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FILOSÓFIA DA PÓS MODERNIDADE

Capitulo I
Os precursores da Filosofia da Pós-Modernidade (Nietzsche Heidegger, Hegel
e Marx)

«Deus está morto! Eis que lhes mostro o super-homem.» Assim dizia Nietzsche, o filósofo
alemão do século XIX, ao abrir caminho para o pós-modernismo.

Que é o pós-modernismo?

O uso do termo se tornou corrente embora haja controvérsias quanto ao seu significado e a sua pertinência.

Antes de definir o termo, precisamos compreender o modernismo.


A Modernidade nasce sob o signo da liberdade. O homem é livre porque não está mais à mercê do
obscurantismo da religião, mas é capaz de entendimento. A filosofia e a ciência, e não mais os
mitos, definiam o verdadeiro. O homem livre era aquele que conhecia a verdade racionalmente
concebida e por ela definia o seu destino.
Numa palavra, modernismo é o movimento que enfatizava a razão e que se expressava mais
plenamente através da ciência. Começando com filósofos como Locke, Kant e Hegel, o
modernismo procurou compreender o mundo através da razão. Cientistas como Bacon e Newton
consideravam a realidade física como operando na base de leis naturais. Eles formularam uma
ciência moderna que é empírica em sua metodologia e racional em sua interpretação.
O iluminismo do século XVIII procurou aplicar a razão e a ciência a toda a realidade.
O século XIX testemunhou os esforços de Henry Buckle, August Comte e Karl Marx em
transformar o estudo da sociedade moderna, tanto passada como presente, em disciplinas que
descobririam leis semelhantes às que foram achadas no mundo natural. O século XX enfatizou a
aplicação da metodologia científica a estudos acadêmicos. Como resultado, o modernismo trouxe
degradação do ambiente, totalitarianismo em nome da ciência, guerras mundiais usando a
tecnologia mais moderna e destruição nuclear.
Assim, a razão e a ciência não levaram a um paraíso. Não é de se admirar que houve reações
contra o modernismo. Uma destas reações é o pós-modernismo.

Portanto a Filosofia pós-moderna é um conjunto de estudos críticos realizados entre 1950 e 1970 ou
1980, que indeferiu, em parte, as tendências universalistas e racionalista da filosofia moderna, ou
procurou distanciar-se para uma melhor análise. Ela se aplica as obras e movimentos herdados dos
grandes pensadores da suspeita do final do século XIX e início do XX (Nietzsche Heidegger,
Hegel e Marx) sendo cética frente a implementação tradicional do discurso em Filosofia,
Literatura, Política, Ciência, etc.

A pós-modernidade tem passado por duas fases relativamente distintas: a primeira começando em
1950 e terminando com a Guerra Fria (quando a mídia analógica com a banda limitada era
monopolizada por grupos estatais de mídia autoritários) e a segunda começou no início do fim da
Guerra Fria (marcado pela popularização da televisão à cabo e a "nova mídia" baseada em
significados digitais de disseminação de informação e transmissão).

A segunda fase da pós-modernidade é definida pela "digitalidade" - o aumento do poder individual


e a descentralização digital através dos meios de comunicação (máquinas de fax, modems, cabo e
internet de alta velocidade) que alteraram a condição da pós-modernidade dramaticamente:
produção digital de informação passa a permitir que indivíduos selecionem e manipulem
virtualmente todo aspecto do ambiente da mídia. Isso tem levado produtores e consumidores a
conflitos relacionados ao capital intelectual e vem permitindo a criação de uma nova economia
defendida como sendo capaz de alterar fundamentalmente a sociedade devido à queda drástica dos
custos gerados pela criação da informação.

Segundo o francês Jean-François Lyotard, a "condição pós-moderna" caracteriza-se pelo fim


das metanarrativas. Os grandes esquemas explicativos teriam caído em descrédito e não haveria
mais "garantias", posto que mesmo a ciência já não poderia ser considerada como a fonte da
verdade. Lyotard ainda argumentou que várias metanarrativas de progresso, tais como a
ciência positivista, o marxismo e o estruturalismo foram extintos como métodos de alcançar
progresso.

Para o crítico marxista norte-americano Fredric Jameson, a Pós-Modernidade é a "lógica cultural


do capitalismo tardio", correspondente à terceira fase do capitalismo, conforme o esquema proposto
por Ernest Mandel.

Outros autores preferem evitar o termo. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, um dos principais
popularizadores do termo Pós-Modernidade no sentido de forma póstuma da modernidade,
atualmente prefere usar a expressão "modernidade líquida" - uma realidade ambígua, multiforme,
na qual, como na clássica expressão do manifesto comunista, tudo o que é sólido se desmancha no
ar.

O filósofo francês Gilles Lipovetsky prefere o termo "hipermodernidade", por considerar não ter
havido de fato uma ruptura com os tempos modernos - como o prefixo "pós" dá a entender.
Segundo Lipovetsky, os tempos atuais são "modernos", com uma exacerbação de certas
características das sociedades modernas, tais como o individualismo, o consumismo,
a ética hedonista, a fragmentação do tempo e do espaço.

Já o filósofo alemão Jürgen Habermas relaciona o conceito de Pós-Modernidade a tendências


políticas e culturais neoconservadoras, determinadas a combater os ideais iluministas.

1- Nietzsche: Realidade é o que você cria.

Nietzsche é por vezes considerado o pai ou precursor do pós-modernismo. Anunciando que Deus
estava morto, Nietzsche salientava que não havia mais fundamento para as coisas, nenhuma base
sobre a qual colocar nossas crenças. Portanto, seres humanos têm tanto a oportunidade como a
responsabilidade de criar seu próprio mundo.
Mas há um problema. Nietzsche disse que o conhecimento de coisas conforme realmente existem, é
impossível. O que pensamos ser conhecimento é uma criação humana, uma ilusão ou uma
formulação artística. A linguagem através da qual expressamos nosso conhecimento é um mundo à
parte, inteiramente distinto da realidade externa e puramente arbitrário em sua formação. O que
chamamos verdade, portanto, é uma invenção humana.

2- Heidegger: Realidade é ser.

Uma segunda figura a influenciar o pós-modernismo foi Martin Heidegger, o filósofo alemão do
século XX. Concordando essencialmente com Nietzsche que a linguagem cria a realidade,
Heidegger desenvolveu muito de sua compreensão da linguagem a partir de exemplos artísticos e
mantinha uma opinião mística, talvez até religiosa, com respeito à linguagem. Em vez de analisar a
linguagem, ele queria afinal experimentá-la, e através desta experiência chegar em contato com o
“ser”.

- Foucault: realidade é uma liberação contínua.


No período após a Segunda Guerra, um número de pensadores franceses foi atraído às idéias de
Nietzsche e Heidegger. Destes, Michel Foucault e Jacques Derrida são os mais influentes para o
desenvolvimento do pós-modernismo. Sendo que conhecimento é a tentativa de controlar e
sujeitar, Foucault argumentava, não pode ser objetivo. Portanto, Foucault argumentava, o
intelectual precisa desafiar esta ordem num programa contínuo de liberação. A linguagem através
da qual o conhecimento é expresso é somente discurso, palavras e idéias reagindo com outras
palavras e idéias, em vez de reagir com coisas em si; assim ela permite que um discurso existente
desafie um discurso oposto. Portanto, Foucault se alinhava com grupos excluídos ou marginais,
particularmente homossexuais, para subverter a ordem existente. Mas se um destes grupos
marginais se tornasse dominante, ele estava pronto para se aliar com outro grupo marginal para se
opor à ordem opressiva recém-criada.

- Derrida: Não há sentido evidente.

Jacques Derrida também se preocupa com linguagem. Uma vez que não temos uma visão
imediata da realidade, dependemos do falar e do escrever. Mas falar e escrever são ambíguos e
não comunicam necessariamente o que gostaríamos. Derrida propôs “decompor” textos
(desconstrução), o que inclui analisar a etimologia de palavras, trocadilhos não intencionais e
deslizes freudianos no esforço de demonstrar que eles não contêm nenhum sentido óbvio.
Apesar das diferenças importantes entre estes quatro pensadores, eles lançaram as bases
filosóficas para o pós-modernismo através de suas contribuições primárias:
1º - Os seres humanos não têm acesso à realidade e, portanto, nenhum meio de perceber a
verdade.
2º - A realidade é inacessível porque somos restritos a uma linguagem que molda nossos
pensamentos antes de pensarmos e porque não podemos expressar o que pensamos.
3º - Através da linguagem criamos a realidade, e assim a natureza da realidade é
determinada por quem quer que tenha o poder de moldar a linguagem.

5- Hegel e Marx: História e emancipação.

A noção de história assume um lugar absolutamente central no projeto de emancipação de Marx.


Muito embora, ele não tenha sistematizado uma teoria da história, nos deixando apenas alusões
dispersas. Essa importância atribuída à história é uma influência de Hegel. A posição de ambos com
relação a esta noção é conhecida como historicismo, sendo a filosofia hegeliana considerada sua
linha mestra. O historicismo tem duas características básicas.
- A primeira é considerar que o conhecimento de qualquer coisa ou de qualquer fenômeno
exige que se refira à história. Tudo o que existe é percebido do ponto de vista da história e é
realmente história. Isso significa que nada pode ser compreendido fora da história. Hegel
afirmava: “tudo é história”. Marx seguindo os seus passos vai afirmar que “só reconhece uma
ciência, a ciência da história”.
- A segunda característica é uma tendência para captar a natureza, a sociedade e o homem em
constante movimento, nas suas mutações contínuas.

A obra de Hegel (1770-1831) foi fundamental para o pensamento de Marx (1818-1883). Desde que
a filosofia pretende a universalidade, o filósofo procura ver o todo. A noção de totalidade está
implícita em todas as filosofias da história. A filosofia da história de Marx é denominada
materialismo histórico. O principal objetivo do materialismo histórico é explicitar as causas que
governam a direção da mudança histórica.
Para Marx, a base da mudança é material: é a economia, o trabalho humano. O materialismo
histórico, como todo o historicismo é uma teoria da mudança histórica. Embora as causas dessa
mudança sejam radicalmente diferentes das filosofias da história anteriores (filosofias idealistas), o
materialismo histórico, como aquelas, sustenta que as mudanças que ele quer explicar possuem um
sentido determinado. Marx explica o passado, diagnostica o presente e estabelece os objetivos a
serem atingidos no futuro: “se percorrermos o desenvolvimento do próprio Marx, vemos que ele
traduz as teorias econômicas em linguagem nitidamente hegeliana, o que significa que o negado - a
filosofia - permanece conservado na negação. Portanto, sua obra implica a filosofia que ele
expressamente recusa” (OLIVEIRA, Manfredo. Op. cit., p. 13). Antevendo o futuro, Marx elabora
um projeto de emancipação para a humanidade. Este projeto se realizaria ao longo da história e
consistia em levar a termo a história inconclusa da liberdade humana. O homem seria, ao final,
um sujeito emancipado. O que significa: fim das desigualdades e livre desenvolvimento das
potencialidades humanas. O marxismo, afirma Loparic, “é essencialmente uma utopia que prevê
duas coisas: a supressão efetiva da desigualdade e o conseqüente livre desenvolvimento das forças
humanas” . A história é a realização dessa liberdade, dessa emancipação de tudo o que impede o
homem de desenvolver-se livremente. Com relação à liberdade, portanto, podemos extrair duas
conclusões:
- liberdade só pode ser compreendida na história;
- liberdade se realiza na história mas não está dada de antemão, embora possamos
antevê-la.
No entanto, enquanto para Hegel, a história tinha chegado ao seu ápice com o Estado prussiano,
Marx constata que a história da liberdade não está concluída. Ele é um crítico parcial da
modernidade: embora louve nesta época histórica o desenvolvimento tecnológico, aponta os seus
obstáculos para a realização humana. No capitalismo, segundo ele, vivemos o máximo da
contradição histórica entre desenvolvimento das forças produtivas e apropriação da riqueza
produzida. O fim da história seria o comunismo.
A história é a história da humanidade. A emancipação final não será apenas de um povo, mas da
humanidade. Ao final, as contradições fundamentais estarão resolvidas e a espécie humana estará
unificada: “e então a libertação de cada indivíduo singular é alcançada na mesma medida em que
a história transforma-se completamente em história mundial” (MARX e ENGELS, 1987, p. 54).
A história tem uma lógica, tem etapas que podemos apreender, por isso é possível prever o futuro.
Essa é uma história racional. Uma história em que a causalidade estabelece as ligações entre os
acontecimentos e é responsável pelo seu caráter contínuo. A história prossegue numa dialética de
liberdade e necessidade. As contingências não afetam o ponto de partida e o resultado do processo.
Essa é, portanto, uma história necessária. Uma história que segue o seu curso como um dever-ser. O
que é, é o que devia ser, como afirmava Hegel. Essa é também uma história teleológica. A história
tem um sentido e caminha para um fim determinado. A história tem um desenvolvimento
necessário que encaminha a humanidade para o seu fim. Um fim que unificará a espécie humana.
Esse fim seria o comunismo. A história marxista é uma antevisão do destino da humanidade.

- Critica de Foucault, Lyotard

A filosofia da história de Marx foi criticada pelos pós-modernos (Heidegger, Foucault, Lyotard),
mas também por marxistas (Benjamin, Marcuse, Adorno e Horkheimer) e ex-marxistas
(Habermas). Vejamos algumas dessas críticas: O discurso pós-moderno rejeita não apenas a teoria
totalizante do marxismo, mas também a do hegelianismo, do cristianismo e de “qualquer outra
filosofia da história baseada em noções de causalidade, em soluções totais que tudo englobam a
respeito do destino humano” (GIROUX, 1993). Essa rejeição das noções de totalidade e das
narrativas mestras significa a rejeição dos fundamentos, da ontologia que elas pressupõem. Como
afirmar que a liberdade vem de uma única causa: econômica, social ou política? Perguntam-se
os pós-modernos. Não podemos identificar as coordenadas originárias, respondem. Não há,
portanto, um fio condutor capaz de dar inteligibilidade à história, nenhuma ligação intrínseca entre
os acontecimentos, pois não há uma história única, mas inúmeras histórias particulares. É nesse
sentido que se referem à ‘pós-história’ ou ‘dissolução da história. A idéia de que a história tem um
sentido e no seu curso garantirá a emancipação humana é uma idéia metafísica que não se sustenta
empiricamente.

