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organização

Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz


Jean Cristtus Portela

SEMIÓTICA E MÍDIA
textos, práticas, estratégias
SEMIÓTICA E MÍDIA
textos, práticas, estratégias
Unesp – Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
Bauru, São Paulo, Brasil

Reitor
Marcos Macari

Vice-Reitor
Herman Jacobus Cornelis Voorwald

Diretor
Antônio Carlos de Jesus

Vice-Diretor
Roberto Deganutti

Organizadores
Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz
Jean Cristtus Portela

Comissão editorial
Jean Cristtus Portela
Loredana Limoli
Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz
Mariza Bianconcini Teixeira Mendes
Matheus Nogueira Schwartzmann

Revisão
Adriane Ribeiro Andaló Tenuta
Fouad Camargo Abboud Matuck
Mariza Bianconcini Teixeira Mendes
Matheus Nogueira Schwartzmann

Normalização
Dimas Alexandre Soldi
Fouad Camargo Abboud Matuck
Luiz Augusto Seguin Dias e Silva
Tânia Ferrarin Olivatti
organização

Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz


Jean Cristtus Portela

SEMIÓTICA E MÍDIA
textos, práticas, estratégias

Unesp/FAAC
2008
Copyright © 2008 Unesp/FAAC

Projeto gráfico e capa


Diego Pontoglio Meneghetti

DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO


UNESP – Campus de Bauru

302.2 Semiótica e mídia: textos, práticas, estratégias / Maria Lúcia


S474 Vissotto Paiva Diniz e Jean Cristtus Portela (organizadores). --
Bauru: UNESP/FAAC, 2008.
269 p.

ISBN 978-85-99679-11-1

1. Semiótica. 2. Comunicação. 3. Mídia. 4. Práticas semióti-


cas. I. Diniz, Maria Lúcia Vissotto Paiva. II. Portela, Jean Cristtus.
III. Título.

Ficha catalográfica elaborada por Maristela Brichi Cintra – CRB/8 5046

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”


Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
Departamento de Ciências Humanas

Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação (GESCom)


http://www.faac.unesp.br/pesquisa/gescom/
gescom@faac.unesp.br

Av. Eng. Luiz Edmundo C. Coube, 14-01


Bauru, SP, CEP 17033-360
Tel.: (14) 3103-6064 / 6036 - Fax (14) 3103-6051
SEMIÓTICA E MÍDIA
textos, práticas, estratégias

Semiótica e mídia: a proposta de integração do GESCom 7


Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz

PARTE I – NOVOS DESENVOLVIMENTOS EM SEMIÓTICA E MÍDIA


Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização 15
Jacques Fontanille
Semiótica e comunicação 75
José Luiz Fiorin
Semiótica midiática e níveis de pertinência 93
Jean Cristtus Portela

PARTE II – JORNALISMO IMPRESSO E TELEVISADO


Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores 117
Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira Mendes
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo 131
Juliano José de Araújo

PARTE III – VINHETAS


Break comercial: estratégia e eficiência 155
Jaqueline Esther Schiavoni
Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima 169
Loredana Limoli
O Nu de Boubat e a Globeleza 183
Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

PARTE IV – REALITY SHOW E PROGRAMAS DE COMPORTAMENTO


Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil 201
Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento 215
Dimas Alexandre Soldi
PARTE V – NOVAS MÍDIAS
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor 237
Tânia Ferrarin Olivatti
Rádio e podcast: intersecção das práticas 251
Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

Os organizadores 265

Os autores 267
Semiótica e mídia: a proposta de integração do GESCom | 9

SEMIÓTICA E MÍDIA
A proposta de integração do GESCom

Realizar a integração entre semiótica e mídia foi sempre o desafio, nos dez
anos de atividade ininterrupta, do GESCom – Grupo de Estudos Semióticos em
Comunicação. Um trabalho difícil no princípio, quando parte da academia e
dos órgãos de fomento olhava ainda com desconfiança a semiótica, sobretudo a
greimasiana ou francesa (SF). No entanto, nossa insistência nessa corrente tem
dupla fundamentação, como veremos.
De um lado, a SF tem como alicerce o projeto pioneiro da teoria científica
de Ferdinand de Saussure, a Lingüística, redescoberta, de início, pela Antro-
pologia, e depois utilizada pela epistemologia geral das ciências humanas. No
entanto, tanto a SF standard, preconizada por Greimas, quanto a SF mais re-
cente, sustentada por seus sucessores, relegam a pura descrição lingüística aos
seus limites, pois nem a morfologia nem a sintaxe nem a gramática nem a le-
xicologia, que embasava os estudos inaugurais de Greimas, são tratadas como
tais na semiótica narrativa (ou da ação), na semiótica discursiva, na semiótica
das paixões ou, ainda, na vertente tensiva. E isso realmente não é apenas uma
impressão sobre a evolução da semiótica, pois o próprio Greimas, depois de
ter defendido duas teses valendo-se de estudos em lexicologia, confessa “eu vi,
depois de trabalhar cinco ou seis anos, que a lexicologia não leva a nada – que
as unidades, lexemas ou signos não levam a nenhuma análise, não permitem a
estruturação, a compreensão global dos fenômenos” e finaliza dizendo: “uma
10 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz

semiótica é um ‘sistema de signos’ desde que ultrapasse esses signos e olhe o que
acontece sob os signos”1.
O que resta, portanto, como a espinha dorsal da SF, é a reflexão epistemoló-
gica da lingüística saussuriana, pois desde o artigo “L’actualité du saussurisme”
(1956)2, concebido para a comemoração do 40° aniversário da publicação do
Curso de lingüística geral, até Semiótica das paixões (1991), Greimas faz diversas
referências àquela ciência demonstrando que os conceitos básicos de seu proje-
to semiótico estão enraizados, certamente, em Saussure e Hjelmslev.
Por outro lado, Greimas teve também um papel importante na fundação das
ciências da informação e comunicação na França, desempenho até hoje pouco
conhecido e pouco difundido. Como pesquisador de renome, foi um dos treze
membros escolhidos para compor o comitê francês para o reconhecimento des-
sa área de estudo pelo Ministério da Educação. E ainda participou, em outubro
de 1970, em Milão, do Congresso Nacional do Instituto Gemelli, que tinha por
tema, já naquela época, “Estado e tendências atuais da pesquisa em comunica-
ção de massa”, discussão que resultou no livro Semiótica e ciências sociais, publi-
cado em 1976, com tradução brasileira em 1981. Relendo esse livro, trinta anos
depois, é notável a acuidade intelectual de Greimas ao afirmar que “a teoria da
comunicação social generalizada deve colocar-se sob a égide não da informação,
mas da significação”. Nas observações finais do capítulo II, descreve os atributos
do que chamou de “uma disciplina difícil de nomear, de objeto vago e meto-
dologia embrionária, aparece, cresce, alastra-se em todos os sentidos, quase se
impõe”, evidenciando sua abrangência então crescente e hoje certamente confir-
mada. Porém, Greimas indica também a fragilidade de tal teoria que, segundo
suas palavras, “recobre um campo de curiosidade científica inexplorado”. Diante
disso, considera que é o momento da disciplina interrogar-se sobre si mesma e
de colocar em causa seus postulados e seu próprio fazer, e aponta a necessidade
precípua de que se instaure “uma investigação semiótica sobre as dimensões e
as articulações significativas das macrossociedades atuais”3.
Para melhor compreender as considerações de Greimas, é importante
revermos o contexto em que a semiótica surgiu. Sua pretensão era construir
uma semiótica da significação, um projeto científico que permitisse chegar à

1 Resposta de Greimas ao ser interrogado por Michel Arrivé no colóquio de Cérisy-la-Salle (1983) sobre o papel
da lexicologia estrutural em sua obra. A. J. Greimas, “Algirdas Julien Greimas mis à la question”, em Michel
Arrivé e Jean-Claude Coquet (orgs.), Sémiotique en jeu. A partir et autour de l’œuvre d’A. J. Greimas, Paris/
Amsterdam, Hadès/Benjamins, 1987, p. 302-303.
2 Publicado em Le Français moderne, n. 24, 1956, p. 191-203, e republicado em A. J. Greimas, La mode en 1830,
Paris, PUF, 2000, p. 371-382.
3 Todas as citações desse parágrafo foram extraídas de A. J. Greimas, Semiótica e Ciências Sociais, São Paulo,
Cultrix, 1981, p. 48.
Semiótica e mídia: a proposta de integração do GESCom | 11

significação do texto, opondo-se radicalmente às teorias literárias de cunho


psicossociológico da época. O que fez a semiótica ter sucesso em outros
campos, além das ciências da linguagem, foi sua noção de texto, conside-
rado não como substância, mas como um todo formal de significação não
importando qual fosse sua forma de manifestação. Em seu projeto semiótico
há lugar tanto para a semiótica geral quanto para as semióticas específicas.
De um lado, estabelece-se uma perspectiva teórica englobante que dá a cada
conceito um valor universal, seja qual for o campo das práticas humanas a
que esteja vinculado. De outro, temos várias perspectivas teóricas engloba-
das, um vasto campo de pesquisas que se efetuam por empréstimos concei-
tuais. Tomando este ou aquele conceito da semiótica geral, cada semiótica
específica modela-o e o redefine de acordo com seus princípios de pertinên-
cia. Assim aconteceu com as semióticas visual, musical, da arquitetura, ou
mesmo com a semiótica das paixões, do gosto e do olfato. E o mesmo vem
acontecendo com a semiótica das mídias, que hoje é a vedete nos eventos
científicos que reúnem semioticistas e especialistas da comunicação.
Como vemos, a relação entre semiótica e mídia é bastante antiga: os estu-
dos comunicacionais avançam e os semioticistas vêm dando sua contribuição.
Entretanto, a relação entre essas áreas parece ainda autista, pois uns e outros
não se entendem entre si, resultando em uma convivência difícil. Se tentarmos
descrever essas duas áreas, chegamos a um paradoxo: uma infinidade de con-
tatos íntimos, acompanhados de quase total desconhecimento recíproco. Mas
os congressos nacionais e regionais de comunicação vêm abrindo espaço para
os estudos semióticos, chegando mesmo a um fato inusitado: reunir os semio-
ticistas dos três maiores ramos da semiótica (semiótica peirceana, semiótica
francesa e semiótica da cultura) num mesmo espaço, em mesas de discussão e
sessões temáticas, o que aponta, evidentemente, para um convívio necessário e
produtivo. Assim, a investigação das semióticas das mídias, projeto que ainda
apresenta pontos de vistas discordantes, revelam prismas que se encontram e,
muitas vezes acabam por cooperar entre si.
A herança estruturalista da semiótica francesa (SF) perde força nos anos
1980, diante de novas concepções filosóficas e científicas (ciências cognitivas,
teorias das catástrofes, auto-organização de sistemas etc.), levando-a a buscar
novas questões e novos centros de interesse. Tais mudanças de perspectivas não
prevêem um recomeçar do zero, ao contrário, o que era proibido volta a ser
questionado, o que foi excluído, é reintegrado de acordo com a necessidade da
teoria. A enunciação, a percepção, que antes eram vistas como uma saída do
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texto em direção à referência e à representação do mundo, são agora retomadas


e, com o tempo, a SF percebe que o texto não contém apenas os níveis enuncivo
e enunciativo, mas abarca também os processos que acionam e “formatam” o
enunciado e a enunciação, pois para a apreensão da significação é preciso con-
siderar os processos que atuam ali, processos instáveis, considerados ainda em
seu devir. Dessa forma, a SF traçou seu próprio caminho nas veredas sinuosas
das paixões e nas precondições da significação, identificando, antes da significa-
ção e da comunicação, um universo indiferenciado, que hoje é objeto de estudo
da pesquisa semiótica que a distancia da autonomia do texto.
A partir de Semiótica das paixões de Greimas e Fontanille, traduzido para
o português em 1993, a SF abriu o texto para o “mundo natural”, sustentando
que a significação articula-se em duas direções, uma manifestada e realizada,
outra manifestante e realizante. Se, para a primeira, os esquemas actanciais ou
os programas narrativos são eficazes, para a segunda, os elementos pertinentes
são a percepção, as sensações, o sensível, a intencionalidade, a cognição, o con-
texto social. Se alguns criticam ainda o imanentismo ou o percurso gerativo do
sentido, demonstram com isso total desconhecimento sobre a evolução da SF,
pois ela agora considera a significação não como dependente apenas do texto,
do enunciado, mas decorrente de dados extralingüísticos, tais como as noções
de precondições da significação, valências, estesia, protensividade e devir, afeto,
andamento, espaço tensivo, práxis enunciativa, modos de presença, interações e
níveis de pertinência, que incluem as práticas, as estratégias, as formas de vida e
a cultura, aquisições e desdobramentos introduzidos a partir dos anos 1990.
Sobre esses patamares, pouco explorados nos estudos comunicacionais, é
que se inscrevem os textos aqui apresentados, que refletem certa heterogenei-
dade nas abordagens empreendidas pelos autores, decorrente tanto da perspec-
tiva priorizada pelo analista quanto da natureza intrínseca do objeto analisado.
Os textos reunidos na presente coletânea foram distribuídos em cinco partes:
I – Novos desenvolvimentos em semiótica e mídia; II – Jornalismo impresso e
televisado; III – Vinhetas; IV – Reality show e programas de comportamento, e
finalmente, V – Novas Mídias.
A primeira parte inicia-se com um texto inédito em língua portuguesa de
Jacques Fontanille, intitulado “Práticas semióticas: imanência e pertinência, efi-
ciência e otimização”, uma das leituras que embasaram os seminários do GES-
Com em 2007 e 2008 e que fomentaram muitas das pesquisas dos membros do
grupo. Na seqüência, ainda na primeira parte temos a reedição de um texto de
José Luiz Fiorin, “Semiótica e Comunicação”, um clássico da área, que defende
Semiótica e mídia: a proposta de integração do GESCom | 13

a semiótica como proposta metodológica para o estudo da comunicação midiá-


tica. Para fechar essa primeira parte, há o texto de Jean Cristtus Portela, “Semi-
ótica midiática e níveis de pertinência”, que empreende uma reflexão sobre os
níveis de pertinência semiótica propostos por J. Fontanille e sua aplicação do
campo da análise das mídias.
As demais partes do livro trazem os textos dos membros do grupo selecio-
nados para publicação e organizados segundo os objetos analisados. A parte II
apresenta dois textos. O primeiro, intitulado “Cartas na mídia impressa: uma
prática semiótica entre leitores e editores”, de Matheus Nogueira Schwartzmann
e Mariza Bianconcini Teixeira Mendes, analisa a troca epistolar presente na mí-
dia impressa como uma prática semiótica interativa, ressaltando a sua eficiên-
cia. O segundo, “Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejorna-
lismo”, de Juliano José de Araújo, apresenta a análise de um telejornal que, sob
o enfoque do sensível, busca mostrar como esse gênero faz para captar e manter
a adesão do telespectador durante a sua transmissão. A parte III reúne três arti-
gos, “Break comercial: estratégia e eficiência”, de Jaqueline Esther Schiavoni, que
trata de um estudo sobre a composição e o ordenamento do break comercial
na programação televisiva, e dois textos sobre semiótica visual, “Figuralidade
e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima” de Loredana Limoli,
em que a abertura da telenovela é tomada como um objeto estético de natureza
sincrética, e “O Nu de Boubat e a Globeleza”, de Adriane Ribeiro Andaló Tenuta,
em que uma análise de Jean-Marie Floch é retomada a fim de analisar o “nu
artístico” da mulata brasileira na televisão. Na parte IV temos dois trabalhos
também sobre televisão: “Práticas enunciativas como estratégias de interação:
Big Brother Brasil”, de Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi
Degelo, no qual as autoras buscam identificar como se dá a adesão do teles-
pectador a esse tipo de programa, elegendo a enunciação e suas práticas como
estratégias de interação, e “Práticas passionais na mídia televisiva: programas
de comportamento”, de Dimas Alexandre Soldi, que analisa os programas Silvia
Poppovic e Casos de Família, explicitando e comparando o envolvimento emo-
cional dos atores e actantes. Finalmente, temos a parte V, que reúne os trabalhos
sobre o YouTube e o Podcast, respectivamente “Internet, YouTube e semiótica:
novas práticas do usuário/produtor”, de Tânia Ferrarin Olivatti, e “Rádio e pod-
cast: intersecção das práticas”, de Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira
Schwartzmann, que tentam evidenciar a pertinência e a eficiência das práticas e
estratégias propostas pelos avanços midiáticos.
Esta obra é, portanto, o resultado de três semestres de atividade do GES-
14 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz

Com (2007-2008) que tiveram como tema as “Práticas na mídia”, tomando


como eixo teórico o texto de Jacques Fontanille, que, como já dissemos, inicia
este livro. A discussão desse texto inovador e de outras leituras, abordadas como
desdobramentos da SF, fomentou a produção de análises de objetos midiáticos
pelos membros do grupo que, conseqüentemente, redundaram na concepção
deste nosso projeto. Desse modo, os textos ora apresentados foram reunidos, e
mesmo concebidos, com a intenção de demonstrar ao leitor que o estudo de um
determinado caso pode elucidar uma série de práticas recorrentes em diferen-
tes manifestações midiáticas de natureza multimodal, sobretudo verbo-visual
e audiovisual, sendo que o próprio Greimas dizia-se persuadido de que esses
objetos possuem “uma linguagem comum de que se valem para nos ‘falar’, mas
também – e sobretudo – de que é possível construir uma linguagem que nos
permita ‘falar’ deles...”4.
Os agradecimentos são sempre muitos no GESCom, pois foi graças à cola-
boração constante de todos os membros que o grupo pôde ser continuamente
impulsionado, chegando a esta primeira publicação. Entre aqueles que nos aju-
daram a efetivá-la, agradeço aos membros que se apresentaram como autores
dos capítulos, aceitando o desafio de investigar seus objetos na perspectiva da
SF, desdobrando-se, muitas vezes, para os níveis de pertinência semiótica pro-
postos por Fontanille. Agradeço aos pareceristas, aos membros que participa-
ram da tradução, da normalização, da revisão e diagramação, num verdadeiro
trabalho de equipe. E também à direção e vice-direção da FAAC, que financia-
ram esta publicação via verba departamental e projeto de extensão. Agradeço,
principalmente, ao co-organizador desta obra, pelo empenho em resolver as
questões técnicas e o cuidado com a excelência dos trabalhos.

Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz


Líder do GESCom-UNESP

Bauru, setembro de 2008

4 Embora nesse artigo Greimas refira-se à linguagem plástica, não há dúvida de que tal fundamento teórico
possa ser estendido a toda forma significante. A. J. Greimas, “Semiótica figurativa e semiótica plástica”, em
Significação, Revista brasileira de semiótica, n. 4, junho/ 1984, p. 29.
Parte I

NOVOS DESENVOLVIMENTOS
EM SEMIÓTICA E MÍDIA
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 17

PRÁTICAS SEMIÓTICAS
Imanência e pertinência, eficiência e otimização1

Jacques Fontanille

1. IMANÊNCIA E PERTINÊNCIA
1.1. Introdução
“Fora do texto não há salvação!” é um slogan que marcou uma época, quan-
do era preciso resistir aos cantos de sereia do contexto e às tentações de práticas
hermenêuticas, especialmente no domínio literário, que procuravam “explica-
ções” num conjunto de dados extratextuais e extralingüísticos. “FDTNHS!” era
o slogan de uma ascese metodológica fecunda, que permitiu levar o mais longe
possível a pesquisa dos modelos necessários a uma análise imanente e delimitar
o campo de investigação de uma disciplina e de uma teoria, a semiótica do texto
e do discurso.
Mas se tais tentações permanecem atuais, hoje a questão é colocada de ma-
neira diferente.
De um lado, as pesquisas cognitivas convidam a semiótica a tomar uma
posição sobre o estatuto das operações de “produção de sentido” que ela iden-
tifica em suas análises de discurso: são operações cognitivas dos produtores ou
dos intérpretes? São rotinas desenvolvidas coletivamente no interior de cada
cultura? São atividades das próprias semióticas-objeto, consideradas como “má-
quinas significantes” e dinâmicas?

1 Este texto foi originalmente publicado na revista Nouveaux Actes Sémiotiques, n. 104 -105-106 (Pulim, 2006).
A presente tradução é de Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz, Adriane Ribeiro Andaló Tenuta, Mariza Biancon-
cini Teixeira Mendes, Jean Cristtus Portela e Matheus Nogueira Schwartzmann. (N.T.)
18 | Jacques Fontanille

De outro lado, a própria prática semiótica ultrapassou amplamente os li-


mites textuais, interessando-se, há mais de vinte anos, pela arquitetura, pelo
urbanismo, pelo design de objetos, por estratégias de mercado (Floch, 1990)
ou ainda pela degustação de um charuto ou de um vinho e, de um modo mais
geral, pela construção de uma semiótica das situações (Landowski, 1992) e até
mesmo, hoje em dia, segundo as proposições de Landowski, de uma semiótica
da experiência – a partir da problemática do contágio – do ajustamento estésico
e do aleatório (Idem, 2004; 2005).
Parece que chegou a hora de redefinir a natureza daquilo de que a semiótica
se ocupa (as “semióticas-objeto”), para, ao mesmo tempo, responder às ques-
tões que lhe são colocadas a partir do exterior (às vezes também do interior) e
assumir teoricamente essas múltiplas e necessárias pesquisas conduzidas fora
do texto, pesquisas que se justificam na medida em que se submetem à coerção
mínima de uma solidariedade entre expressão e conteúdo e não constituem es-
capadas “fora da semiose”.
Entretanto, o princípio da imanência revelou-se como portador de um
grande potencial teórico, pois a restrição que impõe à análise é uma das condi-
ções da modelização e, conseqüentemente, do enriquecimento da proposição
teórica global: sem o princípio da imanência, não haveria teoria narrativa, mas
uma mera lógica da ação aplicada a motivos narrativos; sem o princípio da ima-
nência, não haveria a teoria das paixões, mas uma mera importação de modelos
psicanalíticos; sem o princípio da imanência, não haveria a semiótica do sensí-
vel, mas somente uma reprodução ou um arranjo de análises fenomenológicas.
Por trás do princípio da imanência perfila-se uma hipótese forte e produtiva,
segundo a qual a própria práxis semiótica (a enunciação “em ato”) desenvolve
uma atividade de esquematização, uma “metassemiótica interna”, pela qual po-
demos “apreender” o sentido, e que a análise tem por tarefa inventariar e expli-
citar em sua metalinguagem.
Todas as lingüísticas e semióticas que renunciaram ao princípio da ima-
nência encontram-se hoje divididas em dois ramos: um ramo forte, quando
encaram diretamente seu objeto, e um ramo fraco e difuso, quando solicitam o
que chamam de “contexto” de seu objeto. Em suma, tratar-se-ia não de inserir o
objeto de análise em seu contexto, mas, ao contrário, de integrar o contexto ao
objeto de análise, assumindo como conseqüência o fato de que, semioticamente
falando, o contexto não se situa “nem antes, nem depois, mas no âmago da lin-
guagem” (Landowski, 1992: 147; 170-172).
Greimas insistia, no desenvolvimento do verbete “semiótica”, no Dicionário i
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 19

(1983: 409-416), que as semióticas-objeto analisadas não coincidem obrigato-


riamente com as semióticas construídas que resultam da análise: estas revelam-
se mais restritas ou mais amplas que aquelas. Em suma, com relação a uma
dada semiótica-objeto, a semiótica construída pode ser “intensa” (concentrada
e focalizada), ou “extensa” (expandida e englobante). No que concerne à semi-
ótica dos objetos, por exemplo, encontramos tanto a versão “intensa” (o objeto
como suporte de inscrições ou de vestígios) quanto a versão “extensa” (o objeto
como um ator entre os demais de uma prática semiótica). A versão “intensa” diz
respeito ao nível de pertinência inferior, pois focaliza as condições de inscrição
do texto, enquanto a versão “extensa” diz respeito ao nível de pertinência supe-
rior, o da prática englobante. Portanto é preciso se esforçar para dar conta da
relação entre as semióticas construídas “intensas” e “extensas”, identificando e
articulando seus respectivos níveis de pertinência.
Sobre a análise imanente, devemos hoje distinguir cuidadosamente (1) o
próprio princípio de imanência e (2) a fixação dos limites da imanência. Essa
questão tornou-se definitivamente confusa pela maneira como esses limites,
provisórios e arbitrários, foram recentemente fixados no texto-enunciado. Se
é verdade, como diz Hjelmslev, que os dados do lingüista apresentam-se como
sendo os do “texto”, isso não é mais uma verdade para o semioticista, que tra-
balha também com “objetos”, com “práticas” ou com “formas de vida” que es-
truturam áreas inteiras da cultura. Assim, o slogan greimasiano deveria ser hoje
reformulado: “Fora das semióticas-objeto não há salvação!”, cabendo a nós de-
finir o que são essas “semióticas-objeto”. Quanto ao recurso ao contexto, nessas
condições, trata-se apenas da confissão de uma delimitação não pertinente da
semiótica-objeto analisada e, mais precisamente, de uma inadequação entre o
tipo de estruturação buscada e o nível de pertinência em questão.

1.2. O “NÍVEL DE PERTINÊNCIA” DAS PRÁTICAS


NO PERCURSO DA EXPRESSÃO
1.2.1. Notas sobre a hierarquia dos níveis
A hierarquia – (1) signos e figuras, (2) textos-enunciados, (3) objetos e
suportes, (4) práticas e cenas, (5) situações e estratégias, (6) formas de vida
– foi apresentada e justificada em outras publicações (Fontanille, 2005: 36),
20 | Jacques Fontanille

como segue2:

Essa hierarquia dos níveis de pertinência semiótica, previamente definida


como constitutiva do percurso gerativo do plano da expressão, leva-nos a algu-
mas observações complementares.
De início, e na falta de um inventário mais exaustivo, essa estruturação do
mundo da expressão semiótica em seis planos de imanência3 e de pertinência
diferentes apresenta-se como uma descrição da estrutura semiótica das cultu-
ras. Entre os signos e as formas de vida, ela propõe de fato que se considere o
conjunto dos níveis pertinentes nos quais as significações culturais podem se
exprimir.
Para definir seu objeto, na verdade, a semiótica da cultura deve organizar-se
ao mesmo tempo em intensão e em extensão. Em intensão, para dar uma defi-
nição formal e operatória do que é uma cultura do ponto de vista semiótico e,
em extensão, para especificar seus elementos e níveis pertinentes. Quando um
semioticista como Iuri Lotman descreve, ao longo de sua obra, a cultura russa,
ele não age de modo diferente: por um lado, começa por colocar a definição
intensiva da cultura, graças ao modelo da semiosfera (Lotman, 1999), de outro,

2 No texto original, o autor faz referência a Fontanille (2007b). Optamos por apresentar ao leitor uma publica-
ção equivalente em português e inserimos no corpo do texto deste trabalho o quadro dos níveis de pertinên-
cia. (N.T.)
3 Retomando a feliz fórmula de Jean-François Bordron, em uma comunicação oral.
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 21

não cessa de ir e vir entre textos (em geral literários), formas de vida (coletivas
e individuais, tiradas da história russa), entre signos (arquitetônicos ou verbais,
por exemplo) e estratégias (políticas ou militares). É preciso esclarecer ainda
que, se para Lotman a semiosfera é objeto de uma organização precisa e siste-
mática sobre as bases de uma epistemologia cibernética, os níveis de pertinência
não estão explicitados e só podem ser identificados pela diversidade de seus
objetos de análise e de seus exemplos.
O objeto deste estudo é mais especificamente o nível das práticas, mas sem
jamais perder de vista os demais níveis com os quais elas mantêm relações sem-
pre significantes, segundo um princípio já definido por Émile Benveniste (1995:
127-140), o princípio de integração. É verdade que Benveniste limita volunta-
riamente o estudo desse princípio ao domínio das línguas verbais (fonemas,
morfemas, sintagmas, frases), mas o problema do qual ele trata é exatamente
da mesma natureza daquele tratado pela semiótica das culturas, guardadas as
devidas proporções.
Um exemplo permitirá ilustrar concretamente como acontece a integração
semiótica entre os diferentes planos de imanência. É o exemplo banal da corres-
pondência postal. Um texto (o da carta) é inscrito em folhas de papel, que são
colocadas dentro de um envelope, sobre o qual está o endereço do destinatário,
às vezes o do destinador, assim como algumas figuras e marcas (timbre, selos
etc.) pelas quais o intermediário marca sua presença e seu papel.
As mesmas indicações (o nome e o endereço do destinatário) podem ser
encontradas ao mesmo tempo na carta e no envelope. Mas sua inscrição em
duas partes diferentes do objeto de escrita lhe confere papéis actanciais diversos:
(1) na carta, o nome e o endereço do destinatário participam de uma estrutura
de enunciação, um “endereço” que manifesta a relação enunciativa, eventual-
mente implícita, do texto da carta, e determinam sua leitura; (2) no envelope,
o nome e o endereço do destinatário participam de duas práticas diferentes:
por um lado, constituem uma instrução para os intermediários postais, no mo-
mento das operações de classificação, de encaminhamento, de transporte e de
distribuição final, por outro, permitem triar, entre todos os receptores possíveis
da carta, o destinatário legítimo, ou seja, quem tem o direito de abrir o envelope
e ler a carta.
A fronteira entre as duas configurações é o estado do envelope: se ele está
fechado, somente a primeira prática está ativa; se está aberto, a segunda prá-
tica pode ser realizada. Assim, encontramos aqui associados a uma morfolo-
gia particular do objeto de escrita, dois tipos de prática, uma instaurada pelo
22 | Jacques Fontanille

gênero epistolar e outra, pelo gênero “comunicação e circulação dos objetos


em sociedade”, encaixadas uma à outra. Cada uma corresponde a uma parte
e a um estado do objeto, assim como a inscrições específicas, que permitem
administrar a confrontação com outras práticas eventualmente concorrentes,
provenientes de outros gêneros. Se o envelope chega aberto, por exemplo, o
correio deve colocar uma outra inscrição para indicar que a “prática concor-
rente” já fazia parte do processo corriqueiro de distribuição, e não de uma prá-
tica externa ilegítima. Ou ainda, em uma empresa, é a própria formulação do
nome do destinatário que decide o modo de abertura: se o nome é um título
ou uma função, o envelope será aberto antes de chegar a seu destinatário, se é
um nome próprio, ela chegará fechada.
Desse modo, vemos formar-se aqui um outro nível de pertinência, que está
a meio caminho entre o dos objetos e o das situações em geral: o das práticas,
aqui práticas de escrita, práticas de comunicação social e práticas de manipula-
ção de objetos. Os dois modos de inscrição dos mesmos elementos textuais só
aparecem no nível textual sob a forma de propriedades materiais acessórias e só
têm sentido no nível superior, o das práticas. Essa condição evoca diretamente
a regra definida por Benveniste:

Um signo é materialmente função dos seus elementos constitutivos, mas


o único meio de definir esses elementos como constitutivos consiste
em identificá-los no interior de uma unidade determinada onde pre-
enchem uma função integrativa. Uma unidade será reconhecida como
distintiva num determinado nível se puder identificar-se como “parte
integrante” da unidade de nível superior, da qual se torna o integrante
(Benveniste, 1995: 133).

E ele continua a sistematizar a distinção entre “constituintes” e “integran-


tes”, para chegar a uma conclusão maior, que coincide exatamente com nosso
projeto:

Qual é finalmente a função que se pode determinar para essa distinção


entre constituinte e integrante? É uma função de importância funda-
mental. Pensamos encontrar aqui o princípio racional que governa, nas
unidades dos diferentes níveis, as relações entre Forma e Sentido.
[...]
A forma de uma unidade lingüística define-se como a sua capacidade de
dissociar-se em constituintes de nível inferior.
O sentido de uma unidade lingüística define-se como a sua capacidade
de integrar uma unidade de nível superior.
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 23

Forma e sentido aparecem assim como propriedades conjuntas, dadas


necessária e simultaneamente, inseparáveis no funcionamento da língua.
As suas relações mútuas revelam-se na estrutura dos níveis lingüísticos,
percorridos pelas operações descendentes e ascendentes da análise e gra-
ças à natureza articulada da linguagem (Ibidem: 134-136).

1.2.2. A cena predicativa das práticas

É chegado o momento de especificar a definição do nível de pertinência das


práticas, que deve obedecer ao princípio anteriormente formulado. As práticas
recebem uma “forma” (constituintes) de sua confrontação com as outras práti-
cas e, por isso, de um lado, integram os elementos materiais dos níveis inferiores
(signos, textos, objetos) para torná-los elementos distintivos e pertinentes e lhes
dar “sentido”, e de outro lado, recebem um “sentido” de sua própria participação
nos níveis superiores (estratégias e formas de vida).
A forma das práticas está ligada a sua dimensão predicativa, que designare-
mos, daqui por diante, como cena predicativa (no sentido em que, na lingüística
dos anos 1960, falávamos da predicação verbal como de uma “pequena cena”)4.
Sob esse aspecto, uma prática pode comportar um ou vários processos (um
ou vários predicados), atos de enunciação que implicam papéis actanciais de-
sempenhados, entre outros, pelos próprios textos ou imagens, por seus obje-
tos-suportes, por elementos do ambiente, pelo transeunte, pelo usuário ou pelo
observador, tudo o que forma a “cena” típica de uma prática. Do mesmo modo,
ela é composta pelas relações entre esses diferentes papéis, essencialmente re-
lações modais, mas também passionais. Enfim, a prática comporta geralmente
uma modificação dos corpos e das figuras, que implica uma sintaxe figurativa.
O conjunto (papéis, atos, modalizações, paixões e sintaxe figurativa) constitui
esse primeiro dispositivo. Ele é centrado (sobre o predicado) e delimitado (pe-
las “valências” actanciais e modais necessárias à atualização desse predicado) e
essas duas propriedades caracterizam a forma da cena.
As ferramentas e as práticas técnicas fornecem o exemplo mais simples
desse tipo de cena predicativa prática: um objeto, configurado de acordo com
um uso determinado, vai desempenhar um papel actancial no interior de uma
prática técnica (cujo uso é a atualização enunciativa), que consiste em uma ação

4 Tratar a predicação como uma “cena”, assim como faziam Tesnière, Fillmore, e como fazem muitos outros hoje
em dia, consiste justamente em restituir, no momento de definir um nível de análise pertinente (o do enuncia-
do frástico), uma dimensão de experiência perceptiva: a sintaxe frástica é uma forma pertinente do plano da
expressão, obtida por conversão formal da experiência de uma “cena”.
24 | Jacques Fontanille

sobre um segmento figurativo do mundo natural (o “substrato” da prática). Nes-


se segmento-substrato, a ferramenta e o usuário estão associados no interior de
uma mesma cena predicativa, em que o conteúdo semântico do predicado é for-
necido pela natureza figurativa do substrato e pela temática da própria prática
(cortar, raspar, aplainar etc.), e na qual esses diferentes atores desempenham os
principais papéis actanciais (Floch, 1995: 181-213).
A integração das práticas ao nível superior, o das estratégias5, será feita sob
outras formas sintagmáticas, já que se trata, em suma, nesse caso, de geren-
ciar as conjunturas e intersecções entre práticas: encadeamentos canônicos ou
idiossincráticos, sobreposições e ajustamentos em tempo real, concorrências e
alianças estratégicas entre práticas concomitantes ou paralelas.
Enfim, para falar como Benveniste, a forma das práticas é predicativa (mais
precisamente processual) e seu sentido é estratégico.

1.3. Contextos, instâncias pressupostas e propriedades


sensíveis e materiais
1.3.1. Contextos

Na perspectiva da integração, o que aparece como “contexto”, a um nível


inferior ao das práticas, forma seu arcabouço predicativo, actancial, modal e te-
mático em seu próprio nível e o que aparece como propriedades sensíveis e mate-
riais não pertinentes, no nível inferior, forma a dimensão figurativa da prática.
O contexto e a substância não são, portanto, pertinentes no nível “n-1”, e
os elementos que comportam, reconfigurados em constituintes pertinentes do
nível “n”, não são mais, desse modo, nem “contextuais” nem “substanciais”.

1.3.2. Instâncias pressupostas

Em outro contexto, o estatuto da enunciação e das instâncias enunciantes,


intensamente discutidas por Jean-Claude Coquet (1994), obedece à mesma dis-
tinção: no nível de pertinência do texto, a enunciação só é pertinente se está ali
representada (enunciação enunciada), enquanto a enunciação dita “pressupos-

5 Sobre a questão da estratégia em semiótica, ver especialmente o prólogo de Eric Landowski em Erik Bertin
(2003) e Landowski (2006). Sobre o “ajustamento” propriamente dito, ver desenvolvimentos mais específicos
em Landowski (2004: 27-32).
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 25

ta” é um puro artefato que não pode ser observado. Mas no nível de pertinência
dos objetos-suportes, e até mesmo no das práticas que os integram, a enuncia-
ção encontra toda sua pertinência: os atores então ganham um corpo e uma
identidade, o espaço e o tempo da enunciação lhes dão uma ancoragem dêitica
e os próprios atos da enunciação podem inscrever-se figurativamente na própria
materialidade dos objetos de inscrição (conforme já dissemos anteriormente
sobre a carta e seu envelope colado ou rasgado).

1.3.3. Propriedades materiais

O nível do objeto-suporte, em seu movimento de integração às práticas, é


um caso exemplar do tratamento das propriedades materiais. Enquanto corpo
material, na verdade, o objeto entra nas práticas e os usos dessas práticas são
em si mesmos “enunciações” do objeto. Sob esse aspecto, o objeto em si só pode
conter traços desses usos (inscrições, desgaste, pátina etc.), ou seja, “vestígios
enunciativos”. Para dar conta de sua “enunciação-uso” global, para além desses
“traços” inscritos, será preciso passar ao nível superior, o da estrutura semiótica
das práticas, em que encontraremos manifestações observáveis dessas enuncia-
ções, elas mesmas analisáveis em conteúdos de significação.
Todavia, o caráter “material” do suporte não significa que ele deva ser obri-
gatoriamente tangível. “Material” deve ser entendido aqui no sentido de Hjel-
mslev, ou seja, como substrato sensível das semióticas-objeto. Ao comparar, por
exemplo, as práticas divinatórias dos romanos e dos dogons, vemos que elas
obedecem claramente ao mesmo princípio: definir no espaço natural um su-
porte de inscrição, limites e direções, e interpretar as trajetórias de animais (o
pássaro para os romanos, a raposa para os dogons) no “modelo de leitura” assim
constituído. No entanto, o modelo romano (o templum) é projetado no céu,
enquanto o dos dogons é traçado no solo. A diferença entre os dois suportes
“materiais”, um terrestre e sólido e o outro aéreo e intangível, pertence à ordem
do sensível e substancial e induz até mesmo diferenças nas potencialidades ex-
pressivas dos dois suportes formais: de um lado, o templum pode explorar uma
terceira dimensão do espaço, a profundidade, ou ainda a velocidade e a duração
da passagem, sem poder, no entanto, conservar o rastro dessas figuras, a não ser
na memória visual; de outro, o modelo dos dogons só pode explorar pegadas
sobre o solo, mas, nesse caso, o suporte as conserva na memória sob a forma de
um vestígio durável.
26 | Jacques Fontanille

Entretanto, esses dois “objetos” de escrita têm direito ao mesmo estatuto de


objeto-suporte, embora suas propriedades sensíveis sejam muito diferentes.

1.3.4. Propriedades sensíveis e passionais

No tratamento das propriedades sensíveis, podemos tomar como exemplo


o caso das paixões induzidas pelos textos-enunciados, os únicos, aliás, que cha-
maram a atenção de Aristóteles, em seu tempo. Na verdade, a semiótica teve
alguma dificuldade para levar em consideração as paixões e as emoções do des-
tinatário. Certamente, elas podem estar inscritas no próprio texto, graças a um
simulacro proposto no enunciado, mas esse caso é muito restrito, se considerar-
mos a amplitude do problema a ser tratado. Realmente, as paixões e as emoções
do destinatário surgem numa prática ou situação semiótica em que o texto é um
dos actantes e, por suas figuras e sua organização, pode produzir ou inspirar esta
ou aquela paixão, esta ou aquela emoção.
Mais tecnicamente, por exemplo, podemos dizer que o ritmo e a construção
de uma frase são um meio de proporcionar ao leitor a experiência de uma emo-
ção ou um percurso somático, sem afirmar, entretanto, que esse mesmo ritmo e
essa mesma construção sintáxica “representam” a emoção e o percurso em ques-
tão. É preciso, então, passar ao nível de pertinência da prática interpretativa, em
que o texto é um vetor de manipulação passional e, entre os esquemas motores
e emocionais “vividos” e “experimentados” pelo leitor, encontra-se aquele que é
induzido pelo ritmo e pela construção sintáxica em questão.
De um modo mais geral, a introdução do sensível e do corpo na análise
semiótica tem ocasionado algumas dificuldades que não foram inteiramente re-
solvidas até o presente momento, e que se atêm ao fato de que esse “sensível” e
esse “corpo” não estão necessariamente representados no texto ou na imagem
para serem pertinentes, especialmente quando se trata de articular a enunciação
em uma experiência sensível e em uma corporeidade profunda.
Não basta, por exemplo, remeter as noções provenientes da “foria” e da
“tensividade”, a uma camada “protossemiótica” para lhes conferir um estatuto
claro e operatório. As valências perceptivas da tensividade, entre outras, foram
freqüentemente criticadas em razão da ausência de qualquer ancoragem, au-
sência que dá a sua utilização imprudente um caráter particularmente especu-
lativo. A “percepção” semântica e axiológica de que tratam faz parte do entorno
substancial (e não pertinente) da enunciação textual. Todavia, no nível superior,
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 27

o das práticas semióticas (as práticas de produção de sentido, as práticas inter-


pretativas, especialmente), elas encontram toda sua pertinência: um universo
sensível é dado à apreensão no interior de tal prática, pelas figuras de um texto,
e é então que as valências desempenham seu papel, como “filtro” práxico da
construção axiológica.
A partir dessa constatação, não é mais suficiente dizer que a enunciação
de um discurso fundamenta-se sobre uma ou várias experiências, mesmo que
o objeto de análise seja a experiência enquanto tal (o sentido experimentado).
Essas mesmas experiências devem ser, por sua vez, configuradas em “práticas”
ou em “situações semióticas” para se tornarem semióticas-objeto analisáveis. De
fato, cada nível de pertinência está associado a um tipo de experiência que pode
ser reconfigurado em constituintes pertinentes de um nível hierarquicamente
superior. A experiência perceptiva e sensorial conduz às “figuras”, a experiência
interpretativa conduz aos “textos-enunciados”, a experiência prática conduz às
“cenas predicativas”, a experiência das conjunturas conduz às “estratégias” etc.
Mas esse esboço de tipologia das experiências é por si mesmo enganoso, porque
antes de sua declinação em “semióticas-objeto” e em níveis de pertinência, a
própria experiência é indivisível e holística e, assim, é a hierarquia dos planos
de imanência que induz retroativamente a uma hierarquização e a uma segmen-
tação da experiência.
A proposta que fazemos coloca em questão diversas estratégias teóricas que
consistem em atribuir a conceitos e operações, necessários à construção teórica,
estatutos epistemológicos ambíguos e pouco operatórios, como “pressuposição”,
“contexto”, “protossemiótica”, “experiência subjacente” etc. Ela consiste em atri-
buir a esses conceitos e a essas operações um nível de pertinência hierarquica-
mente superior, em que são constituintes de uma semiótica-objeto cujo plano
da expressão tem um modo diferente, ou pelo menos é multimodal e polis-
sensorial. Certamente, não estamos ainda querendo identificar e inventariar os
aspectos “observáveis” desses constituintes, mas estamos construindo os meios
para fazê-lo e instalando a restrição que nos incitará a fazê-lo.

1.3.5. Sincretismos e sinestesias

Os sincretismos (conjuntos às vezes denominados “pluricódigos” ou “mul-


timodais”) ou as sinestesias (conjuntos ditos “polissensoriais”) serão submeti-
dos à mesma regra de integração: no nível inferior, aparecem como dispositivos
28 | Jacques Fontanille

formais, que só fazem sentido nas práticas. De fato, seus constituintes (modos
semióticos diferentes, modos sensoriais distintos), no momento de sua redistri-
buição nas diferentes composições predicativas, temáticas e figurativas da práti-
ca, aí encontram um lugar, um papel, ambos interdefinidos.
Por exemplo, no funcionamento de um pictograma como “texto-enuncia-
do”, poderemos apenas observar que coexistem semióticas verbais, icônicas e
objetais, e que estamos lidando com uma semiótica-objeto multimodal. Toda-
via, redistribuídos em uma prática cotidiana ou técnica, cada um dos elemen-
tos dessas semióticas multimodais (compreendidas aí as figuras do pictograma)
desempenha um dos papéis que constituem a cena predicativa (instrumentos,
objetos, agentes etc.), ou incorpora uma das modalizações (dêiticas, espaço-
temporais, factuais) desses papéis.
Outro exemplo: no funcionamento de um “prato” culinário, as diferentes
percepções sensoriais (visuais, táteis, olfativas e gustativas, até mesmo auditivas)
formarão associações polissensoriais se tratamos o “prato” como um “texto” (por
uma espécie de detalhamento de todas as propriedades figurativas e sensoriais).
Se esse detalhamento faz aparecer equivalências entre as ordens sensoriais, po-
deríamos até mesmo chegar a uma “sinestesia”, no sentido tradicional do termo.
Mas, se elevamos a análise a um nível superior, o da prática da degustação, cada
um dos modos do sensível encontrará seu lugar nesse conjunto de operações
colocadas em seqüência (anunciar, prometer, verificar, validar, provar etc.), de
maneira que eles estabeleçam, então, não apenas relações paradigmáticas (equi-
valência e diferença), mas sintagmáticas e predicativas (uns anunciam, prome-
tem ou verificam os outros).
Em suma, e mais particularmente na passagem dos “textos-enunciados” às
“práticas” (pelo nível intermediário dos “objetos” e dos “suportes”), a hierarqui-
zação dos níveis de pertinência permite opor dois modos de análise: (1) o deta-
lhamento, que consiste em uma análise de tipo “distribucional” e formal, que se
restringe à análise de um único nível por vez; (2) o realçamento que se apresenta
como “gerativo”, (conforme o “percurso gerativo do plano da expressão”), graças
à integração entre dois ou mais níveis.
Essa distinção (detalhamento/realçamento) exprime, entretanto, o fato de
que, a cada passagem ao nível superior, acrescentamos uma dimensão ao plano
da expressão. Do signo ao texto-enunciado, acrescentamos a dimensão “tabular”
e a consideração da superfície (ou do volume) de inscrição: essa superfície ou
volume de inscrição é dotada de regras sintagmáticas para dispor as figuras (um
tipo de modelo virtual).
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 29

Do texto-enunciado ao objeto (sobretudo objeto-suporte), acrescentamos a


dimensão da espessura (portanto, do volume) e da complexidade morfológica do
próprio objeto (envelope/estrutura material). Essa nova dimensão (a “espessu-
ra” e complexidade materiais) implica principalmente, do ponto de vista semi-
ótico, propriedades de “resistência” ao uso e ao tempo e, de forma mais geral, a
“corporeidade” das figuras semióticas.
Do texto-enunciado e do objeto à prática, acrescentamos a dimensão do es-
paço tridimensional de uma cena, assim como outras propriedades temporais
(“aspecto” e “ritmo” da prática, sobretudo) etc. Nesse caso, são estruturas espa-
ciais e temporais independentes do texto e do objeto que acolhem, localizam e
modalizam as interações entre os participantes da prática: podemos então, com
propriedade, falar aqui de uma dimensão “topocronológica” da cena predicativa.
Essa progressiva autonomização das propriedades espaço-temporais em relação
às figuras pertinentes (atores, objetos etc.) conduz às estratégias, no sentido em
que, nesse caso, são regimes temporais e dispositivos espaciais igualmente “abs-
tratos” que determinam tipos de ajustamento entre práticas.

1.4. Retóricas ascendentes e descendentes


Até o presente momento, vimos as operações de integração na estrita ob-
servância do princípio definido por Benveniste, que apenas se interessava pela
análise e pela articulação das linguagens. Consideremos agora esse princípio
como um modo de integração progressiva canônica e um modo de referência:
os textos integram as figuras, os objetos integram os textos, as práticas integram
os objetos, etc. É assim que funciona o percurso gerativo da expressão, contanto
que ninguém tente modificá-lo ou desorganizá-lo.
Entretanto, como todo percurso canônico, ele está sujeito a numerosas va-
riações, decorrentes das enunciações e dos usuários, sendo preciso agora, conse-
qüentemente, levar em consideração a dimensão retórica desse percurso. Desse
ponto de vista, a integração canônica será definida como integração ascendente.
Mas encontraremos também movimentos inversos (integração descendente) e
integrações irregulares, entre níveis disjuntos, que designaremos como integra-
ções sincopadas ou, simplesmente, como síncopes ascendentes ou descendentes.
30 | Jacques Fontanille

1.4.1. Integrações e síncopes ascendentes

As síncopes ascendentes consistem em “saltar” um ou mais níveis no per-


curso de integração canônico. Por exemplo, a “desmaterialização” do suporte
da escrita, que suprime o nível do objeto e nos faz passar diretamente do texto
à prática. Sabemos que é preciso desconfiar dos discursos sobre a “desmateria-
lização” de nossa vida cotidiana, mas as formas de pagamento eletrônico, por
exemplo, se não suprimem o objeto próprio à prática (o cartão magnético, por
exemplo), oferecem, no entanto, uma alternativa aos suportes de inscrição das
unidades do valor monetário (dinheiro em espécie). Por outro lado, como a
lingüística estrutural ignorou sistematicamente o estatuto material do discurso
verbal oral, a maior parte das análises das interações orais baseia-se nessa mes-
ma síncope “desmaterializante”, que “desencarna” as práticas linguageiras, e que
deve evidentemente ser recolocada em questão.
A síncope ascendente pode ser ainda mais radical. Ignorando todos os ní-
veis anteriores, ela permite a um dos níveis do percurso assumir sua autonomia
e parecer “originário”: assim, encontraremos objetos sem figuras-signos nem
textos aparentes, como a maioria das ferramentas ou das máquinas. Essa última
possibilidade leva-nos, aparentemente, aos limites do domínio tradicionalmen-
te atribuído à semiótica, já que confere um estatuto semiótico a manifestações
sociais e culturais que, no limite, podem não comportar nenhuma “figura-sig-
no”, nenhum “texto-enunciado” e, a fortiori, não têm relação com nenhuma ma-
nifestação verbal.
Do mesmo modo, poderíamos tentar reconhecer práticas sem objeto mate-
rial, diretamente ancoradas em uma “topocronologia”, como a dança ou a mími-
ca. Mas, além do fato de que a dança implica um texto musical, não poderíamos
esquecer que essa topocronologia é uma estrutura de apoio que dá significado
aos corpos. Certamente, não são “objetos” no sentido corrente, mas verdadeiros
“sujeitos” que, entretanto, são suportes de inscrição: a expressão coreográfica
consiste justamente em inscrever figuras nos corpos dos dançarinos, como se
fossem, aliás, corpos-objeto.
Enfim, tais síncopes ascendentes não invalidam a hierarquia dos níveis de
pertinência na medida em que, no sentido da integração descendente (como
demonstraremos a seguir), essas ferramentas ou essas práticas podem ser objeto
de uma notação ou de uma representação textual, seja anterior (um texto ou
uma imagens de prefiguração, o esquema gráfico de uma ferramenta, por exem-
plo) ou posterior (textos e imagens de representação, por exemplo, a foto de um
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 31

móvel pré-fabricado em um manual de instrução). Na verdade, às vezes é bem


difícil, na ausência de uma investigação genética, saber se estamos diante de
“prefigurações” ou “representações”, considerando que aquilo que para alguns
parece uma representação a posteriori, seria para outros apenas uma prefigura-
ção a priori. No entanto, ainda que seja problemática, a distinção entre inscri-
ções de prefiguração e inscrições de representação conduz a uma tipologia dos
modos retóricos da integração entre níveis.

1.4.2. Integrações e síncopes descendentes

Cada nível superior pode manifestar-se nos níveis inferiores, segundo o


percurso de integração descendente. A integração ascendente atua por comple-
xão e por acréscimo de dimensões suplementares, enquanto a integração des-
cendente atua por redução do número de dimensões. Mas os dois percursos não
são contrários um ao outro: na integração ascendente, um texto estará inscrito
num objeto e manipulado em uma prática; na integração descendente, uma prá-
tica estará emblematizada por um objeto, ou encenada num texto. A diferença
entre os dois percursos baseia-se na reciprocidade dos percursos de integração:
a prática integra um texto (direção hierárquica ascendente), o texto integra uma
prática (direção hierárquica descendente).
O caso da dança é particularmente interessante porque, de um lado, corres-
ponde perfeitamente aos critérios de uma prática, esquematizável como “cena
predicativa” e, de outro lado, integra evidentemente, como insiste Landowski
(2004: 155), os “ajustamentos” entre os corpos em movimento. Ora, os ajusta-
mentos espaço-temporais decorrem das estratégias, e quando falamos de ajus-
tamento entre corpos em movimento, seria preciso, para sermos mais claros,
falarmos de ajustamento entre práticas que implicam corpos em movimento
(que é o caso da maioria das situações da vida cotidiana). De fato, a dança é
uma prática (de deslocamento) mais ou menos codificada que integra (na di-
reção descendente) formas de ajustamento estratégico e que, a partir do que
se apresenta na vida cotidiana como ajustamentos entre práticas autônomas e
concorrentes, constrói uma só prática para dois ou mais corpos. Portanto, assim
como as práticas podem ser “textualizadas” em tipos de textos específicos, as
estratégias podem ser “praticadas”, em tipos de práticas específicas.
32 | Jacques Fontanille

1.4.3. Integrações intensivas e extensivas

1.4.3.1. Condensações e desdobramentos

O caso das prefigurações e representações textuais das práticas convida-nos


a levar em consideração uma outra dimensão dos procedimentos de integração.
A integração descendente, de fato, apresenta-se como uma condensação, devido à
perda de um certo número de propriedades. De modo inverso, a integração ascen-
dente produz um desdobramento, devido ao aumento do número de dimensões.
Além disso, se admitimos que do ponto de vista retórico, que é o nosso, os
movimentos de integração não respeitam necessariamente um procedimento
canônico, então é possível considerar que essas duas operações sejam graduais,
segundo a importância da perda ou do ganho. Em outras palavras, a condensa-
ção e o desdobramento são modos operatórios respectivamente de integração
descendente e de integração ascendente, mas, tanto numa direção como na ou-
tra, o modo operatório varia entre um mínimo e um máximo. Por exemplo, na
direção da integração descendente, a “prefiguração” beneficia em geral um grau
de condensação superior à “representação”, como mostramos anteriormente.

1.4.3.2. Otimização e simbolização

A integração descendente não condensa portanto, necessariamente, as for-


mas de vida, as estratégias e as práticas. Ela pode ter, por exemplo, uma seg-
mentação canônica, como num manual de instrução, que gerencia em extensão
a textualização de uma prática; ela pode também visar uma extensão sincrética
(multimodal, compreendendo texto verbal, imagens, emblemas, esquemas) com
valor didático, como nos manuais. Ela pode até ter uma extensão “explicativa”,
com comentários e análises (como num relatório de uma observação etnográfi-
ca ou de uma experiência científica).
Nesses casos de integração descendente extensiva (especialmente quando
uma estratégia ou uma prática são assumidas em um texto), “gêneros” espe-
cíficos impõem suas regras de enunciação e de composição (ou seja, regras de
integração descendente): esses gêneros são, por exemplo, receitas de cozinha,
indicações de uso, manuais de instrução, discursos eruditos ou técnicos que
funcionam, em relação às próprias situações, como discursos de instrução – so-
bre a receita de cozinha, Greimas falava, mais especificamente, de “discursos de
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 33

programação” (1973). Todos esses casos de integração descendente extensiva


visam globalmente um mesmo objetivo: a otimização da representação. A oti-
mização (sobretudo textual) é a versão mínima da condensação das práticas (na
integração descendente), a ponto de tanger o desdobramento.
Por outro lado, as síncopes aumentam a perda ou o ganho e participam
dessa variação gradual. Ademais, elas suscitam uma tensão que reclama por si
mesma uma compensação: esse mecanismo interpretativo revela, de fato, a soli-
dariedade entre condensação e desdobramento.
Por exemplo, no caso de síncope descendente, uma forma de vida (ideologia,
crença, narrativas, mitos etc.) pode ser condensada e representada (ou prefigu-
rada) em um só rito (uma prática particular), ou ainda, em uma só figura. De
certo modo, é a essa síncope e a essa condensação que Pascal recorre, quando
preconiza: colocai-vos de joelhos, rezai e crereis. Uma forma de vida completa
encontra-se aí ao mesmo tempo condensada figurativamente em uma prática
cotidiana, a prece – talvez mesmo no texto e seu suporte corporal –, pois essa
prática pode engendrar, por si mesma, uma reorganização completa da forma
de vida. Em suma, o conjunto do processo só é “eficaz” se a síncope descendente
(a condensação da forma de vida em prática ou em texto) provocar uma tensão
semiótica que se resolva em uma reorganização ascendente (da prática para a
forma de vida).
Guardadas as devidas proporções, o logotipo de uma marca obedece for-
malmente aos mesmos princípios da síncope descendente e de condensação.
No entanto, como se trata de um “texto”, ou até mesmo de uma simples “figura”,
essa condensação é produzida por uma síncope de maior amplitude, que produz
dessa vez um efeito de simbolização: o logotipo manifesta então, sem media-
ção, tanto uma cena figurativa típica (um texto), uma prática (a missão da mar-
ca), quanto uma forma de vida (valores, um estilo estratégico etc.). Da mesma
maneira, a eficácia estratégica dessa condensação depende de sua capacidade
de produzir uma tensão problemática, que leva à reorganização interpretativa
ascendente. A simbolização é, portanto, a versão mais radical da condensação,
com síncope descendente.

1.4.4. Movimentos combinados

O próprio princípio da integração faz com que os textos inscritos nos obje-
tos, eles mesmos implicados nas práticas, não tenham o mesmo estatuto, nem
34 | Jacques Fontanille

tenham todos o mesmo “sentido”. O texto literário, inscrito em um livro, em ge-


ral não diz nada sobre a maneira como é preciso organizar a prática na qual ele
funcionará como texto, em contrapartida, o manual de instrução, de um kit de
montar, descreve e organiza a prática da montagem. O primeiro texto está inte-
grado somente na direção ascendente, de maneira canônica, enquanto o segun-
do é objeto de um duplo movimento: (1) a prática está integrada ao texto como
prefiguração discursiva (na direção descendente), e (2) o texto obtido integra-se
ao objeto e à prática que o constrói, como inscrição (na direção ascendente).
Podemos perceber então que, além do valor metodológico e teórico da hie-
rarquia dos níveis de pertinência, esse percurso do plano da expressão oferece
grandes oportunidades heurísticas, graças à combinação e ao seqüenciamento
dos diferentes percursos de integração ascendente e descendente.
A etnologia médica explora muito freqüentemente práticas terapêuticas
africanas que combinam, de fato, várias operações. A perturbação patológica
de um indivíduo, manifestada por signos (nível 1, o das figuras), é considerada
coletivamente, ao longo de uma cena codificada e quase-ritual (nível 4, o das
práticas). Um dos momentos-chave dessa cena é a produção de um objeto (nível
3, objetos) que condensa ao mesmo tempo a perturbação psíquica e/ou corpo-
ral e a busca coletiva de uma solução. O próprio objeto suscitará verbalizações
(nível 2, textos), e outras fases rituais (nível 4, práticas) etc. Enfim, a eficácia do
conjunto depende de crenças partilhadas, de uma maneira de ser conjunta, de
interações habituais que se baseiam em uma mesma forma de vida (nível 6). Os
movimentos de integração invertem-se e as síncopes sucedem-se nas duas dire-
ções: o nível de análise pertinente é a terapia, enquanto estratégia (nível 5), mas
essa terapia percorre e relaciona todos os níveis de pertinência, representando
no eixo sintagmático diversos agenciamentos sincréticos.
Conforme o caso, a integração é mais ou menos figurativa, mais ou menos
intensiva ou extensiva, e combinada ou não a síncopes de maior ou menor am-
plitude. Em certas combinações, essas integrações descendentes têm uma di-
mensão incitativa ou prescritiva, em outras, simbólica ou mesmo mágica, mas
em todos os casos, elas participam dos efeitos didáticos, persuasivos, conotati-
vos e/ou metassemióticos.

1.4.5. O caso das Ligações Perigosas (Laclos)

A esse respeito, gostaríamos de examinar um caso muito particular de inte-


Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 35

gração descendente, tomado da literatura6. O romance epistolar de Choderlos de


Laclos (2008), As Ligações Perigosas, inicia-se de fato antes da apresentação das
próprias cartas, por uma “Advertência do editor” e por um “Prefácio do redator”.
A Advertência do editor questiona a “autenticidade” da coletânea de cartas
e, sobretudo, na forma de uma evidente antífrase, a verossimilhança dos costu-
mes que ali estão encenados.
Já o Prefácio do redator detém-se longamente sobre os processos de com-
posição da coletânea: a seleção e a ordenação das Cartas, das proposições e das
tentativas de abreviação ou de modificação estilística de algumas delas (recu-
sadas por seus autores, dizem). Em seguida aborda os objetivos e as possíveis
recepções dessa publicação: prevenir os leitores contra pessoas de má reputação,
apresentar as estratégias de corrupção para suscitar resistências e contra-estra-
tégias. Além disso, o “redator” lança-se a um curioso exame dos antileitores
(aqueles a quem o livro desagradará): os depravados, os puritanos, os céticos,
os sensíveis etc.
Em suma, esse dispositivo mostra a hierarquia concreta (actorial) que re-
cobre o que convém chamar de “enunciação pressuposta” do romance: autores
que produzem as cartas, um redator que as escolhe, retoca e ordena, e um editor
que publica o conjunto. E, ao fazer isso, integra vários níveis de pertinência: (1)
enunciadores dirigem-se a enunciatários por via epistolar; (2) o redator apresen-
ta as cartas no interior de uma prática literária (escolha, reescrita, composição
etc.) cujos parceiros são predefinidos: (a) autores que ainda têm direito sobre
seus enunciados, (b) um redator, que apresenta seu ethos, revela as razões de
suas escolhas e define a temática da manipulação principal e (c) uma série de
tipos de leitores, que resistem a essa manipulação por razões que lhes são pró-
prias; (3) o editor instala também um jogo de papéis: diante dele, não encontra-
mos “leitores” (que são os parceiros habituais do redator), mas um público, ou
seja, um ator coletivo suscetível de comprar a obra e de confrontá-la com outras
informações e experiências, de outra natureza que não a da leitura. Seu discur-
so trata essencialmente da não-concordância entre essas experiências e aquela
que será proporcionada pela leitura da obra: o redator teria reunido as cartas,
expressando costumes de outro lugar e/ou de outra época, para fazê-los passar
por costumes atuais e franceses. Desse modo, seu discurso diz respeito ao “ajus-
tamento” entre práticas distintas e entre as experiências que lhes correspondem:
o argumento da inautenticidade e do descompasso supõe que aqui mudamos de

6 Esse exemplo nos foi fornecido por Yasuhiro Matsushita (2005), doutor pela Universidade de Limoges, em sua
tese consagrada aos paradoxos da enunciação e da perspectiva na literatura e na pintura.
36 | Jacques Fontanille

nível de pertinência e que nos referimos à congruência e ao ajustamento estra-


tégicos. Em suma, denunciando a incongruência do quadro dos costumes que
se constituirá quando da leitura do livro, em relação às observações e às práticas
cotidianas e contemporâneas dos leitores, o Editor nos faz passar para o nível
das “conjunturas” e das “estratégias”.
A integração descendente, que permite “textualizar” ao mesmo tempo a es-
tratégia (editorial e comercial), a prática (redacional) e a troca epistolar, vem
acompanhada de vários efeitos importantes.
A primeira conseqüência disso é uma segmentação do texto do romance em
três “gêneros” de discurso diferentes, a advertência, o prefácio e as cartas, o que
coloca grandes problemas àqueles que quiserem discernir quais os limites do
“texto”. Essa diferença de gêneros permite também compensar o detalhamento
do dispositivo semiótico: inseridos no interior de um mesmo texto, as diferentes
instâncias, que são a estratégia, a prática e o texto-enunciado, ainda são reconhe-
cíveis e hierarquizáveis por seu gênero (advertência, prefácio e cartas).
Formalmente, segundo a concepção tradicional dos “planos de enunciação”,
esses três gêneros fazem parte de três enunciações que se encaixam uma na ou-
tra. Entretanto, as coisas parecem um pouco mais complexas, quando observa-
mos que esses planos de enunciação não são “estanques” e que certo número de
interações é admitido: (1) o redator propõe aos autores das cartas algumas mo-
dificações, que são recusadas; (2) o redator julga o comportamento dos autores
das cartas enquanto atores dos costumes relatados; (3) o redator procura per-
suadir com sua boa fé e sua sinceridade o conjunto de seus leitores potenciais,
inclusive o editor; (4) o editor julga inautêntico o texto proposto pelo redator e
não se deixa, portanto, persuadir.
Desse modo, não podemos considerar que esses diferentes planos de enun-
ciação são simples “camadas” autônomas. Sob certas condições, todas essas
enunciações interagem entre si: essa condição é a da integração ascendente ou
descendente. É assim que, por exemplo, o redator e os autores podem corres-
ponder-se, porque, nesse momento, fazem parte da mesma prática (a da revi-
são/composição da coletânea). E mais, o editor e o redator só podem corres-
ponder-se de maneira unilateral, na medida em que o primeiro não admitiu o
segundo como parceiro no dispositivo estratégico que avalia.
Em suma, somos levados a considerar que o mesmo ator pode desempenhar
papéis temáticos e actanciais diferentes segundo o nível de pertinência no qual
os apreendemos. Assim, os “autores” das cartas são: (1) nas cartas, enunciadores
para enunciatários e protagonistas; (2) no prefácio, autores responsáveis para o
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 37

redator e os leitores e (3) na advertência, pessoas que testemunham os costumes


para o editor e o Público.
Essa integração descendente produz, entretanto, uma confrontação que per-
manece indeterminável, entre a “verossimilhança” e a “verdade” dessas cartas. O
redator confessa ter sacrificado, contra sua vontade, a verossimilhança (compo-
sicional, estilística) em prol da verdade: ele teve que conservar as “verdadeiras”
cartas escritas por seus autores. O editor denuncia a “autenticidade” (a verdade)
a partir de um erro de verossimilhança (a não-congruência entre os costumes
da atualidade e aqueles encenados). Esse confronto só se resolve (quem tem
razão?) devido à integração descendente, que os situa no mesmo texto, mas se
reorganizamos todos esses papéis nos níveis de pertinência superiores, não nos
surpreendemos mais com o fato de que, na perspectiva ética (a do redator), a
verossimilhança e a verdade confrontem-se e que, na perspectiva da estratégia
editorial e comercial, a primeira determine a segunda.
Essa encenação é, por si mesma, própria de uma época e de uma cultura, em
que as mises en abîme e as enunciações encaixadas são particularmente preza-
das, tudo o que uma crise da representação literária envolve. Ela desenvolve uma
espécie de “metassemiótica” do texto de ficção, em que podemos reconhecer ao
mesmo tempo uma estética, uma ética e uma ideologia da produção literária.
Enfim, fazendo eco aos diversos papéis dos atores enunciadores, ela oferece
ao leitor-usuário um percurso de manipulação-identificação particularmente
sofisticado, encenando-lhe, em três estratos sucessivos, sua “apresentação do as-
sunto”: público da edição, leitor da obra redigida e narratário indiscreto da ficção
epistolar. Esse percurso é em si mesmo inevitável, mas sua inscrição no texto
problematiza-o e permite, pelo confronto indecifrável das posições, submetê-lo
a uma avaliação crítica.

1.4.6. A retórica dos níveis de pertinência

Essas inversões e síncopes do percurso de integração dos níveis de perti-


nência constituem, assim, operações retóricas, que agem sobre expressões para
induzir conteúdos e valores problemáticos e para suscitar tensões que deman-
dam resolução.
As inversões do movimento de integração e as síncopes que o afetam pro-
duzem substituições, tensões e competições entre os diferentes níveis da expres-
são e variações dos modos de existência (virtualização, potencialização, atuali-
38 | Jacques Fontanille

zação e realização). O conjunto – tensões e competições para chegar ao plano


da expressão, resoluções e reorganizações graças às modificações dos modos de
existência – constitui a base conceitual da dimensão retórica na perspectiva de
uma semiótica tensiva (Bordron; Fontanille, 2000).

