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FÉ HOJE

MINISTÉRIO FIEL
N0 40 - Dez/2013 - R$10
PA R A

Comprometida com a Fé que foi entregue aos santos

de
Agostinho
Hipona
CU
RS
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O Curso Fiel de Liderança foi desenvolvido com

S
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o propósito de contribuir para a capacitação de

N
líderes e para a expansão dos conhecimentos

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teológicos e doutrinários dos membros da Igreja de Cristo.

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Caros leitores e colaboradores em Cristo,

É com grande alegria que lhes oferecemos esta edição especial da Re-
vista Fé para Hoje.

Recentemente li um artigo do jornal New York Times que falava sobre


o recente movimento de retorno das igrejas estadunidenses à teologia
histórica e reformada. Há poucos anos, não eram muitos os cristãos
que conheciam essa expressão e seu significado. Isso também é ver-
dade no Brasil. Mas hoje estamos testemunhando um despertamento
global para essa fé histórica que foi esquecida na primeira metade do
século passado.

Nesta edição especial, voltaremos 1600 anos no tempo e olharemos um


pouco da vida e teologia de um homem que Deus usou para nos ajudar a
entender a Santa Escritura e cujo ensino influenciou a Reforma Protes-
tante do século XVI - de onde tiramos essa expressão, "fé reformada".

Agradecemos seu apoio ao nosso ministério e oramos ao Senhor para


que esses artigos sejam usados para despertar sua mente e coração a
uma maior paixão pela verdade bíblica, como vemos de forma tão efusi-
va na vida de Agostinho de Hipona.

J. Richard Denham III


Diretor, Ministério Fiel

EDITOR-CHEFE Tiago J. Santos Filho TRADUÇÃO Francisco Wellington Ferreira

REVISÃO Marilene Paschoal DIAGRAMAÇÃO Rubner Durais DIRETOR James Richard Denham III
REALIZAÇÃO Editora Fiel | Dezembro de 2013 | no 40

IMAGEM DA CAPA Caravaggio, St. Augustine (Whitfield Fine Art, London – Coleção Particular)
Sumário
Editorial
Tiago Santos..............................................3

1. Aurelius Augustinus, Bispo de Hipona


Tom J. Nettles.......................................... 13

2. A vida e o ministério de Agostinho de Hipona


Alderi S. Matos....................................... 19

3. Agostinho: Uma Vida de Graça e Palavras


Michael A. G. Haykin.............................. 27

4. Agostinho e a Santíssima Trindade


Franklin Ferreira................................... 33

5. “A peregrina cidade de Jerusalém”.


Jerônimo, Agostinho e o Império.
Gilson Santos............................................. 47

6. Tempo, História e Escatologia


Hermisten Maia Pereira da Costa......... 55
Vittore Carpaccio, Visão de Santo Aggostinho (Scuola di San Giorgio degli Schiavoni)
Agostinho
de Hipona
T J. S F

Uma das grandes belezas e segu- trinas mais basilares e importantes.


ranças da teologia bíblica, histórica e Seus grandes dogmas são derivados
ortodoxa é que falta-lhe originalida- da Bíblia.
de. A boa teologia é derivada da Pa- Isso não quer dizer, todavia, que
lavra de Deus nas Escrituras, a qual a teologia não deva buscar profundi-
tem sua origem através da inspiração dade e desenvolvimento. Em grande
do Espírito Santo. A teologia que medida, o produto teológico que te-
honra a Deus é aquela que submete- mos hoje à nossa disposição, é fruto
-se à autoproclamada autoridade das do labor criativo, zeloso e meticuloso
Escrituras e que, portanto, mantém- empreendido por estudiosos da Pa-
-se no limite daquilo que foi revelado lavra de Deus, ao longo da história.
por Deus e ensinado pelos profetas e Então, se por um lado, no núcleo do
apóstolos. Nesse sentido é que a teo- que a fé cristã afirma hoje, do que a
logia não é e nem deve ser original e é igreja cristã crê, estão aquelas doutri-
por isso que, desde o fechamento do nas que foram cridas e ensinadas des-
cânon, a ortodoxia cristã atravessa os de os apóstolos, por outro, os sécu-
séculos, as culturas e os poderes des- los de história cristã serviram para o
te mundo com uma impressionante desenvolvimento, aprofundamento,
unidade e coerência em suas dou- refinamento e apuração dessas dou-

4 | Revista F É P A R A H O J E
trinas. Não há grandes novidades, exemplo de seu vigoroso ministério
mas houveram grandes progressões. pastoral. O teólogo luterano Richard
Balge, citando um colega, disse que:
A INFLUÊNCIA DE AGOSTINHO “Se Agostinho de Hipona tivesse vi-
vido no tempo da Reforma, ele teria
Um desses homens de Deus, do- se juntado a Martinho Lutero”.2 O
tado de uma mente criativa e intenso teólogo presbiteriano B. B. Warfield,
desejo de cavar mais profundamente por sua vez, disse que “o sistema de
na Palavra de Deus e que ajudou a doutrina ensinado por Calvino é
pavimentar o caminho das grandes somente o agostinianismo, confor-
progressões do pensamento teológi- me se vê em todos os demais refor-
co foi o africano Agostinho de Ta- madores. Pois, se a Reforma foi, do
gaste (354-430), bispo de Hipona. ponto de vista espiritual, um grande
Agostinho foi, provavelmente, avivamento da religião, do ponto de
o grande pensador cristão da Idade vista teológico foi um grande reavi-
Média. Por quase dois mil anos sua vamento do agostinianismo”.3 E o
produção teológica tem pautado os erudito batista Timothy George, ao
grandes debates do cristianismo e falar da influência do pensamento
influenciado o pensamento e cultura agostiniano na Reforma, disse que “a
do Ocidente. Do ponto de vista cató- linha principal da Reforma Protes-
lico, Joseph Aloisius Ratzinger rati- tante pode ser vista como uma aguda
fica essa impressão, ao dizer: “Agos- agostinianização do cristianismo.”4
tinho deixou uma marca profunda na
vida cultural do Ocidente e de todo o AGOSTINHO ESTÁ DO NOSSO LADO
mundo. Sua influência é vastíssima.
(...) Raramente uma civilização en- Os grandes representantes da
controu um espírito tão grande, com Reforma do século XVI, Martinho
ideias e formas que alimentariam ge- Lutero, João Calvino, Martin Bucer,
rações vindouras.”1 A Reforma Pro- Philip Melanchton e tantos outros,
testante do século XVI, fundamental encontraram na vigorosa teologia
ao avivamento da fé e espiritualidade agostiniana fundamento tanto para o
cristã, até então adoecida mortal- rompimento com o status quo da igre-
mente pelo desvio teológico, corrup- ja romana como para afirmar a uni-
ção e misticismo, deve a Agostinho o dade do pensamento genuinamente
cerne de suas principais proposições,
particularmente em questões como o 2 Richard D. Balge. Martin Luther, Agostinian (artigo
publicado em http://www.wlsessays.net/files/BalgeAu-
pecado original, a graça de Deus, a gustinian.pdf ), acessado em novembro de 2013.
salvação e a predestinação, além do 3 Benjamin Breckinridge Warfield. John Calvin: the man
and his work (The Methodist Review, Outubro de 1909).
1 Bento XVI. Os Padres da Igreja (Campinas, SP: Ecle- 4 Timothy George. Teologia dos Reformadores (São
siae, 2012) p. 183-184. Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2004), p. 76.

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cristão que remonta aos ensinos dos ças em seu entendimento sobre a
Pais da Igreja e dos Apóstolos. À justiça de Deus. Seu companheiro e
guisa de ilustração, vejamos como colega reformador, o teólogo Philip
o pensamento de Agostinho foi de Melancthon, via Lutero, no contex-
grande importância para alguns dos to da Reforma, como uma “voz in-
reformadores mais destacados: tercambiável com a de Agostinho;

Agostinho foi, provavelmente, o grande pensador


cristão da Idade Média. Por quase dois mil anos sua produção
teológica tem pautado os grandes debates do cristianismo e
influenciado o pensamento e cultura do Ocidente”

Martinho Lutero era um monge uma voz que renovava o ensino pri-
agostiniano e derivou dessa escola mitivo da igreja”.6
o tutano de sua própria teologia. A Com João Calvino não foi di-
influência de Agostinho em Lutero, ferente. A influência da teologia
aliás, parece haver perpassado todas agostiniana também é bem evidente
as fases de sua vida como teólogo. em toda sua carreira teológica.7 Ele
No prefácio da Theologia Germâni- mesmo disse que “ficaria feliz em
ca, obra do século XV redescoberta confessar toda sua fé pelas palavras
por Lutero e republicada por ele em de Agostinho”8 e ainda fez uma fa-
1516, ele reconhece o débito que mosa afirmação de aprovação, ao di-
tem com Agostinho, colocando seus zer: Augustinus totus noster est, isto é,
escritos próximos dos escritos da que “Agostinho está do nosso lado”.
própria Escritura. Em suas “conver- O historiador Justo Gonzalez lem-
sas de mesa”, em 1532, Lutero dis- bra que na principal obra de Calvi-
se: “No começo de minha carreira, no, as Institutas, “se manifesta um
como professor de teologia, eu não conhecimento profundo, não só das
simplesmente lia Agostinho, mas Escrituras, mas também de antigos
devorava suas obras com voracida-
6 Peter Fraenkel. Testimonia Patrum: The Function of
de”.5 No prefácio de seus Escritos the Patristic Argument in the Theology of Philip Melanch-
Latinos, de 1545 – um ano antes de thon (Genebra: Droz, 1961), p. 32.
7 Recomendo a leitura do artigo de S. J. Han: An Inves-
sua morte – Lutero faz referência à tigation into Calvin’s use of Augustine (http://www.ajol.
obra O Espírito e a letra, de Agosti- info/index.php/actat/article/viewFile/52214/40840),
Acessado em novembro de 2013.
nho, e diz que há muitas semelhan- 8 Paul Helm. Apud em N. R. Needham, The Triumph of
5 Martinho Lutero. Luther Works, LI, xviii. Grace (London: Grace Publication, 2000), p. 8.

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escritores cristãos, particularmente das Almas, Bucer faz muitas referên-
Agostinho”.9 Na última edição das cias ao trabalho pastoral e à teologia
Institutas, de 1559, encontram-se de Agostinho. Em seu comentário à
mais de 400 citações de textos de epístola de Paulo em Romanos, de
Agostinho. Calvino confiava mais 1536, Bucer faz um grande esforço
na teologia de Agostinho do que em para aliar-se a Agostinho no trata-
sua exegese, como se vê em vários de mento que este faz dos textos do An-
seus comentários bíblicos, particu- tigo e Novo Testamento e até mesmo
larmente seu comentário em Roma- em suas noções sobre a justificação
nos, no qual ele critica a abordagem (declarada e transmitida). Ainda que
alegórica que muitas vezes Agosti- Bucer estivesse pronto para discor-
nha emprestava ao texto, mas, o fato dar de Agostinho quando necessário,
é que esse eminente pai da igreja é o fato é que ele viu em Agostinho
uma grande fonte de inspiração e uma voz de consonância com o cor-
influência da produção teológica e po da reforma e alinhou-se à essa voz
pastoral de Calvino. em algumas áreas vitais.

Augustinus totus noster est” – Calvino

Martin Bucer, o reformador de O período pós reforma também


Estrasburgo que teve papel vital na valeu-se do pensamento de Agostinho
busca de unidade entre os demais – seja diretamente, ou indiretamente
reformadores, também apoiou-se em pela influência dos próprios reforma-
Agostinho para desenvolver muito dores. Também as gerações sucessi-
de seu pensamento teológico. Num vas, todas elas têm sido, como notou
certo ponto, ele disse que tem “gran- Ratzinger, alimentadas pelas ideias e
de reverencia por Agostinho”.10 Em pensamentos deste gigante da fé. Ele
sua obra, Florilegium Patristicum, na é provavelmente o mais qualificado re-
qual reúne citações dos Pais da Igre- presentante da igreja primitiva e per-
ja, encontram-se várias referencias manece como uma das mentes mais
às obras e pensamento de Agostinho. importantes da história da fé cristã.
Também em sua obra sobre teologia
pastoral, Sobre o Verdadeiro Cuidado AS CONFISSÕES
9 Justo Gonzalez. A Era dos Reformadores (São Paulo,
SP: Edições Vida Nova, 2004), p. 112. De tudo quanto Agostinho pro-
10 Basil Hall. Martin Bucer: Reforming Church and
Community, ed. D. F. Wright (Cambridge, UK: Cam-
duziu, destaco aquela que muito pro-
bridge Press, 1996), p. 150. vavelmente foi a sua principal obra:

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As Confissões. Trata-se de sua auto- Foi então que tuas perfeições invisí-
biografia, escrita em treze livros no veis se manifestaram à minha inteli-
curso de três anos, entre os anos de gência por meio de tuas obras. Mas
397 e 400. Há muito que se poderia não pude fixar nelas meu olhar; mi-
falar sobre As Confissões e seus bene- nha fraqueza se recobrou, e voltei a
fícios e virtudes. Eruditos e literatas, meus hábitos, não levando comigo
tanto da filosofia como da teologia, senão uma lembrança amorosa e, por
certamente já têm empreendido o assim dizer, o desejo do perfume do
papel de analisar as muitas riquezas alimento saboroso que eu ainda não
dessa obra e extrair o sumo de seu podia comer11.
rico conteúdo. Aqui queremos ofe- Buscava um meio que me desse for-
recer apenas um pequeno vislumbre ça necessária para gozar de ti, e não
dessa que permanece como uma das a encontrei enquanto não me abracei
mais importantes obras literárias de ao Mediador entre Deus e os homens,
todos os tempos. o homem Cristo Jesus, que está sobre
Nela Agostinho empreende uma todas as coisas, Deus bendito por to-
profunda investigação da própria dos os séculos, que chama e diz: Eu
alma, da sua fé e de sua sincera bus- sou o caminho, a verdade e a vida.12

Nas Conf issões Agostinho empreende


uma profunda investigação da própria alma,
da sua fé e de sua sincera busca por Deus.”

ca por Deus. Ele abre seu coração Também vemos a luta da carne,
e, numa conversa dirigida a Deus, a qual ele chama de luta com a luxú-
confessa seus pecados, dramas, an- ria: “Admirava-me de já vos ter amor
gústias d’alma, frustrações e também e de não amar um fantasma em vez
sua luta pela verdade e sua luta com o de Vós. Era arrebatado para vós pela
próprio Deus. vossa beleza, e logo arrancado de vós
Vemos, por exemplo, em As Con- pelo meu peso. Este peso eram os
fissões, uma verdadeira luta da men- hábitos da luxúria”.13 Sua luta contra
te e a sublime busca pela verdade, as tentações sexuais ainda é exempli-
a qual Agostinho reconhece haver 11 Agostinho. Confissões (São Paulo, SP: Editora Nova
Cultural, 1999), p. 185.
encontrado somente quando Jesus o 12 Ibidem. p. 192.
encontrou: 13 Ibidem. p. 190.

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Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova,
tarde te amei! Eis que estavas dentro de mim,
e eu lá fora, a te procurar!” – Agostinho

ficada pela famosa oração: “Senhor, nham-me longe de ti aquilo que nem
dá-me a castidade e a continência, existiria se não existisse em ti. Tu me
mas ainda não”.14 Todavia, é preci- chamaste, gritaste por mim, e ven-
so registrar, muitas vezes a culpa de ceste minha surdez. Brilhaste, e teu
Agostinho por conta de sua concu- esplendor afugentou minha cegueira.
piscência tem levado muitos a acusa- Exalaste teu perfume, respirei-o, e
rem-no de ter sido promíscuo. Mas suspiro por ti. Eu te saboreei, e agora
talvez essa conclusão seja injusta, tenho fome e sede de ti. Tocaste-me,
pois ele mesmo registra somente um e o desejo de tua paz me inflama.15
caso amoroso, com uma concubina,
mãe de seu filho Adeodato, mulher De tudo o mais, um aspecto mui-
a quem muito amou, embora nunca to sublime de suas Confissões, que se
tenha se casado com ela. alteia como um fator presente em
Ele ainda conta como Deus o al- toda narrativa, é a noção de que é
cançou e salvou e como ele passou a Deus quem vem ao encontro do ho-
perceber a mão providente de Deus mem para alcançá-lo e salvá-lo. Tal-
nas diversas fases de sua vida, além de vez a expressão que melhor exempli-
ter uma noção mais plena e gozosa da fica essa realidade na experiência de
beleza de Deus, depois de sua conver- Agostinho, seja a oração que ele re-
são. As Confissões também são uma pete algumas vezes no curso de suas
expressão de adoração e uma declara- confissões: “Dai-me o que ordenais,
ção de amor e devoção a Deus e nela e ordenai-me o que quiserdes” (Da
ele exalta a Deus louvando-o pela cria- Quod Iubes et Iube Quod Vis). Esta
ção. Num certo ponto, ele confessa: oração causou arrepio no grande ri-
val de Agostinho, Pelágio, que via
Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nela uma afronta ao livre arbítrio do
nova, tarde te amei! Eis que estavas homem, o qual, Pelágio cria, nascia
dentro de mim, e eu lá fora, a te pro- reto e tinha em si mesmo a capaci-
curar! Eu, disforme, me atirava à be- dade de obedecer ou rejeitar a Deus.
leza das formas que criaste. Estavas Mas Agostinho entendeu – e essa
comigo, e eu não estava em ti. Reti- oração assim o demonstra – que so-
14 Ibidem. p. 214. 15 Ibidem. p. 285.

