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A CONSTRUÇÃO DE UM PROFETA:
A PRÁTICA DISCURSIVA ENQUANTO DISTINÇÃO DE
AUTORIA NO GÊNERO DA PORNOCHANCHADA
LUIZ P. GOMES
Niterói, 2012
Luiz Paulo Gomes Neves
A CONSTRUÇÃO DE UM PROFETA:
A PRÁTICA DISCURSIVA ENQUANTO DISTINÇÃO DE AUTORIA
NO GÊNERO DA PORNOCHANCHADA
BANCA EXAMINADORA
Niterói, 2012
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AGRADECIMENTOS
3
Vale mencionar, então, o quanto João e Tunico são importantes para o meu
processo, não apenas pela graduação e a pós-graduação, mas também pela orientação
e desorientação (no seu sentido mais positivo) para a vida.
No que diz respeito à pós, não posso deixar de mencionar, Silvinha Campos,
sem ela, ninguém chegaria em lugar algum. E os amigos feitos. Seja de turma, Ana
Beatriz Paes, Ana Claudia Peres, Isaac Pipano, Rodrigo Capistrano, Rafael Dupim,
Gabriela Miranda e Beto Robalinho. Sejam os queridos agregados, Luiz Garcia,
Rúbia Mércia, Lia Bahia, Hadija Chalupe, Nina Tedesco, Giu Jorge, Pedro Curi e
Simplício Neto – este ex-professor e atual mentor intervencionista.
4
SUMÁRIO
Resumo
Introdução.....................................................................................................................8
Considerações finais.................................................................................................130
Bibliografia...............................................................................................................135
Filmografia................................................................................................................143
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Resumo
6
Por que você faz cinema?
7
Introdução
8
especificamente produzidas na região da Boca do Lixo, com menos ênfase no diálogo
com a comédia e uma aproximação com os códigos do hard core. É importante
ressaltar que neste trabalho a pornochanchada é considerada um gênero. Assim,
utilizo-me do pressuposto apontado por Janet Staiger (2010), onde não há um gênero
“puro” e que considera o processo de hibridização como algo inerente aos códigos
genéricos. Mesmo que etimologicamente a pornochanchada seja proveniente da
junção entre pornografia e chanchada (no sentido de comédia popular, vulgar), houve
o diálogo com os mais diversos gêneros os quais também devem ser considerados.
Assim, entra-se no questionamento dos motivos pelos quais um gênero, que
contemplou uma gama diversa de filmes, apresentarem uma nomenclatura que por si
só reflete um diálogo bastante específico entre a comédia e a pornografia – a qual,
tanto na década de 1970 quanto nos dias atuais, carrega ainda um enorme teor
pejorativo. Devo lembrar que a produção de comédias, focando temas ligados ao
relacionamento e com uma progressiva exploração dos corpos, em geral femininos,
deu-se durante boa parte dos anos 1960, embora estes filmes não carreguem o rótulo.
A pornochanchada possui enquanto marco o paradigmático ano de 1969 a partir de
dois filmes: Os Paqueras, de Reginaldo Faria, e Adultério à brasileira, de Pedro
Carlos Rovai. Cria-se uma data e inicia-se o gênero. Deixando qualquer produção
anterior livre do peso proveniente dessa classificação.
Considerando as duas fases da pornochanchada, houve muitas produções, que
como já dito flertaram com diversos gêneros, não só a comédia ou a pornografia.
Contudo, diversos filmes brasileiros das duas décadas em questão (1970 e 1980)
trabalharam com uma temática muito próxima à observada nas pornochanchadas, mas
não são assim denominados. Ou seja, trata-se de uma distinção, que é fruto de
embates tanto dos estudos contemporâneos voltados para o cinema brasileiro, quanto
dos próprios agentes que compuseram o campo cinematográfico nas décadas de 1970
e 1980. Agentes contemporâneos ou históricos que, da mesma forma que se tornam
legítimos para a definição genérica, são legitimados também para a distinção de
autoria.
As questões, então, foram ficando mais específicas. Como pensar a autoria no
gênero? Quem define os autores cinematográficos? Qual o lugar do autor na crítica?
Qual o lugar do crítico para o autor e para o gênero? O arcabouço teórico-
metodológico da teoria genérica foi, então, primordial para a busca de respostas. Um
primeiro autor de extrema importância é Rick Altman (2009), com a proposta de uma
9
tripla abordagem, semântico/sintática/pragmática. Altman procura analisar os
elementos semânticos e sintáticos que formam o gênero, mas também a natureza
discursiva através dos múltiplos grupos que possuem legitimidade para definir e
compor os códigos genéricos. Em uma perspectiva semelhante, outro importante
arcabouço metodológico é a abordagem culturalista, proposta por Jason Mittell
(2001), que considera os gêneros enquanto categorias culturais, os quais devem ser
analisados como práticas discursivas.
A partir dessas duas abordagens se tornou possível trabalhar a
pornochanchada enquanto gênero e também observar que tanto a constituição das
características genéricas ou mesmo da distinção autoral se baseiam principalmente
nas práticas discursivas, onde determinados agentes têm papel fundamental. No caso
da pornochanchada, a autoria é construída de diferentes formas em nomes como
Pedro Carlos Rovai, Antônio Calmon e Joaquim Pedro de Andrade. Cada um deles se
mostra também muito consciente do seu papel no campo cinematográfico durante a
década de 1970. Contudo, o processo de distinção não é construído apenas por
cineastas, o que incitou à análise das práticas discursivas de agentes como Paulo
Emílio Salles Gomes, José Carlos Avellar, Jean-Claude Bernardet e Jairo Ferreira.
Influentes e polêmicos na sua teorização e constituição sobre o cinema brasileiro da
década de 1970.
Como seria impraticável deter-me na pornochanchada e nas práticas
discursivas que volteiam o gênero em tamanha extensão de tempo, tratarei apenas dos
anos 1970. Primeiro, pela produtividade de Rovai neste período, com diversos filmes
que dialogam principalmente com a comédia. Segundo, por ser também a década em
que a presença discursiva do diretor/produtor foi mais forte. Em entrevistas e críticas,
Rovai é recorrentemente citado, tamanha era a sua ligação e de seus filmes com o
gênero, sendo inclusive chamado de profeta por Jairo Ferreira.
Tomando Rovai como parâmetro principalmente para a construção de autoria
através da prática discursiva, cabe uma breve digressão na sua trajetória. O cineasta
iniciou a sua carreira durante final da década de 1960 filmando documentários
institucionais, inicialmente como assistente de câmera e em seguida como diretor. Em
depoimento para Plácido de Campos Junior e Carmelita Moraes (1986), Rovai revela
que foi durante um desses filmes que ele conhece Luís Sérgio Person. Este propõe
que ambos pegassem pontas de negativo e fizessem um documentário político sobre a
realidade do nordeste. Contudo, o projeto não foi adiante. É já nesta época que Person
10
mostra o embrião de roteiro do que viria a ser São Paulo S.A. e convida Rovai para
ser assistente de direção. O que parecia ser mais um dos projetos pensados como
contraposição aos institucionais encomendados, finalmente se realiza em 1965, com o
lançamento de São Paulo S.A.
O primeiro longa-metragem de Pedro Carlos Rovai como diretor foi Adultério
a Brasileira, que como já mencionado é considerado um dos precursores do gênero
brasileiro chamado a posteriori de pornochanchada pelos críticos dor jornais
(RAMOS, 1990). Com o sucesso de bilheteria de Adultério à brasileira, mais de 1,5
milhões de espectadores, Rovai se muda para o Rio de Janeiro, onde funda a Sincro
Filmes, e dá início a uma vasta filmografia, entre curtas-metragens, filmes
institucionais e longas-metragens, como diretor e como produtor, trabalhando com
nomes como Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho, Hélio Silva e Antônio Calmon.
Com o esgotamento do gênero da pornochanchada a partir de finais da década
de 1980, Rovai permanece um bom tempo sem nenhuma produção mais destacada,
voltando a atuar na área de cinema apenas a partir de 2001, já com a Tietê Filmes,
produtora localizada em Botafogo, no mesmo local da antiga Sincro Filmes1. Sua
produção mais recente é a trilogia infantil situada na floresta amazônica brasileira,
Tainá – Uma aventura na Amazônia (2001), Tainá 2 – A aventura continua (2004) e
Tainá 3, ainda não lançado, e a comédia Qualquer Gato Vira-Lata (2011). O último
filme em que Pedro Carlos Rovai atua como diretor2 foi As Tranças de Maria, de
2003, drama protagonizado por José Dumont e Patrícia França.
Contudo, mesmo destacando uma preocupação narrativa e estética das
pornochanchadas de Rovai, principalmente quando comparadas a outras produções
cariocas da época, com menos recursos, à exemplo do Beco da Fome, não é objetivo
do presente trabalho mostrar o apuro estético como principal parâmetro de análise.
Dessa forma – e também não sendo objetivo uma revalorização da pornochanchada
ou de Pedro Carlos Rovai enquanto realizador – as produções da Sincro Filmes serão
1
Atualmente as duas produtoras estão em atividade e funcionam ainda em Botafogo, no mesmo espaço
físico.
2
Sobre As tranças de Maria, conta-se que na verdade o filme teria sido dirigido por Ozualdo Candeias,
mas que Rovai não teria gostado da forma como foi feita a direção e assumiu o corte final. Há histórias
também de que a única versão com o corte feito por Candeias existe apenas em uma fita VHS, a qual
atualmente pertence a um crítico cinematográfico brasileiro ainda em atividade.
23
Sobre
Aqui adoto
As tranças
o termo
de Maria,
autorismo,
conta-se
em contraposição
que na verdade
à política
o filme dos
teriaautores
sido dirigido
ou teoria
porde
Ozualdo
autor, que
Candeias,
como
mas que Rovai não teria gostado da forma como foi feita a direção e assumiu o corte final. Há histórias
também de que a única versão com o corte feito por Candeias existe apenas em uma fita VHS, a qual
atualmente pertence a um crítico cinematográfico brasileiro ainda em atividade.
11
analisadas através da forma como a autoria foi construída por Rovai, além da
contribuição de outros agentes, como referencial de diferenciação. Acima de tudo,
estou tratando de um personagem que, dentro da história do cinema brasileiro se
afirmou e se afirma enquanto diretor/produtor da pornochanchada, problematizando-
a, mas também se utilizando dessa prática discursiva para compor o material
necessário para divulgação de seus filmes e de sua produtora, até hoje em atividade.
Com este intuito dividi meus esforços em três capítulos. O primeiro, A
pornochanchada: um histórico e seus possíveis diálogos, objetiva de início adentrar
na teoria dos gêneros cinematográficos e a partir de autores como Rick Altman e
Jason Mittell observar o gênero como prática discursiva. É feito também um histórico
das pornochanchadas e suas implicações na historiografia do cinema brasileiro.
Encerrando-se com o porquê do estigma construído em torno do gênero. Para tal fim,
é importante a análise do ensaio Teoria da Relatividade, de José Carlos Avellar que
tanto contribui para os parâmetros da pornochanchada, quanto para uma teorização de
uma linguagem inventada pela Censura, contextualizando o gênero no momento da
ditadura militar brasileira.
O segundo capítulo, Autoria e gênero nas pornochanchadas, inicia abordando
o autorismo cinematográfico, em seu histórico, mas defendendo-o como método de
distinção. Um segundo esforço para este capítulo é a defesa da pornochanchada
enquanto gênero, buscando uma abordagem a partir de algumas teorias genéricas. Tal
discussão está inserida dentro da dificuldade comum de atribuir à produção brasileira
o rótulo genérico. Primeiro, pela influência do autorismo. Segundo, pela divergência
encontrada pela própria historiografia. Para tal fim, é importante destacar análises de
autores como José Mário Ortiz Ramos, Rafael de Luna Freire, João Luiz Vieira,
Lúcio De Franciscis dos Reis Piedade e Gelson Santana, para citar alguns exemplos
de esforços na observação genérica em casos brasileiros. O capítulo se encerra com a
observação das pornochanchadas de autor, onde faço um estudo de caso de Joaquim
Pedro de Andrade e Antônio Calmon, diretores que ao trabalharem o gênero tiveram
uma aura autoral construída, em termos de texto fílmico, mas também no que toca à
prática discursiva de distinção.
Já o terceiro capítulo, Pedro Carlos Rovai e a construção de um profeta,
primeiramente há a busca pela análise de alguns dos jogos de força, ou seja, os
embates entre agentes do campo cinematográfico que de alguma forma se tornam
legítimos para a distinção genérica. Contextualizando essa questão, observo também
12
as propostas estéticas que guiaram o cinema brasileiro da década de 1970, focando
principalmente as falas de Paulo Emílio Salles Gomes e José Carlos Avellar, pela
contribuição que ambos tiveram para o tratamento da pornochanchada durante o
período. Finalizo o capítulo através da observação de Pedro Carlos Rovai como um
profeta, como um possível autor no gênero, consciente da importância da prática
discursiva. Com o intuito de arregimentar esforços para tal análise, Jean-Claude
Bernardet e Jairo Ferreira são também observados enquanto agentes inseridos no
campo cinematográfico.
Dessa forma, espero poder contribuir para um estudo menos valorativo da
pornochanchada, analisando o gênero através das práticas discursivas inseridas no
campo cinematográfico brasileiro da década de 1970. No qual, Pedro Carlos Rovai
apresenta-se como uma referência, dentre os diversos diretores e produtores ligados à
vinte anos de produção do gênero da pornochanchada.
13
Capítulo 1. A pornochanchada: um histórico e seus possíveis diálogos.
14
dita, teve dois objetivos diferentes. Primeiro, engajar de modo sério e positivo o
cinema popular, geralmente considerado inferior em relação ao cinema de arte. Em
segundo lugar, complementar e também confrontar a abordagem crítica do autorismo.
Havia uma carência de estudos que discutissem de modo mais aprofundado a
produção ligada ao cinema de gênero. As críticas anteriores eram, de grosso modo,
paternalistas ou simplesmente hostis aos filmes produzidos em Hollywood. A rejeição
provinha de uma abordagem tradicional do campo da teoria genérica, a qual identifica
uma produção voltada para as massas como algo conservador em termos estéticos ou
ideológicos, buscando o simples entretenimento. Em contraposição, o autorismo3,
herdeiro dessa mesma tradição, significava uma maior ligação do cinema com a arte,
além de uma estilização estética considerada mais séria. Assim, a simples oposição de
um cinema dito comercial e um cinema dito de arte separava, por um lado, elementos
como entretenimento, conservadorismo e a figura do artesão, ligados aos filmes de
gênero, e por outro, realismo, vanguarda e a figura do artista, relacionados ao cinema
de autor.
Influenciado pela crítica literária, Edward Buscombe (2005), em A ideia de
gênero no cinema americano, publicado em 1970, busca uma abordagem para o
estudo de gêneros focando o on-screen, ou seja, majoritariamente os elementos
visuais. Apesar do autor deixar de incorporar o som enquanto elemento também
presente no on-screen e, assim, essencial para uma análise genérica, uma breve
análise do seu artigo continua sendo importante por alguns motivos. Primeiro aqui se
nota a releitura de René Wellek e Austin Warren (apud BUSCOMBE, 2005, p. 305;
apud ALTMAN, 2009, p.7-8), em Theory of Literature, onde os gêneros literários
poderiam ser observados tanto a partir das suas formas interiores quanto exteriores.
Buscombe ressalta então que as convenções visuais forneceriam o suporte para se
narrar a história. No cinema, a forma exterior contemplaria os elementos visuais, a
convenção visual para cada gênero, já a forma interior funcionaria como o meio pelo
qual esses mesmos elementos são empregados. Durante o processo fílmico, o diretor
utiliza os recursos oferecidos pela iconografia comum, recombinando-a com formas
que conciliem a familiaridade e a inovação, repetição e variação.
Em segundo lugar, é possível estabelecer uma relação entre a proposta de
Buscombe e um texto clássico de Rick Altman (2009) no campo da teoria genérica, A
3
Aqui adoto o termo autorismo, em contraposição à política dos autores ou teoria de autor, que como
será visto têm conotações diferentes e específicas.
15
semantic/syntactic approach to film genre, publicado em 1984, onde o autor propõe
uma abordagem semântico/sintática dos gêneros. Da mesma forma em que Tzvetan
Todorov4 vai opor gêneros históricos aos gêneros teóricos, – ambos elementares para
a complexidade genérica, mesmo em sua oposição – Altman, inserido no contexto do
pós-estruturalismo, vai distinguir entre as abordagens semânticas e sintáticas do
gênero. Contudo, a inovação da proposta de Altman é a aplicação em conjunto de
ambas abordagens, não podendo ser dissociadas na análise genérica. Dessa forma, as
definições do gênero dependem tanto de uma lista de traços ou conteúdos narrativos
comuns, como atitudes, cenas, locações e sets, que salientariam os elementos
semânticos que formam o gênero, quanto das relações estruturais por onde esses
traços comuns estariam organizados, representando o viés sintático (ALTMAN, Ibid.,
p. 219).
Com o intuito de reforçar a sua dupla abordagem, semântico/sintática, Altman
retoma então duas correntes opostas da teoria de gênero da década de 1970. A
primeira, influenciada por Lévi-Strauss, estudava a relação ritualística entre o público
e os filmes. Dentro dessa teoria, os estúdios produziam o que refletia os desejos do
espectador, considerado aqui um autor. Já a segunda corrente, ideológica, dava mais
atenção às preocupações discursivas, mostrando que o público estava na verdade
sendo manipulado pelos interesses políticos e ideológicos da indústria de Hollywood.
Contudo, o que Altman (Ibid., p. 223) ressalta é o fato dessas relações
ritualísticas/ideológicas resultarem de um diálogo entre os desejos do público e as
prioridades dos estúdios. Assim, o desenvolvimento de determinado gênero passa a
ser percebido como o resultado de um encontro, o qual apenas se estabelece após
passar por um período de acomodação entre os interesses de quem o assiste e os
interesses da indústria, não sendo passível de uma simplificação.
O que se percebe, ao tentar buscar um ponto de aproximação entre as análises
genéricas propostas por Buscombe e Altman, retomando também Wellek e Warren, é
a relação existente entre o que seria a forma exterior e os elementos visuais (e cabe
lembrar novamente os sonoros) de um filme. Dessa forma, a forma interior estaria
relacionada com a estrutura onde esses elementos, visuais e sonoros, se inserem.
4
Ainda na década de 1950, Todorov vai estabelecer uma diferenciação entre os gêneros teóricos,
oriundos da teoria literária, e os gêneros históricos, resultado da observação de um fenômeno literário,
resumidamente, por um lado, seriam os distinguidos pela nossa cultura e, por outro, aqueles sugeridos
pela crítica.
16
Entretanto, qualquer uma das relações acima descritas só pode ser analisada em
termos comparativos, relacionando um filme a outro.
Buscando uma maior compreensão da análise dos elementos visuais de
determinada produção, deve-se abordar minimamente também o conceito de
iconografia. De acordo com Neale (2009, p.13-14), o termo é derivado da História da
Arte, o qual foi utilizado por Lawrence Alloway para os estudos de gênero. A
proposta de Alloway é que o significado de um filme específico não pode ser
separado do padrão de análise de conteúdo de outros filmes. Dessa forma, a
iconografia tende a significar objetos, eventos e personagens nos filmes, tal como sua
identificação e descrição.
A iconografia foi um dos elementos centrais para o campo teórico do gênero
durante a década de 1970. Primeiro, pois essa formulação era devotada ao filme
popular5. Segundo, era a possibilidade de usar o conceito para enfatizar o aspecto
visual dos filmes populares. Assim, havia uma aproximação com a ênfase dada pelos
teóricos do autorismo ao estilo e a mise-en-scène, além de um contraste com a ênfase
no personagem, plot e tema por teóricos de gênero ligados às teorias literárias (Ibid.,
p. 15).
Aqui cabe ressaltar, rapidamente, que a teoria dos gêneros sempre foi muito
influenciada pela teoria literária, desde a Poética de Aristóteles, principalmente nos
trabalhos da década de 1950 em autores como Benedetto Croce, René Wellek e
Austin Warren, Northrop Frye e Tzetan Todorov. O que fez com que uma abordagem
mais ligada aos elementos visuais, iconografia, ou seja, com a imagem em si,
acabasse por se tornar uma forte ferramenta para a análise dos gêneros
cinematográficos.
Como mostra Tom Ryall (1998, p. 328), – e essa concepção é deveras
importante para a maneira análise pela qual analisarei a pornochanchada – o principal
pressuposto da teoria de gênero é que uma obra de arte e comunicação surge e é
5
Com o objetivo de entender melhor o que seria um filme ou uma obra popular, cabe um breve
parêntese sobre o conceito de estética da repetição desenvolvido por Omar Calabrese em A idade
neobarroca. O termo é relacionado aos produtos desenvolvidos em série – onde posso me centrar,
levando em conta o meu campo de estudo, apenas no meio audiovisual –, nos quais a mecânica da
repetição produz quase que involuntariamente o surgimento de uma estética própria. Em contraposição,
teríamos a obra de arte. Assim, se o status de artístico é alcançado através da originalidade e da
impossibilidade de cópia, do lado oposto, e levando em conta os preconceitos imbuídos em tal
afirmação, temos uma obra feita em série, que necessita de uma iconografia reconhecível (e onde o
prazer do público está justamente nesse reconhecimento) como algo primordial para garantir a eficácia
do seu consumo popular. (CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Edições 70: Lisboa, 1987.)
17
inserida em um contexto social específico. E o sentido e significado dessa obra são
restritos e limitados por esse contexto. Assim, o autor ressalta que os códigos
genéricos, suas repetições e inovações, estão diretamente ligados aos vínculos ou
contratos estabelecidos entre produtores (diretores e estúdio) e o público, e por
consequência restringidos e limitados dentro dessa tensão. Uma vez que esse acordo
entre agentes não é estabelecido de maneira formal ou explícita, mas sim de forma
processual, os sinais e significados relativos aos gêneros não podem ser analisados, ou
mesmo trabalhados, deixando de fora o contexto em que os códigos foram
estabelecidos. Para Ryall, de modo geral, gêneros constituem sistemas para a
regulação e circulação de significado que têm um público e uma existência histórica,
com os quais o cinema popular dos EUA é firmado, ou formado (RYALL, Ibid., p.
329). Neale (Ibid., p. 9), por exemplo, cita Barry Keith Grant ao tratar os gêneros
como fundamentais para consolidar o cinema como uma instituição cultural e
econômica, especificamente a indústria de Hollywood, que conta histórias através da
fórmula da repetição e variação.
Ao vincular a análise genérica ao contexto social em que os filmes são
produzidos, distribuídos e exibidos, Ryall instiga uma análise da pornochanchada
onde o seu âmbito histórico pode e deve ser levado em conta, seja tomando como
parâmetro o campo de estudos do cinema brasileiro, seja observando o gênero
enquanto manifestação cultural contextualizada na ditadura militar. Dessa forma,
pode-se chegar a alguns questionamentos, os quais tentarei responder mais adiante,
como o porquê do uso de uma nomenclatura claramente pejorativa; as relações do
gênero com a classe cinematográfica, por um lado, e censores, por outro (o que não
significa necessariamente uma simples divisão de lado, apoio versus oposição). Para
Ryall (Ibid., p. 328), há duas amplas dimensões para o estudo do campo genérico. A
primeira envolve a história do gênero e é preocupada com a maneira que o gênero
surge, se desenvolve e muda. A segunda foca sobre a função social e cultural do
gênero cinematográfico. Resumidamente, gêneros podem ser estudados tanto em
termos de uma história interna das formas, temas e iconografia, quanto em termos da
sua relação mais ampla para mudanças culturais e sociais e, é importante para a
presente dissertação não deixar de lado nenhuma das duas dimensões para o estudo da
pornochanchada.
Aprofundando um pouco na questão da espectatorialidade, é necessário
observar que alguns gêneros podem ser definidos a partir da maneira em que realçam
18
seus efeitos esperados pelo público, como o filme de terror, o thriller e a comédia, os
quais buscam o medo, suspense e a risada, respectivamente. Assim, mesmo que a
abordagem iconográfica de Buscombe (Ibid.) não sirva para qualquer tipo de gênero
ou mesmo seja defasada frente ao desenvolvimento dos estudos de som, ela acaba
sendo útil ao colocar em primeiro plano conceitos como “convenções” e “expectativa
do público”, que são pontos importantes para determinado estudo dos gêneros,
encaixando-se também como ferramenta de análise para a pornochanchada (RYALL,
Ibid., p. 330-332).
De acordo com Altman (2009, p. 195), em Film/Genre, o estudo de gênero
arregimenta ambos os processos de reprodução e recepção, sendo os gêneros sistemas
e processos, e não padrões formais ou cânones textuais. Cada sistema de gênero é
composto por uma rede de grupos interconectados e suas instituições, cada qual
utilizando o gênero para satisfazer suas próprias necessidades e desejos. O gênero
pode sempre ser contestado, pois representa o conflito entre múltiplos agentes,
servindo a múltiplos propósitos. E é justamente essa contestação por diferentes grupos
que mantém os gêneros sempre em processo, constantemente sujeitos a
reconfiguração, recombinação e reformulação.
É nesta mesma obra que o teórico propõe um avanço em relação à já citada
abordagem semântico/sintática. Altman (Ibid., p. 207) reconhece que ao estabelecer
um estável reconhecimento semântico e sintático através de uma população instável,
ele deixa de lado o fato de que os gêneros são diferentes para públicos diferentes, e
essas pessoas podem perceber diferentes elementos semânticos e sintáticos em um
mesmo filme. Altman, então, admite não ter percebido que o gênero tem múltiplas
audiências conflitantes, que Hollywood tem múltiplos interesses e que esses múltiplos
profissionais do gênero usam os códigos genéricos e sua terminologia em vias
diferentes e potencialmente contraditórias.
De acordo com Altman (Ibid., p. 208), a falha de uma abordagem somente
semântico/sintática estaria em não reconhecer a amplitude da natureza discursiva dos
gêneros, os quais, ao coordenarem diversos usuários, seriam mecanismos
multidiscursivos. Cada gênero é definido por múltiplos códigos, correspondentes aos
múltiplos grupos que, ao ajudarem a definir os gêneros, são convidados a “falar”
sobre os gêneros, ou seja, possuem certa legitimidade na sua definição. Desse modo, a
abordagem semântico/sintática não se torna suficiente para a explicação da descrição
dos efeitos da discursividade dos gêneros, levando Altman a acrescentar na dupla
19
equação também a abordagem pragmática. Utilizando-se de um arcabouço linguístico
para sua explicação, o autor ressalta que a pragmática está diretamente ligada com o
que chama de “fator uso”, pensando o discurso enquanto ato, enquanto performance.
Deve-se observar tanto sobre o que se está falando, quanto a maneira como se fala.
