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Os ideais da formação humanista e o sentido da

experiência escolar

José Sérgio Fonseca de CarvalhoI

Resumo

A sensação de que a instituição escolar vive uma profunda crise é


bastante generalizada, sobretudo entre intelectuais e profissionais
da educação. O consenso acerca de sua existência, no entanto,
não tem implicado qualquer concordância no que concerne aos
elementos que a teriam precipitado ou às características de sua
atual configuração. A hipótese que guia essas reflexões visa a
associar a noção de uma crise na educação escolar a um aspecto
que costuma permanecer oculto na maior parte dos discursos
críticos acerca da escolarização contemporânea: o esvanecimento
do sentido político e existencial da experiência escolar. A fim
de desenvolver tal hipótese, debruçamo-nos, inicialmente, sobre
a variedade de possíveis acepções do termo “crise”, rejeitando
aquelas que a vinculam de forma imediata às noções de declínio,
decadência ou ocaso. A partir dos escritos de Arendt e Koselleck,
a noção de crise é, então, utilizada em sua acepção primeira: a
da emergência de um momento crucial que, por romper com
respostas cristalizadas na tradição, exige reflexão e decisão.
O que se procura realizar é, pois, um exercício de pensamento
que recuse as abordagens funcionais e econômicas do sistema
escolar em favor da compreensão de um sentido intrínseco para
a experiência escolar: o da iniciação dos mais novos em heranças
simbólicas capazes de dar inteligibilidade à experiência humana
e durabilidade ao mundo comum. Uma iniciação cujo significado
transcende qualquer funcionalidade exterior à experiência escolar,
já que reside na própria formação de um sujeito, e não em sua
possível inserção em um sistema produtivo.

Palavras-chave

Filosofia da educação — Arendt — Formação — Humanismo.

I- Universidade de São Paulo. São Paulo, SP,


Brasil.
Contato: jsfcusp@usp.br

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 43, n. 4, p. 1023-1034, out./dez., 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1517-9702201610148595 1023
The ideals of a humanistic education (bildung) and the
meaning of school experience

José Sérgio Fonseca de CarvalhoI

Abstract

The feeling that the school institution is experiencing a deep crisis


is quite widespread, especially among intellectuals and school
professionals. The consensus about its existence, however, does
not imply any agreement as far as its causes or current features
are concerned. The hypothesis that guides the present reflections
associates the notion of a crisis in education to one aspect that
usually remains hidden in most critical discourses of contemporary
education: the fading of a political and existential meaning for
the school experience. In order to develop this hypothesis, the
text focuses on the range of possible meanings of the term crisis,
rejecting those that connect it immediately to notions of decay or
decline of any sort. From the writings of Arendt and Koselleck,
the notion of crisis is applied in its original Greek meaning: the
emergence of a crucial moment that requires reflection and decision.
Therefore, what I try to accomplish is an exercise of thought that
refuses the functional and economic approaches of the school
system, searching for an intrinsic meaning for school experience:
the initiation of the new comers (children) in symbolic heritages
capable of offering intelligibility to human experience and durability
to our common world. An initiation whose meaning transcends any
external functionality of the school experience in favor of a process
whose final result is not a functional being, but an active subject.

Keywords

Philosophy of education — Arendt — Humanism — Liberal education.

