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RESUMO
O presente trabalho aborda um dos festivais religiosos que ocorreu no Antigo Egito,
precisamente no Médio Império, na XII Dinastia, conhecido por Festival de Osíris; tal festejo
celebrava a morte e ressurreição dessa divindade. Nessa perspectiva pretende-se demonstrar
que houve possíveis indícios de representações dramáticas nesse festival (no qual era
representado o Mito do deus Osíris), para tanto nos ateremos em apresentar descrições
contidas numa estela funerária de um funcionário do Faraó Senusret III.
Dessa forma, tende-se a considerar que tais dramatizações exerceram funções quanto
à reforçar a conexão do deus com as pessoas, intensificando a crença em Osíris, estaria ligada
a aspectos agrários, trazendo esperanças de renovação do solo, além de ser uma forma de
manutenção do poder real.
ABSTRACT
The present work deals with one of the religious festivals that took place in Ancient
Egypt, precisely in the Middle Kingdom, in the XII Dynasty, known as Osiris Festival; such a
feast celebrated the death and resurrection of this deity. In this perspective we intend to
demonstrate that there were possible indications of dramatic representations in this festival (in
which the myth of the god Osiris was represented), so that we would be interested in
presenting descriptions contained in a funeral stele of an official of Pharaoh Senusret III.
Thus, one tends to consider that such dramatizations exerted functions as to
reinforce the connection of the god with the people, intensifying the belief in Osiris, would be
linked to agrarian aspects, bringing hopes of renewal of the soil, besides being a form of
maintenance of real power.
1
Graduada em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Duque de Caxias. Cursando Pós-
Graduação em História Antiga e Medieval pela Faculdade São Bento do Rio de Janeiro.
3
3
Introdução:
Sabemos através de autores que existem escassas pesquisas que tratam acerca de uma
possível dramatização no Antigo Egito, porém algumas investigações acadêmicas (mesmo
que ainda elementares sobre a temática aqui tratada) nos oferecem certa possibilidade para
analisarmos indícios de encenações, dramas entre o povo do Antigo Egito; assim como
Brancaglion Junior aborda que, com o deciframento dos hieróglifos e a observação cuidadosa
dos relevos, logo se tornou claro que os ritos egípcios haviam comportado cerimônias, com
características mímicas, que podem ser consideradas como rudimentos de uma arte
dramática2.
O Festival de Osíris
Nesse artigo atendo-se ao festival de Osíris, conhecido por Festival Anual de Khoiakh
que celebrava a sua morte e ressurreição, era realizado nas cidades principais de todo o Egito3.
O festival em honra ao deus Osíris coincidia com a época das cheias do rio Nilo,
correspondente ao mês Akhet (inundação)4, e eram realizados em Ábidos, sendo este o centro
religioso mais importante do Egito5.
Com relação a realização dessa celebração, podemos verificar que não era um festejo
executado simplesmente para a diversão ou satisfação humana, como se sucede em sociedades
atuais, pois para os grupos humanos da antiguidade não havia uma separação entre atividades
laicas, ou profanas, e atividades sagradas6.
2
JUNIOR, Antonio Brancaglion. Os Mistérios e o Teatro no Egito Antigo. São Paulo: Clássica, 1996-1997,
p.11.
3
DAVID, Rosalie. Religião e Magia no Antigo Egito; tradução Angela Machado, Rio de Janeiro: Bertrand,
2011. p. 212.
4
PETRUSKY, Maura Regina. Os Festivais Egípcios: Mito, Magia e Religiosidade. p. 356. In: BUENO, A.ndré;
ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton; NETO José Maria. Vários Orientes. Rio de Janeiro: União da
Vitória; Edições Sobre Ontens/ LAPHIS, 2017. p. 355- 361.
5
DAVID. op. cit., p. 487.
6
JOÃO, Maria Thereza David. A Religião no Antigo Oriente Próximo. In:___. Tópicos de História Antiga
Oriental. Curitiba: IBPEX, 2009. p. 79.
4
Osíris tinha como suas cores o preto, identificado ao renascimento e a cor fértil da
terra e também com o verde, que representava a fecundidade, a vegetação e o renascimento 9.
