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J.M. COETZEE
A INFÂNCIA DE JESUS
ROMANCE
D.QUIXOTE
BADANA DA CAPA
BADANA DA CONTRACAPA
A ILHA
A IDADE DO FERRO
O MESTRE DE PETERSBURGO
DESGRAÇA
ELIZABETH COSTELLO
O HOMEM LENTO
VERÃO
A INFÂNCIA DE JESUS
CONTRACAPA
FINANCIAL TIMES
SUNDAY TIMES
THE TIMES
Página de rosto
J. M. Coetzee
A INFÂNCIA DE JESUS
Romance
Tradução de J. Teixeira de Aguilar
D.QUIXOTE
Ficha técnica
J. M. Coetzee, 2013
ISBN: 978-972-20-5283-2
O gabinete é amplo e está vazio. Quente, também, mais quente até do que o
exterior. No extremo mais afastado há um balcão a toda a largura da sala,
dividido por chapas de vidro fosco. Encostada à parede há uma série de
gavetas de arquivo de madeira envernizada.
- Não é meu neto nem é meu filho, mas sou responsável por ele.
- Um sítio onde morar. - Ela deita uma olhadela aos papéis. - Temos um
quarto vago aqui no Centro que pode usar enquanto procura coisa melhor.
Não é luxuoso, mas talvez não se importe com isso. Quanto a emprego,
exploraremos isso amanhã de manhã: parece cansado, tenho a certeza de que
quer descansar. A viagem foi longa?
- Conheço Belstar, sim. Eu também vim por Belstar. Foi lá que aprendeu o
espanhol?
- Não é meu neto nem meu filho. Não temos nenhum parentesco. Tome - tira
duas cadernetas do bolso e estende-lhas.
- Foram. Foi onde eles nos deram os nossos nomes, os nossos nomes
espanhóis.
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O rapaz olha diretamente para ela mas não responde. Que vê ela? Um miúdo
magro e pálido, de casaco de lã abotoado até ao pescoço, calções
cinzentos a tapar os joelhos, botas pretas de atacadores por cima de umas
meias de lã e um boné de fazenda à banda.
- Não achas essa roupa muito quente? Queres tirar o casaco? O rapaz abana
a cabeça.
Ele intervém.
- Obrigado.
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- E comida?
- Comida?
- Reunir pessoas?
Detém uma transeunte, uma mulher miúda com um rosto afilado de rato, que
enverga o uniforme cor de chocolate do Centro.
C-55.
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- Estava a bater? - pergunta. Ele fica mais uma vez impressionado: com a
sua juventude, com a saúde e frescura que se afigura irradiarem dela.
- Parece que a senhora Weiss foi para casa - diz ele. - Não há nada que
possa fazer? Não tem uma... como é que vocês lhe chamam... uma llave
universal para abrir o nosso quarto?
- Um amigo que nos possa dar guarida? Chegámos a estas paragens há seis
semanas e desde então temos estado a viver numa tenda, num acampamento no
deserto. Como é que espera que tenhamos amigos que nos dêem guarida?
- Vão até ao portão principal - ordena. - Esperem por mim do lado de fora
do portão. Vou ver o que posso fazer.
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- Trouxe água para o seu filho - diz ela. - Toma, David, bebe. O rapaz
bebe e devolve-lhe o copo. Ela mete-o na mala.
- Ótimo. Agora sigam-me. É uma boa caminhada, mas podem encará-la como
exercício.
Ela ignora-o. A uma distância cada vez maior, ele segue-a pelo parque
fora, atravessando uma rua e atravessando uma segunda rua.
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- Não estou a perceber lá muito bem - diz. - Onde é que vamos mesmo
passar a noite?
- Aqui. - Ela indica o quintal. - Eu volto daqui a pouco para ver como é
que se está a sair.
O que se passa? Estará ela atrás das cortinas, a ver como ele reagirá?
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- Mudei de ideias - diz ele. - Vamos voltar para o Centro. Deve haver uma
hospedaria onde possamos passar a noite.
Não é grave, é apenas frio, não te vai matar, diz de si para si. A noite
há de passar, o Sol nascerá e o dia virá. Oxalá é que não haja insetos
rastejantes. Insetos rastejantes seria de mais.
Adormece.
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Cai um objeto aos seus pés: um cobertor, não muito comprido, de tecido
grosseiro, a cheirar a cânfora.
- Porque é que nos trata assim? - exclama ele. - Com desprezo?
- Deixa-nos sair?
O pequeno-almoço vem a ser mais pão e água. O miúdo torce o nariz; ele
também não tem fome. Deixa o tabuleiro intacto no degrau.
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- Eu disse que o ajudaria, não disse que lhe facultaria dinheiro. Para
isso terá de ir aos serviços da Asistencia Social. Pode apanhar um
autocarro para a cidade. Não se esqueça de levar a sua caderneta e o seu
atestado de residência. Nessa altura pode levantar o seu subsídio de
reinserção. Em alternativa pode arranjar emprego e pedir um adiantamento.
Esta manhã eu não vou estar no Centro, tenho reuniões, mas se lá for e
lhes disser que está à procura de emprego e quer un vale, eles perceberão
o que quer dizer. Un vale. Agora tenho mesmo de me despachar.
- Por onde é que hei de começar? Tem alguma sugestão? Isto para mim é
terreno desconhecido.
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- E lugar onde ficar? Posso levantar a questão dum lugar onde ficar? A
jovem que estava de serviço ontem, Ana, é como ela se chama, reservou um
quarto para nós, mas não conseguimos ter acesso a ele.
- Ontem havia um quarto vago, o quarto C-55, mas a chave não estava no
sítio. A chave estava à guarda da senhora Weiss.
Capítulo 2
No autocarro número 29 examina o vale de trabajo que lhe deram. Não passa
de uma folha arrancada de um bloco de apontamentos, na qual está
garatujado: «Portador é recém-chegado. Favor considerá-lo para emprego.»
Não tem selo oficial nem assinatura, mas apenas as iniciais P. X. Parece
tudo muito informal. Será suficiente para lhe arranjar emprego?
- Pode falar comigo - declara o homem. - Mas não é um bocado velho para
estibador?
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É verdade, o que acaba de ouvir da sua própria boca? Não será mesmo velho
de mais para trabalhos pesados? Não se sente velho, tal como não se sente
novo. Não se sente de nenhuma idade específica. Sente-se sem idade, se
isso é possível.
- Ótimo - responde o capataz. Faz uma bola com o vale e lança-o à água.
- O que é que os sacos têm? - pergunta ao homem ao seu lado. O homem olha
para ele de uma maneira estranha.
- Granos - responde.
Ele quer perguntar quanto pesam os sacos, mas não há tempo. É a sua vez.
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põem-lho às costas.
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Volta pelo mesmo caminho ao porão, regressa com uma segunda carga e a
seguir com uma terceira. É mais lento que os colegas (por vezes têm de
esperar por ele), mas não muito mais lento; há de melhorar consoante se
for habituando ao trabalho e o seu corpo for enrijando. Não é demasiado
velho, afinal.
Embora esteja a atrasá-los, não sente animosidade por parte dos outros
homens. Pelo contrário, dirigem-lhe uma ou duas palavras joviais e
dão-lhe uma amistosa palmada nas costas. Se ser estivador é isto, não é
um trabalho assim tão mau. Pelo menos realiza-se alguma coisa. Pelo menos
ajuda-se a movimentar cereal, cereal que será transformado em pão, o
sustento da vida.
Soa um apito.
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- Chá? - pergunta o homem. Parece divertido. - Que eu saiba, não. Se tem
sede pode usar a minha caneca; mas amanhã traga a sua. - Enche a caneca
na torneira e estende-lha. - E traga também um pão, ou meio pão. É um dia
comprido para estar de estômago vazio.
A que propósito? Parece uma pergunta genuína, e não uma bofetada na cara.
Ele encolhe os ombros. Perdera uma boa ocasião de estar calado. Não vai
decerto dizer: Melhor do que alancar com grandes pesos como bestas de
carga.