I- Universidade de São Paulo. São Paulo, SP,


Brasil.
Contact: jsfcusp@usp.br

1024 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1517-9702201610148595Educ. Pesqui., São Paulo, v. 43, n. 4, p. 1023-1034, out./dez., 2017..
Os ideais da formação humanista lugar de experiências; como um palco para
e o sentido da experiência escolar encontros intergeracionais mediados pelo
diálogo com um conjunto de objetos e práticas
Articular historicamente o passado não significa
conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se
culturais. Isso não implica – é evidente – negar
de uma reminiscência tal como ela relampeja no a pertinência de uma perspectiva que busque
momento de um perigo. compreender a escola como um dispositivo
Walter Benjamin macrossocial a serviço, por exemplo, de uma
ordem econômica ou da conformação a uma
A sensação de que a instituição almejada configuração social. Mas exige uma
escolar vive uma profunda crise é bastante perspectiva analítica capaz de pôr em relevo a
generalizada, sobretudo entre intelectuais e especificidade da forma escolar, de suas práticas,
profissionais da educação. O consenso acerca de dos princípios que a animam e, sobretudo, dos
sua existência, no entanto, não tem implicado significados compartilhados que seus agentes lhe
qualquer concordância no que concerne aos atribuem em determinados contextos históricos.
elementos que a teriam precipitado ou mesmo E um dos mais claros sintomas de crise nesse
às características de sua atual configuração. Para âmbito pode ser detectado pela dificuldade atual
alguns, ela estaria vinculada à obsolescência em se imputar à experiência escolar qualquer
de práticas pedagógicas herdadas de formas sentido existencial e político que ultrapasse suas
escolares tradicionais, enquanto, para outros, alegadas funções econômicas ou seus supostos
a crise atingiria a própria legitimidade dos papéis na conformação e na reprodução de uma
conteúdos clássicos da educação escolar, cuja ordem social.
autoridade teria sido posta em questão a partir O desenvolvimento dessa hipótese – que
das transformações sociais e tecnológicas que vincula a crise da educação escolar ao esvaneci-
marcaram o século XX. Há também aqueles que mento de seu sentido político e existencial – exi-
associam a existência de uma crise na educação ge ainda um esforço preliminar com vistas a elu-
ao declínio da distinção social que a escola foi um cidar alguns de seus termos centrais: as noções
dia capaz de conferir aos poucos que logravam de “crise” e de “sentido”, conceitos complexos e
nela permanecer para além de seus anos iniciais. polissêmicos cujo campo semântico permite uma
Outros, ainda, evocam seu poder de normalizar série de acepções alternativas. Não é raro, por
condutas ou de reproduzir desigualdades sociais exemplo, que a noção de crise seja associada, de
a fim de desconstruir os discursos que atribuíam forma mais ou menos imediata, à ideia de declí-
à escola um potencial emancipador que lhe nio, decadência ou degeneração, muito prova-
conferia uma aura de prestígio social e político. velmente devido à generalização do uso que dela
A hipótese que guia estas reflexões, fazem os discursos econômicos.
mesmo sem a pretensão de polemizar diretamente De fato, nesse campo particular, o termo
com tais perspectivas críticas, procura associar crise tem sido em geral empregado para descrever
a noção de uma crise na educação escolar processos periódicos de desequilíbrio entre a
a um aspecto que nelas sói permanecer produção e o consumo ou ainda para caracterizar
oculto: o esvanecimento do sentido político o declínio e o subsequente desaparecimento
e existencial da experiência escolar. Trata-se, de um determinado modo de produção. Mas a
contudo, de uma hipótese que requer alguns generalização dessa acepção bastante específica
esclarecimentos prévios. Em primeiro lugar, do termo crise não deve obliterar a amplitude de
porque concebe a escola não exclusivamente seu campo semântico, nem a variedade histórica
como um aparato estatal e burocrático ao qual e conceitual à qual ele está sujeito. Daí a
se atribuem certas funções sociais e finalidades relevância de se investigar, mesmo que de forma
econômicas, mas também como um potencial sumária, a gênese de seu uso e as formas pelas

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quais alguns pensadores o mobilizam em suas de conduta moral, mas tão simplesmente
reflexões teóricas e redes conceituais. reconhecer que já não podemos contar com o
Koselleck (2007), por exemplo, em legado de uma tradição ética para enfrentar
sua obra Critica y crisis: un estúdio sobre la os dilemas morais do presente. De forma
patogénesis del mundo burguês, ressalta que a análoga, identificar uma crise na educação não
palavra grega κρίση (krisis) remetia, em seus implica afirmar a existência de um declínio
usos iniciais, às noções de cisão e de luta, nos padrões de rendimento escolar ou qualquer
estando vinculada à ação de um juiz (kritikós) sorte de decadência no que concerne às suas
cuja decisão estabelecia uma ruptura – ou práticas ou ao seu papel social. Significa, antes,
um corte – no desenlace dos acontecimentos. reconhecer que perdemos as respostas sobre
Assim, no vocabulário legal, médico e militar, as quais nos apoiávamos no que diz respeito
o reconhecimento da existência de uma crise aos procedimentos, às escolhas e, sobretudo, ao
indicava não necessariamente um declínio, significado público que atribuímos ao processo
mas a emergência de um evento crucial, de educacional (O que ensinar? Como? Em nome de
um momento capital que exigia julgamento que educar?). Significa ainda que não dispomos
e decisão, pois de seu desfecho poderia advir de critérios comuns e incontestes aos quais
tanto a derrota quanto a vitória, tanto a vida poderíamos recorrer na busca de tais respostas;
quanto a morte. Trata-se, pois, de uma noção que não compartilhamos regras ou princípios
que comporta ruptura, mas também abertura; que possam nos guiar nessas decisões urgentes.
de um acontecimento cujo desenlace não é Mas não implica que tenhamos perdido a
necessariamente a degeneração ou a decadência, capacidade de refletir e de propor sentidos para
já que traz consigo a oportunidade de exame do a prática educativa:
instituído e de sua eventual superação.
Essa ambivalência, consubstancial ao [...] uma crise só se torna um desastre
conceito de crise de acordo com Koselleck, marca quando a ela respondemos com
de forma indelével a acepção que Arendt lhe julgamentos preconcebidos, isto é, com
confere em seus escritos sobre política e educação. preconceitos. Uma atitude como essa não
Em A crise na educação, por exemplo, ela afirma apenas aguça a crise como nos priva da
que o aparecimento de uma crise “dilacera experiência do real e da oportunidade que
fachadas e oblitera preconceitos” (ARENDT, 2006, ele nos proporciona de refletir. (ARENDT,
p. 171, tradução nossa), desafiando o pensamento 2006, p. 171, tradução nossa).
e a ação a buscar respostas para o desaparecimento
de padrões e critérios pelos quais até então nos Assim, uma crise na educação pode
guiávamos com algum grau de segurança. Isso ser concebida como um momento crucial que
porque uma crise, mais do que decadência ou enseja reflexão, julgamento e decisão, uma vez
degeneração, desvela a emergência do novo, do que os sentidos que historicamente lhe foram
inesperado, daquilo que rompe com as certezas atribuídos já não parecem mais responder
herdadas do passado. O que caracteriza uma crise aos desafios do presente. Afirmar, contudo,
é, pois, o fato de que, com seu aparecimento, o esvanecimento do sentido da experiência
acabamos por perder “as respostas em que nos escolar pode parecer, à primeira vista, um
apoiávamos de ordinário, sem sequer perceber que paradoxo. Isso porque assistimos, já há algumas
elas constituíam respostas a questões” (ARENDT, décadas, a uma profusão de discursos reiterando
2006, p. 171, tradução nossa). o papel central da educação escolar como
Nesse sentido, afirmar a existência instância privilegiada na formação do cidadão,
de uma crise ética, por exemplo, não implica no estabelecimento das bases para a expansão
alegar um suposto declínio nos padrões da empregabilidade das novas gerações ou na