Para Altman (Ibid., p. 211), as abordagens mais tradicionais trabalhavam com
o pressuposto de que os gêneros preexistem em relação aos espectadores e que guiam
a recepção do público. Aplicando a abordagem semântico/sintática/pragmática pode-
se negar ambas as afirmações, pois o campo genérico é tratado como local de embate
e cooperação entre seus múltiplos agentes. Contudo, não é possível deixar de notar
que há sim um sistema de expectativas gerado pelos códigos genéricos. De acordo
com Neale (2009, p. 25-26), o que seria um consenso entre diversos teóricos é que o
gênero é um fenômeno multidimensional e, que essas dimensões abarcam um sistema
de expectativas, categorias, etiquetas e nomes, discursos, textos e corpos de textos, e
as convenções que os governam todos. As expectativas geradas pelo nome do diretor
ou do(a) protagonista (star system) são tão “genéricas” como as geradas pelos termos
“western”, “thriller” ou “filme de terror”.
Em suas conclusões, Altman (2009, p. 214) observa que o público tem
diferentes interpretações do mesmo texto e que cada texto tem múltiplos usuários.
Assim, seria possível pensar tanto no motivo pelo qual diferentes usuários têm
diferentes leituras, quanto pensar na relação entre os usuários. No caso dos gêneros
cinematográficos, focando estritamente o caso brasileiro, é importante observar os
agentes do discurso definindo através da distinção o que é ou não pornochanchada.
Analisando, por exemplo, público, realizadores e crítica durante a época em que o
gênero perdurou, veem-se discursos distintos, com limites e preconceitos diferentes.
Avançando um pouco em relação a Altman, pode-se também problematizar o motivo
de um mesmo filme ser visto de forma diferente no decorrer dos anos, seja por um
mesmo público, ou por públicos diferentes. No caso da pornochanchada, pensando a
percepção do gênero através da formação de discurso no decorrer dos anos, essa
distinção se torna ainda mais patente. Algumas comédias brasileiras da década de
1960 e 1970 são atualmente disponibilizadas em sites não oficiais de download, sendo
a classificação “pornochanchada” atribuída sem o uso da distinção da crítica da época
ou mesmo da historiografia. Também são disponibilizados desde as adaptações
baseadas na obra de Nelson Rodrigues ou mesmo filmes estrangeiros como O Último
Tango em Paris (Bernardo Bertolucci, 1972) ou Império dos Sentidos (Nagisa
20
Oshima, 1976), mais pelo seu conteúdo erótico do que por algum tipo de definição
com o gênero brasileiro.
É interessante observar também o programa da disciplina Nelson Rodrigues no
cinema, ministrado pela professora Jade Gandra Dutra Martins em 2011. Oferecido
para os alunos do curso de cinema e artes cênicas da Universidade Federal de Santa
Catarina, um dos objetivos do curso foi avaliar as adaptações da dramaturgia
rodrigueana para o cinema brasileiro, contemplando Cinema Novo e a
pornochanchada. Contudo, o programa de duas das aulas me chamou bastante a
atenção: “A pornochanchada filma Nelson Rodrigues: Bonitinha, mas ordinária
(1963, J.P. Carvalho)” e “A pornochanchada filma o trágico: Os sete gatinhos (1980,
Neville D’Almeida)”. A mesma relação entre o gênero e Nelson Rodrigues pode ser
vista na tese de doutorado de Martins (2008), intitulada Nelson Rodrigues e sua cena:
teatro da dupla tensão, cinema da síntese. O interessante neste caso é observar
primeiramente um estudo de Nelson Rodrigues que assume determinadas adaptações
fílmicas de suas peças enquanto pornochanchadas. Em segundo lugar, importa
também perceber que um diretor como Neville D’Almeida é tratado como cineasta
ligado ao gênero através da maneira como Martins analisa as suas adaptações.
Percebe-se, dessa forma, que além das diferentes leituras, é possível pensar nos
diversos usos que um filme ou gênero podem ter em diferentes contextos históricos e
culturais e, nas expectativas geradas por cada um desses usos.
Retomando o arcabouço teórico oferecido pelos estudos de gênero, cabe neste
momento uma análise na abordagem culturalista proposta por Jason Mittell (2001),
em A cultural approach to television genre theory. O autor, ao propor uma abordagem
mais específica do gênero televisivo, parte do pressuposto de que os gêneros são
categorias culturais que ultrapassam as fronteiras dos textos midiáticos e operam com
a indústria, público, tal como as práticas culturais. De acordo com Mittell (Ibid., p. 8),
a melhor forma de análise dos gêneros é observá-los como práticas discursivas.
Embora se perceba uma aproximação com a abordagem pragmática incorporada por
Altman, este é criticado por Mittell por sua ênfase no aspecto textual.
A abordagem discursiva provém das teorias contemporâneas pós-
estruturalistas e Mittell se baseia na maneira como a formação de discurso é vista por
Michel Foucault. As formações discursivas são sistemas de pensamento
historicamente específicos, categorias conceituais que trabalham para definir
experiências culturais dentro de sistemas de poder mais amplos. As formações
21
discursivas não emergem de uma estrutura centralizada ou de um único local de
poder, mas são constituídas de baixo para cima a partir de diferentes micro-instâncias.
(MITTELL, Ibid., p. 8)
Para Mittell (Ibid., p. 9), a aplicação de uma abordagem discursiva para o
gênero necessita que o texto seja descentrado enquanto um local primário de análise,
mas não ao ponto de ignorá-lo completamente. É primordial reconhecer o papel do
texto como um lugar de operação discursiva do gênero. Textos midiáticos continuam
funcionando como pontos importantes do discurso de gênero e devem ser examinados
de modo igual à análise do público e das práticas industriais, por exemplo. Contudo,
cabe ressaltar que um texto isolado não define o gênero por si só, necessitando ou da
sua comparação com outros textos ou da sua análise através dos agentes que nomeiam
esses gêneros. Mesmo reconhecendo que as práticas discursivas podem ser analisadas
através de sua definição/classificação, interpretação e avaliação (no sentido de bom
ou ruim, ou melhor ou pior), Mittell não objetiva com a sua abordagem alcançar a
terminologia mais adequada. O que o autor pretende é explorar a maneira com as
quais essas definições, interpretações e avaliações são constituídas culturalmente.
Tomando a abordagem culturalista de Mittell para o estudo da
pornochanchada, considero importante então observar o papel dos agentes que
contribuíram para a formação do gênero, mas também analisar a maneira pela qual
cada um dos agentes escolhidos entende e atua no campo genérico. A nomeação da
pornochanchada foi resultante de um processo e não se deu de forma consensual
dentre os que atuavam no campo cinematográfico brasileiro da década de 1970. Ou
seja, o uso do termo não significa que a classificação genérica, utilizada para
determinados filmes nacionais dos anos 1970 e 1980, não gerou embates e discussões.
O objetivo de analisar e esmiuçar algumas abordagens da teoria genérica é
arregimentar ferramentas para um olhar sobre a pornochanchada. Dentro dos atuais
estudos cinematográficos no Brasil, percebe-se que alguns pesquisadores têm
direcionado esforços para contribuir para o campo de estudos de gênero. Contudo,
historicamente, a própria valorização do cinema de autor feita por alguns setores da
crítica e da própria academia ou mesmo a falta de costume em se utilizar um
vocabulário genérico quando se trata do filme brasileiro, contribuiu para que um
cinema de gênero, em termos de abordagem acadêmica e de prática cinematográfica
fosse visto como algo menor.
22
Robert Stam (2009, p. 150), em Introdução à teoria do cinema, expõe alguns
problemas enfrentados pela análise genérica e aqui ressalto dois pontos onde posso
estabelecer uma relação teórica para a pornochanchada. Um primeiro problema é o
fato dos gêneros não serem “monolíticos”. Mesmo os filmes hollywoodianos clássicos
promoveram a hibridização de diversas tendências genéricas, ainda que
principalmente por razões comerciais. O segundo problema levantado por Stam é o
chamado “Hollywood-centrismo”. Para autor, esse foco exagerado dos estudos em
relação ao cinema de gênero dos EUA faz com que, por exemplo, durante a análise
dos musicais hollywoodianos, sejam deixados de lado outros possíveis estudos de
caso, tal como a chanchada “brasileira”6.
Assim, para ampliar as possibilidades da análise sobre a pornochanchada
enquanto gênero é importante levar em conta também questões como o hibridismo e o
multiculturalismo. Segundo Raphaëlle Moine (apud FREIRE, 2011, p. 30) ao tomar
os gêneros de Hollywood como parâmetros universais, deixa-se de lado
singularidades nacionais, culturais e históricas, estas fundamentais para o processo de
compreensão de diferentes fórmulas genéricas, sempre originárias de contextos
específicos. Consequentemente, mesmo os chamados gêneros transnacionais sempre
se manifestaram de forma distinta em diferentes regimes genéricos.
Janet Staiger (2010), em Hybrid or inbred: the purity hypothesis and
Hollywood genre history, questiona a “pureza”, ou seja, a tentativa de se estabelecer
uma relação estável no gêneros hollywoodianos. Resumidamente, não haveria uma
época em que os gêneros eram “puros”, ou mais “estáveis” mesmo na fase anterior à
década de 1960 7 . Entretanto, Staiger (Ibid., p. 186), ao sugerir que os filmes
hollywoodianos, em ambas as fases, nunca representaram um atestado de pureza, não
quer dizer que não houve padrões de categorização. O agrupamento de filmes, mesmo
levando em conta que este é feito de forma eclética, continua sendo um importante ato
acadêmico/metodológico, pois permite elucidar a percepção dos gêneros por
produtores e consumidores. O ato de ver filmes é feito através de um padrão
hipotético baseado no conhecimento de outros filmes em um repertório prévio.
6
Opto pelo uso de aspas em relação ao termo “brasileira”, pois durante o terceiro capítulo, tratarei
tanto a chanchada quanto a pornochanchada como gêneros considerados reconhecidamente nacionais.
7
Em termos metodológicos, Staiger evita a divisão do cinema estadunidense através da Segunda
Guerra Mundial, distinguindo a produção da “velha Hollywood” ou “Hollywood fordiana”, que vai de
1917 até a década de 1960, do que foi produzido a partir da década de 1970 com a “nova Hollywood”
ou “Hollywood pós-fordiana”.
23
Portanto, o processo de hibridização genérica, a ausência da pureza, a meu
ver, não deve ser restrito ao cinema de Hollywood. O que se nota no caso brasileiro
da pornochanchada é que o gênero que sofreu diversas influências no decorrer dos
anos, independente da relação mais forte dos primeiros filmes com a comédia ou
mesmo com outros gêneros.
Raphaëlle Moine (2008, p. 169-170), em Cinema genre, busca uma análise
onde as influências culturais sejam tomadas como forças fundamentais para o
surgimento e evolução de um gênero. De acordo com a autora, não há uma
constituição estável tanto na função social e cultural de um gênero, quanto na
organização de suas características semânticas e sintáticas, as quais dão sua forma.
Moine utiliza o exemplo da comédia como categoria genérica que, além de dialogar
com outras gêneros, tem características que podem ser aceitas apenas regionalmente
por serem específicas a determinado período cultural ou histórico. Para a autora, o
rótulo de “comédia” sugere mais o tom de determinados filmes, os quais se espera
uma reação de riso pelo público, do que as características recorrentes
semântico/sintáticas que fazem um grupo de filmes um gênero, ou a explicação do
significado cultural ou social do gênero (MOINE, Ibid., p. 170).
De acordo com Moine (Ibid., p. 188), um ponto importante para o campo de
estudos dos gêneros é a observação dos chamados “regimes genéricos”.
Culturalmente, os gêneros são definidos de uma maneira diferencial e são organizados
em sistemas e hierarquias, nas quais cada um encontra seu lugar, sua forma e seus
limites através das relações com outros gêneros. A história dos gêneros é, portanto,
também a história dos regimes genéricos específicos estabelecidos para cada contexto
cinematográfico. Assim, é possível constatar que os gêneros nacionais, sendo
observados como regimes genéricos específicos, não podem ser observados
buscando-se um sentido universal, pois sua percepção deve localizar seu significado e
valor operativo e cada contexto particular (Ibid., p. 191-192).
Já Rafael de Luna Freire (2010b; 2011) defende uma perspectiva de
abordagem genérica onde todo o filme é transgenérico ou polivalente. Em Entre o
gênero e a nação: o gênero cinematográfico e o cinema nacional (FREIRE, 2010b, p.
24), o autor cita James Naremore, ao ressaltar a necessidade de se evitar o
essencialismo dentro do campo de estudos genéricos mais tradicional que aponta a
característica transgenérica como algo ligado somente a alguns gêneros, como por
exemplo, o filme noir.
24
Tentando ampliar a perspectiva de Freire, posso afirmar que mesmo o western,
não pode ser considerado um exemplo de gênero estável ou mesmo “puro”. Aqui cabe
lembrar o caso de alguns filmes como Duelo ao sol, de King Vidor (1946) - que
incorpora ao gênero elementos do melodrama - ou Pistoleiros do entardecer, de Sam
Peckinpah (1962) - onde expectativa gerada pelo western é destronada logo nos
primeiros minutos quando vemos um policial, um carro e um camelo.
No caso brasileiro, o estudo genérico da pornochanchada não pode deixar de
lado o contexto de valorização do cinema de autor frente ao cinema de gênero,
principalmente quando o movimento do Cinema Novo ganha força ou mesmo a
condição “subdesenvolvida” do aparato cinematográfico brasileiro se comparado ao
dos Estados Unidos. Além disso, aplicando o caráter discursivo, mesmo considerando
alguma produção chamada de pornochanchada como pornochanchada ou mesmo
negando o rótulo para determinadas produções que dialogavam com o gênero,
independente de uma problematização do fator texto, devo levar em conta também
que, em termos de características semântico/sintáticas, houve diversas
pornochanchadas. As quais não dialogavam apenas com a comédia.
1.2. As pornochanchadas
25
diálogo mais direto com o hard core só pôde ser feito em finais da década de 1970,
com o processo de abertura política e através dos diversos mandatos judiciais, como
será visto mais adiante. Contudo, a diversificação da produção sempre existiu. Desde
o início dos anos 1970, tanto o Rio de Janeiro quanto São Paulo produziram as
chamadas comédias eróticas, ou neochanchadas. O que se viu, no decorrer dos anos, é
que enquanto a pornochanchada foi perdendo interesse enquanto fórmula e opção para
os produtores cariocas, para a zona da Boca do Lixo, região que misturava produtoras
cinematográficas e casas de prostituição, o sexo explícito foi uma opção barata de
continuar produzindo e sobrevivendo enquanto cinema distante do apoio estatal.
Contudo, mesmo na Boca não se deve cair no reducionismo de uma produção
unicamente “pornográfica”, apesar de ser comum o uso com tal sentido.
A produção do Rio de Janeiro, foco da minha pesquisa através do exemplo de
Pedro Carlos Rovai, também não deve ser rotulada como sinônimo de uma produção
mais “requintada”, que poderia se sobrepor aos filmes de menor rigor técnico da
Boca. Em terras cariocas, se de um lado temos um produtor de médio porte como
Rovai, que mantinha suas bilheterias acima de um milhão de espectadores, por outro
lado, temos a produção do chamado Beco da Fome9, região situada na Cinelândia que
se aproximava bem mais do modo de produção, de certa forma mambembe, da Boca
do Lixo em São Paulo.
Segundo José Mário Ortiz Ramos (1990, p. 401-402), em fins da década de
1960, sob a vigência do AI-5 e da violência do governo Médici, vivenciando os
impactos estéticos do Cinema Novo, Cinema Marginal, teatros de Arena e Oficina e
do Tropicalismo, é que o Brasil alcançará uma fase de forte modernização. Essas
alterações na cultura, com a esfera do mercado atingindo altos patamares (música,
televisão, mercado editorial e cinema), fizeram com que a produção cinematográfica
brasileira se deparasse com o tenso vínculo entre um cinema de pretensões autorais e
as pressões políticas e mercadológicas.
26
antipatias terá vida bem mais longa do que a inicialmente prevista.
(RAMOS, 1990, p. 405)
27
de dois filmes: Os Paqueras, de Reginaldo Farias, e Adultério à brasileira, de Pedro
Carlos Rovai. Também não se pode deixar de mencionar Memórias de um gigolô de
Alberto Pieralisi, lançado apenas um ano depois. São filmes que, segundo Abreu
(Ibid., p. 77), revelam a influência de filmes italianos em episódios, a retomada dos
títulos chamativos e do erotismo presente em filmes paulistas de finais da década de
1960 e um retorno da tradição carioca da comédia de costumes, que objetivava um
bom diálogo com o público. É válido ressaltar que cada um dos três filmes atingiu
mais de um milhão de espectadores.
Se o ano de 1969 foi estabelecido a posteriori como marco inicial para as
produções das pornochanchadas, livrando a produção anterior de comédia de
costumes do estigma a que o gênero seria submetido, essa data não é consenso entre
pesquisadores e realizadores, servindo mais como recorte temporal útil para uma
metodologia de estudo sobre o tema.
Jairo Ferreira, em Dez anos de pornochanchada, publicado em 1978 na revista
Fiesta Cinema, chama a atenção (para o fato) de que há filmes anteriores à Os
Paqueras e Adultério à brasileira que como A virgem prometida (1968), de Iberê
Cavalcanti, As três mulheres de Casanova (1968), de Victor Lima, O levante das
saias (1967), de Ismar Porto, Enfim sós... com o outro (1968), de Wilson Lima, Doce
mulher amada (1968), de Rui Santos e As Libertinas (1968), de Carlos Oscar
Reichenbach Filho, que também apresentam características significativas para o
gênero.
Procurando traçar um panorama sobre o que se viu do gênero até então,
Ferreira chama atenção para o fato do cinema brasileiro, entre os anos de 1967 e
1969, ter experimentado “todos os gêneros” [palavras do autor], gerando, por um
lado, o Cinema Marginal, e por outro, a pornochanchada, que “conseguiu vingar
graças aos apelos que trazia” (FERREIRA, Ibid., p. 5). Apesar de não seguir com
maiores explicações, há um questionamento interessante surgido da afirmação de
Ferreira citada acima: quais seriam os apelos comentados pelo autor e que permitem
contra-argumentar 1969 como marco inicial da pornochanchada?
Nos filmes citados por Ferreira, observa-se já nos títulos um chamariz para a
temática sexual – talvez o grande apelo realmente comum em todas as fases e em toda
a trajetória da pornochanchada. Através de consulta ao site da Cinemateca
28
Brasileira10, percebe-se nas sinopses que os assuntos transitam entre as conquistas
amorosas, o adultério e a virgindade. Em A virgem prometida, por exemplo, a
personagem Luísa é convidada para viver um filme dentro do filme, encarnando a
história de Leninha, cuja vida é idêntica à sua, mas marcada por um acidente que a
transforma em uma viúva virgem. As três mulheres de Casanova trata de um
professor de Egiptologia que mantém uma amante em São Paulo, outra em Belo
Horizonte, e a história se desenrola quando ambas se dirigem para o Rio de Janeiro,
onde se encontra a esposa do mulherengo. Talvez a referência temática mais direta à
tendência vista por quase toda a pornochanchada seja a sinopse do filme As libertinas,
extremamente concisa, mas eficaz em dar ao espectador a história que se pretende
contar: “Três histórias em torno do casamento, do adultério e da busca de uma
aventura sexual”11.
Ao se discorrer sobre os filmes acima, não pretendo estabelecer aqui uma nova
data para o início do gênero. Mais crucial do que o ano em si, é importante perguntar
o porquê da escolha desse ano, que rompe com toda uma produção anterior e define
que “a partir de 1969, esses filmes são pornochanchadas”. Deve-se atentar para o fato
de que o mercado de pornografia estava gradualmente se expandindo durante toda a
década de 1960, especialmente ao levar em conta as mudanças comportamentais por
todo o mundo, incluindo as revoluções sexuais e feministas. No Brasil, há também o
histórico de uma cultura erótica em quadrinhos, como por exemplo, as produções de
Carlos Zéfiro, que circulavam clandestinamente desde os anos 1940/50. Além disso,
dentro do próprio contexto do cinema nacional, Ruy Guerra, cineasta ligado ao
movimento do Cinema Novo, em Os Cafajestes, de 1962, exibiu o primeiro nu frontal
do cinema brasileiro, na famosa cena de Norma Bengell na praia.
Nuno Cesar Abreu (2006, p. 139-140), em Boca do Lixo: cinema e classes
populares, aponta que desde meados da década de 1960, a produção cinematográfica
brasileira passou a realizar uma linha de comédias que possuíam temas que tratavam
do sexo e das relações amorosas. Eram filmes com um bom acabamento e bem
recebidos pela crítica e, que estavam antenados com as demandas surgidas no campo
do comportamento e dos costumes. Produções que alcançavam um público que agora
incluía uma nova faixa de consumidores surgidos na onda dos movimentos jovens que
10
Disponível em: < http://www.cinemateca.gov.br/>. Acesso em 28/01/2012.
11
É válido argumentar que As libertinas tem um de seus episódios dirigido por Carlos Reichenbach,
um diretor ligado à produção marginal da Boca do Lixo, a qual Jairo Ferreira detinha profundo
interesse, como será visto mais claramente no terceiro capítulo.
29
explodiram durante a década de 1950: rock, pop, movimento hippie, movimentos
contestatórios ao establishment, etc.
Garota de Ipanema, a título de exemplo, é um filme dirigido por Leon
Hirszman em 1967, em cores, com argumento do próprio Vinicius de Morais. O filme
conta a trajetória de Márcia, representada pela atriz Márcia Rodrigues, uma garota de
17 anos que vive os dilemas de uma juventude de classe média alta da zona sul do Rio
de Janeiro. A história se inicia através da narração em off de Márcia em paralelo com
imagens iniciais da praia de Ipanema. Ainda não é visto uma relação de escopofilia
tão forte quanto as demais pornochanchadas. Há um certo recato na câmera, um
receio de se aproximar. Quando Márcia joga frescobol com Pedro Paulo, personagem
de Arduíno Colasanti, seu noivo no início do filme, uma equipe estadunidense se
aproxima e pede a permissão dele para que sejam feitas imagens de Márcia, que está
em trajes de praia. Pedro Paulo nega o pedido e o diálogo que se segue com o
produtor mimetiza uma espécie de pudor na própria maneira de filmar os corpos no
cinema brasileiro. Pedro Paulo diz, “Ela não quer aparecer em trajes de banho”, e o
produtor responde, “Isso é ridículo, ela é linda”.
Com números musicais de Chico Buarque e Nara Leão, música de Roberto
Carlos, além da própria abertura ter ao fundo a famosa composição homônima ao
título do filme, Garota de Ipanema, é focado estritamente no público jovem. Márcia
logo de início rompe seu noivado com Pedro Paulo e diz para uma amiga: “Que tal a
gente caçar em vez de ser caçada?”. Em uma cena, na casa da família da protagonista,
amigos e o próprio pai pedem para ver o novo biquíni ganho na noite de Natal. Em
um desfile para os convidados, no meio da sala, há uma aprovação geral, exceto pela
avó bêbada, ultrapassada, representante de uma época “fora de moda”, que brada que
aquilo era uma indecência.
Filmes como: Toda donzela tem um pai que é uma fera (Roberto Farias,
1966), As cariocas (Fernando de Barros, Roberto Santos e Walter Hugo Khouri,
1966), Todas as mulheres do mundo (Domingos de Oliveira, 1967) ou A penúltima
donzela (Fernando Amaral, 1969) são bons exemplos e que fazem com que Os
Paqueras e Adultério à brasileira, apesar de marcos, se tornem apenas o resultado da
observação de uma fórmula de repetição e variação pertinente ao desenvolvimento
dos gêneros cinematográficos. Retomando Omar Calabrese (1987), em A Idade
Neobarroca, lembro que a busca por uma iconografia reconhecível, gera um prazer na
30
sua identificação, mecanismo importante para garantir a eficácia do produto de
consumo popular.
Mesmo que os filmes acima não sejam considerados pornochanchada, é
notório que desde a década de 1960, o cinema brasileiro passou a manter um diálogo
mais próximo com a temática sexual e com o erotismo. Independente de ser uma
proposta mais comercial ou experiência de algum diretor ligado ao Cinema Novo, a
nudez e a insinuação passaram a fazer parte da narrativa. Cabe ressaltar também que
tais filmes, à exemplo de Garota de Ipanema ou Todas as mulheres do mundo, em
termos de personagens e histórias, pareciam ser direcionados a um público mais
jovem. A pornochanchada apresentou em geral personagens mais velhos, às vezes
com trinta anos de idade, mas representados por atores que beiravam os quarenta, com
conflitos e situações pertinentes à essa faixa etária. O gênero apenas se voltará
novamente para os jovens em finais da década de 1970, com os filmes de Antônio
Calmon, por exemplo.
O diferencial sentido a partir de 1969 é o contexto político vivido pelo Brasil
durante a ditadura militar. Inimá Simões (2000, p. 70), em O retrato do Brasil na
pornochanchada, lembra que a década de 1970, principalmente em seus primeiros
anos, foi um dos períodos mais agressivos do regime militar. Tanto a figura do
general Emílio Garrastazu Médici quanto o Ato Institucional nº5, decretado em 13 de
dezembro de 1968 (ainda no governo do general Costa e Silva) representavam o
aumento da repressão e a censura aos meios de comunicação e artísticos. Mesmo com
o foco dos censores voltado para os assuntos políticos, a temática sexual não deixava
de ter sua atenção, principalmente devido ao lema defendido pela ditadura militar
como um todo: “tradição, família e propriedade”.
Um interessante paralelo, o qual ressalta a importância tomada pelo ano de
1968 e o AI-5, pode ser observado através da comparação de dois filmes que
envolvem Roberto Farias. Em 1965, Farias dirige Toda donzela tem um pai que é uma
fera, comédia de costumes, filmada em 28 dias, com grande parte da sua narrativa
realizada dentro de um apartamento na zona sul do Rio de Janeiro. Com forte
influência nos filmes de Richard Lester, a comédia é protagonizada por Reginaldo
Faria e John Herbert, contando a história de Joãozinho (Reginaldo), que é colocado
contra a parede por um militar ao obrigá-lo a casar com sua filha, moça a qual teria
tirado a virgindade. Neste caso, os valores do casamento são colocados como
inegáveis, mesmo para dois conquistadores.
31
Após ter desvirginado também a empregada, em cena também não mostrada,
mas insinuada através do diálogo, Joãozinho entra em forte conflito pessoal e se vê na
obrigação de casar com ambas. A preocupação do protagonista com a questão é tão
grande, que mesmo morando junto com sua namorada, sem serem casados, os dois
dormem em camas separadas. O militar é visto como “inimigo” apenas por ser o pai
indignado que defende os valores da filha. O exército brasileiro, inclusive, cede
tanques para uma cena de devaneio do personagem de Reginaldo Faria. No final, há
um ambiente reconciliador, onde Joãozinho se casa, é feliz ao lado da esposa e do
sogro, e Porfírio, personagem de John Herbert, termina sozinho, trabalhando como
mordomo para os três.
