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Dossiê

Ele nos deu histórias: exemplos de intertextualidade


entre a narrativa bíblica e a Obra
de Machado de Assis
He gave us stories: examples of intertextuality between the biblical narrative and the
work of Machado de Assis

Alexandre de Jesus dos Prazeres1

Resumo
O foco deste texto é despertar o interesse pelo estudo da Bíblia, não somente devido ao
seu valor como texto de religião, mas principalmente pelo seu valor literário. E, para isto,
o artigo demonstrará, de modo breve, algumas características da narrativa bíblica; e por
meio do conceito linguístico de intertextualidade, apresentará alguns exemplos da
influência das narrativas bíblicas em textos do escritor brasileiro, Machado de Assis.

Palavras-chave: Bíblia. Literatura. Interface. Hermenêutica.

Abstract
The focus of this text is to awaken interest in the study of the Bible, not only because of
its value as text religion, but mainly for their literary value. And for this, the article will
demonstrate, briefly, some features of the biblical narrative, and through the linguistic
concept of intertextuality. It will show some examples of the influence of the biblical
narratives in the texts of the Brazilian writer Machado de Assis.

Keywords: Bible. Literature. Interface. Hermeneutics.

1
Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe - UFS. Mestre em Ciências da Religião e
Bacharel em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, e membro do Grupo de Pesquisa
Cristianismo e Interpretações da mesma instituição. Atualmente é Professor Substituto Assistente da
Universidade Federal de Sergipe no Núcleo de Ciências da Religião. Tem experiência na área de Teologia e
Hermenêutica, com ênfase em Teologia Exegética do Novo e do Antigo Testamentos, História e
Religiosidades, História do Ensino Religioso no Brasil, Materiais Didáticos do Ensino Religioso e Campo
Religioso no Brasil. Email: sealex_livia@hotmail.com

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1 Introdução

Ao propormos o estudo da Bíblia mediante análise crítica.


como literatura, parece não haver Devido a estes motivos, o título
qualquer antagonismo de termos, mas deste artigo é provocador tanto para os
isto é apenas aparente. Atualmente tais religiosos quanto para os críticos
termos são estranhos entre si, pois se o literários. Para os religiosos, por expor o
estranhamento não ocorre na teoria, conceito de que se Deus revelou à
ocorre na prática. humanidade informações sobre a sua
Os teólogos, com suas exceções, vontade, ele fez isto através de histórias,
não se interessam em estudar a Bíblia narrativas, gêneros literários, um veículo
como literatura. E os críticos literários, de comunicação humano. E para os
por sua vez, relegam o livro a um plano estudiosos de literatura, por conduzi-los
secundário diante dos clássicos, ao mesmo entendimento, porém por
suscitando, naturalmente, a questão: por outra via, uma não meramente religiosa,
qual motivo? mas a do reconhecimento de que além
De imediato, podem ser de um livro sagrado a Bíblia é também
percebidos dois motivos. O primeiro uma obra literária repleta de histórias
deve-se ao fato de se tratar a Bíblia emocionantes, que serviram como
unicamente como “texto sagrado”. Como inspiração para importantes obras da
destaca Alter (1998, p. 16): literatura universal no Ocidente.

O único motivo óbvio para a


Em Abaixo as verdades sagradas,
ausência por tanto tempo de Harold Bloom, crítico literário
interesse literário acadêmico pela
Bíblia é que, em contraste com a estadunidense, se debruça sobre textos
literatura grega e latina, a Bíblia
foi considerada durante muitos
e autores mestres da literatura universal
séculos, tanto por cristãos – o Antigo Testamento, Homero, Kafka,
quanto por judeus, a fonte
unitária e primária da verdade de Beckett, Virgílio, Dante, Chaucer,
revelação divina.
Shakespeare, Freud e muitos outros –
E o segundo deve-se a uma em busca de matrizes de representação
reação à análise excessivamente que até hoje determinam nossas
religiosa da Bíblia. Ou seja, a ênfase concepções da realidade e do sublime.
religiosa no estudo dos textos bíblicos Bloom (2012, p. 13-14) afirma:
conduziu os racionalistas a uma leitura
Tudo o que qualquer um de nós
crítica da Bíblia, devido a sua linguagem pode dizer é que o Gênesis e o
Êxodo, a Ilíada e a Odisseia
fantástica e sobrenatural. Para estes, é inauguram a força na literatura
ou o sublime, e, então,
passível de aceitação somente aquilo que
avaliamos Dante e Chaucer,
nela possa ser provado historicamente Cervantes e Shakespeare, Tolstói

