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2018/2
Na ciência da escrevivência:
Resumo: Este trabalho busca refletir sobre a produção intelectual negra no meio acadêmico a
partir de trabalhos da escritora mineira Conceição Evaristo, em especial, os postulados
teóricos de sua dissertação de mestrado em Literatura Brasileira (PUC-RJ) e sua tese de
doutorado em Literatura Comparada (UFF). Ciente das particularidades que envolvem a
produção intelectual de mulheres negras, e entendendo a escrita como uma parte
indissociável, busco um entendimento dessas subjetividades e experiências nesse meio, e que
estabelecem outras concepções dos nortes de uma pesquisa. Tendo Conceição Evaristo
proposto uma chave de leitura embasada na teoria que desenvolve, a qual possibilita repensar
a história da literatura brasileira como um todo, busco uma reflexão que, privilegiando a
construção histórica dos atributos que condicionam a escrevivência, pense a circulação dos
saberes produzidos na universidade, em específico as “escritas de si”, considerando em
expansão as possibilidades desse campo.
I. Uma intelectual negra produzindo entre as academias
1
Ver:ABL frustra expectativas de campanha por Conceição Evaristo e elege Cacá Diegues como novo imortal:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/30/cultura/1535658767_015684.html Acesso em 05 fev. 2019.
interesses e movimentações, foi criada, e assim #ConceiçãoEvaristoNaABL tomou espaço.
Com o resultado, a entidade criada por Machado de Assis em 1897 refletiu um distanciamento
não somente de um arcabouço teórico-literário, mas sobretudo, de leitores e leitoras ansiosos
pelo reconhecimento formal de sua literatura, de suas experiências. Se escolhida como
“imortal” da ABL, Conceição seria a primeira mulher negra da instituição, cujo discurso de
fundação2 evocava o desejo de “conservar, por meio da federação política, a unidade
literária”. Possuindo a entidade tais “feições de estabilidade e progresso”, conceito esse tão
caro à história e ao sujeito que se desenvolveu na modernidade, podemos pensar que a ficção
desenvolvida pela escritora mineira talvez de fato não corresponda aos inabaláveis ideais de
tanto republicanismo: deslocando o eixo desses valores, em narrativas sobre experiências que
seguiram caminhos diferentes daquilo que embasou esse conceito, bem como, com outras
relações e vivências com a memória e a religiosidade, sua obra literária é um profundo
mergulho nas existências “do outro lado do progresso”.
Por que, então, tamanho significado na eleição da criadora de Ponciá Vicêncio? Para
além de questionar o quê, de fato, a academia faz3, são notórias as escolhas, no mínimo
inusitadas, que colocam Darcy Ribeiro e Lygia Fagundes Telles em um status ao lado de
“escritores” como Ivo Pitanguy, Roberto Marinho e o sempre lembrado José Sarney.
Garantindo honrarias a intelectuais que serviram de base teórico-jurídicas em episódios
dramáticos da história brasileira - como o movimento integralista, a ditadura civil-militar e o
farsesco processo jurídico do impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 - trata-se
da Academia que acolheu discursos racistas como do médico Afrânio Peixoto, sucessor de
Euclides da Cunha, em seu ímpeto de jogar fora a “borra negra” em prol do surgimento, em
questão de “duzentos anos”, de um país branco e civilizado, na mesma linha de tantos outros
colegas, como apontou Clóvis Moura (1994, p.185).
Ora, como bem respondido por Conceição ao jornalista Juremir Machado (2018), de
acordo com o estatuto da ABL, todo cidadão e cidadã brasileira que tiver um livro publicado
pode concorrer – e apesar de aparência tão democrática, permitiu o ingresso de escritoras
somente em 1977, contando com oito mulheres entre seus 295 imortais. Além do
historicamente embranquecido Machado de Assis, o único escritor negro até a eleição do
poeta e professor Domício Proença Filho, em 2006. Porém, frente à fechada conclusão de que
2
Cf. Discurso de Machado de Assis: http://www.academia.org.br/academia/discurso-de-machado-de-assis
Acesso em 05 fev. 2019.