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- Tenho muita pena, mas isso não é possível. O pagador só faz a ronda à
sexta-feira. Mas se está com falta de dinheiro - espiolha os bolsos e
tira de lá um punhado de moedas - tome lá, tire o que precisar.
- Não sei bem de quanto preciso. Sou novo aqui, não tenho ideia dos
preços.
É verdade. Por ter olhado pelo teu jovencito enquanto trabalhas e depois,
ainda por cima, emprestar-te dinheiro: não era o que se esperaria de um
capataz.
Mostra-lhe o dinheiro.
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- Quero eu dizer, o que é que posso comprar com isto? Posso pagar uma
refeição?
Sem uma palavra, o jovem condu-los por um longo corredor fora, passando
pelo C-49, pelo C-50... e pelo C-54. Chegam ao C-55. Experimenta a porta.
Não está fechada à chave.
retira-se.
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- Não, o que eu quero dizer é porque é que estamos aqui?. -O seu gesto
abarca o quarto, o Centro, a cidade de Novilla, tudo.
- Tu estás aqui para encontrar a tua mãe. E eu estou aqui para te ajudar.
- Não sei o que dizer. Estamos aqui pela mesma razão pela qual todas as
outras pessoas estão.
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- Aqui em vez de onde? Não há mais nenhum sítio para estar a não ser
aqui. Agora fecha os olhos. São horas de dormir.
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Capítulo 3
- Já nos instalámos, sim, obrigado. Mas agora tenho outro favor a pedir.
Talvez se lembre de que eu lhe fiz uma pergunta a respeito da localização
de pessoas de família. Preciso de encontrar a mãe do David. O problema é
que não sei por onde começar. Vocês têm registos das chegadas a Novilla?
Se não têm, há algum registo central que eu possa consultar?
- Nós fazemos o registo de toda a gente que passa pelo Centro. Mas os
registos não servem para nada se não souber o que procura. A mãe do David
há de ter um novo nome. Uma nova vida e um novo nome. Ela está à sua
espera?
- Nunca ouviu falar de mim, portanto não há razão para estar à minha
espera. Mas assim que o miúdo a vir reconhecê-la-á, tenho a certeza.
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- É uma história complicada; não a vou maçar com ela. Deixe-me apenas
dizer que prometi ao David que encontraria a mãe. Dei-lhe a minha
palavra. Por isso, posso dar uma olhadela aos vossos registos?
- E quanto a essa mãe anónima? Tem a certeza de que ela quer ser reunida
ao filho? Pode parecer cruel dizê-lo, mas a maior parte das pessoas,
quando aqui chegam, já perdeu o interesse pelas ligações antigas.
- Este caso é diferente, palavra. Não posso explicar porquê. Então? Posso
ver os vossos registos?
- Não, isso não posso autorizar. Se tivesse o nome da mãe seria uma
questão diferente. Mas não o posso deixar esquadrinhar os nossos arquivos
à sua vontade. Não é só contra os regulamentos, é absurdo. Temos milhares
de entradas, centenas de milhares, um número sem conta. Além disso, como
é que sabe que ela passou pelo centro de Novilla? Há centros de receção
em todas as cidades.
- Eu admito que não faz sentido. Mesmo assim, peço-lho. O miúdo está sem
a mãe. Está perdido. Já deve ter visto como ele está perdido. Está no
limbo.
- No limbo. Não sei o que isso quer dizer. A resposta é não. Não vou
ceder, portanto não insista. Tenho pena do miúdo, mas esta não é a
maneira correta de proceder.
- Eu ajudo-o - diz Ana -, mas não da maneira que pede. As pessoas aqui já
se limparam completamente dos antigos laços. Vocês deviam fazer o mesmo:
limparem-se das antigas ligações e não as perseguirem. - Baixa-se e
revolve o cabelo do rapaz. - Olá, cabeça sonolenta! - diz. - Já estás
completamente limpo? Diz ao pai que já estás completamente limpo.
- Vamos ver outra vez o Álvaro? - pergunta ele. - O Álvaro gosta de mim.
Deixa-me usar o apito dele.
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- Não, dentro de pouco tempo hás de encontrar outros rapazes com quem
brincar.
- Eu não quero brincar com outros rapazes. Quero estar contigo e com o
Álvaro.
- Mas todo o tempo, não. Não é bom para ti passares o tempo todo com
adultos.
- Para o outro lado do mar? Não vamos voltar. Agora estamos aqui. É aqui
que vivemos.
- Para sempre?
- De vez. Daqui a pouco começamos a nossa busca da tua mãe. A Ana vai
ajudar-nos. Depois de encontrarmos a tua mãe, nunca mais pensarás em
voltar.
- Está algures por aqui perto, à tua espera. Está há muito tempo à
espera. Tudo se tornará claro mal a vejas. Hás de lembrar-te dela e ela
há de lembrar-se de ti. Podes pensar que estás completamente limpo, mas
não estás. Ainda tens as tuas recordações, o que estão é enterradas,
temporariamente. Agora temos de nos apear. A nossa paragem é esta.
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O rapaz tornou-se amigo de um dos cavalos das carroças, ao qual pôs o
nome de El Rey. Embora seja pequeno comparado com El Rey, não tem medo
nenhum. Pondo-se em bicos de pés, estende-lhe punhados de feno, que o
enorme animal se curva preguiçosamente para aceitar.
Álvaro faz um buraco num dos sacos que eles descarregaram, deixando o
cereal escorrer.
El Rey e o amigo são de facto éguas, mas ele nota que Álvaro não corrige
o rapaz.
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Ele está à espera de ser interrogado sobre o rapaz: o rapaz que pode
parecer ser seu filho ou neto, mas de facto não o é. Está à espera de ser
interrogado sobre o nome do rapaz, a sua idade, a razão por que não anda
na escola. Espera em vão.
- David, o miúdo de quem eu tomo conta, ainda é novo de mais para andar
na escola - diz ele. - Sabe alguma coisa de escolas por aqui? Há -
esforça-se por encontrar o termo – un jardín para los ninõs?
- Não, uma escola para crianças pequenas. Uma escola antes da escola
propriamente dita.
- O meu nome é Simón - diz ao pagador. - Sou novo, se calhar ainda não
estou na sua lista.
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Álvaro rola o tambor para fora dali. O pagador volta a prender o cofre na
bicicleta, aperta a mão a Álvaro, põe o chapéu e afasta-se a pedalar pelo
cais fora.
- Não tenho nada combinado. Posso ir passear com o miúdo; ou, se houver
um jardim zoológico, sou capaz de o levar lá, para ver os animais.
- Siga pelo carreiro à beira-rio e não há que enganar. Fica a uns vinte
minutos daqui, calculo eu. Ou, se não lhe apetecer ir a pé, pode apanhar
o autocarro número 7.
O campo de futebol fica mais longe do que Álvaro dizia; o rapaz cansa-se
e molenga; chegam atrasados. Álvaro está à porta, à espera deles.
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O miúdo não viu. Ignorante em futebol, o miúdo não compreende que devia
estar a prestar atenção aos homens que correm para trás e para diante no
campo, e não ao mar de estranhos à volta deles.
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Quando metem uma bola na rede, chama-se golo. A equipa de azul acabou de
marcar um golo.
O rapaz faz um aceno afirmativo, mas a sua mente parece estar noutro
sítio.
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Capítulo 4
Ao regressar nessa noite ao quarto, ele encontra uma mensagem enfiada por
baixo da porta. É de Ana: Você e o David querem vir a um piquenique para
recém-chegados? Encontramo-nos amanhã ao meio-dia, no parque urbano,
junto da fonte. A.
- Não sei. Talvez meia dúzia. Esperemos, e logo se vê. Esperam. Não
aparece ninguém.
- Parece que somos só nós - diz Ana por fim. - Vamos começar? Acontece
que o cesto contém apenas um pacote de bolachas, um boião de pasta de
feijão sem sal e uma garrafa de água. Porém, o miúdo devora a sua parte
sem queixas.
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No seu tom, no olhar velado que lhe dirige, ele pressente um convite. A
meia dúzia de convidados que não compareceu... seria apenas uma ficção?