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e Proust, com relação àquele é lida em sua pluralidade de narrativas,


padrão de medida.
mas a partir de certa continuidade que
Antonio Magalhães (2008, p. 14), existe nas “biografias” de seus
no artigo A Bíblia como obra literária, personagens, algo importante para boa
apresenta uma reflexão sobre parte da literatura; 3) A Bíblia é
importantes textos acerca da relação considerada obra basilar da literatura
entre religião monoteísta e literatura e ocidental, emprestando-lhe temas,
da Bíblia como obra literária que foram técnicas, personagens fortes, tramas
publicados/traduzidos nos últimos anos, sucintas mas cheias de suspense e
destacando a Schicksal-Gott-Fiktion: Die criatividade, ao contrário de outra obra
Bibel als literarisches Meisterwerk basilar da literatura ocidental, os textos
(2005), de Hans-Peter Schmidt; Schrift de Homero, pelo fato deste ser detalhista
und Ge-dächtnis: Archäologie der na descrição das personagens e das
literarischen Kommunikation (2004), de ações.
Jan Assmann/Aleida Assmann e Christian Além das obras citadas, não se
Hardmeier; e Die Mosaische deve esquecer Mimesis de Erich
Unterscheidung oder Der Preis des Auerbach, uma obra crucial em mostrar
Monotheismus (2003), de Jan Assmann. o caminho para a união da tradição
Também mencionando os textos de crítica secular com a religiosa. Sobre
Harold Bloom, O livro de J (1992), Jesus esta obra Robert Alter e Frank Kermode
e Javé: os nomes divinos (2006); de (1997, p. 14-15), no Guia literário da
Jack Miles, Deus: uma biografia (1997) e Bíblia, destaca:
Cristo: uma crise na existência de Deus
Os primeiros capítulos,
(2002); de Robert Alter, A arte da comparando a narrativa do
Antigo Testamento com a
narrativa bíblica (2007); de Northrop narrativa homérica e meditando
Frye, Código dos Códigos: A Bíblia e a a relação única do realismo da
linguagem comum com os
Literatura (2004). Destacando ainda que elevados significados “figurais”
nos Evangelhos, não apenas
apesar da grande diversidade existente ofereceram novas perspectiva
entre estes autores sobre os textos sobre a própria Bíblia, como
sugeriram novas relações entre
escolhidos para a aplicação de suas as realizações dos escritores
bíblicos e toda a tradição da
teorias, cuja diversidade de pressupostos literatura ocidental.
hermenêuticos também é algo a ser
Como uma contribuição a este
notado, todos têm em comum algumas
importante debate, o foco deste texto é
teses: 1) A Bíblia é interpretada como
despertar o interesse pelo estudo da
obra literária, o que implica em lê-la a
Bíblia, não somente devido ao seu valor
partir das teorias literárias apropriadas,
como texto de religião, mas
levando em conta tramas, personagens,
principalmente pelo seu valor literário.
estética, densidade narrativa; 2) A Bíblia
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Para isto, o texto demonstrará algumas padrões repetidos no texto bíblico


características da narrativa bíblica; e por permite comparar as suas narrativas aos
meio do conceito lingüístico de grandes clássicos da literatura) despertar
intertextualidade, apresentará alguns o interesse pelo estudo dos textos
exemplos da influência das narrativas bíblicos numa perspectiva literária,
bíblicas nos textos do escritor brasileiro, devido a sua importância para o
Machado de Assis. entendimento da literatura no ocidente.
Ao demonstrar tais exemplos da Com este intuito, a obra de Machado de
influência da narrativa bíblica presente Assis foi tomada como um caso na
na obra machadiana, pretende-se (além literatura brasileira.
de revelar que o estudo de signos e

2 Fundamentação teórica

Como fundamentos conceituais, transformação do sentido. E que a


serão utilizados os conceitos de intertextualidade é o processo de
dialogismo e de polifonia, legado de incorporação de um texto em outro, seja
Bakhtin, e interpretados por seus para reproduzir o sentido incorporado,
discípulos, que adotaram os termos seja para transformá-lo. Deste modo, há
intertextualidade e interdiscursividade. pelo menos três processos na
intertextualidade: a citação, a alusão e a
2.1 Intertextualidade estilização. A citação2 pode confirmar ou
alterar o sentido do texto citado; já na
No conceito de intertextualidade, alusão, as palavras da fonte não são
jaz a noção de que os textos possuem citadas por completo, mas reproduzem-
relações entre si, vinculam-se uns aos se construções sintáticas; e, por sua vez,
outros. Izidoro Blikstein (2003, p. 45) a estilização é a reprodução do conjunto
expõe que o discurso nunca é totalmente dos procedimentos do discurso de
autônomo, pois suportado por toda uma outrem.
intertextualidade, não é falado por uma Ao conceber-se o significado de
única voz, mas por muitas vozes, intertextualidade, se lida com a relação
geradoras de muitos textos que se entre texto e intertexto. Este entendido
entrecruzam no tempo e no espaço. como um texto ou um corpus de textos
Por sua vez, Luiz Fiorin (2003, p. que existe antes e debaixo de um
29-31) esclarece que o conceito de
2
Ao nos referirmos a citação não nos referimos à
intertextualidade concerne ao processo citação de textos não-artísticos, tais como os
textos acadêmicos, que devem trazê-las de forma
de construção, reprodução ou explícita, e identificando a fonte ao pé da página ou
no próprio corpo do texto.
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determinado texto e que se pode decifrar discursiva é materializada em textos.


