lhes tinha.
Estes foram os sazonados frutos, que como primitivas plantas do jardim de
Santa Clara do Desterro na Bahia, entre as mais, que nele nasceram nos primei-
ros dez para onze anos de sua fundação, brotaram tão copiosamente como rega-
das com as salutíferas águas e vigorosos espíritos das suas Religiosas Fundado-
ras. Da modernas pela fertilidade do seu espírito não desmerece o ser numerada
entre aquelas primeiras a Madre Maria de Jesus. Chamou-se no século D. Maria
Bolcôa, filha legítima de Antonio Velho Machado, hoje religioso de São João de
Deus no hospital da vila de Cachoeira, distrito da Bahia, para onde se recolheu e
traspassou o outro hospital junto ao nosso convento de Paraguaçu, a que se havia

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recolhido em secular por morte de sua mulher D. Ana de Souza de Aragão, filha
do Alcaíde Mor da cidade da Bahia Francisco de Araújo de Aragão, e mãe da Ma-
dre Maria de Jesus. Foi a Madre Maria de Jesus no século por parte paterna sexta
neta de Diogo Álvares Corrêa, o Caramuru, e de sua mulher legítima Catarina Ál-
vares, índia principal da Bahia; porque destes foi filha segunda legítima Genebra
Álvares, que casou com Vicente dias de Beja, natural do Alentejo, moço fidalgo da
casa do Infante D. Luiz. Destes, foi filha Maria Dias casada com Francisco de Ara-
újo, da nobre família dos Araújos de Ponte de Lima, e destes foi filha D. Maria de
Araújo, que casou a primeira vez com Baltazar de Aragão, o Bângala, primeiro
deste apelido na Bahia, donde foi governador interino por morte de D. Diogo de
Meneses, Governador Geral do estado pelos anos de 1613. De D. Maria de Araújo
e seu marido Baltazar de Aragão, foi filho Francisco de Araújo de Aragão, casado
com Ana de Barros Sueiros, e destes foi filho outro Francisco de Araújo, Alcaíde
Mor da Bahia, casado com D. Águeda de Góes, a qual era filha de Manoel Pereira
de Goes e de sua mulher D. Ana Brandão, filha de Antonio de Souza Andrade,
que dizem era filho natural del-Rei D. Pedro II (1), e deste Francisco de Araújo de
Aragão, era filha D. Ana de Souza de Araújo, que casou com Antonio Machado
Velho, pais que foram desta religiosa. Foi batizada na freguesia e Matriz de São
Bartolomeu de Maragogipe, recôncavo da Bahia, e tendo de idade vinte e três a-
nos completos tomou o hábito em vinte e dois do mês de junho de 1741. Mostrou
em todo o decurso da vida ser religiosa perfeita em todas as suas ações, alegre
no aspecto, dotada de uma santa simplicidade, que mais inculcava ser graça su-
perior que defeito da natureza. Foi muito inclinada e assistente ao coro, dada à
oração, na qual gastava muitas horas do dia e da noite, exercitando-se em muitas
penitências, que ocultava por humildade, devotíssima do Rosário da Senhora, e
estando muito mal da enfermidade de que acabou o não deixava de rezar, e na
véspera de seu falecimento, porque já o não podia fazer, mandou a sua serva que
lhe assistia rezasse em voz clara para ela o ir assim meditando. E assim acabou
com sinais demonstrativos da sua salvação aos cinco dias do mês de agosto de
1761 ao romper do dia. Desta religiosa dizia o seu confessor, o Padre Luiz da Ro-
cha, capelão do Mosteiro, e o Padre Escoto da Companhia, que nunca perdera a

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graça batismal, e até fora do Mosteiro foi notória a sua virtude e boa fama; pois em
um MS que trata das famílias da sua ascendência, feito por pessoa curiosa, e que
não contrai com a família parentesco algum na árvore dos filhos do sobredito An-
tonio Machado Velho e de sua mulher D. Ana de Souza de Aragão, escreve assim
– Teve uma filha, que foi D. Maria Bolcôa, que é freira do Desterro da Bahia de
uma vida Religiosa.
A Madre Josefa Tereza de Jesus, filha do capitão mor José Pires de Carva-
klho e de sua mulher D. Tereza Cavalcante e Albuquerque, que era irmã legítima
da Madre Antonia do Paraíso, de quem já aqui se fez memória. Foi batizada na
Matriz da Conceição da Praia da Bahia.
De idade de quinze anos, a 22 de outubro de 1717 tomou o hábito. Ouvindo
nos primeiros anos de religiosa a missão de certo missionário na igreja do seu
Mosteiro, se dispôs com grande fervor de espírito a empregar-se toda no serviço
de Deus; e depois de gastar alguns anos nos exercícios da vida espiritual enfer-
mou de muitos achaques, que se foram seguindo uns aos outros por espaço de
28 anos, e sofreu com grande paciência e conformidade, e só se afligia por não
poder cumprir as obrigações do seu estado. Assim enferma nunca perdeu as hora
costumadas da sua oração. Era muito caritativa e a maior parte da sua tença a
repartia em esmolas. A roupa do seu uso era a mais grossa, como estopa e outras
semelhantes. Na sua cela não havia outro ornato mais que uma pobre cama de
couro e um bofetezinho (2) de pau liso, sobre o qual tinha algumas imagens da sua
devoção e a sua caixa, um balaio, e em tudo tão reformada como uma verdadeira
filha de Santa Clara e S. Francisco, sendo sobretudo admirada a sua rara paciên-
cia com a qual pôs fim às suas enfermidades corporais aos 28 dias do mês de a-
gosto deste ano de 17864.
Não só se ilustrou muito este Convento com as vidas e virtudes destas reli-
giosas, também lhe serve de grande crédito o haver dado outras de virtude e ca-
pacidade para Fundadoras de alguns Mosteiros. Em 7 de setembro de 1744, saí-
ram deste Mosteiro para Fundadoras do de Nossa Senhora da Lapa desta mesma
cidade a Madre Maria Caetana da Assunção por Abadessa, e a Madre Josefa Cla-

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ra de Jesus por Vigária e Mestra; esta ficando ali incorporada por Breve Apostóli-
co, a outra voltou outra vez ao seu Mosteiro em dez de dezembro de 1750.
Para Fundadora do Convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda,
da cidade do Rio de Janeiro, saíram deste em dia do Patrocínio de Nosso Senhor
do ano de 1748 quatro religiosas, e por Abadessa a Madre Leonor Maria do Nas-
cimento, e passados ali alguns treze anos se recolheram todas a este em quarta-
feira de trevas de 1761.

NOTAS:
1) – Dom Pedro II, rei de Portugal de 1683 a 1706.
2) - “Bofetezinho” é, na verdade, um pequeno “bufê”, uma mesinha ou aparador.

(“Novo Ordo Seráfico”, de Frei Jaboatão, pp. 770/779)

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