1.5. A argumentação e a arte retórica como “práticas”


A construção de uma semiótica das práticas conduz ao mesmo tempo a
descobrir novos domínios de investigação e a ver de uma outra maneira os do-
mínios que acreditávamos conhecer ou dominar. O discurso persuasivo faz par-
te da segunda categoria.
O discurso persuasivo é apreciado no nível do texto, mas a argumentação, da
maneira como é considerada pela retórica geral, é uma prática e a pertinência de
cada argumentação particular só pode ser estabelecida no âmbito de uma estra-
tégia. O próprio “texto” da argumentação só nos permite levantar hipóteses acer-
ca do funcionamento das estratégias argumentativas, acerca das coerções que ele
impõe a essas estratégias (ou, inversamente, acerca das escolhas textuais que estas
impõem) ou, no limite, esboçar “simulacros” dos parceiros da interação.
O silêncio persistente da teoria semiótica sobre a argumentação e a retórica
geral não se explica somente pelo caráter “pré-científico” das disciplinas que
ainda as estudavam nos anos 1970 ou 1980. De maneira significativa, o verbete
“retórica”, no Dicionário I de Greimas e Courtés, só considera como pertinentes
a dispositio (reduzindo-a à segmentação), a inventio (reduzindo-a ao estudo da
tematização) e a elocutio (reduzindo-a ao estudo da figuratividade). Mas a retó-
rica como “práxis” só começa a merecer a devida atenção no fim dos anos 1990,
quando a dimensão retórica da “práxis enunciativa” é levada em conta pelos
semioticistas. Entretanto a “práxis” enunciativa, nesse período, ainda não faz
nenhuma referência a uma teoria das “práticas”. Na verdade, para poder falar
com alguma eficácia da argumentação e da retórica, é preciso poder convocar,
além do texto persuasivo, a cena do embate, a prática da influência em geral e
tratá-las como semióticas-objeto completas.
Sob esse aspecto, o “texto” persuasivo é apenas um dos elementos da prática
argumentativa, já que devem ser levados em conta: (1) os respectivos papéis dos
parceiros, que se definem em termos actanciais e em termos de papéis temáticos
e figurativos; (2) o ethos preliminar do enunciador, tal como é percebido pelo
enunciatário, que não pode reduzir-se a uma competência e que compreende
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 39

também isotopias figurativas e temáticas, posições axiológicas e “simulacros”


modais e passionais; (3) a representação preliminar do enunciatário pelo enun-
ciador (de composição semelhante à do “ethos”); (4) uma cultura comum que
define gêneros, topoi, modos de raciocínio, aceitáveis ou não, adaptados ou não,
ou seja, um certo número de regras para a interação argumentativa, que fixam
ao mesmo tempo conteúdos semânticos e processos sintagmáticos, eventual-
mente em uma perspectiva normativa.
Nessas condições, a própria prática argumentativa obedece ao princípio da
integração:

(1) No nível “n”, ela tem uma “forma”, a da cena predicativa, que compreen-
de papéis actanciais, sua identidade modal e temática relativa e os predicados
típicos do ato persuasivo;

(2) No nível “n+1”, ela encontra seu “sentido” em uma estratégia, que im-
plica o tempo, o espaço e os atores suplementares (já que “culturas” e “grupos
sociais” são evocados). Essa “estratégia” leva principalmente em conta a memó-
ria coletiva das interações argumentativas anteriores e a identidade construída
e adquirida dos parceiros.

Na prática argumentativa, todos esses elementos interagem e a compreen-


são do discurso persuasivo fica incompleta se não podemos apreciar, especial-
mente, o efeito do ethos do orador sobre a força dos argumentos. Perelman e
Olbrechts-Tyteca (2005)7 mostraram que o ethos do orador podia enfraquecer
ou reforçar os argumentos que ele utiliza e, inversamente, que o valor de seus
argumentos modifica seu ethos: é o que ele chama de efeito “bola de neve”. In-
vocar a “força” dos argumentos é invocar sua eficácia persuasiva, que é preciso
então distinguir de sua “forma” persuasiva: esta é observável e pertinente no
texto, enquanto aquela só é observável e pertinente na prática, em função das
reações do auditório.
Do mesmo modo, devemos levar em conta os efeitos da representação do
auditório sobre a escolha dos topoi e dos modos de argumentação: o auditório
“ideal” é uma construção do discurso, embora resulte da análise e da adaptação
entre seu “perfil” presumido e os topoi ou tipos de argumento que convêm a
esse perfil.

7 Todas as menções e proposições que remetem, neste estudo, aos trabalhos de Perelman fazem referência a essa
obra.
40 | Jacques Fontanille

Portanto, as interações podem tornar-se extremamente complexas, já que,


por exemplo, se a escolha dos argumentos pode ter um efeito sobre o ethos do
orador, e se a escolha dos argumentos depende de uma análise das expectati-
vas do auditório, então, por fim, as construções da “imagem do auditório” e da
“imagem de si mesmo” são ligadas por transitividade. Entretanto, só podemos
dar conta dessa transitividade (e reciprocidade) das interações indo e vindo en-
tre o texto persuasivo e o “fora do texto”, isto é, situando-nos no nível dos ele-
mentos actanciais, temáticos e modais da própria prática.
A seleção dos topoi, sobretudo, depende estritamente dessas interações prá-
xicas, já que, definitivamente, ela comprova as respectivas ideologias dos parcei-
ros da argumentação e a intersecção negociável entre as ideologias dos três pa-
péis identificados por Christian Plantin (1996): Proponente/Oponente/Terceiro
controle. Se um dos parceiros utiliza, de preferência, topoi da quantidade (maior
número vale mais que pequeno número) e se o outro apenas se sensibiliza pelos
argumentos da qualidade (o brilho, a raridade e a excelência valem mais do que
o grande número), então o orador tem apenas duas soluções: (1) uma estratégia
de compromisso em que ele só utilizará os topoi da quantidade na medida em
que forem compatíveis com o brilho e a excelência; (2) ou uma estratégia de
distância enunciativa, em que graças a um jogo polifônico de menções e alusões,
ele assumirá os topoi da quantidade por uma “voz” debreada, o que lhe permi-
tirá não comprometer seu ethos aos olhos de seu parceiro.
A negociação da intersecção axiológica só pode ser descrita no nível da prá-
tica, pois no texto apenas poderemos observar argumentos de compromisso, ou
eventuais descompassos entre planos de enunciação. Desde que tentemos dar
conta deles em termos de tensões entre valências inversas (a valência de inten-
sidade e a valência de quantidade), instauramos ipso facto a cena predicativa da
prática, já que apenas os parceiros da prática argumentativa e, não as instâncias
enunciantes do texto unicamente, estão em condições de perceber essas varia-
ções graduais das valências intensivas e extensivas e, portanto, assumir, entre
outras, as posições axiológicas extremas, definidas por essas duas valências. Em
suma, a apreciação das “valências” é um ato que está ancorado na prática, en-
quanto os valores diferenciais que daí decorrem são propriedades do texto.
A questão da “presunção” é também muito complexa: na realidade, as ex-
pectativas do enunciatário, assim como a reputação do enunciador, só podem
ser “presunções”. No gênero judiciário cada um dos dois parceiros pode atribuir
ao outro “prejulgamentos” em relação à causa a ser estabelecida e julgada: são
sempre presunções e sabemos que tais presunções enfraquecem os argumentos
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 41

que o orador utiliza, já que parecem assim mais determinados pelos prejulga-
mentos a ele atribuídos do que pelo preocupação com a verdade ou com a eficá-
cia do intercâmbio em curso.
No texto, as presunções podem funcionar como simples pressupostos, re-
construíveis a partir de enunciados produzidos: é o caso de todo argumento, por
exemplo, que “faz como se” o acusado já fosse mais ou menos considerado como
culpado, ou de uma maneira mais vaga, como “condenável”.
O estatuto dos pressupostos (e da maioria dos implícitos) poderia com van-
tagem ser reconsiderado à luz das práticas, o que lhe permitiria desfazer-se de
sua definição atualmente muito logicista (por ser indevidamente muito textual).
De fato, o pressuposto resulta, no texto, de um simples cálculo semântico, cujo
produto é considerado virtual. Ao contrário, na prática a presunção é uma atri-
buição de crença ou de “prejulgado”, por um dos parceiros ao outro, e nada mais
tem de virtual. Essa atribuição tem o caráter quer de um julgamento, quer de
um simulacro passional, projetado sobre o outro, e modalizado (crer, poder ser,
querer ser etc.), o que diz respeito a um ato estratégico e não mais a um cálculo
semântico.
Perelman observa, por outro lado, que para neutralizar antecipadamente
toda presunção, aquele que quer criticar deve obrigar-se a elogiar no início, e
aquele que quer elogiar deve dar espaço à crítica e à reserva. Estratégia para-
doxal que, no texto, só poderíamos compreender, depois de ter constatado a
coexistência de duas posições contrárias, como o efeito de uma ética da medida,
do justo equilíbrio.
No entanto, como esclarece Perelman, a justa medida e o sentido do equi-
líbrio são apenas efeitos secundários e superficiais (no texto) de uma estratégia
mais profunda e mais sofisticada (na prática): trata-se de dissuadir previamente
o auditório de atribuir ao orador prejulgamentos desfavoráveis (quando ele quer
criticar) ou favoráveis (quando ele quer elogiar), de inibir um tipo de contra-
estratégia e rotina defensiva que todo auditório pode apresentar.
Em suma, essa estratégia tem por objetivo separar, de um lado, a apreciação
que o auditório fará sobre os argumentos e, de outro, a que ele já faz sobre as
opiniões presumidas do orador: como diz Perelman, trata-se de “frear” a ligação
entre o ato (os argumentos) e a pessoa (os prejulgamentos e o ethos). Mas, na
perspectiva que definimos, trata-se também de “frear” a ligação entre o conteú-
do dos argumentos (o que podemos observar no nível textual) e o ethos adqui-
rido pelo orador (o que só podemos observar no nível práxico).
As estratégias que tratam das presunções apóiam-se, portanto, em parte
42 | Jacques Fontanille

sobre a maior ou menor solidariedade entre o texto (seu conteúdo, sua forma,
seus argumentos, sua credibilidade) e os outros elementos da prática. E, se há
estratégia, é a da integração ascendente e descendente e das síncopes que podem
mascarar ou suspender essa integração. Isso seria, de algum modo, uma prova
particular (limitada ao domínio argumentativo) da existência e da eficiência do
percurso de integração tal como o definimos, cujas modificações pertencem,
justamente, à retórica geral. As “frenagens” e “rupturas” descritas por Perelman
a respeito da prática argumentativa podem então ser aqui definidas como es-
tratégias retóricas, que consistem em fortalecer ou enfraquecer a integração as-
cendente ou descendente entre o texto persuasivo e a prática argumentativa, ou
ainda, a situação englobante.
Também podemos dizer, como Denis Bertrand (1999), e na esteira de Aris-
tóteles, que “a argumentação está situada no tempo”, embora esse tempo seja o
de uma prática discursiva e não o de um texto-enunciado.
Na verdade, a adesão do ouvinte ao discurso oscila em função da rapidez ou
da lentidão, da urgência ou da demora, e “leva algum tempo”, um tempo incom-
primível, mas elástico. A argumentação pode ser repetida, interrompida, retoma-
da: esse tempo não é o do texto, mas o da ação, isto é, o da práxis enunciativa.
Além disso, cada discurso argumentativo visa uma fase que lhe é posterior:
a crença, a adesão, a decisão e a ação deveriam suceder à argumentação, se ela
fosse eficiente. Mas a passagem à decisão ou à ação pode ser retardada: uma
estrutura aspectual permite então estruturar o tempo argumentativo que, aqui
também, ultrapassa não só o texto, mas sua enunciação prática, já que leva a um
programa de ação mais amplo, em cujo âmbito ela está compreendida.
Esses dois primeiros tempos podem estar eventualmente e parcialmente
manifestados no texto, mas apenas sob a forma de simulacros, de representações
virtuais ou projetadas: o texto, efetivamente, pode representar esses tempos da
prática argumentativa, mas unicamente em razão das possíveis integrações des-
cendentes que permitem a “textualização” dos níveis de pertinência superiores.
Além disso, a argumentação pode a qualquer momento ser distendida no
tempo, por digressões (que “ocupam” o tempo), por mudanças de nível (espe-
cialmente os metacomentários). O tempo torna-se então uma “substância estra-
tégica”. Na verdade, enquanto no texto essas flutuações temporais só aparecem
como variantes figurativas, na cena prática elas constituem manipulações cog-
nitivas e passionais do enunciatário. Do mesmo modo, quando a tática argu-
mentativa organiza a ordem dos argumentos (no texto), ela age sobre o tempo
da adesão, das resistências e das aceitações (na cena prática), pois se trata de
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 43

modular não só a ordem textual, mas a força relativa dos argumentos.


Todavia, os grandes gêneros da retórica também são, sobretudo, maneiras
diversas de nos situar no tempo, por intermédio da seqüência narrativa, em que
cada um ocupa uma etapa (Bertrand, 1999):

(1) O deliberativo é voltado para o futuro, para o que se deve realizar, para a
programação de ações a praticar, ele antecipa e prevê. São muitos os gêneros de
discurso que exploram essa direção do tempo: debate, sermão, discussões para
“mudar o mundo”, tentativas de prospecção, utopia política, previsão do tempo;

(2) O epidítico ocupa-se do presente (eventualmente expandido) dos valo-


res: qualquer que seja a posição temporal do ato ou da pessoa que vai avaliar,
é sempre o que ele ou ela vale, no momento em que é enunciado, encenado,
atualizado, apresentado vivo a um espectador. São todos aqueles gêneros esta-
belecidos sobre a axiologia do presente e “em presença”: pregação, ditirambo,
apologia, cumprimento, brinde, felicitações, ofensa, elogio;

(3) O judiciário dispõe sobre o passado, mede a conclusão das coisas e,


retrospectivamente, relaciona as ações a suas intenções e objetivos anteriores,
assim como o conjunto dos julgamentos da mesma natureza, cuja memória a
coletividade guardou: a história, a pesquisa, o jornalismo investigativo, a defesa
e a acusação, são gêneros dele derivados8.

Fica bem claro que essas três orientações temporais (prospectiva, presenti-
ficante e retrospectiva) só funcionam no âmbito da prática argumentativa, e se
elas propõem alguma escolha temporal no próprio texto (o que não é garanti-
do), sua compreensão narrativa não pode nele residir inteiramente. No texto,
por exemplo, o gênero judiciário pode apresentar-se tão simplesmente como
um relato (fatos a reconstituir), e é somente na prática englobante que ele assu-
mirá toda sua dimensão de sanção.
De uma maneira mais abrangente, se existe uma seqüência narrativa canô-
nica subjacente na segmentação da arte retórica em três gêneros, ela pode dar
conta somente da estrutura narrativa (actantes, modalidades, transformações)
de uma prática argumentativa coletiva (uma macrocena predicativa). Cada um
dos três gêneros caracteriza e especifica momentos dessa prática, que definem

8 Os períodos de tempo próprios a cada um desses gêneros são, para o deliberativo, o futuro, para o judiciário,
o passado e para o epidítico, o presente (Aristóteles, 2007).
44 | Jacques Fontanille

“subpráticas”, colorindo de forma diferente os papéis e relações actanciais, as-


sim como os regimes temporais. Como já sugeriu Denis Bertrand, é somente
no interior desses gêneros práxicos que podemos definir “gêneros textuais” (por
exemplo, para o gênero práxico judiciário, os subgêneros textuais – histórico e
jornalístico), sabendo que esses subgêneros textuais convocam as propriedades
actanciais e narrativas do gênero práxico englobante.

2. EFICIÊNCIA E OTIMIZAÇÃO
2.1. Da explicação à prática interpretativa
A opção pelas “práticas” na economia geral da semiótica tem como efeito,
dentre outros, o de modificar o estatuto da descrição e da explicação semióticas:
a própria análise semiótica, na verdade, torna-se, por sua vez, um dos casos
possíveis da prática interpretativa.
A prática semiótica por excelência, que consiste justamente em reformular
a significação numa metalinguagem construída, teve, durante longo tempo, um
estatuto ambíguo. Na verdade, a solução mais simples consiste em tratar essa
reformulação como a “tradução” de um discurso de nível “n” em um discurso
de nível “ n+1”, sendo o primeiro uma semiótica-objeto a ser analisada e o se-
gundo, o próprio discurso da análise. Essa definição permitia definir a prática
semiótica como “descrição” ou “explicação”, isto é, como “tradução metalingüís-
tica” da significação imanente.
Mas essa definição formal já fazia água no próprio campo das teorias da lei-
tura e mesmo no da reflexão hermenêutica. Na teoria da leitura, fomos levados
especialmente a distinguir as “leituras cultas” de outros tipos de leitura9, e assim
fazendo, tropeçávamos então no fato de que umas permitiam a produção de
discurso de análise, enquanto outras só podiam ser consideradas sob a forma de
processos perceptivos e cognitivos (principalmente, nos anos 1960, a teoria das
“fixações”, “varreduras”, “hipóteses” e “verificações de hipóteses”). Entretanto,
ao mesmo tempo, e retrospectivamente, éramos levados a nos interrogar so-
bre as “operações” de leitura relativas à leitura culta, anterior à produção do

9 A. J. Greimas retrucava com a anedota “elitista”: “Não se faz semiótica da música para idiotas musicais”, reafir-
mando, assim, a superioridade originária da análise semiótica, capaz de determinar e articular o conjunto de
condições de toda leitura. Certamente, podemos concordar com esse princípio e sustentar que a análise semi-
ótica não é uma “leitura”, mas uma “proto” ou “meta” leitura, embora isso, por outro lado, não elimine seu es-
tatuto de “prática”. Além disso, nada impede que nos perguntemos se as outras práticas de leitura não propõem
também, mesmo implicitamente, “condições” de leitura diferentes das produzidas pela análise semiótica.
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 45

discurso de análise e, principalmente, sobre o estatuto perceptivo e cognitivo


dos modelos utilizados. Assim, o “percurso gerativo da significação” passava de
simulacro da produção do sentido a uma seqüência de experiências do sentido,
ou seja, uma seqüência de procedimentos a serem empregados para produzir
a significação. Isso nos leva a reconhecer que, no nível “n+1”, não se trata mais
apenas de uma simples reformulação, mas de uma prática complexa, pertencen-
te, ela mesma, a uma gama de práticas comparáveis e suscetíveis a tratamentos
variados e pluridisciplinares (cognitivo, semiótico, sociológico etc.).
Na hermenêutica, a célebre crítica de Paul Ricœur (1996), que denunciava
o “direcionamento teleológico” mascarado pela explicação semiótica, remete à
mesma dificuldade. Na verdade, se há “direcionamento teleológico” da explica-
ção, isso significa que essa última não pode ser considerada como um procedi-
mento automático e impessoal de reformulação e que seu resultado não pode
ser apresentado como um “simulacro”.
Segundo Ricœur, a explicação estaria submetida a um “projeto” implícito,
uma visada direcionada por uma apreensão anterior do sentido da ação, uma
espécie de projeção sobre o texto, e pela intermediação dos modelos explícitos da
análise, de nossas intuições forjadas pela experiência do tempo e da temporaliza-
ção da ação. Projeto, visada teleológica, sentido intuitivo, experiência do tempo:
tudo já conduzia a uma outra definição da atividade metassemiótica, que produ-
ziria uma semiótica-objeto completa, distinta da semiótica-objeto analisada.
E a refutação de Paul Ricœur vai ainda mais longe, pois ela relativiza a práti-
ca explicativa, considerando-a apenas como uma prática dentre outras. De fato,
ela não difere de outras práticas de leitura a não ser pela forma de explicação,
pela mediação de modelos explícitos que introduz entre o momento da visada
teleológica e o momento da produção da análise. Entretanto, assemelha-se a
todas as outras práticas de leitura, condição que faz dela, justamente, um certo
tipo de hermenêutica: projeto, visada teleológica, sentido intuitivo, experiência
do tempo.
Na verdade, a explicação semiótica mudou seu estatuto muitas vezes. Uma
breve retrospectiva demonstra que esse tipo de reflexão, inicialmente, foi trata-
do na hierarquia dos níveis semióticos, especialmente em Greimas (1973: 22-26)
– como ele estabelece em Semântica estrutural: níveis descritivo, metodológico e
epistemológico –, sobre o modelo concebido por Hjelmslev das semióticas-ob-
jeto, das metassemióticas e das semiologias. A proliferação virtual dos níveis
de metalinguagem, sempre discutida na época do estruturalismo (especialmen-
te por Lacan e pelo próprio Greimas), é aqui interrompida por uma decisão
46 | Jacques Fontanille

epistemológica. Essa concepção da reflexão epistemológica caracteriza-se pela


recursividade do princípio de engendramento que a fundamenta, em relação ao
qual toda imposição de limite parece ser uma decisão arbitrária.
Em seguida, com o desenvolvimento da semiótica do discurso, essa rela-
ção entre níveis metassemióticos foi implicitamente repensada e transformada
graças à noção de “intertextualidade” (ou “interdiscursividade”). No discurso
epistemológico, a descrição semiótica parece ser um intertexto, pois menciona,
cita, comenta e reformula o texto original. E esse intertexto é, ele mesmo, cita-
do, mencionado, descrito e comentado no nível epistemológico. Esse segundo
período favoreceu especialmente alguns procedimentos de semiotização “de
segunda mão”, pois eles permitiram que qualquer discurso descritivo, mesmo
elaborado fora do campo científico da semiótica, pudesse ser assim “recupera-
do” e reformulado em metalinguagem semiótica. Desde então, o discurso epis-
temológico da semiótica, tomado nesse prisma retroativo e tautológico, serve
apenas para justificar ulteriormente tal reformulação, sem um verdadeiro ganho
heurístico: trata-se do limite crítico do princípio de reflexividade que caracteriza
essa segunda concepção.
Mas se o “nível n+1” é definido como o das práticas, a delimitação e a defini-
ção dos planos de imanência obedecem ao menos a quatro novas coerções, que
inviabilizam tanto o funcionamento recursivo quanto o funcionamento reflexivo:

(1) Cada nível é definido pelo seu próprio campo de expressão, correspon-
dendo a tipos de experiência diferentes, de maneira que cada um é irredutível
ao outro. A metalinguagem de nível “n+1” obedece então a regras de construção
diferentes da língua natural utilizada no nível “n”. Por exemplo, a organização dos
formantes sensíveis em “dimensão plástica” no nível dos textos-enunciados cons-
titui um ganho de articulação irreversível em relação ao nível das figuras-signos.

(2) Cada nível atua então de maneira diferente para produzir um “plano de
expressão” pertinente, do qual já se conhece a hierarquia.

(3) Cada nível é definido pela maneira como entra em relação com os ou-
tros, antecedentes e subseqüentes, graças às operações de integração e/ou de sín-
copes retóricas, e às semióticas-objeto intermediárias.

Por exemplo, entre o nível dos textos-enunciados e o das práticas, é preciso


levar em conta os suportes e os objetos-suportes, de maneira que os textos-enun-
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 47

ciados possam ser integrados como “objetos” nas práticas, na medida em que
certos objetos implicados em uma prática são suportes de “inscrições”. Então, as
“práticas de leitura” distinguem-se entre si, não somente pelos procedimentos
que empregam e pelos seus produtos, mas também pela maneira como tratam o
objeto-suporte do texto (o livro, por exemplo): a leitura culta, diferentemente da
leitura comum cotidiana ou, no outro extremo, da leitura da prática bibliófíla,
confere pouca importância ao objeto-livro. Conseqüentemente, a maneira pela
qual uma prática de leitura concebe os níveis inferiores e superiores caracteriza
sua definição específica.
A título de exemplo, na direção da integração descendente, a prática da
leitura culta, como sugerimos anteriormente, “sincopa” o objeto-suporte e pro-
cura ter acesso direto ao texto, enquanto a prática do bibliófilo, ao contrário,
visa principalmente o objeto-suporte e considera secundário o acesso ao texto
propriamente dito.
Na direção da integração ascendente, a prática da análise procura situar-se
estrategicamente em relação a outras práticas do mesmo tipo e/ou concorrentes
e, por isso, apresenta uma série de garantias que toma a forma de uma filiação
ou de uma rede de atores, representando globalmente o actante destinador: são
as “referências”, as observações de leituras anteriores e de leitores autorizados e
legítimos, sob a garantia dos quais o analista apresenta-se como um actante “he-
terônomo”. A prática da leitura cotidiana, ao contrário, instala um actante “au-
tônomo”, ou até mesmo um simples “não-sujeito”, que obedece aos códigos ge-
néricos e à experiência imediata que lhe oferece a ficção, embora nesse processo
deva “ajustar-se” também às outras práticas concorrentes, mas de tipo diferente
e, sobretudo, deva “proteger-se” de outras práticas cotidianas que solicitam o
leitor. Portanto, ambas integram parcialmente o nível da estratégia, uma graças
à integração de uma filiação crítica, outra pela adaptação ao contexto circuns-
tancial da leitura. No lugar da recursividade ilimitada da primeira concepção e
da reflexibilidade tautológica da segunda, propomos uma terceira via: a da tran-
sitividade integrativa (e retórica).
A princípio, invertendo o raciocínio, podemos dizer, como hipótese de tra-
balho, que toda integração ascendente (isto é, quando o nível “n” integra uma
representação mais ou menos completa do nível “n+1”) é de natureza metasse-
miótica: quando o texto integra representações da prática de leitura ou de análi-
se, ele desenvolve uma dimensão metassemiótica de tipo analítico; quando uma
indicação de uso é afixada numa máquina, esta também passa a integrar em si
mesma uma dimensão metassemiótica de tipo técnico e didático. Pela mesma
48 | Jacques Fontanille

razão, uma prática que exibe, por sua forma sintagmática, sua relação com ou-
tras práticas, integra uma dimensão metassemiótica de tipo estratégico.
Esse raciocínio leva-nos a considerar que: (1) toda prática pode, a esse res-
peito, integrar estrategicamente uma prática metassemiótica ou, mais simples-
mente, uma prática interpretativa; (2) toda prática interpretativa é confrontada
em razão de uma possível integração de uma dimensão estratégica, a outras
práticas. De uma maneira geral, isso nos leva a concluir que o actante operador
de uma prática qualquer, a partir do momento em que ela integra parcialmente
o nível da estratégia, é também um intérprete ao menos em relação a sua própria
prática. O observador e o intérprete envolvidos em sua própria prática interpre-
tativa: eis um motivo bem banal em antropologia e em sociologia que, entre-
tanto, ainda é preciso ser demonstrado e ter seu valor heurístico validado, para
além das declarações encantadoras e das posições ideológicas infalsificáveis.

2.2. A forma sintagmática das práticas integra


uma estratégia
2.2.1. A eficiência da “boa forma”

Buscamos definir agora a eficiência das práticas ou, em suma, identificar o


que faz delas práticas bem sucedidas, avaliadas positivamente em seu desenvol-
vimento e em seu resultado. A hipótese que nos guia é a de que essa eficiência
implica uma dimensão interpretativa e a integração parcial de um nível estraté-
gico em toda prática.
O ritual oferece um exemplo canônico de eficiência sintagmática. Essa efici-
ência, de fato, está ligada essencialmente à organização sintagmática, aspectual e
rítmica da seqüência práxica. Mais precisamente, os rituais, e especialmente os ri-
tuais de sacrifício, constituem globalmente um “dom”, embora seja preciso, como
em todo procedimento de dom, que o destinatário saiba reconhecê-lo como tal.
Nesse aspecto, o ritual assemelha-se a uma forma de comunicação persuasiva,
susceptível de fazer o destinatário confiar e ser capaz de distinguir o procedimen-
to desse ritual de qualquer outro. E os próprios participantes do ritual também de-
vem estar persuadidos de que estão engajados em uma prática específica, isolada
de toda prática concorrente e diferente de toda prática semelhante.
De uma maneira geral, no detalhe da análise, o ritmo, a estrutura aspectual
e a organização sintagmática do ritual exercem uma persuasão e facilitam a in-
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 49

terpretação que concerne ao estatuto da prática em curso. Em suma, o caráter


“fechado”, “rígido”, “recorrente” da seqüência é em si mesmo uma modalização
explícita do ato de enunciação, uma “figura” que manifesta figurativamente e de
maneira perceptível a “boa forma” sintagmática e que está destinada a suscitar
um reconhecimento distintivo do caráter ritual da prática.
No cotidiano, por exemplo, dentre tantas maneiras de se alimentar, existem
algumas que conferem a essa prática o caráter de um quase-ritual: é o caso, es-
pecificamente, da “refeição em família”, do “jantar entre amigos” ou do “almoço
profissional”. Examinaremos, em seguida, exatamente a forma desse ritual mas,
desde já, impõe-se uma evidência: a ritualização das práticas alimentares é a
única maneira que temos de nos persuadir de que estamos enquadrados em
uma prática chamada “refeição” e, de outra forma, é uma maneira de articular
essa prática com outras (a vida em família, as relações de amizade, as reuniões
de trabalho etc.).

2.2.2. Os tipos modais da eficiência

Pierluigi Basso (2006) propôs distinguir diversos tipos de agenciamentos sin-


tagmáticos, segundo a isotopia modal dominante que lhes garante a coerência.
A práxis é regulada ao menos pelo poder, segundo uma organização sintag-
mática cujo valor reside apenas na possibilidade de uma realização e na capaci-
dade de realizá-la. Trata-se, portanto, de uma forma genérica mínima. Sua ava-
liação é puramente factual: “possível” ou “impossível” a práxis realiza-se ou não.
O procedimento manifesta um saber, na medida em que pressupõe uma pro-
gramação prévia, e a aprendizagem dessa programação pelo actante operador.
Sua avaliação será, portanto, mais elaborada, já que levará em conta, além de sua
capacidade de realização, a organização adequada das etapas da ação.
A conduta é regida por um querer, pois a forma sintagmática adotada é
interpretada nesse caso como imputável a um actante responsável, como se ma-
nifestasse intenções, tendências e valores que lhe são próprios, individualmente.
Assim, a avaliação poderá apoiar-se nessa imputação e tratar, sobretudo, dos
valores expressos pelo comportamento do actante.
O protocolo implica um dever, já que sua eficiência é regulada do exterior da
práxis por regras e por normas que se impõem a todos os participantes. Aqui, a
avaliação está preestabelecida e trata do respeito das regras e das normas, relati-
vas tanto à organização, aos valores, aos papéis, quanto aos detalhes figurativos.
50 | Jacques Fontanille

Finalmente, o ritual supõe um crer específico (todas as práticas têm uma


base fiduciária geral), partilhado por todos os participantes, e necessário ao
êxito da ação. Nesse estágio de elaboração da prática, a avaliação pode tratar
tanto dos níveis anteriores, quanto da intensidade e da veracidade da crença
específica.
Para ser operatória, essa distribuição deve ser apurada, introduzindo um
princípio metodológico estabelecido em Semiótica do discurso (Fontanille,
2007a: 147-185)10 que consiste em desdobrar os níveis de modalizações com-
bináveis. De fato, se é legítimo limitar a práxis, que é o modo de agenciamento
mais generalizado, apenas ao efeito do poder-fazer, o protocolo, por exemplo,
não pode ser estabelecido unicamente sobre um dever, e implica também um
poder-fazer e um saber-fazer. Certamente, no protocolo o dever domina, e, em
alguns casos, pode até mesmo ser assumido por uma instituição ou uma função
específicas, mas ele só é eficiente pela combinação com outras modalidades. O
mesmo ocorre com todos os outros tipos, que não são somente definidos por
uma isotopia modal dominante, mas também por sua posição hierárquica em
uma combinatória modal.
Propomos, então, a seguinte tipologia:

Nível M1: poder = práxis


Nível M2: poder + saber = procedimento
Nível M3a: poder + saber + querer = conduta
Nível M3b: poder + saber + dever = protocolo
Nível M4a: poder + saber + querer + crer = ritual “autônomo”
Nível M4b: poder + saber + dever + crer = ritual “heterônomo”

Não podemos ignorar que mesmo essa tipologia apurada não é sufi-
ciente para dar conta, de maneira exaustiva, do conjunto de combinações
possíveis. Por exemplo, certas formas de conduta associam apenas o poder
e o querer (sem saber), e podem ser designadas, de forma mais corrente,
como maquinações. Do mesmo modo, a participação em rituais pode ser
puramente imitativa, não comportando nenhum saber prévio. Já a repeti-
ção, regular ou episódica, pode modificar cada uma dessas configurações
modais, para produzir: (1) rotinas (nos níveis M1 e M2: a partir da práxis e
do procedimento); (2) hábitos (níveis M3 e M4: a partir das condutas e dos

10 Essa apresentação foi inspirada em uma proposta oral de Jean-Claude Coquet, não publicada.
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 51

rituais); (3) manias, se a simples repetição puder ser substituída pelo querer
ou pelo dever e efetivar-se.
Ademais, modificando alguns outros parâmetros, especialmente a extensão
temporal e a natureza coletiva ou individual do actante responsável, obtemos,
então, os costumes e as tradições.
Tratando-se de realizações práxicas concretas, é preciso, por fim, esperar
que nenhuma pertença exclusivamente a um ou a outro desses tipos, ou ainda
que a maioria adote sucessivamente as propriedades de várias delas. De fato, na
“prática em ato”, confrontações e ajustamentos ocorrem em todas as fases do
percurso, permitindo passar de um tipo modal a outro, de uma combinação
modal a outra, de uma forma aspectual a outra.
A solução mais prudente e a que melhor pode conduzir a análises adequa-
das, consiste em, primeiramente, identificar as variáveis, que são ao menos de
três espécies: (1) as isotopias modais dominantes; (2) as combinações e os níveis
de modalização aceitos; (3) as formas aspecto-temporais (especialmente singu-
lativas, iterativas, originárias etc.). Ainda que a pesquisa e a definição dos tipos
de seqüência canônica sejam necessárias, ela não é uma finalidade em si, menos
ainda o ponto heurístico mais alto da análise.
Na verdade, como tentaremos mostrar agora, o que há de específico na for-
ma semiótica das práticas e que a distingue principalmente da forma semiótica
dos textos-enunciados e dos signos é realmente o processo adaptativo estratégi-
co da “semiose em ato”. Conseqüentemente, o objetivo é a descrição e a mode-
lização das transformações entre os regimes típicos da prática, a transformação
dos modos de adaptação em devir.

2.3. Eficiência, confrontações práticas e adaptação


estratégica
2.3.1. A generalização do princípio de adaptação

Do ponto de vista do sentido prático, as seqüências canônicas e os regimes


típicos da prática não podem ser simplesmente considerados como modelos
analíticos, disponíveis a um observador ou a um intérprete que não esteja en-
volvido na análise. Como já demonstramos, esse “intérprete” está, ele mesmo,
envolvido em sua própria prática, mas por vezes também, e ao mesmo tempo,
na prática que ele próprio interpreta. E as seqüências canônicas e os regimes
52 | Jacques Fontanille

típicos funcionam como horizontes de referência, de garantia, ou ainda de pres-


são persuasiva, a fim de resolver problemas provocados pela própria prática.
A sintaxe intrapráxica, ou simplesmente a “práxica”, é então, por definição,
uma sintaxe de confrontação e de adaptação, eventualmente (e apenas eventu-
almente) guiada pelo horizonte de uma seqüência canônica e implica sempre,
ao menos implicitamente, uma atividade interpretativa, seja ela reflexiva (auto-
adaptativa) ou transitiva (se ela se refere a um horizonte de referência tipológico
ou canônico).
Poderíamos, por exemplo, ser tentados a definir o “protocolo” como uma
programação rígida e inteiramente decidida por antecipação. Mas essa concep-
ção apenas diz respeito, imperfeitamente, ao caso particular das cerimônias, e
mesmo neste caso, a encenação prévia mais detalhada não pode prever tudo,
menos ainda excluir por antecipação todo incidente ou acidente de percurso.
Portanto, vemos que esse caso extremo não pode estabelecer uma teoria da prá-
tica e que, ao contrário, ele é muito específico, submetido a coerções e restrições
excepcionais.
Fora desse caso ideal e marginal, o protocolo é um conjunto pré-construído
de respostas à maioria de situações e de problemas que são colocados por um
certo tipo de práticas institucionais. Seu uso canônico e genérico supõe então,
por princípio, uma prática em curso, na qual aparecem situações-ocorrências, até
mesmo ocasiões, encontros e incidentes, que deverão ser relacionados a tipos e a
normas, para receber uma solução “protocolar” e simplificar eventuais negocia-
ções fornecendo respostas pré-construídas.
O caso do ritual é mais delicado, já que sua eficiência, supõe-se, deriva da
estrita aplicação de um esquema e de um percurso figurativo fixo. No entanto, é
sem dúvida o caso que melhor representa o princípio da adaptação estratégica.
Na verdade, o percurso figurativo fixa apenas uma parte dos elementos da prá-
tica: podemos observar, por exemplo, na história da missa católica, que o com-
portamento e as vestimentas dos fiéis, e mesmo o grau de participação no ritual,
evoluem constantemente e, a esse respeito, a dimensão ritualizada dessa prática
deve ajustar-se, segundo épocas e culturas, aos usos e tendências.
O próprio ritual constitui globalmente uma solução a um problema encon-
trado por uma comunidade. Tal problema pode ser originário e recorrente, de
solução periódica (como no caso da eucaristia) ou acidental, de solução pontual
(como no caso dos rituais terapêuticos africanos). Enfim, a participação indivi-
dual é regulada por princípios muito variáveis: certos rituais como a missa são
tão-somente ocasiões oferecidas a todos de participar segundo a intensidade de
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 53

sua fé e de seu engajamento, mas a eficiência do ritual da eucaristia não depen-


de da intensidade da fé dos fiéis. Outros rituais, ao contrário, como as práticas
espiritualistas, são conhecidos por exigir a crença e o engajamento de todos os
presentes, sem os quais o ritual fracassa. São incontáveis as “adaptações” variá-
veis e específicas.
Portanto, toda prática implica, por definição, uma seqüência de resolução,
de formalização significante a partir de uma situação inicial de “falta de sentido”
(retomando a fórmula de Pierluigi Basso), e essa seqüência terá a seguinte forma
canônica:

< falta de sentido – esquematização – regulação – adaptação >

A esquematização é o momento em que uma situação-ocorrência proble-


mática é comparada a uma situação-tipo cuja solução conhecemos, ou reorgani-
zada por auto-adaptação. A regulação é o momento em que a solução (a forma
eficiente) é projetada sobre a ocorrência. Por fim, a adaptação é a formalização
estratégica do percurso da prática. A prática tem, então, a forma sintagmática
de uma “cena de resolução” do ponto de vista discursivo e de uma “prova” do
ponto de vista narrativo.
Cada um dos principais “regimes sintagmáticos” da prática, já que obedece
a modalizações específicas, é portanto caracterizado por um modo de regulação
próprio:

(1) Práxis (poder): a regulação atua sobre os encadeamentos entre as etapas;

(2) Procedimento (saber): a regulação baseia-se numa programação prévia


das fases e de sua sucessão;

(3) Conduta (querer): a esquematização atua por iconização auto-adaptati-


va e a regulação consiste em uma manifestação figurativa das motivações;

(4) Protocolo (dever): a esquematização é a cristalização dos papéis e das


etapas e a regulação, uma projeção imediata desses papéis sobre a imprevisibi-
lidade do percurso;

(5) Ritual (crer): a regulação baseia-se no ritmo e na gestão temporal da


seqüência.
54 | Jacques Fontanille

2.2.2. O modelo da eficiência práxica

A questão a tratar, por meio da eficiência e da otimização das práticas, é, em


suma, a da emergência da significação na ação e, de uma maneira mais geral, da
construção dos valores práticos. Esses valores, atualizados na forma sintagmática,
são, conseqüentemente, controlados e engendrados por “valências”, que as análises
precedentes já sugerem. Globalmente, a eficiência é apreciada em função das for-
mas de um processo de adaptação e essa adaptação está submetida a duas direções
concorrentes, a programação e o ajustamento (Landowski, 2004: 27-29; 2006).
De um lado, de fato, a prática deve se submeter a um certo número de coer-
ções, seja pela presença de práticas concorrentes já engajadas, seja pelas normas
e regras que preexistem à construção de toda ocorrência particular: é preciso
levar em conta o fator inevitável da programação externa. Essa valência de pro-
gramação é extensiva, pois é avaliada gradualmente em função do tamanho do
segmento programado, de sua complexidade e de sua duração, do número de
bifurcações e de alternativas consideradas, e da capacidade de antecipação glo-
bal que comporta.
Por outro lado, a prática constrói-se por ajustamento progressivo e atua pela
invenção de um percurso que procura sua própria estabilidade e sua significa-
ção no confronto com as coerções evocadas acima. Vemos claramente que, a
esse respeito, o protocolo é muito mais coercitivo que a conduta, e que o procedi-
mento é menos coercitivo que o ritual. Do mesmo modo, uma conduta singular
é necessariamente mais inovadora do que um hábito, e um procedimento, do
que uma rotina. Quanto às manias, elas impõem uma programação inevitável,
insensível ao contexto e às circunstâncias. Como já sugerimos, existem práticas
auto-adaptativas que se opõem às práticas hetero-adaptativas, e essas práticas
auto-adaptativas são intensivas, pois pressupõem ao mesmo tempo, do ponto de
vista da responsabilidade, graus de imputação da ação ao actante, e, do ponto
de vista do engajamento desse actante, uma avaliação gradual da pressão de
ajustamento que ele exerce sobre sua própria prática.
O impacto e a ênfase da intensidade pertencem à valência de ajustamento e
de abertura, enquanto a coerção, a estabilidade no tempo e no espaço pertencem à
valência da programação e do fechamento. É, portanto, devido à tensão entre essas
duas valências que certas práticas parecem mais “abertas” e outras, mais “fechadas”.
Todavia, não podemos nos ater à oposição entre as práticas auto e hete-
ro-adaptativas, na medida em que cada prática está à procura de sua própria
significação numa negociação permanente entre as duas valências de controle.
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 55

É preciso, portanto, considerar a existência de um modelo mais dinâmico que


o da simples oposição categorial em que os valores da prática são engendrados
pelas tensões e equilíbrios variáveis entre as duas valências11:

Esse modelo das variedades da práxis, que ignora deliberadamente as


definições modais e as hierarquias propostas anteriormente, faz surgir novas
propriedades e novas diferenças: os parassinônimos como hábito e rotina, ou
procedimento, protocolo e ritual tornam-se aqui antônimos, em razão de sua
posição distinta em relação à valência do ajustamento.
De fato, a valência intensiva permite apreciar o engajamento do actante no
ajustamento de sua prática às circunstâncias e na busca de sua significação. Fica
claro que, a esse respeito, existem dois tipos de práticas iterativas, aquelas que,
como a rotina, só admitem um investimento fraco no ajustamento circunstan-
cial, e aquelas que, como o hábito, ao contrário, implicam uma perfeita adapta-
ção a todas as circunstâncias. Assumidas coletivamente, elas apresentam a mes-
ma distinção: os costumes são fracamente ajustáveis, enquanto as tradições só
podem existir e perdurar em razão de suas capacidades auto-adaptativas.
Do mesmo modo, se o procedimento permite fazer, ele o faz praticamente
ignorando as circunstâncias, enquanto o protocolo, ao contrário, é inteiramente
concebido para prevê-las, negociá-las, rejeitá-las ou integrá-las. Já o ritual é, no
limite, um tratamento sempre disponível para os problemas propostos no nível
das estratégias e das formas de vida, uma resposta possível às demandas, seja
dos participantes, seja do mundo exterior.

11 Numa perspectiva semelhante Eric Landowski (2006: 72) propôs um modelo que interdefine e articula dina-
micamente quatro “regimes de sentido e de interação”: programação, manipulação, ajustamento e acidente.
56 | Jacques Fontanille

A conduta comporta, em razão de seu componente volitivo, um forte enga-


jamento auto-adaptativo, embora ele seja modulável, como atesta a série lexical
“maquinação, comportamento, conduta”, em que, aparentemente, o grau de im-
putação da ação a um actante responsável varia entre uma imputação apenas
hipotética (maquinações) e uma imputação confirmada (a conduta).
Quanto ao acidente, ele não implica nem ajustamento nem programação,
ele é somente um hápax factual que não induz a nenhuma adaptação e por isso
assemelha-se ao lapso e ao ato falho, lembrando-nos sempre de que todo actan-
te engajado em uma prática é um corpo e, como tal, submete-se às interações
contingentes com outros corpos, eles também engajados em outras práticas. O
fato de ser contingente e inadaptável não o torna, por isso, insignificante, já que
ele manifesta pelo menos, ao mesmo tempo, uma incompatibilidade provisória
entre duas ou mais práticas e, no mínimo, o caráter somático e “encarnado” da
imputação da ação ao actante12.
Enfim, o regime genérico da práxis desapareceu desse modelo, já que ele é
comum a todos os outros. Além do mais, como já observamos, ele não é pro-
dutor de um valor específico, não é uma qualificação particular da prática e,
portanto, não pode ocupar uma posição identificável nas tensões entre as duas
valências.
Importa muito pouco que os lexemas da língua natural, que utilizamos por
comodidade, obedeçam mais ou menos, a essa distribuição, já que se trata aqui,
não de uma análise lexical, mas de posições construídas que correspondem,
inegavelmente, à experiência cristalizada por esses lexemas e, perfeitamente, a
nossa experiência íntima da gestão das práticas.

2.4. Entre práticas e estratégias


Já observamos que a forma sintagmática das práticas comporta uma di-
mensão metassemiótica (interpretativa), permitindo principalmente, explicitar
a identidade distintiva da prática em curso, em relação às outras que lhe são
concomitantes ou semelhantes. Essa dimensão metassemiótica, pela expressão
de uma forma sintagmática e pelo valor que dela emana, resulta de uma adapta-
ção estratégica de outras práticas.
Todavia, como tentaremos mostrar a seguir, a dimensão metassemiótica é o
próprio lugar onde se forja a significação da prática em curso, o lugar da “busca

12 Sobre a semiótica do acidente e a noção de co-incidência, distinta da noção de inter-ação, ver Landowski (2006:
53-92).
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 57

do sentido” em ato. Se essa hipótese é válida, a descrição de tais processos deve


conduzir à identificação de semióticas-objeto stricto sensu, constituídas pela
reunião do plano da expressão e do plano do conteúdo. Em suma, o processo
de adaptação seria o próprio processo semiósico da prática, aquele que constrói
pouco a pouco a relação entre a expressão e o conteúdo.
As duas descrições que seguem, a das práticas amorosas e a das conversas
à mesa, serão consagradas à validação provisória e parcial dessa hipótese de
trabalho.

2.4.1. Práticas amorosas: uma seqüência em construção

2.4.1.1. Expressão e conteúdo “em ato”

Sem pretender fazer uma descrição exaustiva das práticas amorosas, pode-
mos, para começar, examinar os motivos estereotipados das “premissas” do en-
contro amoroso: (1) o olhar trocado; (2) o sorriso recíproco; (3) o contato verbal:
a palavra, o gracejo, a afronta... (4) a primeira atividade comum.
A ordem canônica desses quatro primeiros motivos, não necessariamen-
te obedecendo à ordem cronológica, repousa sobre os graus de engajamento
corporal e pessoal na troca e, conseqüentemente, na cadeia de pressupostos
hierárquicos que embasam as eventuais combinações por encaixamento. Por
exemplo, a “atividade” acolhe palavras, olhares e/ou sorrisos, ou ainda o “sor-
riso” compreende, necessariamente, uma “troca de olhares”. São características
de um processo de abertura recíproco: o olhar acolhe o olhar, o sorriso faz ver e
imaginar uma emoção, a atividade partilhada dá lugar à participação do outro
etc. As relações de pressuposição já conduzem aos esboços de uma seqüência
que, no entanto, não é potencialmente reconhecível.
Acrescentemos, agora: (5) a conivência nascente, que resulta da simples rei-
teração das fases 1 a 4. A conivência, que comporta, se não uma verdadeira
confiança recíproca, ao menos uma abertura e um crédito a confirmar (portan-
to, uma fidúcia potencial), é analisada em várias dimensões. Do ponto de vista
modal, a reiteração das fases anteriores permite verificar que elas não dependem
do acaso (o que será confirmado na etapa seguinte, a dos “múltiplos encontros
fortuitos”), mas como cada uma delas guarda a memória das precedentes, pa-
recem resultar de uma pressão que incita à abertura recíproca. Passamos então
do poder não ser ou do não dever ser, para o querer fazer e para o não poder
58 | Jacques Fontanille

não fazer. Do ponto de vista temporal, a conivência confere um futuro à rela-


ção, instalando um maior potencial de abertura, capaz de realizar-se nas trocas
posteriores. Esse potencial de abertura certamente já estava presente nas fases
anteriores, mas lhe faltava pelo menos a confirmação por reiteração e, portanto,
uma estabilização fiduciária, para que fosse inscrito no devir da relação.
Em seguida, chegamos à etapa 6, aquela dos múltiplos encontros fortuitos,
cada vez menos fortuitos. O conjunto de circunstâncias repetindo-se de forma
idêntica implica um outro tipo de “explicação”, no estado latente, um tipo de
questão implícita ou de problema a resolver que demanda uma resposta. O aci-
dente, em suma, precisa ser convertido numa outra forma de práxis.
O ajustamento “em tempo real” é seguido, particularmente, pela generali-
zação da “pressão” de abertura a outrem, pois a convergência e a troca não se
aplicam mais apenas a alguns motivos isolados, específicos da relação amorosa,
mas se estendem a todas as atividades, a todas as ocasiões e à maioria das práti-
cas cotidianas. Em suma, nessa etapa do percurso, todos os caminhos levam ao
outro e ambos acabam por perceber isso. Assim reconhecida essa convergência,
o caráter fortuito dos encontros desaparece progressivamente, ao mesmo tempo
em que seu número aumenta e, como uma seqüência canônica pode ser reco-
nhecida, daí em diante uma programação é concebível.
É então que a atividade interpretativa, individual ou dual, intervém. A etapa
7, aquela da leitura retrospectiva das etapas de 1 a 6, conduzirá a uma mudança
de regime práxico e ao reconhecimento da seqüência engajada. Sozinhos, cada
um por si, ou juntos, os parceiros então interpretam o conjunto das “aberturas” e
das convergências, particularmente aquelas dos encontros fortuitos, como uma
“sincronização compulsiva”, sendo a sincronização o resultado de uma releitura
passional do caráter, ao mesmo tempo, “fortuito” e “iterativo” dos encontros.
A atividade interpretativa institui, assim, a “sincronização compulsiva” como
plano da expressão de um conteúdo afetivo que ainda deve ser especificado, mas
que é desde então identificado como uma “pressão” que independe da vontade
dos dois parceiros – a “pressão auto-adaptativa” para uma abertura recíproca das
práticas dos dois parceiros – , graças a todos os meios de partilha e de troca.
Os encontros fortuitos existiam antes das etapas de 1 a 5, mas não haviam
sido notados, e sua “falta de sentido” (a contingência, a ocasião aleatória) é agora
compensada. Desse modo, as fases de 1 a 4 funcionam como memória da origem
e servirão, em seguida, de ponto de comparação e de situação de referência para
todas as fases anteriores. Se a aventura prolonga-se, elas poderão até mesmo ali-
mentar, entre outras coisas, algumas brigas amorosas ou cenas domésticas.
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 59

2.4.1.2. MA RCA ÇÕE S , TE NSÕE S E B U SCA DO SE NTIDO

A seqüência é composta de um certo número de motivos canônicos, que


são “ícones” da relação amorosa, embora todos apresentem uma propriedade
particular (a duração, a intensidade, a repetição etc.) que transforma cada um
desses motivos em um elo de uma cadeia que é, ela própria, progressivamente
reconhecível. A troca de olhares é marcada por uma intensidade e uma duração
de fixação não habituais na interação social comum, e será ainda mais incomum
se não for motivada por uma prática específica. O sorriso é também marcado
por sua falta de motivação prática e aí a falta de sentido funciona como “abertu-
ra” aos sentidos possíveis, à espera de preenchimento. E os múltiplos “encontros
fortuitos” demandam uma explicação que só virá num futuro mais à frente.
Nesse caso, a “marca” continua sendo um suplemento sensível que remete a
uma falta imanente, a uma falta de sentido: um excesso de intensidade, de dura-
ção ou de repetição que parece imotivado nas práticas, acasos incompreensíveis,
convergências não habituais etc. O desenvolvimento da prática somente inicia e
prossegue porque essa “falta de sentido” é apreendida, não como um não-senti-
do cristalizado e absoluto, mas como uma falta a reparar, como uma “abertura”
e, portanto, como uma “promessa” de sentido a ser construído: uma expectati-
va (mais ou menos) partilhada, que só pode subsistir se converter a falta atual
em promessa potencial, instala-se. Essas “marcas”, que parecem insignificantes
e não funcionais nas práticas em curso, esboçam uma espécie de “isotopia em
negativo” ou, mais tecnicamente, uma presunção de isotopia, uma substância da
expressão que exige uma substância do conteúdo para tomar forma. E é a busca
e o reconhecimento da prática amorosa que fornecerão o conteúdo temático
dessa isotopia em construção.
Conseqüentemente, é sobre essas “marcas” que a adaptação práxica traba-
lha. Todas essas marcas são a “espera”, o “dentilhão”, que exige, por sua própria
falta de sentido, um novo ajustamento e a construção de uma prática diferente
que as faria significar de maneira adequada. Então não podemos considerar in-
compatíveis ou contrários o “ajustamento” e a “programação”, já que essas duas
formas de base solicitam-se reciprocamente, cada uma sendo capaz de preparar
as condições de aparecimento da outra, graças a uma inversão das tensões entre
ambas. Em outras palavras, seria uma grande ingenuidade, tanto em matéria de
práticas amorosas quanto em qualquer outra prática, acreditar que, no próprio
momento em que acreditamos “inventar” uma relação, escapemos incólumes da
pressão das formas culturais e das heranças adaptativas.
60 | Jacques Fontanille

A adaptação repousa sobre dois movimentos, duas tensões, uma retrospec-


tiva e outra prospectiva, que dominam alternadamente.
A tensão retrospectiva predomina no início da seqüência, a fim de constituir
uma “memória da origem”, e após a reiteração, ela consiste, principalmente, na
releitura de uma série de fatos e trocas anódinos, para transformá-los em uma
seqüência necessária de fases ligadas entre si por uma tensão que se apresenta
como prospectiva. Cada motivo, graças à marca específica que reconhecemos
agora retrospectivamente, parece então conter em germe (potencialmente) to-
dos os motivos seguintes. Aqui o acidente deriva para uma semiprogramação.
A tensão prospectiva predomina na continuidade da seqüência, quando o
trabalho de adaptação retrospectiva está terminado, e faz de cada novo motivo
uma etapa da progressão que parece então inevitável, à espera dos ajustamentos
ulteriores. Como essa progressão pode ser agora assumida, ela toma então a
forma de uma conduta.
As tensões retrospectivas dão, de algum modo, sentido às coisas que ainda
não o tinham. As tensões prospectivas funcionam como “promessas” abertas
que pedem, às vezes, uma confirmação (realiza-se uma parte das potenciali-
dades), outras vezes, uma retomada de outras promessas da mesma natureza e
assim por diante. A interação entre as tensões prospectivas (as promessas) e as
tensões retrospectivas (as fixações de sentido e as confirmações/invalidações)
permite, assim, a adaptação progressiva e a série forma, então, uma prática que
é reconhecida pelos dois parceiros. Mas para isso, é preciso que a prática passe
por vários “regimes” sucessivos (acidentes, semiprogramação, conduta etc.).
O desafio é, de fato, o reconhecimento de uma seqüência prática estabiliza-
da na cultura comum dos parceiros (reconhecimento sancionado pela lexicali-
zação: é amor – ou por declaração: eu te amo)13.
Esse tipo de prática amorosa (existem outras...) apresenta-se, então, ini-
cialmente como uma práxis (algo acontece, que é possível e que os parceiros
são capazes de fazer, já que acontece), e rapidamente se especifica como
conduta, graças aos cálculos de intenção e de imputação (ou foi um ou foi
outro quem tomou esta ou aquela iniciativa), ou até mesmo como progra-
ma ou destino, se atribuímos sua responsabilidade a uma “pressão” exterior
ou interior comum. E logo, sobre a base do reconhecimento parcial e in-
termitente de rotinas e hábitos, a prática forma a seqüência particular que

13 É exatamente essa etapa que teme o conde Mosca, na Cartuxa de Parma, de Stendhal (2004): que a palavra
“amor” fosse pronunciada entre Sanseverina e Fabrício. Mesmo que a seqüência não tenha sido realizada com-
pletamente, mesmo que sua ordem canônica não tenha sido respeitada, ela se torna o fio condutor de todas as
promessas prospectivas e de suas verificações retrospectivas.
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 61

pode ser identificada como aventura inter-individual coerente, cujo sentido


é agora partilhado.
Cada um deles pode isolar e enfatizar este ou aquele motivo (o sorriso, o
olhar sustentado, a palavra espirituosa, o toque leve etc.) e fazer disso uma “téc-
nica”, um “estilo” ou um emblema identitário. Cada um pode também jogar com
essa seqüência, suscitando a impaciência (por uma demora geral ou um prolon-
gamento excessivo de cada fase ou de cada etapa intermediária) ou provocando,
de propósito ou involuntariamente, a surpresa (ou mesmo o pânico), sincopando
brutalmente essa ou aquela fase. Pouco importa o inventário dessas variações:
basta constatar que cada uma delas só faz sentido com referência à seqüência
canônica da conduta amorosa e ao procedimento de adaptação em curso.
Dessas múltiplas variações, contentamo-nos em lembrar apenas uma, céle-
bre por sua exploração artística. Trata-se da programação protocolar dessa prá-
tica na cultura familiar. Michael Corleone, no filme O poderoso chefão (1972),
fica provisoriamente exilado na Sicília, onde conhece uma jovem a quem faz
a corte segundo as formas impostas pela tradição familiar, que compreende o
almoço, o passeio, o presente etc., tudo na presença de todas as mulheres da
família. Mas esse protocolo é ainda compatível com a seqüência canônica da
conduta amorosa, com os olhares, os sorrisos, as palavras etc.
Entretanto, nesse caso, a dificuldade principal está na possibilidade de evi-
denciar uma conduta observável apesar do protocolo, tarefa de que se encarre-
gam as tomadas da câmera e a montagem do filme, intercalando nas cenas do
encontro entre as famílias, os ângulos e os quadros (em geral com zoom – ou
planos aproximados), que permitem captar intensivamente o nascimento da
relação amorosa, ou ao menos a proposição e a aceitação inter-individuais, ex-
traindo-os do desenvolvimento coletivo e convencional previsto pela tradição.
Esta última não impede a conduta amorosa: ela se contenta em constrangê-la,
incitando ajustamentos. Em outras palavras, o ajustamento da prática amorosa
é ao mesmo tempo uma adaptação de outra forma, imposta a partir do exterior,
que permite diferenciar essa prática legítima das que não o seriam.
As paixões podem ser apreendidas e interpretadas em todos os níveis de
pertinência da expressão: como figuras-signos, pela emoção pontual, como tex-
tos-enunciados, na enunciação apaixonada, como práticas, estratégias e formas
de vida. Por exemplo, a cólera perpassa todos os níveis de pertinência, desde o
signo emocional até a forma de vida mítica, própria aos deuses indo-europeus
(os deuses “cólera”), passando pela cólera-estratégia (como em De Ira, de Sê-
neca). O amor e a teoria da “cristalização”, em Stendhal, provêm da evidência
62 | Jacques Fontanille

do amor-texto, enquanto, aqui, escolhemos o amor-prática, a conduta amorosa.


Apenas a abordagem do nível da prática permite restituir às paixões sua verda-
deira dimensão cultural, interativa e social.

2.5. A refeição e a conversa à mesa: uma seqüência


canônica e uma montagem estratégica (no romance
Les voyageurs de l’Impériale, de Louis Aragon)14
2.5.1. Preâmbulo

Trataremos aqui de um gênero de prática semiótica, a conversa à mesa, e de


seu agenciamento com uma outra prática, a refeição, especialmente a refeição
em família. Globalmente, parece que o conjunto constitui uma única macro-
prática, composta de duas subpráticas, a refeição e a conversa. Mas essa com-
posição está longe de ser regulada a priori e veremos que, mesmo o valor (ou o
não-valor) de uma ou outra dessas duas práticas, depende da qualidade de seu
agenciamento comum. Conseqüentemente, o nível de pertinência adequado,
aquele que decide o valor de montagem, é o da estratégia.
Escolhemos como corpus de referência um corpus literário, onze cenas ou
segmentos, dedicados às refeições no romance Les voyageurs de l’Impériale, de L.
Aragon (1996)15. O interesse desse corpus decorre da estreita conexão que colo-
ca em questão, de um lado, o desenrolar das refeições, e de outro, as conversas.
Uma refeição bem-sucedida adota certamente a seqüência canônica (a ordem, a
completude, o ritmo), mas aqui, esse sucesso depende, além disso, da capacida-
de da conversa em respeitar, reforçar e refletir essa mesma seqüência.
De fato, as perturbações e os incidentes que afetam a seqüência canônica da
refeição são todos eventos conversacionais: abstrair-se da refeição e mergulhar
em seus pensamentos interiores, recusar um prato, provocar um escândalo etc.
No romance de Aragon, os dois extremos estão representados: a refeição bem
sucedida e “cordial” e a refeição malograda e “morna”, ou o “escândalo”. Pode-

14 Esse motivo romanesco foi objeto de um primeiro estudo publicado em L’Imaginaire de la table (Boutaud,
2004).
15 As cenas são as seguintes: 1. O jantar no restaurante da Exposição Colonial (I, 1, 40-41); 2. O grande jantar
anual de Paulette Mercadier (I, 5, 68-69); 3. As refeições de férias em Sainteville (I, 8, 83); 4. As refeições em
família do ponto de vista de Pascal Mercadier (I, 13, 125); 5. Uma refeição em Sainteville com os Pailleron (I,
24, 176 e seg.); 6. A refeição festiva da sogra em Sainteville (I, 28, 194-197). 7. O banquete do enterro da sogra
(I, 49, 290-292); 8. Um jantar “morno” em Sainteville (I, 52, 311-312); 9. Um jantar solitário no restaurante de
Veneza (II, 3, 384); 10. Uma refeição no restaurante com Mercadier e seu “biógrafo” (III, 3, 479-487); 11. As
refeições na pensão dos Meyer (III, 5, 488-489; 500-5002).
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 63

mos então destacar as condições de validação e de falsificação de um modelo


hipotético para o agenciamento estratégico entre as duas práticas, portador dos
valores de sua conexão.
Nosso estudo visa destacar com mais precisão as condições axiológicas e a
maneira pela qual elas estão ancoradas na estrutura figurativa das cenas de re-
feição. Ela se apóia sucessivamente: (1) no plano da expressão, nas relações entre
“falar e comer” e, mais especialmente, nas condições da segmentação recíproca
e das interações entre a seqüência conversacional e a seqüência alimentar; (2)
no plano do conteúdo, nas estruturas de trocas subjacentes a essas cenas de refei-
ção e no modelo que as governa.

2.5.2. Duas práticas bem ajustadas: comer e falar

2.5.2.1. Motivação e concomitância

Para começar, notamos que várias refeições só são lembradas em razão da


conversa que aconteceu nessa ocasião. A refeição na Exposição Colonial (cena
1) foi exclusivamente motivada e organizada pela necessidade “inextricável”
(Aragon, 1996: 40) de falar do almirante, tio de Paulette Mercadier. Essa ne-
cessidade, de início, é o motivo do convite feito ao casal: ele tinha uma outra
obrigação, à qual renuncia para poder desabafar. Além disso, essa necessidade é
tamanha que o faz deixar de lado a cortesia, que consiste em não falar muito de
política “diante de uma bela mulher”.
Do mesmo modo, a única lembrança das refeições de férias em Sainteville
(cena 2) consiste em assinalar que o tio (o “conde”) “falava muito pouco à mesa
com seus sobrinhos” (Ibidem: 83). Enfim, a última refeição no restaurante com
o “biógrafo” em Paris (cena 10), não tem outro objetivo senão a conversa, no
decorrer da qual, este último espera encontrar explicações definitivas para o
comportamento de seu biografado, Mercadier. Para começar, ele diz, aliás, exa-
tamente: “Só conversamos bem com a barriga à mesa” (Ibidem: 479).
Conseqüentemente, entre as duas práticas, uma primeira conexão instala-
se: uma conexão hierárquica que se apóia sobre a articulação entre um programa
de base, que fornece suas condições e seu valor “descritivo”, e um programa de
uso, que fornece os valores modais necessários para a realização do primeiro.
Nada de muito original nesse caso, a não ser o fato de que os dois percur-
sos são concomitantes, em vez de se sucederem, e de que, conseqüentemente, o
64 | Jacques Fontanille

sucesso do programa de uso não é conseguido no momento em que se inicia o


programa de base. Além disso, para sermos mais precisos, o “sucesso” depende
da boa forma do agenciamento entre as duas práticas. Podemos considerar que
esse tipo de conexão, entre dois processos cujos desenvolvimentos são conco-
mitantes e interdependentes, é característico das práticas e de seu nível de per-
tinência, e as distingue dos “programas narrativos”, nos quais a dependência é
de simples pressuposição.
Em outros termos, o “protocolo” da refeição prevê que se fale comendo e,
conseqüentemente, para poder falar, o mais eficaz é sentar-se à mesa (!).

2.5.2.2. Conexão e segmentação

O valor global do agenciamento estratégico entre as duas práticas depende


da qualidade e das propriedades da conexão. No romance, as avaliações explíci-
tas a esse respeito são notáveis: as refeições de férias em Sainteville (cena 3) são
aborrecidas e sem interesse porque não há conversa; a refeição com o almirante
é enfadonha (especialmente para Paulette), porque o almirante fala sem parar,
a ponto de não permitir acompanhar as fases da refeição. A refeição feita com o
biógrafo (cena 10) é bem sucedida, porque as fases da refeição segmentam com
bastante precisão as diferentes fases da conversa. Portanto, há duas maneiras de
desconectar a conversa da refeição: não falar enquanto comem, ou falar de tal
modo que a conversa não respeite as fases da refeição, ocultando ou neutrali-
zando-as. Nesse caso, trata-se exatamente de reunir, de um lado um protocolo e,
de outro, uma conduta, tornando-os complementares, podendo ambos acolher,
segundo as circunstâncias, formas acidentais ou ritualistas.
A ausência de conexão ou uma má conexão entre as duas práticas invalida
o conjunto: aborrecemo-nos enquanto comemos e não apreciamos mais a refei-
ção; não escutamos mais uma conversa que não siga o ritmo da refeição. Então
o valor reside precisamente, não apenas na qualidade da conexão, mas na capa-
cidade desse agenciamento de explicitar-se por si mesmo e de ser reconhecido
pelos participantes. Ora, essa “capacidade” deve ser de tipo metassemiótico, isto
é, estratégica e sensível, pois deve ser observável, se não sempre, ao menos de
maneira recorrente. É a “segmentação recíproca” (ou “co-segmentação”) entre
as duas práticas que cumpre esse objetivo.
Observemos atentamente as condições de uma conexão bem sucedida, por
exemplo, a da refeição com o biógrafo (cena 10). Essa refeição é composta de
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 65

cinco segmentos conversacionais cujas demarcações compreendem todas as fa-


ses marcantes da refeição:

(1) do começo até o filé (Ibidem: 480), a conversa não é evocada e o texto
apenas manifesta as impressões de Mercadier, que olha para seu interlocutor: é
o retrato do Sr. Bellemine;

(2) do filé até a escolha do segundo vinho (Ibidem: 481), os dois parceiros
avaliam-se mutuamente, procuram um assunto para conversar. Bellemine está
inquieto a respeito do julgamento de Mercadier sobre sua biografia. Mercadier
demonstra boa vontade, deixando-se levar pela conversa sobre essa biografia,
mas sem compreender o que o outro espera dele;

(3) do segundo vinho até a escolha dos queijos (Ibidem: 484), sempre sem
compreender o que Bellemine quer dele, Mercadier inverte os papéis, interroga
seu parceiro e delimita suas motivações;

(4) do queijo até o café (Ibidem: 486), enfim, Bellemine encontrou seu tema
e interroga Mercadier sobre sua relação com o trabalho, o dinheiro e a vida em
sociedade;

(5) após o café e o digestivo, a partir de uma pergunta de Bellemine sobre


seus filhos, Mercadier explica porque não retomou o contato com sua família.