Referências

1. A aula é baseada em Allan Megill, Prophets of Extremity: Nietzsche, Heidegger, Foucault,


Derrida (Berkeley: University of California Press, 1985).
2. Zygmunt Bauman, “Postmodernity, or Living With Ambivalence”, em Natoli e Hutcheon,
pág. 11.
Cap II : LYOTARD, Jean-François E A PÓS-MODERNIDADE

Neste capítulo será apresentada a categoria da pós-modernidade considerando os


estudos realizados por Lyotard na sua obra A condição pós-moderna. Desenvolverá-se o
conceito de pós-modernidade como descrença nos grandes relatos da modernidade e sua
substituição pelos pequenos relatos, bem como a substituição do consenso próprio da
modernidade pelo dissenso e pela paralogia características da pós-modernidade. Será
feito também uma reflexão crítica e conclusiva sobre as fronteiras desse universo pós-
moderno e o capital contemporâneo.

INTRODUÇÃO:

No seu livro A condição pós-moderna, Lyotard esclarece que o objeto de seu estudo é a
situação do saber nas sociedades mais desenvolvidas, a qual decidiu chamar ‘pós-
moderna’, palavra usada no continente americano pela sociologia e pela crítica e que
designa a cultura após as transformações ocorridas em relação à crise dos grandes
relatos e que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes no final do
século XIX. A crise dos relatos inicia com a sua transformação em fábula pela ciência.
Por não serem meramente instrumentais e buscarem a verdade, os relatos legitimam, no
entanto, as suas próprias regras, transformando-se em filosofia e, com isso, se
autolegitima como metadiscurso e passa a se chamar de ciência moderna. Daí, a
suposição da racionalidade universal possibilitar o consenso acerca de um enunciado
que contém um juízo verdadeiro, como, por exemplo, a paz universal proposta no
projeto Iluminista. O saber é legitimado por um ‘metarrelato’ que implica em uma
filosofia da história com conceitos de justiça e verdade pré-determinados. O livro de
Lyotard se propõe, precisamente, a desvendar os caminhos da deslegitimação das
grandes narrativas modernas como passaremos a demonstrar.

I - A condição Pós-moderna

PÓS-MODERNIDADE: DESLEGITIMAÇÃO DOS GRANDES RELATOS DA


MODERNIDADE.

A pós-modernidade caracteriza-se justamente pela descrença nesses ‘metarrelatos’


relacionados à metafísica e a universidade e legitimados pelo progresso científico. A
grande narrativa, portanto, se transforma em um simples universo lingüístico
pragmático que não é, necessariamente, comunicável. Nas palavras de Lyotard:
considera-se ‘pós-moderna’ a incredulidade em relação aos ‘metarrelatos’. É, sem
dúvida, um efeito do progresso das ciências, mas este progresso, por sua vez, a supõe.
Ao desuso do dispositivo metanarrativo de legitimação corresponde sobretudo a crise da
filosofia metafísica e a da instituição universitária que dela dependia (LYOTARD,
1993, p. 3). (Grifos nossos). Na sociedade pós-moderna, sem a crença nas grandes
narrativas, existe uma diversidade de jogos de linguagem, onde os que têm poder de
decisão determinam que a vida só tenha por objetivo o aumento da eficácia. A vida fica
reduzida ao aumento do poder e o papel da justiça social e da verdade científica é o de
otimizar as performances e a eficácia do sistema. O critério da eficiência generaliza-se
por todos os jogos da vida.

Lyotard pondera sobre o sentido da nova legitimidade do melhor desempenho diante da


descrença das ‘metanarrativas’, refletindo que a condição pós-moderna não é somente
um instrumento para o exercício do poder, mas ela traz uma possibilidade de
refletirmos criticamente sobre a imprevisibilidade do real, contrária ao consenso
conservador dos especialistas: «A condição pós-moderna é, todavia, tão estranha ao
desencanto como à positividade cega da deslegitimação. Após os ‘metarrelatos’, onde se
poderá encontrar a legitimidade? O critério de operatividade é tecnológico; ele não é
pertinente para se julgar o verdadeiro e o justo. Seria pelo consenso, obtido por
discussão, como pensa Habermas? Isto violentaria a heterogeneidade dos jogos de
linguagem. E a invenção se faz sempre no dissentimento. O saber pós-moderno não é
somente o instrumento dos poderes. Ele aguça nossa sensibilidade para as diferenças e
reforça nossa capacidade de suportar o incomensurável. Ele mesmo não encontra sua
razão de ser na homologia dos experts, mas na paralogia dos inventores » (LYOTARD,
1993, p. xvii). A hipótese de trabalho de Lyotard “é a de que o saber muda de estatuto
ao mesmo tempo em que as sociedades entram na idade dita pósindustrial e as culturas
na idade dita pós-moderna” (LYOTARD, 1993, p. 3). Segundo o autor, não é fácil ter
um quadro desse período, pois esta mudança social começou por volta do final dos anos
50, época do fim da reconstrução da Europa, variando de país para país e de atividade
para atividade. Dada essa imprecisão, Lyotard não parte de um quadro geral da época do
surgimento do pós-moderno e sim de uma característica do seu objeto de estudo, o saber
nas sociedades desenvolvidas e chama a atenção para o fato do saber científico ser
somente mais uma espécie de discurso, dentro da visão deslegitimante das
‘metanarrativas’, bem como para o fato das ciências e das técnicas de vanguarda, nos
últimos tempos, versarem sobre a linguagem. Por isso há que se considerar a influência
das informações tecnológicas e das máquinas informacionais sobre o saber, tanto na sua
produção e pesquisa, quanto na sua transmissão. Essa transformação geral não deixará
intacta a natureza do saber. Este “não pode se submeter aos novos canais, e tornar-se
operacional, a não ser que o conhecimento possa ser traduzido em quantidades de
informação” (Ibid., p. 4). O conhecimento se apartará do sujeito cognoscente e, com
isto, modificará o princípio da formação moderna (Bildung) que avaliava o saber como
algo constitutivo do sujeito: pode-se então esperar uma explosiva exteriorização do
saber em relação ao sujeito que sabe [...], em qualquer ponto que este se encontre no
processo de conhecimento. O antigo princípio segundo o qual a aquisição do saber é
indissociável da formação (Bildung) do espírito, e mesmo da pessoa, cai e cairá cada
vez mais em desuso (Ibid., p. 4).

II- Mercantilização do Saber

Outra modificação desse novo universo do saber é a sua transformação radical em valor
como mera mercadoria. O saber terá como objetivo da sua produção, o mercado e a
troca, tornando secundário o seu valor de uso. Nos últimos decênios, o saber se
transformou na principal força de produção e elemento econômico decisivo das
populações produtivas nos países desenvolvidos e sua ausência um ponto de
estrangulamento para os países em desenvolvimento. Dessa forma, Na idade pós-
industrial e pós-moderna, a ciência conservará e sem dúvida reforçará ainda mais sua
importância na disputa das capacidades produtivas dos Estados-nações. [...]. Sob a
forma de mercadoria informacional indispensável ao poderio produtivo, o saber já é e
será um desafio maior, talvez o mais importante, na competição mundial pelo poder. Do
mesmo modo que os Estados-nações se bateram para dominar territórios, e com isto
dominar o acesso e a exploração das matérias-primas e da mão-de-obra barata, é
concebível que eles se batam no futuro para dominar as informações. Assim encontra-se
aberto um novo campo para as estratégias industriais e comerciais e para as estratégias
militares e políticas (Ibid., p. 4). Agora, o que é decisivo na circulação de um
conhecimento não é a sua capacidade de retirar alguém da ignorância e sim sua
potencialidade de melhorar a performance e o desempenho de uma dada mão-de-obra
para a melhoria do processo produtivo. Em outras palavras, para Lyotard houve uma
mercantilização generalizada do saber. A hipótese de trabalho de Lyotard, modificação
do estatuto do saber na sociedade pós-industrial e cultura pós-moderna ou sociedade
informatizada, não pretende ser original nem verdadeira, mas busca possibilitar a
capacidade de discernimento sobre as sociedades informatizadas mais desenvolvidas,
para iluminar certos aspectos da formação do saber e dos seus efeitos sobre o poder
público e as instituições civis (Ibid., p. 11). Questiona, de forma radical, o progresso das
ciências e das técnicas com seu correspondente crescimento econômico e
desenvolvimento sócio-político e admitida a acumulação do saber técnico e científico, o
máximo que se discute é a sua forma. Ademais, a crença na acumulação do saber
científico é falaciosa, pois o saber científico não é “o” sinônimo de saber. Há uma outra
importante espécie de saber que é o narrativo (Ibid., p. 12). O saber científico está
intimamente ligado à legitimação compreendida como um processo pelo qual um
legislador é autorizado a promulgar uma lei como norma: O direito de decidir sobre o
que é verdadeiro não é independente do direito de decidir sobre o que é justo, mesmo se
os enunciados submetidos respectivamente a esta e àquela autoridade forem de natureza
diferente. É que existe um entrosamento entre o gênero de linguagem que se chama
ciência e o que se denomina ética e política: um e outro procedem de uma mesma
perspectiva ou, se preferir, de uma mesma ‘opção’, e esta chama-se Ocidente (Ibid., p.
12). Dessa forma, pode-se afirmar que o estatuto atual do saber científico é de
subordinação aos países poderosos, e com as novas tecnologias corre o risco ainda
maior de transformar-se em um dos principais elementos de seus embates. Isso exige o
exame apurado daquela dupla legitimação, que na sua forma mais originária evidencia
saber e poder como uma só questão: “quem decide o que é saber, e quem sabe o que
convém decidir? O problema do saber na idade da informática é mais do que nunca o
problema do governo” (Ibid., 13). O referencial teórico-metodológico utilizado na
investigação lyotardiana acerca do saber na sociedade pós-moderna é o pensamento de
Wittgenstein com sua ênfase nos fatos de linguagem e seus aspectos pragmáticos (Ibid.,
p. 15). Lyotard apóia-se no discurso wittgensteiniano que se centraliza nos efeitos dos
discursos e nos diversos tipos de enunciados ou jogos de linguagem, os quais são
determinados por regras específicas. Nos jogos de linguagem as regras não têm
legitimação por elas próprias, mas por um acordo exterior a elas feito pelos jogadores.
Se não há regra, não há jogo, sendo que qualquer modificação em uma regra existente
modifica o jogo. Enfim, todo enunciado lingüístico é um lance no jogo.

III - A Legitimação e os Jogos de Linguagem

Dois princípios norteiam o procedimento metodológico na análise lyotardiana.

O primeiro “é que falar é combater, no sentido de jogar, e que os atos de linguagem


provêm de uma agonística geral” (Ibid., p. 17). Mesmo que não se jogue somente para
ganhar, tem um gosto de luta o prazer da invenção de palavras novas e a criação de
novos sentidos, que fazem a evolução da língua.

O segundo princípio, fundamental e complementar ao primeiro, “é que o vínculo social


observável é feito de ‘lances’ de linguagem” (ibid., p. 17). Na leitura lyotardiana, a
linguagem como vínculo social é uma alternativa pós-moderna. A Modernidade,
diversamente, tinha outros parâmetros para a representação desse vínculo social.

Dois exemplos significativos estão na representação social de dois modelos do final do


século XIX, o Funcionalismo com sua harmonia social e o Marxismo com o princípio
da luta de classes e a dialética (Ibid., p. 20). Para entender o estado atual do saber nas
sociedades industriais avançadas é preciso conhecer a sociedade na qual ele se insere.
Dessa forma, pode-se afirmar que o rumo econômico na atual fase capitalista, mediante
o desenvolvimento tecnológico, redefine o papel do Estado. Nessa sociedade
contemporânea as decisões não caberão mais às classes políticas dirigentes e sim a
especialistas que têm acesso aos autômatos, máquinas cibernéticas detentoras das mais
importantes informações. A economia agora largamente determinada pela tecnologia,
muda as funções dos Estados, e isso exige novas alternativas sociais, as quais se
distanciam do marxismo e do socialismo, tidos agora como superados. (Cf. LYOTARD,
1993, p. 27). O que tem de novo nesta realidade social é a recusa dos instrumentos
políticos e coletivamente representativos tradicionais. Bem como a perda da referência
dos grandes ideais. Dessa forma, os antigos pólos de atração formados pelos Estados-
nações, os partidos, os profissionais, as instituições e as tradições históricas perdem seu
atrativo. [...]. As ‘identificações’ com os grandes nomes, com os heróis da história
atual, se tornam difíceis. [...]. Pois não se trata verdadeiramente de uma finalidade de
vida. Esta é deixada à diligência de cada cidadão. Cada qual é entregue a si mesmo. E
cada qual sabe que este si mesmo é muito pouco (Ibid., p. 28). Nesse âmbito, então, se
dilui a idéia de coletividade, norteadora do período moderno, assomando em seu lugar o
princípio individualista. Esse individualismo, surgido da decomposição das grandes
narrativas modernas que tinham a referência de um ideal coletivo, não implica
necessariamente, na obra de lyotard, em uma dissolução do vínculo social. É somente
uma nova forma de vínculo social que por vezes é criticada mais por um sentimento de
nostalgia: Desta decomposição dos grandes Relatos, [...], segue-se o que alguns
analisam como a dissolução do vínculo social e a passagem das coletividades sociais ao
estado de uma massa composta de átomos individuais [...]. Isto não é relevante, é um
caminho que nos parece obscurecido pela representação paradisíaca de uma sociedade
‘orgânica’ perdida (Ibid., p. 28). Dessa forma, o átomo individual é pouco, mas não está
sozinho, pois o tempo todo é atravessado por mensagens diferenciadas constitutivas de
novos vínculos sociais . Além do que, este ‘si mesmo’ não é um ser passivo, pois tem
sempre um poder sobre essas mensagens que o atravessam: é remetente, destinatário ou
referente. E seu deslocamento em meio aos jogos de linguagem é tolerado e suscitado
pelo próprio sistema, com a finalidade de melhorar seu próprio desempenho como
sistema.