3
A pergunta tal e qual foi disparada pelo escritor gaúcho Caio Fernando Abreu à escritora Rachel de Queiroz em
julho de 1991 no programa “Roda Viva”, da TV Cultura. A sarcástica porém oportuna pergunta foi o ponto alto
de uma discussão entre ambos, pois Rachel defendia a ditadura civil-militar.
a ABL, logo, seria racista, ela apressa-se: “Os negros, não só na Academia, não estão
presentes nos espaços representativos desta nação” (idem). Para além da assimilação
eurocentrada na Academia Francesa de Letras, os jovens escritores, interlocutores da corrente
europeia e incentivados desde Pedro II em seu “afã civilizatório”, acabaram provocando uma
distância de grande parte da população, não introduzindo-se no pensamento de seu povo,
conforme o extenso estudo de Costa Lima (2007). O romance no Brasil, encabeçado por essa
intelectualidade, em sua constituição apagou seu gérmen de fabulação, do imaginário, de uma
subjetividade passível de um questionamento ou mesmo de reflexão (idem, p.122). Um
caminho semelhante fez também a História enquanto disciplina.
Mas não somente a literatura de Conceição Evaristo foi esnobada: a escritora carrega
uma sólida produção acadêmica, construída em meio a sua obra literária, propondo outros
modos de ver a literatura desenvolvida por escritores/as negros/as, através de experiências em
comum que atravessam não somente os continentes e oceanos, mas também o tempo como em
geral é concebido. Defendendo em 1996 sua dissertação de mestrado em Literatura Brasileira
na PUC-RJ, e sua tese de doutorado em Literatura Comparada na UFF em 2011, sua produção
teórica é amplamente referenciada em eventos, universidades, programas de pós-graduação,
entidades oficiais de governo, entre outros espaços. Porém, como diz na entrevista à filósofa
Djamila Ribeiro, sua requisitada agenda é também envolta pelo isolamento que condiciona
produções que deslocam o eixo da narrativa, e consequentemente, da produção de
conhecimento (EVARISTO, 2017). Se uma escritora negra oficializando sua candidatura a
“imortal” causa desconfortos justamente pela atenção que mobiliza, a acadêmica propositora
de chaves de leitura que repensam a subjetividade, a literatura e a história, tem uma recepção
na universidade também questionada, perturbando os emblemas intelectuais de
departamentos. Minha intenção, a partir de sua produção acadêmica, é refletir sobre a
circulação do conhecimento produzido na universidade, em especial no campo das “literaturas
de si”, uma área profundamente influenciada também pelo mercado editorial. Sabemos que
uma obra literária pode ser “esquecida” pela “frágil memória” do mercado, mas poderia uma
teoria também ser “esquecida” pelos corredores universitários?
Sua produção difere por lançar mão de um conjunto epistemológico em diálogo com
sua prosa e poesia – uma literatura negra consoante a um saber que, mesmo feito sob os
moldes da ciência que se questiona, busca refletir o sujeito que se auto-representa na pesquisa,
condensando atributos tão caros, como a oralidade, a memória e o corpo, em um texto. Um
texto, contudo, que não foi construído “adaptando” bibliografias andro-eurocêntricas,
tampouco reproduzindo um presente simplesmente resultado da sucessão de feitos passados.
Ao contrário, lhes responde. Essa escrita tende à produção de uma dicção poética que parte de
instrumentos de análise específicos, muitas vezes emergindo do próprio texto em estudo, pela
sua capacidade de agência, segundo Souza (2018, p.34).
Tais movimentos não ocorrem sem entraves: a entrada dos “diferentes” e “ex-objetos”
como pesquisadores traz um campo de tensão epistemológica, e também política, seguindo
Nilma Gomes (2009, p.434), pois refletir sobre as vivências de mulheres negras, das mais
diferentes regiões brasileiras, também desloca as próprias certezas de um movimento como o
feminismo. Na linha da historiadora Idalina Freitas (2017), nessa escrita insurgente e
descolonizada de mulheres negras, percebem-se outros saberes, com grandes mudanças que se
dão pelo conflito, negociação, mas que, por fim, concebem algo novo. Como no meio
acadêmico, é somente no tempo que chamamos de pós-modernidade, seguindo muitas lutas e
conquistas, que são possibilitadas as condições de fato para uma busca efetiva desses sujeitos
na procura de uma estética própria, para além das representações do modernismo (PAULA,
2014, p.97). Essa busca, assim, produz novas ideias daquilo que significa um “cânone”, outras
maneiras de como contar-se a partir do próprio passado e, consequentemente, outras leituras e
recepções dessas escritas. Se narrar o próprio passado numa escrita de si é um movimento de
subjetivação, valorizando-se segundo parâmetros próprios, como lembra Rago (2018, p.213),
também a escrita acadêmica não está tão distante. Apesar da comum exigência da
neutralidade, objetividade e cientificidade como postulantes, como se fossem noções a-
históricas, a escrita é condicionada a partir do que possibilita sua produção, bem como a
subjetividade daquele/a que escreve. É possível abandonar as linhas da subjetividade nessa
empreitada, quando o “objeto/sujeito” de uma pesquisa está no próprio pesquisador, em seu
passado? Se possível for, é desejável?
