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Josué de Castro e a Geografia da Fome no Brasil

Article  in  Cadernos de Saúde Pública · November 2008


DOI: 10.1590/S0102-311X2008001100027

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1 author:

FRANCISCO DE ASSIS GUEDES DE Vasconcelos


Federal University of Santa Catarina
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Association between Selenium intake and metabolic syndrome in Brazilian adolescents from 12 to 17 years-old: The Study of Cardiovascular Risk in Adolescents
(ERICA) View project

DIETARY APPROACHES TO STOP HYPERTENSION (DASH) AND ASSOCIATION WITH OBESITY AND ARTERIAL HYPERTENSION: CROSS -SECTIONAL STUDY WITH
PARTICIPANTS OF THE STUDY OF CARDIOVASCULAR RISK IN ADOLESCENTS (ERICA) View project

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2710 FÓRUM FORUM

Josué de Castro e a Geografia da Fome no Brasil

Josué de Castro and The Geography of Hunger in Brazil

Francisco de Assis Guedes de Vasconcelos 1

Abstract Introdução

1Centro de Ciências da The aim of this article is to reinterpret the clas- Josué de Castro nasceu em 5 de setembro de
Saúde, Universidade
Federal de Santa Catarina,
sic work Geografia da Fome [The Geography of 1908, em Recife, Pernambuco, Brasil. Filho de um
Florianópolis, Brasil. Hunger], first published in 1946. The article pro- agricultor do Sertão Nordestino que em 1877, em
vides a summary of the five food area maps and função da seca, migrou para a capital, viveu sua
Correspondência
F. A. G. Vasconcelos the main nutritional deficiencies in Brazil, based infância e adolescência em um bairro pobre, às
Departamento de Nutrição, on Josué de Castro’s original conception. Current- margens do rio Capibaribe 1,2,3. Em 1929, após
Centro de Ciências da Saúde,
ly, the nutritional epidemiological profile identi- concluir o Curso de Medicina da Universidade do
Universidade Federal de
Santa Catarina. fied by Josué de Castro, characterized by nutri- Brasil, retornou ao Recife para dar início a uma
Campus Universitário tional deficiencies (malnutrition, vitamin defi- consagrada trajetória político-intelectual, dedi-
Trindade, Florianópolis, SC
ciencies, endemic goiter, iron deficiency anemia, cada, particularmente, à complexa e paradoxal
88040-970, Brasil.
fguedes@floripa.com.br etc.), overlap with chronic non-communicable problemática da fome e suas formas de enfren-
diseases (obesity, diabetes, dyslipidemias, etc.). tamento 4. A sua vastíssima produção intelectu-
However, the complex and paradoxical issue of al, de abrangência internacional, composta por
hunger is a persistently recurrent theme in Bra- mais de 200 títulos, tem sido objeto de estudo de
zil. Given a series of current dilemmas, includ- distintas investigações 3,4,5,6,7,8,9.
ing the planet’s ecological sustainability and the O objetivo geral do presente artigo é realizar
need to guarantee the human right to adequate, uma releitura do clássico Geografia da Fome, pu-
healthy nutrition, it is urgent to reawaken the blicado pela primeira vez em 1946 10. Como ob-
struggle led by Josué de Castro for the adoption of jetivos específicos, em um primeiro momento,
a sustainable economic development model and realiza-se uma síntese do mapa das cinco áreas
a society free of poverty and hunger. alimentares do Brasil traçado em Geografia da
Fome, procurando identificar as principais ca-
Hunger; Feeding Behavior; Nutritional Surveil- racterísticas dos seus regimes alimentares. Em
lance um segundo momento, realiza-se uma síntese do
mapa das principais carências nutricionais exis-
tentes no Brasil, de acordo com o delineamento
de Josué de Castro 10.
Em Geografia da Fome, Josué de Castro in-
troduz os conceitos de áreas alimentares, áreas
de fome endêmica, áreas de fome epidêmica,