sob a estrutura de superfície deste Isso significa que a intertextualidade
último. Isto torna justificável a pressupõe sempre uma
designação “subtexto” utilizada por interdiscursividade, mas que o contrário
diversos autores como equivalente à de não é verdadeiro. Por exemplo, quando a
intertexto. O termo “subtexto” remete, relação dialógica não se manifesta no
sob os pontos de vista temporal e texto, temos interdiscursividade, mas
espacial, para uma espécie de “texto não intertextualidade (FIORIN, 2006, p.
palimpséstico”, um texto absorvido e 181).
apagado por outro, para uma camada Já a interdiscursividade é o
textual anterior que interfere na processo em que se incorporam
estratificação de outro texto e que percursos temáticos ou percursos
aflora, sob forma latente ou explícita, na figurativos, ou seja, temas e figuras de
estrutura de superfície deste outro texto um discurso em outro, havendo dois
(SILVA, 2006, p. 626). processos interdiscursivos: a citação e a
alusão. A citação ocorre quando um
2.2 Interdiscursividade discurso reproduz ideias, temas ou
figuras de outros discursos; e a alusão
Há uma distinção entre ocorre quando se incorporam temas ou
interdiscursividade e intertextualidade. A figuras de um discurso que vai servir de
intertextualidade fica reservada apenas contexto para a compreensão do que foi
para os casos em que a relação incorporado (FIORIN, 2003, p. 32-34).

3 Considerações sobre a narrativa bíblica

3
Aqui, serão considerados alguns hebraico , a narrativa é o gênero
elementos, que podem servir como predominante na Torá; em todos os
tópicos introdutórios para uma leitura livros dos Profetas Anteriores; em alguns
das histórias bíblicas com um “novo dos Profetas Posteriores; e também em
olhar”, diferente do exclusivamente vários dos Escritos. Ela também domina
religioso. os Evangelhos e o livro de Atos. A
Destaca-se que a narrativa é o narrativa é claramente a principal
gênero mais comum na Bíblia, com bem
3
O Cânon Hebraico está dividido em três partes:
mais que um terço de toda a Bíblia nesta Torá: O Pentateuco; Profetas: Anteriores (Josué,
Juízes, Samuel, Reis), Posteriores (Isaías,
forma. Em termos de divisões do cânon Jeremias, Ezequiel e os 12 profetas menores);
Escritos: Poetas (Jó, Salmos, Provérbios), Cinco
Pequenos Rolos (Rute, Cantares, Eclesiastes,
Lamentações, Ester), As Histórias (Daniel, Esdras,
Neemias, Crônicas).
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estrutura de sustentação da Bíblia d) Toda releitura de um clássico


(KAISER, 2002, p. 65). é uma leitura de descoberta
como a primeira.
3.1 A Bíblia: uma obra clássica de
e) Toda primeira leitura de um
literatura
clássico é na realidade uma

Já foi dito que há pouco esforço releitura.

em relação à pesquisa da Bíblia como f) Um clássico é um livro que


uma “obra clássica de literatura”, mas o nunca terminou de dizer
que caracteriza um livro como “uma obra aquilo que tinha para dizer.
clássica de literatura”? Italo Calvino
g) Os clássicos são aqueles livros
(2007, p. 9-16), em Por Que Ler Os
que chegam até nós trazendo
Clássicos, apresenta 14 propostas de
consigo as marcas das leituras
definição (perfeitamente aplicáveis a
que precederam a nossa e
Bíblia) do que é “uma obra clássica de
atrás de si os traços que
literatura”:
deixaram na cultura ou nas
a) Os clássicos são aqueles livros culturas que atravessaram (ou
dos quais, em geral, se ouve mais simplesmente na
dizer: “Estou relendo...” e linguagem ou nos costumes).
nunca “Estou lendo...”
h) Um clássico é uma obra que
b) Dizem-se clássicos aqueles provoca incessantemente uma
livros que constituem uma nuvem de discursos críticos
riqueza para quem os tenha sobre si, mas continuamente a
lido e amado; mas constituem repele para longe.
uma riqueza não menor para
i) Os clássicos são livros que,
quem se reserva a sorte de lê-
quanto mais pensamos
los pela primeira vez nas
conhecer por ouvir dizer,
melhores condições para
quando são lidos de fato mais
apreciá-los.
se revelam novos,
c) Os clássicos são livros que inesperados, inéditos.
exercem uma influência
j) Chama-se de clássico um livro
particular quando se impõem
que se configura como
como inesquecíveis e também
equivalente do universo, à
quando se ocultam nas dobras
semelhança dos antigos
da memória, mimetizando-se
talismãs.
como inconsciente coletivo ou
individual. k) O “seu” clássico é aquele que