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mente a graça de Deus e o poder do essa reação muitas vezes é exagera-
Espírito, atuando no interior do ho- da e mais emocional do que justa.
mem, é que pode levá-lo ao próprio Muito do que é rejeitado é herança
Deus. É Deus quem dá causa à fé, da cristandade, da fé cristã na his-
ao amor, à devoção e à obediência e tória e de imenso proveito para os
é por isso que ele pede: concede-me cristãos hoje. Faríamos bem em, ao
o que ordenais, isto é, capacita-me, contrário dessa tendência, resgatar
Senhor, para o que queres. Em outra e valorizar esse rico legado.
obra sua, ele pergunta: “Que nos or- Em Agostinho, particularmente,
dena Deus em primeiro lugar, e com há muito que aprender – como fize-
mais insistência, senão que acredite- ram também nossos pais reformado-
mos nele? Ora, é precisamente esta res e toda tradição cristã nesses últi-
graça que ele nos concede”.16 mos dezessete séculos.

Agostinho cavou nas Escrituras em


busca da verdade; a Reforma fez o mesmo.”

POR QUE LER AGOSTINHO? E há muito o que ler de Agosti-


nho. Dentre os Pais da Igreja, seus
Em nossa breve tradição protes- escritos são os mais abundantes. A
tante no Brasil, a reação ao catoli- história de sua vida e sua obra fo-
cismo romano tem, não raras vezes, ram catalogados pelo cuidadoso
rejeitado muito dos símbolos, tra- trabalho de seu biografo e contem-
dição, produção teológica, propo- porâneo Possídio, que escreveu a
nentes da fé que são, normalmen- Vita Augustini e indexou nela o In-
te, associados à Roma. Assim, não diculos, que elencava e reproduzia
é incomum alguma desconfiança suas principais obras. São centenas
do leitor mais desavisado, porém de homilias e cartas ainda preser-
sincero e zeloso, quando se fala no vadas e várias obras filosóficas e
proveito que temos pela leitura e teológicas que, conforme coloca
aprendizado com aqueles que este- Ratzinger, “são de importância
jam ligados à tradição romana. Mas fundamental, não só para o cristia-
16 Agostinho. Confissões. Nota de J. Oliveira Santos, nismo, mas para a formação de toda
apud, De Bono Perseverantiae: Quid vero nobis primitus et
maxime Deus iubet, nisi ut credamus in Eum? Et hoc ergo
cultura ocidental”.17
ipse dat (São Paulo, SP: Nova Cultural, 1999), p. 286.
17 Ratzinger. Padres da Igreja, p. 201.

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Em seus escritos, temos um te- Em Agostinho, temos uma im-
souro de sabedoria que pode fa- pressionante profundidade teológi-
zer muito bem ao povo de Deus, ca, assertividade e firmeza doutri-
se lido com discernimento. É claro nária, intensa devoção a Deus, in-
que Agostinho teve os seus limites questionável respeito ao texto bíbli-
e cometeu seus equívocos. Mas en- co e genuína preocupação pastoral.
contramos nele uma mente brilhan- Essas qualidades são um grande es-
te e um coração radiante, que ardia tímulo para o estudante de teologia,
por amor a Deus, como pouco se particularmente, mas também para
vê em nossos tempos. Temos nele todo cristão sincero que busca agra-
um esforço diligente para subme- dar a Deus e viver neste mundo vil
ter todas as coisas à revelação. Suas e cheio de perigos - especialmente
Conf issões, aliás, são a grande prova diante dos muitos desafios enfren-
disso. Foi somente quando a Escri- tados pela fé cristã de nossos tem-
tura falou que sua obstinada busca pos, em que os valores deste mundo
pela verdade cessou. A partir desse são difusos, em que há uma crise de

Em Agostinho, temos uma impressionante


profundidade teológica, assertividade e f irmeza
doutrinária, intensa devoção a Deus, inquestionável
respeito ao texto bíblico e genuína preocupação pastoral.”

ponto, ele passa a ser um estudioso conteúdo e substância de fé e onde


da verdade contida nas Escrituras. os homens - e, surpreendentemente,
Conforme colocou Solano Portela, até mesmo uma ala do cristianismo
em uma conversa que tivemos sobre - suspeitam dos dogmas e afirma-
o bispo de Hipona, “Agostinho ca- ções da Palavra de Deus e da orto-
vou nas Escrituras em busca da ver- doxia cristã. Em Agostinho temos a
dade; a Reforma fez o mesmo; Cal- junção de vida vigorosa e doutrina
vino continuou cavando e olhando robusta. Isso faz dele um campeão
com mais clareza as Escrituras; nós da fé.
temos de fazer o mesmo. Igreja Re- Mais uma vez, Ratzinger oferece
formada sempre se reformando é um útil insight sobre a obra de Agos-
isso”. tinho:

Revista FÉ PAR A H OJE | 11


Em seus escritos [Agostinho] o raja Agostinho a confiarmos neste
encontramos vivo. Quando leio os Cristo sempre vivo e encontrar nele
escritos de Santo Agostinho, não te- o caminho da vida.18
nho a impressão que se trata de um
homem morto há mil e seiscentos A presente edição da Revista Fé
anos, mas sinto-o como um homem para Hoje celebra a vida e obra de
de hoje: um amigo, um contemporâ- Agostinho de Hipona e oferece ao pre-
neo que me fala, que fala a nós com zado leitor uma pequena introdução
sua fé vigorosa e atual. Nele vemos ao pensamento deste servo de Deus.
a atualidade permanente de sua fé. Com esta edição, queremos fazer coro
Fé que vem de Cristo, Verbo Eterno com João Calvino e dizer: Agostinho
encarnado, Filho de Deus e Filho do está do nosso lado. Que saibamos
homem. E podemos ver que essa fé aproveitar a sinceridade de sua jornada
não é de ontem, mesmo tendo sido em busca da verdade, a criatividade de
pregada ontem; é sempre de hoje, sua teologia, a beleza de sua devoção a
porque Cristo é realmente ontem, Deus, o vigor de seu exemplo e teste-
hoje e para sempre. Ele é o caminho, munho, a firmeza de sua fé.
a verdade e a vida. Assim nos enco- 18 ibidem. p. 193.

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Mosaico (Catedral de Cefalù, Itália)

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Aurelius Augustinus,
Bispo de Hipona
T J. N

No que diz respeito à combina- no pensamento cristão e não no pensa-


ção de doutrina e piedade, Agostinho mento pagão, prosseguiu com base em
teve poucos que se lhe igualaram na conceitos agostinianos. A Reforma, no
história do cristianismo. Seus escritos século XVI, redescobriu e edificou so-
proveem informação sobre cada área bre elementos negligenciados do ensi-
de discussão na filosofia cristã, teolo- no de Agostinho sobre as doutrinas do
gia sistemática, filosofia da história, pecado e da salvação.
polêmica, retórica e devoção. Embora Agostinho nasceu em 354, em Ta-
algumas opiniões apoiem as doutri- gaste, na província romana da Numí-
nas de oração intercessora e sacrifícios dia, no Norte da África. Observações
em favor dos mortos, o purgatório e a posteriores sobre a infância e a queda
justificação transformacional, as suas levaram Agostinho a comentar: “A
poderosas doutrinas da graça, bem inocência das crianças está na debili-
como da encarnação e do sacrifício dade de seu corpo e não em qualquer
de Cristo recebem desenvolvimento qualidade em sua mente” (Conf issões
substancial e acurado nas confissões 1.vii – as referências subsequentes
do cristianismo reformado. Depois da das Confissões serão identificadas
queda de Roma, o projeto milenar de apenas pelos números do livro e do
reconstrução da civilização ocidental, capítulo).

14 | Revista F É P A R A H O J E
Seu pai, Patrício, era um pagão. primeiros estudos mostraram quão
Agostinho o lembrava como um ho- perversamente os homens podem usar
mem rude, forte, irascível e infiel ao algo tão maravilhoso e intrinsecamen-
seu leito conjugal. Ele trabalhava mui- te bom como a linguagem. Palavras e
to, mas achava difícil subir como um eloquência tão necessárias à persuasão
africano no sistema romano de econo- e à exposição sofreram o abuso de de-
mia e política. Parece que Agostinho finir e inculcar o erro e a vileza. Poste-
sentia pouca afeição por seu pai, em- riormente, em suas Confissões, Agosti-
bora este tenha se sacrificado para lhe nho observaria com que cuidado ávido
dar educação. Patrício morreu antes de os homens seguem as regras de letras
Agostinho completar 17 anos. e sílabas, enquanto negligenciam as
Sua mãe, Mônica, era uma cristã regras permanentes da salvação eterna.
zelosa. Extraordinariamente apegada a Com a ajuda de um benfeitor rico
Agostinho e ao seu bem-estar, Mônica chamado Romanianus, Agostinho foi
procurou a salvação de seu filho com para Cartago em 370, para ter estudos
energia incansável e oração constan- avançados em retórica. Ali, ele come-
te. Ela pulou, literalmente, de alegria çou uma concubinagem com uma mu-
quando ouviu sobre a conversão de lher, e isso durou por 13 anos. Um filho,
Agostinho e sua sujeição ao cristianis- Adeodato (“dado por Deus”), resultou
mo ortodoxo. Logo depois, segura de da união deles. Ao pensar no desejo
que os dons e a devoção de Agostinho que o impeliu a essa união, Agostinho
ardiam para a glória de Deus, Mônica lembrou: “Da impura concupiscência
soube que não viveria muito tempo. da carne e da poderosa imaginação da
Ela morreu aos 56 anos de idade, quan- puberdade, se elevaram névoas que
do Agostinho tinha 33 anos. encobriram e entenebreceram meu
Na opinião de Agostinho, am- coração, para que eu não pudesse fazer
bos os pais deram ênfase indevida ao distinção entre a luz clara do amor e o
sucesso de seus estudos. Seu pai não nevoeiro da lascívia” (2.ii).
tinha nenhuma motivação espiritual, Em Cartago, ele conheceu a obra
apenas ambição vã pelo prosperidade Hortensius, de Cícero. Isto transfor-
do filho. Sua mãe acreditava que seus mou sua experiência anterior com a
estudos não impediriam a sua conver- retórica em um uso inteligente da lin-
são, mas que, de fato, a favoreceriam. guagem na busca da verdade. “A coisa
Ela estava certa. que me deleitou na exortação de Cí-
Depois da educação fundamental cero foi que eu deveria amar, buscar,
em Tagaste, Agostinho estudou, de ganhar, possuir e abraçar não esta ou
365 a 369, literatura clássica em Ma- aquela escola de filosofia, mas a própria
daura. Ele começou um amor vitalício sabedoria, o que quer que ela fosse”
pela linguagem que procurava a ex- (3.iv). Esta nova resolução pela verda-
pressão apropriada da verdade. Seus deira sabedoria pôde produzir somente

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um desejo protelado por pureza, como Suas reflexões sobre o dualismo
Agostinho orou: “Dá-me castidade e maniqueísta resultou num dos seus
continência, mas não ainda” (8.vii). mais profundos pontos teológicos a
Por nove anos, ele procurou a ver- respeito do mal. Em sua obra Soliló-
dade dentro da seita do maniqueísmo, quios, escrita logo depois de sua con-
fascinado pelo materialismo e pelo versão, ele se referiu a Deus como
dualismo deles. Os maniqueístas li- aquele “que mostra, para os que nele
davam com o problema do mal por buscam o refúgio daquilo que é real-
combinarem pensamentos de Cristo, mente verdadeiro, que o mal é nada”.
Buda e Zoroastro. Agostinho aceitou Visto que Deus criou todas as coisas,
o que parecia ser uma abordagem so- o mal não tem existência independente
fisticada e científica do mal, ao mesmo das coisas boas. O mal é a privação do
tempo que endossava ostensivamente bem. Quando todo o bem desaparece,
o treinamento que recebera na infân- nada existe. O mal é apenas ausência
cia concernente ao ensino do reino de ou configuração errônea do bem. Não
Cristo. Por fim, ele descobriu que esse é uma substância independente que in-

A Reforma, no século XVI, redescobriu e edif icou


sobre elementos negligenciados do ensino de Agostinho
sobre as doutrinas do pecado e da salvação.”

sincretismo fascinante não tinha nada vade e contamina, mas tem de plagiar o
em comum com sua busca pessoal pela bem de Deus e diminuir a sua glória. O
unidade entre palavra e substância. mal não é removido pela erradicação de
Em vez disso, o maniqueísmo era “uma uma natureza contrária, como os ma-
seita de homens que falavam absurdos niqueístas pensavam, e sim pela purifi-
pretenciosos, homens carnais e mun- cação da própria coisa que é depravada.
danos”. A conversa deles enredavam A verdade e a mentira, de acordo com
as almas “com um arranjo das sílabas Agostinho, habitam na mesma tensão,
dos nomes de Deus, o Pai, do Senhor pois nada é falso, exceto pela imitação
Jesus Cristo e do Paracleto, o Espírito do verdadeiro.
Santo, nosso Consolador. Estes nomes Depois de completar seus estudos,
estavam sempre nos lábios deles, mas Agostinho ensinou retórica em Carta-
somente como sons e barulhos da lín- go. Ele achava a atmosfera pedagógica
gua” (3.vi). intolerável. Um grupo de alunos co-

16 | Revista F É P A R A H O J E
nhecidos como “transtornadores” per- louvor e o conhecimento de Deus.
turbavam toda a ordem, agiam como Somente Deus é aquele que é “amado,
homens loucos que praticavam atos intencionalmente ou não, por tudo que
estúpidos e ultrajantes. Se não fossem é capaz de amar”. Agostinho descobriu
protegidos pela “tradição”, poderiam que Deus “nos move a deleitar-nos em
ter sido punidos pela lei. louvar-Te; porque Tu nos formaste
A fim de escapar dessa atmosfera para Ti mesmo, e nossos corações não
destrutiva, Agostinho foi para Roma têm descanso enquanto não acham
em 383. Naquele ano, ele ouviu sobre descanso em Ti” (1.1).
um posto de ensino de retórica em Mi- Aos 31 anos de idade, Agostinho
lão. Os termos eram atraentes; Agos- foi convertido com a leitura de Ro-
tinho solicitou esse posto e foi para manos 13.13-14. Em um jardim, ele
lá em 384. Em Milão, ele conheceu ouviu crianças cantarem: “Pega e lê”.
Ambrósio, o grande pregador da igre- Quando ele pegou uma Bíblia, seus
ja em Milão. Ele não achou a retórica olhos caíram nas palavras desta pas-
de Ambrósio tão brilhante quanto a sagem e levaram ao fim de um ciclo de
de Fausto, o mestre maniqueísta, mas insatisfação, convicção e busca que o
logo aprendeu que o verdadeiro po- dominou por mais de 15 anos. Ele foi
der da pregação de Ambrósio estava batizado por Ambrósio em 25 de abril
na correspondência de sua linguagem de 387.
com a realidade verdadeira e substan- Agostinho desejava viver em re-
cial. Agostinho ficou convencido de clusão, não possuindo nada, havendo
que o cristianismo era defensável con- abandonado sua busca anterior por
tra os maniqueístas e se alistou nova- prazer, beleza e honra, dando-se à con-
mente como um catecúmeno na igre- templação de Deus por meio da Escri-
ja. Posteriormente, o neoplatonismo tura. Ele evitou diligentemente estar
limpou a sua mente do dualismo dos numa posição em que alguma igreja
maniqueístas, depois de um breve fler- que não tinha um bispo colocasse os
te com o ceticismo. Seu realinhamento olhos nele. Agostinho foi para Hipona
com a Escritura começou a preencher em 391, com o propósito de estabelecer
os espaços vazios em seu desenvolvi- um monastério, porque a cidade tinha
mento intelectual. As doutrinas cristãs um bispo, Valério. No entanto, Valé-
da criação ex nihilo, da providência, rio dispôs as coisas de modo a ordenar
da redenção realizada pelo Deus trino Agostinho como sacerdote e, depois,
satisfizeram mais do que abundante- como bispo, em 395.
mente os anseios tanto de seu coração Agostinho gastou o restou de sua
quanto de sua mente. vida servindo às pessoas de sua pa-
Agora, ele sabia que o homem feito róquia, como pastor e pregador, e a
à imagem de Deus não poderia achar toda a igreja, como um guia profundo
descanso para a alma sem o amor, o da verdade cristã e da adoração pura.

Revista FÉ PAR A H OJE | 17


Agostinho sabia que o homem feito à imagem
de Deus não poderia achar descanso para a alma
sem o amor, o louvor e o conhecimento de Deus.”

Suas Conf issões, uma autobiografia Calvino, Jonathan Edwards e muitos


espiritual, estabeleceu a agenda teo- outros. Ele articulou seus pontos de
lógica à qual ele dedicou suas grandes vista sobre a pessoa de Cristo tão clara
habilidades de reflexão filosófica e e convincentemente, que antecipou a
teológica. Seus pontos de vista sobre fórmula dos conceitos cristológicos e
Cristo, a Trindade, o pecado humano, ortodoxos de Calcedônia. Sua admi-
o caráter do mal, a livre agência apesar rável teodiceia mostrada em Cidade
da depravação da vontade caída, o po- de Deus não somente revolucionou os
der e a necessidade da graça divina, a pontos de vista ocidentais sobre a His-
natureza dos sacramentos e a direção tória, mas também criou uma dinâmica
da história humana sob a providência para a discussão das relações entre Es-
de Deus em um mundo caído – todos tado e igreja que ainda produz frutos e
estes acharam um ponto de partida desperta controvérsia. Embora sua de-
nas Conf issões. fesa da perseguição dos donatistas te-
Sua afirmação “Dá-me o que orde- nha produzido muito fruto mau, suas
nas e ordena-me aquilo o que quiseres” opiniões poderosas sobre a unidade da
(10.xxix) ofendeu Pelágio. A defesa igreja têm dado substância a muitos
resultante e permanente de Agostinho esforços evangélicos para a realização
quanto à necessidade de graça levou a de vários tipos de unidade por meio de
algumas das suas posições mais pro- discussão e afirmação doutrinária.
fundas e controversas. Este aspecto O monge Gottschalk afirmou
do pensamento de Agostinho inspirou 1.200 anos atrás o que ainda é verda-
o viver nobre e a teologia vigorosa em deiro hoje: Agostinho é, depois dos
Anselmo, Tomás de Aquino, Lutero, apóstolos, o mestre de toda a igreja.