Superficialmente, essa segmentação apresenta-se como uma investigação


em cinco fases do tema pertinente de conversação. Em profundidade, ela es-
trutura uma prova (no sentido da semiótica narrativa) em três fases canônicas:
(1) a confrontação (primeiro e segundo segmentos): os parceiros avaliam-se, no
início visualmente (reconhecimento), depois verbalmente (inquietação e expec-
tativa); (2) a dominação (terceiro e quarto segmentos): ora um, ora outro, os
dois parceiros tomam a frente, Mercadier em primeiro lugar16, Bellemine em
seguida; (3) a resolução (quinto segmento): Bellemine acha uma brecha e nela
investe, Mercadier não resiste mais e dá a chave do enigma que o biógrafo pro-
curava elucidar.
A relação entre as duas práticas (comer e falar), sob o efeito dessa co-seg-

16 “A situação estava invertida: agora era Mercadier que interrogava, que perscrutava Bellemine, que se apaixo-
nava pelo problema Bellemine, sua psicologia.” (Ibidem: 440).
66 | Jacques Fontanille

mentação que destaca dos dois lados uma seqüência pertinente (uma refeição
ordenada e completa, uma prova narrativa conforme a norma), funciona agora
como uma semiótica conotativa, em que uma dessas práticas (falar) confirma
e explicita, de modo reflexivo, a canonicidade da outra (comer). Se as duas
seqüências forem síncronas, a conduta exprime de modo reflexivo a boa forma
do protocolo.

2.5.2.3. A cordialidade

Sendo a conexão entre as duas seqüências práxicas a condição geral para a


valorização da refeição, a co-segmentação seria a condição de uma valorização
positiva. A co-segmentação é um fenômeno de natureza aspectual e processu-
al e manifesta tanto para o espectador quanto para os participantes – como já
havíamos sugerido –, a “boa forma” sintagmática apropriada da montagem es-
tratégica. No entanto, para confirmar essa hipótese, é preciso ao menos poder
demonstrar que essa co-segmentação é percebida pelos interessados, e é inter-
pretável enquanto tal: daí então o papel decisivo das “paixões” da co-segmenta-
ção e, particularmente, da “cordialidade”, que sanciona a conexão bem-sucedida
entre as duas práticas.
Dois casos extremos contrapõem-se. A última refeição em família (cena 8)
é uma refeição qualificada como “morna”, mesmo que a conversa a respeito das
“mesas girantes” espíritas que a acompanha seja, entretanto, muito animada e
polêmica.
No entanto, observando mais de perto, notamos que essa conversa é evo-
cada sem menção alguma à refeição que a acompanha, e é somente mais tarde,
graças a uma espécie de anáfora generalizada, que a frase “Um jantar morno”,
que encerra a troca conversacional precedente, nos faz saber que se tratava, na
verdade, de uma discussão à mesa. Esse modo de textualização manifesta, pre-
cisamente nesse caso, a impossibilidade ou a insignificância da conexão entre
as duas práticas. E, nesse sentido, o julgamento axiológico e a reação afetiva
visam, mais precisamente, essa conexão impossível, na medida em que a ex-
pressão “Um jantar morno” é, ao mesmo tempo, o modo de exprimir a ausência
de conexão (enquanto anáfora generalizada) e o suporte da avaliação (enquanto
predicado axiológico). Uma refeição “morna” é então, em suma, uma refeição
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 67

na qual a conversa está totalmente desconectada da alimentação17, e tudo se


passa como se, na ausência de co-segmentação síncrona, a refeição não fosse
narrável. A comutação funciona bem: a ineficiência da conduta conversacional
torna o protocolo alimentar insignificante.
A longa refeição de férias que reúne as famílias Mercadier e Pailleron em
Sainteville (cena 5), ao contrário, é qualificada como “cordial”: “A atmosfera
era extremamente cordial”. Essa apreciação acontece justamente no momento
em que o tio de Sainteville prepara a salada enquanto, ao mesmo tempo, conta
uma história:

A atmosfera era extremamente cordial. E o conde de Sainteville não te-


ria permitido que ninguém temperasse a salada em seu lugar. Ele con-
tava à dama ao seu lado uma história local. Um drama na montanha...
(Ibidem: 177).

O encadeamento é muito claro: o “E” é aqui um conector de glosa, de enri-


quecimento e/ou de ilustração: esse momento de sincronização em que o conde
reivindica o tempero da salada, e a isso se dedica enquanto conta uma história,
manifesta no plano figurativo a co-segmentação dos percursos e suscita direta-
mente o efeito de “cordialidade”.
Algumas linhas depois, comentando uma parte da história, a Sra. Mercadier
serve-se de salada: “O senhor sempre diz isso, meu tio, e é injusto! – protestou
a Sra. Mercadier, enquanto se servia de uma folha com algumas gotas de vina-
gre” (Ibidem: 177). Contar/temperar, protestar/servir-se: a sincronização entre
a segmentação da conversa e a da refeição é perfeita.
Os momentos de sincronização estabelecem nós axiológicos, sensíveis e efi-
cientes, que convencem cada um dos participantes do êxito da estratégia coleti-
va, e que se manifestam por um sentimento de cordialidade.
Portanto, a “boa forma” da seqüência estratégica não é apenas uma estru-
tura objetiva, devendo ser também percebida, o que implica, ao menos, uma
competência dos participantes: eles devem estar em condições de reagir a essa
boa forma, devem ser sensíveis à seqüência canônica, sensíveis ao valor que
está associado à co-segmentação. Como em nosso caso a relação entre essas
duas práticas é orientada, esse valor, que aparece por ocasião de uma percepção
afetiva (“cordial” ou “morna”), é apenas a percepção da adaptação da conduta
conversacional ao protocolo da refeição.

17 É na seqüência dessa mesma refeição que Mercadier exprime sua irritação em relação ao caráter formal e
insignificante do ritual familiar: “Com a família, o essencial é a paciência à mesa”.
68 | Jacques Fontanille

2.5.3. Do plano da expressão ao plano do conteúdo

A relação entre a seqüência alimentar e a seqüência conversacional é refle-


xiva, porém dessimétrica: (1) a segunda reflete a primeira, comenta-a, reforça-a
desdobrando-a de maneira redundante e síncrona; (2) a primeira proporciona à
segunda um enquadramento relativamente estável. Na verdade, o estatuto semi-
ótico dessas duas seqüências é bem diferente: a seqüência alimentar, enquanto
protocolo, é regulada por usos culturais e não é decidida no próprio momento da
refeição, mesmo que seja inovadora, ela deve ser regulada e decidida previamente.
Já a seqüência conversacional, enquanto conduta, ao contrário, geralmente não é
planejada e, mesmo que obedeça a algumas regras culturais, sua forma geral deve
ser criada em tempo real, através de um ajustamento estratégico permanente.
Essa dessimetria influi, então, sobre os efeitos da conexão, já que a seqüên-
cia alimentar pode ser expressa pela conversa (salvo acidente, em caso de escân-
dalo e de saída prematura), enquanto a seqüência conversacional só pode ser
moldada (ou não) pelas fases da refeição. Em suma, o percurso canônico (da
refeição) pode ser refletido pelo percurso “em ato” (da conversação), enquanto o
percurso “em ato” só pode ser infletido pelo percurso canônico.
No entanto, a partir do momento em que levamos em consideração o con-
junto do processo adaptativo, em que dois percursos temáticos competem por
uma mesma configuração expressiva, a da “co-segmentação síncrona”, a relação
semiótica modifica-se. Na verdade, as avaliações implícitas ou explícitas indicam
claramente, como já tentamos mostrar, que é essa regulação auto-adaptativa que
sustenta os valores e que permite, por exemplo, decidir-se pela cordialidade. E
não basta dizer que a conversação síncrona “conota” o sucesso da refeição, pois
nós não saberíamos mais do que isso sobre o conteúdo desse sucesso.
Na verdade, a co-segmentação síncrona só pode ser a expressão do sucesso
se evidenciamos um conteúdo e se, por comutação, podemos verificar que os
acidentes ou modificações de um dos dois planos desencadeiam modificações
no outro plano.

2.5.3.1. A troca ritual

É chegada a hora, portanto, de dar um conteúdo a essa expressão rítmica e


aspectual, sendo que esse conteúdo será, como veremos, de natureza antropoló-
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 69

gica. Cada cena de refeição manifesta, na verdade, uma estrutura de troca, base-
ada no modelo do dom e do contra-dom, ao qual a refeição empresta sua forma
sintagmática. Mas essa troca funciona aqui sob uma condição muito peculiar.
Com efeito, entre todos os ritos de troca possíveis, só há um em que o contra-
dom permanece indeterminado, potencial e fixado sine die. No limite, o dom
não tem outro propósito senão suscitar a boa vontade do destinatário.
Esse tipo de troca ritual é característico do sacrifício. Na verdade, no mo-
mento do sacrifício, um bem é destruído ou consumido em benefício direto
ou indireto de um terceiro. É em troca disso que esse terceiro deverá examinar
favoravelmente as eventuais solicitações ou as necessidades futuras do doador.
Independentemente do conteúdo religioso e figurativo desse tipo de prática ri-
tual, podemos conservar as propriedades seguintes: (1) o eventual contra-dom
permanece indefinido, não restrito, e não se espera que ele seja do mesmo tipo
que o dom (não há jamais, por exemplo, trocas de refeição no romance); (2) a
natureza específica dessa estrutura de troca (dom/boa vontade futura), para ser
reconhecível e eficiente, deve obedecer a uma codificação (aspectual e rítmica)
precisa, que funciona como expressão de seu caráter “quase sacrificial”; (3) esse
tipo de troca, por fim, inaugura um tempo social muito particular, indefinida-
mente estendido (já que não há data fixa para o contra-dom), mas suscetível de
ser a todo momento decomposto, interrompido, ou reiterado (por novos sacri-
fícios): a boa vontade indefinida, na verdade, deve ser “mantida”.
De acordo com essa hipótese, todas as propriedades de conexão e de sin-
cronização que foram anteriormente estabelecidas – especialmente os nós
axiológicos da co-segmentação – decorreriam dessa condição e contribuiriam
diretamente para garantir a eficácia simbólica da seqüência. É, em suma, a ritu-
alização sintagmática do dom-refeição que permite aos parceiros reconhecê-lo
implícita ou explicitamente como uma troca do tipo sacrificial, produtora de
uma “dívida de boa vontade”.

2.5.3.2. A promessa e sua realização

Ao final da refeição na Exposição Colonial (cena 1), o almirante desculpa-se


de maneira bem curiosa: “Durante a sobremesa, o almirante lembrou-se de pro-
messas que havia feito: eu me descuidei, com uma bela mulher...” (Ibidem: 41).
Como podemos observar, o texto não traz nenhuma indicação de promes-
sas. A única menção é a de um convite para jantar, imediatamente seguida da
70 | Jacques Fontanille

passagem já citada, em que se exprime sua “inextricável necessidade de falar”.


Podemos ainda supor, sem grande benefício explicativo, uma elipse textual. Pa-
rece mais vantajoso nos perguntar de que maneira as “promessas” estão conti-
das no próprio convite: de acordo com nossa hipótese, o convite abre um ciclo
de troca em que o contra-dom não deve ser nem imediato, nem restritivo, nem
determinado. Ora, nesse caso, o contra-dom (a escuta atenta) é imposto, conco-
mitante e muito preciso. Ele provém certamente da “boa vontade” em geral, mas
sob condições que não respeitam a forma sacrificial.
Em suma, se um convite para jantar comporta uma promessa, seria a que
respeitaria as cláusulas do modelo sacrificial subjacente. Paulette Mercadier,
a esposa resignada, incorporou perfeitamente esse princípio, que ela emprega
sempre em seus “grandes jantares” anuais: “Era um jantar para ficar quite com
os colegas de Pierre e suas esposas” (Ibidem: 68). O problema aqui, certamente,
é: ficar quite em relação a quê? Como os Mercadier não freqüentam os colegas
do marido, supõe-se que seja justamente essa distância que é preciso ser com-
pensada, e isso é confirmado pelo texto, quando explicita que o jantar serve para
“ficar quite”, em suma, com a diferença de riqueza e meio social entre Mercadier
e seus colegas mais humildes e com a distância social que eles mantêm entre si.
A forma sacrificial – nesse caso, perfeitamente codificada: seqüência, protocolo,
distribuição de lugares e papéis – tem por objetivo fazer conhecer a natureza do
contra-dom esperado: um crédito de boa vontade indeterminado, como com-
pensação pela desigualdade das condições sociais e econômicas, que poderiam
inspirar, a contrario, a má vontade.
O mesmo acontece com a refeição em Sainteville, organizada a partir do
convite dos Pailleron. Aproveitando o pretexto do “salvamento” da filha Pail-
leron por Mercadier, os Pailleron também propõem um ritual sacrificial, des-
tinado a restaurar a boa vontade dos anfitriões, para compensar sua própria
presença incômoda no castelo: de fato, a cordialidade da refeição é, em si mesma
e ao mesmo tempo, uma promessa e uma busca pela boa vontade, em troca do
ritual perfeitamente síncrono.
Em suma, o conteúdo que corresponde à expressão constituída pela “co-
segmentação síncrona das práticas” é, exatamente aqui, uma forma de vida,
regida por uma estrutura sintagmática específica (o rito “quase sacrificial”),
e que comporta, especialmente, uma expectativa e uma promessa indefinidas
de boa vontade.
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 71

2.5.3.3. A recusa à boa vontade (provas de comutação)

Em nosso exemplo, provas de comutação não faltam, e dizem respeito, ao mes-


mo tempo, às figuras da expressão e do conteúdo. A troca fracassa a partir do mo-
mento em que uma das duas propriedades da troca sacrificial não é respeitada.
No que concerne ao conteúdo, o contra-dom está predefinido, restrito a uma
data determinada. É o caso, sobretudo, das refeições na pensão dos Meyer, ao lon-
go das quais é impossível esquecer que fazem parte da remuneração dos professo-
res e inspetores da escola Robinel, razão pela qual são tão mesquinhamente ser-
vidas: essas refeições não têm mais nenhum caráter sacrificial, já que participam
de uma troca de tipo trabalho/retribuição e sua qualidade é proporcional ao valor
comercial dos ensinamentos (valor em baixa constante, diga-se de passagem!).
A atmosfera das refeições de férias em Sainteville é menos desagradável,
mas não menos significativa: ficamos sabendo, ao mesmo tempo, que o tio é
pago pelos pais para hospedar os sobrinhos, e que ele pouco fala com eles du-
rante as refeições: sobre o pano de fundo de uma troca de tipo comercial, e não
de tipo sacrificial, é inútil, portanto, jogar conversa fora, já que, de qualquer ma-
neira, o objetivo da troca não é despertar a boa vontade de quem quer que seja.
No que concerne à expressão, a co-segmentação síncrona não é respeitada.
É o que se passa com as refeições em que a conexão e a sincronização dos dois
percursos práxicos estabelecem-se mal ou não se estabelecem de forma alguma.
É e o que se passa também com as refeições interrompidas. Por exemplo, a sogra
de Mercadier sempre se recusa a ter boa vontade para com seu genro ou, ainda,
Mercadier recusa-se a ter boa vontade para com sua mulher.
Conseqüentemente, os diferentes tipos de transgressão confirmam, de for-
ma sistemática, a relação semiótica entre expressão e conteúdo: uns afetam o
conteúdo (o modelo sacrificial), outros, a expressão (a co-segmentação das duas
práticas). Mas assim que a transgressão incide sobre um dos dois planos, o ou-
tro é também sistematicamente afetado: a dessincronização das duas seqüên-
cias compromete a boa vontade, e o caráter não-sacrificial da troca perturba a
co-segmentação síncrona. Na verdade, é somente quando a ordem da refeição
consegue impor sua seqüência (número e ordem das fases), sua aspectualidade
(completa/incompleta) e seu ritmo (a duração e a intensificação das fases) à
conversa, é que ela demonstra sua eficiência simbólica e suscita, em contrapar-
tida, a boa vontade recíproca dos parceiros. Todavia, é também porque a troca
sacrificial não funciona bem (pelo fato de as propriedades do contra-dom não
serem respeitadas, por exemplo) que os dois percursos vão desconectar-se e que
72 | Jacques Fontanille

a montagem estratégica vai desfazer-se, sincopar-se, abreviar-se ou fixar-se em


uma mera repetição.
No caso da refeição na Exposição Colonial (cena 1), por exemplo, o almi-
rante descumpre sua “promessa” implícita de duas maneiras (daí, talvez, o plu-
ral: suas promessas): (1) no plano do conteúdo (o modelo sacrificial), definindo
e impondo o contra-dom, nesse caso, a escuta atenta e solícita de sua tagarelice;
(2) no plano da expressão (a co-segmentação síncrona das práticas), mantendo
uma conversa contínua e monótona que permanece insensível à segmentação
da refeição.
Portanto, estamos realmente diante de uma relação semiótica forte, em que
os dois planos são solidários e sensíveis às operações de comutação.

2.6. Eficiência da forma sintagmática e formas de vida


Desse modo, o caráter canônico da seqüência alimentar, assim como sua
estreita conexão com a seqüência conversacional, atua diretamente na eficácia
da troca sacrificial, e esta instaura a eficácia simbólica da refeição.
Propusemos analisar a montagem estratégica das práticas da conversa e da
refeição como uma relação semiótica que compreende um plano da expressão
(a co-segmentação síncrona) e um plano do conteúdo (o modelo sacrificial).
Em suma, demonstramos que a estratégia é uma semiótica-objeto, dotada de um
plano da expressão e de um plano do conteúdo, entre os quais ocorrem comuta-
ções que verificam sua pertinência.
Ademais, esses dois planos obedecem, cada um, a uma condição gradual
orientada pela avaliação: o primeiro, à da sincronização das práticas, e o se-
gundo, à da indeterminação do contra-dom. A variação relativa dessas duas
condições permite prever vários tipos de correlação diferentes entre expressões
e conteúdos.
Partindo dessas duas dimensões, a sincronização das práticas e a indeter-
minação do contra-dom, podemos considerar distribuí-las em uma estrutura
tensiva, sob a forma de dois gradientes orientados: um, indo da maior desestru-
turação à forma canônica completa (da desordem assíncrona à ordem perfeita-
mente sincronizada); o outro, da maior determinação do contra-dom à indeter-
minação aberta (da dívida que deve ser honrada imediatamente à boa vontade
generalizada e difusa).
Esta investigação sobre o romance de Aragon evidenciou, sobretudo, a co-
lusão entre essas dimensões, em virtude do peso axiológico que ele atribui à
sincronização entre a seqüência alimentar e a seqüência conversacional. Entre-
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 73

tanto, outras possibilidades deixam-se entrever, consideradas, aqui, como dis-


funções, mas que poderiam também ser valorizadas positivamente.
Por exemplo, no caso da troca comercial (entre os Meyer, sobretudo no
refeitório da escola), a cristalização estereotipada da seqüência alimentar com-
promete a cordialidade das trocas, mas é só uma questão de tempo para que o
contrato seja firmado. Ou ainda: entre Mercadier e seu biógrafo Bellemine, a
troca é de tipo comercial (trocam-se refeições por confidências), mas o encon-
tro é, globalmente, cordial: há, portanto, circunstâncias – e provavelmente uma
outra forma de vida – em que as duas valências estão em tensão inversa, e em
que seu devir antagonista é valorizado positivamente.
Imaginemos uma outra possibilidade baseada no mesmo princípio: na re-
feição com os Pailleron, o protocolo é pouco a pouco rompido, e o ideal da
refeição, segundo a própria confissão de Blanche Pailleron, parece tender ao
piquenique, ou seja, a uma organização embora desestruturada, ainda mais so-
ciável. Nesse caso, a correlação inverte-se, e o aumento da boa vontade esperada
depende da degradação da co-segmentação síncrona.
Portanto, a correlação entre as duas dimensões dá margem a um grande
número de possibilidades, mas somente a dois grandes tipos de correlação: uma
correlação direta, em que as duas dimensões fortalecem-se reciprocamente,
e uma correlação inversa, segundo a qual as duas dimensões enfraquecem-se
reciprocamente. O resultado disso é que a estrutura oferece ao menos quatro
posições salientes e típicas, as duas posições extremas de cada um dos dois tipos
de correlação:
74 | Jacques Fontanille

(1) A troca ritual corresponde a uma combinação da indeterminação do


contra-dom (simples expectativa de boa vontade) e do fortalecimento da forma
sintagmática (conexão e sincronização das práticas);

(2) A troca contratual corresponde ao mesmo grau de sincronização, mas


associado a uma forte determinação dos desafios e das contrapartidas: a refeição
é “comprada” pelo preço da escuta ou da informação, a refeição faz parte expli-
citamente de uma troca comercial;

(3) A troca conflituosa corresponde ao mesmo grau de determinação dos


desafios e das contrapartidas, mas com uma dessincronização das seqüências
práxicas (é a refeição de “altercação”, a armadilha de que todos querem escapar
antes que termine);

(4) A troca informal corresponde ao mesmo grau de dessincronização, mas


com uma fraca determinação dos desafios e das contrapartidas (é a reunião
“bem comportada”, o piquenique ou a refeição improvisada e informal).

Cada um desses tipos tensivos corresponde a um tipo de sociabilidade (ritu-


al, contratual, conflituosa e informal), cuja eficácia é definida pela combinação
de duas gradações sobre cada dimensão de controle, em que cada tipo tensivo
caracteriza uma das formas e um dos valores possíveis da montagem estratégica
entre práticas. No entanto, podemos constatar, no romance de Aragon, que es-
ses quatro tipos de sociabilidade agrupam-se em duas formas de vida: uma que
seria característica da upper class (alta burguesia e nobreza rural), forma de vida
“tradicional” e que só oferece a escolha entre a sociabilidade ritual e a sociabi-
lidade conflituosa; e outra, característica da middle class (pequena burguesia, a
boêmia etc., forma de vida “liberal”), que oferece a escolha entre a sociabilidade
comercial e a sociabilidade informal.
Se essa classificação é válida, então a mudança de regime práxico e estraté-
gico das refeições deve acompanhar os declínios e as ascensões sociais: verifica-
ção bem-sucedida, já que é o caso de todas as personagens que conhecem tais
imprevistos sociais e, especialmente – detalhe significativo – o caso do conde de
Sainteville, conde arruinado, que alterna entre a sociabilidade comercial (com
sua família) e a sociabilidade ritual (com seus vizinhos).
Diante disso, concluímos que a constituição da relação semiótica (entre pla-
no da expressão e plano do conteúdo) não é somente engendrada no próprio
Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização | 75

processo da prática individual ou coletiva, ela é globalmente regida e determi-


nada pela forma de vida da qual a prática em questão provém.

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Semiótica e comunicação | 77

SEMIÓTICA E COMUNICAÇÃO1
José Luiz Fiorin

UMA POLÊMICA NA ÁREA DE COMUNICAÇÃO


Uma polêmica tem agitado a área de Comunicação: qual é seu objeto?
Como deve ele ser tratado? Essa discussão poderia ser considerada um exer-
cício acadêmico, não tivesse ela profundas repercussões sobre os Programas de
Pós-graduação historicamente constituídos, provocando interdição, exclusão e
proscrição de linhas de investigação, de orientações teóricas e mesmo de pes-
quisadores. Wilson Gomes, na época representante da área de Comunicação na
CAPES, em declarações à Revista da FAPESP (nº 82,12: 2002), afirmou que é
preciso limpar o lixão da área de Comunicação. Para ele, o objeto da Comuni-
cação são os meios de comunicação de massa (a imprensa, o rádio, a televisão, o
cinema, etc.) e esse objeto exige a criação de teorias específicas para estudá-lo.
A área de Comunicação faz parte da macro-área de Ciências Sociais Aplica-
das, na qual se encontram também Administração, Ciência da Informação, Di-
reito e Serviço Social. Essa macro-área estuda fenômenos que podem ser abor-
dados de diferentes pontos de vista teóricos, criados em outras áreas. Assim, em
Administração, estuda-se o gerenciamento de empresas, etc., à luz da Teoria das
Organizações, elaborada no interior da Sociologia.
No que tange à área de Comunicação, é preciso considerar, inicialmente,

1 Esse artigo foi publicado inicialmente na revista Galáxia, v. 8, p.13-30, 2004.


78 | José Luiz Fiorin

que só uma divisão disciplinar, que está sendo posta em xeque com os novos
avanços da ciência, que exige abordagens inter ou multidisciplinares, permi-
te estabelecer que seu objeto são apenas os meios de comunicação de massa.
A comunicação é a ação dos homens sobre outros homens, criando relações
intersubjetivas e fundando a sociedade. Isso alarga o objeto da comunicação,
incluindo nele uma gama considerável de fenômenos, que vão desde a conver-
sação cotidiana até a internet. Na verdade, seria preciso, numa concepção me-
nos restritiva, ampliar o campo da Comunicação e não o restringir. No entanto,
consideremos para efeito de argumentação que o objeto dessa área sejam apenas
os meios de comunicação de massa. Eles podem ser estudados do ponto de vista
da significação produzida, do impacto que provocam na sociedade, da recepção
pelos seus destinatários e assim por diante. Em cada um desses casos, as teorias
para estudá-los não são singulares, mas teorias gerais da significação, como a
Semiótica, teorias das mudanças sociais, criadas pela Sociologia, teorias da re-
cepção das linguagens, etc.
Os textos criados pelos meios de comunicação são produtos de linguagens e,
por conseguinte, podem ser examinados pelas teorias lingüísticas e semióticas.
Não há uma teoria para cada uma das linguagens, pois uma teoria singular para
cada uma delas não seria um projeto científico. Afinal, como já ensinavam os fi-
lósofos medievais, Nominantur singularia, sed significantur universalia2. Mesmo
que as ciências humanas não sejam ciências no mesmo sentido em que o são a
Física ou a Química, elas têm compromisso com a generalização das afirmações
e com a verificação das conclusões. Portanto, se os meios de comunicação po-
dem ser estudados do ponto de vista da significação, uma teoria semiótica deve
poder ser empregada no seu estudo, já que a Semiótica se propõe como teoria da
significação. O sentido gerado por um filme não é diferente daquele criado por
um romance. O que distingue um objeto do outro é apenas a forma de manifes-
tar essa significação, é o plano da expressão. No entanto, as teorias semióticas
modernas estão buscando analisar as diferentes manifestações possíveis da sig-
nificação e, portanto, não são alheias a nenhuma forma de exprimir o sentido.
Ouvem-se às vezes razões pelas quais é necessário criar uma teoria particu-
lar para as mídias. Vamos aqui elencar três, que são recorrentes:

1) ao contrário dos textos verbais, os textos midiáticos são produzidos por


diferentes enunciadores (por exemplo, a significação de um filme é criada pelo
iluminador, pelo diretor de fotografia, pelo figurinista, etc.) e, por isso, é preciso

2 São nomeadas as coisas singulares, mas são significadas as universais.


Semiótica e comunicação | 79

uma teoria para explicar o fazer desse sujeito coletivo;


2) nos meios de comunicação de massa, é preciso ter muita clareza a respei-
to do público a quem o produto se dirige (o target, como dizem os publicitários)
e, por isso, o público é um co-enunciador, como ocorre, por exemplo, nas no-
velas de televisão;
3) os textos da mídia são complexos, uma vez que eles são manifestados por
diferentes linguagens (por exemplo, um jornal é um composto de textos verbais,
de fotos, de gráficos, etc.) e, por isso, é preciso que haja uma teoria específica
para esses textos.

Sobre a terceira razão, é preciso dizer que a Semiótica discursiva e narrativa


se tem ocupado não só das manifestações do sentido por uma única linguagem,
mas também daquelas em que isso é feito por meio de diferentes linguagens. É
o que ela vai chamar semióticas sincréticas. No entanto, não se pretende discutir
essa questão, neste trabalho. Vamo-nos debruçar sobre as duas primeiras.
O que seria uma teoria própria dos textos que resultam de um fazer coleti-
vo? No caso do cinema, seria uma descrição do fazer do iluminador, do diretor
de fotografia, do figurinista, etc.? Mas uma descrição do fazer real não é uma
teoria. Essa questão do enunciador coletivo, na realidade, é um falso problema,
pois, do ponto de vista da significação, o que o enunciatário (o receptor) apreen-
de é um todo de sentido e não o sentido dado pela iluminação, pelo figurino, etc.
O problema real é como se processa a enunciação nas linguagens sincréticas,
como as diferentes linguagens que a constituem manifestam um todo organiza-
do de sentido. Isso diz respeito a uma teoria geral da enunciação, dado que não
são apenas as mídias que são textos sincréticos. Nas artes, há inúmeros exem-
plos: o teatro, a ópera e assim por diante.
A questão é que, quando se examina a problemática da produção do dis-
curso nas mídias, pensa-se no enunciador real, de carne e osso, e não numa
instância significante, um efeito do discurso.
Por outro lado, quando se estuda o público-alvo, o target, tem-se a impres-
são de que isso é uma característica peculiar aos meios de comunicação de mas-
sa e não um fato próprio de todo e qualquer ato de comunicação.
Neste trabalho, vamos pensar essas duas instâncias, o produtor do discurso
e seu receptor, à luz da Semiótica francesa, para mostrar o equívoco daqueles
que afirmam nada ter a Semiótica a oferecer aos estudos de comunicação.
80 | José Luiz Fiorin

A ENUNCIAÇÃO
Benveniste (1995) mostra que a enunciação é a instância do ego, hic et nunc.
O eu é instaurado no ato de dizer: eu é quem diz eu. A pessoa a quem o eu se
dirige é estabelecida como tu. O eu e o tu são os actantes da enunciação, os
participantes da ação enunciativa. Ambos constituem o sujeito da enunciação,
porque o primeiro produz o enunciado e o segundo, funcionando como uma es-
pécie de filtro, é levado em consideração pelo eu na construção do enunciado. O
eu realiza o ato de dizer num determinado tempo e num dado espaço. Aqui é o
espaço do eu, a partir do qual todos os espaços são ordenados (aí, lá, etc.); agora
é o momento em que o eu toma a palavra e, a partir dele, toda a temporalidade
lingüística é organizada. A enunciação é a instância que povoa o enunciado de
pessoas, de tempos e de espaços.
O mecanismo básico com que se instauram no texto pessoas, tempos e es-
paços é a debreagem. Ela pode ser de dois tipos: a enunciativa e a enunciva. A
primeira projeta no enunciado o eu-aqui-agora da enunciação, ou seja, instala no
interior do enunciado os actantes enunciativos (eu/tu), os espaços enunciativos
(aqui, aí, etc.) e os tempos enunciativos (presente, pretérito perfeito 1, futuro do
presente).3 A debreagem enunciva constrói-se com o ele, o alhures e o então, o
que significa que, nesse caso, ocultam-se os actantes, os espaços e os tempos da
enunciação. O enunciado é então construído com os actantes do enunciado (3ª
pessoa), os espaços do enunciado (aqueles que não estão relacionados ao aqui) e
os tempos do enunciado (pretérito perfeito 2, pretérito imperfeito, pretérito mais
que perfeito e futuro do pretérito ou presente do futuro, futuro anterior e futuro
do futuro4). A debreagem enunciativa produz, basicamente, um efeito de sentido
de subjetividade, enquanto a enunciva gera, fundamentalmente, um efeito de sen-
tido de objetividade. Como se vê, a enunciação deixa marcas no enunciado e, com
elas, pode-se reconstruir o ato enunciativo. Este não é da ordem do inefável, mas
é tão material quanto o enunciado, na medida em que ele se enuncia. Podemos
distinguir, pois, nos textos, a enunciação enunciada e o enunciado. Aquela é o
conjunto de elementos lingüísticos que indica as pessoas, os espaços e tempos da
enunciação, bem como todas as avaliações, julgamentos, pontos de vista que são
de responsabilidade do eu, revelados por adjetivos, substantivos, verbos, etc. O
enunciado é o produto da enunciação despido das marcas enunciativas.
3 Chamamos pretérito perfeito 1 a forma verbal que indica anterioridade ao momento da enunciação e pretérito
perfeito 2 a forma que assinala a concomitância a um marco temporal pretérito.
4 Presente do futuro é a forma verbal que indica uma concomitância a um marco temporal futuro, futuro ante-
rior é a forma que assinala anterioridade a um marco temporal futuro e futuro do futuro é a forma que marca
uma posterioridade a um marco temporal futuro.
Semiótica e comunicação | 81

A enunciação é a instância lingüística logicamente pressuposta pela exis-


tência do enunciado. Isso significa que um enunciado como Todo homem é mor-
tal pressupõe um Eu digo (Todo homem é mortal). Essa afirmação parece um
truísmo, já que, se existe um dito, há um dizer que o produziu. No entanto, ela
é prenhe de conseqüências teóricas. Quando se projeta um eu no interior do
enunciado, de tal forma que se diga Eu digo que todo homem é mortal, haverá
ainda assim uma instância pressuposta que terá produzido esse enunciado: Eu
digo (Eu digo que todo homem é mortal). Isso implica que é preciso distinguir
duas instâncias: o eu pressuposto e o eu projetado no interior do enunciado.
Teoricamente, essas duas instâncias não se confundem: a do eu pressuposto é
a do enunciador e a do eu projetado no interior do enunciado é a do narrador.
Como a cada eu corresponde um tu, há um tu pressuposto, o enunciatário, e
um tu projetado no interior do enunciado, o narratário. Além disso, o narrador
pode dar a palavra a personagens, que falam em discurso direto, instaurando-se
então como eu e estabelecendo aqueles com quem elas falam como tu. Nesse
nível, temos o interlocutor e o interlocutário.
O enunciador e o enunciatário são o autor e o leitor, o produtor do texto e
seu receptor. Cabe, porém, uma advertência: não são o autor e o leitor reais, em
carne e osso, mas o autor e o leitor implícitos, ou seja, uma imagem do autor e
do leitor construída pelo texto.

A IMAGEM DO ENUNCIADOR
Quando falamos em eu e tu, falamos em actantes da enunciação, ou seja,
em posições dentro da cena enunciativa, aquele que fala e aquele com quem se
fala. No entanto, nos diferentes textos, essas posições são concretizadas e esses
actantes tornam-se atores da enunciação. O ator é uma concretização temático-
figurativa do actante. Por exemplo, o enunciador é sempre um eu, mas, no texto
Memórias póstumas de Brás Cubas, esse eu é concretizado no ator Machado de
Assis. Nunca é demais insistir que não se trata do Machado real, em carne e
osso, mas de uma imagem do Machado produzida pelo texto.
A questão é então ver como se constrói a imagem do enunciador, isto é, o
ator da enunciação. Para pensar a questão, voltemos à Retórica de Aristóteles.
Numa determinada passagem, o estagirita afirma:

É o éthos (caráter) que leva à persuasão, quando o discurso é organizado


de tal maneira que o orador inspira confiança. Confiamos sem dificulda-
82 | José Luiz Fiorin

de e mais prontamente nos homens de bem, em todas as questões, mas


confiamos neles, de maneira absoluta, nas questões confusas ou que se
prestam a equívocos. No entanto, é preciso que essa confiança seja resul-
tado da força do discurso e não de uma prevenção favorável a respeito
do orador (I, 1356a).

Roland Barthes, comentando essa passagem, diz que os éthe são

os traços de caráter que o tribuno deve mostrar ao auditório (pouco im-


porta sua sinceridade) para causar boa impressão. (...) O éthos é, no sen-
tido próprio, uma conotação. O orador enuncia uma informação e, ao
mesmo tempo, afirma: sou isso, sou aquilo (1975: 203).

Em termos mais atuais, dir-se-ia que o éthos não se explicita no enunciado,


mas na enunciação. Quando um professor diz eu sou muito competente, está
explicitando uma imagem sua no enunciado. Isso não serve de prova, não leva
à construção do éthos. O caráter de pessoa competente constrói-se na maneira
como organiza as aulas, como discorre sobre os temas, etc. À medida que ele
vai falando sobre a matéria, vai dizendo sou competente. Como vimos acima,
a enunciação não é da ordem do inefável. Por conseguinte, o éthos explicita-
se na enunciação enunciada, ou seja, nas marcas da enunciação deixadas no
enunciado. Portanto, a análise do éthos do enunciador nada tem do psicolo-
gismo que, muitas vezes, pretende infiltrar-se nos estudos discursivos. Trata-se
de apreender um sujeito construído pelo discurso e não uma subjetividade que
seria a fonte de onde emanaria o enunciado, de um psiquismo responsável pelo
discurso. O éthos é uma imagem do autor, não é o autor real; é um autor discur-
sivo, um autor implícito.
Aristóteles indaga, em sua Retórica, quais são as razões que inspiram con-
fiança num orador. Afirma:

Há três coisas que inspiram confiança no orador, porque há três razões


que nos levam à convicção, independentemente das demonstrações.
São o bom senso, a prudência, a sabedoria prática (phrónesis), a virtude
(areté) e benevolência (eúnoia). Os oradores podem afastar-se da ver-
dade por todas essas razões ou por uma dentre elas. Por causa da falta
de bom senso, podem não exprimir uma opinião correta; por causa de
sua malvadeza podem, mesmo pensando bem, não expressar aquilo que
pensam; mesmo sendo prudentes e honestos, podem não ser benevolen-
tes. Por essas razões, os oradores podem, mesmo conhecendo a melhor
solução, não aconselhá-la. Não há nenhum outro caso (II, 1378a).
Semiótica e comunicação | 83

Esse passo da obra do estagirita deve ser lido, como nos mostram os comen-
tadores, como uma descrição do éthos do orador. Um orador inspira confiança
se seus argumentos são razoáveis, ponderados; se ele argumenta com honesti-
dade e sinceridade; se ele é solidário e amável com o auditório. Podemos, então,
ter três espécies de éthe: a) a phrónesis, que significa o bom senso, a prudência,
a ponderação, ou seja, que indica se o orador exprime opiniões competentes e
razoáveis; b) a areté, que quer dizer a virtude, mas virtude tomada no seu sen-
tido primeiro de “qualidades distintivas do homem” (latim uir, uiri), portanto,
a coragem, a justiça, a sinceridade; nesse caso, o orador apresenta-se como al-
guém simples e sincero, franco ao expor seus pontos de vista; c) a eúnoia, que
denota a benevolência e a solidariedade; nesse caso, o orador dá uma imagem
agradável de si, porque mostra simpatia pelo auditório. O orador que se utili-
za da phrónesis se apresenta como sensato, ponderado, e constrói suas provas
muito mais com os recursos do lógos do que com os dos páthos ou do éthos (em
outras palavras, com os recursos discursivos); o que se vale da areté se apresenta
como desbocado, franco, temerário e constrói suas provas muito mais com os
recursos do éthos; o que usa a eúnoia apresenta-se como alguém solidário com
seu enunciatário, como um igual, cheio de benevolência e de benquerença, e
erige suas provas muito mais com base no páthos.
Dominique Maingueneau diz que o éthos compreende três componentes: o
caráter, que é o conjunto de características psíquicas reveladas pelo enunciador
(é o que chamaríamos o éthos propriamente dito), o corpo, que é o feixe de
características físicas que o enunciador apresenta; o tom, a dimensão vocal do
enunciador, desvelada pelo discurso (1995: 137-140).
Quando se fala em éthos do enunciador, estamos falando em ator e não em
actante da enunciação. Um ator é “uma unidade lexical, de tipo nominal, que,
inserida no discurso, é suscetível de receber, no momento de sua manifesta-
ção, investimentos da sintaxe narrativa de superfície e da semântica discursiva”.
(Greimas e Courtès 1979: 7) Por ser o lugar de convergência e de investimento
de um componente sintáxico e de um componente semântico, o ator deve ter,
pelo menos, um papel actancial e um papel temático. O ator pode, enfim, ser
figurativizado. Lembram Greimas e Courtès:

Do ponto de vista da produção do discurso, poder-se-á distinguir o ac-


tante da enunciação, que é um actante logicamente implícito, logicamen-
te pressuposto pelo enunciado, do ator da enunciação: nesse último caso,
o ator será, por exemplo, “Baudelaire”, na medida em que se define pela
totalidade de seus discursos (1979: 8).
84 | José Luiz Fiorin

A análise do éthos do enunciador é, como já se disse, a análise do ator da


enunciação. No entanto, verificamos que há diferentes níveis enunciativos num
texto: enunciador, narrador e interlocutor. Não há qualquer dificuldade para
determinar o que se poderia chamar o éthos do interlocutor, já que este é uma
personagem construída na obra, com todas as suas características físicas e psí-
quicas. O problema é distinguir o caráter do enunciador e o do narrador. É
Greimas quem nos dá a pista para fazer essa distinção. Diz ele, em passagem
citada acima, que o enunciador tomado como ator da enunciação se define pela
totalidade de sua obra. Quando analisamos uma obra singular, podemos definir
os traços do narrador, quando estudamos a obra inteira de um autor é que po-
demos apreender o éthos do enunciador. No caso de um jornal, quando anali-
samos o texto de um articulista (José Simão, por exemplo), definimos os traços
de um narrador; apenas quando investigamos o jornal como uma totalidade de
sentido, encontramos um enunciador, que denominamos como o Estadão, a
Folha, o JB. É a percepção intuitiva desse enunciador único que nos leva a afir-
mações como O Estadão tem uma linha mais definida do que a Folha, pois esta
acolhe uma pluralidade de opiniões maior.
Norma Discini de Campos mostra que a totalidade em que se busca o ca-
ráter do enunciador é diferencial, construída para os propósitos da análise. Por
exemplo, se vamos estabelecer os éthe do que se chama, comumente, imprensa
séria e imprensa sensacionalista, verificamos que os jornais O Estado de S. Paulo
e Folha de S. Paulo estão englobados dentro da mesma totalidade, enquanto
Notícias populares pertence a outra totalidade. No entanto, se a análise visa a
mostrar a distinção entre os éthe do Estadão e da Folha, cada um desses jornais
constitui uma totalidade (2003: 117-222).
Onde se encontram, na materialidade discursiva da totalidade, as marcas
do éthos do enunciador? Dentro dessa totalidade, procuram-se recorrências em
qualquer elemento composicional do discurso ou do texto: na escolha do assunto,
na construção das personagens, nos gêneros escolhidos, no nível de linguagem
usado, no ritmo, na figurativização, na escolha dos temas, nas isotopias, etc. Num
jornal, a imagem do enunciador se mostra até mesmo no tamanho das letras utili-
zadas, no número de colunas ocupadas pela manchete e assim por diante.
Valendo-nos de uma análise feita por Norma Discini de Campos dos jor-
nais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, de um lado, e Notícias Populares, de
outro (2003: 117-152), tracemos os elementos principais dos éthe da chamada
imprensa séria e da denominada imprensa sensacionalista. Na dita imprensa
Semiótica e comunicação | 85

séria, a diagramação é equilibrada; respeita-se a divisão da página, padronizada


em seis colunas; os textos e as fotos apresentam uma distribuição simétrica; as
manchetes são compostas por letras regularmente pequenas; não há contrastes
gritantes de cores e de letras. Sua temática privilegiada são a política nacional,
a economia, a política internacional; o primeiro caderno trata das notícias po-
líticas. Seu domínio narrativo é o público. Por isso, as notícias policiais, por
exemplo, são dadas com muita discrição. Com o apagamento das marcas da
enunciação no enunciado (por exemplo, com o uso das formas impessoais de
narrar), cria-se um efeito de sentido de objetividade e de distanciamento. Com
o apagamento da enunciação, é como se as notícias se enunciassem a si mesmas,
o que gera um efeito de sentido de verdade. Com o uso de procedimentos como
ouvir os dois lados, produz-se um simulacro de isenção. Utiliza-se a norma cul-
ta da língua e evitam-se as gírias e os palavrões. Há uma busca da explicação da
notícia e da tomada de posições. Nada nesses jornais é hiperbólico, tudo está na
“justa medida”.
Em Notícias Populares, os padrões são completamente diferentes. Na pri-
meira página, a manchete, em letras enormes, em negrito, mais espessas do
que o padrão dos outros jornais, ocupa mais da metade da página. As fotos
são imensas e nelas o colorido é extremamente forte. A primeira página parece
anárquica, porque nela os títulos e as fotos parece amontoarem-se na página. A
temática privilegiada em NP são os faits divers, os esportes, as “dicas” de sobre-
vivência no aqui e agora, a vida dos artistas, os assuntos referentes ao misticis-
mo, ao esoterismo. Buscam-se os eventos mais extravagantes e trágicos da vida
privada. Fica-se no domínio imediato da experiência (por exemplo, esse jornal
não tem editoriais). A linguagem utilizada é uma variante popular, repleta de gí-
rias e termos chulos (“Corno elétrico causa blecaute” - 19/11/2000): manchete
de notícia a respeito de um marido traído que subiu num poste de eletricidade
e causou um apagão). Usam-se muitos aumentativos (por exemplo, Timão, Ver-
dão, Fogão, para fazer referência aos times de futebol Corinthians, Palmeiras e
Botafogo). Há muitas fotos e poucas palavras (mancha bastante arejada e letras
com tipos grandes). Isso dá um ritmo acelerado à enunciação. Tudo em NP é
hiperbólico. Não se apagam todas as marcas da enunciação no enunciado. Mos-
tram-se muitas fotos de mulheres semidespidas. Debocha-se do mundo com, por
exemplo, manchetes enganadoras ou frases maliciosas (“Padre Marcelo vai mudar
de Igreja” - 19/02/1999): sobre a mudança do local de celebração das missas do Pa-
dre Marcelo; Exclusivo furo mundial: “John Kennedy casou ontem em São Paulo”
- 24/07/1999): sobre um indivíduo que tinha o nome de John Kennedy e que se
86 | José Luiz Fiorin

casou). Ao falar sobre artistas de televisão, misturam-se realidade e ficção (por


exemplo, “Xuxa cansou de beijar Fred” - 5/12/2000): Fred era uma personagem
de uma novela que era mostrada na época em que o jornal foi publicado).
Essas marcas composicionais e estilísticas permitem compor o éthos da
imprensa séria e o da sensacionalista. Aquele é sutil, fino, busca compreender
o mundo em que vive, apresenta-se como alguém aparentemente isento, con-
fiável, porque transmite um saber englobante do mundo. Seu corpo é sóbrio e
contido, seus gestos são calculados. O tom de sua voz é sério, mas brando, é
uma voz que não se eleva, pausada e ritmada, sua expressão é equilibrada. É um
éthos de reserva e elegância, um éthos da “justa medida”. Já o éthos do enuncia-
dor criado por Notícias populares é mais rude, fala com franqueza, exibe sua
virilidade (o que se observa no apelo erótico explícito das mulheres seminuas),
sem “frescuras”, sem a contenção dada pelas normas da polidez. É um ator
redundante, “espaçoso”, impaciente (o que se nota na enunciação acelerada).
Esse ator tem um corpo avesso à contenção, seus gestos são atabalhoados. Ele
não fala, grita. Seu tom de voz nada tem da intensidade das vozes consideradas
bem educadas.
Como se vê, embora o jornal seja uma criação coletiva, os diferentes fazeres
dos diversos sujeitos reais que atuam em sua produção estão subordinados a
uma instância significante única, que permite que o produto seja apreendido
como um todo de sentido (Landowski 1989: 155-166). Para o estudo do sentido
do objeto midiático, não têm nenhum relevo os vários fazeres dos sujeitos reais,
mas o que importa é apreensão da imagem do enunciador veiculada pelo texto.
O que foi dito do jornal vale também para o cinema, a televisão, etc. No cinema,
por exemplo, o enunciador é o diretor: não, evidentemente, o diretor de carne e
osso, mas sua imagem construída pela sua obra.

A IMAGEM DO ENUNCIATÁRIO
Como já se disse, o eu sempre se dirige a um tu e, portanto, a cada instância
da enunciação, em que um actante diz eu, corresponde um tu. Ao enunciador
está em correlação o enunciatário; ao narrador, o narratário; ao interlocutor, o
interlocutário. Cabe ainda lembrar que ensina Greimas que enunciador e enun-
ciatário constituem o sujeito da enunciação. (1979: 125) Ao colocar o enuncia-
tário como uma das instâncias do sujeito da enunciação, Greimas quer ressaltar
seu papel de co-enunciador. Com efeito, a imagem do enunciatário constitui
Semiótica e comunicação | 87

uma das coerções discursivas a que obedece o enunciador: não é a mesma coisa
produzir um texto para um especialista numa dada disciplina ou para um leigo;
para uma criança ou para um adulto. O enunciatário é também uma construção
do discurso. Não é o leitor real, mas um leitor ideal, uma imagem de um leitor
produzida pelo discurso. Assim como no texto particular se constrói a imagem
do narrador, enquanto é numa totalidade discursiva que se encontra o éthos do
enunciador, também num texto singular se constrói a imagem do narratário,
seja ele explícito ou implícito, enquanto numa totalidade discursiva, recortada
para os fins da análise, constrói-se a imagem do enunciatário. Essa distinção
remete à possibilidade de uma diferença entre as duas imagens.
É preciso analisar como se constrói a imagem do enunciatário, isto é, esse
ator da enunciação, que não é uma instância abstrata e universal, o tu, pressupos-
ta pela existência do enunciado. Ao contrário, é uma imagem concreta a que se
destina o discurso. O enunciatário, como vimos, não é um ser passivo, que ape-
nas recebe as informações produzidas pelo enunciador, mas é um produtor do
discurso, que constrói, interpreta, avalia, compartilha ou rejeita significações.
Para pensar o enunciatário como ator da enunciação, vamos voltar novamen-
te à Retórica, de Aristóteles. Num ato de comunicação, três elementos acham-se
envolvidos: o orador, o auditório e o discurso, ou, em outros termos, o éthos, o
páthos e o lógos. Atualmente, poder-se-ia dizer que, num ato comunicativo, há
uma relação entre três instâncias: o enunciador, o enunciatário e o discurso.
Mostra o estagirita que os argumentos válidos para certos auditórios
deixam de sê-lo para outros; os argumentos adequados em certos momen-
tos não o são em outros; os argumentos apropriados em determinados luga-
res não atingem o resultado esperado em outros. O orador, portanto, para
construir seu discurso, precisa conhecer seu auditório. Mas conhecer o
quê? O páthos ou o estado de espírito do auditório. O páthos é a disposição
do sujeito para ser isto ou aquilo. Por conseguinte, bem argumentar implica
conhecer o que move ou comove o auditório a que o orador se destina. (I,
II, 1356a). Aristóteles trata longamente das paixões que movem o auditório
no livro II da Retórica. Cícero, no De oratore, afirma: “...nobis tamen, qui
in hoc populo foroque uersamus, satis est, ea de moribus hominum et scire
et dicere quae non abhorrent ab hominum moribus” (I, 219)5. Por essa ra-
zão, assim o romano define as qualidades do orador: “Acuto homine nobis
opus est, et natura usuque callido, qui sagaciter peruestiget, quid sui ciues,

5 Para nós que nos ocupamos desse povo e do foro, basta conhecer os costumes das pessoas e dizer aquelas
coisas que não contrariam a opinião delas.
88 | José Luiz Fiorin

quibus aliquid dicendo persuadere uelit, cogitent, sentiant, opinentur, exs-


pectent” (I, 223).6
O páthos não é a disposição real do auditório, mas a de uma imagem que o
enunciador tem do enunciatário. Essa imagem estabelece coerções para o dis-
curso: por exemplo, é diferente falar para um auditório de militantes políticos
ou para um auditório que julga a política uma coisa aborrecida. Nesse sentido,
o auditório, o enunciatário, o target, como dizem os publicitários, faz parte do
sujeito da enunciação; é produtor do discurso, na medida em que determina
escolhas lingüísticas do enunciador. Evidentemente, essas escolhas não são ne-
cessariamente conscientes.
A imagem do enunciatário é um papel temático, que é composto de uma
complexa rede de relações. Cícero diz que o orador precisa saber o que pensam
(cogitent), sentem (sentiant), opinam (opinentur), esperam (exspectent) aque-
les a quem deseja persuadir. Isso quer dizer que essa imagem, consubstanciada
num papel temático, tem uma dimensão cognitiva: de um lado, ideológica, da
ordem do saber (cogitent), de outro, da ordem do crer (opinentur); uma dimen-
são patêmica (sentiant) e uma dimensão perceptiva (exspectent).
O Presidente Lula parece ter uma percepção muito aguda da imagem do
enunciatário a quem se dirige. Num de seus discursos sobre as reformas da pre-
vidência afirmou que não era justo que uma procuradora ou uma professora
universitária se aposentassem aos quarenta e oito anos, enquanto uma cortado-
ra de cana se aposenta aos sessenta anos. Disse que iria mudar essa situação. O
enunciatário poderia ser tematizado como o “povão”, que é constituído de uma
rede de relações semânticas: percebe a sociedade brasileira como um lugar de
privilégios e injustiças, sente revolta diante desse estado de coisas e espera um
salvador que mude essa situação. Por isso, o éthos do enunciador construído no
discurso presidencial é o de um salvador, de um redentor. Daí o tom messiânico
de seu discurso: é ele quem vai reparar as injustiças. Não existe, nesse discurso,
a mediação democrática do Congresso Nacional; as mudanças dar-se-ão pela
vontade do presidente. Em 2003, em Pelotas, o Presidente afirmou: “A coisa que
eu mais queria na minha vida, quando casei com a minha galega [Marisa], era
um filho. Ela engravidou logo no primeiro dia de casamento, porque pernam-
bucano não deixa por menos” (FSP, 18/6/2003). O éthos do macho, que associa
desempenho sexual à valentia, à coragem; que se apresenta como o homem sim-
ples e sincero, dirige-se a um enunciatário, cujo páthos tem o mesmo perfil.

6 É necessário um homem agudo, hábil por natureza e experiência, que tenha uma sagaz percepção do que
pensam, sentem, opinam e esperam seus cidadãos e aqueles a quem deseja persuadir pelo seu discurso.
Semiótica e comunicação | 89

Vejamos, de maneira rápida, apenas à guisa de ilustração, como os jornais O


Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo constroem seus enunciatários. Este tem tex-
tos menores do que aquele, tem mais fotos e fotos maiores e tem páginas menos
compactas. Apresenta uma seção internacional menos densa. Exibe, com gran-
de freqüência, quadros azuis, em que são explicados os antecedentes da notícia
que está sendo dada, e parênteses explicativos para as siglas apresentadas: por
exemplo, CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito); TCU (Tribunal de Contas
da União), TST (Tribunal Superior do Trabalho). Os textos são escritos no que se
poderia chamar a norma culta real. Os períodos dos textos não são muito longos.
Dá mais espaço do que o Estado para a cultura e as diversões, apresentando, com
muita freqüência, movimentos culturais alternativos. Tem um ombudsman que,
aos domingos, apresenta críticas, às vezes bastante duras, ao jornal. Na página
dos editoriais, apresenta, além de uma charge, artigos de cronistas sediados no
Rio, em São Paulo e em Brasília e artigos de colaboradores variáveis. Já o Estadão
apresenta textos maiores do que os da Folha e tem páginas mais compactas. Sua
seção internacional e seu caderno de Economia são mais densos do que os da
Folha. Traz menos explicações dos antecedentes das notícias e os parênteses ex-
plicativos aparecem apenas em situações excepcionais. Os textos são escritos no
que se poderia denominar a norma culta escolar. Os períodos são mais longos e a
sintaxe, mais complexa. Seu caderno de cultura dá mais espaço à cultura erudita
e à cultura popular tida como mais sofisticada. Não tem ombudsman e sua pá-
gina de editoriais apresenta somente a posição do jornal e as cartas dos leitores.
Seus editoriais são com mais freqüência modalizados pela certeza, enquanto a
Folha modula, freqüentemente, seus pontos de vista pela contingência (exemplo
típico disso é apresentar um assunto, sob a forma de uma interrogação, que é
respondida por três articulistas: um responde afirmativamente; outro, negativa-
mente; outro, em termos). Poderíamos continuar a enumerar diferenças entre os
dois jornais. No entanto estas bastam para pensarmos na imagem do enunciatá-
rio construída por esses órgãos da imprensa.
O enunciatário do Estadão é um homem que pertence às elites do país, que
conhece bem os fatos da política e da economia, para quem, portanto, não é
preciso, a todo momento, explicar os antecedentes das notícias, o papel exercido
por determinadas personalidades citadas nos textos e o significado das siglas
de órgãos governamentais. É um consumidor da cultura erudita e das mani-
festações consideradas mais sofisticadas da cultura popular. Esse homem tem
posições políticas bem definidas, é conservador em matéria de economia e po-
lítica. É cheio de certezas e, portanto, o jornal pode apresentar-se com posições
90 | José Luiz Fiorin

bem marcadas, enfatizando menos a relatividade e a pluralidade de opiniões.


Para ele, a leitura é o meio mais importante de obtenção de informações. Já o
enunciatário da Folha é o descolado (artistas, professores universitários, etc.),
que tem interesses muito variados. Não é que não se interesse pela política, mas
seu interesse por ela é relativo. Por isso, não conhece todos os órgãos governa-
mentais nem todos os atores da política ou da economia nacionais. Interessa-
se apenas pelas grandes questões da política internacional. É um consumidor
de todas as manifestações culturais, entre elas as alternativas. Tem curiosidade
pelas matérias relativas ao comportamento (veja-se, por exemplo, a pauta da
Revista da Folha). Não se informa apenas pelos jornais e, por isso, não dedica
muito tempo a sua leitura. É pluralista. Para o leitor do Estadão, o mundo é ob-
jeto do conhecimento e campo de ação; para o leitor da Folha, o mundo é objeto
de contemplação. O tom do primeiro é viril, educado, sério, peremptório; o do
segundo é levemente blasé tingido por certa ironia.
Como se vê, cada um dos jornais constrói seu público, seu leitor, a partir
de características discursivas. Essa imagem do enunciatário passa a ser um co-
enunciador, na medida em que ela determina a escolha das matérias que entra-
rão no jornal, a forma como os textos são redigidos, a disposição da página, etc.
Por outro lado, o enunciatário adere ao discurso, porque nele se vê constituído
como sujeito, identificando-se com um dado éthos do enunciador.
A eficácia do discurso ocorre, quando o enunciatário incorpora o éthos
do enunciador. Essa incorporação pode ser harmônica, quando éthos e páthos
ajustam-se perfeitamente (é o caso do enunciatário da Folha ou do Estado) ou
complementar (quando o éthos responde a uma carência do páthos (é o caso dos
manuais de auto-ajuda, em que a um enunciatário inseguro, confuso, que busca
segurança, corresponde um enunciador cheio de certezas). O Ministro da Jus-
tiça Márcio Tomás Bastos afirmou que era uma afronta à Prefeita de São Paulo
jogar uma galinha sobre ela, como fizeram alguns estudantes da Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco, da mesma forma como seria afrontoso jo-
gar um veado sobre um homem (FSP, 12/08/2003). Ele teve, depois de variados
protestos, que pedir desculpas pela infelicidade de sua frase, porque ela revelava
preconceito contra os homossexuais (FSP, 13/08/2003). Evidentemente, ele se
dirigiu a um enunciatário que não admite esse tipo de preconceito e, portanto,
seu discurso não foi eficaz.
A eficácia discursiva está diretamente ligada à questão da adesão do enun-
ciatário ao discurso. Ele não adere ao discurso apenas porque este é apresentado
como um conjunto de idéias que expressa seus possíveis interesses, mas sim,
Semiótica e comunicação | 91

porque se identifica com um dado sujeito da enunciação, com um caráter, com


um corpo, com um tom. Assim, o discurso não é apenas um conteúdo, mas
também um modo de dizer, que constrói os sujeitos da enunciação. O discurso,
ao construir um enunciador, erige também seu correlato, o enunciatário.
Onde se encontram, na materialidade discursiva da totalidade, as marcas
do páthos do enunciatário? Dentro dessa totalidade, procuram-se recorrências
em qualquer elemento composicional ou no estilo do discurso. Em outras pala-
vras, as marcas da presença do enunciatário não se encontram no enunciado (o
dito), mas na enunciação enunciada, isto é, nas marcas deixadas pela enuncia-
ção no enunciado (o dizer).
Analisemos sucintamente um programa de televisão, o do Ratinho, para
examinar a eficácia de seu discurso. Como mostramos acima, não se trata de
buscar a imagem do enunciatário num programa específico, mas no programa
visto como uma totalidade.
O programa do Ratinho tinha, basicamente, duas vertentes: uma, que se po-
deria chamar jornalística e de serviços, e outra, em que se apresentavam atra-
ções artísticas. Os serviços prestados pelo programa eram realização de exames
de DNA para determinação de paternidade, busca de familiares que não se sabia
onde estavam, ajuda para que a pessoa pudesse começar um pequeno negócio ou
realizar um sonho. As notícias eram aquelas bastante “bizarras”, que mostravam
a “miséria humana”: fatos policiais, brigas familiares, comportamentos sexuais
minoritários (ou não tão minoritários assim), doenças estranhas, fenômenos pa-
ranormais. As notícias mostravam tudo o que é “extravagante” e trágico na vida
privada. Quando se falava de política, falava-se apenas daquilo que atinge direta e
imediatamente o telespectador: aumento da contribuição do INSS, criação da taxa
de lixo e de iluminação, etc. Trata-se de notícias mais do âmbito privado do que
do público. No que diz respeito às atrações artísticas, apresentava-se aquilo que é
considerado brega: cantores sertanejos, cantores da “dor de cotovelo”, etc.
O estilo do apresentador era escrachado e politicamente incorreto. Dois
exemplos mostram isso. Comentando o casamento da Prefeita de São Paulo,
disse que, durante o almoço da festa, foi servido picadinho de carne. Afirmou
que, se tivesse sido convidado, daria a ela um presente muito bom, como uma
baixela de prata ou um serviço de jantar de porcelana, e que, portanto, não ad-
mitiria que servissem picadinho a ele. Ridicularizou o cardápio, um almoço de
comidas tradicionais de fazenda. Como se observa, o apresentador fazia derri-
são do estilo de vida das classes altas e exaltava um estilo de vida popularesco,
em que se busca um certo “luxo”. Afinal, como dizia Joãozinho Trinta, quem
92 | José Luiz Fiorin

gosta de pobreza é intelectual. Por outro lado, seu estilo era politicamente in-
correto: por exemplo, um homossexual que foi reclamar que seu parceiro era
sexualmente insaciável foi objeto de todos os tipos de brincadeiras; as histórias
das pessoas que iam pedir exame de DNA para comprovação de paternidade
eram representadas sob o modo do escárnio; permitia-se e incentivava-se que
as mulheres que acompanhavam o homem que ia ser submetido a exame para
comprovação de paternidade brigassem entre si e, portanto, fossem apresen-
tadas como desequilibradas, enquanto o homem ficava olhando e um letreiro
dizia: “e o bonitão nem aí”. Muitas vezes, o que era dito era permeado de expres-
sões de duplo sentido ou francamente grosseiras.
Ratinho apresentava um bom senso rude, em que não havia lugar para
nenhuma finura intelectual nem para nenhuma elaboração das idéias. Sobre
ecologia, repressão à criminalidade, vida conjugal, etc. repetia preconceitos e
chavões. O cantor Waguinho, preso por não pagar pensão alimentícia, foi ao
programa, para defender-se, segundo ele, do que dizia sua ex-mulher. Num
dado momento, Ratinho diz para seu auditório que o cantor não poderia ficar
como o mau na história, pois um homem não faz um filho sozinho. Deslocou
a questão do pagamento da pensão alimentícia para a geração de um bebê e,
portanto, tornou a ex-mulher culpada do que aconteceu.
O apresentador mostrava indignação contra o sistema político. Considera-
va que os políticos não faziam nada e eram, em geral, corruptos. Apresentava-
se como alguém que não tinha medo, que era franco no falar, que afrontava a
tudo e a todos, inclusive as leis e as decisões judiciais. Com freqüência, afirmava
que podiam processá-lo porque ele não tinha medo. As ONGs eram parte do
sistema contra o qual se insurgia. Era o caso das instituições que se dedicavam à
preservação do meio ambiente e da Sociedade Protetora dos Animais.
O registro lingüístico utilizado era o popular, muitas vezes beirando o chulo.
A norma culta era muitas vezes usada com afetação, como que dizendo que se
tratava de uma linguagem de homossexuais. Tudo era anárquico no programa,
de sua decoração a sua condução. O programa recusava a cerimônia e a ritua-
lização das classes mais elevadas. Era um texto que não parecia pronto, pois as
marcas de sua feitura estavam nele presentes. Era antes um texto in fieri do que
um texto factus. Tudo era apresentado hiperbolicamente, no modo do excesso.
A intensidade da voz do apresentador era bem forte. Na verdade, pode-se dizer
que ele gritava. O andamento do programa era acelerado.
Essas características permitem-nos traçar o éthos do apresentador e o pá-
thos de seu auditório. O enunciador apresentava um éthos masculino, franco no
Semiótica e comunicação | 93

falar, “espaçoso”, que não tem medo. Seu enunciatário também era o estereótipo
do papel masculino tradicional. Para ele, o mundo não era lugar de conheci-
mento nem campo de ação ou de mudança, mas lugar de diversão com base
em estereótipos e preconceitos. Por isso, no programa, não se buscavam a ob-
jetividade ou o distanciamento reflexivo, mas a subjetividade e o envolvimento
cúmplice. Suscitava o riso preconceituoso e o bom senso grosseiro. Nada havia
no programa do grotesco regenerador ou da carnavalização, pois não havia no
que era apresentado nenhuma positividade, mas uma negatividade fundada no
escárnio, que buscava reiterar os papéis sociais tradicionais. Nada devia ser mu-
dado no mundo, nele cada um devia desempenhar bem seu papel.
O programa do Ratinho era um discurso eficaz, porque o enunciatário re-
conhecia nele seu discurso, já que ele foi criado a partir de uma imagem sua
muito bem feita. Aderia a um enunciador, em que se via. Isso explica a longevi-
dade e a audiência do programa.
Os atores da enunciação, imagens do enunciador e do enunciatário, consti-
tuem simulacros do autor e do leitor criados pelo texto. São esses simulacros que
determinam todas as escolhas enunciativas, sejam elas conscientes ou incons-
cientes, que produzem os discursos. Para entender bem o conjunto de opções
enunciativas produtoras de um discurso e para compreender sua eficácia é pre-
ciso apreender as imagens do enunciador e do enunciatário, com suas paixões e
qualidades, criadas discursivamente.
Como se observa, o sujeito coletivo da produção dos objetos midiáticos não
existe do ponto de vista da significação, pois ele deve constituir-se numa ima-
gem unitária do enunciador, para que a significação possa ser apreendida como
totalidade. Por outro lado, o papel co-enunciativo do receptor, como já mostra-
va Aristóteles, está presente em qualquer tipo de comunicação e não constitui
uma especificidade dos objetos criados pelos meios de comunicação de massa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Rhétorique. Paris: Librairie Générale Française, 1991.


BARTHES, Roland. A retórica antiga. In: COHEN, Jean et al. Pesquisas de
retórica. Petrópolis: Vozes, 1975. 147-221 p.
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Pontes, 1995.
94 | José Luiz Fiorin

CAMPOS, Norma Discini de. O estilo nos textos. São Paulo: Contexto, 2003.
CÍCERO, Marcus Tullius. De oratore. Paris: Les Belles Letres, 1972.
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e
tempo. São Paulo: Ática, 1996.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Sémiotique. Dictionnaire
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LANDOWSKI, Eric. La société réfléchie: essais de socio-sémiotique. Paris:
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MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins
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MOURA, Mariluce. Dilemas da comunicação. Revista Pesquisa. São Paulo,
FAPESP, nº. 82, dez, 2002. 8-10 p.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 95

SEMIÓTICA MIDIÁTICA
E NÍVEIS DE PERTINÊNCIA
Jean Cristtus Portela

Filosoficamente, toda fronteira absoluta proposta


à ciência é sinal de um problema mal formulado.
Gaston Bachelard (2008: 75)

O LEVANTE MIDIÁTICO EM SEMIÓTICA


Nos últimos anos, sobretudo na França, no Brasil e na Itália,1 países cuja pro-
dução editorial em semiótica sempre se manteve ativa, os estudos semióticos de
inspiração greimasiana aplicados à mídia e a outros fenômenos socioculturais
ligados à comunicação social (a política, a publicidade, a sociabilidade cotidiana,
a cidade, para citar apenas alguns) vêm conquistando um espaço importante nas
publicações especializadas e nos grupos universitários de pesquisa. Na origem
do levante midiático em semiótica estão semioticistas como Jean-Marie Floch e
Eric Landowski, cujas obras pioneiras (Floch, 1985, 1990, 1995, 1997; Landowski,
1989, 1997, 2004) – a do primeiro erigida em torno da reflexão sobre a semióti-
ca plástica, a do segundo, assentada no terreno da sociossemiótica – tomaram
uma distância estratégica dos corpora etnoliterários e literários que imperavam
na primeira fase de elaboração da semiótica, trazendo à luz semiótica objetos de

1 Algumas publicações francesas e brasileiras no domínio da semiótica midiática (em alguns casos, em sua
derivação mercadológica) serão citadas e comentadas ao longo deste artigo. Quanto às italianas, as seguintes
obras constituem uma pequena mas representativa amostra da produção editorial em semiótica midiática na
Itália: Bertetti e Scolari (2007), Pezzini (2006), Marrone (2005, 1998), Rutelli e Pezzini (2005), Semprini (2005)
e Bettetini (1996).
96 | Jean Cristtus Portela

pesquisa que terminaram por ampliar e redefinir alguns conceitos da teoria.


