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MINISTÉRIO FIEL
N0 40 - Dez/2013 - R$10
PA R A
de
Agostinho
Hipona
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O Curso Fiel de Liderança foi desenvolvido com
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o propósito de contribuir para a capacitação de
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líderes e para a expansão dos conhecimentos
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REVISÃO Marilene Paschoal DIAGRAMAÇÃO Rubner Durais DIRETOR James Richard Denham III
REALIZAÇÃO Editora Fiel | Dezembro de 2013 | no 40
IMAGEM DA CAPA Caravaggio, St. Augustine (Whitfield Fine Art, London – Coleção Particular)
Sumário
Editorial
Tiago Santos..............................................3
4 | Revista F É P A R A H O J E
trinas. Não há grandes novidades, exemplo de seu vigoroso ministério
mas houveram grandes progressões. pastoral. O teólogo luterano Richard
Balge, citando um colega, disse que:
A INFLUÊNCIA DE AGOSTINHO “Se Agostinho de Hipona tivesse vi-
vido no tempo da Reforma, ele teria
Um desses homens de Deus, do- se juntado a Martinho Lutero”.2 O
tado de uma mente criativa e intenso teólogo presbiteriano B. B. Warfield,
desejo de cavar mais profundamente por sua vez, disse que “o sistema de
na Palavra de Deus e que ajudou a doutrina ensinado por Calvino é
pavimentar o caminho das grandes somente o agostinianismo, confor-
progressões do pensamento teológi- me se vê em todos os demais refor-
co foi o africano Agostinho de Ta- madores. Pois, se a Reforma foi, do
gaste (354-430), bispo de Hipona. ponto de vista espiritual, um grande
Agostinho foi, provavelmente, avivamento da religião, do ponto de
o grande pensador cristão da Idade vista teológico foi um grande reavi-
Média. Por quase dois mil anos sua vamento do agostinianismo”.3 E o
produção teológica tem pautado os erudito batista Timothy George, ao
grandes debates do cristianismo e falar da influência do pensamento
influenciado o pensamento e cultura agostiniano na Reforma, disse que “a
do Ocidente. Do ponto de vista cató- linha principal da Reforma Protes-
lico, Joseph Aloisius Ratzinger rati- tante pode ser vista como uma aguda
fica essa impressão, ao dizer: “Agos- agostinianização do cristianismo.”4
tinho deixou uma marca profunda na
vida cultural do Ocidente e de todo o AGOSTINHO ESTÁ DO NOSSO LADO
mundo. Sua influência é vastíssima.
(...) Raramente uma civilização en- Os grandes representantes da
controu um espírito tão grande, com Reforma do século XVI, Martinho
ideias e formas que alimentariam ge- Lutero, João Calvino, Martin Bucer,
rações vindouras.”1 A Reforma Pro- Philip Melanchton e tantos outros,
testante do século XVI, fundamental encontraram na vigorosa teologia
ao avivamento da fé e espiritualidade agostiniana fundamento tanto para o
cristã, até então adoecida mortal- rompimento com o status quo da igre-
mente pelo desvio teológico, corrup- ja romana como para afirmar a uni-
ção e misticismo, deve a Agostinho o dade do pensamento genuinamente
cerne de suas principais proposições,
particularmente em questões como o 2 Richard D. Balge. Martin Luther, Agostinian (artigo
publicado em http://www.wlsessays.net/files/BalgeAu-
pecado original, a graça de Deus, a gustinian.pdf ), acessado em novembro de 2013.
salvação e a predestinação, além do 3 Benjamin Breckinridge Warfield. John Calvin: the man
and his work (The Methodist Review, Outubro de 1909).
1 Bento XVI. Os Padres da Igreja (Campinas, SP: Ecle- 4 Timothy George. Teologia dos Reformadores (São
siae, 2012) p. 183-184. Paulo, SP: Edições Vida Nova, 2004), p. 76.
Martinho Lutero era um monge uma voz que renovava o ensino pri-
agostiniano e derivou dessa escola mitivo da igreja”.6
o tutano de sua própria teologia. A Com João Calvino não foi di-
influência de Agostinho em Lutero, ferente. A influência da teologia
aliás, parece haver perpassado todas agostiniana também é bem evidente
as fases de sua vida como teólogo. em toda sua carreira teológica.7 Ele
No prefácio da Theologia Germâni- mesmo disse que “ficaria feliz em
ca, obra do século XV redescoberta confessar toda sua fé pelas palavras
por Lutero e republicada por ele em de Agostinho”8 e ainda fez uma fa-
1516, ele reconhece o débito que mosa afirmação de aprovação, ao di-
tem com Agostinho, colocando seus zer: Augustinus totus noster est, isto é,
escritos próximos dos escritos da que “Agostinho está do nosso lado”.
própria Escritura. Em suas “conver- O historiador Justo Gonzalez lem-
sas de mesa”, em 1532, Lutero dis- bra que na principal obra de Calvi-
se: “No começo de minha carreira, no, as Institutas, “se manifesta um
como professor de teologia, eu não conhecimento profundo, não só das
simplesmente lia Agostinho, mas Escrituras, mas também de antigos
devorava suas obras com voracida-
6 Peter Fraenkel. Testimonia Patrum: The Function of
de”.5 No prefácio de seus Escritos the Patristic Argument in the Theology of Philip Melanch-
Latinos, de 1545 – um ano antes de thon (Genebra: Droz, 1961), p. 32.
7 Recomendo a leitura do artigo de S. J. Han: An Inves-
sua morte – Lutero faz referência à tigation into Calvin’s use of Augustine (http://www.ajol.
obra O Espírito e a letra, de Agosti- info/index.php/actat/article/viewFile/52214/40840),
Acessado em novembro de 2013.
nho, e diz que há muitas semelhan- 8 Paul Helm. Apud em N. R. Needham, The Triumph of
5 Martinho Lutero. Luther Works, LI, xviii. Grace (London: Grace Publication, 2000), p. 8.
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escritores cristãos, particularmente das Almas, Bucer faz muitas referên-
Agostinho”.9 Na última edição das cias ao trabalho pastoral e à teologia
Institutas, de 1559, encontram-se de Agostinho. Em seu comentário à
mais de 400 citações de textos de epístola de Paulo em Romanos, de
Agostinho. Calvino confiava mais 1536, Bucer faz um grande esforço
na teologia de Agostinho do que em para aliar-se a Agostinho no trata-
sua exegese, como se vê em vários de mento que este faz dos textos do An-
seus comentários bíblicos, particu- tigo e Novo Testamento e até mesmo
larmente seu comentário em Roma- em suas noções sobre a justificação
nos, no qual ele critica a abordagem (declarada e transmitida). Ainda que
alegórica que muitas vezes Agosti- Bucer estivesse pronto para discor-
nha emprestava ao texto, mas, o fato dar de Agostinho quando necessário,
é que esse eminente pai da igreja é o fato é que ele viu em Agostinho
uma grande fonte de inspiração e uma voz de consonância com o cor-
influência da produção teológica e po da reforma e alinhou-se à essa voz
pastoral de Calvino. em algumas áreas vitais.
ca por Deus. Ele abre seu coração Também vemos a luta da carne,
e, numa conversa dirigida a Deus, a qual ele chama de luta com a luxú-
confessa seus pecados, dramas, an- ria: “Admirava-me de já vos ter amor
gústias d’alma, frustrações e também e de não amar um fantasma em vez
sua luta pela verdade e sua luta com o de Vós. Era arrebatado para vós pela
próprio Deus. vossa beleza, e logo arrancado de vós
Vemos, por exemplo, em As Con- pelo meu peso. Este peso eram os
fissões, uma verdadeira luta da men- hábitos da luxúria”.13 Sua luta contra
te e a sublime busca pela verdade, as tentações sexuais ainda é exempli-
a qual Agostinho reconhece haver 11 Agostinho. Confissões (São Paulo, SP: Editora Nova
Cultural, 1999), p. 185.
encontrado somente quando Jesus o 12 Ibidem. p. 192.
encontrou: 13 Ibidem. p. 190.