Se o miúdo não estivesse aqui ele deitar-se-ia na relva ao lado dela e
talvez pousasse a mão muito ao de leve na dela.
Isso não. Como deverá ele interpretar esta jovem, ora cordial, ora fria?
Haverá alguma coisa na etiqueta dos sexos ou das gerações desta nova
terra que ele não consiga perceber?
- Ele não a conhece pelo nome - diz ele. - Tinha uma carta com ele quando
embarcou, mas perdeu-se.
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- Eu não sou pai do David, nem sou seu padriño. Estou apenas a ajudá-lo a
reunir-se à mãe.
- Se arranjasse uma mulher - diz -, ela podia fazer as vezes de mãe dele.
- Que mulher quereria casar com um homem como eu, um estranho sem nada de
seu, nem sequer uma muda de roupa? - Espera que a rapariga discorde, mas
não acontece tal coisa. - Além disso, mesmo que eu arranjasse uma mulher,
quem é que diz que ela quereria... digamos, um filho adotivo? Ou que aqui
o nosso jovem amigo a aceitaria?
- Como você não para de dizer. - A raiva ateia-se nele. O que sabe de
crianças esta jovem senhora do seu nariz? E que direito lhe assiste de
pregar-lhe sermões? Nessa altura, repentinamente, todos os elementos do
quadro encaixam.
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- Que disparate! Claro que não. O Centro não é nenhuma prisão. Nem é uma
obra de beneficência. Faz parte da Assistência Social.
- Mesmo assim, como pode alguém suportar uma torrente contínua de gente
como nós, desamparados, ignorantes e carentes, sem uma fé de alguma
espécie para lhe dar força?
- Fé? A fé não tem nada que ver com isto. A fé significa acreditar no que
fazemos mesmo que não dê frutos visíveis. O Centro não é assim. As
pessoas chegam aqui a precisar de ajuda e nós ajudamo-las. Ajudamo-las e
a sua vida melhora. Nada disso é invisível. Nada disso exige fé cega. Nós
fazemos o nosso trabalho e tudo acaba em bem. É tão simples como isso.
- Nada é invisível?
- Então porquê o ascetismo que prega? Você diz-nos que dominemos a fome,
que deixemos que o cão que temos dentro passe fome. Porquê? O que tem a
fome de mal? Para que servem os nossos apetites senão para nos dizer do
que precisamos? Se não tivéssemos apetites, nem desejos, como viveríamos?
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Parece-lhe uma boa pergunta, uma pergunta séria, capaz de perturbar a
jovem freira mais instruída.
A resposta dela surge com facilidade, com tanta facilidade e em voz tão
baixa, como se o miúdo não devesse ouvir, que por um momento ele a
interpreta mal:
- Pode.
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Abate-se um silêncio.
- Não estou zangado, estou é com fome! Diga-me: que mal tem satisfazer um
vulgar apetite? Porque é que os nossos impulsos, fomes e desejos comuns
hão de ser desvalorizados?
- Tem a certeza de que quer continuar com isso diante do miúdo?
- Eu não me envergonho do que estou a dizer. Não há nisso nada de que uma
criança precise de ser protegida. Se uma criança pode dormir ao relento
em cima da terra nua, pode com certeza ouvir uma áspera troca de palavras
entre adultos.
- Sim. Quer que eu o deixe abraçar-me. Ambos sabemos o que isso quer
dizer: abraçar. E eu não o permito.
- Recusar desejos não tem nada que ver com ser ou não ser freira. Não
faço isso, e pronto. Não o permito. Não gosto disso. Não tenho apetite
disso. Não tenho apetite disso e não quero ver o que isso faz aos seres
humanos. O que faz a um homem.
- Que quer dizer com isso, o que faz a um homem'? Ela olha incisivamente
para o miúdo.
- Muito bem. Você acha-me atraente, que eu bem vejo. Talvez até me ache
bonita. E como me acha bonita, o seu apetite, o seu impulso é abraçar-me.
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- Entre um homem e uma mulher - diz ele por fim - brota por vezes uma
atração natural, imprevista, não premeditada. Ambos acham o outro
atraente ou até, para empregar a outra palavra, bonito. A mulher mais
bonita do que o homem, habitualmente. Por que razão uma coisa deve
resultar da outra, a atração e o desejo de abraçar da beleza, é um
mistério que eu não consigo explicar, exceto que sentir atração por uma
mulher é o único tributo que eu, o meu ser físico, sabe prestar à beleza
da mulher. Chamo-lhe tributo porque o considero uma oferenda, e não um
insulto.
A mim toda a coisa me parece absurda: absurda para você querer executar e
absurda para eu permitir.
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- Não pode estar a falar a sério. Eu por mim posso parecer velho e pouco
atraente; eu e os meus desejos. Mas você não há de certamente achar que a
natureza em si é feia.
- Acho, pois. A natureza pode ter algo de belo mas também pode ter algo
de feio. Essas partes do nosso corpo que você recatadamente não menciona,
com o seu afilhado a ouvir: acha-as bonitas?
- E essas partes que não são bonitas... quer metê-las dentro de mim! Que
hei de eu pensar disso?
- Eu não vou pedir mais desculpas, Ana. Não acho que isto seja uma
discussão proveitosa. Não me parece que você saiba do que está a falar.
- Pode não ser uma criança, mas sim, acho que é ignorante da vida. Anda -
diz para o rapaz, pegando-lhe na mão. - Já fizemos o nosso piquenique, e
agora são horas de agradecer à senhora e ir à procura de alguma coisa
para comer.
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Sob um sol ardente, ele atravessa o parque deserto a passos largos, com o
rapaz a trotar ao seu lado a fim de o acompanhar.
- Um padri-no é uma pessoa que faz as vezes do pai quando por qualquer
razão o pai não pode estar presente.
- Tu és meu padriño?
- Não, não sou. Ninguém me convidou para ser teu padriño. Sou só teu
amigo.
- Isso não te cabe a ti, meu rapaz. Não podes escolher um padriño para ti
próprio, como não podes escolher o teu pai. Não há uma palavra adequada
para aquilo que eu sou para ti, como não há palavra adequada para aquilo
que tu és para mim. No entanto, se quiseres, podes-me tratar por Tio.
Quando as pessoas perguntarem: O que é que ele te é? Podes responder: É
meu tio. É meu tio e gosta muito de mim. E eu direi: Ele é o meu rapaz.
- Claro que não. Não estou aqui para arranjar mulher, estou aqui para te
ajudar a encontrares a tua mãe, a tua verdadeira mãe.
Está a tentar manter a voz firme e o tom ligeiro; mas a verdade é que o
ataque da rapariga o abalou.
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- Estava zangado com ela porque ela nos trata mal e não percebo porquê.
Tivemos uma discussão, eu e ela, uma discussão acalorada. Mas isso já lá
vai. Não era importante.
- Ela disse que tu querias meter qualquer coisa dentro dela. Ele cala-se.
- O que é que ela queria dizer? Queres mesmo meter uma coisa dentro dela?
- Era só uma maneira de falar. Ela queria dizer que eu estava a tentar
impor-lhe as minhas ideias. E tinha razão. Uma pessoa não deve tentar
impor ideias a ninguém.
- Eu imponho-te ideias?
- Não, claro que não. Agora vamos ver se arranjamos qualquer coisa para
comer.
- Há autocarro?
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- Vamos, despacha-te - diz ele irritado. - Guarda o jogo para outro dia.
- Ninguém sabe porque ninguém pode cair por uma racha no pavimento. Agora
despacha-te.
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Capítulo 5
- Aqui à volta, à volta das docas, não. Há pessoas que apanham ratos, já
ouvi dizer. Não há falta de ratos. Mas para isso precisaria de ter uma
ratoeira, e assim de repente não sei onde arranjaria uma boa ratoeira.
Provavelmente teria de a fazer você mesmo. Podia usar arame, com um
mecanismo de disparo qualquer.
- Ratos?