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não pode ser-lhe indiferente e uma “cópia” ou “descrição” da realidade,


que serve para definir a você mas por usar a linguagem que se
próprio em relação e talvez constitui em “signos” gráficos e sonoros,
em contraste com ele. ela é uma reconstrução do mundo a
partir da percepção do artista, de modo
l) Um clássico é um livro que
a transmitir aos leitores uma visão
vem antes de outros clássicos;
particular da realidade. Soma-se a esses
mas quem leu antes os outros
elementos o “estético”, entendido como
e depois lê aquele reconhece
a função do texto primordialmente
logo o seu lugar na
voltada para si mesma, mediante seus
genealogia.
dados internos, que o mantém em pé e
m) É clássico aquilo que tende a
lhe dá densidade, independente de
relegar as atualidades à
vínculos práticos ou funcionais com o
posição de barulho de fundo,
real.
mas ao mesmo tempo não
Ao apresentar certas
pode prescindir desse barulho
propriedades de linguagem, encontra na
de fundo.
linguagem metafórica seu principal
n) É clássico aquilo que persiste vetor, criando aquilo que os formalistas
como rumor mesmo onde chamaram de “desfamiliarização”, ou
predomina a atualidade mais seja, o estranhamento criado por
incompatível. determinada apropriação da linguagem e
de recursos literários, de modo a
E no que é tocante à
diferenciar-se do uso cotidiano.
denominação da Bíblia como “literatura”,
E conclui afirmando que, no caso
João Cesário Leonel Ferreira (2008, p. 9-
específico da Bíblia, e particularmente
10) esclarece que a “literatura” possui
das narrativas bíblicas, dizer que são
uma determinada relação com a
“literatura” implica o reconhecimento
realidade, e apresenta certas
que elas guardam certa relação de
propriedades de linguagem, tendo este
proximidade/distância com a realidade,
dois aspectos interligados. Na relação da
nunca sendo mera transcrição desta,
“literatura” com a realidade, são úteis os
pelo contrário, representando-a e
conceitos de “estética” e os de “mimesis”
buscando transformá-la por intermédio
e de “poiesis” expostos por Aristóteles
das histórias narradas. Isso se dá, no
em seu livro Poética. “Mimesis” e
plano formal, mediante a utilização de
“poiesis” significam imitação /
estratégias literárias que definem o
representação e criação
caráter estético e retórico junto aos
respectivamente. Com eles quer-se
leitores. Igualmente importantes são os
afirmar que uma obra literária não é
elementos linguísticos utilizados, como a
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metáfora. Esta é uma forma de Fundamental para um estudo


literário da Bíblia é que essa
linguagem que aprofunda e gera rejeição ao politeísmo tenha tido
consequências positivas
indefinições de entendimento, invocando
importantes para a nova forma
a colaboração do leitor no processo de expressão que os antigos
escritores hebreus adotaram na
interpretativo. formulação de seus propósitos
monoteístas. A prosa, que deu
aos escritores uma
3.2 Características da narrativa bíblica extraordinária flexibilidade e
ampla diversidade de recursos
narrativos, podia ser usada para
libertar os personagens ficcionais
Neste ponto, serão apresentadas da rígida coreografia de
algumas características presentes nas acontecimentos atemporais e
fazer da narrativa não mais uma
narrativas bíblicas, destacando repetição ritual, mas uma
exploração das sendas
particularidades que serviram de imprevistas da liberdade
fundamento inspirador para grandes humana, das peculiaridades e
contradições de homens e
obras da literatura do ocidente4. mulheres considerados como
agentes morais e focos
Em A arte literária da Bíblia, complexos de razão e sentimento
Robert Alter (2007) defende que o (ALTER, 2007, p. 48).

monoteísta característico da fé de Israel, No que se refere ao modo como


foi seguido por uma revolução literária. as histórias bíblicas são narradas, Robert
Ele sustenta que a Bíblia Hebraica se Alter (2007, p. 147-148) explica que a
distanciou da atmosfera mítica das narrativa bíblica nos mostra um sistema
literaturas de sua época por uma arte de cuidadosamente integrado de repetições,
narrar própria, de conformidade com o algumas baseadas na recorrência de
monoteísmo. Um modo de narrar que fonemas, palavras ou pequenas frases,
pode ser denominado, em alguns outras ligadas a ações, imagens e ideias
momentos, como história ficcionalizada que fazem parte do universo dos relatos
e, em outros momentos, como ficção que “reconstruímos” como leitores, mas
historicizada. Este modo de narrar que que não são necessariamente urdidos na
mescla a história sagrada com técnicas textura verbal da narrativa. Ele propõe
ficcionais de construção dos uma escala de recursos repetitivos de
personagens, dos diálogos e dos estruturação e focalização nas narrativas
elementos gerais da composição dos bíblicas, em ordem crescente de
textos, possibilita a análise das complexidade:
narrativas bíblicas segundo o critério da
1. Leitwort. Por meio de
crítica literária. abundante repetição, a raiz
lexical é explorada em seu
4
Sobre este assunto é esclarecedora a leitura do âmbito semântico e diferentes
artigo: SONNET, Jean-Pierre. A Bíblia e a literatura formas do radical são aplicadas,
do ocidente: língua mãe, lei do pai e descendência divididas às vezes em correlatos
literária. Revista de Teologia e Ciências da fonéticos (formando jogos de
Religião da UNICAP. Ano 9, Número 2,
jullho/dezembro de 2010.
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palavras), sinônimos e Outro elemento destacável na