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Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova,
tarde te amei! Eis que estavas dentro de mim,
e eu lá fora, a te procurar!” – Agostinho
ficada pela famosa oração: “Senhor, nham-me longe de ti aquilo que nem
dá-me a castidade e a continência, existiria se não existisse em ti. Tu me
mas ainda não”.14 Todavia, é preci- chamaste, gritaste por mim, e ven-
so registrar, muitas vezes a culpa de ceste minha surdez. Brilhaste, e teu
Agostinho por conta de sua concu- esplendor afugentou minha cegueira.
piscência tem levado muitos a acusa- Exalaste teu perfume, respirei-o, e
rem-no de ter sido promíscuo. Mas suspiro por ti. Eu te saboreei, e agora
talvez essa conclusão seja injusta, tenho fome e sede de ti. Tocaste-me,
pois ele mesmo registra somente um e o desejo de tua paz me inflama.15
caso amoroso, com uma concubina,
mãe de seu filho Adeodato, mulher De tudo o mais, um aspecto mui-
a quem muito amou, embora nunca to sublime de suas Confissões, que se
tenha se casado com ela. alteia como um fator presente em
Ele ainda conta como Deus o al- toda narrativa, é a noção de que é
cançou e salvou e como ele passou a Deus quem vem ao encontro do ho-
perceber a mão providente de Deus mem para alcançá-lo e salvá-lo. Tal-
nas diversas fases de sua vida, além de vez a expressão que melhor exempli-
ter uma noção mais plena e gozosa da fica essa realidade na experiência de
beleza de Deus, depois de sua conver- Agostinho, seja a oração que ele re-
são. As Confissões também são uma pete algumas vezes no curso de suas
expressão de adoração e uma declara- confissões: “Dai-me o que ordenais,
ção de amor e devoção a Deus e nela e ordenai-me o que quiserdes” (Da
ele exalta a Deus louvando-o pela cria- Quod Iubes et Iube Quod Vis). Esta
ção. Num certo ponto, ele confessa: oração causou arrepio no grande ri-
val de Agostinho, Pelágio, que via
Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nela uma afronta ao livre arbítrio do
nova, tarde te amei! Eis que estavas homem, o qual, Pelágio cria, nascia
dentro de mim, e eu lá fora, a te pro- reto e tinha em si mesmo a capaci-
curar! Eu, disforme, me atirava à be- dade de obedecer ou rejeitar a Deus.
leza das formas que criaste. Estavas Mas Agostinho entendeu – e essa
comigo, e eu não estava em ti. Reti- oração assim o demonstra – que so-
14 Ibidem. p. 214. 15 Ibidem. p. 285.
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Em seus escritos, temos um te- Em Agostinho, temos uma im-
souro de sabedoria que pode fa- pressionante profundidade teológi-
zer muito bem ao povo de Deus, ca, assertividade e firmeza doutri-
se lido com discernimento. É claro nária, intensa devoção a Deus, in-
que Agostinho teve os seus limites questionável respeito ao texto bíbli-
e cometeu seus equívocos. Mas en- co e genuína preocupação pastoral.
contramos nele uma mente brilhan- Essas qualidades são um grande es-
te e um coração radiante, que ardia tímulo para o estudante de teologia,
por amor a Deus, como pouco se particularmente, mas também para
vê em nossos tempos. Temos nele todo cristão sincero que busca agra-
um esforço diligente para subme- dar a Deus e viver neste mundo vil
ter todas as coisas à revelação. Suas e cheio de perigos - especialmente
Conf issões, aliás, são a grande prova diante dos muitos desafios enfren-
disso. Foi somente quando a Escri- tados pela fé cristã de nossos tem-
tura falou que sua obstinada busca pos, em que os valores deste mundo
pela verdade cessou. A partir desse são difusos, em que há uma crise de
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Mosaico (Catedral de Cefalù, Itália)
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Seu pai, Patrício, era um pagão. primeiros estudos mostraram quão
Agostinho o lembrava como um ho- perversamente os homens podem usar
mem rude, forte, irascível e infiel ao algo tão maravilhoso e intrinsecamen-
seu leito conjugal. Ele trabalhava mui- te bom como a linguagem. Palavras e
to, mas achava difícil subir como um eloquência tão necessárias à persuasão
africano no sistema romano de econo- e à exposição sofreram o abuso de de-
mia e política. Parece que Agostinho finir e inculcar o erro e a vileza. Poste-
sentia pouca afeição por seu pai, em- riormente, em suas Confissões, Agosti-
bora este tenha se sacrificado para lhe nho observaria com que cuidado ávido
dar educação. Patrício morreu antes de os homens seguem as regras de letras
Agostinho completar 17 anos. e sílabas, enquanto negligenciam as
Sua mãe, Mônica, era uma cristã regras permanentes da salvação eterna.
zelosa. Extraordinariamente apegada a Com a ajuda de um benfeitor rico
Agostinho e ao seu bem-estar, Mônica chamado Romanianus, Agostinho foi
procurou a salvação de seu filho com para Cartago em 370, para ter estudos
energia incansável e oração constan- avançados em retórica. Ali, ele come-
te. Ela pulou, literalmente, de alegria çou uma concubinagem com uma mu-
quando ouviu sobre a conversão de lher, e isso durou por 13 anos. Um filho,
Agostinho e sua sujeição ao cristianis- Adeodato (“dado por Deus”), resultou
mo ortodoxo. Logo depois, segura de da união deles. Ao pensar no desejo
que os dons e a devoção de Agostinho que o impeliu a essa união, Agostinho
ardiam para a glória de Deus, Mônica lembrou: “Da impura concupiscência
soube que não viveria muito tempo. da carne e da poderosa imaginação da
Ela morreu aos 56 anos de idade, quan- puberdade, se elevaram névoas que
do Agostinho tinha 33 anos. encobriram e entenebreceram meu
Na opinião de Agostinho, am- coração, para que eu não pudesse fazer
bos os pais deram ênfase indevida ao distinção entre a luz clara do amor e o
sucesso de seus estudos. Seu pai não nevoeiro da lascívia” (2.ii).
tinha nenhuma motivação espiritual, Em Cartago, ele conheceu a obra
apenas ambição vã pelo prosperidade Hortensius, de Cícero. Isto transfor-
do filho. Sua mãe acreditava que seus mou sua experiência anterior com a
estudos não impediriam a sua conver- retórica em um uso inteligente da lin-
são, mas que, de fato, a favoreceriam. guagem na busca da verdade. “A coisa
Ela estava certa. que me deleitou na exortação de Cí-
Depois da educação fundamental cero foi que eu deveria amar, buscar,
em Tagaste, Agostinho estudou, de ganhar, possuir e abraçar não esta ou
365 a 369, literatura clássica em Ma- aquela escola de filosofia, mas a própria
daura. Ele começou um amor vitalício sabedoria, o que quer que ela fosse”
pela linguagem que procurava a ex- (3.iv). Esta nova resolução pela verda-
pressão apropriada da verdade. Seus deira sabedoria pôde produzir somente
sincretismo fascinante não tinha nada vade e contamina, mas tem de plagiar o
em comum com sua busca pessoal pela bem de Deus e diminuir a sua glória. O
unidade entre palavra e substância. mal não é removido pela erradicação de
Em vez disso, o maniqueísmo era “uma uma natureza contrária, como os ma-
seita de homens que falavam absurdos niqueístas pensavam, e sim pela purifi-
pretenciosos, homens carnais e mun- cação da própria coisa que é depravada.
danos”. A conversa deles enredavam A verdade e a mentira, de acordo com
as almas “com um arranjo das sílabas Agostinho, habitam na mesma tensão,
dos nomes de Deus, o Pai, do Senhor pois nada é falso, exceto pela imitação
Jesus Cristo e do Paracleto, o Espírito do verdadeiro.
Santo, nosso Consolador. Estes nomes Depois de completar seus estudos,
estavam sempre nos lábios deles, mas Agostinho ensinou retórica em Carta-
somente como sons e barulhos da lín- go. Ele achava a atmosfera pedagógica
gua” (3.vi). intolerável. Um grupo de alunos co-
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nhecidos como “transtornadores” per- louvor e o conhecimento de Deus.
turbavam toda a ordem, agiam como Somente Deus é aquele que é “amado,
homens loucos que praticavam atos intencionalmente ou não, por tudo que
estúpidos e ultrajantes. Se não fossem é capaz de amar”. Agostinho descobriu
protegidos pela “tradição”, poderiam que Deus “nos move a deleitar-nos em
ter sido punidos pela lei. louvar-Te; porque Tu nos formaste
A fim de escapar dessa atmosfera para Ti mesmo, e nossos corações não
destrutiva, Agostinho foi para Roma têm descanso enquanto não acham
em 383. Naquele ano, ele ouviu sobre descanso em Ti” (1.1).
um posto de ensino de retórica em Mi- Aos 31 anos de idade, Agostinho
lão. Os termos eram atraentes; Agos- foi convertido com a leitura de Ro-
tinho solicitou esse posto e foi para manos 13.13-14. Em um jardim, ele
lá em 384. Em Milão, ele conheceu ouviu crianças cantarem: “Pega e lê”.
