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DeVry | UNIFAVIP

CENTRO UNIVERSITÁRIO DO VALE DO IPOJUCA


COORDENAÇÃO DE JORNALISMO

ALEXANDRE BEZERRA DE ALMEIDA

“CÊ VAI SE ARREPENDER DE LEVANTAR A MÃO PRA MIM”: ELZA, A MULHER DO


FIM DO MUNDO

CARUARU
2017
ALEXANDRE BEZERRA DE ALMEIDA

“CÊ VAI SE ARREPENDER DE LEVANTAR A MÃO PRA MIM”: ELZA, A MULHER DO


FIM DO MUNDO

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


Centro Universitário do Vale do Ipojuca, como
requisito parcial para obtenção do título de
Bacharel em Jornalismo.

Orientadora: Kywza Joanna Fideles Pereira dos


Santos

CARUARU
2017
2

“Cê Vai Se Arrepender De Levantar A Mão Pra Mim”: Elza, A Mulher do Fim do Mundo1

Alexandre Bezerra de ALMEIDA2


Kywza Joanna Fideles Pereira dos SANTOS 3

Centro Universitário do Vale do Ipojuca, Unifavip/Devry, Caruaru, PE

RESUMO

O intuito desse artigo é analisar as narrativas de violência contra a mulher nas canções
interpretadas por Elza Soares, a partir do álbum “A Mulher do Fim do Mundo”, tendo como
ponto de partida a canção “Maria de Vila Matilde”. Desse modo, propõe-se uma abordagem
descritiva, trazendo os aspectos comparativos de trabalhos anteriores. No intuito de desenvolver
uma pesquisa sobre violência doméstica, questões de gênero e feminismo negro, observou-se os
aspectos sociais, culturais e raciais que servem de pilares para a sociedade brasileira. Para tanto,
foi preciso um retrospecto da vida da intérprete, compreendendo e problematizando seu lugar de
fala e o conceito do disco como um retrato social, mas pensando nessas narrativas de
empoderamento feminino na contemporaneidade, enquanto desconstrução dos estereótipos de
gênero, classe e raça através da indústria fonográfica.

PALAVRAS-CHAVE: Violência doméstica; Elza Soares; empoderamento feminino; indústria


fonográfica.

ABSTRACT

This present article intent is to analyze the narratives about violence against women in the songs
interpreted by Elza Soares, starting by the album “A Mulher do Fim do Mundo”, having as a
starting point the song “Maria da Vila Matilde”. This way, it proposes a descriptive approach,
bringing the comparative aspects of previous works. In the intent of developing a research about
the home violence, gender’s questions and black feminism, it observed the social, cultural and
racial aspects that serve as pillars to the Brazilian society. For that, was necessary a retrospect of
the interpret life, understanding and problematizing her speak place and the disc’s concept as a
social portrait, but thinking in these narratives of female empowerment in the contemporaneity,
while deconstruction of gender, class and race’s stereotypes trough the phonographic industry.

KEYWORDS: Home violence; Elza Soares; female empowerment; phonographic industry.

1
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Centro Universitário do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP/Devry – Caruaru, 2017.
2 Graduando em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca -
Unifavip/Devry – Caruaru – PE. E-mail: alexandrebezerra.favip@hotmail.com
3 Doutora e mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM/UFPE). Professora do Centro

Universitário do Vale do Ipojuca - Unifavip/Devry - Caruaru – PE. E-mail: kywzafideles@gmail.com


3

INTRODUÇÃO

Em 3 de outubro de 2015, Elza Soares lançou um dos álbuns brasileiros mais aclamados
pela crítica, intitulado “A Mulher do Fim do Mundo4”, foi o seu trigésimo quarto trabalho, sendo
o primeiro com canções inéditas. Obteve notas positivas na crítica especializada de renome
mundialmente, como o The New York Times, Pitchfork, Allmusic, The Guardian, El País, e dos
brasileiros O Globo, Folha de S. Paulo e Rolling Stone Brasil. O projeto se concretizou depois da
união entre a artista e produtores de São Paulo, como o idealizador do álbum, Guilherme Kastrup
e os compositores Douglas Germano, Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Cacá
Machado, Clima, José Miguel Wisnik, além dos metais do Bixiga 70.
Vencedor do Grammy latino de melhor álbum de música brasileira, o disco trouxe uma
Elza conceitual e intimidadora, com sua voz singularmente rasgada, expõe suas experiências em
um híbrido de samba e rock, que os autores definem como “punk-samba”, distorcido numa
melodia contemporânea com temas que são e foram tabus durante grande parte de sua trajetória
musical. A cantora fala sobre feminismo, negritude, sexualidade, violência doméstica de uma
forma clara e objetiva, mas durante um longo período no início da carreira não era um debate
frequente nas suas canções.
Elza pautou questões raciais em suas interpretações famosas, exemplo disso foi em 2002.
Afastada da mídia, trouxe no álbum “Do Cóccix até o Pescoço” uma reinvenção estética, artística
e sonora, com uma inclusão de sons e ritmos que causou uma harmonização bem distinta de tudo
que ela já tinha feito – assim como fez no seu mais recente trabalho. Em “A Carne” a Elza
politizada está numa crescente, fazendo uma crítica à condição da população negra na sociedade:
“A carne mais barata do mercado é a carne negra / Que vai de graça pro presídio / E para debaixo
do plástico / Que vai de graça pro subemprego / E pros hospitais psiquiátrico”. Escrita por Seu
Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette, “A carne” pode ser vista como uma projeção do que
Elza traria em “A mulher do fim do mundo”: a discussão da africanidade e da degradação social
como críticas em suas canções.

O antepassado da cor carrega uma memória ancestral. O corpo negro é uma


herança, é algo que lembra a história do país e impulsiona a luta por justiça. “A
carne” aponta para uma história invisibilizada, mal lembrada, de escravas,
escravos, comerciantes que fizeram fortunas, escravos libertos sem ter para onde
ir, mulheres “pegas a laço”, obrigadas a casar. Essa história deixou marcas nos

4 SOARES, Elza. A Mulher do Fim do Mundo. São Paulo. Selo Circus. 2015. Faixa 3 (3 min 45).
4

corpos de negros e mestiços de todas as cores, das quais genealogias e histórias


de família dão conta. Se o uso do revólver para a vingança é ameaçador, é a
própria história que colocar em questão a branquitude como autoridade e mando.
(SOVIK, 2009, p. 133)