Verificamos que Osíris foi um deus tão importante que agregou em si características
que condiziam a outros deuses como menciona Santos:
Por ser um deus tão importante não só em um determinado período, mas perpassando
dinastias a sua adoração atingia desde a nobreza até as camadas mais simples; os cultos a esse
deus eram realizados no interior de templos, porém podemos observar que no Festival anual
de Osíris algumas práticas eram realizadas fora do templo (assunto que mencionaremos
7
DAVID. op. cit., 210.
8
FILIPE, Pedro Miguel dos Reis. Deuses em Festa- Os grandes festivais religiosos do Império Novo: Os
Festivais de Khoiak de Mênfis e Abido. 2011. Monografia (Dissertação de Mestrado em História Antiga)-
Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal, 2011. p. 71. Apud BAINES, John; MÁLEK, Jaromír, Atlas of Ancient
Egypt, Oxford, Equinox, 1980.
9
SANTOS, Poliane Vasconi dos. Religião e sociedade no Egito antigo: uma leitura do mito de Ísis e Osíris na
obra de Plutarco (I d.C.). 2003. Monografia (Dissertação de Mestrado em História)- Faculdade de Ciências e
Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista.Assis, São Paulo, p. 39. Apud MÁLEK, J.; BAINES, J. O
mundo egípcio. Deuses, templos e faraós. Trad. Maria Emília Vidigal. Madri: Edições Del Prado, 1996. p. 152.
10
SANTOS, P.V dos. op.cit., p.43.
5
11
DAVID. op. cit., p. 261.
12
ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Trad. Manuela Torres. Lisboa: Edições 70. 1963. (Perspectivas do
homem; v. 19). p. 12.
13
MALINOWSKI, Bronisław Kasper. Magia, Ciencia e Religión. Trad. Antonio Pérez Ramos. Barcelona:
Planeta Agostini, 1948, p. 36-37.
14
BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. trad. de Maria Paula Zurawsdi, J. Guinsburg, Sergio
Coelho e Clóvis Garcia. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 12.
6
importante, pois a pretensão desse trabalho é analisar aspectos dramáticos nos mistérios de
Osíris e o papel que os mesmos cumpriam no Festival Osíriaco.
Determinados pesquisadores procuram averiguar a presença de drama em fontes
primárias egípcias, além da mencionada estela de Ikhernofret, que expõe indícios dramáticos;
como o egiptologista Gaston Maspero, em 1882, chamou a atenção para o caráter “dramático”
dos textos das pirâmides15, além de Georges Bénédite (...). Ele via nas cerimônias funerárias,
em especial as relacionadas com o mito de Osíris, representações de “mistérios” análogos às
representações mímicas das festas de Dioniso.16
Podemos nos informar também através de autores clássicos que visitaram o Egito,
como Heródoto que teria testemunhado uma cerimônia do episódio da ressurreição de Osíris e
Plutarco, ao narrar cerimônias em honra a Osíris17.
Não iremos nos ater aos relatos dos autores clássicos referidos acima, os mesmos são
mencionados para reforçarmos que houve possíveis sinais de representações dramáticas nos
cultos a Osíris; verificamos que tais autores são gregos e, portanto, tinham informações acerca
do gênero drama, portanto nos vale nessa conjuntura tentar expor, mesmo que seja de forma
singela acerca do drama para relaciona-lo aos mistérios de Osíris.
O drama tem de sua origem grega, um duplo sentido: o de agir e o de representar 18. Os
três grandes gêneros dramáticos, na Grécia e em Roma, foram a tragédia, a comédia e o drama
satírico.19 Queremos nos ater aqui à tragédia, pois como nos coloca Filipe:
15
BERTHOLD. op. cit., p. 10.
16
JUNIOR. op. cit., p.12.
17
Ibidem. p.12-13.
18
BALANDIER, Georges. O Poder em Cena. Universidade de Brasília. Brasília, 1982. Tradução Luiz Tupy
Caldas de Moura. Coleção Pensamento Politico. p. 5.
19
GRIMAL, Pierre. O Teatro Antigo. Lisboa: Edições 70, 1978. p. 25.