Ambrósio, o grande pregador da igre- Quando ele pegou uma Bíblia, seus
ja em Milão. Ele não achou a retórica olhos caíram nas palavras desta pas-
de Ambrósio tão brilhante quanto a sagem e levaram ao fim de um ciclo de
de Fausto, o mestre maniqueísta, mas insatisfação, convicção e busca que o
logo aprendeu que o verdadeiro po- dominou por mais de 15 anos. Ele foi
der da pregação de Ambrósio estava batizado por Ambrósio em 25 de abril
na correspondência de sua linguagem de 387.
com a realidade verdadeira e substan- Agostinho desejava viver em re-
cial. Agostinho ficou convencido de clusão, não possuindo nada, havendo
que o cristianismo era defensável con- abandonado sua busca anterior por
tra os maniqueístas e se alistou nova- prazer, beleza e honra, dando-se à con-
mente como um catecúmeno na igre- templação de Deus por meio da Escri-
ja. Posteriormente, o neoplatonismo tura. Ele evitou diligentemente estar
limpou a sua mente do dualismo dos numa posição em que alguma igreja
maniqueístas, depois de um breve fler- que não tinha um bispo colocasse os
te com o ceticismo. Seu realinhamento olhos nele. Agostinho foi para Hipona
com a Escritura começou a preencher em 391, com o propósito de estabelecer
os espaços vazios em seu desenvolvi- um monastério, porque a cidade tinha
mento intelectual. As doutrinas cristãs um bispo, Valério. No entanto, Valé-
da criação ex nihilo, da providência, rio dispôs as coisas de modo a ordenar
da redenção realizada pelo Deus trino Agostinho como sacerdote e, depois,
satisfizeram mais do que abundante- como bispo, em 395.
mente os anseios tanto de seu coração Agostinho gastou o restou de sua
quanto de sua mente. vida servindo às pessoas de sua pa-
Agora, ele sabia que o homem feito róquia, como pastor e pregador, e a
à imagem de Deus não poderia achar toda a igreja, como um guia profundo
descanso para a alma sem o amor, o da verdade cristã e da adoração pura.
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Sandro Botticelli, Santo Agostinho em seus estudos (IgrejaOgnissanti, Itália)
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da igreja. Ele nasceu em 354 em Ta- -se com a eloquência erudita e com
gaste, no norte da África (a moderna a pregação alegórica do grande bispo
Argélia), não longe da grande cidade Ambrósio (c. 339-397), considerado
de Cartago (na atual Tunísia), e rece- o maior orador sacro da antiga igreja
beu o nome de Aurelius Augustinus. latina.
Seu pai, Patrício, um funcionário pú- Sua peregrinação culminou em
blico de classe média, era um pagão agosto de 386 com a célebre experiên-
que só se converteu pouco antes de cia do jardim, narrada com detalhes
morrer, em 372. A mãe, Mônica, era nas Confissões. Enquanto conversava
uma cristã piedosa de forte persona- com o amigo Alípio sobre a mensa-
lidade. gem do apóstolo Paulo, Agostinho
O jovem estudou em sua cidade sentiu-se tomado de profunda emo-
natal e depois em Madaura e Carta- ção. Afastando-se, ouviu uma criança
go. Destacou-se na retórica latina, cantar repetidamente tolle lege (“toma
mas não conseguiu dominar a língua e lê”). Abrindo ao acaso a carta aos
grega. Embora fosse um catecúmeno Romanos, leu os versos 13 e 14 do
desde a infância, tinha paixão pelo capítulo 13, convertendo-se afinal.
teatro e somente disciplinou a sua Abandonando a carreira pública,
sexualidade através da união com abraçou a vida monástica e foi bati-
uma concubina (372-385), que lhe zado por Ambrósio na páscoa de 387.
deu um filho, Adeodato, falecido por Ao retornar a Tagaste, após a
volta de 390. Desiludido com a Bí- morte de Mônica em Óstia, perto de
blia e fascinado pela filosofia através Roma, começou a escrever contra o
da leitura de uma obra do orador ro- maniqueísmo e formou uma comu-
mano Cícero (Hortênsio), Agostinho nidade contemplativa. Ao fazer uma
voltou-se para o maniqueísmo, uma visita a Hipona, hoje na Argélia, foi
seita gnóstica, e depois para o ceti- ordenado sacerdote quase à força
cismo. Tornou-se professor de retó- (391). Tornou-se bispo coadjutor em
rica em Tagaste e Cartago, e foi en- 395 e, no ano seguinte, bispo de Hi-
tão para Roma (383) e Milão (384), pona, cargo que exerceu até sua mor-
sendo logo seguido por sua mãe, que te, em 430. Sendo agora um líder da
estava interessada em seu progresso igreja e defrontando-se com grandes
profissional e em seu retorno à igreja. desafios, sua perspectiva transfor-
Em Milão, o jovem retórico rece- mou-se de modo decisivo. Passou a
beu a influência da filosofia neopla- ter uma visão mais radicalmente bí-
tônica, que o convenceu da existên- blica do ser humano e da história, em
cia do Ser transcendente imaterial e contraste com o seu anterior huma-
lhe deu uma nova compreensão do nismo otimista neoplatônico.
problema do mal como corrupção A teologia de Agostinho foi for-
ou ausência do bem. Impressionou- jada e amadureceu no contexto de
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pregou argumentos já conhecidos, tinho salientou duas questões: a
porém de forma nova e atraente. natureza da igreja e a validade dos
A segunda grande controvérsia sacramentos. A ênfase principal dos
de que Agostinho participou foi con- donatistas era a pureza da igreja: esta
tra os donatistas. Esse cisma na igre- era considerada a congregação dos
ja católica do norte da África, que re- santos, tanto na terra como no céu,
sultou na formação de uma poderosa sendo sempre um pequeno remanes-
igreja rival, havia surgido após a úl- cente fiel. Rejeitando essa eclesiolo-
tima perseguição contra os cristãos, gia, Agostinho argumentou que os
no início do 4° século (303-311). Os donatistas é que eram impuros, por
líderes iniciais do movimento, entre destruírem a unidade da igreja e ca-
os quais estava um bispo chamado írem no pecado do cisma. Para ele, a
Donato, afirmavam que os bispos igreja inclui todos os tipos de pesso-
que tinham cooperado com os per- as, contendo em si tanto o bem como
seguidores romanos não eram legí- o mal (o trigo e o joio) até a separação
timos e que os homens que eles ha- definitiva no último dia.
viam ordenado não eram sacerdotes Quanto aos sacramentos, ele in-
cristãos. Os donatistas eram herdei- sistiu que o batismo e a Eucaristia
ros da tradição rigorista ou moralista transmitem a graça de Deus ex ope-
de O Pastor de Hermas e Tertuliano, re operato, ou seja, “em virtude do
e agora, na época de Agostinho, ar- próprio ato”, independentemente
gumentavam que os bispos e sacer- da condição moral e espiritual do
dotes católicos eram corruptos ou oficiante. Os sacramentos provêm
heréticos, e por isso os sacramentos de Cristo e o seu poder e eficácia
que ministravam não eram válidos. baseiam-se na santidade de Cristo,
Nessas alegações, apelavam inclusive que não pode ser corrompida por
aos escritos de Cipriano. ministros indignos “assim como a luz
Ao lutar contra os donatistas, em do sol não é corrompida ao brilhar
obras como Sobre o batismo, Agos- através de um esgoto”. Portanto, um
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cado de Adão e da natureza pecami- turas humanas estão de tal modo
nosa herdada dele, estando sujeitos à corrompidas que, se Deus não lhes
condenação eterna. Eles fazem parte concedesse o dom da fé, nem sequer
de uma “massa de perdição”. Essa se voltariam para ele. Se fosse possí-
situação só é desfeita pelo batismo vel alcançar a retidão somente pela
(o sacramento da regeneração), pelo natureza e pelo livre-arbítrio, sem
arrependimento e pela graça sacra- a graça sobrenatural, Cristo teria
mental. A vida cristã virtuosa é intei- morrido em vão. Deus determina ou
ramente uma obra da graça de Deus predestina de modo soberano tudo o
e de modo algum um produto do que acontece.
