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ARTIGO

A questão urbana na dinâmica de reprodução capitalista

The issue in urban dynamics of reproduction capitalist

Maria Clariça Ribeiro GUIMARÃES1

Resumo: Discute particularidades da questão urbana no Brasil, objetivando abordar dinâmicas sociais
do atual tempo histórico que reconfiguram o espaço urbano, dimensão incontornável da reflexão so-
bre as cidades. Resulta de sucessivas aproximações com a totalidade social, constituindo objeto de
análise crítica pesquisas empíricas e elaborações teóricas sobre a temática em estudo. Conclui que a
dinâmica de (re) produção do espaço não pode ser pensada excetuada de sua intrínseca relação com
os processos de acumulação capitalista e de exploração da força de trabalho.
Palavras-chave: Questão Urbana. Espaço. Cidades.

Abstract: Discusses peculiarities of the urban question in Brazil, aiming to address social dynamics of
the current historical time that reconfigure urban space, inescapable dimension of the reflexion about
the cities. It results from successive approximations to the social totality, constituting object of critical
analysis empirical researches and theoretical elaborations about the topic in study. It is concluded that
the dynamics of (re) production of the space should not be considered excepted from its intrinsic rela-
tionship to the processes of capitalist accumulation and exploitation of the workforce.
Keywords: Urban Question. Space. Cities.

Submetido em: 9/10/2012. Aceito em: 24/1/2013.

1Assistente Social. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (U-
FRN), Brasil. E-mail: < clarica.ribeiro@gmail.com >.
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Argumentum, Vitória (ES), v. 5, n.1, p. 180- 196, jan./jun. 2013.
A questão urbana na dinâmica de reprodução capitalista

Introdução dades sócio-espaciais, buscando enfa-


tizar a realidade do Brasil.

O
s fundamentos que explicam
as contradições particulariza- 1 A lógica do capital na produção do
das nos espaços urbanos de- espaço
vem ser buscados na análise rigorosa
do processo de produção do capital. O O espaço como produto da atividade
desenvolvimento das forças produti- humana e da relação homem-natureza
vas, que conduz à gênese e desenvol- faz parte do processo de reprodução
vimento do modo capitalista de pro- geral da sociedade e, tendo sua produ-
dução, apresenta como características ção assentada nas necessidades impos-
imanentes a exploração, a apropriação tas pelo desenvolvimento da acumula-
de espaços e a destruição de recursos ção capitalista, e também mercadori-
naturais e da força humana de traba- zado, tal como a cidade e a própria
lho, com vistas a assegurar taxas cres- moradia que passam a serem concebi-
centes de lucro. dos como mercadorias necessárias à
viabilização da produção, circulação,
Nesse sentido, o método da economia distribuição e troca, condição para a
política revela grande valor para apre- realização do ciclo de acumulação de
endermos a dinâmica atual da socie- capital. Afinal, sendo o espaço urbano
dade capitalista, com o agravamento moldado essencialmente para potenci-
das desigualdades sociais geradoras de alizar a acumulação do capital, sua
fenômenos como a pobreza urbana e formatação articula as diferentes esfe-
rural, de situações de pauperismo tan- ras do modo capitalista de produzir.
to no campo quanto na cidade, o uso Exatamente por isso há, na produção
predatório dos recursos ambientais, do espaço no capitalismo, a vitória do
mas também as formas de resistência valor de troca sobre o valor de uso,
frente às expressões da questão social e haja vista que o núcleo urbano torna-se
às lutas em defesas de direitos das objeto de um duplo papel: lugar de
classes trabalhadoras, no campo e na consumo e consumo do lugar (LEFEB-
cidade. VRE, 2001), em um processo no qual o
Com esse horizonte, no presente ensai- valor de troca prevalece a tal ponto
o, nos esforçamos para adentrar os sobre o valor de uso que praticamente
meandros da questão urbana, partindo suprime este último. Com isso, ‚ [...] o
de uma análise da lógica capitalista de valor de troca e a generalização da
produção do espaço, objetivando com- mercadoria pela industrialização ten-
preender como os mecanismos de re- dem a destruir, a subordiná-las a si, a
produção do capital configuram e de- cidade e a realidade urbana, refúgios
lineiam expressões da questão urbana. do valor de uso *...+‛ (LEFEBVRE, 2001,
Para apreender como se materializa p. 14).
essa lógica, discutiremos as desigual-

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O espaço, ainda, apesar de socialmente zem, a um só tempo, expressões da