1026 José Sérgio Fonseca de CARVALHO. Os ideais da formação humanista e o sentido da experiência escolar.
criação de uma cultura de sustentabilidade, questões relativas, por exemplo, à eficácia ou
para nos atermos apenas a algumas das mais eficiência dos meios empregados na consecução
recorrentes finalidades a ela atribuídas. de um fim determinado. Nele, muitas vezes, não
A enunciação de um conjunto de é possível sequer isolar a forma escolhida do
finalidades econômicas e sociais para a educação próprio objetivo almejado. O êxito no ensino
escolar não deve, entretanto, ser tomada como em um campo de conhecimento, como a ciência
equivalente à atribuição de um sentido para sua ou a filosofia, jamais se dissocia dos próprios
existência. O caráter instrumental que marca valores que ele encarna, como a capacidade de
o uso da noção de “finalidade” (expresso pela testar uma hipótese ou de examinar criticamente
pergunta “para que serve...?”) vincula-se antes à seus argumentos, de sorte que uma formação
lógica da fabricação e do uso de objetos do que à científica ou filosófica dogmática encerra uma
atribuição de um sentido para uma experiência contradição em termos.
política ou pessoal, cuja relevância não pode Acresce-se a isso o fato de que há
ser reduzida à sua capacidade de produzir os um conjunto significativo de experiências
fins esperados a partir da escolha dos meios humanas cujo valor ou importância não
adequados. Vejamos alguns breves exemplos derivam de qualquer possível resultado que
capazes de ilustrar a distinção conceitual entre possam engendrar. Tais experiências têm,
as noções de finalidade e sentido. por assim dizer, um valor intrínseco, já que
Em geral, fabricamos uma mesa, por não necessariamente possuem uma utilidade
exemplo, não em função de qualquer sentido – imediata e, por vezes, sequer visam a atingir
ou valor intrínseco – que possamos atribuir ao um fim exterior à própria experiência que
seu processo de produção ou ao objeto final dele engendram. As relações de amizade, a
decorrente, mas em função de uma finalidade experiência da paternidade e o prazer de ler
prática que lhe é exterior. Noutras palavras, um poema são exemplos de experiências que
fabricamos ou compramos uma mesa por ela ser podem ter um profundo sentido existencial e
um meio conveniente ou necessário para um fim formativo para quem as vive, a despeito de sua
que lhe é exterior: ter um lugar para comer, apoiar vaga ou nula aplicabilidade prática imediata. E
um computador etc. Por outro lado, esse fim para experiências dotadas de sentido são formativas
o qual ela é um meio se transformará, também não pelo que permitem fabricar como fruto de
ele, em um novo meio para outro fim. Assim, seu aprendizado, mas pelo fato de operarem
fabricamos a mesa com a finalidade de apoiar transformações naqueles que por elas passam
um computador, que, por sua vez, transforma-se (CARVALHO, 2013). Por isso, uma experiência
em um meio cujo fim é escrever um artigo ou dotada de sentido formativo pode ser um
obter informações, o que, por sua vez, torna-se elemento definidor na constituição de um
um novo meio para outro fim. Cria-se, pois, uma sujeito, a despeito de sua pequena ou até nula
cadeia infinita de meios que se transformam utilidade prática.
em novos fins que são, contudo, carentes de Assim, o significado de uma experi-
qualquer significado, já que destinados a se ência formativa – ou seu sentido existencial
transformarem novamente em meros meios. e político – não equivale a qualquer eventu-
Ora, essa lógica instrumental – característica al finalidade instrumental. Ao contrário, sua
da produção e do uso de objetos – pode se compreensão desvela, antes, uma dignidade
tornar espúria quando aplicada ao âmbito da intrínseca à própria experiência, cuja razão
formação humana. Isso porque, nesse domínio de ser é a constituição de um sujeito e não a
particular – a exemplo de outros tantos produção de um indivíduo em conformidade
campos da interação humana –, os critérios de com demandas de cunho econômico ou social
julgamento e avaliação não são redutíveis às preestabelecidas.