No Brasil, embora as relações entre semiótica e comunicação não tenham
sempre sido, do ponto de vista institucional, tão amigáveis (ver o artigo de José
Luiz Fiorin, “Semiótica e Comunicação”, de 2004, reeditado nesta coletânea),
muitos são os cursos de comunicação social em nível de graduação e pós-gra-
duação que contam com semioticistas engajados na análise das mídias, como
atestam as publicações recentes de Fechine (2008), Primo et al (2008), Duarte e
Castro (2008, 2007a, 2007b, 2006) e Duarte (2004), sem contar a contribuição
sistemática de publicações seriadas como o Caderno de Discussão do Centro de
Pesquisas Sociossemióticas da PUC/SP, editado por Ana Claudia de Oliveira e
seus colaboradores, a revista Galáxia, a clássica Significação (que deixou de ser
“Revista Brasileira de Semiótica” e passou a se subintitular, a partir do número
27, “Revista de Cultura Audiovisual”) ou, ainda, periódicos como Verso & Re-
verso (Unisinos), Ícone (UFPE) e Comunicação Midiática (Unesp).2
Colocando em prática sua vocação de disciplina aplicada, a semiótica tem-
se prestado à análise dos mais variados tipos de mídia, desde as mídias tradi-
cionais cujo uso consagrou-se no século XX (a imprensa escrita, o rádio e a
televisão) até as chamadas “novas mídias”, como a internet, o videogame e os
aparelhos celulares que, cada vez mais, apresentam uma completa convergência
midiática, ao desempenhar as funções de aparelho telefônico portátil, reprodu-
tor de música e vídeo, terminal de internet e computador pessoal.
No plano do conteúdo, essas análises exploram em sua maioria bem mais
do que os dispositivos clássicos do percurso gerativo do sentido e seus níveis,
procurando encontrar nos textos analisados as relações enunciativas que os
constituem, do ponto de vista tanto dos sujeitos da enunciação que neles in-
teragem quanto dos universos socioculturais nos quais fazem sentido. Assim,
a semiótica do texto, que tanto insistiu em seus primeiros anos na necessidade
de uma análise imanentista, de cunho formal e localista, vê-se, na prática de
análise das mídias e da comunicação social em geral, diante da necessidade de
“semiotizar o contexto”, para usar a programática expressão cunhada por Lan-
dowski (1989: 199) que, no começo dos anos 1980, já defendia a elaboração de
uma “semiótica das situações”.
No plano da expressão, os esforços da semiótica midiática voltam-se para os

2 Todo inventário corre o risco de pecar por inclusões e exclusões obscuras. Preocupei-me aqui em citar, sem
qualquer pretensão de exaustividade, alguns livros recentes e periódicos já consolidados que atestam a ferti-
lidade da pesquisa em semiótica midiática, especialmente em sua vertente greimasiana. Vale lembrar que a
influência da mídia na pesquisa semiótica atual é tão abrangente que chegou até mesmo a revistas como Alfa
(Unesp) e Estudos Lingüísticos (GEL), em que é cada vez mais comum encontrar análises lingüísticas e semió-
ticas da mídia impressa, televisiva, radiofônica e digital.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 97

estudos do sincretismo de linguagens, com o objetivo de estabelecer tanto uma


tipologia estratégica do uso de várias linguagens na concepção de um produto
midiático quanto a construção de uma teoria que explique como as linguagens
hierarquizam-se e combinam-se, resolvendo as heterogeneidades locais em fun-
ção de um todo de sentido orientado. Paralelamente à investigação sobre as lin-
guagens sincréticas, ocorre um aprofundamento dos estudos sobre o semi-simbo-
lismo enquanto elemento primordial na organização dos sistemas semióticos, na
medida em que lhes confere unidade e gerencia efeitos de deformação coerente na
expressão e no conteúdo que dificilmente deixam seu destinatário indiferente.
Tudo se passa como se o semioticista das mídias, honrando a tradição que
dá sentido a seu “projeto de vida” (termo caro a A. J. Greimas e a L. Landowski),
aprendesse a pensar à medida que pensa, analisar à medida que analisa, extrain-
do da prática, da observação direta do fenômeno, a teoria ad hoc de que necessi-
ta (nos moldes, é claro, da epistemologia de base que fundamenta seu trabalho).
Nesse embate cotidiano com o sentido, poucos são aqueles que elevam o olhar
para além de seus objetos e problemas concretos e põem-se a refletir metodica-
mente sobre temas como a segmentação da análise e seus limites e a natureza
fenomenal e formal das semióticas-objeto analisadas.
Essa reflexão, de caráter metassemiótico por excelência, está relacionada à
questão da pertinência (do objeto e da análise) em ciências humanas e sociais
ou, mais especificamente, ao problema dos níveis de pertinência semiótica por
meio dos quais uma disciplina estabelece seu objeto e seu domínio de atuação.
Nas linhas que seguem, procurarei demonstrar a importância do conceito
de “nível de pertinência” em semiótica e analisarei, privilegiando o ponto de
vista da semiótica midiática, a proposta mais recente de que se tem notícia sobre
a matéria: os níveis de pertinências da semiótica das culturas, elaborados por
Jacques Fontanille (2004).3

NÍVEIS DE PERTINÊNCIA E GERAÇÃO DE SENTIDO


Se o princípio de pertinência é respeitado, o trabalho
de pesquisa científica funciona, leva a algo.
Caso contrário, limitamo-nos a brincar como crianças.4
A. J. Greimas (1995: 177)

3 Cf. o diagrama dos níveis de pertinência no artigo de Fontanille traduzido para esta coletânea (p. 18). Aqui, o
diagrama será chamado de “percurso gerativo da expressão”, “percurso da expressão” ou, ainda, “percurso dos
níveis de pertinência”.
4 Essa e as demais traduções de obras sem tradução em língua portuguesa são de minha autoria.
98 | Jean Cristtus Portela

Essa epígrafe, extraída de uma conferência ministrada em Palermo em


1987, mostra a posição de Greimas em relação ao fazer taxionômico da semi-
ótica. É sabido que o mestre lituano condenava os métodos laxistas (Greimas,
1989), tal qual o poeta americano Robert Frost, para quem fazer versos livres era
como jogar tênis sem uma rede.
A questão dos níveis de pertinência em semiótica encontra-se em germe no
nascimento da própria teoria. A opção inicial da semiótica pela análise textual
em detrimento da análise frásica foi um deslocamento de interesse fundador,
que nada mais é do que uma mudança de nível de pertinência. O mesmo se
pode dizer da passagem da perspectiva semiológica clássica (L. Prieto, G. Mou-
nin e R. Barthes), que se focava no estudo do signo e de seus tipos e arranjos,
para a perspectiva efetivamente semiótica, que prioriza o texto como o lugar de
relações formais explicitáveis pela análise. Foi em torno do nível de pertinência
do texto que a semiótica greimasiana concebeu seu instrumental teórico, fixan-
do-se mais especificamente no plano do conteúdo, que antecede a manifestação
textual propriamente dita. É desse princípio epistemológico que derivam todos
os desenvolvimentos teóricos que resultaram no percurso gerativo do sentido,
como apresentado por Greimas e Courtés (1979).
Desse modo se, por um lado, o programa de pesquisa da semiótica greima-
siana focou-se no nível de pertinência do texto e dos enunciados que o com-
põem, por outro, a semiótica foi considerando, pouco a pouco, a existência de
outros níveis de pertinência semiótica e isso desde muito cedo, se considerar-
mos sua evolução histórica. No começo dos anos 1980 (Bertin, 2007; Landowski
2007), já se faziam pesquisas sobre a natureza estratégica do esquema narrativo,
pesquisas que se serviam do princípio de semiotização do contexto, vital para
uma semiótica das situações, segundo a proposição de E. Landowski. Os anos
1990 testemunharam o surgimento de análises de objetos e práticas cotidianas,
como as análises de Floch (1990) sobre os viajantes do metrô parisiense ou so-
bre a identidade visual e o conceito das campanhas publicitárias, ou, ainda, suas
análises sobre a faca francesa da marca Opinel ou o look de Coco Chanel (Floch,
1995). O último seminário de A. J. Greimas (Fontanille, 2003), que teve como
tema “A Estética da Ética” (1991-1992), já sinalizava mudanças importantes na
maneira como os semioticistas viam à época os níveis de pertinência semiótica
e sua integração. Prova disso é a proposta greimasiana de valer-se das “formas
de vida” cunhadas por L. Wittgenstein para designar uma instância enunciativa
englobante que, condensando um “estilo de vida”, servia de moldura e matriz
para a ocorrência dos enunciados.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 99

Assim, percebe-se claramente como o percurso gerativo do plano da ex-


pressão da semiótica das culturas proposto por Jacques Fontanille inscreve-se
rigorosamente na tradição greimasiana, na medida em que se serve, para sua
constituição, dos resultados da pesquisa coletiva em semiótica dos últimos 20
ou 30 anos. Além disso, esse percurso apresenta algumas características que
marcaram a reflexão greimasiana: a passagem do simples ao complexo, do pro-
fundo ao superficial, das instâncias virtualizadas às instâncias realizadas. Enfim,
ele tem todas as características do clássico percurso gerativo do sentido, que
começa pelas instâncias inferiores: no caso do percurso do sentido, as estruturas
semionarrativas, no caso do percurso da expressão, o nível de pertinência dos
signos e das figuras.
A primeira vez que Fontanille apresentou à comunidade semiótica seu per-
curso foi no Colóquio “Transversalidade do sentido: pesquisa e confrontação
de modelos”, que ocorreu na Universidade de Paris VIII, no começo de maio de
2004. Ao final do mesmo mês, o texto dessa apresentação é publicado na revista
on-line italiana E/C (Fontanille, 2004). Esse texto foi republicado, com peque-
nas alterações (a única mudança substancial foi a exclusão do último nível de
pertinência, a cultura, que só aparece no texto de 2004), em Fontanille (2005),
em Fontanille e Zinna (2005) e em Fontanille (2006), este último tratando-se na
verdade da publicação tardia das atas do referido colóquio.
No Brasil, o percurso gerativo da expressão e a problemática dos níveis de
pertinência semiótica foram introduzidos por Fontanille em agosto de 2005, no
curso de curta duração “Significação e visualidade: exercícios práticos” que o
semioticista francês ministrou no Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação da Unisinos (São Leopoldo, RS). Essas informações, assim como
os textos debatidos no curso, podem ser encontrados em Fontanille (2005), obra
lançada concomitantemente à vinda do semioticista francês ao Brasil.
Quando analisado de perto, o percurso gerativo da expressão revela-se como
a intersecção de soluções epistemológicas correntes na semiótica greimasiana,
mas também de algumas concepções teóricas mais recentes, sobretudo no que
concerne à constituição fenomenológica e sensível da significação, à esquema-
tização de propriedades formais/estruturais a partir de propriedades materiais
e sensíveis e, conseqüentemente, à reavaliação do conceito de imanência. Em
linhas gerais, as contribuições inovadoras do percurso proposto por Fontanille
decorrem da adoção de três atitudes fundamentais:

(1) Eleger como pertinentes as instâncias da experiência e da existência semi-


100 | Jean Cristtus Portela

óticas e relacionar a forma da expressão à substância da experiência e a forma do


conteúdo à substância da existência, definindo um horizonte ôntico de significa-
ção, no qual despontam, irrompem, fenômenos apreensíveis pelos vários modos
de percepção do sensível (tipos de experiência) que podem ser hierarquizados
em diferentes níveis de pertinência de análise (Fontanille, 2004: 1). É nesse sen-
tido que se pode chamar o percurso que sintagmatiza os níveis de pertinência de
percurso gerativo da expressão. Não da expressão em sentido restrito, identificada
geralmente à manifestação material de um fenômeno, mas a expressão da mani-
festação semiótica, baseada na experiência de um sujeito senciente;

(2) Propor uma operação gerativa de “motivação” entre as instâncias in-


feriores e superiores do percurso, de modo que uma instância superior {N+1}
configure-se a partir das propriedades sensíveis e materiais de sua instância in-
ferior {N}. Por exemplo: a instância formal das cenas predicativas constitui-se
segundo as propriedades sensíveis da instância formal dos objetos, o que equi-
vale a dizer que o tipo de experiência da corporeidade é que delimita a extensão
do tipo de experiência prática. Isso fica evidente, por exemplo, pela forma como
os esportistas relacionam-se com as diversas práticas esportivas que dependem
da manipulação de uma bola (futebol, vôlei, basquete, rúgbi, tênis, etc.): a for-
ma, o tamanho, a densidade, o peso, a resistência e a aderência da bola-objeto
participam das práticas somáticas e cognitivas de manipulação, de modo que as
ciências do esporte procuram otimizar a produção das bolas-objeto para otimi-
zar, por conseguinte, a realização das práticas (e estratégias) esportivas;

(3) Estabelecer um percurso de geração de experiências e formas semióticas


que respeita o princípio de imanência, ao mesmo tempo que o amplia. Isso é
possível, como reconhece Fontanille (ver texto nesta coletânea, p. 18), graças a
uma idéia de Jean-François Bordron, que sugeriu a existência de vários “planos
de imanência” que variariam segundo o enfoque dado à semiótica-objeto (se-
gundo o nível de pertinência em questão). O conceito de “planos de imanência”
liberta o semioticista de uma concepção unitária da imanência que está inscrita
na semiótica clássica do texto. Nessa nova perspectiva, haverá tantos planos de
imanência quantos níveis de pertinência houver, na medida em que cada nível
postula um nível-domínio de análise semiótica.

As três opções epistemológicas que acabo de apresentar por si só já justi-


ficariam o interesse do semioticista que trabalha com as mídias pelo percurso
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 101

dos níveis de pertinência semiótica, na medida em que o percurso formaliza


semioticamente o que se considerou por muito tempo como extrapolação do
texto ou violação do princípio de imanência. A seguir, apresentarei o percurso
explicitando sumariamente a origem de seus níveis e as implicações que seu
estudo traz para a semiótica midiática.

OS NÍVEIS DE PERTINÊNCIA FONTANILLIANOS E A MÍDIA


Para mero efeito de clareza e explicitação, propus em Portela (2008: 53) uma
nova sistematização gráfica dos níveis de pertinência fontanillianos (ver Anexo).
O diagrama proposto leva em conta algumas idéias da primeira parte do texto
de Fontanille publicado nesta coletânea, especialmente as passagens em que o
semioticista francês descreve as operações de condensação e desdobramento
do percurso, por meio dos movimentos ascendentes (em direção à cultura) e
descendentes (em direção aos signos). Neste artigo tratarei apenas dos níveis em
uma perspectiva intensa e discreta, realçando suas propriedades constitutivas.
Para uma análise detalhada dos movimentos ascendentes e descendentes (ope-
rações de natureza extensa e contínua) no interior dos níveis de pertinência, o
leitor deverá consultar o texto de Fontanille que inicia esta coletânea.
Por ora, vejamos como, de cada tipo de experiência semiótica particular,
surge um nível de pertinência que pode ser abordado na análise das mídias.

Signos: a experiência da figuratividade

O primeiro nível de pertinência semiótica foi chamado por Fontanille (2004)


de nível dos “signos” ou “signos-figuras” e é considerado, do ponto de vista histó-
rico da semiótica, o patamar que é preciso superar para chegar a fazer semiótica
efetivamente. Da lexicografia à semântica transfrásica, da semiologia à semiótica
de fato, é o domínio das unidades mínimas da significação que se deve abando-
nar para ter uma visão de conjunto do projeto semiótico sobre o sentido.
Entretanto, o nível de pertinência dos signos continua sendo essencial para
que pensemos a nossa relação com o mundo significante, já que esse nível é
construído a partir da experiência da figuratividade. Seja na reflexão saussuria-
na sobre signo, orientada pelo princípio da arbitrariedade, seja na reflexão peir-
ciana, que prevê nuanças no princípio de arbitrariedade do signo em função da
102 | Jean Cristtus Portela

“distância” que ele mantém de seu objeto, estamos sempre diante do problema
da esquematização e da valoração das unidades de significação e da forma como
nos relacionamos com elas. De uma maneira geral, o que está sempre em jogo
na nossa relação com o mundo dos signos são as questões (1) da abstração e da
figuração, das (2) propriedades intrínsecas e das contingentes e dos (3) valores
de esquema e de uso.
Os signos, mesmo tomados como entidades isoladas, exercem um fascínio
inegável sobre nossa inteligência. O menor ruído, a quase imperceptível osci-
lação da luz, a ínfima variação na temperatura ambiente ou o discreto irrom-
pimento de um gosto ou cheiro desconhecidos convidam o sujeito senciente a
mobilizar sua visada na busca de uma apreensão.
É essa propriedade de espontânea e imediata captação do fluxo de atenção
que dá ao nível de pertinência dos signos uma fértil aplicação no campo da se-
miótica midiática, na medida em que as mídias vivem em busca daquilo que de
forma mais rápida e eficiente toca a sensibilidade do sujeito. O ícono-texto que
é a primeira página do jornal, por exemplo, deixa claro o papel proeminente da
seleção e combinação de signos (formas, cores, contrastes, projeções, volumes).

Os textos-enunciados e sua interpretação

A experiência da figuratividade, passada sua fase de contato imediato, que é


caracterizada por lampejos, insinuações de sentido, desemboca na experiência
semiótica da interpretação. Não basta ao sujeito perceber a existência de um
fenômeno, a questão, no nível de pertinência dos textos-enunciados, é conferir
sentido ao que é percebido, é posicionar-se seja como intérprete seja como pro-
dutor em relação ao que é percebido.
O nível de pertinência dos textos-enunciados é por excelência o nível de
pertinência da simbolização e da racionalização subjacentes aos materiais que
manipulamos para fazer sentido. É esse o nível escolhido pela semiótica dos
anos 1970, para a concretização de seu projeto de teoria geral da significação.
Nessa época, o texto era para a semiótica, independentemente da linguagem
pela qual é manifestado, a perfeita evidência (ou a única evidência!), a prova
material irrevogável da atividade humana de construção do sentido. A ele os
semioticistas tinham que se ater como a uma tábua de salvação, fora da qual não
havia redenção possível. É conhecido – e, hoje, amplamente questionado – o
aforismo greimasiano que parafraseava a máxima “extra ecclesiam nulla salus”,
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 103

atribuída a São Cipriano de Cartago: “fora do texto não há salvação, todo o tex-
to, nada mais que o texto, nada fora do texto” (Greimas, 1974: 25).
O estudo do texto midiático impresso, televisivo, radiofônico e digital pro-
vavelmente jamais será deixado de lado, pois a preocupação com a concreção
dos textos-enunciados, por mais que a semiótica atual coloque-a em questão, é
uma característica fundadora da episteme semiótica greimasiana. No entanto,
na abordagem do texto midiático percebe-se que o problema-chave da análise
não é descrever a enunciação enunciada e o enunciado enunciado simplesmente,
mas recuperar, por catálise, os elementos enunciativos que permitem ao analista
restituir o sentido do enunciado não enunciado.
A problemática da depreensão do enunciado na mídia impressa cotidiana,
por exemplo, passa por algumas questões fundamentais que nos fazem pensar
sobre a natureza e os limites do nível de pertinência do texto: (1) a notícia ou
o artigo são enunciados resultantes de uma demanda contínua e orientada, de-
terminada pela organização das pautas do jornal; (2) esses enunciados têm um
contexto de ocorrência preestabelecido (a página, o caderno, a publicação como
um todo, o grupo de comunicação no comando); (3) eles tratam de narrativas
e valores cuja elaboração quase sempre está inacabada (a produção da notícia,
segundo as várias tendências editoriais, tenta estabilizar, por exemplo, as narra-
tivas políticas, mas o fato é que ela não tem controle – ou não deveria ter – sobre
os acontecimentos políticos).
Assim, fica evidente como o nível de pertinência do texto-enunciado por si
só não consegue sincretizar de forma coerente e satisfatória toda a problemática
da depreensão do enunciado nas mídias. É o percurso da expressão que orga-
niza, então, essa heterogeneidade multimodal (cada modo de funcionamento
equivalendo a um nível do percurso) a partir da introdução e da articulação de
outros níveis de pertinência, sendo este o fenômeno que Fontanille (2005: 32-3)
chama de resolução sincrética.

Corpo, objeto, dispositivo e técnica

A questão do nível de pertinência do objeto, que pertence ao domínio da


experiência corpórea e referencial, não é exatamente nova em semiótica grei-
masiana, não ao menos do ponto de vista teórico (Coquet; Petitot, 1991). No
entanto, no que diz respeito a seu aspecto aplicado, excetuando algumas in-
cursões pioneiras de Floch (1995), é só muito recentemente que o campo de
104 | Jean Cristtus Portela

estudos sobre o objeto expandiu-se realmente, como provam as obras de Ce-


riani (2008), Cavassilas (2006), Fontanille e Zinna (2005) e Arabyan e Klock-
Fontanille (2005), que tratam, respectivamente, de objetos díspares, como os
celulares de última geração, as técnicas de embalagem, a concepção dos objetos
que povoam nosso cotidiano e as antigas inscrições em tabuletas, que têm em
comum o fato de serem todos fenômenos semióticos inscritos em um objeto-
suporte material e formal.
Esse interesse da semiótica pela corporeidade do sujeito e pelos objetos que
ancoram sua experiência no mundo natural, compreendido como mundo do
“vivido”, resultou em uma semiótica “aberta” (Boutaud, 2007) e “extrovertida”
(Landowski, 2004: 37). Surpreendentemente, a área em que mais se empreende-
ram pesquisas semióticas sobre o objeto, até agora, foi a área de mercadologia
(marketing e concepção de produtos)5, que possui um interesse estratégico no
instrumental heurístico da semiótica como subsídio para a criação6 (Couégnas
et al, 2005; Ceriani, 2003; Bertin, 2002).
O nível de pertinência do objeto é também o nível dos dispositivos (ana-
lógicos e digitais) e das técnicas que os operam, estas últimas compreendidas
como práticas cognitivas otimizadas de manipulação e transformação de obje-
tos semióticos. Assim, tudo que concerne à captação e registro de uma lingua-
gem está relacionado ao nível do objeto: o papel e o modo de impressão, o tipo
de tela-suporte (resolução, cor, brilho, contraste) e a linguagem de codificação/
programação (sinal analógico codificado no caso da televisão, arranjos binários
no caso da imagem do computador ou da TV digital), os sistemas de transmis-
são e aparelhos de recepção em geral.
A reflexão sobre o objeto-suporte material e formal pelo qual um texto é
manifestado pode nos ajudar a compreender melhor a interação entre os avan-
ços tecnológicos e a criação de novos tipos textuais. Isso nos possibilitaria an-
tever o esperado estilhaçamento da narrativa a partir do advento da TV digital
ou, ainda, otimizar a criação de websites adaptados para exibição em celulares
e computadores de mão.

5 O campo mercadológico, tanto pelos objetos que tem analisado (jornal, cartaz, panfleto, música, vídeo, websi-
te e artefatos em geral) quanto por sua tessitura enunciativa (que supõe a primazia do actante coletivo), pode
ser situado no interior do campo midiático, que seria responsável pelo instrumental (os gêneros e os formatos
das diversas mídias) que a empresa, seja organização pública ou privada, dispõe para comunicar-se com seus
destinatários.
6 A esse respeito, é exemplar a frase visionária de Floch (1990: 12): “A semiótica pode ajudar a administrar um
sucesso”.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 105

Cenas práticas

Situando a cena predicativa das práticas como o termo mediador entre o


mundo “palpável” dos objetos e a dimensão pragmático-cognitiva das estraté-
gias, Fontanille certamente avança na construção de uma teoria semiótica que
possa abordar as práticas sem perder o caráter científico de seu projeto como
disciplina, o que é garantido por sua articulação com os demais níveis de perti-
nência. Em uma entrevista de Fontanille a Portela (2006: 181), pode-se encon-
trar uma definição sintética de prática semiótica:

Uma prática é constituída em sua superfície por um conjunto de atos,


cuja significação raramente é conhecida de antemão, e que se constrói
“em tempo real” por adaptações desses atos em relação uns aos outros.
Ela se define também por sua temática principal, que fornece o “predi-
cado” central da prática, ao redor do qual se organiza um dispositivo ac-
tancial que compreende um operador, um objetivo e, sobretudo, outras
práticas com as quais a prática de base interage.

Assim, por meio de uma programação prévia que prevê sucessivas adapta-
ções (ajustamentos) e combinações com outras práticas, a cena predicativa es-
tabiliza o sentido da significação valendo-se de uma narrativização da situação
semiótica, que faz as vezes de “contexto” do texto prático.7
A importância da experiência prática na compreensão da mídia revela-se
pertinente, por exemplo, nos trabalhos de Oliveira (2006a; 2006b) que estudam
o jornal impresso tanto em sua plasticidade quanto na experiência corporal for-
necida por sua leitura. De maneira semelhante, é com a cena predicativa e sua
experiência prática que estamos lidando quando Diniz (2002) reflete sobre as
práticas orais e escritas e seus estereótipos consagrados pelo uso, investigan-
do sua manifestação no telejornal. Ainda no domínio da mídia televisiva, é só
pensar na maneira como o mobiliário de um programa de comportamento e
sua distribuição topológica participam das práticas de troca conversacional do
apresentador com os entrevistados, com o auditório e com os telespectadores
(Soldi, 2008).

7 A semiotização do “contexto” em situação semiótica (Landowski, 1989: 189-99; 2004: 15-37) é amplamente
aceita na semiótica atual, que se preocupa, aliás, em desvencilhar-se da noção de “contexto”, que supõe um
acréscimo exterior ao texto propriamente dito e não uma mudança de nível de pertinência da ordem da conti-
nuidade do fenômeno semiótico. Cf. Fontanille (2008; 2007).
106 | Jean Cristtus Portela

A inteligência estratégica e sua conjuntura

A experiência da conjuntura produz o nível de pertinência da estratégia,


que, segundo Montbrial e Klein (2000: 527), é “a ciência da ação humana aca-
bada, voluntária e difícil”. A ação estratégica é acabada, pois exige uma visão de
conjunto tanto do objeto da estratégia (uma batalha, a inserção de um produto
no mercado, a organização da grade de programação) quanto do plano estra-
tégico (a invasão na calada da noite, a inovação na propaganda, a alternância e
a repetição de determinados programas em detrimento de outros). É também
voluntária, pois, mesmo quando subsumida pelo /dever/, exige um /querer-ser/
e um /querer-fazer/. Em ambos os casos o esforço para a aquisição do objeto é
consciente, orientado e sistemático. E é difícil, porque pressupõe uma disjunção
entre sujeito e objeto, que só um planejamento eficiente (uma estratégia) poderá
reverter. Assim, o caminho ou método que conduz ao sucesso aparece como um
quebra-cabeça, um enigma, um código, um obstáculo que é preciso conhecer,
dominar ou explicar.
Como toda teoria consiste em uma solução/programação racional e efi-
ciente de um problema, a semiótica já se situa, por princípio, como ciência in-
terpretativa estratégica: ela identifica, descreve e analisa as semióticas-objeto,
buscando a estratégia enunciativa e enunciva (Greimas; Courtés, 1979) que lhes
permite existir no âmbito da cultura. Além dessa dimensão estratégica interpre-
tativa, é preciso reconhecer na semiótica uma dimensão estratégica produtiva,
que permite que o semioticista não só classifique a existência semiótica de uma
semiótica-objeto, mas diga algo sobre seu devir e seus usos na cultura, a exem-
plo do manual de webdesign de Pignier e Drouillat (2004), que é inteiramente
embasado em análises semióticas.
Passando a um outro domínio, o das narrativas audiovisuais ficcionais, te-
mos, por exemplo, o problema da oscilação da audiência ocasionada por va-
riações no enredo: a história de amor impossível, mas plausível, aumenta o in-
teresse do público; as personagens de um núcleo de novela que não está bem
entrosado na trama atraem pouco interesse. Nesse caso, valendo-se do pensa-
mento estratégico, é possível conceber novas narrativas que explorem os mo-
tivos já consagrados pelos telespectadores ou, ainda, avaliar o risco assumido
na criação de novos programas e formatos. É o que se pode chamar de aspecto
prospectivo ou preditivo da semiótica estratégica.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 107

Forma de vida e sentido da existência

Concebido para ser o penúltimo patamar dos níveis de pertinência, na po-


sição que antecede à instância formal da cultura, a forma de vida é, na verdade,
o último nível em que se pode operar semioticamente, se se leva em conta que
a cultura em si é uma unidade dificilmente decomponível e analisável, a não ser
pelo exame dos seis níveis de pertinência que ela subsume e sincretiza. Tanto
isso é verdade que em Fontanille (2005), por exemplo, a instância formal da
cultura, que é produzida pela experiência da identidade espaço-temporal coleti-
va, não figura como nível de pertinência, ao contrário de sua proposta original
(Fontanille, 2004), que previa um lugar para a cultura na economia geral do
percurso gerativo do plano da expressão.
Novamente se está diante de um nível de pertinência já conhecido em semi-
ótica, embora pouco praticado em termos de análise desde a sua concepção, que
remonta ao começo dos anos 1990 (Fontanille, 1993), década ao final da qual
o conceito de forma de vida acabou por ser incluído como verbete na espécie
particular de terceiro dicionário de semiótica que é Tensão e Significação (1998),
de Fontanille e Zilberberg (2001: 203-26).
Como se sabe, na origem do conceito de forma de vida está o pensamento
de L. Wittgenstein sobre a integração da significação em uma rede conceitual de
uso e reconhecimento, que ele assim discrimina (apud Fontanille; Zilberberg,
2001: 203):

Expressões → Usos → Jogos de linguagem → Formas de vida

Assim, as formas de vida são o termo resultante (a condensação discursi-


va) de uma operação complexa de esquematização que parte da materialidade
dos enunciados lingüísticos, passa pela realização social de seus usos e chega a
enunciados mais gerais que os condensam na forma de um jogo codificado de
linguagem potencial, característico da práxis enunciativa.
As formas de vida estudadas até o momento – o belo gesto, a armadilha, o
absurdo, a precisão, a marginalidade (todas formas de vida analisadas no núme-
ro da revista RSSI, que Fontanille (1993) apresenta), a parábola (Greimas, 1993),
o jardim (Zilberberg, 1996), a aventura de Tintin no Tibete (Floch, 1997: 196-
208) e as drogas (Alonso, 2006), para citar as mais conhecidas – dão um indício
da diversidade de manifestações que uma forma de vida pode assumir.
108 | Jean Cristtus Portela

No domínio das mídias, a utilidade do conceito de forma de vida surge,


no limite, como uma necessidade real de explicação de alguns fenômenos, tais
como: (1) o comportamento e o ethos dos personagens emblemáticos (astros,
apresentadores, políticos, jogadores e demais heróis de ocasião) e de seus fãs; (2)
o ethos dos apresentadores de tevê, dos radialistas, dos blogueiros e dos podcas-
ters; (3) as formas de vida que presidem a organização dos gêneros e formatos
midiáticos consagrados:8 a forma de vida investigativa ou denunciativa, no caso
dos programas que exercitam o documentário, a forma de vida descomprome-
tida e iconoclasta, no caso de certos programas de humor ou, ainda, a forma de
vida didática baseada na auto-ajuda, exercitada por programas sobre comida,
vida familiar e sexual, cultura geral, etc.

O devir do percurso gerativo da expressão


Há três coisas que eu vejo, investigações que gostaria de empreender e
que eu lego às gerações futuras. Em primeiro lugar, a semiótica discur-
siva resta por fazer [...]. Por outro lado, não esqueçamos que o plano do
significante, da expressão, não foi ainda estudado semioticamente [...].
Portanto, é preciso considerar, de um lado, a semiótica discursiva sobre
o plano do conteúdo e, de outro, o percurso gerativo do plano da expres-
são: fazer algo equivalente ao que existe para o plano do conteúdo. Em
terceiro lugar, há o que eu chamei recentemente de aventura axiológica.
A. J. Greimas (1986: 56-7)

O percurso proposto por Fontanille está, em verdade, longe de ser um


percurso definitivo9 ou de ser tão operacional quanto o percurso gerativo do
sentido, que, além de delimitar os níveis de pertinência de análise, contém as
instruções mínimas da constituição da semântica e da sintaxe de cada nível. Os
níveis do percurso da expressão fontanilliano podem ser analisados, isolada ou
conjuntamente, segundo a grade de leitura do percurso gerativo do sentido. Por
um lado, isso mostra a continuidade e a compatibilidade da semiótica clássica
com os novos desdobramentos da semiótica atual, por outro, uma suspeita justi-
ficada pode tomar de assalto o espírito do semioticista: não seria preciso desen-
volver novos instrumentos teóricos para analisar novos níveis de pertinência? A

8 No caso da televisão, a proposta de organização dos gêneros televisivos de François Jost (1999: 21-34), que
prevê a existência dos modos lúdico, autentificante (real) e ficcional, pode servir de base para uma abordagem
socioletal das formas de vida, em detrimento das abordagens de cunho idioletal que até hoje predominaram.
9 Nesse sentido, são oportunas as críticas que lhe fazem Sémir Badir (2006; 2007; 2008) para quem o percurso
da expressão de Fontanille mistura expressão e conteúdo e não leva em consideração a distinção entre práticas
interpretativas e práticas produtivas.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 109

pergunta a essa resposta virá certamente com o tempo: tempo de análise e veri-
ficação, tempo de experimentação, partilha e consolidação do saber semiótico.
O devir do percurso gerativo da expressão seguirá de perto o devir da pró-
pria semiótica e dependerá, entre outros fatores, do lugar que a semiótica ocu-
pará em um futuro próximo nas ciências humanas e sociais, na medida em que
a elaboração dos níveis de pertinência de que trata uma disciplina está intima-
mente ligada à maneira como a disciplina recorta o campo científico.
Diante da produção constante e fecunda e de sua penetração generalizada
na elaboração dos novos desdobramentos em semiótica geral, à semiótica mi-
diática caberá provavelmente a tarefa de liderar o projeto que estabelecerá os
limites da atuação da semiótica enquanto aventura axiológica.
110 | Jean Cristtus Portela

ANEXO
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 111

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Parte II

JORNALISMO IMPRESSO
E TELEVISADO
Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 119

CARTAS NA MÍDIA IMPRESSA


Uma prática semiótica entre leitores e editores

Matheus Nogueira Schwartzmann


Mariza Bianconcini Teixeira Mendes

Os editoriais e as cartas de leitores são semióticas-objeto semelhantes e


fazem parte de uma prática que, nos jornais e revistas impressas, tem função
enunciativa importante na comunicação entre sujeitos que se consideram se não
“praticamente” amigos, ao menos parceiros de um bate-papo e troca de opinião.
Tanto os editoriais, que muitos órgãos de imprensa chamam de “carta aos leito-
res”, mostrando eles próprios o fenômeno que vamos analisar, quanto as cartas
dirigidas aos editores e ao grande público, fazem parte da matéria opinativa
na distribuição dos textos jornalísticos, constituindo uma espécie de gênero de
discurso midíático. Na verdade, a única diferença entre estes e outros textos
opinativos está no sujeito enunciante, geralmente corporativo-profissional no
primeiro caso e individual-amador no segundo, já que os destinatários, também
chamados em semiótica de co-enunciadores, são sempre potencialmente gené-
ricos e coletivos, para todos os casos.
Mesmo que nos outros meios de comunicação de massa – das novas mídias
audiovisuais às novíssimas hipermídias – possa haver uma troca de opiniões
entre enunciadores e enunciatários, é apenas o jornalismo impresso que a orga-
niza como prática muito antiga, dando-lhe visibilidade em espaços consagrados
pelo hábito, com formatos e títulos diversificados, mas sempre vistos como uma
correspondência explícita entre editores e leitores.
120 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

Lembremos ainda que, apesar das profecias sobre a provável extinção do


jornalismo impresso desde a invenção do rádio, sua sobrevivência em nossos
dias é uma vitória da linguagem escrita em papel e tinta sobre a linguagem oral
e a audiovisual. Para muitos, realmente é um feito notável, já que de certa for-
ma as novas mídias tinham grandes chances de ganhar a disputa pelos leitores-
consumidores, graças a seus recursos expressivos e estilísticos sincréticos, que
seduzem destinadores e destinatários do discurso de forma sempre provocante,
por conta de um maior “apelo emocional”.
Para desenvolver nossa proposta de pesquisa e dar encaminhamento à aná-
lise dos textos em questão, extraídos de alguns veículos de comunicação da mí-
dia impressa, temos que dar primeiramente dois passos importantes: (1) buscar
os fundamentos da teoria semiótica que definem a carta como um meio de co-
municação – tão antigo quanto a invenção da escrita, mas também tão atual em
sua forma de sobrevivência nos meios eletrônicos – e (2) realizar a difícil tarefa
de escolher nossos objetos de estudo, em um universo amplo e diversificado,
construído e mantido pela prática do contato diário, semanal ou mensal entre
editores e leitores.

A CARTA COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO ESCRITA


A carta, no seu mais amplo sentido, embora detentora de uma forma de ex-
pressão relativamente estável (uso da escrita, datação, abertura e fechamento),
que poderíamos chamar de canônica, é um tipo de texto bastante maleável e
articulável, pois jamais assume uma configuração totalmente fixa e única. Pode-
mos dizer ainda que, independentemente de sua finalidade ou intencionalidade,
esse objeto de comunicação é, com muita freqüência e justamente por conta de
sua natureza “imprecisa”, tratado das mais diversas maneiras: para alguns seria
um mero documento, testemunho de uma realidade histórica, política, econô-
mica ou literária, e para outros, portador de um repertório íntimo, confessio-
nal, sentimental e passional. No caso deste trabalho, estamos considerando dois
tipos de carta que têm mais pontos convergentes do que divergentes: tanto o
editorial como a carta do leitor, embora na aparência dirijam-se a “destinatários
concretos”, na essência têm como “destinatários virtuais” um grande número de
possíveis leitores.
Greimas, em seu prefácio à edição dos artigos do Colóquio Interdiscipli-
nar de Friburgo dedicado às cartas, já nos chamava a atenção para o adjetivo
Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 121

“heterogêneo” – segundo ele, inapropriado – que comumente atribuímos a essa


semiótica-objeto. No entanto, o simples reconhecimento da versatilidade da
carta não nos leva muito longe. É preciso buscar a invariabilidade, aquilo que
possa definir, na comunicação epistolar como um todo, os traços recorrentes e
as formas constantes:

Evidentemente, a troca epistolar é un fenômeno cultural, circunscrito e


variável no tempo e espaço sociais. Em nosso contexto ocidental ela se
organizou inicialmente como uma instituição fortemente regulamenta-
da, como uma axio-tipologia do saber-fazer epistolar […] obedecendo a
dois critérios de classificação cruzados: uma temática, segundo o tipo de
discurso focalizado: familiar, comercial, político, religioso, e uma mor-
fologia gradual dos destinatários: público/privado, inferior/superior, ho-
mens/mulheres (Greimas, 1988: 5).1

Essa “instituição” constitui, na verdade, uma prática semiótica que, enquan-


to tal, tem seus contornos definidos dentro de uma tradição cultural, razão pela
qual obedece a determinados critérios classificatórios. No Dicionário I, de Grei-
mas e Courtés (1983: 344-5), encontramos uma definição para as práticas semi-
óticas, que seriam:

os processos semióticos reconhecíveis no interior do mundo natural e


definíveis de modo comparável aos discursos [...]. As práticas semióti-
cas (que se pode igualmente qualificar de sociais) apresentam-se como
seqüências significantes de comportamentos somáticos organizados [...].
Os modos de organização desses comportamentos podem ser analisados
como programas (narrativos) cuja finalidade só se reconhece a posteriori
(Greimas; Courtés, 1983: 344-5).

Desse modo, podemos considerar a troca epistolar que ocorre na mídia


impressa como uma prática semiótica, no sentido que lhe dá J. Fontanille (ver
artigo nesta coletânea), ou seja, um comportamento regido por valores socio-
culturais, e tomá-la como uma espécie de comunicação ao mesmo tempo pú-
blica e particular – testemunhando tanto uma objetividade vinda do “exterior”
quanto uma subjetividade construída no “interior”, íntima e passional – tipos de
discurso previstos na referida classificação de Greimas, segundo a “morfologia”
dos destinatários. Dentro dessa prática, que é um simulacro singular das mais
diversas situações de comunicação, teríamos a configuração de uma integração

1 Para as obras que não têm versão em língua portuguesa, as citações baseiam-se em traduções feitas especial-
mente para este trabalho.
122 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

social específica: a interação entre editores e leitores da mídia impressa, exposta


no próprio veículo de comunicação, de forma muitas vezes surpreendente.
Para definir como se processa a interação entre editores e leitores nos edito-
riais e cartas, vejamos primeiramente como Greimas e Courtés definem a inte-
ração, do ponto de vista semiótico, no Dicionário II:

Na teoria semiótica da ação, entende-se por interação a confrontação


entre o modo de agir de dois sujeitos distintos. A interação pode dar-
se, assim, entre dois sujeitos autônomos ou independentes, porém in-
terdependentes no que se refere a suas intencionalidades [...] (Greimas;
Courtés, 1986:116).

Podemos perceber, assim, que o que se passa com as cartas na mídia im-
pressa assemelha-se muito à definição semiótica de interação, que é uma troca
regida pelas competências modais e cognitivas, entre dois sujeitos colocados
em presença. Mas no nosso caso, a preocupação primeira é essa “colocação em
presença”, já que se trata na verdade de uma relação entre sujeitos disjuntos no
tempo e no espaço. A troca epistolar é uma forma de comunicação que simula
textualmente alguns dos processos mais gerais da interação comunicacional por
manifestar marcas tanto de uma enunciação enunciada, que reproduz o fazer
enunciativo no discurso, quanto de uma práxis enunciativa, que é o pressuposto
lógico do enunciado.
A práxis desenvolve-se e fixa-se no campo do discurso, que é o domínio es-
paço-temporal em que são geradas as configurações propriamente semióticas:
o percurso gerativo do sentido, com destaque para temas, figuras e isotopias do
nível discursivo. E para que exista comunicação entre dois sujeitos, individuais
ou coletivos, é preciso que um mesmo campo discursivo seja estabelecido entre
eles. No caso das situações de comunicação em estudo – editoriais e cartas de
leitores – cada texto está englobado num contexto maior, que implica tanto a
linha editorial do órgão de imprensa quanto seu público alvo.
É nesse campo que se dão as trocas, a passional e a axiológica: o escritor-
destinador tem sempre algo a dizer e o leitor-destinatário tem sempre algum
interesse, ainda que potencial, na leitura da carta. Esse interesse é regulado pelos
valores cognitivos, pragmáticos e especialmente afetivos que o campo comu-
nicacional construído pela revista põe em causa. Podemos ver, dessa maneira,
que a carta só tem sentido se for escrita em função de um outro, de um leitor
pressuposto. Mais uma vez tal tipo de interação parece-nos concretizar um ato
de comunicação humana e seu modo de produção de sentido, já que eviden-
Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 123

cia, no próprio ato de escrita da carta, alguns dos seus elementos processuais,
textualizando-os nos vocativos comumente empregados, que estabelecem uma
espécie de presença “real”.
Para entender melhor como isso é possível, é preciso observar como Lan-
dowski trata duas questões que, na comunicação por carta, são primordiais, a
constituição de um “outro” (o interlocutor) e o processo de interação:

Se o sentido nasce da relação com o outro, como se constrói aquilo que


preenche, caso por caso, o lugar e a função desse “outro”, fazendo sentido
precisamente como outro? Com efeito, graças a qual privilégio a “alteri-
dade” […] poderia ser dada e não construída, como todos os outros efei-
tos de sentido, e em ato, favorecendo alguma interação “com o Outro” ?
Para não entrar num processo sem fim, estabeleçamos por um lado [...]
que a alteridade do outro é evidentemente sempre relativa, ou seja, cons-
truída do ponto de vista de um sujeito de referência, e por outro lado,
que do ponto de vista desse sujeito aparecerá “como outro” simplesmente
aquilo com que ele interage (Landowski, 2004: 32).

Ou seja, a partir do momento em que um sujeito decide interagir em algu-


ma situação, constrói e instaura, para si mesmo, um “outro” com quem possa
manter essa interação. Fica evidente, assim, como a troca de cartas na mídia
impressa é baseada nesse processo de interação com o outro.

A DEFINIÇÃO DO NOSSO OBJETO DE ANÁLISE


Tomamos como objeto de estudo as diversas formas de organização dos edi-
toriais e das seções de cartas dos leitores em algumas revistas impressas da atu-
alidade brasileira. Os modos de presença desses textos epistolares num meio de
comunicação de massa têm a ver com alguns fatores: (1) as relações enunciativas
entre editores e leitores, (2) a linha editorial da revista e (3) os efeitos de sentido
dos discursos vindos de ambos os lados, de dentro e de fora da redação. São to-
dos fatores que consolidam o “diálogo midiático” como prática interativa.
Para fazer uma triagem entre várias revistas da nossa mídia impressa, e
já deixando à mostra alguns objetivos do trabalho, nossa primeira decisão foi
não tomar como objeto de análise as mais conhecidas e de maior tiragem. O
primeiro motivo da decisão é que muitas delas já foram tomadas como obje-
tos de vários estudos, semióticos ou não, vindo em segundo lugar uma razão
de ordem axiológica: as revistas instaladas e consagradas há décadas são de-
124 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

masiadamente marcadas pelo cunho mercadológico e ideológico das grandes


empresas a que pertencem, o que poderia tornar a análise um tanto óbvia e,
talvez, até desnecessária.
Resolvemos, portanto, visitar os editoriais e seções de cartas dos leitores das
revistas mensais Caros Amigos (Editora Casa Amarela, 12 anos de existência e
40.000 exemplares) e Revista do Brasil (Atitude Editora Gráfica, 2 anos e 360.000
exemplares), ambas com o mesmo caráter de matérias noticiosas e opinativas
sobre assuntos de interesse geral no país e no mundo. Outro ponto em comum
entre as duas revistas é o pequeno número de anúncios comerciais, em compa-
ração com as congêneres da “mídia grande” (termo posto em uso pela própria
Caros Amigos). Visitamos ainda algumas revistas de linha editorial voltada para
interesses científicos, produzidas nesse caso por grandes empresas jornalísti-
cas, com tiragens razoáveis, como a Superinteressante (Editora Abril, 20 anos,
440.500 exemplares) e a Galileu (Editora Globo, 17 anos – antiga Globo ciência,
170.00 exemplares).
O objetivo de nossa busca em quatro publicações, com pares semelhantes
quanto à organização jornalística, era descobrir, de um lado, se a publicação
das cartas dos editores e dos leitores seguia sempre uma linha de conduta que
obedecesse ao mesmo tipo de prática e, de outro lado, como se dava o cru-
zamento com outras práticas possíveis, oriundas de formas de vida distintas,
fossem elas individuais (construídas pelos leitores) ou corporativas (construí-
das pelos editorialistas).

SISTEMATIZAÇÃO E CONFLUÊNCIA DAS PRÁTICAS


Vamos partir de uma descrição geral das formas de organização dos edi-
toriais e das cartas dos leitores nas revistas que escolhemos como corpus de
nossa pesquisa, para chegar à análise de casos especiais de “diálogo” entre leitor
e editor. Nesse percurso analítico partiremos em busca de um argumento final
que justifique as considerações feitas até aqui, principalmente a respeito do con-
ceito de prática semiótica. Nosso instrumento de análise será o percurso gerativo
do plano da expressão, formalizado por J. Fontanille, que prevê seis níveis de
pertinência, partindo do mais simples e concreto ao mais complexo e abstrato:
(1) signos e figuras, (2) textos-enunciados, (3) objetos e suportes, (4) práticas e
cenas, (5) situações e estratégias, (6) formas de vida.
Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 125

A tabela abaixo, com base em uma segmentação temática e topológica, pode


mostrar como as práticas em questão são organizadas em cada revista:

Título Título da Seção Título da Seção de Posição do/das


da revista do Editorial Cartas dos leitores Editorial/Cartas

Caros Amigos sem título de seção “Caros leitores” antes/depois

Revista do Brasil “Carta ao leitor” “Cartas” depois/antes

Superinteressante “Agora escuta” “Desabafa” depois/antes

Galileu “Da redação” “Fale com a gente” antes/depois

Podemos perceber que as duas primeiras revistas da tabela optam por um es-
quema canônico, mais próximo da prática epistolar, fórmula que parece ser a mais
freqüente na mídia impressa em geral. As outras duas “importam” outras práti-
cas, ligadas certamente à comunicação epistolar, mas com um estilo de linguagem
oral, buscando provavelmente fortalecer sua relação com o público jovem.
Para melhor explanação de nossa análise, vamos dividi-la em duas partes.
Na primeira, a que nos interessa de modo especial, vamos descrever como se
constroem, no espaço jornalístico, os editoriais e as seções de cartas dos leitores
nas duas revistas de noticiário geral: Caros Amigos e Revista do Brasil. Na segun-
da parte, vamos examinar as duas revistas ditas “científicas”: Superinteressante
e Galileu. Mas é preciso dizer que tal cientificidade aparece diluída, sem pro-
fundidade, satisfazendo um público de “consumação rápida”, que busca apenas
curiosidades científicas.
Convém ainda ressaltar que, no caso das duas últimas, há uma profusão
de anúncios comerciais, algumas vezes disfarçados de “matérias científicas”, ou-
tras vezes incorporados à própria identidade da revista (no uso das cores, por
exemplo). Esse procedimento aponta para uma busca de “eficiência” na prática
publicitária dentro da prática jornalista. Essa eficiência inclui também, eviden-
temente em todas as ocorrências semelhantes na mídia impressa, a forma como
as cartas publicadas são escolhidas em cada edição, sempre segundo um cri-
tério preestabelecido pelos editores. Tal critério manifesta-se no fato de que,
comumente, as cartas selecionadas ou contêm elogios para o próprio órgão de
imprensa, ou favorecem de algum modo a construção de sua identidade, fun-
cionando também como uma alternativa de autopromoção.
126 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

CAROS AMIGOS E REVISTA DO BRASIL


Caros Amigos, uma revista já bastante conhecida do público, embora de
pequena tiragem, traz no próprio nome o já mencionado “vocativo das cartas”,
ilustrando a teoria desenvolvida neste trabalho. A revista certamente constrói
a idéia de correspondência entre leitores e editores, oferecendo-se como uma
“carta aberta”, que evidencia dois aspectos importantes, ligados em maior ou
menor grau à própria axiologia por ela construída: (1) a transparência de seu
processo editorial e sua conseqüente idoneidade e (2) a instauração da igual-
dade entre os participantes dessa troca comunicacional, duas características que
a diferenciariam de outras revistas similares.
O editorial da revista surge na primeira página interna, à esquerda do su-
mário, sem as definições costumeiras de “carta do editor” ou “carta ao leitor”. O
título varia, pois está sempre relacionado ao assunto principal da edição, que
nem sempre é a “matéria de capa”. A seção de cartas vem na página seguinte e
tem um título “carinhoso”, que reforça a isotopia semântica criada pelo nome
da revista: “Caros Leitores”. É justamente numa dessas seções de cartas à reda-
ção (edição nº 137, agosto 2008) que encontramos o exemplo mais expressivo
de “diálogo” entre leitor e editor. Um leitor manifestou sua “consternação, mas
infelizmente sem surpresas”, ao ver que “uma parte da imprensa da esquerda
brasileira continua à venda sempre por um preço de ocasião”.
A decepção fora causada por um anúncio da empresa Vale que, para o autor
da carta, “não tem idoneidade moral, incorreu nos mais graves erros, trapaças
e sujeiras”. E para pôr em xeque o “esquerdismo da revista”, concluiu: “É lícito
aceitar dinheiro de quem não ‘vale’ nada?”. Logo abaixo, vem uma Nota da reda-
ção: “O prezado leitor esquece que, embora sejamos socialistas, temos de pagar
as contas”. E depois de mostrar, em números, os custos de cada edição, o editor
usa o argumento mais forte de sua autodefesa: “O mais importante é que publi-
camos anúncio da Vale mas continuamos uma revista independente. E a primei-
ra à esquerda”. Termina o desabafo com uma espécie de afago-desafio bastante
comum em desavenças entre “amigos”: “Observe este número. Continue nos
honrando com sua preferência. E verifique se mudaremos um milímetro nossa
linha”. O mais interessante nessa troca de cartas é o fato de o leitor ter ignorado
o editorial da edição anterior (nº 136, julho 2008), exatamente a que trazia, logo
nas primeiras páginas, o anúncio polêmico. É uma situação talvez inédita na
mídia impressa, em que o editor “lamenta” o aumento do preço do seu produto,
como podemos ver em seguida:
Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 127

Após 18 meses com preço de capa de R$ 8,90, tivemos de passar a R$


9,90. Mesmo assim, aumentamos 11,2% contra IGPM de 12,5% - além do
quê, os maiores aumentos incidiram sobre nossos principais custos: pa-
pel, impressão e transporte. Lamentamos, mas não deu mais pra segurar
(grifo nosso).

Já em outra edição (nº 130, janeiro 2008), o editorial tinha um título intri-
gante – “feliz ano novo?” – e expunha aos leitores, como fazemos com amigos
íntimos, a difícil situação financeira da empresa e suas razões: “a receita de pu-
blicidade nas páginas de Caros Amigos não cobre os nossos custos”. Ao dizer
que a empresa não conseguia o mínimo de anúncios para ir em frente, o editor
acrescentava que a colocação era feita segundo um “princípio jornalístico aber-
to, sem peias e quase íntimo com o leitor”. Como vemos, a Caros Amigos vale-se,
mais que suas congêneres, do artifício epistolar, para caminhar na direção de
uma diluição da força editorial e de uma concentração da força dos leitores,
figurativizados na revista como os “caros amigos” e também como os “articulis-
tas-amigos” que dela participam.
A segunda revista noticiosa, com um nome óbvio, mas sugestivo – Revista
do Brasil – é uma publicação recente: surgiu há dois anos, com distribuição
gratuita para os sindicatos que a patrocinam, bem como para os associados que
reivindicam a entrega domiciliar. A venda nas bancas, pela metade do preço
normal de uma revista do mesmo tipo, começou em junho de 2008. A revista
dá espaço ao editorial – anunciado como “Carta ao leitor”, mas com um título
relacionado ao tema principal da edição – na primeira página, à direita do su-
mário, que se chama “Conteúdo”. A seção dos leitores chama-se simplesmente
“Cartas” e vem na segunda página, ao lado dos créditos da publicação. A pre-
sença da foto da capa da edição anterior (à qual se refere a maioria das cartas
de leitores) é uma prática comum em quase todas as revistas, mas só nesta no-
tamos fotos de várias edições, inclusive no espaço do editor, funcionando como
“autopromoção”, justamente por ser uma publicação recente. O “diálogo” a ser
destacado está no desafio de um leitor pró-FHC, que aproveita para questionar
a “gramática” da redação:

Até gosto de alguns bons artigos publicados por vocês (grifo nosso).
Quando FHC fala que quer brasileiros “melhor educados” ele se refere
à formação escolar, melhor educados nas escolas [...] e não “mais bem
educado”, cujo antônimo é mal-educado. Percebe-se que vocês são pró-
Lula, mas acho que o “Por qué non te callas?” vai para vocês [...] (RdB,
nº 21, fevereiro 2008).
128 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

A resposta, na “Nota da redação”, é muito sutil, pois se atém ao aspecto


gramatical, ignorando o comentário sobre partidarismo político: “Segundo a
Gramática de Base, de Celso Cunha, advérbios comparativos regulares ‘mais
bem’ e ‘mais mal’ são usados antes de adjetivos-particípios”. A polêmica surgiu
em virtude de um comentário na seção “Resumo” da revista (nº 19, dezembro
2007), a respeito da discreta e constrangida repercussão na mídia sobre a “gros-
seria de FHC, que em evento de seu partido disse que quer brasileiros melhor
educados (grifo da revista) e não brasileiros liderados por gente que despreza a
educação, a começar pela própria”.
É interessante notar que a revista é dirigida e editada por sindicalistas, e
nada mais justo que priorizar então a palavra de uma maioria de “brasileiros”,
como a própria revista diz em sua primeira edição, ao comentar como ela foi
concebida e criada:

Este é o primeiro número da Revista do Brasil, que será distribuída a cer-


ca de 360 mil sócios dos sindicatos participantes deste novo projeto de
comunicação popular. Ele vem à luz depois de longo período de gestação
– em que dirigentes, jornalistas e apoiadores (grifo nosso) realizaram um
sem-número de debates em busca de sua identidade editorial, seu dese-
nho gráfico, seu nome e os temas que ocuparão suas páginas neste e nos
próximos números. A revista começa a circular mensalmente, com 36 pá-
ginas (RdB, nº 1, maio 2006).

Nossa análise quer ver como a revista se vê: talvez seja por sua crença na
pluralidade de opiniões que o conselho editorial é formado por representantes
de diversos sindicatos. Do ponto de vista da prática editorial e seu cruzamento
com a prática epistolar, podemos dizer que a Revista do Brasil é a mais tradicio-
nal entre os exemplos que analisamos: apresenta-se, logo de início, numa carta
editorial e abre espaço, na seqüência, para as cartas dos leitores. Não há novida-
de nos títulos, nem ruptura com a ordem “editorial + cartas dos leitores”, a mais
freqüente na mídia impressa de um modo geral. No entanto, dentro dessa regra,
encontramos ao menos uma exceção, já que na edição de dezembro de 2007, por
um lapso, um erro de diagramação ou talvez intencionalmente, há uma quebra
da norma, que só faz confirmar nossa hipótese: as cartas dos leitores passam à
frente, surgindo antes do sumário e do editorial, sugerindo, embora num caso
isolado, que são eles, os leitores, que encaminham a linha editorial da revista.
Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 129

SUPERINTERESSANTE E GALILEU
Na Superinteressante, a mais original nos títulos das seções em foco, o sumá-
rio chama-se [CARDÁPIO] – “As opções do mês”, reforçando nossa classificação
da revista como “alimento de consumação rápida”. A seção dos leitores exibe o
título [DESABAFA] – “Solte o verbo”, e às vezes ocupa duas páginas inteiras. Os
editoriais vêm depois, com o interessante título [AGORA ESCUTA] – “Direto da
redação”, ao lado dos créditos próprios de uma publicação da Editora Abril.
As cartas dos leitores são apresentadas antes do editorial, depois de uma
seqüência de anúncios. O título “Desabafa” remete a uma prática falada, como
se a revista, ao invés de cartas, propusesse um bate-papo com os leitores – jo-
vens em sua maioria. A oralidade e o bate-papo estão confirmados no título do
editorial, como se os editores dissessem “Você desabafou? Agora escuta”. Essa
informalidade procura escapar do ambiente restrito da mídia impressa, pois a
revista propõe a leitura de sua página na internet, numa espécie de “contágio”
(Landowski, 2004) entre seu suporte de papel, estático e concreto, e a prática
dinâmica e virtual da internet. Tal dinamismo aparece em diversas seções da
revista, nem sempre “linkadas” com a internet, como a própria seção de cartas
dos leitores, em que podemos ver uma nota, dentro de um círculo, indicando
quantas mensagens a revista recebeu, o que nos lembra certamente os contado-
res de acesso dos sites e blogs. Uma coluna comenta o teor da maioria das cartas
recebidas sobre a edição anterior e há ainda um espaço para a correção de erros
da edição passada. Dessa maneira, a leitura não é apenas linear, o olho do leitor
pode passear pelas diversas regiões da página, sem seguir necessariamente uma
ordem de leitura tradicional, da esquerda para a direita, de cima para baixo. Mas
essa observação pode ser feita a respeito da mídia impressa em geral, talvez pela
própria prática da leitura de hipertextos, nos dias atuais.
Por todos esses aspectos, a Superinteressante acaba sendo uma revista “rui-
dosa”, pela alta quantidade de informações que ela pretende veicular, mais uma
vez nos lembrando a internet. E, assim como acontece no mundo virtual, o au-
mento na quantidade de textos, imagens e infográficos impõe, no suporte mate-
rial do texto escrito, uma diminuição da profundidade dos temas. A linguagem
informal entre amigos, proposta nas seções de abertura das revistas (trocas de
cartas entre leitores e editores), frutifica na Superinteressante, aliando-se à sua
prática editorial, e a informalidade acaba por contagiar outras seções.
A revista Galileu, da Editora Globo, assim como a anterior, divide e mistu-
ra espaços de curiosidades científicas, anúncios comerciais e seções epistolares.
130 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

A primeira página contém o sumário e, depois de uma propaganda de página


inteira, vem o editorial, ao lado dos créditos, com chamada no alto à esquerda
– DA REDAÇÃO – e um título relacionado ao conteúdo principal da edição.
A seção dos leitores, depois de mais uma página de propaganda, tem chama-
da semelhante – CORREIO – “Fale com a gente”. Nessa revista temos ainda
um fenômeno que, ao menos no nosso corpus, é único: o “Canto do Orkut” e
o “Canto dos blogs”, seções que passaram a chamar-se, recentemente, apenas
“Blogs” e “Orkut” e mostram claramente o “contágio” entre a mídia digital e a
mídia impressa, de que já falamos. Na edição de abril de 2008, temos ainda uma
curiosa inserção de um bate-papo por MSN, no próprio editorial. A matéria de
capa “Mal.com, o lado sombrio da internet” é comentada pelo editor, que inclui
parte da conversa dos jornalistas que fizeram pesquisas para a reportagem. O
bate-papo aparece não apenas transcrito, mas no formato que é gerado no pró-
prio MSN.
Entretanto, por mais que haja novidade nos “cantinhos” e na inclusão de
um diálogo por MSN, as práticas em jogo na revista, a orkutiana, a blogueira e
a messengeira, têm como base fundadora a troca epistolar. No próprio Orkut, a
troca de mensagens escritas pode ser vista tanto nas comunidades que funcio-
nam como fóruns de discussão quanto nas “páginas de recados” dos usuários.
E nos blogs, a troca interativa está nos comentários de leitores sobre os textos
dos autores.
A Galileu tem um ritmo menos acelerado que a Superinteressante e menor
número de propagandas, o que acaba por privilegiar as matérias, que são mais
desenvolvidas. Finalmente podemos dizer que nessas revistas pseudo-científicas
temos a construção de uma “forma de vida” singular: os leitores, ávidos por novi-
dades, encontram apenas um conhecimento superficial sobre os temas tratados.
Essas características, a curiosidade solicitante e a superficialidade oferecida, mar-
cam as práticas que circulam nas duas revistas, pois delas nascem os infográficos,
com informações condensadas e geralmente localizados nos cantos laterais das
páginas, e também as propagandas com aparência de matéria informativo-noti-
ciosa, no caso da Superinteressante, e os “cantos” no caso da Galileu.

REFLEXÕES FINAIS
Queremos crer que nossas análises mostraram o princípio de integração
entre os níveis de pertinência do percurso gerativo da expressão nas práticas de
Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores | 131

comunicação por carta na mídia impressa. Como vimos, é nesse percurso – uma
sistematização do fenômeno semiótico da semiose – que se percebe a diferença
entre os níveis de pertinência: no nível inferior, as figuras-signos compondo os
textos-enunciados, que se materializam nos objetos-suportes, no nosso caso,
o papel impresso. No nível superior, a práticas integram-se às estratégias (mo-
dos de manipulação enunciativa dos leitores e dos editores) e às formas de vida
(procedimentos sociais e culturais na comunicação entre editores e leitores),
buscando sempre a eficiência e a otimização.
A eficiência da prática epistolar na mídia impressa, analisada nas revistas
do nosso corpus, depende da construção, na dimensão enunciativa, de papéis
actanciais e actoriais preestabelecidos. No caso dos editoriais temos sempre im-
plícitos os editores como sujeitos-enunciantes, que se dirigem aos destinatários-
leitores, no papel temático de assíduos companheiros da revista, seguindo aten-
tamente a trajetória das matérias publicadas. E no caso contrário, os leitores são
os sujeitos-enunciantes, que contam com a presença de um destinatário coletivo,
o corpo editorial. No entanto, a prática torna-se realmente eficiente quando se
adapta estrategicamente às possíveis variações a que a revista está sujeita. É essa
capacidade de adaptação estratégica (o ajustamento entre duas práticas, a epis-
tolar e a editorial) que a torna eficiente. Mudam-se os anos, mudam-se os temas
políticos, científicos, e as revistas mantêm-se ativas, pois para tanto se valem
de uma “prática sociossemiótica que se articula em diversos planos diferentes”
(Landowski, 2004: 213-214), já consagrada pelo uso, que é a prática epistolar.
Não importa, para a conquista dos leitores, apenas o conteúdo da revista,
mas também a forma como ela o organiza, no plano da expressão. Enquanto
mantiver a mesma organização, terá os mesmos leitores e outros mais, numa
espécie de processo de fidelização. Por essa razão, os casos pontuais que destaca-
mos, tanto da Caros Amigos, quanto da Revista do Brasil, tornam-se justamente
exemplos do processo de adaptação eficiente de uma prática interativa: uma
seção específica (carta aos leitores) cede parte de seu espaço às características de
outra seção (editorial), em favor da manutenção da prática de trocas de cartas
na mídia impressa.
132 | Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAROS AMIGOS. São Paulo: Casa Amarela, nº. 130, janeiro 2008; nº. 136, julho
2008; nº. 137, agosto 2008.
GALILEU. São Paulo: Globo, n°. 201, abril 2008; n°. 205, agosto 2008; n°. 206,
setembro 2008.
GREIMAS, Algirdas Julien. Préface. In: CALAME, Claude (org.). Actes du VI
Colloque Interdisciplinaire: La lettre. Approches sémiotiques. Fribourg: Editions
Universitaires, 1988.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Trad.
Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1983.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Sémiotique. Diccionnaire
raisonné de la théorie du langage. Tome 2. Paris: Hachette, 1986.
LANDOWSKI, Eric. Passions sans nom. Paris: PUF, 2004.
REVISTA DO BRASIL. São Paulo: Atitude, nº. 19, dezembro 2007; n°. 21,
fevereiro 2008.
SUPERINTESSANTE. São Paulo: Abril, nº. 250, março 2008; nº. 251, abril 2008;
nº. 254, julho 2008.
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 133

PRÁTICAS DE DIRECIONAMENTO DO
FLUXO DE ATENÇÃO NO TELEJORNAL
Juliano José de Araújo

E a própria vida ainda vai sentar sentida


vendo a vida mais vivida que vem lá da televisão.
Chico Buarque, A televisão (1967)

A televisão é hipnoticamente envolvente: qualquer movimento no ecrã


trai a nossa atenção tão automaticamente como se alguém nos tivesse tocado.
Kerckhove (1997)

INTRODUÇÃO
O telejornal desempenha na sociedade brasileira papel fundamental tanto
na produção como na divulgação de informações. A maioria da população de
nosso país informa-se diariamente sobre os principais acontecimentos de seu
cotidiano através dos telejornais, gênero televisivo que é uma espécie de pro-
pagador da “verdade” e, sempre que necessário, invocado como um argumento
seguro. As emissoras de televisão aberta têm dedicado atenção especial aos tele-
jornais1. A Rede Globo, por exemplo, conta atualmente com quatro telejornais
transmitidos em caráter nacional: Bom dia Brasil, Jornal Hoje, Jornal Nacional e
Jornal da Globo. E isso sem contar os telejornais locais e os plantões que irrom-

1 É importante destacar que, conforme estabelece o decreto lei 52.795, de 31 de outubro de 1963, que trata do
regulamento dos serviços de radiodifusão, as emissoras devem dedicar o mínimo de 5% do horário de sua
programação diária à transmissão de notícias (Curado, 2002: 15).
134 | Juliano José de Araújo

pem o fluxo da programação televisiva a qualquer momento.