Quando refletimos sobre tais temas, devemos lembrar do quê consiste essa produções
textuais. Em geral, requisito para obtenção de um título de mestre ou doutor, um trabalho
original, entre 100 e 400 páginas a ser julgado para obtenção do título capaz de progredir a
disciplina a que se dedica, e significando, por fim, construindo um objeto que também sendo
útil para os outros, resumindo o referenciado entendimento de Umberto Eco (2007, p.32,
p127). A objetividade é parte da pesquisa, pois o que há de ser defendido não baseia-se em
uma “opinião”, mas em uma hipótese, fundamentada e passível de verificação. Porém, a
escrita, enquanto também parte indissociável do percurso, sofre a interferência incontornável
da subjetividade – o que aparenta o dilema de oposição a uma objetividade clássica, fixa nos
moldes da racionalidade cartesiana, “exterior ao processo”. Para Freitas (op.cit., p.737), torna-
se justo e mesmo ético a intersubjetividade se expor, ficando assim o desafio ao pesquisador
de entremeá-la com o caráter formal e objetivista exigido pela academia. Dessa forma, Luiza
Bairros (1995, p.462) estabelece que o pessoal constitui um início para a conexão entre
politização e transformação da consciência, e assim a mulher negra terá sua experiência
diferenciada do discurso clássico, considerando os efeitos das opressões em suas identidades,
como escreve também Sueli Carneiro (2003, p.50). A cientificidade ganha força com o que
advém do subjetivo, um elemento também posto ao trabalho intelectual, ao rigor, à discussão
e à reflexão. Assim, a pluralidade da ciência, segundo as palavras de Gomes (op.cit., p.408) é
marcada pelas contribuições de diversas perspectivas feministas, pós-coloniais e
multiculturais, podendo ser entendida como epistemologias, que buscam uma terceira via
entre o científico, e outros sistemas de saberes que funcionam alternativos à ciência,
questionando sua neutralidade, e por consequência, a experiência que torna o científico como
único parâmetro. Dessa forma, pensando as conquistas do movimento negro, escreve:
A inserção de negros e negras no campo da pesquisa científica e da produção do
conhecimento não mais como objetos de estudo, mas como sujeitos que possuem e
produzem conhecimento faz parte da história das lutas sociais em prol do direito à
educação e ao conhecimento assim como da luta pela superação do racismo. (idem)
Tais matizes, aparentemente tão individuais, parecem situações particulares, mas são
componentes dos processos de escrita e produção intelectual da mulher negra. Lembra bel
hooks que, dentro do patriarcado hegemonicamente branco, toda a cultura se move no sentido
de negar à intelectual negra a chance de uma “vida da mente”, tornando esse domínio um
interdito, baseado em uma socialização sexista que reserva a essa parte da sociedade o
trabalho intelectual como secundário a outros locais a que supostamente pertence (idem,
p.468). Logo, todas as etapas dessa trajetória de produção são marcadas pelos movimentos
nebulosos de muitas exclusões, bem como acompanhado de uma grande carga de cobrança –
interior e exterior. Desde a escrita da tese, esse “mergulhar no pensamento e escrita solitários”
(idem, p.471), o sentimento de solidão e isolamento será constante até os momentos de
reconhecimento oficial do trabalho, mesmo em sua circulação. Perguntada por Djamila
Ribeiro sobre como havia sido receber o prêmio Jabuti, Conceição responde que mesmo
sendo um momento muito feliz, era ao mesmo tempo, um “prêmio da solidão”:
Eu desejei muito reconhecer ali os meus pares. E você vê que a literatura ainda é um
espaço de interdição. A literatura como sistema, porque o texto é uma coisa, mas o
sistema literário é formado por editoras, por críticos, pela mídia, pelas bibliotecas,
livrarias, prêmios. Nós podemos contar nos dedos os números de escritores negros
que receberam o prêmio Jabuti. Um crítico literário pode dar visibilidade ao seu
texto ao mesmo tempo que pode acabar com você como fizeram muitas vezes com a
Carolina Maria de Jesus e continua se repetindo. O sistema literário está nas mãos
das pessoas brancas. Por isso a importância das editoras que dão espaço para a
autoria negra. (EVARISTO, 2017)
4
Cf. SANTOS, Joel Rufino dos. (1985)
identidade coletiva negra, e escrita por um pesquisador negro, a intelectualidade brasileira
produziu um movimento de dissertações e teses questionadoras dos métodos “tradicionais”,
repensando o eixo da história devido à dimensão da experiência da escravidão, a partir da
reelaboração do sofrimento e expropriação, mas também, pelo novo olhar à resistência e suas
inúmeras manifestações. Nesse sentido, além da figura de Zumbi, que ganha status central
nessa reelaboração, também ocorre um novo entendimento das possibilidades da própria
linguagem e do cotidiano5.