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JOSUÉ DE CASTRO E A GEOGRAFIA DA FOME 2711

áreas de subnutrição, mosaico alimentar brasi- O mapa das áreas alimentares do Brasil
leiro e, por conseqüência, traça o primeiro mapa
da fome no país. Por áreas alimentares, concebe A partir de Geografia da Fome, o país seria divi-
uma determinada região geográfica que dispõe dido em cinco diferentes áreas alimentares as-
de recursos típicos, dieta habitual baseada em sim distribuídas: (1) Área Amazônica – à época,
determinados produtos regionais e com seus ha- abrangia os estados do Amazonas e Pará, parte
bitantes refletindo, em suas características bio- dos estados do Mato Grosso, Goiás e Maranhão
lógicas e sócio-culturais, a influência marcante e os territórios do Amapá e Rio Branco; (2) Nor-
da dieta. Por área de fome endêmica, concebe deste Açucareiro ou Zona da Mata Nordestina – à
uma determinada área geográfica em que pelo época, correspondia a todo o litoral nordestino,
menos metade da população apresenta nítidas do Estado da Bahia ao Ceará, compreendendo
manifestações de carências nutricionais perma- uma faixa territorial com largura média de 80km;
nentes. Por áreas de fome epidêmica, concebe (3) Sertão Nordestino – correspondendo, à época,
uma determinada área geográfica em que pelo às terras centrais dos estados do Piauí, Ceará, Rio
menos metade da população apresenta nítidas Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas,
manifestações nutricionais transitórias. Por áre- Sergipe e Bahia; (4) Centro-Oeste – compreendia
as de subnutrição, concebe uma determinada os estados de Minas Gerais, Goiás e Mato Gras-
área geográfica em que os desequilíbrios e as ca- so; e (5) Extremo Sul – que à época abrangia os
rências alimentares, sejam em suas formas dis- estados da Guanabara, Rio de Janeiro, São Paulo,
cretas ou manifestas, atingem grupos reduzidos Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
da população. E por mosaico alimentar brasilei-
ro, concebe a diferenciação regional dos tipos O regime alimentar da Área Amazônica
de dieta existentes no país, oriundas das varia-
das categorias de recursos naturais (alimentos) De acordo com o mapa das áreas alimentares do
e das distintas etnias que constituíram a nação Brasil (Figura 1), a Área Amazônica apresentava
brasileira 9. como dieta básica o consumo de farinha de man-
De acordo com Castro 10, o método de inves- dioca, associada ao feijão, peixe e rapadura. Em
tigação que norteou a elaboração da Geografia relação aos fatores etno-culturais que influen-
da Fome foi baseado nos princípios estabelecidos ciavam a constituição da dieta, Castro 10 aponta
pelos geógrafos alemães Carl Ritter (1779-1859) e a predominância da cultura indígena sobre as
Alexander von Humboldt (1769-1859), pelo geó- culturas dos brancos portugueses e negros afri-
grafo francês Paul Vidal de La Blache (1845-1918), canos. O alimento básico da dieta, a farinha de
entre outros. Para seu autor, o objetivo básico da mandioca, era consumido em diferentes prepa-
Geografia da Fome consiste em “localizar com rações sob a forma de farofas, mingaus, beijus
precisão, delimitar e correlacionar os fenômenos e bebidas fermentadas, sendo misturado a ou-
naturais e culturais que ocorrem à superfície da tros alimentos, oriundos da flora silvestre (frutos,
terra” 10 (pp. 34-5). Assim sendo, afirma que o sementes e ervas), da fauna aquática e terrestre
propósito do seu estudo foi realizar uma sonda- (peixes, crustáceos, tartarugas, tracajás, jabutis,
gem de natureza ecológica sobre o fenômeno da antas, macacos e patos), além da incipiente agri-
fome no Brasil, orientado pelos princípios geo- cultura regional. Destaca o largo consumo de pi-
gráficos da localização, extensão, causalidade, mentas e outras ervas na preparação dos pratos
correlação e unidade terrestre 10. regionais como uma importante contribuição da
Por outro lado, ao introduzir o uso dos termos cultura indígena. Em relação aos frutos regionais,
fome endêmica e fome epidêmica, em nota expli- é interessante notar que, já àquela época, ele
cativa, Castro faz alusão à adoção do conceito de apontava algumas importantes características
epidemiologia da fome, explicitando a influência nutricionais do buriti e açaí (ricos em betacaro-
que sofreu do conceito de epidemiologia admi- teno ou vitamina A) e castanha-do-pará (proteí-
tido por Wade Hampton Frost (1880-1938) e do nas completas e ácidos graxos). A conclusão do
conceito de epidemiologia do diabetes e do cân- autor sobre a dieta amazônica foi que se tratava
cer defendido por Wilson George Smillie (1886- de uma alimentação pouco trabalhada e atraente
1971). Sendo assim, embora explicitando sua e que sua análise biológica e química revelava
maior identificação com o método geográfico, inúmeras deficiências nutritivas 10.
os aspectos biológicos, médicos e higiênicos do
fenômeno da fome também são enfocados em
seu ensaio ecológico.