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Sandro Botticelli, Santo Agostinho em seus estudos (IgrejaOgnissanti, Itália)

Revista FÉ PAR A H OJE | 19


A vida e o ministério de
Agostinho de Hipona
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Na mesma época em que se O famoso bispo introduziu no


desenrolavam na igreja grega ou pensamento cristão o conceito de
oriental as controvérsias cristológi- “monergismo” (de monos = “um só”
cas, viveu no Ocidente aquele que e ergon = “obra”), ou seja, que tanto
seria considerado o maior dos pais na história humana como na salva-
da igreja – Aurélio Agostinho. Por ção a atuação de Deus é plenamente
sua genialidade, produtividade e in- soberana, em contraste com a posi-
fluência, ele é considerado o equiva- ção “sinergista” aceita por vários sé-
lente latino do brilhante Orígenes. culos, com sua ênfase na cooperação
Agostinho foi o último dos grandes das agências humana e divina. Essa
escritores cristãos da antiguidade e posição de Agostinho nunca foi to-
o precursor da teologia medieval, talmente aceita pela sua igreja e foi
tendo também influenciado pro- rejeitada pela igreja oriental. Ainda
fundamente a teologia protestan- assim, ele foi declarado um dos qua-
te do século 16. Ele deu à teologia tro doutores da igreja latina, ao lado
ocidental características que a des- de Ambrósio, Jerônimo e Gregório I.
tacaram da oriental e contribuíram Por causa da sua autobiografia,
para o rompimento final das duas as Confissões, a vida de Agostinho é a
tradições. mais conhecida dentre todos os pais

20 | Revista F É P A R A H O J E
da igreja. Ele nasceu em 354 em Ta- -se com a eloquência erudita e com
gaste, no norte da África (a moderna a pregação alegórica do grande bispo
Argélia), não longe da grande cidade Ambrósio (c. 339-397), considerado
de Cartago (na atual Tunísia), e rece- o maior orador sacro da antiga igreja
beu o nome de Aurelius Augustinus. latina.
Seu pai, Patrício, um funcionário pú- Sua peregrinação culminou em
blico de classe média, era um pagão agosto de 386 com a célebre experiên-
que só se converteu pouco antes de cia do jardim, narrada com detalhes
morrer, em 372. A mãe, Mônica, era nas Confissões. Enquanto conversava
uma cristã piedosa de forte persona- com o amigo Alípio sobre a mensa-
lidade. gem do apóstolo Paulo, Agostinho
O jovem estudou em sua cidade sentiu-se tomado de profunda emo-
natal e depois em Madaura e Carta- ção. Afastando-se, ouviu uma criança
go. Destacou-se na retórica latina, cantar repetidamente tolle lege (“toma
mas não conseguiu dominar a língua e lê”). Abrindo ao acaso a carta aos
grega. Embora fosse um catecúmeno Romanos, leu os versos 13 e 14 do
desde a infância, tinha paixão pelo capítulo 13, convertendo-se afinal.
teatro e somente disciplinou a sua Abandonando a carreira pública,
sexualidade através da união com abraçou a vida monástica e foi bati-
uma concubina (372-385), que lhe zado por Ambrósio na páscoa de 387.
deu um filho, Adeodato, falecido por Ao retornar a Tagaste, após a
volta de 390. Desiludido com a Bí- morte de Mônica em Óstia, perto de
blia e fascinado pela filosofia através Roma, começou a escrever contra o
da leitura de uma obra do orador ro- maniqueísmo e formou uma comu-
mano Cícero (Hortênsio), Agostinho nidade contemplativa. Ao fazer uma
voltou-se para o maniqueísmo, uma visita a Hipona, hoje na Argélia, foi
seita gnóstica, e depois para o ceti- ordenado sacerdote quase à força
cismo. Tornou-se professor de retó- (391). Tornou-se bispo coadjutor em
rica em Tagaste e Cartago, e foi en- 395 e, no ano seguinte, bispo de Hi-
tão para Roma (383) e Milão (384), pona, cargo que exerceu até sua mor-
sendo logo seguido por sua mãe, que te, em 430. Sendo agora um líder da
estava interessada em seu progresso igreja e defrontando-se com grandes
profissional e em seu retorno à igreja. desafios, sua perspectiva transfor-
Em Milão, o jovem retórico rece- mou-se de modo decisivo. Passou a
beu a influência da filosofia neopla- ter uma visão mais radicalmente bí-
tônica, que o convenceu da existên- blica do ser humano e da história, em
cia do Ser transcendente imaterial e contraste com o seu anterior huma-
lhe deu uma nova compreensão do nismo otimista neoplatônico.
problema do mal como corrupção A teologia de Agostinho foi for-
ou ausência do bem. Impressionou- jada e amadureceu no contexto de

Revista FÉ PAR A H OJE | 21


três grandes controvérsias nas quais mo) para explicar o mal. Este não é
se envolveu, a começar da sua luta uma natureza ou substância, mas a
contra os maniqueístas. Estes eram corrupção da natureza boa criada por
seguidores do profeta persa Mani (c. Deus ou uma privatio boni (ausência
216-276), que foi martirizado pelos do bem). Ele usou dois argumentos:
romanos. Criam em duas forças eter- metafísico (toda natureza criada é
nas e iguais, o bem e o mal, em luta inferior a Deus e passível de corrup-
perpétua. Assim como os gnósticos, ção) e moral (o mal moral decorre
atribuíam o mal à matéria, criada do uso impróprio do livre-arbítrio).

Agostinho foi o último dos grandes escritores


cristãos da antiguidade e o precursor da
teologia medieval, tendo também influenciado
profundamente a teologia protestante do século 16.”

pelo princípio do mal, e o bem ao Agostinho utilizou a filosofia (no


espírito, criado pelo Deus bom. A caso o neoplatonismo) contra o ma-
alma ou espírito do homem era uma niqueísmo, adaptando-a à fé cristã,
centelha do poder benigno que havia algo que vinha sendo feito desde a
sido roubada pelas forças malignas época de Clemente de Alexandria e
e aprisionada na matéria. Quando Orígenes, por causa do entendimen-
jovem, Agostinho se sentira atraído to de que toda verdade é verdade de
por essa filosofia religiosa, que pare- Deus, venha de onde vier. Ao mesmo
cia explicar melhor que o cristianis- tempo, discordou do neoplatonismo
mo algumas das questões mais im- quanto à natureza de Deus (pessoal
portantes da existência. Mais tarde, em contraste com o Uno impessoal)
decepcionou-se com o movimento, e à criação do mundo (a partir do
principalmente após uma conver- nada ou ex nihilo em contraste com
sa com Fausto, o filósofo maniqueu a eternidade da matéria). Com a aju-
mais importante. da da filosofia, Agostinho demons-
Em sua principal obra contra o trou racionalmente a superioridade
maniqueísmo, Da natureza do bem do cristianismo e forneceu padrões
(c. 405), Agostinho argumentou que para o pensamento cristão sobre te-
não é preciso admitir duas forças mas como Deus, a graça, a criação, o
iguais e opostas no universo (dualis- pecado, o livre arbítrio e o mal. Em-

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pregou argumentos já conhecidos, tinho salientou duas questões: a
porém de forma nova e atraente. natureza da igreja e a validade dos
A segunda grande controvérsia sacramentos. A ênfase principal dos
de que Agostinho participou foi con- donatistas era a pureza da igreja: esta
tra os donatistas. Esse cisma na igre- era considerada a congregação dos
ja católica do norte da África, que re- santos, tanto na terra como no céu,
sultou na formação de uma poderosa sendo sempre um pequeno remanes-
igreja rival, havia surgido após a úl- cente fiel. Rejeitando essa eclesiolo-
tima perseguição contra os cristãos, gia, Agostinho argumentou que os
no início do 4° século (303-311). Os donatistas é que eram impuros, por
líderes iniciais do movimento, entre destruírem a unidade da igreja e ca-
os quais estava um bispo chamado írem no pecado do cisma. Para ele, a
Donato, afirmavam que os bispos igreja inclui todos os tipos de pesso-
que tinham cooperado com os per- as, contendo em si tanto o bem como
seguidores romanos não eram legí- o mal (o trigo e o joio) até a separação
timos e que os homens que eles ha- definitiva no último dia.

Com a ajuda da f ilosof ia, Agostinho demonstrou


racionalmente a superioridade do cristianismo e forneceu
padrões para o pensamento cristão sobre temas como Deus, a
graça, a criação, o pecado, o livre arbítrio e o mal.”

viam ordenado não eram sacerdotes Quanto aos sacramentos, ele in-
cristãos. Os donatistas eram herdei- sistiu que o batismo e a Eucaristia
ros da tradição rigorista ou moralista transmitem a graça de Deus ex ope-
de O Pastor de Hermas e Tertuliano, re operato, ou seja, “em virtude do
e agora, na época de Agostinho, ar- próprio ato”, independentemente
gumentavam que os bispos e sacer- da condição moral e espiritual do
dotes católicos eram corruptos ou oficiante. Os sacramentos provêm
heréticos, e por isso os sacramentos de Cristo e o seu poder e eficácia
que ministravam não eram válidos. baseiam-se na santidade de Cristo,
Nessas alegações, apelavam inclusive que não pode ser corrompida por
aos escritos de Cipriano. ministros indignos “assim como a luz
Ao lutar contra os donatistas, em do sol não é corrompida ao brilhar
obras como Sobre o batismo, Agos- através de um esgoto”. Portanto, um

Revista FÉ PAR A H OJE | 23


sacramento é válido mesmo quando ciadas pelos maus exemplos ao seu
ministrado por um sacerdote imoral redor, mas que elas não têm uma
ou herético, contanto que tenha uma tendência natural para pecar. Se elas
ordenação válida e esteja em comu- pecam é porque decidem fazê-lo de-
nhão com a igreja. Ele é mero instru- liberadamente. Em segundo lugar,
mento da graça de Cristo. ele negou que a graça sobrenatural
Sem dúvida, a controvérsia mais de Deus seja essencial para a salva-
importante na qual se envolveu ção. Tudo de que os cristãos precisam
Agostinho, e aquela que trouxe con- é a iluminação dada pela Palavra de
sequências mais profundas para sua Deus e por sua própria consciência.
teologia, foi a que ele manteve contra Finalmente, afirmou a possibilida-
o pelagianismo. Pelágio era um mon- de, pelo menos teórica, de se viver
ge britânico que nasceu em meados uma vida sem pecado mediante o uso
do século 4°. Por volta de 405 ele foi correto do livre-arbítrio. Todo ser
para Roma e depois seguiu para o humano se encontra na situação de
norte de África, mas não chegou a se Adão antes da queda, podendo optar
encontrar com Agostinho. Foi então por viver em perfeita obediência à lei
para a Palestina e escreveu dois livros de Deus.
sobre o pecado, o livre-arbítrio e a Reagindo contra os ensinos de
graça: Da natureza e Do livre-arbí- Pelágio, Agostinho desenvolveu a
trio. Embora criticado fortemente sua própria soteriologia, que parte
por Agostinho e seu amigo Jerônimo de duas convicções centrais: a total
(†420), comentarista bíblico e tra- corrupção dos seres humanos após
dutor da Vulgata Latina, ele foi ino- a queda e a absoluta soberania de
centado por um sínodo reunido na Deus. Suas principais obras antipe-
Palestina em 415. Todavia, foi con- lagianas foram: Do Espírito e da letra
denado como herege pelo bispo de (412), Da natureza e da graça (415),
Roma (417-418) e pelo Concílio de Da graça de Cristo e do pecado origi-
Éfeso (431). Pelágio era um cristão nal (418), Da graça e do livre arbítrio
moralista que achava que a crença (427) e Da predestinação dos santos
numa tendência natural para o pe- (429). Ele também tratou dessas
cado era um desestímulo para que os questões em outras obras, tais como
cristãos vivessem vidas virtuosas. o Enchiridion (421) e A cidade de
Pelágio foi acusado de três here- Deus (c. 413-427).
sias. Primeiro, negou o pecado ori- Apelando a ensinos do apósto-
ginal no sentido de culpa herdada, lo Paulo, como Romanos 5.12-21,
no que era acompanhado por mui- Agostinho afirmou que todos os se-
tos cristãos orientais. Dizia que as res humanos, inclusive os filhos dos
pessoas pecam porque nascem num cristãos, nascem culpados e total-
mundo corrompido e são influen- mente corrompidos por causa do pe-

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cado de Adão e da natureza pecami- turas humanas estão de tal modo
nosa herdada dele, estando sujeitos à corrompidas que, se Deus não lhes
condenação eterna. Eles fazem parte concedesse o dom da fé, nem sequer
de uma “massa de perdição”. Essa se voltariam para ele. Se fosse possí-
situação só é desfeita pelo batismo vel alcançar a retidão somente pela
(o sacramento da regeneração), pelo natureza e pelo livre-arbítrio, sem
arrependimento e pela graça sacra- a graça sobrenatural, Cristo teria
mental. A vida cristã virtuosa é intei- morrido em vão. Deus determina ou
ramente uma obra da graça de Deus predestina de modo soberano tudo o
e de modo algum um produto do que acontece.
esforço humano ou do livre-arbítrio, Em sua última obra, Da predesti-
sem a graça capacitadora. Por causa nação dos santos, Agostinho afirmou
da corrupção herdada, o ser huma- que Deus escolhe alguns indivíduos
no não tem liberdade para não pecar do meio da massa humana de per-
(non posse non peccare). dição para receberem a dádiva da

A vida cristã virtuosa é inteiramente


uma obra da graça de Deus e de modo algum
um produto do esforço humano ou do livre-arbítrio,
sem a graça capacitadora.”

Para Agostinho, o livre-arbítrio fé, e deixa os outros em sua mere-


era simplesmente fazer o que se dese- cida perdição. É aquilo que mais
ja fazer, agir de acordo com a própria tarde seria descrito como “eleição
natureza, não incluindo a capacidade incondicional” e “graça irresistível”.
da escolha contrária, como era sus- Agostinho não explicou satisfato-
tentado por Pelágio e seus seguido- riamente certas questões difíceis
res. Assim, as pessoas são livres para levantas pela sua soteriologia (Deus
pecar, mas não para não pecar: pecar é o autor do mal? Como conciliar a
é tudo o que elas querem fazer sem a soberania de Deus e a responsabi-
graça interveniente de Deus. lidade humana? Por que Deus não
Portanto, a graça soberana de salva a todos?), deixando-as na esfe-
Deus é absolutamente necessária ra dos mistérios. Para ele, a verdade
para qualquer decisão ou ação posi- fundamental é o fato de que Deus é
tiva do ser humano caído. As cria- a causa suprema de todas as coisas e

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não há nada no universo que esteja vontade. Uma de suas últimas obras
fora do seu controle ou que possa foi Retractationes ou Revisões (426-
frustrar a sua vontade. 427), nas quais arrolou seus escritos,
Além da doutrina da igreja e dos corrigindo-se e defendendo-se em
sacramentos e da doutrina da graça, alguns pontos. Outros temas da te-
outra contribuição fundamental do ologia de Agostinho foram o conhe-
bispo de Hipona foi sua exposição cimento como iluminação da mente
da doutrina trinitária no valioso tra- pelo Verbo de Deus; a existência e
tado De Trinitate (Sobre a Trindade). o ser de Deus; a criação, a natureza
Partindo do fundamento lançado do tempo e a escatologia. Curiosa-
pelos pais capadócios, cuja teologia mente, ele nunca explorou a fundo o
conheceu por meio de Hilário de campo da cristologia.
Poitiers, Agostinho deu mais ênfase Sua obra-prima foi A cidade de
à unidade da essência divina do que à Deus, na qual fez uma grande sínte-
diversidade de pessoas. Enquanto os se do pensamento cristão. Começou
capadócios partem da diversidade de com uma apologia contra alegações
pessoas para ir em direção à unida- de que, em última análise, o cristia-
de, ele usa o processo inverso. Prefere nismo havia sido responsável pelo
falar em relações ao invés de pessoas saque de Roma pelos visigodos no
(a unidade divina acima da diversida- ano 410. O livro acabou se tornando
de). Ao explicar a procedência do Es- uma grande interpretação da histó-
pírito Santo, diz que ele é o vínculo ria romana e cristã, analisada teo-
de amor entre o Pai e o Filho, o que lógica e escatologicamente através
deu origem ao debate medieval so- dos complexos destinos terrenos de
bre a cláusula Filioque (“e do Filho”), duas “cidades” criadas por amores
presente no Credo Niceno. conflitantes (amor próprio e amor a
Agostinho argumentou que to- Deus). Segundo ele, o reino de Deus
das as coisas, pelo fato de terem sido não se identificava com nenhuma ci-
criadas pelo Deus triúno, levam a vilização humana e não seria afetado
marca da Trindade. Assim sendo, pelo declínio do Império Romano.
deu uma contribuição inovadora ao Ironicamente, Agostinho morreu
introduzir o “modelo psicológico” quando a África romana sucumbia
da Trindade. Comparou a unida- diante dos vândalos que cercavam
de de Deus com a unidade do ser Hipona. A civilização romana clás-
humano e equiparou a Trindade a sica estava desmoronando, mas ha-
três faculdades internas da alma ou via surgido uma nova cultura cristã,
aspectos da personalidade huma- que alcançaria seu maior esplendor
na: a memória, o entendimento e a na Idade Média.