5
Cf. NASCIMENTO, Beatriz. In: RATTS, op.cit., p.117-125.
6
Textos gentilmente cedidos pela pesquisadora, a qual registro meu sincero agradecimento.
7
Como bem resume Machado (2014, p.53), o Quilombhoje foi criado em 1980, uma das muitas organizações
negras voltadas voltadas para arte e literatura, nas quais inicia-se “a delimitação de um projeto estético e
ideológico para a Literatura Negra”, que “deixa de ser uma estética pura e/ou epidérmica para se tornar, sob a
ótica de seus produtores, uma estética engajada, enunciadora de uma visão social de mundo, de uma fração de
(EVARISTO, 2013, s.p.). Assim, vemos na sua investigação, não somente o caráter original
da concepção de Umberto Eco, mas uma profunda relação com as experiências e urgências
desse sujeito-coletivo: um esforço não somente para se manter na vida intelectual mas pela
própria continuidade histórica, nas palavras de Beatriz Nascimento (op.cit.,p.109). Nesse
sentido, escreve Conceição Evaristo em sua dissertação:
“Tendo sido o corpo, durante séculos, violado em sua integridade física, interditado
o seu espaço individual e social pelo sistema escravocrata do passado e hoje ainda
por políticas segregacionistas existentes em todos (...) os países em que a diáspora
africana se acha presente, coube aos descendentes dos povos africanos espalhados
pelo mundo, inventar formas de resistências. Vemos, pois, a literatura negra buscar
modos de enunciação positivos na descrição desse corpo negro” (1996, p.110).
Nesse sentido, mais do que simplesmente ornar sua dissertação, as dezenas de poemas
são de fato a sua “fonte” à qual se lançam perguntas, mas que não esgotam-se como uma
fonte regular, mas sim, fazem parte da literatura enquanto um “movimento” que não cessa.
Pensa-se também em outro modo de organizar a linguagem, disposta na oralidade como
transmissão de informação pela memória, e também por práticas diferentes daquela que é a
experiência descrita com as ferramentas da linguagem que conhecemos em geral - um esforço
grupo social, ao menos para alguns coletivos de escritores negros” (DA SILVA apud MACHADO, idem). Os
Cadernos Negros, publicação anual editada pelo grupo, onde Conceição publicou pela primeira vez, surgem em
1978 como primeira tentativa de reunião de escritores negros, em torno de uma publicação coletiva,
permanecendo em atividade até a atualidade, com a missão de “incentivar a leitura e dar visibilidade a textos e
autores afrodescendentes” Ver: http://www.quilombhoje.com.br/site/cadernos-negros/. Acesso em 05 fev. 2018.
de narração que se dá na língua que é do outro, estando desterritorializado e apartado. Uma
linguagem envolta pela religiosidade, por Exu, “o mais humano dos orixás”, pois, como
relembra Conceição, a “organização religiosa negra de matriz africana, como o candomblé,
desde a escravidão se torna um espaço de vivência do corpo negro” (idem, p.97),
experimentando uma forma de pertencimento a uma coletividade, religiosa e social, uma
vivência mítica que é, antes de tudo, uma vivência do corpo. Por isso, recebe destaque a
figura de Exu, com suas contradições e ambivalências, guardião do corpo, e que com a dança,
transmite conhecimento de geração a geração, integrando indivíduo e grupo através do
batuque. Esse “desamarrar-se” através de uma auto-reflexão é um movimento de uma “função
exusíaca” da linguagem, como coloca Cuti (2012, s.p.).