produzido pela atividade humana, questão urbana e da questão ambien-
posto que é por meio do trabalho que tal.
podemos perceber a realidade social
como criação do homem, num ato de Nas elaborações de Harvey (2005) en-
transformar a natureza e a si mesmo, é contramos a análise que sugere ser a
apontado como exterioridade e perce- acumulação capitalista desenvolvida
bido com estranhamento, ou seja, a via articulação de quatro elementos,
alienação também está expressa no dentre os quais está a expansão geo-
processo de produção do espaço e das gráfica e a produção do espaço. Os ou-
cidades. tros três elementos referem-se à inten-
sificação da atividade social, quais se-
A articulação do processo de produção jam: a penetração do capital em novas
do espaço urbano na sociedade capita- esferas de atividade; a criação de novas
lista não somente impõe uma determi- necessidades, desenvolvendo novos
nada configuração ao espaço urbano, produtos; a facilitação e o estímulo pa-
como também é indicativa da forma de ra o crescimento populacional.
ocupação do espaço pela sociedade.
Desse modo, ‚*...+ a cidade e a realida- O aspecto da expansão geográfica –
de urbana seriam, nesta hipótese, o para o qual chamamos especial atenção
lugar por excelência e o conjunto dos no presente ensaio - por conseguinte,
lugares onde se realizam os ciclos de precisa ser entendido não somente co-
reprodução, mais amplos, mais com- mo condição prévia para a acumulação
plexos [...] a reprodução das relações capitalista, e sim como sendo simulta-
(capitalistas) de produção *...+‛ (LE- neamente condição e decorrência deste
FEBVRE, 2001, p. 23). processo, se revelando também como
contraface necessária da acumulação
Ademais, as relações socialmente esta- capitalista e, somado a outros aspectos
belecidas são também relações espaci- inerentes à lógica do capital, contribui
ais, haja vista serem circunscritas no para aprofundar desigualdades. Nesse
espaço em produção. É neste, precisa- sentido, se traduz em profundas trans-
mente, onde estão concentrados todos formações nos entornos físicos – nas
os recursos que o capital explora para cidades, no meio ambiente - e nas rela-
acumular, como são exemplares a força ções sociais.
de trabalho e o próprio meio ambiente.
Desse modo, apreender os mecanismos Transformações que, em última instân-
de reprodução do capital, a partir de cia e sem desconsiderar o próprio teor
sua lógica de acumulação, concentra- da luta de classes, não visam outro ob-
ção e expansão nos permite perceber jetivo senão o de amoldar a cidade às
determinantes para entender a dinâmi- exigências do domínio do capital, cri-
ca urbana, no seio da qual se produ-

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ando novos espaços para a acumula-


ção. Com propriedade e domínio teórico,
Fontes (2010) discute o teor contempo-
Para elucidar a forma como se processa râneo das expropriações produzidas -
e se caracteriza esta acumulação, Har- termo que a historiadora considera
vey (2004) indica a retomada, na con- mais adequado para tratar o fenômeno
temporaneidade, com distinções, de do que o conceito de espoliação – e seu
uma forma arcaica de acumulação que papel na dinâmica capitalista. Apre-
volta a expandir-se e é por ele denomi- senta, assim, as duas faces da tendên-
nada de acumulação por espoliação. cia à expansão do capital: a concentra-
Seguindo na mesma reflexão, o geógra- ção de recursos sociais e a recriação
fo marxista sugere ainda a existência permanente das expropriações:
de fontes de espoliação que seriam ex-
ternalidades ao capital. Trabalha assim Expandir relações sociais capitalistas
com a dialética interior-exterior, se- corresponde, portanto, em primeiro lu-
gar, à expansão das condições que exas-
gundo suas próprias palavras, para
peram a disponibilidade de trabalhado-
afirmar que ‚*...+ o capitalismo pode res para o capital, independentemente
tanto usar algum exterior preexistente da forma jurídica que venha a recobri a
(formações sociais não capitalistas ou atividade laboral de tais seres sociais. A
algum setor do capitalismo – como a expropriação primária, original, de gran-
des massas campesinas ou agrárias,
educação – que ainda não tenha sido
convertidas de boa vontade (atraídas pe-
proletarizado) como produzi-lo ativa- las cidades) ou não (expulsas, por razões
mente‛ (HARVEY, 2004, p. 118). diversas, de suas terras, ou incapacita-
das de manter sua reprodução plena a-
No debate teórico, Fontes (2010) pole- través de procedimentos tradicionais,
em geral agrários) permanece e se apro-
miza com o termo acumulação por espo-
funda, ao lado de expropriações secundá-
liação, forjado por Harvey (2004), por rias [...] (FONTES, 2010, p. 44).
entender que, apesar de extremamente
sugestiva, sua tese incorre em algumas No debate em curso e aqui parcialmen-
dificuldades, na proporção em que in- te reproduzido, corroboramos com a
cide no deslize de relegar o tema das posição de Fontes (2010), considerando
expropriações primárias à condição de que a dinâmica de expropriações que
acumulação primitiva, levando à supo- Harvey (2004) demonstra é por ele a-
sição de que, no amadurecimento do presentada como pertencente aos pri-
capitalismo, desapareciam as expro- mórdios do capitalismo, uma caracte-
priações bárbaras de sua origem. A rística externa a este modo de produ-
discordância de Virgínia Fontes reside, ção e que, nesse sentido, não é reco-
sobretudo, no tema da produção de nhecida por Harvey (2004) como parte
externalidades e na própria contrapo- de seu desenvolvimento. Intriga-nos
sição que Harvey (2004) realiza entre bastante a dualidade com que o geó-
espoliação e expropriação. grafo marxista trabalha a questão, dis-
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tinguindo características que seriam A inserção do Brasil no jogo geral de