esforço humano ou do livre-arbítrio, Em sua última obra, Da predesti-
sem a graça capacitadora. Por causa nação dos santos, Agostinho afirmou
da corrupção herdada, o ser huma- que Deus escolhe alguns indivíduos
no não tem liberdade para não pecar do meio da massa humana de per-
(non posse non peccare). dição para receberem a dádiva da
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Sandro Botticelli, Santo Agostinho em seus estudos (Galeria Degli Uff izi)
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Como Gerald Bonner escreveu, foi Mônica quem teve muito maior
Agostinho “continua a atrair grande influência em sua vida. Logo depois
número de alunos, que são fascinados de sua conversão, Agostinho comen-
por sua personalidade e suas ideias... tou que as orações de sua mãe foram
e muitos deles, embora reconheçam instrumentos para trazê-lo à fé viva
as falhas nos ensinos de Agostinho, em Cristo.8 O historiador Jaroslav
admitem que têm recebido muito Pelikan resumiu os anos anteriores
discernimento e inspiração proce- à conversão de Agostinho, quando
dentes de seu pensamento”.5 disse que ele “se moveu de uma pre-
ocupação para outra, de uma preo-
PRIMEIROS ANOS, CONVERSÃO E cupação com o ego para doze anos
CHAMADO AO MINISTÉRIO como membro da obscura seita dos
maniqueus, para vários tipos de ne-
Os fatos dos primeiros anos da oplatonismo, para o cristianismo
vida de Agostinho são bem conheci- ortodoxo”.9
dos porque ele os registrou em suas A conversão à fé cristã aconteceu
famosas Confissões.6 Nascido em 13 no final do verão de 386, em um jar-
de novembro de 354, no que era na- dim, em Milão, onde Agostinho tra-
quela época a província romana da balhava como um retórico imperial,
Numídia, ele era filho de um oficial ou seja, um professor de oratória.
inferior, Patrício (morreu por volta O momento crítico veio por meio
de 371), e de sua esposa cristã, Mô- da leitura de um texto paulino, Ro-
nica (331-387).7 Dentre os seus pais, manos 13.13-14, a respeito do que
Agostinho escreveu posteriormente:
(Philadelphia, Pennsylvania: Presbyterian and Re- “A luz da confiança inundou meu
formed Publishing Co., 1956), p. 323.
5 “They Speak to Us across the Centuries: 7. Augustine”, coração e todas as trevas de dúvida
The Expository Times, 109, No. 10 ( July 1998), p. 293. foram dissipadas”.10 Em suas Con-
6 A biografia padrão de Agostinho é aquela elaborada
por Peter Brown – ver sua obra Augustine of Hippo: A fissões, Livro 9, Agostinho descreveu
Biography (rev. ed.; Berkeley: University of California mais plenamente como ele entendeu,
Press, 2000). Dois outros estudos biográficos muito
úteis são os de Henry Chadwick, Augustine: A Very Short
mais tarde, a obra salvadora de Deus
Introduction (Oxford: Oxford University Press, 2001) em sua vida:
e de Gary Wills, Saint Augustine (New York: Viking,
1999). Ver também o resumo de Robert A. Markus,
“Life, Culture, and Controversies of Augustine”, em Durante todos aqueles anos [de
Allan D. Fitzgerald, ed., Augustine through the Ages. An rebelião], onde estava o meu li-
Encyclopedia (Grand Rapids/Cambridge, UK: William
B. Eerdmans Publ. Co., 1999), p. 498-504, bem como o
breve e interessante estudo escrito por Karla Pollmann, 8 The Happy Life 6.
St Augustine the Algerian (Göttingen: Duehrkohp & 9 “Writing as a Means of Grace”, em Jaroslav Pelikan
Radicke, 2003). et at., Spiritual Quests: the Art and Craft of Religious
7 Sobre os seus pais, ver Allan D. Fitzgerald, “Patri- Writing (Boston: Houghton Miflin Co., 1988), p. 88.
cius”, e Angelo di Berardino, “Monnica”, em Fitzgerald, 10 Confessions 8.12 (trans. R. S. Pine-Coffin, Saint
ed., Augustine through the Ages, p. 621 e 570-571, respec- Augustine: Confessions [Harmondsworth, Middlesex:
tivamente. Penguin, 1961], p. 178).
30 | Revista F É P A R A H O J E
A graça de Deus teve a supremacia.”
– Agostinho
32 | Revista F É P A R A H O J E
Guercino, Santo Agostinho meditando sobre a Trindade (Museu do Prado, Madri)
34 | Revista F É P A R A H O J E
ma é o tratado conhecido por A Trin- e para quem existem todas as coisas
dade, que ele demorou dezesseis anos (Rm 11,36). Assim, o Pai, o Filho e
para redigir – entre 400 e 416. Esta o Espírito Santo são, cada um deles,
obra está dividida em duas partes, Deus. E os três são um só Deus. Para
bem distintas. A primeira, com uma si próprio, cada um deles é substân-
ênfase bíblica, vai do livro I ao VII. É cia completa e, os três juntos, uma só
a seção teológica propriamente dita. substância. O Pai não é o Filho, nem
A segunda parte, do livro VIII ao XV o Espírito Santo. O Filho não é o Pai,
apresenta um caráter especulativo nem o Espírito Santo. E o Espírito
psicológico e filosófico, no gênero Santo não é o Pai nem o Filho. O Pai
analógico. Conforme suas palavras: é só Pai, o Filho unicamente Filho, e
“Sendo ainda muito jovem, iniciei o Espírito Santo unicamente Espíri-
a elaboração destes meus livros so- to Santo. Os três possuem a mesma
bre a Trindade, que é o Deus sumo e eternidade, a mesma imutabilidade,
verdadeiro. Agora, entrado em anos, a mesma majestade, o mesmo poder.
trago-os a público”.3 De fato, A Trin- No Pai está a unidade, no Filho a
dade é a obra de sua maturidade. igualdade e no Espírito Santo a har-
Agostinho pressupôs como uma monia entre a unidade e a igualdade.
verdade bíblica que existe um só Deus Esses três atributos todos são um só,
que é Trindade, e que o Pai, o Filho e por causa do Pai, todos são iguais por
o Espírito Santo são simultaneamen- causa do Filho e todos são conexos
te distintos e co-essenciais, numerica- por causa do Espírito Santo.4
mente um quanto à substância:
Em nenhum lugar Agostinho
O Pai, o Filho e o Espírito Santo, isto tentou demonstrar biblicamente es-
é, a própria Trindade, una e suprema tas afirmações. “Trata-se de um dado
realidade, é a única Coisa a ser fruí- da revelação que, para ele, as Escri-
da [una quaedam summa res], bem turas proclamam quase a cada pági-
comum de todos. Se é que pode ser na, e que a ‘fé católica’ (fides catholica)
chamada Coisa e não, de preferência, transmite aos fiéis”.5 Em seu enten-
a causa de todas as coisas – se tam- dimento, Deus é incompreensível,
bém puder ser chamada causa. Não mas não incognoscível, havendo
é fácil encontrar um nome que possa duas vias de conhecimento de Deus:
convir a tanta grandeza e servir para a via da eliminação, ou negação (apo-
denominar de maneira adequada a fática), que consiste em suprimir de
Trindade. A não ser que se diga que Deus todos os defeitos das criaturas,
é um só Deus, de quem, por quem 4 Santo Agostinho, A doutrina cristã (São Paulo: Pau-
lus, 2002), 1.5, p. 46-47.
3 “Carta 174” dirigida ao bispo Aurélio de Cartago, em 5 J. N. D. Kelly, Patrística: origem e desenvolvimento
416. in: Santo Agostinho, A Trindade (São Paulo: Pau- das doutrinas centrais da fé cristã (São Paulo: Vida Nova,
lus, 1994), p. 19. 2009), p. 205. Cf. A Trindade 1-4, p. 23-189.
36 | Revista F É P A R A H O J E
1. A SANTÍSSIMA TRINDADE Como Kelly nota, diversas con-
sequências se seguem desta ênfase
Seguiremos aqui os pontos bási- na unidade da natureza divina. Pri-
cos do resumo que J. N. D. Kelly fez meiro, as pessoas da Trindade não
da exposição da doutrina trinitária são três indivíduos separados, an-
em Agostinho.9 Esta é inteiramente tes “cada uma das pessoas divinas é
fundamentada nas Escrituras, porém, idêntica às demais ou à própria subs-
em contraste com a tradição oriental, tância divina”, e deve-se afirmar “que
que fez da pessoa do Pai o seu ponto cada uma das pessoas habita nas ou-
de partida, Agostinho principia com tras ou é inerente às outras”. Como
a natureza divina em si mesma. É esta Agostinho escreveu:
simples e imutável natureza ou essên-
cia que é Trindade.10 A unidade da Creia o homem no Pai, no Filho e no
Trindade é assim claramente asseve- Espírito Santo, como um só Deus,
rada, eliminando-se rigorosamente “o grande, onipotente, bom, justo, mi-
arianismo e o subordinacionismo da sericordioso, criador de todas as coi-
sua doutrina da Trindade”.11 Portanto, sas visíveis e invisíveis, e tudo o mais
tudo o que é afirmado de Deus é afir- que dele se possa dizer digna e verda-
mado igualmente de cada uma das três deiramente, conforme a capacidade
pessoas da deidade: “O Deus único e da inteligência humana. E quando
verdadeiro não é somente o Pai, mas o ouvir dizer que o Pai é um só Deus,
Pai, o Filho e o Espírito Santo”.12 não separe o Filho e o Espírito San-
to, porque com ele são um só Deus.