Como mencionado, refletir sobre tais questões é também por vezes discordar, dentro
do campo de discussão de ideias e hipóteses. Como bem lembra a escritora, “conceituar uma
produção literária, adjetivando-a através de um vocábulo que traz uma referência étnica e uma
história semântica carregada de sentidos pejorativos é incorrer em alguns riscos” (idem, p.22).
O “risco” era tal em 1996, e em prol do conhecimento, seguem existindo, e assim, a pesquisa
de Conceição Evaristo abriu portas para discutir de quê estamos falando quando nos referimos
à literatura negra e/ou afro-brasileira. Citando Eduardo de Assis Duarte (2010, p.115), ao
olhar em retrospecto a história desses conceitos, a publicação dos Cadernos Negros contribui
em muito para a configuração discursiva de um conceito de literatura negra, porém, vários
intelectuais envolveram-se nesse debate, em uma frutífera discussão.
Por outro lado, as reflexões de Lobo definem a literatura afro-brasileira como uma
produção de afrodescententes que se assumem ideologicamente como tal, por um sujeito de
enunciação próprio, distinguindo-se de imediato, da literatura de autores brancos a respeito do
negro, enquanto objeto, tema ou personagem (2007, p. 315, grifo meu). Nesse sentido,
ressalto aquilo que Duarte vai estabelecer como aquilo diferencia a literaturas
(negra/afrobrasileira): em temática, autoria (enquanto uma constante discursiva), ponto de
vista, linguagem, e, eu destaco, o público – seus leitores e leitoras. É esse público, marcado
pelas diferenças culturais e anseio de afirmação da identidade, que compõe o lado “utópico”
da empreitada, especialmente após nomes como Solano Trindade e Oliveira Silveira:
Este impulso à ação e ao gesto político leva à criação de outros espaços (...): os
saraus literários na periferia, os lançamentos festivos, a encenação teatral, as rodas
de poesia e rap, as manifestações políticas alusivas ao 13 de maio ou ao 20 de
novembro, entre outros. No caso, o sujeito que escreve o faz não apenas com vistas a
atingir um determinado segmento da população, mas o faz também a partir de uma
compreensão do papel do escritor (DUARTE, op.cit., p.133)
Assim, sendo um “estrangeiro” na língua do outro, terreno por vezes tão sem
identificação, Conceição Evaristo (2011, p.23) vê que o poeta, com sua pena – um duplo da
espada de Ogum – trata do sentimento de exílio ou orfandade, de um sujeito poético em
continuum. A memória diaspórica é um presente a resolver, sendo o/a escritor/a negro/a um
representante, corpo de um tempo dilacerado (idem, p.156) pela história oficial. Como
pontuam Melo e Godoy (op.cit., p.24), a escrita literária de Conceição contribui para um
movimento emancipatório, ligado a um devir-negro, um conceito-movimento que reflete um
tornar-se, cujo foco se dá no próprio processo, e não em um resultado final. Tal concepção
também pode ser estendida como um modo de compreensão de sua teoria; um conceito que
não ambiciona a reescrita da história, mas uma releitura. Ciente das complicações teóricas,
8
Além de mencionar o discurso eugênico da literatura, Conceição relembra trechos e personagens de José de
Alencar e Graciliano Ramos a Rubem Fonseca, hoje “patrimonializados” e justamente por isso, mais difíceis de
atravessar a blindagem de discussão: “Nesse sentido, parece que a literatura, ao compor o negro ora como um
sujeito afásico, possuidor de uma “meia- língua”, ora como detentor de uma linguagem estranha e ainda incapaz
de “apreender” o idioma do branco, ou ainda como alguém anteriormente mudo e que, ao falar, simplesmente
“imita”, “copia” o branco, revela o espaço não-negociável da língua e da linguagem que a cultura dominante
pretende exercer sobre a cultura negra” (EVARISTO, 2009, p.22-23, grifo meu).