Toda donzela tem um pai que é uma fera é um filme lançado apenas um ano
após o golpe militar de 1964. Quando Roberto Farias produz o primeiro longa-
metragem dirigido por seu irmão, o intervalo de quatro anos representa outros tempos,
políticos e morais. Os Paqueras apresenta novamente o protagonismo de Reginaldo
Faria, agora em dupla com Walter Foster. Ambos são conquistadores da zona sul
carioca. Não se fala mais sobre política ou segurança nacional. Não há espaço para
galhofas com militares, sendo inclusive os contestadores criticados. A moça (Irene
Stefânia) por quem o personagem de Reginaldo Farias se apaixona vai em passeatas,
mas não sabe exatamente o porquê. Por outro lado, nota-se uma preocupação maior na
incorporação da cultura pop e dos novos valores morais. Os Paqueras tem Os
Mutantes como carro-chefe para a sua trilha sonora. A temática sexual é tratada de
forma mais livre, com espaço para uma relativa nudez feminina e inclusive um
ménage a trois que envolve uma mulher e os dois protagonistas. A liberdade,
entretanto, é acompanhada da responsabilidade. Em ambos os filmes, um dos solteiros
é redimido através do amor e o outro, que opta por permanecer conquistador, encontra
a solidão. A cena final de Os Paqueras, mostra Reginaldo Farias caminhando na praia
de mãos dadas com a mocinha, o amor encontrado no decorrer de várias conquistas, e
Walter Foster, mais atrás, andando sozinho. Mesmo sem casamento, o final não deixa
de apresentar uma moral.
Em ambas as fases da pornochanchada, observam-se uma maioria de filmes
pautados em histórias moralizantes que exploravam o corpo feminino, centrando suas
narrativas em personagens caricatos como o marido traído, o vizinho tarado, a viúva
ninfomaníaca, o machão, a virgem, o homossexual afetado. O que se via nas telas, de
uma forma geral, era uma espécie de punição para cada um desses “desvios” de
32
conduta moral. O machão termina redimido, casado ou apaixonado, o corneador vira
um marido traído, e por aí vai. Contudo, ao fazer um apanhado geral dos filmes,
incluindo algumas produções de Pedro Carlos Rovai, não é difícil encontrar “desvios”
da moral defendida pelos militares. Definitivamente não se trata de um gênero
preocupado em conseguir uma forte crítica política ou social. Entretanto, a boa
repercussão do gênero para um público popular deve-se em parte ao fato do que está
na tela ser a representação estereotipada da sociedade e, quase via de regra,
ridicularizada através da mise-en-scène.
José Carlos Avellar (1979-80), em Teoria da relatividade, chama a atenção
que é a sensação de boa ordem, unidade e esforço comum que a pornochanchada
combate. Em seu texto, compara os cinejornais, os quais serviam como divulgação
dos valores defendidos pelos militares, com os filmes exibidos em seguida, onde se
demonstra a negação desses valores. Para Avellar, a pornochanchada expunha:
33
de resolução da situação, inclusive um flerte com uma atriz italiana, interpretada por
Zuzima, que o faz descobrir que o problema não é com ele, mas sim com o fato de
estar casado. Uma “alergia ao casamento”. Por fim, durante uma reunião entre as duas
famílias que buscam resolver a lua de mel não concretizada entre Alberto e Márcia, o
personagem de Newton Prado finalmente possui a esposa. Chega inclusive a
conversar sem roupas com seu sogro, Otelo Zeloni, que, ao ver o problema
solucionado, pede desculpas para o genro.
Alberto, no desenlace da história, não é punido por sua traição e, mesmo
representando a figura estereotipada do machão das pornochanchadas, se dá bem no
final. Conquista sua esposa e consegue o acesso à fortuna dos pais dela. Em uma
cena, onde são discutidos os prós e os contras do casamento, Silvia, a irmã de Alberto
vivida pela atriz Maria Alice, chama a atenção para os pilares que a família emergente
de Márcia representa, rotulando-os com a sigla TFP. À princípio, o que significaria
“tradição, família e propriedade”, se torna “tradição, fogão e pilantragem”. O que
importa é se dar bem, acima de tudo.
Para Pedro Carlos Rovai (2000, p. 87), no início da década de 1970, as
comédias eróticas ou pornochanchadas começaram a ser consideradas pelos militares
como uma espécie de plano subversivo com o intuito de minar a moral e os bons
costumes, destruindo os valores benéficos para a sociedade. Rovai chama a atenção
de que de um lado havia a elite intelectual, de esquerda, que analisava a
pornochanchada como sinônimo de alienação, e de outro, a direita, representada pela
ditadura, o que representava uma dupla censura.
Em fins da década de 1970, com o processo de abertura política do regime
militar e a diminuição da censura, há o início da entrada de filmes eróticos
estrangeiros em território nacional (ABREU, 1996, p. 79). No mesmo período, inicia-
se a segunda fase da pornochanchada, quando as produções pouco a pouco vão
incorporando as convenções narrativas características do gênero do hard core12. O
que se segue é uma progressiva diminuição da produção carioca e o aumento da
produção concentrada na Boca do Lixo. Segundo Ramos (Ibid., p. 439), a produção
paulista de sexo explícito vai se proliferar rapidamente, em paralelo com a entrada de
filmes pornôs, que chegavam no Brasil através de mandatos judiciais. Essa produção
12
Tal como o money shot, há também outras particularidades do gênero da pornografia hard core que
serão incorporadas pela pornochanchada a partir da década de 1980. Aprofundarei tais questões no
segundo capítulo ao tratar dos diálogos da pornochanchada com outros gêneros.
34
nacional realiza filmes ainda mais baratos do que a pornochanchada vista na primeira
fase, ocupando uma vasta fatia do mercado.
Inicialmente uma região rica da cidade de São Paulo, o termo “Boca do Lixo”
é um depreciativo cunhado pela polícia, pois com a mudança da elite paulista para a
zona sul, frequentadores “indesejados” foram pouco a pouco adentrando a região,
transformando-a numa zona de meretrício e tráfico de drogas. Desde o início do
século XX, a região foi passou a ser habitada por profissionais do cinema, como
produtores estrangeiros, distribuidores e exibidores, pela sua proximidade com a
malha ferroviária, facilitando a distribuição de cópias.
Enquanto Rovai e outros realizadores cariocas puderam usufruir da
Embrafilme durante a década de 1970, as políticas públicas para o setor
cinematográfico pouco chegaram à Boca do Lixo. O único artifício, comum a toda
produção brasileira, foi a questão da cota de tela. Evoluindo desde o final da década
de 1930, com o governo de Getúlio Vargas, essa legislação protecionista que consistia
na obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros teve a seguinte progressão:
35
Marcel de Almeida Freitas (2004, p. 74) demonstra que, enquanto a
Embrafilme financiava apenas a elite audiovisual, a pornochanchada da Boca atraiu
um investidor incomum: o pequeno comerciante, o dono de bar ou de posto de
gasolina que apreciava filmes B, mas ao mesmo tempo tinha condições de se associar
aos produtores, já que os custos dos filmes não eram tão altos se comparados ao
cinema carioca. Além disso, a cota de tela permitiu a associação dos produtores com
os exibidores, que formavam parcerias ou mesmo produziam os filmes.
O primeiro filme que inaugura a segunda fase da pornochanchada,
considerado o primeiro “pornô” nacional, é Coisas Eróticas, de Rafaelle Rossi, em
1981, que chega ao cinema através de mandado judicial, obtendo mais de 4,5 milhões
de espectadores. Segundo Ramos (Ibid., p. 438), dois filmes ainda antecederiam
Coisas Eróticas no que diz respeito a um crescente de diálogo com a pornografia: A
Noite das Taras (1980, produção de David Cardoso) e Fome de sexo (1981, Ody
Fraga). Embora o filme de Rafaelle Rossi tenha sido “o primeiro pornográfico
concebido conforme as regras do gênero, e também um campeão de bilheteria”
(RAMOS, Ibid., p. 439).
Mesmo fazendo uso mais direto da linguagem hard core, a pornochanchada da
segunda fase não se limitou a filmes de comédia, dialogando, por exemplo, com o
western, o policial e o horror. Essa hibridização de gêneros na produção da Boca do
Lixo já era vista desde a década de 1970 com, por exemplo, os filmes de ação de
David Cardoso. Este foi diretor, ator e produtor de vários filmes, buscando a criação
de um star system através de sua própria figura. Devido ao estigma sofrido pela
pornografia dentro do meio cinematográfico, diversos diretores, ao adentrarem na
seara do sexo explícito, passaram a utilizar pseudônimos. David Cardoso assinava
como Roberto Fedegoso, José Mojica Marins como J. Avellar, Antônio Meliande
como Tony Mel (ABREU, 1996, p. 85).
Desde início da década de 1980, a agonia da Boca do Lixo já pode ser sentida
com a crise na Embrafilme, que, perdendo sua força política, perde também sua
capacidade de fiscalização da lei de obrigatoriedade. Somado ao esgotamento da
fórmula do gênero, que não se renovou ao utilizar da linguagem hard core, mas sim
tentou competir cada vez mais com o sexo explícito importado, e à entrada do home
video em território nacional, as fitas beta e VHS, o cinema brasileiro como um todo
entrou em crise no final dos anos 1980, culminando com o fim da Embrafilme.
36
Abreu (Ibid., p. 80) destaca que, com o processo de abertura política em fins
da década de 1970, e o progressivo relaxamento da censura oficial, houve uma
intensificação da busca pela conquista de mercado, o que acabou mobilizando uma
produção mais “bem acabada” no tratamento dos temas eróticos. Utilizando-se de
investimentos acima da média, conseguidos através de coprodução com a
Embrafilme, esses filmes produzidos no Rio de Janeiro utilizaram de um star system
tanto de diretores quanto de atores e atrizes. Cito a título de exemplo: Contos
Eróticos, filme em episódios de Roberto Palmari, Roberto Santos, Eduardo Escorel e
Joaquim Pedro de Andrade, de 1977; Luz del Fuego, de David Neves, em 1981, Eu te
Amo, de Arnaldo Jabor, em 1981; e Rio Babilônia, de Neville de Almeida, de 1983.
Mesmo com a presença do erotismo em suas narrativas, não é comum que
esses filmes sejam vistos como pornochanchadas, o que possibilita observar uma
distinção clara neste momento entre um cinema oficial, respaldado pela Embrafilme e
composto por cineastas de prestígio cultural, e, por outro lado, o cinema da Boca do
Lixo, sem apoio direto estatal e carregando os estigmas do gênero. Não objetivo aqui
utilizar da prática discursiva para fazer um revisionismo da pornochanchada que
permita somar à classificação genérica filmes como Luz del Fuego ou Rio Babilônia.
Entretanto, uma das propostas é justamente observar como se consolidou o gênero,
inclusive pela exclusão de determinados títulos.
13
Tomo a expressão a partir da leitura do artigo de Inimá Simões, Sexo à brasileira, de 2007, que será
melhor discutido mais adiante.
37
cultural nada mais é que um campo de disputas políticas/ideológicas entre os diversos
agentes que o compõem. Pierre Bourdieu (2009, p. 272), em A economia das trocas
simbólicas, demonstra que a história do gosto, individual ou coletivo, serve para
desmentir a ilusão segundo a qual objetos tão complexos como as obras de arte,
produzido conforme leis de construção que foram elaboradas no curso de uma história
relativamente autônoma, sejam capazes de suscitar preferências naturais apenas pela
força de suas propriedades formais. Ao designar e ao consagrar certos objetos como
dignos de serem admirados e degustados, algumas instâncias como a família e a
escola são investidas do poder delegado de impor um arbitrário cultural. Isto é, no
caso particular em discussão, o arbitrário das admirações, e por esta via, estão em
condições de impor uma aprendizagem ao fim da qual tais obras poderão surgir como
como naturalmente dignas de serem admiradas ou degustadas.
De acordo com Bourdieu (Ibid., p. 285), cada época organiza o conjunto das
representações artísticas segundo um sistema de classificação dominante que lhe é
peculiar, aproximando obras que outras épocas separavam e separando obras que
outros períodos aproximavam, de modo que os indivíduos têm dificuldades em
discernir outras diferenças além daquelas que o sistema de classificação disponível
lhes permite pensar.
Um conceito importante aplicado por Bourdieu (2008), em A distinção: crítica
social do julgamento, é o habitus, um sistema de disposições que funciona como uma
matriz de percepções, apreciações, julgamentos e ações, que, reproduzido entre
gerações, produz esquemas por meio dos quais os objetos são diferenciados e
classificados. Moldado desde a infância, o habitus opera abaixo do nível de
consciência do indivíduo, levando-o a acreditar que suas escolhas não sofrem
qualquer tipo de influência cultural. De acordo com Loïc Wacquant (2005, p. 117),
em Mapear o campo artístico, o principal objetivo de Bourdieu, ao desenvolver o
conceito de campo artístico (champ artistique) é revogar as eternas oposições que
fragmentam a compreensão das práticas e da produção artística, buscando fundar uma
“ciência histórica das obras culturais”, capaz de reconciliar a necessidade social que
estas incorporam com o potencial que possuem para expressar verdades e valores
trans-históricos. O campo artístico seria a arena por onde indivíduos e instituições
competem pelo monopólio sobre a autoridade artística à medida que esta se
autonomiza dos poderes econômicos, políticos e burocráticos. Wacquant chama a
atenção de que o campo artístico é, em primeiro lugar, um “campo de forças”, uma
38
rede de determinações objetivas que pesam sobre todos os que agem no seu interior.
Em segundo, é um “campo de batalha”, terreno de luta em que os participantes
procuram preservar ou ultrapassar critérios de avaliação ou alterar o peso relativo dos
diferentes tipos de capital artístico. O conflito se daria entre os que atuariam em
estratégias de conservação do status desse capital, e os que ocupam posições à
margem, buscando assim a subversão dessas posições.
Um dos pontos mais interessantes levantados por Bourdieu e servindo como
premissa para a aplicação no campo de estudos cinematográficos, é o fato de não
podermos separar a ordem estética das instituições que a mantém, nem das lutas pelo
poder que as atravessam (WACQUANT, Ibid., p. 119). Dessa forma, toda a rotulação
feita em relação à pornochanchada, desde sua distinção em relação à produção da
época, até mesmo na atual revalorização do gênero, deve ser feita levando em conta o
posicionamento dos diversos agentes envolvidos e o local que eles se encontram nos
campos de forças e batalha.
Não descartando a importância da comédia contida na própria etimologia da
pornochanchada, o prefixo pornô terá prioridade de análise, pois foi um dos grandes
pilares para o estigma sofrido pelo gênero. Além disso, boa parte das cinematografias
passaram a dedicar sua atenção às temáticas sexuais a partir da década de 1960,
embora com diferentes repercussões e contextos. É interessante expor a dimensão que
a pornografia foi tomando a partir de meados do século XX, a partir de uma
declaração feita em 1954 e atribuída ao juiz da Suprema Corte estadunidense, Potter
Stewart: “Eu não sei o que ela é, mas reconheço quando vejo uma” (WILLIAMS,
1999, p. 4). Tal afirmação leva a um primeiro raciocínio importante: o alto grau de
preconceito sobre o gênero da pornografia visto já na década de 1950, mas que
perdura até hoje e que estabelece uma censura, inclusive moral, na sua simples
visualização. Além disso, o reconhecimento admitido pelo juiz pode também ser
relacionado à reação corpórea de excitação sentida ao se ver alguma imagem/vídeo
pornográfico e que faz parte dos body genres, que serão melhor descritos no segundo
capítulo.
Para dar conta do contexto em que se encontrava o campo artístico brasileiro
de fins da década de 1960, onde a ditadura militar se intensificava em termos de
repressão e diversos segmentos culturais cada vez mais se posicionavam contestando
o regime, cabe uma pequena digressão sobre a definição de contracultura. De acordo
com Ken Goffman e Dan Joy (2001), em Contracultura através dos tempos, e bem
39
semelhante à afirmação acima dita pelo juiz, poucos têm uma definição adequada e
prática da contracultura, porém têm a certeza de que a reconhecem quando a veem. O
termo contracultura foi popularizado no livro de Theodore Roszak, A Contracultura,
de 1969. Durante os anos 1960, o autor podia enxergar visualmente quais pessoas se
encaixavam em sua concepção: homens de cabelos e barba compridos, mulheres de
cabelos longos e vestido de camponesa, ou em alguns casos com roupas muito
semelhantes a dos homens anteriormente descritos. Eram pessoas que representavam
uma síntese do movimento hippie, dedicados a experiências com drogas que
expandiam a consciência e ligados ao movimento da nova esquerda/pacifista, tendo
como pano de fundo o conflito entre os Estados Unidos e o Vietnã no período.
Com o passar dos anos, fica mais difícil estabelecer uma definição tão
imagética do que é contracultura, embora o termo ainda possa ser usado. Goffman e
Joy, pensando no que chamam de “subculturas contraculturalmente afetadas”,
rejeitam a definição que a indica como simplesmente um estilo de vida diferente da
cultura dominante. Para os autores (GOFFMAN e JOY, Ibid., p. 48-49), a essência da
contracultura como um fenômeno histórico é caracterizado pela afirmação do poder
individual de criar sua própria vida, mais do que aceitar a moral e as convenções da
sociedade, sejam elas dominantes ou subculturais. Existiriam, então, três
características fundamentais da contracultura: as contraculturas afirmam a
precedência da individualidade acima de convenções sociais e restrições
governamentais; as contraculturas desafiam o autoritarismo de forma óbvia, mas
também de forma sutil; as contraculturas defendem mudanças individuais e sociais.
Segundo Christopher Dunn (2008, p. 146), em Nós somos os propositores, a
contracultura no Brasil não foi um movimento uníssono e coerente, mas um conjunto
de atitudes, ideias e práticas que surgiram com a esquerda, posicionando-se contra a
ditadura militar, mas que também apresentaram uma crítica às formas mais
convencionais de ativismo político, como os disseminados pelo Partido Comunista
Brasileiro. De acordo com o autor, com a imposição do AI-5 e seus reflexos na
sociedade brasileira: fechamento do Congresso, suspensão do habeas corpus, censura
institucionalizada aos meios de comunicação; só havia três opções possíveis para os
jovens que se opunham ao regime: aderir à luta armada, o exílio, ou “desbundar” e
viver às margens da sociedade.
Tradicionalmente associada a artistas como Caetano, Tom Zé, Gilberto Gil,
Waly Salomão, Lígia Clark e o Cinema Novo de Glauber Rocha, a contracultura
40
brasileira tem seu gesto inicial através da instalação de Hélio Oiticica, “Tropicália”,
em 1967, para a exposição Nova Objetividade Brasileira. O nome, que se estendeu
para a música homônima de Caetano Veloso, significou um movimento que reuniu
vários artistas que privilegiavam as experiências sensoriais e participativas (DUNN,
Ibid., p. 152). Como mostra Dunn (2009, p. 147), em Brutalidade jardim: a
Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira, a Tropicália ao utilizar
elementos kitsch e contestar os padrões de “bom gosto” e seriedade da MPB da
década de 1960, praticava um gesto de “populismo estético”, pois reconhecia que o
público em geral consumia e via significado em produtos culturais criticados e
menosprezados como datados ou alienados. Além disso, os tropicalistas incorporaram
o kitsch como uma maneira de satirizar os valores sociais e políticos retrógrados
retomados pelo regime militar.
Não é meu objetivo estabelecer uma comparação direta da pornochanchada
com a contracultura brasileira, comumente reconhecida através dos nomes citados
acima, tentando agregar um maior grau de politização ao gênero ou objetivando
diminuir o seu caráter em geral moralista. Contudo, as defesas feitas da
pornochanchada por Paulo Emílio Salles Gomes e Jean-Claude Bernardet durante a
década de 1970, que serão melhor discutidas no terceiro capítulo, possibilitam mostrar
que o gênero não se desliga de um contexto de politização da cultura brasileira. O
próprio Pedro Carlos Rovai, em uma entrevista para a revista Sinopse que também
será melhor esmiuçada adiante, ao tratar da sua carreira em retrospecto busca notar
que mesmo buscando bilheteria, não poderia fugir da “formação” de sua juventude,
composta por um idealismo que seria notado através da “visão crítica” de seus filmes.
Dessa forma, do mesmo modo que a Tropicália, enquanto movimento musical,
em suas letras e performances não apresentava soluções, mas sim trabalhava
politicamente através da exposição das contradições da sociedade brasileira, a
pornochanchada através da sátira, da paródia, representava uma classe média
conservadora e hipócrita. É interessante notar que Antônio Risério (2005, p. 26)
chama a atenção de que “a contracultura se expandiu no Brasil não por causa da
ditadura, mas apesar da ditadura”. Já a pornochanchada também não pode ser
reduzida como fruto da repressão. Muitas vezes foi dito que o fato de não se poder
falar de política, nos mais variados meios de comunicação e nas artes, inclua-se o
cinema, levou a colocar-se o sexo como temática principal. Entretanto, esquece-se
todo o contexto de revolução de costumes que se desenvolveu durante toda a década
41
de 1960, explodindo em vários países durante o ano de 1968. A temática sexual
estava presente nas narrativas cinematográficas de uma forma geral.
Inimá Simões (2007, p. 186), em Sexo à brasileira, mostra que a
pornochanchada reflete toda uma onda de permissividade e liberação dos costumes,
com temas que de início se prendiam à paquera, às conquistas amorosas, à virgindade,
ao adultério, à viúva disponível e fogosa. O gênero resgata as velhas anedotas
picantes vistas desde a chanchada como inspiração para seus roteiros, que mesmo
previsíveis, geram uma grande atração para o público. A reação da plateia é percebida
diferentemente, dependendo da classe social que assistia ao filme. De acordo com
Simões, Paulo Emílio Salles Gomes, professor da USP, aconselhava seus alunos a
verem um mesmo filme em regiões diferentes da cidade. No centro, nas salas de
frequência popular, as expressões de duplo sentido, são percebidas de imediato e
ovacionadas. Nas salas elegantes da Avenida Paulista, ou nos bairros de classe média
alta, as mesmas situações são recebidas com grande constrangimento.
Dessa forma, quando argumento a pornochanchada como uma “revolução
sexual à brasileira”, estou defendendo que esta foi a revolução de costumes que se
podia mostrar na tela. A única que, mesmo com cortes e perseguições, chegava para a
maioria da população através do Cinema. A pornochanchada Os Paqueras, de
Reginaldo Farias, serve como ótimo exemplo. É basicamente a narrativa das
aventuras de dois conquistadores. Em determinado momento do filme, um deles é
apanhado no flagra na cama pelo marido ciumento que está acompanhado da polícia.
Ao saírem todos para a delegacia, na porta do edifício, o marido é eloquentemente
vaiado, já o conquistador, envolto em lençóis, é recebido com aplausos pela multidão
que o carrega até o camburão.
Já uma revista promocional para a divulgação de Adultério à brasileira14,
continha as informações técnicas, mas também valorizava a temática do filme Pedro
Carlos Rovai. O material exibe várias frases de publicidade ligadas à temática das
relações amorosas: “Só os homens têm o direito de trair? As mulheres gostam de ser
traídas? Quando a mulher sonha com outro homem estará cometendo adultério? No
homem, será o adultério uma necessidade de afirmação? Na mulher, será o adultério
uma procura de amor ou um ato de vingança? Vejam o adultério ao alcance de todos!”
O filme, dividido em três episódios, trata o adultério em diferentes camadas sociais:
14
Disponível em: <http://www.memoriacinebr.com.br/arquivo/0750398I01001.html>. Acesso em
12/02/2012.
42
na alta burguesia, na classe média e no operariado. A própria revista admite que o
filme não se pretende como uma espécie de “compêndio sociológico”, levando a uma
discussão maior sobre a traição em si, mas, por outro lado, garante “que sua projeção
na tela vai divertir um bocado”.
Embora moralizante, se comparada à produção de outros países, a
pornochanchada aboliu alguma possível complicação relacionada ao sexo ou o toque
pesado que se abate sobre a produção de alguns países na época. O conquistador,
através do amor, obtinha a salvação. Como mostra Simões (2007, p. 190), na
Argentina as atrizes geralmente representavam deusas impuras, com unhas
transformadas em garras vermelhas. Personagens que geravam tragédias familiares,
fazendo a ligação da mulher sensual com o fogo do inferno. Na produção brasileira, e
isso nota-se além do gênero da pornochanchada, o pecado é o fracasso social, a
solidão do feio, a incompetência em ganhar dinheiro, ou seja, temáticas mais ligadas à
modernização por que passava a nossa sociedade. Ainda de acordo com o autor, um
crítico de São Paulo, em tons de provocação obviamente, disse que na época da
pornochanchada, no caso de um triângulo sexual brasileiro, os dois homens que
disputam a mulher terminam por estabelecer um acordo para poderem partilhar a
moça. Na mesma situação no cinema argentino, os dois homens acabariam na sarjeta
e sem a mulher. Já no cinema hollywoodiano, os homens optariam pela amizade
masculina e, conjuntamente, se afastariam da mulher.
A provocação acima feita por Simões, apesar do tom de galhofa ao comparar a
produção do Brasil com a argentina e a estadunidense, revela que o ponto de vista
masculino se sobressaía na maioria dos filmes. A disputa sobre o sexo feminino é
feita a partir da iniciativa do homem. É válido destacar que mesmo em torno de toda
uma revolução de costumes que se viu durante a década de 1960, no que toca à
questão sexual, o falar sobre o sexo nos cinemas não necessariamente significa uma
liberalização dos costumes ou uma quebra de paradigmas que buscassem questionar
os lugares masculinos e femininos na sociedade.
A institucionalização do discurso sexual é apresentada por Michel Foucault,
(1988, p. 61), em História da sexualidade 1: a vontade de saber, onde dentro da
sociedade ocidental, a ampliação do discurso sobre o sexo, enfim, de um estudo mais
sério e fundamental sobre o mesmo, aumentou mais ainda a questão da proibição
sobre o tema. Para Foucault (Ibid., p. 158) o sexo faz parte, por um lado, das
disciplinas do corpo (adestramento, intensificação e distribuição das forças), por
43
outro, faz parte da regulação das populações por todos os efeitos globais que induz. A
disciplina criada em torno da temática sexual aumenta a possibilidade de um estudo
sobre a sexualidade, mas faz com que a análise de relações sexuais consideradas fora
dos padrões seja vista como o estudo de alguma doença. Essa regulamentação
afirmada por Foucault permitiu que as instituições que detêm o poder pudessem,
então, disciplinarizar e moralizar o sexo, controlando-o. (MANTEGA, 1979, p. 24) Já
Susan Sontag (2004, p. 4), em A imaginação pornográfica, publicado em 1967,
aponta que a avaliação e o exame racional especificamente da pornografia na arte são
efetuados através de discursos de psicólogos, historiadores, juristas, etc., assim,
qualquer desvio pode ser visto como uma doença passível de ser diagnosticada e
julgada moralmente.