antônimos; [...].
narrativa bíblica é o diálogo. A primazia
2. Motivo. Repetição de uma do diálogo é um traço geral da narrativa
imagem concreta, de uma
qualidade sensorial, de uma ação bíblica. Esta é tão acentuada que muitos
ou objeto ao longo de uma
determinada narrativa; pode ser trechos narrados em terceira pessoa,
associado, em intervalos quando bem examinados, acabam se
determinados, a uma Leitwort;
não tem significado fora do revelando dependentes do diálogo,
contexto definidor da narrativa;
pode ter um significado simbólico refletindo verbalmente elementos do
incipiente ou ser basicamente diálogo que os precedeu ou que
um recurso para dar coerência
forma a uma narrativa (por introduzem. Assim, a narração é muitas
exemplo, o fogo na história de
Sansão; as pedras e as cores vezes relegada à função de confirmar
brancas no episódio de Jacó; a afirmações feitas no diálogo. Em raras
água no ciclo de Moisés; os
sonhos, as prisões e covas, a ocasiões o narrador entra diretamente
prata na história de José).
na narração, fazendo um discurso
3. Tema. Uma idéia que faz parte resumido. A narração em terceira pessoa
do sistema de valores do relato –
seja de natureza moral, moral- geralmente é apenas uma transição
psicológica, legal, política,
histórica ou teológica – e que
entre unidades mais extensas em
aparece com certo padrão de discurso direto, um modo de acelerar a
recorrência. [...].
fluência da narrativa, ou dar alguma
4. Seqüência de ações. Esse
perspectiva para o que foi dito (ALTER,
padrão aparece com mais
freqüência e nitidez na forma do 2007, p. 105).
conto popular, com três
repetições consecutivas, ou três Há ainda outro elemento digno de
mais uma, intensificadas ou
ser destacado, o modo como o narrador
incrementadas de uma
ocorrência para outra, bíblico lida com “o primeiro e o segundo
geralmente terminando num
clímax ou numa inversão [...]. planos” nas narrativas. Por “primeiro e
segundo planos” deve-se entender que
5. Cena-padrão. Trata-se de um
episódio que se desenvolve em quando o texto é bastante detalhado,
um momento crucial da
trajetória do herói e que se com inúmeros pormenores, praticamente
compõe de uma seqüência fixa não restando dúvidas ao leitor, estamos
de motivos. É sempre associada
a determinados temas no primeiro plano. Por outro lado, em
recorrentes; a cena-padrão não é
vinculada a Leitwörter textos ambíguos, com escassez de
específicas, embora um termo ou informações, é reconhecível a inserção
expressão recorrentes possam
ajudar a marcar a presença de do segundo plano (FERREIRA, 2008, p.
uma cena-padrão especial (por
exemplo, anunciação do 11). Já o “narrador bíblico, por seu lado,
nascimento do herói, os limita-se a primeiros planos mais sóbrios
esponsais à beira do poço, a
provação no deserto). – tão sóbrios, com efeito, quanto
significantes – e dota, por isso mesmo,
sua narrativa de dramáticos planos de
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fundo” (SONNET, 2010, p. 191). Da literatura do Ocidente, pode-


se dizer que ela se ocupou,
“Segundo plano” é o espaço deixado abundantemente, em completar
os “brancos” da Escritura. O
intencionalmente vazio pelo narrador,
corpus literário do Ocidente vive,
com o propósito de estimular o leitor a com efeito do palimpsesto. Ele
nasceu de um processo de
preenchê-lo. Isto gera maior reescritura das intrigas recebidas
da Bíblia (sem esquecer,
dramaticidade à narrativa. Com esse
certamente, a matriz grega) –
recurso, o narrador se nega a dar intrigas nas quais se
anunciavam, de certa maneira
maiores explicações, permitindo que o imprescindível, o começo, o fim e
a peripécia central da história.
leitor se coloque no lugar dos
(SONNET, 2010, p. 194).
personagens e reconstrua mentalmente
a cena.

4 A narrativa bíblica e a obra machadiana

De acordo com Sonnet (2010, p. 4.1 Machado de Assis e o uso da


195), a literatura, segundo seu próprio estilização

gênio, amplificou o dado lacônico da


O conto Na Arca serve para
Bíblia, dando fala e ações as
exemplificar o uso da estilização por
personagens para além do que o
Machado de Assis, pois o conto imita a
narrador bíblico lhes consentiu nos dizer.
forma bíblica de escrita em versículos e
Lendo entre as linhas e as palavras dos
narra a disputa entre dois dos três filhos
textos bíblicos, a literatura foi
de Noé, Sem e Jafé, que mesmo antes
reescrevendo as narrativas bíblicas.
de passar a inundação e ainda com suas
Alguns textos do escritor
vidas em risco, já disputavam a posse
brasileiro Machado de Assis servem
das terras que viriam a ter depois do
como ilustração para o modo da
dilúvio.
literatura ocidental reler e reescrever as
O conto é claramente inspirado na
narrativas bíblicas. Aqui, pretende-se
narrativa bíblica sobre o dilúvio, cujo
apresentar alguns exemplos da influência
registro encontra-se no livro de Gênesis,
das narrativas bíblicas nos textos deste
consistindo numa estilização da narrativa
escritor brasileiro; e alguns
bíblica.
procedimentos utilizados por ele em seus
Proença (2009, p. 38) afirma que
textos ao estabelecer um diálogo literário
o recurso da estilização ajusta-se à
com as narrativas bíblicas.
intenção inscrita já no título do conto,
que reproduz a técnica narrativa da
Bíblia. Os três capítulos do conto (A, B e
C) subdividem-se em “versículos”, porém
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havendo, também, a inserção de violar assim tão escan-