Na esteira da Globo, as demais emissoras abertas também passaram a in-
vestir nos telejornais, que se tornaram o carro-chefe da programação das emis-
soras. Squirra (1990: 14) afirma que “o telejornal é o tipo de programa que mais
credibilidade proporciona às emissoras. Credibilidade junto aos anunciantes
(cujos espaços para anúncios são geralmente os mais caros) e prestígio junto ao
poder político e econômico da nação”2.
Nesse contexto, o telejornal constitui-se, a nosso ver, em um terreno pro-
fícuo de análise, sobretudo se considerarmos o fato de ele ser veiculado pela
TV, único meio de comunicação de caráter realmente massivo3. Entretanto,
Machado (2005: 99-100) aponta que o telejornal talvez seja o gênero televisual
mais difícil de ser abordado. Isso acontece, segundo o autor, porque boa parte
das pesquisas sobre os telejornais restringe-se à análise de conteúdos, como por
exemplo, o método de estudo do Glasgow University Media Group, que consiste
em tabular quantas vezes um telejornal traz matérias favoráveis ao governo e
matérias contra o governo ou quanto tempo é dedicado a questões relacionadas
com a esquerda ou a direita. Tais abordagens são, em certa medida, equivoca-
das, pois partem do pressuposto de que o telespectador é ingênuo, repetindo de
forma acrítica a “intenção” da empresa ou da equipe que faz o telejornal. O autor
defende uma análise do telejornal que abstraia seus aspectos episódicos, como
por exemplo, o acompanhamento de campanhas eleitorais e as denúncias de
corrupção, e estude sua forma significante, ou seja, as práticas e operações que
caracterizam esse gênero televisivo enquanto construção discursiva.
Neste artigo, propomo-nos deslocar o foco da análise dos conteúdos vei-
culados pelo telejornal para sua forma significante, ou seja, sua estrutura sin-
tagmática evidenciando como esse gênero televisivo faz para captar a adesão
do telespectador e, sobretudo, para mantê-la durante sua transmissão. Nossa
hipótese de análise é que, embora o telejornal pareça revelar o predomínio das
dimensões cognitivas (que articulam formas de saber) e pragmática (que estru-
tura seqüências de ações) do discurso, ele capta a adesão de seu público, direcio-
nando seu fluxo de atenção a partir da dimensão sensível (passional).
Para demonstrar a pertinência dessa abordagem, tomaremos uma edição
do Jornal Nacional (JN), telejornal da Rede Globo de Televisão transmitido no

2 Prova da crescente importância dos telejornais na grade de programação das emissoras pôde ser vista recen-
temente com o lançamento do canal Record News, da Rede Record, que se dedica 24 horas ao jornalismo. A
emissora criou um canal jornalístico nos moldes da Globo News, que está no ar desde outubro de 1996. No
entanto, o Record News é veiculado na rede aberta de televisão, diferentemente da Globo News, que é um
canal cujo acesso se faz mediante assinatura.
3 Segundo Capparelli e Lima (2004: 46), a Rede Globo tem uma cobertura de 99,86% dos domicílios com TV; o
SBT, 97,18%; a Bandeirantes, 87,13%; e a Record, 76,67%.
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 135

horário nobre, como corpus4. O referencial teórico será a semiótica francesa, a


partir do ponto de vista do discurso em ato. O telejornal será, assim, conside-
rado como uma prática de comunicação social, inserida em nosso cotidiano
e veiculada pela TV. O percurso que desenvolveremos será o seguinte: 1) ini-
cialmente, apresentaremos algumas considerações sobre o método de análise,
a semiótica do discurso, e os elementos teóricos empregados para o estudo do
telejornal, notadamente os atuais desdobramentos da teoria, conforme sinteti-
zados por Fontanille (2007); 2) segmentaremos e analisaremos uma edição do
JN, evidenciando a estruturação e hierarquização das notícias no telejornal; e
3) apontaremos, buscando uma esquematização do modo de funcionamento
do telejornal, os esquemas tensivos que regem esse gênero televisivo5, operação
que nos permitirá identificar as práticas que emprega para direcionar o fluxo de
atenção do telespectador.

DO MÉTODO
A semiótica do discurso, assim como as ciências cognitivas, não pode mais ignorar
a interação do sensível e do intelígivel. Na verdade, a formação das categorias
e a significação em ato são elas próprias submetidas ao regime do sensível.
Fontanille (2007: 30)

As novas tecnologias da informação garantem a onipresença dos meios de


comunicação e também possibilitam a instantaneidade da difusão da informa-
ção (Rodrigues, 1999). As mídias, sobretudo os meios eletrônicos6 (cinema, in-
ternet, rádio e televisão), estão cada vez mais presentes em nosso cotidiano,
possibilitando que nos desloquemos no espaço-tempo para qualquer lugar do
planeta e fora dele. A partir das técnicas da montagem audiovisual7, o telejornal
nos fornece um mundo plástico e dinâmico, forja uma percepção de profun-
didade e movimento, além de produzir o efeito de sentido de “realidade”. Será
que é por isso que Chico Buarque canta, na epígrafe que abre este artigo, que a

4 A edição do JN que será analisada neste artigo foi veiculada em 1º de junho de 2004.
5 Para uma discussão sobre os gêneros televisivos, veja Machado (2005), em especial, o capítulo “Gêneros televisuais e o
diálogo”, p. 67-113.
6 Segundo classificação de Briggs e Burke (2004), as mídias são classificadas em impressas e eletrônicas.
7 É importante observarmos que o atual estágio de desenvolvimento da televisão, e de seus gêneros e formatos,
não deve ser entendido de forma isolada dos demais meios de comunicação, mas a partir das conquistas e
aperfeiçoamentos de outros meios, como por exemplo, a literatura, o teatro, a música e, sobretudo, o cinema
e a fotografia (Squirra, 1990: 19). Todos esses meios, com características próprias, fornecem elementos que
são empregados na televisão e engendram uma sintaxe complexa, na medida em que há uma longa tradição
de diálogo e colaboração entre cinema, televisão e meios eletrônicos em geral, pois as mídias operam em um
processo de interseção de linguagens (Machado, 1997: 189-190).
136 | Juliano José de Araújo

vida “que vem lá da televisão” é “mais vivida”? E o que Derrick de Kerckhove,


em uma das epígrafes que abre este artigo, quer dizer ao afirmar que qualquer
movimento na tela da TV “atrai a nossa atenção tão automaticamente como se
alguém nos tivesse tocado”?
Tais indagações levaram-nos em direção ao conceito de discurso em ato,
perspectiva de análise relativamente recente na semiótica, em que a teoria passa
a se ocupar não apenas dos discursos não-verbais, mas também e, sobretudo, de
um conjunto de comportamentos e/ou procedimentos reconhecíveis em um dado
texto, seja ele verbal, não-verbal ou sincrético, pois o sentido emerge não somente
do discurso enunciado, mas da e na própria situação de enunciação. Esse ponto de
vista traz para os estudos semióticos a problemática de uma apreensão sensível do
sentido, em que a percepção e a sensibilidade são elementos centrais.
Diniz (2007: 2) lembra-nos que a partir da publicação de Semiótica das
paixões (Greimas e Fontanille, 1993), a teoria semiótica abriu o texto para o
“mundo natural”, considerando que a significação se articula em duas direções,
uma manifestada e realizada, outra manifestante e realizante. Para a primeira
perspectiva, centrada na análise de textos verbais, os esquemas actanciais e os
programas narrativos são eficazes para identificar a “arquitetura conceitual” e o
“conteúdo ideológico” dos enunciados. Para a segunda perspectiva, entretanto,
os elementos a serem tratados são a percepção, as sensações e a intencionalida-
de, que surgiram diante dos novos objetos que se colocaram à prova de análise
dos semioticistas. Landowski esclarece-nos esta mudança de ponto de vista ao
dizer que:

em vez de considerar o texto como objeto empírico, imediatamente


produzido, fomos levados cada vez mais a considerá-lo como o resul-
tado de uma construção que implicava um jogo complexo de relações
entre o que se refere ao próprio ser dos objetos “lidos” ou percebidos
- a suas estruturas imanentes - e ao que depende do fazer dos sujeitos
interpretantes ou “que lêem” (leitores “ingênuos” ou analistas, teorica-
mente mais espertos) e, ao mesmo tempo, como uma realidade capaz
de articular diferentes linguagens entre si, ou melhor, várias semióti-
cas, verbais ou não (2001: 326).

Dessa forma, percebemos que o sentido pode ser entendido, por um lado,
como uma “grandeza realizada”, ou seja, presente “nos” enunciados e imanen-
te aos discursos; por outro, o sentido também pode ser entendido como uma
forma permanentemente “em vias de construção”, “em ato” e, desse modo, em
situação, no momento exato em que o processo se realiza. Landowski (2002:
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 137

166) esclarece-nos que “menos que o texto, como produto, como enuncia-
do que tem um sentido (ou, por que não, vários), é o discurso, enquanto ato
de enunciação efetuado em situação e produzindo sentido, que nos interessa,
neste quadro”. Nessa perspectiva, Fontanille (2007: 17) afirma que “pode-se
apreender o sentido do discurso somente na atualidade que define o ato de
discurso” e completa: “o projeto da semiótica do discurso está assim delimita-
do: a enunciação carrega em si uma semiose em ato e é dessa semiose que deve
a semiótica do discurso tratar”.
O conceito de discurso em ato, ao trazer a discussão sobre a percepção e a
sensibilidade para os estudos semióticos, interessa-nos sobremaneira, pois bus-
camos evidenciar as práticas que o telejornal emprega para direcionar o fluxo de
atenção dos telespectadores que, segundo nossa hipótese de análise, concretiza-
se a partir da dimensão sensível do sentido. Zilberberg (2002: 111) explica-nos
que essa perspectiva implica em considerar que a significação é conduzida pela
afetividade, a qual recebemos a partir da articulação da intensidade e da exten-
sidade. Dessa forma, Fontanille afirma que:

perceber algo – antes de reconhecer esse algo como uma figura perten-
cente a uma das macrossemióticas – é perceber mais ou menos intensa-
mente uma presença. De fato, antes de identificar uma figura do mundo
natural, ou ainda uma noção ou um sentimento, percebemos (ou “pres-
sentimos”) sua presença, ou seja, algo que, por um lado, ocupa uma certa
posição (relativa a nossa própria posição) e uma certa extensão e que,
por outro lado, nos afeta com alguma intensidade. Algo, em suma, que
orienta nossa atenção, que a ela resiste ou a ela se oferece (2007: 47).

O autor explica que esse direcionamento/orientação decorre a partir da vi-


sada, mais ou menos intensa, e da apreensão, mais ou menos extensa, modalida-
des a partir das quais a significação pode emergir da percepção. Tanto a visada
como a apreensão pertencem ao chamado esquema tensivo, que rege todos os
discursos e garante a solidariedade entre o sensível (a intensidade, o afeto, a
emoção, a paixão) e o inteligível (o desdobramento na extensão, aquilo que é
mensurável e compreendido). O esquema tensivo consiste, assim, em um mode-
lo que objetiva responder às questões deixadas em aberto pelo modelo clássico,
como no caso do quadrado semiótico, por exemplo, que apresenta as categorias
semânticas como um todo acabado e que não estão mais sob o controle de uma
enunciação viva (Fontanille, 2007: 47-74).
Articulando intensidade e extensidade, o esquema tensivo, conforme pro-
posto por Zilberberg (2002) e retomado por Fontanille (Ibidem), permite-nos
138 | Juliano José de Araújo

avaliar as qualidades sensíveis de uma determinada semiótica-objeto. Pense-


mos, a título de exemplo, nas qualidades visuais da televisão, em particular, nos
enquadramentos. Fontanille afirma que:

quando a edição vale-se de um estreitamento (progressivo ou repentino)


do campo até chegar a um rosto enquadrado em close-up ou apreendido
por uma “inserção”, ela passa do desenrolar descritivo e narrativo a um
efeito puramente emocional. Inversamente, quando ela amplia progres-
sivamente o campo, partindo de um close-up ou de um plano próximo
para chegar a uma série de planos gerais ou panorâmicas, descritivas ou
narrativas, ela passa do efeito emocional (o equivalente, de alguma forma,
a uma questão ou a uma exclamação) a um desdobramento explicativo e
cognitivo (Idem: 114).

Esse “ir” e “vir” dos enquadramentos, a partir do zoom-in e do zoom-out8,


alterna a produção de uma tensão afetiva, marcada pelos enquadramentos mais
fechados (close-up e plano próximo), e o relaxamento, caracterizados pelos pla-
nos mais gerais (plano geral e de conjunto).
Os efeitos de presença, sejam visuais (no caso dos enquadramentos televisi-
vos), sonoros (entonação e prosódia) ou táteis (liso e áspero), para serem quali-
ficados de fato como presença, ou seja, para que sua significação exista a partir
da percepção, associam um certo grau de intensidade e de extensidade. A partir
dessa correlação, as figuras semióticas se formam e se estabilizam (Idem: 76-77).
Graficamente, o esquema tensivo pode ser representando como segue:

8 O zoom é uma possibilidade de aproximar ou distanciar os objetos que estão sendo focalizados, a partir de
movimentos óticos, realizado com o emprego de lentes próprias. O zoom mostra uma cena com maior ou
menor grau de detalhe. O movimento de aproximação é o zoom-in, o de afastamento, o zoom-out.
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 139

Acreditamos que, a partir da articulação dos gradientes de intensidade (o


sensível) e extensidade (o inteligível), conforme apresentados acima, podemos
pensar justamente a forma como o telejornal direciona o fluxo de atenção do
telespectador a partir da dimensão sensível do sentido, estruturando e hierar-
quizando as notícias que veicula em uma estrutura sintagmática orientada na
direção de uma maior tensão ou de um maior relaxamento. É dessa tarefa que
nos ocuparemos agora: analisar uma edição do JN, procurando identificar os
esquemas tensivos que a regem.

DA ANÁLISE
O jornalismo hoje é essencial para a vida em sociedade. Os telejornais cumprem
uma função de sistematizar, organizar, classificar e hierarquizar a sociedade.
Dessa forma, contribuem para a organização do mundo circundante.
Vizeu (2006: 4)

Os acontecimentos e fatos do cotidiano percorrem um longo caminho, até


chegar ao telespectador, desde a pauta, a apuração, a captação das informações,
a redação, a edição e a veiculação. Toda a rotina de um dia de trabalho em uma
redação de TV começa a ser estruturada no dia anterior, com a elaboração de
um espelho, ou seja, um esboço indicando a organização do telejornal e apre-
sentando as notícias que farão parte daquela edição. O espelho é elaborado du-
rante as reuniões da chefia de reportagem, sob o comando do editor-chefe, que
determina os assuntos da pauta para cobertura pelas equipes de reportagem.
Com a pauta em mãos, o repórter, juntamente com o cinegrafista, sai para
o trabalho de campo para apurar e captar as informações, ou seja, em busca
dos entrevistados e, notadamente, de imagens acerca do fato que vão reportar.
Cabe ao repórter realizar as entrevistas, checar as informações e redigir os
textos das matérias.
As notícias em um telejornal podem ser apresentadas sob os seguintes for-
matos: 1) nota simples: são matérias redigidas a partir das informações das agên-
cias de notícias, do rádio-escuta, de press-releases ou outras fontes. De maneira
geral, a nota simples é uma matéria curta que não tem imagens de cobertura
nem de arquivos para ilustrá-la e é lida pelo apresentador ou âncora; 2) nota
coberta: tem a mesma estrutura da nota simples com o diferencial de apresentar
imagens sobre o assunto narrado; 3) reportagem: é a forma mais completa de
apresentação das informações em um telejornal, porque pode apresentar o texto
140 | Juliano José de Araújo

em off do repórter e é “casado” com imagens, trechos de entrevistas (sonoras), a


passagem e o encerramento. A passagem é a entrada do repórter no vídeo, em
algum momento da narração, para dar ao telespectador uma informação que
não foi possível passar no texto em off. No encerramento, o repórter aparece
para explicar os desdobramentos de determinado fato (Squirra, 1990: 71-72);
(Curado, 2002: 49-50).
Captado todo o material, imagens e áudio, é chegada a hora da edição, que
transforma o material bruto em produto final: a notícia. O editor deve dar se-
qüência lógica à matéria produzida, dosando imagem e texto, além de observar
a sua devida interação. Editor de texto e de imagens, assim como repórter e
cinegrafista, devem trabalhar em conjunto. Squirra (1990: 94) destaca que os
editores devem ficar atentos à carga emotiva e informativa das reportagens, não
esquecendo da angulação pretendida pela emissora. Todo o material coletado
pelo repórter é visto e recortado. Os excessos são excluídos, os erros são corri-
gidos, as melhores imagens, passagens e entrevistas são selecionadas: o roteiro
da reportagem começa a ganhar forma. Curado (2002: 96) diz que, em linhas
gerais, as reportagens produzidas para os telejornais diários têm entre 1min5s
e 1min30s, no máximo, e seguem a seguinte estrutura: 1) texto do apresenta-
dor - cerca de 15 segundos - que encaminha ou chama a reportagem, também
denominado de cabeça da matéria; 2) texto em off do repórter - entre 20 e 30
segundos; 3) sonora ou fala do entrevistado - entre 10 e 15 segundos; 4. passa-
gem do repórter (participação do repórter no vídeo) - entre 15 e 20 segundos;
4) sonora (entrevista ou fala de uma ou mais pessoas) - entre 12 e 20 segundos;
e 5) narração final em off do repórter - entre 10 e 15 segundos. A autora indica
que, às vezes, a narração final é substituída pelo encerramento, ou seja, o repór-
ter aparece no final de reportagem, fechando-a. É pertinente observar que, em
termos de duração, os telejornais têm investido em reportagens maiores, como
a análise de nosso corpus demonstrará.
Como pensar, no entanto, o telejornal do ponto de vista semiótico? É essa
questão que se coloca agora, após expormos, de forma resumida, sua rotina
de produção. Vimos que as notícias em um telejornal podem ser apresenta-
das, regra geral, sob três formatos: nota simples, nota coberta e reportagem.
Conjugadas a essas estruturas, temos a escalada, a chamada inicial que abre o
telejornal, na qual os apresentadores trazem as manchetes do dia, e as passa-
gens de blocos. Podemos encontrar também entrevistas no estúdio e os links
em que os repórteres são chamados “ao vivo” do local de um determinado
acontecimento. Há ainda, às vezes, a presença de comentaristas, a previsão do
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 141

tempo, charges, como no caso do JN. Nessa perspectiva, Fechine sugere-nos


que pensemos o telejornal como:

um enunciado englobante (o noticiário como um todo) que resulta da


articulação, por meio de um ou mais apresentadores, de um conjunto
de outros enunciados englobados (as notícias) que, embora autônomos,
mantêm uma interdependência. Podemos assim, em outros termos, con-
ceber o telejornal como um conjunto que emerge justamente da articu-
lação dessas sucessivas unidades numa instância enunciativa que as en-
globa. (...) todos os enunciados englobados (unidades) organizam-se em
função desse enunciado englobante implícito (todo) justamente porque
estão inseridos, e são articulados entre si, numa mesma temporalidade
definida pelo início e pelo fim do programa (Fechine, 2006: 140).

A partir da relação entre enunciado englobante e enunciados englobados,


realizaremos a segmentação de nosso corpus, uma edição do JN. Apresenta-
remos, a seguir, uma tabela trazendo os enunciados englobados dessa edição,
classificados por tipo e indicando os assuntos abordados e também sua duração
para depois passarmos à nossa análise.
142 | Juliano José de Araújo

Estrutura do enunciado englobante do JN


Bloco 1

Tipo de enunciado
Assunto Tempo de duração
englobado

a) Prisão / maior contrabandista do país;


b) Julgamento / atirador do cinema;
c) Final da rebelião / Casa de Custódia;
1. Escalada d) Chuva / Alagoas;
(manchetes do dia) e) Exportações brasileiras / recorde; 0-1min18s
f) Desconto / Imposto de Renda;
g) Petróleo / preço recorde;
h) Novo presidente / Iraque;
i) Jogo Copa / eliminatórias

Prisão do chinês Law Kin Chong, acusado pela polícia


2. Reportagem 1min19s – 8min58s
de ser o maior contrabandista do país.

3. Reportagem Começa o julgamento de Mateus da Costa Meira 8min59s – 11min16s

a) Vereadores / reajuste salário;


Passagem de
b) Ministros STJ / benefícios; 11min17s – 11min31s
bloco 1
c) Desconto / Imposto de Renda.

Bloco 2

Desconto no Imposto de Renda é anunciado pelo


4. Reportagem 11min32s – 13min
governo

5. Nota simples Medida provisória / salário mínimo 13min01s – 13min35s

Ministros do Superior Tribunal de Justiça recebem


6. Reportagem 13min36s – 15min02s
reforço no contra-cheque
7. Reportagem Vereadores reajustam o próprio salário 15min03s – 17min04s

8. Nota simples Fim da greve no INSS 17min05s – 17min19s


Passagem de
Final da rebelião / Casa de Custódia 17min20s – 17min28s
bloco 2
Bloco 3

Rebelião na Casa de Custódia do Rio termina e deixa


9. Reportagem 17min29s – 20min
31 mortos

Rebelião revela fragilidade da construção da Casa de


10. Reportagem 20min01s – 22min35s
Custódia
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 143

11. Nota simples Presídios / Corte Interamericana de Direitos Humanos 22min36s – 23min

12. Nota coberta Chuva deixa mortos e desabrigados em Alagoas 23min01s – 23min35s

13. Previsão do
------------------------- 23min36s – 24min05s
tempo
a) Exportações brasileiras / recorde;
Passagem de
b) Novo presidente / Iraque; 24min06s – 24min20s
bloco 3
c) Nélson Mandela / vida pública

Bloco 4

14. Nota coberta Nélson Mandela anuncia que deixará a vida pública 24min21s – 25min
Novo presidente do Iraque é anunciado em meio a
15. Reportagem 25min01s – 26min36s
protestos
16. Nota simples Preço do petróleo atinge recorde em 21 anos 26min36s – 26min56s

17. Nota simples Baixa a cotação do dólar 26min57s – 27min06s

Ministério da Agricultura interdita soja contaminada em


18. Nota coberta 27min07s – 27min33s
armazém do Rio Grande do Sul

19. Nota simples Exportações brasileiras atingem recorde 27min34s – 27min55s

20. Charge do
Crítica ao governo Lula 27min56s – 28min08s
Chico

Prisão de norte-americano procurado pelos EUA no Rio


21. Nota simples 28min09s – 28min33s
Grande do Norte

22. Reportagem ONGs indígenas desviam verba do Ministério da Saúde 28min34s – 30min26s

Justiça Federal pede prisão de empresários que estão


23. Nota simples 30min27s – 30min53s
envolvidos em fraudes de medicamentos

Passagem de Último treino da seleção antes do jogo pelas eliminató-


30min54s – 31min03s
bloco 4 rias da Copa contra a Argentina

Bloco 5

O craque Ronaldo doa 45 mil euros para o espaço


24. Reportagem 31min04s – 31min46s
Criança Esperança de Belo Horizonte

Preparativos para o último treino da seleção brasileira,


25. Reportagem antes do jogo pelas eliminatórias da Copa contra a 31min47s – 33min38s
Argentina, agitam Belo Horizonte

26. Reportagem Brasileiros recepcionam jogadores argentinos 33min39s – 35min10s


Parreira comanda o último treino da seleção brasileira,
27. Reportagem 35min11s – 37min32s
uma festa para 30 mil pessoas
Encerramento ------------------------- 37min33s – 37min53s
144 | Juliano José de Araújo

O telejornal é estruturado em cinco blocos que trazem: a escalada, repor-


tagens, notas simples e cobertas, a previsão do tempo, passagens de bloco, a
charge do Chico Caruso e o encerramento. Há no todo do enunciado engloban-
te da edição o predomínio de reportagens que, em nosso caso, totalizam treze.
Identificamos também oito notas simples e três notas cobertas. É interessante
observar que os blocos 1 e 5, o primeiro e o último do telejornal, trazem duas e
quatro reportagens, respectivamente, sendo que uma das reportagens veicula-
das no bloco 1 teve a duração de 7min39s, tempo muito superior ao das demais
reportagens. O bloco 2 traz uma alternância entre reportagens e notas simples.
Já o bloco 3 traz duas reportagens, seguidas por uma nota simples e uma cober-
ta. O bloco 4 tem uma alta concentração de notas simples (quatro, sendo que no
total da edição, temos oito) e cobertas (duas de três, do total da edição) e apenas
duas reportagens, trazendo também a charge do Chico Caruso.
A indicação de como a edição do JN está estruturada pode, em um primeiro
momento, parecer sem importância. No entanto, se observarmos que tal estru-
turação é a forma da expressão, no caso, de um enunciado englobante, devemos
considerar a distribuição dos enunciados englobados no telejornal enquanto
efeito de sentido que visa justamente manejar a afetividade do telespectador, de
forma a captar sua adesão, a partir da instauração de uma tensão que rompe a
continuidade.
Nessa perspectiva, o bloco 1 do telejornal seria o momento fulcral para o
enunciador captar a adesão do enunciatário, trazendo as matérias de maior im-
pacto e despertando-lhe a afetividade. Não é à toa que a escalada do telejornal,
que traz as notícias de destaque da edição, abre o bloco 1, empregando uma série
de recursos técnico-expressivos que resultam em uma progressão visual das ima-
gens que, como veremos, produz um efeito de sentido de caráter emocional, cau-
sando expectativa e surpresa a partir de um valor de irrupção (figura ao lado).
A escalada do JN é caracterizada por uma acentuada alternância de planos,
enquadrando ora os apresentadores William Bonner e Fátima Bernardes em pla-
no próximo (figuras B, F, I, L e N), ora trazendo a inserção de imagens das maté-
rias que são anunciadas, os chamados teasers (provocadores), que têm a função
de despertar a curiosidade do telespectador (figuras C, D, E, G, H, J, M, O e P).
O enquadramento em plano próximo dos apresentadores caracteriza uma
embreagem que, somada à modulação e tonalidade das vozes, às expressões fa-
ciais e à interpelação do telespectador através do eixo “O-O”9, criam um efeito

9 Segundo Verón (2003: 17), a interpelação pelo olhar através do eixo “O-O” (“olhos nos olhos”) é um aspecto
fundamental da televisão, o qual remete ao corpo significante.
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 145

de sentido de proximidade, produzindo no enunciatário a sensação de dialogar


com os apresentadores, ou melhor, de “estar com” William Bonner e Fátima Ber-
nardes, que lhe contam as notícias do dia. Martins (2006: 133) afirma que o en-
quadramento em plano próximo estabelece “uma distância interpessoal mínima
com o telespectador, refletindo também intimidade em diferentes graus e permi-
tindo ao ‘homem do sofá’ perceber a direção dos olhares dos âncoras”. Ou seja, o
enunciatário, de certa forma, estabelece um laço físico com o apresentador, como
aponta a autora. Esse tipo de enquadramento caracteriza a chamada estética dos
talking heads (cabeças falantes), expressão segundo a qual os estadunidenses de-
signam os primeiros planos dos apresentadores de televisão. Segundo Machado
146 | Juliano José de Araújo

(1995: 49-50), a talking head “fala diretamente ao espectador, crava-lhe os olhos,


pressupõe a sua presença”, visto que o enunciatário é “o alvo direto e confesso
tanto do aliciamento quanto do contato buscado pelas talking heads”.
As imagens dos teasers, por sua vez, revelam uma grande preocupação do
enunciador com sua composição visual. A figura C traz o empresário chinês
Law Kin Chong, que acaba de ser preso, focalizado em plano médio no interior
de uma viatura da Polícia Federal. Em D temos uma imagem feita por uma
câmera escondida, mostrando que o empresário tentou subornar o deputado
Luiz Antonio de Medeiros, que presidia a Comissão Parlamentar de Inquérito
sobre a “pirataria”. É importante observarmos a presença das bordas sombrea-
das na imagem, que acentuam o caráter investigativo da reportagem anunciada
pelos apresentadores. Em E temos, em um close-up, parte dos setenta e cinco
mil dólares, dinheiro com o qual Law tentou subornar o deputado Medeiros
que, de certa forma, aciona a tatilidade do espectador. Em G e H temos uma
tomada em plano médio e em close-up, respectivamente, de Mateus da Cos-
ta Meira, o atirador do shopping. Note-se que a imagem G traz, em primeiro
plano, as grades de uma prisão, e Mateus, em segundo. A imagem J traz um
plano geral aéreo da Casa de Custódia, no Rio de Janeiro, que acabara de pas-
sar por uma rebelião. Em M temos um plano de conjunto mostrando algumas
pessoas com água até os ombros no corredor de uma residência alagada de-
vido às fortes chuvas. Já em O temos outro plano de conjunto mostrando um
homem ajoelhado segurando o que parece ser uma metralhadora e, ao fundo,
alguns prédios em ruínas. Em P temos o plano geral de um campo de futebol.
A descrição das imagens presentes na escalada do JN mostra que o enunciador
faz uso de uma alternância dos planos, empregando focalizações fechadas e
abertas, fato que assegura o ritmo ágil e dinâmico da abertura do telejornal:
em G e H, por exemplo, temos o mesmo ator discursivo visto segundo dife-
rentes focalizações. A imagem J faz com que enunciatário tenha a sensação de
“sobrevoar” a Casa de Custódia, no Rio de Janeiro, e a imagem M, devido ao
ângulo em que a tomada foi feita, permite a criação de uma ilusão enunciativa,
como se o telespectador estivesse ali, caminhando naquele corredor inundado,
“vivenciando” aquela enchente.
Diniz (2001: 4), em um estudo sobre a credibilidade do JN, afirma que “a
imagem acopla valores naturais e culturais para tecer seu discurso no sentido de
persuadir pela afetividade, manipulando paixões”. Na escalada da edição ana-
lisada, percebemos que as imagens suscitam no enunciatário, em apenas um
minuto e dezoito segundos, emoções, paixões e sensações diversas, conforme os
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 147

textos lidos pelos apresentadores as ancoram: 1) “O JN conta a história da prisão


do maior contrabandista do Brasil”, 2) “São Paulo: o julgamento do atirador que
matou três pessoas num shopping”, 3) “Rio de Janeiro: a polícia conta 31 mortos
na rebelião de presos”, 4) “Calamidade pública: a chuva mata e deixa desabriga-
dos em Alagoas”, 5) “Atentados marcam anúncio do novo nome do presidente
do Iraque”, e 6) “Eliminatórias da Copa: Brasil e Argentina a menos de vinte e
quatro horas do grande confronto”.
Além desses efeitos de sentido, a escalada do telejornal permite, literalmen-
te, que o enunciatário experiencie os acontecimentos narrados, devido à dina-
micidade da montagem10 audiovisual que reproduz o mundo natural em uma
“exposição sistemática e paradoxal do ‘proprioceptivo11’ agitado” (Landowski,
2002: 151). Apesar da mediação da TV, o enunciador busca justamente apresen-
tar o mundo natural reconstituindo-o com todas as suas qualidades sensíveis a
partir do emprego dos recursos técnico-expressivos do meio televisivo12.
Tanto o texto oral quanto o visual da escalada apresentam elementos que
rompem a continuidade do cotidiano do telespectador, introduzindo um senti-
mento de constrangimento ou falta, abalando-o: “sua sensibilidade é desperta-
da, uma presença afeta seu corpo” (Fontanille, 2007: 130). O próprio apresen-
tador do JN, William Bonner, durante a palestra “Produção do Jornal Nacional:
da pauta à transmissão”, ministrada no dia 6 de setembro de 2005, no XXVIII
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado na Universidade
Estadual do Rio de Janeiro, afirmou que o telejornal, logo no início, tem que
causar um certo impacto no telespectador, “um constrangimento” no público,
de forma que ele não troque o telejornal por um outro programa13. Note-se que
o lexema “constrangimento” quer dizer sentimento de vergonha, de mal-estar
“que sente quem foi desrespeitado ou exposto a algo indesejável” (Ferreira,

10 A montagem vertical parte do princípio da justaposição de uma série de elementos (visual, dramático, sonoro)
em uma única imagem. A montagem vertical de Eisenstein procura explorar toda a expressividade do meio
em termos de articulação de diferentes linguagens, ou seja, de diferentes sistemas semióticos, que são coloca-
dos em relação em um mesmo texto.
11 Segundo Greimas e Courtés (1983: 357), proprioceptividade, termo de inspiração psicológica, designa o con-
junto dos traços semânticos usados para denotar a percepção (eufórica ou disfórica) que o homem tem de seu
próprio corpo.
12 Do lado do sistema visual, podemos destacar: 1) a linguagem verbal escrita; 2) a linguagem cinética (imagem
em movimento); 3) a linguagem gestual (incluindo a expressão facial dos apresentadores e repórteres); 4) a
linguagem cenográfica (cenários do telejornal e figurinos dos apresentadores e repórteres); 5) a proxêmica (dis-
tribuição e movimentação de atores no espaço); 6) os recursos técnicos de gravação; 7) de edição; 8) recursos
visuais (o gerador de caracteres, por exemplo); 9) gráficos; e 10) de câmera (planos de gravação, zoom-in e out).
Já do sistema de áudio, teríamos: 1) a linguagem verbal oralizada (incluindo a entonação dos apresentadores e
repórteres); e 2) todos os recursos de sonoplastia, como o áudio ambiente, música ou background. A classificação
ora apresentada retoma, em partes, o modelo do sistema audiovisual, apresentado por Herreros (citado por
Campos, 1994: 56-57).
13 Cf. “Os jornalistas da TV Globo Ali Kamel, Fátima Bernardes, Willian Bonner e Zileide Silva discutem as
escolhas de pauta, edição e linguagem do Jornal Nacional no Intercom”. Disponível em: <http://www2.uerj.
br/~agenc/agenciauerj/htmmaterias/materias/2005mes_09_06/05.htm>. Acesso em 25 de junho de 2006.
148 | Juliano José de Araújo

2001: 179). O enunciador quer, sobetudo no início do telejornal, aumentar a


intensidade do discurso e captar a atenção do enunciatário de uma forma afeti-
vamente eficiente.
No entanto, captada a adesão de telespectador logo no início, é preciso fa-
zer com que ele continue a assistir o programa até o final. É nessa perspectiva
que o enunciador, ao distribuir os enunciados englobados no todo do enuncia-
do englobante do telejornal, hierarquiza as matérias (notas simples, cobertas e
reportagens) pensando justamente em empregar o que Fontanille (2007: 114)
denomina de “dialética do sensível e do inteligível”, ou seja, escolhendo ora um
esquema tensivo ascendente ora um descendente. Este é caracterizado pela di-
minuição da intensidade articulada com o desdobramento da extensão, objeti-
vando produzir um relaxamento cognitivo. Aquele, por sua vez, é regido pelo
aumento da intensidade combinado com a redução da extensão para produzir
uma tensão afetiva.
Nessa perspectiva, é importante observar que o bloco 1, além da escalada,
traz duas reportagens cujos conteúdos são intensos (eixo da intensidade), para
produzir justamente uma tensão afetiva e tocar o enunciatário estesicamente.
A primeira delas, como mostra a tabela da estrutura do enunciado englobante,
trata da prisão do chinês Law Kin Chong e remete à isotopia da /impunidade/.
A segunda refere-se ao julgamento de Mateus da Costa Meira, jovem que entrou
em uma sala de cinema atirando e deixou três mortos e inúmeros feridos, que
também tem como isotopia a /impunidade/, visto que o rapaz cometeu o crime
em 1999 e ainda não havia sido julgado, fato que gera a indignação e revolta dos
parentes das vítimas. O bloco 3, nessa mesma linha, traz duas reportagens sobre
a rebelião na Casa de Custódia, no Rio de Janeiro e tem os semas da /violência/
como isotopia. Já o bloco 5, por sua vez, é totalmente dedicado à cobertura do
futebol, em particular do jogo pelas eliminatórias da Copa entre Brasil e Argen-
tina, fato que contrasta com a isotopia das reportagens dos blocos 1 e 3. Embora
a temática esportiva possa ser considerada por muitos como algo pejorativo,
sem importância, não devemos nos esquecer de sua capacidade de envolver
multidões e como-ver14.
Enquanto isso, os blocos 2 e 4 trazem duas e três reportagens, respectiva-
mente, veiculadas juntamente com notas cobertas e simples. As reportagens dos
blocos 2 e 4 são, de certa forma, enunciados que tendem, se pensarmos na dia-
lética do sensível e do inteligível, a uma dimensão cognitiva e pragmática e não
tanto à sensível. Resgatemos, a título de exemplo, algumas das chamadas dessas

14 Termo empregado por Landowski (1996).


Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 149

matérias: “Desconto no Imposto de Renda é anunciado pelo governo”, “Minis-


tros do Superior Tribunal de Justiça recebem reforço no contra-cheque”, “Fim
da greve no INSS”, “Nélson Mandela anuncia que deixará a vida pública”, “Preço
do petróleo atinge recorde em 21 anos”, “Prisão de norte-americano procurado
pelos EUA, no Rio Grande do Norte”.
Para não sobrecarregar o telespectador em termos afetivos, o enunciador
produz uma tensão afetiva, de certa forma, em “doses”. Assim, o bloco 1 é o
momento em que o enunciador deve mostrar ao enunciatário tudo aquilo que
ele tem a lhe oferecer para que acompanhe a edição do programa até o final. Já
o bloco 3 seria um momento de “realimentar” o contrato com o telespectador,
firmado no bloco 1, garantindo que ele assista ao telejornal até o final da edição.
E há um momento em que o contrato deve ser reafirmado, para que no próximo
dia ele veja o programa, justamente o que acontece no bloco 5. E os blocos 2 e 4
constituem um momento em que o enunciador, devido ao fato de o contrato já
ter sido firmado com o enunciatário, não lança mão das estratégias de intensi-
dade, tendendo a um relaxamento afetivo e cognitivo e veiculando informações
que resgatam o equilíbrio e a continuidade: notas simples, cobertas e poucas
reportagens.
Podemos, a esta altura, pensar em uma esquematização da estrutura sig-
nificante do telejornal, a partir dos esquemas ascendente e descendente, como
veremos nas figuras abaixo:
150 | Juliano José de Araújo

Os blocos 1, 3 e 5 do telejornal são, portanto, regidos pelo esquema ascen-


dente, caracterizado pelo aumento da intensidade combinado com a contenção
da extensidade, fato que gera uma tensão afetiva. Já os blocos 2 e 4 seguem o
esquema descendente, no qual temos um relaxamento cognitivo produzido a
partir da diminuição da intensidade e do desdobramento da extensidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
... é preciso que a análise se dê conta de que não é (nem poderia jamais
ser) a explicação última de seu objeto. Mesmo quando eficiente, ela não
pode almejar mais que o diagrama da obra analisada, algo assim como
um mapa abstrato de seu funcionamento como produção de sentido.
Machado; Vélez (2007: 13)

As práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornal não se es-


gotam no trabalho ora apresentado, pois fazem parte de uma pesquisa maior
que objetiva justamente discutir as práticas midiáticas nos meios eletrônicos
e impressos. Além disso, devido à limitação deste espaço, não pudemos apre-
sentar uma análise mais detalhada, por exemplo, das reportagens apresentadas
na presente edição do JN. Limitamo-nos em apresentar algumas considerações
gerais sobre os esquemas tensivos que regem o modo de funcionamento do
telejornal. Com a identificação desses esquemas poderemos, em um segundo
momento da pesquisa, pensar em estilos de categorização ou formação de tipos
das notícias.
Nossa hipótese de análise de que o telejornal direciona o fluxo de atenção
dos telespectadores a partir da dimensão sensível confirma-se. A partir da es-
truturação e hierarquização das notícias no telejornal, o enunciador emprega a
dialética do sensível e do intelígivel priorizando, nos momentos fulcrais, para
captar a adesão do enunciatário, a dimensão sensível do sentido, figurativizada,
no caso em questão, em reportagens cujos conteúdos são intensos e têm um
valor de irrupção. Dessa forma, constatamos que o telejornal apresenta um cer-
to padrão, estilo ou identidade, caracterizado por sua divisão em blocos e, por
conseguinte, pela hierarquização dos enunciados englobados. Trata-se, enfim,
no caso em questão, de práticas para manipular a atenção do telespectador.
Acreditamos que, ao evidenciar tal estrutura, espécie de diagrama da forma
sintagmática do telejornal, baseada nos esquemas ascendente e descente, apre-
sentamos elementos para compreender como esse gênero televisivo configura-
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo | 151

se uma prática de comunicação cuja força social está cada vez mais presente
em nossa cultura. Ela influencia, inclusive, outras práticas, como a da vida em
família, a das relações de amizade, a das relações no trabalho. Daí decorre a im-
portância e a necessidade de estudar o telejornal e suas práticas, pois apesar da
mediação tecnológica imposta pela televisão, é através dele que experienciamos
a significação dos acontecimentos do mundo natural.

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Parte III

VINHETAS
Break comercial: estratégia e eficiência | 157

BREAK COMERCIAL
Estratégia e eficiência

Jaqueline Esther Schiavoni

Desde o início, a televisão brasileira caracterizou-se como veículo publici-


tário, seguindo de perto o modelo comercial norte-americano. Esse modelo tem
por base o financiamento da programação mediante inserções comerciais. Para
termos uma idéia de como isso se deu no Brasil, entre 1976 e 1979 o país chegou
a ocupar o quarto lugar em gastos publicitários em televisão, atrás apenas dos
Estados Unidos, Japão e Inglaterra.
Ao longo dos anos, pode-se dizer, a televisão foi o veículo que mais se bene-
ficiou dos investimentos publicitários (ver Anexos – Tabela 1) e o motivo é sim-
ples: tal como o rádio, a televisão consegue atingir todos os segmentos sociais,
ricos e pobres, a população alfabetizada e a analfabeta, mas tem a vantagem da
imagem em movimento, a sedução pelas cores, formas e texturas. Entretanto,
foi só a partir dos anos 1960, quando se adaptou para aumentar a audiência,
dirigindo-se a classes mais baixas e satisfazendo as necessidades das agências de
publicidade e seus clientes, que a televisão se transformou no principal meio de
publicidade no país.
Por essa razão, a discussão que pretendemos desenvolver neste capítulo tem
por objetivo considerar algumas das estratégias que regem o processo de orga-
nização dos breaks1 comerciais. A análise será feita, principalmente, a partir da

1 Break é o nome utilizado, principalmente na área de Propaganda e Publicidade, para designar os intervalos da
programação televisiva nos dias de hoje.
158 | Jaqueline Esther Schiavoni

esquematização (ver Anexos – Tabela 2 e 3) de alguns intervalos comerciais na


programação das cinco principais emissoras brasileiras (Rede Globo de Televi-
são, Rede Bandeirantes de Televisão, Sistema Brasileiro de Televisão, Fundação
Padre Anchieta e Rede Record de Televisão).
Tal discussão acompanha as preocupações da teoria semiótica que vem bus-
cando observar e entender as organizações anteriores à constituição do sentido,
quer dizer, o ato de enunciação que constitui o texto manifestado. Entendendo o
break comercial como uma prática televisiva, preocupamo-nos em demonstrar
seu “sintagma estruturante”: da mesma forma que seguimos algumas regras de
sintaxe ao dispor as palavras para formar orações, a organização dos spots pu-
blicitários nos intervalos comerciais também tem sua lógica. E é justamente essa
lógica que buscamos desvendar. Os aspectos abordados no decorrer do trabalho
demonstrarão algumas das coerções a que a prática do break está submetida,
e como o processo de ajustamento a essas coerções possibilitou um percurso
estável de produção.
Assim, quando falamos de prática estamos falando de um modo habitual
de agir, um uso estabelecido, um certo modo de fazer as coisas – tal como os
próprios dicionários designam esse termo – que abriga a estratégia, ou seja, a
arte de dirigir um conjunto de disposições, muitas vezes conseguida, dilapidada
e mesmo validada somente pela repetição (tentativa e erro) no decorrer do tem-
po, até estabelecer modelos canônicos.
Isso significar observar a eficiência do break, já que esta é avaliada em fun-
ção da adaptação de uma prática a outras e essa adaptação está submetida a dois
procedimentos, a programação e o ajustamento, conforme descreve Fontanille
(ver artigo nesta coletânea, p. 52):

De um lado, de fato, a prática deve submeter-se a um certo número de


coerções, seja pela presença de práticas concorrentes já engajadas, seja
pelas normas e regras que preexistem à construção de toda ocorrência
particular: é preciso levar em conta o fator inevitável da programação
externa.
[...] Por outro lado, a prática constrói-se por ajustamento progressivo e
atua pela invenção de um percurso que procura sua própria estabilidade e
sua significação no confronto com as coerções evocadas.

Nosso intuito, então, não é apenas descobrir como as coisas funcionam, por
assim dizer, mas também por que funcionam de tal modo. De certa forma, é uma
pergunta que antecede a prática, mas que pode ser por ela mesma revelada.
Interessante notar que os modelos canônicos de que falamos anteriormen-
Break comercial: estratégia e eficiência | 159

te, justamente por se valerem de certas estratégias, têm êxito nos seus propósitos
e por isso mesmo se perpetuam. E muitas vezes, em vista da segurança que es-
ses modelos nos proporcionam, investimos neles todas as nossas fichas, mesmo
sem entender exatamente a estratégia por trás da prática. Passamos, então, a
copiar aquilo que deu certo.
Mas no caso das práticas televisivas, especialmente os breaks, esse caráter
ordinário – ou da ordem usual das coisas, rotineiro – não é suficiente para expli-
car sua existência: não é porque desde os primórdios da televisão existem inter-
valos comerciais que eles ainda reinam na telinha. Queremos descobrir, então,
que razões impulsionariam tal prática até hoje. Muitos diriam, sem titubear, que
os intervalos comerciais surgem da necessidade de financiar esquemas caros
e complexos de produção televisiva, e nisso, sem qualquer sombra de dúvida,
reside boa parte da resposta. A própria história da televisão brasileira deixa evi-
dente esse aspecto, como vimos no início deste texto.
É importante observar também que, em suas primeiras décadas, a televisão
não atingia um grande público e por isso mesmo também não conseguia atrair
muitos anunciantes. Na própria TV Tupi, o primeiro ano de faturamento pu-
blicitário foi garantido por apenas quatro grandes patrocinadores: Seguradora
Sul Americana, Antarctica, Laminação Pignatari e Moinho Santista. Resultado:
como a produção contava com poucos mas grandes anunciantes, os patrocina-
dores determinavam os programas que deveriam ser produzidos e veiculados,
bem como todo o seu conteúdo.
Por isso, nas duas primeiras décadas da televisão brasileira, os programas
costumavam ser identificados pelo nome do patrocinador. Em 1952, e por vá-
rios anos subseqüentes, os telejornais, por exemplo, tinham como títulos: “Te-
lenotícias Panair”, “Repórter Esso”, “Telejornal Bendix”, “Reportagem Ducal” ou
“Telejornal Pirelli”. Os demais programas também levavam o nome do patroci-
nador: “Gincana Kibon”, “Sabatina Maizena” e “Teatrinho Trol”. A programação
vinha da cabeça dos patrocinadores, que muitas vezes agiam como ditadores
(Mattos, 2002: 70-1).
Hoje em dia, as produções televisivas são financiadas por uma variedade de
marcas e isso, sem dúvida, contribui para a independência dos programas. Sen-
do assim, perguntamo-nos: se há dezenas de marcas financiando as produções
televisivas, como é feita a venda do espaço publicitário? Como os comerciais
são organizados?
Observemos que há muitas formas de se comercializar o espaço publicitário:
a) Nos comerciais, a venda é feita em múltiplos de 15 segundos. O padrão é 30.
160 | Jaqueline Esther Schiavoni

b) Cada programa tem um valor conforme sua audiência média aferida


pelo Ibope.
c) Também há planos para patrocínios de programas, assinaturas de cha-
mada, merchandising, eventos, etc.
d) As compras de espaço publicitário são pagas antecipadamente e não po-
dem ser canceladas.

Há também diferentes modos de organizar esse espaço. A título de exemplo,


dispusemos em um quadro sinótico a seqüência em que aparecem alguns pro-
dutos (ver Anexos – Tabela 2).
As seqüências destacadas evidenciam três lógicas de organização do espaço
publicitário. Na primeira delas, os anúncios de concorrentes diretos são coloca-
dos o mais longe possível um do outro, tal como vemos no caso do supermerca-
do A e supermercado B (EXEMPLO 1), dispostos nos extremos do break. Assim,
não há confronto direto (comparação por parte do telespectador) dos anuncian-
tes e seus produtos, o que poderia desestimular a compra do espaço. É o que
acontece com marcas como Ford x Fiat ou Casas Bahia x Magazine Luiza.
A segunda lógica de organização é também separar produtos que não com-
binam, como macarrão e laxante (EXEMPLO 2), de modo a não provocar as-
sociações desfavoráveis para anunciantes e produtos. Por fim, os comerciais de
clientes diferentes, mas que podem se complementar, são colocados próximos,
provocando associações que podem estimular as vendas. É o que ocorre com
itens como biscoito e suco, shampoo e desodorante ou sabão em pó e máquina
de lavar roupas (EXEMPLO 3).
Ainda podemos observar nesses exemplos que: a) evita-se que os comer-
ciais com artistas da emissora apareçam próximos às chamadas do programa
que eles fazem; b) os comerciais de clientes nacionais, em geral, são programa-
dos no início dos intervalos por causa do fator técnico, visto que é mais fácil
para as emissoras afiliadas exibirem a sua carga de comerciais locais de uma só
vez em um mesmo intervalo; c) alguns clientes pagam 25% a mais para ter o
direito de definir em que posição querem seus anúncios, por exemplo, abrindo
o primeiro intervalo.
No mais, não pode haver erros:
O comercial tem de ser veiculado conforme a compra do espaço do cliente.
Se ele comprou 30 segundos, não podem ser exibidos 29 nem 31.
Não pode haver problemas técnicos, como desníveis de áudio, ruído no ví-
deo, etc.
Break comercial: estratégia e eficiência | 161

Não são aceitos comerciais de baixa qualidade técnica, ou que apresentem


problemas com a justiça, como direitos autorais, racismo, etc.
Não são aceitos comerciais estrelados por artistas do mesmo programa: se
um ator está na novela das sete, os comerciais que ele protagoniza não podem
entrar nesse horário.
Não pode haver choques entre concorrentes.
Mas, como comentamos anteriormente, nisso está apenas uma parte da res-
posta. Se tudo se resumisse a questões de financiamento, como explicar então
a existência de breaks (não comerciais, inclusive) em emissoras por assinatura,
como os canais de televisão a cabo?
Outra parte da resposta que explica a existência do break está na fluidez da
televisão. Afinal, são praticamente 24 horas de programação diária ininterrup-
ta. Como administrar o tempo e tantos conteúdos? É nisso também que está
a importância do intervalo, mesmo que ele não seja comercial. Nesse caso, tal
como acontece em emissoras privadas, por exemplo a MTV (Music Television,
do grupo Editora Abril), os breaks são preenchidos com comerciais auto-refe-
rencias, que dizem respeito à própria grade de programação do canal televisivo,
e vinhetas institucionais.
A partir de agora, portanto, analisaremos justamente o caráter não comer-
cial dos breaks. Se, como vimos, a prática comporta a estratégia, realizaremos
semioticamente um processo de desconstrução, analisando a estratégia para en-
tender as razões por trás da prática: um percurso que parte dos usos para chegar
às funções.

O CARÁTER NÃO COMERCIAL DO BREAK


Como estamos tomando o break comercial como uma prática televisiva,
vale a pena entender algumas características desse meio de comunicação antes
de prosseguirmos. A estética da televisão é marcada por dois aspectos básicos: a
auto-reflexividade e a auto-referencialidade.
O primeiro aspecto citado é o que temos maior dificuldade para encontrar
na grade de programação. Pouco comum, a auto-reflexividade diz respeito a
uma produção que discute a própria linguagem do meio e suas potencialida-
des, tal como acontece em Cinema Paradiso (1989), de Giuseppe Tornatore, no
caso do cinema; em Adaptation (2002), de Spike Jonze, no caso da produção
de roteiro para filmes; ou na própria vídeo-arte, com os Distorted TV Sets que
162 | Jaqueline Esther Schiavoni

Nam June Paik (1963) apresentou na Alemanha. Mas, para citar um exemplo
próprio da televisão, basta pensar na vinheta de abertura do Jornal da Globo:
ao trabalhar figurativamente com uma imagem-luz, de aspecto granuloso, cuja
forma somente aparece a partir do momento em que a câmera se distancia, o
artista-criador está, na verdade, colocando em evidência características da pró-
pria imagem televisiva, discutindo seu processo de formação, já que é ela mes-
ma uma imagem-mosaico, formada de pequenos pontos luminosos que são os
pixels (Schiavoni, 2008).
Mas o aspecto que queremos destacar neste momento não é o da auto-re-
flexividade, mas o da auto-referencialidade, que diz respeito ao caráter meta-
lingüístico da programação televisiva. Entendemos isso melhor se atentarmos
para a Tabela 3 (ver Anexos). Essa tabela traz o conjunto de breaks comerciais
de alguns programas (telejornais, novelas, seriados, revistas eletrônicas etc.) da
televisão brasileira – escolhidos aleatoriamente – discriminando-os, conforme
as ocorrências encontradas:
(C) Comerciais (de caráter nacional ou local)
(I) Comerciais institucionais – relativos/financiados pela emissora ou afi-
liada
(R) Comerciais auto-referenciais – relativos à grade de programação
(A) Comerciais de apoio à programação – marcas que financiam determi-
nados programas.
(G) Comerciais de produtos do grupo – ex: Tele-sena, Som livre etc.
(P) Programas
( _____ ) Intervalo entre programas

Com relação ao aparecimento de vinhetas, encontramos:


(1) Vinhetas de abertura – aparecem no início dos programas
(2) Vinhetas de passagem – aparecem no início e/ou fim de cada bloco
(3) Vinhetas de encerramento – aparecem ao término dos programas
(4) Vinhetas institucionais – logo da emissora ou afiliada

Como pode ser observado nos dados da tabela, faz parte da estética da tele-
visão a auto-referência. Se, de modo geral, considerarmos em cada emissora ape-
nas os blocos que não têm comerciais de apoio à programação2, a porcentagem

2 Os comercias de apoio à programação constituem um tipo “híbrido”, pois ao mesmo tempo em que destacam
um produto ou marca independente da emissora, seu uso está atrelado à programação televisiva, o que lhes
confere uma aparição diferenciada. Por essa razão, optamos por estabelecer as porcentagens em blocos sem
comerciais de apoio.
Break comercial: estratégia e eficiência | 163

de propaganda institucional ou referencial atinge os seguintes números: 58% na


Globo, 60% na Bandeirantes, 47% no SBT, 82% na Fundação Padre Anchieta e
39% na Record. E esses comerciais – os referenciais, institucionais e as vinhetas
institucionais – são os que prevalecem no caso de breaks entre programas. Sem
dúvida, trata-se de uma fórmula criada para manter o telespectador aprisionado
na programação e estabelecer mais fortemente a marca da emissora.
Nesse intuito, as vinhetas desempenham papel fundamental, visto que toda
propaganda institucional e também o comercial referencial são realizados tendo
como base uma vinheta de apresentação, seja a dos programas em questão ou
da própria emissora. Mas por que isso é tão significativo? Se hoje há dezenas de
marcas de um mesmo produto, a construção de marcas fortes parece ter sido
um imperativo para a sobrevivência no mundo mercadológico. Nos próximos
parágrafos vamos explicar isso melhor, tomando como base o caso exemplar do
telejornalismo.
Diversos tipos de programas televisivos, mas especialmente os telejornais,
não escaparam à lógica mercantil e, como produtos midiáticos, buscaram esta-
belecer marcas suficientemente fortes para vender a si próprios:

Uma marca é um nome diferenciado e/ou símbolo (tal como um logoti-


po, marca registrada ou desenho de embalagem) destinado a identificar
os bens ou serviços de um vendedor ou de um grupo de vendedores e a
diferenciar esses bens e serviços daqueles dos concorrentes. Assim, uma
marca sinaliza ao consumidor a origem do produto e protege, tanto o
consumidor quanto o fabricante, dos concorrentes que oferecem produ-
tos que pareçam idênticos (Tarsitano; Navacinsk, 2004: 230).

Uma análise, mesmo que breve, dos telejornais veiculados atualmente pode
revelar o processo de homogeneização a que estão submetidos. Não se trata
apenas de questões estéticas, tal como a disposição da bancada de apresenta-
ção, o enquadramento realizado, a vestimenta sóbria de seus apresentadores
– problemas que outros tipos de programas (infantis, femininos, de entrevista)
também enfrentam. Mas, especialmente no caso do telejornalismo, a homoge-
neização se dá também em aspectos relacionados ao conteúdo dos programas.
A possibilidade de recorrer às mesmas agências de notícias, somada às facilida-
des proporcionadas pelas novas tecnologias – tanto para captação e transmissão
de imagens como produção e veiculação “ao vivo” de conteúdos em qualquer
parte do mundo – parece ter permitido o fim das maiores disparidades entre
os telejornais. Desse modo, podemos observar uma correspondência tanto na
estrutura dos programas (quanto às editorias: esporte, economia, internacional)
164 | Jaqueline Esther Schiavoni

como também de notícias. As diferenças costumam se destacar apenas de acor-


do com o horário em que os programas são veiculados e, conseqüentemente,
com o público a que se destinam, conferindo para cada tipo de enunciatário
uma abordagem particular do fato (Schiavoni, 2005).
Assim, o investimento em uma marca forte parece ter sido uma solução
para escapar do processo de homogeneização, na medida em que possibilita di-
ferenciar o produto em relação aos concorrentes. Mas isso não é tudo. A marca
também é capaz de assegurar qualidade e representar uma garantia para o con-
sumidor. Essa garantia se dá à medida que o consumidor consegue identificar a
origem do produto que tem permitido entrar em sua casa.
Conforme é apresentado na própria definição do termo “marca” (Rabaça;
Barbosa, 2001), tal identificação pode ser obtida por várias formas significantes:
a) o nome da empresa, da instituição ou do produto em sua forma gráfica (es-
crita) ou sonora (falada), de modo a indicar instantaneamente a entidade ou a
coisa representada; b) símbolo visual – figurativo ou emblemático; c) logotipo
– representação gráfica do nome, em letras de traçado específico, fixo e caracte-
rístico; d) o conjunto desses símbolos, numa só composição gráfica, permanen-
te e característica, constituída pelo nome, pelo símbolo e pelo logotipo.
Com relação às vinhetas, podemos dizer que todos os recursos citados an-
teriormente são utilizados. É possível observar em tais videografismos uma ten-
tativa constante de aproximar-se do próprio nome e estética da marca maior na
qual estão inseridos: suas emissoras. Buscam, portanto, aproveitar um contrato
anterior, instaurado pelas várias produções já realizadas, veiculadas e conheci-
das do público. A qualidade observada, mesmo em outros segmentos – entrete-
nimento, esporte, variedades – pode, então, ser revalidada ou mesmo intensifi-
cada, por exemplo, no segmento noticioso e vice-versa. Esse é, portanto, um dos
aspectos estratégicos do sintagma criado pelas emissoras em seus intervalos: a
auto-referencialidade. Como já dissemos, essa estratégia busca firmar, por repe-
tição, a identidade visual da empresa.
Além disso, as vinhetas também aparecem de modo estratégico nos breaks
comerciais, seguindo, em geral, a fórmula R2P: a seqüência de um comercial
auto-referencial, a vinheta de passagem e o programa. Essa seqüência permite
que o telespectador reconheça – quer pelo áudio da vinheta (sobretudo se esti-
ver distante do ecrã), quer pelo visual – que o programa que está acompanhan-
do entrará no ar em segundos, podendo então realizar seus últimos ajustes e,
desse modo, não perder parte da atração televisiva. Nesse sentido, outro aspecto
estratégico que merece ser levado em consideração tem a ver com os comerciais
Break comercial: estratégia e eficiência | 165

de apoio. Esse tipo de comercial funciona como uma espécie de resumo da pro-
paganda e, em decorrência disso, seu tempo de exibição é menor. Dessa forma,
uma seqüência de 3 a 4 comerciais de apoio e uma locução dinâmica imprime
um ritmo diferente ao break. Quando ocorre esse tipo de construção, o telespec-
tador pressente – pelo hábito – que o intervalo terminará em breve.
No desenvolvimento de alguns programas, tais como as revistas eletrôni-
cas, o papel da vinheta é também fundamental. É ela que marca a organização
dos assuntos abordados, fazendo a separação entre as sessões. Em todos esses
casos, a vinheta aparece estrategicamente, de modo a operacionalizar a fluidez
do tempo, já que a serialidade é uma das principais características da televisão
analógica e, portanto, componente formador de sua identidade (Williams, 1979;
Machado, 2000).

A TELEVISÃO DIGITAL INTERATIVA E O BREAK COMERCIAL


Com a televisão digital interativa, o fluxo da programação – ou seja, a vei-
culação de conteúdos seguindo uma grade horária – tenderá a ser substituída
pelo armazenamento de conteúdos (sistema on demand), de modo que o teles-
pectador ou, melhor dizendo, o usuário poderá formar a sua própria grade de
programação.
Isso significa que a publicidade terá que se adaptar, criar novos modelos
de inserção e, sobretudo, buscar novas estratégias. De certa forma, isso já vem
acontecendo desde a criação do Tivo. Nos Estados Unidos, esse gravador de
vídeo digital já é vendido há vários anos. Além de permitir buscas (encontrar
filmes com um determinado ator), monitorar as preferências dos usuários e su-
gerir programas de acordo com elas, pausar transmissões ao vivo e permitir que
o usuário veja replays instantâneos das cenas que desejar, o Tivo tem um guia de
programação eletrônico que ajuda a gravar programas da televisão. Isso signifi-
ca que há não apenas a possibilidade de detecção, mas também de exclusão da
publicidade usada nos programas da televisão comercial.
Como fazer, então, com que os usuários assistam aos comerciais? A KFC
– Kentucky Fried Chicken, uma rede de restaurante de comida rápida estaduni-
dense – bolou uma maneira inteligente de fazer com que assistam a seus anún-
cios. No último comercial lançado, se o anúncio for passado em slow-motion, os
telespectadores serão capazes de decodificar uma mensagem secreta que lhes
166 | Jaqueline Esther Schiavoni

dará direito a um sanduíche gratuito!3


Outra saída que já vem sendo sugerida aos grandes anunciantes é que par-
ticipem mais do conteúdo da programação. Um bom exemplo nesse sentido é
o filme Náufrago. Nele, a empresa de transportes Fedex e uma bola de vôlei da
Wilson fazem parte da história, não são meros anunciantes. Exemplos como
esses, pautados na experiência que a publicidade já tem no cinema, televisão e
internet, apontam o caminho que a publicidade deverá tomar com a chegada da
televisão digital interativa. Mas, se como vimos, a estratégia e a eficiência de-
correm da prática – quer dizer, são conseguidas, dilapidadas e mesmo validadas
pelo uso e sua repetição no decorrer do tempo – teremos de esperar ao menos
um certo amadurecimento desse novo meio.

3 DVR – Publicidade na TV Digital. Disponível em: <http://marketingdeguerrilha.wordpress.com/category/


dvr-publicidade-na-tv-digital/>. Acesso em: 20 de dezembro de 2007.
Break comercial: estratégia e eficiência | 167

ANEXOS
TABELA 14
Ano Televisão Jornal Revista Rádio Outros
1962 24.7 18.1 27.1 23.6 6.5
1964 36.0 16.4 19.5 23.4 4.7
1966 39.5 15.7 23.3 17.5 4.0
1968 44.5 15.8 20.2 14.6 4.9
1970 39.6 21.0 21.9 13.2 4.3
1972 46.1 21.8 16.3 9.4 6.4
1974 51.1 18.5 16.0 9.4 5.0
1976 51.9 21.1 13.7 9.8 3.2
1978 57.8 16.2 14.0 8.1 3.9
1980 57.8 16.2 14.0 8.1 3.9
1982 61.2 14.7 12.9 8.0 3.2
1984 61.4 12.3 14.3 6.8 5.2
1986 55.9 18.1 15.2 7.7 3.1
1988 60.9 15.9 13.9 6.6 2.7
1991 56.0 27.4 9.2 5.1 2.3
1993 53.0 34.0 7.0 5.0 1.0
1995 55.0 28.0 9.0 5.0 3.0
1997 60.4 26.9 6.6 4.6 1.5
1999 62.7 23.3 6.0 5.0 2.9
2001 58.1 24.3 7.8 5.8 4.0
2003 56.6 21.0 7.0 5.3 10.0
2005 60.2 17.2 6.7 4.5 11.4
2007 60.2 16.9 7.0 4.4 11.6
Distribuição percentual da verba de mídia por veículo

TABELA 2
EXEMPLO 1 EXEMPLO 2 EXEMPLO 3
Supermercado A Telefonia celular Tinta de cabelo
Loja de roupas Macarrão instantâneo Sandálias
Construtora Supermercado Loja de eletrodomésticos
Drogaria Loja de eletrodomésticos Sabão em pó
Concessionária Automóvel Maquina de lavar
Loja de presentes Banco Chá
Supermercado B Laxante Loja de roupas

4 Para o período que vai de 1962 a 1997, baseamo-nos em Mattos (2002: 56). Dessa data em diante, servimo-nos
de: Intermeios. Disponível em: <http://www.projetointermeios.com.br>. Acesso em: 20 de Abril de 2007.
168 | Jaqueline Esther Schiavoni

TABELA 3
REDE GLOBO DE TELEVISÃO
TELEJORNAL NOVELA REVISTA ELETRÔNICA
1ºbloco P1RCCCRIAAAACR2P P1RCCCCRGCCCR2P 1P2RICCRCCCR2P
2ºbloco P2RCCCRICCR2P P2RCCRCRCCCIR2P P2RCCIRCICCRA2P3
3ºbloco P2RCRCIAAAAACCR2P P2RCCRRCGRA2P3 _______
_____ RP1 RARP RCP
REDE BANDEIRANTES DE TELEVISÃO
PROG. FEMININO PROG. DE ESPORTE TELEJORNAL
1ºbloco 1P2RCCCRCCCCR2P 1P2CCICRCIRACCCRRAA2P 1PI4CRAAA2P
2ºbloco P2RCCCCCCCR2P P2RCCCCCCRRA2P P2RACCCCCRIAA4RA2P
3ºbloco P2RCCCCRR4CCCR2P P2RCCCCCCCIRAAA2P3 P2RACCCIR2P
_____ P34P RAAAIIRAA P3RAAAI4RAP
SISTEMA BRASILEIRO DE TELEVISÃO
PROG. ENTREVISTA TELEJORNAL PROG. MUSICAL
1ºbloco P1P2RACCCCCCCC2P P1P2CCCCC2P 1PRCCCCCCCC2P
2ºbloco P2RAAACCCCCCCAA2P P2CGCI2P P2CCGGCCCCCI2P
3ºbloco P2RACCCCG2P3 P2GCGCG2P P2RCGCGCCCCCC2P3
_____ R4P RAAIR RAAAAARIRAA
FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA
TELEJORNAL REVISTA ELETRÔNICA PROG. ENTREVISTA
1ºbloco P1P2RAAARCCRCR42P 1P2RAACCCCCR42P 1P2RAACCCIR42P
2ºbloco P2RACCRCCR42P P2RAACCCCCR42P P2RACRCIR42P
3ºbloco P2RIRCR4P P2CCCCCCCIA RAA2P3 P2RCRCIR42P3
_____ 4RAARRAAAACR4 4RAAARCCRAA 4RAAARR4
REDE RECORD DE TELEVISÃO
TELEJORNAL NOVELA REALITY SHOW
1ºbloco P1P2CCCRAAAARCCR2P P1RCCCCCCRAACCCCCI2P 1P2RCCCRRCCCCIR2P
2ºbloco P2CIAAAAACCCC2P P2RCCCCCCCC2P P2RCRCRCCCCRAAAAAAA2P
3ºbloco P2CCRAAAARCI2P3 PRCRAACCCCCC2P3 _______
RICRP RIP PRP
A auto-referencialidade na produção estética da televisão
Break comercial: estratégia e eficiência | 169

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Senac, 2000.