Na análise lyotardiana, os jogos de linguagem foram propostos como método geral de


conhecimento do saber na sociedade pós-moderna. A linguagem é o vínculo social
nessa nova fase das sociedades desenvolvidas e assume um novo estatuto, tanto por que
a comunicação nessa fase histórica tornou-se central, bem como porque a linguagem se
diferencia da forma que tinha antes, na época moderna: nem manipula, nem
simplesmente informa: numa sociedade em que a componente comunicacional torna-se
cada dia mais evidente, simultaneamente como realidade e como problema, é certo que
o aspecto de linguagem [...] adquire uma nova importância, que seria superficial reduzir
à alternativa tradicional da palavra manipuladora ou da transmissão unilateral de
mensagem, por um lado, ou da livre expressão ou do diálogo, por outro (Ibid., p. 29).
Na teoria da comunicação contemporânea, as mensagens têm formas e efeitos diversos
– são denotativas, prescritivas, avaliativas, performativas, etc. – e não funcionam apenas
comunicando informação. Assim, “reduzi-las a esta função é adotar uma perspectiva
que privilegia indevidamente o ponto de vista do sistema e seu único interesse. Pois é a
máquina cibernética que funciona pela informação” (Ibid., p. 30). Há que se levar em
consideração o aspecto agonístico da linguagem que não está presente na informática,
mas que constitui o vínculo social alicerçado pela linguagem.

IV - Vínculo Social

A abordagem das instituições contemporâneas do saber deve seguir essa perspectiva da


linguagem como vínculo social que não se limita somente a informar burocraticamente,
mas que constitui um jogo de linguagem com seus elementos agonísticos: “O que é
preciso para compreender desta maneira as relações sociais, em qualquer escala [...],
não é somente uma teoria da comunicação, mas uma teoria dos jogos, que inclua a
agonística em seus pressupostos” (Ibid., p. 30). Além do que, esse novo referencial da
linguagem na abordagem do saber contemporâneo pós-moderno se distingue da
linguagem na Modernidade, que era burocrática e castradora dos lances lingüísticos.
Nas palavras de Lyotard: “Esta ‘atomização’ do social em flexíveis redes de jogos de
linguagem pode parecer bem afastada de uma realidade moderna que se representa antes
bloqueada pela artrose burocrática” (Ibid., p. 31). Lyotard inicia a análise da pragmática
do saber narrativo apresentando duas objeções já formuladas à aceitação acrítica do
conceito instrumental do saber nas sociedades mais desenvolvidas: o saber não se reduz
à ciência e esta não esconde o problema de sua legitimidade. Em seguida, o autor define
a natureza do saber narrativo, o que permitirá um exame comparativo com as
características do saber científico na sociedade contemporânea e sua legitimidade.
(Ibid., p. 35).

Vimos que, ao definir o saber em geral, Lyotard deixa claro que este saber não se reduz
à ciência e nem mesmo ao conhecimento como conjunto de enunciados denotativos ou
descritivos que podem ser declarados verdadeiros ou falsos. A ciência, por sua vez, seria
um subconjunto do conhecimento. No entanto, o conceito de saber é mais amplo: uma
mistura de ‘idéias de saber-fazer, saber-viver, de saber-escutar’. Trata-se de um
conjunto de competências que se encontra além das preocupações com o critério único
de verdade, pois se estende aos “critérios de eficiência (qualificação técnica), de justiça
e/ou de felicidade (sabedoria ética), de beleza sonora, cromática (sensibilidade auditiva,
visual), etc.” (Ibid., p. 36). Saber, portanto, coincide com ‘formação’ de competências.
Já na formulação do saber tradicional prevalece a forma narrativa que tem no relato a
sua composição por excelência, e, diversamente das formas desenvolvidas dos discursos
de saber, admite nela mesma uma pluralidade de jogos de linguagem. A narrativa da
transmissão dos relatos obedece às regras fixadas pela pragmática: a tradição dos relatos
é ao mesmo tempo a dos critérios que definem uma tríplice competência – saber-dizer,
saber-ouvir, saber-fazer – em que se exercem as relações da comunidade consigo
mesma e com o que a cerca. O que se transmite com os relatos é o grupo de regras
pragmáticas que constitui o vínculo social (Ibid, p. 40). (Grifo nosso). Enquanto a
pragmática da narrativa popular é auto legitimante, a legitimidade é um jogo de
linguagem ocidental que tem como referente o jogo interrogativo por intermédio dos
relatos que, por sua vez, determinam os critérios de competência e o direito de o quê
dizer e fazer na cultura (Ibid., p. 42). Inicialmente, Lyotard indica cinco propriedades do
saber científico clássico: é um jogo de linguagem isolado que exclui outros e que tem
como critério de aceitabilidade o valor de verdade; não é mais imediato e partilhado
como o saber narrativo, pois se torna profissão e funda instituições, fazendo surgir o
problema da relação entre instituição científica e sociedade; no jogo da pesquisa a
competência requerida é somente do enunciador; um relato científico não é válido
sozinho, pois necessita de provas e pode sempre ser ultrapassado por novas descobertas
que exigem novas provas; o jogo da ciência pressupõe uma temporalidade diacrônica,
ou seja, a produção de novos conhecimentos supõe conhecimentos anteriores que vão se
acumulando. Lyotard lembra que estas propriedades são conhecidas, mas precisam ser
relembradas para salientar a diferença entre o saber científico e o narrativo, bem como a
importância de ambos: de início, o paralelismo da ciência com o saber não científico
(narrativo) faz compreender, [...], que a existência da primeira é tão necessária quanto a
da segunda, e não menos. Uma e outra são formadas por conjuntos de enunciados; estes
são ‘lances’ apresentados por jogadores no quadro das regras gerais; estas regras são
específicas de cada saber, e os ‘lances’, considerados bons aqui ou ali, não podem ser da
mesma espécie, salvo por acaso (Ibid., p. 48).

Na pós-modernidade, por um lado, é estabelecida a igualdade em importância dos dois


saberes e Lyotard defende que este fato deve trazer alegria e não nostalgia: “Há, apenas,
que se admirar com esta variedade de espécies discursivas, [...]. Lamentar-se sobre ‘a
perda do sentido’ na pósmodernidade seria deplorar que o saber não seja mais
principalmente narrativo”. (Ibid., p. 49). (Grifo nosso). Por outro lado, é uma
inconseqüência derivar o saber científico do saber narrativo. Como se a narrativa
contivesse a ciência em estado embrionário (Ibid., p. 49).
O fato do discurso narrativo se autolegitimar pela pragmática de sua transmissão, sem
necessitar de argumentação e administração de provas, faz que o cientista clássico o
classifique como sendo: selvagem, primitivo, subdesenvolvido, atrasado, alienado, feito
de opiniões, de costumes, de autoridade, de preconceitos, de ignorâncias, de ideologias.
Os relatos são fábulas, lendas, mitos bons para as mulheres e as crianças. Nos melhores
casos, tentar-se-á fazer penetrar a luz neste obscurantismo, civilizar, educar,
desenvolver (Ibid., p. 49). Tal disparidade, segundo o autor, é determinada pelo
imperialismo cultural do Ocidente e é comandada pela exigência de legitimação (Ibid.,
p. 50).

A ciência moderna recorre ao relato narrativo para a sua própria legitimação. O conflito
entre o saber científico e a narrativa está presente desde o jogo de linguagem dos
Diálogos platônicos, na qual existe uma pragmática da ciência que já inclui a dupla
função de pesquisa e ensino. Nos escritos de Platão já estão presentes: a argumentação
em busca do consenso, o acordo como resultado de um único referente, a paridade dos
participantes, o reconhecimento de que se trata de um jogo, não de um destino, que
exclui os que não aceitam suas regras (Ibid., p. 53). Lyotard chama atenção para o
paradoxo de que o discurso platônico, que inaugura e legitima a ciência, não ser
científico. O saber científico, para saber e dizer que é verdadeiro, precisa recorrer ao
relato, à narração, que é para a ciência o não-saber. Do contrário, teria que se pressupor
a si mesmo, numa petição de princípio.

Novas questões para a legitimação: A ciência moderna traz duas novas questões para
a legitimação: como provar a prova e quem decide o que é verdadeiro? A resposta é
dada pelo próprio discurso científico: « Desvia-se da busca metafísica de uma prova
primeira ou de uma autoridade transcendente, reconhece-se que as condições do
verdadeiro, isto é, as regras de jogo da ciência, são imanentes a este jogo, que elas não
podem ser estabelecidas de outro modo a não ser no seio de um debate já ele mesmo
científico, e que não existe outra prova de que as regras sejam boas, senão o fato delas
formarem o consenso dos experts» (Ibid., p. 54). Essa legitimação científica ocorre por
meio dos relatos simultaneamente à emancipação dos burgueses em relação às
autoridades tradicionais, sendo também uma legitimação de sua autoridade, e que está
em harmonia com a nova atitude científica: « Disto resulta infalivelmente a idéia de
progresso; ela não representa outra coisa senão o movimento pelo qual supõe-se que o
saber se acumula, mas este movimento estende-se ao novo sujeito sóciopolítico. O povo
está em debate consigo mesmo sobre o que é justo e injusto, da mesma maneira que a
comunidade dos cientistas sobre o que é verdadeiro e falso; o povo acumula as leis
civis, como os cientistas acumulam as leis científicas; o povo aperfeiçoa as regras do
seu consenso por disposições constitucionais, como os cientistas revisam à luz dos seus
conhecimentos produzindo novos ‘paradigmas’» (Ibid., p. 55). Dessa forma, a
legitimação, que reimplanta o relato como validade do saber, faz surgir duas novas
realidades: um herói do conhecimento e um herói da liberdade. Contudo, nem a
legitimação tem um único sentido e nem o relato é suficiente para validá-la. Lyotard
apresenta duas grandes versões dos relatos da legitimação do saber e das instituições na
Modernidade, um especulativo (filosófico) e outro prático (emancipação política). O
primeiro “tem por sujeito a humanidade como herói da liberdade” (Ibid., p. 59),
mediante a apropriação do saber científico. O segundo consiste na condução, pelo
Estado e pela Universidade humboldiana, do povo iluminado cientificamente rumo ao
progresso, num processo emancipatório (Aufklärung), por intermédio da Formação
(Bildung) do indivíduo e da Nação. Esses dois grandes relatos de legitimação sofrem.

V - Reflexão crítica e conclusiva sobre as fronteiras desse universo pós-moderno e


o capital contemporâneo.

Na sociedade e na cultura contemporânea, sociedade pós-industrial, cultura pós-


moderna, a questão da legitimação do saber coloca-se em outros termos. O grande relato
perdeu sua credibilidade, seja qual for o modo de unificação que lhe é conferido: relato
especulativo, relato da emancipação, pois eles sofrem um processo de deslegitimação.
(Ibid., p. 69) Para Lyotard, a deslegitimação dos ‘metarrelatos’ não está totalmente e
fundamentalmente explicada nem pelo desenvolvimento da tecnologia no pós-guerra,
nem pelas mudanças keynesianas do capital. O componente determinante dessa
deslegitimação tem um elemento interno que é a contradição posta pelos jogos de
linguagem que são os ‘metarrelatos’ 8 , eles próprios jogos de linguagem. Para Lyotard,
o marxismo seria também um ‘metarrelato’ deslegitimado. Quando o partido substituiu
a universidade, o proletariado tomou o lugar do povo e da humanidade, e o materialismo
dialético foi trocado pelo idealismo especulativo, o resultado foi o autoritarismo do
socialismo como ‘metarrelato’ equivalente da vida do Espírito hegeliano. Contudo, o
marxismo pode se apresentar também de forma crítica, socialismo como proposta de
constituição do sujeito autônomo, no qual o objetivo da ciência é possibilitar ao
proletariado os meios de sua emancipação (Ibid., p.65- 66).
Aconteceu também a deslegitimação do saber especulativo hegeliano, este contém
inerentemente um ceticismo com relação à ciência que, por não ter encontrado
legitimidade não é uma ciência verdadeira. Para o dispositivo especulativo essa
legitimidade do discurso científico deve ser dada pelo próprio jogo de linguagem
especulativo: Surge assim a idéia de perspectiva que não é distante, pelo menos neste
ponto, da dos jogos de linguagem. Tem-se aí um processo de deslegitimação cujo motor
é a exigência de legitimação.

A ‘crise’ do saber científico, cujos sinais se multiplicam desde o fim do século XIX, não
provém de uma proliferação fortuita das ciências, que seria ela mesma o efeito do
progresso das técnicas e da expansão do capitalismo. Ela procede da erosão interna do
princípio de legitimação do saber. Esta erosão opera no jogo especulativo, e é ela que,
ao afrouxar a trama enciclopédica na qual cada ciência devia encontrar seu lugar, deixa-
as se emanciparem (Ibid., p. 71).

Dessa forma, na época pós-moderna ocorrem muitas modificações nas delimitações


clássicas dos campos científicos: desaparecem disciplinas, os limites das ciências se
entrecruzam surgindo novos conhecimentos, a hierarquia especulativa dos
conhecimentos é substituída por uma horizontalidade, as faculdades transformam-se em
Institutos e a Universidade perde sua função de legitimidade especulativa, reproduzindo
mais professores que cientistas (Ibid., p. 72).

Na deslegitimação do dispositivo de emancipação (Aufklärung) está também intrínseco


um poder interno de erosão. Se o discurso da ciência não pode ser tido como verdadeiro,
porque tudo é um jogo de linguagem, o discurso da emancipação não pode ser
verdadeiramente justo, na medida em que é guiado por aquele saber científico. Assim,
fica fragilizada a característica principal do dispositivo de emancipação, que é de
fundamentar a legitimidade da ciência desvelando a verdade para proporcionar a
autonomia ética, social e política aos interlocutores. Quanto a isso, afirma Lyotard Ora,
esta legitimação, [...], constitui de imediato um problema: entre um enunciado
denotativo de valor cognitivo e um enunciado prescritivo de valor prático, a diferença é
a de pertinência, portanto de competência. Nada prova que, se um enunciado que
descreve uma realidade é verdadeiro, o enunciado prescritivo, que terá necessariamente
por efeito modificá-la, seja justo (Ibid., p. 72).
A divisão da razão em cognitiva e prática ataca, com efeito, a legitimidade do discurso
de ciência, mostrando que ele é um jogo de linguagem com regras próprias, mas sem
vocação para regulamentar o jogo prático. Tornando-se, então, um jogo de linguagem
entre outros. As principais conseqüências da deslegitimação dos ‘metarrelatos’
indicadas por Lyotard, são: a ciência não pode mais legitimar a si mesma e nem a outros
jogos de linguagem; a disseminação dos jogos de linguagem dissolve o sujeito e torna a
linguagem o vínculo social; o fracasso do dispositivo filosófico especulativo moderno
como discurso de legitimação e sustentação do projeto emancipatório; a transformação
dos sábios em cientistas com um saber fragmentário; a Filosofia especulativa humanista
assume o estudo da lógica ou da história das idéias; o surgimento de um pessimismo
generalizado, pois ninguém domina todos os jogos de linguagem e não há uma meta-
língua universal; a superação do pessimismo positivista por Wittgenstein, investigando
os jogos de linguagem em uma nova perspectiva de legitimação diferente do
desempenho, característica do mundo pós-moderno onde não há mais nostalgia com o
fim dos ‘metarrelatos’ e nem a crença no futuro como barbárie (Ibid., p. 73-74).