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Sandro Botticelli, Santo Agostinho em seus estudos (Galeria Degli Uff izi)

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Agostinho: Uma Vida
de Graça e Palavras
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Agostinho é uma pensador in- tes dois personagens importantes,


fluente na história da igreja e na civi- Martinho Lutero (1483-1546) e
lização ocidental. No que se refere ao João Calvino (1509-1564), citaram
campo da teologia, poderíamos dizer Agostinho “mais frequentemente do
o que Cássio disse a respeito de Cé- que qualquer outro teólogo e viram a
sar na peça Júlio César, de William si mesmos como resgatadores da ên-
Shakespeare: “Ele cavalga o mun- fase e do espírito de Agostinho para
do estreito como um colosso, e nós, a condição da igreja em seu tempo”.3
homens pequeninos, andamos por Como Benjamin B. Warfield co-
baixo de suas pernas gigantescas”.1 mentou acertadamente: “Quando
Exceto os autores da Escritura, ne- aconteceu o grande avivamento do
nhum outro personagem teve, na cristianismo que chamamos de Re-
Idade Média, impacto maior no pen- forma... foi, em seu lado teológico,
samento cristão do que Agostinho.2 um avivamento do agostinianismo”.4
E, no que concerne à Reforma, es-
3 John E. Hare, “Augustine, Kant, and the Moral
1 Ato I, Cena 2, linhas 135-137. Gap”, em Gareth B. Matthews, ed., The Augustinian
2 Quanto a este impacto de Agostinho, ver a coleção de Tradition (Berkeley, California: University of California
ensaios em Irene Backus, ed., The Reception of the Church Press, 1999), p. 252.
Fathers in the West. From the Carolingians to the Maurists 4 Benjamin Breckinridge Warfield, “Augustine”, em
(Leiden: E. J. Brill, 1997), vol. 1. sua obra Calvin and Augustine, ed. Samuel G. Craig

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Como Gerald Bonner escreveu, foi Mônica quem teve muito maior
Agostinho “continua a atrair grande influência em sua vida. Logo depois
número de alunos, que são fascinados de sua conversão, Agostinho comen-
por sua personalidade e suas ideias... tou que as orações de sua mãe foram
e muitos deles, embora reconheçam instrumentos para trazê-lo à fé viva
as falhas nos ensinos de Agostinho, em Cristo.8 O historiador Jaroslav
admitem que têm recebido muito Pelikan resumiu os anos anteriores
discernimento e inspiração proce- à conversão de Agostinho, quando
dentes de seu pensamento”.5 disse que ele “se moveu de uma pre-
ocupação para outra, de uma preo-
PRIMEIROS ANOS, CONVERSÃO E cupação com o ego para doze anos
CHAMADO AO MINISTÉRIO como membro da obscura seita dos
maniqueus, para vários tipos de ne-
Os fatos dos primeiros anos da oplatonismo, para o cristianismo
vida de Agostinho são bem conheci- ortodoxo”.9
dos porque ele os registrou em suas A conversão à fé cristã aconteceu
famosas Confissões.6 Nascido em 13 no final do verão de 386, em um jar-
de novembro de 354, no que era na- dim, em Milão, onde Agostinho tra-
quela época a província romana da balhava como um retórico imperial,
Numídia, ele era filho de um oficial ou seja, um professor de oratória.
inferior, Patrício (morreu por volta O momento crítico veio por meio
de 371), e de sua esposa cristã, Mô- da leitura de um texto paulino, Ro-
nica (331-387).7 Dentre os seus pais, manos 13.13-14, a respeito do que
Agostinho escreveu posteriormente:
(Philadelphia, Pennsylvania: Presbyterian and Re- “A luz da confiança inundou meu
formed Publishing Co., 1956), p. 323.
5 “They Speak to Us across the Centuries: 7. Augustine”, coração e todas as trevas de dúvida
The Expository Times, 109, No. 10 ( July 1998), p. 293. foram dissipadas”.10 Em suas Con-
6 A biografia padrão de Agostinho é aquela elaborada
por Peter Brown – ver sua obra Augustine of Hippo: A fissões, Livro 9, Agostinho descreveu
Biography (rev. ed.; Berkeley: University of California mais plenamente como ele entendeu,
Press, 2000). Dois outros estudos biográficos muito
úteis são os de Henry Chadwick, Augustine: A Very Short
mais tarde, a obra salvadora de Deus
Introduction (Oxford: Oxford University Press, 2001) em sua vida:
e de Gary Wills, Saint Augustine (New York: Viking,
1999). Ver também o resumo de Robert A. Markus,
“Life, Culture, and Controversies of Augustine”, em Durante todos aqueles anos [de
Allan D. Fitzgerald, ed., Augustine through the Ages. An rebelião], onde estava o meu li-
Encyclopedia (Grand Rapids/Cambridge, UK: William
B. Eerdmans Publ. Co., 1999), p. 498-504, bem como o
breve e interessante estudo escrito por Karla Pollmann, 8 The Happy Life 6.
St Augustine the Algerian (Göttingen: Duehrkohp & 9 “Writing as a Means of Grace”, em Jaroslav Pelikan
Radicke, 2003). et at., Spiritual Quests: the Art and Craft of Religious
7 Sobre os seus pais, ver Allan D. Fitzgerald, “Patri- Writing (Boston: Houghton Miflin Co., 1988), p. 88.
cius”, e Angelo di Berardino, “Monnica”, em Fitzgerald, 10 Confessions 8.12 (trans. R. S. Pine-Coffin, Saint
ed., Augustine through the Ages, p. 621 e 570-571, respec- Augustine: Confessions [Harmondsworth, Middlesex:
tivamente. Penguin, 1961], p. 178).

Revista FÉ PAR A H OJE | 29


vre-arbítrio? De que lugar secre- para sua cidade natal no Norte da
to e oculto ele foi convocado num África. Por volta de 391, ele decidiu
momento, para que eu pudesse se mudar para a cidade litorânea de
curvar meu pescoço ao teu jugo Hipona, a uns 240 km de Tagaste,
suave e receber o teu fardo leve para fundar uma comunidade em
sobre os meus ombros, Cristo Je- que ele e outros poderiam dedicar-
sus, meu Ajudador e Redentor? -se à leitura das Escrituras. Mas as
Quão doce foi para mim livrar- coisas não saíram como ele tencio-
-me daquelas alegrias infrutí- nava, como ele mesmo lembrou em
feras que antes eu temia perder, um sermão que pregou em meados
mas agora me alegrei em rejeitar! dos anos 420:

Exceto os autores da Escritura, nenhum outro


personagem teve, na Idade Média, impacto maior
no pensamento cristão do que Agostinho.”

Tu as tiraste de mim, tu que és a Um escravo não pode contradi-


verdadeira, a soberana alegria. Tu zer o seu Senhor. Vim para esta
as tiraste de mim e tomaste o seu cidade para ver um amigo, que eu
lugar, tu que és mais agradável pensava ganharia para Deus, a
do que todos os prazeres, embo- fim de que vivesse conosco em um
ra não para a carne e o sangue, tu monastério. Sentia-me seguro,
que excedes em brilho toda luz, porque o lugar já tinha um bispo.
mas estás escondido mais profun- Fui apanhado. Fui constituído
damente do que qualquer segredo um presbítero... e, a partir disso,
em nosso coração, tu que excedes me tornei o bispo de vocês.12
toda honra, embora não aos olhos
dos homens, que veem toda hon- Esse tipo de procedimento não
ra em si mesmos.11 era incomum na igreja da antiguida-
de no Norte da África.13 Alguns que
Na primavera de 387, num cul- foram “ordenados” desta maneira
to de vigília da Páscoa, no sábado à aproveitaram, sem dúvida, a primei-
noite, Agostinho foi batizado por 12 Sermon 355.2 (citado em Brown, Augustine of Hippo,
Ambrósio (c. 340-397), bispo de p. 131).
13 Henry Chadwick, The Church in Ancient Society:
Milão. No ano seguinte, ele voltou From Galilee to Gregory the Great (Oxford/New York:
11 Confessions 9.1 (trans. Pine-Coffin, Confessions, p. 181). Oxford University Press, 2001), p. 475.

30 | Revista F É P A R A H O J E
A graça de Deus teve a supremacia.”
– Agostinho

ra oportunidade que tiveram para tinho se dedicou ao estudo de Roma-


escapar das responsabilidades que nos e de outras epístolas de Paulo e
lhes foram impostas. Mas Agostinho foi levado a perceber que qualquer
não agiu assim, porque ele viu nessa tentativa de elevar “a liberdade de
experiência não buscada uma cha- escolha da vontade humana” estava,
mada inesperada da parte de Deus com base num ponto de vista bíblico,
para uma vocação como pregador do fundamentalmente mal orientada.
evangelho. Como ele mesmo disse, Enquanto estudava o corpus pauli-
“um escravo não pode contradizer o no, “a graça de Deus teve a suprema-
seu Senhor”. cia”, como ele disse. Em específico,
foi sua meditação sobre 1 Coríntios
SUBMETENDO-SE À ESCRITURA 4.7 (“E que tens tu que não tenhas
recebido?) que o levou à compreen-
Dois anos depois de haver-se tor- são de que a graça de Deus sozinha
nado bispo de Hipona, o que acon- é totalmente capaz de mover os pe-
teceu em 395, Agostinho teve uma cadores em direção a Cristo. Tudo
experiência que Gerald Bonner julga que o crente tem, inclusive a pró-
ser a mais decisiva em sua vida, de- pria fé, deve ser entendido como um
pois de sua conversão e batismo em puro dom.15 Esta revolução em seu
386/387. Simpliciano (falecido por pensamento produziu fruto em sua
volta de 400), um velho amigo de explicação clássica da soberania da
Milão, o qual sucedera Ambrósio graça de Deus em sua própria vida, as
como bispo da congregação naquela Confissões (escrita entre 397 e 401), e
cidade, lhe fez um pedido de escla- também o preparou espiritualmente
recimento sobre o texto paulino de para sua luta posterior com os erros
Romanos 9.10-29, que trata do amor teológicos do pelagianismo.
eletivo de Deus para com Jacó e da Esta submissão à Escritura
rejeição de seu irmão, Esaú.14 Agos- aponta para outro elemento-chave
14 Quanto à interação de Agostinho com a epístola de da vida de Agostinho, ou seja, a sua
Paulo aos Romanos, ver especialmente Pamela Bright,
“Augustine”, em Jeffery P. Greenman e Timothy Lars- “Augustine’s Interpretation of Romans (AD 394-396)”,
en, eds., Reading Romans Through the Centuries: From Augustinian Studies, 10 (1979), p. 55-74; C. P. Bammel,
the Early Church to Karl Barth (Grand Rapids: Brazos “Augustine, Origen and the Exegesis of St. Paul”, Au-
Press, 2005), p. 59-80). Ver também J. P. Burns, “The gustinianum, 32 (1992), p. 341-367.
Interpretation of Romans in the Pelagian Controversy”, 15 Bright, “Augustine”, em Greenman e Larsen, eds.,
Augustinian Studies, 10 (1979), p. 43-54; W. S. Babcock, Reading Romans, p. 70-71.

Revista FÉ PAR A H OJE | 31


A graça de Deus sozinha é totalmente capaz
de mover os pecadores em direção a Cristo.”

vocação como pregador do evan- tem.16 Esta interação constante com


gelho. Inúmeros relatos da vida de as Escrituras alimentava seu pensa-
Agostinho traçam a sua carreira em mento como nenhuma outra men-
relação às controvérsias das quais ele sagem podia fazê-lo.17 E, quando
participou. Mas há algo muito ina- Agostinho morreu em Hipona, em
dequado nesta abordagem. A tarefa 28 de agosto de 430, ele o fez len-
primária de Agostinho, no decorrer do quatro dos salmos penitenciais
das décadas de seu ministério, foi de Davi, os quais ele havia copiado
o cuidado das almas que lhe foram e colado nas paredes de seu quarto.
confiadas. E uma expressão central 16 Stanley P. Rosemberg, “Interpreting Atonement
desse cuidado eram os sermões que in Augustine Preaching”, em Charles E. Hill e Frank
A. James III, eds., The Glory of the Atonement: Biblical
ele pregava. Ele pregava nos sá- Historical & Practical Perspectives. Essays in Honor of
bados e nos domingos, bem como Roger Nicole (Downers Grove, Illinois: InterVarsity
todos os dias durante a quaresma e Press: 2004), p. 227: Hubertus R. Drobner, “Studying
Augustine: An overview of recent research”, em Rob-
na semana após a Páscoa. Notarii, ert Dodaro e George Lawless, eds., Augustine and His
os seja, taquígrafos, anotavam o Critics. Essays in Honor of Gerald Bonner (London/New
York: Routledge, 2000), p. 22-23. Quanto a uma lista
sermão em taquigrafia e, depois, o da maioria dos sermões existentes, ver Éric Rebillard,
transcreveriam em escrita cursiva. “Sermones”, em Fitzgerald, ed., Augustine through the
Ages, p. 774-789.
Dos estimados 8.000 sermões que 17 Bright, “Augustine”, em Greenman e Larsen, eds.,
Agostinho pregou, 559 ainda exis- Reading Romans, p. 80.

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Guercino, Santo Agostinho meditando sobre a Trindade (Museu do Prado, Madri)

Revista FÉ PAR A H OJE | 33


Agostinho e a
Santíssima Trindade
F F

Estimulados pelos escritos de deste ensaio é expor a compreensão


Karl Barth, o teólogo que mais ex- da doutrina trinitariana como for-
plorou o mistério trinitário no século mulada por Agostinho de Hipona,
xx,1 várias obras importantes sobre a que produziu uma obra seminal so-
doutrina da Trindade foram escritas. bre este tema, A Trindade, com a qual
Nas duas décadas finais do século todos estes escritores interagem.
xx Karl Rahner, Jürgen Moltmann,
Leonardo Boff, Wolfhart Pannen- AGOSTINHO E A TRINDADE
berg, Colin Gunton e Millard Erick-
son, buscaram refletir e reaplicar a Foi Agostinho quem deu à tradi-
doutrina trinitária, produzindo um ção ocidental a sua expressão madura
grande número de estudos dogmá- e final acerca da Trindade. Não obs-
ticos, bíblicos e históricos.2 O alvo tante ser Agostinho mais conhecido
1 Cf. especialmente Church Dogmatics, I/1 §8-12 (Pea- através de obras como as Confissões
body, MA: Hendrickson, 2010), p. 295-489, Esboço de (sua autobiografia, publicada em
uma dogmática (São Paulo: Fonte Editorial, 2006), p. 53-
58 e Geoffrey W. Bromiley, Introduction to the Theology 400) ou A Cidade de Deus (publicada
of Karl Barth (Edinburgh: T&T Clark, 2001), p. 13-21. em 426), provavelmente sua obra pri-
2 Para a bibliografia, cf. J. Scott Horrell, “O Deus trino
que se dá, a imago Dei e a natureza da igreja local”, Vox também J. Scott Horrell, “Uma cosmovisão trinitaria-
Scripturae v. 6 – n. 2 (Dezembro 1996), p. 243-244. Cf. na”, Vox Scripturae v. 4 – n. 1 (Março de 1994), p. 55-77.

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ma é o tratado conhecido por A Trin- e para quem existem todas as coisas
dade, que ele demorou dezesseis anos (Rm 11,36). Assim, o Pai, o Filho e
para redigir – entre 400 e 416. Esta o Espírito Santo são, cada um deles,
obra está dividida em duas partes, Deus. E os três são um só Deus. Para
bem distintas. A primeira, com uma si próprio, cada um deles é substân-
ênfase bíblica, vai do livro I ao VII. É cia completa e, os três juntos, uma só
a seção teológica propriamente dita. substância. O Pai não é o Filho, nem
A segunda parte, do livro VIII ao XV o Espírito Santo. O Filho não é o Pai,
apresenta um caráter especulativo nem o Espírito Santo. E o Espírito
psicológico e filosófico, no gênero Santo não é o Pai nem o Filho. O Pai
analógico. Conforme suas palavras: é só Pai, o Filho unicamente Filho, e
“Sendo ainda muito jovem, iniciei o Espírito Santo unicamente Espíri-
a elaboração destes meus livros so- to Santo. Os três possuem a mesma
bre a Trindade, que é o Deus sumo e eternidade, a mesma imutabilidade,
verdadeiro. Agora, entrado em anos, a mesma majestade, o mesmo poder.
trago-os a público”.3 De fato, A Trin- No Pai está a unidade, no Filho a
dade é a obra de sua maturidade. igualdade e no Espírito Santo a har-
Agostinho pressupôs como uma monia entre a unidade e a igualdade.
verdade bíblica que existe um só Deus Esses três atributos todos são um só,
que é Trindade, e que o Pai, o Filho e por causa do Pai, todos são iguais por
o Espírito Santo são simultaneamen- causa do Filho e todos são conexos
te distintos e co-essenciais, numerica- por causa do Espírito Santo.4
mente um quanto à substância:
Em nenhum lugar Agostinho
O Pai, o Filho e o Espírito Santo, isto tentou demonstrar biblicamente es-
é, a própria Trindade, una e suprema tas afirmações. “Trata-se de um dado
realidade, é a única Coisa a ser fruí- da revelação que, para ele, as Escri-
da [una quaedam summa res], bem turas proclamam quase a cada pági-
comum de todos. Se é que pode ser na, e que a ‘fé católica’ (fides catholica)
chamada Coisa e não, de preferência, transmite aos fiéis”.5 Em seu enten-
a causa de todas as coisas – se tam- dimento, Deus é incompreensível,
bém puder ser chamada causa. Não mas não incognoscível, havendo
é fácil encontrar um nome que possa duas vias de conhecimento de Deus:
convir a tanta grandeza e servir para a via da eliminação, ou negação (apo-
denominar de maneira adequada a fática), que consiste em suprimir de
Trindade. A não ser que se diga que Deus todos os defeitos das criaturas,
é um só Deus, de quem, por quem 4 Santo Agostinho, A doutrina cristã (São Paulo: Pau-
lus, 2002), 1.5, p. 46-47.
3 “Carta 174” dirigida ao bispo Aurélio de Cartago, em 5 J. N. D. Kelly, Patrística: origem e desenvolvimento
416. in: Santo Agostinho, A Trindade (São Paulo: Pau- das doutrinas centrais da fé cristã (São Paulo: Vida Nova,
lus, 1994), p. 19. 2009), p. 205. Cf. A Trindade 1-4, p. 23-189.