inerentes ao capitalismo e outras que reprodução do capital, neste contexto
supostamente seriam estranhas e ex- de financeirização da economia 2 e do
ternas à sua dinâmica. imperialismo em sua fase de intensifi-
cação da integração dos territórios, em
A dificuldade presente na elaboração nossas análises, explica-se na realidade
de Harvey (2004), no que se refere es- por meio dos conceitos chaves de su-
pecificamente à dualidade apontada e bimperialismo e superexploração
à própria categoria espoliação, encon- (MARINI, 1974), por serem estes capa-
tra-se, em nossa concepção, sobretudo zes de captar a consolidação, no cená-
no fato de ser uma tese que abre mar- rio internacional, de papéis distintos
gem para se afirmar a espoliação – ou, no mesmo processo geral da dinâmica
melhor dizendo, expropriação – como capitalista a serem exercidos por parte
não sendo decorrente da dinâmica de das nações hegemônicas e das nações
desenvolvimento capitalista e sim, periféricas e, entre estas, algumas in-
própria a um estágio de acumulação termediárias.
(primitivo). Em nossos estudos, temos
maturado o entendimento de que em- Superexploração e subimperialismo
bora se tratando de um processo dife- são conceitos elaborados, por dentro
renciado, nem por isso deixa de ser da teoria marxista, com destaque para
parte intrínseca e imbricada na nature- a formulação de Ruy Mauro Marini,
za do capitalismo. Interessa-nos, então, intimamente relacionados à realidade
saber por meio de que mecanismos as periférica. Objetivam explicar o caráter
expropriações subjacentes à lógica ca- particular que as nações subdesenvol-
pitalista se traduzem em profundas vidas possuem, em sua vinculação
transformações nas cidades e nas rela- complementar e contraditória com re-
ções sociais aí estabelecidas. lação aos países imperialistas centrais.
Ambos os conceitos, logicamente, não
Até porque as contradições do Brasil
contemporâneo se expressam como 2 Trata-se de um regime de acumulação
contradições do processo de produção mundial predominantemente financeiro. De
do espaço e outras determinações his- acordo com Chesnais (1996) é uma nova
configuração do capitalismo mundial, bem
tóricas do momento atual vão sendo
como dos mecanismos que comandam seu
agregadas à questão urbana, a partir desempenho e regulação; um posto avançado
de modernas questões, gerando e ali- da mundialização do capital, situado no
mentando uma nova lógica de repro- quadro do prolongamento direto do estágio
dução do espaço urbano, ao qual Har- imperialista. As contribuições de Husson
(1999) também são fundamentais para o
vey (2004) se refere como sendo a cons-
desvendamento de determinações e processos
tituição de um novo imperialismo. presentes na mundialização da economia, nos
levando a crer tratar-se certamente de uma
dominação ainda maior que em períodos
anteriores.
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podem ser entendidos descolados da concreto de sua atuação, pois isto traz
teoria acerca do imperialismo. e evidencia particularidades para o
processo. Ao fazermos alusão ao terri-
Define-se o subimperialismo, de acor- tório de atuação do capital, pondera-
do com Marini (1974, p. 7), alicerçado mos que, com base em Santos (2006),
fundamentalmente em duas caracterís- estamos entendendo o território como
ticas: muito mais do que apenas o conjunto
de sistemas naturais e de sistemas de
a) a partir de la reestructuración del sis- coisas superpostos. Território é empre-
tema capitalista mundial que se deriva gado, nesta acepção, como o funda-
de la nueva división internacional del
mento do trabalho, o lugar de residên-
trabajo, y
b) a partir de las leyes propias de la eco- cia, das trocas materiais e espirituais e
nomía dependiente, esencialmente: la do exercício da vida, daí a denomina-
superexplotación del trabajo, el divorcio ção de ‚território usado‛, atribuída
entre las fases del ciclo del capital, la pelo autor.
monopolización extremada en favor de
la industria suntuaria, la integración del
capital nacional al capital extranjero o, lo Neste sentido tal debate teórico nos
que es lo mismo, la integración de los parece fundamental para apreender as
sistemas de producción (y no simple- novas dinâmicas urbanas em tempos
mente la internacionalización del mer- de mundialização financeira, com suas
cado interno) [...].
incidências sobre as cidades e, em par-
ticular, sobre as condições de moradia
Isto reforça nosso entendimento do
e de vida da classe trabalhadora. Ora,
subimperialismo não como uma condi-
considerando que as expropriações –
ção estrutural do capitalismo depen-
primárias e secundárias – são inerentes
dente, mas como uma dinâmica de-
à dinâmica de reprodução do capital,
terminada pela conjuntura e correlação
em sua busca incessante de enfrentar
de forças na luta de classes nacional e
suas crises de acumulação, o espaço,
internacional. Acredita-se desse modo,
constitui na fase atual de acumulação
que permanece em vigor a capacidade
um fator essencial; nele ocorrem as
explicativa dos conceitos de superex-
expropriações e re-apropriação de par-
ploração e subimperialismo para a rea-
celas a serem ‚re-funcionalizadas‛ pelo
lidade brasileira, considerando que o
capital.
atual período histórico parece susten-
tar, em novas bases, as características
Faz-se necessário, portanto, estabele-
subimperialistas apontadas original-
cermos mediações que saiam do mo-
mente por Marini.
vimento geral do capital (e do desen-
volvimento do capitalismo no espaço)
Está, assim, evidente para nós que a
para se atingir formas concretas de
referência à dinâmica de reprodução
organização sócio-espacial que têm,
do capital necessariamente deve ser
feita referindo-se também ao território
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necessariamente, especificidades não âmago do cotidiano da vida urbana,


encontradas alhures. sendo extremamente válido, nesse sen-
tido, a evidência de que sob hegemonia
2 O urbano, a moradia e as das relações capitalistas a questão da
desigualdades sócio-espaciais moradia nunca será resolvida:

Almejando desvendar a forma como se Todas as grandes cidades têm um ou vá-


processa e se materializa o fenômeno rios ‘bairros de má fama’ onde se con-
centra a classe operária [...] Na Inglater-
de amoldamento da cidade às exigên-
ra, esses ‘bairros de má fama’ se estrutu-
cias do domínio do capital, Engels ram mais ou menos da mesma forma
(2010) faz a opção teórico- que em todas as cidades: as piores casas
metodológica de adotar como ponto de na parte mais feia da cidade; quase
partida a apreciação crítica das condi- sempre, uma longa fila de construções
de tijolos, de um ou dois andares, even-
ções de Habitação em que está sub-
tualmente com porões habitados e em
merso o proletariado das grandes ci- geral dispostas de maneira irregular [...]
dades, pois entende que o modo como Habitualmente, as ruas não são planas
se realiza a necessidade concreta de ‚se nem calçadas, são sujas, tomadas por de-
ter um teto para morar‛ é um critério tritos vegetais e animais, sem esgotos ou
canais de escoamento, cheias de charcos
que o possibilita deduzir como seriam
estagnados e fétidos. A ventilação na á-
então realizadas às demais necessida- rea é precária, dada a estrutura irregular
des sociais. Mais do que isso, o padrão do bairro e, como nesses espaços restri-
de moradia (ou ausência desta sobre- tos vivem muitas pessoas, é fácil imagi-
tudo) é também reflexo de todo um nar a qualidade do ar que se respira nes-
sas zonas operárias [...] (ENGELS, 2010,
processo complexo de segregação e
p. 70).
discriminação presente numa socieda-
de plena de contrastes acirrados. Con-
O relato supra citado é apenas ilustra-
trastes estes que tiveram a industriali-
tivo das diversas narrativas que Engels
zação como processo indutor de diver-
apresenta para denotar que a existên-
sas questões referentes à cidade e ao
cia social da classe trabalhadora se
desenvolvimento da realidade urbana 3.
transita e se materializa sob o tensio-
namento de se encontrar, no melhor
Os relatos descritivos-analíticos e do-
dos casos, em condições de vida mo-
cumentais que reúnem em sua obra
mentaneamente suportáveis ou, no
são reveladores da tensão em que a
pior dos casos, estar na miséria extre-
classe trabalhadora se (re)produz no
ma (ENGELS, 2010), realidade particu-
larizada ainda pelo fato de se tratar de
3A relação urbanização/industrialização é um
tema que já foi muito explorado por autores trabalhadores desempregados ou não.
relevantes para a área da questão urbana nos
anos 1970. Recomendamos o recurso da Até porque é válido lembrar que, tal
consulta direta a estas elaborações, a exemplo qual a hipótese de Kowarick (1979)
das obras de Castells (2000), Harvey (2005),
aponta, uma grande oferta de força de
Lojkine (1981), Lefbvre (2001) e Santos (2006).
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trabalho constitui um elemento de breza do horizonte dos outros países e


fundamental importância para a reali- do seu próprio olhar.
zação de uma acumulação amplamente
expansiva do capital, autor para o qual Nesta lógica, o fator localização apare-
há uma relação direta entre condições ce de modo central, na proporção em
de alojamento e precariedade dos salá- que:
rios da parcela da sociedade abrigada
em favelas, casas precárias da periferia A cidade se caracteriza por ser um am-
e cortiços. Em outras palavras, a hipó- biente construído, ou seja, seu espaço é
produzido, fruto do trabalho social [...] o
tese com a qual Kowarick (1979, p. 42)
solo urbano tem seu valor determinado
trabalha supõe que ‚o desgaste de uma por sua localização. Esta se caracteriza
força de trabalho submetida a jornadas pelo trabalho social necessário para tor-
de trabalho prolongadas e as espinho- nar o solo edificável (a infraestrutura
sas condições urbanas de existência urbana), as próprias construções que e-
ventualmente nele existam, a facilidade
tornam-se possíveis na medida em que
de acessá-lo (sua ‘acessibilidade’) e, en-
a maior parte da mão de obra pode ser fim, a demanda. Esse conjunto de fatores
prontamente substituída‛. é que distingue qualitativamente uma
parcela do solo, dando-lhe certo valor e
Interessante observar o quanto é notó- diferenciando-o em relação à aglomera-
ção na qual se insere (FERREIRA, 2005,
rio, guardadas as devidas proporções
p. 5-6).
decorrentes do espaço e tempo históri-
co em que se processam as elaborações Estabelece-se, dentro dessa lógica, um
de Engels (2010), a expressiva similari- verdadeiro distanciamento entre a vida
dade tranquilamente encontrada por urbana em bairros privilegiados – pen-
nós com a realidade urbana de nosso sados exclusivamente para as classes
país, especialmente porque como bem dominantes tanto em termos de acesso,
nos lembra Lefebvre (2001, p. 17), ‚este como de infraestrutura – e o cotidiano
processo dialético (industrialização e da vida urbana em bairros populares, o
urbanização, produção econômica e que tem constituído, por decorrência, a
vida social), longe de estar elucidado, existência de uma cidade apartada. A
estar também longe de ter terminado. configuração do espaço expressamente
Ainda provoca situações problemáticas organizado como cidade aparta-
*...+‛. da/segregada foi o que Engels (2010)
chamou de, nada mais, além de uma
Ainda mais porque desde os primeiros ‚disposição urbana hipócrita‛, verifi-
momentos da urbanização brasileira, o cada e traduzida em
interesse predominante das elites vol-
tou-se para a construção de uma nova ‚*...+ tanta sistematicidade para manter a
imagem da cidade, produzida por classe operária afastada das ruas princi-
meio de grandes intervenções urbanas pais, tanto cuidado para esconder deli-
que afastassem e escondessem a po- cadamente aquilo que possa ofender os

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olhos ou os nervos da burguesia (EN- da ‚exclusão territorial4‛ incidindo


GELS, 2010, p. 90). sobre a mesma população.