No entanto, alerta Lyotard, há que se levar em consideração a forma de apropriação do


capital sobre a deslegitimação das ‘grandes narrativas’ e a prevalência dos jogos de
linguagem. Neste sentido, a pesquisa é direcionada para a obtenção de desempenho. A
administração da prova, que antes tinha por referência o estabelecimento da verdade,
com a prova da prova, agora pode recorrer à publicação dos meios com os quais foram
feitas as provas para serem repetidas, e mesmo assim levar a equívocos. A resposta é
dada por meio de técnicas, tendo a eficiência como critério e a otimização das
performances como objetivo: “São estes, pois, os jogos cuja pertinência não é nem o
verdadeiro, nem o justo, nem o belo, etc., mas o eficiente: um ‘lance’ técnico é ‘bom’
quando é bem-sucedido e/ou quando ele despende menos que um outro” (Ibid., p. 80).

A administração da prova dentro desses parâmetros, afirma Lyotard, é ainda mais


acirrada na medida em que a pragmática do saber científico substitui os saberes
tradicionais ou revelados: “Portanto, nada de prova e de verificação de enunciados, e
nada de verdade, sem dinheiro. Os jogos de linguagem científica vão tornar-se jogos de
ricos, onde os mais ricos têm mais chances de ter razão” (Ibid., p. 81).

A melhoria das performances e da realização dos produtos é determinada mais pelo


desejo de riqueza do que do progresso do saber onde, diz Lyotard, riqueza, eficiência e
verdade se entrecruzam. Lyotard afirma ainda que a forma como o capitalismo
soluciona o problema do crédito para a pesquisa científica é financiando os
departamentos de pesquisa nas empresas e criando fundações de pesquisa privadas,
estatais ou mistas, que concedem créditos a departamentos universitários, laboratórios
de pesquisa ou grupos independentes de pesquisadores, mesmo que seus resultados
sejam demorados.

O importante é que a pesquisa seja aplicável e rentável: “as normas de organização do


trabalho que prevalecem nas empresas penetram nos laboratórios de estudos aplicados
[...], os centros de pesquisa ‘pura’ percebem créditos menores” (Ibid., p. 82). Em outras
palavras, a administração da prova segue agora um outro jogo de linguagem, onde o
importante não é a verdade, mas o desempenho e a eficiência. A predominância do
critério técnico no saber científico termina influenciando o critério de verdade, que
passa a ser o desempenho: O Estado e/ou a empresa abandona o relato de legitimação
idealista ou humanista para justificar a nova disputa: no discurso dos financiadores de
hoje, a única disputa confiável é o poder. Não se compram cientistas, técnicos e
aparelhos para saber a verdade, mas para aumentar o poder (Ibid., p. 83).

Dessa forma, pode-se afirmar que a pragmática da pesquisa científica pós-moderna faz
assomar a invenção de ‘lances’ novos e de novas regras de jogos de linguagem. Desta
maneira, o atual saber científico busca alternativas para a crise do determinismo, que
considera a base da legitimação através do desempenho. Este, por sua vez, deve supor
um sistema em estado estável, para que ocorra um trânsito regular de input/output. Esta
é, no entanto, uma leitura positivista pós-moderna, na qual não se resume todo o
pensamento da pós-modernidade: “Trata-se em suma de mostrar em alguns casos típicos
que a pragmática do saber científico pós-moderno tem, nela mesma, pouca afinidade
com a busca do desempenho” (Ibid., p. 99) (Grifo nosso).

Ora, nem toda a ciência pós-moderna se desenvolve pelo positivismo da eficiência, mas
também pela produção do ininteligível, do paradoxo, da criação de novas regras
lingüísticas que compõe a legitimidade da própria ciência. A ciência pós-moderna
também se desenvolve como pesquisa de instabilidade, para além de determinado
positivismo: “o traço surpreendente do saber pós-moderno é a imanência a si mesmo,
mas explícita, do discurso sobre as regras que o legitimam” (LYOTARD, 1993, p. 100).
(Grifo nosso).
A idéia predominante nas pesquisas científicas pós-modernas não é mais, portanto, a
continuidade e a previsão como paradigmas do conhecimento. Agora a preferência é:
pelos indecidíveis, nos limites da precisão do controle, pelos quanta, pelos conflitos de
informação não completa, pelos ‘fracta’, pelas catástrofes, pelos paradoxos
paradigmáticos, a ciência pós-moderna torna a teoria de sua própria evolução
descontínua, catastrófica, não retificável, paradoxal. Muda o sentido da palavra saber e
diz como esta mudança pode se fazer. Produz, não o conhecido, mas o desconhecido. E
sugere um modelo de legitimação que não é de modo algum o da melhor performance,
mas o da diferença compreendida como paralogia (Ibid., p. 107-108) (Grifo nosso).

Lyotard constata que no saber científico pós-moderno, a legitimação se dá através da


paralogia, da imprevisibilidade e da diferença. Com a descrença nos ‘metarrelatos’, o
desenvolvimento dos jogos de linguagem e o paradigma da paralogia, o discurso
científico pós-moderno se autovalida através do pequeno relato e do dissenso. A
legitimação do saber excluiu os grandes relatos, o discurso científico pós-moderno não
recorre à dialética do Espírito e nem à emancipação da humanidade para a sua
validação. O ‘pequeno relato’ é agora o referencial por excelência (Ibid., p. 111).

Contudo, a partir dessas questões pós-modernas é necessário refletir se é possível uma


legitimação que se utilize apenas da paralogia e se a pragmática científica deve dar
ênfase ao dissentimento, na medida em que “o consenso é um horizonte, jamais ele é
atingido” (Ibid., p. 112). Assim: É ao abandono desta crença que hoje se relaciona o
declínio dos relatos de legitimação, sejam eles tradicionais ou ‘modernos’ (emancipação
da humanidade, devir da Idéia). É igualmente a perda desta crença que a ideologia do
‘sistema’ vem simultaneamente suprir por sua pretensão totalizante e exprimir pelo
cinismo do seu critério de desempenho (Ibid., p. 118). Em virtude da complexidade da
pragmática social, composta por uma diversidade de enunciados, é impossível
determinar antecipadamente um consenso entre eles. É a descrença nessa possibilidade
que deslegitimou os ‘metarrelatos’ e possibilitou o estabelecimento do desempenho
como critério por parte do capital.

CONCLUSÃO
Na investigação de Lyotard, a pós-modernidade se caracteriza pela descrença nos
‘metarrelatos’ e a conseqüente valorização das pequenas narrativas. Nesse âmbito é
também valorizada a influência das informações tecnológicas e das máquinas
informacionais do saber, que substituem os especialistas e os políticos nas decisões
sociais. Dessa forma, a recusa dos grandes ideais e dos instrumentos políticos e
representativos do coletivo, como o entende a tradição da modernidade, abre espaço
para a valorização dos movimentos sociais alternativos, que por sua vez, tem grande
importância na crise estrutural do capital.

A conseqüência maior dessa recusa, tanto num caso como no outro, é a diluição da idéia
de coletividade, fazendo assomar as noções de individualidade ou de pequenos grupos.
Quando Lyotard constata a submissão pós-moderna da ciência, que não é mais
portadora do conhecimento verdadeiro, ao processo de valorização do capital e de
viabilização da formação de competências para o atendimento do sistema, temos
também uma forte aproximação com o papel da ciência na 18 crise estrutural do capital
quando este se insere completamente na necessária aceleração tecnológica que alimenta
a produção destrutiva, a forma de produção mais adequada para sua reprodução dentro
da crise.

Nesse sentido, arriscamos dizer que a desmistificação do saber científico operada pelo
pensamento pós-moderno, por intermédio da deslegitimação das grandes narrativas, está
presente na crise estrutural do capital contemporâneo na sua apropriação da ciência
como elemento de produção, agora indispensável no contexto da produção destrutiva. É
necessário enfatizar que o pensamento pós-moderno, além de reconhecer a
deslegitimação da ciência como portadora do discurso verdadeiro, reconhece também
sua deslegitimação operada por meio da sua apropriação pelo capital, da disponibilidade
da ciência moderna em atender aos interesses do capital.

Em outros termos, o pensamento pós-moderno não é completamente acrítico pró-


capitalista, como querem alguns de seus críticos. A questão é: os pós-modernos não
referendam a sua crítica na construção da sociedade alternativa socialista, haja vista sua
possibilidade de ser totalitária. Ademais, a crítica pós-moderna à ciência como
portadora do conhecimento verdadeiro esbarra na proposição dos jogos de linguagem,
onde todos os discursos seriam verdadeiros. Lyotard, no entanto, não desconsidera a
apropriação do capital sobre a deslegitimação das grandes narrativas e a prevalência dos
jogos de linguagem, nos quais a pesquisa é direcionada para o bom desempenho da
produção e dos trabalhadores. O autor enfatiza, por exemplo, que a pesquisa científica
que recebe maior financiamento é aquela mais aplicável e rentável.

O fim dos grandes ideais das metanarrativas – como o fim unitário da história e do
poder cognitivo e centrado do sujeito moderno, o esmaecimento da crença na
emancipação progressiva da razão e da liberdade, a descrença na alternativa socialista e
na abstração do conceito moderno de humanidade, etc. – encontra ressonância na forma
de ser do capital em sua crise estrutural. Senão, vejamos. Observemos que os grandes
ideais da modernidade eram compatíveis com um capital em sua ascendência histórica e
em busca de sua expansão territorial, que se apresentava com validade universal para
estabelecer sua própria legitimidade e realizar seus intuitos de ampliação e acumulação.

Diversamente, um capital em crise estrutural que busca sua reprodução pela produção
destrutiva só pode favorecer e ser favorecido num mundo fragmentado, de valores
efêmeros, marcado pela paralogia e pelo dissentimento. A taxa de utilização
decrescente das mercadorias, essencialmente necessária à produção destrutiva, tem a sua
expressão nessa instabilidade constitutiva do mundo e do pensamento pósmoderno. Os
ideais universais e estáveis da modernidade já não se coadunam com a produção
destrutiva baseada na descartabilidade das mercadorias, a qual se alastra pela totalidade
social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução: Ricardo Correia Barbosa. 4. ed. Rio de


Janeiro: José Olympio, 1993.

NB:
Conforme Lyotard: “Esta lógica do melhor desempenho é, sem dúvida, inconsistente sob muitos
aspectos, sobretudo no que se refere à contradição no campo sócio-econômico: ela quer,
simultaneamente, menos trabalho (para baixar os custos da produção) e mais trabalho (para
aliviar a carga social da população inativa). Mas a incredulidade resultante é tal que não se
espera destas contradições uma saída salvadora, como pensava Marx” (LYOTARD, 1993,
p.xvii).

Entenda-se aqui paralogia como imprevisibilidade, dissentimento, contrário ao consenso.

Um enunciado científico está submetido a essa regra: “um enunciado deve apresentar
determinado conjunto de condições para ser reconhecido como científico”(LYOTARD,
1993,p.12).

Três observações sobre os jogos de linguagem: 1- “...suas regras não possuem sua legitimação
nelas mesmas, mas constituem objeto de um contrato explícito ou não entre os jogadores (o que
não quer dizer todavia que estes as inventem)”; 2- “...na ausência de regras não existe jogo, que
uma modificação, por mínima que seja, de uma regra, modifica a natureza do jogo, e que um
lance ou um enunciado que não satisfaça as regras, não pertence ao jogo definido por elas”; 3-
“...todo enunciado deve ser considerado como um ‘lance’ feito num jogo”
(LYOTARD,1993,p.17).

Para Lyotard ocorre uma nova forma de vinculação social: “O si mesmo é pouco mas não está
isolado; é tomado numa textura de relações mais complexa e mais móvel do que nunca. Está
sempre, seja jovem ou velho, homem ou mulher, rico ou pobre, colocado sobre os ‘nós’ dos
circuitos de comunicação, por ínfimos que sejam. É preferível dizer: colocado nas posições
pelas quais passam mensagens de natureza diversa.” (LYOTARD, 1993, p. 28).

Os jogos de linguagem é o mínimo de relação exigido para que haja sociedade: “[...] desde antes
do seu nascimento, haja vista o nome que lhe é dado, a criança humana já é colocada como
referente da história contada por aqueles que a cercam e em relação à qual ela terá mais tarde de
se deslocar. Ou mais simplesmente ainda: a questão do vínculo social, enquanto
questão, é um jogo de linguagem, o da interrogação, que posiciona imediatamente aquele que a
apresenta, aquele a quem ela se dirige, e o referente que ela interroga: esta questão já é assim o
vínculo social” (LYOTARD, 1993, p. 29).

Para o autor, as explicações pautadas na economia são insuficientes: “Buscas de causalidades


como estas são sempre decepcionantes. Supondo-se que se admita uma ou outra destas
hipóteses, resta explicar a correlação das tendências referidas com o
declínio do poder unificador e legitimador dos grandes relatos da especulação e da
emancipação. [...] O impacto que, por um lado, a retomada e a prosperidade capitalista e, por
outro, o avanço desconcertante das técnicas podem ter sobre o estatuto do saber é certamente
compreensível. Mas é preciso primeiramente resgatar os germes de ‘deslegitimação’ e de
niilismo que eram inerentes aos grandes relatos do século XIX para compreender como a
ciência contemporânea podia ser sensível a estes impactos bem antes que eles acontecessem”
(LYOTARD, 1993, p. 69-70).

“O que se produz ao final do século XVIII, quando da primeira revolução industrial, é a


descoberta da recíproca: não há técnica sem riqueza, mas não há riqueza sem técnica. Um
dispositivo técnico exige um investimento; mas visto que otimiza a performance à qual é
aplicado, pode assim otimizar a mais-valia que resulta desta melhor performance. Basta que
esta mais-valia seja realizada, quer dizer, que o produto da performance seja vendido. E podese
bloquear o sistema da seguinte maneira: uma parte do produto desta venda é absorvida pelo
fundo de pesquisa destinado a melhorar ainda mais a performance. É neste momento preciso
que a ciência torna-se uma força de produção, isto é, um momento na circulação do capital. [...]
A conjunção ‘orgânica’ da técnica com o lucro precede a sua junção com a ciência. As técnicas
não assumem importâncias no saber contemporâneo senão pela mediação do espírito de
desempenho generalizado” (LYOTARD, 1993, p. 81-82).