Revista FÉ PAR A H OJE | 35


e a eminência (catafática), que con- Portanto, nesta obra, Agosti-
siste em atribuir a Deus, elevando- nho, pressupondo a veracidade do
-as ao infinito, todas as perfeições: testemunho bíblico sobre o ensino
“Todo aquele que refletir sobre Deus acerca do Deus trino e baseando-se
desse modo, embora não chegue a nas decisões conciliares estabele-
conhecer plenamente o que ele é, cidas em Nicéia e Constantinopla,
contudo – enquanto pode – como construiu o primeiro tratado verda-
homem piedoso, evitará pensar dele, deiramente sistemático da doutrina
o que ele não é”.6 da Trindade.
Como delineia J. N. D. Kelly, seu São contínuas as orações cheias
“imenso esforço teológico é uma ten- de amor e confiança que Agosti-
tativa de compreensão, sendo esse o nho dirige a Deus, no correr de sua
exemplo supremo de seu princípio de tarefa de investigar o mistério da
que a fé deve preceder a compreensão Trindade. E são um testemunho da
(praecedit fides, sequitur intellectus)”. dependência e ardente súplica, tão

Foi Agostinho quem deu à tradição


ocidental a sua expressão madura e f inal
acerca da Trindade”

A fé busca, o entendimento en- características da oração agostinia-


contra; por isso diz o profeta: Se na. Constata-se assim estar toda
não crerdes, não entendereis (Is 7.9). obra teológica de Agostinho elabo-
Doutro lado, o entendimento pros- rada em clima de oração. Nele está
segue buscando aquele que a fé en- unido a sapientia (“a sabedoria re-
controu, pois, Deus olha do céu para fere-se à contemplação”) e a scien-
os f ilhos dos homens, como é cantado tia (“a ciência diz respeito à ação”),
no salmo sagrado: para ver se alguém o esforço na busca de sabedoria es-
que tenha inteligência e busque a Deus piritual.8
(Sl 13.2). Logo, é para isto que o ho-
8 “Eis, a piedade é sabedoria; e apartar-se do mal é
mem deve ser inteligente: para bus- ciência” ( Jó 28.28). Esta oposição corresponde às duas
car a Deus.7 funções da razão: uma superior, pela qual a alma se
dedica à contemplação das realidades eternas; e outra
6 A Trindade 5.2, p. 193. inferior, pela qual a alma aplica-se ao conhecimento das
7 A Trindade 15.2, p. 480-481. realidades temporais. A Trindade 12.21b-23, p. 386-390.

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1. A SANTÍSSIMA TRINDADE Como Kelly nota, diversas con-
sequências se seguem desta ênfase
Seguiremos aqui os pontos bási- na unidade da natureza divina. Pri-
cos do resumo que J. N. D. Kelly fez meiro, as pessoas da Trindade não
da exposição da doutrina trinitária são três indivíduos separados, an-
em Agostinho.9 Esta é inteiramente tes “cada uma das pessoas divinas é
fundamentada nas Escrituras, porém, idêntica às demais ou à própria subs-
em contraste com a tradição oriental, tância divina”, e deve-se afirmar “que
que fez da pessoa do Pai o seu ponto cada uma das pessoas habita nas ou-
de partida, Agostinho principia com tras ou é inerente às outras”. Como
a natureza divina em si mesma. É esta Agostinho escreveu:
simples e imutável natureza ou essên-
cia que é Trindade.10 A unidade da Creia o homem no Pai, no Filho e no
Trindade é assim claramente asseve- Espírito Santo, como um só Deus,
rada, eliminando-se rigorosamente “o grande, onipotente, bom, justo, mi-
arianismo e o subordinacionismo da sericordioso, criador de todas as coi-
sua doutrina da Trindade”.11 Portanto, sas visíveis e invisíveis, e tudo o mais
tudo o que é afirmado de Deus é afir- que dele se possa dizer digna e verda-
mado igualmente de cada uma das três deiramente, conforme a capacidade
pessoas da deidade: “O Deus único e da inteligência humana. E quando
verdadeiro não é somente o Pai, mas o ouvir dizer que o Pai é um só Deus,
Pai, o Filho e o Espírito Santo”.12 não separe o Filho e o Espírito San-
to, porque com ele são um só Deus.
9 Cf. J. N. D. Kelly, op. cit., p. 205-210. Cf. também Jus-
to L. González, Uma história do pensamento cristão. v. 1: Quando ouvir dizer que o Filho é um
do início até o Concílio de Calcedônia (São Paulo: Cultura só Deus é mister entender assim, mas
Cristã, 2004), p. 317-323.
10 Como diz J. N. D. Kelly, op. cit., p. 205: Ele “prefere sem separá-lo do Pai e do Espírito
‘essência’ a ‘substância’, pois esta última implica um su- Santo. E de tal modo diga que exis-
jeito com atributos, enquanto, para Agostinho, Deus é
idêntico a Seus atributos”: et haec trinitas unus est deus e te uma só essência, e não considere a
trinitatem quae deus est, cf. Santo Agostinho, A Cidade de essência de um ser maior ou melhor
Deus v. II [Livros IX a XV] (Lisboa: Fundação Calous-
te Gulbenkian, 1993), 11.10, p. 1011-1014. Para uma
do que a do outro e diferente em al-
explicação dos termos-chave da doutrina trinitariana gum aspecto. Contudo, não pense
(principalmente “substância = natureza = essência: uma
que o Pai é o Filho ou Espírito San-
única” e “hipóstase = subsistência = pessoa: três realmente
distintas”), cf. Leonardo Boff, A Trindade, a sociedade e a to ou qualquer coisa que uma pessoa
libertação (Petrópolis, Vozes: 1986), p. 111-126. em separado diga relação às outras,
11 Henry Chadwick, A Igreja Primitiva (Lisboa:
Ulisseia, 1967), p. 257. Cf. especialmente Millard J. Er- como por exemplo, o termo ‘Verbo’
ickson, Who’s Tampering with the Trinity? An Assessment aplica-se somente ao Filho, e Dom
of the Subordination Debate (Grand Rapids, MI: Kregel,
2009), p. 153-159. Este livro é uma crítica muito bem afirma-se somente a respeito do Es-
elaborada contra a noção da subordinação eterna do Fi- pírito Santo.13
lho ao Pai, que tem sido revivida em certos setores da
igreja evangélica norte-americana.
12 A Trindade 6.9, p. 227-229. 13 A Trindade 7.12, p. 256-257.

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Segundo, “tudo o que pertence cípio (unum principium)”16 e como
à natureza divina como tal” deve, as pessoas são inseparáveis, “assim
numa linguagem exata, “ser expres- também operam inseparavelmen-
so no singular, já que esta natureza é te”.17 Como exemplo disto, de acor-
única”. Portanto, embora cada uma do com Kelly, Agostinho argumenta
das três pessoas seja incriada, infi- que as teofanias, manifestações de
nita, onipotente, eterna, não há três Deus registradas no Antigo Testa-
incriados, infinitos, onipotentes e mento, não devem ser consideradas
eternos, mas apenas um. como manifestações exclusivamente

Toda obra teológica de Agostinho


é elaborada em clima de oração.”

Os diferentes nomes aplicados a do Filho. Algumas vezes as teofanias


cada uma das três pessoas na Trinda- podem ser atribuídas ao Filho, ou
de, traduzem relação recíproca, tais ao Espírito Santo, algumas vezes ao
como: Pai e Filho, e o Dom de ambos, Pai, outras vezes a todas as três pes-
o Espírito Santo. Com efeito, não se soas da deidade. Outras vezes ainda
pode dizer que o Pai é a Trindade, ou é impossível decidir a qual das três
que o Filho é a Trindade, nem o Dom pessoas atribui-las.18
ser a Trindade. O que é dito, porém, A dificuldade que esta teoria
de cada um dos três em relação a si sugere é que ela parece ignorar os
mesmo, é dito não no plural, mas no diversos papéis das três pessoas. A
singular, pois referente a uma única isto Agostinho responde que, embo-
realidade: a própria Trindade.14 ra seja verdade que o Filho, embora
distinto do Pai, nasceu, sofreu e res-
Terceiro, “a Trindade possui uma suscitou, “é igualmente verdade que
única e indivisível ação e uma única o Pai cooperou com o Filho” na reali-
vontade”. Em outras palavras, sua zação da encarnação, paixão e ressur-
operação é “inseparável”,15 isto é, em reição. Era conveniente para o Filho,
relação à ordem contingente as três entretanto, “em virtude de sua rela-
pessoas atuam como “um único prin- ção com o Pai, manifestar-se e fazer-

14 A Trindade 8.1, p. 259; cf. também 6.9, p. 227-229; 16 A Trindade 5.15, p. 208-210.
5.10-16, p. 203-213. 17 A Trindade 1.7, p. 31; 2.3, p. 71-73.
15 A Trindade 2.9, p. 78. 18 A Trindade 2.14-34, p. 85-110; 3.4-27, p. 114-143.

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-se visível”.19 Logo, já que cada uma que ele dá (o Espírito). Isso lançaria
das pessoas possui a natureza divina uma possível luz sobre a questão que
de uma maneira particular, é apro- a muitos preocupa, sobre a possibili-
priado “atribuir a cada uma delas, dade de dizer-se que o Espírito Santo
na operação externa da Divindade, o também seja Filho, já que sai do Pai,
papel que lhe é próprio em virtude de como se lê no Evangelho ( Jo 15.26).
Sua origem”.20 Saiu do Pai, sim, mas não como nas-
cido, mas como Dom, e por isso, não
2. A DISTINÇÃO DAS PESSOAS se pode dizer filho, já que não nasceu
como o Unigênito e nem foi criado
Segundo Agostinho, a distinção como nós, que nascemos para a ado-
das pessoas se fundamenta nas “suas ção filial pela graça de Deus.21
relações mútuas dentro da Divinda-
de”. Embora consideradas enquanto O Espírito Santo, semelhante-
substância divina, as pessoas sejam mente, distingue-se do Pai e do Filho
idênticas, o Pai se distingue enquanto enquanto “outorgado” por eles, sendo
Pai por gerar o Filho, e o Filho se dis- o “dom comum” (donum) de ambos,
tingue enquanto Filho por ser gerado. “uma espécie de comunhão de Pai e
Filho (quaedam patris et filii commu-
Com respeito às relações mútuas na niio), ou, então, o amor que, juntos,
Trindade, se aquele que gerou é prin- Eles derramam em nossos cora-
cipio do gerado, o Pai é principio em ções”.22 Surge então a questão: “o que
referencia ao Filho, porque o gerou. são, na verdade, os três”? Agostinho
Entretanto não é uma investigação reconhece que tradicionalmente eles
de pouca importância inquirir se o são designados como pessoas, mas ele
Pai é também principio com relação fica descontente com o termo. Prova-
ao Espírito Santo, pois está escrito: velmente a expressão lhe trazia a co-
procede do Pai. Se assim for, é princi- notação de indivíduos separados. Mas
pio não somente do que gera ou faz ele consente em usar a expressão, por
(o Filho), mas também da pessoa causa da necessidade de afirmar a dis-
tinção dos três contra o modalismo, e
19 A Trindade 2.9, p. 78-80; 2.18, p. 90-91. com um profundo sentido da inade-
20 A teologia cristã tem distinguido entre Trindade
imanente e Trindade econômica. Trindade imanente é a quação da linguagem humana.23 Sua
Trindade considerada em si mesma, em sua eternidade e
comunhão pericorética entre o Pai, o Filho e o Espírito 21 A Trindade 5.15, p. 208-209; 5.6, p. 196-197; 5.8 p.
Santo. A Trindade econômica é a Trindade enquanto se 199-201.
auto-revelou na história da humanidade e age em vista 22 A Trindade 5.12, p. 204-206; 5.15-17, p. 208-213;
à nossa participação na comunhão trinitária. Cf. Karl 8.1, p. 259-260.
Rarhner, “O Deus Trino, fundamento transcendente 23 Como diz João Calvino, Agostinho “em razão da
da história da salvação”, in: Johannes Feiner & Magnus pobreza da linguagem humana em matéria de tão alto
Loehrer, Mysterium Salutis; compêndio de dogmática his- importe, esta palavra hipóstase havia sido forçada pela
tórico-salvífica – a histórica salvífica antes de Cristo II/1 necessidade, não para que se expressasse o que é, mas
(Petrópolis: Vozes, 1972), p. 292-294, 342-344. apenas para que não se passasse em silêncio o fato de que

Revista FÉ PAR A H OJE | 39


teoria positiva, original e muito im- vel. Os três, ele passa a afirmar, são
portante para a história subseqüente relações tão reais e eternas como o
da doutrina da Trindade no ocidente, “gerar, ser gerado e proceder (ou ser
foi a de que “os três são relações reais outorgado)”, que fundamentam as
relações dentro da Divindade.

O Pai, o Filho e o Espírito Santo são assim


relações, “no sentido de que tudo aquilo que cada
um é, Ele é em relação a um dEles ou a ambos”

ou subsistentes”. Em outras palavras,


toda distinção nas pessoas divinas Não há, pois, senão um bem simples
consiste numa relação subsistente, e, conseqüentemente, senão um bem
mútua, entre elas. imutável – Deus. E este bem criou
O motivo que levou Agostinho a todos os bens que, não sendo simples,
esta colocação foi o dilema colocado são, portanto, mutáveis. Digo, preci-
pelos arianos.24 Estes, baseando-se samente, criou, isto é, fez, e não gerou.
no esquema aristotélico das catego- É que o que é gerado de um ser sim-
rias, afirmaram que as distinções na ples é simples como ele e é o mesmo
Divindade, se elas existissem, teriam que aquele que o gerou. A estes dois
que “ser classificadas sob a categoria seres chamamos Pai e Filho e um e
de substância ou de acaso”. Na ca- outro com o seu Santo Espírito são
tegoria do acaso não poderia sê-lo, um só Deus. A este Espírito do Pai e
porque em Deus não há nada aciden- do Filho se chama nas Sagradas Escri-
tal; se o fossem, porém, na categoria turas Espírito Santo por uma espécie
da substância, então a conclusão se- de apropriação deste nome. É, porem,
ria que existem três deuses. distinto do Pai e do Filho, pois não é
Agostinho nega ambas as alter- nem o Pai nem o Filho. Disse que é
nativas, explicando que a categoria distinto mas não é outra coisa, porque
da relação é uma alternativa possí- também Ele é igualmente simples,
igualmente imutável e co-eterno. E
são três o Pai, o Filho e o Espírito”. Cf. As Institutas da
esta Trindade é um só Deus e não
Religião Cristã I.13.5, 18 (São Paulo: Cultura Cristã,
2006), p. 126, 146-147. Calvino parece se distanciar das deixa de ser simples por ser Trindade.
analogias psicológicas, apesar de praticamente repetir a (...) É por isso que se chama simples a
abordagem de Agostinho a respeito da Trindade.
24 A Trindade 5.4, p. 194. natureza que nada tem que possa per-

40 | Revista F É P A R A H O J E
der; ou é simples a natureza em que “pois a relação de ambos” para com
aquele que tem se identifica com aquilo o Espírito Santo “é idêntica e onde
que tem. [Portanto] chama-se simples não há diferença de relação, a opera-
as perfeições que, por excelência e na ção dEles é inseparável”. Agostinho,
verdade, constituem a natureza di- portanto, ensinou a doutrina da dupla
vina: porque nelas não é a substância processão do Espírito Santo do Pai e
uma coisa e a qualidade outra coisa. 25 do Filho (filioque).30
Então, de acordo com Agostinho,
O Pai, o Filho e o Espírito San- o Pai é autor da processão do Espírito
to são assim relações, “no sentido de Santo porque Ele gerou o Filho, e ao
que tudo aquilo que cada um é, Ele é gerá-lo tornou-o também fonte a par-
em relação a um dEles ou a ambos”.26 tir do qual o Espírito procede e já que
tudo o que o Filho tem, o tem do Pai,
3. A PROCESSÃO DO ESPÍRITO SANTO do Pai tem também que dEle proceda
o Espírito Santo. Daqui, porém, não
Agostinho também procurou ex- se deve concluir, ele nos adverte, que
plicar o que é a processão do Espírito o Espírito Santo tenha duas fontes ou
Santo, ou “em que ela difere da gera- princípios.31 Pelo contrário, “a ação do
ção do Filho”.27 Ele considerou como Pai e do Filho” na processão do Espí-
certo que o Espírito Santo é o amor rito “é comum, assim como é a ação de
mútuo do Pai e do Filho (communem todas as três pessoas na criação”. Além
qua invicem se diligunt pater et filius disso, não obstante a dupla processão,
caritatem), o amor comum pelo qual o o Pai permanece “a fonte primordial”,
Pai e o Filho se amam mutuamente.28 na medida em que é dEle que deriva a
Assim, Agostinho afirma que “o Es- capacidade do Espírito Santo de pro-
pírito Santo não é o Pai nem o Filho, ceder do Filho.32
mas somente o Espírito Santo do Pai
e do Filho, igual ao Pai e ao Filho e Entenda também que, assim como o
pertencente à unidade da Trindade”.29 Pai tem a vida em si mesmo, para que
Desta maneira, em relação ao Espíri- 30 Para o papel de Agostinho na controvérsia filioque,
to Santo, o Pai e o Filho formam um cf. Alister E. McGrath, Teologia sistemática, histórica e
único princípio, o que é inevitável, filosófica (São Paulo: Shedd, 2005), p. 395-398.
31 A Trindade 5.15, p. 208-210.
25 A Cidade de Deus 11.10, p. 1011-1012. 32 O que a teologia oriental (ortodoxa) nem sempre
26 A Trindade 5-7, p. 191-258; Cf. também Santo Agosti- considerou é que os latinos, inclusive Agostinho, sempre
nho, Comentário aos Salmos 68 1.5 [Enarrationes in psalmos] conceberam o Pai como a fonte (Fons Trinitatis) ou ori-
Salmos 51-100 (São Paulo: Paulus, 1997), p. 435-437. gem especial (origo principalis) na Trindade. O Espírito
27 A Trindade 15.46, p. 546-550. Santo, como afirma Agostinho, procede do Pai princi-
28 A Trindade 15.27-37, p. 521-534. Em 7.6, p. 244, paliter; procede do Pai e do Filho communiter, por causa
o Espírito Santo é referido como “suma caridade, laço do dom que o Pai dá ao Filho. A maioria dos ortodoxos
que une um ao outro [o Pai ao Filho], e nos submete a poderia aceitar tal formulação, mas, até que um concílio
eles” (summa charitas, utrumque coniungens, nosque su- ecumênico agisse, tal idéia continuaria sendo mero “en-
biungens). sino teológico” (theologoumena). Cf. A Trindade 15.50, p.
29 A Trindade 1.7, p. 31. 553-555.