Exemplar deste fenômeno, no caso A imensa desigualdade sócio-espacial


brasileiro, são os primeiros planos ur- que se desenhou no cenário das me-
banísticos elaborados, amplamente trópoles brasileiras constituiu uma rea-
difundidos na época como planos de lidade expressa em uma ‚cidade para
embelezamento das principais metró- poucos‛ (FERREIRA, 2005), o que nos
poles do Brasil. Estes planos explicita- remete a uma contradição fundamental
vam as dinâmicas de urbanização da do capitalismo. A cidade, tal como to-
cidade a partir da premissa do controle da a riqueza dessa sociabilidade, em-
sanitário, argumento que legitimava a bora seja socialmente produzida e fru-
famigerada higienização de bairros to do trabalho social, é apenas priva-
centrais por meio de uma verdadeira damente apropriada.
expulsão da população mais pobre
destes locais. Na atualidade, aguçam-se também ou-
tras contradições, uma vez que diver-
O evidente contraste entre uma parte sas pesquisas vêm indicando a existên-
da cidade que possui alguma condição cia de, em média, 40% a 50% da popu-
de urbanidade, uma amostra pavimen- lação das grandes metrópoles, vivendo
tada, ajardinada, arborizada, com in- na informalidade urbana, sendo 15 a
fraestrutura completa – a despeito da 20% desta população moradora de fa-
predominantemente baixa qualidade velas, cortiços e loteamentos clandesti-
desses elementos – e, outra parte, em nos (FERREIRA, 2005). Vale ressaltar,
geral duas a três vezes maior, cuja in- todavia, no sentido de avançarmos
fraestrutura é incompleta ou mesmo para além da visão metropolitana da
inexistente é uma característica comum questão urbana, que desde os anos
a todas as cidades brasileiras, inde- 1980, as cidades médias do interior têm
pendente de sua região, historicidade, crescido significativamente, em função
economia ou tamanho (ROLNIK, do modelo primário-exportador do
2002).

Ademais, este quadro de contraposição 4 Temos, porém, restrições quanto à adoção do


implica para a parcela da sociedade termo exclusão para explicação do fenômeno
citado, pois consideramos que este conceito,
moradora da cidade pobre, precária e
em sua imprecisão, oculta o processo
ilegal dificuldades ainda maiores de econômico, político e social que o gera, ou seja,
efetivação ao direito ao trabalho, à cul- a raíz da questão social, na medida em que
tura e ao lazer, a título de exemplo. estes sujeitos destituídos dos seus direitos mais
Corresponde, portanto, ao que para básicos e elementares não se encontram fora
desta sociabilidade. Ao contrário, suas
Rolnik (2002) configura um quadro de
condições de vida e trabalho são produto e
sobreposição das diversas dimensões decorrência da forma de organização
capitalista.
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país 5, generalizando desse modo a da pobreza urbana, vêm se consoli-


questão urbana para todo o território. dando também via ampla dissemina-
Embora com características próprias, a ção da ‚cultura do medo‛ e o conse-
informalidade urbana sem dúvidas qüente isolamento da elite em verda-
está também presente nas cidades bra- deiros guetos de luxo. Nada mais do
sileiras médias. que um reforço à dualidade entre ci-
dade dos ricos e cidade dos pobres, ou
O conceito de informalidade urbana pro- mesmo, entre cidade legal e cidade
cura dar conta da realidade de inade- ilegal (CONSELHO FEDERAL DE
quação físico-construtiva e ambiental SERVIÇO SOCIAL, 2010), aprofun-
das condições de habitação em que dando as contradições e desdobramen-
vive a classe trabalhadora de nosso tos da questão social na atualidade,
país. Trata-se, em síntese, de uma rea- bem como a criminalização da pobreza
lidade na qual predominam constru- com base na noção de ‚classe perigo-
ções precárias, terrenos em áreas de sa‛.
risco ou de preservação ambiental e
habitações com área útil insuficiente Em um quadro no qual o acirramento
para a quantidade de moradores. da exploração do trabalho e a expansão
capitalista tomam feições extremante
Mas, além disso, também estão abar- violentas sob a ótica do trabalho e da
cadas no conceito de informalidade ur- vida urbana – expressas nas condições
bana as moradias localizadas em espa- de transporte, habitação, saúde, sane-
ços onde o que prevalece é, muitas ve- amento e outros componentes básicos
zes, a praticamente total ausência de e elementares para a reprodução da
equipamentos e serviços fundamentais força de trabalho – a classe trabalhado-
de infraestrutura urbana, a exemplo de ra tem encontrado a ‚solução‛ para
saneamento, água tratada, luz e acessi- seu problema de moradia na autocons-
bilidade. Isto sem mencionar a própria trução de suas residências (KOWA-
ilegalidade da posse da terra ou do RICK, 1979), isto é, a classe trabalhado-
contrato de uso. ra constrói ela mesma sua casa própria,
nas horas de folga, com a ajuda gratui-
Outrossim, novas formas e conteúdos ta de parentes, vizinhos e conterrâneos,
de segregação sócio-espacial, marcada ou por formas de cooperação como o
por uma onda de larga estigmatização mutirão, construção que frequente-
mente perdura por anos, quiçá gera-
5 Conferir os resultados da pesquisa Cidades ções.
Médias: agentes econômicos e reestruturação
urbana e regional, desenvolvida por diversas
A autoconstrução das casas, em muitos
instituições universitárias, reunindo
investigadores do Brasil, do Chile e da casos percebida como única possibili-
Argentina. Em parte, os resultados da referida dade de alojamento para muitos traba-
pesquisa estão publicados em Sposito; Elias e lhadores cujos baixos rendimentos sa-
Soares (2010).
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lariais não o possibilitam sequer o pa- produção da diferenciação espacial e


