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Fábio Aresi
RESUMO
É meu objetivo no presente trabalho realizar uma lei-
tura interpretativa da produção cinematográfica Jogo de
Cena (2006), de Eduardo Coutinho, tomando como
aporte teórico o viés enunciativo de Émile Benveniste.
Assim, procuro evidenciar o papel da enunciação como
possibilidade do cineasta de jogar com o gênero “docu-
mentário”, ao colocar como um problema a noção de
representação.
P
or mais que possa parecer esquisito ou inadequado para um texto que
se propõe a tratar de um tema como a linguagem, tal como o título
do mesmo sugere, e que se propõe a tratá-lo a partir do campo da
linguística, inicio este trabalho dizendo que o que me levou a produzi-lo foi,
antes de tudo, o deslumbramento causado pelo trabalho de um cineasta. Falo
aqui da produção cinematográfica de Eduardo Coutinho, filmada em 2006 e
intitulada Jogo de Cena.
Assim como Freud (1974)1, o qual, tomado pelo mistério que o fascinava
na escultura de Michelangelo representando Moisés e as Tábuas da Lei, foi
levado a procurar desvendar a causa desse poderoso “efeito estético”, tive de
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FREUD, S. O Moisés de Michelangelo (1914). In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
162 Aresi, Fábio. O jogo da linguagem em jogo de cena: o estatuto da representação pelo viés enunciativo
2
NORMAND, C. Convite à linguística. São Paulo: Contexto, 2009.
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NORMAND, C. Bouts, brins, bribes: petite grammaire du quotidien. Paris: Éditions le Pli, 2002.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 161-174, 2012 163
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Os filmes de Eduardo Coutinho se caracterizam, em geral, por serem
filmes documentários que tematizam a vida cotidiana através de entrevistas
com pessoas comuns. No entanto, colocar suas produções sob o rótulo de
“documentários” sem ao menos uma ressalva seria enunciar apenas uma meia-
-verdade, e traria como consequência a ocultação de sua principal particula-
ridade, a qual, paradoxalmente, distancia seus filmes desse gênero cinemato-
gráfico: Eduardo Coutinho não vê seus documentários como algo oposto à
ficção, tal como geralmente se concebe o documentário – o retrato fiel de uma
“realidade” do mundo. Como diz Bernardo (2010, p. 176)4, “podemos alinhar
os documentários do cineasta brasileiro Eduardo Coutinho entre as melhores
obras de ficção que o cinema poderia nos apresentar, sem deixar de chamá-los
‘documentários’”. Isso se dá pelo fato de o cineasta colocar seus filmes sempre
em um movimento constante entre a realidade e a ficção, de tal modo que se
torna impossível, para o espectador, dissociá-los.
O filme Jogo de Cena, de 2006, segue o mesmo estilo, porém com uma
nova premissa. O filme inicia com um anúncio colocado por Eduardo Couti-
nho em um jornal, no qual se lê a seguinte passagem: “CONVITE – Se você é
mulher com mais de 18 anos, moradora do Rio de Janeiro, tem histórias pra contar
4
BERNARDO, G. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2010.
164 Aresi, Fábio. O jogo da linguagem em jogo de cena: o estatuto da representação pelo viés enunciativo
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BERNARDO, G. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2010.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 161-174, 2012 165
capam tanto das mulheres entrevistadas quanto das atrizes que as interpretam,
como se começassem a andar sozinhas no palco, primeiro, e na tela, depois”.
Outro exemplo é a divertida história contada por Fernanda Torres sobre sua
experiência com o candomblé, história que apresenta apenas a versão da atriz
e nos coloca a eterna questão: essa história é dela mesmo? Vemos, assim, que,
ainda nas palavras de Bernardo (op.cit., p. 181):
Essa passagem da entrevista, além de ser muito bela, resume, a meu ver,
a perspectiva acerca da linguagem delineada por Benveniste no decorrer de
muitos de seus textos dedicados à linguística geral. Com efeito, se Benveniste
pode ser considerado como “o linguista da enunciação e o principal represen-
tante do que se convencionou chamar de teoria da enunciação” (cf. Flores;
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BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 2006.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 161-174, 2012 167
Teixeira, 2005, p. 29)7, é porque muitos de seus trabalhos atestam sua pre-
ocupação acerca da relação entre o homem e a linguagem, ou seja, ele instaura
um campo, o da Enunciação, ao se interrogar justamente acerca da questão da
subjetividade na linguagem. Assim, para o linguista, homem e linguagem não
podem ser pensados de forma dissociada, uma vez que um é condição de exis-
tência do outro, sendo ambos mutuamente constitutivos. Segundo Benveniste
(1958/2005, p. 285)8, “é um homem falando que encontramos no mundo,
um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria defini-
ção do homem”, o que significa que não há homem preexistente à linguagem.
Da mesma forma, é ilusório supor a linguagem como preexistente ao homem,
já que “a linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujei-
to, remetendo a ele mesmo como eu no seu discurso” (op.cit., p. 286).