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2712 Vasconcelos FAG

Figura 1

Mapa das áreas alimentares do Brasil.

CA E
IO D

FE
D A
AN H

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M RIN

ÃO
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IX

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4

AN H

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2

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RN

CI

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U

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AI
TO

RQ
PI
Áreas

A
M

CH
1 Amazônica

2 Nordeste Açucareiro

3 Sertão Nordestino
E
RN

4 Centro-Oeste

CA

5 Extremo Sul
5
TA
AR

TA
RO

BA
Z

Área de fome endêmica

Área de epidemias de fome

Área de subnutrição

O regime alimentar do Nordeste Açucareiro te, faz distinção entre duas subáreas alimentares:
a litorânea e a da mata ou da cana-de-açúcar.
No Nordeste Açucareiro a dieta básica era o con- Ao longo da sua abordagem aparece referência a
sumo de farinha de mandioca, associada ao fei- uma subárea alimentar do sururu no Estado de
jão, aipim e charque (Figura 1). De acordo com Alagoas e à especificidade da cozinha baiana. Ao
Castro 10, esse regime alimentar era produto da final, também descreve a área alimentar do cacau
inter-relação das culturas alimentares dos indí- que, à época, se estendia do Recôncavo para o sul
genas da região, dos colonizadores portugueses da Bahia até o Espírito Santo 10.
e dos negros africanos, tendo a cultura alimentar Na descrição da área litorânea destaca a ri-
do negro africano uma influência mais expressi- queza de proteínas e sais minerais, oriundos dos
va e valorizadora sobre os hábitos alimentares do alimentos marinhos (peixes, moluscos e crustá-
que as demais. ceos) e a participação de dois produtos vegetais
Ele aponta a existência de distintas subáreas de alto valor nutritivo: o coco e o caju. O coco
alimentares nessa região nordestina. Inicialmen- contribuía com o aporte de gordura, proteínas e