Para Lyotard, a ciência pós-moderna não se caracteriza somente pelo positivismo mas também
pela pesquisa da paralogia: “A expansão da ciência não se faz graças ao positivismo da
eficiência. É o contrário: trabalhar na prova é pesquisar e inventar o contra-exemplo, isto é, o
ininteligível; trabalhar na argumentação é pesquisar o ‘paradoxo’ e legitimá-lo com novas
regras do jogo de raciocínio. Nos dois casos, a eficiência não é visada por si mesma, ela vem
por acréscimo, por vezes tarde, quando os financiadores se interessam enfim pelo caso. Mas, o
que não pode deixar de vir e voltar com uma nova teoria, uma nova hipótese, um novo
enunciado, uma nova observação, é a questão da legitimidade. Pois é a própria ciência que a si
mesma levanta esta questão, e não a filosofia à ciência” (LYOTARD, 1993, p. 99-100).
CAP III - LOUIS ALTHUSSER: A IDEOLOGIA DA CLASSE DOMINANTE

1- Alguns dados biográficos de Louis Althusser:

Louis Althusser nasceu em 16 de Outubro de 1918, na cidade de Argel, no distrito de


Birmandrèis. Seu pai, Charles Althusser, era bancário e sua mãe, Luciene Berger era
professora, mas ao se casar deixou de exercer a profissão para cuidar dos filhos. A família
de Louis Althusser se completava com sua irmã mais nova de nome Georgette.

Althusser viveu sua infância na capital da Argélia. De Argel, mudou-se para a cidade de
Marseille, em 1930. Seu pai havia recebido uma promoção no banco e foi transferido
para esta cidade, onde fez seu curso secundário, no Liceu Saint-Charles, vivendo nesta
cidade até 1936.

De Marseille mudou-se para Lyon (novamente seu pai tinha sido transferido); nesta cidade,
fez o curso preparatório, no Liceu do Pare, para a Escola Normal Superior.

Neste período participou dos círculos católicos conservadores da cidade. Em agosto de


1939, passou no concurso de ingresso para a Escola Normal Superior, em Paris. Apesar de
aprovado, Althusser, não ingressou devido à convocação para servir, como soldado, na
guerra que havia iniciado. Como soldado, deslocou-se para o norte da França e lá, foi feito
prisioneiro e levado para a Alemanha, onde permaneceu até o final da guerra em um
campo de concentração. Na prisão, tomou contato com o marxismo através do francês
Pierre Corrèges.

Ao ser libertado, voltou para Paris e ingressou na Escola Normal Superior, seis anos depois
da aprovação no concurso. Nessa instituição, trabalhou mais de trinta anos como
professor e secretário.

Na Escola Normal Superior, conheceu Georges Lesèvre, um ex-aluno de Lyon, que como
ele, tinha-se atrasado no ingresso à escola, por ter participado da resistência francesa
durante a guerra. Através dele, Althusser entra para a juventude republicana e também por
meio dele, vai conhecer Hélène, socióloga e militante comunista que participou da
resistência francesa durante a 2a Guerra Mundial.
Com Hélène, sua futura esposa, oito anos mais velha do que ele, vai ter sua primeira
relação sexual, aos 29 anos, experiência que o leva a uma profunda depressão, a primeira de
sua doença mental, que o fez passar alguns meses internado, no hospital Saint-Anne, em
tratamento à base de eletrochoque: sofria de psicose maníaco-depressiva.

Em 1948, entra para o Partido Comunista. Este ano também é marcado pela sua
aprovação, no exame da "agrégation" da Escola Normal Superior, tornando-se
portanto, professor titular. Nessa, sua vida intelectual foi construída, desenvolvida e
encerrada com o trágico episódio de 1980, o assassinato de Hélène.

Conheceu e conviveu com grandes pensadores de sua época, na França. Foi aluno de
Desanti e Merleau-Ponty, polemizou com Sartre, foi amigo de Lacan, Foucault e
Poulantzas, se inspirou em Cavaillès e Canguilhem, entre outros. Em seus primeiros anos
de escola, era grande conhecedor do pensamento de Descartes, Malebranche, Pascal,
Platão e um pouco de Hegel, Kant, Bachelard, Rousseau, Spinosa e Bergson. Quanto a
Marx, ao entrar para a escola, tinha pouco conhecimento, mas em pouco tempo passou a
ser um grande conhecedor de sua obra.

Em 1962, passou a colaborar no periódico "La Pensée". Com a publicação em 1965 dos
livros "Por Marx" e "Ler O Capital", é reconhecido como pensador marxista.

Althusser escreveu e publicou vários livros, artigos, notas que parte significativo só
foi a público depois de sua morte na cidade de Paris em 22 de outubro de 1990 de ataque
cardíaco.

2- Sobre a Ideologia:

A questão da ideologia aparece de forma mais sistematizada pela primeira vez


na obra de Althusser no texto "Aparelhos Ideológicos de Estado" publicado em 1971 e
depois de sua morte no livro "Sobre a Reprodução" em 1999.

Louis Althusser inicia afirmando a necessidade do marxismo formular uma


teoria da ideologia em geral marxista, Althusser "arrisca" esboçar um esquema que
contribua, inicialmente, para tal desafio. Nesse sentido, o autor é bastante cuidadoso ao
apresentar as teses que coloca, alertando o leitor para os limites de suas formulações.
«Eu gostaria de correr o risco considerável de propor, a esse respeito,
um primeiro e muito esquemático esboço. As teses que apresentarei não
são, com certeza, improvisadas, mas não podem ser defendidas e
submetidas à prova, isto é, confirmadas ou invalidadas a não ser com
estudos e análises muito longos que, talvez, sejam provocados pelo
enunciado dessas teses. Portanto, peço ao leitor uma extrema vigilância e,
simultaneamente, uma extrema indulgência em relação às proposições que
vou arriscar.» Louis ALTHUSSER, Sobre a Reprodução,195

As teses a que se refere o autor são: "A Ideologia é uma 'representação' da relação
imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência", "a Ideologia
tem existência material" e " a ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos"

No livro "Sobre a Reprodução", Althusser faz duas observações antes de se dedicar a


explicar suas teses a respeito da ideologia. A primeira observação diz respeito à afirmação
de que "a ideologia não tem história", tese que vai buscar defender em seu sentido
positivo afirmando,

«se é verdade que o caráter próprio da ideologia é ser dotada de uma


estrutura e de um funcionamento tais que estes a transformam em uma realidade
não-histórica, isto é, oni-histórica no sentido de que essa estrutura e esse
funcionamento estão presentes, sob uma mesma forma, imutável, no que se chama
a história inteira, no sentido de que o Manifesto define a história como a história da
luta de classes, isto é, a história das sociedades de classes.» Louis ALTHUSSER, Sobre
a Reprodução, 197.

Ao afirmar que "a ideologia não tem história" o faz, segundo ele, retomando Freud em sua
proposição de que "o inconsciente é eterno", isto é, não tem história. Tomando por
eterno o que não transcende a qualquer história (temporal), mas onipresente, portanto,

«imutável sob sua forma em toda extensão da história, irei ao ponto de


retomar, palavra por palavra, a expressão de Freud e escreverei: a
ideologia é eterna, do mesmo modo que o inconsciente. E, antecipando
em relação às pesquisas necessárias e, daqui em diante, possíveis,
acrescentarei que essa aproximação é teoricamente justificada pelo
fato de que a eternidade do inconsciente está baseada, em última
instância, na eternidade da ideologia em geral.» Louis ALTHUSSER,
Sobre a Reprodução, 198

Essa argumentação leva Althusser a propor a necessidade de uma teoria da ideologia em


geral no mesmo sentido da proposição apresentada por Freud, uma teoria do inconsciente
em geral.

A segunda observação a que o autor se refere é sobre a Repressão e Ideologia, aqui faz
observações sobre o semanário anarquista "Action", criticando a concepção anarquista,
afirmando que essa substitui a exploração pela repressão ou a exploração pensada como
uma forma de repressão, outra crítica que faz ao semanário e à própria concepção
anarquista, é a substituição da ideologia pela repressão.

A observação de Althusser à concepção anarquista tem como objetivo reafirmar a


ideologia como instrumento de persuasão e não como elemento de repressão e de mostrar
os mecanismos que a ideologia utiliza para levar os indivíduos a agir sozinhos sem a
necessidade de agentes de repressão.

Nessa polémica com os anarquistas, o autor aponta para a necessidade de uma teoria da
ideologia que mostre concretamente como funciona a ideologia em seu nível mais concreto,
no nível dos sujeitos individuais, isto é, dos homens tais como existem, em sua
individualidade concreta, em sua vida cotidiana. Portanto,

«é indispensável, teórica e politicamente, mostrar através de quais


mecanismos a ideologia "leva na conversa" os homens, isto é, os
indivíduos concretos, quer estes "atuem" a serviço da exploração de
classe, ou "façam", a Longa Marcha que desembocará, mais depressa do
que se possa pensar, na Revolução nos países capitalistas ocidentais,
portanto, também na própria França.» Ibid, 202-203
Aqui o autor aponta a ideologia, não só a serviço da conservação social, mas
também, como um dos instrumentos para a transformação social, indicando a possibilidade
de se constituírem Sujeitos interpeladores comprometidos com a transformação da
sociedade capitalista.

Voltando as três teses sobre a ideologia em geral, Althusser apresenta a


primeira afirmando que:

A ideologia é uma "representação" da relação imaginária dos indivíduos


com suas condições reais de existência.

Essa tese incide "sobre o objeto que é representado sob a forma imaginária da
ideologia"; Althusser rompe com todas as conceitualizações da ideologia como "falsa
consciência". Em sua tese, o autor argumenta que o representado na ideologia são as
relações imaginárias que os indivíduos têm com a realidade e não a própria realidade.

Com relação a esta primeira tese: "A Ideologia é uma 'representação' da


relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência" .
Althusser afirma no livro "Aparelhos Ideológicos de Estado":

«não são as suas condições reais de existência, seu mundo real que os
"homens" "se representam" na ideologia, o que é nelas representado
é, antes de mais nada, a sua relação com as suas condições reais de
existência. É esta relação que está no centro de toda representação
ideológica, e portanto imaginária do mundo real. É nesta relação que
está a "causa" que deve dar conta da deformação imaginária da
representação ideológica do mundo real. » Louis ALTHUSSER,
Aparelhos Ideológicos de Estado, 87

Segundo Althusser, o que está representado na ideologia não é uma representação


das reais condições de existência, mas uma representação de uma (imaginária) relação
de indivíduos com estas condições reais de existência

Portanto, a ideologia passa a ser entendida no terreno da prática-social e como


uma instância específica de determinada formação social. Nesse sentido, o autor formula
sua segunda tese, a de que "a ideologia tem uma existência material" na prática ou
práticas nos Aparelhos Ideológicos de Estado:
«...vejamos o que se passa com os indivíduos que vivem na ideologia,
isto é, numa representação do mundo determinada (religiosa, moral etc.)
cuja deformação imaginária depende de sua relação imaginária com suas
condições de existência, ou seja, em última instância das relações de
produção e de classe (ideologia = relação imaginária com as relações reais).
Diremos que esta relação imaginária é em si mesma dotada de uma
existência material.» Louis ALTHUSSER, Aparelhos Ideológicos de Estado,
89-90.

Em outras palavras, a ideologia materializa-se nos atos dos indivíduos. Para demonstrar sua
tese, utiliza a religião como exemplo da materialidade da ideologia:

«.. .a existência das ideias de sua crença é material, pois suas ideias são
seus atos materiais inseridos em práticas materiais, reguladas por
rituais materiais, eles mesmos definidos pelo aparelho ideológico
material de onde provêm as ideias do dito sujeito...

As ideias desaparecem enquanto tais (enquanto dotadas de uma


existência ideal, espiritual), na medida mesma em que se
evidenciava que sua existência estava inscrita nos atos das práticas
reguladas por rituais definidos em última instância por um aparelho
ideológico. O sujeito portanto atua enquanto agente do seguinte
sistema (enunciado em sua ordem de determinação real): a
ideologia existente em um aparelho ideológico material, que
prescreve práticas materiais regulares por um ritual material,
práticas estas que existem nos atos materiais de um sujeito, que age
conscientemente segundo sua crença» (Louis ALTHUSSER, Aparelhos
Ideológicos de Estado, 91-92)

A tese sobre a existência material da ideologia, ou da ideologia como práticas sociais,


também aparece no texto "A transformação da filosofia", em que o autor reafirma:

«as práticas sociais e as ideias que os homens fazem delas estão


estreitamente relacionadas. Pode dizer-se que não há prática sem ideologia
e que qualquer prática, incluindo a científica, se realiza através de uma
ideologia. Em todas as práticas sociais (quer pertençam ao domínio da
produção económica, ao da ciência, ao da arte, ao do direito, ao da moral
ou da política), os homens que actuam estão submetidos às ideologias
correspondentes, independentemente da sua vontade e mais ou menos com
uma total ignorância do assunto.» (Louis ALTHUSSER, A transformação
da filosofia, 42)

No que se refere à ideologia em Althusser, a noção de sujeito é central e


enuncia duas teses simultâneas, "l- só há prática através de e sob uma ideologia. 2 - só há
ideologia pelo sujeito e para o sujeito" (ALTHUSSER, Aparelhos Ideológicos de
Estado, 93). A partir dessas duas teses, o autor formula a terceira tese sobre a ideologia em
geral: "A Ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeito" (ALTHUSSER,
Aparelhos Ideológicos de Estado, 93), caracterizando a função da ideologia enquanto
constituidora de indivíduos concretos em sujeitos e seu efeito elementar, o de impor (sem
parecer que o faz, pois se trata de "evidências").

«as evidências como evidências, que não podemos deixar de reconhecer


e diante das quais, inevitável e naturalmente, exclamamos (em voz
alta, ou no "silêncio da consciência"): "é evidente! É exatamente isso! É
verdade!".

É nesta reação que se exerce a função de reconhecimento ideológico,


que é uma das duas funções da ideologia enquanto tal (sendo o
desconhecimento a sua função inversa)» (ALTHUSSER, Aparelhos
Ideológicos de Estado, 94-95)

Ao colocar que a ideologia interpela o indivíduo e o constituindo em sujeito, supõe a


existência de um outro Sujeito, o que interpela o sujeito interpelado. O Sujeito interpela o
indivíduo e esse se reconhecendo na interpelação se constitui em sujeito daquela
interpelação.