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- Não, nem me passaria pela cabeça. Mas você perguntou onde poderia
encontrar carne, e isso é tudo o que eu posso sugerir.
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- Não me sinto bem - diz. - Há uns tempos que ando a sentir-me mal. Há
algum médico que me possa recomendar?
Passa para trás do balcão e bate levemente na porta fechada que tem
escrito Cirugía.
- Olá! - chama.
- No Molhe Dois.
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- Não acha que devia auscultar-me o coração? Não acha que devia fazer-me
análises para ver se estou com anemia? Não acha que devíamos discutir
possíveis deficiências da minha dieta?
- Vou examinar-lhe o coração, como sugere, mas não lhe posso fazer
análises para ver se está com anemia. Isto não é um laboratório clínico,
é apenas uma clínica, uma clínica de primeiros socorros para os
trabalhadores das docas. Dispa a camisa.
- O seu coração não tem nada - diz por fim. - É um bom coração. Há de
durar-lhe muitos anos. Pode voltar ao trabalho.
56
Ele levanta-se.
- Como é que pode dizer isso? Estou exausto. Não me sinto bem. A minha
saúde geral piora a cada dia que passa. Não era isto que esperava quando
cheguei. Doença, exaustão, infelicidade: não estava à espera de nada
disso. Tenho o pressentimento (não um mero pressentimento intelectual,
mas um verdadeiro pressentimento físico) de que estou prestes a sucumbir.
O meu corpo está a indicar-me, de todas as maneiras que pode, que se está
a ir abaixo. Como é que pode dizer que eu não tenho nada?
- Não, não tenho sintomas desses. Não tenho qualquer sintoma desses.
- Encontrei a clínica e falei com o médico. Ele diz que devo olhar para
cima. Desde que olhe para cima, estará tudo bem comigo. Em contrapartida,
se olhar para baixo, posso cair.
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- Isso parece um bom conselho, ditado pelo senso comum -diz Álvaro. -
Nada de rebuscado. Porque é que não tira o dia de folga e descansa um
pouco?
Ele não fica convencido. Não acredita que aquilo que o oprime passe.
- Mas isso é tudo o que nós importamos através das docas: cereal?
- Depende do que quer dizer com «nós». O Molhe Dois é para carregamentos
de cereal.
58
- Bem, isso faz sentido, não faz? Não é todos os dias que se precisa duma
bicicleta. Não é todos os dias que se precisa de sapatos novos, nem de
roupa nova. Mas todos os dias temos de comer. Por isso precisamos de
muito cereal.
- Portanto se eu mudasse para o Molhe Sete ou para o Molhe Nove teria uma
vida mais folgada. Podia ter semanas de folga.
- Estou a ver. Portanto ainda bem, no fim de contas, que estou aqui,
neste molhe, neste porto, nesta cidade, nesta terra. Tudo vai pelo melhor
neste melhor dos mundos possíveis.
- Isto não é um mundo possível - diz. - É o único mundo. Se isso faz dele
o melhor não é a si nem a mim que cabe decidir.
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Capítulo 6
Tal como prometeu, Álvaro anda a ensinar o rapaz a jogar xadrez. Quando o
trabalho abranda, é vê-los curvados sobre um jogo de bolso em qualquer
lugar à sombra, absortos numa partida.
- Pensarei duas vezes antes de jogar outra vez contigo - diz ele.
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- Porquê?
- Estás incomodado com o que o Eugénio disse? Não devias. Ele não queria
dizer aquilo.
O nome dele, deixa Álvaro que se saiba, é Daga. Ninguém o trata de outra
maneira, nem por «o novo homem» nem por «o tipo novo».
62
- Quantos?
- Mais que cinquenta. Não há quota. Cada homem transporta o que pode.
- Salário de rato.
- É a tarifa. Foi o que você ganhou. É o que todos ganhamos. Quer dizer
que somos todos ratos?
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Ele, Simón, sente o rapaz agarrar-se-lhe à perna.- O que é que eles estão
a fazer? - choraminga. Tem o rosto pálido e ansioso. - Vão lutar?
- Diz ao Álvaro para não lutar. Diz-lhe! - O rapaz puxa-lhe pelos dedos,
puxa e torna a puxar.
Álvaro está sentado no chão, dobrado. Parece estar a agarrar o peito. Tem
um fio de sangue na camisa.
- Quem é que se segue? - repete Daga. Ninguém se mexe. Ele põe-se de pé,
dobra a navalha, enfia-a no bolso da anca, levanta a tampa do cofre e
vira-o sobre a tábua. Chovem moedas por todo o lado. - Maricas! -
exclama. Conta o que quer e prega um pontapé trocista no tambor. -
Sirvam-se - diz, e vira as costas aos homens. Vagarosamente, monta na
bicicleta do pagador e pedala dali para fora.
Álvaro põe-se de pé. O sangue que tem na camisa vem da mão, correndo de
um golpe que lhe atravessa a palma.
Ele, Simón, é o homem mais graduado, ou pelo menos o mais velho: deve ser
ele a assumir o comando.
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- Que foi?
Os lábios do rapaz movem-se, mas ele não ouve palavra alguma. Curva-se
mais para ele.
- Claro que não. Tem um corte na mão, mais nada. Precisa dum adesivo para
estancar o sangue. Anda. Vamos levá-lo ao médico e o médico trata-o.
- Que disparate! Os médicos não cortam mãos. O médico vai limpar a ferida
e pôr-lhe um adesivo, ou talvez cosê-la com agulha e linha. Amanhã o
Álvaro estará de volta ao trabalho e já nos teremos esquecido de tudo.
Desde que estão juntos, nunca tocou com um dedo no rapaz. Agora,
subitamente, levanta uma mão ameaçadora para ele. O rapaz nem pestaneja.
Ele finge dar-lhe uma bofetada. O rapaz não vacila.
- Muito bem - diz ele. - Acredito em ti. - Deixa cair a mão. - Tens
razão. Eu estava errado. O Álvaro não devia ter tentado proteger-se.
Devia ter sido como tu. Devia ter sido valente. Agora vamos até à clínica
ver como ele está?
No dia seguinte Álvaro vem para o trabalho com a mão ferida ao peito.
Recusa-se a falar no incidente. Seguindo-lhe o exemplo, os homens também
não se lhe referem. Mas o rapaz continua a rezingar.
- Não, ele não volta - responde ele. - Não gosta de nós, não lhe agrada o
género de trabalho que nós fazemos, não tem razões para voltar. Não sei
se Daga é o seu verdadeiro nome. Não tem importância. Os nomes não têm
importância. Se ele quer chamar-se Daga, deixá-lo chamar-se assim.
66
- Porquê?
- Porquê? Porque todos nós queremos mais dinheiro do que nos é devido. E
da natureza humana. Porque todos nós queremos mais dinheiro do que aquilo
que valemos.
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- O senor Daga queria ser elogiado e receber uma medalha -diz ele. -
Quando não lhe deram a medalha com que sonhava, levou o dinheiro em vez
dela. Levou aquilo que julgava que valia. Mais nada.
68
Capítulo 7
69
O novo apartamento, no segundo andar, é modesto em escala e esparsamente
mobilado: duas camas, uma mesa e cadeiras, uma cómoda e prateleiras de
aço. Um pequeno anexo contém um fogão elétrico em cima de um suporte e
uma bacia com água corrente. Uma antepara de correr esconde um chuveiro e
uma retrete.
- Vamos gostar disto aqui, não vamos? - diz. - Vai ser um novo capítulo
da nossa vida.
Depois de avisar Álvaro de que não se sente bem, não tem escrúpulos em
tirar uns dias de folga. Está a ganhar mais do que suficiente para as
necessidades de ambos, há pouca coisa em que gastar dinheiro e não vê por
que razão deveria esgotar-se sem objetivo. Além disso, há sempre
Estou a ganhar balanço, diz de si para si. Estou a ganhar balanço para o
próximo capítulo da empresa. Por próximo capítulo entende a busca da mãe
do rapaz, a busca que ainda não sabe onde começar. Estou a concentrar as
energias; estou afazer planos.