Por mais que tenha gradativamente ocorrido uma revolução sexual, a partir da
década de 1960 e com ênfase no ano de 1968, e uma consequente liberalização dos
costumes, a temática da sexualidade continua sendo vista como tabu e também não
necessariamente deixa de ser exposta de maneira moralizante. A pornochanchada, por
exemplo, desagradou tanto por tratar o sexo de maneira conservadora, quanto pelo
simples fato de narrar/exibir esse sexo dentro de um contexto político-social que
pregava a defesa da moral e dos bons costumes e que, dessa maneira, pouco distinguia
erotismo de pornografia. Nuno César Abreu (1996) e Carlos Gerbase (2006) apontam
as dificuldades de se traçar limites precisos entre o erótico e o pornográfico
historicamente e em tempos mais atuais. Para Gerbase (Ibid., p. 44), a indústria
cinematográfica é a grande especialista na chamada “coagulação do sexo”, ou seja,
transformar uma atividade inerente aos seres humanos em mercadoria. E essa
distinção depende muito da prática discursiva a que determinada obra é submetida15.
André Bazin (1983, p. 136) ressalta que o erotismo não seria algo que
aparecera no cinema de maneira meramente acidental, pois os produtores, em busca
de atrair público, teriam naturalmente recorrido à exploração do sexo nas telas. De
acordo com Laura Mulvey (1983, p.440), em Prazer visual e cinema narrativo, o
cinema tradicional, bastante desenvolvido em Hollywood, através de seus códigos,
permitiu ao sujeito alienado sexualmente alcançar uma ponta de satisfação através da
beleza formal desse cinema e do jogo com as suas próprias obsessões formativas. Um
15
Ao tomar como exemplo a exibição de Destricted.br, uma produção de Lula Buarque de Holanda e
lançado no Festival do Rio de 2010, que reúne artistas plásticos e diretores/autores para dialogar com a
pornografia, considerado filme de arte, mas exibindo o money shot e outros códigos pertinentes ao
gênero, esses limites se tornam ainda mais complicados de serem observados.
44
dos prazeres que o cinema poderia fornecer ao espectador é a escopofilia, ou seja, ato
de tomar as outras pessoas como objetos, sujeitando-as a um olhar fixo, curioso e
controlador. A relação social onde o homem é o sujeito ativo e a mulher é passiva se
reflete no cinema. A presença da mulher, segundo Mulvey (Ibid., p. 444), é um
elemento indispensável para o espetáculo em um filme narrativo comum, porém, sua
presença tende a congelar a narrativa em momentos de pura contemplação visual e
erótica. No caso da pornochanchada, Inimá Simões (2007, p. 185) ressalta que a
suspensão da trama em decorrência da exploração do corpo é vista, pelo espectador,
como algo já esperado e pertinente ao gênero.
Principalmente com o hiato que se instaurou no cinema brasileiro no final da
década de 1980 a partir do fim da Embrafilme, é comum a associação da
pornochanchada como um dos motivos para tal crise de produção, o que aumentou
mais ainda o estigma sofrido desde os anos 1970, além de resultar em algumas
distorções historiográficas. O que apresentava uma produção diversificada virou
sinônimo de um cinema de sexo explícito. É válido relembrar que a produção da Boca
do Lixo, que durante a década de 1980 vai sim realizar filmes cada vez mais hard
core, não se limitou aos filmes de comédia com cenas explícitas, dialogando também
com vários outros gêneros. Marcel de Almeida Freitas (2004), em Pornochanchada:
capítulo estilizado e estigmatizado da história do cinema nacional, chama a atenção
para o fato de tudo o que fugisse da aura intelectual/cultural exigida para o patrocínio
da Embrafilme ser identificado como pornochanchada, independente de ser comédia
erótica e levando em conta mais o seu local de produção, no caso a rua do Triunfo
(FREITAS, 2004, p. 73).
Também é comum, dentro do estigma sofrido pelo gênero, rotular a
pornochanchada como fruto da ditadura militar. Durante anos, o senso comum entre
críticos e mesmo pesquisadores mostrava que se no período pós AI-5, com o
endurecimento do regime, não se podia falar de temas políticos, a temática sexual foi
vista como único escape temático para o cinema brasileiro, funcionando como uma
espécie de pão e circo. Bourdieu (2009, p. 293) lembra que a inércia característica das
competências artísticas (ou melhor, do habitus cultivado) faz com que, nos períodos
de ruptura, as obras produzidas segundo um novo modo de produção estejam fadadas
a serem percebidas, durante muito tempo, através dos instrumentos antigos de
percepção, justamente, aqueles contra os quais elas se constituíram.
45
Um bom exemplo é o artigo de Francisco Alexandrino de Oliveira Neto
(2007), intitulado Pornochanchada e censura: legítimas filhas da ditadura, pois o
autor traça exatamente a linha de raciocínio por onde se atribui a pornochanchada
como um cinema resultante da censura aos temas políticos e como um reflexo da
ditadura militar. Já no resumo, há a afirmação que o governo militar brasileiro,
durante as décadas de 1970 e 1980, encontrava-se em um estágio de negociações com
os segmentos político-ideológicos. Dessa forma, as comédias eróticas “eram
permitidas pelo regime militar, objetivando desviar a atenção pública para o cinema,
tornando-a assim menos crítica ao regime”. A meu ver é complicado pensar nas
“negociações” acima afirmadas, sem a citação da(s) fonte(s) utilizada(s). É notório
que os militares, para se manterem no poder por vinte e quatro anos, concederam e
pressionaram diversos setores da sociedade. Porém, não se pode acusar a
pornochanchada de peleguismo, no sentido político, sem a apresentação de provas ou
justificativas mais sólidas ou mesmo relativizar a repressão, tal como é feito em
vários momentos do texto de Oliveira Neto.
46
contrassenso ao ideário do regime militar, e é no mínimo estranho que tenha tido
alguma função estratégica, mesmo para camuflar a censura à temática política.
O artigo, mencionado a título de exemplo, em suas diversas inconsistências,
serve como parâmetro para observar e questionar a abordagem pela qual a
pornochanchada foi tratada em sua contextualização dentro do regime militar. Como
mostra Carlos Fico (1997, p. 121), em Reinventando o Otimismo, nas principais
campanhas da Aerp/ARP 16 , agências de propaganda política da ditadura militar
brasileira, há a recorrência das noções de construção e transformação nas temáticas
das campanhas. Ambas as ideias estavam associadas à ideia de ruína, estabelecendo
um contraponto com o momento anterior ao golpe de 1964, onde a situação de
completa decadência moral e material tomou conta do país. A “reconstrução”
proposta pelos militares passava pela criação do ideal do bom cidadão, membro de
uma família bem estruturada e cristã. Analisando os filmes veiculados na televisão
brasileira, Fico comenta que se tratou de uma campanha supostamente
“despolitizada”, que evitava a explicitação do seu teor político para evitar a rejeição
de uma abordagem mais direta. Contudo, ao camuflar as suas intenções, essas
propagandas não deixavam de impor os padrões necessários para a construção de um
caráter nacional e de um ideal de família como almejados pela ditadura militar. Fica
claro que este ideário foi possível em muito a partir do clima de exaltação conseguido
tanto pela conquista do tricampeonato da seleção brasileira de futebol quanto pelo
milagre econômico (FICO, 1997, p. 137).
José Carlos Avellar (1979-80), em A Teoria da Relatividade, ressalta que a
criação da Aerp estava ligada ao clima de contestação aos militares vivido em 1967-
68. A estratégia de propaganda adota e posta em prática de modo mais sistemático
após o AI-5, é fortalecer temas como higiene, saúde, técnicas de trabalho, patriotismo
e esperança. Segundo Avellar (1979-80, p. 75), a pornochanchada nasce justamente
neste contexto. A partir do momento em que há uma campanha pública que começa a
afirmar que o “Brasil é feito por nós”, em tom de deboche, as pornochanchadas
questionam “nós quem?”.
Aqui cabe uma observação da Censura no cinema brasileiro, pensando-a
dentro do governo militar. Essa análise vai permitir a refutação da pornochanchada
enquanto colaboradora do regime militar, além de um avanço na observação dos
16
Respectivamente, Assessoria Especial de Relações Públicas, criada em 1968, e Assessoria de
Relações Públicas, criada 1976.
47
limites narrativos e estéticos que eram impostos sobre as temáticas sexuais nesse
período. Para tal, utilizo como base o livro de Inimá Simões, Roteiro da Intolerância,
de 1999. Mesmo tratando da censura cinematográfica como um todo, dando conta do
início da produção brasileira desde o primeiro cinema, o ponto de partida que
interessa para a presente análise é a Censura submetida ao filme Os Cafajestes de Ruy
Guerra.
Inserido no contexto do Cinema Novo e influenciado pela Nouvelle Vague,
não se trata de fazer uma ligação direta de Os Cafajestes com a pornochanchada,
fazendo com que o filme de Ruy Guerra seja considerado o novo precursor do gênero.
Sua importância para o presente estudo, deve-se ao fato dele ter sido lançado em 1962
e apresentar o primeiro nu frontal do cinema brasileiro, a já citada cena em que
Norma Bengel está despida em uma praia. Há aqui o diálogo mais explícito da
produção nacional com o erotismo até então, o que gera repercussão também para os
demais setores da sociedade. Segundo Leonor Souza Pinto (2007, p. 3), em O cinema
brasileiro face à censura imposta pelo regime militar no Brasil, até o golpe militar a
censura apenas classifica os filmes pela faixa etária e os cortes não existiriam. No
caso de Os Cafajestes, após pressão de setores da Igreja Católica, o filme é liberado
somente para maiores de 18 anos, sem cortes. De acordo com Simões (1999, p. 62-
63), o Chefe de Polícia do Rio de Janeiro mandou recolher as cópias com a seguinte
justificativa: “O filme mostra o lado delicioso de práticas imorais e viciosas, sem
evidenciar os aspectos condenáveis”.
Uma das linhas de raciocínio daqueles que defenderam a Censura ao Os
Cafajestes, reside no fato dos personagens praticarem sexo (mesmo que narrada
através de uma elipse), ingerirem drogas e beberem, mas não serem punidos no final
de sua trajetória, o que representava uma apologia aos temas acima (Simões, 1999, p.
67). O que se percebe analisando a perseguição ao filme de Ruy Guerra é que, em
1962, o sexo é visto como tabu e, assim, sendo necessária uma punição para o ato.
Mesmo que no decorrer da década de 1960 e a partir dos anos 1970 se desenvolva
uma revolução de costumes, incluindo a revolução sexual, isso não quer dizer que o
tema deixava de ser tratado como anomalia e de forma preconceituosa. Como já
mencionado, a partir de dois filmes, Os Paqueras, de Reginaldo Farias, e Adultério à
brasileira, de Pedro Carlos Rovai, dá-se o início histórico do gênero. Para Simões
48
(1999, p. 165), o ‘ciclo erótico’17 não surge de forma espontânea. Acompanha uma
onda cinematográfica internacional e se beneficia do fechamento do regime político
que desestimula o tratamento de temas “sérios” [aspas do autor]. Entretanto, como
visto através da fundamentação teórica de Bourdieu e Wacquant, a definição do que
seria um filme sério ou um filme pertinente para o contexto político da época é muito
tênue e condicionada historicamente.
É interessante a colocação de Leonor Souza Pinto (2007, p. 3) onde a Censura
praticada no Brasil, durante o período da ditadura militar, não pode ser vista apenas
como mecanismo de repressão, pois servia também para a estruturação e legitimação
do regime, tal como para a difusão de sua ideologia. Fato que ajuda a negar qualquer
possibilidade de ligação institucional da pornochanchada, frente à defesa da moral e
dos bons costumes, com os militares. Dividindo a Censura em quatro fases, interessa
particularmente aquela que vai de 1969 a 1974 onde:
De acordo com a autora (Ibid., p. 12), nesse período há menos espaço para
uma resistência aberta, no caso, política, fazendo com que produtores e diretores
procurem novas formas de se expressar. Assim, Pinto ressalta o uso de metáforas e
alegorias presentes em filmes como Azyllo muito louco (1971) e Como era gostoso o
meu francês (1972), de Nelson Pereira dos Santos, além das adaptações de clássicos
da literatura, como Dona Flor e seus dois maridos (1976), de Bruno Barreto.
Contudo, o que parece explicitado pela autora é que o uso de metáforas em forma de
títulos ou mesmo inserido nas narrativas permitiria um facilitador para que o filme
passasse pelos censores o que, entretanto, não se percebe na prática. De acordo com
Simões (1999, p. 168), Como era gostoso o meu francês, por exemplo, mesmo
baseado no caso histórico de Hans Staden no Brasil, em agosto de 1971 foi interditado
em todo o território nacional por conta da nudez dos seus personagens.
17
Aqui Simões não faz distinção entre ciclo ou gênero, levando à opção de manter a forma original
escrita pelo autor, mas utilizando-me de aspas simples.
49
Se a temática erótica cresce em detrimento da proibição de assuntos políticos
nos filmes, setores da sociedade, incluindo entidades religiosas, cada vez mais se
organizam para pressionar os órgãos de Censura, buscando a defesa moral.
50
Mesmo observando o momento em que há o encaminhamento para uma
abertura política e a distensão da Censura, em fins das décadas de 1970, quando parte
dos agentes que atuavam no campo artístico da pornochanchada passam a dialogar
mais abertamente com o sexo explícito, percebe-se que para esse diálogo, foi feito um
novo embate entre Estado e produtores. De acordo com Simões (1999, p. 231-232),
lançado em 1976, Império dos Sentidos, de Nagisa Oshima, só foi apresentado à
Censura em 1980 e os censores foram unânimes ao proibir sua exibição. O temor era
que, com a liberação do filme, houvesse um precedente aberto para a entrada da
produção de sexo explícito em território nacional (o que realmente aconteceu, a partir
de 1981, com liminares judiciais).
Ao procurar traçar um panorama do estigma sofrido pela pornochanchada, seja
da sua suposta ligação com a ditadura/censura, seja pelo seu uso da temática sexual,
moralizante ou não, busca-se um arcabouço teórico para contextualizar os agentes do
campo artístico do cinema brasileiro da década de 1970. Nesse contexto, a questão da
autoria é um bastante complexa e em si outra esfera importante em relação ao debate
da distinção, especialmente no campo do cinema brasileiro, ou mesmo de um cinema
brasileiro de gênero, em que o signo da autoria historicamente determinou as
hierarquias e os lugares de fala de cineastas e filmes. No capítulo que se segue,
refletirei sobre essas questões e suas correlações com o universo da pornochanchada.
51
Capítulo 2: Autoria e gênero nas pornochanchadas
52
arte moderna, o valor artístico estaria na sua ruptura com o banal. Contudo, ao ter
suas origens datadas já na era da reprodutibilidade, o cinema nasce da banalidade,
sendo a primeira luta de críticos e teóricos justamente dar ao filme o valor de artefato,
de obra.
Dentro do contexto da autoria cinematográfica, deve-se destacar o papel da
crítica francesa, em especial a revista Cahiers du Cinéma, a qual formulou a política
dos autores (politique des auteurs), e onde pouco a pouco foi fortalecendo a figura do
diretor como elemento essencial de criação dentro do cinema. Assim, a abordagem
autoral conferiu certa respeitabilidade a filmes populares, permitindo que seus
“criadores” – os autores, - fossem discutidos enquanto artistas, tal como já eram vistos
os poetas, pintores, compositores e escritores (RYALL, 1998, p. 328).
A valorização da figura do diretor como autor, e também do próprio Cinema, é
pensada antes mesmo da Cahiers e seus críticos. Alexandre Astruc, em seu ensaio de
1948, Nascimento de uma nova vanguarda: a câmera-caneta, publicado na revista
Écran Français, aponta a possibilidade de autoria no cinema, o qual estaria
desenvolvendo-se como forma de expressão, comparando-o à poesia e ao romance.
Astruc sustenta que a fórmula “câmera-caneta” valoriza o ato de filmar, permitindo ao
diretor ser um artista criativo de pleno direito. O contexto do manifesto se relaciona
com o momento da percepção do cinema e sua crescente divisão e especialização de
tarefas – âmbito de uma indústria cinematográfica em desenvolvimento
(principalmente com o avanço do cinema de Hollywood), buscando, assim, a defesa
do cinema enquanto arte (STAM, 2003, p. 103).
Segundo Edward Buscombe (2005, p. 281-282), em Ideias de autoria, a
Cahiers du Cinéma propunha, em inícios da década de 1950, justamente uma intenção
de se olhar o cinema enquanto forma artística, tal como a pintura e a poesia. O que
diferenciava a Cahiers de outras revistas francesas de crítica cinematográfica de sua
época, quanto à questão da autoria, era o fato dos primeiros acharem que as
oportunidades de expressão pessoal podiam ser encontradas não apenas no cinema
europeu de “arte”, mas também na produção de Hollywood, elevando alguns
diretores, como Orson Welles, Fritz Lang e John Ford, à categoria de artistas. A
noção de uma assinatura, um estilo deixado pelo diretor ao realizar sua obra, advém
do pós-guerra, quando o discurso cinematográfico, da mesma forma que o literário,
apropriou-se de termos como escritura, escrita e textualidade (apropriação notada
através do termo “câmera-caneta” de Astruc). Os críticos da Cahiers absorviam em
53
seus filmes e em seus artigos a metáfora textual, o que pode ser percebido nas
primeiras realizações da Nouvelle Vague, vendo no Cinema e na crítica duas possíveis
formas de expressão pessoal (STAM, Ibid., p. 105).
François Truffaut, em seu ensaio Uma certa tendência do cinema francês,
publicado na Cahiers em 1954, chamaria atenção justamente para a questão do
“estilo” de determinados diretores, que se sobressairia mesmo em terrenos minados,
como a crescente indústria hollywoodiana. Para Truffaut, o verdadeiro talento, a
marca pessoal, sobressair-se-ia não importando as circunstâncias de produção. Cabe
ressaltar que um dos objetivos da política dos autores é de certa forma responder aos
estudos da época de cultura de massa, os quais tratavam o cinema como forma de
alienação política. Assim, o que Truffaut e outros críticos buscariam seria a defesa da
produção cinematográfica na figura do autor, como combate ao modo de produção
dominante, glorificando os que estabeleciam uma autoria, mesmo onde a indústria
estaria melhor implantada (Ibid., p. 103-104; 106).
Embora a política dos autores tenha tido como objetivo, segundo Cook (1985,
p. 115), “quebrar as fronteiras entre o cinema de arte e o cinema comercial”, o
pensamento dos críticos da Cahiers possui coerência interna, mas não uma unidade.
Da mesma maneira, a recepção da política por críticos e cineastas de outros países não
se deu de forma uníssona. No Brasil, por exemplo, como será visto mais adiante, o
pensamento da Cahiers – e sua interpretação feita por Andrew Sarris – representou
inicialmente forte arma intelectual de uma classe em formação contra a possibilidade
de qualquer tipo de indústria, e consequentemente contra o cinema de gênero
brasileiro, mesmo que esta não fosse de longe comparável ao modo de produção
hollywoodiano.
Mesmo sem a possibilidade de se estabelecer uma orientação comum do que
seria a autoria pelos críticos da Cahiers, o que se nota é o predomínio de uma
concepção “romântica” onde o diretor é visto como o único progenitor de um filme. O
romantismo, presente nos textos de Truffaut, André Bazin e Jacques Rivette, fazia a
distinção entre o auteur (“autor”) e o metteur en scène (“artesão”), entre o cinéaste e
o confectionneur, caracterizando-se pela diferença da capacidade do autor para fazer
um filme próprio e a incapacidade do artesão de esconder que a origem do seu filme
está em outra parte. O diretor seria então o responsável, em última instância, pela
estética e a mise-en-scène de um filme. Outros críticos, tais como Eric Rohmer ou
mesmo André Bazin em textos posteriores, tentaram problematizar o enaltecimento da
54
figura do diretor, levando em conta também fatores como a circunstância histórica em
que os filmes foram produzidos e o embasamento técnico (BUSCOMBE, Ibid., p.
284-285).
Cabe destacar que a Cahiers e seus críticos ao debater a autoria não tinham
um objetivo metodológico, mas sim firmar uma posição política que os distinguia do
restante da crítica francesa (e também do próprio cinema francês). Foi através de uma
tradução errônea do crítico estadunidense Andrew Sarris, na tentativa de passar
politique para a língua inglesa, que se iniciou uma auteur theory (teoria do autor).
Stam (Ibid., p. 108-109) ressalta que ao aplicar a teoria adotando um posicionamento
nacionalista e etnocêntrico, Sarris buscou tratar o cinema estadunidense como
superior ao cinema do “resto do mundo”. Independente de objetivar criar ou não uma
teoria na tradução do termo, suas teses geraram uma abordagem para o campo de
estudos cinematográficos, onde o modo de se ver o autor representava a ideia de que
tanto a crítica quanto a teoria voltada para as análises de filmes deveriam ser
valorativas, comparando filmes e diretores e estabelecendo uma hierarquia.
Segundo Buscombe (Ibid., p. 284), Sarris, para tal valoração, assume a noção
de “unidade da obra” que permitiria revelar a integridade da arte e do artista. Nessa
perspectiva, tanto os filmes quanto o diretor deveriam ser analisados como um todo
orgânico. A busca por uma unidade resultaria no culto à personalidade do autor, sem
levar em conta qualquer tipo de determinismo social que pudesse influenciar na obra.
Por consequência, Sarris criou uma abordagem teórica onde era possível se
estabelecer um valor para os diretores que conseguiam manter sua visão pessoal e seu
estilo, independente do sistema de hierarquias por onde trabalhava. De acordo com
Cook (Ibid., p. 137), o método estabelecido pela teoria de autor era avaliar os filmes a
posteriori, de acordo com a competência técnica dos diretores, a presença de um
estilo visual distinto e uma marca que permanece precisamente nas relações
resultantes entre as tensões entre o diretor/autor e a indústria. Assim sendo, a
problemática da abordagem de Sarris estaria justamente em valorizar o autor em
termos comparativos, sem levar em conta as condições de produção, estabelecendo-se
classificações simplistas como “bom” ou “ruim”, contudo esquecendo que ambas são
subjetivas e especificamente culturais.
Stephen Crofts (1998, p. 315), em Authorship and Hollywood, ressalta que no
final da década de 1960 se estabeleceu o estruturalismo autoral. Este era diretamente
influenciado tanto pela política da Cahiers quanto pela teoria de autor de Sarris, mas
55
que aplicava na análise e crítica fílmicas também a metodologia estruturalista de
Lévi-Strauss19. Dessa forma, com a ênfase na análise sistemática de um corpo de
textos, o estruturalismo autoral concebia a autoria como um conjunto de estruturas
identificáveis, códigos transindividuais (mitos, iconografias, lugares) em filmes de um
diretor, buscando um tema ou estilo comum para se observar uma marca particular.
Durante a década de 1970, o estruturalismo autoral influenciou também a
análise genérica. Como mostra Stam (Ibid., p. 147-148), foi nesse período que se
buscou uma análise do western através de estruturas binárias, traçando dicotomias
como deserto/jardim (na obra de John Ford), em conjuntos de oposições mais amplas
como indivíduo/comunidade, natureza/cultura e lei/armas, ou mesmo em divisões dos
gêneros (atuando como ritual cultural) entre aqueles que operariam para restabelecer a
ordem social (westerns e policiais) e os que funcionariam para promover a integração
social (musical, comédia e melodrama).
Tanto Crofts (1998, p. 316), que também utiliza o western como estudo de
caso, quanto Stam (Ibid., p. 145) vão concordar que a principal deficiência do
estruturalismo autoral é aplicar motivos e estruturas binárias de modo forçado nos
estudos cinematográficos. Desse modo, determinadas estruturas só seriam aplicáveis a
determinados autores e em um corpo de filme restrito, elencando a filmografia e o
código autoral que melhor se encaixem na fórmula buscada. Consequentemente, o
grande trunfo do estruturalismo autoral é ser uma espécie de transição do conceito
pré-estruturalista, onde o autor é o criador de sentido, para o conceito pós-
estruturalista, onde o autor é um construto do leitor. Utilizando-se de leituras de
Roland Barthes e Michel Foucault, o autor cinematográfico passa a ser visto como
instância, um simples termo no processo de leitura e espectatorialidade, valorizando a
recepção do espectador (Ibid., p. 145-146).
Seguindo uma perspectiva pós-estruturalista, no já citado Ideias de autoria,
Edward Buscombe (2005, p. 293-294) salienta que a vontade consciente e o talento
são produtos das forças que agem sobre o artista. No fim do seu artigo, ele propõe
três abordagens para o estudo do autorismo no cinema com o objetivo de tirar a
posição proeminente do autor. Primeiro, é o uso de pesquisa sobre a sociologia dos
meios de comunicação em massa para o exame do cinema sobre a sociedade.
19
Resumidamente, o estruturalismo proposto por Lévi-Strauss “se caracteriza (...) como um método de
análise de relações de significação através da investigação das regras e princípios que constituem uma
estrutura ou um sistema.” (MARCONDES, 2001, p. 272)
56
Segundo, a análise da operação da ideologia, da economia e da tecnologia também
para se observar o efeito do cinema sobre a sociedade. E em terceiro lugar, o efeito
dos filmes sobre outros filmes, envolvendo questões de gênero. Já Stephen Heath
(2005, p. 298), em Comentários sobre “Ideias de autoria”, objetiva pensar a
articulação do texto do filme com relação à ideologia. Dessa maneira, busca-se uma
teoria do sujeito que reconheça “a heterogeneidade de estruturas, códigos e
linguagens em ação no filme e de posições particulares do sujeito imposto” (Ibid.)
No Brasil, apesar da influência da crítica francesa, o que parece ter chegado
com mais força foi justamente a perspectiva valorativa apresentada na teoria de autor
de Sarris. O que se estabeleceu no Brasil já nos anos 1960 e 1970 foi uma perspectiva
que enfatizava o diretor como autor, mesmo sem a presença de um studio system à
altura de Hollywood. O resultado foi uma espécie de apartheid (seguindo aqui as
palavras de Buscombe) entre os diretores autores e os diretores artesãos, sendo estes
quaisquer diretores que trabalhavam com gênero ou com alguma suposta intenção
mercadológica20.
Para uma análise da inserção da autoria no cinema brasileiro, mesmo
reconhecendo que o Cinema Marginal transitou mais abertamente entre gêneros,
sendo considerado de uma forma geral pelo campo teórico também um cinema de
autor, o destaque aqui será focado no Cinema Novo. Primeiro, pelo fato de poder
considerar o movimento como uma proposta de ruptura com um cinema anterior, tal
como ocorreu com outros cinemas novos, sendo inclusive contemporâneo à Nouvelle
Vague, a qual possui estreita ligação com a Cahiers du Cinéma da década de 1950.