9 Cf. J. N. D. Kelly, op. cit., p. 205-210. Cf. também Jus-
to L. González, Uma história do pensamento cristão. v. 1: Quando ouvir dizer que o Filho é um
do início até o Concílio de Calcedônia (São Paulo: Cultura só Deus é mister entender assim, mas
Cristã, 2004), p. 317-323.
10 Como diz J. N. D. Kelly, op. cit., p. 205: Ele “prefere sem separá-lo do Pai e do Espírito
‘essência’ a ‘substância’, pois esta última implica um su- Santo. E de tal modo diga que exis-
jeito com atributos, enquanto, para Agostinho, Deus é
idêntico a Seus atributos”: et haec trinitas unus est deus e te uma só essência, e não considere a
trinitatem quae deus est, cf. Santo Agostinho, A Cidade de essência de um ser maior ou melhor
Deus v. II [Livros IX a XV] (Lisboa: Fundação Calous-
te Gulbenkian, 1993), 11.10, p. 1011-1014. Para uma
do que a do outro e diferente em al-
explicação dos termos-chave da doutrina trinitariana gum aspecto. Contudo, não pense
(principalmente “substância = natureza = essência: uma
que o Pai é o Filho ou Espírito San-
única” e “hipóstase = subsistência = pessoa: três realmente
distintas”), cf. Leonardo Boff, A Trindade, a sociedade e a to ou qualquer coisa que uma pessoa
libertação (Petrópolis, Vozes: 1986), p. 111-126. em separado diga relação às outras,
11 Henry Chadwick, A Igreja Primitiva (Lisboa:
Ulisseia, 1967), p. 257. Cf. especialmente Millard J. Er- como por exemplo, o termo ‘Verbo’
ickson, Who’s Tampering with the Trinity? An Assessment aplica-se somente ao Filho, e Dom
of the Subordination Debate (Grand Rapids, MI: Kregel,
2009), p. 153-159. Este livro é uma crítica muito bem afirma-se somente a respeito do Es-
elaborada contra a noção da subordinação eterna do Fi- pírito Santo.13
lho ao Pai, que tem sido revivida em certos setores da
igreja evangélica norte-americana.
12 A Trindade 6.9, p. 227-229. 13 A Trindade 7.12, p. 256-257.
14 A Trindade 8.1, p. 259; cf. também 6.9, p. 227-229; 16 A Trindade 5.15, p. 208-210.
5.10-16, p. 203-213. 17 A Trindade 1.7, p. 31; 2.3, p. 71-73.
15 A Trindade 2.9, p. 78. 18 A Trindade 2.14-34, p. 85-110; 3.4-27, p. 114-143.
38 | Revista F É P A R A H O J E
-se visível”.19 Logo, já que cada uma que ele dá (o Espírito). Isso lançaria
das pessoas possui a natureza divina uma possível luz sobre a questão que
de uma maneira particular, é apro- a muitos preocupa, sobre a possibili-
priado “atribuir a cada uma delas, dade de dizer-se que o Espírito Santo
na operação externa da Divindade, o também seja Filho, já que sai do Pai,
papel que lhe é próprio em virtude de como se lê no Evangelho ( Jo 15.26).
Sua origem”.20 Saiu do Pai, sim, mas não como nas-
cido, mas como Dom, e por isso, não
2. A DISTINÇÃO DAS PESSOAS se pode dizer filho, já que não nasceu
como o Unigênito e nem foi criado
Segundo Agostinho, a distinção como nós, que nascemos para a ado-
das pessoas se fundamenta nas “suas ção filial pela graça de Deus.21
relações mútuas dentro da Divinda-
de”. Embora consideradas enquanto O Espírito Santo, semelhante-
substância divina, as pessoas sejam mente, distingue-se do Pai e do Filho
idênticas, o Pai se distingue enquanto enquanto “outorgado” por eles, sendo
Pai por gerar o Filho, e o Filho se dis- o “dom comum” (donum) de ambos,
tingue enquanto Filho por ser gerado. “uma espécie de comunhão de Pai e
Filho (quaedam patris et filii commu-
Com respeito às relações mútuas na niio), ou, então, o amor que, juntos,
Trindade, se aquele que gerou é prin- Eles derramam em nossos cora-
cipio do gerado, o Pai é principio em ções”.22 Surge então a questão: “o que
referencia ao Filho, porque o gerou. são, na verdade, os três”? Agostinho
Entretanto não é uma investigação reconhece que tradicionalmente eles
de pouca importância inquirir se o são designados como pessoas, mas ele
Pai é também principio com relação fica descontente com o termo. Prova-
ao Espírito Santo, pois está escrito: velmente a expressão lhe trazia a co-
procede do Pai. Se assim for, é princi- notação de indivíduos separados. Mas
pio não somente do que gera ou faz ele consente em usar a expressão, por
(o Filho), mas também da pessoa causa da necessidade de afirmar a dis-
tinção dos três contra o modalismo, e
19 A Trindade 2.9, p. 78-80; 2.18, p. 90-91. com um profundo sentido da inade-
20 A teologia cristã tem distinguido entre Trindade
imanente e Trindade econômica. Trindade imanente é a quação da linguagem humana.23 Sua
Trindade considerada em si mesma, em sua eternidade e
comunhão pericorética entre o Pai, o Filho e o Espírito 21 A Trindade 5.15, p. 208-209; 5.6, p. 196-197; 5.8 p.
Santo. A Trindade econômica é a Trindade enquanto se 199-201.
auto-revelou na história da humanidade e age em vista 22 A Trindade 5.12, p. 204-206; 5.15-17, p. 208-213;
à nossa participação na comunhão trinitária. Cf. Karl 8.1, p. 259-260.
Rarhner, “O Deus Trino, fundamento transcendente 23 Como diz João Calvino, Agostinho “em razão da
da história da salvação”, in: Johannes Feiner & Magnus pobreza da linguagem humana em matéria de tão alto
Loehrer, Mysterium Salutis; compêndio de dogmática his- importe, esta palavra hipóstase havia sido forçada pela
tórico-salvífica – a histórica salvífica antes de Cristo II/1 necessidade, não para que se expressasse o que é, mas
(Petrópolis: Vozes, 1972), p. 292-294, 342-344. apenas para que não se passasse em silêncio o fato de que
40 | Revista F É P A R A H O J E
der; ou é simples a natureza em que “pois a relação de ambos” para com
aquele que tem se identifica com aquilo o Espírito Santo “é idêntica e onde
que tem. [Portanto] chama-se simples não há diferença de relação, a opera-
as perfeições que, por excelência e na ção dEles é inseparável”. Agostinho,
verdade, constituem a natureza di- portanto, ensinou a doutrina da dupla
vina: porque nelas não é a substância processão do Espírito Santo do Pai e
uma coisa e a qualidade outra coisa. 25 do Filho (filioque).30
Então, de acordo com Agostinho,
O Pai, o Filho e o Espírito San- o Pai é autor da processão do Espírito
to são assim relações, “no sentido de Santo porque Ele gerou o Filho, e ao
que tudo aquilo que cada um é, Ele é gerá-lo tornou-o também fonte a par-
em relação a um dEles ou a ambos”.26 tir do qual o Espírito procede e já que
tudo o que o Filho tem, o tem do Pai,
3. A PROCESSÃO DO ESPÍRITO SANTO do Pai tem também que dEle proceda
o Espírito Santo. Daqui, porém, não
Agostinho também procurou ex- se deve concluir, ele nos adverte, que
plicar o que é a processão do Espírito o Espírito Santo tenha duas fontes ou
Santo, ou “em que ela difere da gera- princípios.31 Pelo contrário, “a ação do
ção do Filho”.27 Ele considerou como Pai e do Filho” na processão do Espí-
certo que o Espírito Santo é o amor rito “é comum, assim como é a ação de
mútuo do Pai e do Filho (communem todas as três pessoas na criação”. Além
qua invicem se diligunt pater et filius disso, não obstante a dupla processão,
caritatem), o amor comum pelo qual o o Pai permanece “a fonte primordial”,
Pai e o Filho se amam mutuamente.28 na medida em que é dEle que deriva a
Assim, Agostinho afirma que “o Es- capacidade do Espírito Santo de pro-
pírito Santo não é o Pai nem o Filho, ceder do Filho.32
mas somente o Espírito Santo do Pai
e do Filho, igual ao Pai e ao Filho e Entenda também que, assim como o
pertencente à unidade da Trindade”.29 Pai tem a vida em si mesmo, para que
Desta maneira, em relação ao Espíri- 30 Para o papel de Agostinho na controvérsia filioque,
to Santo, o Pai e o Filho formam um cf. Alister E. McGrath, Teologia sistemática, histórica e
único princípio, o que é inevitável, filosófica (São Paulo: Shedd, 2005), p. 395-398.