dalosamente a propriedade
elementos de contraste, principalmente alheia? Pois agora te digo que o
rio ficará do meu lado, com
pelo uso de vocabulário próprio da
ambas as margens, e que se te
oralidade, como nas expressões: “Vai atreveres a entrar na minha
terra, matar-te-ei como Caim
plantar tâmaras”, do capítulo B (B.13), o matou a seu irmão (A. 17-19).
que dá ao conjunto uma moldura de
Proença (2009, p. 39-40) observa
originalidade que atenua a imposição
que no conto Na Arca parece haver
própria da estilização.
alusão interdiscursiva por meio da
Há, ainda, a alusão que Machado
instauração de polifonia polêmica contra
de Assis faz a fábula do Lobo e do
discursos ainda fortes em nossa cultura:
Cordeiro. Como a arca abrigava animais,
a força do mundo patriarcal; a
o lobo e o cordeiro lá estavam e
associação da mulher à conciliação; a
presenciaram a disputa entre os irmãos.
canonicidade da Bíblia; a negação da
Como os animais nas fábulas são
regeneração da humanidade; a violência
metafóricos, aludem a seres humanos,
como responsável pela maldade do ser
representando a vida social própria do
humano.
mundo humano. No conto, o cordeiro
A força do mundo patriarcal é
aprende a “vigiar” o lobo em razão da
figurativizada por Noé. Ele exerce a
maldade humana, que contamina até
função de pai e juiz. No conto, Noé
mesmo o mundo animal. Além disso,
aplica a lei e profere maldição sobre os
deve-se considerar que as fábulas
seus filhos, sancionando negativamente
apresentam uma moral. Qual seria,
as suas ações.
então, a moral fabular do conto, senão
As esposas dos filhos de Noé têm,
que os seres humanos devem se
no conto, atuação firme na tentativa de
precaver uns contra os outros, porque
estabelecer a concórdia, elas não são a
são violentos e brigam por alguns
causa do mal da humanidade, segundo
côvados de terra.
reza a tradição bíblica referente ao
Um dado relevante é o cenário no
pecado original.
qual se desenvolve a fábula do lobo e do
O conto desenvolve uma relação
cordeiro, a margem de um rio, o mesmo
polêmica contra a ideia de canonicidade,
elemento cuja disputa pela posse serve
tão importante para a tradição cristã. Os
para exaltar os ânimos dos dois irmãos
capítulos “inéditos” são uma provocação
no conto de Machado de Assis.
por serem acréscimos de conteúdo ao
Jafé porém replicou: – Vai conjunto canônico. O conjunto dos
bugiar! Com que direito me tiras
a margem, que é minha, e me escritos considerados inspirados foi
roubas um pedaço de terra?
Porventura és melhor do que eu, “fechado” nos primeiros séculos da era
Ou mais belo, ou mais querido
de meu pai? Que direito tens de
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cristã; com isso, nada se acrescenta nem 136-137) também emite seu conceito
se tira dele. sobre paródia dizendo que:
Na Bíblia, a arca é um símbolo do a paródia repete formas/com-
recomeço e da graça divina que concede teúdos de um texto para lhe
emprestar um novo sentido,
uma oportunidade para a regeneração da podendo alterar-lhe, inclusive, o
gênero a que pertence (ou seja,
espécie humana, que deveria viver uma podendo modificar sua arquitex-
nova era de paz, na qual a violência tualidade), o que redunda em
outras transformações, como a
seria apenas uma lembrança do passado. mudança do propósito comu-
nicativo, do tom e de alguns
O dilúvio, como castigo pela maldade aspectos estilísticos [...] para se
humana, seria o limite entre a violência transformar radicalmente o
sentido [...] para obter diferen-
divina, usada para a contenção da tes formas e propósitos em
relação ao texto-fonte.
própria violência humana, e a restituição
da elevação espiritual perdida. Contudo, A paródia “é uma escrita
na arca é gerada a violência que, transgressora que engole e transforma o
presumivelmente, deveria ser extinta. A texto primitivo: articula-se sobre ele,
negação da regeneração pode ser reestrutura-o, mas, ao mesmo tempo, o
atestada, por exemplo, em C.7: “Erguei- nega” (FÁVERO, 2003, p. 53).
vos, homens indignos da salvação e É diferente o que ocorre com a
merecedores do castigo que feriu os paródia. Nesta, como na
estilização, o autor fala a
outros homens”. O conto demonstra que linguagem do outro, porém,
diferentemente da estilização,
o juízo divino, representado pelas águas reveste essa linguagem de
do dilúvio, não impediu a violência entre orientação diametralmente opôs-
ta à orientação do outro. A
os irmãos. segunda voz, uma vez instalada
no discurso do outro, entra em
hostilidade com o seu agente
4.2 Machado de Assis e o uso da primitivo e o obriga a servir a
fins diametralmente opostos. O
paródia
discurso se converte em palco de
luta entre duas vozes. Por isto é
A paródia é uma das modalidades impossível a fusão de vozes na
paródia, como o é possível na
de diálogo entre um texto e outro, estilização [...]; aqui as vozes
não são apenas isoladas,
significa canto paralelo (para, “ao lado”; separadas pela distância, mas
ode, “canto”), que, de acordo com estão em oposição hostil.
(BAKHTIN, 1981, p. 168).
Fávero (2003, p. 49), incorpora “a ideia
Este é um recurso bastante
de uma canção cantada ao lado de outra,
como uma espécie de contracanto”. De utilizado por Machado de Assis em seus