Glauber Rocha e outros cinemanovistas tiveram forte voz ativa em seu período,
atuando não só na prática cinematográfica, mas também na crítica, onde propunham,
em termos gerais, a defesa de um cinema autoral no Brasil. E segundo, pelo fato dos
quadros cinemanovistas, durante a década de 1970 – período no qual a
pornochanchada se desenvolveu – ocuparem grande força política e ideológica no
cinema brasileiro, principalmente durante a gestão Roberto Farias na Embrafilme.
Ismail Xavier (2001), em O cinema brasileiro moderno, publicado em 1995,
ao tentar analisar o Moderno na cinematografia brasileira, período que compreende o
final dos anos 1950 e a década de 1980, estabelece uma interessante comparação entre
20
Cabe aqui destacar as críticas de Glauber Rocha a Roberto Farias, rotulando-o de “artesão” mesmo
quando este realizou filmes, a exemplo de Assalto ao trem pagador (1962), influenciados pelo neo-
realismo italiano e que dialogavam com alguns elementos estéticos do Cinema Novo. (Rocha, 2003, p.
136)
57
dois textos importantes de Glauber Rocha e Paulo Emílio Salles, os quais servem para
contextualizar o embate político/ideológico do cinema brasileiro da época. Em
Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, publicado originalmente em 1963, Rocha
demonstrava uma vontade de ruptura, um balanço histórico com o objetivo de dar o
arcabouço político e estético a fim de chegar na sua proposta de cinema. Já em
Cinema: trajetória no subdesenvolvimento 21 , publicado em 1973, Salles Gomes
objetivava “um princípio de continuidade englobante, a par do reconhecimento das
oposições conflitantes”. O autor cita como exemplos de criação na adversidade tanto
o Cinema Novo quanto o Cinema Marginal, apesar das divergências estéticas e
ideológicas entre ambos, incluindo também a chanchada, a comédia popular de 1940
e 1950, como gênero que soube lidar com o atraso econômico, encontrando uma
fórmula que proporcionava a comunicação com seu público, mesmo na precariedade.
De acordo com Xavier (2001, p. 14) entre o final da década de 1950 e meados dos
anos 1970, há um processo que indica os traços significativos do cinema moderno.
Caracterizado pela oposição ao clássico e mais plenamente industrial, o que se
percebe é um movimento plural de estilos e ideias, que produziu a convergência entre
a política dos autores, os filmes de baixo orçamento e a renovação da linguagem.
Vale ressaltar que mesmo com a iniciativa da Vera Cruz, não podemos
comparar o relativo acabamento industrial recebido pelos seus filmes, com o grau de
industrialização alcançado pelos estúdios de Hollywood. Contudo, foi a atualização
tecnológica e técnica impulsionada pelo estúdio paulista que permitiu a modernização
do cinema brasileiro.
Segundo Cyntia Araújo Nogueira (2006, p. 22-23), a década de 1960 no Brasil
representa o momento de rompimento radical com a ideologia estética atrelada ao
modo de produção industrial, onde o Cinema Novo, em seus textos fílmicos e
escritos, constituem uma vanguarda cinematográfica de elite [grifos meus], que pela
primeira vez vai conferir prestígio artístico e intelectual ao diretor de cinema
brasileiro. Nogueira (2006, p. 30) sublinha que Gustavo Dahl teria sido o primeiro
crítico de sua geração a se deter sobre a questão da autoria. Influenciado inicialmente
pela Cahiers, Dahl contudo vai pouco a pouco se afastando da política ao articular seu
pensamento de autoria à realidade brasileira. Assim, não se verá a possibilidade da
ligação brasileira entre autor e indústria, tal como foi feito pelos Cahiers em relação a
21
O artigo em questão de Paulo Emílio Salles Gomes e suas implicações para o gênero da
pornochanchada será debatido mais detalhadamente no terceiro capítulo desta dissertação.
58
Hollywood. Jean-Claude Bernardet (1994, p. 139), em O autor no cinema, ressalta
que a noção de autor em Dahl 22 também incluía preocupações ideológicas,
responsabilidade histórica e utopia social – mais próximo da proposta de autoria dos
membros do Cinema Novo e cada vez mais independente da influência da Nouvelle
Vague.
Entretanto, é Glauber Rocha, no já citado Revisão Crítica do Cinema
Brasileiro, que vai buscar construir uma tradição de rebeldia, de ruptura, negando a
condição oficial de índole pacífica do povo e trabalhando as relações entre fome,
religião e violência, justamente para legitimar a resposta do oprimido (Xavier, Ibid.,
p. 19). Rocha leva ao extremo a distinção entre artesão e autor, “o único a estar
realmente em contraposição ao cinema comercial”. Para Bernardet (Ibid., p. 139-140),
o autor proposto por Glauber Rocha é um revolucionário, um agente que recusa a
indústria, os estúdios e a linguagem tradicional, elementos que afastariam o cinema da
realidade. Em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, percebe-se a tentativa de ruptura
através do elencar de novas tradições (a exemplo de Humberto Mauro), construindo
uma história cinematográfica nacional que estivesse mais afinada com as novas
concepções de produção implementadas pelo Cinema Novo.
Se na década de 1960, estabelecer-se enquanto autor tinha um objetivo de
ruptura em relação ao cinema anterior, além do enaltecimento da própria produção
cinematográfica enquanto arte, podemos notar que mesmo em dias atuais o autorismo
ainda persiste, seja dentro do campo de estudos ou mesmo na autoafirmação por
alguns cineastas. De acordo com Crofts (Ibid., p. 322), o autor enquanto nome ou
marca se tornou um dos principais meios de marketing e de se estabelecer uma
produção diferenciada, caracterizando o que seria um status cultural ou “cult” do
cinema. Em termos de abordagem, Crofts defende que além da análise da figura do
próprio autor e do texto fílmico, devemos observar também a leitura feita sobre essas
instâncias, sempre tendo em vista que são moldadas histórica e culturalmente.
Seguindo uma linha de raciocínio semelhante, Bruno Carmelo (2009), em
Para pensar o autor no cinema, chama a atenção que a autoria se dá tanto na
promoção da figura do artista, quanto no contexto sociopolítico em que determinado
diretor ou obra são apreciados.
22
É importante destacar que essa concepção de autoria na crítica de Gustavo Dahl se refere a um
período bem anterior do seu emblemático artigo, Cultura é mercado, publicado originalmente na
Revista Cultura em 1977, o qual será abordado no terceiro capítulo.
59
Seria impossível para uma ciência humana como a sociologia
discutir a autoria a partir da afirmação de noções imprecisas como a
qualidade e a beleza, que ficam principalmente a cargo da estética e
da filosofia (...) Pouco importa se Hitchcock foi um gênio ou não: o
importante é ele ter sido considerado gênio pela comunidade
formadora de poder simbólico em sua época. (CARMELO, 2009, p.
1)
60
Van Sant, afirmarem-se enquanto sujeitos. Assim, evitando-se o essencialismo, busca-
se uma abordagem que reconheça a prática discursiva enquanto formuladora de
características as quais são reconhecidas como autorais. A autora (Ibid., p. 6)
reconhece que o autorismo padrão assume que determinado diretor tem a intenção de
uma coerência em sua obra, a qual pode ser vista mediante uma unidade. No entanto,
os autores relacionados aos grupos minoritários utilizam outras táticas de autoria, tal
como o discurso enquanto performance, considerada neste caso uma maneira pela
qual eles podem se expressar.
Mesmo reconhecendo o valor da proposta de Staiger, penso que ao propor
uma abordagem de autoria para grupos minoritários, distinguindo-os dos demais
“autores”, pode-se cair na mesma valoração ou tentativa de distinção em geral
atribuída a determinado diretor ou produtor quando tratado como autor. Ao que
parece, tratam-se de novos parâmetros para se estabelecer uma aura autoral, a qual
possibilita observar em separado determinada obra. E quando assumo o
estabelecimento de uma autoria na pornochanchada, mesmo que ressaltando a sua
formulação através da prática discursiva, inevitavelmente caio na mesma contradição
ao me posicionar também como agente do campo cinematográfico.
61
brasileiro, passando por cineastas, academia e críticos. Recentemente, alguns autores
se detiveram nessa questão e cabe, portanto, uma observação em alguns pontos para
situar a pornochanchada nessa discussão.
José Mário Ortiz Ramos (1993), em A questão de gênero no cinema
brasileiro, busca principalmente analisar a dicotomia entre um cinema de gênero e um
cinema de autor, ambos baseados em repetições, as quais se processam culturalmente
de formas diferentes. Ramos aponta que dois gêneros, o melodrama e a comédia,
obtiveram êxito na história cultural recente da “paisagem audiovisual brasileira”. O
primeiro explorado através das telenovelas a partir da década de 1950 e o segundo
através das chanchadas e pornochanchadas. No entanto, o próprio autor questiona no
fim do seu pequeno artigo se é possível observar um cinema de gênero em países com
uma indústria cinematográfica instável (RAMOS, op. cit., p. 113).
É importante então retomar Rafael de Luna Freire (2010b) em Entre o Gênero
e a Nação: o Gênero Cinematográfico e o Cinema Nacional, o qual objetiva tratar do
gênero policial no Brasil. Após uma rápida revisão sobre a teoria genérica, o autor
critica uma visão universalista dos gêneros, a qual deixa de levar em conta os regimes
genéricos definidos de forma diferenciada em cada cultura. De acordo com Freire:
62
artísticos, seja por aspectos técnicos. Dentro da dicotomia arte versus indústria, a
produção nacional não era considerada nem uma nem outra, principalmente quando
comparada ao modelo hollywoodiano. Essa situação mudaria principalmente a partir
do Cinema Novo, dentre outras coisas a partir do seu reconhecimento em esfera
internacional. Mas tal fato contribuiu ainda mais para a observação de uma “a-
genericidade”, ou seja, da impossibilidade de se observar um cinema de gênero no
contexto nacional.
A opção a-genérica apontada pelo autor se insere, como já visto, no que Ismail
Xavier vai chamar de cinema brasileiro moderno, o qual representou a vitória de um
“cinema culto” defensor de um projeto específico de cinema autoral23. Como já visto
no embate apontado por Xavier (2001), na década de 1960, Glauber Rocha foi um dos
principais agentes desencadeadores dessa postura oposicionista ao gênero na medida
em que propõe, em Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, uma ruptura e a criação de
uma nova tradição.
Dentro desse contexto, no que toca aos estudos de cinema brasileiro, Freire
(Ibid., p. 50-51) chama a atenção para a presença de dois discursos hierarquizantes, os
quais contribuíram para uma perspectiva a-genérica. Primeiramente, seria o discurso
de caráter estético, onde predominariam os filmes cultos em detrimento dos produtos
da cultura de massa, nos quais os filmes de gênero podem ser incluídos. O segundo
discurso se relaciona com a relação valorativa estabelecida entre uma produção de
“arte” e uma postura “social e politicamente consciente”. Em oposição, o cinema de
23
A proposta cultural apresentada pelo Cinema Novo para o contexto cinematográfico nacional não
pode ser vista como a única ou mesmo ser tomada como consensual dentro dos quadros
cinemanovistas. Além disso, como será demonstrado mais detalhadamente no terceiro capítulo, na
década de 1960/1970, houve uma série de propostas político-estéticas para o cinema brasileiro, as quais
representaram diferentes interesses, possuindo diferentes perspectivas em relação ao cinema de gênero,
e variando conforme o contexto e o lugar de onde se falava.
63
gênero visto como “alienado” e “conformista” ou mesmo – e isso se vê claramente no
caso da pornochanchada – como “imoral” ou “pornográfico”.
Entretanto, mesmo com os discursos acima apontados por Freire, pouco a
pouco, na academia, crítica e entre o próprio meio cinematográfico, foi-se assumindo
a produção de gênero como também integrante e importante para o cinema brasileiro,
para o qual o estudo da chanchada teve papel fundamental24. E aqui, novamente
resgatando o embate proposto por Ismail Xavier (2001), percebe-se o papel
importante de Paulo Emílio Salles Gomes, em Cinema: trajetória no
subdesenvolvimento, que politiza a chanchada enquanto “expressão nacional”,
impondo uma produção de quase vinte anos que contrariava o gosto do “ocupante” e
os interesses estrangeiros.
Bernadette Lyra (2007), em A emergência de gêneros no cinema brasileiro:
do primeiro cinema às chanchadas e pornochanchadas, demonstra que uma das
características básicas dos gêneros, inovação e repetição, foi uma das maneiras pelas
quais a própria indústria cinematográfica se consolidou em inícios do século XX. De
acordo com a autora (op. cit., p. 150), No Brasil, durante o mesmo período, foram as
comédias e os policiais que possibilitaram ao público um reconhecimento na tela,
através de histórias as quais de certa maneira incitavam o voyeurismo ao expor parte
do seu cotidiano. A partir da década de 1940, iniciou-se a chanchada, onde seus
filmes “se constituíram sobre uma coletânea de gêneros já conhecidos sem maiores
dificuldades pelos espectadores brasileiros, mesclando melodrama, drama romântico,
aventura, policial e, sobretudo, musicais e comédia” (LYRA, Ibid., p. 154).
Um dos agentes que mais se deteve sobre a chanchada, dedicando-se ao
gênero desde a década de 1970, é o pesquisador João Luiz Vieira. Ao analisar um de
seus últimos artigos, O Corpo Popular, a Chanchada Revisitada, ou a Comédia
Carioca por Excelência, publicado em 2003, é possível observar um revisionismo
sobre a o gênero que me permitirá mais adiante estabelecer uma comparação com a
própria pornochanchada e sua relação no mínimo terminológica com a comédia
brasileira das décadas de 1940 e 1950. De acordo com Vieira (op. cit., p. 46), em um
contexto onde o circuito exibidor brasileiro estava dominado pela produção
24
Não tenho a intenção de me alongar na revisão histórico-acadêmica sobre a chanchada, mas sim
observá-la enquanto o primeiro gênero reconhecidamente brasileiro e suas repercussões para o estudo
da pornochanchada. Cabe citar que tal revisão pode ser encontrada em A ideia de gênero nacional no
cinema brasileiro: a chanchada e a pornochanchada (2010a) e em Carnaval, mistério e gangsters
(2011), ambos de Rafael de Luna Freire.
64
estadunidense, o advento do cinema sonoro possibilitou a conquista de mercado por
uma comédia nacional, que possuía, por sua vez, uma estreita relação com a música
popular, em geral carnavalesca. O termo chanchada tem sua origem etimológica no
italiano cianciata, que significava um discurso sem sentido, “uma espécie de
arremedo vulgar”, e que procurou dar um tom pejorativo a esses filmes que pouco a
pouco conquistavam uma grande bilheteria.
Utilizando-se de estrelas já conhecidas através do rádio e que passaram a atuar
também no cinema, a chanchada estabeleceu um forte vínculo com o público mais
popular. Como mostra Vieira:
65
Um primeiro paralelo se insere na questão etimológica. Se o significado do
termo chanchada tem sentido pejorativo, pornochanchada trabalha na mesma direção,
sofrendo ainda o acréscimo do pornô enquanto adjetivação ainda mais depreciativa.
Etimologicamente ambos os gêneros dialogam com o “vulgar”, fugindo de uma
“cultura culta” e no caso da pornochanchada, essa vulgaridade ou “grosseria” é tônica
de diversas críticas, a exemplo do célebre ensaio A Teoria da Relatividade, de José
Carlos Avellar.
Jean-Claude Bernardet (1974) apresenta um interessante contraponto, o qual
está em sintonia com a maneira como trata a pornochanchada em seus ensaios,
críticas e artigos, ao demonstrar que de acordo com a etimologia latina, vulgos
significa multidão ou povo. Assim, ao se declarar a vulgaridade de um filme, está
apenas confirmando um status social e cultural e se diferenciando do restante da
população, que aprecia esta pretensa vulgaridade. João Luiz Vieira de certa forma
complementa o raciocínio de Bernardet:
25
Como o caso, por exemplo, da análise de Laura Cánepa (2009), em Pornochanchada do avesso: o
caso das mulheres monstruosas em filmes de horror da Boca do Lixo, a qual será melhor abordada
mais adiante.
66
integração à modernidade desenvolvimentista. Se o herói da chanchada é subversivo
ao não conseguir se inserir em uma proposta de desenvolvimento urbano pleiteada
pelo Estado, os personagens da pornochanchada podem ser considerados ainda mais
“marginais”. Mesmo com o tom geralmente moralista das comédias eróticas da
década de 1970 e 1980, a vontade de não trabalhar e de vencer na vida sem fazer
esforço confrontava com o ideal político-social da ditadura militar.
Objetivando também uma abordagem genérica que permita a análise da
chanchada e da pornochanchada, Rafael de Luna Freire (2010a), em A ideia de gênero
nacional no cinema brasileiro: a chanchada e a pornochanchada, aproxima ambos
no sentido do seu reconhecimento enquanto gêneros nacionais por público, imprensa
e estudiosos, ressaltando também o fato de serem passíveis de distinção como
produtos específicos do cinema nacional. Chanchada e pornochanchada seriam
gêneros de forte aceitação popular (avaliada através da bilheteria dos filmes),
caracterizados por estruturas econômicas que garantem sua inserção no mercado e
pela rejeição da crítica de sua época (FREIRE, Ibid., p. 556-557).
Além disso, outro ponto comum entre chanchada e pornochanchada é a
relativa dificuldade em tratá-los através da nomenclatura genérica.
67
pornochanchada, tratando-a enquanto ciclo ou subgênero, mas chamando a atenção de
que para sua análise se deve observar essencialmente o gênero da comédia.
Buscando adensar a discussão genérica, Gelson Santana (2005), em A
pornochanchada como gênero no cinema brasileiro, ressalta que a pornochanchada se
insere em um contexto de progressiva naturalização da exibição dos corpos. Um
corpo que passa a ter uma suposta harmonia ao ser exposto a partir de um novo olhar
midiático.
68
Estes filmes se constituíam de histórias curtas, de fácil compreensão
com personagens que beiravam o ridículo sendo este ridículo
componente do cotidiano social da época. A apresentação do
ridículo e os personagens cômicos faziam coisas consideradas moral
e socialmente erradas, mostrando falhas e defeitos. O riso que nasce
da constatação destas falhas e defeitos é chamado de “riso de
zombaria” (SELIGMAN, 2004, p. 4)
69
pornochanchada, chama a atenção de que enquanto os números musicais na
chanchada pareciam se dirigir a um auditório, as conotações sexuais mais fortes
presentes na pornochanchada deixam o sentido de coletividade de uma plateia e
assumem a individualidade do espectador. De qualquer forma, é preciso ter a
consciência de que a relação entre pornochanchada e público variou conforme épocas
distintas e, mesmo na década de 1970, a recepção dos filmes diferia observando salas
com público oriundos de classes sociais diferentes. Novamente retomando Moine
(2008), vale destacar que os regimes genéricos são culturalmente definidos e
organizados em sistemas e hierarquias, nos quais os gêneros nacionais não podem ser
observados buscando-se um sentido universal. Assim, o que se pode tomar como
benefício comum à chanchada e à pornochanchada é o fato de ambos os gêneros
permitirem que o público de suas épocas fosse “devolvido ao seu processo cultural” –
este envolto em contradições e, que não pode ser analisado de forma uníssona26.
Para dar conta da relação da pornochanchada com a pornografia, tomo como
análise dois trabalhos de Linda Williams. No primeiro, Hard Core – Power Pleasure
and the “frenzy of the visible” (1999), são estabelecidos um conjunto de códigos
narrativos da pornografia pautados no princípio de máxima visibilidade que vincula o
explícito e o real. Williams retoma as convenções estabelecidas por Stephen Ziplow
(apud ABREU, 1996, p. 96-98), o qual compõe uma espécie de manual, contendo a
tipologia de atos sexuais que permitem identificar um filme pornô. Entre eles estão: a
masturbação; o sexo convencional, entre um homem e uma mulher; o lesbianismo; o
sexo oral, que se torna um facilitador do money shot; o ménage à trois; orgias e sexo
anal. Já em Film Bodies: Gender, Genre and Excess, Williams (2004) trata dos
gêneros que têm em sua matriz o excesso. Dessa forma, a pornografia, o horror e o
melodrama têm como objetivo gerar reações corpóreas nos seus espectadores,
atingindo, através da manipulação das emoções, o êxtase de diferentes formas:
pornografia através do orgasmo, horror através da violência/terror e o melodrama
através do choro. O sucesso desses gêneros se verifica através de uma resposta física
do espectador, que mimetiza a reação/emoção vista na tela. O comum também nesses
gêneros é o fato do corpo feminino ser o melhor facilitador da visualização desse
êxtase (WILLIAMS, 2004, p. 730).
26 Um aprofundamento dessa questão será feito no terceiro capítulo, quando exponho algumas ideias
contidas no ensaio de Paulo Emílio Salles Gomes, Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, e suas
repercussões dentro do campo cinematográfico, especialmente na crítica e na academia.
70
É válido notar que algumas dessas convenções soam obsoletas em tempos
atuais, tanto por conta das variações que a linguagem hard core incorporou no
decorrer dos anos, quanto pela cada vez mais limítrofe distinção entre arte/erotismo e
pornografia. Contudo, aplicando a abordagem de Linda Williams na pornochanchada
se torna possível observar de maneira mais fácil a mudança de fases ocorrida no
gênero, principalmente a partir da utilização do money shot, essencial para a
identificação do filme de sexo explícito. Na segunda fase da pornochanchada, o que
se nota é uma liberdade maior de aproximação da câmera em relação aos corpos e
uma liberdade maior para explorar a nudez. O ato sexual passa a ser mostrado em sua
totalidade, ao contrário da primeira fase que em geral utilizava elipses ou outros
artifícios alegóricos para deixar claro que determinados personagens fizeram sexo.
Devo ressaltar que mesmo a pornochanchada ligando-se etimologicamente
com os gêneros da comédia e da pornografia, não deixou estabelecer diálogos com
outros gêneros, os quais são muito importantes para observar a diversidade e a
extensa possibilidade de abordagens para a pornochanchada.
José Mario Ortiz Ramos (2004), em Cinema, televisão e publicidade, trata do
filme policial, analisando-o enquanto um gênero com repercussões de massa, ao
procurar “construir ficcionalmente a realidade”. Um dos filmes abordados é Amadas e
Violentadas (1976), dirigido por Jean Garret e com David Cardoso como produtor e
protagonista, utilizado também enquanto star system. Ramos (op. cit., p. 185) atenta
que uma das tônicas utilizadas nos filmes policiais é o arquétipo do good-bad-boy
(surgido após os anos 1940), tal como atentando por Edgar Morin, onde o
protagonista geralmente é uma espécie de justiceiro que cativa em sua dualidade entre
o bom e o mau. No entanto, tal modelo, ao inserir-se no contexto de produção da
Boca do Lixo da década de 1970, tem a sua erotização exacerbada. Da mesma forma
que o personagem de David Cardoso é utilizado como desencadeador de um ponto de
vista para a visualização do corpo feminino, a câmera também percorre o seu corpo,
denunciando um certo narcisismo 27 que vai percebido também em outros filmes
dirigidos pelo ator e onde o mesmo assumia o papel principal. No entanto, a
predominância do olhar escopofílico se mantém na visualização da mulher, ainda
27
Na capa de Amadas e Violentadas, o chamariz de nudez não é apenas em relação ao corpo feminino,
mas também ao corpo do próprio David Cardoso, onde homem e mulher estão ambos nus, ajoelhados,
olhando para a câmera.
71
objetificada e, no caso de Amadas e Violentadas, vítimas do serial killer vivido pelo
personagem de David Cardoso.
Laura Cánepa (2009), no artigo Pornochanchada do avesso, avança nessa
discussão ao observar nas pornochanchadas de horror da Boca uma recorrência de
personagens femininas tratadas como indefesas vítimas à mercê de personagens
masculinos descontrolados, que as viam como “meros objetos de desejo sexual e
sádico”. A partir da influência do sexploitation28, a autora (CÁNEPA, op. cit., p. 2-3)
observou que a região da rua do Triunfo repetia diversas estratégias do cinema de
exploração, como os títulos sensacionalistas; os baixos orçamentos; a ligação das
histórias aos clichês dos gêneros clássico-narrativos; o consumo majoritariamente
masculino; a misoginia e a objetificação das mulheres. De acordo com Lúcio Piedade
(2002, p. 197), uma prática bastante comum no filme de horror era a expiação da
violência ou morte de uma conduta sexualmente permissiva, normalmente
relacionado ao sexo feminino, refletindo um conservadorismo por parte de diretores e
produtores da Boca. Contudo, Cánepa (Ibid., p. 5) atenta que determinados filmes lá
produzidos possibilitaram que as personagens femininas “dessem o troco” em relação
aos abusos sofridos dos homens. Uma inversão da relação entre homens e mulheres,
onde costumeiramente eles eram mostrados como mais fortes e ameaçadores. Foram
filmes que colocaram as mulheres em papeis geralmente reservados aos homens:
predadoras sexuais, dominadoras ou mesmo assassinas do sexo oposto.
Mesmo com as variações apontadas acima, a criação de uma fórmula, de uma
redundância, de um parâmetro “clássico-narrativo”, foi essencial para que o gênero da
pornochanchada, incluindo suas variações, se evidenciasse para os seus diversos
agentes e dentre eles, principalmente, o público. Seguindo esse raciocínio, é válido
citar uma declaração de Marcos Rey, um importante roteirista do gênero, o qual
reconhecia a importância de se trabalhar com a fórmula de reconhecimento e
variação.
28
Exploitation, também chamado de cinema de exploração, é um gênero baseado na produção de
filmes que exploram temas considerados polêmicos ou tabus, e que possuem três importantes vértices:
o horror, o sexo e a violência. Lúcio Piedade (2002), em A cultura do Lixo: horror, sexo e exploração
no cinema, procura observar o exploitation segundo um sistema de códigos, convenções e estilos
visuais que possibilitam ao público o seu reconhecimento. Um derivado importante para o meu estudo
é o sexploitation que aumentava o tom sexual dentro dos vértices expostos logo acima. Ao abordar o
que chama de “exploitation à brasileira”, Piedade estuda a produção paulista desde sua relação com o
cinema marginal, com sua representação do abjeto e do grotesco, somado à crescente exploração do
erotismo.
72
Já tinha a fórmula do sucesso na gaveta: o cenário natural do mar,
uma ou mais mulheres bonitas, relações sexuais em lugares
imprevistos ou insólitos, piadas já conhecidas do público, um galã
pobre mais favorecido pela sorte, um vilão full time e um velho ou
velha descobrindo as delícias do sexo. As variantes dependiam
daquilo que no momento estava resultando bem nas telas. (REY
apud RAMOS, 2004, p. 24)
73
309), em Lugar, estratégias e função da pornochanchada, o qual reflete que o gênero
possui dois pontos de vista. Inicialmente o masculino, a partir de filmes como Os
Paqueras (1969) e Pra quem fica, tchau! (1971), ambos dirigidos por Reginaldo
Faria. Em um segundo momento, a partir do final da década de 1970, onde haveria
uma transformação interna do gênero, intensificando-se o que o autor chama de ponto
de vista feminino, onde a mulher é objetificada de forma ainda mais explícita.