31 A Trindade 5.15, p. 208-210.
25 A Cidade de Deus 11.10, p. 1011-1012. 32 O que a teologia oriental (ortodoxa) nem sempre
26 A Trindade 5-7, p. 191-258; Cf. também Santo Agosti- considerou é que os latinos, inclusive Agostinho, sempre
nho, Comentário aos Salmos 68 1.5 [Enarrationes in psalmos] conceberam o Pai como a fonte (Fons Trinitatis) ou ori-
Salmos 51-100 (São Paulo: Paulus, 1997), p. 435-437. gem especial (origo principalis) na Trindade. O Espírito
27 A Trindade 15.46, p. 546-550. Santo, como afirma Agostinho, procede do Pai princi-
28 A Trindade 15.27-37, p. 521-534. Em 7.6, p. 244, paliter; procede do Pai e do Filho communiter, por causa
o Espírito Santo é referido como “suma caridade, laço do dom que o Pai dá ao Filho. A maioria dos ortodoxos
que une um ao outro [o Pai ao Filho], e nos submete a poderia aceitar tal formulação, mas, até que um concílio
eles” (summa charitas, utrumque coniungens, nosque su- ecumênico agisse, tal idéia continuaria sendo mero “en-
biungens). sino teológico” (theologoumena). Cf. A Trindade 15.50, p.
29 A Trindade 1.7, p. 31. 553-555.
42 | Revista F É P A R A H O J E
há vestígios da Trindade em todo o a intenção ou disposição da vontade
lugar, porque as criaturas, na medida (voluntas).
em que existem, “existem por parti- Para a imagem real, entretanto,
cipar das idéias de Deus; portanto, da Trindade, devemos olhar no ho-
tudo deve refletir”, embora de forma mem interior, ou alma. Ao comentar
tênue, a Trindade que as criou.36 a pergunta do Salmo, “por que estás
Para buscar a verdadeira imagem triste, ó minha alma? E por que me
da Trindade, entretanto, o homem perturbas?”, ele escreveu: “Entende-
deve olhar primeiramente dentro de si, mos, então, que temos algo onde se
porque as Escrituras representa Deus encontra a imagem de Deus, a saber,
dizendo: “Façamos [isto é, os três] o a mente, a razão. A mente invocava
homem à nossa imagem e à nossa seme- a luz de Deus e a verdade de Deus.
lhança”. Portanto, mesmo o homem Com ela entendemos o que é justo e
exterior, isto é, o homem considera- o que é injusto, discernimos o verda-
do em sua natureza sensível, fornece deiro do falso... Nosso intelecto, por
“uma certa figura da Trindade” (quan- conseguinte, fala a nossa alma”.40
dam trinitatis effigiem).37 De acordo Como Kelly afirma, frequente-
com Kelly, “o processo de percepção, mente tem sido dito que a principal
por exemplo, revela três elementos analogia trinitária do A Trinitate é a
distintos que são ao mesmo tempo do amante (amans), do objeto amado
intimamente ligados, dos quais o pri- (id quod amatur) e do amor que os une
meiro, em certo sentido, gera o segun- (amor).41 Porém a discussão de Agos-
do, enquanto que o terceiro mantém tinho desta trindade é bastante curta,
aos outros dois unidos”.38 Por exemplo, e é apenas “uma transição” para aquela
o objeto externo (res quam vivemus, a que ele considera sua mais importan-
coisa que vemos), a representação sen- te analogia, a da “atividade da mente
sível da mente (visio), e a intenção ou enquanto dirigida para si mesma ou,
ato de focalizar a mente (intentio; vo- melhor ainda, para Deus”.
luntas; intentio voluntatis, a intenção da
vontade). Quando o objeto externo é Quem poderá compreender a Trin-
removido temos uma segunda trinda- dade onipotente? E quem não fala
de, que lhe é superior, pois é localizada dela, ainda que não a compreenda?
inteiramente dentro da mente.39 Nes-
te sentido, Agostinho fala da impres- 40 Santo Agostinho, Comentário aos Salmos 42.6
[Enarrationes in psalmos]; Salmos 1-50 (São Paulo: Pau-
são da memória (memoria), a imagem lus, 1997), p. 718-719.
interna da memória (visio interna), e 41 A Trindade 8.12-9.2, p. 260-289 e A Cidade de Deus
v. II, 11.26. É interessante notar que na concepção bar-
36 Santo Agostinho, A verdadeira religião 13 (São Pau- thiana-anselmiana a fé é amans, o entendimento da fé é
lo: Paulus, 2002), p. 39-40. id quod amatur e a teologia é amor. Cf. Karl Barth, Fé em
37 A Trindade 11.1, p. 335-336. busca de compreensão (São Paulo: Fonte Editorial, 2006),
38 A Trindade 11.2-5, p. 337-342. p. 14. Cf. também Anselmo de Cantuária, Monol. 67 e
39 A Trindade 11.6, p. 343-345. passim.
44 | Revista F É P A R A H O J E
maneira, uma imagem remota e Aí se descobre a disposição da divi-
imperfeita”. Segundo, “embora a na Providência, no tempo, em favor
natureza racional do homem exiba do gênero humano, para reforma-lo
as trindades acima mencionadas, e restaura-lo, em vista da posse da
(...) elas representam faculdades ou vida eterna. Crendo nisso, a mente
atributos que o ser humano possui, vai se purificando num modo de vida
enquanto que a natureza divina é ajustado aos preceitos divinos. Isso a
perfeitamente simples”. Terceiro, a habilitará à percepção das realidades
memória, entendimento e vontade espirituais. Essas realidades não são
operam no homem separadamente, nem do passado, nem do futuro, mas
enquanto que as três pessoas divinas são sempre idênticas a si mesmas,
“pertencem-se mutuamente e Sua imunes de qualquer mudança tempo-
ação é perfeitamente una e indivi- ral. Trata-se do mesmo e único Deus
46 | Revista F É P A R A H O J E
Jose Garcia Hidalgo, Conversão de Santo Agostinho (Museu do Prado, Madri)
“A peregrina
cidade de Jerusalém”.
Jerônimo, Agostinho
e o Império.
G S
48 | Revista F É P A R A H O J E
outras traduções das Escrituras na- túmulo?”4 Por esta época, Jerônimo
quela época, mas todas tinham sido sabia que não apenas ele se aproxi-
feitas a partir da Septuaginta, isto mava de seu fim, mas toda uma era.
é, a tradução do Antigo Testamen- Ele morreu em Belém, doente e qua-
to do hebraico para o grego. Jerô- se cego, em 30 de setembro de 420,
nimo se pôs ao trabalho, apesar de havendo sobrevivido, ainda, cerca de
ser constantemente interrompido dez anos à queda de Roma. Durante
por sua enorme correspondência, a Idade Média, a fama e influência de
suas constantes controvérsias e as Jerônimo entre os cristãos ocidentais
calamidades que assolavam o mun- só foram superadas pelas de Agosti-
do. Ele finalizou o seu trabalho em nho de Hipona.
405, levando, portanto, vinte e três Precipitada por uma série de
anos para concluí-lo. A sua tradu- eventos, a queda do Império Roma-
ção foi inteiramente nova e arejada, no do Ocidente produziu um impac-
utilizando como base o Novo Tes- to de grandes proporções. Ainda que
tamento Grego e o original hebrai- tenha formalmente continuado por
co do Antigo Testamento. A longo outros sessenta anos ou mais, após
prazo, a versão de Jerônimo — co- 410 o Império efetivamente deixara
nhecida como a Vulgata — se impôs de ser um poder militar e político.
em toda a igreja de fala latina, con- Quando Agostinho falecia, em 28 de
quanto no princípio não tenha sido agosto de 430, a sua cidade no nor-
bem recebida.3 te da África já estava sob o poder do
Quando decidiu ir embora de reino Vândalo.
Roma para a Terra Santa, Jerônimo Logo após o saque de Roma,
dizia que estava indo de “Babilônia Agostinho tomara ciência de que
para Jerusalém”. A partir de 386 ele muitos pagãos atribuíam as calami-
viveu o restante de seus dias num dades do Império aos cristãos. Os
mosteiro em Belém, constantemen- pagãos apontavam que o desastre
te escrevendo e ensinando a outros romano foi no “período dos cristãos”
monges. Em 410, Roma foi toma- e que Roma havia caído porque se ti-
da e saqueada pelos Godos. Todo nha entregue ao cristianismo e aban-
mundo estremeceu diante desta no- donado “os antigos deuses que a ti-
tícia. Quando Jerônimo a recebeu, nham feito grande”. Para os pagãos,
escreveu perplexo em seu retiro em os cristãos tinham destruído a maior
Belém: “Quem pode acreditar que realização humana já concebida.