70
- Vejo que tens um novo amigo - observa ele ao almoço. - Quem é ele?
- Ao Fidel é a mãe que o ensina. Ela diz que me pode ensinar também a
mim.
- É bom que tenhas arranjado um novo amigo, fico contente por ti. Quanto
a lições de violino, talvez eu deva ter primeiro uma conversa com a mãe
do Fidel.
- Podemos ir agora?
Embora não maior que o deles e não tão soalheiro, o apartamento tem um ar
mais acolhedor, talvez devido às suas cortinas garridas com o seu motivo
de flores de cerejeira repetido nas colchas.
71
- Sim - confirma ela -, disse ao seu filho que se pode juntar ao Fidelito
nas lições de música. Mais tarde podemos fazer uma reavaliação e ver se
ele tem aptidão e vontade para continuar.
O rapaz faz uma careta, dirige uma olhadela ao seu novo amigo e mantém-se
calado.
- É uma grande proeza, ser violinista. Não conseguirás êxito se não te
dedicares a isso de alma e coração. - Vira-se para a mãe de Fidel. -
Posso perguntar-lhe quanto é que leva?
Chama-se Elena. Não é o nome que ele teria imaginado. Ele teria imaginado
Manuela, ou até Lourdes.
72
- Refere-se à música?
- À música, sim, mas também à maneira como se vive. Como a pessoa deve
viver.
Uma boa resposta, uma resposta séria, uma resposta filosófica. Por um
momento, remete-se ao silêncio.
- Tenho amigos. Alguns são mulheres, outros são homens. Não faço
distinções entre eles.
O caminho torna-se mais estreito. Ela vai à frente; ele deixa-se ficar
para trás, a olhar para o baloiçar das ancas dela. Prefere mulheres com
mais carne a cobrir os ossos. Não obstante, gosta de Elena.
- Pela parte que me toca, não é distinção de que consiga abrir mão - diz
ele. - Ou da qual quisesse abrir mão.
Ela afrouxa o passo para o deixar alcançá-la e fita-o com um olhar
direto.
- Não sei como é consigo - diz -, mas o passado não está morto em mim. Os
pormenores podem ter-se tornado indistintos, mas a sensação de como a
vida era dantes continua ainda bem vívida. Os homens e as mulheres, por
exemplo: você diz que ultrapassou essa maneira de pensar, mas eu não.
Ainda sinto que sou um homem, e que você é uma mulher.
73
- Não é que não sinta nada - responde ela, lenta e cautelosamente. - Pelo
contrário, sinto boa vontade, muito boa vontade. Em relação a si e ao seu
filho. Cordialidade e boa vontade.
- Quando diz boa vontade quer dizer que quer o nosso bem? Tenho
dificuldade em apreender o conceito. Sente-se benevolente em relação a
nós?
- Sim, exatamente.
- Você pode querer mais do que boa vontade; mas aquilo que quer é melhor
do que a boa vontade? Era isto que devia perguntar a si próprio. - Faz
uma pausa. - Está sempre a referir-se ao David como «o rapaz». Porque é
que não usa o nome dele?
- David é um nome que lhe puseram no acampamento. Ele não gosta dele, diz
que não é o seu verdadeiro nome. Eu procuro não o usar a menos que tenha
de o fazer.
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«Tu e o Fidel parecem dar-se bem - observa ele para o rapaz quando ficam
sós.
-Não.
Ora ali tem, portanto, da boca dos pequeninos e das crianças de peito. Da
boa vontade vêm a amizade e a felicidade, vêm piqueniques sociáveis no
parque urbano ou tardes sociáveis a passear pela floresta. Em
contrapartida, do amor, ou pelo menos do anseio nas suas manifestações
mais urgentes, vêm a frustração e a dúvida e a mágoa. E tão simples como
isso.
E, afinal, onde quer ele chegar com Elena, uma mulher que mal conhece, a
mãe do novo amigo do miúdo? Terá esperanças de a seduzir, porque em
recordações que nele não se perderam completamente seduzir o outro é uma
coisa que os homens e as mulheres fazem? Estará a insistir no primado do
pessoal (desejo, amor) sobre o universal (boa vontade, benevolência)?
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76
Capítulo 8
- A quem quer que crie um filho não falta contacto físico - responde
Elena.
- Quando digo contacto físico quero dizer uma coisa diferente. Quero
dizer amar e ser amado. Quero dizer dormir todas as noites com alguém.
Não tem saudades disso?
A verdade é que ele acha Elena apenas moderadamente atraente. Não gosta
do seu aspeto escanzelado, do maxilar vigoroso e dos dentes da frente
saídos. Mas ele é um homem e ela é uma mulher e a amizade entre os miúdos
continua a aproximá-los. Assim, apesar das delicadas rejeições
sucessivas, continua a permitir-se moderadas liberdades, liberdades que
parecem diverti-la mais do que indispô-la. Quer queira quer não, ele
vê-se assaltado por devaneios nos quais um ou outro golpe de sorte impele
Elena para os seus braços.
- Dá um salto a casa - diz ele. - Diz à tua mãe que tu e ela estão
convidados para jantar.
O jantar que ele lhes proporciona não é mais do que pão e sopa (cevada e
abóbora cozidas com uma lata de feijão; ainda não descobriu uma loja que
venda especiarias), mas é suficiente. Fidel termina rapidamente os
trabalhos de casa. O rapaz instala-se a ver livros de desenhos; depois,
repentinamente, como se tivesse levado uma machadada, Fidel adormece.
78
- Tem sido assim desde bebé - diz Elena. - Não há nada que o acorde. Eu
levo-o para casa e meto-o na cama. Obrigado pelo jantar.
- Não pode voltar para aquele apartamento às escuras. Passe aqui a noite.
O Fidel pode partilhar a cama do David. Eu durmo numa cadeira. Já estou
habituado.
Não é o que ele esperava que fosse. Apercebe-se imediatamente de que ela
não o faz com alma; quanto a ele, a reserva de desejo reprimido com que
contava revela-se uma ilusão.
Terá ela razão? Deverá ele tomar a experiência a peito e dizer adeus ao
sexo, como Elena parece ter feito? Talvez. Contudo, o simples facto de
ter uma mulher nos braços, ainda que ela não seja uma beldade
estonteante, anima-o.
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Quando ela o convida para fazer amor com ela, é sem o menor coquetismo.
«Se quiseres, podemos fazê-lo agora», diz, e fecha a porta e despe-se.
Entre os dois vai crescendo, se não intimidade, uma amizade que ele sente
ser bastante sólida, bastante fiável. Se a amizade se teria desenvolvido
entre eles fosse como fosse, com base na amizade entre os miúdos e nas
muitas horas que passam juntos, se fazê-lo contribuiu alguma coisa, não
sabe dizer.
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- Claro.
81
- Talvez.
Ele emudece.
- Muito bem. A nossa amizade foi boa para os rapazes, nisso podemos
concordar. Criaram intimidade. Veem-nos como presenças guardiãs, ou até
como uma simples presença guardiã. Por conseguinte não seria bom para
eles que a nossa amizade terminasse. E não vejo razão para que isso
aconteça, só porque tu te encontras com outra mulher hipotética.
«No entanto, suspeito que com essa mulher queres fazer o mesmo tipo de
experiência que tens andado a fazer comigo, e que no decurso da
experiência perderás o contacto com o Fidel e comigo.
«Por isso vou expressar por palavras uma coisa que esperava que
compreendesses por ti. Tu queres encontrar-te com essa outra mulher
porque eu não te proporciono aquilo que sentes que precisas, nomeadamente
tempestades de paixão. A amizade só por si não te chega. Sem o
acompanhamento de tempestades de paixão é um tanto deficiente.
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Esta permanente insatisfação, esta ânsia de algo mais que falta, é uma
maneira de pensar da qual felizmente nos livrámos, na minha opinião. Não
falta nada. O nada que tu pensas que falta é uma ilusão. Tu estás a viver
numa ilusão.
«Aí tens. Pediste uma resposta completa e eu dei-ta. É suficiente, ou há
ainda mais alguma coisa por que anseies?»