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Da dignidade da política à simples consequência do caráter gregário do
dignidade da experiência escolar animal humano. Ela é uma forma de vida (o que
os gregos chamavam de um biós) cuja razão de
Em um fragmento de uma obra incon- ser é a liberdade e cuja condição de emergência
clusa e publicada postumamente, a filósofa ale- é a criação de um espaço público comum e capaz
mã Hannah Arendt tece suas reflexões sobre as de abrigar a pluralidade como marca do humano.
vicissitudes da política no século XX a partir de Assim concebida, a ação política não
uma pergunta que, à primeira vista, pode suge- é uma necessidade humana, mas a frágil
rir ceticismo e desesperança: “a política ainda possibilidade de criação de um modo de vida
tem algum sentido?” (ARENDT, 1993, p. 162). “cujo impulso brota do desejo humano de estar
Não se trata, contudo, de uma interrogação de na companhia dos outros, do amor ao mundo
cunho niilista. Ao contrário, ela deve ser com- e da paixão pela liberdade” (CORREIA, 2010,
preendida como mais uma de suas “perguntas p. XXXI). Um impulso que eclodiu em toda a
antiniilistas feitas numa situação objetiva de sua grandeza na experiência democrática de
niilismo em que o nada e o ninguém ameaçam Atenas, na estabilidade da Roma republicana,
destruir o mundo” (ARENDT, 2007, p. 269). A na breve existência dos conselhos populares
situação objetiva que a leva a propor a questão que sucederam a revolução russa de 1917 ou
nesses termos é o preconceito do mundo mo- dos que organizaram a revolução húngara de
derno em relação à política; é a convicção nele 1956 (DUARTE, 2000). Experiências que Arendt
generalizada de que é à política – e não à sua evoca não como modelos a serem reproduzidos,
ausência – que se devem atribuir as trágicas ex- mas como acontecimentos cujo esplendor
periências do totalitarismo, da ameaça nuclear é capaz de iluminar aquilo que os eventos
e da desertificação de um mundo cuja durabili- políticos do século XX obscureceram: que o
dade é posta em risco pela ascensão da produ- sentido da política é a liberdade. Não a liberdade
ção e do consumo como objetivos supremos do pessoal de deliberação e escolha em face de
viver juntos (CORREIA, 2003). opções já dadas, mas a liberdade concebida
Nesse texto, como ao longo de grande como um atributo da vida política, ou seja,
parte de sua obra, Arendt procura recuperar o como a capacidade humana de romper com
sentido e a dignidade da política, desvinculando-a a reprodução dos automatismos do passado e
do reducionismo a que foi submetida quando imprimir ao fluxo dos acontecimentos um rumo
equiparada e limitada às atividades de governo até então inesperado. Nesse sentido, é a ação
e gestão estatal da sociedade. Não foi, pois, a política que pode produzir o milagre do novo2
expansão, mas o declínio do domínio político que e, assim, salvar o mundo humano do desgaste e
tornou possível a emergência do totalitarismo, da ruína provocados pela passagem do tempo:
da tecnocracia e da burocracia como formas
de dominação social. Isso porque, em Arendt, Entregues a si mesmos, os assuntos humanos
a política é uma forma peculiar e contingente só podem seguir a lei da mortalidade [...]. O
de responder aos problemas da vida comum,1 do espaço público, como a tirania, a burocracia ou o totalitarismo, não são
que não se confunde com a dominação nem é diferentes modalidades de política, mas sua negação.
2- Dada sua frequente conotação religiosa, a presença do termo milagre
1- Em sua acepção cotidiana, o termo política aplica-se a toda e qualquer no texto de Arendt pode causar estranhamento. Não obstante, apesar de
forma de governo ou dominação em uma sociedade. No quadro do citar o Evangelho, Arendt se interessa não especificamente por seu sentido
pensamento de Arendt, no entanto, ele tem um significado bem preciso. religioso e sobrenatural, mas por suas implicações filosóficas: “podemos
Criada como uma forma de relação específica dos cidadãos entre si e com negligenciar aqui as dificuldades [relativas às múltiplas acepções do termo]
a polis – e reatualizada em outras criações históricas e sociais em alguma e nos referir apenas às passagens em que os milagres claramente não são
medida análogas –, a política pressupõe a primazia do discurso sobre a eventos sobrenaturais, mas somente o que todos os milagres [...] devem
violência, a possibilidade da ação em concerto em um espaço comum, e se ser sempre: interrupções de uma série natural de acontecimentos, de
estrutura a partir do ideal da igualdade como princípio das relações na vida algum processo automático, em cujo contexto constituam o absolutamente
pública. Formas de gestão social fundadas na violência e no esvaziamento inesperado” (ARENDT, 2006, p. 166, grifos nossos, tradução nossa).