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sais minerais da dieta, participando de uma in- limitada de frutas regionais como umbu, piqui,
finidade de preparações típicas: feijão de coco, quibá, cajarana e quixaba. Identificava também
peixe de coco, arroz de coco, vatapá, canjica, pa- o consumo limitado de verduras como abóbo-
monha, mungunzá, doce de coco, cocada, entre ra, maxixe, e cebolinha e coentro, usados como
outras. O caju, por sua vez, era rico em vitaminas temperos.
(em ácido ascórbico) e em proteínas de alto valor Castro 10 concluiu que o regime alimentar ha-
biológico contidas na castanha 10. bitual da área do Sertão Nordestino apresentava-
Vale destacar a análise apresentada sobre os se quantitativa e qualitativamente equilibrado,
tabus alimentares da região, sobretudo em re- atendendo sem déficits e sem excessos às neces-
lação ao consumo de frutas como manga, jaca, sidades nutricionais do sertanejo: “É esta mesma
abacaxi, melancia, abacate, laranja, entre outras. parcimônia calórica, sem margens a luxo, que faz
Para Castro 10, o grande número de superstições do sertanejo um tipo magro e anguloso, de carnes
e restrições ao consumo de certos alimentos, enxutas, sem arredondamentos de tecidos adipo-
sem nenhum fundamento biológico, decorria da sos e sem nenhuma predisposição ao artritismo, à
sobrevivência cultural das interdições alimenta- obesidade e ao diabetes, doenças essas provocadas,
res impostas por questões econômicas pelos se- muitas vezes, por excesso alimentar” 10 (p. 207).
nhores de engenho a seus escravos e moradores. Entretanto, esse equilíbrio nutricional esta-
Nesse aspecto, vale lembrar que grande parte dos va sujeito às rupturas cíclicas dos períodos de
tabus alimentares identificados continua sua re- seca, quando se desorganizava completamente
produção no imaginário alimentar da população a economia regional e instalava-se a fome epi-
brasileira 11,12,13. dêmica. Nesse sentido, Castro 10 relata que nos
períodos de seca o sertanejo passava imediata-
O regime alimentar do Sertão Nordestino mente para um regime de subalimentação, limi-
tando a quantidade e a variedade de alimentos,
O Sertão Nordestino tinha como dieta básica o reduzindo a sua dieta ao consumo de um pouco
consumo de milho, associado ao feijão, carne de milho, feijão e farinha de mandioca. Quando
(gado, carneiro e cabra) e rapadura (Figura 1). a seca persistia e esses recursos alimentares se
De acordo com Castro 10, esse regime alimentar esgotavam, o sertanejo lançava mão de outras
tinha predominância da influência cultural colo- estratégias de sobrevivência, passando a consu-
nial (árabe-portuguesa), sendo o mais isento das mir as “iguarias bárbaras” do sertão: raízes, se-
influências das culturas dos índios e negros. mentes, frutos e animais resistentes à seca. En-
O milho foi considerado o alimento básico tre as “iguarias bárbaras” ele destaca: farinha de
da dieta, sendo consumido quase que pela tota- macambira, xique-xique, pereira brava, macaúba
lidade da população em quantidades considera- e mucunã, palmito de carnaúba, raízes de umbu-
das elevadas. Constituía a base calórica da dieta, zeiro, pau-pedra, serrote e maniçoba, sementes
sendo usado no preparo de vários pratos típicos: de fava-brava, manjerioba, beijus de catolé, gra-
cuscuz, angu, pamonha e canjica. Segundo Cas- vatá e macambira.
tro 10, seu consumo associado ao do leite resul- Em relação ao consumo desses alimentos
tava numa combinação nutricional muito feliz, exóticos Castro 10 (p. 220-1) conclui: “Quando o
uma vez que a proteína caseína do leite comple- sertanejo lança mão destes alimentos exóticos é
tava as deficiências em aminoácidos da proteína que o martírio da seca já vai longe e que sua misé-
zeína do milho. ria já atingiu os limites de sua resistência orgâni-
O leite e seus derivados como coalhada fresca ca. É a última etapa de sua permanência na terra
ou escorrida, queijo e manteiga eram consumi- desolada, antes de se fazer retirante e descer aos
dos em abundância, constituindo alimentos in- magotes, em busca de outras terras menos casti-
tegrantes da dieta do sertanejo nordestino. Para gadas pela inclemência do clima”.
completar o aporte de proteínas de origem ani-
mal, observava-se o consumo habitual de carne O regime alimentar do Centro-Oeste
(boi, carneiro e cabra) em distintas preparações:
carne com abóbora e leite; carne-de-sol; char- No Centro-Oeste a dieta básica era o consumo
que; paçoca, buchada, panelada etc. 10. de milho, associado ao feijão, carne e toucinho
Completava o regime habitual do sertanejo (Figura 1). O prato típico foi identificado como o
nordestino o consumo de feijão (principalmente “tutu de feijão mineiro”, preparado à base de fari-
do tipo macassar), farinha de mandioca, batata- nha de milho, feijão, gordura, toucinho e lombo
doce, inhame, rapadura e café. O consumo ha- de porco. Esse foi considerado por Castro como
bitual de frutas e verduras era muito limitado, de “alto valor calórico”, mas qualitativamente de
constituindo falha visível da alimentação do ser- valor nutritivo inferior ao do “angu ou do cus-
tanejo. Sendo assim, ele identificava a ingestão cuz de milho com leite” da área do Sertão Nor-