Então formula um quádruplo sistema de interpelação, de submissão ao Sujeito, de


reconhecimento universal. O sistema comporta: l- os indivíduos são interpelados como
sujeitos, 2- a submissão do sujeito ao Sujeito, 3- os sujeitos se reconhecem mutuamente e
em relação ao Sujeito e 4- tudo funciona bem no reconhecimento dos sujeitos:
«... envoltos neste quádruplo sistema de interpelação, de submissão ao
Sujeito, de reconhecimento universal e de garantia absoluta, os sujeitos
"caminham", eles "caminham por si mesmos" na imensa maioria dos
casos, com exceção dos "maus sujeitos" que provocam a intervenção de
um ou de outro setor do aparelho (repressivo) do Estado. Mas a imensa
maioria dos (bons) sujeitos caminha "por si", isto é, entregues à ideologia
(cujas formas concretas se realizam nos Aparelhos ideológicos do
Estado). Eles se inserem nas práticas governadas pelos rituais dos AIE. »
ALTHUSSER, Aparelhos Ideológicos de Estado, 103

As teses sobre a ideologia, apresentadas pelo autor, têm como objetivo


possibilitar esclarecimentos de alguns aspectos do funcionamento da
Superestrutura e de sua forma de intervenção na Infraestrutura. Esta
preocupação do autor em dar um lugar muito particular à ideologia,
pode ser encontrada de forma mais explícita no texto "Práctica Teórica
y Lucha Ideológica":

«devemos dar à ideologia um lugar muito particular: para


compreender sua eficácia, é necessário situá-la na superesrtrutura, e dar-
lhe uma relativa autonomia com respeito ao direito e ao estado. Mas ao
mesmo tempo, para compreender sua forma de presença mais geral há
que considerar que a ideologia se introduz em todas as partes do edifício
e que constituem esse cimento de natureza particular que assegure o ajuste
e a coesão dos homens em seus papéis, suas funções e suas relações sociais.»
Práctica Teórica y Lucha Ideológica, In: Louis ALTHUSSER La Filosofia
como Arma de la Revolución,51

A opção de começar esse texto com a questão da ideologia foi na tentativa de deixar claro
como Louis Althusser pensa os mecânicos gerais de ação da ideologia e especificamente
nos Aparelhos Ideológicos de Estado.

3- O Estado e seus Aparelhos:


Na formulação do conceito de Estado, Althusser parte do legado de Marx,
Engels e Lênim afirmando que a concepção desses autores é descritiva e que apesar de
conter pontos essenciais para a compreensão do Estado numa sociedade de classes é
necessário avançar em sua formulação. Com relação aos pontos essenciais dos clássicos a
respeito do Estado, Althusser os enumera.

O Estado é o Aparelho (repressor) de Estado;

1- É necessário estabelecer a distinção entre o Poder de Estado


e o Aparelho de Estado;
2- O objectivo da luta de classes diz respeito à posse do Poder de Estado e, por
consequência, à utilização do Aparelho de Estado pelas classes (ou aliança de
classes ou fracções de classes) detentoras do poder de Estado, em função de
seus objectivos de classe;
3- O proletariado deve assenhorear-se do Poder de Estado para destruir o aparelho de
Estado burguês existente e, em uma primeira fase, substituí-lo por um Aparelho de
Estado completamente diferente, proletário, e depois, nas fases ulteriores,
instalar um processo radical, o da destruição do Estado (fim do poder de Estado e
de qualquer Aparelho de Estado). Louis ALTHUSSER, Sobre a Reprodução, 101

Segundo Althusser, os clássicos do marxismo tinham uma compreensão do Estado como


uma realidade mais complexa do que a descrita por eles, citada acima, e afirma que a
"prática política da luta de classes proletária" já tinha levado os clássicos do marxismo à
compreensão da complexidade do Estado. A partir dessas afirmações nosso autor se
propõe a esboçar uma teoria correspondente a esse conhecimento acumulado pela
experiência da luta de classes e já reconhecida pelos clássicos mas não teorizada.

Em sua proposta de formulação teórica, Althusser inicia apresentando a tese de que

«é indispensável levar em consideração não só a distinção entre Poder de


Estado (e seus detentores) e Aparelhos de Estado, mas também uma outra
"realidade" que se encontra, manifestamente, do lado do Aparelho repressor de
Estado, mas não se confunde com ele; corremos o risco teórico de
designá-la por Aparelhos ideológicos de Estado. O ponto preciso de
intervenção teórica diz respeito, portanto, a esses Aparelhos ideológicos de
Estado na sua diferença em relação ao Aparelho de Estado, no sentido de
Aparelho repressor de Estado.» Louis ALTHUSSER, Sobre a Reprodução,
102

A partir dessa primeira tese, nosso autor passa a denominar Aparelho repressor de Estado, o
que os clássicos designavam por Aparelho de Estado, e Aparelhos ideológicos de Estado
esta realidade da superestrutura, que faz parte do Estado, e que se distingue do aparato
repressor. É sobre a "nova" realidade, AIE, que ele se debruça para formular sua
contribuição no desenvolvimento da teoria marxista do Estado.

Antes de dar a definição do que são os Aparelhos ideológicos de Estado ele lista vários
aparelhos (aparelho escolar, familiar, religioso, político, sindical, da informação, da
edição-difusão e o cultural) e faz três observações a respeito desses aparelhos.

Primeira observação.

Pode-se notar, empiricamente, que a cada AIE corresponde o que


se chama de "instituições" ou "organizações"...

Segunda observação.

Para cada AIE, as diferentes instituições e organizações que o


constituem formam um sistema.

Terceira observação.

Constatamos que as instituições existentes em cada AIE, seu


sistema e, portanto, cada AIE, embora definido como ideológico,
não é redutível à existência de "ideias" sem suporte real e material.
Com isso, não quero dizer somente que a ideologia de cada AIE é
realizada em instituições e práticas materiais, isso é evidente.
Quero dizer outra coisa: que essas práticas materiais estão
"ancoradas" em realidades não-ideológicas (cfr. Louis
ALTHUSSER, Sobre a Reprodução, 103)

A partir dessas observações, Althusser define o que são os Aparelhos


ideológicos de Estado:

«Um Aparelho ideológico de Estado é um sistema de instituições, organizações e


práticas correspondentes, definidas. Nas instituições, organizações e práticas desse
sistema é realizada toda a Ideologia de Estado ou uma parte dessa ideologia (em geral,
uma combinação típica de certos elementos). A ideologia realizada em um AIE garante sua
unidade de sistema "ancorada" em funções materiais, próprias de cada AIE, que não são
redutíveis a essa ideologia, mas lhe servem de "suporte".» Louis ALTHUSSER, Sobre a
Reprodução, 104

Importante notar que as observações e a definição, acima referidas, dos


Aparelhos ideológicos de Estado não aparecem na publicação do texto do início da década
de setenta Também há que se notar que as observações e a própria definição, no texto
"Sobre a Reprodução", referem-se aos Aparelhos ideológicos de Estado como um sistema
formado por instituições e organizações. Importante destacar a formulação dos AIE como
um sistema, em que cada instituição ou organização é uma peça do sistema, uma peça do
aparelho ideológico e não o próprio aparelho.

Como último argumento, em defesa de seu conceito de Aparelho ideológico de


Estado, Althusser reafirma que o argumento "juridicista" diz respeito a instituições e de
que uma instituição não é um Aparelho ideológico de Estado.

«O que faz um Aparelho ideológico de Estado, é um sistema complexo que


compreende e combina várias instituições e organizações, e respectivas práticas. Que
sejam todas públicas ou todas privadas, ou que umas sejam públicas e outras privadas, trata-
se de um detalhe subordinado, já que o que nos interessa é o sistema que constituem.
Ora, esse sistema, sua existência e sua natureza não devem nada ao Direito, mas a uma
realidade completamente diferente que designamos por Ideologia de Estado. » Louis
ALTHUSSER, Sobre a Reprodução, 108

Para melhor compreender os Aparelhos ideológicos de Estado, nosso autor indica a


necessidade de se admitir "o seguinte fato paradoxal: não são as instituições que 'produzem'
as ideologias correspondentes; pelo contrário, são determinados elementos de uma
ideologia (a ideologia de Estado) que 'se realizam' ou 'existem' em instituições
correspondentes, e suas práticas" ( cfr. Louis ALTHUSSER, Sobre a Reprodução, 109).

Essa afirmação leva Althusser a mais uma observação, a da existência de outras formas
ideológicas, além da ideologia de Estado. Ele acentua que "as mencionadas instituições
'produzam', no âmago de si mesmas e em suas práticas, certas formas de ideologia
inexplicáveis fora de suas práticas"( cfr. Louis ALTHUSSER, Sobre a Reprodução, 109).

Em sua formulação, distingue os elementos determinados da Ideologia de


Estado que existem e realizam-se nos Aparelhos de Estado e suas práticas, na ideologia
que é produzida no interior dos Aparelhos. A partir dessa distinção, passa a designar a
ideologia de Estado por Ideologia Primária, e de ideologia secundária, a ideologia
subproduto da prática em que se realiza a Ideologia Primária, a ideologia subordinada.

Ainda sobre a Ideologia Primária e a ideologia secundária, suas formulações


e a importância de compreendê-las, Althusser refere-se a elas, afirmando que

«as ideologias secundárias são produzidas por uma conjunção de causas complexas nas
quais figuram, ao lado da prática em questão, o efeito de outras ideologias exteriores, de
outras práticas exteriores - e, em última instância, por mais dissimulados que se
encontrem, os efeitos mesmo longínquos, na realidade, muito próximo, da luta de classes ».
Ibid,110
Althusser, aqui, chama a atenção para a luta de classes e seus efeitos ideológicos
como determinantes nas relações internas entre as formações ideológicas, produto da
Ideologia Primária, e as subformações ideológicas secundárias.

Como método para compreender o que são as instituições e as subformações


ideológicas secundárias, o autor indica a necessidade de compreender as formações
ideológicas que são do domínio da Ideologia de Estado que são realizadas nas citadas
instituições e suas práticas. Com efeito, são elas que fornecem a chave não só das
instituições e de suas práticas, mas também de uma parte das causas que produzem as
subformações ideológicas que vemos aparecer nessas práticas. Ibid,110

Esses esclarecimentos com relação aos Aparelhos ideológicos de Estado, vão


levar Althusser a reafirmar, mais uma vez, a tese de que "os Aparelhos ideológicos de
Estado são a realização, a existência de formações ideológicas que os dominam" (cfr.
Ibid,112).

Portanto, o que está reafirmando é que as classes dominantes, ou frações de


classe, no Poder de Estado, executam sua política de classe por meio dos Aparelhos
repressores e ideológicos, mas isso não se realiza sem contradições "e que, em particular,
as subformações ideológicas, 'produzidas' no interior dos Aparelhos por sua própria
prática, façam, por vezes, 'ranger as engrenagens'" (cfr. Ibid,114).. Nesse trecho de seu texto,
Althusser, abre uma nota de rodapé chamando a atenção para "nos lembrarmos da
influência exercida aí pelos efeitos da luta de classes para 'produzir' essas sub-formações
ideológicas" (cfr. Ibid,114)...

A existência das subformações ideológicas, no interior dos AIE, a


multiplicidade desses e a ausência de um comando centralizado, pode levar à falsa ideia de
fragilidade dos aparelhos.

Com relação a luta de classes e o Estado, Althusser aponta a luta de classes


política pela posse do Poder de Estado, como a primeira questão sobre o Estado, que essa
posse é sempre a posse do Poder de Estado por uma classe social que dá o poder sobre os
Aparelhos de Estado, sendo que estes compreendem dois tipos de Aparelhos: o Aparelho
repressor de Estado, que se constitui em um corpo único e centralizado e os Aparelhos
ideológicos de Estado, que são constituídos de múltiplos aparelhos.
Nosso autor reafirma a unidade geral do sistema de conjunto dos Aparelhos de Estado e
seu papel em garantir as condições de exploração, através do ARE, e a reprodução
das relações de produção dessa exploração pelos AIE, "Portanto, tudo repousa sobre a
infra-estrutura das relações de produção, isto é, das relações de exploração de classe. A
base, a infra-estrutura do Estado de classe, é efectivamente, como dizia Lenin, a
exploração" ( cfr. Louis ALTHUSSER, Sobre a Reprodução, 119)

Para compreendermos, ao nosso juízo, o papel de instituições e organização que se


contrapõe a ideologia dominante na sociedade, da classe dominante, no interior dos
Aparelhos Ideológicos de Estado podemos refletir sobre as referências que Althusser faz
às organizações proletárias, ao Partido e ao sindicato na França, que são peças do sistema
político e sindical, ou seja, são peças dos Aparelhos ideológicos de Estado. Ao se referir a
existência de organizações proletárias, nos respectivos AIE burguês, essa presença:

«não compromete radicalmente a natureza do sistema. A ideologia proletária não "ganhou"


o sistema do AIE político ou sindical: pelo contrário, é sempre a Ideologia do Estado
burguês que domina aí. É evidente que, em certas circunstâncias, tal situação irá criar
"dificuldades" para o "funcionamento" dos AIE político e sindical burgueses. Mas, a
burguesia dispõe de toda uma série de técnicas já comprovadas para enfrentar tal perigo».
(Louis ALTHUSSER, Sobre a Reprodução, 122).

Ainda sobre a presença do Partido e do sindicato proletários, no interior dos AIE, esses
travam a luta de classes nas formas legais, e a prática da luta de classes corre o risco de se
pensar a luta de classes nos limites do interior dos AIE, nos limites e nas formas legais.
Segundo Althusser, esse equívoco leva as organizações proletárias ao
colaboracionismo de classe.

«A luta de classes que impôs a presença do Partido e do sindicato proletários nos AIE
correspondentes supera infinitamente a luta de classe muito limitada que eles venham a
travar nesses AIE. Nascidas de uma luta de classe exterior aos AIE, amparadas por ela,
encarregadas de ajudá-la e ampará-la por todos os meios legais, as organizações proletárias
que figuram nos citados AIE trairiam sua missão se reduzissem a luta de classe exterior,
que se limita a se refletir sob formas muito limitadas na luta de classe travada nos AIE, a
essa luta de classe interior aos AIE. » ( Louis ALTHUSSER, Sobre a Reprodução, 123).