20
FILIPE. 2011, p. 84. Apud Mélina PERRAUD, “Les fêtes d'Osiris du mois de Khoiak - Mystères et rituels
dramatiques”, em Toutankhamon Magazine, 32, 2007, p. 28-30.
7
acerca do mito do deus Osíris, acerca disso Bielesch nos aborda que esses Mistérios como
colocado, podem ser divididos em cinco atos principais de acordo com a descrição da estela21.
Eu arranjei a Procissão de Wepwawet quando ele foi defender (vingar, apoiar) seu
pai.
Eu repeli aqueles os quais se rebelaram contra a barca neshemet e subjuguei os
inimigos de Osíris23.
3. Grande Procissão, momento no qual Osíris morre, sua tumba é então preparada e
ele é enterrado em Peker no qual ele recebe a coroa de justificação.
21
BIELESCH, Simone Maria. O Festival de Khoiak: a celebração dos ciclos do Renascimento. São Paulo, n.2,
p. 5-33, jul. 2011. Angelus Novus, p. 17. Apud MORET, Alexandre. The Nile and the Egyptian Civilization.
Mineola, New York: Dover Publications, Inc., 2001 [1927]. p. 249-251.
22
Ibidem. p. 17.
23
BIELESCH. p. 17. Apud FRANKFORT, Henri. Kingship and the Gods – A Study of Ancient Near Eastern
Religion as the Integration of Society & Nature. 7ª edição. Chicago, Londres: The University of Chicago Press,
1948. p. 203.
24
BIELESCH. loc. cit.
8
Eles viram a beleza da barca neshemet, assim que ela chegava em Abidos. Ela trazia
[Osíris, Primeiro dos Ocidentais, Senhor] de Abidos para o seu palácio. Eu segui o
deus para a sua casa. A sua purificação foi feita; seu trono foi feito espaçoso. Eu
soltei o nó no ---; [ele veio descansar entre] seus [companheiros], seu séquito.26
Alguns ritos eram realizados dentro das áreas mais sagradas do templo, como o
“Levantamento do Pilar Djed”, quando os sacerdotes erguiam um pilar deitado (que
representava Osíris) para a posição ereta, significando a sua ressurreição. Entretanto,
outros estágios dos Mistérios de Osíris eram realizados fora do templo: a estátua do
deus era levada em procissão entre seu templo e a sua “tumba”, acompanhada de
cenas de combate realizados para recriar os eventos do seu reinado, morte e
ressurreição. Isso possibilitava que as pessoas comuns do povo, que tinham viajado
até Ábidos como peregrinos, participassem diretamente da celebração.28
25
Ibidem. p.18.
26
BIELESCH. p. 18. Apud LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature, Vol. I: The Old and Middle
Kingdoms. Berkeley, Los Angeles, Londres: University of California Press, 1973. p. 125.
27
VIANA, Fausto; NETO, Antonio Heráclito C. Campello (org.). Introdução Histórica sobre Cenografia- os
primeiros rascunhos- São Paulo: Fausto Viana, 2010. p. 15.
28
DAVID. op. cit., loc. cit.
9
Berthold reforça essa ideia, quando nos coloca que a cena da morte provavelmente não
acontecia às vistas do público comum, como a crucificação no Gólgota, mas em segredo29, ou
seja, em “mistérios”, provavelmente por isso o nome “Mistérios de Osíris”.
29
BERTHOLD. op. cit., 13.
30
SANTOS, P.V dos. op. cit., p. 37.
31
DAVID. op. cit., p. 28.
32
BERTHOLD, op. cit., loc. cit.
33
DAVID. op. cit., . 211-212.
10
marcada pela pobreza, doença e extrema incerteza34 quanto a improdutividade do solo haveria
renovação do mesmo, para que pudesse haver colheita.
Levando também em consideração a questão de que as dramatizações poderiam
colaborar para a manutenção do poder real, já que os faraós se rotulavam “Horús na Terra”,
considerando que Osíris deixou como seu sucessor direto seu filho Hórus e, assim, todos os
faraós consideravam-se seus descendentes diretos.35
Vinculado a isso, podemos verificar que no final do Antigo Império o poder politico e
econômico entrou em declínio, a divindade do rei ficou enfraquecida, de modo que por fim
ele passou a ser visto simplesmente como mais um regente entre vários.36 Assim, sobrevieram
modificações quanto a forma de se ver a realeza faraônica até o Médio Império; os reis da XII
Dinastia escolheram enfatizar suas qualidades pessoais como regentes, contudo o mito de que
era filho dos deuses ainda perdurou durante todo esse período37.