gamento de aluguel de habitações de- do valor fundiário urbano estaria no
terioradas ou mesmo ser beneficiário fato de que, ‚naturalmente‛, os mais
de programas governamentais de Ha- privilegiados encontrariam seus espa-
bitação, resulta predominantemente ços na cidade, do mesmo modo que os
numa moradia desprovida de infraes- mais pobres acabariam encontrando o
trutura básica e rapidamente deterio- seu. Ora, se como acreditamos, as con-
rada, dada a sua construção por meio tradições fundamentais na atualidade
de técnicas produtivas e ferramentas seguem opondo o capital ao trabalho,
rudimentares e de qualidade inferior, então, as mesmas contradições consti-
exigindo por parte das famílias, como tutivas da sociabilidade capitalista que
decorrência, um esforço praticamente produzem a questão social são intrín-
permanente de restauração e reformas. secas à questão urbana.
Uma outra alternativa que tem restado
à classe trabalhadora no tocante ao 3 O direito á cidades: projetos em
processo de produção da sua própria disputa no espaço urbano
habitação tem sido a construção de
barracos em favelas. Esta aparece como A configuração do espaço urbano bra-
a solução de sobrevivência mais eco- sileiro, notadamente marcado por ex-
nômica, mas também a mais drástica, pressivas desigualdades sócio-
para onde são drenados os patamares espaciais, foi (e ainda o é) caudatário
mais pobres da classe trabalhadora da luta por inscrever na legislação bra-
(KOWARICK, 1979), muitas vezes úni- sileira instrumentos de viabilização do
ca alternativa para aqueles que querem direito à cidade. O processo constituin-
permanecer na cidade. te de 1988 refletiu este interesse, ainda
que naquele momento o tema da ques-
Pondera-se, entretanto, que embora as tão urbana não tivesse adquirido ainda
questões até aqui mencionadas inte- status de relevância suficiente para a-
grem a base de nosso entendimento glutinar a mobilização necessária de
sobre a questão urbana, este não é um todos os setores presentes no interior
entendimento unívoco acerca das desi- das forças progressistas.
gualdades existentes nos espaços pro-
duzidos e, menos ainda, no que se re- Em que pese esta dificuldade restritiva
fere à dinâmica de segregação sócio- das possibilidades de evidenciar o de-
espacial urbana. Para as correntes teó- bate da questão urbana na cena públi-
ricas de viés liberal, por exemplo, as ca, durante a Constituinte foi possível
cidades teriam a capacidade de crescer a inserção dos artigos 182 e 183 na
e organizarem-se espontaneamente sob Constituição, estabelecendo alguns
o pilar da lei da oferta e da demanda, instrumentos para o controle público
equilibrando-se naturalmente. Desse da produção do espaço urbano e intro-
modo, a explicação admitida para a

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A questão urbana na dinâmica de reprodução capitalista

duzindo o dito princípio da função campo dos direitos e das políticas soci-
social da propriedade urbana. ais, exaltando o individualismo e a li-
berdade econômica. Nesse processo, o
Embora a Emenda Popular de Reforma projeto neoliberal se expande no Brasil,
Urbana não tenha sido, dada a correla- fortemente, ainda, ao impor orienta-
ção de forças estabelecida no processo ções para uma contrarreforma do Es-
constituinte, incorporada à Constitui- tado 6, dada a sua direção numa pers-
ção em sua totalidade, não podemos pectiva antipopular e de adaptação
negar a importância histórica do fato passiva à lógica do capital, possibilita-
de pela primeira vez se constar na da no país por diversos fatores e ele-
Constituição brasileira um capítulo mentos da realidade concreta.
específico sobre a Política Urbana. Do
mesmo modo, o Estatuto da Cidade – Este cenário tem sido determinante
projeto de lei que tinha como principal para o uso espacial do território urba-
objetivo regulamentar o capítulo de no, na mesma medida em que acirra as
Política Urbana contido na Constitui- expressões da questão social e limita
ção – é um instrumento significativo avanços em relação ao direito à cidade.
para o desenrolar das lutas urbanas Isto não somente por incidir na forma
por indicar que as cidades cumpram como as cidades se organizam, mas
sua função social e promovam o bem- também porque, em total coerência
estar de seus habitantes. com os postulados neoliberais para a
área social, a própria condição da polí-
Todavia, no Brasil contemporâneo, a tica pública pensada para as cidades,
questão urbana se entrelaça e necessa- neste contexto, e da legislação que a
riamente se relaciona com a tendência instrumentaliza é uma ilustração parti-
histórica que vem se apresentado des- cular da contrarreforma do Estado bra-
de os anos 1990, quando o Brasil aden- sileiro.
trou num período marcado por uma
nova ofensiva burguesa, em resposta à
crise do capital iniciada nos anos 1970.