A música brasileira vem passando por uma reconfiguração no que se refere à produção
feminina, que não está restrita a um só gênero, desde MPB ao rap, sertanejo ao samba – as
mulheres vêm mostrando uma autonomia nas suas composições e performances, falando dos seus
corpos, convicções e criticando a sua imagem deturpada na sociedade. Elza fala da violência
doméstica no olhar de uma mulher ativa e forte, que não abaixa a voz e denuncia o agressor –
adotando uma postura oposta ao retrato social.
Segundo a Central de Atendimento à Mulher5, no primeiro semestre de 2016, 12,23%
(67.962) dos atendimentos pelo ligue 180, foram relatos de violência contra a mulher. Entre eles,
51,06% corresponderam à violência física; 31,10%, violência psicológica; 6,51%,
violência moral; 4,86%, cárcere privado; 4,30%, violência sexual; 1,93%, violência patrimonial;
e 0,24%, tráfico de pessoas. Dados que mostram a recorrência da brutalidade contra as mulheres,
– mesmo com esses números, muitas têm receio da exposição, por vários motivos: ameaças,
medo, repressão, etc.
As mulheres negras são as mais afetadas por esses tipos de agressões. De acordo com o
levantamento do Atlas da Violência 20176, publicado através do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), entre os anos de 2005 a 2015, o número de violência contra as mulheres negras
teve um crescimento altíssimo. À medida que a mortalidade de mulheres brancas diminuiu 7,4%,
chegando a 3,1 mortes para cada 100 mil mulheres, a mortalidade das mulheres negras aumentou,
atingindo 22%, passando para 5,2 a taxa de mortes para cada 100 mil. Enquanto a média nacional
é de 4,5 mortes para cada 100 mil habitantes. Números que refletem o racismo e o machismo
como sintomas sociais que afetam principalmente as mulheres negras.
A melodia do “A Mulher do Fim do Mundo”7 é bastante dinâmica, com instrumentos
variados e diferentes de todos os trabalhos anteriores de Elza, tendo, até então, o “Do Cóccix até
o Pescoço” como a produção que mais se assemelha em termos de sonoplastia. Em Maria da Vila

5 Central de atendimento e apoio a mulher oferecido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República,
desde 2005. Disque 180. Acesso em: 10 de abril de 2017.
6
Disponível em <http://www.ipea.gov.br/portal/images/170602_atlas_da_violencia_2017.pdf> Acesso em: 10 de novembro de
2017.
7 Trigésimo quarto álbum da artista. Possui dois singles: "Maria da Vila Matilde" lançamento: 11 de agosto de 2015 e "Luz

Vermelha" lançamento: 10 de setembro de 2015. Disponível no site da gravadora: <http://www.naturamusical.com.br/ouca-


mulher-do-fim-do-mundo-novo-disco-da-elza-soares> Acesso em: 13 de abril de 2017.
5

Matilde é nítido a satirização da violência doméstica representando todas as mulheres que sofrem
abuso. Douglas Germano, o compositor da música, contou em entrevista8 à revista Rolling Stone
Brasil: “Sou filho de uma Maria. Eu vi essa Maria, minha mãe, apanhar em casa. Era garoto e
podia fazer muito pouco além de sentir medo de meu pai e dó de minha mãe. [...] minha mãe
soluçava pela casa com hematomas e meu pai saía para trabalhar. Aquilo era como se fosse um
segredo nosso. Segredo de família. Achava ruim.” O músico pensou em Elza para interpretar a
canção pois viu, ainda criança, Elza “abordar” o assunto quando ninguém falava.
Elza Soares conhece bem o assunto, casou-se aos 12, por vontade de seu pai, teve seu
primeiro filho um ano depois e levou sua vida com muita dificuldade – conheceu Garrincha nos
anos 60, com ele teve um relacionamento conturbado e abusivo. Garrincha era um jogador de
futebol muito aclamado no mundo esportivo, esse foi um dos motivos que a fez calar-se na época.
Uma mulher negra e de origem social e racial marginalizada que teve conturbações durante toda
sua vida, assegura-se, hoje, um posicionamento no meio massivo, cantando sobre sofrimento
urbano, morte, transexualidade, narcodependência e violência doméstica. Maria da Vila Matilde
traz uma mulher independente e destemida, com uma forte representação nos trechos: “Cadê meu
celular? Eu vou ligar prum oito zero / Aqui você não entra mais eu digo que não te conheço e
jogo água fervendo se você se aventurar / Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim /
quando o samango chegar eu mostro o roxo no meu braço”, – mostra uma mulher resistente,
fugindo um pouco das composições falocêntricas presente na indústria, onde a figura feminina é
frágil, dependente e sexualizada.
Dessa forma, para construirmos um estudo embasado e preciso, utilizaremos os métodos
qualitativos, descritivo e dialéticos, além da pesquisa exploratória, observando os trabalhos
anteriores e a vida da cantora para analisar as relações com o conceito do “A Mulher do Fim do
Mundo”. Pesquisa empírica e teórica para observar a narrativa de “Maria da Vila Matilde” e do
álbum no contexto musical, fazendo um comparativo com algumas canções do álbum e anteriores
a ele, para analisar o discurso de Elza em cada uma delas, aproveitando a pesquisa bibliográfica
como ferramenta de orientação dos tópicos que envolve feminismo e negritude na música –
realizando uma busca de teorias que descrevam o reflexo da realidade social nos produtos
culturais.

8 Link da entrevista: <http://rollingstone.uol.com.br/noticia/elza-soares-brada-contra-violencia-domestica-em-novo-single-


ouca/#imagem0> Acesso em: 11 de abril de 2017.
6

CANÇÃO E EMPODERAMENTO: A MULHER ALÉM DA VILA MATILDE

A canção “Maria da Vila Matilde” é uma crítica ácida à violência contra a mulher; com
uma sonoridade que mescla punk e samba ligado a uma composição intensa e direta, utiliza-se
uma linguagem simples e inteligível que facilita a compreensão da mensagem. No prólogo da
música, Elza se transforma em uma pessoa destemida, entoando uma mensagem forte sobre as
agressões sofrida por “Maria”, nome simbólico que representa as mulheres que já sofreram ou
sofrem algum tipo de violência.
A música está presente no trigésimo quarto álbum9 da cantora “A mulher do Fim do
Mundo”, trabalho que traz um cenário do fim dos tempos, um lugar cheio de violências e
sofrimento, cada música fala sobre um martírio diferente, relativo a toda forma de dor
envolvendo algumas classes minoritárias e a própria experiência de vida de Elza Soares.
Antes de falar sobre violência doméstica é preciso compreender a construção social da
mulher, Alves e Pitanguy (1982) afirma que essa concepção se deu a partir de uma conduta social
que determina os papeis dos gêneros:

O “masculino e o “feminino” são criações culturais e, como tal, são


comportamentos apreendidos através do processo de socialização que
condiciona diretamente os sexos para cumprirem funções sociais específicas e
diversas. Essa aprendizagem é um processo social. Aprendemos a ser homens e
mulheres e a aceitar como “naturais” as relações de poder entre os sexos. A
menina, assim, aprende a ser doce, obediente, passiva, altruísta, dependente;
enquanto o menino aprende a ser agressivo, competitivo, ativo, independente.
Como se tais qualidades fossem parte de suas próprias “naturezas”. (ALVES e
PITANGUY, 1982, p. 56).