Em relação a essas mudanças quanto ao modo de visualizar a realeza não iremos
detalhar, porém se fez necessário mencionar, pois se observa, contudo que o mito de “Filho
dos deuses” permanece; não sabemos até que ponto era sustentado, mas que por meio do Mito
de Osíris podemos verificar que o rótulo de “Hórus” ( mencionado anteriormente) em relação
a faraó era estimulado, pois se percebe na encenação que a derrota dos inimigos de Osíris,
confirmaria a elevação de faraó como único e legitimo herdeiro de sua posição como o
“Senhor dos egípcios”38, ou seja, filho de um deus (Osíris), aquele que combate o mau
reestabelecendo a ordem e que governa os vivos; portanto percebemos na dramatização uma
forma de ilustrar ao povo a importância da realeza.
Enfim, considerando os pontos referidos nesse trabalho, pode-se atentar que a exibição
do Mito de Osíris possuía aspectos dramáticos, mesmo sendo de fundo litúrgico, e a estela
de Ikhernofret é uma fonte que reforça a perspectiva cênica.
Além da estela mencionada nesse trabalho, podemos encontrar indícios dramáticos em
outras fontes egípcias, como a estela de Mentuhotep, vizir do faraó Senusret I, Estela do
príncipe Seheteptibra, conselheiro do faraó Senusret III, além de uma estela encontrada em
Edfu, datada da XII dinastia39. Tais fontes não foram detalhadas nesse artigo, porém são
34
FILIPE. p. 24. Apud Ricardo CAMINOS, “O camponês”, em Sergio DONADONI (dir.), O Homem Egípcio,
Lisboa, Editorial Presença, 1994, pp. 13-36.
35
SANTOS, P.V dos. op. cit., p. 56.
36
DAVID. op. cit., p. 184-185.
37
Ibidem., p. 203-204.
38
PETRUSKI. op. cit., p. 360.
39
JÚNIOR. op. cit., p. 14.
11
citadas aqui, pois nelas contém indícios que intensificam que houve dramatizações no Egito
Antigo.
Compreendemos que tais dramatizações não se comparam as da Grécia Antiga, mas
através das informações que temos acerca do drama grego e das informações contidas na
estela de Ikhernofret podemos inferir que há indícios de drama no Mito de Osíris realizado no
Festival de Khoiak e que tais dramatizações tinham suas funções como apresentadas
anteriormente.
O que não sabemos é qual o caminho que este drama-litúrgico seguiu. Possivelmente,
representações litúrgicas teriam se transformado de ritual velado em drama aberto, de
mistérios secretos em teatro popular40.
40
Ibidem., p. 17.
12
BIBLIOGRAFIA
DAVID, Rosalie. Religião e Magia no Antigo Egito; tradução Angela Machado, Rio de
Janeiro: Bertrand, 2011.
ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Trad. Manuela Torres. Lisboa: Edições 70. 1963.
(Perspectivas do homem; v. 19).
FILIPE, Pedro Miguel dos Reis. Deuses em Festa- Os grandes festivais religiosos do Império
Novo: Os Festivais de Khoiak de Mênfis e Abido. 2011. Monografia (Dissertação de
Mestrado em História Antiga)- Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal, 2011.
GRIMAL, Pierre. O Teatro Antigo. Lisboa: Edições 70, 1978.
JOÃO, Maria Thereza David. A Religião no Antigo Oriente Próximo. In:___. Tópicos de
História Antiga Oriental. Curitiba: IBPEX, 2009.
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1996-1997.
MALINOWSKI, Bronisław Kasper. Magia, Ciencia e Religión. Trad. Antonio Pérez Ramos.
Barcelona: Planeta Agostini, 1948.
PETRUSKY, Maura Regina. In: BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton;
NETO José Maria. Vários Orientes. Rio de Janeiro: União da Vitória; Edições Sobre Ontens/
LAPHIS, 2017. p. 355- 361.
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