- Porquê?
O que ele quer dizer, pela parte que lhe toca, é que a vida aqui é
demasiado plácida para o seu gosto, demasiado isenta de altos e baixos,
de drama e de tensão: parece-se, aliás, demasiado com a música da rádio.
Anodina: será uma palavra espanhola?
Recorda-se de ter perguntado uma vez a Álvaro por que razão nunca havia
notícias na rádio. «Notícias de quê?», inquiriu Álvaro. «Notícias do que
se passa no mundo», respondeu ele. «Ah», respondeu Álvaro, «passa-se
alguma coisa?» Tal como anteriormente, ele foi lesto a suspeitar de que
fosse uma ironia. Mas não, não era.
Álvaro não pratica a ironia. Nem Elena. Elena é uma mulher inteligente
mas não vê nenhuma duplicidade no mundo, nenhuma diferença entre aquilo
que as coisas parecem e aquilo que são.
83
Uma mulher inteligente e também uma mulher admirável, que com os mais
exíguos materiais - a costura, as lições de música, a lida da casa -
construiu uma vida nova, uma vida na qual pretende - com justeza? - que
nada falta. Passa-se o mesmo com Álvaro e com os estivadores: que ele
consiga detetar, não têm anseios secretos, não têm aspirações a outro
género de vida. Apenas ele é a exceção, o insatisfeito, o inadaptado. O
que se passa com ele? Será somente, como Elena diz, a antiga maneira de
pensar e de sentir que ainda não morreu nele, mas ao invés esperneia e
estremece no seu estertor?
As coisas não têm aqui o seu devido peso: era isso que, afinal, ele
gostaria de dizer a Elena. A música que ouvimos tem falta de peso. A
nossa união sexual tem falta de peso. A comida que comemos, a nossa
lúgubre dieta de pão, tem falta de substância: falta-lhe a
substancialidade da carne animal, com toda a gravidade do derramamento de
sangue e do sacrifício por detrás. As nossas próprias palavras têm falta
de peso, estas palavras espanholas que não vêm do coração.
- Disse?
84
85
Capítulo 9
- Hum. Sabes uma coisa? Quando o Fidel for grande vai comprar um violino
muito, muito pequenino - mostra como o violino será pequeno: dois palmos
apenas -, e vai usar um fato de palhaço e tocar violino no circo. Podemos
ir ao circo?
- Quando o circo vier à cidade podemos ir, todos. Podemos convidar também
o Álvaro, e talvez também o Eugénio.
O rapaz faz beicinho.
- Só disse uma coisa, que tu tinhas um diabo dentro, e isso foi só uma
maneira de falar. Queria dizer que tu tens uma centelha dentro de ti que
te faz ser bom no xadrez. Um mafarrico.
- Está bem, não convidamos o Eugénio. O que é que andas a aprender nas
tuas lições de música além de escalas?
- Adorava. Não sabia que a Elena ensinava canto. Ela é uma caixinha de
surpresas.
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- Não. Vou ser mágico num circo. O que é que quer dizer Wer reitetso?
- Não sei. Não sei inglês.
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- La Residência - lê.
- Uma residência é uma casa, uma casa importante. Mas esta residência em
particular pode não passar de uma ruína.
- Podemos ver?
Experimentam o portão, mas este não se move. Precisamente quando estão
prestes a voltar para trás, surge, trazido pela brisa, ténue som de
risos. Seguindo o som, vão abrindo caminho por entre a vegetação alta e
chegam a um sítio onde o muro de tijolo dá lugar a uma alta vedação de
rede de arame. Do outro lado da vedação há um campo de ténis, e no campo
estão três jogadores, dois homens e uma mulher, vestidos de branco, os
homens de camisa e calças compridas e a mulher de saia até aos pés e uma
blusa e gola subida e um boné com uma viseira verde.
89
Há qualquer coisa que se agita dentro dele. Quem é esta mulher? O seu
sorriso, a sua voz, a sua atitude... Há nela qualquer coisa obscuramente
familiar.
- A Residência deve ser isto. O campo de ténis deve fazer parte dela.
- Podemos entrar?
- Podemos tentar.
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- Sim. Acabamos de chegar da cidade. Poderei por acaso dar uma palavrinha
a um dos moradores, uma senhora que está a jogar ténis no campo das
traseiras?
- E o nome da senhora?
- Isso não lhe posso dizer, porque não sei. Mas posso descrevê-la. Diria
que tem uns trinta anos, é de estatura mediana e tem cabelo preto, que
usa afastado da cara. Está na companhia de dois jovens. E está toda
vestida de branco.
- Do cão?
- O meu jovem amigo diz que têm um cão - repete. Pela parte que lhe toca,
não se lembra de cão nenhum.
- Podem.
- Podem.
- Não a reconheces?
92
- E o nome?
- Crianças na Residência não, senhor. São as regras. Não sou eu que faço
as regras, limito-me a aplicá-las. Ele tem de ficar enquanto o senhor faz
a sua visita de família.
- Ficas com este senhor? - pergunta ao rapaz. - Eu volto assim que puder.
- Eu compreendo isso. Mas tenho a certeza de que, mal a senhora saiba que
estás aqui à espera, vai querer vir ter contigo. Por isso, podes fazer um
grande sacrifício e ficar aqui com este senhor, só por um bocadinho?
- E tu voltas? Prometes?
- Não pode abrir uma exceção neste caso? - pergunta ele ao porteiro. -
Ele vai portar-se muito bem, não incomodará ninguém.
93
- Claro.
- Vai trepar a uma árvore - diz ele ao rapaz. - Há uma porção de árvores
boas para trepar. Eu não demoro nada.
Seguindo as instruções do porteiro, ele atravessa o pátio retangular,
passa por uma segunda entrada e bate a uma porta que tem escrita a
palavra Una. Não há resposta. Entra.
Está numa sala de espera. As paredes são forradas a papel branco, com um
motivo de uma lira e um lírio em verde-claro. Vinda de candeeiros
ocultos, a luz branca é discretamente dirigida para cima. Há um sofá de
imitação de pele branca e duas poltronas. Numa mesinha junto à porta há
meia dúzia de garrafas e copos de todos os feitios.
- Sim. - O coração dele bate com força. - Obrigado por ter vindo. O meu
nome é Simón. Não me conhece, e eu não tenho importância. Venho da parte
doutra pessoa e trago uma proposta.
Com mão pouco firme, ele serve-se de um cálice de xerez e tira uma das
pequenas sanduíches triangulares muito finas. Pepino.
94
- Trouxe aqui alguém. Na verdade, o miúdo que viu no campo de ténis. Está
lá fora, à espera. O porteiro não o deixou entrar, porque é uma criança.
Quer vir conhecê-lo?
Ele vira-se para a mulher, num apelo. Ela não tem certamente de se
submeter ao porteiro e às suas regras. Mas ela não pronuncia qualquer
palavra de protesto.
- Podemos sair para o jardim? Por favor! Dê-me uma hipótese de explicar.
95
Em silêncio, com o rapaz de mão dada com ele, atravessam os três o pátio
quadrangular até ao emaranhado jardim.
- Na verdade eu não sou pai dele. Cuido dele. Sou uma espécie de tutor.
Temporariamente.
- Os pais... É essa a razão pela qual aqui estamos hoje. O rapaz não tem
pais, pais como é habitual. Houve um contratempo a bordo, durante a
viagem para cá. Perdeu-se uma carta que podia ter explicado tudo. Em
consequência disso, os pais dele perderam-se, ou, mais rigorosamente, ele
está perdido. Ele e a mãe foram separados e nós andamos à procura dela. O
pai é outra história.
- Sim, de ser uma mãe para ele. De ser mãe dele. Fica com ele como seu
filho?
- Não é adotar. É ser mãe dele, mãe por inteiro. Só temos uma mãe, todos
nós. Quer ser essa mãe única para ele?
96
Até então ela escutou atentamente. Agora, porém, começa a olhar em volta
um pouco descontroladamente, como se esperasse que alguém - o porteiro,
um dos seus companheiros de ténis, quem quer que seja - venha em seu
auxílio.