9
Cf. o (in)famoso livro do crítico literário Harold Bloom, uma das mais conhecidas definições desse atributo: O
cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Tradução Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995,
552p. Da mesma forma, é um exercício interessante ler as resenhas da obra, publicadas durante o restante
daquela década, que, ao contrário de resenhar, mais advogam o crítico e suas interpretações preconceituosas em
floreios e manobras retóricas, do que se lançar numa argumentação, numa discussão, evidenciando a pobreza
teórica que advém do esvaziamento político dos conceitos. Aqui, em especial estou me referindo ao texto de
Sandra Erickson na revista da pós-graduação em Filosofia da UFRN, “Princípios” (1999).
podemos ver sua literatura através de um pacto de leitura semelhante as “escrita de si”,
considerando as limitações desse termo. Tratam-se das enunciações de um sujeito com outras
experiências, a escrevivência de uma enunciação coletiva. No “mercado” brasileiro, estamos,
por um lado, reconhecendo o valor das contranarrativas, de seu caráter ficcional (e não
fictício) para refletir sobre o passado, bem como a importância de seu uso na sala de aula,
recontando o que aconteceu, junto de um mercado editorial com as boas recepções das
narrativas sobre si; e por outro, como demonstrei, há um movimento exitoso de produção
literária e acadêmica com o impulso das universidades e pesquisas - a época permitiu. Mesmo
sendo um percurso teórico relativamente recente, ao demonstrar de outro modo o sistema
literário, a escrevivência enquanto ferramenta para rever essa literatura não deveria estar
compartilhando algumas atenções, como de praxe nas trocas de conhecimento?
Toda literatura feita por mulheres passou por movimentos de descrédito, uma
desvalorização que não vê os predicados de escritor pertencentes a ninguém que não assinasse
o texto como um homem. No que concerne especificamente às autobiografias, Rago (2013,
p.206), a concebe como um gênero “masculino”, celebrando o teleológico da vida única de
um sujeito exemplar, coerente do início ao final, e auto-valorativa em seus atos, restringindo o
acesso a essa escrita. Assim, ao refletirmos sobre as “narrativas de si” de mulheres negras,
trata-se de um grande vazio, decorrente por um lado desse modelo não corresponder a suas
complexidades e fragmentações - um indivíduo não compatível com a imagem completa em si
mesmo da autobiografia clássica - mas também, evidentemente, pelos movimentos de
exclusão direcionadas à escrita negra feminina como um todo. Em realidade, a participação
desse grupo no desenvolvimento de um conceito como “Literatura Feminina”, supostamente
tão abrangente, mesmo por vezes mencionado, nem sempre é apontado em específico.
Desconhecimento, falta de referenciais adequados, economia de palavras e recursos, o famoso
“recorte”... as respostas podem ser muitas e se estendem ad nauseam. De fato, publicações,
eventos e mesmo a seleção de quem participará de mesa tal, entre outras “rotinas”
acadêmicas, passam por resoluções que sim, nem sempre dependem somente do compromisso
com o pesquisador com as questões sociais, ou com seu tema, condicionadas às agendas,
horários, burocracias, mas também dependem a boa e velha iniciativa pessoal.
Assim, organizado por Ana Maria Colling e Losandro Todeschi, o Dicionário Crítico
de gênero (2015) é uma ampla publicação com centenas de verbetes, sendo uma referência em
estudos de gênero, e em diálogo com um fluxo de publicações que almeja, oportunamente,
depurar a linguagem teórica por vezes abstrata, abrindo outras portas e públicos de leitura.
Mesmo assim, o verbete de “Literatura feminina” (SANTOS;JUNIOR,idem, p.407-411), que
objetiva destacar a experiência brasileira, destaca somente a atuação de Nísia Floresta e Júlia
Lopes de Almeida, além de Virginia Woolf, britânica. Além de Nísia ser conhecida, em geral,
pelos seus escritos políticos, é flagrante a ausência da maranhense Maria Firmina dos Reis, a
primeira romancista do país, uma mulher negra que fez de sua literatura um instrumento
crítico à escravidão. Úrsula (1859) é um romance posicionado, do ponto de vista do
escravizado, antes do poema Navio Negreiro (1869) e Escrava Isaura (1875), esse, com as
problemáticas amplamente conhecidas. Com olhos à categoria de gênero, entendemos que
uma discussão racial talvez não pudesse ser contemplada na ideia geral da obra, porém, é um
momento fundante da literatura brasileira, feito por uma mulher negra. Ao excluir o primeiro
romance brasileiro, feito por quem foi, uma grande peça fica faltando.
10
Vide a produção acadêmica de dois teóricos do gênero, a partir de suas teses de doutorado. Cf. COLONNA,
Vincent. Autofiction & autres mythomanies littéraires, Auch, Tristram, 2004; GASPARINI, Philippe.