Revista FÉ PAR A H OJE | 41


dele proceda o Espírito Santo, assim e em seu interior o Espírito Santo ha-
deu ao Filho para que dele também bita. O mesmo Espírito que une o Pai
proceda o mesmo Espírito Santo; e o Filho, tornando-os um, também
o qual procedeu de ambos, fora do une os cristãos em uma só igreja”.34
tempo. E pelo fato de dizer-se que o
Espírito Santo procede do Pai, deve- 4. A FORMULAÇÃO DAS “ANALOGIAS
-se entender que o Filho recebe-o do PSICOLÓGICAS”
Pai, e então, o Espírito Santo procede
também do Filho. Pois o que o Filho De acordo com J. N. D. Kelly, “o
tem, recebe-o do Pai, e assim recebe uso de analogias tiradas da estrutura
do Pai para que dele proceda, o mes- da alma humana”, ainda que afirma-
mo Espírito Santo.33 da timidamente, é, provavelmen-

Quem poderá compreender a


Trindade onipotente? E quem não fala dela,
ainda que não a compreenda?” – Agostinho

Portanto, o Espírito Santo é algo te, “a contribuição mais original de


comum ao Pai e ao Filho. “O Pai é Agostinho à teologia trinitária”.35
apenas o Pai do Filho, e o Filho ape- A função destas analogias não é de-
nas o Filho do Pai; o Espírito, entre- monstrar que Deus é Trindade, já
tanto, é o Espírito tanto do Pai como afirmada nas Escrituras, mas apro-
do Filho, unindo-os em um vínculo fundar nosso entendimento do mis-
de amor”. Portanto, o Espírito Santo tério da absoluta unidade e também
é o “elo que une, por um lado, o Pai e da distinção real dos três. No sentido
o Filho, e, por outro lado, Deus e os estrito, de acordo com Agostinho,
cristãos. O Espírito é um dom, dado
por Deus, o qual une os cristãos a 34 Alister E. McGrath, op. cit., p. 367-368.
35 Henry Chadwick, op. cit., p. 257. Cf. Millard Eri-
Deus e aos demais cristãos. O Espíri- ckson, Introdução à teologia sistemática (São Paulo: Vida
to Santo forma os elos de união entre Nova, 2012), p. 138: “A maior contribuição de Agosti-
nho para a compreensão da Trindade são suas analogias
os cristãos, dos quais depende funda- extraídas do campo da personalidade humana. Ele argu-
mentalmente a unidade da igreja. A mentou que, se a humanidade é feita à imagem de Deus,
que é triúno, é razoável esperar encontrar, numa análise
igreja é o ‘templo do Espírito Santo’, da natureza humana, um reflexo, mesmo que tênue, da
33 A Trindade 15.47, p. 549. triunidade de Deus.”

42 | Revista F É P A R A H O J E
há vestígios da Trindade em todo o a intenção ou disposição da vontade
lugar, porque as criaturas, na medida (voluntas).
em que existem, “existem por parti- Para a imagem real, entretanto,
cipar das idéias de Deus; portanto, da Trindade, devemos olhar no ho-
tudo deve refletir”, embora de forma mem interior, ou alma. Ao comentar
tênue, a Trindade que as criou.36 a pergunta do Salmo, “por que estás
Para buscar a verdadeira imagem triste, ó minha alma? E por que me
da Trindade, entretanto, o homem perturbas?”, ele escreveu: “Entende-
deve olhar primeiramente dentro de si, mos, então, que temos algo onde se
porque as Escrituras representa Deus encontra a imagem de Deus, a saber,
dizendo: “Façamos [isto é, os três] o a mente, a razão. A mente invocava
homem à nossa imagem e à nossa seme- a luz de Deus e a verdade de Deus.
lhança”. Portanto, mesmo o homem Com ela entendemos o que é justo e
exterior, isto é, o homem considera- o que é injusto, discernimos o verda-
do em sua natureza sensível, fornece deiro do falso... Nosso intelecto, por
“uma certa figura da Trindade” (quan- conseguinte, fala a nossa alma”.40
dam trinitatis effigiem).37 De acordo Como Kelly afirma, frequente-
com Kelly, “o processo de percepção, mente tem sido dito que a principal
por exemplo, revela três elementos analogia trinitária do A Trinitate é a
distintos que são ao mesmo tempo do amante (amans), do objeto amado
intimamente ligados, dos quais o pri- (id quod amatur) e do amor que os une
meiro, em certo sentido, gera o segun- (amor).41 Porém a discussão de Agos-
do, enquanto que o terceiro mantém tinho desta trindade é bastante curta,
aos outros dois unidos”.38 Por exemplo, e é apenas “uma transição” para aquela
o objeto externo (res quam vivemus, a que ele considera sua mais importan-
coisa que vemos), a representação sen- te analogia, a da “atividade da mente
sível da mente (visio), e a intenção ou enquanto dirigida para si mesma ou,
ato de focalizar a mente (intentio; vo- melhor ainda, para Deus”.
luntas; intentio voluntatis, a intenção da
vontade). Quando o objeto externo é Quem poderá compreender a Trin-
removido temos uma segunda trinda- dade onipotente? E quem não fala
de, que lhe é superior, pois é localizada dela, ainda que não a compreenda?
inteiramente dentro da mente.39 Nes-
te sentido, Agostinho fala da impres- 40 Santo Agostinho, Comentário aos Salmos 42.6
[Enarrationes in psalmos]; Salmos 1-50 (São Paulo: Pau-
são da memória (memoria), a imagem lus, 1997), p. 718-719.
interna da memória (visio interna), e 41 A Trindade 8.12-9.2, p. 260-289 e A Cidade de Deus
v. II, 11.26. É interessante notar que na concepção bar-
36 Santo Agostinho, A verdadeira religião 13 (São Pau- thiana-anselmiana a fé é amans, o entendimento da fé é
lo: Paulus, 2002), p. 39-40. id quod amatur e a teologia é amor. Cf. Karl Barth, Fé em
37 A Trindade 11.1, p. 335-336. busca de compreensão (São Paulo: Fonte Editorial, 2006),
38 A Trindade 11.2-5, p. 337-342. p. 14. Cf. também Anselmo de Cantuária, Monol. 67 e
39 A Trindade 11.6, p. 343-345. passim.

Revista FÉ PAR A H OJE | 43


É rara a pessoa que, ao falar da San- facilmente esse conceito? Quem teria
tíssima Trindade, saiba o que diz. palavras para o exprimir? Quem, de
Discute-se, debate-se, mas ninguém algum modo, ousaria pronunciar-se
é capaz de contemplar essa visão, temerariamente a esse respeito?42
sem paz interior. Quisera meditas-
sem os homens sobre três coisas que Esta última analogia fascinou
tem dentro de si mesmos, as três bem Agostinho por toda a sua vida, as
diferentes da Trindade. Indico-as, trindades resultantes sendo: a) a
para que se exercitem, e assim expe- mente (mens), seu conhecimento de
rimentem e sintam quão longe estão si mesma (notitia) e seu amor de si
desse mistério. Aludo à existência, mesma (amor);43 b) a memória (me-
ao conhecimento e à vontade. De moria), ou, mais propriamente, “o
fato existo, conheço e quero. Existo, conhecimento latente que a mente
sabendo e querendo; sei que existo e tem de si mesma”; o entendimento
quero; quero existir e conhecer. Re- (intelligentia), isto é, “sua apreensão
pare, quem puder, como é insepará- de si mesma à luz das razões eter-
vel a vida nessas três faculdades: uma nas”; e a vontade (voluntas), ou amor
só vida, uma só inteligência, uma só de si mesma, “pela qual este proces-
essência. Como são inseparáveis os so de autoconhecimento é posto em
objetos dessa distinção. Distinção, atividade”;44 c) a mente, enquanto
no entanto, que existe! Cada um está lembrando, conhecendo e amando ao
diante de si mesmo. Estude-se, veja e próprio Deus.45 “É, contudo, a últi-
responda-me. Contudo, mesmo que ma das três analogias que Agostinho
reflita e me responda, não julgue ter considera a mais satisfatória”. Agos-
compreendido a essência deste Ser tinho considera que somente quando
imutável que está acima de todas as a mente focalizou a si mesma com
criaturas, o Ser que imutavelmente todas as suas potências de lembrança,
existe, imutavelmente sabe e imu- entendimento e amor em seu Deus é
tavelmente quer. Será porventura que a Sua imagem que ela traz em si,
graças a essas três faculdades que há corrompida como está pelo pecado,
em Deus a Trindade, ou essa trípli- pode ser plenamente restaurada.
ce faculdade existe em cada uma das Embora se demorando nestas
três pessoas, de modo a serem três em analogias, Agostinho não tem ilu-
cada uma? Ou ambas as coisas se rea- sões quanto às suas imensas limita-
lizam de modo admirável, numa sim- ções. Primeiro, “a imagem de Deus
plicidade múltipla, sendo a Trindade na mente do homem é, de qualquer
o seu próprio fim infinito, pela qual 42 Santo Agostinho, Confissões 13.11 (São Paulo: Pau-
existe, se conhece e se basta imutavel- lus, 1997), p. 412-413.
43 A Trindade 9.2-8, p. 287-296.
mente, na grande abundância de sua
44 A Trindade 10.17-19, p. 330-334.
Unidade? Quem poderia exprimir 45 A Trindade 14.11-15.28, p. 453-557.

44 | Revista F É P A R A H O J E
maneira, uma imagem remota e Aí se descobre a disposição da divi-
imperfeita”. Segundo, “embora a na Providência, no tempo, em favor
natureza racional do homem exiba do gênero humano, para reforma-lo
as trindades acima mencionadas, e restaura-lo, em vista da posse da
(...) elas representam faculdades ou vida eterna. Crendo nisso, a mente
atributos que o ser humano possui, vai se purificando num modo de vida
enquanto que a natureza divina é ajustado aos preceitos divinos. Isso a
perfeitamente simples”. Terceiro, a habilitará à percepção das realidades
memória, entendimento e vontade espirituais. Essas realidades não são
operam no homem separadamente, nem do passado, nem do futuro, mas
enquanto que as três pessoas divinas são sempre idênticas a si mesmas,
“pertencem-se mutuamente e Sua imunes de qualquer mudança tempo-
ação é perfeitamente una e indivi- ral. Trata-se do mesmo e único Deus

Ó minha fé, vai avante na tua conf issão.


Diz ao Senhor teu Deus: santo, santo, santo é o
Senhor meu Deus. Fomos batizados em teu nome,
Pai, Filho e Espírito Santo” – Agostinho

sível”. Finalmente, em Deus os três Pai, Filho e Espírito Santo. Conheci-


membros da Trindade são pessoas, da essa Trindade – o quanto é possível
mas o mesmo não ocorre na men- na vida presente – sem dúvida alguma
te humana. Parafraseado o próprio a mente percebe que toda criatura
Agostinho, a imagem da Trindade se intelectual, animal e corporal, recebe
encontra numa pessoa, mas a supre- dessa mesma Trindade criadora: o ser
ma Trindade é ela própria três pes- para ser o que é; a sua forma; e a di-
soas: o que é um paradoxo, quando reção dentro da perfeita ordem uni-
alguém reflete que, não obstante isso, versal. Não se entenda por aí, porém,
os três são mais inseparavelmente que apenas parcela das criaturas é feita
um do que a trindade da mente.46 pelo Pai, outra pelo Filho e outra ain-
da pelo Espírito Santo. O certo é que
O fundamento para seguir esta reli- todas e cada uma das naturezas indivi-
gião [cristã] é a história e a profecia. duais recebe a criação do Pai pelo Fi-
lho, no dom do Espírito Santo. Visto
46 Para as críticas que são feitas a esta análise, cf. Alis-
ter E. McGrath, op. cit., p. 386-388. que todas as coisas, substância, essên-

Revista FÉ PAR A H OJE | 45


cia, natureza ou qualquer termo mais Agostinho lançou os fundamentos
adequado, que se dê possui ao mesmo da teoria psicológica das processões,
tempo estas três propriedades: é algo concernentes à origem do Filho e à
único, distingue-se por sua forma das do Espírito Santo.
demais coisas, e está dentro da ordem Agostinho, juntamente com os
universal. 47 maiores teólogos que lograram vis-
lumbrar as dimensões do mistério
CONCLUSÃO: LOUVOR A DEUS trinitário, costumavam terminar suas
obras como orações ardorosas, de
Para encerrar, podemos resumir louvor e agradecimento, sempre cons-
as contribuições de Agostinho à cientes de suas limitações: “Ó minha
doutrina trinitariana: (a) Na expli- fé, vai avante na tua confissão. Diz ao
cação da Trindade, ele concebe a na- Senhor teu Deus: santo, santo, santo
tureza divina, antes das pessoas, se- é o Senhor meu Deus. Fomos batiza-
paradamente. Sua formula da Trin- dos em teu nome, Pai, Filho e Espírito
dade é: uma só natureza subsistindo Santo”.49 O silêncio reverente da razão
em três pessoas. Ao contrário, a dos deixa o coração extravasar sua admira-
gregos era: três pessoas tendo uma ção. Deus está envolto em mistério “na
mesma natureza. Em Agostinho, luz inacessível” (1Tm 6.13-16):
a divindade única aparece logo. A Portanto, quando chegarmos à
igualdade das pessoas divinas tam- tua presença, cessará o muito que
bém aparece com mais brilho. (b) dissemos, mas muito nos ficará por
Outro progresso da doutrina trini- dizer e tu permanecerás só, tudo em
tariana de Agostinho é a insistência todos (1Cor 15.28), e então eterna-
em fazer de todas as operações ad mente cantaremos um só cântico,
extra a obra indistinta das três pes- louvando-te em um só movimento,
soas, isto é, as operações exteriores em ti estreitamente unidos. Senhor,
são atribuídas ou apropriadas ao Pai, único Deus, Deus Trindade, tudo o
Filho e Espírito Santo.48 (c) Enfim, que disse de ti nestes livros, de ti vem.
Reconheçam-no os teus, e se algo há
47 A verdadeira religião 13, p. 48; A Trindade 15.43, p. de meu, perdoa-me e perdoem-me os
541-543.
48 As ações ad extra são as que a Trindade opera para teus. AMÉM.50
fora do círculo trinitário, como a criação do universo,
a revelação, a salvação. As ações ad intra são as ações
intratrinitárias, dentro do círculo trinitário, como a geração 49 Confissões 13.12, p. 413.
do Filho e a espiração do Espírito Santo pelo Pai e o Filho. 50 A Trindade, 15.28, p. 557.