Roma, construída pela conquista do A grande preocupação de Agosti-
mundo, tenha caído? Que a mãe de nho, entretanto, era acerca do modo
muitas nações se transformou num
4 Justo L. Gonzales. A Era dos Gigantes. Uma História
3 O apelido Vulgata vem da palavra latina para “comum” Ilustrada do Cristianismo, Vol. 2. São Paulo: Vida Nova,
— a Bíblia comum, isto é, aquela comumente utilizada. 1980, p. 161-162.
50 | Revista F É P A R A H O J E
Se por um lado, cristãos como Je- então, está vitalmente trabalhando
rônimo estavam chocados, aturdidos na história. Agostinho, portanto,
ou até desesperados, havia também tem uma visão unificada daquilo a
aqueles cristãos que reagiam com que chamamos de história; ela não
uma alegria sadística ao novo saque é um pacote de querelas e eventos
de Roma. O ressentimento contra desconectados. Não obstante, Agos-
Roma também havia se assentado tinho também está convencido de
fortemente no coração de muitos na que é impossível traçar em detalhes
Cristandade. a obra de Deus na história fora das
Contra a acusação dos pagãos, e Escrituras. Enquanto seria blasfemo
diante do desespero de muitos cris- negar que Deus está trabalhando no
tãos, e no contexto da celebração domínio da história, tal trabalho é
ou indiferença de outros, a resposta amplamente oculto aos homens.
própria cidade. Abel, por outro lado, gozo eterno, e a Cidade do Homem
“era um peregrino e estrangeiro no será precipitada no inferno. Nenhu-
mundo”, pertencendo à Cidade de ma sociedade terrena ou instituição
Deus. Ele foi predestinado pela gra- humana pode, entretanto, ser ple-
ça, e escolhido pela graça, pela graça namente identificada com qualquer
um peregrino daqui, e pela graça um dessas duas cidades, porque elas
cidadão de lá. Através do curso des- perpassam a humanidade inteira, no
sas duas cidades, quando elas se co- passado, presente e futuro. Agosti-
locam lado a lado na história, Deus nho, então, rejeita qualquer sorte de
está trabalhando para livrar homens fusão do Reino de Deus com alguma
e mulheres da primeira cidade e tor- sociedade humana em particular.
ná-los parte da segunda. Embora a Esta interpretação cristã da his-
cidadania última seja na Cidade de tória, conforme defendida por Agos-
Deus, não podemos, no momento, tinho, foi um grande consolo para
52 | Revista F É P A R A H O J E
muitos cristãos que viram o Império por seus pecados e egoísmo. Roma
Romano no Ocidente esfacelar-se nunca seria a cidade que satisfaria o
por causa das invasões dos vândalos. coração humano. Somente a cidade
Como vimos, até mesmo cristãos es- de Deus poderia fazer isto. Virgílio
tavam identificando o Império Ro- (Públio Virgílio Marão, 70-19 a.C.)
mano cristianizado com o Reino de descreveu o plano dos deuses para
Deus. Isto era uma enorme tentação tornar Roma uma imagem de justiça
naqueles dias. Roma parecia, para os de ordem divina. Agostinho diz que
homens desse tempo, o princípio or- Roma jamais se tornou isso, nem
ganizador de toda a história humana. nunca poderia se tornar. Nenhu-
Ao desaparecer, que sentido teria o ma instituição meramente humana
mundo? Vários cristãos estavam con- pode. Somente a Cidade de Deus
templando o Império Romano como tem a ordem perfeita. O Cristianis-
desempenhando um papel central na mo não oferece conforto ou sucesso
história da redenção. O próprio histo- nesta vida, mas paz interior e um
riador Eusébio de Cesaréia (263-339) destino eterno. Por isso, enquanto o
esposara tal opinião, quando se referiu descrente ama o que há no mundo, o
à ascensão do imperador Constantino. cristão ama a Deus.
Assim, desenvolvera-se uma teologia Agostinho não apenas escreveu,
da história na qual aqueles “tempos mas pregou sobre isto. Em um ser-
cristãos” eram, por assim dizer, coex- mão pregado em Cartago, durante
tensivos com o Império, tanto quanto o verão de 411, quando a lembrança
este era com a Cidade de Deus. do saque de Roma ainda permanecia
Para Agostinho, nada disso era bastante fresca em muitas mentes,
contemplado pelas Escrituras, bem Agostinho relembra aos seus ou-
como esta opinião falhava em arti- vintes que nenhum reino terrestre
cular a natureza peregrina do povo é para sempre.7 O Senhor e Mestre
de Deus. A idéia central de Agosti- Jesus Cristo já advertira que os rei-
nho é: a Cidade de Deus não é afe- nos desta terra pereceriam. Agosti-
tada pelo declínio do Império Ro- nho relembrou as palavras de Cristo:
mano, porque esta cidade, em rigor, “Porquanto se levantará nação con-
não é deste mundo. No caso parti- tra nação, e reino contra reino” (Mt
cular de Roma e do Império, Deus 24.7). E prosseguiu: “reinos terres-
lhes permitiu crescer como cresce- tres têm seu auge e seu declínio; mas
ram, inclusive para que servissem de está vindo aquele Homem de quem é
meio para a propagação do evange- dito: ‘ E o seu reino jamais terá fim’.”
lho. Esta função agora estava cum- 7 Sermão 105.9-11, in: Edmund Hill. Sermons; The
prida, e Deus fez com que Roma Works of Saint Augustine. Brooklyn, New York: New
City Press, 1992, III/4, p. 94, apud. Haykin, op. cit.. Cf
seguisse o destino de todos os reinos http://www.ewtn.com/library/PATRISTC/PNI6-10.TXT.
humanos, recebendo o justo castigo Para sermões de Agostinho,http://www.theworkofgod.org/
Library/Sermons/Agustine.htm
54 | Revista F É P A R A H O J E
Jusepe de Ribera, Saint Augustine of Hippo (Museu do Prado, Madri)
1 Santo Agostinho, Comentário ao Gênesis, São Paulo: Paulus, 2005 (Coleção Patrística; 21), XIII.38. p. 625.
2 Agostinho, Confissões, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, Vol. VI), 1973, XI.14.17. p. 244.
3 Agostinho, Confissões, XI.25.32. p. 251.
56 | Revista F É P A R A H O J E
INTRODUÇÃO do tempo. Agostinho (354-430) ‒ “o
grande mestre da Idade Média cristã”4
A concepção cristã de tempo, ‒, soube como ninguém retratar este
mesmo com as suas variações, in- problema. Para Agostinho Deus é o
fluenciou diretamente todo o mundo eterno presente – na eternidade nada
Ocidental. A compreensão de que o passa5 – que antecede o tempo por
tempo tem um início, meio e fim era Ele criado: “Precedeis, porém, todo o
totalmente estranha às culturas pa- passado, alteando-Vos sobre ele com a
gãs. A questão da história e do tempo vossa eternidade sempre presente (Sl
é fundamental para o Cristianismo 102.27)”.6 Em outro lugar:“Os anos
pela sua própria constituição. de Deus não são uma coisa e Deus
O Cristianismo é uma religião de mesmo outra; mas os anos de Deus
história. Ele não se ampara em lendas, são a eternidade de Deus; eternidade
antes, em fatos os quais devem ser tes- de Deus é a sua substância. Nada tem
temunhados, visto que têm uma rela- de mutável, nada de pretérito, como
ção direta com a vida dos que creem. se já não fosse, nada de futuro como
O Cristianismo é uma religião de fa- ainda não sendo. Ali só se encontra:
tos, palavra e vida. Os fatos, correta- É; não há: Foi e será, porque o que foi
mente compreendidos, têm uma rela- já não é, e o que será ainda não é, mas
ção direta com a nossa vida. A fé cristã tudo que existe ali, apenas é”.7 Por
fundamenta-se no próprio Cristo: O isso, na eternidade, Deus nada fazia,
Deus-Homem. Sem o Cristo Histó- visto que se Ele fizesse, seria criatura
rico não haveria Cristianismo. A sua dEle: “Não temo afirmar que antes
força e singularidade estão neste fato, de criardes o céu e a terra não fazíeis
melhor dizendo: na pessoa de Cristo, coisa alguma. Pois, se tivésseis feito
não simplesmente nos seus ensina- alguma coisa, que poderia ser senão
mentos. O Cristianismo é o próprio criatura vossa?”.8
Cristo. A encarnação é toda e inclu-
4 Jacques Le Goff, Tempo: In: Jacques Le Goff; Jean-
sivamente missionária: o Verbo fez-se Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente
carne e habitou entre nós ( Jo 1.14). Medieval, Bauru, SP/São Paulo: Editora da Universida-
de Sagrado Coração/Imprensa Oficial do Estado, 2002,
Jesus Cristo é o clímax da Revela- Vol. 2, p. 531.