Nesse sentido é indicado pelo autor a possibilidade de existência de organizações e


de instituições de ideologias antagónicas à Ideologia do Estado, no interior dos AIE. As
organizações e instituições, de ideologias subordinadas à do Estado, são impostas pela
luta de classes, do exterior para o interior dos AIE. Althusser mesmo admitindo a
possibilidade dessas instituições aponta para os seus limites e para a própria razão de
existirem como elementos que possam contribuir na luta de classes que se trava no
exterior dos AIE.

«Nos aparelhos ideológicos de Estado político e sindical, trata-se da luta de classes.


Mas, cuidado: não se trata nem de toda a luta de classes, nem tampouco do terreno em que
está enraizada a luta de classes. Trata-se de um campo em que a luta de classes reveste suas
formas legais, cuja conquista tem a ver com uma história da luta de classes forçosamente
exterior a essas formas legais. Uma vez que estas são conquistadas, a luta de classes
exerce-se aí, nos limites mais ou menos reduzidos dessas formas, de qualquer modo, em
seus limites rigorosamente definidos, ao mesmo tempo que se desenrola de maneira
maciça/ora dessas formas» (Louis ALTHUSSER, Sobre a Reprodução, 129).

Essas referências à luta de classes que se trava no interior do AIE político podem ser
referências para compreensão dos vários AIE e a luta de classes, no interior desses e no
interior das instituições e organizações, que as compõem.

Por fim, é necessário relativizar e situar essas afirmações do autor, no tempo e no espaço,
final da década de sessenta e início da década de setenta do século passado na França, país
europeu de grande desenvolvimento capitalista. Isso não significa que as condições hoje
são melhores ou piores, ou que nos países subdesenvolvidos ou "em desenvolvimento" se
diferenciam ou não das afirmações apresentadas. Mas essas afirmações podem
contribuir em análises a respeito da sociedade e da luta de classes que se desenvolve no
interior dela, permitindo compreender os limites e as contribuições que a luta ideológica,
enquanto uma das formas da luta de classes, pode dar para a transformação social.
BIBLIOGRAFIA

ALTHUSSER, Louis, Aparelhos Ideológicos de Estado. 3a edição. Rio de Janeiro:


Edições Graal, 1987.

ALTHUSSER, Louis, Sobre a Reprodução. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

ALTHUSSER, Louis Práctica Teórica y Lucha Ideológica. In: La Filosofia como


Arma de la Revolución. 21a edición. México: Siglo Veintiuno editores,1997

A transformação da filosofia. In: A transformação da filosofia seguido de Marx


e Lênin perante Hegel. São Paulo: Edições Mandacaru, 1989.
Capitulo IV: DELEUZE, Gilles (1925-1995)

Introdução

Filósofo francês de rara originalidade que se consagrou como o pensador da


«imanência radical». Descreveu «a filosofia como uma componente da vida» e
t e n t o u dólá-la de «novos meios de expressão», segundo o desejo de Nietzsche.

Gilles Deleuze nasceu em 18 de janeiro de 1925 e é considerado um dos maiores


filósofos do século passado. Filho de uma família de classe média, passou a maior parte
de sua vida em Paris (não gostava de viajar). Deleuze estudou filosofia na Universidade
de Sorbonne, Paris, entre 1944 a 1948. Durante sua vida toda foi professor, primeiro em
liceus (até 1957) e depois em universidades como Lyon, Paris VIII e Vicennes.

É bem difícil escrever sobre a vida de Deleuze. Ele era muito reservado, não deixou
nenhuma auto-biografia, não gostava de dar entrevistas. Considerava suas obras muito
mais importantes que sua vida particular. Apesar de tudo, era uma personagem muito
excêntrica, com unhas compridas e um jeito bem particular de agir e falar (por
exemplo, um período de sua vida em que sempre usava chapéu).

Sua obra pode ser separada em duas categorias: livros de conceitos (como “Diferença e
Repetição” e “Lógica do Sentido”, ambos obras primas) e livros de história da filosofia.
Apesar de ser considerado um grande historiador de filosofia, sua abordagem é diferente
dos seus companheiros, Deleuze mesmo dizia que “fazia um filho pelas costas” de cada
pensador que estudava. Sua intenção não é encontrar o “verdadeiro” Nietzsche ou
Espinosa. Não, na verdade, os pensamentos dos filósofos que estuda são usados como
ferramentas para pensar o presente e por isso reinventa os filósofos sobre os quais
admira e escreve: Hume, Bergson, Espinosa, Nietzsche, Leibniz, Kant.
Outra questão muito importante foi a sua obra em conjunto com Félix Guattari, cujo
encontro aconteceu em 1969. Anti-Édipo (1972) e Mil-Platôs (1980) podem ser
consideradas suas obras mais importantes, ambas com o subtítulo “Capitalismo e
Esquizofrenia”.

Deleuze lecionou na universidade de Vincennes até 1987 e é conhecido por ter sido um
grande professor. Seus cursos eram célebres e frequentados por uma enorme quantidade
de estudantes não matriculados que queriam conhecer o mestre dando aula (até mesmo
estrangeiros que consideravam as aulas de Deleuze um importante ponto turístico para
visitar e conhecer). Também ficou conhecido por desenvolver uma filosofia da
imanência e do desejo muitas vezes associada ao pós-estruturalismo.

Desde cedo o filósofo sofria de problemas respiratórios e desenvolveu uma tuberculose


em 1968. No fim de sua vida Deleuze diminuíra suas atividades acadêmicas. Seus
pulmões estavam muito debilitados. Desde 1992 eles funcionavam com apenas um terço
de sua capacidade, em 1995 Deleuze só respirava com ajuda de aparelhos. Então, em 4
de Novembro do mesmo ano, Deleuze jogou-se da janela de seu apartamento em Paris,
deixando dois livros inacabados. Muitos estudiosos da obra de Deleuze consideram seu
suicídio condizente com o pensamento que desenvolveu em vida, Deleuze se mata
quando seus órgãos não permitiam mais a vida passar em toda sua intensidade, seu ato
final foi uma afirmação de um corpo que estava quase morto. Uma vida que pediu
passagem, para fluir em outras direções.

1- O sistema da imanência radical


Deleuze construiu o sistema da imanência radical, inseparável do pluralismo. O
projecto central: «inverter o platonismo», o pensamento representativo, que se encontra
na filosofia clássica, na dialéctica, no estruturalismo e na psicanálise.

Deleuze Pretende dotar-se a filosofia de novas formas de expressão, assim realiza o


desejo de Nietzsche através da estruturação inovadora de algumas das suas obras
após 1968. Na evolução do seu pensamento, ele convida o leitor à desmontagem e
remontagem.
2- Crítica da representação: Pensar o que é exterior ao pensamento.
O que se deve pensar é a relação do pensamento com uma exterioridade que é o fora
absoluto dele próprio e o obriga a pensar. A filosofia chamou «verdade» à apreensão de
um conteúdo necessário e exterior independente, mas admitindo-o como
transcendente e impondo-lhe a priori a forma da identidade — homogeneidade e
permanência, projecção da sua própria interioridade. Todo o conhecimento é, pois,
reconhecimento, reminiscência. Ora, como pode o pensamento saber o que tem a
pensar? «A filosofia correu sempre o perigo que consiste em comparar o pensamento
com ocorrências tão desinteressantes como dizer "bom dia Teeteto" quando é Teodoro
que passa!» Imagem servil do pensamento limitado a preencher provisoriamente uma
distância fortuita entre sujeito e objecto.

Colocando a questão da sua origem (arché, princípio fundador, Ideia, Cogito..!), a


filosofia pensa ter como ponto de partida um conceito sem pressupostos. Mas, ao fazê-
lo, serve-se de pressupostos do senso comum (todos pensam «saber sem conceitos o
que significa eu, pensar, ser»). A origem deve ser exterior ao conceito e a sua
relação com a necessidade da ordem do evento, o exterior deve ser imanente. Só
pensamos estimulados por alguma coisa. Um pensamento imanente não sabe de
antemão o que significa pensar.

Não estimulada, a verdade é um mero universal abstracto, desprovido «das forças


reais que constituem o pensamento». «A essência do pensamento», diz Deleuze,
inspirado em Nietzsche, «não é o verdadeiro, mas o sentido e o valor»:
«compreendemos pensamentos imbecis, discursos imbecis que são inteiramente
compostos por verdades.» «O carácter verdadeiro do que pensamos» é o sentido, que
se refere mais a uma avaliação do que a uma significação, mais a uma vontade e a uma
afirmação do que a um ser, introduzindo-se no verdadeiro diferenças de valor: entre
verdades baixas (simples reconhecimentos) e verdades altas (levantar problemas). O
contrário da verdade é a estupidez, que não é o erro nem a ignorância, mas o espírito
falso, «perpétua confusão entre o essencial e o acessório, o geral e o particular»
(Différence et répétition). Essa é a condição natural do pensamento.

3 - Forças e afectos: Libertar o pensamento da língua binária


Para pensar é preciso ser sensível a alguma coisa, às diferenças, à quilo que se destaca,
que faz sair do torpor inerente ao pensamento. «Pensar depende de forças que se
apoderam do pensamento.» Por exemplo, Foucault distinguiu «forças de elevação ao
infinito no século clássico, à sombra das quais o pensamento elabora um "composto-
Deus"», «forças de finitude no século XIX, que inspiram um "composto-Homem"; e
hoje talvez forças do finito ilimitado». A força é o poder de afectar e ser afectado (ideia
comum a Espinosa e a Nietzsche); «em relação estreita com a sensação», ela não é
aquilo que age», mas, «como o sabiam Leibniz e Nietzsche, aquilo que percebe e sente».

«Pensar, filosofar, é libertar o pensamento de tudo o que o aprisiona» e, desde logo, do


funcionamento imediato da língua, cujas oposições binárias engendram o domínio da
representação. A linguagem filosófica tende a reduzir-se ao manuseamento dos grandes
opostos: sensível/inteligível, uno/múltiplo, em si/para si, eu/outro, etc. Deleuze não
opõe à razão o seu oposto, mas procura outra forma de racionalidade, a do
acontecimento, do sentido, que restitui o factor risco ao pensamento, faz dele, «um
exercício perigoso», um confronto de singularidades.

4- Um empirismo superior ou transcendental - O plano de imanência:


Pensar não é fundamentar

O que «violenta o pensamento» são os signos como hieróglifos, focos de sentido:


objectos estranhos, palpáveis ou imaginados, que se furtam à representação, objectos
de confronto e não de reconhecimento.

Condição transcendental do pensamento, o exterior é denominado «plano de


imanência» — esfera transcendental informal em que nada é pressuposto senão a
exterioridade e que «escapa a qualquer transcendência do sujeito ou do objecto»... O
exterior «transcendental» do pensamento ou plano de imanência é o não
representável. Plano, cenário, indicam a dupla face do pensamento e do ser, em que as
ideias do indivíduo se constroem e ganham consistência em horizontalidade. Pensar
não é fundamentar, mas aventurar-se, criar, experimentar novos problemas.

• O plano de imanência: Os pensadores da imanência (Espinosa, Hume,


Nietzsche, Bergson)
«Todos os autores de que me ocupei projectaram um plano de imanência.» O
empirismo de Hume não indica que o inteligível proceda do sensível, mas antes que um
pensamento metódico opera de um ponto de vista puramente imanente, a teoria das
relações enquanto exteriores aos seus termos.

Com o pluralismo de Nietzsche, a filosofia torna-se uma arma de guerra contra o


monismo platónico (e schopenhaueriano), que reduz à aparência a pluralidade das
forças, e contra a dialéctica, último avatar da metafísica e do niilismo do pensamento
representativo.

Em Bergson, Deleuze encontra a definição da filosofia como empirismo superior,


superar a experiência, não em relação às condições a príorí de toda a experiência
possível, mas às condições concretas de uma experiência real, de tal forma que essas
condições não superem o condicionado, que entre a condição e o condicionado não
exista qualquer distância. Os conceitos devem ser moldados na coisa. Em vez da
oposição dos contrários, desenvolver «uma fina percepção da multiplicidade».

Príncipe dos filósofos, Espinosa inventou o plano de imanência que se relaciona com
a substância e os atributos. Imanência teórica e prática que distingue a ética - «tipologia
dos modos de existência imanentes» — e a moral que «associa sempre a existência a
valores transcendentes». Em Espinosa, o empirismo está ligado à satisfação com a
diversidade e à rejeição das paixões mórbidas.

5- O esquema antidialéctico

O negativo dialéctico anula a diferença em termos de oposição e contradição,


restabelecendo o primado da unidade. Mas apenas existe o positivo sem identidade.
Três operadores compõem o esquema antidialéctico de Deleuze:
5.1 O conceito de menor ou micro,

A diferença é afirmativa enquanto «pequena» — não débil mas nuance, variação de


intensidade, diferenciação. A imanência faz sobreposições sem ter em conta lacunas e
alteridade;

5.2 O carácter paradoxal da filosofia. Não há senso comum, arché comum,


referenciais comuns em que se possam enquadrar as oposições. Quando pensamos
opor-nos ou objectar, estamos simplesmente em paralelo, «de lado» (para). Não há
unidade da história da filosofia; Descartes* considerava inofensivas as objecções de
Espinosa. Com efeito, não colocavam ambos as mesmas questões;

5.3 O conceito de linha de fuga. Não podemos atacar frontalmente as grandes


oposições duais ou dialécticas; temos de desfazê-las a partir do seu interior, traçar
uma linha de variações intensivas a partir de pequenas diferenças suscitando um novo
discurso, novas formas de pensar e sentir. O pensamento é poder de
desterritorialização, ligado ao seu exterior que o força.

O que é a filosofia? Uma invenção de conceitos

O próprio conceito é uma intensidade, tal como as singularidades com que lida: um
continuum de variações. Ele mesmo sem identidade, coordena outras intensidades,
outros conceitos: «O Cogito de Descartes condensa as variações intensivas
respectivas de duvidar, pensar, ser, num co-funcionamento com consistência, não no
agrupamento comum sob um género. A verdade de um conceito é a sua consistência”.