46 | Revista F É P A R A H O J E
Jose Garcia Hidalgo, Conversão de Santo Agostinho (Museu do Prado, Madri)
“A peregrina
cidade de Jerusalém”.
Jerônimo, Agostinho
e o Império.
G S

Líderes de grande projeção, fre- Após uma longa peregrinação,


quentemente com personalidades e havendo acumulado uma inigua-
fortes e pitorescas, os primitivos lável erudição e conhecimento dos
“Pais da Igreja” ainda continuam a idiomas bíblicos, Jerônimo (Euse-
influenciar muita gente na atuali- bius Hieronymous Sophronius)2  visi-
dade. A “Era de Ouro” da Patrísti- tou Roma em 382, cidade na qual
ca deu-se no quarto e quinto séculos. residiu, ministrou e que conhe-
O pregador João Crisóstomo (344- cia muito bem. O bispo Damásio
407), o erudito Jerônimo (c. 342-420) (“papa” de 366 a 384) o fez seu se-
e o teólogo Agostinho (354-430) são cretário, e pediu-lhe que preparasse
exemplos proeminentes, cujas vidas uma nova tradução latina da Bíblia.
e obras, começando no quarto sé- Em toda a Cristandade, Jerônimo
culo e findando no quinto, revelam era o homem melhor preparado
muito acerca do tempo em que vive- para esta empreitada. A nova tra-
ram.1 No Ocidente, a influência des- dução da Bíblia para o latim consu-
tes dois últimos foi enorme. miu boa parte de sua vida e foi o seu
principal monumento. Já existiam
1 N. R. Needham.  2000 Years of Christ´s Power; Part
One: The Age of the Early Church Fathers. London: Grace 2 Para um acervo das obras de Jerônimo em Língua In-
Publications Trust, 2002, p. 230-262. glesa, http://www.ccel.org/ccel/schaff/npnf206.toc.html

48 | Revista F É P A R A H O J E
outras traduções das Escrituras na- túmulo?”4  Por esta época, Jerônimo
quela época, mas todas tinham sido sabia que não apenas ele se aproxi-
feitas a partir da  Septuaginta, isto mava de seu fim, mas toda uma era.
é, a tradução do Antigo Testamen- Ele morreu em Belém, doente e qua-
to do hebraico para o grego. Jerô- se cego, em 30 de setembro de 420,
nimo se pôs ao trabalho, apesar de havendo sobrevivido, ainda, cerca de
ser constantemente interrompido dez anos à queda de Roma. Durante
por sua enorme correspondência, a Idade Média, a fama e influência de
suas constantes controvérsias e as Jerônimo entre os cristãos ocidentais
calamidades que assolavam o mun- só foram superadas pelas de Agosti-
do. Ele finalizou o seu trabalho em nho de Hipona.
405, levando, portanto, vinte e três Precipitada por uma série de
anos para concluí-lo. A sua tradu- eventos, a queda do Império Roma-
ção foi inteiramente nova e arejada, no do Ocidente produziu um impac-
utilizando como base o Novo Tes- to de grandes proporções. Ainda que
tamento Grego e o original hebrai- tenha formalmente continuado por
co do Antigo Testamento. A longo outros sessenta anos ou mais, após
prazo, a versão de Jerônimo — co- 410 o Império efetivamente deixara
nhecida como a Vulgata — se impôs de ser um poder militar e político.
em toda a igreja de fala latina, con- Quando Agostinho falecia, em 28 de
quanto no princípio não tenha sido agosto de 430, a sua cidade no nor-
bem recebida.3 te da África já estava sob o poder do
Quando decidiu ir embora de reino Vândalo.
Roma para a  Terra Santa, Jerônimo Logo após o saque de Roma,
dizia que estava indo de “Babilônia Agostinho tomara ciência de que
para Jerusalém”. A partir de 386 ele muitos pagãos atribuíam as calami-
viveu o restante de seus dias num dades do Império aos cristãos. Os
mosteiro em Belém, constantemen- pagãos apontavam que o desastre
te escrevendo e ensinando a outros romano foi no “período dos cristãos”
monges. Em 410, Roma foi toma- e que Roma havia caído porque se ti-
da e saqueada pelos Godos. Todo nha entregue ao cristianismo e aban-
mundo estremeceu diante desta no- donado “os antigos deuses que a ti-
tícia. Quando Jerônimo a recebeu, nham feito grande”. Para os pagãos,
escreveu perplexo em seu retiro em os cristãos tinham destruído a maior
Belém: “Quem pode acreditar que realização humana já concebida.
Roma, construída pela conquista do A grande preocupação de Agosti-
mundo, tenha caído? Que a mãe de nho, entretanto, era acerca do modo
muitas nações se transformou num
4 Justo L. Gonzales. A Era dos Gigantes. Uma História
3 O apelido Vulgata vem da palavra latina para “comum” Ilustrada do Cristianismo, Vol. 2. São Paulo: Vida Nova,
— a Bíblia comum, isto é, aquela comumente utilizada. 1980, p. 161-162.

Revista FÉ PAR A H OJE | 49


como os cristãos reagiram àquele O que é admirável nesta passa-
evento catastrófico. Em muitos cris- gem é que se fosse indagado a au-
tãos, a queda de Roma produzira tores cristãos tais como Tertuliano
um desespero atônito e um temor de (160-225) ou Cipriano (200-258)
que o fim do mundo havia chegado. — os quais viveram antes da tolerân-
Quando Roma foi tomada pelos Vi- cia da Cristandade no quarto século
sigodos, de seu mosteiro em Belém — a qual cidade bíblica Roma seria
Jerônimo escrevia no prólogo de melhor comparada, sua resposta ine-
seu Comentário em Ezequiel: “Quan- vitavelmente seria: “Babilônia!”. Tal
do a mais esplendorosa luz do mundo como a antiga Babilônia, Roma era
foi apagada, quando a  própria cabeça culpada de sangue e luxúria em sua
do Império Romano foi decepada, o dominação e poder, e era culpada
mundo inteiro pereceu em uma única da perseguição aos santos. E mesmo
cidade”.5  Em uma carta escrita na- Jerônimo, tempos antes, compara-
queles dias, Jerônimo expressou a sua ra Roma à Babilônia no tocante ao
perplexidade diante da adversidade aspecto moral. Porém, se o próprio
que os cidadãos de Roma atravessa- Jerônimo pôde comparar Roma com
vam. Ele chegou mesmo a comparar Jerusalém indica que ocorrera uma
o saque de Roma com a tomada de inteira transformação na sua cosmo-
Jerusalém pelos exércitos de Babilô- visão, em comparação com os tempos
nia. O Salmo 79.1-3 proveu-lhe uma de Tertuliano ou Cipriano. Pela épo-
descrição gráfica do horror de ambos: ca de Agostinho e Jerônimo, a cidade
de Roma, além de capital do Impé-
Ó Deus, as nações invadiram a tua rio, tornara-se o centro da Igreja no
herança, profanaram o teu santo Ocidente. Roma era agora “a santa
templo, reduziram Jerusalém a um cidade, onde os santos estão sepul-
montão de ruínas. Deram os cadá- tados, especialmente Pedro e Paulo”,
veres dos teus servos por cibo às aves e tal como Jerusalém, ela é amada de
dos céus e a carne dos teus santos, Deus. Assim, para Jerônimo a ques-
às feras da terra. Derramaram como tão que necessariamente se levantava
água o sangue deles ao redor de Je- é a seguinte: “Como Deus podia per-
rusalém, e não houve quem lhes des- mitir que um desastre deste houvesse
se sepultura.6 ocorrido?” Desde que o Império era
agora conduzido por professos cris-
5 J. N. D. Kelly. (trad.).  Jerome: his Life, Writings,
and Controversies. New York: Harper & Row, 1975, tãos, essa se tornava uma questão
p. 304,  apud Michael Haykin. Defence of The Truth; bastante inquietante.
Contending for the Truth Yesterday and Today.  Dar-
lington, England: Evangelical Press, 2004, p. 101. Publishing Co., 1979, p. 257, apud Haykin, op. cit. Para
Cf. http://www.ccel.org/ccel/schaff/npnf206.vii.iv.x.html outros textos que mostram a reação de Jerônimo ao sa-
6 Carta 127.12,  in: W. H. Freemantle.  The Principal que de Roma, veja Carta 123.16-17; 126.2; 128.4.  Para
Works of St. Jerome. Nicene and Post-Nicene Fathers, Se- as cartas de Jerônimo,  http://www.newadvent.org/fa-
cond Series, vol. 6. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans thers/3001.htm

50 | Revista F É P A R A H O J E
Se por um lado, cristãos como Je- então, está vitalmente trabalhando
rônimo estavam chocados, aturdidos na história. Agostinho, portanto,
ou até desesperados, havia também tem uma visão unificada daquilo a
aqueles cristãos que reagiam com que chamamos de história; ela não
uma alegria sadística ao novo saque é um pacote de querelas e eventos
de Roma. O ressentimento contra desconectados. Não obstante, Agos-
Roma também havia se assentado tinho também está convencido de
fortemente no coração de muitos na que é impossível traçar em detalhes
Cristandade. a obra de Deus na história fora das
Contra a acusação dos pagãos, e Escrituras. Enquanto seria blasfemo
diante do desespero de muitos cris- negar que Deus está trabalhando no
tãos, e no contexto da celebração domínio da história, tal trabalho é
ou indiferença de outros, a resposta amplamente oculto aos homens.

Cidade de Deus é um tratado sobre


a providência de Deus é, na verdade, a
primeira f ilosof ia cristã da história.”

de Agostinho veio na sua monu- Na  Cidade de Deus  encontra-se


mental, penosa e volumosa  Cidade a afirmação de que nenhuma cidade
de Deus  (413-426). Talvez a maior terrestre pode se comparar com a Je-
de todas as suas obras, esse tratado rusalém Celestial, a cidade de Deus.
sobre a providência de Deus é, na A cidade terrestre tem sua ascensão e
verdade, a primeira filosofia cristã da queda, mas a cidade de Deus perma-
história. Para Agostinho, história é o nece para sempre. Para Agostinho, a
estágio no qual o drama da redenção cidade terrestre pode assumir muitas
está sendo encenado. No princípio formas ao longo do tempo. A Cida-
da história está a Queda e em sua de do Homem está fundada sobre o
conclusão o Julgamento Final. Entre amor a si mesmo, glorifica a si pró-
estes dois eventos ocorre o mais cru- pria, e é contra Deus. Ela tem sua ori-
cial de todos os eventos — a entra- gem na rebelião de Satanás e dos ou-
da do Deus eterno no tempo como tros anjos caídos. A cidade de Deus
um homem, a encarnação do Senhor é invencível e continuará triunfando
Jesus Cristo, e seu consequente mi- e realizando a vontade de Deus. Ela
nistério, morte e ressurreição. Deus, é guiada e amada por Deus, espe-

Revista FÉ PAR A H OJE | 51


cialmente marcada por humildade, identificar as pessoas de acordo com
e encontra sua glória mais elevada ela. Deus antevê. Nós não. O peca-
em Deus. Seu início está no céu, an- dor poderá ser o santo de amanhã,
tes mesmo da existência do universo e vice-versa. Membros professos da
material. Na essência, homens e na- Igreja na terra terminarão no infer-
ções se levantam e caem, mas a cida- no. Os de fora terminarão no paraíso.
de de Deus conquistará tudo. A Cidade de Deus, pela graça e po-
As diferentes naturezas das duas der de Deus, acabará substituindo os
cidades podem ser vistas nas dife- reinos terrestres na cidade celeste na
rentes características dos seus dois ocasião da segunda vinda de Cristo.
primeiros habitantes:  Caim  e  Abel. E até então, a Cidade de Deus será
Caim era um habitante da Cidade um reino espiritual oculto que exis-
do Homem, cujo “desejo é contra te sempre e onde quer que a vontade
ele” e que o “domina” (Gn 4.7). Ele de Deus o queira. A separação defi-
então assassina o seu irmão, e dese- nitiva ocorrerá quando, no juízo fi-
ja dominar sozinho, edificando sua nal, a Cidade de Deus entrará num

Reinos terrestres têm seu auge e seu declínio;


mas está vindo aquele Homem de quem é dito:
‘E o seu reino jamais terá f im’.” – Agostinho

própria cidade. Abel, por outro lado, gozo eterno, e a Cidade do Homem
“era um peregrino e estrangeiro no será precipitada no inferno. Nenhu-
mundo”, pertencendo à Cidade de ma sociedade terrena ou instituição
Deus. Ele foi predestinado pela gra- humana pode, entretanto, ser ple-
ça, e escolhido pela graça, pela graça namente identificada com qualquer
um peregrino daqui, e pela graça um dessas duas cidades, porque elas
cidadão de lá. Através do curso des- perpassam a humanidade inteira, no
sas duas cidades, quando elas se co- passado, presente e futuro. Agosti-
locam lado a lado na história, Deus nho, então, rejeita qualquer sorte de
está trabalhando para livrar homens fusão do Reino de Deus com alguma
e mulheres da primeira cidade e tor- sociedade humana em particular.
ná-los parte da segunda. Embora a Esta interpretação cristã da his-
cidadania última seja na Cidade de tória, conforme defendida por Agos-
Deus, não podemos, no momento, tinho, foi um grande consolo para

52 | Revista F É P A R A H O J E
muitos cristãos que viram o Império por seus pecados e egoísmo. Roma
Romano no Ocidente esfacelar-se nunca seria a cidade que satisfaria o
por causa das invasões dos vândalos. coração humano. Somente a cidade
Como vimos, até mesmo cristãos es- de Deus poderia fazer isto. Virgílio
tavam identificando o Império Ro- (Públio Virgílio Marão, 70-19 a.C.)
mano cristianizado com o Reino de descreveu o plano dos deuses para
Deus. Isto era uma enorme tentação tornar Roma uma imagem de justiça
naqueles dias. Roma parecia, para os de ordem divina. Agostinho diz que
homens desse tempo, o princípio or- Roma jamais se tornou isso, nem
ganizador de toda a história humana. nunca poderia se tornar. Nenhu-
Ao desaparecer, que sentido teria o ma instituição meramente humana
mundo? Vários cristãos estavam con- pode. Somente a Cidade de Deus
templando o Império Romano como tem a ordem perfeita. O Cristianis-
desempenhando um papel central na mo não oferece conforto ou sucesso
história da redenção. O próprio histo- nesta vida, mas paz interior e um
riador Eusébio de Cesaréia (263-339) destino eterno. Por isso, enquanto o
esposara tal opinião, quando se referiu descrente ama o que há no mundo, o
à ascensão do imperador Constantino. cristão ama a Deus.
Assim, desenvolvera-se uma teologia Agostinho não apenas escreveu,
da história na qual aqueles “tempos mas pregou sobre isto. Em um ser-
cristãos” eram, por assim dizer, coex- mão pregado em Cartago, durante
tensivos com o Império, tanto quanto o verão de 411, quando a lembrança
este era com a Cidade de Deus. do saque de Roma ainda permanecia
Para Agostinho, nada disso era bastante fresca em muitas mentes,
contemplado pelas Escrituras, bem Agostinho relembra aos seus ou-
como esta opinião falhava em arti- vintes que nenhum reino terrestre
cular a natureza peregrina do povo é para sempre.7  O Senhor e Mestre
de Deus. A idéia central de Agosti- Jesus Cristo já advertira que os rei-
nho é: a Cidade de Deus não é afe- nos desta terra pereceriam. Agosti-
tada pelo declínio do Império Ro- nho relembrou as palavras de Cristo:
mano, porque esta cidade, em rigor, “Porquanto se levantará nação con-
não é deste mundo. No caso parti- tra nação, e reino contra reino” (Mt
cular de Roma e do Império, Deus 24.7). E prosseguiu: “reinos terres-
lhes permitiu crescer como cresce- tres têm seu auge e seu declínio; mas
ram, inclusive para que servissem de está vindo aquele Homem de quem é
meio para a propagação do evange- dito: ‘ E o seu reino jamais terá fim’.”
lho. Esta função agora estava cum- 7 Sermão 105.9-11, in: Edmund Hill.  Sermons; The
prida, e Deus fez com que Roma Works of Saint Augustine. Brooklyn, New York: New
City Press, 1992, III/4, p. 94,  apud. Haykin,  op. cit.. Cf 
seguisse o destino de todos os reinos http://www.ewtn.com/library/PATRISTC/PNI6-10.TXT.
humanos, recebendo o justo castigo Para sermões de Agostinho,http://www.theworkofgod.org/
Library/Sermons/Agustine.htm

Revista FÉ PAR A H OJE | 53


Para Agostinho, cada membro Deus, não é de admirar que o saque de
da Cidade de Deus tem, certamen- Roma tenha sido encarado como um
te, sua responsabilidade histórica. evento devastador para o Cristianis-
Ele é capaz de ser grato a Deus por mo. Falando aos cristãos do Império,
Roma, e de orar pelos seus cidadãos entretanto, Agostinho pôde declarar
que permaneciam em seu paganismo. que nada tem sido perdido. Uma por-
“Que experimentem um nascimento ção da “peregrina cidade de Jerusalém”
espiritual, e que passem adiante co- permanecia lá em Roma, e, embora
nosco para a eternidade”. O fim virá. houvessem sofrido perdas temporais,
Apenas Deus e seu reino são eternos. os cristãos não deveriam perder de
Portanto, como os cristãos deveriam vista os ganhos eternos. Agostinho era
viver? Eles deveriam fixar a sua es- capaz de contemplar que o colapso da
perança firmemente em Deus. Tal infra-estrutura política e social do Im-
esperança, contudo, não deveria fazer pério não era simplesmente um even-
com que os cristãos se mantivessem to histórico e nada mais. Ele ofereceu
insensíveis aos sofrimentos daqueles uma âncora com sua visão bíblica de
que os rodeiam. Os cristãos naquele que a história é oficina de Deus. Para
contexto de crise não deveriam es- o povo de Deus, aquele sofrimento ti-
quecer as necessidades dos outros. nha propósitos redentivos. Agostinho
Agostinho conhecia o poder apologé- defendeu e expôs, portanto, a sobera-
tico das boas obras. Ele instou com os nia do reinado de Cristo na história. O
cristãos naquele momento, lembran- reino de Deus é eterno; seu triunfo é
do-lhes que, ao fazerem o que Cristo certo; e nada pode pará-lo! Comparti-
mandou, eles estariam respondendo lhar de tal triunfo é o grande privilégio
muito convenientemente às blasfê- que um ser humano pode desfrutar. E
mias dos pagãos. Ele mesmo, com mesmo em sua morte, no contexto de
seus quase setenta anos, foi capaz de uma ordem social destruída, Agosti-
viajar centenas de quilômetros visan- nho mantinha a firme esperança do
do à preservação da ordem política e reino celeste e da resplendente “Cida-
ao bem-estar da Igreja.  de de Deus”. Em meio aos seus últi-
Os cristãos daquele tempo viviam mos combates, ingentes e afirmativos,
num cenário de incerteza e de falência. ele esperava “a cidade que tem funda-
Para aqueles que viam o Império Ro- mentos, da qual Deus é o arquiteto e
mano como central nos propósitos de edificador”.

54 | Revista F É P A R A H O J E
Jusepe de Ribera, Saint Augustine of Hippo (Museu do Prado, Madri)

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Tempo, História e
Escatologia
H M P  C

“[O tempo é] como vestígio da eternidade” 1

“E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas


conversas do que o tempo? Quando dele falamos,
compreendemos o que dizemos. Compreendemos também
o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por
conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o
quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei” 2

“Ai de mim, que nem ao menos sei o que ignoro!” 3


Agostinho

1 Santo Agostinho, Comentário ao Gênesis, São Paulo: Paulus, 2005 (Coleção Patrística; 21), XIII.38. p. 625.
2 Agostinho, Confissões, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. VI), 1973, XI.14.17. p. 244.
3 Agostinho, Confissões, XI.25.32. p. 251.

