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Platão, Teeteto (trad. de A. Lobo Vilela), Lisboa: Seara Nova, 1947, pp. 71-78
SÓCRATES -Porque, como acabas de dizer, têm sempre vagar para conversar
tranquilamente e à sua vontade uns com os outros. Fazem como nós, que já mudámos de
assunto por três vezes, quando a nova questão lhes interessa mais do que a anterior, e é-
lhes indiferente que a discussão seja longa ou breve, contanto- que descubram a verdade.
Os outros, pelo contrário, não podem perder tempo quando falam. Premidos pela água
que corre, não podem falar do que desejariam. Ali está a parte contrária para os coagir
com a fórmula de acusação, chamada antomósia, lida perante eles e de cujo conteúdo não
podem afastar-se. Estes discursos versam sempre a acusação e a defesa de um escravo
como eles e dirigem-se a um senhor que preside e tem nas mãos qualquer queixa. A
discussão tem sempre consequências ; o seu estímulo é sempre o interesse pessoal dos
oradores e algumas vezes, até, está em jogo a sua vida. Tudo isto os torna impetuosos e
violentos, hábeis em adular o senhor com palavras e agradar-lhe com actos; mas as suas
almas estiolam e corrompem-se, porque a servidão a que estão sujeitos lhes impede o
desenvolvimento, a rectidão e a liberdade, forçando-os a práticas tortuosas e expondo-os,
desde a juventude, a graves perigos e a grandes temores. Não podendo suportá-las
tomando o partido da justiça e da verdade, voltam-se para a mentira, respondem à
injustiça com a injustiça, curvam-se e vergam de mil maneiras, de modo que passam da
adolescência à idade madura com o espírito inteiramente corrompido, julgando. que se
tornaram hábeis e sábios. Eis, Teodoro, o que são os oradores. Quanto àqueles que fazem
parte do nosso coro, queres que tos pinte ou preferes que voltemos ao nosso assunto, sem
nos determos nisso, para não abusarmos da liberdade de mudar de assunto a que há pouco
nos referimos ?
TEODORO -Não, Sócrates, pinta-os. Como disseste, e muito bem, nós, que pertencemos
a este coro, não estamos às ordens da argumentação; pelo contrário, é a argumentação
que está às nossas ordens e o desenrolar dos argumentos depende apenas da nossa
vontade, porque não temos juizes nem espectadores, como têm os poetas, que presidam
às nossas conversas, nos critiquem ou nos dêem ordens.
SÓCRATES - Pois bem, já que assim desejas, vou falar dos, córifeus, porque não vale a
pena ocuparmo-nos dos filósofos medíocres. Os verdadeiros filósofos ignoram, desde a
juventude, o caminho que conduz à Ágora, aos locais onde funcionam os tribunais, onde
reúne o Senado ou as assembleias populares. Não têm olhos nem ouvidos para as leis e
decretos apregoados ou escritos; nem lhes passa pela cabeça tomar parte nos manejos das
hetairas que disputam os cargos públicos, nas reuniões, nos banquetes e nas orgias com
acompanhamento de tocadoras de flauta. Pode acontecer alguma felicidade ou
infelicidade ao Estado, um particular pode herdar qualquer defeito dos seus antepassados,
homem ou mulher, que o filósofo sabe tanto disso como do número de gotas de água do
mar. Nem sequer sabe que ignora tudo isso, porque se abstém de conhecer essas coisas,
não por simples gloriola, mas porque, realmente, só o corpo dele está presente e habita na
cidade, enquanto o seu pensamento, considerando tudo isso com desdém, coma coisas
mesquinhas e sem valor, voa, como diz Píndaro, sondando os abismos da terra e medindo
a extensão da sua superfície, esquadrinhando os astros para além do céu, perscrutando a
natureza e os seres no seu conjunto, sem nunca descer ao que está perto dele.
SÓCRATES - É assim, meu caro amigo, o filósofo, nas suas relações privadas e públicas
com os seus semelhantes. Quando é obrigado a discutir num tribunal, ou em qualquer
outra parte, acerca do que tem diante dos olhos e a seus pés, dá lugar a que se riam dele,
como eu disse a princípio, não só as escravas da Trácia, mas também a multidão, caindo,
a cada momento, em poços e em toda a espécie de perplexidades, por inexperiência. A
sua terrível falta de jeito fá-lo passar por imbecil. Nos assaltos de injúrias, não consegue
tirar da sua imaginação nenhuma injúria contra ninguém, porque não conhece os vícios
de ninguém, por nunca se ter ocupado disso; então, fica calado e parece ridículo. Quando
ouve os outros gabar-se e renderem-se louvores, ri-se, não para dar nas vistas, mas com
sãos intuitos, e tomam-no por tolo. Se ouve elogiar um tirano ou um rei, julga ouvir exaltar
a felicidade de algum pastor, cabreiro ou vaqueiro, que tira muito leite do rebanho; supõe
que os reis apascentam e cuidam de uma espécie de animais mais indóceis e desleais que
as rezes dos pastores e que, por falta de tempo, se tornam grosseiros e ignorantes como
os pastores, encerrados em muralhas, como estes nos apriscos das montanhas. Se ouve
falar de um homem que possui dez mil pletros de terra, como sendo prodigiosamente rico,
parece-lhe pouco, habituado corno está a lançar os olhos pelo mundo inteiro. Quanto aos
que louvam a nobreza e entendem que um homem é de boas famílias quando conta sete
antepassados ricos, pensa que tal elogio é feito por pessoas de vistas baixas e curtas que,
por ignorância, não podem abranger todo o género humano nem perceber que cada um de
nós tem milhares de antepassados entre os quais há milhares de ricos e de pobres, de reis
e de escravos, de bárbaros e de gregos, em todas as famílias. Considera mesquinhez de
espírito glorificarem-se de ter vinte e cinco antepassados, fazendo remontar a linhagem a
Héracles, filho de Anfitrião. 0 vigésimo quinto antepassado de Anfitrião e o
quinquagésimo antepassado daquele foram o que o acaso quis, e o sábio ri-se daqueles
que não reflectem nisto nem podem libertar-se desta tola vaidade. Em todas estas
ocasiões, o vulgo ri-se do filósofo que umas vezes lhe parece desdenhoso e outras
ignorante do que se passa à sua volta, e embaraçado com todas as coisas.