6- A expressão, o rizoma

A imagem do rizoma, bolbo que lança raízes adventícias e cresce à superfície por
ramificações não unificadas, opõe-se à imagem clássica da filosofia «como uma
árvore» (Descartes). «Os signos trabalham as próprias coisas, ao mesmo tempo que as
coisas se desenvolvem ou se manifestam através dos signos» (Mille plateaux). O
pensamento já não ocupa um lugar exterior em relação ao mundo; reflecte sobre as
coisas, entranha-se nelas como um rizoma. Entre a forma de expressão (domínio dos
signos) e o conteúdo (domínio do concreto), a relação já não é de representação, mas
de implicação recíproca. Os signos, fluxos semióticos (não limitados à relação
significante/significado), são considerados em disposições ligadas a elementos extra-
linguísticos, fluxos extra-semióticos, práticas extra-discursivas, sem que exista
prioridade ou inferioridade.

7- A vida: a arte pela vida

Deleuze reivindica um vitalismo — no sentido do «grande vigor» de Nietzsche ou


Espinosa: «poder de uma vida não orgânica», vitalidade nem biológica nem
quotidiana. Vida significa o princípio de desapropriação que está no centro da
capacidade de renovação do ser e que coloca o pensamento em crise. «A vida mais
extravagante e intensa», «aquela que pode existir numa linha de desenho, de escrita
ou numa pauta de música» é poder de abertura ao ilimitado. Ela tem como mola do
seu poder uma máquina abstracta: aquilo que numa disposição opera o poder de
desterritorialização, produz linhas de fuga e abre uma saída.

8. Um pensamento afirmativo do desejo: O Anti-Édipo, crítica da psicanálise

O conceito de indefinido — finito ilimitado — inaugura uma dimensão para além da


oposição negativa / positiva. O desejo é pensado, desde Espinosa e Nietzsche, como
superabundância, poder doador ou criador nos moldes da energia pulsional.
Relaciona-se com o que o engendra positivamente. O prazer é a sua interrupção, não o
seu sentido, daí a sua essência «esquizofrénica»: os esquizofrénicos ensinam-nos que
o desejo é produto e disseminação a partir dos órgãos, (luxo, conexão e corte do fluxo).
Não existe nem fim, nem termo que não seja a libertação do seu próprio estado de
espírito, o seu estiramento em linha abstracta levando os devires à sua mais elevada
realidade.

O Anti-Édipo (L'Ânti-Oedipe) envolve a dupla crítica do freudismo e do estruturalismo.


A psicanálise reduz o desejo a uma falta causada pela interdição, a uma máquina de
produzir fantasmas; confina-o a um sistema fechado de representações/repressões e
desvia as grandes forças do inconsciente para pequenas necessidades. Ora, o poder do
desejo não se deve resumir ao contexto familiar; o recalcamento deve ser inserido num
movimento de repressão social mais amplo: «As figuras parentais são indutores
insignificantes».

Contra o sujeito freudiano, o conceito de máquina desejante faz do inconsciente


uma máquina num universo de máquinas cuja função é produzir. A análise será
esquizo-análise: libertar o sujeito que deseja da repressão indissociável do seu desejo
e para a qual a psicanálise, com os seus efeitos de poder, contribui largamente. O
estruturalismo também reduz a disposição múltipla do desejo à lei binária da estrutura
e da falta.

9- Individuação: o evento no vazio do tempo

Cada dimensão é individualizante, faz mudar o sujeito no qual ela se actualiza. Uma
vida não é um alinhamento de presentes entre nascimento e morte num presente
contínuo homogéneo; ela implica rupturas profundamente temporais, na acepção
negativa que damos a esse termo, quando, por exemplo, já não nos reconhecemos
naquele que fomos.

Diferença das diferenças, anónimo e individuante, ele mesmo sem identidade, a não
ser por diferir de si, o tempo é a multiplicidade, relação de pura diferença entre os
termos. Deleuze vai buscar a Duns Escoto o termo «hecceidade» para designar a
singularidade intensiva, a individualidade eventual, móvel e sem forma prévia.
Princípio informal de individuação, a intensidade, nascente e desvanecente, con-
funde-se com o evento — tudo o que se verifica, dimensão de emergência ainda não
distinta da que a precede. Cume de variações intensivas e diferenças singulares, em que
coexistem instantaneamente duas dimensões heterogéneas, futuro e passado,
confundindo-se nesse vazio: o tempo.

10 - Política nómada, ética do evento


O primado ontológico da variação contínua, do informal e do ilimitado, justifica em
política a rejeição da ordem e do equilíbrio; traduz-se por um nomadismo radical,
forma de anarquismo que recorda que a filosofia não tem como tarefa defender os
valores em curso, mas desmistificar os adquiridos, a «revolução oficial». Contra o
primado do senso comum veiculado hoje na ideologia da comunicação e do consenso
manifesta-se a ética intempestiva da resistência, das minorias e, no sentido estóico, do
evento: «Ou a moral não tem qualquer sentido, ou é esse o seu único significado, nada
mais tem a dizer: estar à altura daquilo que nos acontece» (Logique du sens).

Bibliografia

E. Alliez, La Signature du monde. Ou qu´est-ce que la philosophie de Deleuze et

Guattari, Cerf, 1993.

A,Gualandi, Deleuze, Les Belles Lettres, 1998.

P. Mengue, Gilles Deleuze ou le système du multiple, Kimé, 1994.

Dicionário dos Filosófos de Noella Barraquin e Jacqueline Laffitte.

Capítulo V: LACAN, Jacques e o pensamento estruturalista (1901-1981)

Psiquiatra e psicanalista. Influenciado em grande medida pela linguística moderna,


Lacan propõe uma nova leitura de Freud à luz da análise estrutural e introduz na
psicanálise o modelo linguístico que já se havia imposto na biologia e nas outras
ciências humanas. Os escritos de Lacan, cujo esoterismo não exclui toda a
inteligibilidade, suscitaram um verdadeiro entusiasmo e a escola lacaniana continua,
tanto em França como no estrangeiro, a influenciar o movimento psicanalítico.
Nascido em Paris, fez os seus estudos de psiquiatria e defendeu, em 1932, a tese La
Psychose paranoiaque et ses rapports avec la personnalité, visivelmente influenciado
pela leitura de Freud. Liga-se aos surrealistas e frequenta os meios filosóficos de
inspiração hegeliana, estruturalista e fenomenológica. A adesão de Lacan ao
sincronismo da linguística saussureana assinalará o fim do seu fascínio pelas ideias de
Hegel. Mas o relatório de Roma, Fonctions et champ de la parole et du langage en
psychanalyse, tem ainda traços delas, com a memorável análise que Lacan fez do Fort-
Da» (A. Green, O Trabalho do Negativo). De 1953 até à sua morte, Lacan leccionou
um seminário, primeiro no hospital de Sainte-Anne, depois na ENS de Ulm, na
faculdade de Direito de Paris e, por fim, na escola que ele próprio fundou. Apesar
do hermetismo do seu discurso e do gosto pela provocação, a personalidade muito
forte de Lacan atrai um público assíduo e interessado. Nomeado membro titular da
Sociedade Psicanalítica de Paris em 1938, Lacan funda a Sociedade Francesa de
Psicanálise em 1953. Colocado no índex da Sociedade Internacional e Psicanalítica
em 1963, funda, em 1964, a Escola Freudiana de Paris, que será extinta em 1980 e
substituída pela «Causa Freudiana» pouco antes da sua morte, em Setembro de 1981.

1- O «estádio do espelho»

Esta descoberta fundamental, momento marcante na evolução do pensamento de


Lacan, foi objecto de várias comunicações, entre as quais a pronunciada no XVI
Congresso Internacional de Psicanálise, em Zurique (1949), Le Stade du miroir comme
formateur de la fonction du Je.

O «estádio do espelho», momento em que a criança se reconhece a si própria na sua


imagem como Eu, é um estado decisivo no desenvolvimento do indivíduo e na
aquisição progressiva da identidade. A criança não tem originalmente a experiência
do seu corpo como uma totalidade simultaneamente autónoma e unificada; na
experiência do espelho, a criança separa-se da fusão primitiva com a mãe, ao mesmo
tempo que se liberta «do fantasma do corpo fragmentado» (percepção do corpo
como dispersão de todos os membros) para aceder à reunificação e à integridade do seu
corpo.
O estádio do espelho pode ser decomposto em três momentos: a criança percebe, em
primeiro lugar, a imagem que o espelho lhe reenvia como a de um ser real do qual ela
se tenta aproximar e tocar; depois, compreende que o outro no espelho é apenas uma
imagem e não uma realidade; por fim, não só a criança reconhece que o outro no
espelho não é senão uma imagem, como também identifica esse reflexo com a imagem
do seu próprio corpo.

Este processo de identificação fundado na relação especular efectua-se no registo


do imaginário, porque a criança identifica-se com um duplo de si própria, com
uma imagem que não é ela mesma mas que lhe permite reconhecer-se. Esta
experiência puramente narcísica é anterior a qualquer subjectividade, ou seja, à
ordem simbólica da palavra e da linguagem. Assim, a relação especular estrutura o
sujeito antes de qualquer relação dialéctica com outro pela mediação do discurso.
Esta identificação primária da criança com a sua imagem estará na origem de
todas as identificações futuras. A criança é levada a reconhecer a sua mãe como
outro quando se percebe a si própria como outro.

É com a identificação com o pai que se efectua o acesso à ordem simbólica. O


papel essencial do pai não reside na relação vivida, mas na palavra - e mais
precisamente na palavra de autoridade: «E no nome do pai que se deve reconhecer
o suporte da função simbólica que, desde a aurora dos tempos simbólicos,
identifica a sua pessoa com a figura da lei» (Ecrits, p. 278). Se a mãe reconhece o
pai como autor da lei, a criança pode identificar-se com o pai na relação simbólica
reconhecendo, por sua vez, o nome do pai. Mas se a mãe nega esse papel
fundamental do pai, a criança permanecerá na ordem narcísica do imaginário, ou
seja, na sujeição à mãe.

Ao aceder à ordem simbólica, supera a relação dual com a mãe, torna-se sujeito
e entra no mundo da cultura e da civilização. Em termos freudianos, pode dizer-se
que a identificação com a mãe é «primária» e que a identificação com o pai é
«secundária».

2 - Necessidade, pulsão, desejo, procura

A necessidade, falta radical que resulta da desmama do seio materno, sendo


essencialmente orgânica, visa um objecto e satisfaz-se com ele.
A pulsão é, tal como para Freud, uma qualificação erótica da necessidade. E o
impulso que exprime a falta do complemento anatómico do corpo da mãe. Ao
reencontrar a completude do corpo, ela localiza-se nas zonas erógenas.

Quanto ao desejo, que Lacan situa no centro da psicanálise, nasce da experiência e


da recordação da satisfação da necessidade e visa menos um objecto determinado
do que o prazer perdido que deseja fazer renascer. O desejo torna-se, então,
desejo daquilo que é fonte de todas as satisfações, desejo de ser amado. É neste
sentido muito hegeliano que é desejo do desejo do outro. «O próprio desejo do
homem constitui-se na linha de mediação; é desejo de fazer reconhecer o seu
desejo» (Écrits, p. 181). «O desejo do homem encontra o seu sentido no desejo do
outro, não tanto porque o outro detenha a chave do objecto desejado, mas
porque o seu primeiro objectivo é ser reconhecido pelo outro» (ibidem, p. 268).
Lacan transforma assim a dialéctica da consciência na do desejo.

Por fim, é pela mediação da procura que o desejo se inscreve na ordem do


simbólico, se mostra na palavra e pode então ser formulado. O desejo produz-se
aquém e além da procura, que nunca pode satisfazê-lo e que, incapaz de o
saciar, fá-lo sempre renascer. O desejo, prendendo-se no «desfile radical da
palavra», aliena-se. Recalcado, une-se ao simbólico: a procura torna-se assim o
substituto do desejo na ordem da linguagem. E assim que ganha sentido a
célebre fórmula de Lacan: «o Outro, com um O grande, é o lugar do deslo-
camento da palavra.»

3 - Uma nova concepção do inconsciente

Um dos contributos mais importantes de Lacan reside no papel primordial


atribuído à linguagem na psicanálise.
«O símbolo manifesta-se primeiro como a morte da coisa e esta morte constitui
no sujeito a eternização do seu desejo» (Écrits, p. 319). A ordem do simbólico
substitui-se ao desejo e também traduz o desejo.

A originalidade de Lacan consiste em ter concebido o inconsciente como uma


língua, ou seja, como uma rede de significantes que forma um sistema a todos os
níveis. «A nossa doutrina baseia-se no facto [...] de o inconsciente ter a estrutura
radical da linguagem, de um material funcionar aí segundo leis que são aquelas
que o estudo das línguas positivas, das línguas que são ou foram efectivamente
faladas, descobre» (ibidem, p. 594). O inconsciente é, por assim dizer, tecido
pela trama da linguagem e afirma-se através de um texto. Ora, a linguagem
remete para a distinção fundamental do significante e do significado. É aqui que
Lacan privilegia a rede dos significantes na medida em que esta cria um
sistema a todos os níveis e que, na perspectiva saussurcana, «cada elemento tem
aí a sua função exacta de ser diferente dos outros». Assim, a rede dos
significantes comanda o conjunto das significações, tal como a linguagem comanda
a fala. A rede dos significados apenas se torna coerente
ligando-se ao nível dos significantes; a análise lacaniana resulta assim na
afirmação da supremacia do significante.

Além disso, Lacan, fiel à intuição freudiana de que as leis do sonho são
equivalentes às da poesia, vai construir uma verdadeira retórica do inconsciente.
A sua tese, que é também a do linguista Jakobson, defende que os mecanismos
de formação do inconsciente podem ser assimilados aos da linguagem segundo
duas figuras fundamentais: a metáfora — condensação, substituição -; a
metonímia - deslocamento, combinação. «A cura opera-se pela restituição das
cadeias associativas que sustentam os símbolos até ao acesso à verdade do
inconsciente.» Ela implica, então, que o paciente tome consciência de todas as
metáforas e metonímias, ou seja, do trabalho de construção fantasmagórico até
fazer emergir o significante primeiro.
Compreende-se agora todo o sentido da cura cujo funcionamento assenta
inteiramente na fala do paciente. Se o inconsciente é «a parte do discurso con-
creto que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade do seu
discurso consciente», a cura não tem outro objecto senão restituir ao sujeito
«uma fala plena» que o devolva à ordem simbólica conferindo-lhe a possibilidade
de verbalizar aquilo que o seu inconsciente engendrou.

Bibliografia

J. Dor, Introduction à la lecture de Lacan, Denoel, 1985.

A. Green, Le Travail du négatif, Minuit, 1993, pp. 9-14

Dicionário dos Filosófos de Noella Barraquin e Jacqueline Laffitte

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