1028 José Sérgio Fonseca de CARVALHO. Os ideais da formação humanista e o sentido da experiência escolar.
que interfere nessa lei é a faculdade de agir, Programática porque sua enunciação
uma vez que interrompe o curso inexorável implica um compromisso teórico fundado
e automático da vida cotidiana [...]. numa escolha valorativa – entre tantas outras
Prosseguindo na direção da morte, o período possíveis –, com eventuais decorrências práticas
de vida do homem arrastaria inevitavelmente e políticas. Mas não uma escolha arbitrária, visto
todas as coisas humanas para a ruína e a que se ancora numa concepção de educação cujas
destruição, se não fosse a faculdade humana raízes remontam a um acontecimento histórico
de interrompê-lo e iniciar algo novo, uma inaugural: a fundação dos ideais educacionais
faculdade inerente à ação que é como um que caracterizam o humanismo renascentista. A
lembrete sempre-presente de que os homens, partir deles, a instituição escolar assume um novo
embora devam morrer, não nascem para papel social, pois não visa mais à preparação de
morrer, mas para começar. (ARENDT, 2010, um profissional especializado, mas à formação
p. 307, grifos nossos). integral do homem e do cidadão. Trata-se, pois,
de um acontecimento histórico que terá no
Foi a radicalidade da questão formulada âmbito da educação um papel análogo ao da
por Arendt – e os caminhos trilhados na democracia ateniense ou da república romana
proposição de sua resposta – que inspiraram a para a política: o de uma experiência fundadora
transposição dessa interrogação para o âmbito da qual emanam princípios capazes de inspirar
específico da experiência escolar: teria ela ainda ações e orientar as inevitáveis transformações
algum sentido numa sociedade que trata o passado históricas a que uma instituição social está
como obsoleto e o futuro como ameaçador? sempre sujeita. Assim, é no princípio da formação
Tampouco nesse caso se deve tomar a forma educacional humanista – entendido em sua dupla
interrogativa como indício de ceticismo. Tal como acepção de início e de preceito orientador3 – que
em Arendt, trata-se de uma pergunta antiniilista se funda essa concepção de formação como a
que se formula em oposição a um processo de constituição de um sujeito em seu vínculo com o
crescente submissão da educação escolar a uma legado histórico de um mundo comum.
racionalidade instrumental que procura reduzir o
ideal de uma formação educacional aos objetivos A formação humanista como
pragmáticos de uma conformação social ditada princípio inspirador da dignidade
por imperativos econômicos. Um processo que, da experiência escolar
à força de tentar imprimir à escola toda sorte
de finalidades extrínsecas, dela parece retirar Se, como propõe Arendt (2006, p.
qualquer sentido intrínseco. Um processo, pois, 153, tradução nossa), “é, de fato, difícil e até
que reduz a experiência escolar a um meio cujo mesmo enganoso falar em política e em seus
fim tem sido a mera adaptação funcional dos princípios sem recorrer, em alguma medida,
indivíduos aos reclamos de produção e consumo às experiências da antiguidade grega e
das sociedades contemporâneas, de forma a romana”, o mesmo parece valer para o legado
despojá-la de seu sentido intrínseco: a iniciação do humanismo renascentista no âmbito da
dos mais novos em heranças simbólicas capazes educação. Ele se erigiu em referência histórica
de dar inteligibilidade à experiência humana e conceitual dos discursos educacionais porque
e durabilidade ao mundo comum (CARVALHO, é fundamentalmente a partir de seus ideais e de
2013). Localizar nesses aspectos – a constituição de suas práticas que a formação escolar adquire
um sujeito e sua vinculação ao mundo comum – 3- Mesmo em seu uso ordinário, a língua portuguesa engloba e vincula
a razão de ser da educação escolar não é uma essas duas acepções da palavra princípio. Houaiss (2008) a define como:
“(1) o primeiro momento da existência (de algo), ou de uma ação ou
arbitrariedade, ainda que inevitavelmente seja processo [...]; (2) o que serve de base a alguma coisa; causa primeira,
uma escolha programática (SCHEFFLER, 1968). raiz, razão”.