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2714 Vasconcelos FAG

destino, principalmente por seu teor mais baixo ça de deficiências protéicas, vitamínicas e de sais
em cálcio e vitaminas. Entretanto, salienta que a minerais (Figura 2). À época, as carências nutri-
dieta básica da região ganhava valor biológico a cionais endêmicas eram: carências protéicas, de
partir do consumo associado de vegetais verdes, vitamina B2 (arriboflavinose); de ferro (anemias)
principalmente couve mineira, outras hortaliças e de cloreto de sódio. As formas frustas ou subclí-
e frutas, principalmente laranja, mamão, banana nicas eram: carências protéicas; de vitaminas A,
e abacate. Com base na análise química do regi- B1 e niacina (pelagra) e de cálcio (sem manifes-
me alimentar, afirma que não havia deficiência tação de raquitismo). A carência de vitamina B1
calórica na região, pelo contrário, deveria haver (beribéri) aparecia em forma típica epidêmica.
excesso calórico. Concluiu sua análise de forma Em relação ao beribéri, vale ressaltar que ele des-
um tanto preconceituosa ao afirmar que esse pa- taca o período de 1870 a 1910, conhecido como
drão alimentar resultava em “maior incidência ciclo econômico da borracha amazônica, como
da obesidade e do diabete, e na formação do tipo uma fase epidêmica desta carência nutricional
biológico dos mineiros lentos e pesados, conserva- na região. Ressalta-se ainda a interessante aná-
dores e pachorrentos” 10 (p. 267). lise que ele faz sobre a associação entre a insufi-
ciência alimentar quantitativa, caracterizada por
O regime alimentar do Extremo Sul um baixo consumo calórico, a adaptação orgâ-
nica forçada a partir desta situação permanente
O Extremo Sul consumia basicamente o arroz, e a apregoada preguiça dos povos dessa região
pão, batata e carne (Figura 1). À época, por cons- equatorial. Para Castro 10 (p. 76), “a preguiça dos
tituir a área mais rica e de maior desenvolvimen- povos equatoriais é um meio de defesa ou sobre-
to, tanto agrícola como industrial, também foi vivência, funcionando como um sinal de alarme
considerada a região de maior variedade alimen- numa caldeira que diminui a intensidade de suas
tar, de mais alto consumo de verduras e frutas combustões, quando lhe falta o combustível”.
e, portanto, de mais elevado padrão alimentar.
Além dos fatores econômicos e geográficos (cli- As carências nutricionais do
ma, solo, pluviosidade etc.), Castro 10 ressalta os Nordeste Açucareiro
determinantes etno-culturais que possibilitavam
diversificação e melhoria do padrão alimentar da O Nordeste Açucareiro, considerado uma área de
região. Assim, as distintas etnias que migraram fome endêmica, apresentava como manifesta-
para a região, compostas por italianos, japone- ções diretas da deficiência do regime alimentar:
ses, alemães, poloneses, lituanos, entre outros, carências calóricas, protéicas, de vitaminas e mi-
em muito contribuíram para a constituição do nerais. As formas endêmicas das carências nutri-
seu diversificado mosaico alimentar. Ele desta- cionais identificadas foram: carências protéicas,
ca a presença de distintas subáreas alimentares de vitaminas A, B1 e B2 e dos minerais ferro e
nessa região: (1) Subárea de influência italiana, cloreto de sódio. As manifestações subclínicas
caracterizada pelo largo consumo de trigo sob identificadas foram: carências protéicas; de vi-
a forma de macarrão, ravioli e spaghetti; (2) Su- taminas B1, C (escorbuto) e niacina e do mineral
bárea localizada no Rio Grande do Sul, caracte- cálcio (Figura 2) 10.
rizada pelo complexo alimentar do churrasco e Castro destaca que em conseqüência da de-
do mate-chimarrão; (3) Subárea de influência ficiência calórica da dieta, decorria a reduzida
japonesa, localizada em torno da capital de São capacidade de trabalho do nordestino da Zona
Paulo e outros centros urbanos, caracterizada da Mata, em relação aos trabalhadores mais bem
por abundante consumo de verduras; e (4) Su- alimentados de outras regiões do país. Chama a
bárea de influência germânica, caracterizada por atenção para uma possível associação entre a de-
um consumo mais freqüente de aveia, centeio, ficiência permanente de proteínas da dieta e os
lentilhas, hortaliças, frutas, carne de porco (sal- índices de baixa estatura dos habitantes do bre-
sichas, bacon, presunto, defumados), pão preto, jo nordestino, os trabalhadores dos engenhos e
chucrute e cerveja. usinas de açúcar. Como confronto, também cha-
ma a atenção para uma possível associação en-
tre a dieta rica em proteínas e sais minerais e os
O mapa das carências nutricionais índices de estatura elevada dos habitantes do li-
do Brasil toral, as populações costeiras de pescadores.
Ao descrever o mapa das carências de vitami-
As carências nutricionais da Amazônia nas A, B1, B2, C e niacina, relativiza a magnitude
e a gravidade do quadro, ressaltando que estas
A Região Amazônica, considerada uma das áreas carências não eram tão abundantes como deve-
de fome endêmica, caracterizava-se pela presen- ria se esperar. Como exceção, destaca a carência