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INTRODUÇÃO do tempo. Agostinho (354-430) ‒ “o
grande mestre da Idade Média cristã”4
A concepção cristã de tempo, ‒, soube como ninguém retratar este
mesmo com as suas variações, in- problema. Para Agostinho Deus é o
fluenciou diretamente todo o mundo eterno presente – na eternidade nada
Ocidental. A compreensão de que o passa5 – que antecede o tempo por
tempo tem um início, meio e fim era Ele criado: “Precedeis, porém, todo o
totalmente estranha às culturas pa- passado, alteando-Vos sobre ele com a
gãs. A questão da história e do tempo vossa eternidade sempre presente (Sl
é fundamental para o Cristianismo 102.27)”.6 Em outro lugar:“Os anos
pela sua própria constituição. de Deus não são uma coisa e Deus
O Cristianismo é uma religião de mesmo outra; mas os anos de Deus
história. Ele não se ampara em lendas, são a eternidade de Deus; eternidade
antes, em fatos os quais devem ser tes- de Deus é a sua substância. Nada tem
temunhados, visto que têm uma rela- de mutável, nada de pretérito, como
ção direta com a vida dos que creem. se já não fosse, nada de futuro como
O Cristianismo é uma religião de fa- ainda não sendo. Ali só se encontra:
tos, palavra e vida. Os fatos, correta- É; não há: Foi e será, porque o que foi
mente compreendidos, têm uma rela- já não é, e o que será ainda não é, mas
ção direta com a nossa vida. A fé cristã tudo que existe ali, apenas é”.7 Por
fundamenta-se no próprio Cristo: O isso, na eternidade, Deus nada fazia,
Deus-Homem. Sem o Cristo Histó- visto que se Ele fizesse, seria criatura
rico não haveria Cristianismo. A sua dEle: “Não temo afirmar que antes
força e singularidade estão neste fato, de criardes o céu e a terra não fazíeis
melhor dizendo: na pessoa de Cristo, coisa alguma. Pois, se tivésseis feito
não simplesmente nos seus ensina- alguma coisa, que poderia ser senão
mentos. O Cristianismo é o próprio criatura vossa?”.8
Cristo. A encarnação é toda e inclu-
4 Jacques Le Goff, Tempo: In: Jacques Le Goff; Jean-
sivamente missionária: o Verbo fez-se Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente
carne e habitou entre nós ( Jo 1.14). Medieval, Bauru, SP/São Paulo: Editora da Universida-
de Sagrado Coração/Imprensa Oficial do Estado, 2002,
Jesus Cristo é o clímax da Revela- Vol. 2, p. 531.
ção; é a Palavra Final de Deus. Nele 5 Agostinho, Confissões, XI.11.13. p. 242. Ele insiste
temos não uma metáfora ou um si- neste ponto: “Quanto ao presente, se fosse sempre presen-
te, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas
nal, antes, temos o próprio Deus que eternidade” (Agostinho, Confissões, XI.14.17. p. 244).
Se fez homem na história. Em outro lugar: “O que tem fim não é duradouro e todos
os séculos termináveis, em comparação com a eternidade
interminável, são, não direi pequenos, mas nada” (Santo
1. TEMPO E ESCATOLOGIA EM Agostinho, A Cidade de Deus, 2. ed. Petrópolis, RJ./São
AGOSTINHO Paulo: Vozes/Federação Agostiniana Brasileira, 1990,
(Parte II), XII.12. p. 74).
6 Agostinho, Confissões, XI.13.16. p. 243.
7 Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus,
Curiosamente, um dos sérios (Patrística, 9/3), 1998, (Sl 101), Vol. III, p. 37.
problemas da filosofia é a questão 8 Agostinho, Confissões, XI.12.14. p. 242.

Revista FÉ PAR A H OJE | 57


Jesus Cristo é o clímax da Revelação;
é a Palavra Final de Deus. Nele temos não
uma metáfora ou um sinal, antes, temos o
próprio Deus que Se fez homem na história.”

O tempo só pode ser avaliado a nem então será longo, porque ainda
partir de sua finitude, olhando o seu não existe nele aquilo que seja capaz de
passado ou desejando o seu futuro; o ser longo. Suponhamos que, ao menos,
presente “para ser tempo, tem neces- no futuro será longo. Mas só o pode-
sariamente de passar para o pretéri- rá começar a ser no instante em que
to....”.9 No entanto, não podemos falar ele nasce desse futuro – que ainda não
do “tempo passado” como “longo” ou existe – e se torna tempo presente, por-
“breve”, já que ele passou à condição que só então possui capacidade de ser
de não-ser, não podendo mais ser ca- longo. Mas com as palavras que acima
racterizado por estes acidentes. “To- deixamos transcritas o tempo presen-
dos os dias do tempo vêm para não te clama que não pode ser longo”.11 “A
existirem mais. Toda hora, todo mês, brevidade dos dias estende-se até o fim
todo ano: nada disso permanece. An- dos séculos. Brevidade porque a totali-
tes de vir, será; quando vier, não será dade do tempo, não digo de hoje até o
mais”.10 Como então nos referir a ele? fim dos séculos, mas de Adão até o fim
“Não digamos pois: ‘o tempo passado dos séculos, é uma exígua gota d’água,
foi longo’, porque não encontraremos se comparada à eternidade”.12
aquilo que tivesse podido ser longo, Que fazer então, com a lembrança
visto que já não existe desde o instan- e com a esperança? Bem, Agostinho
te que passou. Digamos antes: ‘aquele cria três formas de presente; diria que a
tempo presente foi longo’, porque só lembrança é o presente das coisas pas-
enquanto foi presente é que foi longo. sadas; o sonho é o presente das coisas
(...) Onde existe portanto o tempo que futuras e o que vejo, aspiro, toco, provo
podemos chamar longo? Será o futu- e ouço, é o presente do presente.13
ro? Mas deste tempo não dizemos que
11 Agostinho, Confissões, XI.15.18 e XI.15.20. p. 244 e
é longo, porque ainda não existe. Di- 245. Adiante acrescenta: “O futuro longo é apenas a longa
zemos: ‘será longo’. E quando será? Se expectação do futuro. Nem é longo o tempo passado porque
não existe, mas o pretérito longo outra coisa não é senão
esse tempo ainda agora está para vir, a longa lembrança do passado” (Agostinho, Confissões,
XI.28.37. p. 255).
9 Agostinho, Confissões, XI.14.17. p. 244. 12 Agostinho, Comentário aos Salmos, Vol. III, (Sl 101),
10 Agostinho, Comentário aos Salmos, Vol. III, (Sl 101), p. 36.
p. 37. 13 Vejam-se: Agostinho, Confissões, XI.20.26. p. 248.

58 | Revista F É P A R A H O J E
2. TEMPO E SOCIEDADE MEDIEVAL as classes iguais nos lugares mais di-
versificados da Europa, que permeou
a. Tempo e mobilidade geográfica e social o período de 800 até 1400. Todavia,
esta “estabilidade” seria “desestabili-
Dentro dos moldes de hoje, po- zada” gradativamente, especialmente
demos dizer que na Idade Média a partir do século XIII; quando sur-
havia uma sociedade estática, sem ge lenta, mas sistematicamente, uma
grande mobilidade social; onde as nova classe social, que não pode ser
transformações eram lentas nos di- enquadrada dentro do mundo her-
versos setores da vida cultural, social, mético medieval.
econômica e política. As maiores Nesta sociedade predominante-
mudanças, ironicamente, eram cau- mente agrícola, o poder e prestígio
sadas “por guerras, pragas e crises estavam associados à terra e, logi-
econômicas”.14 Cada pessoa esta- camente aos seus frutos. Dentro
va de certa forma presa a um papel desta perspectiva, um homem tinha
na ordem social, sem que houvesse pouquíssimas chances de ascender
perspectivas de mudança. A ingerên- socialmente, dificilmente podia mu-
cia do “Estado” era enorme na vida dar geograficamente de uma cidade
privada, havendo leis contra todos ou de um país para outro. Aliás, as
os “males” imagináveis. Ao mesmo cidades medievais definidas por suas
tempo, havia uma unidade cultural muralhas conferiam neste espaço
das elites, reconstruída pela Igreja fechado o senso fundamental de se-

O Cristianismo é uma religião


de fatos, palavra e vida.”

por intermédio do latim, língua fa- gurança para os seus habitantes mas,
lada por toda a classe culta - língua também, proporcionavam uma gran-
que se tornou em “instrumento de de promiscuidade intelectual. Com
comunicação culta - e pela leitura poucas exceções, os servos deveriam
dos mesmos poucos livros controla- permanecer onde nasciam. Amiúde,
dos pelo clero –, que permitia haver até mesmo para não parecer diferen-
um modo de viver semelhante entre te dos outros, os homens não se sen-
tiam livres para usarem as roupas que
14 Robert G. Clouse; Richard V. Pierard; Edwin M.
Yamauchi, Dois Reinos – A Igreja e a Cultura interagindo quisessem ou mesmo, para comer o
ao longo dos séculos, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. que gostassem.
207.

Revista FÉ PAR A H OJE | 59


b. Tempo de fome e mobilidade social ou indireta, para a revolta dos cam-
poneses da Inglaterra em 1381 e ou-
Já no final do Século XIII, torna- tros movimentos semelhantes. No
-se evidente a insatisfação com este século XIV, o inglês William Lan-
estado de coisas, surgindo, de modo gland (c. 1332-c. 1400), “o poeta dos
mais frequente, movimentos em camponeses livres”, escreveu “Piers
prol de uma maior liberdade, encon- the Plowman” (“Pedro, o Lavrador”),
trando o seu apogeu no século XIV. que se constitui num documento pre-
Também, como decorrência destas cioso para a compreensão da história
insatisfações sociais, houve um êxo- social do seu tempo. Nesses poemas,
do rural cada vez mais intenso. Isto Langland descreve as condições dos
ocasionou uma falta de mão de obra pobres, a corrupção e os abusos do
rural, gerando um aumento dos salá- clero, bem como expressa a esperan-
rios e, consequentemente, dos custos ça dos camponeses de melhores con-
de produção. Tudo isso foi agravado dições de vida. A igreja, no entanto,
pela “Fome Europeia de 1315-1317”, era a mais severa dominadora, se
quando muitos morreram de fome, opondo ao movimento cada vez mais
e os ciclos da Peste Negra com suas forte de libertação dos servos.
manifestações diferentes (1338- Todavia, com a diminuição da
1339; 1347-1351, 1360-1361, 1370- população, há uma inversão signi-
1376), que dizimou grande parte da ficativa: não adianta possuir terras
população de toda Europa chegando se não há pessoas para cultivá-las.
a matar 30 a 40% da população de Logo, o trabalho do homem passou a
determinadas regiões, havendo indí- ser mais valorizado do que antes das
cios da taxa de mortandade entre de catástrofes descritas, resultando no
10 e 50% da população em diversas aumento dos salários dos trabalha-
cidades, sendo registrado o trági- dores em geral.
co recorde em Mântua (Itália): 77% Estes foram tempos difíceis,
(1630). como são todos os tempos para
Retornando ao nosso ponto, ob- aqueles que enfrentam as angústias
servamos que nos ideais de maior próprias de sua época, que, por vezes,
autonomia houve também exageros, são minimizadas ou romantizadas
como por exemplo, a revolta cam- por olhares de outros tempos e con-
pesina na França. A pregação de tinentes. O que contribui decisiva-
John Ball (†c. 1381), o “Profeta do mente para vencer tais circunstâncias
povo”, – enfatizando o princípio da é a nossa fé, a visão de história e, no
igualdade social –, a de John Wycliff caso cristão, a certeza do governo de
(c. 1330-1384) - a “Estrela d’Alva da Deus sobre todas as coisas. O tempo
Reforma” - e John Huss (c. 1369- passa, por maiores que sejam as ale-
1415) contribuíram de forma direta grias ou angústias.

60 | Revista F É P A R A H O J E
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A História revela Deus e seus pro-
TEMPO E ESCATOLOGIA E A pósitos (Rm 8.28-30; 13.12; At 1.6,7).
VIVÊNCIA DE NOSSA FÉ Entendemos a escatologia como uma
consumação “natural” do plano de
Gilson (1884-1978) ressaltando a Deus na sua historificação temporal.
importância de Agostinho, afirma que A Escatologia é precedida de uma his-
após ele, “a Idade Média passou a re- tória realizada; e a história aponta para
presentar a história do mundo como uma escatologia decisiva. Desta forma,
um belo poema, cujo sentido é para olhando pelo prisma da escatologia,
nós inteligível e completo, contanto podemos dizer que a história é esca-
que conheçamos seu início e seu fim”.15 tológica, visto que para lá ela caminha
De fato, a perspectiva de Agos- de forma progressiva e realizante: A
tinho adquire um tom escatológico: história consumar-se-á na não história,
“.... pois nada parece mais rápido no atemporal e eterno. Por outro lado, a
do que tudo aquilo que já passou. escatologia confere sentido à história; a
Quando vier o dia do juízo, então os fé da Igreja respalda-se num fato histó-
pecadores perceberão não ser longa a rico e nutre-se da esperança que emana
vida que passa”.16 da promessa de Deus: “A esperança (...)

A História revela Deus e seus propósitos.”

Deste modo, o tempo é o grande [é] o alimento e força da fé”.18 E, quan-


sinal de finitude e de mediatez. As- to ao tempo, Calvino (1509-1564), que
sim, Idade Média são todos os tem- viveu ativamente um período de gran-
pos já que o tempo sempre será mé- de transformação na história medieval,
dio entre o antes e o depois ou, en-
valendo-se com reconhecimento das
tre o tempo anterior e a eternidade,
contribuições de Agostinho, afirmou
quando o tempo se extinguirá. “Na
com propriedade bíblica: “Os tempos
eternidade não há passado, como se
estão nas mãos e à disposição de Deus,
algo ainda não existisse, mas apenas
de modo que devemos crer que tudo é
no presente, porque aquilo que é
feito na ordem prefixada e no tempo
eterno existe sempre”.17
predeterminado”.19
15 Étienne Gilson, O Espírito da Filosofia Medieval,
São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 481. 18 J. Calvino, As Institutas ou Tratado da Religião Cris-
16 Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Pau- tã,Campinas, SP./São Paulo: Luz para o Caminho e
linas, 1997, (Patrística, 9/1), Vol. 1, (Sl 13), p. 70. Casa Editora Presbiteriana, 1989, Vol. 3, III.2.43.
17 Agostinho, Comentário aos Salmos, Vol. 1, (Sl 2.7), p. 27. 19 João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos,

Revista FÉ PAR A H OJE | 61


A escatologia confere sentido à história.”

Hoje não é diferente: Deus conti- das circunstâncias. Caminhamos para


nua dirigindo a história; Ele é o Senhor a eternidade de onde procede a nossa
da eternidade, do tempo, da história e criação e a meta de nossa existência.
Deus nos guiará em segurança. Des-
1998, (Tt 1.3), p. 303. cansemos nEle. Amém.

62 | Revista F É P A R A H O J E
AJUDE O MINISTÉRIO ADOTE
UM PASTOR A ABENÇOAR VIDAS

INTERCEDENDO
Uma das principais necessidades do MAP é a oração. O
ministério será ricamente abençoado se, regularmente,
você se dispuser a orar por todos os envolvidos no MAP.

APOIANDO
Com 1 oferta única, você poderá ajudar o MAP a
realizar a Conferência Fiel na África, onde pastores são
alimentados e igrejas, edificadas.

ADOTANDO
Com uma pequena oferta mensal, você ou sua igreja
poderão adotar um pastor e, assim, se tornar parte
deste ministério. Sua ajuda atingirá não somente a vida
do pastor, mas toda a comunidade ao seu redor.

DIVULGANDO
Além de mantenedores, o MAP precisa de pessoas que
nos auxiliem na tarefa de divulgar este ministério. Você
poderá nos ajudar apresentando o MAP em sua igreja,
para seus amigos e familiares.

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w w w. a d o t e u m p a s t o r. c o m . b r

Revista FÉ PAR A H OJE | 63


O Ensino sobre a Graça Soberana de Deus,
de Gênesis à Reforma Protestante

1400 A.C - 100 D.C


Nesta obra, Steven Lawson tece os
fios das doutrinas da graça através de
um profundo estudo das Sagradas
Escrituras. Ao examinar a vida e os
ensinamentos de homens piedosos,
como Moisés, Davi, Pedro, Paulo
e muitos outros, Lawson busca
reconduzir a igreja de Cristo ao correto
entendimento sobre o caráter de Deus e
sua misericordiosa graça.

100 A.D. - 1564


Neste livro, Dr. Lawson apresenta
uma cuidadosa e extensa pesquisa na
história da igreja, mostrando ao leitor
como os líderes-chave da igreja primitiva
sustentaram as doutrinas da graça
soberana, ao permanecerem firmes sobre
o fundamento das Escrituras. Lawson
conta um pouco sobre a história de vida
e ministério desses servos que atuaram
como colunas da ortodoxia cristã, ao
refutarem as heresias que confrontaram
a igreja desde sua formação.

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64 | Revista F É P A R A H O J E
Matricule-se novo
curso

História da Igreja
O curso abordará a ação de Deus na história do seu povo, a Igreja. Personagens
fascinantes e fatos marcantes ocorridos no período da Igreja Primitiva, Idade Média,
Reforma e Igreja Contemporânea serão apreciados ao longo de 4 módulos.

PATRÍSTICA Wilson Porte

Alderi Mattos

Gilson Santos IDADE MÉDIA


Jonas Madureira

REFORMA PROTESTANTE Hermisten Maia

Thomas Nettles

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Augustus Nicodemus IGREJA CONTEMPORÂNEA


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os comentários de Calvino
em português.

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