Já em Risos, sarros e maiô de duas peças – a história do ciclo da
pornochanchada, Flávia Seligman (2000c) chama a atenção que para o moralismo
presente nas pornochanchadas, onde os elementos e personagens apresentados
aparentemente de forma leve e satírica têm, em geral, um final certo e esperado
enquanto fórmula29. A virgindade, motivo de disputa, é resguardada até o casamento
com o mocinho, os adúlteros eram punidos e os malandros se redimiam
(SELIGMAN, 2000c, p. 75).
Um dos agentes que já na década de 1970 procurou mapear alguns dos
códigos da pornochanchada foi José Carlos Avellar. Na crítica de jornal Como vencer
na vida sem fazer força30, Avellar aborda o filme A Virgem e o Machão (1974),
dirigido por José Mojica Marins31. Mais do que sobre o conteúdo da produção, o
título do artigo se refere à pornochanchada de uma forma geral. A uma produção que
Avellar considera beneficiada pelo contexto político brasileiro, em que os filmes
passavam pela censura prévia antes de sua exibição. Com o risco de ter o filme
mutilado e impossibilitando uma coerência narrativa para sua exibição, os produtores
buscavam minimizar os gastos dos filmes, incluindo anúncios no meio de cenas,
garantindo antes mesmo do lançamento uma renda prévia. É o que Avellar chama de
favorecimento a “um estilo de produção oportunista, isolado, sem método e sem
qualidade artesanal”. Contudo, o fato desses filmes serem consumidos, independente
de terem ou não qualidade, revelaria o que o autor considera uma desordem no quadro
cultural brasileiro como um todo, cuja distorção permitira “soluções simplórias” e
“doentes” como o herói supermacho.
29
Flávia Seligman (2000a), em As meninas daquela hora, detalha uma série de estereótipos para as
personagens femininas, as virgens, as prostitutas, as liberadas, as tias e as ingênuas, e traça uma espécie
de progressão comum a cada um desses arquétipos apresentados nos filmes.
30
Artigo encontrado na pasta de número 20656 (pornochanchada) do acervo da Cinemateca do Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Apesar de não haver referência ou data, pode-se concluir pela
formatação que se refere a publicação no Caderno B do Jornal do Brasil.
31
Quando dirigia pornochanchadas, José Mojica Marins utilizava a alcunha de J. Avellar, em uma clara
referência ao próprio crítico.
74
O supermacho é ao mesmo tempo o herói do produtor, do realizador
e de uma considerável parte do público. Ele resolve uma
necessidade comum de alcançar o bem-estar sem grandes
dificuldades, numa sociedade que exige um esforço muito grande de
cada indivíduo e acena com a compensadora possibilidade de
enriquecer com um cartão de dois cruzeiros na loteria. (AVELLAR,
[197a-])
Avellar ressalta que, ao aceitar uma narrativa tão grosseira, o público se atrai
por uma espécie de ritual, onde se dispensa qualquer obstáculo, através de uma
narrativa coerente ou mais requintada, para se chegar ao lugar almejado. Mais uma
vez, observa-se a máxima “como vencer na vida sem fazer força” como mote central
32
Artigo sem referência de local de publicação ou data, encontrado na pasta de número 20656
(Pornochanchada) do acervo da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
75
das pornochanchadas. Dessa forma, sem alguma proposta estética mais elaborada a
não ser oriunda dos resultados de bilheteria, o público e as comédias eróticas
estabeleceriam uma relação harmoniosa com a linguagem “cifrada”, “incompleta” e
“indireta” dos filmes. Aqui uso aspas para reforçar as palavras de Avellar,
possibilitando notar um dos códigos de reconhecimento da mise-en-scène da
pornochanchada. Para o crítico:
76
minimamente propor um tipo de abordagem autoral para o campo cinematográfico da
pornochanchada. Em segundo lugar, também tenho como objeto de análise a
apropriação desse discurso pelos próprios cineastas tomados como autores, o que
permite analisar a apropriação da prática discursiva não apenas a posteriori, mas
enquanto construção por determinados agentes que atuaram no campo
cinematográfico da década de 1970.
Retomando Stephen Crofts (1998, p. 322), lembro que a figura de um autor é
um dos principais meios de marketing dentro do campo cinematográfico atual, onde
se possibilita definir o parâmetro de um diferencial cultural através da criação de uma
“grife” em torno de determinado nome. Dessa maneira, Crofts propõe uma abordagem
que não só se detenha na figura do autor e do seu texto fílmico, mas também a leitura
feita sobre essas instâncias, moldadas histórica e culturalmente.
Se no capítulo seguinte tratarei Pedro Carlos Rovai enquanto autor na
pornochanchada – o qual constrói essa autoria através da prática discursiva,
principalmente em suas entrevistas e na maneira como ele foi tratado por Jean-Claude
Bernardet e por Jairo Ferreira – neste momento cabe pensar a prática autoral inserida
no gênero em questão a partir de dois diretores: Joaquim Pedro de Andrade e Antônio
Calmon, nos quais a aura autoral é construída em uma abordagem mais voltada para
os seus elementos textuais, focando na análise fílmica e acompanhada das respectivas
trajetórias.
Iniciando uma abordagem em torno de Joaquim Pedro de Andrade, e aqui
novamente arrisco me trair pelo autorismo “clássico”, é necessário observar um certo
diferencial deste diretor em relação a Calmon. Um primeiro ponto é o reconhecimento
de Joaquim Pedro, por diversos agentes do campo cinematográfico, enquanto autor
ligado ao Cinema Novo e reconhecido internacionalmente33. A sua ligação com um
movimento brasileiro de inegável renome, o qual, na já citada voz de Glauber Rocha,
encontrou sua base teórico-política de ligação à “política dos autores” da Cahiers,
contribui para essa impressão autoral, mesmo para os que não conhecem a obra de
Joaquim Pedro.
A partir do momento em que a aura autoral está construída em bases “sólidas”
dentro do campo cinematográfico, o segundo ponto é a maior facilidade em atribuir
33 No jornal online Senses of Cinema, por exemplo, Joaquim Pedro de Andrade, em artigo escrito por
Michael Talbott, encontra-se na categoria Great Directors, em meio a diversos cineastas estrangeiros e
ao lado apenas de dois brasileiros, Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, ambos também ligados
ao Cinema Novo.
77
um significado, uma proposta de “unidade” ou “coerência” à toda obra de Joaquim
Pedro. Antônio Calmon é um cineasta que após a partir da década de 1980 migrou
para a televisão onde é roteirista de telenovelas até os dias atuais. Embora o
profissional de roteiro no campo televisivo seja comumente chamado de autor, trata-
se de uma atribuição autoral de peso diferente tendo em vista o rótulo pejorativo que a
televisão carrega em favor do cinema, principalmente para a crítica cinematográfica
de uma forma geral.
Nesse sentido, estabelece-se um facilitador para os agentes que compõem o
campo cinematográfico, para a visualização de um estilo e uma proposta autoral em
Joaquim Pedro, em sua obra como um todo e nas suas experiências nos dois gêneros
reconhecidamente brasileiros, a chanchada e a pornochanchada.
Newton Cannito (2000b, p. 80), ressalta que, desde Macunaíma (1969), o
diretor já teria objetivado trabalhar com o gênero da chanchada, mas distorcendo os
códigos genéricos tradicionais a partir de uma dupla leitura, ou seja, quando o
cineasta deixa chaves para que determinados públicos compreendam um segundo
sentido no filme, o qual em uma primeira leitura está oculto na obra.
No que diz respeito às pornochanchadas, Joaquim Pedro trabalhou o gênero
através de Guerra Conjugal (1976) e do seu episódio no filme Coisas Eróticas34
(1977), chamado Vereda Tropical. Estevão Garcia (2009), em As aventuras de
Joaquim Pedro de Andrade no Fabuloso Mundo das Pornochanchadas, expõe que a
incursão do cineasta na pornochanchada revela uma consciência de Joaquim Pedro em
relação a comédia erótica brasileira enquanto um fenômeno cultural de massa.
Comédia a qual, independente do seu moralismo, foi importante para a conquista de
mercado e por manter um diálogo com o público. Assim, para alcançar o que Garcia
chama de “espectador comum”, consumidor da pornochanchada, Joaquim Pedro teria
trabalhado inicialmente com as regras do gênero para aos poucos modifica-las.
34
Coisas eróticas é um filme dividido em quatro episódios, dirigidos por Joaquim Pedro de Andrade,
Eduardo Escorel, Roberto Palmari e Roberto Santos. Ao ser submetido à Censura, Vereda Tropical foi
integralmente vetado e os quatro diretores decidiram só lançar o filme quando os quatro episódios
pudessem ser exibidos na íntegra.
78
natural da pornochanchada, a sua curiosa fauna, as suas cores, o seu
linguajar, o seu gestual e a sua atmosfera. (...) Tal operação de
mergulhar de cabeça na pornochanchada automaticamente implica
no contato direto com a sua ideologia e é justamente aí que o
“autor” irá aparecer. (GARCIA, 2009)
79
psicológico, político que permita julgar isto. O filme de Joaquim é
escandaloso porque não encaixa o sexo num padrão vigente, quer
seja comercial ou político. O que só pode chocar todas as correntes
políticas. E, nesse sentido, Vereda Tropical é escandaloso e político.
E, felizmente, é uma piada. (Ibid., p. 101)
Garcia (2009) reflete que ao contrário de Guerra Conjugal, que utiliza códigos
da pornochanchada tal como a nudez feminina ou os palavrões, Vereda Tropical sem
utilizar dos recursos atrativos do gênero consegue ser político ao defender a liberdade
sexual e a liberdade de escolha do personagem de Flávio Cavalcanti. Observa-se,
então, tanto pelas observações de Estevão Garcia quanto de Jean-Claude Bernardet,
que dentre um dos parâmetros utilizados pelo autorismo para ressaltar determinado
cineasta em relação à pornochanchada é a reflexão ao próprio tom moralista do
gênero. No caso, o fato do cineasta não enquadrar a questão sexual dentro do “padrão
vigente, quer seja comercial ou político”, possibilitando-se assim a percepção da
marca autoral.
Diferente da maior facilidade encontrada pelos agentes do campo em apontar a
autoria nas experiências de Joaquim Pedro, Antônio Calmon não carrega tamanha
unanimidade. Não há vínculo mais direto do cineasta com nenhum movimento
cinematográfico em que a autoria seja destacada. O único registro encontrado, no qual
Calmon é tratado enquanto “autor” é o artigo de Newton Cannito (2000a),
Pornochanchada de autor, onde inclusive é analisado ao lado de Joaquim Pedro.
Para observar a autoria de Antônio Calmon dentro das pornochanchadas,
especificamente nos três filmes que dirigiu para Pedro Carlos Rovai, Gente Fina é
Outra Coisa (1977), O Bom Marido (1978) e Nos Embalos de Ipanema (1979), é
necessário contextualizar minimamente a sua atuação dentro do campo
cinematográfico. Calmon iniciou sua carreira trabalhando como assistente de direção
para nomes como Júlio Bressane, Gustavo Dahl, Arnaldo Jabor e Glauber Rocha e
dirigiu seu primeiro filme em 1971, uma comédia, O Capitão Bandeira Contra o Dr.
Moura Brasil. Os seus dois filmes seguintes, Paranoia (1976) e Revólver de
Brinquedo (1977), dialogam com o gênero policial a partir de uma perspectiva de
drama existencial.
É válido notar também o quanto o trabalho de Calmon em relação ao gênero
policial é reconhecido. José Mário Ortiz Ramos (2004, p. 179), em Cinema, televisão
e publicidade, aborda o filme Eu matei Lúcio Flávio (1979), o qual seria um exemplo
de policial que usa o erotismo consciente da escopofilia em busca de público,
80
objetivando “transmitir sensações através da utilização do grotesco e das imagens sem
véus”. Esta direção de Calmon, diferente do filme de Hector Babenco que retrata o
mesmo universo, Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977), tem a intenção de
impactar e de se aproximar de uma plateia que se supõe popular. Calmon utiliza
elementos icônicos como Jece Valadão, como protagonista, além de músicas
populares de Roberto Carlos em meio a cenas de assassinato.
Tentando dar conta do universo de Calmon nas pornochanchadas, é
interessante me deter sobre uma crítica de José Carlos Avellar, Nós quem, cara
pálida?, publicada no Jornal do Brasil de 30 de setembro de 1977. O foco de Avellar
é em Gente Fina é Outra Coisa, o qual considera uma clara tentativa de dar sentido à
rebeldia desajeitada e inconsequente pregada pela pornochanchada, onde Calmon
busca uma “cultura de oposição”. Uma “comédia que propõe uma versão simplificada
de antropofagia”. Em Teoria da Relatividade, Avellar (1979-80, p. 89) descreve uma
cena do filme que pode explicar esse local de oposição.
81
Novamente, tal como percebido através da abordagem feita sobre Joaquim Pedro de
Andrade, a autoria em relação a Calmon ganha seus contornos a partir de análise do
texto fílmico. Porém, esta é formulada pela prática discursiva feita por agentes
legitimados dentro do campo cinematográfico e que consideram um “autor” aquele
que está em certa sintonia com o projeto de cinema defendido por esses agentes.
Jairo Ferreira35 (1977b), em Uma pornochanchada de bom gosto, publicado
na Folha de São Paulo, em 25 de agosto de 1977, tratando do lançamento de Gente
Fina é Outra Coisa, mesmo sem mencionar o termo “autor”, permite uma percepção
de Calmon enquanto um cineasta que subverte o gênero, o que dentro da concepção
de cinema de Ferreira é visto como algo digno de elogios. Na matéria, há uma foto do
diretor e do produtor do filme, Pedro Carlos Rovai, com a seguinte legenda: “Rovai e
Calmon: aéticos e amorais”. Segundo depoimento de Calmon,
35
Cabe ressaltar que Jairo Ferreira é um crítico e cineasta muito importante dentro do campo
cinematográfico brasileiro da década de 1970, o qual será analisado mais detalhadamente no terceiro
capítulo enquanto agente formulador de discursos os quais possibilitaram a distinção de uma autoria.
82
de um personagem que foge do estereótipo geralmente apresentado na
pornochanchada e já descrito anteriormente. É um jovem, com referências musicais
tal como David Bowie, que faz o cabelo da mãe na hora em que ela vai ser oferecida
para algum estrangeiro, mas que luta karatê para se defender. Quando em uma
discussão o personagem de Peréio parte para cima do enteado, chamando-o de bicha,
este revida com um soco, não deixando-se intimidar. A masculinidade do protagonista
é colocada em prova tanto ao ofertar a sua mulher em troca de favores econômicos,
quanto por ser subjugado por seu enteado homossexual.
Essa “nova juventude”, por assim dizer, será a tônica de alguns filmes de
Antônio Calmon, incluindo a produção seguinte de Rovai. Em uma referência
explícita a Nos Embalos de Sábado à Noite (1977), de John Badham, Nos Embalos de
Ipanema conta a história de um surfista de subúrbio, Toquinho, personagem de André
de Biase, que acaba se prostituindo, com mulheres e homens, para poder conseguir
uma renda e frequentar a roda jovem da zona sul carioca. Aqui não há qualquer
estigmatização do bissexualismo do protagonista ou mesmo do seu envolvimento com
as drogas como maneira de socializar com uma faixa social em que ele se encontra
excluído. É interessante notar que o personagem vivido por André Biase iria perdurar
no audiovisual por quase dez anos. Primeiro, em Menino do Rio (1982), filme
seguinte de Calmon que aprofunda a sua incursão no que poderia ser chamado de
gênero surf e depois no seriado televisivo veiculado na Rede Globo durante a segunda
metade da década de 1980, Armação Ilimitada. Vale ressaltar que essa juventude,
inicialmente transgressora em sua relação com as drogas ou com a própria
sexualidade, foi ficando cada vez mais “careta” ao ser incorporada pela mídia e se
tornar uma fórmula dentro da cultura de massa.
Retomando Nos Embalos de Ipanema, de acordo com Calmon,
83
cada gênero é definido por múltiplos códigos, correspondentes aos múltiplos grupos
que possuem legitimidade na definição genérica. Esses agentes, da mesma forma que
estabelecem os limites e definições para determinados gêneros, podem também eleger
diretores, ou produtores, através de diferentes classificações, que operam como
“autores”. Além disso, retomo também a abordagem culturalista de Jason Mittell
(2001) que objetiva uma análise de como as definições, interpretações e avaliações
genéricas são constituídas culturalmente. Abordagem a qual também permite o estudo
dessa distinção, construída, entre aqueles que seriam autores dentro do gênero da
pornochanchada.
Aproximando as abordagens feitas tanto para Joaquim Pedro de Andrade
quanto para Antônio Calmon, percebe-se que o que mais chamou a atenção dos
críticos e da academia, no nível do texto fílmico, relaciona-se muito com uma espécie
de transgressão às regras do gênero. A ausência de culpa na relação sexual, no caso de
Vereda Tropical. Os personagens homossexuais que fogem do estereótipo de afetado
e frágil, nos casos de O Bom Marido e Nos Embalos de Ipanema. Ou seja, de acordo
com esta perspectiva, Joaquim Pedro e Calmon trabalharam com os códigos genéricos
impondo um estilo reconhecível. Contudo, é importante lembrar que os agentes do
campo da academia ou da crítica também atuam enquanto formuladores de discurso,
junto com os próprios cineastas, ao visualizarem e atentarem para um estilo passível
de ser reconhecido no caso de Joaquim Pedro e Calmon.
84
Capítulo 3: Pedro Carlos Rovai e a construção de um profeta
Pedro Carlos Rovai é um realizador que, acima de tudo, soube lidar com as
cartas oferecidas durante a década de 1970. Se seus filmes atingiram uma excelente
bilheteria36, o sucesso comercial da Sincro Filmes se deve em parte ao fato do
realizador se mostrar atento e atuante no jogo de forças do contexto cinematográfico
brasileiro do período. Não é o caso de menosprezar seu papel enquanto diretor e/ou
produtor na escolha do elenco ou da equipe técnica, mas a atenção deve ser voltada
também para cada fala, cada entrevista dada na época de lançamento dos filmes.
Não que a prática discursiva de Rovai tenha criado uma aura em torno dos
seus filmes. Se críticas, positivas e principalmente negativas, foram feitas em relação
à pornochanchada, Rovai não escapou de nenhuma delas. O que me interessa é a
maneira como ele se utilizou do espaço destinado às críticas, em seus dois polos, para
alçar um diferencial que, dentre outros privilégios, permitiu-o fazer parte de uma
espécie de elite dentro do gênero. Ou seja, galgar uma legitimidade dentre os que
realizaram pornochanchadas, o que talvez justifique, inclusive, parte da atual
revalorização do gênero e da própria figura de Rovai.
Analogamente ao que ocorreu com a chanchada, é possível observar nos
últimos anos um movimento de rediscussão das pornochanchadas que envolve
diversos agentes. O impulso resulta não apenas na sua simples revalorização, mas
também em um debate, seja enquanto gênero cinematográfico, ou mesmo na busca
por uma nova abordagem dos seus valores e uso da linguagem e estética
cinematográfica.
Mesmo não sendo o objetivo da presente dissertação advogar pela valorização
do gênero com bases em argumentos estéticos, narrativos ou técnicos, alguns
36
Aqui considero tanto os filmes produzidos quanto os dirigidos por Rovai, porém restringindo-me à
década de 1970. A única exceção perceptível em relação à bilheteria é o filme Crueldade Mortal,
dirigido por Luiz Paulino dos Santos, em 1977, e em coprodução com a Embrafilme, de proposta mais
“autoral” e claramente voltado para festivais. Os números de bilheteria, fornecidos pela própria Sincro
Filmes, são: Adultério à Brasileira, 1,5 milhão de espectadores; Lua de Mel e Amendoim, 1 milhão de
espectadores; A Viúva Virgem, 5 milhões de espectadores; Os Mansos, 2,8 milhões de espectadores;
Ainda Agarro Esta Vizinha, 3 milhões de espectadores; Salve-se quem puder, 800 mil espectadores;
Banana Mecânica, 1 milhão de espectadores; Luz, Cama, Ação!, 1,5 milhões de espectadores;
Crueldade Mortal, 300 mil espectadores; Ibraim do Subúrbio, 700 mil espectadores; Gente fina é outra
coisa, 2 milhões de espectadores; O bom marido, 1,5 milhão de espectadores; Nos Embalos de
Ipanema, 2 milhões de espectadores; Ariella, 2,5 milhões de espectadores.
85
tratamentos recentes dados à pornochanchada são interessantes para uma breve
análise. Um primeiro exemplo é o esforço do cineasta Carlo Mossy em produzir os
DVDs dos filmes por ele dirigidos e atuados, vendidos em sua própria produtora,
onde há os seguintes dizeres, em uma cartela colocada no início de cada filme:
“pornochanchada não é pornografia”. Nota-se a proposta de Mossy de marcar a
distinção entre os dois gêneros, obtendo, dessa maneira, um diferencial também para
os seus próprios filmes. Um segundo exemplo, é a mostra cinematográfica, 20x
pornochanchada. Realizada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro no ano de 2011,
foram exibidos vinte filmes do gênero, além da promoção de um debate intitulado
Pornochanchada – Paixão Nacional mediado por Eduardo Souza Lima e com nomes
como Carlo Mossy, Nicole Puzzi, Andrea Ormond e Beatriz Kushnir.
Por fim, um dos maiores exemplos da revalorização da pornochanchada é a
faixa de filmes do Canal Brasil chamada Como era gostoso, a qual exibe produções
brasileiras que priorizam a temática sexual. Mesmo limitado a um público restrito,
tanto pelo horário de exibição dos filmes, a partir da meia-noite, quanto pelo fato da
televisão por assinatura não atingir nem mesmo metade dos lares brasileiros, essa
programação é bastante representativa. Trata-se da exibição de filmes brasileiros,
incluindo a pornochanchada, em um canal voltado apenas para a produção
cinematográfica nacional e, com o objetivo de valorizar tal produção.
No que diz respeito à crítica cinematográfica mais atual, chamo a atenção para
alguns artigos publicados na revista eletrônica Contracampo. Cabe situar que na
época de divulgação desses textos, a revista possuía forte influência na crítica
cinematográfica, a partir de agentes que atuavam no campo não só como críticos, mas
também como cineastas. Embora, sua recepção, por uma questão de proposta ou
mesmo pelo seu molde virtual, tenha sido voltada para um público mais específico.
O primeiro artigo, chamado O negócio foi assim..., é uma entrevista feita em
2004 por Luís Alberto Rocha Melo (2009b) com Remier Lion, então curador da
mostra Cinema brasileiro: A Vergonha de uma nação e também organizador do
cineclube Malditos Filmes Brasileiros. De acordo com Lion, a mostra procurava dar
conta de uma visão “pop” do cinema brasileiro que fugisse da visão de cultura
proveniente do “ranço da ditadura”. O que chama a atenção no depoimento, que se
soma ao tom provocador das palavras de Lion, é o nome dado tanto para a mostra
quanto para o cineclube. A provocação consiste em se exibir filmes nacionais, muitos
deles ligados à pornochanchada, que não deveriam ser mostrados ou mesmo
86
lembrados devido ao seu caráter cultural ser considerado menor. Lion também
escreve, para a revista Contracampo, Cinema? É a maior sacanagem: sobre
pornografia e a obra de Nilo Machado (2009). O artigo é sobre o cineasta, oriundo da
Boca da Fome, que já em finais dos anos 1950 começou a enxertar em filmes
estrangeiros pequenos números de strip-tease e, que trabalhou durante a década de
1980 com os filmes de sexo explícito.
Ainda na Contracampo, Ruy Gardnier em A rica fauna da pornochanchada
(2009), ao tratar a pornochanchada enquanto gênero, busca discorrer rapidamente
sobre os códigos genéricos perceptíveis através dos personagens clichês. Citando os
exemplos do melodrama, com a “mãe mexicana” ou o western, com o “cavaleiro
solitário”, a pornochanchada teria apostado em personagens reconhecíveis por uma
sociedade tão moralista quanto os filmes, tal como: o garanhão cafajeste, a virgem
profissional, o velho tarado, a frígida gostosa, a moça liberada, o marido
inadimplente, a esposa em erupção, a titia malandrona ou o safado engravatado.
Por último, cito Daniel Caetano (2009), em Por dentro e por fora das
pornochanchadas, publicado na Contracampo em 2002. Em seu artigo, Caetano
problematiza o porquê de determinados filmes – citando diretores como Joaquim
Pedro de Andrade, Luís Sérgio Person, Bruno Barreto ou Arnaldo Jabor – não serem
considerados pornochanchadas e outros sim. Independente dos argumentos
apresentados, interessa a proposta de uma revisão histórica sobre os filmes da época,
questionando quais os interesses em determinada produção ao se afastar do gênero,
porém aproveitando todo um público já receptivo a um cinema nacional que,
independente de sua qualidade técnica ou estética, flertava com o erotismo.
Dentro da área acadêmica, como já comentado, além de publicações de Laura
Cánepa e Gelson Santana, um importante impulso para a discussão da
pornochanchada foi o dossiê publicado na revista Sinopse (2000) com textos de
Newton Cannito, Inimá Simões, Flavia Seligman, além de um depoimento de Pedro
Carlos Rovai.
Em entrevista para o pesquisador Júlio Bezerra em Revista de Cinema
publicada em 2005, intitulada Pedro Carlos Rovai: Mais importante que Bergman,
pode-se notar a importância, seja em termos factuais ou mesmo para uma provocação,
alcançada pelo nome de Rovai dentro da historiografia do cinema brasileiro. A
matéria, a respeito do lançamento do filme Tainá 2, cita em seu título uma
87
provocação de Paulo Emílio Salles Gomes37, que dizia que o cinema de Rovai era
mais importante do que o de Bergman.
(...) Paulo Emílio Salles Gomes dizia que para o Brasil Rovai era
mais importante que Ingmar Bergman. Jean-Claude Bernardet via
em seus filmes um excelente modelo de comunicação popular.
Newton Cannito fala não em diretor de cinema, mas em realizador,
coordenando a equipe de artistas que realiza o filme, e sempre
preocupado em promover uma relação prazerosa e lucrativa entre o
longa e seu público. (BEZERRA, 2005)
88
período. Em suas críticas, não há apenas análises fílmicas. Há também uma tentativa
mais ampla, buscando a percepção do contexto fílmico brasileiro como um todo.
Ainda que existam contradições e diferenças nos argumentos de Bernardet e Ferreira,
ambos partem de uma reflexão menos depreciativa da pornochanchada como gênero,
encarando-a como integrante da cinematografia nacional do período e, portanto,
passível de teorização e reconhecimento.