ção; é a Palavra Final de Deus. Nele 5 Agostinho, Confissões, XI.11.13. p. 242. Ele insiste
temos não uma metáfora ou um si- neste ponto: “Quanto ao presente, se fosse sempre presen-
te, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo, mas
nal, antes, temos o próprio Deus que eternidade” (Agostinho, Confissões, XI.14.17. p. 244).
Se fez homem na história. Em outro lugar: “O que tem fim não é duradouro e todos
os séculos termináveis, em comparação com a eternidade
interminável, são, não direi pequenos, mas nada” (Santo
1. TEMPO E ESCATOLOGIA EM Agostinho, A Cidade de Deus, 2. ed. Petrópolis, RJ./São
AGOSTINHO Paulo: Vozes/Federação Agostiniana Brasileira, 1990,
(Parte II), XII.12. p. 74).
6 Agostinho, Confissões, XI.13.16. p. 243.
7 Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus,
Curiosamente, um dos sérios (Patrística, 9/3), 1998, (Sl 101), Vol. III, p. 37.
problemas da filosofia é a questão 8 Agostinho, Confissões, XI.12.14. p. 242.
O tempo só pode ser avaliado a nem então será longo, porque ainda
partir de sua finitude, olhando o seu não existe nele aquilo que seja capaz de
passado ou desejando o seu futuro; o ser longo. Suponhamos que, ao menos,
presente “para ser tempo, tem neces- no futuro será longo. Mas só o pode-
sariamente de passar para o pretéri- rá começar a ser no instante em que
to....”.9 No entanto, não podemos falar ele nasce desse futuro – que ainda não
do “tempo passado” como “longo” ou existe – e se torna tempo presente, por-
“breve”, já que ele passou à condição que só então possui capacidade de ser
de não-ser, não podendo mais ser ca- longo. Mas com as palavras que acima
racterizado por estes acidentes. “To- deixamos transcritas o tempo presen-
dos os dias do tempo vêm para não te clama que não pode ser longo”.11 “A
existirem mais. Toda hora, todo mês, brevidade dos dias estende-se até o fim
todo ano: nada disso permanece. An- dos séculos. Brevidade porque a totali-
tes de vir, será; quando vier, não será dade do tempo, não digo de hoje até o
mais”.10 Como então nos referir a ele? fim dos séculos, mas de Adão até o fim
“Não digamos pois: ‘o tempo passado dos séculos, é uma exígua gota d’água,
foi longo’, porque não encontraremos se comparada à eternidade”.12
aquilo que tivesse podido ser longo, Que fazer então, com a lembrança
visto que já não existe desde o instan- e com a esperança? Bem, Agostinho
te que passou. Digamos antes: ‘aquele cria três formas de presente; diria que a
tempo presente foi longo’, porque só lembrança é o presente das coisas pas-
enquanto foi presente é que foi longo. sadas; o sonho é o presente das coisas
(...) Onde existe portanto o tempo que futuras e o que vejo, aspiro, toco, provo
podemos chamar longo? Será o futu- e ouço, é o presente do presente.13
ro? Mas deste tempo não dizemos que
11 Agostinho, Confissões, XI.15.18 e XI.15.20. p. 244 e
é longo, porque ainda não existe. Di- 245. Adiante acrescenta: “O futuro longo é apenas a longa
zemos: ‘será longo’. E quando será? Se expectação do futuro. Nem é longo o tempo passado porque
não existe, mas o pretérito longo outra coisa não é senão
esse tempo ainda agora está para vir, a longa lembrança do passado” (Agostinho, Confissões,
XI.28.37. p. 255).
9 Agostinho, Confissões, XI.14.17. p. 244. 12 Agostinho, Comentário aos Salmos, Vol. III, (Sl 101),
10 Agostinho, Comentário aos Salmos, Vol. III, (Sl 101), p. 36.
p. 37. 13 Vejam-se: Agostinho, Confissões, XI.20.26. p. 248.
58 | Revista F É P A R A H O J E
2. TEMPO E SOCIEDADE MEDIEVAL as classes iguais nos lugares mais di-
versificados da Europa, que permeou
a. Tempo e mobilidade geográfica e social o período de 800 até 1400. Todavia,
esta “estabilidade” seria “desestabili-
Dentro dos moldes de hoje, po- zada” gradativamente, especialmente
demos dizer que na Idade Média a partir do século XIII; quando sur-
havia uma sociedade estática, sem ge lenta, mas sistematicamente, uma
grande mobilidade social; onde as nova classe social, que não pode ser
transformações eram lentas nos di- enquadrada dentro do mundo her-
versos setores da vida cultural, social, mético medieval.
econômica e política. As maiores Nesta sociedade predominante-
mudanças, ironicamente, eram cau- mente agrícola, o poder e prestígio
sadas “por guerras, pragas e crises estavam associados à terra e, logi-
econômicas”.14 Cada pessoa esta- camente aos seus frutos. Dentro
va de certa forma presa a um papel desta perspectiva, um homem tinha
na ordem social, sem que houvesse pouquíssimas chances de ascender
perspectivas de mudança. A ingerên- socialmente, dificilmente podia mu-
cia do “Estado” era enorme na vida dar geograficamente de uma cidade
privada, havendo leis contra todos ou de um país para outro. Aliás, as
os “males” imagináveis. Ao mesmo cidades medievais definidas por suas
tempo, havia uma unidade cultural muralhas conferiam neste espaço
das elites, reconstruída pela Igreja fechado o senso fundamental de se-
por intermédio do latim, língua fa- gurança para os seus habitantes mas,
lada por toda a classe culta - língua também, proporcionavam uma gran-
que se tornou em “instrumento de de promiscuidade intelectual. Com
comunicação culta - e pela leitura poucas exceções, os servos deveriam
dos mesmos poucos livros controla- permanecer onde nasciam. Amiúde,
dos pelo clero –, que permitia haver até mesmo para não parecer diferen-
um modo de viver semelhante entre te dos outros, os homens não se sen-
tiam livres para usarem as roupas que
14 Robert G. Clouse; Richard V. Pierard; Edwin M.
Yamauchi, Dois Reinos – A Igreja e a Cultura interagindo quisessem ou mesmo, para comer o
ao longo dos séculos, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. que gostassem.
207.
60 | Revista F É P A R A H O J E
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A História revela Deus e seus pro-
TEMPO E ESCATOLOGIA E A pósitos (Rm 8.28-30; 13.12; At 1.6,7).
VIVÊNCIA DE NOSSA FÉ Entendemos a escatologia como uma
consumação “natural” do plano de
Gilson (1884-1978) ressaltando a Deus na sua historificação temporal.
importância de Agostinho, afirma que A Escatologia é precedida de uma his-
após ele, “a Idade Média passou a re- tória realizada; e a história aponta para
presentar a história do mundo como uma escatologia decisiva. Desta forma,
um belo poema, cujo sentido é para olhando pelo prisma da escatologia,
nós inteligível e completo, contanto podemos dizer que a história é esca-
que conheçamos seu início e seu fim”.15 tológica, visto que para lá ela caminha
De fato, a perspectiva de Agos- de forma progressiva e realizante: A
tinho adquire um tom escatológico: história consumar-se-á na não história,
“.... pois nada parece mais rápido no atemporal e eterno. Por outro lado, a
do que tudo aquilo que já passou. escatologia confere sentido à história; a
Quando vier o dia do juízo, então os fé da Igreja respalda-se num fato histó-
pecadores perceberão não ser longa a rico e nutre-se da esperança que emana
vida que passa”.16 da promessa de Deus: “A esperança (...)
62 | Revista F É P A R A H O J E
AJUDE O MINISTÉRIO ADOTE
UM PASTOR A ABENÇOAR VIDAS
INTERCEDENDO
Uma das principais necessidades do MAP é a oração. O
ministério será ricamente abençoado se, regularmente,
você se dispuser a orar por todos os envolvidos no MAP.
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deste ministério. Sua ajuda atingirá não somente a vida
do pastor, mas toda a comunidade ao seu redor.
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nos auxiliem na tarefa de divulgar este ministério. Você
poderá nos ajudar apresentando o MAP em sua igreja,
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64 | Revista F É P A R A H O J E
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fascinantes e fatos marcantes ocorridos no período da Igreja Primitiva, Idade Média,
Reforma e Igreja Contemporânea serão apreciados ao longo de 4 módulos.
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