acordo com Piègay-Gros, (1996, p. 57), diálogos com outros textos, e

“a paródia consiste na transformação de principalmente ao fazer uso da Bíblia. O

um texto cujo conteúdo é modificado humor de Machado de Assis propõe uma


(re) escritura de muitos episódios da
conservando o estilo.” Koch (2007, p.

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Bíblia, ele recria ironicamente as envolvido por uma luz vinda do céu. Cai
histórias registradas na Escritura, em terra e é interpelado pela voz de
fazendo uso da paródia, transformando o Jesus, que primeiro lhe pergunta por que
texto sagrado, vestindo-o de uma o persegue, e depois lhe ordena que se
roupagem profana. Isso se constitui uma dirija a Damasco. Saulo perde a visão e,
das marcas do estilo machadiano: chegando à cidade, é recebido pelo
parodiar textos, principalmente discípulo Ananias, que o cura da
filosóficos e literários. cegueira. A partir daí Saulo torna-se

Em seus contos, Machado já se


pregador do cristianismo.
serve gradativamente da palavra Sem alterar a citação
do narrador para fazer presente
suas próprias intenções diretamente, Machado de Assis a insere
paródicas. E isto se deve aos
recursos mais diversos, a partir,
num contexto totalmente diverso da
muitas vezes, de uma motivação história bíblica. Primeiramente não é
temática – paródias de textos
históricos, da Bíblia, de gêneros Cristo que se dirige a Brás Cubas, mas
literários, de textos
pretensamente científicos e
sua própria voz interior que lhe sussurra
outros. É no conto que o autor as palavras da Escritura. O narrador
desenvolve seu imenso arsenal
de ironias e paródias, aponta as duas origens de tal voz: uma
adestrando-se simultaneamente
para a liça complexa do romance
piedosa e outra alimentada pelo terror
(BRAYNER, 1982, p. 435). de vir a desposar uma mulher coxa. Essa

Um exemplo da utilização deste última opinião é corroborada pela própria

recurso por Machado de Assis pode ser Eugênia, restando a Brás Cubas

encontrado no romance Memórias desculpar-se com toda sorte de

Póstumas de Brás Cubas. No capítulo “hipérboles frias”, como ele mesmo diz.

XXXV, “O caminho de Damasco”, Brás Por fim, desce da “cidade”, no caso, o

Cubas, dirigindo-se à casa de Eugênia, bairro da Tijuca, entre amargurado e um

diz escutar uma voz misteriosa, que lhe pouco satisfeito.

adverte: “Levanta-te, e entra na cidade”. Há uma clara recorrência de

Trata-se de uma citação de Atos 9,6. O diálogos entre a obra machadiana e o

capítulo nove de Atos narra a conversão texto da Bíblia, ou de temas oriundos

de Saulo, que vinha perseguindo a Igreja desta. Basta citar, como exemplo, alguns

de Cristo, após obter cartas de títulos como o conto A igreja do Diabo e

recomendação do Sumo Sacerdote para o romance Esaú e Jacó.

as sinagogas de Damasco, com o intuito Este romance apresenta a história

de levar presos todos os homens e de Pedro e Paulo, dois irmãos (gêmeos),

mulheres que aderissem a doutrina do filhos de Agostinho Santos e Dona

cristianismo, dirige-se à cidade em Natividade. O título desse romance

questão. No meio do caminho, vê-se remete o leitor às personagens bíblicas


do Gênesis, Esaú e Jacó, filhos gêmeos
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~ 280 ~ Alexandre de Jesus dos Prazeres – Ele nos deu histórias: exemplos de intertextualidade...