Assim, ao colocar as reflexões dos dois teóricos lado a lado com as falas de
um agente do campo tal como Rovai, fica ainda mais perceptível as práticas
discursivas do cineasta não apenas para se afirmar dentro da produção
cinematográfica brasileira, mas também para posicionar a pornochanchada como
esfera importante dentro do campo nacional.
3.2 – Pequena digressão sobre Paulo Emílio Salles Gomes e José Carlos Avellar
enquanto agentes da pornochanchada
89
cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que
lhe permitam escapar à condenação do subdesenvolvimento,
mesmo quando uma conjuntura particularmente favorável suscita
uma expansão na fabricação de filmes. (Ibid., p. 75)
90
além de apresentar elementos próprios da cultura brasileira, como por exemplo o
carnaval.
91
festivais internacionais. Além disso, embora produzindo em menor escala do que no
início da década, os cinemanovistas não deixaram de exercer sua influência estética,
ideológica e também política dentro do campo cinematográfico, principalmente em
relação às políticas públicas. Em 1974, por exemplo, Roberto Farias e Gustavo Dahl,
dois nomes ligados ao grupo, tornaram-se respectivamente diretor geral e diretor do
setor de distribuição da Embrafilme38.
Salles Gomes faleceu em 1977 e seu ensaio influenciou muitos críticos e
pensadores de Cinema, incluindo Jean-Claude Bernardet o qual irei tratar mais
adiante. Interessa-me, principalmente, o modo como a oposição existente entre um
cinema dominante e um cinema dominado acabaria por servir como defesa para uma
produção nacional de caráter mais popular, considerada muitas vezes “grosseira” ou
com “maus modos”, mas que atendia aos anseios ao competir com o cinema
estrangeiro.
Como já comentado em capítulo anterior, Avellar (1979-80), em A Teoria da
Relatividade, define a linguagem da pornochanchada como predominantemente
grosseira, onde essa grosseria se relaciona com a Censura oficial, que retalha os
filmes e impõe uma cinematografia onde pouco se mostra e muito se insinua. Neste
texto extremamente crítico em relação à pornochanchada, o autor define a relação que
esta tem com o próprio Estado, onde o mesmo princípio que leva o censor a cobrir os
nus com bolas pretas, no caso já citado de Laranja Mecânica, leva também um
produtor de filme a cobrir as relações sexuais das pornochanchadas com eufemismos.
Uma das bases da teoria de Avellar sobre a pornochanchada reside no fato do gênero
ter surgido em finais da década de 1960, coincidindo com o momento em que a
repressão estava mais forte na ditadura militar brasileira. Em 13 de dezembro de
1968, durante o governo do presidente Costa e Silva, foi decretado o já mencionado
AI-5. Avellar estabelece, então, a relação entre Censura e pornochanchada, onde a
primeira, através dos cortes às cenas e temáticas, influencia a forma narrativa da
segunda.
38
Segundo Arthur Autran (2010, p. 25), em O pensamento industrial brasileiro, com a criação do
Instituto Nacional de Cinema (INC), em 1966, e a Empresa Brasileira de Filmes S.A. (Embrafilme), em
1969, o Estado passou a financiar e a proteger o cinema brasileiro, garantindo parte do mercado via
“cota de tela”. Foi a política estatal que possibilitou a produção de mais de cem longas metragens por
ano, em finais da década de 1970, como também a ocupação de cerca de trinta por cento do mercado de
exibição. Inicialmente voltada apenas para a produção, em 1974 a Embrafilme teve a sua esfera de
atuação ampliada, podendo também distribuir e coproduzir os filmes brasileiros.
92
Baseando sua teoria na relação ditatorial que o governo militar exercia sobre a
sociedade, Avellar expõe:
93
censores, foi um dos filmes mais beneficiados pela própria existência da Censura.
Para contextualizar o porquê tanto dos cortes quanto da ajuda que esses cortes
representou para o filme, Avellar cita uma fala de Pier Paolo Pasolini durante o
Festival de Cannes de 1974, a propósito da exibição do seu As Mil e Uma Noites:
Uma vez que as conversas sobre fatos naturais como o sexo são
proibidas ou veladas, todas as proibições ganham a mesma escala de
interesses, e provocam um idêntico grau de prazer. Que outra razão
pode explicar o interesse por espetáculos tão grosseiros em uma
plateia habitualmente reticente diante de um filme brasileiro? (Ibid.)
94
a pornochanchada narrando de uma forma que chocava dominantes e entretinha
dominados – para resgatar a terminologia utilizada pelo próprio autor – essa
característica não era suficiente para reduzir o teor crítico de Avellar. Tanto em
relação à linguagem utilizada nos filmes, fosse ela imposta pela Censura ou não,
quanto aos valores que a pornochanchada expunha e que dificilmente problematizava
ou questionava.
Um exemplo de exceção se dá no artigo Nem tudo que reluz é ouro39, de 11 de
março de 1976. A respeito do filme O Homem da Cabeça de Ouro, de Alberto
Pieralisi, Avellar dá indícios do que consideraria um tratamento mais intelectualizado
para o gênero. Mesmo contendo os códigos das pornochanchadas no que diz respeito
à linguagem cinematográfica, o filme é considerado pelo autor como sofisticado e o
exemplo se dá por uma cena de masturbação onde, através do efeito de montagem, é
estabelecido um relacionamento entre um dos personagens e uma revista masculina.
A transgressão na utilização da linguagem para a construção de uma cena romântica
não entre um homem e uma mulher, mas entre um homem e uma revista, é vista de
forma positiva por Avellar40.
Além disso, em Nem tudo que reluz é ouro, Avellar menciona a recepção do
público e o uso do gênero como catarse para o mesmo.
39
Artigo sem referência e com data escrita à mão, encontrado no Acervo da Cinemateca do Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro, pasta 20656 (Pornochanchada).
40
É válido citar novamente o exemplo de Vereda Tropical de Joaquim Pedro de Andrade, que, mesmo
utilizando os códigos genéricos da pornochanchada, consegue a transgressão dentro da fórmula.
95
geralmente precavidos quanto à exibição de filmes brasileiros, cederam espaço para
as pornochanchadas.
96
uma provocação no fator econômico, transformar-se em um “filme brasileiro, coisa
que não que não interessa a ninguém e mal chega a ser exibido” (AVELLAR, Ibid., p.
32).
Em setembro de 1985, foi realizado um seminário durante o Festival de
Cinema Brasileiro de Brasília, promovido pela Universidade de Brasília e a Fundação
Cultural do Distrito Federal. Em uma mesa formada por Silvio Tendler, Werner
Schunemann e Inimá Simões, interessou-me bastante a transcrição de uma colocação
de José Carlos Avellar, que se encontrava neste dia na plateia, a respeito da fala de
Simões sobre a pornochanchada.
97
3.3. As práticas e agentes que possibilitam observar Pedro Carlos Rovai
enquanto profeta da pornochanchada
98
O que há de criador nessa atitude (que eu acho precisa inclusive
discutir mais do que está aqui) é que o cinema que nós
consideramos medíocre na sua forma e conteúdo, mesmo medíocre,
mesmo altamente conservador ou reacionário é um cinema que nos
devolve sempre à realidade social a qual pertencemos. Mesmo
quando pichamos as pornochanchadas ou os filmes do Jece Valadão
ou sei lá o que, somos de certo modo corresponsáveis pela
existência desses filmes. Então o problema não é tanto saber se o
filme do Jece Valadão é ou não é progressista, é ou não é bem feito,
mas sim que através de um filme dele nós somos devolvidos ao
processo cultural. Essa que é fundamentalmente a possibilidade
criadora de nos voltarmos ao cinema brasileiro. (BERNARDET
apud BERNARDET; GALVÃO et. al, 1980, p. 5-6)
Para Bernardet (Ibid., p. 14), o confronto com um processo cultural que não se
quer ver é um aspecto positivo das pornochanchadas. Torna-se benéfico para uma
discussão a exposição desse processo, justamente por gerar um choque entre a visão
da elite do que deveria ser a representação da cultura brasileira e o que é visualizado
na tela nos filmes do gênero. A mácula de um ideal de cultura pode ser observado
através de uma espécie de campanha contra a pornochanchada que se forma já na
primeira metade da década de 1970. Bernardet cita as cartas recebidas e publicadas
pelo O Jornal do Brasil, onde leitores indignados deixavam suas opiniões negativas
sobre o gênero. Contudo, a mesma campanha não houve em relação às chamadas
“pornochanchadas italianas”41. Assim, para o autor a pornochanchada maculava a
projeção de imagem de cultura ou de Brasil que se quer construir, estabelecendo-se
uma relação de rejeição.
De certa forma, corroborando o raciocínio de Bernardet no qual a
pornochanchada devolve o espectador ao seu processo cultural, Maria Rita Galvão,
durante os anos 1970, pedia que seus alunos uma vez por semana vissem um filme
brasileiro, que por conta da ocupação das salas era geralmente uma pornochanchada,
para depois discutir em sua disciplina.
41
Aqui opto pelo uso de aspas, pois não concordo totalmente com a terminologia empregada por
Bernardet. Mesmo reconhecendo a necessidade e o objetivo de sua problematização, cabendo sim uma
comparação entre a produção de comédia de costumes brasileira, chamada de pornochanchada, e a
produção de comédia de costumes italiana, de mesmo teor, porém sem tal rótulo, reflito ser importante
distinguir a nossa produção de comédias da produção estrangeira. Reconheço também a forte influência
que as comédias italianas exerceram nas pornochanchadas, principalmente no início da década de
1970. Por outro lado, é interessante observar o fato de Bernardet inverter o discurso, atribuindo a uma
produção internacional, uma terminologia genérica utilizada exclusivamente a filmes brasileiros.
99
sempre vulgar, é sempre de péssima qualidade, malfeito, imitação
frustrada de filme estrangeiro, etc. – à medida em que a discussão
progride vai havendo um envolvimento cada vez maior dos alunos
com o filme em questão; por exemplo, os alunos que vão contar um
filme para os outros que não o viram se divertem de tal modo,
demonstrando o quanto no fundo eles curtiram o que viram, o
quanto aquilo – independentemente de ser um tema de estudo –
efetivamente lhes diz respeito de algum modo, que eu me pergunto
se há atuação desses filmes junto a um determinado público que se
pretende mais intelectualizado (de qualquer modo é um público
universitário) não seria um sintoma muito mais drástico daquilo que
é efetivamente a cultura nacional do que a gente costuma
normalmente supor”. (GALVÃO apud BERNARDET; GALVÃO
et. al, Ibid., p. 15)
Tanto Bernardet quanto Galvão acabam por mostrar que havia um preconceito
contra a pornochanchada, independente de sua visualização, apenas pela sua
existência que fugia de determinado ideal cultural/cinematográfico. Quando mais
acima Bernardet fala que através da pornochanchada ou algum filme do Jece Valadão,
mesmo sendo reacionários, permitem “nos devolver à realidade social a qual
pertencemos”, dar conta do processo cultural brasileiro, entende-se um dos porquês
do autor ter sido um dos principais defensores do gênero da pornochanchada em sua
própria época, antes de qualquer revisionismo ou retomada histórica.
Em Cinema brasileiro: propostas para uma história, originalmente publicado
em 1979, Bernardet ensaia uma perspectiva sobre a cinematografia nacional e, de
certa forma, amarra alguns dos raciocínios expostos em suas críticas no decorrer dos
anos. Dentre as diversas temáticas abordadas pelo autor, me interessa principalmente
quando este trata das disputas entre as propostas culturais vigentes na década de 1970
e as pressões feitas em relação ao Estado, principalmente no papel da Embrafilme,
para que essas perspectivas entrassem em vigor.
Para dar conta do que Bernardet chama de “dirigismo cultural”, há a exposição
da dinâmica em que a cultura brasileira se encontrava no contexto pós-golpe de 1964.
Buscando dar um aporte do campo de forças em que a cultura encontrava-se no início
da década de 1970, o autor afirma que:
100
vinculadas ao Estado. Diante disso, os próprios produtores passam a
atribuir o arrefecimento ou o esvaziamento da produção tão somente
ao Estado, no caso à censura. Não se pode fazer porque a censura
impede. (...) É o reconhecimento implícito de que para produzir eles
precisam de uma espécie de autorização. Esse raciocínio leva a um
deslocamento da responsabilidade: enquanto for a censura
responsável pelo esvaziamento da produção, essa responsabilidade
não recairá sobre os produtores. (BERNARDET, 2009, p. 69)
101
Em A Pornochanchada contra a Cultura “Culta”43, publicado em Opinião, de
27 de setembro de 1974, encontro um dos posicionamentos mais claros de Bernardet,
quando este toma partido em favor das pornochanchadas que agiriam contra a
imposição de uma cultura de elite.
43
O texto é assinado por um dos pseudônimos de Bernardet, Carlos Murao, talvez mais por estratégias
de um jornal da imprensa alternativa frente à ditadura do que a alguma possível vergonha do autor em
relação aos seus escritos. Além disso, era comum também o uso de pseudônimos nos jornais menores
para que os poucos colunistas não assinassem vários textos em uma mesma edição.
102
Contudo, há uma inversão em relação ao seu uso comum. Para estabelecer uma
comparação com Ainda Agarro Esta Vizinha, Bernardet cita As Moças Daquela Hora
(1973), de Paulo Porto, onde haveria justamente uma tentativa de sofisticação da
pornochanchada, contudo sem alterar a sua essência moralista. E através desse
“invólucro artístico” é que o moralismo do gênero se daria de forma ainda mais
conservador.
103
ser piadas) e o montador nada faz para se antecipar ao espectador:
quando o montador chega ao desenlace da piada, o espectador já
está noutra. Quase que só as comédias da Sincro e da RFF (Roberto
Farias Filmes) apresentam esta segurança de situações e na
montagem. Quer dizer: um certo know-how industrial. (Ibid.)
44
Um bom exemplo para estabelecer uma comparação é o artigo de Bernardet intitulado Nós,
invasores, publicado no jornal Movimento de 22 de dezembro de 1975. Com o subtítulo, É fácil
reconhecer que o cinema estrangeiro invade as telas brasileiras. O duro é ver a gente mesmo como um
estranho na própria casa, nota-se que a relação do autor em relação à pornochanchada, onde se adota
uma postura política de preferi-la em relação ao filme estrangeiro obedece certos limites. A crítica trata
do filme Com as calças na mão (1975), dirigido por Carlo Mossy, e sua relação com uma cena de Sexo
Louco (1973), de Dino Risi. Em ambos, há uma cena onde um dos personagens masculinos sai com
uma moça, mas quando ela vai no banheiro ele percebe que se trata de um travesti. Na versão de Sexo
Louco que passou na Itália, o rapaz fica com o travesti no final do filme. Porém, na versão “brasileira”,
editada pelos cortes da Censura, o travesti é largado. Devido ao estado de dependência do filme
nacional em relação ao modelo estrangeiro, o mesmo final moralizante é repetido por Mossy em Com
as calças na mão. E a crítica de Bernardet reside justamente na invasão cultural sofrida pelo mercado
brasileiro, onde colonizados atuam como colonizadores em seu próprio país.
104
Dentro do campo cinematográfico brasileiro, Pedro Carlos Rovai se impôs não
só com seus filmes, mas também através da maneira como se posicionou
publicamente, neste caso específico nas suas falas à imprensa. Retomando a
abordagem pragmática de Rick Altman (2009), ressalto que o gênero é definido por
múltiplos códigos, os quais correspondem aos múltiplos grupos considerados
legítimos na definição genérica, mas que também, e isso é importante para o estudo
da pornochanchada, estão legitimados para estabelecerem uma distinção, elegendo
também as práticas autorais e as obras consideradas melhores ou piores.
No depoimento de Rovai a Bernardet, em A Chanchada É Nossa: E sem a
pornochanchada, o cinema brasileiro teria 112 dias?, publicado no Movimento de 26
de janeiro de 1976, o cineasta ressaltando que dentro do cinema de gênero no
contexto nacional, na deficiência de se fazer western, ou policial, o “know-how” do
cinema brasileiro é a comédia urbana carioca. E seriam esses filmes que
possibilitariam o cumprimento da cota de tela de exibição de 112 dias. Do outro lado
da produção nacional, haveria duas opções: ou superproduções realizadas com o
intuito de competir com a produção estrangeira, ou adaptações de romances,
desvinculados da realidade e que, além de serem omissos na busca por valores
brasileiros, também cometeriam o “crime” de não levar público ao cinema.
105
A herança da pornochanchada? A própria chanchada, o teatro de
revista, o vodevil. Mas também a maneira de ser do brasileiro. Pelo
menos seu comportamento exterior é próximo do que se vê na
pornochanchada. Seu machismo, as piadas, a atração pelas mulheres
boazudas, o sexo como afirmação. A pornochanchada utiliza
elementos do caráter brasileiro. Nisto o grande público, o de menor
poder aquisitivo, se encontra. (...) Na chanchada dos anos 50, já
havia tudo o que tem na pornochanchada. A malícia, a frase de
duplo sentido, já havia. Numa chanchada dessa época que vi
recentemente, tem uma cena que poderia ser de pornochanchada.
Ivon Curi, ciumento, ouve a mulher que está num quarto a dizer:
tira, ponha, aperta; quando ele abra a porta, trata-se de uma agulha.
Tudo isso vem do teatro de revista, até do entrudo do Brasil
colonial. A pornochanchada, numa sociedade mais permissiva,
introduziu a cor, a nudez das mulheres.” (Ibid.)
45
Reforçando a fala de Rovai, retomo aqui João Luiz Vieira (2003, p. 58-59), quando este sustenta que,
de acordo com um olhar de “primeiro mundo”, a chanchada era criticada pela sua pobreza, vulgaridade
e também por uma certa “picardia sexual”. Contudo, ressalto também a diferença do tratamento da
questão sexual na chanchada e na pornochanchada, a qual deve ser observada mediante cada contexto.
106
de Rovai, interessa-me a citação de Roberto Santos e Nelson Pereira dos Santos como
uma maneira de estabelecer um diferencial das produções Sincro Filmes das demais
pornochanchadas. Sem aprofundar em uma análise mais demorada, os dois filmes
citados têm em comum uma estrutura narrativa mais clássica dentro de uma proposta
neorrealista, traçando as agruras de um jovem trabalhador que quer se casar, mas não
tem dinheiro (O Grande Momento) e a trajetória de um sambista que, ao cair no trilho
do trem do subúrbio do Rio de Janeiro, revê sua vida em flashback (Rio Zona Norte).
E é justamente na busca de um retrato do povo o ponto onde Rovai pretende uma
ligação com os dois diretores.
107
Este depoimento de Rovai, tal como os demais que serão analisados, é datado
da segunda metade da década de 1970. Neste momento, cabe adentrar um pouco mais,
em termos político-culturais, no contexto cinematográfico brasileiro dos anos 1970.
Mesmo objetivando uma análise das perspectivas estéticas que incidiram sobre a
pornochanchada através das críticas e do discurso de Rovai, é válida a ampliação
também para alguns dos agentes ligados às políticas públicas, pois suas ações foram
determinantes para o cinema nacional como um todo.
Para tal, permito-me primeiramente uma breve análise do conhecido artigo de
Gustavo Dahl (2010), Mercado é Cultura, publicado originalmente na Revista
Cultura em 1977. Dahl, mesmo tratando o Cinema como um meio de amplas
possibilidades culturais, lembra que a distribuição – em geral um setor da cadeia
produtiva que os produtores não dão a devida atenção – é algo fundamental para o
cinema brasileiro. É o posicionamento de um cineasta ligado ao antigo grupo
cinemanovista e que passava a considerar o filme de mercado também como objeto
cultural.
108
a buscar produções que conquistassem a bilheteria, com filmes de forte apelo de
público e pouco desafiadores em relação à linguagem e estética.
A gestão Roberto Farias na Embrafilme a partir de 1974 pode representar um
bom exemplo desse jogo de forças em que se situava o campo cinematográfico no que
diz respeito às políticas públicas. É válido retroceder um pouco temporalmente dentro
da trajetória de Farias enquanto cineasta. Depois de dois primeiros filmes como
diretor ligados ao gênero da chanchada, Rico ri à toa (1957) e No mundo da lua
(1958), seu terceiro filme, influenciado pelo movimento neorrealista italiano, Cidade
Ameaçada (1960), foi indicado para o Festival de Cannes do mesmo ano. O que
poderia significar uma espécie de “progressão cultural”, onde Farias inicia sua
carreira em filmes menos “sérios” até atingir a consagração de participar de um
festival de renome, não impediu que cineasta filmasse já no ano seguinte uma outra
chanchada, Um candango na Belacap (1961). Não aprofundando o mérito do porquê
desta última filmagem, vale destacar apenas que Cidade Ameaçada, apesar do
destaque em festivais e de crítica, não recebeu a mesma acolhida positiva do grande
público. A necessidade, então, de um filme leve, que seguia uma fórmula genérica já
conhecida, para minimamente reestabelecer financeiramente sua produtora 46 , foi
durante criticada.
Um exemplo desse questionamento é feito por Glauber Rocha (2003), amigo e
sócio de Roberto Farias na Difilm (primeira distribuidora formada por quadros
ligados ao Cinema Novo). Influenciado pela “política dos autores”, da Nouvelle
Vague, Rocha defende em Revisão crítica do cinema brasileiro, de 1963, que,
diferentemente de um verdadeiro “autor”, o qual traria uma marca pessoal e um estilo
a seus filmes, Farias no máximo seria um “artesão”, um realizador que domina os
aspectos da linguagem cinematográfica, porém sem alcançar status de artista.
Contudo, se Farias apresentou uma trajetória enquanto diretor que oscilava
entre os filmes considerados “sérios” e considerados “populares”, enquanto diretor da
Embrafilme, o seu posicionamento sobre as pornochanchadas, dentro do contexto de
disputa cultural mencionada anteriormente, foi mais taxativo. O artigo do jornal O
Globo, de 29 de agosto de 1975, Por enquanto, quase só pornochanchadas. E planos.,
trata da divergência ideológica do que deveria ser o papel do Estado para as políticas
cinematográficas. De um lado, o Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica,
46 Roberto Farias lança em seguida Assalto ao trem pagador (1962), um dos seus filmes de maior
reconhecimento e que não se insere no gênero da pornochanchada.
109
liderado pelo já mencionado Luiz Carlos Barreto, e a Embrafilme, do outro lado, a
Associação dos Produtores Cinematográficos, que contava com nomes como Jece
Valadão, Vitor Di Mello, Oswaldo Massaini, Pedro Carlos Rovai e Carlos Manga.
Quero deixar claro que não sou contra a existência das comédias
eróticas, pois sou a favor da mais irrestrita liberdade de se fazer
qualquer gênero de filme. Entretanto, o cinema brasileiro não pode
dar-se ao luxo de fornecer argumentos ao “adversário”. O que seria
necessário – e nesse ponto todos que fazem cinema concordam – é
evitar uma generalizada confusão entre pornografia e um erotismo
feito de simples insinuações (...) (FARIAS apud E DEPOIS, 1976)
110
As aspas na palavra adversário utilizada por Farias não fornece maiores
explicações de quem este seria. Os militares? Os setores conservadores da sociedade?
As distribuidoras estrangeiras? Ou os próprios produtores das pornochanchadas?
Neste artigo, a palavra “pornografia” serve como distinção entre uma produção
nacional que cada vez mais carregava um apelo erótico e as pornochanchadas. O
segundo artigo, da Folha de São Paulo, de 16 de janeiro de 1976, mesmo que de
menor tamanho, contém um título que já representa por si só uma escolha de posição:
Pornochanchada é um mal passageiro, diz Farias:
Apesar de um artigo onde o título tem uma frase mais contundente do que o
próprio conteúdo, trata-se do posicionamento do diretor de uma empresa estatal, que
financiava, coproduzia e distribuía filmes brasileiros, a respeito da pornochanchada.
Onde a ocupação do gênero no mercado tornava a tirar a oportunidade de exibição de
filmes considerados mais “respeitáveis”, tornando-se, assim, problema de Estado.
Jean-Claude Bernardet no já citado Cinema brasileiro: propostas para uma
história, entre outras coisas, aborda um processo pelo qual o cinema brasileiro passou
durante a década de 1970, chamado de “dirigismo cultural”. De acordo com o autor,
em 1972 o Ministério da Educação instituiu um prêmio anual para os filmes que
tratassem de adaptações literárias de autores mortos. A restrição seria benéfica ao
Estado ditatorial, pois dessa forma as temáticas só podiam se ambientar no passado e,
quando no presente, ocorreriam através de alegorias ou metáforas, diminuindo as
possibilidades de alguma crítica mais contundente ao governo militar. Mesmo
lembrando que Nelson Pereira dos Santos havia filmado Vidas Secas, em 1963,
baseado no romance de Graciliano Ramos, ou mesmo o fato de grande parte da obra
de Joaquim Pedro de Andrade ser baseada na literatura, a problemática estaria no fato
111
de nesses dois casos a produção ser medida pelo interesses dos dois realizadores e não
por conta da pressão de uma lei (BERNARDET, 2009, p. 78).
Por um lado, estimulavam-se filmes históricos que tratassem do Brasil, através
de uma linguagem mais “cultural”, mas com menor chances de crítica política ou
social. Por outro lado, o governo militar conseguia o incentivo a um cinema diferente
da “vulgaridade” da pornochanchada e que passava uma imagem considerada
negativa da sociedade brasileira.
A partir da segunda metade da década de 1970, percebe-se uma ênfase maior
do Estado, através da Embrafilme, em barrar o avanço da pornochanchada. De acordo
com Bernardet (Ibid., p. 80-81), após o gênero ter aberto o mercado brasileiro para as
nossas próprias produções, as pressões para o seu afastamento das telas aumentou
mais ainda dentro dos “meios cultos”, a quem pertenceriam também a maioria dos
críticos de cinema. Filmes que buscavam uma maior receptividade de público, como
A Estrela Sobe (1974) e Dona Flor e seus Dois Maridos (1976) ambos de Bruno
Barreto, e Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues, seriam os principais beneficiados.
Vale lembrar, que tanto Luiz Carlos Barreto, pai de Bruno Barreto, quanto Cacá
Diegues são fortemente ligados ao Cinema Novo, pressionando a Embrafilme de
Roberto Farias para um novo tipo de cinema popular, mas de caráter mais cultural47.
O espaço da pornochanchada dentro do mercado cinematográfico brasileiro
também é discutido no artigo de Alberto Silva, Os cineastas debatem: A
Pornochanchada: Saída ou túmulo do cinema brasileiro, publicado no jornal O
Globo de 15 de março de 1976. Rovai é o primeiro a dar o depoimento, novamente
tratando a pornochanchada em sua generalidade como moralista, castradora, machista
e que trata a mulher como objeto e o sexo como pecado. Porém, conclui que o sucesso
desses filmes se deve à repressão do sexo nas camadas populares, que assistem o
gênero como uma espécie de libertação.