MATTOS, Sérgio. História da televisão brasileira. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
RABAÇA, Carlos; BARBOSA, Gustavo. Dicionário de comunicação. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2001.
SCHIAVONI, Jaqueline. Telejornal: recortando a notícia. Anais do XXVIII
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – INTERCOM. Rio de Janeiro,
2005. 1 CD-ROM.
SCHIAVONI, Jaqueline Esther. Vinheta: uma questão de identidade na televisão.
132 p. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2008.
TARSITANO, Paulo; NAVACINSK, Simone. Marca: patrimônio diferencial
das empresas e diferencial dos produtos. In: MELO et al (orgs.). Sociedade do
conhecimento. São Bernardo do Campo: Celacom, 2005.
WILLIAMS, Raymond. Television: technology and cultural form. Glasgow:
Fontana/Colins, 1979.
Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 171

FIGURALIDADE E SEMI-SIMBOLISMO
NA ABERTURA DA TELENOVELA
BELÍSSIMA
Loredana Limoli

Sabemos que as aberturas desempenham algumas funções específicas na


enunciação das novelas. Elas são como uma espécie de título expandido do tex-
to teledramatúrgico, construído não em linguagem puramente verbal, mas, usu-
almente, em sincretismo verbo-visual e sonoro. Como título, elas sinalizam o
conteúdo da novela e contribuem, de modo geral, para a manipulação do teles-
pectador-enunciatário, na medida em que apresentam um avant-goût da trama,
funcionando como elemento de sedução. Paralelamente a essa função manipu-
latória, que desemboca num “querer assistir”, a abertura serve-se de cuidadoso
material sonoro para sinalizar, dentro dos lares, o momento de interrupção das
atividades domésticas, funcionando como um verdadeiro “toque de recolher”,
de inegável eficácia sobre o público fidelizado. “Hora da novela”, nos lares brasi-
leiros, tornou-se um paradigma temporal tão importante quanto deve ter sido,
em civilizações distantes, o nascer e o pôr do sol.
As aberturas são parte integrante da estratégia de distribuição das novelas.
De olho no mercado consumidor, os produtores de abertura buscam associar
imagens a uma música, que fará parte, evidentemente, do arquivo sonoro que
compõe a chamada “trilha” – um dos produtos de maior lucratividade da em-
presa mercadológica envolvida na produção. Em geral, as aberturas repetem-se
172 | Loredana Limoli

parcialmente a intervalos, já que servem, também, para trazer de volta à tela as


pessoas que se desligaram momentaneamente da tv. Pela repetição, o texto de
abertura remete-nos constantemente ao texto maior da novela, em perspectiva
metonímica.
Tendo-se beneficiado, nas últimas décadas, do altíssimo desenvolvimento
da tecnologia videográfica, as aberturas de telenovelas hoje estão aptas a com-
petir com qualquer outro gêneros ou subgênero televisivo, no que diz respeito
ao padrão de qualidade estética. A abertura da telenovela Belíssima, exibida
pela rede Globo de televisão no período de novembro de 2005 a julho de 2006,
é um desses exemplos de investimento bem sucedido de construção textual,
que resultou numa produção sincrética tão apreciada pelo público, quanto foi
a própria novela a que servia de introdução. Pelo incremento estético, a aber-
tura de Belíssima ganhou, assim, outra dimensão, destacando-se como um
produto videográfico de alta qualidade, o que nos leva a considerá-la como
uma pequena obra de arte dentro do universo da televisão brasileira. Pela se-
dução poética, manipulando nossos sentidos para o novo e para o belo, essa
abertura convida-nos à análise e permite-nos observar, além da evidente fun-
ção metonímica, relações simbólicas que nem sempre acompanham esse tipo
de texto-síntese.
A abertura de Belíssima tem como cenário uma vitrine, enquadrada como
se o observador estivesse no interior da loja e pudesse perceber três planos dis-
tintos: no primeiro plano, a protagonista (a modelo Michelle Alves) move-se
em câmera lenta, dentro da vitrine; em segundo plano, algumas pessoas passam
como se estivessem caminhando na calçada, em ritmo normal de caminhada,
sugerindo uma situação de final de trabalho ou intervalo de almoço; no terceiro
plano, enfim, carros entrecruzam-se velozmente nas ruas, enquanto se vêem, ao
fundo, prédios e arranha-céus de uma grande cidade (provavelmente São Paulo)
e as nuvens no céu movem-se rapidamente, graças ao recurso do fast. Enquanto
a modelo desenvolve no tempo e no espaço uma coreografia sensual, ouve-se a
canção “Você é linda”, na voz de Caetano Veloso.
Ao encararmos essa abertura como uma pequena “obra de arte” temos em
mente algumas idéias, hoje um pouco esquecidas, de V. Chklovski que transpa-
recem nas palavras do autor:

Os objetos muitas vezes percebidos começam a ser percebidos como


reconhecimento: o objeto se acha diante de nós, sabemo-lo, mas não o
vemos. Por isso, nada podemos dizer sobre ele. Em arte, a liberação do
objeto do automatismo perceptivo se estabeleceu por diferentes meios.
Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 173

[...] e eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos,
para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da
arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento;
o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos...
(Chklovski, 1971:45)

Tomada como objeto estético, de natureza sincrética, a abertura de Belíssi-


ma foge ao lugar-comum do texto puramente apresentativo, de linguagem se-
dimentada, cujo objetivo principal seria apenas transmitir ao público-receptor
informações sobre a equipe produtora, atores e demais profissionais da novela.
Enquanto “gênero”, portanto, inclui algo mais, que a libera do automatismo per-
ceptivo que acompanha esse tipo de produção. Sua individuação consiste na
elaboração de um conjunto harmônico de elementos imagéticos, sonoros e ges-
tuais e, principalmente, no prolongamento do efeito estético produzido sobre
o enunciatário, por meio de uma feliz associação entre arte e técnica. Mostra-
remos, a seguir, como o enunciador consegue, graças à combinatória de ele-
mentos de linguagens diferentes, aspectualizar durativamente o efeito plástico,
interferindo na percepção da mensagem, que, sob a modelização durativa, passa
a ser apreciada, ao mesmo tempo, como totalidade e inovação.
Para aspectualizar durativamente o efeito plástico da cena, a enunciação te-
levisiva lança mão de estratégias que agem sobre o conteúdo, mas também sobre
a expressão, o que nos faz pensar que a própria operação de semiose é afetada
pela duratividade. Dentre essas estratégias de persuasão, a figurativização assu-
me um papel preponderante, ao lado de procedimentos como a redundância, os
paralelismos formais, alguns elementos semânticos distribuídos numa sintaxe
que instiga a completude, além, é claro, de tudo o que pode interferir senso-
rialmente na percepção. É o caso da música, que está sempre associada a esse
gênero “abertura”, e também das tomadas em planos e angulações diferentes,
que permitem que uma mesma imagem seja apreciada sob múltiplos pontos de
vista, o que, por si só, age no sentido de prolongar o efeito plástico.
No que se refere à figurativização da abertura em análise, três aspectos são
observados, seguindo-se a idéia de que “o enriquecimento semântico do dis-
curso proporcionado pela figurativização produz efeito de realidade, de corpo-
ralidade e de novidade individual e criativa” (Barros, 2004a:14). A propaganda
trabalha evidentemente com as três possibilidades de efeito; e a abertura, como
uma espécie de propaganda de novela, também lançará mão desses recursos.
Assim, nessa abertura, pelo alto grau de iconização da imagem fotográfica,
e pelo investimento pessoal que cada um de nós está apto a despender no ato de
174 | Loredana Limoli

recepção da mensagem, reconhecemos como pertencente a uma dada realidade


a modelo-dançarina, que evolui sensualmente no espaço fechado de uma vitrine
– este último reconhecível pela união entre forma espacial (semântica) e sintaxe
do espaço em torno, onde circulam os transeuntes. Portanto, é graças ao plano
do conteúdo icônico que temos acesso a essa realidade, que nos é permitido
compartilhar, sem que a validação ou não de um universo tangível imponha
obstáculo à percepção geral que temos da cena.
Música, efeitos imagéticos, gestualidade, proxêmica, colaboram, por sua
vez, para a concretização sensorial, que produz efeitos de suavidade, sensuali-
dade, leveza, liberdade, etc. Nesse sentido, pode-se dizer que a abertura de Be-
líssima faz a manipulação do sensível pelo belo, ao eleger como objeto plástico
uma dança protagonizada por uma modelo perfeitamente inserida nos padrões
estéticos vigentes. Ressalte-se que o público masculino parece ter sido o alvo
maior dessa proposta de sedução pelo belo.
Mas é a “novidade individual e criativa” o que mais nos interessa enfocar,
para continuarmos a seguir a linha de raciocínio inicial, que focaliza a plastici-
dade do texto em associação com as idéias sobre a obra de arte, tal qual a encara
o formalista Chklovski. Sob esse aspecto, a relação entre tema e figura, presente
na discursivização da abertura, é responsável por um primeiro impacto percep-
tivo, já que o investimento figurativo (uma manequim dançando e parcialmente
despindo-se numa vitrine) não é uma correspondência tão usual para a temática
da moda quanto seria, por exemplo, uma passarela de desfile. Trata-se de uma
“modelo-viva”, mas que se movimenta com gestualidade em nada semelhante
aos manequins tradicionalmente encontrados em algumas lojas de roupas de
grandes cidades. A relação tema/figura, portanto, foge um pouco ao comum e
por isso é valorizada esteticamente.
Além disso, intervém na constituição da novidade uma série de elemen-
tos que, relacionando expressão e conteúdo, contribuem, sobremaneira, para a
produção de sentidos e a ênfase na poeticidade. Trata-se, aqui, do que a semió-
tica chama de semi-simbolismo, definido como uma relação de conformidade,
não mais termo a termo, como acontece no caso do símbolo – por exemplo,
quando entendemos que uma clave de sol representa a música ou a estrela de
Davi o judaísmo – mas entre categorias do conteúdo e da expressão. Fontanille
(2007:137) destaca a importância do semi-simbólico para o tratamento analítico
do discurso, opondo-o ao simbólico, cuja origem seria ou por demais conven-
cional, ou, ao contrário, dependente apenas de subjetividades do analista. Já as
conexões entre sistemas de valores, próprias ao semi-simbolismo, garantiriam a
Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 175

coerência do conjunto discursivo e, portanto, seriam um material privilegiado


para a análise da práxis enunciativa.
Por ser uma codificação de cunho particular e específico, dependente de
uma dada enunciação, o semi-simbólico tem uma importância muito grande na
instauração do novo, na criação artística, na elaboração da arte e, também, na
pregnância cognitiva da mensagem. “O semi-simbolismo é uma das formas de
estabilização do sentido no discurso: ele o estabiliza, tornando-o mais específico”
(Fontanille, 2007:138). Não é à toa que a publicidade, por exemplo, faz uso, em
larga escala, do semi-simbolismo, não apenas para individualizar um anúncio
em relação a outros, conferindo-lhe uma dose de poeticidade, que o especifica,
mas, principalmente, para fixar na memória do consumidor, estabilizando-as, as
associações valorativas do produto que apresenta.
Para a análise da abertura de Belíssima, retivemos como produtiva a opo-
sição fundamental /identidade/ vs /alteridade/, sendo o primeiro termo repre-
sentativo da individualidade da modelo, que se destaca dos demais personagens
pelo caráter insólito de sua performance gestual e personaliza-se pela espaciali-
dade da vitrine e os movimentos da dança; enquanto que a /alteridade/ estaria
ligada ao cotidiano dos “outros”, que circulam no caos da metrópole e consti-
tuem o corpo social amorfo e incógnito da civilização urbana dos tempos atuais.
Essa oposição do nível profundo relaciona-se, mais superficialmente, à temática
do tempo que, para a modelo, é um tempo individual, distenso, prazeroso, o
que contrasta, marcadamente, com o ritmo acelerado e tenso das massas que se
deslocam em meio a carros em alta velocidade.
Sobre a oposição fundamental do plano do conteúdo, articulam-se cate-
gorias próprias à expressão das linguagens que se fundem na produção do tex-
to televisual, constituindo o arcabouço semi-simbólico dessa mensagem. Com
relação ao movimento, por exemplo, temos uma aspectualidade durativa para
a moça, enquanto que os transeuntes são marcados pelo pontual terminativo
(há uma pausa do movimento dos passantes quando eles se aproximam da
vitrine). Sob o ponto de vista da captação de imagens, identifica-se a isotopia
/nítido/ vs /embaçado/, em que o primeiro termo aparece correlacionado ao
sujeito “moça”, enfatizando sua relevância como indivíduo diferente, distinto
dos demais; os “outros” aparecem em cena sob efeito de desfocagem, o que, no
plano do conteúdo, corresponde à idéia de indistinção, característica das mas-
sas. Apenas quando os passantes se aproximam da vitrine é que o foco se torna
mais nítido, dando a idéia de “contágio” dessa situação particular de novidade
vivida pela modelo. Quanto às linhas que integram a composição visual da cena,
176 | Loredana Limoli

há o predomínio de senóides no espaço interno ocupado pela moça, enquanto


que o espaço externo dos passantes é marcado pela presença das linhas retas
dos prédios.
As oposições mínimas destacadas podem ser visualizadas, esquematica-
mente, a seguir:

Identidade Alteridade
(insólito) (cotidiano)
(moça) (outros)
Cinético durativo Cinético terminativo
Nítido Embaçado
Predominância de senóides Predominância de linhas retas

Essas isotopias encontram, no nível discursivo, uma correspondência temá-


tica. Destacam-se alguns temas a que a abertura remete: estética corporal, har-
monia das formas, beleza feminina, glamour, emergência da lingerie (que passa,
de “roupa de baixo”, para o status de “roupa de cima”). Em relação metonímica,
esses temas refletem a organização discursiva da novela, que, como se sabe, de-
senvolveu a trama em torno de uma sofisticada indústria de lingerie e procurou
relacionar o mundo da moda aos detentores do poder econômico.
A análise da abertura passa, forçosamente, pelo exame da telenovela como
um todo, e isso não apenas em relação aos aspectos da materialidade da ima-
gem, mas, principalmente, de sua interação com o código verbal, a partir do
qual são geradas as conotações mais significativas.
É sabido que, como muitos outros gêneros ficcionais televisivos, a telenove-
la está a serviço do consumo de uma gama enorme de produtos e subprodutos,
anunciados de forma explícita ou implícita durante o período de divulgação
do programa. Muitas vezes, como é o caso de Belíssima, parte da campanha
mercadológica está diretamente associada à situação comunicativa específica da
história encenada, ou seja, há um contínuo ir e vir entre a enunciação da novela
propriamente dita e o simulacro enunciativo da realidade, ou telerrealidade. Em
se tratando de um gênero ficcional com identidade própria, por excelência poli-
fônica, não encontramos na telenovela marcas de um enunciador individualiza-
do, por mais que se identifique, principalmente no caso analisado, um leve estilo
autoral. O “enunciador” é na verdade um “arqui-enunciador”, constituído pelas
vozes de enunciadores-delegados (personagens, que convertem o texto escrito
em texto encenado e são embreadores do discurso) e para-enunciadores (publi-
citários, governantes, militantes, atores não-semióticos, etc.). Assim, o “centro
Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 177

do discurso” caracteriza-se pela mobilidade e certa dose de imprevisibilidade,


controlada por índices de audiência e resultados comerciais. Além da comple-
xa rede enunciativa, a telenovela coloca em funcionamento diversas estratégias
persuasivas com o fim de conquistar a adesão do espectador-enunciatário, como
o cenário, a composição temático-figurativa das personagens (atores semióti-
cos), a gestualidade, a trilha sonora e o figurino. Todos esses elementos agem
em conjunto, quase sempre de forma redundante, para gerar efeitos de sentido,
na maioria das vezes previstos pela própria organização seqüencial e seriada da
novela, embora possam, algumas vezes, juntar-se posteriormente – e até mesmo
inesperadamente – a elementos persuasivos já inseridos.
Herdeira dos folhetins literários do século XIX, a telenovela destaca-se, en-
quanto gênero textual, não pelo acréscimo da imagem (a telenovela continua
sendo essencialmente verbal), nem por inovações de cunho narrativo, mas pela
solicitação constante à adesão e à identificação do telespectador. Nesse tipo de
emissão, as construções referenciais se dão pela linguagem (verbal e visual, prin-
cipalmente), mas também por uma série de eventos que se tornam concomitan-
tes ao momento vivido na realidade extralingüística, como é o caso bem conhe-
cido da preparação para festas religiosas, como Natal e Páscoa, ou referências
contextuais a acontecimentos de interesse nacional. Respeitando-se, na medida
do possível, um tempo-calendário semelhante à realidade, incorpora-se à esfera
ficcional uma parte sensível de contextualização do “real” e do “contemporâneo”,
seguindo-se uma lógica de atualidade participativa (uma espécie de “experiên-
cia compartilhada” entre personagens e público), na qual se torna possível a par-
ticipação de enunciadores eventualmente não previstos pelo diretor/produtor
da obra, principalmente do enunciador-testemunha – o próprio público-alvo.
Aqui interfere a diferença, apontada por Greimas (1979:48), entre o fazer-pro-
dutor e o fazer-comunicativo: uma vez transformado em espetáculo, na mira de
uma multidão de observadores, o diálogo entre dois personagens, por exemplo,
produz sentidos que ultrapassam largamente as fronteiras do script verbal. E
a enunciação televisiva, reconhecidamente caleidoscópica, torna-se, na novela,
um dispositivo de alta complexidade, em que é impossível distinguir, a qualquer
momento e com precisão, “quem fala” e “de onde fala”. É como se a enunciação
da telenovela fosse constituída de estratos, que vão desde o escritor da peça, pas-
sando pelo diretor, atores, publicitários, anunciantes e o próprio público, que,
por meio de sondagens de opinião, participa de decisões importantes quanto ao
desfecho da trama, vestuário, linguagem, comportamentos sociais, moralidade,
etc. Além disso, nem sempre há congruência perfeita entre a narração verbal e a
178 | Loredana Limoli

narração visual e sonora na própria filmagem dos capítulos, o que acentua ainda
mais o caráter plurienunciativo da narrativa telenovelística.
Esse transbordamento do texto televisivo por ação de enunciadores distintos
do produtor da novela, embora à primeira vista incontrolável, está sujeito às normas
fixadas pela produção: aquilo que não se traduz em aumento ou, pelo menos, manu-
tenção de audiência, deve ser imediatamente descartado. Mas, de qualquer maneira,
ele se torna um elemento importante dentro da estratégia comercial que acompanha
(e gera) esse tipo de programação. Primeiro, porque esse “público-alvo” a que se
destina a novela é, na realidade, um público vasto e heterogêneo e, portanto, quanto
maior for a disponibilização de pontos de vista, a multiplicidade de personagens e a
gama de interesses ideológicos vinculada aos participantes da produção comunica-
tiva, maior será a chance de ampliação do horizonte de penetração de audiência.
A diversificação de enunciadores e a presentificação da novela (Belíssima
simula uma concomitância com o presente extralingüístico) são aspectos im-
portantes do estabelecimento do contrato fiduciário entre o destinador da men-
sagem (produtor + diferentes enunciadores) e o destinatário (público-alvo).
Trata-se do contrato enunciativo, “que visa estabelecer uma convenção fiduci-
ária entre o enunciador e o enunciatário sobre o estatuto veridictório (o dizer-
verdadeiro) do discurso-enunciado”. (Greimas, 1979:71). Há, a princípio, dois
contratos principais em jogo: um primeiro contrato estabelece o limite entre
a realidade e a ficção, e apresenta-nos a totalidade enunciativa como verdade
(é e parece ficção); o outro contrato diz respeito às relações de internalização
do enunciatário-telespectador, que crê nos possíveis narrativos em virtude da
semelhança dos fatos com o real vivido ou vivível. Neste último caso, a parciali-
dade enunciativa (uma cena, um capítulo, um “núcleo”) é entendida ao mesmo
tempo como ilusão (parece real, mas não é) e como verdade (é e parece possí-
vel). Essa ambigüidade do contrato enunciativo, que nos faz oscilar entre uma
adesão total e uma desconfiança do que vemos, ocorre porque as “verdades” do
texto-ocorrência (a novela) são validadas exclusivamente no interior do mundo
da ficção. Em nossos mecanismos de recepção da mensagem ficcional, há uma
espécie de válvula de escape que nos permite distanciar da trama vivida sempre
que nossas crenças forem incapazes de validar determinadas verdades textuais.
Optamos, nesses momentos, por uma saída do enunciado rumo à enunciação, o
que provoca uma opacização do significante.
À medida que os participantes da comunicação (enunciador e enunciatário) to-
mam seus lugares da enunciação, a TV propõe seus pactos enunciativos e o público
responde com adesão a crenças diversas, entregando-se ao universo ficcional pre-
Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 179

estabelecido. A recepção pressupõe a colocação em funcionamento de dispositivos


sócio-simbólicos, que vão desde a compreensão de jargões e dialetos específicos a
determinados grupos (os gregos e os turcos de Belíssima, por exemplo) até o estabe-
lecimento do contrato enunciativo propriamente dito, que dita as normas de veri-
dicção condicional da trama, mediante a adesão do enunciatário à esfera ficcional.
Se pudéssemos eleger um único aspecto do fazer-transformador dessa tele-
novela, que revelasse na relação enunciador/enunciatário a performance de sua
adesão, diríamos que Belíssima opera a transformação da estética corporal em
valor de prestígio. Pela figurativização, a novela propõe uma organização mítica
intra-discursiva, segundo a qual os cuidados com aparência física tornam-se
não apenas um trampolim para a fama, mas principalmente um meio eficaz de
acesso ao poder. Ou seja, narrativamente falando, a estética corporal serve de
objeto modal, inserido no programa de base “ascensão social”.
A idéia de associação do valor estético ao valor de prestígio é partilhada na sin-
taxe narrativa e discursiva da novela por dois grupos principais de personagens:

1) O núcleo que tem prestígio social: está associado à empresa de lingerie,


desfiles de moda e agências de publicidade. Fazem parte deste grupo a malvada
Bia Falcão, a boazinha Júlia, Alberto e sua irmã (a socialite Ornella) e Rebeca,
dona de uma agência de modelos.

2) O núcleo que aspira ao prestígio social e econômico, bem mais numeroso


e diversificado. Desse grupo, destacam-se:

- André, o moço pobre e inescrupuloso que participa do sórdido esquema


montado por Bia Falcão para se apoderar da empresa herdada por Júlia.
- Katina (faixa etária “mãe de família”) que, além de atender com esmerada
dedicação às solicitações do marido, filhos e netos, revende produtos de beleza
de uma marca conhecida, para ampliar a renda familiar.
- Guida Guevara, ex-atriz de teatro de revista, que faz pequenas malandra-
gens para conseguir de volta seu papel na sociedade; ao lado dela, Mary Mon-
tilla, com quem constitui um actante dual na busca do antigo sucesso dos pal-
cos. Ressalta-se que Mary teve que se submeter a uma lipoaspiração para poder
ser aceita no universo dos shows.
- Giovana (ala jovem) que quer ser modelo e tem como parâmetro a con-
corrente Érica que, além de modelo, é rica.
- Narciso – veja-se a redundância figurativa do nome do vaidoso persona-
180 | Loredana Limoli

gem – filho de Katina, que quer ser modelo. Embora bonito, não tem talento
e vê-se obrigado a posar seminu para um outdoor, como forma de integrar o
ingrato mundo da publicidade da moda.
- Mateus, neto de Katina, que se torna garoto de programa das ricas socia-
lites Ornella e Bia. Indolente e desavergonhado, o rapaz é a representação mais
flagrante de transformação do valor estético em valor econômico.

Para promover o corpo como meio de acesso ao poder, à fama e ao dinhei-


ro, a novela conta com a valorização da lingerie, que é o elemento figurativo
central da aparência, já que “Belíssima” é o nome de uma empresa especializada
nesse tipo de roupa. Mas fervilham, também, lojas de departamento, academias
de ginástica, produtos de maquiagem, massagistas e cabeleireiros famosos, que
reforçam a idéia do parecer belo para ser alguém. Além disso, a novela põe em
relevo outras estéticas domésticas, que não são necessariamente corporais, mas
que se somam a outros componentes ideológicos para constituir uma identi-
dade de ser “cuidadoso com a imagem corporal”. Assim, por exemplo, há uma
profusão de espelhos e vasos de flor de todos os tipos, adornando os mais dife-
rentes ambientes, desde a cozinha de Katina até a oficina mecânica de Pascoal,
passando, é claro, pelas luxuosas instalações da fábrica de lingerie.
Mesmo os personagens que representam a classe humilde, e que não aspi-
ram necessariamente ao poder, como o mecânico Pascoal e a empregada Regina
da Glória, estão envolvidos em situações que promovem a valorização da estéti-
ca corporal. Se, no espaço da oficina, temos um Pascoal que fala errado, “caipi-
ra”, e é descuidado com a aparência, vemos um Pascoal cheiroso e arrumadinho
transpor as barreiras do ambiente de trabalho para conquistar a namorada, a
quem oferece flores. Até mesmo o gato Mustafá, bichinho de estimação de uma
família de classe média, não é um gato qualquer, mas um animal de raça, de
aparência impecável, que só come ração de determinada marca.
Os produtos e serviços anunciados ficticiamente durante a exibição dos
capítulos correspondem a outros que existem de fato e estão à disposição dos
consumidores, como é caso ostensivamente exibido da ração para gatos e da
linha de cosméticos. A telerrealidade construída pela novela encarrega-se de
dotar esses bens de consumo de valores ideológicos, transformando os objetos
descritivos em objetos-valor.
Os valores ideológicos, gerados pela enunciação complexa da telenovela,
ligaram-se, em última análise, ao objeto de desejo “lingerie”, que é a figura do-
minante da discursivização da abertura. Voltamos, assim, à moça da vitrine, em
Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 181

sua busca da beleza como realização pessoal. Sem ser personagem da novela,
a modelo é a representação sensível do belo e sintetiza a idéia de individuação
pela posse do valor estético.
O estudo da dimensão temático-figurativa da abertura é um requisito ne-
cessário, porém não suficiente, para o entendimento dos processos de produção
de sentidos desse texto sincrético. Como nos lembra Barros (2004b), além da
semântica do discurso, podemos recorrer, também, às relações intertextuais e
interdiscursivas, para termos acesso a elementos sócio-históricos que partici-
pam da construção de sentidos.
Ao observarmos a moça da vitrine, notamos que o conjunto de sua gestuali-
dade assemelha-se aos movimentos de uma tocha, uma labareda de fogo. Pode-
mos pensar que o fogo está associado à vida, ao princípio divino e provoca, aqui,
por metáfora visual, o efeito de sentido de incandescência do amor sensual.
Observemos, agora, a logomarca de um dos principais anunciantes da no-
vela, o Banco Santander (fig. 1):

Identificamos, imediatamente, uma curiosa correspondência do corpo


da mulher em posição final da abertura com a tocha estilizada que simboli-
za o banco. Algumas semelhanças são flagrantes, no que diz respeito à forma
da expressão: idéia de volume, oscilação, inclinação, sinuosidade, base circu-
lar, bi-cromatismo, alternância claro/escuro nas diagonais paralelas. Vejamos
a imagem congelada, ao final da apresentação (fig. 3), e para maior clareza da
exposição, com apagamento do fundo (fig. 4):
182 | Loredana Limoli

A idéia de semelhança entre o logotipo do banco e a imagem final da mode-


lo de Belíssima (que se tornou, aliás, uma espécie de logomarca da novela) ganha
mais um elemento persuasivo, ao examinarmos algumas das propagandas do
Santander inseridas nos intervalos da novela. Em particular, o anúncio veicu-
lado na época do Natal utiliza os recursos de nitidez e embaçamento, também
presentes na abertura, para mostrar um céu cheio de fogos de artifício e sua
transmutação, gradativa, no logotipo do banco (fig. 2). Aqui, também, o emba-
çado torna-se nítido, correspondendo, semi-simbolicamente, no plano do con-
teúdo, à transformação do automatismo e do inexpressivo do cotidiano, no úni-
co, no diferente, no “melhor” (palavra que faz parte do slogan do banco). É você
“tomando forma”, diferenciando-se do resto, tornando-se visível, como acontece
com os passantes em contato com a realidade vivida pela moça da vitrine.
O recurso figurativo formal utilizado pela Santander na elaboração de sua
logomarca é a estilização de uma tocha, ou, como nos ensina Silva (1995:34),
um percurso gerativo “ao contrário”, que parte da tocha plena à sua estrutura
figurativa elementar.
Enquanto a Santander estiliza, a logo da novela corporaliza a tocha, par-
tindo do figural para o figurativo pleno, ressemantizado pela associação com a
linguagem da dança. Assim procedendo, a abertura proporciona uma espécie de
revitalização do símbolo, que havia perdido sua motivação original de fogo:
Fogo de Santander = vivacidade, farol que ilumina, que guia; permanência,
constância, continuidade, firmeza sobre uma base sólida
Fogo da abertura = ardência, entusiasmo, sensualidade, vida sobre uma
base sólida e repousante
Vê-se, então, como a transmutação da moça em tocha (= beleza) e a aproxi-
mação com a tocha de Santander (= dinheiro) refletem, justamente, o conteúdo
da novela: a tocha revitalizada e remotivada na abertura, inserida numa vitrine,
é ipsis litteris a representação visual da transformação do valor estético em valor
econômico, conforme esquematizado abaixo:

PLANO DA EXPRESSÃO tocha estilizada


BANCO
PLANO DO CONTEÚDO valor econômico

NOVELA PLANO DA EXPRESSÃO tocha encenada


(Abertura em relação
metonímica) PLANO DO CONTEÚDO valor estético
Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima | 183

Entendida essa interessante rede de significações que se procedeu por figu-


ratividade e figuralidade, resta-nos perguntar: por que o banco optaria por uma
estratégia de marketing tão diferenciada, utilizando uma forma de propaganda
tão sutil? Não nos cabe, enquanto analistas do discurso, procurar uma resposta
definitiva a essa pergunta. Mas, se nos é permitido avançar hipóteses, pensamos
que a sutileza de penetração do Banco Santander no mercado econômico brasi-
leiro, em razão da aquisição e privatização do maior banco público do Estado de
São Paulo, justifica esse cuidado. Propondo uma visualização de marca de forma
não-convencional, os estrategistas publicitários puderam oferecer, aos milhares
de consumidores-fiéis, a associação entre o produto anunciado (o próprio ban-
co) e uma imagem de sucesso. Mas a metonímia, desta vez, foi impregnada de
metáforas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Publicidade e figurativização. Alfa, São Paulo, v.
48, n. 2, 2004a. 11-31 p.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz
(org.). Introdução à lingüistica II. São Paulo: Contexto, 2004b.
CHKLOVSKI, Viktor. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionísio (org.).
Teoria da Literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1971.
FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l´oeil et de l´esprit - pour une
sémiotique plastique. Amsterdam: Hadès-Benjamins, 1985.
FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. Trad. Jean Cristtus Portela. São
Paulo: Contexto, 2007.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Sémiotique. Dictionnaire
raisonné de la théorie du langage. Paris: Hachette Université, 1979.
SILVA, Ignacio Assis. Figurativização e metamorfose. São Paulo: Ed. UNESP,
1995.
O Nu de Boubat e a Globeleza | 185

O NU DE BOUBAT E A GLOBELEZA
Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

INTRODUÇÃO
Em seu texto sobre “práticas semióticas” (ver artigo nesta coletânea), Jac-
ques Fontanille chama-nos a atenção para o fato de que a teoria semiótica de
linha francesa já ultrapassou os limites do texto, no sentido do célebre slogan
defendido por A. J. Greimas: “Fora do texto não há salvação”.
Para ele, a semiótica da atualidade vem revendo sua posição a respeito do
estatuto das operações de “produção de sentido” e redefinindo sua preocupação
com a natureza das inúmeras semióticas-objeto, “consideradas como máquinas
significantes e dinâmicas”, a fim de assumir pesquisas conduzidas fora do texto,
porém, sem abandonar os princípios da imanência e da pertinência, ou seja, sem
caminhar para “fora da semiose” (solidariedade entre expressão e conteúdo).
Diferentemente de outros semioticistas, J. Fontanille define o percurso gera-
tivo do plano da expressão e assim apresenta sua hierarquia de níveis: (1) signos
e figuras, (2) textos-enunciados, (3) objetos e suportes, (4) práticas e cenas, (5)
situações e estratégias, (6) formas de vida. É assim que o autor amplia o espaço
de análise, acrescentando à conhecida semiótica concentrada e focalizada no
percurso gerativo do sentido (dedicada ao plano do conteúdo) uma outra, que
considera o plano da expressão e caminha em direção à semiótica da cultura.
Fontanille ainda postula outra hipótese, que chama de forte e produtiva,
186 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

para descobrir esquemas internos da enunciação em ato, tomando como ponto


de partida os níveis do plano da expressão, conforme a hierarquia acima. O
objetivo é revelar sentidos (ou camadas de sentidos) homologáveis ao plano do
conteúdo, como fez Jean-Marie Floch em seu livro Petites mythologies de l’œil et
de l’esprit – Pour une sémiotique plastique (1985).
Esses dois autores, embora tenham usado modos diferentes de análise, estão
próximos na consideração que fazem do percurso gerativo do plano da expres-
são, como ponto de partida de uma semiótica “intensa”, que trata dos elementos
materiais dos níveis inferiores, tais como os signos, textos e objetos, chegando
a uma semiótica “extensa” que dá a esses níveis um sentido de participação e de
integração com os níveis superiores: as práticas, estratégias e formas de vida.
Procurando, então, seguir a trilha teórica deixada por Fontanille e por Flo-
ch, resolvemos retomar a análise de uma fotografia de Edouard Boubat (Floch,
1985: capítulo primeiro, “Um Nu de Boubat”), com o objetivo de descobrir, atra-
vés da descrição dos esquemas de significação, o que vem a ser um “nu artístico”,
ou seja, um nu aceito pelo coletivo da sociedade como uma prática ligada às
artes plásticas, que não é considerado imoral e por isso não sofre censura.
Com esse propósito, elegemos como objeto da análise comparativa, a nudez
completa da Mulata Globeleza, que durante anos (desde 1990 até 2007), com
poucas interrupções, anunciava o carnaval carioca, através de um produto au-
diovisual: uma vinheta televisiva da Rede Globo de Televisão.

A “GRAMATICALIDADE” DA IMAGEM
A nudez feminina sempre foi tema recorrente em artes plásticas, e algumas
esculturas e telas tornaram-se famosas, sendo copiadas e reproduzidas através
dos séculos. Por exemplo: Vênus de Milo e O nascimento de Vênus, de Botticelli,
a Vênus de Urbino, de Ticiano, a Vênus do espelho, de Velazquez, La Maja Desnu-
da, de Goya, Olímpia, de Manet, Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, Nu Azul
4, de Matisse1 e muitas outras. Mas o que diferencia alguns nus femininos, acei-
tos como prática artística, de outros tantos, considerados como simplesmente
eróticos e imorais?
Conforme Antonio Vicente Pietroforte (2004: 24-36), a apresentação do
corpo humano em sua nudez, tanto o masculino como o feminino, aparece de
forma diferente conforme o discurso: se for conotado teremos beleza estética,

1 Todas as obras de arte citadas acima estão disponíveis na internet.


O Nu de Boubat e a Globeleza | 187

misticismo e erotismo, se for denotado teremos nus vazios de conteúdos morais


e estéticos, como estão nos livros de Medicina e de Ciências para o ensino de
anatomia. Contudo, o mais comum é encontrarmos o corpo humano em poses
eróticas que exploram a sexualidade, principalmente em “outdoors” e em fotos
que ilustram revistas para adultos ou são exibidas pela televisão e internet.
Recentemente, conforme notícias em jornais, o Ministério da Justiça deci-
diu subir a classificação da censura de 12 para 14 anos, da novela Duas Caras
da Rede Globo, por ter exibido cenas de nudez, consideradas de apelo sexual,
envolvendo a personagem da atriz Flávia Alessandra, na apresentação da pole
dancing, dança usualmente realizada por strippers. Mas, de que modo os leito-
res-enunciatários de uma imagem interpretam um nu como fora dos padrões
morais de uma dada sociedade de um nu reconhecido e festejado como arte por
essa mesma sociedade?
A resposta a essa questão pode estar na análise semiótica que Floch fez da
foto de Edouard Boubat2, reproduzida abaixo:

Figura 1

Trata-se de uma jovem vista quase de costas (não se vê o rosto), com o busto
e os braços nus, os cabelos negros cortados bem curtos e, da cintura para baixo,
envolta por uma saia de tecido estampado com flores. Observamos que com a

2 Essa foto foi e ainda continua a ser publicada na França. Podemos encontrá-la em Boubat (1972; 1974) e, no
Brasil, em Pietroforte (2004: 25).
188 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

mão direita a jovem segura uma parte do tecido, que poderia ser a blusa que
cobriria o busto. Mas o que faz com que essa fotografia seja vista como prática
artística?
Inicialmente, poderíamos dizer que esse tipo de fotografia foge ao conven-
cional, que seria a modelo completamente nua, posando para uma foto eróti-
ca ou completamente vestida, como se fosse apresentar-se na passarela de um
desfile de modas. O que significa esse momento entre estar vestida e ao mesmo
tempo despida? Como podemos descobrir as camadas de sentido que são ima-
nentes e pertinentes a ela, ou seja, de que modo o plano da expressão estrutura
o plano de conteúdo e diferencia essa fotografia de tantas outras?
Em seu texto3, Floch inicia a análise separando, em diferentes tipos, o que
ele chama de unidades do discurso plástico ou “contrastes”. São contrastes sim-
ples, que fazem parte do paradigma do sistema fotográfico, como a oposição
entre nítido e não-nítido (flou) ou claro e escuro, elementos de base das lingua-
gens plásticas. Porém, em sua proposta, o autor encontra outras oposições, que
resultam em contrastes complexos, como o modelado vs achatado4.
O semioticista francês trabalha, então, com camadas de significação que
ressaltam contrastes sobre contrastes, ou seja, a partir do contraste simples claro
vs escuro, o analista acrescenta o contraste modelado vs achatado, ambos do
plano da expressão, para dividir a fotografia em quatro espaços, conforme suas
características picturais e topológicas: (1) o fundo escuro; (2) o espaço negro
dos cabelos; (3) o espaço claro do busto e dos braços e 4) o espaço que apresenta
a textura do tecido estampado.
Assim a figura total da jovem aparece iluminada contra um fundo de nu-
anças entre o cinza e o preto, mais escuro à direita (sombra da própria jovem,
causada pela iluminação da esquerda para a direta), sendo que as costas, o pes-
coço, os braços e o seio direito aparecem modelados, isto é, com volume. Já os
cabelos curtos e negros e a saia de tecido estampado aparecem sem volume, sem
nuanças, ou seja, achatados (chapados), “recortados” contra o fundo.
Definida a análise do plano da expressão, apresentada aqui de maneira mui-
to resumida, Floch começa sua argumentação a fim de construir ou constituir
relações semióticas com o plano do conteúdo. Para tanto, busca estabelecer uma
categoria semântica que dê conta de justificar o contraste modelado vs achatado,
do plano da expressão, agora no plano do conteúdo:

3 Os comentários sobre o texto de Jean-Marie Floch estão em português, traduzidos para este trabalho.
4 A tradução de modelé/aplat (Floch, 1985: 26-29) como modelado/achatado segue o uso de tais vocábulos no
artigo de Jorge Coli publicado em Novaes (1988: 231).
O Nu de Boubat e a Globeleza | 189

Ao fazer a análise do plano do conteúdo desse texto, J.M.Floch propõe a


categoria semântica mínima natureza vs. cultura para sua semântica fun-
damental. Justifica-se demonstrando que no busto nu da modelo é figura-
tivizada a natureza, e em seus adereços, que são os arranjos dos cabelos e
o tecido que envolve sua cintura, a cultura. Nesse ponto de vista, a análise
de Floch não se restringe apenas ao conteúdo do nu de Boubat, mas a
todo texto que pode ser reconhecido como tal. Em sua concepção, há um
termo complexo formado pela categoria semântica natureza vs cultura na
definição desse tipo de texto. Assim sendo, o nu deixa de ser simplesmen-
te o despido, a natureza, e passa a ser o despido articulado com outros
valores culturais, de modo que o estatuto semiótico do nu não se estabe-
lece como uma simples referência ao corpo humano sem roupas. Há no
chamado nu artístico a construção de uma estética que realiza a nudez em
meio a valores culturais, e é entre eles que o corpo que se despe adquire
seu estatuto semiótico (Pietroforte, 2004: 25).

Portanto, quando Floch propõe, como análise da foto de Boubat, a cate-


goria semântica natureza vs cultura, para o plano do conteúdo, homologável
ao plano de expressão modelado vs achatado, observamos que a coerência
discursiva apóia-se na criação de um sistema particular de valores, utilizan-
do o que a semiótica chama de linguagem semi-simbólica. Ou seja, ao usar
o esquema modelado: natureza :: achatado: cultura, o autor estabelece cone-
xões que colocam em ligação duas figuras e duas funções, tais como a nudez
como figurativização do que é natural e os adereços como figurativização do
que é cultural.
Estamos considerando como adereços, a saia ampla (franzida, com pregas?),
de tecido estampado e os cabelos negros e curtos, pois eles funcionam como
“ornamentos” que enfeitam a jovem, mas não chegam a cobri-la. Ainda o corte
curto (quase masculino) dos cabelos e a saia ampla e estampada lembram o que
estava em moda nos anos 1960.
Com esse tipo de análise, Floch penetra o âmago da significação da foto,
mostrando sua poeticidade, através do chamado sistema semi-simbólico da lin-
guagem. Segundo Jacques Fontanille “o semi-simbólico é um código semiótico
estritamente ligado ao exercício de uma enunciação particular, individual ou
coletiva, ele é o único meio de ir até a estrutura de uma linguagem, quando essa
última não possui “língua” ou “gramática” generalizável, como é o caso da ima-
gem” (Fontanille, 2007:138-140).
Diferente da linguagem simbólica, que estabelece uma conexão coerente entre
isotopias conhecidas no universo cultural humano, como, por exemplo, o que está
no alto é o céu ou o celeste, o que está embaixo é a terra ou o terrestre, a análise da
190 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

chamada linguagem semi-simbólica estabelece novas conexões, agora entre siste-


mas de valores particulares, criados em uma práxis enunciativa, ou seja, nos tex-
tos não-verbais e verbais produzidos pela cultura. Em uma relação semi-simbólica
possível, o que está no alto é o celeste e o sagrado; o que está embaixo é o terrestre e o
profano, o que, de forma abreviada, dizemos: alto : baixo :: sagrado : profano.
No caso de Floch, a “gramaticalidade” da imagem é definida pela oposição
semi-simbólica definida como nu : com adereços :: natural : cultura, o que resul-
ta em uma interpretação do nu artístico, ou seja, aquele que opõe a figurativi-
zação de uma mulher nua como algo próprio da natureza e a mulher “coberta”
com alguns adereços, como uma saia estampada e os cabelos negros, cortados
curtos, como algo próprio da cultura e, diga-se de passagem, de uma época
(anos 1960) em que as mulheres usavam cabelos curtos e vestidos com saias
amplas, de tecidos estampados.
Na foto de Boubat, a jovem quase nua representa ao mesmo tempo o natu-
ral e o cultural, numa ambigüidade que chama a atenção do observador-enun-
ciatário, que “gosta” do que vê e procura compreender ou interpretar o que está
diante de seus olhos, pois sente que há nela certo estranhamento ou mistério, o
que é próprio de uma foto artística. Assim, como vimos fazendo, tal estranha-
mento pode ser descoberto por uma observação mais acurada, própria do pes-
quisador-analista, através de procedimentos teóricos encontrados na semiótica
de linha francesa, inaugurada por A. J. Greimas.

A LINGUAGEM SEMI-SIMBÓLICA
Segundo o Tomo II do Dicionário de Semiótica de Greimas e Courtés (1991:
227-229), a investigação sobre o semi-simbólico tem sido estimulada para res-
ponder a questões sobre o estatuto semiótico de unidades sintagmáticas que os
pintores costumam chamar de contrastes plásticos. Mas o que vem a ser o siste-
ma semi-simbólico da linguagem ou a linguagem semi-simbólica?
Na verdade, foi Hjelmeslev que opôs a linguagem que ele chamou de “mo-
noplana” ou simplesmente simbólica à linguagem semi-simbólica: a primeira
caracterizada pela conformidade entre as unidades do plano da expressão e do
plano do conteúdo e a segunda pela não conformidade entre as unidades dos
dois planos, mas pela conformidade entre categorias. Ou seja, na linguagem
monoplana, a distinção entre elementos repousa apenas em discriminação sim-
ples, por exemplo: um desenho infantil é reconhecido como desenho infantil,
O Nu de Boubat e a Globeleza | 191

por ele mesmo (pelo plano da expressão); o desenho de um coração “simboliza”


o amor; o desenho de um coração ultrapassado por uma flecha significa que
alguém está apaixonado ou sofrendo por amor, e assim por diante.
Na linguagem semi-simbólica não existe uma correspondência termo a ter-
mo entre o plano da expressão e o plano do conteúdo, mas a correspondência
realiza-se na ordem do supra-segmental, entre categorias abstratas de natureza
semântica como vida/morte, natureza/cultura, ou como no caso dos gestos que
reforçam a oralidade, em que “sim” e “não”, em nossa cultura, correspondem,
respectivamente, à verticalidade e à horizontalidade.
Foi o antropólogo Claude Lévi-Strauss que estabeleceu um padrão para a
linguagem semi-simbólica, quando definiu uma fórmula para o mito: a oposi-
ção entre duas figuras colocadas em relação à oposição entre duas funções. Por
exemplo, a maior parte das culturas primitivas africanas se serve do contraste
cromático vs acromático (roxo vs. negro) para a oposição vida vs morte.
A linguagem semi-simbólica funciona, então, como camadas de signi-
ficação sobrepostas a uma linguagem simplesmente simbólica. É como se ao
simbólico fossem acrescentados outros procedimentos de significação, a fim de
articular as duas dimensões da linguagem, plano da expressão e plano do conte-
údo, ou seja, para os mitos africanos o negro significa, além da ausência de cor, a
presença da morte. No caso da fotografia de Boubat, a nudez, apresentada como
modelada ou com volume, significa o natural e os adereços (penteado e saia
estampada), apresentados como achatados, marcam o cultural.
Segundo o dialogismo do lingüista Mikhail Bakhtin, todo discurso estabe-
lece um diálogo com outro, pois “o discurso não se constrói sobre o mesmo, mas
se elabora em vista de outro. Em outras palavras, o outro perpassa, atravessa,
condiciona o discurso do eu” (Fiorin, 1994: 29).
Na foto de Boubat vemos a modelo com o busto despido, mas com as ancas
cingidas por uma saia, não vemos as pernas, assim como na Vênus de Milo, que
se apresenta ao mesmo tempo despida e vestida com “panejamentos” que lhe
cobrem o púbis, as nádegas e as pernas (de costas, a escultura deixa à mostra o
início das nádegas como fazem as garotas do século XXI, ao usarem roupas que
deixam à mostra o que na gíria seria o “cofrinho”)!
Em O nascimento de Vênus, de 1484, tela que está em Florença, na Galeria
Uffizi, Botticelli retrata uma mulher nua, de frente e em pé, sobre uma concha
enorme, com cabelos longos e claros, que em parte esvoaçam ao vento e em par-
te estão amarrados com fitas, e lhe caem pelas costas e pela frente do corpo, para
serem apanhados pela mão esquerda para cobrir o púbis. Com a mão direita ela
192 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

cobre um dos seios, deixando o outro à mostra e seu olhar está direcionado para
algo distante do observador-destinatário.
Por sua vez, a Vênus de Urbino, de Ticiano (1538), que também está em Flo-
rença, na mesma galeria, encontra-se recostada (a cabeça da esquerda para a direi-
ta) sobre cama acolchoada, os olhos baixos, os cabelos longos, porém castanhos e
a mão esquerda também cobre o púbis e ela traz uma pulseira no pulso direito.
A Vênus do espelho, de Velásquez (1644-1648, National Gallery, Londres),
diferente das duas Vênus citadas acima, apesar de também estar nua e recostada
sobre cama acolchoada, apresenta-se de costas, em posição semelhante à Vênus
de Urbino, ou seja, deitada da esquerda para a direita, porém os cabelos casta-
nhos e longos estão presos num penteado e podemos ver seu rosto, que encara o
destinatário através de um pequeno espelho que um cupido segura diante dela.
La Maja desnuda de Goya (1799, Museu do Prado, Madri) também encara
o destinatário, porém está recostada em posição inversa, ou seja, da direita para
a esquerda e seus braços estão atrás da cabeça o que dá destaque para os seios.
Esse nu repete a mesma pose de outra tela em que a modelo está vestida. Trata-
se de La Maja vestida, do mesmo ano e no mesmo museu.
Já na Olímpia, de Édouard Manet (1863, Paris, Museu d’Orsay), o pintor
retoma a posição da esquerda para a direita e o gesto da mão esquerda que
cobre o púbis, porém a atitude da modelo é outra, pois seus olhos encaram atre-
vidamente o observador e, apesar de nua, ela está enfeitada ou adornada com
alguns adereços: uma flor nos cabelos ruivos cortados curtos, colar no pescoço
e pulseira no braço direito.
Chegando ao século 20, com Picasso e Les Demoiselles d’Avignon (1907,
Moma, Nova Iorque), apesar da geometrização cubista da tela, parece que esta-
mos diante de uma síntese de todas as mulheres nuas retratadas anteriormente.
Nessa tela, famosa por ter inaugurado o Cubismo, as cinco figuras femininas
repetem gestos e poses semelhantes às demais. Senão vejamos: duas delas estão
centralizadas e encaram o destinatário; uma delas, assim como a Vênus de Milo,
apresenta “panejamentos” que lhe cobrem o púbis; uma está de perfil, outra está
sentada de costas, porém, seu rosto, estranhamente voltado para o destinatário,
o encara, como se a cabeça estivesse inteiramente virada para as costas; quatro
delas têm os braços erguidos atrás da cabeça; entre elas vemos figuras geométri-
cas que estamos interpretando como pedaços de um espelho estilhaçado (talvez
o espelho de Velásquez?). O Nu Azul 4, de Matisse, é uma colagem do tipo si-
lhueta, construída com papel azul, que representa uma mulher nua, sentada.
Embora possamos analisar cada “nu” individualmente, em suas unidades
O Nu de Boubat e a Globeleza | 193

constitutivas de forma e de significação, ou seja, do ponto de vista do plano da


expressão e do plano do conteúdo, através de uma semiótica “intensa”, também
podemos ampliar essa análise através de uma semiótica “extensa” ou engloban-
te, que reúne manifestações discursivas próprias de uma prática social e cultural
como a maneira de esculpir, de pintar, ou seja, de representar o nu feminino,
construindo através dos séculos o que se tornou uma prática das artes plásticas,
reconhecida como “nu artístico”.
“Os temas e figuras são determinados sócio-historicamente e trazem para os
discursos o modo de ver e de pensar o mundo das classes, grupos e camadas so-
ciais, garantindo assim o caráter ideológico desses discursos” (Barros, 2004:12).
A originalidade ou a criatividade estaria justamente na retomada dos mesmos
temas agora atualizados, através de estratégias diferentes, que confirmam a pre-
sença da linguagem semi-simbólica e suas camadas de significação.
Assim, a cada cem anos, a partir do Renascimento, o nu feminino, conside-
rado como arte, embora retome poses e atitudes de obras anteriores, apresenta
a mulher cada vez mais “atrevida”, em atitudes mais despojadas. As mulheres
deixam de ser deusas, denominadas como Vênus, para serem Majas e Demoi-
selles, os cabelos recebem tratamentos diversos de cor e penteados e cada nu
se renova através de pequenas diferenças de pose e de adereços. Entretanto, os
seios estão sempre à mostra, enquanto que a região pubiana está quase sempre
coberta, o que nos leva a propor o mesmo valor semântico para o plano de
conteúdo, homologável pelo plano da expressão: as partes do corpo que estão
descobertas aparecem destacadas com procedimentos ligados a diferentes ma-
nifestações plásticas, que não nos compete analisar, pois devem ser realizados
por especialistas em arte (o que não é o nosso caso). Para nossa análise semió-
tica, esses procedimentos dão significado ao natural, enquanto que os adereços
que acompanham os diversos nus (gestos, penteados, “panejamentos”, mobílias,
colares, pulseiras, flores) carregam a significação ou as marcas do cultural.

GLOBELEZA, SINCRETISMO E SEMI-SIMBOLISMO


Chegamos enfim ao nosso objetivo primeiro, ou seja, apresentar a vinheta
televisiva da Globeleza como mais uma atualização do que estamos analisando
como “nu artístico”.
Até aqui os objetos que citamos estão representados sobre suportes que os
tornam estáticos, como a foto de Boubat, a escultura Vênus de Milo, ou as telas
194 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

de pintores famosos com mulheres nuas. Agora, porém, passamos para a te-
levisão, suporte cuja característica principal é a imagem em movimento que,
como no cinema, reproduz, além das imagens, os sons das falas dos atores, das
músicas orquestradas e cantadas, como também caracteres escritos, o que nos
coloca diante do sincretismo, ou seja, diante da presença de várias linguagens de
manifestação em um só produto audiovisual, ou seja, um todo de sentido.
Conforme a explicação encontrada no Tomo I do Dicionário de Semiótica
(1983: 426), não só a ópera ou o cinema (a televisão inclusive) acionam várias
linguagens de manifestação, mas também a comunicação verbal do nosso dia-
a-dia, pois inclui, além da língua falada, os gestos, a proxêmica, o tom de voz, o
nível de linguagem formal, coloquial, regional e outros possíveis aspectos.
Embora não haja espaço neste trabalho para discussão tão complexa, queremos
crer que o sincretismo não leva à criação de uma nova linguagem ou de linguagens
paralelas, mas acrescenta substâncias ao plano da expressão, porém todas elas cor-
respondentes ou homologáveis ao plano do conteúdo de uma mesma linguagem.
Continuando, quando acompanhamos a análise da foto de Boubat feita
por Floch, com a percepção dos procedimentos técnicos que conferem uma
descrição e interpretação à expressão e sua correspondência a uma descrição
e interpretação de um conteúdo específico (modelado: achatado :: nu : com
adereços e ainda nu : natural :: com adereços : cultural) achamos possível
transpor essa fórmula para a vinheta televisiva da Globeleza que, completa-
mente nua, porém “coberta” com adereços, invadia nossas casas para anun-
ciar o Carnaval carioca.
O autor do clip da Globeleza foi o famoso artista da mídia televisiva, o aus-
tríaco Hans Donner que, enquanto chefe de equipes de designers, ilustradores,
técnicos em computação e especialistas em animação da Rede Globo criou vi-
nhetas de abertura para programas como o Jornal Nacional e o Fantástico, assim
como para as novelas Sinal de alerta (1978-79), Brilhante (1981-82), Champagne
(1983-84), Corpo a corpo (1984-85), além de vinhetas de chamada, como a que
apresentava a modelo Valéria Valenssa (sua esposa), na pele da Globeleza.
Embora muitas pessoas possam ter se escandalizado com as primeiras
aparições de uma mulata dançando nua na tela de sua televisão, anunciando a
cobertura que a Rede Globo faria dos desfiles das escolas de samba do Rio de
Janeiro, nunca se soube de censura que proibisse sua apresentação, o que nos
leva a dizer que se trata de um produto audiovisual aceito como prática social e
cultural, possível durante o período das festas de Momo. Mas de que maneira a
vinheta foi construída para chegar a tal resultado?
O Nu de Boubat e a Globeleza | 195

A vinheta Globeleza é uma produção videographics composta de um clip,


produzido em videoteipe, com cores e efeitos inseridos pelo processo de
computação gráfica na finalização. O resultado é uma mistura de imagens
de vídeo e imagens sintéticas. A trilha sonora é do tipo incidental, feita
especialmente para a vinheta pelo compositor de samba Jorge Aragão e
interpretada por Dominguinhos da Estácio, com ritmo de bateria de es-
cola de samba, gravada em estúdio. É, na verdade, um jingle feito com um
típico samba carnavalesco que exalta a festa do carnaval e a Globo, que faz
a cobertura do desfile. No refrão, o slogan “Globo: a gente se vê por aqui”.
A relação imagem-música é direta, dita música descritiva, uma vez que se
trata de uma dança, ou seja, cadência de passos ao som e ao compasso da
música, havendo sincronização entre imagem e ritmo. Ainda sobre o fundo
azul, a marca da Globo, formando a letra “o” do lettering “Globeleza”, com
letras estilizadas, espalhafatosas, em tamanho decrescente da esquerda para
a direita, compõe o último quadro da vinheta, recebendo uma chuva de
confetes, purpurina e muita luz (Petrini, 2004: 130).

O mesmo autor ainda diz que com essa vinheta a Rede Globo prepara-
va o espírito do espectador para suas transmissões “em forma de um grande
festival de simulacros, festa e alegria com música e imagens de nus durante
mais de um mês de carnaval”, enquanto explorava o mito do carnaval cario-
ca “espetáculo global, subproduto da indústria cultural, para ser consumido
nacionalmente e no exterior, revelando um estereótipo da mulher brasileira”
(Petrini, Ibidem).
Como podemos observar, Petrini faz uma análise da vinheta como produto
da cultura de massa, a ser vendido pela Globo, com críticas ao acréscimo da
autopromoção da emissora, mas sem tocar nos aspectos artísticos da apresen-
tação do nu da modelo Valéria Valenssa, como é o nosso objetivo. Na verdade,
as seqüências do clip, quando visto em movimento, são muito rápidas e seguem
o ritmo da batucada: a modelo apresenta-se em nudez completa, sempre dan-
çando ao som da música de Jorge Aragão. A imagem se afasta e se aproxima
do telespectador, num vaivém constante, em sincronia com o ritmo da trilha
sonora; há seqüências muito rápidas de nu frontal, mas, quase sempre a edição
corta o corpo em pedaços, ou seja, mostra a cabeça, o rosto e em seguida os pés;
mostra pernas, coxas e nádegas de perfil, cortando a cabeça e os pés; os seios
estão à mostra e os braços em constante movimento ao ritmo da música; os
pés sempre calçados com sandálias prateadas ou douradas, de salto alto e pla-
taforma, lembrando aquelas usadas pela legendária Carmen Miranda; o púbis
apresenta-se sempre coberto com um tapa-sexo. Vamos, então, observar como
a apresentação desse nu se encaixa na prática do “nu artístico”.
196 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

Apesar de nua, o corpo da modelo está “coberto” com adereços, ou seja,


pintado com símbolos do carnaval: confetes, serpentinas, traços coloridos,
brilhos e purpurinas, estrelas, figuras geométricas só de uma cor ou de co-
res diversas, conforme a escolha de um tema, tais como formas e cores que
lembram o espaço e os astronautas, letras típicas do japonês, etc. (conforme
informação divulgada pela internet, a preparação levava até 20 horas, com o
sacrifício da modelo que, mantinha-se deitada e depois em pé, até que a pin-
tura fosse concluída). Os cabelos ou estão soltos e armados, característicos da
raça negra, e enfeitados com brilhos, ou penteados para o alto. Muitas vezes
a modelo ostenta adereços de cabeça, como aqueles das fantasias de escola
de samba.
É justamente a nudez “coberta” com adereços, que estamos destacando
como procedimento artístico, embora a própria técnica de afastar e aproximar a
imagem na tela e os cortes do corpo mostrado aos pedaços, em sincronia com o
ritmo da música, também utilizem o “mostrar e esconder” como procedimento
do plano da expressão em correspondência ao plano do conteúdo: mostrar = nu;
esconder o nu = adereços (pintura do corpo, sandálias, cabelos soltos ou pentea-
dos, adereços de cabeça), a técnica do afastamento e da aproximação e os cortes
da edição. Portanto, temos a mesma fórmula obtida com a foto de Boubat: o nu
figurativizando o natural e os adereços representando o cultural.
Esperamos que tenha ficado claro que nosso objetivo não foi racionalizar a
análise, a ponto de negar a magia e o apelo sensual e sexual presentes na vinheta
que, pela beleza do visual, do sonoro e pela repetição em horários diferentes,
preparava o espectador para assistir à grande “ópera” popular brasileira: o desfi-
le das escolas de samba no sambódromo do Rio de Janeiro, que seria transmiti-
do pela Rede Globo de Televisão.

À GUISA DE CONCLUSÃO
Assim como Jacques Fontanille nos ensina que o campo de exercício da
semiótica é a significação em ato, a significação viva, “é o discurso e não o signo:
a unidade de análise é um texto, seja ele verbal ou não-verbal” (2007: 29), para
concluir nosso trabalho, vamos posicionar a análise da vinheta da Globeleza na
hierarquia criada por ele (ver texto nesta coletânea):
a) fotos, telas, videoclips são textos-enunciados que contêm signos e figuras;
b) a foto de Boubat, uma tela de Boticelli, a vinheta da Globeleza são objetos
O Nu de Boubat e a Globeleza | 197

e suportes que contêm indicações e marcas de discursos autorais;


c) os discursos fazem parte de práticas: a prática de pintar, de fotografar, de
produzir vinhetas para a televisão, tendo como tema mulheres nuas;
d) as práticas criam cenas, situações e estratégias que acontecem em deter-
minados ambientes socioculturais, com suas formas de vida: a vinheta televisiva
da Globeleza passou a fazer parte do ritual do carnaval brasileiro e, especifica-
mente, do carnaval do Rio de Janeiro, através das transmissões da Rede Globo.

Portanto, partimos de uma semiótica dos textos-enunciados, na sua versão


“intensa”, quando seguimos os passos de Floch a fim de analisar a vinheta da
Globeleza, para ir até a versão “extensa” e “englobante” da semiótica da cultura,
podendo agora responder às questões formuladas por Fontanille, em trecho de
“Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização”:

[...] as pesquisas cognitivas convidam a semiótica a tomar uma posição


sobre o estatuto das operações de “produção de sentido” que ela identifi-
ca em suas análises de discurso: são operações cognitivas dos produtores
ou dos intérpretes? São rotinas desenvolvidas coletivamente no interior
de cada cultura? São atividades das próprias semióticas-objeto, consi-
deradas como “máquinas significantes” e dinâmicas? (ver artigo nesta
coletânea, p. 15).

A primeira questão é muito interessante, pois parece ironizar o próprio


trabalho dos semioticistas: será que quem tirou a foto, pintou a tela, compôs
a vinheta tinha clareza sobre as operações de produção de sentido que estava
criando, ou são os intérpretes-analistas que, com grande inventividade teórica,
encontram marcas nunca pensadas pelo produtor do texto?
Quero crer que podemos responder não e sim. Primeiramente precisamos
explicar que a semiótica não se interessa pelo contexto ou pela biografia do fo-
tógrafo, do pintor ou da equipe que compôs a vinheta para a televisão, pois o
que lhe interessa é a imanência e pertinência do texto, isto é, como o texto diz
o que diz.
Desse modo, a primeira resposta é não, pois quem produz cria sentidos
através de operações cognitivas, que estão sendo pensadas naquele momento,
portanto, sem ter absoluta clareza do como estão criando. Mesmo crianças,
quando pretendem desenhar objetos colocados diante delas, olham rapidamen-
te para eles e em seguida abaixam os olhos e se põem a desenhar, sem tornar a
olhá-los. Algumas crianças dizem que gostam de fechar os olhos para imaginar
o que vão desenhar.
198 | Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

A segunda resposta é sim, pois o semioticista ou o intérprete-analista preci-


sa de instrumentos teóricos que o levem a encontrar marcas do que foi pensado
no momento da enunciação ou significação em ato, que é o trabalho do artista,
no momento da criação. Desse modo, tanto os produtores quanto os intérpretes
lidam com operações cognitivas que produzem sentido, os primeiros na própria
produção e os segundos no desvendamento dessa produção.
Quanto às duas questões finais, vamos responder sim: a) cada cultura reco-
nhece práticas que fazem parte de rotinas de formas de vida, que são vivencia-
das como rituais considerados habituais (tirar fotos, pintar telas) e são próprias
de festas e comemorações (mulheres nuas ou seminuas dançando na época do
carnaval brasileiro); b) semióticas-objeto são “máquinas significantes” e dinâ-
micas que a cada análise desenvolvem novas operações de produção de sentido,
“espichando” a teoria até onde é possível, naquele momento.
Concluo com as palavras de Fontanille (2007, p. 18):

[...] será na experiência sensível, encarnada em um corpo enunciante,


que os dois planos da linguagem, a expressão e o conteúdo, serão ins-
taurados solidariamente a partir das primeiras impressões significantes
exteroceptivas e interoceptivas, respectivamente. Todavia, a solidarieda-
de entre esses dois tipos de impressões e entre os dois planos da lin-
guagem só se deve a um único princípio: seu enraizamento comum em
um terceiro tipo de impressões, as proprioceptivas, impressões do pró-
prio corpo enquanto corpo sensível. Desse primeiro gesto, assim como
dessa solidariedade proprioceptiva entre os dois planos da semiose, vão
se originar todos os outros, especialmente o controle tensivo imposto
à formação dos valores, da actância, das paixões e, de uma forma mais
abrangente, da organização sintagmática do discurso, de seus esquemas
rítmicos, prosódicos e axiológicos.

Ainda em defesa da teoria semiótica de linha francesa: com ela o analista


pode “mergulhar” na narratividade dos textos, “lendo” ou “des-cobrindo” aquilo
que os artistas deixaram gravado como expressão e conteúdo do que estavam
sentindo e pensando no momento.
O Nu de Boubat e a Globeleza | 199

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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de Lingüística, Araraquara, n.o 2, 2004. 11-31 p.
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São Paulo: Edusp, 1994.
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FONTANILLE, Jacques. Significação e visualidade – exercícios práticos. Trad.
Elizabeth B. Duarte e Maria Lília D. de Castro. Porto Alegre: Sulinas, 2005.
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NOVAES, Adauto et al. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
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em: <http://www.eduem.uem.br/acta/hum/2004>. Acesso em: 7 de Janeiro de
2008.
PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica visual – os percursos do olhar. São
Paulo: Contexto, 2004.
Parte IV

REALITY SHOW E PROGRAMAS


DE COMPORTAMENTO
Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 203

PRÁTICAS ENUNCIATIVAS
COMO ESTRATÉGIAS DE INTERAÇÃO
Big Brother Brasil

Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz


Sarah Caramaschi Degelo

PREMISSAS
O formato reality show foi inaugurado em 1999, em um canal de televisão
holandês, o Veronica. Dois anos depois já se via difundido por 19 países, entre
eles, Estados Unidos, Alemanha, Espanha, Inglaterra, Portugal, Suécia, Suíça
e Bélgica. Sempre acompanhado de altos índices de audiência, o programa de
caráter voyeurístico foi se adaptando às tevês dos territórios pelos quais passou,
conforme determinações das emissoras que adquiriram seus direitos.
Apesar do inegável sucesso desses programas, ainda hoje a eles atribuído,
não se pode negar uma lenta, porém contínua, queda de interesse do público em
todo mundo. Esse fato pode ser constatado ao observar o curto tempo de vida
de alguns desses programas. Depois de amargar fracassos mantendo o mesmo
esquema do modelo inicial, cada rede, em diferentes países, buscou construir
um formato que fosse bem recebido pelo público. Alguns são mal sucedidos,
204 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo

outros vêm alcançando repercussão invejável1.


No Brasil, o representante de maior visibilidade, o Big Brother Brasil (BBB),
produzido e veiculado pela Rede Globo de Televisão, desde 2002, segue o forma-
to inicial e teve sua oitava edição em 2008. Segundo artigos publicados em mí-
dias de grande circulação2, essa edição apresentou um decréscimo de audiência.
O programa de estréia, que foi ao ar em oito de janeiro de 2002, registrou 36 pon-
tos de média com picos de 43 pontos e 56% de share (o percentual de televisores
sintonizados em um canal específico), sendo a segunda audiência mais baixa de
uma estréia de edição de um BBB (perdendo somente para o primeiro episódio
da segunda edição, de 2003, que ficou com 29 pontos de audiência). O programa
final, exibido em 25 de março de 2008, teve a segunda pior audiência de todas
as edições do BBB, marcando uma média de 46 pontos na Grande São Paulo e
ficando acima somente da segunda edição do programa, que marcou 45.
Esses dados, no entanto, quando olhados com atenção, não são suficientes
para afirmar que houve uma queda de interesse do espectador tão significativa
quanto se pode imaginar em uma leitura apressada. É preciso atentar para o fato
de que o sistema televisivo sofre mudanças constantes. A programação geral da
Rede Globo convive com uma perda de audiência, o que deriva da migração
de espectadores tanto para outras emissoras ou canais de TV a cabo ou satélite,
quanto para outros suportes de mídia, em especial a internet. Nesse sentido, há
que considerar o fato de que a própria internet vem sendo utilizada de forma
crescente pela emissora na exploração do conteúdo e na relação com o telespec-
tador. Interessante notar ainda que, mesmo no período em que o BBB não está
no ar, de março a janeiro, o site do programa continua a desenvolver conteúdos
e garante um grande volume de acessos.
Nesse cenário, as últimas edições do BBB apresentam números relevantes.
Segundo dados disponíveis no site oficial da Rede Globo, pelo menos 13 mi-
lhões de internautas visitaram o site da sétima edição em seu primeiro mês de
exibição. Só os vídeos com trechos do programa da Rede Globo registraram 71
milhões de acessos, o que corresponde a um crescimento de 772% em relação
à sexta edição do programa. A edição de número 8 apresenta ainda um outro
dado considerável: a final do programa registrou 75,6 milhões de votos, recorde
do jogo, segundo o apresentador Pedro Bial.

1 No Brasil, algumas emissoras tentaram fazer certas adaptações e foram mal sucedidas, assim como na França,
por exemplo, em 2006, em que o programa foi adaptado à Idade Média e interrompido por declínio signifi-
cante de audiência. Recentemente, França e Inglaterra realizam, todo ano, um formato similar para eleição do
melhor intérprete entre cantores amadores provenientes de todas as regiões, com altos índices de audiência e
incrível repercussão até internacional.
2 Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.
Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 205

Nesse momento, uma questão mostra-se relevante: o que faz do BBB um


programa que gera esse amplo interesse por parte do espectador? A hipótese
levantada por este ensaio é de que o responsável por essa audiência não é exa-
tamente o conceito de realidade do programa mas, antes de tudo, a estrutura
discursiva que o sustenta. A partir de uma leitura atenta do conteúdo veiculado
em canal aberto e daquele disponível no site do programa, é possível reconhecer
uma estrutura complexa e inovadora de produção de sentido. O instrumental
teórico eleito para embasar este trabalho é proveniente da semiótica discursiva,
de linha francesa, no que toca principalmente ao conceito de práticas enunciati-
vas, uma contribuição teórica significativa para a área da comunicação.

PRÁXIS ENUNCIATIVA
[...] a todo momento da evolução de uma cultura e dos discursos que a
constituem, em todo ponto de sua difusão, convivem ao menos dois tipos
de grandezas: as engendradas a partir do sistema e as fixadas pelo uso. De
tal forma que, como todo discurso dispõe, hic et nunc, desses dois tipos
de grandeza, a exigência mínima de coerência impôs, de certo modo, o
conceito de práxis enunciativa, para explicar sua co-presença discursiva
(Fontanille; Zilberberg, 2001: 174).