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JOSUÉ DE CASTRO E A GEOGRAFIA DA FOME 2715

Figura 2

Mapa das principais carências nutricionais existentes nas diferentes áreas alimentares do Brasil.

1
PT
CA
PT CA B1 VA AN B1
AN
VC
B1 PT FE CS B2
3 2
PT
PT CA FE CS VA

B1 B2 AN VC FE

4 ID CS

CA VA B1 B2 VC AN VA

PT FE CS B1 ID
B1

B2

Áreas

1 Amazônica
CA FE VA
2 Nordeste Açucareiro
B2 AN VC
3 Sertão Nordestino
VD ID Formas

4 Centro-Oeste XX Frustas

5 Extremo Sul 5 XX Típicas – casos esporádicos

XX Típicas – crises epidêmicas

XX Típicas endêmicas
Carências

PT – Protéicas B1 – de Vitamina B1

CA – de Cálcio sem manifestações de raquitismo B2 – de Vitamina B2 (ariboflavinose)

FE – de Ferro (anemias alimentares) AN – de Ácido Nicotínico (pelagra)

CS – de Cloreto de Sódio VC – de Vitamina C (escorbuto)

ID – de Iodo (bócio cretínico) VD – de Vitamina D (raquitismo)

VA – de Vitamina A (hemeralopia xeroses,


xeroftalmia e queratomalacia)

de vitamina B2 (arriboflavinose), afirmando ser as variadas espécies de pimenta (fontes de ácido


esta abundante e generalizada entre crianças po- ascórbico) 10.
bres das áreas rurais e urbanas da região. É inte- Em relação às carências minerais, aponta a
ressante notar que ele aponta como explicação a deficiência de ferro (anemia alimentar) como a
possível influência de fatores protetores ou pre- manifestação endêmica mais generalizada, a qual
ventivos presentes na dieta regional, tais como seria responsável pelo estereótipo de palidez,
condimentos e ingredientes especiais usados, apatia e depressão física do habitante do brejo
sobretudo na cozinha baiana: o azeite-de-den- – o Jeca-Tatu Nordestino. Entretanto, apenas um
dê (fonte de beta-caroteno ou provitamina A) e estudo sobre a prevalência de anemia ferropriva