Ele pensava que o rapaz estava demasiado absorto nos peixes dourados para
ouvir. Mas então, de repente, ele exclama esganiçadamente:
-Acredite, por favor... Por favor, faça fé no que eu digo... Esta questão
não é simples. O rapaz está sem mãe. O que isso significa não lhe posso
explicar, porque também não consigo explicá-lo a mim próprio. No entanto
garanto-lhe que, se disser simplesmente que sim, sem reflexão prévia, sem
reflexão posterior, tudo se tornará claro para si, claro como água, ou
pelo menos é o que penso. Portanto: aceita este miúdo como seu?
97
- Claro que te quer. És um rapaz tão bonito e tão esperto, que quem não
te quereria? Mas primeiro tem de se habituar à ideia. Plantámos-lhe a
semente no espírito; agora temos de ser pacientes e esperar que cresça.
Desde que tu e ela gostem um do outro, há de crescer e florir com
certeza. Tu gostas da senhora, não gostas? Bem vês como ela é simpática,
simpática e meiga.
Ele levanta-se, aquece leite e barra uma fatia de pão com manteiga.
- Ninguém te vai obrigar a viver onde não quiseres. Agora vamos voltar
para a cama.
98
Fique com este miúdo! Seja a sua mãe única! Seria melhor ter encontrado
maneira de lhe pôr a criança nos braços, corpo com corpo, carne com
carne. Nessa altura poderiam ter sido reanimadas recordações enterradas
mais fundo que todo o pensamento e tudo teria acabado em bem. Mas,
desgraçadamente, viera de repente de mais para ela, este grande momento,
como viera de repente de mais para ele. Explodira sobre ele como uma
estrela e ele falhara-o.
99
Capítulo 10
101
- É capaz de nos repetir o que disse ontem? - pergunta ela. - Comece pelo
princípio, pelo princípio de tudo.
Segundo lhe parece, é Diego que vai ser o osso duro de roer: Diego, e não
a mulher, cujo nome ele não sabe e não quer perguntar. A mulher não
estaria ali se não estivesse pronta a deixar-se influenciar.
- A senhora tem dúvidas, bem vejo. Como pode este miúdo que nunca vi na
vida ser meu filho?, pergunta a si mesma. Imploro-lhe: ponha a dúvida de
lado e dê antes ouvidos ao que o seu coração diz. Olhe para ele. Olhe
para o rapaz. O que diz o seu coração?
A mulher não dá resposta, não olha sequer para o rapaz, mas vira-se para
o irmão, como quem diz: Estás a ver?É como eu te dizia. Ouve bem esta
inacreditável, esta louca proposta dele! Que hei de fazer?
102
- Quem eu sou não importa. Eu não sou importante. Sou uma espécie de
criado. Cuido do miúdo. E não ando atrás da sua irmã. Ando atrás da mãe
do miúdo. Há uma diferença.
- Quem é o miúdo? Onde foi que o recolheu? É seu neto? Onde estão os pais
dele?
- Não é meu neto nem meu filho. Não temos parentesco nenhum.
Afeiçoámo-nos muito um ao outro. Mas eu não posso ser tudo para ele. Não
posso ser mãe dele.
«A sua irmã (desculpe, não sei o nome dela) é a mãe dele, a sua mãe
natural. Não posso explicar como isso acontece, mas é assim, é tão
simples como isso. E lá no fundo ela sabe-o. Por que razão pensa que ela
aqui está hoje, a não ser por isso? A superfície pode parecer calma, mas
por baixo da superfície percebo que a empolga, esta grande dádiva, a
dádiva duma criança.
- Ninguém se atreveria a separar uma mãe do seu filho, diga o livro das
regras o que disser.
103
Além disso a sua irmã não tem de continuar a viver em La Residência.
Podia mudar-se para este apartamento. É dela. Eu cedo-lho. Arranjo outro
sítio para morar. Curvando-se para diante como que para falar em
confidência, Diego dá-lhe uma súbita bofetada. Sobressaltado, tentando
escudar-se, ele é atingido por outra palmada. Não são pancadas fortes,
mas abalam-no.
- Eu não sou nenhum palerma! - brada Diego entre dentes. - Acha que eu
sou algum palerma? - E volta a levantar uma mão ameaçadora.
- Não penso nem mais ou menos que você seja um palerma. -Precisa de
aplacar este jovem, que deve estar transtornado (quem não o estaria?) com
esta insólita intervenção na sua vida. - É uma história invulgar, admito.
Mas pense um pouco no miúdo. As necessidades dele são aquilo que mais
importa.
Os seus rogos não surtem efeito. Diego olha-o tão belicosamente como
antes. Ele joga a sua última cartada.
- Onde está a aranha, onde está a aranha...? - cantarola ela numa voz
estridente e fina. Os seus dedos correm pelo peito dele abaixo até à
fivela do cinto; faz-lhe cócegas, convulsionando-o de riso desamparado.
104
- Tal como disse ao seu irmão, pode perfeitamente mudar-se para aqui.
Pode ser já hoje. Eu mudo-me imediatamente. Esta será a sua nova casa.
- Não vou para longe, meu rapaz. Vou para casa da Elena e do Fidel. Tu e
a tua mãe podem visitar-nos sempre que quiserem.
105
- Não se atreveriam.
Diego encabeça o cortejo que entra, trazendo uma grande mala ao ombro.
Deixa-a cair na cama.
- Está frio, aqui - observa, esfregando as mãos. - Está sempre assim tão
frio?
Tinha anunciado que ficaria em casa de Elena, mas de facto não é isso que
tem em mente. Dirige-se às docas, desertas ao fim de semana, e arruma os
seus pertences no pequeno barracão junto ao Molhe Dois onde os homens
guardam o equipamento. Depois regressa a pé aos Blocos e bate à porta de
Elena.
106
- Olá - diz -, podemos ter uma conversa? Enquanto tomam chá, esboça-lhe
as novas disposições.
- Tenho a certeza de que o David vai desabrochar, agora que tem uma mãe
para cuidar dele. Não era bom para ele ser criado só por mim. Estava
sujeito a demasiada pressão para se tornar um homenzinho. As crianças
precisam de ter a sua infância, não achas?
- Não posso acreditar no que ouço - responde Elena. - Uma criança não é
como um pintainho que se pode pôr debaixo da asa de uma galinha estranha
para que o crie. Como é que pudeste confiar o David a uma pessoa que
nunca tinhas visto na vida, a uma mulher que provavelmente está a agir
por capricho e que perderá o interesse antes do fim da semana e quererá
devolvê-lo?
- Por favor, Elena, não faças juízos sobre a Inês antes de a conheceres.
Ela não está a agir por capricho; pelo contrário, julgo que está a agir
sujeita a uma força mais poderosa do que ela. Estou a contar contigo para
nos ajudares, para a ajudares. Ela está em território desconhecido; não
tem experiência de ser mãe.
- Eu não estou a fazer juízos sobre essa tua Inês. Se ela pedir ajuda,
dar-lha-ei. Mas ela não é a mãe do teu rapaz e tu devias deixar de lhe
chamar isso.
- Elena, ela é mesmo a mãe dele. Cheguei a esta terra despojado de tudo
menos duma convicção férrea: que conheceria a mãe do rapaz quando a
visse. E no instante em que vi a Inês soube que era ela.
- Não sei por que razão isso decorre. E que mal faz um pouco de caos de
vez em quando se daí advier algo de bom?
107
- Não quero entrar em discussão. Hoje o teu filho faltou à lição. Já não
é a primeira a que falta. Se ele vai desistir da música, faz o favor de
me avisares.
- Já não me cabe a mim decidir isso. E, mais uma vez, ele não é meu
filho, eu não sou pai dele.
- Palavra? Estás sempre a negá-lo, mas às vezes fico na dúvida. Não digo
mais nada.
-Não.
Álvaro pergunta pelo rapaz, e ele fica tão emocionado com a preocupação
de Álvaro que por momentos pensa dar-lhe a boa notícia, a notícia de que
encontraram a mãe do rapaz. A seguir, porém, tendo em atenção a reação de
Elena à mesmíssima notícia, refreia-se e diz uma mentira: David foi
levado pela professora a um grande concurso de música.