A análise do discurso do BBB será orientada a partir da práxis enunciativa,


que primeiramente identifica as práticas engendradas pelo sistema e pelo uso,
duas grandezas que constituem todo e qualquer discurso. Assim, ao conceber a
enunciação como a instância de mediação entre o discurso e o mundo natural,
em que pese a tensão entre os modos de existência aí contidos, o trabalho pro-
põe uma análise da articulação entre o fazer persuasivo do enunciador e o fazer
interpretativo do enunciatário. Para isso buscaremos, no enunciado, marcas que
levem à enunciação e que tornem claros os efeitos de sentido relacionados a
ela, através de um levantamento das diferentes formas de instauração actan-
cial, temporal e espacial no discurso. Com isso, pretendemos tornar claros os
procedimentos que articulam a coexistência entre a enunciação enunciada e o
enunciado dentro do discurso, e os efeitos que daí decorrem.
Nesse momento, é preciso esclarecer a distinção entre enunciação propria-
mente dita e enunciação-enunciada. A enunciação define-se como prática (ou
práxis) enunciativa e fundamentalmente existe como pressuposto lógico do
enunciado. Pode ser definida como:
206 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo

uma mediação entre o atualizado (em discurso) e o realizado (no mun-


do natural). Em suma, a enunciação é uma práxis na exata medida em
que dá certo estatuto de realidade [...] aos produtos de atividade da lin-
guagem: a língua se destaca por definição do “mundo natural”, mas a
práxis enunciativa a reincorpora nele, sem o que os “atos de linguagem”
não teriam qualquer eficácia nesse mundo. Existem de fato dois tipos de
atividades semióticas, as atividades verbais e as não-verbais, mas ambas
estão ligadas a uma só “práxis” (Ibidem: 172).

A enunciação enunciada faz-se pela instauração, dentro do discurso, de um


simulacro do ato da enunciação. “A enunciação enunciada deve ser considerada
como constituindo uma subclasse de enunciados que se fazem passar como sen-
do a metalinguagem descritiva (mas não científica) da enunciação” (Greimas;
Courtés, 1983: 144).
O lugar de residência e exercício da enunciação, no que se refere à prática
enunciativa, pode ser localizado dentro de um espaço em que ela aparece como
entidade englobante do discurso e englobada pela realidade. Esse fenômeno é
aqui entendido como o lugar em que se relacionam os sujeitos ônticos, “de carne
e osso”. Do espaço que delineia a idéia de discurso participam duas instancias:
enunciação e enunciado. No lugar em que se encerra o primeiro conceito, en-
contram-se os sujeitos da enunciação: enunciador e enunciatário. O enunciador
é responsável pela produção do discurso e pela comunicação persuasiva com o
enunciatário. Ambos, enunciador e enunciatário são, na verdade, uma forma de
representação, um simulacro do sujeito do mundo natural, pois são entidades
discursivas. Já o enunciado, ou texto, considerado um todo de sentido, é forma-
do por categorias actanciais, espaciais e temporais próprias, instauradas pela
enunciação, através dos procedimentos sintáxicos de embreagem e debreagem3,
e também por figuras e temas, já na dimensão semântica. A fim de projeta-
rem-se dentro do texto, o enunciador e o enunciatário travestem-se, respec-
tivamente, de narrador e narratário, fazendo uso dos procedimentos citados:
são entidades “de papel”, construídas por figuras da expressão e do conteúdo.
O narrador pode, através do discurso direto, dar voz aos atores discursivos, que
tomam, assim, as posições de alocutor e alocutário. No enunciado do Reality
Show em questão, os vários espaços pelos quais caminham as representações e
as várias maneiras de se colocarem neles estabelecem simulacros de relações de
proximidade e distanciamento entre a instância produtora do discurso e o texto
propriamente dito, gerando diversos efeitos de sentido, como o de “realidade” e

3 As noções de embreagem e debreagem, definidas no Dicionário de Semiótica I (Greimas; Courtés, 1983),


foram desenvolvidas por Fiorin (1996).
Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 207

o de “afetividade” principalmente. Esses efeitos acabam por convergir na cons-


trução do efeito de verdade, que dá suporte à crença fiduciária e, assim, permite
a ocorrência do fazer manipulador.
A partir da análise da estrutura discursiva do texto, é possível reconhecer
dois percursos temáticos principais assumidos pela enunciação: produção e co-
municação. Para Barros, essa “duplicidade de percursos temáticos permite, cer-
tamente, considerar a enunciação como a atividade humana por excelência, ao
mesmo tempo, produção e comunicação” (Barros, 2002: 137).

PRODUÇÃO DE SENTIDO E PRÁTICAS ENUNCIATIVAS


A realização da enunciação enquanto produção prevê um sincretismo en-
tre enunciador e enunciatário, denominados “sujeitos da enunciação”, para que
ambas as instâncias compartilhem a responsabilidade pela edificação do sentido
do enunciado. No discurso do programa de tevê Big Brother Brasil, esse papel te-
mático apresenta uma estrutura complexa e inovadora em relação às narrativas
ficcionais clássicas. Nele, as instâncias de produção são problematizadas, deslo-
cadas e rearranjadas, assumindo posições diversas no quadro de suas funções
narrativas e temáticas.
Em primeiro lugar, o enunciador (apresentador) é também actante da nar-
rativa como personagem da trama, pois ele atua junto aos demais, fomentando e
desenvolvendo intrigas e até mesmo estabelecendo diálogo direto com as demais
personagens (candidatos), conjugando o papel de sujeito narrador-ator. Assim
também há, na construção do enunciado, o envolvimento direto do enunciatá-
rio. Este age como parte integrante, não só do processo de autoria, mas também
como actante da trama, já que ele interage em sua construção.
Desse modo, o formato do programa apresenta-se como uma narrativa
aberta, na qual a trama é “costurada” durante o ato enunciativo, no qual, tanto
enunciador quanto enunciatário tornam-se atores do discurso. Há uma interpe-
netração e troca de papéis entre entidades do enunciado e da enunciação, pois
há um deslocamento dessas instâncias nos diferentes momentos da apresen-
tação. O papel do enunciatário ultrapassa o fazer interpretativo na produção
do discurso e ganha força no espaço que, na narratividade ficcional clássica, é
reservado ao fazer do enunciador. Daí afirmarmos que de espectador – dono
de um fazer meramente interpretativo – o espectador está sendo promovido a
co-produtor, dono de um fazer colaborativo – característico da relação de inte-
208 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo

ratividade possibilitada pelos suportes digitais4.


Ora, não podemos negar, com isso, que as direções que guiam o enredo
são estabelecidas por uma entidade a que pertencem os realizadores do progra-
ma: diretores, produtores, anunciantes, editores. Trata-se, pois, de uma entidade
complexa do discurso. As categorias de pessoa, espaço e tempo, no nível dis-
cursivo do percurso gerativo do sentido, continuam sendo programadas, pla-
nejadas e articuladas de acordo com a intencionalidade do sujeito enunciador.
As características do próprio suporte midiático “televisão” não permitem que
se fuja dessa intencionalidade, na medida em que apresenta, como condição
de existência, elementos como o enquadramento e a edição, que prevêem, en-
quanto produtos de um fazer seletivo, a mediação do enunciador. Essa escolha
determina, portanto, um ângulo ideológico do discurso. Ler essas marcas é des-
cobrir o que a entidade enunciadora quis “mostrar” do fato acontecido. Assim
sendo, o ângulo de observação do objeto analisado é extremamente revelador
de intencionalidades existentes dentro do enunciado. Nesse sentido, podemos
dizer que a participação autoral do espectador é também planejada e, logo, pre-
visível. Contudo, não pode ser negada sua participação efetiva na construção
da narrativa, já que, em certos instantes, ele se torna personagem da história
narrada, participando da trama.
É possível, então, conceber o sujeito da enunciação, em determinados mo-
mentos dessa narrativa, no papel temático da produtor do discurso, na união de
um enunciador e um enunciatário, ambos de natureza complexa e coletiva, já
que a função de cada um é problematizada e reformulada no formato do reality
show, mostrando nuanças novas dessa relação, que podem ser denominadas de
intradiscursivas.
A reformulação da dimensão enunciativa do texto acaba por gerar efeitos
de sentido que colaboram para o estabelecimento do contrato fiduciário entre
enunciador e enunciatário no processo que embasa o segundo papel temático
em questão: o da comunicação. Nele, a enunciação manifesta-se através de um
enunciador-manipulador, que comunica ao enunciatário-manipulado os va-
lores investidos no discurso-objeto em questão e realiza um fazer persuasivo
sobre ele. Em uma situação ideal, o enunciatário é levado a realizar seu fazer
interpretativo em conformidade com a intencionalidade do primeiro e, assim,
induzido a crer e a fazer. Tanto na produção quanto na comunicação, a enun-
ciação manifesta-se através do enunciado, deixando nele suas marcas. A esse
respeito, diz Barros:

4 A interação no BBB realiza-se pelo uso da internet, pelo telefone ou celular.


Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 209

se tanto o fazer persuasivo do enunciador quanto o interpretativo do


enunciatário se realizam no e pelo discurso, conclui-se que, para conhe-
cer e explicar tais fazeres e por meio deles apreender a instância da enun-
ciação, precisa-se proceder à análise interna e imanente do texto (Barros,
2002: 137).

Portanto será preciso realizar uma leitura do discurso do BBB no plano do


conteúdo, a fim de reconhecer essas “marcas” e tornar claros, através delas, os
procedimentos de projeção da enunciação no enunciado, os efeitos de sentido
aí gerados e as formas de articulação dos contratos fiduciário e veridictório no
processo de comunicação manipulativo.

EFEITOS DE SENTIDO DAS PRÁTICAS ENUNCIATIVAS


No percurso gerativo do sentido, o nível mais superficial, o das estruturas
discursivas, guarda marcas importantes do nível semântico profundo. Ao olhar
para as categorias de pessoa, espaço e tempo, podemos reconhecer elementos que
estão na construção dos efeitos de aproximação e distanciamento entre enuncia-
ção e enunciado. Para se projetar no enunciado, a enunciação utiliza os recursos
sintáxicos da debreagem e da embreagem. A respeito da debreagem, quando esse
procedimento instaura um simulacro do sujeito da enunciação, surge o efeito
de sentido de subjetividade, ou seja, a aproximação citada. A debreagem, nesse
caso, é chamada enunciativa. Ao contrário, na debreagem enunciva, aparece a
objetividade, que tende a afastar o texto da sua instância de produção, criando o
efeito de distanciamento. Já a embreagem é uma tentativa de reengate das formas
debreadas no discurso pela enunciação. Com isso, cria-se o efeito de identifica-
ção do enunciado com a instância da enunciação (Fiorin, 1996).
A transmissão do reality show, em canal aberto, apresenta uma estrutura
híbrida e complexa. Os tipos de projeção da enunciação no texto são arranjados
dentro de um emaranhado de formas, a fim de desenhar jogos de cena diversos.
Quatro práticas enunciativas distintas e elementares (ou regimes de presença)
podem ser percebidas no enunciado em questão. Na primeira, temos o recurso
discursivo caracterizado pelo aproveitamento do material pré-gravado. Aqui,
um narrador onisciente, em terceira pessoa, afasta o acontecimento narrado do
processo de narração.
Essa forma de narrar marca um discurso objetivo que busca estabelecer,
210 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo

com o espectador, um contrato fiduciário calcado no “dizer verdadeiro”. Nesse


caso, a busca pela verdade liga-se a um esforço pela comprovação referencial
do que está sendo comunicado, gerando então um efeito de “realidade” (reality)
no discurso. No BBB, tal efeito é construído, em grande medida, pela referen-
cialização actancial, através de debreagens internas de segundo grau, que esta-
belecem o discurso direto entre as personagens, o que acaba por criar a ilusão
de “realidade” e atribuir desse modo, aos diálogos, o estatuto de verdade. Esse
recurso instaura ainda um tempo não presente ao ato da enunciação, relativo a
um “então”, já recortado e montado. O lugar demarcado para o desenrolar da
narrativa é o “lá”, a casa-confinamento, distante tanto do enunciador quanto
do enunciatário. Esse tipo de instauração discursiva de tempo, espaço e pessoa,
pelo mecanismo da debreagem enunciva, ocorre nas transmissões do material
audiovisual já editado.
A segunda prática enunciativa está presente nas transmissões ao vivo, no
momento em que o apresentador (narrador) dirige-se diretamente ao espec-
tador (narratário). Nesse caso o enunciador, complexo e coletivo, projeta um
simulacro de si mesmo no enunciado e desenha um conjunto de marcas que
constituem o que se denomina enunciação enunciada. Para isso traveste-se de
narrador, na figura de apresentador, e se faz ouvir enquanto narrador em pri-
meira pessoa. Da mesma forma, ele projeta também dentro do texto audiovi-
sual o enunciatário – que se faz, então, narratário – ao se referir ao espectador
através da segunda pessoa (o tu recoberto pelo pronome de tratamento “você”).
Estabelece-se, dessa maneira, um tempo simultâneo entre o ato de enunciar e
o texto enunciado, criando um efeito de instantaneidade. O espaço que abriga
esse tipo de situação é, de certa forma, comum entre as entidades envolvidas.
Nele relacionam-se narrador e narratário. Cria-se o efeito de subjetividade, que
também está na base do contrato fiduciário, porém não pretendendo um “fazer-
crer verdadeiro” pelo recurso da referencialização do mundo natural enquanto
efeito de sentido, mas criando um laço afetivo de empatia entre o enunciador e
o enunciatário.
Esse contato entre enunciador e enunciatário, que edifica tanto o contrato
fiduciário quanto o veridictório, estreita-se ao ponto de esses atores transforma-
rem-se de entidades idealizadas em entidades indicialmente concretizadas no
espaço narrado. Há, nesse instante, um efeito de sentido que busca uma repre-
sentação da práxis enunciativa no seu exercício de esquematização dos modos
de existência que, partindo da virtualidade semiótica, tendem a deslocar-se em
direção às práticas do mundo da existência numênica. Objetiva-se, com isso,
Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 211

embasar um acordo de confiança, que determina a ligação entre destinador


manipulador e destinatário manipulado. Esse conjunto de marcas, que projeta
o sujeito da enunciação dentro do texto, determina a debreagem enunciativa,
encontrada no discurso do BBB nas transmissões ao vivo. Esse tipo de projeção
é reconhecível dentro dos mais variados suportes textuais, sejam eles verbais
ou não-verbais. A possibilidade da transmissão ao vivo, no entanto, confere à
televisão uma situação especial, no que se refere à distância temporal entre o
fazer do enunciador e o do enunciatário, na medida em que praticamente anula
a distância e intensifica o efeito de aproximação:

A partir da televisão, o registro do espetáculo que se está ainda enuncian-


do e a visualização/audição do resultado final podem se dar simultanea-
mente e é justamente o traço distintivo da transmissão direta: a recepção,
por parte de espectadores situados em lugares muito distantes, de eventos
que estão acontecendo nesse mesmo instante (na verdade, não é exata-
mente o mesmo instante, pois há um ligeiro atraso entre captação, trans-
missão e recepção, devido ao percurso do sinal nos canais eletrônicos,
mas essa diferença é mínima e pode ser ignorada em termos práticos)
(Machado, 2000: 125).

O terceiro regime de presença dá-se quando, ainda na transmissão ao vivo,


o apresentador estabelece um contato direto com as personagens da trama, os
candidatos que estão na casa-confinamento, falando-lhes diretamente, ou seja,
fazendo-os assumir a segunda pessoa do discurso na situação do diálogo. Esse
regime, ocorrendo durante a transmissão ao vivo, mantém a representação es-
paço-temporal da enunciação a que pertencem as noções de “aqui” e “agora” e
do “eu”, assumidas pelo apresentador. A categoria actancial, no entanto, é des-
locada, ao transferir os candidatos da 3ª para a 2ª pessoa, o que em situação de
diálogo coloca o apresentador em comunicação com os candidatos, e o enun-
ciatário (telespectador) se estabelece como 3ª pessoa. Essa reconfiguração das
relações discursivas constitui o processo da embreagem enunciva, que desloca
as categorias actancias da enunciação para o enunciado.
Há ainda um quarto tipo de regime de presença. Dentro do espaço enuncivo
da casa-confinamento, os atores do discurso são levados, em situações específi-
cas, a falar com os espectadores. Isso ocorre quando dois deles vão a julgamento
no “paredão”. A cada um é reservado um tempo para que possa se defender do
julgamento negativo do público do programa e, assim, evitar a sanção negativa
representada pelo seu desligamento do enunciado. Ocorre, aqui, ao contrário
da situação anterior, um processo de embreagem enunciativa. A posição de 3ª
212 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo

pessoa da personagem, em relação à instância da enunciação, é desviada para


a de 1ª pessoa do discurso ao se ligar à 2ª pessoa, assumida pelo enunciatário.
O espaço da ação funde-se na enunciação e confunde-se com ela. No mesmo
tempo do “agora”, coexistem o “lá” – que abriga as relações entre as personagens
e permanece distante do enunciatário – e o “aqui”, referente ao lugar da enuncia-
ção. Esse processo cria a ilusão de retorno das formas ora desembreadas às mãos
da enunciação e contribui para o efeito de aproximação entre essa entidade e o
discurso, na construção da idéia de afetividade, já comentada anteriormente.
Essas várias formas de projeção da enunciação no enunciado fazem reco-
nhecer, no discurso do BBB, um emaranhado de efeitos de sentido que, ora
aproximam as instâncias produtoras do seu próprio produto, ora fazem des-
te último uma entidade dona das suas próprias regras. Todo esse jogo está na
base das estratégias persuasivas dispostas pelo enunciador, no momento em que
propõe o programa ao enunciatário, pois o coloca na posição de “telespectador
participante” do enunciado televisivo, uma forma de interatividade ideal. Esse
conjunto de práticas enunciativas distintas, que sinalizam os regimes de presen-
ça aqui levantados, procura evidenciar, antes de tudo, o “efeito de veracidade”
que essas estratégias provocam e a troca fiduciária entre destinador e destina-
tário, que possibilita, com base na confiança em um dizer-verdadeiro, vínculos
que estruturam todas as demais estratégias de manipulação reconhecíveis no
discurso em questão.
Os quatro regimes, sistematizados na tabela a seguir, pretendem eviden-
ciar as práticas enunciativas mais freqüentes no BBB. Contrastando debreagem
e embreagem, enunciva e enunciativa, cada regime apresenta um tipo distinto
de relação entre actantes no espaço e no tempo. No regime 1, cada candidato
dialoga com outro candidato no texto pré-gravado, instaurando-se diante do
apresentador e dos telespectadores como um sujeito (ele), na casa-confinamen-
to (lá) num tempo passado (então), o que denota um afastamento. No regime
2, o diálogo se instaura entre o apresentador e o telespectador, ao-vivo, ins-
taurando um sujeito (eu) no mesmo espaço (aqui) e num tempo simultâneo
(agora), criando o efeito de aproximação. No regime 3, o apresentador dialoga
com os candidatos, também ao-vivo e diante dos telespectadores. Isso provoca
um desdobramento do eu (o apresentador ou o candidato assumem a primeira
pessoa alternadamente), do aqui (ora é a casa, ora o estúdio), criando o efeito
de sentido de expansão ou difusão. No regime 4, o candidato dialoga com o
telespectador em texto pré-gravado, instaurando-se como um eu, aqui, agora
que tenta explicar suas atitudes (dele) diante dos telespectadores (aqui), realiza-
Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 213

das na casa (lá), detalhando fatos passados (então) no momento atual (agora),
evidenciando a coexistência actancial, espacial e temporal que cria o efeito de
sentido de fusão.

Regime 1 Regime 2 Regime 3 Regime 4

debreagem debreagem embreagem embreagem


enunciva enunciativa enunciva enunciativa

candidato- apresentador- apresentador- candidato-


candidato telespectador candidato telespectador

pré-gravado ao-vivo ao-vivo pré-gravado

coexistência do
desdobramento do
ele, lá, então eu, aqui, agora eu/ele; aqui/lá;
eu e aqui
então/agora...

afastamento aproximação difusão fusão

PARA TERMINAR
Esses quatro regimes de presença aqui apontados e descritos representam
formas diferentes de persuasão ideologicamente construída dentro dos parâ-
metros midiáticos, nos quais, além de uma simples narrativa, há interesses ou-
tros, no nível profundo da elaboração do discurso, como o do merchandising.
Quando, por exemplo, um prêmio é ofertado para um participante, dentro de
um determinado capítulo do reality show, todo um processo de discurso apela-
tivo fica subjacente à história narrada. Esse objeto oferecido como prêmio não
é apenas o objeto-valor do personagem (vencedor de uma prova do jogo), mas
duplamente valorizado: como objeto-valor da entidade enunciadora, que busca
recursos financeiros para sustentar o programa, e como objeto-valor da entida-
de financiadora, que faz sua publicidade. O que queremos dizer é que, muito
além de um simples prêmio conquistado, há uma seqüência de manipulações: a
do candidato que é manipulado para “entrar no jogo”, a da empresa que mostra
seus produtos (automóvel, viagem, jóia, etc.) e a da própria empresa de televi-
são, que premia angariando recursos e faz a publicidade indireta da empresa e
do produto no reality show.
No entanto, o que realmente importa é que o candidato escolhido (ven-
214 | Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo

cedor daquela etapa ou no final da série) pareça ter sido aquele desejado pelo
telespectador (afinal, é ele quem vota!). O observador atento, que assiste ao BBB,
poderá perceber a presença constante do enunciador coletivo (equipe de res-
ponsáveis), sobretudo no primeiro regime, na apresentação do material pré-gra-
vado5. Não é possível apresentar o volume total da gravação de todas as câmeras
localizadas na casa-confinamento. Logo, é feita uma seleção, uma escolha, que
deve trazer benefícios a um candidato e danos a outro. O processo de votação
exige do espectador um posicionamento, que se fundamenta em sua aprovação
ou repulsão ao candidato, diante dos valores registrados em seu comportamen-
to apresentados no vídeo. Assim sendo, uma cadeia de manipulações subjaz à
trama como um todo. Predominam os interesses comerciais (publicitários e de
audiência), sem dúvida, pois as atividades da casa-confinamento fomentam a
competitividade, a discórdia e o embate, ingredientes que garantem a audiência
e forjam o merchandising na narrativa. O telespectador-enunciatário é mani-
pulado e envolvido nesse jogo. E, instigado a fazer prevalecer seus “próprios”
valores, elege “seu” candidato, num processo de identificação exemplar.
Apontamos e tentamos descrever aqui apenas quatro regimes de presen-
ça que representam estratégias eficientes para a interação com o telespectador.
Há outras fomas, algumas já identificadas, tais como as chamadas do BBB ao
longo da programação da emissora, em que telespectadores (pessoas comuns
abordadas na rua) opinam sobre os candidatos e instigam a curiosidade do te-
lespectador. Além disso, a oitava edição, iniciada em janeiro de 2008, inaugurou
outros dispositivos: instalação de telefone na casa-confinamento, redação de di-
ários pelos candidatos, páginas que são publicadas no site oficial do programa,
avaliação diária do “humor” que reina na casa e do “humor” pessoal de cada
candidato, dentre outros. Assim, há um feixe de depoimentos (tanto dos can-
didatos quanto dos telespectadores), muitas vezes controversos, que somados
às quatro práticas enunciativas identificadas e descritas, representam o que em
jornalismo chamamos as várias versões do fato, ângulos que revelam pontos de
vista diferentes, constituindo também um feixe de informações cada vez mais
necessário para a formação de opinião, uma exigência conduzida pelas novas
tecnologias, como a internet, que se impõe progressivamente ao homem da so-
ciedade contemporânea.
Apesar dos oito anos sucessivos de Big Brother Brasil, sempre nos mesmos
moldes originais, observa-se um certo cansaço. Insistindo nos mesmos propó-

5 Não esquecer que o apresentador também conduz, ou seja, exerce a manipulação tanto sobre os telespecta-
dores (prática enunciativa do regime 2), quanto sobre os candidatos (regime 3). Conseqüentemente, dirige
ambos de forma quase “possessiva” e dominadora, direcionando o percurso narrativo ou a diegese.
Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil | 215

sitos, ou seja, no comportamento “sentimental” de seus participantes, esse for-


mato parece atrair sobretudo os telespectadores jovens. Entretanto, há inúmeros
outros temas, questões mais abrangentes que poderiam ser enfocadas para uma
macrodiscussão do tema na sociedade. Idealismos à parte, as práticas enunciati-
vas instauradas pelo programa são eficientes como estratégias e carecem de um
aprofundamento nos estudos de comunicação. Responsáveis pela interação al-
cançada pelo programa, essas estratégias representam também a almejada ten-
dência à interatividade que os meios de comunicação tanto buscam, e que será
cada vez mais possível e explorável comercialmente a partir da consolidação da
TV digital.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4o ed. São Paulo:
Ática, 2005.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3ª
ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2002.
FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 1996.
FONTANILLE, Jacques. Semiótica do discurso. Trad. Jean Cristtus Portela. São
Paulo: Contexto, 2007.
FONTANILLE, Jacques; ZILBERBERG, Claude. Tensão e significação. Trad.
Ivã Carlos Lopes et al. São Paulo: Discurso Editorial: Humanitas/FFLCH/USP,
2001.
GREIMAS, A. J; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima
et al. São Paulo: Cultrix, 1983.
MACHADO, Arlindo. Televisão levada a sério. São Paulo: Senac, 2000.
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 217

PRÁTICAS PASSIONAIS
NA MÍDIA TELEVISIVA
Programas de comportamento

Dimas Alexandre Soldi

SEMIÓTICA DAS PAIXÕES


Dos estados de coisas aos estados de alma

O estudo das dimensões passionais do sujeito, desenvolvido em Semiótica


das paixões de Algirdas Julien Greimas e Jacques Fontanille (1993), parte da di-
mensão sintáxica da semiótica da ação – nível narrativo da semiótica standard
– e traz contribuições metodológicas e teóricas a fim de “construir uma semân-
tica da dimensão passional nos discursos, isto é, a paixão não naquilo em que
ela afeta o ser efetivo dos sujeitos ‘reais’, mas enquanto efeito de sentido inscrito
e codificado na linguagem” (Bertrand, 2003: 358).
A semiótica da ação, ligada à narratividade ou sintaxe narrativa, decorre de
estudos desenvolvidos conforme as contribuições de Vladimir Propp em Mor-
fologia do conto maravilhoso (1984), cujas funções, executadas por personagens,
orientam a narrativa dos contos eslavos por ele analisados e que, mais tarde,
contribuíram para a formulação do modelo teórico desenvolvido por Greimas.
O nível narrativo do percurso gerativo do sentido, de inspiração proppiana, apre-
senta os enunciados mínimos (de estado e de fazer) sobre os quais se constroem
218 | Dimas Alexandre Soldi

as teias narrativas que, organizadas, geram percursos actanciais que compõem o


esquema narrativo canônico. Cada enunciado baseia-se na natureza da relação
do sujeito com o objeto, seja ela de junção, de disjunção ou de seus contraditó-
rios. Todos os textos estariam, dessa forma, estruturados, sintaxicamente, por
quatro grandes percursos narrativos, o da manipulação (firmação do contrato
entre destinador-manipulador e sujeito), o da competência (o fazer-fazer ou a
doação de competência modal ao sujeito – querer, dever, poder ou saber-fazer),
o da performance (a própria ação do sujeito) e o da sanção (o destinador-julga-
dor interpreta a ação do sujeito e a sanciona positiva ou negativamente). Esses
percursos caracterizam a ação do sujeito na conquista dos objetos, compostos
de um feixe de modalidades variáveis.
No entanto, essa sistematização do agir de sujeitos em busca de objetos não
leva em conta a modulação dos estados afetivos desses actantes, despreza os
efeitos passionais que explicam as suas condutas, modalizadas acima de tudo
pelos estados de alma. O estudo da dimensão passional tem o intuito de ob-
servar as variações passionais que orientam a ação dos sujeitos e preencher os
hiatos existentes nos momentos anterior e posterior à ação.
As paixões, do ponto de vista da semiótica, são efeitos de sentido de confi-
gurações passionais, ou seja, modalizações que modificam o sujeito de estado.
De acordo com Bertrand, existem as boas e as más paixões que, quando “subme-
tidas a regimes de sensibilização e moralização variáveis, formam taxionomias
conotativas que permitem identificar e distinguir formas culturais” (2003: 373).
Num primeiro momento, a semiótica procurou:

determinar qual o arranjo modal e qual a estrutura narrativa que ca-


racterizam e sustentam as denominações de paixões, como a cólera, a
frustração, o amor ou a indiferença. Trata-se, em suma, de descrevê-las
com uma sintaxe narrativa modal em que se examinem as combinações
de modalidades (Barros, 2001: 47).

Contudo a abordagem presente na obra de Barros, que aproxima a semióti-


ca da paixão da semiótica da ação, necessitou de uma mudança de perspectiva:
nos últimos anos, a sintaxe narrativa que descreve os componentes passionais
aproxima-se, cada vez mais, de uma sintaxe tensiva:

Durante os anos 80, a análise das paixões era uma análise dos lexemas
ou dos papéis passionais: a cólera, o desespero, a nostalgia, a indiferença,
a avareza ou o ciúme. No curso dos anos 90, ela se consagra cada vez
mais ao estudo da dimensão passional do discurso e, notadamente, às
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 219

manifestações passionais não-verbais, ou ‘não-verbalizadas’ (Fontanille;


Zilberberg, 2001: 297).

O que os pensadores franceses querem dizer é que, na verdade, a paixão não


deve ser vista apenas sob o enfoque modal que caracteriza uma determinada
manifestação passional. Por exemplo, a paixão da ambição não pode ser enten-
dida apenas como a modalização de um querer, ou apenas pela redução sintáxi-
ca dos termos que a regem, ou seja, pela simplificação encontrada nos estados
de coisas. Ao contrário, os sintagmas passionais associam várias dimensões, não
apenas as modais, mas, principalmente, as aspectuais, as temporais e outras. Na
semiótica das paixões encontra-se a complexidade dos elementos que, em con-
junto, instauram um universo passional regido pela timia. Fontanille e Zilber-
berg, nessa perspectiva de associação de diferentes dimensões correlatas entre
si no seio de um sintagma discursivo, tendo em vista que as correlações são ao
mesmo tempo sensíveis e inteligíveis, propõem três condições:

1. que as dimensões envolvidas seriam de dois tipos: modais e fóricas;


2. que as modalidades implicadas se referem tanto à existência (modali-
dades existenciais) quanto à competência (querer, dever, saber, poder e
crer); 3. e que a foria conjuga essencialmente a intensidade e a extensi-
dade, com seus efeitos induzidos por projeção no espaço e no tempo, os
efeitos de tempo e de ritmo (Idem: 298).

Acredita-se, assim, que uma investigação dos caminhos afetivos percorri-


dos por um sujeito patêmico deve levar em conta, obrigatoriamente, essas duas
dimensões, modais e fóricas, que, juntas, podem traduzir-se em efeitos de sen-
tido passionais, e estes são eminentemente culturais. Identificar uma paixão sig-
nifica reconhecer elementos significantes de nossa própria cultura, de modo que
deve ser percebida e apreendida dentro do crivo de leitura de um espectador
que compartilha do mesmo universo cultural, sem o qual há o risco de não se
sentir o impulso passional do sujeito do discurso:

É a práxis enunciativa que decide in fine o que é paixão e o que não


é, por meio de uma espécie de sanção intersubjetiva e social, uma in-
tencionalidade que deve ser reconhecida e partilhada para ser operante.
Isso significa que, assim que uma paixão é identificada e denominada,
não estamos mais na ordem da dimensão passional viva, mas na dos
estereótipos culturais da afetividade. Não podemos, portanto, começar
a descrição das paixões identificando ‘unidades’ ou ‘signos’ passionais,
sobretudo lexicais, pois tal identificação está, de imediato, submetida
220 | Dimas Alexandre Soldi

ao crivo cultural do observador; em compensação, é lícito passar pelo


campo intermediário de seus ‘efeitos de sentido em discurso’. De fato, a
paixão em discurso será caracterizada pela natureza e pelo número de
dimensões correlatas, como também pelos formantes sintáxicos capazes
de sensibilizar a manifestação discursiva (Idem: 299).

Esquema passional canônico

Tal como no nível narrativo, em que Greimas apresenta o esquema narrati-


vo canônico, em Semiótica das paixões aparece a sistematização do esquema pa-
têmico canônico, que mantém relação muito próxima com o outro, mas procura
evidenciar os estados de alma dos sujeitos passionais: ao percurso do “fazer” do
sujeito se junta, entrelaçando-se a ele, um percurso do “ser”. “A uma semiótica
do agir (narratividade) se integra uma semiótica do sofrer (a dimensão pas-
sional)” (Bertrand, 2003: 374). Bertrand (Ibidem) propõe a seguinte correlação
entre os dois esquemas:

Disposição Sensibilização Emoção Moralização

Contrato Competência Ação Sanção

Dessa forma, a manipulação (contrato) equivaleria à disposição; a compe-


tência, à sensibilização; a ação, à emoção; e a sanção, à moralização. Os sujeitos
passionais, cada qual à sua maneira, passariam por esses percursos. Greimas e
Fontanille definem cada uma das acepções, em sentido inverso ao do esquema:

A moralização intervém em fim de seqüência e recai sobre o conjunto


da seqüência, mas mais particularmente no comportamento observável.
Ela pressupõe, portanto, a manifestação patêmica, denominada emoção,
cuja aparição no discurso assinala que a junção tímica está cumprida,
dando a palavra ao corpo próprio. A sensibilização é pressuposta pela
emoção: é a transformação tímica por excelência, a operação pela qual
o sujeito discursivo transforma-se em sujeito que sofre, que sente, que
rege, que se emociona. Ela própria pressupõe essa programação discur-
siva que denominamos disposição, e que resulta da convocação dos dis-
positivos modais dinamizados e selecionados pelo uso; ela aciona uma
aspectualização da cadeia modal e um “estilo semiótico” característico
do fazer patêmico. A constituição determina, enfim, o teto de seqüência,
o ser do sujeito, a fim de que ele esteja apto para acolher a sensibilização;
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 221

essa etapa obriga a postular, no nível do discurso, uma determinação


do sujeito discursivo anterior a toda a competência e a toda disposição:
um determinismo – social, psicológico, hereditário, metafísico, seja lá
qual for – preside, então, à instauração do sujeito apaixonado (Greimas;
Fontanille, 1993: 155).

PROGRAMAS DE COMPORTAMENTO
E SUAS PRÁTICAS PASSIONAIS
O objeto de pesquisa deste trabalho é composto por dois programas tele-
visivos de comportamento: (1) Casos de família – exibido diariamente em rede
nacional pelo SBT, Sistema Brasileiro de Televisão, desde 2004. Trata-se de um
programa temático em que os participantes discutem assuntos íntimos, relacio-
nados ao tema familiar. Apresentado pela jornalista Regina Volpato, está no ar
há mais de quatro anos; (2) Programa Silvia Poppovic – versão exibida pela TV
Cultura, emissora pública de televisão, como os tradicionais programas apre-
sentados por Silvia Poppovic. Estreou em rede nacional, no início de 2005, com
exibição inédita e com reprises semanais. Os assuntos discutidos no programa
faziam parte do tema “qualidade de vida no mundo contemporâneo”. Saiu do ar
no final de 2006, um ano e meio após seu início.
Cada programa, à sua maneira, estabelece contratos passionais com seu
enunciatário, tendendo a uma maior ou menor sensibilização, que depende das
práticas adotadas. No primeiro programa, dois convidados expõem, em con-
frontação, um assunto relacionado ao tema da emissão. Após essa apresentação,
um especialista e a apresentadora fazem “julgamentos” direcionados especifica-
mente aos “casos” narrados. Em Silvia Poppovic, os convidados apenas relatam
suas histórias pessoais, comentadas por um especialista e pela apresentadora,
que não se limitam a discutir os fatos, mas tentam ampliar o enfoque.
Essas duas diferentes práticas de organização televisiva constituem diferen-
tes estratégias passionais, a partir das quais podemos perceber maior ou menor
envolvimento do telespectador com o enunciado. Vejamos como isso ocorre em
dois exemplos retirados dos programas.
222 | Dimas Alexandre Soldi

PRÁTICA PASSIONAL EM CASOS DE FAMÍLIA


Tema da edição do programa:
“Você tem que me apresentar para a sua família”1

A construção passional de um segredo: avanço à intensidade


Na narratividade, Cristiane é o actante sujeito que está em busca de um ob-
jeto-valor, a conjunção com a família do marido, José, seu anti-sujeito. Ela não
conhece a família dele e se queixa da disjunção que o marido insiste em manter.
No percurso do sujeito, o actante Cristiane, modalizado pelo destinador, que é
figurativizado pela apresentadora Regina Volpato, com o poder e o saber-fazer
(que garantem apenas sua participação no programa), cumpre a performance
de reclamar, num programa de entrevista, o que a impede de ter mais qualidade
de vida, para si e para seus filhos. Tal trama, do ponto de vista da narratividade,
esconde todos os desdobramentos passionais que implicarão no julgamento que
será proclamado no programa. No entanto os estados de alma devem ser inves-
tigados, na tentativa de compreender as motivações passionais que orientam as
ações dos sujeitos.
A apresentadora, ao chamar a convidada do programa, instaura o universo
passional que orientará a entrevista: “Agora a gente vai conhecer a Cristiane que
tem 29 anos e diz: ‘Cada hora o José inventa uma desculpa para não me apresentar
para a família dele, eu acho que ele tem vergonha de mim’”. Do ponto de vista do
julgamento, (1) o percurso do anti-sujeito é revestido pela condição de segredo,
representada no quadrado de veridicção, já que ele “inventa desculpas”, não diz
a verdade; (2) o actante é colocado na conjugação do ser com o não-parecer; (3)
essa condição levará a narrativa na direção de tentar desvendar esse segredo para,
a partir daí, realizar o julgamento. De imediato, aparece uma elucidação – “ele
tem vergonha de mim” – que, ao tentar revelar o segredo, constrói um simulacro
de verdade (veridicção) e figurativiza o anti-sujeito como ser preconceituoso. O
maniqueísmo já se evidencia: um sujeito sofre o preconceito do próprio marido,
o anti-sujeito. Nascem o herói e o vilão em uma narrativa dita “real” (ou não-
ficcional). As figuras e os temas que vão sendo incorporados ao enunciado vão
tornando significativos os efeitos passionais decorrentes das marcas discursivas.

1 Edição exibida em 26/06/2006. A análise desse item foi dividida em três partes para ficar em sintonia com o
formato do programa Casos de família, no qual os convidados são entrevistados um de cada vez até formar
uma dupla sobre o mesmo caso. Na primeira parte, é realizada uma análise da primeira entrevista com um
dos participantes da dupla, a Cristiane; na segunda, a análise centra-se na entrevista realizada com o segundo
membro da dupla, o marido de Cristiane, José; e por fim, na última parte, é realizada uma avaliação do “jul-
gamento”, que compõe o fim do programa. As constantes citações das entrevistas e do “julgamento” final do
segmento, introduzidas nas análises, dispensam a apresentação em anexo da transcrição de todo o material.
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 223

Cristiane, revestida de traços semânticos que modulam a especificidade de


suas linguagens, revela-se como um ator marcado pelo estereótipo do oprimido,
ser desprovido do poder e do saber, configurando a fase da disposição do es-
quema canônico, que oferece as condições necessárias para que a sensibilização
entre em ação. As diferentes linguagens que a compõem corroboram com esse
estereótipo: (1) as figuras do conteúdo e da expressão do significante visual,
tais como, a cor negra de sua pele e a ausência de elementos na vestimenta que
concederiam à personagem requinte e sofisticação (brincos, colares, cabelos lu-
xuosos etc.); (2) a gestualidade, que mostra uma mulher envergonhada, sem
grande expressividade ao falar, com gestos comedidos; (3) a articulação verbal,
que mostra dificuldade em formular e concluir frases, dificuldade em responder
às perguntas da apresentadora, falta de fluência na fala; (4) a linguagem ver-
bal oralizada, excessivamente coloquial e em desacordo com uma norma culta
(“nóis”, “aí ele pegou”, “minhas prima”, etc.). Tudo isso marca o não-poder e o
não-saber que orientam a passionalidade do sujeito.
Posteriormente, é na sensibilização que o efeito de sentido passional come-
ça a ganhar forma. A disposição por si só não é capaz de produzir esse efeito, a
sensibilização deve agir para produzir o componente afetivo; é a transformação
do ser propriamente dito que produz efeitos passionais em seu percurso sintáxi-
co. Trata-se da primeira fase enunciativa da colocação em discurso das paixões.
“Verticalmente, de alguma forma, ela constrói as taxonomias culturais que fil-
tram os dispositivos modais para manifestá-las como paixões no discurso; hori-
zontalmente, ela se coloca na sintaxe discursiva da paixão, como processo total”
(Greimas; Fontanille, 1993: 143). Em relação ao nosso objeto, tudo se inicia pela
falta, aquela de origem proppiana reconhecida em Greimas pela imperfeição
(2002): Cristiane, por “sete anos”, espera conhecer a família do marido. O sen-
timento de espera, de retardamento, subvalência do andamento, modifica o ser
do sujeito, fazendo-o querer com mais intensidade e, principalmente, reforça no
discurso o efeito de opressão. Assim, tal como Zilberberg (2006) afirma, o sen-
sível controla o inteligível, a subdimensão do andamento, da intensidade, regula
a subdimensão da temporalidade, da extensidade: Cristiane reforça seu estatuto
de sujeito (em oposição ao do anti-sujeito) pela opressão (anos em disjunção
com a família do marido) que a caracteriza, colocando o marido na condição de
anti-sujeito, de opressor.
Entretanto, na tentativa de desvendar esse retardamento e mostrar porque
a conjunção não se efetiva, é que o discurso se modifica e aumenta sua passio-
nalidade. É quando surge a emoção propriamente dita. Segundo Bertrand, “à
224 | Dimas Alexandre Soldi

‘emoção’ corresponde a crise passional que prolonga e atualiza a sensibilização;


é o momento da patemização propriamente dita que manifesta, por exemplo, o
discurso passional” (2003: 374). Ela pode ser sentida nas palavras de Cristiane:
“eu fiquei pensando que ele tem vergonha de mim, por causa da minha cor...”. Há
um sujeito que sofre pelo preconceito do próprio marido. Ocorre uma gradação
disfórica: o marido de Cristiane tem vergonha dela, tem preconceito e a humi-
lha: “É porque sempre fala que as prima dele são tudo loira, alta, tanto que a
irmã dele é assim branca que nem ele, o sobrinho também né...aí eu fiquei pen-
sando, só pode ser isso, né! Talvez ele tem vergonha de chegar e apresentar pra
família dele (...) É... preconceito assim pela cor, pela nossa classe social também,
porque ele fala que um tio dele tem mercado, o outro tem açougue, tem uma
condição financeira boa, entendeu? E nóis não, nóis mora numa invasão, assim
ele trabalha, faz bico, ele se vira de tudo jeito, mas não chega a uma condição
assim...a gente já teve carro, tudo pra ir lá, ele não...”.
Pronto! Enfim foi construída a imagem de Cristiane, tal como Cinderela,
pobre e humilhada2, o que configura a injustiça que marca sua trajetória. É im-
portante salientar a importância que isso significa: parece que somos impelidos,
talvez em decorrência dos interdiscursos judaico-cristãos que orientam o nosso
pensamento ocidental, a acreditar que o sujeito (ou o protagonista de qualquer
narrativa de ficção ou de “realidade”) deve ser sempre, ou pelo menos na gran-
de maioria das vezes, um sujeito humilhado, um sujeito injustiçado, carente de
poder e de saber. Solidarizamo-nos com esse tipo de situação e, em oposição,
construímos a imagem do anti-sujeito, aquele que é emancipado, que detêm o
saber e o poder e faz-fazer.
A subdimensão espacial também é decisiva para reforçar a injustiça que
sofre Cristiane. Na indignação marcada pela intensidade (tonificação) da voz da
apresentadora ao se referir à curta distância que separa o sujeito de seu objeto:
Todos moram “aqui em São Paulo?!”.
Na realidade, todos os efeitos passionais desse enunciado se desenvolvem
a partir do percurso do sujeito passional Cristiane, vítima da humilhação im-
posta pelo marido (pelo menos até a primeira parte do texto), que rompe com
o esperado e instaura o inesperado (Greimas, 2002). No termo de Zilberberg, o
acontecimento (2007) rompe com a continuidade e intensifica o discurso:

De acordo com o Micro-Robert, o acontecimento se define como “aquilo


que acontece e tem importância para o homem”. A primeira indicação é

2 J. Courtés (1979) analisa algumas versões da história de Cinderela que em muito se relacionam com a história
de Cristiane.
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 225

mais legível que a segunda, por ser da ordem do sobrevir, da subtaneida-


de, ou seja, do andamento mais rápido que o homem possa experimen-
tar. A segunda indicação, “e tem importância para o homem”, refere-se
à tonicidade, na medida em que esta é a modalidade humana por exce-
lência, estabelecendo o próprio estado do sujeito de estado (Zilberberg,
2006: 181).

O esperado é o marido admirar a mulher, quando o inverso ocorre, princi-


palmente se reforçado pelo lexema “vergonha”, há uma intensificação do discurso
gerada pelo inesperado, pela subtaneidade, pelo acontecimento: pela quebra de
protocolo. Isso ocorre pelo modo de junção concessivo. Nas palavras de Diniz:

Zilberberg define como modos de junção a implicação e a concessão. O


modo implicativo é aquele conhecido como o da “causalidade legal”, “o
direito e o fato estão em concordância um com o outro”: “se a, então b”. O
modo concessivo é, segundo os gramáticos, aquele da “causalidade ino-
perante”: “mesmo que a, no entanto não b”. Geralmente, a intensificação
concessiva, por seu andamento vivo e elevado, é mais intensa que a pri-
meira; por isso mesmo é que a concessão é tão preciosa (Diniz, 2007: 7).

A concessão, na maioria das vezes, realiza-se pelo uso de um conectivo con-


cessivo, como, por exemplo, “apesar de”. Embora no texto não tenhamos esse
conectivo expresso lexical e culturalmente, devido às circunstâncias presentes
em toda a extensão do enunciado, a concessão se realiza com igual “preciosi-
dade”. Podemos entender o enunciado da seguinte maneira: “apesar de ele ser o
marido dela, apesar de viverem juntos por sete anos, ele tem vergonha dela, ele
a humilha, ele não lhe apresenta a sua família”. Assim, por todas as linguagens
(verbal, visual e sonora) que envolvem Cristiane, houve um constante aumento
da intensidade discursiva, responsável pela passionalidade. A presença do se-
gredo e a sua suposta revelação (vergonha), marcada pela concessão, foram res-
ponsáveis, principalmente, pelo sentido patêmico presente no enunciado. Isso
ocorre, evidentemente, pela construção de uma paixão intersubjetiva que liga
sujeito e anti-sujeito. A humilhação imposta por José à Cristiane, ancorada pelas
marcas discursivas já assinaladas, caracteriza o grande impacto passional e re-
vela a paixão. O não-saber, o não-poder e o não-ser que representam Cristiane
estão em oposição ao poder, ao saber e ao ser que representam José. O diagrama
seguinte mostra o avanço da intensidade durante a primeira entrevista:
226 | Dimas Alexandre Soldi

Onde:
(1) a relação é do tipo conversa: quanto mais, mais...;
(2) o efeito orientado pelo modo de junção concessivo intensifica-se pela
extensidade;
(3) a vergonha relaciona-se apenas à cor e à classe social de Cristiane; a humi-
lhação, à cor, à classe social, ao tempo e ao espaço;
(4) a humilhação é acionada em função do tempo e do espaço. Num primeiro
momento, José tem vergonha de Cristiane pela cor e pela classe social; a humi-
lhação só se inicia, de fato, a partir do momento em que o tempo da disjunção
torna-se longo (“sete anos”) e o espaço curto (“aqui em São Paulo!”).

Para concluir, uma oposição semântica delineia-se na arquitetura do sentido,


responsável pelo efeito de /injustiça/ que marca o sujeito oprimido Cristiane:
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 227

A revelação do segredo: retorno à extensidade


No entanto, durante a segunda entrevista, quando a apresentadora chama
José, marido e anti-sujeito de Cristiane, para ser entrevistado... “Então vamos
conhecer o José que tem 31 anos e diz ‘eu não tenho muito contato com os meus
familiares, eles só me procuram quando precisam de alguma coisa’. José, por
favor, entre”, percebemos uma atenuação da intensidade e um retorno a extensi-
dade, de modo que o efeito de sentido passional diminui. No texto que introduz
José, o sentimento de vergonha que orientou toda a primeira entrevista, deixa
de ter sentido, pois nem é mesmo citado. O modo de junção concessivo, que nos
sensibilizou na primeira parte, não existe mais. O segredo começa a ser revelado
e toma outro rumo. É a quebra isotópica entre uma entrevista e outra que vai
garantir o retorno à extensidade.
Num primeiro momento, José diz que não leva Cristiane para conhecer
seus familiares por falta de tempo: uma tentativa frustrada de revelação, pois
“faz sete anos” que estão juntos, que é reforçada pela sonoridade, pois a falta
de fluência na fala maquia o efeito de verdade. O segredo só começa a ser re-
velado após outra pergunta da apresentadora. Nas palavras dela: “E é falta de
vontade também sua de visitar a sua família, porque tem família que não se
dá bem, não tem aquela história de família que fica bem no porta-retrato e tal,
tem gente que não gosta de visitar a família, que não se dá bem, que se sente
diferente da família?”.
A partir das declarações de José uma nova passionalidade intensiva vai to-
mando forma. São os atritos com a família, no passado, que impedem a con-
junção tão almejada por Cristiane; não é mais a suposta vergonha (concessiva)
que definiu a intensidade passional num primeiro momento, mas a rejeição e o
conseqüente desejo de vingança que modalizam o anti-sujeito. José é rejeitado
pela família (“...eles chegaram e nem abriram o portão, foram no portão aí.../ O
que que eu refleti: eles não me receberam...”) e deseja vingar-se (“eu tô tentando
ou eu tô pensando ao menos retribuir o mínimo que eles fizeram por mim”).
Vale lembrar que José tenta em vão construir uma boa imagem de si mesmo,
substituindo o termo “vingança” por “retribuição”. Mas o seu discurso, por mais
que pretenda ser envolvente e persuasivo, não convence nem mesmo a si pró-
prio, surgindo assim contradições e ambigüidades.
Ocorre um declínio da intensidade pela quebra isotópica marcada pelo fim
da junção concessiva, tematizada pela “vergonha”, com o retorno à extensidade.
Posteriormente, inicia-se a tentativa de retorno à intensidade, na qual os sen-
timentos de rejeição e de vingança se destacam. Podemos pensar no seguinte
228 | Dimas Alexandre Soldi

diagrama que marca a variação patêmica durante as duas entrevistas:

O número (1), no alto da primeira curva, indica o momento de maior pas-


sionalidade durante a primeira entrevista, em que aparece a concessão marcada
pela vergonha, pela humilhação (tempo e espaço), é o pico da intensidade, é a
“emoção” que segue até o final da entrevista de Cristiane. O número (2), alta
intensidade ainda, é o momento em que José participa do programa, quando
o segredo começa a ser revelado por José, configurando a tensão presente. No
entanto, a partir da fala de José, ocorre uma diminuição da intensidade pelo fim
da concessão, chegando até o número (3), próximo da extensidade. A partir dis-
so, uma nova intensidade começa a ser estabelecida depois da quebra isotópica,
quando José fala da “rejeição” da família e de suposta “vingança”, intensidade
que segue até o final da entrevista.
Evidentemente, é impossível estabelecer com exatidão as ondulações desse
diagrama, ele apenas tenta representar os aspectos mais relevantes, porém sem
rigor matemático. Entretanto é possível perceber pela análise representada no
diagrama, que a segunda curva é menos intensa que a primeira, isso porque as
paixões que orientam José (rejeição – vingança) não são marcadas pela conces-
são, tendendo sempre à extensidade.

O julgamento
Por fim, após ouvirem os envolvidos, Cristiane e José, chega o momento da
“sentença”, do julgamento, da moralização, última etapa do esquema canônico do
sujeito passional. Ela ocorre quando um observador social encarrega-se de interpre-
tar o percurso passional realizado por um sujeito, pressupondo e ao mesmo tempo
mascarando a sensibilização, que foi responsável pela patemização do discurso. Nas
palavras de Fontanille e Greimas, o julgamento se realiza da seguinte forma:
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 229

O avaliador estabelece seu julgamento a partir de considerações veredictó-


rias (o falso para a vaidade, mas também a mesquinhez, o segredo para a
hipocrisia), epistêmicas (para a suficiência ou a presunção), aspectuais (o
excesso) etc. Mas qualquer que seja a categoria modal em nome da qual o
julgamento é enunciado, o motivo que parece suscitar o próprio julgamento
é sempre da ordem do “demais” ou do “pouco demais” (1993: 150-151).

Em Casos de família, quem sentencia é o destinador-julgador, figurativizado


pela apresentadora, pela platéia (“conhecimento popular” - fé) e pelo especialis-
ta (“conhecimento científico” - razão). O julgamento aparece na tentativa de: (1)
interpretar a fala dos dois entrevistados; (2) identificar qual posição deve ocu-
par o discurso de cada entrevistado no quadrado de veridicção,; (3) finalmente,
moralizar, ou seja, atribuir um juízo de valor após a interpretação, levando em
conta a aspectualização das modalizações.
Pela interpretação, durante a primeira entrevista, podemos perceber que
Cristiane construiu uma verdade (ser + parecer) inicial opondo-a ao segredo
(ser + não-parecer) que representava o marido. A verdade era a humilhação
imposta a ela; o segredo referia-se a todos os desdobramentos passionais que
marcariam a trajetória do marido, descobertos apenas na segunda parte. Com
o início da segunda entrevista, o discurso de Cristiane foi colocado em xeque,
ocupando a posição de falsidade (não-ser + não-parecer); por fim, o discurso de
José, após denunciar a rejeição de sua família e o seu sentimento de vingança,
deixa de ocupar a posição de segredo e ocupa a posição de verdade.
Na fase da moralização propriamente dita, momento de atribuir um juízo de
valor aos dois convidados, o julgamento das paixões em jogo e principalmente as
suas aspectualizações são compreendidas com precisão. Nas falas da especialista,
Anahy D´amico, (1) Cristiane é julgada pelo “erro” cometido (“É incrível como
mulher tem esse movimento de puxar pra si o que ta errado (...) e isso é um erro
né!”); (2) Cristiane tem um querer intenso demais (“então quando a gente fica
forçando a barra, a gente acaba encurralando o outro numa situação que ele não
tá preparado”; “começam a pressionar para serem apresentadas”); (3) a paixão de
Cristiane deve ser menos intensa (“não adianta ficar pressionando, essas coisas
acontecem na hora que tem que acontecer”). Finalmente, a apresentadora Regina
Volpato expõe ao longo de seu arremate, reforçando o que a especialista já disse,
a intensidade da paixão de Cristiane que deve ser amenizada, deve tender à ex-
tensidade (“apresentar pra família pode acontecer ou não, mas tem o seu devido
tempo, naturalmente”; “não adianta pressionar, calma, forçar a barra não resolve
nada, aí sim pode prejudicar a vida do casal”).
230 | Dimas Alexandre Soldi

PRÁTICA PASSIONAL NO PROGRAMA SILVIA POPPOVIC


Tema da edição do programa:
“A difícil tarefa de encontrar a alma gêmea”3

Greimas e Fontanille apontam, em Semiótica das paixões (1993), a sutil dife-


rença entre papel temático e papel patêmico, cuja problemática surge do fato que,
em ambos, o ator é investido de segmentos de papéis sensibilizados e moraliza-
dos, o que dificulta a distinção. Essa elucidação teórica será imprescindível para
que se compreenda a diferença pontual entre os dois programas em questão.
Podemos dizer de imediato que os sujeitos-entrevistados do programa Casos de
família cumprem papel patêmico, enquanto que os do Programa Silvia Poppovic
estão revestidos por papel temático. Essa diferença sutil, mas tão significativa,
faz com que no primeiro exemplo os sujeitos “sintam”, vivenciem as paixões
recorrentes e, no segundo, os sujeitos apenas as “relatem”, descrevam.
A aspectualização de uma paixão define o modo de ser de um sujeito. O
papel patêmico afeta o ator em sua totalidade e é permanente, o papel temá-
tico é iterativo. Um ator patêmico deve apresentar, através de todas as marcas
discursivas, elementos que o constituirão como tal, modos de falar, modos de
agir, detalhes em sua expressão, enfim, o seu ser e o seu parecer devem cons-
tituir-se única e permanentemente de manifestações da paixão. Cristiane, por
exemplo, a nossa protagonista de Casos de família, como foi dito, apresenta to-
das as características de um ator oprimido, de modo que a humilhação sofrida
constitui parte de seu próprio ser. Cristiane sente e sofre. As emoções emanam
e contaminam todo o seu percurso, patêmico por excelência. Por outro lado, o
ator que cumpre um papel temático não precisa constituir-se unicamente de ele-
mentos que dizem respeito a uma determinada configuração passional. Para os
semioticistas franceses, “a manifestação do papel temático obedece estritamente
à disseminação do tema no discurso, enquanto a do papel patêmico obedece à
lógica dos simulacros passionais, a uma disseminação imaginária independente
do tema” (Fontanille; Greimas, 1993: 161).
Na edição do programa tematizado “A difícil tarefa de encontrar a alma
gêmea”, Rosangela vai ao Programa Silvia Poppovic para, como todos os sujei-
tos participantes, servir como exemplo ao tema. Sua história pessoal de vida é
relatada para exemplificar o assunto do dia: após anos de casamento, Rosangela
descobre que foi traída pelo marido que, de “príncipe”, como fora considerado,
transformou-se em “sapo”.

3 Edição exibida em 13/07/2006.


Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 231

Há, em seu relato, a formação de uma junção concessiva principalmente


ligada à temporalidade. Algumas frases indicam o estado inicial do sujeito: “Ele
[o marido] era o meu príncipe, realmente eu jamais esperava qualquer coisa
desse tipo”, “ele poderia estar aqui no nosso programa, se não tivesse aconteci-
do do jeito que aconteceu, [eu dizendo] ‘como fui feliz’, ‘como eu achei o meu
príncipe’”. Entretanto, não foi isso o que aconteceu. Embora tivessem um re-
lacionamento duradouro, depois de passados 15 anos juntos, ela foi traída. O
tempo cumpre fator determinante para conceder uma maior passionalidade ao
percurso do sujeito. “Apesar de” terem ficado juntos por um longo tempo, te-
rem tido um relacionamento duradouro, aconteceu uma traição, de modo que
a decepção torna-se ainda mais sentida. Em outras palavras, quanto mais longo
é o tempo (extensidade), maior será a intensidade configurada pela decepção
de ser traída.
No entanto, esse percurso passional não se completa em sua plenitude, jus-
tamente porque Rosangela não cumpre papel patêmico, apenas temático. Vamos
explicar: outros papéis adquirem mais representatividade durante a entrevista
do sujeito do que o próprio papel de sujeito traído (decepcionado). Rosangela
cumpre papel temático de mulher bem sucedida profissionalmente (“é tradutora
e professora de inglês”), de mulher sensual (cabelos bem cuidados, roupa exi-
bindo o colo, maquiagem marcante) e, juntamente com os outros, de superação
(muito sorridente, demonstrando descontração). Desse modo, a paixão advinda
pela frustração de um relacionamento (um não-poder-ser) não se concretiza,
ou fica num tempo já passado. O presente, que deve acentuar a aspectualização
permanente de uma paixão, demonstra o oposto de uma mulher traída. Desse
modo, poderíamos descrever o seguinte diagrama passional:
232 | Dimas Alexandre Soldi

Em que:
(1) indica o momento inicial, quando a apresentadora anuncia Rosangela,
apontando uma passionalidade marcada pela “decepção” de um amor mal-re-
solvido: “Longe das capas de revistas e da televisão, os casais levam, às vezes,
muito tempo pra reconhecer que o conto de fadas acabou, em primeiro lugar. E,
às vezes, quando descobrem que acabou, eles não podem acreditar que acabou
porque aquela pessoa se fazia passar por alguém que ela não era...”;

(2) é o momento em que a entrevistada começa a falar e acentua uma ambi-


güidade: como uma mulher traída, decepcionada, pode parecer diferente dessa
configuração passional? Há um “ser” conjugado com um “não-parecer”, o que
configura um “segredo”;

(3) há o decorrer da entrevista, até uma estabilização da curva, em que o


“segredo” é revelado substituindo a configuração passional da “decepção” pela
da “superação”. As isotopias figurativas constroem o sujeito como desprovido
de um “não-poder-ser” (decorrente da frustração), ao mesmo tempo em que
o tema da superação torna-se evidente. Isso deixa claro que o sujeito não se
tornou um sujeito patêmico, é apenas um sujeito que cumpre o papel temático
de mulher traída.

Ocorre, na realidade, uma frustração do telespectador em relação ao texto


inicial. Rosangela, de início, representa o estereótipo da mulher traída, decep-
cionada, que em muitos casos desenvolve um querer vingar-se, no entanto, a
caracterização do sujeito é constituída tendo em vista a superação e o não desejo
de vingança. Desse modo, parece haver um engodo, uma quebra isotópica, a
promessa de um relato que, aos poucos, vai se tornando falsa. Assim, a passio-
nalidade discursiva (como mostra o diagrama) tende a ser menos intensa.

EFEITOS TEMÁTICOS E PATÊMICOS


Apesar da aparente similitude, cada programa traz diferentes questões semió-
ticas, que podem ser constatadas a partir da organização dos diferentes elementos
presentes em programas de comportamento. Após a observação dos efeitos temáti-
cos e patêmicos dos dois programas, é possível inseri-los em dois grupos distintos,
de acordo com as diferentes estratégias adotadas, como mostra a tabela ao lado:
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 233

Práticas patêmicas e temáticas


Programa Silvia Poppovic Casos de família

Actantes cumprem papel temático e


Actante cumpre papel temático
patêmico

Tempo passado (então) Tempo concomitante (agora)

Entrevista longa
Entrevista curta (poucos detalhes)
(são relatados detalhes variados)

Pontos de vista semelhantes no conteúdo e Pontos de vista opostos no conteúdo e


heterogêneos nos tipos de participantes heterogêneos nos tipos de participantes

O sujeito (convidado) no Programa Silvia Poppovic apenas relata suas expe-


riências passadas, que se situam no tempo do então, como os verbos no preté-
rito indicam: Rosangela foi traída pelo ex-marido. Assim, o que percebemos na
narrativa analisada é que o sujeito não se encontra mais na situação disfórica do
tempo do relato, isso porque o problema (a disforia) foi, ao menos, amenizado:
Rosangela aparenta ter superado a traição no casamento.
O tempo passado retira de uma configuração passional a aspectualização
de “algo que não acaba nunca” (interminável), transformando o percurso do
sujeito em papel temático, não patêmico. Desse modo, não há um “sentir” das
paixões que poderia contagiar todo o discurso do sujeito, não há um mergulho
em direção ao estado de alma desse participante, há apenas o “relatar” de expe-
riências (passionais) passadas.
Além disso, a entrevista realizada é curta em relação ao tempo de duração,
o que dificulta um aprofundamento no estado do sujeito pelos poucos detalhes
narrados. Como o especialista e a apresentadora podem emitir opiniões (co-
mentários) a qualquer momento, o relato do entrevistado acaba se misturando
com as demais vozes e sempre ocorre, a partir disso, um deslocamento da aten-
ção. A discussão deixa de ser centrada no entrevistado e em sua experiência
pessoal para generalizar-se, fato ligado evidentemente ao próprio formato do
programa, que procura não discutir um caso específico, mas sempre abordar o
assunto de modo abrangente (extensão), buscando atender a um público hete-
rogêneo que eventualmente esteja passando pela mesma situação.
Soma-se a isso a ausência de pontos de vista opostos, embora haja pontos de
vista heterogêneos. Um mesmo assunto é discutido a partir apenas de opiniões
234 | Dimas Alexandre Soldi

convergentes, que se complementam: Silvia Poppovic, a especialista e seus convi-


dados têm as mesmas opiniões sobre o tema, e embora cada um aponte um aspec-
to diferente, todos compõem juntos um único sujeito narrativo, o que impede, de
forma definitiva, a consolidação de sujeitos patêmicos.
O programa Casos de família apresenta idéias opostas, pontos de vista con-
traditórios, que põem em evidência a distinção entre sujeito e anti-sujeito. Uti-
lizando a “moral ingênua” da narrativa canônica dos contos de fadas, com seu
maniqueísmo, ou seja, personagens que ocupam posições ideológicas, morais,
éticas, uns para o bem, outros para o mal, esse programa mistura tais posições,
ao entrevistar primeiro um, depois o outro envolvido na trama. Isso faz com que
o assunto (tema da edição) seja tratado, no mínimo, por dois ângulos ou posi-
cionamentos diferentes, ouvindo cada parte de uma vez e, posteriormente, ou-
vindo pessoas da platéia e especialistas. Mesmo que aparentemente a platéia e os
telespectadores pareçam divididos, o julgamento dos especialistas e da própria
apresentadora é sempre conciliatório: posição prudente e de acordo com a ex-
pectativa de um produto de comunicação de massa. Tal procedimento demons-
tra uma aparente pluralidade de opiniões, de idéias, de sentidos, de atitudes,
de comportamentos. E, assim, a estratégia produz um discurso dinâmico, pois
incita ao diálogo, à confrontação e, em última instância, à própria construção da
“verdade”, ou do “senso comum”.
Assim, Casos de família permite que o discurso torne-se mais passional: as
entrevistas são mais longas, são apresentados mais detalhes dos casos, contribuin-
do para uma maior figurativização e tematização dos assuntos propostos. Tais
estratégias discursivas passionais estão nos papéis patêmicos assumidos pelos su-
jeitos, que não apenas relatam suas histórias e facetas de vida, mas as vivenciam no
palco. Prova disso, é o tempo verbal no presente: Cristiane acredita que o marido,
José, sente vergonha de sua cor e de sua condição social e que, por isso, não lhe
apresenta a sua família. José tem problemas mal-resolvidos com sua família e por
isso não tem contato com ela. São sujeitos patêmicos que, aqui e agora, sentem,
sofrem, contagiam o discurso e o tornam intensamente passional.
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento | 235

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2001.
BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Trad. Grupo CASA.
Bauru, SP: EDUSC, 2003.
COURTÉS, Joseph. Uma leitura semiótica de “Cinderela”. In: COURTÉS, Joseph.
Introdução à semiótica narrativa e discursiva. Coimbra: Livraria Almedina, 1979.
DINIZ, M. L. V. P. O telejornal como experiência hiperbólica: uma questão de
tensividade. Anais do XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação
- Intercom, Santos, 2007. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/
nacionais/2007/resumos/R0930-1.pdf>. Acesso em: 30 de setembro de 2008.
FONTANILLE, Jacques; ZILBERBERG, Claude. Tensão e significação. Trad.
Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Discurso Editorial:
Humanitas/FFLCH/USP, 2001.
GREIMAS, Algirdas Julien. Da imperfeição. Trad. Ana Claudia de Oliveira. São
Paulo: Hacker, 2002.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. Trad.
Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Cultrix, 1983.
GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Semiótica. Diccionário
razonado de la teoria del lenguaje – Tomo II. Trad. Enrique Ballón Aguirre.
Madrid: Editorial Gredos, 1991.
GREIMAS, Algirdas Julien; FONTANILLE, Jacques. Semiótica das paixões: dos
estados de coisas aos estados de alma. Trad. Maria José Rodrigues Coracini. São
Paulo: Ática, 1993.
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Trad. Jasna Paravich Sarhan.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984.
ZILBERBERG, Claude. Louvando o acontecimento. Trad. Maria Lúcia Vissotto
Paiva Diniz. Galáxia, Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação
e Semiótica da PUC, N0 13, São Paulo: EDUC, 2007.
ZILBERBERG, Claude. Síntese da gramática tensiva. Trad. Luiz Tatit e Ivã
Carlos Lopes. Significação – Revista Brasileira de Semiótica. N. 25. São Paulo:
Annablume, 2006. p. 163-204.
Parte V

NOVAS MÍDIAS
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 239

INTERNET, YOUTUBE E SEMIÓTICA


Novas práticas do usuário/produtor

Tânia Ferrarin Olivatti

INTRODUÇÃO
Alcance, acessibilidade, circulação ilimitada de mensagens, descentraliza-
ção da produção. Esses termos com freqüência aparecem nos estudos sobre a
internet e, sem dúvida, ajudam a caracterizá-la. Mas indo além das análises so-
bre essa semiótica-objeto como mídia, é preciso olhar para seu conteúdo e seus
usuários, refletir sobre as formas de significação inauguradas (ou reinaugura-
das) a partir da rede.
Nessa perspectiva, o que as inúmeras pesquisas sobre a mídia digital bus-
cam compreender não deve ser somente seu caráter contemporâneo, seus re-
cursos, ferramentas e a forma como a informação é arquitetada no ambiente
virtual. O fazer do analista deve incidir (este nem todos tenham plena consciên-
cia disso) sobre o desvelamento daquilo que a semiótica francesa de vanguarda
tem chamado de “práticas semióticas”, bem como sobre os “contratos” firmados
nesse novo ambiente.
Este trabalho apresenta hipóteses relacionadas aos vídeos veiculados no site
de compartilhamento de vídeos YouTube1. Uma pesquisa paralela ainda em an-

1 YouTube. Disponível em: <http://www.youtube.com>. Acesso em: 22 de agosto de 2008.


240 | Tânia Ferrarin Olivatti

damento apresenta um corpus já delimitado e analisa a produção de sentido em


cinco vídeos do YouTube de produção independente cujo tema é a “mídia”. Ao
final dessa pesquisa, acredita-se que as inferências apresentadas neste ensaio
possam ser comprovadas, refutadas ou reelaboradas de acordo com os resulta-
dos encontrados.
Enquanto isso, apresentam-se reflexões prévias sobre as práticas semióti-
cas on-line e seu sujeito (geralmente intitulado internauta), que será aqui cha-
mado de usuário/produtor. Ele é a “figura” desse novo comunicador, que não é
somente alguém que está em rede (como no caso da primeira denominação),
nem muito menos um simples receptor de mensagens. Além de enviar e-mails,
participar de comunidades, acessar banco de dados, esse usuário pode também
produzir imagens, sendo este o objeto que aqui se pretende compreender me-
lhor: os vídeos veiculados no YouTube. Assim, esperamos entender como essas
novas práticas de interação on-line constituem as formas de vida e a cultura
desses comunicadores.