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2716 Vasconcelos FAG

é referido, segundo o qual 40% dos escolares da verificaram incidências de 44% e 60% de bócio
cidade de Salvador (Bahia) apresentavam baixas endêmico, respectivamente.
taxas de hemoglobina 10.
Ressalta-se ainda a importante análise rea- As carências nutricionais do Extremo Sul
lizada a respeito das conseqüências do consu-
mo alimentar excessivo ou desequilibrado ve- O Extremo Sul também foi considerado uma área
rificado entre os habitantes mais abastados, os de deficiências alimentares discretas e menos
senhores de engenhos e suas famílias. De acordo generalizadas, apresentando “carências parciais,
com Castro 10, a dieta com excesso de carboidra- restritas a determinados grupos ou classes sociais”
tos, sobretudo, com excesso de açúcar e falta de 10 (p. 265) Era a região que tinha o melhor perfil

frutas, apresentava como conseqüência a gran- epidemiológico nutricional. As carências de vita-


de incidência de diabetes e avitaminoses B em minas A, B2, C e niacina, de cálcio e de ferro apa-
certas famílias de senhores de engenhos. Nesse reciam em suas formas subclínicas. A carência
aspecto, faz uso de uma brilhante metáfora: “O de vitamina D (raquitismo) aparecia sob forma
açúcar em excesso de sua dieta desequilibrando típica esporádica. A carência de iodo manifesta-
as trocas metabólicas, como a cana desequilibrou va-se de forma endêmica (Figura 2). Entretanto,
de maneira tão nociva o metabolismo econômico ao concluir sua análise ele faz um alerta sobre o
da região. É como se a terra se vingasse do homem, aumento da incidência da carência de proteínas,
fazendo-o sofrer de uma doença semelhante à que se manifestava em quadros típicos de kwa-
sua – o organismo todo saturado de açúcar” 10 shiorkor, entre crianças das classes pobres e pro-
(pp. 155-6). letárias dos grandes centros urbanos da região,
principalmente Rio de Janeiro e São Paulo 10.
As carências nutricionais do
Sertão Nordestino
Considerações finais
De acordo com Castro 10, a área do Sertão do Nor-
deste caracterizava-se pela atuação de um tipo A releitura de Geografia da Fome evidencia quão
de fome diferente, aquela que se apresentava em viva, polêmica e sedutora permanece esta obra
surtos epidêmicos ou agudos nos períodos de se- sexagenária. Nos dias atuais, ao perfil epidemio-
ca ou estiagem. Eram epidemias de fome global lógico nutricional traçado por Josué de Castro,
quantitativa e qualitativa que afetavam de forma caracterizado pelas carências nutricionais (des-
bastante violenta e sem discriminação todos os nutrição, hipovitaminoses, bócio endêmico, ane-
habitantes da região. Apresentava como formas mia ferropriva etc.), sobrepuseram-se as doenças
endêmicas: carências protéicas, de vitaminas A, crônicas não-transmissíveis (obesidade, diabe-
B1, B2, C e niacina e dos minerais cálcio, ferro e tes, dislipidemias etc.). Nesse aspecto, tanto o
cloreto de sódio. A carência de iodo (bócio) apre- mapa das cinco áreas alimentares como o das
sentava-se em sua forma subclínica (Figura 2). principais carências nutricionais existentes no
Brasil traçados em Geografia da Fome precisam
As carências nutricionais do Centro-Oeste ser redesenhados em função deste novo per-
fil epidemiológico nutricional brasileiro. Tarefa
A área do Centro-Oeste foi considerada como imprescindível, mas que ainda está por vir. A
uma “área de subnutrição, de desequilíbrio e de questão da complexa e paradoxal problemática
carências parciais, restritas a determinados gru- da fome, entretanto, permanece como uma te-
pos ou classes sociais” 10 (p. 265). A única forma mática recorrente no Brasil. Portanto, diante de
endêmica descrita foi a carência de iodo (bócio alguns dilemas da atualidade, tais como aqueles
endêmico). As carências de proteínas, de vita- que dizem respeito à sustentabilidade ecológica
mina B1, de ferro e de cloreto de sódio foram do planeta e à garantia do direito humano à ali-
identificadas como formas típicas esporádicas. mentação, torna-se imperante reacender a luta
As carências de vitaminas A, B1, B2, C e niacina defendida por Josué de Castro pela adoção de um
e de cálcio foram identificadas em suas formas modelo de desenvolvimento econômico susten-
frustas (Figura 2) 10. tável e uma sociedade sem miséria e sem fome.
Em relação ao bócio endêmico, relata que es-
ta deficiência nutricional grassava no país desde
os tempos coloniais, apresentando maior inci-
dência nos estados de Minas Gerais, São Paulo,
Rio de Janeiro, Paraná, Goiás e Mato Grosso. De
acordo com Castro 10, à época, estudos realiza-
dos com escolares de Minas Gerais e São Paulo