Foi construída e interpretada a figura do homem como dominador e superior, derivado


de uma desigualdade entre os gêneros. Isso está enraizado na sociedade, uma normatização do
comportamento que estabelece os papeis sociais dos indivíduos. A submissão está relacionada a
essa dominação, no sentido de que o homem controla as atitudes e ações da mulher, definindo o
que é certo ou errado perante à sociedade, diminuindo assim, a liberdade feminina e ratificando a
superioridade masculina. A violência doméstica é uma cultura sistematizada através desse
processo machista, que permite ao homem estabelecer um domínio sobre a mulher – tendo às

9 Primeiro álbum com músicas inéditas da cantora, todos os outros foram de regravações. A Mulher do Fim do Mundo se
concretizou depois da união entre a artista e produtores paulistas da cena atual.
7

vezes uma reciprocidade, pois esse pensamento não é necessariamente isento ao gênero feminino,
– quando imersa nesse contexto, a mulher passa a ter uma compreensão social fundamentada em
um modelo patriarcal e muitas vezes não consegue identificar certas problemáticas que a envolve,
se adequando a essas condutas indiretamente:

Mas, enquanto algumas mulheres ainda tentam alcançar a liberdade


vicariamente, através da luta dos negros, ou de outros grupos racialmente
oprimidos (também biologicamente distintos), muitas outras mulheres
abandonaram completamente a luta. Em vez disso, preferem aceitar a opressão,
identificando os próprios interesses com os dos homens, na vã ilusão de que o
poder possa se dissipar. A solução delas foi destruir – em geral por amor – seus
fracos egos individuais, para fundir-se completamente com os egos poderosos de
seus homens. (FIRESTONE, 1986, p. 130)

A demarcação dos campos de atuação das mulheres é estabelecida pela sociedade.


Cuidados com a casa e educação dos filhos são algumas atribuições direcionadas a elas, – tarefas
que foram determinadas e naturalizadas ao longo do tempo. Assim, as pessoas consideram essas
funções instituídas como “coisas de homem” e “coisas de mulher”, tendo total influência na
educação desses indivíduos. A disparidade de gênero faz com que a mulher resguarde suas
opiniões quando são contrárias ao pensamento do homem, evitando fugir da estrutura hierárquica
que a coloca em um lugar de inferioridade, sistema que conduz o pensamento e o comportamento
feminino.
Historicamente, nas sociedades ocidentais, o homem sempre possuiu o poder nas relações
sociais, a mulher era limitada ao âmbito familiar, sendo uma boa esposa e uma reprodutora. O
ambiente externo que envolvia assuntos como economia, política, era um espaço de ocupação
masculina. Essa estigmatização resultou em um modelo de sociedade desigual, onde as mulheres
têm os direitos determinados.
O desejo do corpo feminino, nesse aspecto de dominação, é algo que foge de seu controle,
a sexualização começa a ser constantemente atribuída a ela, resultando no estereótipo da mulher
como objeto sexual de prazer do homem. A erotização da mulher negra é ainda mais forte nesse
sentido, pois carrega um reflexo da escravatura, onde ela era uma propriedade que tinha também
finalidades sexuais. Essa naturalização da obsessão por corpos femininos pode resultar em
opressões contra as mulheres que tem seus direitos violados. Em suas pesquisas, Saffioti (1987)
ressalta esse poder masculino sobre o corpo objetificado da mulher e como essa postura tem
ligação com o processo de socialização:
8

O caso extremo do uso do poder nas relações homem-mulher pode ser


caracterizado pelo estupro. Contrariando a vontade da mulher, o homem mantém
com ela relações sexuais, provando, assim, sua capacidade de submeter a outra
parte, ou seja, aquela que, segundo a ideologia dominante, não tem direito de
desejar, não tem direito de escolha. (SAFFIOTI, 1987, p. 18)

A mulher se expressa e age de forma acanhada, pois é coagida a se enquadrar nesses


paradigmas, é importante ressaltar que essa realidade é edificada socialmente, através da
disparidade constituída historicamente. Em meio a essas constatações, as músicas “Maria da Vila
Matilde”, “Pra Fuder” e “Benedita”, presentes no álbum “A mulher do Fim do Mundo”,
caracterizam-se em uma óptica feminista cantada por alguém que tem uma proximidade pessoal
com a narrativa – contrastando com a mulher criada nesse molde.

ELZA, MAS PODE ME CHAMAR DE MARIA

A escolha da intérprete não foi aleatória, Douglas Germano, compositor da música,


pensou em Elza Soares para cantar e retratar a experiência de sua mãe, Maria, moradora da Vila
Matilde que viveu um relacionamento abusivo com o pai do autor. A cantora também se
enquadra nesse contexto, – nasceu em 1937 na comunidade da Moça Bonita10, em Padre Miguel;
mulher, negra e pobre, casou à força aos doze anos com Alaúrdes, de vinte e dois, e pariu um ano
depois – conheceu o machismo e a violência logo cedo, principalmente com o nascimento do seu
primeiro filho na sua maternidade prematura, “Certa tarde, voltando mais cedo para casa, não
encontrou a mulher. Fora soltar pipa e levara o bebê numa cesta de vime. Aconteceu a primeira
briga. A segunda, com troca de tapas, ocorreu quando Elza anunciou que trabalharia fora, coisa
que o macho da casa não admitia.” (LOUZEIRO, 1997, p. 15).
Durante esse período, teve que sair para procurar trabalho, principalmente depois que seu
primeiro filho adoeceu. Elza então se deparou com uma realidade que já conhecia: ser mulher já a
colocava em uma situação inferior ao dos homens, em vários quesitos, e ser mulher e negra era
mais complicado ainda, devido a uma carga histórica de desigualdade racial, fato que teve que
lidar por muito tempo. Isso era visível no início da carreira de Elza como cantora e seus trabalhos
em fábricas quando jovem. Ela era sempre inferiorizada pela sua cor, independente das suas

10Hoje se chama de Vila Vintém, fica entre os bairros de Realengo e Padre Miguel, na Zona Oeste da capital fluminense, Rio de
Janeiro.
9

qualidades, mas as necessidades financeiras faziam com que ela se calasse diante dessas
situações. Davis (2016) retrata essa condição de trabalho da mulher negra no livro “Mulheres,
Raça e Classe”, uma das obras mais famosas sobre as questões raciais e feministas em sociedade:

Proporcionalmente, as mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do


que as suas irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida
das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos
da escravidão. Como escravas, essas mulheres tinham todos os outros aspectos
de sua existência ofuscados pelo trabalho compulsório. Aparentemente,
portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida das mulheres negras
na escravidão seria uma avaliação de seu papel como trabalhadoras. (DAVIS,
2016 p. 17).