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um sentido público e histórico. É a partir do Assim, em sua gênese histórica, as
ideal educacional humanista que ela deixa de noções de um tempo e de um espaço escolar
ser uma preparação profissional – ligada aos implicavam, pois, a ideia de suspensão. Uma
direitos, à medicina e, sobretudo, à teologia – suspensão em relação às exigências imediatas
para ter como objetivo a formação do espírito, da vida (trabalhar, cuidar da subsistência
então entendida como a busca de cada um pela familiar, da ordem da cidade etc.) e em
constituição de sua humanitas. Uma busca relação às desigualdades sociais fixadas pelo
empreendida por meio do acesso direto ao passado: ao tornar-se um estudante, a criança
legado cultural clássico; pelo estabelecimento ou o jovem suspende temporariamente sua
de um processo formativo cujo resultado não condição de filho, aristocrata, plebeu etc.
é a aprendizagem instrumental de informações para se caracterizar por sua atividade presente
e conhecimentos especializados, mas a (afinal, o termo estudante designa apenas o
constituição de um sujeito que se insere na particípio presente da ação de estudar!). É um
dimensão histórica de um mundo. tempo não produtivo no sentido preciso de
Nesse sentido, mais do que os conteúdos que seu resultado não é a fabricação de um
da cultura clássica – filosofia, história, objeto ou instrumento (um bem de consumo
dramaturgia e poesia –, é a própria noção grega ou de uso), mas a constituição de um sujeito.
de formação (Paidéia) que inspira os humanistas É evidente que esse quadro traçado
na elaboração de seu ideal educativo. Como por Masschelein e Simons não se refere à
destacam Masschelein e Simons, a escola grega totalidade e à complexidade da realidade
clássica (a skholé, que em sentido estrito poderia histórica e educacional da Grécia clássica. Ele
ser traduzida por “tempo livre, adiamento, estudo, tão simplesmente procura iluminar o sentido de
lugar de ensino” e cujo uso corrente pressupunha um acontecimento histórico que se materializou
um distanciamento dos reclamos imediatos do em iniciativas educacionais importantes e cujos
mundo) surge como uma iniciativa política cujo primórdios e princípios remontam ao início
objetivo era desvincular a ligação imediata entre do século V a.C., momento em que mesmo a
nascimento e lugar social, tornando “inoperante prática de exercícios físicos se dissocia de sua
a conexão arcaica que liga marcadores pessoais aplicação militar imediata para ser concebida
(raça, natureza, origem etc.) à lista de ocupações como uma arte ligada à perfeição formal e à
correspondentes aceitáveis” (MASSCHELEIN; formação moral (cf. MARROU, 1948). A visão
SIMONS, 2013, p. 26). Esse tempo e esse espaço instrumental da educação oferecida por alguns
dedicados à formação – a skholé – instauram, pois sofistas, voltada prioritariamente para a eficácia
no campo da persuasão política, atesta que os
[...] um tempo livre, isto é, tempo não ideais de formação eram então – e permanecem
produtivo, para aqueles que por seu sendo – objeto de disputas entre visões não
nascimento e seu lugar na sociedade (sua só distintas, mas muitas vezes antagônicas.
“posição”) não tinham direito legítimo Contudo, a vinculação da educação a um
de reivindicá-lo. Ou, dito ainda de outra empreendimento de cunho ético voltado para o
forma, o que a escola fez foi estabelecer florescimento de uma vida interior – e não com
um tempo e espaço que estava, em certo uma aplicação prática imediata de informações e
sentido, separado do tempo e espaço tanto capacidades – irá se consolidar como referência
da sociedade (polis) quanto da família a partir de Sócrates e, sobretudo, de Isócrates. E,
(oikós). Era também um tempo igualitário tanto nos esforços pedagógicos dos chamados
e, portanto, a invenção do escolar pode ser socráticos menores como em Isócrates, é na
descrita como a democratização do tempo cultura literária helênica que os educadores
livre. (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 26). encontram a chave para a compreensão da

1030 José Sérgio Fonseca de CARVALHO. Os ideais da formação humanista e o sentido da experiência escolar.
condição humana; daí sua dedicação ao estudo como pré-requisito para sua inserção em um
sistemático da filosofia, das criações poéticas e determinado estamento social.
da dramaturgia.4 Tal ruptura com a herança escolástica
Ainda mais importante é o fato de que, não decorre, pois, de inovações no campo
com o advento das escolas gregas, a figura das práticas pedagógicas. Estas pouco diferem
do preceptor pouco a pouco cede seu lugar dos procedimentos que caracterizavam a
à do professor que se dirige a um grupo de escola latina medieval, mas apresentam duas
estudantes – portanto, a um público –, e não a inovações que imprimem um novo sentido para
um indivíduo isolado. Forma-se, assim, a noção a escola enquanto espaço de formação:
de escola como uma comunidade – por vezes
bastante semelhante a uma confraria religiosa – O humanismo impôs aos ginásios de seu
na qual mestres e estudantes compartilham a tempo seu ideal de uma Antiguidade
tarefa do estudo e da formação, entendida como separada pela história. Para o homem
uma busca de autocompreensão do humano e da Idade Média, a Antiguidade jamais
de seu papel no cosmos. É essa tradição que havia cessado [...]. Para o humanista, ao
será evocada – e não simplesmente restaurada, contrário, a Antiguidade foi uma era de
mas renovada – a partir do Renascimento perfeição seguida de um longo período de
Carolíngio, tomando sua forma mais radical barbárie. Tratava-se menos de continuar a
e profunda com o advento das instituições Antiguidade [como no caso dos medievais]
escolares idealizadas pelo humanismo no século do que de retomá-la pela restauração da
XV. Ao incorporar as práticas pedagógicas língua e pela familiaridade com os autores
institucionais desenvolvidas pela escola [...]. O contato com os autores antigos não
latina medieval, mas vinculando-as aos ideais se vinculava a fins utilitários, nem mesmo
clássicos de formação, a educação humanista no que concerne ao aprimoramento da
funda uma nova modalidade de relação entre língua, mas a algo verdadeiramente novo:
a formação escolar e o domínio público. Nessa à formação do espírito, já que ele permitia
nova configuração escolar, a relação com a aos contemporâneos aproximarem-se dos
cultura letrada5 e com as artes clássicas passa grandes modelos antigos. Com a concepção
a ser concebida como elemento constitutivo humanista de Antiguidade, aparecia,
da formação integral do homem, e não mais tanto no ensino como na sociedade, a
noção até então desconhecida de cultura
4- Em Protágoras, há uma passagem na qual é possível vislumbrar geral, por muito tempo identificada como
o significativo papel educativo então atribuído à leitura e à análise da
poesia. Em um desafio dirigido a Sócrates, o grande sofista de Abdera “humanidades”. (ARIÈS, 2003, p. 9, grifos
afirma: “Um dos pontos fundamentais da educação é o conhecimento a nossos, tradução nossa).
fundo da poesia, a saber, a capacidade de discernir nas obras dos poetas
o que foi dito com acerto e o que não foi, bem como a de explicá-las e
de saber fundamentar, quando interrogado, suas conclusões” (PLATÃO, Diferentemente de sua antecessora, a
2002, p. 89). Em que pesem as profundas divergências entre os ideais escola renascentista não atribuía um valor
formativos de Sócrates e Protágoras, é notável o fato de que ambos
reconhecem o valor formativo da poesia. apenas instrumental ao conhecimento; ela o
5- A expressão cultura letrada é aqui empregada na acepção que lhe estimava por seu potencial formativo. Não lhe
confere Havelock (1996, p. 59, grifos nossos), para quem “a cultura letrada
não pode ser definida como coextensiva à existência histórica da escrita no
interessava a preparação de especialistas, mas
Egito ou na Mesopotâmia [...] [porque], embora a cultura letrada dependa a formação de homens que, para além das
da técnica utilizada na inscrição, ela não se define apenas pela existência diferenças ligadas à profissão, origem social
dessa técnica. É uma condição social que pode ser definida apenas em
termos de leitura”. Assim, a existência da cultura letrada pressupõe um ou crença religiosa, partilhassem uma cultura
público leitor e uma forma de vida na qual essa atividade ocupe um lugar comum e a responsabilidade pelos rumos
central na circulação do saber. Nesse sentido, o humanismo a faz renascer,
já que a leitura e a escrita permaneceram sendo, durante a maior parte da históricos de sua res publica. É nesse sentido
Idade Média, privilégios de um grupo social bastante restrito. que o contato com a poesia, a filosofia, as