O VIÉS COMUNICACIONAL
Ainda que apenas cerca de 40 milhões de pessoas no Brasil tenham acesso à
internet2, é preciso considerar as mudanças que o ciberespaço tem provocado nos
conceitos até então conhecidos sobre os fenômenos comunicacionais, “transfor-
mando nossa ‘cultura material’ pelos mecanismos de um novo paradigma tecno-
lógico que se organiza em torno da tecnologia da informação” (Castells, 1999: 67).
A dimensão desses fenômenos é claramente demonstrada por Vilches:

Meio século depois da criação da televisão, primeira tentativa de fazer a


imagem do mundo ascender aos céus, veio a Internet, o primeiro projeto
humano em forma de rede que trata de reunir todas as expressões huma-
nas, numa única arquitetura comunicativa. A globalização do mercado e
da sociedade da informação, a concentração econômica e a conseqüente
indistinção dos meios, por um lado, e, por outro, o sincretismo de pro-
gramas, gêneros e formatos fazem da televisão e de sua associação com a
Internet uma nova Babel (Vilches, 2003: 96).

2 Os números equivalem a 22,5% da população e são referentes ao acesso em qualquer ambiente, como casa,
trabalho, escola, cybercafés e bibliotecas. O dado foi divulgado em 27 de junho pelo Ibope/NetRatings, e
refere-se ao primeiro trimestre deste ano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/informati-
ca/ult124u416776.shtml>. Acesso em: 26 de agosto de 2008. Pesquisa não tão recente, publicada em 2005
pelo IBGE em parceria com o Comitê Gestor da Internet (CGI), aponta que 21% da população brasileira
tem acesso à Internet. Disponível em: <http://www.ibge.com.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.
php?id_noticia=846&id_pagina=1>. Acesso em: 26 de agosto de 2008.
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 241

Os motivos para a formação dessa “nova Babel” são muitos. Um deles é


a produção de sentido ilimitada que se efetiva nessa nova mídia, um amál-
gama entre o que o usuário produz e o processo (temporal/cultural) em que
está inserido. Além disso, a rede possibilita a circulação de mensagens “in-
dependente de territórios geográficos, de tempo, das diferenças culturais e
de interesses, sejam eles econômicos, culturais ou políticos, globais, nacio-
nais ou locais” (Peruzzo, 2005: 268). Para Lemos, essa possibilidade ocorre
pela nova dinâmica técnico-social da cibercultura, que instaura uma estru-
tura midiática ímpar na história da humanidade, visto que pela primeira
vez qualquer indivíduo pode, em princípio, emitir e receber informações
(sejam elas escritas, imagéticas ou sonoras) em tempo real, para qualquer
lugar do planeta (Lemos, 2003: 14).
Também são características fundamentais do ciberespaço a abolição da
fronteira entre autor e leitor (espectador, usuário), bem como o descentra-
mento das escrituras lingüística e audiovisual (Vilches, 2003: 152). Assim, tor-
na-se possível alterar o sistema convencional dos processos de informação, até
então concentrados nos profissionais das empresas de comunicação. Como
afirma Peruzzo (2005: 268), a internet viabiliza a “produção de conteúdos
endógenos e sua transmissão, sem fronteiras, pelos próprios agentes sociais”.
Segundo a autora, uma das principais diferenças em relação às outras mídias é
a desestruturação das emissões por um só pólo, pois agora passam a ser feitas
por muitos emissores:

O que caracteriza a atual revolução tecnológica não é a centralidade de


conhecimentos e informação, mas a aplicação desses conhecimentos e
dessa informação para a geração de conhecimentos e de dispositivos de
processamento/comunicação da informação, em um ciclo de realimen-
tação cumulativo entre a inovação e seu uso.
Conseqüentemente, a difusão da tecnologia amplia seu poder de
forma infinita, à medida que os usuários apropriam-se dela e a re-
definem. As novas tecnologias da informação não são simplesmente
ferramentas a serem aplicadas, mas processos a serem desenvolvidos
(Castells, 1999: 69).

Nesse contexto de “descentralização das emissões” e de “processos a serem


desenvolvidos”, o YouTube foi lançado em fevereiro de 2005. O site tornou-se,
em pouco tempo, o maior serviço de compartilhamento de vídeos na rede. Pau-
tando-se pelo seu sucesso, o grupo Google tentou superar o fenômeno e lançou
em janeiro de 2006 um serviço similar. Sem conseguir vencer a concorrência,
242 | Tânia Ferrarin Olivatti

comprou o YouTube em outubro do mesmo ano por US$ 1,65 bilhão. A transa-
ção comercial mostra, além de um bom negócio para seus criadores, o interesse
e o impacto que a imagem causa na sociedade atual:

A migração digital supõe também um desenvolvimento das tecnologias


do conhecimento. Entre essas, as tecnologias da imagem desempenham
uma função essencial para a formação da percepção e da compreensão
da realidade.
O desenvolvimento das tecnologias digitais da imagem permitirá uma
percepção diferente das relações com os objetos, o tempo e o espaço. As
tecnologias não lineares e os hipertextos permitirão o desenvolvimento
da narrativa digital, facilitando uma maior progressão da atividade cogni-
tiva enquanto se acompanham os argumentos da ficção e das histórias.
Mesmo assim, a interatividade nos formatos narrativos digitais po-
deria permitir um aumento da criatividade na construção de his-
tórias e na capacidade para desconstruir textos fechados de ficções
tradicionais. Para isso será necessário acesso às bases de imagens
(Vilches, 2003: 172).

Publicada em 2003, A Migração digital, de Lorenzo Vilches, já anunciava a for-


mação do que ocorreria pouco tempo depois com a criação do YouTube. Além da
produção exponencial de vídeos para o site, os usuários podem acessar imagens
alheias (o que rendeu inclusive algumas batalhas na justiça por direitos autorais),
divulgando-as em seu estado original ou mesclando-as para formar novos conteú-
dos. No vídeo de usuário Midiatrix3, por exemplo, seu autor utilizou cenas do filme
Matrix, modificou diálogos, trilhas e inseriu imagens do símbolo da emissora Globo.
Isso tudo para criticar uma suposta manipulação da mídia em geral sobre a popula-
ção brasileira. Nesse caso, é possível observar claramente a interação entre a imagem
e a escrita para a produção de sentido do vídeo, mostrando como a imagem é capaz
de ancorar o discurso. Indo além, a imagem busca concretizar valores da oralidade e
escrita – provenientes do produtor – no espírito do receptor (Diniz, 2002).
É preciso notar que essa produção de sentido operada nos vídeos, verdadei-
ra bricolagem, está inserida num contexto praticamente inédito, quando compa-
rado àquele que deu origem ao chamado “público” dos meios de comunicação.
Nem nas inúmeras tentativas de interatividade, em geral tímidas e frustradas,
que os veículos de televisão empreenderam e empreendem ainda hoje (progra-
mas como Você Decide e Big Brother da emissora Globo ou, mais recentemente,

3 Disponível em: <http://br.youtube.com/watch?v=Sv55JusfEC8&feature=related>. Acesso em: 26 de agosto de


2008.
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 243

o SBT Brasil, com sua pesquisa de opinião diária4), o público teve tanta chance
de interagir e principalmente produzir, como a internet vem permitindo. Essa
relação “íntima” entre TV e internet possibilitou o inusitado: nunca antes os
receptores tiveram a oportunidade de se transformar em emissores/produtores
de imagens que pudessem ser transmitidas em tal escala e velocidade, como
ocorre no site YouTube.
Depois de conquistar os processos de troca de textos, bate-papos, fóruns e
outras formas de comunicação “todos para todos” oferecidas pela internet, o site
YouTube, com seu crescimento exponencial, abriu as portas para a democracia
da imagem:

Fala-se, portanto, de uma verdadeira revolução no campo da imagem,


no sentido em que, mudando de maneira radical nossa relação com o
visível, modificam-se a forma e o conteúdo dos objetos que produzimos
ou recebemos. Conseqüentemente, as novas imagens modificam tanto o
objeto representado quanto os modos de produzi-lo.
Não há dúvida de que a informática alterou os conceitos tradicionais
de representação visual. Por essa razão, é imprescindível refletir sobre o
novo status dos objetos compostos de elementos estritamente icônicos
(Vilches, 2003: 252).

Além disso, é importante lembrar que “na forma da expressão – recursos


visuais – reside o conteúdo ideológico subjacente, servindo como grande ma-
nipulador, pois o que está em jogo é a transformação da competência modal do
enunciatário-sujeito” (Diniz, 2002: 2). Assim, não é possível ignorar as transfor-
mações pelas quais a vida em sociedade está passando, vinculadas à sua forte
relação com a imagem.

OS NÍVEIS DE PERTINÊNCIA SEMIÓTICA NO CONTEXTO DO


USUÁRIO/PRODUTOR DO YOUTUBE
A análise aqui proposta ocorrerá em duas etapas: primeiro, a teoria dos
níveis de pertinência semiótica de Fontanille (ver capítulo desta coletânea) será
aplicada na análise sobre a prática da produção de vídeos do YouTube de uma
forma geral, sem um corpus específico. Em seguida, será analisado apenas um
vídeo, intitulado Midiatrix.

4 Esse telejornal realiza todos os dias, por telefone, uma “pesquisa” sobre determinado tema, ouvindo opiniões
de dez telespectadores por programa, que se manifestam a favor ou contra determinado assunto.
244 | Tânia Ferrarin Olivatti

Podemos considerar que a recente e frenética produção de imagens tem


como resultado esses vídeos, que se enquadram no segundo tipo da experi-
ência que Fontanille apresenta em sua segmentação dos níveis de pertinência
semiótica, o da interpretação. Os vídeos são considerados, do ponto de vista
formal, textos-enunciados que se baseiam nas possibilidades de composição
do nível 1 (o das figuras-signos), por sua vez composto por cores, formas,
sons, legendas, etc. Ascendendo no percurso dos níveis de pertinência, temos
os objetos, que são a experiência corpórea dos usuários/produtores com o
meio e com as técnicas pelas quais se expressam e diz respeito à materialida-
de dos objetos manipulados. É preciso não confundir nesse caso o YouTube
com a própria rede, pois o primeiro localiza-se numa transição entre níveis,
podendo estar mais no nível das estratégias do que no nível dos objetos. À
internet confere-se o caráter de suporte, que participa da constituição mate-
rial/virtual do objeto.
Vale notar que, numa primeira análise, podemos imaginar a ocorrência de
uma operação de síncope do nível 2 (textos-enunciados) para o nível 4 (cenas pre-
dicativas). Ainda que o mais singular nesses vídeos seja justamente seu suporte,
este já foi incorporado de tal maneira no processo de significação que sua impor-
tância material (ou virtual) torna-se latente. Assim, os vídeos/textos-enunciados
parecem tornar-se “‘objetos’ das práticas, na medida em que certos objetos impli-
cados em uma prática são suportes de ‘inscrições’” (J. Fontanille, ver artigo nesta
coletânea, p. 17). No entanto, a única forma de ampla divulgação desses textos
é por meio da rede, fazendo com que a internet seja determinante nessa prática
semiótica. Dessa forma, concluímos que a operação também é de integração dos
níveis 3 e 4, e não simplesmente de síncope do nível 2 para o nível 4.
As cenas predicativas constituem-se pela prática da produção dos vídeos,
que se estabelece de forma gerativa desde o nível 1. O usuário/produtor escolhe
os signos que vão compor seu texto, sejam eles provenientes de imagens alheias
ou de captações próprias do autor. A partir disso, arquiteta vídeos e os insere no
suporte on-line. Nesse sentido, observa-se a passagem por todos os níveis, de 1
a 4, consecutivamente, cada nível crescendo em complexidade.
Vemos assim que o YouTube localiza-se entre o nível dos objetos e o das es-
tratégias. Apesar de a sua produção de sentido seguir hierarquicamente do nível
1 ao 4, em operações de integração, paralelamente existe uma operação de sín-
cope. Evidentemente, as práticas não estão excluídas do processo (sendo mesmo
sua “motivação”), mas o YouTube coloca-se na intersecção de dois níveis não
subseqüentes. Apesar de constituir um suporte, o site funciona mais como uma
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 245

estratégia eficaz de circulação de vídeos, prática quase concomitante à produção.


O usuário nunca pôde participar da produção dos meios de comunicação
considerados de massa, e o YouTube dá-nos justamente essa conjuntura e essa
possibilidade, diferentemente de outras páginas da web. É somente por meio do
site que o usuário/produtor alcança o poder-fazer efetivo, que não seria possível,
porém, sem o suporte da internet. Até então, o saber-fazer não bastava a quem
quisesse compartilhar sua produção, mesmo porque qualquer texto só se torna
objeto de sentido a partir do momento em que é recebido por alguém pois, até
que encontre um enunciatário, é somente um objeto material.
Dessa forma, as práticas de produção e divulgação são confrontadas num
mesmo regime de espaço e tempo com uma estratégia de inserção de conteú-
dos. As propriedades sensíveis e materiais dessa estratégia espelham assim os
valores do usuário/produtor, que quer fazer parte do processo comunicacional,
ocupando também o posto de enunciador e não somente de enunciatário. Seu
comportamento mostra como a imagem está arraigada na cultura contemporâ-
nea, com um estatuto de nobreza nas práticas semióticas. A imagem participa
diretamente da forma como o sujeito manifesta a sua presença e sua interven-
ção, ela determina o ethos do sujeito. Isso porque, como explica Vilches (2003:
251), “provavelmente, o advento mais espetacular da migração digital tenha a
imagem como protagonista. A relação entre a imagem e a realidade, preocupa-
ção constante da cultura desde Platão até nossos dias, é também um dos temas
favoritos da sociedade digital”. Dessa forma, se esse sujeito não pode produzir
(ou aparecer5) na mídia tradicional, encontra na rede um local acolhedor, o que
contribuiu para um verdadeiro boom na quantidade de vídeos produzidos des-
de a criação do YouTube6. Notamos então o surgimento de uma forma de vida
“marginal” em relação à mídia, na medida em que o usuário/produtor ocupa
uma posição à margem do que já está estabelecido (a “grande” mídia). Essa for-
ma de vida “marginal” fica evidente na procura do sujeito por novas maneiras
de expressão. O usuário/produtor domina o poder+saber+querer+fazer na web
e produz textos (sejam eles descartáveis ou não) para o ambiente virtual, como
forma de demarcar um novo e alternativo território. Trata-se de uma estratégia
original de ocupação do espaço virtual.

5 Os reality shows surgem na esteira dessa sociedade imagética. Podemos caracterizar então dois tipos de su-
jeitos: 1) os que querem ser “ouvidos” e encontram na produção de materiais audiovisuais uma forma de
expressão; 2) os que querem simplesmente “aparecer” (são comuns histórias frustradas de indivíduos que se
inscreveram no Big Brother Brasil e não foram selecionados). Quando esse segundo querer não é alcançado na
mídia tradicional, resta-lhe apelar para meios mais “democráticos”, como a internet.
6 Em meados de 2006, quando o YouTube se popularizou, cerca de 65 mil novos vídeos eram colocados na pági-
na diariamente. Quanto ao acesso, o número chegava aos 100 milhões por dia. Disponível em: <http://oglobo.
globo.com/tecnologia/mat/2006/08/31/285490135.asp>. Acesso em: 26 de agosto de 2008.
246 | Tânia Ferrarin Olivatti

Quando trata da eficiência e da otimização das práticas semióticas, Fonta-


nille (ver artigo nesta coletânea, p. 47) recorre aos arranjos sintagmáticos pro-
postos por P. Basso, aperfeiçoando-os para formar os tipos modais da eficiência.
Segundo essa tipologia, a atuação do usuário/produtor enquadra-se na idéia de
conduta, pois consegue aproximar seu querer+fazer do poder+saber+fazer. Na
conduta, o querer é sempre mais representativo entre os possíveis controles co-
letivos (poder, saber, dever ou crer), favorecendo a iconização e a manifestação
das motivações do usuário/produtor.
A segmentação sugerida pelos níveis de pertinência semiótica permite
compreender, do ponto de vista da concepção de um objeto cultural, o papel
do usuário/produtor do YouTube. Como apontado anteriormente, a seleção de
signos e figuras compõe tais vídeos (textos), que, em seguida, são inscritos (ma-
terializados) em objetos-suportes (no caso, a rede), onde se configuram então as
cenas predicativas das quais o usuário/produtor participa.
Esses vídeos (textos) incorporam a internet na prática semiótica on-line, ou
seja, o texto integra as possibilidades materiais do objeto, formando, segundo
Fontanille (Ibidem, p. 45), uma dimensão metassemiótica de tipo técnico ou
didático. Se um mesmo vídeo fosse divulgado na televisão, seu estatuto ou a
significação gerada por ele seria diferente. Da mesma forma, a produção dos
vídeos não é uma prática isolada, interagindo com a prática da divulgação, do
“aparecer”/“exibir-se”, pois apresenta uma dimensão metassemiótica do tipo es-
tratégico, nas suas relações com outras práticas.
A prática semiótica on-line constrói sua eficiência na adaptação com outras
práticas, servindo-se das valências do ajustamento e da abertura. Não há ou há
poucas coerções na internet, se comparada a outras mídias. Desde sua criação,
em 2005, o YouTube representou uma revolução no meio virtual e imagético.
Em algumas ocasiões tentaram “controlá-lo”, mas somente contribuíram para
mostrar sua força, como no caso do vídeo protagonizado pela modelo Daniella
Cicarelli7, em 2006, ou em produções relacionadas com o terrorismo (até mes-
mo o governo dos Estados Unidos admitiu não ter como controlá-lo)8. Ainda
que os administradores da página tirem alguns vídeos do ar, é muito fácil postar
outros. Dessa forma, é fácil compreender que as características do meio contri-
buem para o alcance da eficiência práxica que, nesse caso, é regulada pela for-

7 Daniella Cicarelli foi filmada em cenas íntimas com o namorado numa praia da Espanha. O vídeo foi parar
no YouTube em setembro de 2006. A modelo e o namorado entraram na justiça contra o site, processo que se
alongou por cerca de seis meses, sem êxito para Cicarelli, que ainda foi obrigada a pagar as custas do processo.
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/post.asp?cod_post=63188>. Acesso em: 23 de agosto
de 2008.
8 Disponível em: <http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=420MON012>. Acesso em:
23 de agosto de 2008.
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 247

ça da intensidade em detrimento da extensidade. A alta usabilidade da página,


as novas tecnologias de captação de imagens, sempre mais acessíveis (celulares
possuem câmeras com resolução de imagem cada vez melhor e custo mais baixo
e alguns deles podem postar vídeos diretamente no YouTube) e a falta de con-
trole sobre a imensa maioria dos conteúdos postados são elementos que carac-
terizam o campo de atuação das práticas do usuário/produtor e, portanto, seu
modo de eficiência.

EM BUSCA DA PRÁTICA NA INSTÂNCIA


DOS TEXTOS-ENUNCIADOS: ANALISANDO MIDIATRIX
Nesta seção será realizada uma breve análise do vídeo Midiatrix, veiculado
desde 2006 no YouTube. Midiatrix Revelations9 foi construído a partir de cenas
do filme Matrix (1999)10. O autor modificou diálogos (legendas) e trilhas so-
noras, e inseriu imagens do símbolo da rede Globo, cenas de novela, telejornal
(miséria, guerra), desenho animado (a personagem Homer Simpson), entre ou-
tras figuras e signos.
O texto-enunciado conta a história de um rapaz (personagem de Neo no
filme original) que é convidado por Morfeu a jogar fora sua TV e atentar para
a diferença entre simulacro e realidade. A rede Globo é tratada como a grande
manipuladora da humanidade. A revista Veja também é elencada, chamada de
“muita porcaria”. Neo toma a pílula vermelha para conhecer o que é a Midiatrix,
e logo após vê o caos ignorado até então: um mundo de pobreza e destruição.
O vídeo traz um programa narrativo de manipulação, tanto no nível do
enunciado, quanto no da enunciação. No enunciado, o actante Neo parte de
um estado de conjunção com o objeto mídia. O actante Morfeu opera um
programa de manipulação, até fazer Neo disjungir-se dos valores da mídia.
Dessa forma, ele incute um dever-fazer em Neo, pautado em categorias tími-
cas principalmente disfóricas (o diálogo traz os seguintes termos: vida medí-
ocre e confortável, medo, preconceito, “revelações”, falta de ética, mundo de

9 Segundo consta na página, Midiatrix foi postado em 18 de outubro de 2006, sendo exibido – até a última
data de acesso – 190.229 vezes. Não existe na página um campo indicativo da procedência (país) do filme,
mas o conteúdo e os comentários postados (quase 500) pelo público e pelo próprio autor (que se apresenta
como “Ferrorama”) evidenciam que o vídeo é brasileiro. Disponível em “Midiatrix” <http://br.youtube.com/
watch?v=Sv55JusfEC8&feature=related>. Acesso em: 26 de agosto de 2008.
10 Trilogia: Matrix (1999), Matrix Reloaded (produzido em 2002, mas lançado em 2003) e Matrix Revolutions
(2003). Os gêneros ação e ficção científica marcam a produção realizada pelos irmãos Wachowski e protago-
nizada por Keanu Reeves no papel de Neo. Matrix tem como tema a luta do ser humano, por volta do ano de
2200, para se livrar do domínio das máquinas que evoluíram após o advento da inteligência artificial. Dispo-
nível em: <pt.wikipedia.org/wiki/Matrix>. Acesso em: 26 de agosto de 2008.
248 | Tânia Ferrarin Olivatti

plástico, simulacro, velha elite, caos, jogo político, manipulação, sacanagem,


mundinho, porcaria etc.). Essas ocorrências são atribuídas a quem estiver em
conjunção com a mídia, portanto atribuem uma significação negativa a esse
estado conjuntivo. Depois que o querer e o dever-fazer são estabelecidos, o
ator discursivo Neo passa a ter competência para negar a mídia, adquirindo o
poder e o saber-fazer ao final da narrativa.
Morfeu conseguiu que Neo passasse ao estado de disjunção com a mídia.
Isso foi possível porque ele conseguiu estabelecer um contrato11 fiduciário com
Neo, no nível patêmico e no pragmático.
Contratos patêmicos ou passionais ocorrem quando a motivação contra-
tual (o crer) dá-se por meio da afetividade ou empatia que um sujeito desper-
ta em outro: o contrato “fundamenta-se na timia, disposição afetiva de base
determinante da relação que um corpo sensível mantém com o que o cerca,
que pode ser positiva, negativa ou neutra, ou seja, euforia, disforia ou aforia,
respectivamente” (Diniz, 2001: 4). Morfeu consegue manipular Neo através
da timia gerada por meio das isotopias negativas atribuídas à mídia, seja pelo
jogo de palavras (sempre oferecendo a Neo a chance de “ver com os próprios
olhos”), seja pelas imagens adicionadas às originais ou ainda pela trilha sono-
ra contundente. Já os contratos pragmáticos estão ligados às práticas, e geram
ações. A manipulação exercida por Morfeu, ainda que utilize estratégias tími-
cas, tem explicitamente a intenção de provocar uma ação: que Neo se separe
da mídia, que jogue fora a sua TV.
No nível da enunciação, o discurso do enunciador é exatamente o mesmo
que Morfeu apresenta no enunciado, pois quer provocar uma disjunção de seu
enunciatário com a mídia. O enunciatário nesse caso são os usuários do YouTu-
be ou, de uma forma geral, da internet. O enunciador acredita que esses usuá-
rios sejam milhões que pensam como o personagem que ele mesmo constrói e
ilustra (Neo), ou seja, receptores acríticos da mídia de massa. Nesse nível o con-
trato patêmico sobressai-se em relação ao pragmático, pois o enunciador não
espera que os enunciatários entrem em disjunção total com a mídia, mas apenas
reflitam sobre ela. A timia vai garantir a credulidade do discurso e provocar no
enunciatário o desejo de querer-ser mais crítico. É por isso que o enunciador uti-
lizou-se de imagens que fazem parte da cultura do povo brasileiro. Além disso,

11 “Num sentido muito geral, pode-se entender por contrato o fato de estabelecer, de ‘contrair’ uma relação inter-
subjetiva que tem por efeito modificar o estatuto (o ser e/ou o parecer) de cada um dos sujeitos em presença.
Sem que se possa dar uma definição rigorosa dessa noção intuitiva, trata-se de propor o termo contrato, a
fim de determinar progressivamente as condições mínimas nas quais se efetua a ‘tomada de contato’ de um
sujeito para com o outro, condições que poderão ser consideradas como pressupostos do estabelecimento da
estrutura da comunicação semiótica” (Greimas; Courtés, 1983: 84, grifos dos autores).
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 249

em vários momentos inseriu um mesmo áudio (som de raios e vozes humanas,


como no clímax de uma ópera) para atribuir impacto às imagens adicionadas e
editadas por ele sobre as cenas do filme original.
A propósito dessa questão, Diniz (2001: 4) esclarece como as imagens po-
dem contribuir para a concretização do contrato patêmico no momento da
enunciação: “Na enunciação, acreditamos poder tratar da paixão no nível do
discurso imagético, pois a representação do mundo sensível é construída de
certo modo para ser apreendida pelos sentidos do enunciatário, a percepção do
mundo pelo corpo, pelos sentidos, de que nos fala Merleau-Ponty”.
Midiatrix enquadra-se nas hipóteses há pouco apresentadas sobre os níveis
de pertinência nos vídeos produzidos para o YouTube. A escolha da crítica à mí-
dia por parte do enunciador mostra um pouco da necessidade de produção, de
“participação imagética” que se instaura no ethos do usuário, até pouco tempo
excluído, como já dissemos, do processo de produção midiática.
É claro que, a partir da análise de um único vídeo, não se pode atribuir
a todos os usuários do YouTube os mesmos elementos encontrados no ethos
do usuário/produtor de Midiatrix. No entanto, estas reflexões iniciais permitem
mais algumas inferências, sendo que uma delas encontra embasamento na obra
de Dominique Wolton.
Ainda que não seja semioticista, Wolton (2006) discorre a respeito do que
as novas práticas semióticas on-line significam na instância das formas de vida.
Para o autor, as novas tecnologias adquiriram uma dimensão social, pois repre-
sentam uma espécie de “nova chance” ao antigo grande público: “As novas tec-
nologias são, como uma figura de emancipação individual, ‘uma nova fronteira’.
Não é somente a abundância, a liberdade e a ausência de controle que seduzem,
como também essa idéia de uma autopromoção possível, de uma escola sem
mestre, nem controle” (Wolton, 2006: 85-86).
Transportando o pensamento de Wolton para a teoria semiótica, o objeto/
suporte da internet passa a ser determinante nas cenas predicativas dos novos
usuários, promovendo o que ele chamou de “emancipação individual”. Essas
práticas, por sua vez, são determinadas pelo comportamento do sujeito, ou seja,
a forma de vida vertiginosamente imagética que agora acompanha sua vida.
Ainda no domínio do texto-enunciado, podemos observar a polêmica es-
trutura argumentativa que o enunciador buscou para o vídeo. Ele utiliza simu-
lacros (edição de imagens, legendas e trilhas) para criticar uma mídia que para
ele só apresenta simulacros. Isso só é possível ao usar uma mídia para criticar
outras mídias. O usuário opera um programa narrativo de manipulação para
250 | Tânia Ferrarin Olivatti

criticar justamente a manipulação das mídias. E, por fim, considera o enuncia-


tário das mídias (e também o seu) como um receptor passivo, mas ele mesmo,
enquanto enunciatário das mídias e usuário/produtor “pensante”, serve-se de
meios de manipulação “midiáticos” e, no limite, autoritários.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda que não seja conclusivo (certezas irrefutáveis podem ser encontradas
nas ciências humanas?), o presente ensaio procurou refletir sobre questões que
perpassam as maiores mudanças ocorridas nos meios de comunicação nos úl-
timos anos. Optar por tais questões sem dúvida causou (e ainda causa) descon-
forto. Tendo consciência de que o objeto escolhido é intrínseco a um universo
de acelerada mutabilidade, que tange nosso presente, perdemos, de antemão, a
chance de buscar amparo no distanciamento histórico. Por outro lado, as mais
recentes teorizações sobre os níveis de pertinência semiótica não contam ainda
com aplicações exaustivas, o que aumenta a responsabilidade desta análise.
A internet tem progressivamente deixado de ser um meio elitista e, hoje, faz
parte do cotidiano de uma parcela considerável da população. Da mesma forma,
os recursos de captação de imagens e som são cada vez mais acessíveis e seu
manuseio cada vez mais simples. Esse progresso tecnológico provavelmente é
fruto da também crescente necessidade do homem de viver em comunhão com
a imagem (a imagem de si e a imagem do outro), seja por impulsos narcisísticos,
emancipatórios, ou mesmo associativos.
Nessa perspectiva, será que as práticas tratadas aqui não representam uma
forma de vida ávida pelos elos perdidos? Se a grande rede criou “solidões inte-
rativas” (ou foram elas que criaram a internet?), estaria esse ethos em busca de
uma espécie de comunhão? O que se pode afirmar é que a prática construída por
enunciados audiovisuais criou a necessidade de novos objetos-suporte e que esses
novos objetos imaginados e criados pelo homem estimulam, por sua vez, o surgi-
mento de novas práticas, em uma espécie de semiose cíclica e auto-adaptada.
Longe de tentar descobrir a exata relação de precedência entre o “ovo e a
galinha” das práticas semióticas e sociais, esperamos que estas considerações
acerca das práticas realizadas pelo usuário/produtor na internet possam servir
de terreno fértil aos que procuram analisar os objetos das novas mídias à luz da
semiótica de origem greimasiana.
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor | 251

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALTELLS, Manuel. A sociedade em rede: a era da informação: economia,


sociedade e cultura, vol. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
DINIZ, Maria Lucia Vissotto Paiva. Oralidade e escrita na TV: relação camuflada.
Estudos Lingüísticos XXXI, revista do Grupo de Estudos Lingüísticos do Estado
de São Paulo, em CR-ROM, FFLCH/USP, 2002.
DINIZ, Maria Lúcia Vissotto Paiva. Contratos na Mídia: O Jornal nacional na
berlinda. In: OLIVEIRA, Ana Claudia de; MARRONI, Fabiane Vilella (eds.)
Caderno de Discussão do Centro de Pesquisas Sociossemióticas, n. 7, publicação
interinstitucional PUC-SP, USP-SP, CPS, CNRS, 2001.
GREIMAS, A. J; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima
et al. São Paulo: Cultrix, 1983.
LEMOS, André. Cibercultura. Alguns pontos para compreender nossa época.
In: LEMOS, A. CUNHA, P. (orgs). Olhares sobre a cibercultura. Porto Alegre:
Sulinas, 2003.
PERUZZO, Cecília M. K. Internet e democracia comunicacional: entre os
entraves, utopias e o direito à comunicação. In: MELO, J. M de; STHLER, L.
(orgs.) Direitos à comunicação na sociedade da informação. São Bernardo do
Campo: Umesp, 2005.
VILCHES, Lorenzo. A migração digital. São Paulo: Loyola, 2003.
WOLTON, Dominique. É preciso salvar a comunicação. São Paulo: Paulus, 2006.
Rádio e podcast: intersecção das práticas | 253

RÁDIO E PODCAST
Intersecção das práticas

Djaine Damiati Rezende


Matheus Nogueira Schwartzmann

O Ciberespaço1 – juntamente com todas as tecnologias informáticas da


contemporaneidade e seu modus operandi – pontua uma mudança de supor-
te dos processos sócio-culturais, ressignificando o contexto das mídias e ins-
tituindo novas práticas e procedimentos comunicacionais e reconfigurando os
elementos da comunicação tais como os conhecíamos até então. E é nesse ce-
nário de hibridismo, de convergências e colaboratividade que surge um novo
processo midiático na internet, um tipo de comunicação sonora que, embora
guarde similitudes com o rádio, possui particularidades e atributos típicos desse
ambiente digital: o podcast.
Neste texto propomos, portanto, um olhar sobre as práticas empregadas
na produção de podcasts, sobretudo aqueles desvinculados das organizações ou
pólos de emissão de informação. Buscaremos ainda compreender o modo como
tais práticas vêm se constituindo e validando-se num processo colaborativo e
de experimentação contínua, estimulando a emergência de novos formatos e

1 Entendemos por ciberespaço “uma estrutura virtual transnacional de comunicação interativa” (Trivinho,
1996).
254 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

linguagens, que começam a influenciar também as práticas radiofônicas promo-


vendo sua atualização por meio do fenômeno cross-media2.

O CONCEITO DE PODCAST
Neologismo criado a partir dos termos “iPod” (tocador de MP3 da Apple) e
“broadcasting” (transmissão, sistema de disseminação de informação em larga
escala), o podcast surgiu no final de 2004, a partir da idéia do ex-VJ da MTV
americana, Adam Curry, de reunir (agregar) automaticamente, em um mesmo
lugar, as produções em áudio espalhadas pela internet3. O podcast seria então
um sistema de produção e difusão de arquivos sonoros em que um usuário,
mediante o que se convencionou chamar de assinatura4 e com a ajuda de um
software agregador de conteúdo5, recebe o áudio automaticamente, sem para
isso ter que acessar o site em que foi inicialmente publicado.
Com um computador doméstico, um microfone e softwares de edição de
áudio, o podcaster6 grava e edita sua produção, salva como arquivo em formato
MP3 e o disponibiliza em sites indexados aos agregadores. O usuário faz o do-
wnload do arquivo para o computador podendo, na seqüência, transferi-lo para
seu tocador de MP3.
O fenômeno do podcast é recente, mas tem atingido índices exponenciais
de crescimento. Em 2005, podcast foi considerada a palavra do ano pelo dicio-
nário New Oxford American Dictionary e, em menos de seis meses de existên-
cia, foram encontradas no Google mais de 4.940.000 referências para a palavra
podcasting. Estima-se que há mais de 6 milhões de usuários do sistema no
mundo.
A completude desse sistema, cujos arquivos em áudio guardam similitudes
com o formato dos programas de rádio, significa a definitiva liberação dos pólos
de emissão, possibilitando que cada vez mais usuários tornem-se produtores

2 Cruzamento de mídias.
3 Informações extraídas do verbete “podcasting”, da enciclopédia livre Wikipédia.
4 Neste procedimento, o usuário copia o endereço do feed\xml do podcast selecionado e cola no software agre-
gador que, a partir de então, verificará automaticamente se há novos arquivos publicados e iniciará seu down-
load.
5 Os “agregadores” são softwares responsáveis por fazer a busca dos feeds, com base nos sites (feeders) que
foram assinados pelo usuário. Graças aos agregadores, podemos usufruir dessa ferramenta em que o usuário
não é mais obrigado a visitar os sites um a um, para ler notícias e novidades ou novas postagens dos blogs.
Dessa maneira, são as notícias, as novidades e as postagens que vão até ele. Existem tipos diferentes de agre-
gadores, que têm formas distintas de gerenciar e organizar as informações coletadas. No caso dos podcasts,
os agregadores vasculham automaticamente a internet à procura dos podcasts assinados, baixando-os para o
computador, e descarrega-os em seguida num MP3 player conectado.
6 Pessoa que produz o podcast.
Rádio e podcast: intersecção das práticas | 255

dos seus próprios shows, numa espécie de democratização da difusão sonora,


como aponta Lemos (2005: 2):

O suposto excesso de informação nada mais é do que a emergência de


diversas vozes, exprimindo-se sobre diversos assuntos, e sob diversos
formatos, distribuídos ao redor do mundo. Outra característica impor-
tante em questão é o princípio de conexão, o compartilhamento de expe-
riências, arquivos, softwares em redes. Estamos vendo esse tripé em ação
com os podcasts: 1. liberação do pólo da emissão (ouvinte produtor), 2.
princípio de conexão: distribuição por indexação de sites na rede (RSS)
em conexão planetária e 3. reconfiguração dos formatos de emissão de
conteúdos sonoros (em dois pólos: o “faça você mesmo” a sua rádio; e as
rádios massivas criando programas em podcasting, como a BBC.

Apesar das semelhanças, podemos dizer que rádio e podcast individuali-


zam-se à medida que analisamos as características de interação de cada suporte
e as práticas envolvidas em seus processos de produção e recepção. Alex Primo
(2005: 2) vai além nesse raciocínio, afirmando que o podcasting remedeia o rá-
dio e o faz tomando emprestadas algumas das características de seu predecessor,
não somente herdando-as e apropriando-se delas, como também atualizando-
as. Para Primo, não basta que analisemos os processos de emissão, afinal, são
novos contextos de produção e recepção que se abrem com o podcast, e por isso
mesmo é necessário que levemos em conta as interações dialógicas ocorridas a
partir de seu nascimento, como já assinala Primo (2005: 7), quando diz que:

os fenômenos de blogs e podcasting precisam ser observados para além


da facilidade e da satisfação egóica de publicação. É preciso estudar a
relação complexa das condições de produção, do entorno midiático, com
quem se fala e de suas condições de recepção. E, além disso, investigar
como esses atores interagem entre si e com a tecnologia que permite a
virtualização do tempo e do espaço, que outrora imporia barreiras para
tal intercâmbio.

Desse modo, percebemos que estamos diante de um leque de novas variá-


veis na produção de sentido, cujas possibilidades combinatórias e construções
sintagmáticas podem nos levar a novas perspectivas na comunicação sonora
mediada. Devemos considerar, no entanto, que a atualização que o podcast traz
ao rádio não se dá no aspecto técnico apenas (características tecnológicas ine-
rentes ao suporte, tais como emissão, formas de acesso, apresentação e distribui-
ção), mas em função do próprio meio, pois cada um tem propriedades materiais
256 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

distintas, que atuam diretamente nas práticas empregadas.


Sendo assim, podemos realmente dizer que rádio e podcast interseccionam-
se, de fato, no nível das práticas, tendo como base a metodologia semiótica,
poderemos confirmar, já em uma análise geral, a ocorrência desse fenômeno,
justamente na relação entre os níveis de pertinência semiótica no percurso ge-
rativo da expressão.

PODCASTS E PRÁTICAS SEMIÓTICAS


A semiótica tem formalizado novos conceitos através da análise das práticas
semióticas. Dessa forma vai avançando no terreno da expressão à medida que
constrói um modelo capaz de identificar as operações de produção de sentido,
que tanto poderiam ser operações cognitivas dos produtores ou dos intérpretes,
quanto propriedades das semióticas-objeto, ou ainda rotinas desenvolvidas co-
letivamente no interior de cada cultura.
Jacques Fontanille (ver artigo nesta coletânea) é um dos autores que vêm
contribuindo com essa abertura, pois estabelece uma relação hierárquica dos ní-
veis do percurso da expressão. Para o autor, cada nível se define pela forma com
que se relaciona com os outros, tanto com o anterior quanto com o posterior,
através do que ele chama de “operações de integração” ou “síncopes retóricas”.
É a partir dos níveis de pertinência semiótica que se organizam as idéias deste
texto. Entendemos que a relação entre o suporte/objeto e as cenas predicativas,
exemplificada anteriormente por Fontanille, pode estar representada no contexto
dos podcasts, pois é na relação com as propriedades sensíveis e materiais do suporte
midiático que se estruturam as novas práticas na comunicação sonora. Sendo as-
sim, embora o referencial para a produção de sentido nos podcasts seja o rádio (e
todas as práticas e cenas predicativas nele envolvidas), é impossível que nesse tipo
de suporte se reproduza, exatamente a receita (ou percurso da expressão) do meio
predecessor. Isso porque as relações entre práticas, suportes e textos-enunciados
são determinantes para a arquitetura de novos modos de produção e significação e,
no caso do podcast, a arquitetura do rádio reaparece, porém reformulada.
Em um nível mais profundo, podemos dizer ainda que também as formas
de vida revelam-se relevantes na emergência de novas práticas, já que o podcast
enquanto micromídia (conjunto de meios de baixa circulação, que visam pe-
quenos públicos, incluindo desde impressos rudimentares até ferramentas di-
gitais cuja importância é particular para muitas subculturas) tem suas práticas
Rádio e podcast: intersecção das práticas | 257

validadas dentro de um universo particular e de uma cultura muito própria.


A relação entre os podcasters, o modo como manifestam suas percepções e/ou
endossam as dos demais por meio de comunidades virtuais, assume a dimensão
de um campo, onde há a busca pela sistematização das práticas, numa tendência
à construção do habitus responsável por uma espécie de reconhecimento entre
os membros da comunidade podcaster. Não raro, encontramos nessa estrutura
algumas práticas de caráter metassemiótico, na medida em que exibem relações
com outras práticas, como veremos no exemplo do portal Podcast Café7, em que
podcasters utilizam o próprio meio para dele tratar, em uma mistura de reflexão,
análise e tentativa de sistematização das práticas de produção para podcasts.

A BUSCA PELA SISTEMATIZAÇÃO DAS PRÁTICAS NO


PODCAST CAFÉ
Existem várias práticas que reforçam a idéia de comunidade entre os pod-
casters. Eles se aglutinam virtualmente através de grupos de e-mails, chats e áu-
dio-conferências, twitter, entre outros mecanismos de comunicação em rede,
mas é nos sites e portais dedicados ao hosting8 que percebemos mais explicita-
mente a tentativa de normatizar, de criar procedimentos e regulamentar condu-
tas no campo do podcast (ou seja, uma das práticas correntes entre podcasters é
justamente uma prática normativa), embora tal prática contraponha o princípio
da colaboratividade e o caráter anárquico das relações características da web 2.0.
O Podcast Café deveria ser, como dissemos, um hosting brasileiro para podcast
que, além da função de hospedagem, tomaria para si a tarefa de sistematizar as
práticas na produção de podcasts, através da participação de vários produtores
convidados. O site reunia artigos e podcasts com textos e entrevistas em que
eram discutidas as próprias práticas do meio, o que nos mostra também certa
tendência por uma prática didática. Os temas variados abordavam desde a via-
bilidade econômica de podcasts até uma lista com as coisas que irritam os ouvin-
tes e que podem ser consideradas “dicas” do que não se deve fazer na produção
de um show, confirmando ainda mais o caráter didático do hosting.
Tomemos este último exemplo, o “Bate-papo com Tatto Garcia”, em que
entrevistado e entrevistador (no caso o escritor Christian Gurtner) são pro-

7 O site não se encontra mais publicado na internet. Para acessar o seu conteúdo, sugerimos o site de busca
de podcasts <http://www.podnova.com/>, mais especificamente o canal <http://www.podnova.com/chan-
nel/35700/>.
8 Hospedagem de podcasts na internet.
258 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

dutores (podcasters) e ouvintes de podcast. Ao longo da conversa ambos lis-


tam práticas usuais de produção que consideram inapropriadas. Tais práticas
seriam tanto de ordem técnica quanto “conteudística”. Do ponto de vista da
técnica pura e simples, os dois elencam três itens, ligados especialmente à
questão da qualidade do áudio do arquivo produzido. Seriam eles: (1) a não
utilização de background (trilha sonora) durante uma fala extensa (o que ain-
da poderia ser interpretado como um problema de conteúdo do programa
gravado); (2) a presença de ruídos na gravação e/ou apenas a falta de qualida-
de técnica do áudio – principalmente nos casos de podcasts musicais – e (3) o
mau posicionamento do microfone, fazendo com que a respiração apareça na
gravação durante a fala, ocasionando “pufs” resultantes do choque do ar com
a cápsula do microfone, na pronúncia de consoantes labiais como “p” e “b”. Do
ponto de vista do conteúdo do programa produzido, seriam dois os problemas
apontados como graves: (1) um discurso exacerbado de autopromoção e (2)
a falta de conhecimento sobre o tema abordado, que é realmente uma falta
gravíssima. A relação de coisas que irritam o ouvinte, de acordo com Gurtner
e Garcia, ainda inclui a ausência de elementos sonoros sinalizando o encerra-
mento do programa, como uma vinheta, e problemas de dicção, impostação
exagerada da voz ou a tentativa de disfarçá-la, buscando fazer o ouvinte crer
que se trata de outra pessoa – que acabam por mesclar o que chamamos de
problemas técnicos e de conteúdo.
Em outro programa, intitulado “Filosofia podcaster”, a relação produtor-
ouvinte em meio à entropia do ciberespaço é retomada quando são questio-
nadas as estratégias para se estabelecer contratos nesse contexto. Os artigos
escritos também trafegam pela mesma seara, dando “dicas” sobre escolha de
temas, alertando os podcasters sobre o modo como o enunciador é percebido
nos conteúdos publicados e suas implicações num texto que leva o nome “Seu
Podcast é você.” Há ainda uma auto-entrevista feita pelo podcaster Sérgio Viei-
ra, em que o hibridismo produtor/usuário está explícito nas perguntas que
o podcaster faz a si próprio. Nesse caso, o autor do texto posiciona-se tanto
como ouvinte quanto como produtor e responde a perguntas do tipo: “O que o
levou a produzir o primeiro podcast?” e “O que mais o atrai num podcast?” ou
“O que faz você abandonar um podcast que tenha assinado?”, e ainda “O que o
podcast mudou na sua atitude em relação às mídias tradicionais?”. Perguntas
e respostas, que evidenciam a preocupação em se mapear as práticas tanto
do ouvinte quanto do produtor (preocupação de caráter, como já dissemos,
metassemiótico e didático) nesse processo midiático tão recente, diferindo-o,
Rádio e podcast: intersecção das práticas | 259

portanto, de maneira marcante, das práticas pré-estabelecidas (tradicionais)


que envolvem as produções radiofônicas

PERSPECTIVAS DE UMA NOVA PRÁTICA


Em meios em que a fluidez constrói-se a partir da convergência de traje-
tórias e do entrelaçamento dos pensamentos de diversos sujeitos, o significado
constitui-se pelo convívio, pela solidariedade e pelos conflitos que emergem no
instante da interação e não apenas na seqüência temporal. Desse modo, a cola-
boratividade, que poderia ser vista também como a própria troca de objetos de
valor entre os sujeitos, acaba tornando-se um novo valor cultural. Sendo assim,
sistematizar práticas, delimitar procedimentos e protocolos torna-se uma tarefa
bastante difícil, uma vez que as variantes possíveis, na relação estabelecida em
colaboração, são inúmeras. Essa relação colaborativa prevê ainda uma conduta
padrão, baseada nas modalidades do /poder/, do /saber/ e do /querer/. A co-
laboratividade torna o processo labiríntico e a modalização do usuário, com a
preponderância do /querer/, abre um leque de possibilidades ainda maiores, o
que favorece a experimentação e o surgimento de novas práticas.
A partir do momento em que o podcast possibilitou aos usuários/produto-
res9 a produção e a distribuição de seus próprios programas em áudio, foi preci-
so modalizar um sujeito que desconhecia, até então, tais práticas. Essas práticas
de produção, sistematizadas ao longo da evolução da história do rádio, e das
estratégias de produção de sentido validadas nesse campo10, foram obviamente
baseadas nas características massivas e específicas do suporte em questão, vi-
sando, certamente, atingir os sujeitos usuários desse novo “produto” midiático.
Estes produtores/usuários do podcast enquanto micromídia (não os de or-
ganizações da mídia tradicional ou profissionais oriundos dela) tiveram certa-
mente a referência do rádio, tido então como modelo, mas sob a perspectiva do
ouvinte. Parece claro que esse outro ponto de vista da comunicação sonora já
atribui a esse sujeito modo específico de produzir textos, que lhe oferece opções
sintagmáticas diferenciadas, ou seja, sua prática de produção é marcada profun-
damente por uma prática de consumo, que não vislumbra todo o processo de
produção, tendo como perspectiva primeira o objeto acabado.

9 Utilizamos aqui o termo para referendar o hibridismo de papéis na contingência da comunicação no ciberes-
paço.
10 Aqui a idéia de campo é aquela a que se refere Bourdieu (1974) como sendo o campo em que os sujeitos vali-
dam suas práticas e desenvolvem o hábito.
260 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

O caráter individual das mídias pós-massivas também é um fator a ser con-


siderado na análise das práticas de podcasts. De acordo com Lemos (2007: 124),
as mídias pós-massivas são aquelas que funcionam a partir de redes telemáti-
cas, são personalizáveis e permitem a qualquer um produzir informação sem a
necessidade de vínculo com uma organização econômica ou midiática, já que
não estão centradas em um único território, situando-se virtualmente em todo
o planeta, trabalhando, na maioria das vezes, em fluxos comunicacionais bi-di-
recionais (todos-todos).
Ao contrário do que ocorre nas emissoras de rádio, em que os programas
são produzidos em equipe e em que temos bem definidos os papéis de produ-
tor, roteirista e editor, nos podcasts caseiros todas essas funções são incorpora-
das por um único elemento humano que, com recursos técnicos e ambientais
limitados, reúne em si mesmo todos os papéis desempenhados na prática ra-
diofônica tradicional. Nesse caso devemos considerar não só as possibilidades
de uso dos recursos tecnológicos (softwares de edição de áudio e publicação,
placas de som e acessórios como microfones e fones de ouvido), mas princi-
palmente a competência do indivíduo para lidar satisfatoriamente com cada
um deles, pois, como acabamos de dizer, esse único indivíduo acaba sendo
responsável por todas as etapas do processo de produção do podcast. Como
conseqüência disso, por exemplo, o nível de conhecimento do indivíduo sobre
propriedades acústicas ou possibilidades de produção de efeitos sonoros e mi-
xagem de trilhas (back grounds) certamente terá um reflexo significativo nas
suas opções sintagmáticas. Temos, portanto, uma prática individual, sincreti-
zada, em que um único sujeito detém o /poder/, o /saber/ e o /querer-fazer/).
Além disso, ela pode ser recriada e reinventada a todo o momento, dada a
maleabilidade de seu suporte digital/virtual.

A INTERSECÇÃO DAS PRÁTICAS


Em razão das muitas semelhanças existentes entre as formas de emissão
para rádio e podcast, o que se observa é que os usuários/produtores tendem,
num primeiro momento, a reproduzir as estratégias normalmente empregadas
nas produções do primeiro. Até mesmo a maior parte das “dicas”, relacionadas
pelos podcasters (como observamos no exemplo do Podcast Café) para aqueles
que desejam produzir seus próprios programas, no fundo são heranças diretas
das práticas radiofônicas, procedimentos edificados ao longo de muitas décadas
Rádio e podcast: intersecção das práticas | 261

de experimentação e exploração das propriedades materiais do meio, como des-


creve McLuhan (1964: 336-337):

O rádio afeta as pessoas, digamos, como que pessoalmente, oferecendo


um mundo de comunicação não expressa entre o escritor-locutor e o
ouvinte. Este é o aspecto mais imediato do rádio. Uma experiência par-
ticular. As profundidades subliminares do rádio estão carregadas daque-
les ecos ressoantes das trombetas tribais e dos tambores antigos. Isto é
inerente à própria natureza deste meio, com seu poder de transformar
a psique e a sociedade numa única câmara de eco. A dimensão ressona-
dora do rádio tem passado despercebida aos roteiristas e redatores, com
poucas exceções. A famosa emissão de Orson Welles sobre a invasão
marciana não passou de uma pequena mostra do escopo todo-inclusivo
e todo-envolvente da imagem auditiva do rádio.

Porém, entre as práticas radiofônicas reproduzidas e reproduzíveis nos


podcasts, é possível encontrar também aquelas que são próprias deste tipo de
emissão sonora, ou até mesmo aquelas adaptadas do teatro, do cinema e prin-
cipalmente da literatura. São as propriedades sensíveis e materiais do meio que
permitem, na verdade, essas possibilidades diferenciadas e versáteis que podem
ou não ser exploradas pelos produtores.
Entre as propriedades materiais do podcast, destacamos, em primeiro lugar,
a ausência da necessidade de vínculo com algum pólo emissor (indústria da
informação ou entretenimento) – como já comentamos anteriormente, em se-
gundo lugar o alcance desterritorializado, porém interdito àqueles que não têm
acesso à internet ou não dominam tal instrumental, em terciero lugar a segmen-
tação por nichos (um grupo restrito de interesses específicos em comum), e, por
fim, a transmissão assíncrona (on demand), em que é o usuário quem determina
quando e por quanto tempo vai estar em contato com o conteúdo (seja por meio
do seu MP3 player, iPod ou celular, depois de ter baixado e transferido o arqui-
vo, ou ainda no próprio computador). Temos, portanto, um suporte material
que promove total liberdade ao objeto, porém, em todos os casos a interação só
acontece pela ação do enunciatário, como explica Médola (2006: 186):

O papel do enunciador é anterior, pressuposto logicamente como em


qualquer linguagem, mas nesse caso ele somente é manifestado concre-
tamente, ou seja, auditiva e visualmente, pela ação de um enunciatário,
sujeito operador nesse processo comunicativo dotado de competência
semântica e competência modal para agir. Desta forma, o enunciado,
alocado no ciberespaço, é uma virtualidade que somente se atualiza pela
intervenção de um outro.
262 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

Outra característica desse meio (e não apenas dos sujeitos que nele circu-
lam) é o sincretismo. O podcast é um tipo de emissão sonora alocada na internet
e, por esse motivo, dispõe também dos recursos visuais disponíveis no site, o
que não acontece com o rádio tradicional. Apesar de o sistema RSS permitir que
o arquivo de áudio seja disponibilizado automaticamente no computador do
usuário, normalmente sua apresentação encontra-se num site, onde estão dis-
poníveis textos de apresentação, informações adicionais sobre o áudio, imagens
e até mesmo animações.
Devemos evidenciar também seu particular modo de distribuição através
do RSS, um sistema cujas propriedades também podem ser analisadas enquanto
desencadeadoras de práticas, pois nos podcasts, ao contrário da instantaneidade
do rádio, a oferta de conteúdo é permanente. Nele, é o ouvinte quem decide a
hora e o lugar da audição. É na relação com essa propriedade que enunciadores
e enunciatários (não esquecendo que ambos podem, ou não, ser um único indi-
víduo) desenvolvem hábitos de publicação e consumo.
Todas as propriedades sensíveis e materiais elencadas são responsáveis por
desencadear as práticas específicas do meio, cuja reflexão faz-se necessária para
que esse enunciador consiga estabelecer contratos com o enunciatário, satisfa-
zendo assim a sua necessidade de fazer conhecer a si e as suas produções.
A tabela a seguir apresenta algumas características do podcast e do rádio,
em relação tanto à produção quanto à consumação das suas diversas produções,
capazes de gerar práticas específicas, desenvolvidas certamente a partir das pro-
priedades do próprio suporte podcast. Vejamos:
Rádio e podcast: intersecção das práticas | 263

Características do podcast Características do rádio

1. Direcionamento de conteúdos específicos a 1. Conteúdo abrangente.


pequenos nichos. 2. Conteúdo único para diversas pessoas.
2. Possibilidade de versões diferentes do texto 3. Formato induzido, freqüentemente, por
em várias línguas. razões mercadológicas ou axiológicas.
3. Liberdade para escolha de formato, maior 4. Rigidez na freqüência e horários de
abertura para inovação. veiculação.
4. Descompromisso com a freqüência de 5. Instantâneidade/imediatismo do conteúdo.
Enunciador

publicação.
6. Interações reativas.
5. Atemporalidade do conteúdo.
7. Linguagem sonora exclusiva e indepen-
6. Abertura para comentários e participações dos dente.
ouvintes (interações on-line).
8. Rigidez técnica.
7. Interação da produção sonora com a lingua-
gem visual do site onde se hospeda (confluên- 9. Rigidez estilística.
cias de práticas). 10. Produção centralizada (prática estática).
8. Descompromisso com a qualidade técnica.
9. Descompromisso estilístico.
10. Mobilidade para produção (prática dinâmica).

1. Não periodicidade de verificação do agregador 1. Acesso ao conteúdo determinado pelo


(acesso ao conteúdo determinado pelo enun- ouvinte/enunciatário.
ciatário). 2. Audição possível em mídia móvel, desktop
2. Audição possível em mídia móvel ou em ou receptores fixos.
desktop.
Enunciatário

3. Uma única mídia possível.


3. Possibilidade de transferência entre mídias. 4. Volume limitado de transmissões dispo-
4. Volume ilimitado de podcasts assinados. níveis.
5. Limite de podcasts ouvidos depende da 5. Limite de programas ouvidos depende do
disponibilidade do usuário. usuário.
6. Possibilidade de comentários ou participações 6. Possibilidade de comentários ou participa-
nos podcasts ouvidos depende do ouvinte/enun- ções depende do produtor/enunciador.
ciatário.

No rádio, assim como no podcast, as propriedades do suporte também


exercem sua influência na constituição das práticas e, para uma melhor siste-
matização, dividimos as características das duas práticas, a do podcasting e a
radiofônica, a partir de duas perspectivas, a do enunciador e a do enunciatário,
embora esses papéis sejam cambiantes nesse tipo de mídia. No entanto, mesmo
sendo dinâmica a relação entre suporte e práticas, percebemos que há uma con-
solidação das práticas radiofônicas, numa espécie de institucionalização, prin-
cipalmente no que diz respeito à prática do ouvinte. Observando atentamente
264 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

a tabela, podemos chegar às seguintes conclusões: a prática radiofônica é, na


essência de sua produção, coletiva e apurada tecnicamente, delimitando muito
claramente, na maior parte das vezes, seu público ouvinte, seja graças à rigidez
de horários e formatos (durante a madrugada será muito provável que o público
ouvinte seja formado por um conjunto de notívagos, boêmios, trabalhadores
noturnos, e não por donas-de-casa, por exemplo), seja pela própria recorrência
de motivos e valores que vão ao encontro do gosto do público. Já a prática pod-
casting pode ser tida como uma prática de liberdade, basicamente porque para
funcionar basta, de uma maneira geral, a presença de um único produtor e, por
conseqüência, de seus próprios valores e motivações. Do ponto de vista da re-
cepção, a prática do ouvinte radiofônico é regida, de certa forma, pela liberdade
de escolha, no entanto, a prática da recepção altera-se quando se muda para o
suporte digital, já que o volume de escolha é maior, as interfaces são outras, e os
critérios de escolha também são outros. Além disso, estamos tratando da dis-
tribuição assíncrona que, como assinala Negroponte (1995:162), altera o modo
como o fruidor relaciona-se com o conteúdo, seja no que diz respeito ao tempo
de fruição, seja sobre o controle do conteúdo, podendo, por exemplo, ouvir o
mesmo programa repetidas vezes, ou mesmo editá-lo e modificá-lo.
Atribuímos o fenômeno de institucionalização das práticas radiofônicas a
dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, podemos considerar seu tempo
de existência, visto que a prática radiofônica tem quase um século de atividade
e, nesse longo período, toda forma de experimentação foi testada. Desse modo,
houve tempo suficiente para que certas práticas fossem aprovadas, sedimen-
tando-se assim no meio radiofônico, e encontrando respaldo na audiência e no
habitus do enunciatário. Em segundo lugar, por ter estado sua produção sempre
concentrada nas mãos de poucos (os poucos que ainda detem poderes políticos,
financeiros, influência na sociedade), as práticas radiofônicas foram tornando-se
modelares, tendo inclusive influenciado os primeiros passos da televisão. Desse
modo, as práticas desenvolvidas foram validadas dentro do próprio campo dos
produtores, sistematizadas e transmitidas enquanto procedimento e protocolo,
até transformarem-se em rituais tão introjetados na cultura de produtores e ou-
vintes que, mesmo diante de novas possibilidades, observa-se uma tendência à
conservação, como vimos no exemplo do Podcast Café.
Embora haja apropriação de muitas das práticas radiofônicas nos podcasts,
basicamente devido ao fato de terem em comum a emissão sonora, é importante
observar que muitas delas não se caracterizam apenas em função das diferenças
Rádio e podcast: intersecção das práticas | 265

entre as propriedades materiais de ambos os meios, no entanto é indiscutível


que há uma tendência de preservação dos modelos difundidos pelo rádio. Te-
mos que admitir que o podcast ainda não teve tempo nem condições favoráveis
para a sistematização de suas práticas tal como observamos no rádio. Ao con-
trário, suas propriedades favorecem outro tipo de desenvolvimento, o caminho
da interação e da colaboratividade, dada a maleabilidade a versatilidade de seu
suporte. Provas disto são o surgimento e a consolidação de programas colabo-
rativos nas emissoras de rádio tradicionais (e em menor escala, na televisão,
principalmente em programas que se valem de uma linguagem jovem) que já
têm como base a participação do ouvinte como produtor ativo e a transmissão
de podcasts produzidos pelos ouvintes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Miceli et al.
São Paulo: Perspectiva. 1974.
FONTANILLE, Jacques; ZILBERBERG, Claude. Tensão e significação. Trad. Ivã
Carlos Lopes et al. São Paulo: Humanitas, 2001.
LEMOS, André. Cidade e mobilidade. Telefones celulares, funções pós-massi-
vas e territórios informacionais. Matrizes – Revista do Programa de Ciências da
Comunicação da Universidade de São Paulo. São Paulo, Ano 1, N. 1, outubro
de 2007.
LEMOS, André. Podcast. Emissão sonora, futuro do rádio e cibercultura.
404nOtF0und – Revista do Centro de Estudos e Pesquisas em Cibercultura da
Faculdade de Comunicação da UFBA. Salvador, Ano 5, N. 46, Vol. 1, junho de
2005.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São
Paulo: Cultrix, 1964.
MÉDOLA, Ana Sílvia Lopes Davi. Globo Média Center: Televisão e internet
em processo de convergência midiática. In: LEMOS, André; BERGER, Chris-
ta; BARBOSA, Marialva (orgs.). Narrativas Midiáticas Contemporâneas. Porto
Alegre: Sulina, 2006.
266 | Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras,


1995.
PRIMO, Alex Fernando Teixeira. Para além da emissão sonora: as interações no
podcasting. Intexto. n. 13. Porto Alegre, 2005.
267

OS ORGANIZADORES
Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz é Pós-doutora em Comunicação (Rádio
e Televisão) como bolsista da CAPES em Limoges e Paris. É professora do curso
de Comunicação Social, vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universi-
dade Estadual Paulista (Unesp) e líder do GESCom-Unesp. Tem numerosa pro-
dução bibliográfica no campo da semiótica midiática, dedicando-se atualmente
a sua corrente tensiva.
mlvissotto@uol.com.br

Jean Cristtus Portela é Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa pela


Unesp de Araraquara, com período anual de estágio de doutorando na Uni-
versidade de Limoges (França), Mestre em Letras pela Universidade Estadual
de Londrina e Bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela Unesp de
Bauru. Traduziu Semiótica do Discurso (Contexto, 2007), de Jacques Fontanil-
le, e é autor de vários artigos e traduções nas áreas de Lingüística, Semiótica e
Comunicação.
jeanportela@uol.com.br
269

OS AUTORES
Adriane Ribeiro Andaló Tenuta é Mestre em Comunicação pela Unesp/
Bauru e membro do GESCom. Autora de Alfabetização, Letramento, Produção
de Texto – Em busca da palavra-mundo (FTD, 2000). Foi professora na rede
pública, tendo sido Delegada de Ensino de Bauru.
aandalobr@yahoo.com.br

Dimas Alexandre Soldi é Mestre em Comunicação pela Unesp/Bauru, Ba-


charel em Comunicação Social (Jornalismo) pela mesma instituição e membro
do GESCom, tendo sido bolsista FAPESP desde a Iniciação Científica.
dimasoldi@bol.com.br

Djaine Damiati Rezende é mestranda do Programa de Pós-graduação em


Comunicação da Unesp/Bauru. Graduada em Tecnologia em Informática pela
FATEC/Jaú, é radialista profissional com 13 anos de atuação em rádio e TV
como produtora, apresentadora e diretora. Vice-diretora de comunicação da
ABPod – Associação Brasileira de Podcasters.
djainedamiati@gmail.com

Jacques Fontanille é professor titular de Semiótica na Universidade de Limo-


ges (França), da qual é reitor. É também titular da cátedra de Semiótica do Instituto
Universitário da França, fundador do Centro de Pesquisas Semióticas (CeReS) e co-
diretor do Seminário Intersemiótico de Paris. Até o momento, publicou em tradu-
ção brasileira: Semiótica das Paixões (Ática, 1993), em co-autoria com A. J. Greimas;
Tensão e Significação (Discurso/Humanitas, 2001), em co-autoria com C. Zilberberg;
Significação e Visualidade (Sulina, 2005) e Semiótica do discurso (Contexto, 2007).
jacques.fontanille@unilim.fr
270

Jaqueline Esther Schiavoni é Mestre em Comunicação pela Unesp/Bauru,


Bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) pela mesma instituição e mem-
bro do GESCom, tendo sido bolsista FAPESP desde a Iniciação Científica.
jeschiavoni@yahoo.com.br

José Luiz Fiorin é Livre-docente em Teoria e Análise do Texto e Doutor em


Lingüística pela Universidade de São Paulo. Professor associado do Departa-
mento de Lingüística da FFLCH/USP, foi membro do Conselho Deliberativo do
CNPq e representante da área de Letras e Lingüística na CAPES. Autor, dentre
muitos outros, de As astúcias da enunciação (Ática, 1997) e Introdução ao pen-
samento de Bakhtin (Ática, 2006).
jolufi@uol.com.br

Juliano José de Araújo é Mestre em Comunicação pela Unesp/Bauru, profes-


sor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Rondônia (Unir) e mem-
bro do GESCom. Atualmente, também é assessor de comunicação da Unir.
julesaraujo@hotmail.com

Loredana Limoli é Pós-doutora em Letras pela USP e Doutora em Filolo-


gia e Lingüística pela UNESP/Assis. Professora associada do Departamento de
Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina, co-orga-
nizou, entre outros, os livros Entrelinhas, entretelas: os desafios da leitura (Edi-
tora da UEL, 2001) e Nas fronteiras da linguagem: leitura e produção de sentido
(Editorial Mídia, 2006).
anaderol@sercomtel.com.br

Mariza Bianconcini Teixeira Mendes é Doutora em Letras pela Unesp/


Araraquara e Mestre em Letras pela Unesp/Assis. Autora de Em busca dos contos
perdidos: o significado das funções femininas nos contos de Perrault (Editora da
Unesp, 2000) e membro pesquisadora do grupo GESCom e do grupo CASA-
Unesp/Araraquara.
marbitem@terra.com.br
271

Matheus Nogueira Schwartzmann é Mestre em Estudos Literários pela


Unesp/Araraquara e doutorando em Lingüística e Língua Portuguesa pela
mesma universidade, com estágio de doutorado de um ano na Universidade
de Limoges (França). É membro do grupo GESCom e do grupo CASA-Unesp/
Araraquara.
matheus_nogueira@uol.com.br

Sarah Caramaschi Degelo é Bacharel em Comunicação Social, com habili-


tação em Rádio e Televisão, produtora de TV e membro do GESCom.
sarahdegelo@gmail.com

Tânia Ferrarin Olivatti é mestranda do Programa de Pós-graduação em Co-


municação da Unesp/Bauru, Especialista em Comunicação, Publicidade e Negó-
cios pelo Centro Universitário de Maringá (Cesumar, PR), Bacharel em Jornalis-
mo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e membro do GESCom.
taniaolivatti@yahoo.com.br
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