A mulher negra ocupa o lugar mais desprivilegiado da sociedade, sendo duplamente


discriminada: enquanto mulher, enquanto negra (SAFFIOTI, 1987). Isso é um reflexo social que
pode ser analisado na limitação das opções de trabalhos dessas mulheres, assim como na
educação. Em um país onde cerca de 54% da população, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística)11, se considera negra ou parda, apenas 17,8% estão no grupo de 1% dos
mais ricos da população. Já nos 10% dos mais pobres, 75% são negros e pardos. Enquanto que
nas universidades o número é de 12,8% na última pesquisa em 201512, e jovens brancos com a
mesma faixa etária, 18 a 24 anos, tem o percentual de 26,5%. Essa desigualdade faz com a busca
por emprego seja antecipada o que muitas vezes atrapalha nos estudos.
Os primeiros anos de Elza como mãe foram períodos difíceis e dolorosos, em menos de
dois anos viu seu segundo filho morrer de fome; doou seu outro menino que estava muito doente;
com vinte era mãe de cinco e posteriormente ficara viúva, aos vinte e um. Alaúrdes morreu de
pneumoconiose, doença respiratória proveniente de seu intenso trabalho na pedreira, onde se
conheceram.
Em 1953, Elza participou do programa de calouros da Rádio Tupi, comandado por Ary
Barroso. Saiu escondida de casa com um vestido da mãe repleto de alfinetes, para ficar do seu
tamanho, chegando lá foi motivo de risos da plateia e do próprio apresentador, que perguntou de
que planeta ela veio, sem hesitar respondeu: “– Do planeta fome”. O silêncio predominou no
estúdio, até que a voz de Elza tomou conta do lugar. Cantando “Lama”, de Paulo Marques e

11 <https://exame.abril.com.br/economia/o-tamanho-da-desigualdade-racial-no-brasil-em-um-grafico/> Acesso em: 16 de


novembro de 2017.
12 Pesquisa mais recente do IBGE <https://guiadoestudante.abril.com.br/universidades/percentual-de-negros-nas-universidades-

dobra-em-10-anos/> Acesso em: 16 de novembro de 2017.


10

Ailce Chaves, a menina de 16 anos foi aplaudida de pé e abraçada por Ary, que anunciou “–
senhoras e senhores, nasce uma estrela”. Elza acabou vencendo o programa, o que ajudou nas
dívidas, feira e remédios.
Louzeiro (1997) ainda traz alguns depoimentos de Elza durante a produção da biografia,
onde ela conta as várias experiências com o racismo durante sua vida. A cantora lembra que isso
era comum nos primeiros espaços que conseguiu quando estava iniciando a carreira, e ainda
jovem viu essa atitude partir do seu primeiro marido:

O primeiro caso ocorreu em casa, quase um ano após ter casado com Alaúrdes,
ou melhor, durante o primeiro desentendimento. Na discussão, o filho de
italianos exibiu a cor da pele e mandou que ela se colocasse no lugar de negra,
que, segundo ele, era na cozinha. Da primeira briga em diante, foi vítima de
estupros e agressões de toda ordem, mas a discriminação racial é que doía de
verdade. E partiu justamente do homem a quem procurou ajudar, inclusive
ensinando-o a ler e a escrever. (LOUZEIRO, 1997, p. 95).

Outro relacionamento conturbado da cantora foi com o jogador Manuel Francisco dos
Santos, o Mané Garrincha, em 1963, onde encarou inúmeros estereótipos envolvendo o romance.
Em 1966 se casaram depois de muita polêmica. O esportista era alcóolatra, Elza tentava ajuda-lo
com seu vício, chegando a esconder bebidas e implorar para que não vendessem álcool para ele.
Mesmo dando todo esse suporte, chegou a ser agredida muitas vezes; “Mané continuava a agredir
Elza, sempre que bebia. A violência é um dos componentes do alcoolismo. Garrincha não foi o
único caso”, Louzeiro (1997, p. 222). Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde)13 cerca
de 3,3 milhões de pessoas morrem todos os anos por conta do álcool, quase 6% da causa de
mortes no geral. E de acordo com pesquisar do Ministério da Saúde14 em 2010, 30% dos casos
registrados de violência contra a mulher tinham relação com consumo excessivo de álcool.
O medo da repressão social é um dos motivos que faz as mulheres se calarem perante as
agressões, Elza era vista como “destruidora de lares”, foi acusada de ser o motivo da separação
do atleta com sua ex-esposa. A artista sofreu retaliação por parte da sociedade, principalmente
pelos amigos e familiares de Garrincha15. O envolvimento com o jogador também resultou em

13<http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,consumo-de-alcool-aumenta-43-5-no-brasil-em-dez-anos-afirma-oms,70001797913

Acesso em: 16 de novembro de 2017.


14 <https://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2010/12/20/alcool-esta-associado-a-30-dos-casos-de-violencia-
domestica-e-sexual-contra-mulheres.htm> Acesso em: 16 de novembro de 2017
15 Elza estampando a capa do jornal “Luta Democrática” em 16 de abril de 1963. Matéria sobre as agressões que a cantora sofreu

dos cunhados de Garricha. <http://memoria.bn.br/pdf/030678/per030678_1963_02818.pdf> Acesso em: 14 de novembro de 2017.


11

constantes ataques machistas vindos do meio futebolístico, com o argumento de que esse
relacionamento atrapalharia seu desempenho em campo.
Elza enfrentou muitas adversidades, – chamada de “vadia” e “bruxa”, sendo alvo de
agressões por conta desse relacionamento e lidando com várias mortes de entes queridos, se
reinventou a cada trabalho realizado. Hoje, mesmo com uma dificuldade de locomoção, por conta
de uma cirurgia na coluna, que não a permite andar pelo palco, não a impede de realizar seus
shows nacionais e internacionais.
Aos oitenta anos, Elza Soares se sente mais confortável em falar sobre as agressões e
momentos de angústia. Em entrevista ao Domingo Espetacular16, conta que hoje denunciaria
Garrincha, mas naquela época era complicado, pois ele era bastante famoso nacionalmente, e ela
apenas uma cantora iniciante, em uma sociedade onde o machismo predomina.