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artes e a história deveria ter um caráter liberal: homem vincula-se ao seu engajamento na vida
seu papel era o de possibilitar, por meio do pública da civitas (cidade). Assim, a formação
diálogo com esse legado clássico, que cada um humanista se dava na forma de um diálogo:
viesse a cultivar seu espírito e a desenvolver
sua personalidade liberado das contingências Um diálogo com os mortos, porém com
de sua ascendência familiar e de expectativas os mortos que, desde o momento em que
predeterminadas quanto ao seu papel social. falam, desde que são levados a falar, estão
Assim, a noção de cultura geral atribui à mais vivos que os seres próximos, vivendo
educação um significado intrínseco: ela passa a uma vida totalmente diferente, são imortais
ser um bem em si mesma, independentemente de no espaço da humanidade, comunicam sua
possíveis – e imprevisíveis – efeitos exteriores imortalidade àqueles que se voltam para
à constituição do sujeito que se educa, como eles aqui e agora. (LEFORT, 1992 p. 212,
eventuais impactos na distribuição de riquezas tradução nossa).
ou de poder numa dada estrutura social. É nesse
sentido que se deve compreender a afirmação É desse diálogo que emerge, entre os
de Lefort (1992, p. 211, tradução nossa) de que, humanistas, o senso da história, da relação do
com o humanismo, “a educação ganha valor em presente com o passado e com o futuro como
si, revela-se em busca de si mesma e engendra, forma de constituição de um mundo comum
na prática, um discurso que a visa como tal”. que transcenda o espaço e se enraíze no tempo.
Essa nova concepção do papel do acesso à Assim, os estudos das humanidades visavam
cultura clássica na formação geral de um cidadão a uma formação inicial comum e prévia à
veio acompanhada de uma nova percepção do preparação profissional especializada; um tipo de
presente em sua relação com o passado. Se o formação escolar na qual o contato com o legado
homem medieval assimilava a Antiguidade cultural de uma civilização tinha uma dimensão
clássica ao seu presente – representando, por simultaneamente ética, estética e política.
exemplo, Hércules como um cavaleiro6 –, os Tratava-se, portanto, de uma forma
humanistas a concebiam como um passado a específica de se aproximar do passado com
um só tempo distante e inspirador. Distante vistas a compreender e definir o presente,
porque entre eles e os antigos se interpunha propiciando uma oportunidade de vínculo
a longa e obscura Idade Média, mas próximo com a profundidade histórica da existência
porque, por meio da restauração da cultura humana, pois, como nos lembra Arendt (2006,
antiga, os humanistas visavam a construir sua p. 94, tradução nossa), “a profundidade não
identidade como herdeiros da Antiguidade. pode ser alcançada pelo homem a não ser por
Herdeiros porque capazes de reconstruir, a partir meio da recordação”. Assim, é por meio da
da crítica histórica e filológica, o verdadeiro evocação de obras, atos e palavras memoráveis
significado de seu legado artístico e filosófico, que se reificam objetos, textos e narrativas da
mas também porque restauradores de uma ética cultura clássica, que o passado adquire, para os
da vita activa, segundo a qual a dignidade do educadores humanistas, um caráter liberador
em relação a toda sorte de tiranias que as
6- Segundo Garin (2003), um claro exemplo dessa assimilação em que
o antigo se mescla com o medieval ocorre nas representações de figuras
demandas do presente possam vir a representar:
caras aos antigos, como a de Hércules. Ao longo dos séculos, este passa
a ser representado ora como Cristo, ora como um cavaleiro medieval com O humanismo havia descoberto que o objetivo
suas vestes e armaduras, sem nenhuma preocupação em relação à sua
imagem ou ao seu papel para os gregos antigos. Nessas representações, da educação era formar o homem, dar-lhe
não há, pois, uma clara distinção entre o passado e o presente. Daí a sua liberdade no mundo, torná-lo senhor
convicção dos humanistas de que eles seriam os verdadeiros herdeiros
da Antiguidade clássica, pois seus estudos visavam a restituir aos textos e do reino que Deus lhe havia concedido.
à própria língua suas formas e seus sentidos originais, ou seja, clássicos. Mas, precisamente a fim de não diminuir