Portanto, é na inter-relação constitutiva entre homem e linguagem que
Benveniste vê a possibilidade de abordar o fenômeno da enunciação, esta pas-
sagem da língua ao discurso por um locutor e que é, ao mesmo tempo, a pos-
sibilidade da subjetividade e da atualização da própria língua. Nesse sentido, a
concepção de linguagem de Benveniste afasta-se daquela instrumentalista que
vê a linguagem como mera reprodução do pensamento ou como reflexo da re-
alidade. Assim, estou de acordo com Dessons (2006)9 quando este afirma que
a teoria esboçada por Benveniste constitui uma espécie de “antropologia histó-
rica da linguagem”. De igual maneira, parto da premissa estipulada pelo autor
de que o prefixo –re é de fundamental importância na elaboração teórica de
Benveniste. Ora, se “cada vez que a palavra expõe o acontecimento, cada vez o
mundo recomeça” (Benveniste, 1963/2005, p. 31, grifo meu)10, como diz
Benveniste, então cada ato de enunciação constitui uma nova criação, única e
irrepetível. A língua é, portanto, recriada, ainda que, paradoxalmente, sejam
os mesmo elementos da língua ali presentes em cada enunciação. Assim, nas
palavras de Dessons (2006, p. 14), “par l’exercice du langage, le monde n’est pas
un éternel retour, mais une constante création. En ce sens, le préfixe –re fonctionne
comme un marqueur d’historicité”. Essa concepção de linguagem é ainda mais
7
FLORES, V.; TEIXEIRA, M. Introdução à linguística da enunciação. São Paulo: Contexto, 2005.
8
BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes, 2005.
9
DESSONS, G. Émile Benveniste: l’invention du discours. Paris: Éditions in Press, 2006.
10
BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes, 2005.
168 Aresi, Fábio. O jogo da linguagem em jogo de cena: o estatuto da representação pelo viés enunciativo
11
A versão traduzida para o Português do texto de Benveniste apresenta uma pequena diferen-
ça da versão original em francês. Nesta, o termo utilizado pelo linguista é “re-produit”, fican-
do claro através do neologismo o valor conceitual do prefixo –re. No texto em português, o
termo foi traduzido como “reproduz”, o que pode causar certa ambiguidade.
12
NORMAND, C. Convite à linguística. São Paulo: Contexto, 2009.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 161-174, 2012 169
13
BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 2006.
14
BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 2006.
15
Idem (p. 43-67).
16
Idem, p. 228.
170 Aresi, Fábio. O jogo da linguagem em jogo de cena: o estatuto da representação pelo viés enunciativo
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DESSONS, G. Émile Benveniste: l’invention du discours. Paris: Éditions in Press, 2006.
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situação de fala em que ela se deu, mesmo que o enunciado, produto formal
da enunciação, seja passível de ser repetido. A enunciação mostra, portanto,
essa dualidade da língua, ao mesmo tempo um bem coletivo e de sentido ge-
ral, e um bem inegavelmente individual e novo a cada fala.
***
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Trago aqui a bela passagem de Bernardo (2010, p. 15) acerca do caráter ficcional do discurso.
172 Aresi, Fábio. O jogo da linguagem em jogo de cena: o estatuto da representação pelo viés enunciativo
ser tornada “atual” através da sua enunciação, pode ser revivida através do
discurso, mas ao ser tornada “atual”, ela já é uma outra experiência, é já uma
experiência de fala, ficcional por natureza, evento singular pois portador de
uma historicidade ligada à sua instância de discurso. Como diz Benveniste:
“Dizer bom dia todos os dias da vida a alguém é cada vez uma reinvenção”
(Benveniste, 1968/2006, p. 18)19.
Olhar para a representação por esse viés também permite entender a in-
cômoda situação de Fernanda Torres ao não conseguir representar a história
narrada por “Rita”. Sua frustração é perfeitamente compreensível: como repe-
tir algo que é da ordem do irrepetível? Como recuperar algo tão evanescente
e singularmente situado como a enunciação? Para ela havia sobrado apenas o
enunciado de “Rita”, e, no final das contas, só o que conseguiu com ele foi rea-
lizar uma outra enunciação, na qual a história de “Rita” geniosamente tornou-se
a história de Fernanda Torres tentando representar “Rita”. O mesmo pode ser
evidenciado nas lágrimas inesperadas de Andrea Beltrão interpretando “Gisele”
e no distanciamento de Marília Pêra na sua representação de “Sarita”. Nessa
perspectiva, não deixa de soar essencialmente benvenistiano o desabafo de Fer-
nanda Torres sobre sua encenação de “Rita”: “Eu não consigo. Eu não separo ela
do que ela diz, entende? Eu acho impossível separar”. E quem conseguiria? Toda
enunciação está sempre intrinsecamente atrelada àquele que a produziu, pois
é somente nela e através dela que o falante pode se individuar, constituindo-se
como sujeito, e é dessa relação íntima e instanciada em um presente único que
a frase – a expressão semântica por excelência – tira o seu sentido. A frase será,
então, a cada vez um acontecimento novo e único, assim como o seu sentido.
Sobre este último ponto, trago, por fim, um último trecho de Jogo de
Cena, que constitui também os últimos instantes do longa-metragem, uma
pequena surpresa engenhosamente guardada por Eduardo Coutinho. Essa
passagem emocionante é descrita com graça por Bernardo (2010)20, de quem
tomo a liberdade de citá-la na íntegra:
Segundo o autor, “temos acesso ao real apenas através da mediação dos discursos; todo dis-
curso elabora ficções aproximativas à realidade, portanto, todo discurso funda-se pela ficção;
logo, todo discurso é ficcional”. [BERNARDO, G. O livro da metaficção. Rio de Janeiro:
Tinta Negra, 2010].
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BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 2006.
20
BERNARDO, G. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra, 2010
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Palavra e imagem no 44, p. 161-174, 2012 173
ABSTRACT
It is my goal in this paper to make an interpretative
reading of the film Jogo de Cena (2006), produced by
Eduardo Coutinho, having as theoretical support Émile
Benveniste’s enunciative approach. Thus, it is my pur-
pose to show the role of énonciation as the possibility of
the film director to play with the “documentary” genre,
in putting as a problem the notion of representation.