Sabe-se que a violência masculina contra a mulher, no Brasil, é extremamente


alta. Todavia, não se conhecem as cifras correspondentes a este fenômeno, pois
ele é amplamente escondido, não denunciado. Com a criação das delegacias
especializadas, começa-se a ter ideia da situação alarmante em que vivem as
mulheres brasileiras. Milhares delas são espancadas pelos companheiros, em
todas as classes sociais. (SAFFIOTI, 1987, p. 80)

Saffioti (1987) expressa bem essa ocultação da violência doméstica e destaca o


comportamento amedrontado diante desse cenário. O Brasil é o quinto em taxa de feminicídios
no mundo. A criação da Lei Maria da Penha 17 estabelece uma política exclusiva voltada para as
mulheres, a fim de preservar seus direitos, oferecer apoio e estimular a denúncia através do 180, –
como informa Elza em “Maria da Vila Matilde”.
A canção tenta reproduzir uma mulher aguerrida e independente, é uma forma de elucidar
o pensamento igualitário através da indústria cultural. O debate da violência doméstica é
importante quando deparamos com esses números. A denúncia ainda é um tabu pois está
interligada a outras questões, como o machismo, racismo, medo, além da desigualdade,
submissão e possessividade.

16 Programa do grupo televisivo RecordTV, que foi ao ar no dia 15/05/2016. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=KWHoQh0HsBw&t=254s> Acesso em: 19 de abril de 2017.
17 Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. É uma legislação brasileira que garante a proteção das mulheres contra qualquer tipo de

violência doméstica, seja física, psicológica, patrimonial ou moral.


12

PORQUE SE A DA PENHA É BRAVA, IMAGINE A DA VILA MATILDE

A música, sendo difundida em diversos dispositivos, tem espaços no cotidiano das


pessoas. As composições, muitas vezes, reproduzem mensagens que expressam o pensamento de
uma maioria. Essa construção da realidade é estabelecida em sociedade, um processo coletivo
onde as pessoas criam imagens a partir de um consenso empírico, mesmo com distorções do real.
Os grupos minoritários estão fortalecendo seu posicionamento nos principais meios
massivos e através de discursos empoderados, vem provocando mudanças na indústria
fonográfica. Trabalhos com um teor crítico de narrativas sociais estão presentes em produções de
artistas que utilizam a música como ferramenta de protesto, Elza vem de uma carreira
consolidada em outro cenário musical, mas isso não foi um empecilho na produção de um álbum
bastante politizado.

A consolidação do campo musical popular expressou novas sociabilidades


oriundas da urbanização e da industrialização, novas composições demográficas
e étnicas, novos valores nacionalistas, novas formas de progresso técnico e
novos conflitos sociais, daí resultantes. (NAPOLITANO, 2002, p. 13)

A música “Maria da Vila Matilde” caracteriza uma intensa perspectiva sobre o papel
social feminino – alterando o sentido da mulher ideal e idealizada nas músicas de cunho
machista. O que Elza fez vem se tornando cada vez mais comum, não anulando o fato de que esse
manifesto já aconteceu antes, mas é uma problematização que vai além de um modelo restrito.
Isso é mais um passo da incessante busca pela igualdade, um processo longo que emperra
em barreiras enraizadas na sociedade. Os estereótipos permanecem de forma agressiva que rotula
o comportamento das mulheres (não se limitando apenas a esse gênero). Minayo (2005) descreve
essa conduta como uma ação implantada na esfera social:

A concepção do masculino como sujeito da sexualidade e o feminino como seu


objeto é um valor de longa duração da cultura ocidental. Na visão arraigada no
patriarcalismo, o masculino é ritualizado como o lugar da ação, da decisão, da
chefia da rede de relações familiares e da paternidade como sinônimo de
provimento material: é o “impensado” e o “naturalizado” dos valores
tradicionais de gênero. Da mesma forma e em consequência, o masculino é
investido significativamente com a posição social (naturalizada) de agente do
poder da violência, havendo, historicamente, uma relação direta entre as
concepções vigentes de masculinidade e o exercício do domínio de pessoas, das
guerras e das conquistas. O vocabulário militarista erudito e popular está
13

recheado de expressões machistas, não havendo como separar um de outro.


(MINAYO, 2005, p. 23-24)

Os estereótipos femininos vêm ganhando cada vez mais contestações no meio


fonográfico, com pautas sobre equidade de gêneros, raça e classes de maneira mais consistente. A
inclusão das mídias como ferramenta de protesto para um alcance maior que proponha uma
discussão e conscientização sobre essas camadas invisibilizadas.
A indústria cultural é um termo atribuído a produção em grande escala que segue a lógica
industrial capitalista, com a principal finalidade de lucro. Esse esquema estimula a circulação do
consumo, onde existe uma demanda enorme e uma produção desenfreada. Os cantores estão
inseridos nessa lógica, seus trabalhos viram mercadorias em um espaço competitivo com disputas
simbólicas e de identidade. Assim, esses consumidores estão propensos ao raciocínio das classes
dominantes que estão em lugares privilegiados nessa indústria. Com essa cultura enraizada ao
longo dos anos, a música consegue estabelecer uma proximidade com o consumidor que vai além
de um momento restrito:

Na ilusão de que se está ouvindo o tempo todo, promove-se a música como


mercadoria não apenas de consumo imediato, mas permanente e
necessariamente presente em todas as circunstâncias, desritualizando-a e
fazendo dela inquebrantável, indissolúvel e ensurdecedora cera diante dos sons
do mundo – o que dirá das obras musicais radicalmente elaboradas. (ADORNO,
2011, p. 23)