As transformações políticas e econômi-


6 Em Behring (2003) encontramos algumas
determinações relevantes e transformações de
cas, em curso neste contexto direciona-
longo prazo que permitem caracterizar quais
ram o Estado brasileiro a uma refun- razões socioeconômicas e políticas estão na
cionalização sintonizada com o contex- base do processo de contrarreforma do Estado
to de um novo quadro do capitalismo - tais como as mudanças no mundo da produ-
mundial, provocando a hegemonia do ção e a mundialização do capital - e como se
deu o processo de implementação da contrar-
projeto neoliberal no país, expresso,
reforma, entendo-a como estratégia fundamen-
sobretudo na desresponsabilização do tal do ajuste neoliberal. A argumentação de-
Estado, na desregulamentação do mer- senvolvida nesta obra caracteriza bem os pro-
cado de trabalho e no retrocesso no cessos em curso no âmbito do Estado brasilei-
ro.
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Maria Clariça Ribeiro GUIMARÃES

Apesar do reconhecido avanço que ca já que eles incidem nos preços das lo-
representou a inscrição da Política Ur- calizações e, portanto, na valorização ou
desvalorização de terrenos. Mas as em-
bana na Constituição Federal de 1988,
presas de construção pesada também
os desdobramentos que se seguiram no exercem forte influência nas decisões
plano econômico e político obstacula- sobre as obras de infraestrutura urbana.
rizaram a sua real efetivação, explici- A relação entre empreiteiras de constru-
tando assim uma verdadeira tensão ção, a visibilidade de grandes obras viá-
rias (cujo prazo deve manter uma lógica
entre o marco legal e a decorrente aber-
em relação aos prazos eleitorais) e as
tura de um campo importante para a doações para o financiamento de cam-
luta política em prol do direito à cida- panhas eleitorais parece ser uma chave
de e as condições postas à política pú- que explica muito do investimento pú-
blica pelo ideário neoliberal. Condições blico nas cidades (MARICATO, 2011, p.
81).
estas nas quais o que vem prevalecen-
do é a restrição e redução de direitos,
Este é um dos impasses postos à políti-
com base no trinômio estruturante da
ca urbana face às questões conjunturais
ofensiva neoliberal: a privatização, a
e estruturais do capitalismo brasileiro,
focalização/seletividade e a descentra-
impactando fortemente campo e cida-
lização, face o processo de desrespon-
de, muito embora não se restrinja a
sabilização do Estado para com a área
este aspecto. Para além do poder das
social (BEHRING; BOSCHETTI, 2006).
empreiteiras como orientadoras e defi-
nidoras dos investimentos públicos nas
No caso das políticas urbanas, é ilus-
cidades, vale atentar para a tendência
trativo da lógica de privilegiamento do
em curso no âmbito do Estado brasilei-
capital e do mercado o expressivo po-
ro no tocante à própria condição da
der das empreiteiras como orientado-
política pública pensada para as cida-
ras dos investimentos públicos urba-
des. A lógica do ‚empreendedorismo
nos. Além da visibilidade das obras ser
urbano‛ tem predominado na atuali-
um critério extremamente forte para as
dade e, mais do que em qualquer tem-
decisões de investimento, tais decisões
po histórico, tem dado a linha na for-
sobre investimentos públicos (ou pri-
ma oficial de pensar e planejar a cidade
vados) nas cidades brasileiras e ainda
como sendo um grande negócio capita-
mais quando se trata das metrópoles, é
lista.
sintomático também do quanto o que
prevalece é a lógica do uso dos fundos
Até porque, como tem discutido Rol-
públicos como subsídio para a produ-
nik (2002), é inegável a relação entre a
ção de novas localizações que possam
estrutura profundamente desigual da
contribuir e atender a finalidade de
cidade brasileira com a política urbana
expansão do mercado imobiliário.
vinculada a ela, ao mesmo instante em
que, dialeticamente, a compreensão do
O capital imobiliário mantém profissio-
nais para o acompanhamento do orça- funcionamento de nossas cidades, a
mento público e da legislação urbanísti- despeito de sua complexidade, é pres-
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A questão urbana na dinâmica de reprodução capitalista

suposto para que uma política urbana dades, embora caiba reconhecer que o
possa dar respostas de real incidência governo Lula retomou investimentos
às nossas tão amplamente conhecidas em habitação e saneamento após, a-
injustiças sociais. Aliás, alerta a urba- proximadamente, 25 (vinte e cinco)
nista, parte importante do funciona- anos de descaminhos da administração
mento das cidades é a própria política federal em relação a essas áreas, a
urbana que, no Brasil – não destoante questão urbana ou metropolitana não
da tendência geral – foi intensamente está entre os avanços do governo Lula,
utilizada como instrumento de perpe- inclusive porque a questão da terra,
tuação de privilégios e desigualdades. verdadeiro nó social no Brasil, perma-
neceu intocada, tanto no campo quanto
Em 2003, com a criação do Ministério na cidade.
das Cidades, em ocasião do primeiro
mandato do presidente Lula, a expec- Na realidade, seguindo seu caráter
tativa por parte de muitos movimentos ambíguo, ‚*...+ o Governo Lula respon-
sociais progressistas, lideranças sociais deu, de certo modo, com o FNHIS 7 pa-
e profissionais de diversas áreas e ori- ra os movimentos sociais e com o
gens era a da efetivação de um órgão PMCMV8 para os empresários *...+‛
de caráter estatal que retomasse para a (MARICATO, 2011, p.56). Uma avalia-
agenda política nacional a social e ins- ção geral do Programa Minha Casa
titucionalmente ignorada questão ur- Minha Vida tecida por Maricato (Op.
bana, em uma conjuntura na qual até Cit) indica: um impacto negativo sobre
mesmo as políticas setoriais de habita- as cidades devido a localização inade-
ção, saneamento e transporte haviam quada de grandes conjuntos habitacio-
sido abandonadas de um modo geral. nais e ao aumento do preço da terra e
dos imóveis; a maior parte da localiza-
A expectativa era adensada pelo fato da ção das novas moradias é definida por
primeira equipe chamada a estar a fren- agentes do mercado imobiliário, sem
te do Ministério das Cidades representar
obedecer a uma orientação pública e
uma convergência de militantes sindica-
listas, profissionais e acadêmicos com sim à lógica do mercado; ao atender as
participação anterior em experiências de demandas dos empresários do setor,
administração pública e muito prestigi- incluindo as faixas de renda entre 07
ada no meio técnico e acadêmico, além (sete) e 10 (dez) salários mínimos, o
de forte inserção nos movimentos soci-
ais urbanos. Mais tarde, porém, o Minis-
tério das Cidades foi um dos que teve 7 Fundo Nacional de Habitação de Interesse
sua composição sacrificada em nome da Social. Sendo gerido por um conselho que tem
ampliação do apoio ao governo no Con- a participação de representantes da sociedade,
gresso Nacional (MARICATO, 2011). maneja recursos bem menos significativos que
o PMCMV.
8 Programa Minha Casa Minha Vida, lançado
Para Ermínia Maricato, urbanista e
em 2009, desenhado por uma parceria entre o
responsável pela formulação da pro- governo federal e as 11 (onze) maiores
posta de criação do Ministério das Ci- empresas construtoras de moradia.
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Maria Clariça Ribeiro GUIMARÃES