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JOSUÉ DE CASTRO E A GEOGRAFIA DA FOME 2717

Resumo Referências

O objetivo deste artigo é realizar uma releitura do clás- 1. Linhares MYL. Biografia. In: Castro J. Geografia da
sico Geografia da Fome, publicado pela primeira vez fome (o dilema brasileiro: pão ou aço). 10a Ed. Rio
em 1946. Realiza-se uma síntese dos mapas das cinco de Janeiro: Antares Achiamé; 1980. p. 333-7.
áreas alimentares e das principais carências nutricio- 2. L’Abbate S. As políticas de alimentação e nutrição
nais existentes no Brasil, de acordo com o delineamen- no Brasil. I. Período de 1940 a 1964. Rev Nutr 1988;
to realizado por Josué de Castro. Nos dias atuais, ao 1:87-138.
perfil epidemiológico nutricional desenhado por Jo- 3. Magalhães R. Fome: uma (re)leitura de Josué de
sué de Castro, caracterizado pelas carências nutricio- Castro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 1997.
nais (desnutrição, hipovitaminoses, bócio endêmico, 4. Vasconcelos FAG. Fome, eugenia e constituição
anemia ferropriva etc.), sobrepuseram-se as doenças do campo da nutrição em saúde pública em Per-
crônicas não-transmissíveis (obesidade, diabetes, dis- nambuco: uma análise de Gilberto Freyre, Josué
lipidemias etc.). Entretanto, a questão da complexa de Castro e Nelson Chaves. Hist Ciênc Saúde-Man-
e paradoxal problemática da fome permanece como guinhos 2001; 8:315-39.
uma temática recorrente no Brasil. Diante de alguns 5. Arruda BKG. Geografia da Fome: da lógica regio-
dilemas da atualidade, tais como aqueles que dizem nal à universalidade. Cad Saúde Pública 1997; 13:
respeito à sustentabilidade ecológica do planeta e à 545-9.
garantia do direito humano à alimentação, torna-se 6. Vasconcelos FAG. Os Arquivos Brasileiros de Nutri-
imperante reacender a luta defendida por Josué de ção: uma revisão sobre produção científica em nu-
Castro pela adoção de um modelo de desenvolvimento trição no Brasil (1944 a 1968). Cad Saúde Pública
econômico sustentável e uma sociedade sem miséria e 1999; 15:303-16.
sem fome. 7. Lima ES. Mal de fome e não de raça: gênese, cons-
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Recebido em 04/Jul/2008
Versão final reapresentada em 27/Ago/2008
Aprovado em 04/Set/2008

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(11):2710-2717, nov, 2008

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