Por meio desse mercado, o disco de Elza Soares ganha uma visibilidade maior. A cantora
tem um público majoritariamente adulto e com um álbum que reúne sons e composições
modernas, atinge um público mais jovem. A música, para muitos, é uma arte voltada para o
entretenimento, está em todos os lugares, possibilitando um maior alcance e gerando,
possivelmente, uma audiência consumidora. O álbum chega em um momento onde o cenário
musical está repleto de “Artivistas”, conceito designado a que une o ativismo aos diversos tipos
de arte.
A faixa “Maria da Vila Matilde” é terceira na ordem do álbum, Elza se transforma do
término da última canção, “A Mulher do Fim do Mundo”, trazendo um samba sujo e debochado,
– envolvido com rock, punk, rap e eletrônico, além de dissonâncias que convergem em um som
marcante e divertido, mas com uma denúncia séria à violência doméstica. A canção representa a
quebra do silêncio das mulheres, narrada a partir da perspectiva da mulher que é vítima das
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agressões, liderada por uma Elza rígida que toma uma posição diante dos acontecimentos,
rompendo o estereótipo passivo relacionado à mulher. A interpretação de Elza mostra uma
postura de resistência diante da circunstância – ela consegue contornar essa situação quando faz a
denúncia: “Vou entregar teu nome / E explicar meu endereço / Aqui você não entra mais / Eu
digo que não te conheço / E jogo água fervendo / Se você se aventurar”, além disso, demostra
uma força mesmo em momentos dolorosos.
Essa não é a única música do álbum que traz a violência como temática. Em “Benedita”,
Elza se junta a Celso Sim, um dos compositores da música, nos vocais. A canção aborda a
transexualidade de Benedita, mulher, negra e narcodependente que tem uma bala da polícia
alojada no seu corpo. Cantada primeiro por Celso, apresentando Benedito, o lado masculino do
personagem, a música passa por uma transformação sonora, os instrumentos mudam
acompanhando a transição para Benedita, é o momento onde entra Elza: “Ele que surge naquela
esquina / É bem mais que uma menina / Benedita é sua alcunha / E da muda não tem testemunha
/ Ela leva o cartucho na teta / Ela abre a navalha na boca / A traveca é tera chefona”.
A letra é cheia de referências, Benedita é um corpo que representa os diversos tipos de
sofrimento social, luta de classes e os vários tipos de violência: “Benedita da zona é o crack / A
poliça, a miliça e o choque / Na surdina preparam o ataque / Ela morre ela, ela mata, ela é craque
/ Homicida, suicida, apareceu, aparecida / É maldita, é senhora, é bendita, apavora / Crack agora,
não demora, joga a pedra, nessa hora”. A discussão não fica restrita apenas na mulher no contexto
doméstico, Elza dá voz também as mulheres transexuais, que estão entre os grupos sociais
marginalizados. Benedita luta contra as degradações humanas, também é descrita como uma
personagem forte e resistente, semelhante a Maria da Vila Matilde.
Se analisarmos algumas interpretações de Elza no início de sua carreira, é possível
perceber uma mudança no seu discurso. Em 1963, quando estava começando seu relacionamento
com Garrincha ela regravou a canção “Eu Sou a Outra” de Ricardo Galeno (Jorge Costa
Nascimento), onde foi acusada de afrontar a ex-esposa do jogador. A pedidos da sua gravadora, a
Odeon, Elza interpretou a música na época em que a polêmica com Garrincha explodiu, foi um
marco negativo na carreira dela, a partir daí os linchamentos e perseguições pioraram.
A canção é um samba bem direto e curto: “Ele é casado / E eu sou a outra / Na vida dele /
Que o mundo difama / Que a vida, ingrata, maltrata / E, sem dó, cobre de lama.” Isso já era um
retrato do que ela estava vivenciando, mesmo ele tendo um histórico de casamento, a culpa pelo
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fim do romance foi associada a Elza: “Quem me condena / Como se condena uma mulher perdida
/ Só me veem na vida dele / Mas não o veem, na minha vida”. O que talvez seja a parte mais
divergente do que vemos atuais nas suas canções é quando ela se refere a mulher dele, um embate
de interesses a partir da música: “Não tenho nome / Trago o coração ferido / Mas tenho muito
mais classe / Do que quem não soube prender o marido.”
Um ano antes dessa regravação, Elza participou do filme “O Vendedor de Linguiça”18
cantando o samba-canção “Não ponha a mão”19, música que tem um posicionamento parecido
com o que vemos em “Maria da Vila Matilde”. Fala sobre um homem que tenta tocar nela sem
seu consentimento, mesmo tentando agradar a todos, ela estabelece limites: “Não põe a mão no
meu violão / Se você pedir eu dou / Um cigarro pra fumar / Converso com aquela mulher / Se
você quiser sambar / Se você quiser dinheiro / Também posso emprestar / Faço qualquer
sacrifício / Pra poder agradar mas por favor / Tira mão daí, tira a mão daí / Do meu violão”.
É comum ver canções que falam sobre amor, paixões e tudo que envolve esses temas.
Esses sempre foram os assuntos mais presente em diversas composições. Em “Maria da Vila
Matilde” ela abre mão desse romantismo e expõe os problemas conjugais na óptica feminina.
Essa mulher está inserida no modelo patriarcal, onde ela deve cuidar da casa – mesmo nesse
contexto ela mostra ser destemida. A composição faz um jogo de palavras e sentidos, ao invés de
Maria preparar o café para o agressor, ela faz para polícia que veio detê-lo: “E quando o
Samango chegar / Eu mostro o roxo no meu braço / Entrego teu baralho / Teu bloco de pule / Teu
dado chumbado / Ponho água no bule / Passo e ofereço um cafezim / Cê vai se arrepender de
levantar a mão pra mim.” Ela brinca com a situação, mas determina os limites do relacionamento.
Além da violência física, que ela denuncia, há também uma exteriorização de alguns
aspectos que mostram o desgaste do casamento. O sexo é um deles. Existe uma crítica às relações
sexuais entre o casal, é possível entender sua a insatisfação em alguns trechos: “E quando tua
mãe ligar / Eu capricho no esculacho / Digo que é mimado / Que é cheio de dengo / Mal
acostumado / Tem nada no quengo / Deita, vira e dorme rapidim / Cê vai se arrepender de
levantar a mão pra mim.”, o prazer unilateral é um componentes dessa relação, fazendo menção a
dominação do homem e essa visão do sexo como realização do prazer próprio. No final da
canção, há também uma satirização sobre as agressões que Elza sofreu de Mané Garrincha, é um
dos momentos mais próximos entre a intérprete e a letra – se colocando como uma das Marias:
18 Filme brasileiro de 1962 estrelado por Mazzaropi e com direção de Glauco Mirko Laurelli.
19 Participação de Elza no filme < https://www.youtube.com/watch?v=lY-B8Mb3Fdo> Acesso em: 19 de novembro de 2017.
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"Mão, cheia de dedo / Dedo, cheio de unha suja / E pra cima de mim? Pra cima de moi? Jamé,
mané!"
A música é descrita como “Maria da Vila Matilde (Porque se a da Penha é brava, imagine
a da Vila Matilde)”, fazendo uma referência à Vila Matilde, situada em São Paulo, ao lado do
distrito da Penha, outra menção utilizada, já que Maria da Penha é um símbolo da luta contra a
violência doméstica.