de Isaac e Rebeca. Inimigos desde o falecimento da mãe, que os fez jurar no


ventre materno, Esaú, que tinha nascido seu leito de morte que seriam amigos.
primeiro, vende seus direitos de Não tardou, porém, que o enfrentamento
primogênito a Jacó, em troca de um cotidiano os arremessasse noutras
prato de lentilhas. Rebeca privilegia o discórdias e assim eles terminam como
filho Jacó, em detrimento do outro filho, inimigos.
Esaú, fazendo-os inimigos. A inimizade Em Esaú e Jacó, Machado de
dos gêmeos Pedro e Paulo não tem Assis tematiza a saga de dois gêmeos
causa explícita, por isso a denominação que dramatizam a disputa por
de romance ab ovo: desde o ovo, desde hegemonia. A inspiração bíblica motiva o
a origem. desdobramento da discórdia, da disputa
Pedro e Paulo, os protagonistas, e da impossível conciliação. Isso se
são gêmeos univitelinos, “tão iguais, que ajusta bem ao projeto literário de
antes pareciam a sombra um do outro, Machado: focar caracteres universais, o
se não era simplesmente a impressão do que motiva a volta a mitos. Pedro e
olho, que via dobrado”. Como o título Paulo são os irmãos que, em perene
sugere, eles também são inimigos. A disputa, lutam por afirmação pessoal,
mãe deles, que tem o sugestivo nome de que se concretiza pela anulação do
Natividade, engravidara, acidentalmente, outro.
com cerca de 30 anos e teve uma
gestação difícil. Ambos debatiam-se em 4.3 Digressões, transgressões e
seu ventre como se lutassem já antes de agressões ao texto bíblico por
Machado de Assis
nascer. Disputavam tudo: a mãe,
olhares, brinquedos. Na adolescência, Antonio Henrique Corrêa (2008)

revelaram ter pendores políticos aborda o modo como os narradores nos

diferentes: um era republicano, outro contos machadianos apropriam-se da

monarquista. Disputaram também o Bíblia. Através de análise intertextual,

amor da menina Flora. Ela demonstra ele revela que o texto bíblico é

interesse por ambos, porém não opta recuperado por meio de “digressões”,

por nenhum dos dois irmãos, “transgressões” e “agressões”.

permanecendo até sua morte na dúvida Verifica que, nos contos

e na indecisão constantes. machadianos, os narradores, fazendo

Crescidos, formaram-se, um uso do texto bíblico, realizam

tornou-se advogado; o outro, médico. “digressões”, criando histórias paralelas

Elegeram-se deputados por partidos à narrativa principal.

diferentes e passaram a brigar na Já as “transgressões” ao texto

câmara. A única trégua que se bíblico ocorrem por meio da inversão

concederam foi por ocasião do paródica. Através deste recurso,


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Machado de Assis inverte os significados demonstra que a atitude de rebaixar e


próprios e culturais dos textos e os recria vexar o texto bíblico pode ser
formalmente, como foi demonstrado interpretada como um aviso do narrador
acima. de que ele não irá se deter diante de
Com relação às “agressões” ao nada, de que sua intenção é ir além da
texto bíblico, Henrique ampara-se na conta (SCHWARTZ, 1990, p. 21-22).
teoria do narrador volúvel desenvolvida Henrique acredita que, na relação
por Roberto Schwartz em Um mestre na entre os contos de Machado de Assis e a
periferia do capitalismo, que defende a Bíblia, a agressão pode ocorrer de duas
criação por parte de Machado de Assis maneiras: na primeira, o narrador recria
de um narrador que se considera ou reinterpreta o texto bíblico,
superior a tudo e a todos no romance dessacralizando-o e questionando os
Memórias póstumas de Brás Cubas. Em seus mitos e os valores morais
vários trechos do romance, conforme veiculados a partir dele; na segunda, o
aponta Schwartz, a superioridade do narrador ao aludir a um trecho bíblico,
narrador agride o leitor; em outros, ela numa atitude aparentemente sem
afronta textos e fatos históricos que importância, promove o questionamento
compõem a cultura ocidental. Schwartz da própria composição textual bíblica.

5 Considerações finais

Ao despertar o interesse pelo A interface Bíblia/Literatura é um


estudo da Bíblia enquanto literatura, não vasto campo de pesquisa a ser
há a pretensão de negar ou rejeitar explorado, e para explorá-lo será preciso
outras abordagens já realizadas ao texto uma superação do distanciamento
bíblico, mas chamar a atenção para um científico em relação à Bíblia; sem falar
tipo de abordagem pouco realizada. que será preciso superar certos
Entendendo que há questões a preconceitos presentes nos círculos
serem exploradas no que se refere às acadêmicos nacionais no que se refere
relações entre as narrativas bíblicas e os ao estudo sobre assuntos vinculados à
grandes clássicos da literatura universal. religião.
Para explorar tais questões, não é Deve-se destacar as contribuições
preciso ir muito longe, pois a obra de realizados por autores relacionados com
Machado de Assis serve como exemplo a crítica literária, que apesar das
bem próximo de um objeto de pesquisa diferenças nas abordagens e teorias,
ainda pouco estudado. sintetizam os pressupostos que devem
nortear a pesquisa bíblica acadêmica no

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tocante a sua relevância como obra b) a Bíblia lida em sua


literária: pluralidade de narrativas;

a) a Bíblia interpretada como c) a Bíblia considerada obra


obra literária; basilar da literatura ocidental.

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~ 284 ~ Alexandre de Jesus dos Prazeres – Ele nos deu histórias: exemplos de intertextualidade...

Artigo recebido em 31 de janeiro de 2014.


Aceito em 24 novembro de 2014.

Paralellus, Recife, v. 5, n. 10, p. 267-284, jul./dez. 2014.

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