1032 José Sérgio Fonseca de CARVALHO. Os ideais da formação humanista e o sentido da experiência escolar.
essa liberdade tão paradoxal, ele atribui à política; um esforço histórico de constituição do
educação a missão de liberar o homem, de humano a partir das diversas linguagens às quais
não o definir nem o coagir, de dar-lhe todo o os homens recorrem na busca de compreensão
poder em relação à consciência de si mesmo. de sua condição de habitante de um mundo
Educar o homem é torná-lo consciente de si que se estende para além de sua existência
mesmo, de seu lugar no mundo e na história. individual, tanto no passado como no futuro. O
O estudo dos antigos e de sua língua deveria ideal humanista de educação se apresenta, nesse
justamente servir a esse fim: levar o homem, sentido, como um tempo de formação no qual
para além de qualquer definição, a se sentir cada novo habitante do mundo é reconhecido
senhor de si mesmo. (GARIN, 2003, p. 218, como um sujeito de aprendizagem; e como um
tradução nossa). espaço de formação no qual, a partir do diálogo
com uma pluralidade de vozes e linguagens que
Ora, o que esse excerto de Garin nos herdamos do passado, constituímo-nos como
sugere é, pois, que o sentido último da formação sujeitos do presente.
humanista é seu potencial caráter emancipador: Concebida como uma oportunidade de
a liberdade no mundo e a consciência de si diálogo com objetos da cultura e com o contexto
mesmo. Não a consciência de um indivíduo histórico em que eles vieram a se constituir como
apartado da pluralidade dos homens que habitam um legado simbólico potencialmente comum, a
um mundo comum, mas antes a formação de um formação escolar ganha um sentido que ultrapassa
ser singular que se constitui por meio “de sua qualquer eventual finalidade pragmática que
relação com a humanidade e com sua obra na seus conteúdos possam conter. A essência do
história” (GARIN, 2003, p. 16, tradução nossa). humanismo é, como nos recorda Arendt, a cultura
Assim, se é possível apontar um animi: o cultivo desinteressado do espírito e do
princípio fundamental da educação humanista, gosto; da capacidade de fruir, apreciar e julgar as
este reside menos nos conteúdos cristalizados instituições e obras que integram nosso mundo
por uma experiência histórica determinada comum. Ele se vincula menos a um conteúdo
do que no espírito que a moveu em direção a cultural específico do que a uma forma de lidar
essa escolha. É na recusa à subserviência da com o mundo ou a um tipo de “atitude que sabe
cultura a qualquer sorte de instrumentalismo como preservar, admirar e cuidar das coisas do
imediato que radicam o ideal de uma educação mundo” (ARENDT, 2006, p. 222, tradução nossa).
emancipadora e o sentido de uma formação Uma atitude que faz dos diversos legados culturais
escolar que com ela se comprometa. Nessa que coabitam nosso mundo contemporâneo
perspectiva, pouco importa se a cultura com uma potencial herança comum. Uma herança
a qual a instituição escolar dialoga é a da que nos chega sem testamento e que, portanto,
Antiguidade clássica, a do Iluminismo europeu, exige de nós a coragem e a responsabilidade
a dos povos americanos pré-colombianos ou de fazer julgamentos e escolhas. Essas escolhas
aquela presente em suas manifestações mais serão dignas da herança humanista na medida
recentes e pontuais. O que importa é a iniciação em que atualizarem seu compromisso ético e
dos mais novos em um diálogo com um legado político de propiciar aos que chegam ao mundo a
de realizações e experiências simbólicas que oportunidade de “escolher suas companhias entre
representem os esforços humanos não só a fim homens, entre coisas e entre pensamentos, tanto
de prover sua subsistência, mas também de no presente como no passado” (ARENDT, 2006,
atribuir um sentido à sua existência social e p. 222, tradução nossa).

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Referências

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Recebido em: 15.04.2015

Aprovado em: 17.12.2015

José Sérgio Fonseca de Carvalho é livre-docente em filosofia da educação pela Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo (USP). Foi pesquisador convidado da Universidade de Paris VII (2011-2012) e coordena o Grupo de Pesquisa em
Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória (GPDH) no Instituto de Estudos Avançados da USP.

1034 José Sérgio Fonseca de CARVALHO. Os ideais da formação humanista e o sentido da experiência escolar.

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