PMCMV pode repetir aspectos negati- No contexto de aprofundamento da


vos de programas habitacionais anti- crise do capital e das formas de segre-
gos, privilegiando a classe média em gação sócio-espaciais, temos assistido o
detrimento das rendas mais baixas; é avanço dos processos de expropriação
provável (hipótese que se baseia na urbana e das investidas do grande ca-
observação empírica da autora) que a pital transnacional. Tais dinâmicas
localização das moradias não se dê nas sociais inscritas no espaço urbano o-
regiões que concentram o déficit habi- correm em um momento histórico em
tacional do país; o PMCMV , enfim, que as cidades se situam ao mesmo
retoma a política habitacional com in- tempo como ponta de lança de grandes
teresse apenas na quantidade de mo- investimentos e como sedes das infra-
radias, e não na sua fundamental con- estruturas necessárias ao processo de
dição urbana. acumulação e de reprodução ampliada
do capital com repercussões graves
Percebemos, com isso, o quanto a rea- sobre as condições de vida e de mora-
lidade urbana brasileira é permeada dia de segmentos da classe trabalhado-
por complexas contradições, conflitos, ra.
lutas, em que estão presentes diferen-
tes sujeitos que se mobilizam e agem Contudo, face às contradições explici-
na defesa de propostas para enfrentar tadas na realidade, importa ressaltar
uma série de problemas vivenciados que a cidade – longe de ser um ator
no cotidiano da vida social. Nessa unificado em consensos – é, na verda-
perspectiva, os movimentos sociais de, território plural de luta entre dife-
constituem-se importantes vias de ação rentes sujeitos e projetos políticos, es-
político-coletiva que se organizam para paço de disputas e tensionamentos,
reivindicar determinados interesses. expressão do defronto entre classes
sociais, ponto de partida para a articu-
O sentido do direito à cidade no atual lação de diversos movimentos urbanos
debate político da sociedade urbana reivindicando melhores condições de
brasileira, enquanto necessidade hu- vida nas cidades.
mana elementar, apresenta-se hoje to-
talmente diluído nas lutas por direitos O urbano é um dos espaços que no
sociais básicos para a classe trabalha- último período tem se revelado como
dora e reflete os rumos da questão ur- de importância fundamental para a
bana no país e, por isso mesmo, abran- luta de classes, na medida em que a
ge distintas bandeiras de luta históri- expansão das cidades ocorre cada vez
cas e envolve diversos sujeitos coleti- mais empurrando e segregando seg-
vos. mentos das classes subalternas para as
áreas periféricas, destituídas de servi-
Considerações finais ços, de infraestrutura urbana e de e-
quipamentos coletivos. Desse modo, a

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A questão urbana na dinâmica de reprodução capitalista

dinâmica de produção e de reprodução CASTELLS, Manuel. A questão urba-


do espaço não pode ser pensada exce- na. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
tuada de sua intrínseca relação com os
processos de acumulação capitalista e CHESNAIS, François. A mundializa-
de exploração da força de trabalho. ção do capital. São Paulo: Xamã, 1996.

Outrossim, não podemos perder de CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO


vista que as condições objetivas das SOCIAL (Brasil). Direito à cidade para
cidades brasileiras, expressão do mo- todos e todas. In: CFESS Manifesta: 4ª
delo de desenvolvimento urbano em Conferência Nacional das Cidades.
curso, demandam intensos processos Brasília, 2010.
de luta por direitos sociais, com ênfase
no direito à cidade, tendo como hori- ENGELS, Friedrich. A situação da
zonte aquilo que Kowarick (1979) de- classe trabalhadora na Inglaterra. São
nominou de ‚a conquista do espaço‛. Paulo: Boitempo, 2010.
Processo este condicionado pela capa-
cidade de luta e organização dos di- FERREIRA, João Sette Whitaker. A ci-
versos movimentos, pela capacidade dade para poucos: breve história da
destes se desatrelarem das esferas do- propriedade urbana no Brasil. In:
minantes e conseguirem um mais sóli- SIMPÓSIO INTERFACES DAS RE-
do enraizamento nas bases. A melhor PRESENTAÇÕES URBANAS EM
alternativa para a classe trabalhadora TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO, 2005,
frente a tamanhas desigualdades sócio- Bauru. Anais... Bauru: UNESP Bauru,
espaciais permanece sendo a organiza- SESC Bauru, 2005.
ção popular e a luta coletiva. Eis nossa
perspectiva em termos de possibilida- FONTES, Virgínia. O Brasil e o capi-
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