47
Dona Flor e seus Dois Maridos, por exemplo, foi por mais de trinta anos a maior bilheteria do
cinema nacional com mais de 10 milhões de espectadores. Além de um elenco global, protagonizado
pela beleza de Sônia Braga, era uma adaptação do romance homônimo de Jorge Amado. Mesmo
contando com elementos como a nudez e a comédia, pouco se questionou se havia ou não uma ligação
do filme com a pornochanchada. Mas a própria postura dos envolvidos com a produção rejeitava o
rótulo minimamente como estratégia de marketing para se conseguir um filme popular e que somasse
forte status cultural. Como exemplo, vale destacar o comentário de Luiz Carlos Barreto feito no mesmo
ano do lançamento do filme, e o qual será citado adiante, onde o rótulo da pornochanchada “seria um
depreciativo que atingiria toda a classe cinematográfica”. Ou seja, uma boa estratégia para diminuir
qualquer possibilidade de ligação de Dona Flor com tão mal falado gênero.
112
No mesmo artigo, Joaquim Pedro de Andrade e Luiz Carlos Barreto também
seguem em defesa da pornochanchada. Segundo Joaquim Pedro, e é válido relembrar
a incursão do cineasta no gênero através de Guerra Conjugal e Vereda Tropical,
“pornô” é o nome dado a um cinema feito pela classe média urbana para ela própria,
onde as qualidades e defeitos da pornochanchada estão no próprio material a que
retrata, ou seja, a própria classe média que é autora e consumidora desses filmes. Ao
se posicionar contra o gênero, considerado por Joaquim Pedro uma “legítima
manifestação da cultura brasileira”, posiciona-se contra o estado de coisas que molda
essa classe média, que os filmes apenas retratam. Já Luiz Carlos Barreto defende o
gênero como comédia de costumes, onde o termo pornochanchada seria um
depreciativo que atingiria toda a classe cinematográfica, dando a impressão que o
cinema brasileiro é feito apenas de “pornôs”. Para ele, algumas das pornochanchadas
são verdadeiras obras-primas, incluindo Ainda agarro esta vizinha, de Rovai, como
exemplo. O problema estaria no próprio estereótipo que acompanha o gênero, pois,
segundo Barreto, se o filme de Rovai tivesse sido realizado por Fellini “todos diriam
ser genial”.
Citado por Bernardet (2009, p. 81), um documento do Conselho Federal de
Cultura, publicado no Jornal do Brasil, de 4 de agosto de 1976, tinha como premissa
o “apoio à produção cinematográfica nacional genuinamente artística,
desestimulando-se a ‘pornochanchada’ que, ou deseduca o gosto do público, ou
afasta-o da produção nacional em benefício da estrangeira”. A preocupação de
Bernardet ao citar este documento reside no fato de, independente do conteúdo
moralista da pornochanchada, existir um direcionamento estatal do que deve ou não
ser produzido, do que é ou não cultura.
113
afirma que a Embrafilme não deveria financiar projetos de filmes, mas sim as
empresas, tal como ocorre na lavoura e na indústria. Para o cineasta,
114
A luta em nome do que deveria ser cultura, de sua amplitude frente ao
financiamento estatal revelava-se também uma luta sobre o cinema que melhor
definia/representava/importava para a sociedade como um todo. Em Chanchada,
Erotismo e Cinema Empresa, publicado no jornal Opinião de 23 de abril de 1973,
Bernardet, ainda sem utilizar a denominação pornochanchada, chamando-a de “neo-
chanchada” ou “nova chanchada”, trata justamente do projeto que os produtores
seguiram no início da década de 1970, buscando uma fórmula que agradasse o
público.
115
(também conhecido como Lilian M: Relatório Confidencial), dirigido por Carlos
Reichenbach em 1975. Bernardet questiona o porquê do filme italiano não ser
considerado pornochanchada e, por isso, possuir um status cultural mais elevado.
Citando alguns filmes de Bernardo Bertolucci, Luis Buñuel, Bruno Barreto e Joaquim
Pedro de Andrade, os quais flertam com a temática do erotismo, porém sem carregar
o pejorativo do gênero, o autor complementa:
Mas, mais revelador do que isto é a tese sugerida por J.C. Avellar
no Jornal do Brasil, que afirma não ser o sexo o elemento relevante
da pornochanchada. O sexo seria basicamente uma metáfora
involuntária que expressa a sociedade global em que vivem os
espectadores da pornochanchada. Essa guerra, esse sexo técnico e
quantitativo, esse desprezo pelo outro, essa valorização do capaz
contra o incapaz e ineficiente são traços da vida social. (Ibid.)
116
expectativas do que o próprio conteúdo. 48 Além disso, a pornochanchada seria
moralizante e conservadora, reafirmando as figuras do machão/conquistador como
alguém que quer viver a vida sem fazer esforço e se dá bem no final. Apesar disso, tal
como visto no já citado Cinema: trajetória do subdesenvolvimento, Salles Gomes vê
como pertinente a imitação dentro da pornochanchada, que consegue criar e espelhar
a sociedade brasileira, mesmo baseando-se nas comédias italianas.
Apesar dos textos de Bernardet terem sido publicados em São Paulo, um dos
críticos que mais se deteve sobre o ambiente paulista, focando suas atenções na Boca
do Lixo – a qual, dentre outras produções, dedicou-se bastante às pornochanchadas –
é Jairo Ferreira. Nos dois depoimentos seguintes de Rovai, um primeiro dado à revista
Cinema em Close Up49, de estreita ligação com o cinema feito na Boca do Lixo, e o
segundo ao próprio Ferreira, o cineasta é convidado a falar em nome do gênero.
Entretanto, Rovai é considerado ligado ao cinema carioca tanto em termos de
residência de sua produtora, a Sincro Filmes, e ambientação da maioria das suas
produções. Dessa forma, faz-se necessário uma contextualização de Jairo Ferreira.
48
Era comum à maioria dos filmes brasileiros do período capas ilustradas – a exemplo do trabalho do
ilustrador José Luiz Benício – ao invés das fotomontagens. Um fato interessante sobre o fato das capas
mostrarem realmente mais do que os próprios filmes é a polêmica que se deu em torno do filme Lua de
Mel e Amendoim, dirigido por Fernando de Barros e Pedro Carlos Rovai, produzido por Aníbal
Massaíni Neto e em coprodução com a Sincro Filmes. Em 25 de junho de 1971, o jornal Correio da
Manhã publicou uma matéria com o título A briga: ela quer outro cartaz. Enquanto a capa do filme
mostrava uma foto da atriz Renata Sorrah de biquíni e com um grande decote, em nenhum momento do
filme se mostra a atriz vestida dessa maneira. Não há cena de sexo ou nada mais explícito. A atriz na
época declarou que não era uma questão de puritanismo, mas de ludibriar o público que não veria nada
do gênero durante o filme. É interessante ver que também na capa estava o protagonista masculino do
episódio em que Renata Sorrah atua, Carlo Mossy, o qual além de defender Massaíni, criticando a atriz
como moralista, diz que o ator brasileiro “tem que ser disciplinado, não pode insurgir contra os
produtores”. Uma ótima “metodologia de trabalho” para quem viria a ser um dos maiores produtores
do gênero da pornochanchada.
49
Editada por Minami Keizi, Cinema em Close Up procurou dar conta da produção cinematográfica da
Boca do Lixo, mesclando a discussão e divulgação de filmes com a criação de um studio e star system,
exibindo também ensaios sensuais das atrizes. Para mais informações sobre a revista, vale assistir o
documentário de Thiago Mendonça, Minami em Close-Up – A Boca em Revista, de 2008 e também
consultar o artigo de Alessandro Gamo de 2009, Uma voz para a boca: a experiência da Cinema em
Close Up.
117
Primeiro, para aprofundar no porquê da escolha deste como agente importante para o
estudo da pornochanchada. Segundo, para entender o porquê da legitimidade
oferecida a Rovai não ter sido dada a algum outro cineasta mais ligado à produção do
gênero em São Paulo.
Tal como Bernardet, Jairo Ferreira pode ser analisado como um importante
articulador de discursos dentro do campo cinematográfico. Com escritos de tom
altamente provocador, em Criticanarquica anozero de conduta, publicado na revista
Cinegrafia50 de julho de 1974, Ferreira estabelece uma espécie de herança na sua
forma de fazer crítica, ligando-se a nomes como Paulo Emílio Salles Gomes, Rubens
Biáfora e ao próprio Bernardet.
Iniciando o seu trabalho como crítico no jornal São Paulo Shimbum, a partir
de 1968, é importante ressaltar que Ferreira acompanhou de perto desde o movimento
marginal da Boca do Lixo até a progressiva produção de pornochanchadas na região
paulista. A sua coluna foi um espaço que tanto relatou a produção dos membros da
Boca, quanto deu espaço para os mesmos escreverem. Em sua ausência, geralmente
momentos em que Ferreira trabalhava em filmes na região da rua do Triunfo, nomes
como Carlos Reichenbach, Marcio Souza (com o pseudônimo de Machado
Penumbra), João Batista de Andrade, Jean-Claude Bernardet e Inácio Araújo
escreviam eu seu lugar. (COELHO, 2012, p. 17; GAMO, 2006, p. 18-19)
Mesmo quando Ferreira deixou o São Paulo Shimbum e passou a trabalhar na
Folha de São Paulo (ou mesmo outros jornais), o crítico não deixou atentar para o
cinema ligado à Boca do Lixo em toda a sua multiplicidade, porém, com preferência a
uma estética marginal, ligada a diretores como Rogério Sganzerla ou Luís Rozemberg
Filho. Em Udigrudi: os marginais do cinemão brasileiro, publicado no jornal
Lampião da Esquina de julho/agosto de 1978, por exemplo, Ferreira faz críticas a
Neville D’Almeida justamente por ter deixado de ser marginal para conseguir
financiamento da Embrafilme.
50
A revista Cinegrafia teve um único número, em julho de 1974, o qual foi editado por Carlos
Reichenbach e Inácio Araújo, nomes ligados ao cinema da Boca, com a colaboração de Jairo Ferreira.
118
Atualmente, como se sabe, a Embrafilme está oferecendo grandes
facilidades a quem quer filmar. Basta apresentar um roteiro de
pornochanchada de luxo disfarçada de filme histórico e sair
montado no tutu. Um cineasta que era marginal como Neville
D’Almeida sai da lona de um dia para o outro com o bem sucedido
A Dama do Lotação, exemplar do que ganhou o nome de
movimento Cinemão, ou seja, o cinema repressivo porém comercial
da Embrafilme. (FERREIRA, 1978a apud COELHO, 2012, p. 137)
119
Cama, Ação!, com a direção de Claudio Mac Dowell, Rovai já estaria buscando uma
espécie de autocrítica para o gênero em que transita. Segundo Ferreira:
É interessante perceber que esse tipo de consciência por parte de Rovai não cai
no que Bernardet, no já citado A Pornochanchada contra a Cultura “Culta”, chama
de “invólucro artístico” para buscar uma pornochanchada de maior valor cultural. O
Ibraim do Subúrbio não tenta o rebuscamento estético ou alguma artimanha narrativa
para camuflar algum possível moralismo. Ambientado no subúrbio, sua questão é
mais temática do que estética. No episódio de Araújo, por exemplo, uma frase é dita
para o protagonista vivido por Paulo Hesse quando este é contratado para trabalhar na
televisão como “gargalhador” profissional: “Você rindo aqui, o babaca que tá em casa
vai rir por qualquer coisa”.
Dando prosseguimento ao depoimento de Rovai para Jairo Ferreira, em
Pornochanchada: a autocrítica de seu profeta, o cineasta afirma o motivo que o
levou a priorizar a carreira de produtor em detrimento da de diretor.
120
repetição. Esses dois filmes eram lances pessoais, com um lado
lúdico, trabalhando em cima do deboche com raiva de não poder
fazer melhor. Eu me recusei a trair o popularesco e percebi que
poderia usar essa dramaturgia do caricato e do grotesco como uma
espécie de carpintaria para lazer um filme de reflexão. E "O Ibrahim
do Subúrbio" é um primeiro passo nesse sentido. (Ibid.)
51
A citação do episódio, na íntegra: “Eu ia em vários cinemas por dia onde meu filme estava em cartaz.
Ficava na porta do cinema, depois entrava e ia observar o público. Não esqueço a reação de alguns
operários, em Santo Amaro, quando eles pararam em frente ao cartaz de "Adultério a Brasileira", um
cartaz enganador como qualquer outro, anunciando sexo e vendendo o produto. Eles olharam durante
bom tempo as fotos expostas e depois começaram a contar o dinheiro que tinham no bolso. Eu fiquei
com terrível sentimento de culpa e subi até a cabine de projeção. Havia uma cena em que a Jaqueline
Myrna ficava um tempão em frente ao espelho, expondo uma espécie de ‘tédio pequeno burguês’. Eu
não tive dúvida: dei uma gorjeta ao projecionista e comecei a cortar essa cena no próprio projetor,
como se fosse uma moviola, porque aqueles operários certamente queriam ver um filme alegre,
enquanto não havia nenhuma alegria naquela e em outras cenas. No total, cortei uns 12 minutos do
filme. Eu estava tão preocupado com esses espectadores que, de certa forma, era como se eu quisesse
fazer na hora o filme que eles queriam ver”. (ROVAI apud FERREIRA, 1977a)
121
alguns filmes de Rovai terem sido feitos em parceria com a Embrafilme e um corte de
verbas afetar diretamente a Sincro Filmes.
Em defesa da pornochanchada, Rovai coloca como primeiro problema para o
cinema brasileiro, um “cinema colonizado”, a falta de mercado. Sem ter como
concorrer de igual para igual com o filme estrangeiro, para o produtor brasileiro só
haveria duas saídas: ou um cinema popular ou um cinema subsidiado. E “popular”
seria aquele cinema feito para conquistar uma faixa de público que acha o filme
estrangeiro “empolado”, “que ganha pouco mais que o salário mínimo”, que se
distraia e se identifique com o filme brasileiro.
122
possível fato do cinema brasileiro passar a seguir uma espécie de padrão, no qual o
gênero estaria excluído no que toca à Embrafilme, Rovai defendia que a produção
deveria ir desde o “underground” até a pornochanchada. E nesse aspecto, o cineasta é
um pouco mais específico, ao menos em relação a quais pornochanchadas ele estava
falando.
123
Meu filme “A Viúva Virgem”, revitalizou o cinema brasileiro.
Naquela época, estava todo mundo de crista baixa, de repente “A
Viúva Virgem” dá o maior estouro de bilheteria dos últimos anos,
inclusive englobando até rendas de fitas estrangeiras. Foi uma
sensação. Naquela época, tínhamos cinquenta e oito dias para
exibição dos nossos filmes. Comparando-os com os 112 dias que
temos hoje, podemos ver que um processo de conquistas foi
detonado. (...) Fazem dois anos que não dirijo. Estou cansado.
Penso em fazer uma fita que seja o aprofundamento da comédia.
Toda boa comédia põe a nu os vícios da sociedade. A
pornochanchada é, por enquanto, meia dúzia de pernas, alguns
bustos bonitos. Mas já tem uma linguagem apropriada. O “podes
crer”, creiam é uma frase demonstrativa dos raciocínios brasileiros.
Bem como o carro e o apartamento se colocam como
representativos dos seus anseios. O machão que transa com mil
garotas muito boas e no fim acaba com a donzela, também é típico.
A chanchada existe (grifo do autor) na realidade brasileira. Então,
posso não dirigir. Mas incentivo”. (Ibid., p. 26)
52 Não pretendo aqui adentrar na discussão das diferenças resultantes da utilização política dos termos
realizador ou cineasta no campo cinematográfico brasileiro contemporâneo, mas sim ressaltar que há
essa distinção e, acentuar o quanto, ao tratar Rovai como realizador, Cannito almeja ressaltá-lo entre os
demais agentes da pornochanchada.
124
trajetória, bem como a trajetória da própria pornochanchada. O cineasta não rejeita ter
sido um dos precursores 53 e sua forte atuação como diretor e produtor de
pornochanchadas – embora realizando-as de forma distinta, mesmo quando seu
objetivo seria dar um tom de comédias de costumes às chanchadas. Além disso,
confirmando um moralismo inerente ao gênero, a possibilidade do diferencial nas
suas obras é acentuada pelo próprio Rovai na medida em que este afirma a qualidade
técnica e também a “função social” de seus filmes.
53 É interessante comparar a postura de Rovai, precursor da pornochanchada com Adultério à
brasileira, e de Reginaldo Faria, precursor com Os Paqueras. Em A cultura brasileira está indo pro
bueiro, Reginaldo Faria rejeita o seu filme enquanto pertencente ao gênero, distinguindo-o enquanto
comédia de costumes. É válido notar que Faria dirigiu ainda outras dois filmes durante o início da
década de 1970, Pra quem fica, tchau (1971) e Os Machões (1972), também comédias e com uma
relação cada vez mais estreita, em termos textuais com a pornochanchada. Segundo o realizador, “Todo
mundo que viu a gente ganhar dinheiro à beça começou a querer se aproveitar, daí veio ‘A Ilha dos
Paqueras’, ‘Paqueras sei lá o que’… Escracharam tudo. Aí me denominaram pai da pornochanchada.
Muito obrigado, mas eu não sou. Nossas cenas eram ingênuas, puras, até infantis. ‘Os Paqueras’
funcionava como uma comédia de costumes.” (FARIA, 2012)
125
considerava os filmes como alienadores e que anestesiavam as massas. Era um
caminho de dupla censura: a censura oficial e a censura ideológica.
Analisando um artigo de Ferreira, Dez anos de pornochanchada, publicado na
revista Fiesta Cinema de 1978, observa-se um retrospecto mais no calor dos
acontecimentos e que também utiliza Rovai como diferencial para o gênero. Para
Ferreira o que, segundo o próprio, era chamada de “chanchada erótica”, só desenvolve
o termo pornochanchada a partir do filme A Viúva Virgem, de Rovai. O primeiro
ponto levantado pelo autor é o fato de Adultério à brasileira e Os Paqueras não serem
os primeiros filmes com características do gênero que estaria por se desenvolver54.
Essa busca por um novo marco inicial faz parte do foco da atenção do autor em boa
parte de sua trajetória enquanto crítico e realizador, defendendo um cinema ligado ao
grupo reunido na região da Boca do Lixo, em São Paulo.
Ferreira entende que dentre esses apelos está o moralismo. O que seria um
facilitador para que a pornochanchada passasse pela Censura, já que seus personagens
sempre cumprem um papel moralizante dentro da estrutura narrativa: os adúlteros são
punidos, os homossexuais são retratados como “ratos da noite” ou “bobos da corte”,
mulheres e homens são apresentados como objetos, etc. Dessa maneira, quando o
filme consegue fazer uma comédia de costumes junto com a pornochanchada, ou seja,
apresentar um papel de crítica à sociedade frente às necessidades do gênero, essa
produção é louvada por Ferreira:
126
uma comédia erótica ao mesmo tempo em que é pornochanchada,
síntese raramente conseguida. Consegue fazer um painel crítico da
pequena burguesia brasileira a partir dos dramas simultâneos que
ocorrem num grande edifício carioca. (Ibid., p. 7)
127
Paulo José e Marília Pêra como protagonistas, apresenta-se através da crítica
cinematográfica como uma possibilidade de filme nacional em contraposição à
pornochanchada. O que era vendido enquanto uma cinematografia brasileira que
poderia competir com o filme estrangeiro, porém sem ser apelativo ou de “mau gosto”
não é algo bem visto por Bernardet. Para o autor, a problemática reside no “vazio” em
que determinados filmes, a exemplo de O Rei da Noite, inserem-se a partir do
momento em que não estabelecem nenhuma postura crítica ao regime militar. Tratam-
se de produções com uma maior preocupação com a escrita cinematográfica através
de luzes mais cuidadas ou elenco de maior atração para o público, apresentando
inclusive sequências de sexo, revestidas do que o autor chama de mensagens do tipo
“sociológico, psicológico, metafísico”. Ou seja, uma preocupação maior em se fazer
um filme inserido na definição de cultura exposta por determinada elite, mas que não
deixe de atentar também para a bilheteria. Contudo, na visão de Bernardet, estes
filmes, ao deixarem de confrontar os valores impostos pelo regime militar cairiam no
vazio apontado acima.
Em oposição, a pornochanchada também pouco questiona a realidade política
ou cultural em que seus filmes se inserem. Entretanto, o gênero é claro no que tange à
sua funcionalidade, aos seus objetivos de conquistar público sem nenhuma
preocupação cultural ou ideológica em sua essência. Para Bernardet:
128
Bernardet corrobora a argumentação de Rovai de uma possibilidade crítica
inserida na pornochanchada, além do fato do gênero, ao ser perseguido, através da
Censura e da crítica, servir de “bode expiatório” para algo mais sério no contexto
cultural brasileiro, que representava a tentativa de criação de uma identidade pelos
militares então no poder.
Para Jean-Claude Bernardet e Jairo Ferreira, utilizar o cinema de Rovai acaba
por servir para se pensar as pornochanchadas, primeiro pela utilização do exemplo de
alguém que não pretende fugir do rótulo, que se admite e atua como cineasta do
gênero, mesmo problematizando por diversas vezes as limitações entre uma comédia
de costumes e os caminhos que seguiram a pornochanchada. O segundo motivo reside
justamente no texto fílmico. É inegável que algumas direções de Rovai, destacando-se
A Viúva Virgem e Ainda Agarro esta Vizinha, receberam boa recepção de crítica e
público, em grande parte também por um mínimo apuro técnico se comparado com
algum outro exemplo da vasta produção da época. Assim, o estabelecimento de uma
aura autoral é marcado por diversos caminhos tortuosos, sendo bastante difícil
estabelecer um marco. O diferencial é, ao mesmo tempo estabelecido por Rovai e, em
seguida debatido por setores da crítica, com os exemplos utilizados de Bernardet e
Ferreira, mas também obedece um caminho inverso. Rovai também se apropria desses
discursos, de alguns elementos sobre a pornochanchada discutidos na academia e na
crítica, para incrementar a sua própria figura de autor. E foi esse múltiplo caminho
que tentei dar conta neste capítulo.
129
Considerações finais
130
Rovai, Antônio Calmon e Joaquim Pedro de Andrade se tornam agentes com primazia
para a constituição do gênero da pornochanchada. E aqui, igualar os pesos das
práticas discursivas dos cineastas e dos críticos acima foi fundamental.
Reconheço que a própria maneira pela qual trabalhei com Joaquim Pedro de
Andrade, Antônio Calmon e Pedro Carlos Rovai representa uma diferente construção
autoral, inclusive nos dois primeiros casos, ressaltando os elementos textuais que
contribuem para tal distinção. Rovai foi escolhido – embora nenhuma escolha seja
totalmente gratuita – para analisar o autor no gênero através da prática discursiva, mas
tal abordagem também pode ser voltada para Joaquim Pedro, Calmon ou qualquer
outro diretor/produtor em atuação no período. Assim relembro que, enquanto agente,
procuro menos estabelecer marcos, para o gênero e para a autoria, e mais apontar
métodos de trabalho.
Uma interessante provocação reside na análise da recente comédia de Pedro
Carlos Rovai, Qualquer Gato Vira-Lata. Esta comédia entra no rol atual de filmes
brasileiros chamado de globochanchada (por Guilherme de Almeida Prado) ou
neochanchada (por Carlos Alberto Mattos). O filme é dirigido por Tomas Portella,
mas poderia ter como diretor qualquer outro nome do cinema nacional. Não estou
menosprezando o trabalho de Portella, longe disso, mas sim ressaltando o peso de
Rovai enquanto produtor.
Contextualizando um pouco, lembro que Rovai produziu mais três filmes de
2000 para cá. A trilogia infantil, Tainá, a história da menina que vive na Amazônia,
teve um diretor diferente para cada uma das suas versões. Conversas de bastidores
apontam que não é tarefa fácil dirigir um filme para Rovai, pois este é o produtor. Em
As tranças de Maria, último filme dirigido por Rovai, na verdade a direção seria de
Ozualdo Candeias, que não assina no fim das contas por conflito de opiniões no corte
final. Voltando a Qualquer Gato, ainda nas conversas de fora da tela, diz-se que o
filme teve quase vinte roteiristas, os quais nunca agradavam o produtor.
Uma primeira questão que surge é se Qualquer Gato pode ser considerado
uma nova pornochanchada. Será que o próprio termo neochanchada, por já ter sido
utilizado por Bernardet na década de 1970, não deveria ser substituído por
neopornochanchada? O gênero considerado encerrado no final da década de 1980
está vivendo uma nova era a partir de produções de comédias de costumes, em geral
picantes e com um star system global?
131
Em segundo lugar, questiona-se sobre a possibilidade da continuidade ou de
uma nova aura autoral. As práticas de Rovai enquanto produtor, desta vez menos
combativa nos seus discursos à imprensa, porém muito proativa em relação ao modo
como rege seus filmes, também não deveriam ser consideradas autorais? Seguindo
essa linha de raciocínio, Calmon, que trabalhou com Rovai em três comédias, deve
ser visto como menos autor ou, no mínimo ser considerada uma “dupla autoria”?
Neste caso, estou longe de propor uma análise mais aprofundada de Qualquer
Gato Vira-Lata enquanto nova pornochanchada ou mesmo questionar o lugar de
Calmon dentro da caracterização autoral. Objetivo, com estas provocações,
demonstrar que a autoria e a classificação genérica são constituídas em termos
discursivos pelos diversos agentes, entre diretores, produtores, críticos, academia e
público. Os quais neste trabalho me detive prioritariamente naqueles que atuaram no
campo cinematográfico da década de 1970, a exemplos de Bernardet ou Joaquim
Pedro, mas que, se fosse o caso, poderia estender também para o contexto atual,
repensando nomenclaturas e divisões.
A abordagem presente neste trabalho possibilita, inclusive, questionar o lugar
de autoria no cinema como um todo, não pelo fato de não existir um autor, mas por
acreditar que este lugar é construído culturalmente. Tais embates, autoria e gênero,
filme comercial e filme cultural, não deixarão de existir dentro do campo
cinematográfico e os parâmetros de análise podem e devem ser embasados não apenas
em termos valorativos, mas também observando a maneira pela qual cada agente
legitimado opera em relação a cada uma destas distinções.
132
Bibliografia
A BRIGA: ela quer outro cartaz. Correio da manhã, Rio de Janeiro, 25 jun. 1971.
AVELLAR, José Carlos. “A Teoria da Relatividade”. In: Anos 70: Cinema. Rio de
Janeiro: Europa, 1979-80.
_________. Como vencer na vida sem fazer força, Avellar, [197a-] (artigo sem
referência de local de publicação ou data, encontrado no Acervo da Cinemateca do
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, pasta 20656 – Pornochanchada).
_________. Cartões Postais, onde Avellar, [197b-] (artigo sem referência de local de
publicação ou data, encontrado no Acervo da Cinemateca do Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, pasta 20656 – Pornochanchada).
_________. Nem tudo que reluz é ouro. 11 mar. 1976a. (artigo sem referência de local
de publicação e com data escrita à mão, encontrado no Acervo da Cinemateca do
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