PRA FUDER: ATIVISMO NO ÁLBUM “A MULHER DO FIM DO MUNDO”

Perto dos oitenta anos, a cantora brasileira do milênio20 trouxe um disco de liberdade e
sofrimento, assume seu papel como mulher, negra, de origem pobre, e “grita” em canções
implacáveis e melódicas sobre negritude, morte, sexualidade, feminismo e etc. Elza nunca deixou
de falar sobre sociedade, “espevitada21” como diziam, tornou-se uma artista memorável e
inspiração para novos cantores e fãs.
No início da carreira, construiu uma imagem de cantora que veio do “planeta fome”,
sempre com sua carga histórica como inspiração de suas canções e trabalhos. Sovik (2009) diz
que o termo “Lata-d’água” é associado a Elza Soares por toda a história dela. Relata também que
as músicas românticas sempre foram as que mais obtiveram sucesso, mas havia intérpretes que
retratavam o cotidiano das classes marginalizadas.

Embora a música romântica não fosse o único gênero no mercado nos anos
1950, ela representava a grande maioria dos sucessos. Uma parcela menor do
repertório falava, cheia de compaixão, da vida lá no morro”, como em “Lata-
d’água”, que encabeçou a lista de hits de 1953, na voz de Marlene, cujo nome
artístico aludia á branquíssima Marlene Dietrich. Hoje a imagem da lata-d’água
é associada a Elza Soares, que não foge muito da interpretação dominante da
época. “ninguém se acostuma com o sofrimento”, disse ela em 1997,
“...carreguei muita lata-d’água na cabeça e finalmente entendi que aquela lata
horrorosa era uma coroa”. (SOVIK, 2009, p. 117)

O projeto “A mulher do Fim do mundo” não é apenas um progresso artístico na carreira


de Elza, mas também um marco social. Os movimentos sociais estão sendo debatidos também
através dos produtos de massa, atingindo um público maior de diferentes classes, idade e gênero.
As músicas do álbum transcendem os assuntos delicados em sons distorcidos, brincando com a

20 Título dado pela rádio BBC de Londres em 1999.


21 Termo popular designado a uma pessoa agitada, elétrica.
17

melodia, mas vigorando seu posicionamento. Elza expõe as dores dos subúrbios, dos corpos
invadidos e daqueles que vivem como se fosse o último dia. Essa mulher do fim dos tempos está
cada vez mais incisiva, enfrentando cada canção como se fosse a última, mantendo a voz
arranhada que rasgou gerações.
O álbum segue um conceito arrojado com uma temática que acompanha uma coerência da
primeira à última música, o título é uma alusão ao fim do mundo com uma simbologia que
remete ao fim apocalíptico, muito associado a catástrofes naturais, no contexto do disco, o palco
do fim são as avenidas e favelas lotadas de sobreviventes que sofrem com o arrebatamento todos
os dias, são os negros, mulheres, pobres, homossexuais, todos inseridos de forma sistemática no
conceito do trabalho de Elza Soares.
A primeira faixa “Coração do mar”, é um poema de Oswald de Andrade musicado por
José Miguel Wisnik. Elza surge à capela abrindo o álbum de modo cru e genuíno, destacando
suas raízes negras nos trechos “É um navio humano quente, negreiro do mangue / É um navio
humano quente, guerreiro do mangue”, a respiração ofegante e a voz rouca deixa a sensação de
que existem sons naturais e profundos entre as estrofes. Ao som de violinos, “A mulher do fim do
mundo” anuncia o apocalipse nas avenidas do carnaval, Elza chega marcada pelas dores, expondo
todas as feridas e lamentos em um samba denso e autobiográfico. Ela faz o último pedido no
desfecho da canção “Eu quero é cantar eu vou cantar até o fim / Eu vou cantar me deixem cantar
até o fim” utilizando o tão famoso scat singin22 arranhando as notas como fosse sua última
explosão.
Em “Luz vermelha”, a influência do rock está mais forte, é um retrato do sofrimento
urbano, em meio ao fim, as ruas estão vazias. A sociedade está se desintegrando nos becos, em
certo momento Elza fala: “Bem que o anão me contou que o mundo vai terminar num poço cheio
de merda / Do meio-dia no meio do tiroteio / Me deu receio do feio que veio lá / De ficar velho
no meio do mundo inteiro / Me deu receio da bomba que vou soltar”, uma distopia moldada em
uma narrativa construída a partir de experiências diárias das “minorias” representadas no álbum.
A quinta música do disco “Pra Fuder” é um samba quente em que Soares não abre mão
dos palavrões e do sexo, mesmo no fim dos tempos. Uma faixa erótica e independente, onde a
intérprete fala do próprio corpo, dos desejos e detalhes sobre um cenário sensual onde ela está
insaciável: “Unhas cravadas em transe latejo / Roupas jogadas no chão / Pernas abertas, te prendo
22Técnica de manusear as palavras no meio da música, criando um instrumental com a própria voz. Recurso utilizado que ficou
bastante conhecido por cantores de jazz, como Ella Fitzgerald e Louis Armstrong.
18

num beijo / Meu temporal me transforma em loba / Presa você vai gemer / Feito o cordeiro
entregue pra morte / Seu sussurrar a pedir”. A canção se destaca pelos arranjos diferenciados
feitos pelo grupo Bixiga 70, que mistura ritmos africanos e latinos à música brasileira. Em uma
espécie de marchinha, ela entoa repetidamente “Pra fuder/ Pra fuder/ Pra fuder/ Pra fuder/ Pra
fuder/ Pra fuder/ Pra fuder” em sincronia com os instrumentais.
Em Firmeza, Elza reencontra um amigo depois de muito tempo nas ruas do fim do
mundo. Com influências do rap e hip-hop, a canção utiliza de gírias em grande parte da
composição, transformando uma conversa rotineira em música: “Beleza mano fica com Deus /
Quando der a gente se tromba firmeza? / Você é meu irmão moleque / Eu tô feliz com seu
sucesso / Tô de bobe, que eu não te vejo nunca mermão qual é? / Essa correria toda / É a life
meu, irmão é a life a life corre, corre / Pena que corre é mil grau, Elzinha poxa”, nessa altura, o
mundo já está em seus últimos dias, Elza reencontra suas raízes de onde ela veio: a favela
carioca.
As quatros últimas músicas se situam depois da morte da interprete. Em “Dança”, há uma
mistura entre tango e arranjos fúnebres, mesmo morta, Elza insiste em dançar: “Daria a minha
vida a quem me desse o tempo / Debaixo dessa terra não me interessa o movimento / Debaixo do
cimento não tenho pressa / Não há quem queira dançar / Mas se eu me levantar ninguém irá saber
/ E o que me fez morrer vai me fazer voltar / Deixa a chuva que derruba o céu lavar / Lava a
carne que ainda tem no osso / Sinto o osso antes dele se quebrar / Abro a tampa e deixo a dança
entrar no corpo.” O álbum sofre uma mudança sonora, a partir dessa canção é perceptível como
as músicas se transformam em harmonias mais intimistas.
A canção acústica “O Canal” traz “Alexandre, O Grande23” como figura da composição, a
música traz referências da época do imperador, mas pode se entender como uma alusão as
dominações de povos durante toda a história, inclusive atualmente. Chico, Alessandra e Mané
representam as pessoas que são exploradas em busca de mudanças. Na canção os personagens
estão escavando o Mar Egeu em nome de Alexandre: “Chico, Alessandra e Mané vão a pé, vão a
pé / Cavucando o chão de sal / São três horas da manhã / Alessandra não vai bem / Sentem o
brilho do farol de Alexandre, o Grande / Dizem que o grande Alexandre escreveu sobre o rio /
Um canal subterrâneo no Egeu, em Aydin”. Alessandra simboliza a mulheres como a que mais
sofre nesse contexto de desigualdade, mesmo morta, sem obter nenhum resultado, ela não desiste:

23 Nome usualmente dado ao rei Alexandre III da Macedônia.


19

“Almas perdidas navegam o rio, o canal / Eternamente navegam o rio vertical / Alessandra já
morreu / Mas precisa acreditar / São três horas da manhã / Ver o brilho do farol de Alexandre, o
Grande.”
A penúltima música do álbum “Solto” é a travessia de Elza. A letra é monossilábica na
maior parte da composição, com a voz serena, vai acompanhando a sinfonia melancólica que
narra a solidão depois do fim. “Solto / Quase outro / Corpo / O meu corpo / Caminha / Sozinho
sem você (sem) / Nada perto / Torto / E tão certo / Caminha / Na minha sombra / Clara / Reta / E
com / Pleta / Mente / Preta / Rara / Sem você / Solto / Quase morto / Corpo / O meu corpo /
Caminha / Na minha sombra.” No final da faixa, a respiração de Elza está ofegante e começa a se
distorcer junto com a melodia. Fazendo uma conexão com a última faixa “Comigo”.
Com uma dissonância de um minuto e dez segundos, a derradeira música do álbum dá
uma sensação de fim, o caos representado pela crescente desarmonia da canção. Porém, os ruídos
se desfazem e Elza ergue-se à capela como se fosse duas últimas palavras: “Levo minha mãe
comigo / embora já se tenha ido / talvez por sermos tão parecidos / Levo minha mãe comigo / de
um modo que não sei dizer / Levo minha mãe comigo / pois deu-me seu próprio ser.” Canção em
homenagem a sua mãe, que faz voltar a suas raízes e relembrar todo o caminho até o fim. Mesmo
com a impressão de desfecho, nos últimos segundos do álbum é possível ouvir Elza cantarolando,
com o som abafado, o que dá a entender que é um outro plano. Ela não desiste.
O disco é cantado na perspectiva dos mais subjugados, Elza assume a postura de uma
mulher que narra o fim, na visão de quem passou por tudo o que foi retratado no álbum.

CONCLUSÃO

A indústria fonográfica brasileira vem sofrendo uma alteração nos seus produtos, as
mulheres vêm assumindo uma posição ativa sobre a problematização dos estereótipos femininos,
usando desse meio massivo para contestar tabus existentes. Hoje, cantoras de diversos gêneros
musicais estão tomando essa discussão como pauta de suas composições, temos como exemplos
as cantoras Karol Conka, IZA, Liniker, que debatem essas questões de maneira firme e explícita,
dialogando com os problemas sociais.
Assim como Elza, cantoras com Rita Lee, Cássia Eller, Elis Regina, Zélia Duncan,
debatiam sobre autonomia feminina, em composições muitas vezes discretas, – eram casos raros
comparados aos de hoje, mas com uma extrema representatividade. Elza se diferencia pela
20

condição de mulher negra, um eixo mais complexo com uma carga histórica ainda maior. No
final do século XX, a repressão era mais predominante, uma mulher cantar sobre sexualidade ou
fugir desses paradigmas era raro. Gênero e raça sempre foram ferramentas de controle social, o
reflexo disso na sociedade parece ser invisível.
O produto musical reflete a realidade de cada país. Culturalmente, o homem tem um papel
dominador dentro da sociedade. Músicas de cunho machista sempre existiram – inclusive nos
dias atuais – e foram ouvidas por muito tempo como naturais e comuns. A objetificação do corpo
feminino é um dos tópicos mais retratados nessas diversas músicas, a mulher é o grande prêmio
cogitado exaustivamente nessas composições.
Elza tomou uma postura de poder e força, contrariando o modelo patriarcal – o garoto é
viril, forte e valente, enquanto a garota é frágil, passiva e delicada. O sexo é um dos grandes
temas presente nas composições de músicas populares, em geral interpretado por homens – mas
existem mulheres que cantam e sensualizam, muitas dentro do modelo machista. A temática é
utilizada como uma forma de aumentar o consumo através da identificação entre os mesmos
grupos sociais. Essa estratégia objetificou ainda mais a imagem feminina.
Analisamos esse movimento com ênfase na violência doméstica exteriorizada na canção
“Maria da Vila Matilde” de Elza Soares. Um estudo do empoderamento através do trabalho da
cantora, e a ressignificação dessa figura feminina na sociedade e no meio fonográfico. Para isso,
propomos uma pesquisa sobre gênero, música, feminismo, negritude e indústria cultural – para
analisarmos a construção da canção.
O álbum “A mulher do Fim do Mundo” pode ser visto como um retrato cru do Brasil –
nele estão as diversas faces da sociedade, principalmente as de quem mais sofrem diariamente.
Elza Soares reuniu suas dores e expôs tudo nesse trabalho complexo e inédito. Mesmo no fim dos
tempos, ela não deixa de lutar, como ela mesmo diz: “Nunca tive medo de defender aquilo que
acredito. Porque é isso que é ser mulher: defender o que pensa. Acho que a mulher do fim do
mundo é a mulher que tem alma”.
A música “Maria da Vila Matilde” é uma representação das diversas “Marias” que
sofreram e sofrem com relacionamentos abusivos e enfrentam esses desafios diariamente. O tema
pode contribuir para estudos sobre questões sociais fundamentada através dos produtos de massa,
no caso, música, levantando uma reflexão na mudança do discurso feminino e do consumo na
indústria fonográfica. Ao se deparar com os dados sobre desigualdade de gênero e raça, é
21

possível enxergar a relevância da discussão sobre essas pautas sociais – refletindo o lugar de fala
dessas classes. Elzinha, como é carinhosamente chamada por seus fãs, não se intimida pelo seu
estado de saúde, sempre envolvida em trabalhos autênticos, trouxe um álbum com canções
críticas e ácidas, mostrando que não há idade certa para falar sobre violência, gênero e raça.

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