Autofiction, une aventure du langage (2008).
sacralização biográfica, e nessa dramatização do autor, ocorre um permanente diálogo com
diversas áreas do conhecimento. De qualquer forma, as autoficções são um sopro de
reanimação da literatura enquanto um sistema, repensando seus limites, formando escritores e
pesquisadores que impulsionam novas maneiras de produzir arte e saber, apontando os limites
e desejos das nossas subjetividades. O prestígio que recebe é percebido na presença em feiras
literárias, na mídia especializada, e em veículos que hoje movimentam e muito o mercado,
como blogs, canais do YouTube e podcasts, despertando o impulso de escrever a partir da
irresistível arte de se inventar. A produção acadêmica sobre o tema, em tantos cursos e
pesquisas além da Letras e da Teoria Literária já é consolidada, justamente por suas
possibilidades. Jovita Noronha (UFJF) e Diana Klinger (UFF) são autoras de obras que tratam
do assunto, colocando o Brasil no mapa dessa produção intelectual.
Um autor como Lima Barreto, figura tão cara no pensar da escrevivência afro-
brasileira, pode ser lido pela lente autoficcional?12 Bom, talvez. Mas o escritor que mais
insinuava uma voz negra na literatura, mergulhado em uma vivência crítica traz outras
experiências em seu “Diário Intimo”, como aponta Conceição Evaristo em sua dissertação
(1996, p.24). Experiências que a autoficção pode até dar conta, mas dignifica aquele
indivíduo, aquela experiência diferenciada? Questiono, entendendo esse dignificar como parte
metodológica e política de uma pesquisa em ciências humanas. Antes de “pioneiro da
autoficção brasileira”, ou de associações ao flaneur da literatura belle-epoquista, não seria
mais enriquecedor pensá-lo a partir do lugar social de sua escrevivência? Pois, enquanto
Machado de Assis foi o escritor dos salões, mesmo os criticando, Lima Barreto foi o escritor
interditado e que também se interditou, negando-se a esse espaço, e construindo um novo
lugar, um outro espaço social. Devemos lembrar que Lima Barreto na verdade fugia da
literatura contemplativa, bem como da maneira excepcional de escrever, e assim, em seu
Diário Intimo, escreve: “eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto (...) No futuro escreverei a
História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa Nacionalidade” (idem, p.27-
11
Cf. GUMBRECHT, Hans. Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo:Editora
Unesp, 2015.
12
Penso aqui, especificamente, a análise de Luciana Hidalgo (2007), em sua tese de doutorado (UERJ), Lima
Barreto e a literatura da urgência: a escrita do extremo no domínio da loucura, bem como diversas
comunicações da pesquisadora. Publicada em 2008, a tese foi vencedora do prêmio Jabuti de Teoria Literária no
ano seguinte. Segundo a autora, “no Brasil, um dos pioneiros dessa audácia (a autoficção) foi, sem dúvida, Lima
Barreto”, não sendo muito considerado o fato de ser um escritor negro, e, ainda menos discutido, em uma
sociedade como a brasileira, extremamente racializada, marcando a trajetória do escritor. Cf. HIDALGO, L. A
imposição do eu. Disponível em: http://rascunho.com.br/a-imposicao-do-eu/ Acesso em 08 fev 2019.
28). Os referenciais que são baseados nas epistemologias negras não se tornam mais apurados,
por estarem em consonância com outros fatores? Em nome da própria razão cientifica, tais
outras visões não deveriam ao menos serem cotejadas? Os sujeitos e seus testemunhos são
infinitos, cabendo ao pesquisador o quão deixará seu sujeito falar, e o que irá escutar, devendo
ter em mente do papel da pesquisa na circulação do conhecimento – se o papel da autoficção é
descolonizar a escrita do individual, o meio de sua circulação é livre para o colonial.
13
Cf. BARTHES, R. A morte do autor [Texto publicado em: O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes,
2004] Original de 1968.
Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE, Wlamyra R., Uma história do negro no Brasil, Brasília: Fundação
Cultural Palmares, 2006.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo. In: Racismos Contemporâneos, Rio de Janeiro,
Ashoka Empreendedores Sociais / Takano Cidadania, 2003.
CUTI (Luís Silva). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.
______. O leitor e o texto afro-brasileiro. 22 nov. 2012. Disponível em:
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