Afigura-se-lhe que seria pena o rapaz perder contacto com Álvaro e nunca
mais ver o seu amigo El Rey, o cavalo de tiro. Espera que, quando tiver
reforçado os laços com ele, Inês permita que o rapaz vá às docas.
108
O passado está tão envolto em nuvens de esquecimento que ele não pode ter
a certeza de que as suas recordações sejam verdadeiras recordações, e não
meras histórias que inventa; mas sabe, isso sim, que teria adorado, em
criança, que o deixassem sair logo de manhã na companhia de adultos e
passar o dia a ajudá-los a carregar e descarregar grandes navios. Uma
dose de realidade não pode deixar de fazer bem à criança, segundo lhe
parece, desde que a dose não seja demasiado repentina nem demasiado
grande.
Tencionara passar pelo Naranjas para comprar provisões, mas deixou-o para
demasiado tarde: quando lá chega a loja está fechada. Sentindo fome, e
também solidão, volta a bater à porta de Elena. É Fidel que vem abrir, de
pijama.
- Olá - diz ele. - Passa-se alguma coisa? Aconteceu alguma coisa? Ela
abana a cabeça.
- O David não pode vir mais aqui a casa - informa Fidel. - A senhora nova
diz que não pode.
- A senhora nova - diz Elena - anunciou que o teu filho não está
autorizado a brincar com o Fidel.
- Mas porquê?
- Dá-lhe tempo para se adaptar - diz ele. - Ser mãe é uma coisa nova para
ela. É natural que ao princípio seja um pouco errática.
- Errática?
109
- Veremos. Já comeste?
Elena aquece uma panela de sopa e corta pão para ele. Ele procura comer
devagar, embora de facto esteja com uma fome canina.
- Lamento, mas não podes ficar cá esta noite - diz ela. - Tu sabes
porquê.
- Claro, eu não estou a pedir para ficar. Os meus novos alojamentos são
perfeitamente confortáveis.
- Foste expulso, não foste? Da tua casa. A verdade é essa. Eu bem vejo.
Pobrezinho. Separado do teu rapaz, de que tanto gostas.
- Vem outra vez amanhã. Eu dou-te de comer. É o mínimo que posso fazer.
Dar-te de comer e consolar-te. Embora pense que cometeste um erro.
Ele despede-se. Devia ir diretamente para o seu novo lar nas docas. Mas
hesita e a seguir atravessa o pátio, sobe as escadas e bate de leve à
porta do seu antigo apartamento. Há uma fresta de luz por baixo da porta:
Inês ainda deve estar a pé. Depois de uma longa espera volta a bater.
110
Capítulo 11
Ao fixar residência nas docas está provavelmente a infringir um
regulamento qualquer. Isso não o preocupa. No entanto, não quer que
Álvaro descubra, porque, com o seu coração bondoso, é natural que Álvaro
pense que tem de lhe oferecer um lar.
113
Não é apenas o facto de vestir uma nova camisa branca (aliás mais blusa
do que camisa - tem o peitilho pregueado e cai-lhe solta sobre as
calças): fica agarrado às saias de Inês, sem corresponder ao seu
cumprimento, fitando-o com aqueles grandes olhos.
- Nesse caso foi uma sorte apanhá-los - volve ele, tentando manter um tom
frívolo. - Trouxe o aquecedor elétrico que tinha prometido.
- Desculpe. Deve ser passar de cavalo a burro, ter de viver nos Blocos. -
Volta-se para o rapaz. - Com que então vais sair à noite. E onde é que
vais?
O rapaz não dá uma resposta direta, erguendo o olhar para a sua nova mãe,
como quem diz: Diz-lhe tu.
114
- Bem, eu passei só para saber se estava tudo bem, e talvez para aiudar
nas compras. Tome: trouxe uma pequena contribuição.
- Sim, está tudo bem connosco - diz. Aperta o rapaz com força contra o
flanco. - Tivemos uma grande almoçarada e depois fizemos uma sesta e
agora vamos de carro para o pé do Bolívar e amanhã de manhã vamos jogar
ténis e tomar banho.
- Isso parece emocionante - comenta ele. - E também temos uma bela camisa
nova, estou a ver.
O rapaz não responde. Com o dedo na boca, não parou de o fitar com
aqueles olhos grandes. Ele está cada vez mais convencido de que se passa
qualquer coisa.
- Ah, sim, Bolívar - torna ele. - Estava com vocês no campo de ténis, não
estava? Não quero ser alarmista, Inês, mas os lobos-d'alsácia têm fama de
não ser muito aconselháveis para as crianças. Espero que tenham cuidado.
115
De alguma forma, o dia acaba por passar. Pensa em ir a casa de Elena, mas
à última hora muda de ideias, incapaz de enfrentar o importuno
interrogatório que ali o aguarda. Não comeu, não tem apetite. Deita-se na
sua cama de sacos, inquieto, agitado.
116
Na manhã seguinte, ao raiar do dia, está na estação rodoviária, passa uma
hora antes de chegar o primeiro autocarro. Chegado ao fim da linha, sobe
a encosta que leva a La Residência e vai até ao campo de ténis. O campo
está deserto. Instala-se nas moitas, à espera.
Às dez horas o segundo irmão, aquele ao qual ainda não teve o prazer de
ser apresentado, chega vestido de branco e começa a montar a rede. Não
presta atenção ao estranho que está bem à vista a menos de trinta passos.
Passado algum tempo aparece o resto do grupo.
- Não sou grande jogador de ténis - diz. - Antes quero assistir. Estás a
divertir-te? Alimentas-te como deve ser?
- Ao lanche bebi chá. A Inês diz que eu já tenho idade para beber chá. -
Vira-se e grita: - Eu posso beber chá, não posso, Inês? - Depois, sem se
deter, continua impetuosamente: - E dei de comer ao Bolívar e a Inês diz
que eu posso ir passear o Bolívar a seguir ao ténis.
Equiparam-no com uns calções brancos curtos. Por isso, com a blusa
branca, está todo de branco, à exceção dos sapatos azuis de presilhas.
117
Mas a raquete de ténis que lhe deram é grande de mais: mesmo com as duas
mãos mal consegue fazê-la rodar.
- Anda cá, grande homem! - exclama Diego. Coloca-se por cima do rapaz,
com as mãos a rodearem as do rapaz, que seguram a raquete. O outro irmão
lança uma bola. Giram em uníssono e acertam-lhe em cheio. O irmão lança
outra bola. Tornam a apanhá-la. Diego recua.
- Não há nada que eu lhe possa ensinar - exclama ele para a irmã. - É um
tenista nato. - O irmão lança uma terceira bola. O rapaz faz girar a
pesada raquete e falha, por pouco não caindo, com o esforço.
118
Capítulo 12
Jurou guardar as suas mágoas para si, mas, quando Álvaro lhe pergunta
pela segunda vez o que é feito do rapaz («Tenho saudades dele, todos
temos saudades dele»), sai-lhe num desabafo a história inteira.
119
- Uma lei da natureza, então. Os laços de sangue são mais fortes que
todos os outros. As crianças devem estar com a mãe. Em particular as
crianças mais pequenas. Em comparação, as minhas pretensões são muito
abstratas, muito artificiais.
- Tu tens-lhe amor. Ele tem-te amor. Isso não é artificial. A lei é que é
artificial. Ele devia estar contigo. Precisa de ti.
Nessa tarde ele tem uma visita surpresa: o jovem Fidel, que chega às
docas na sua bicicleta, trazendo uma mensagem rabiscada: Temos estado à
tua espera. Faço votos por que não haja novidade. Queres vir cá jantar
esta noite? Elena.
- É um galeão?
120
- Não. Não tem velas, de maneira que não se pode classificar como um
galeão. É aquilo a que chamamos um navio a carvão. Quer dizer que queima
carvão para fazer funcionar as máquinas que o movem. Amanhã vão carregar
carvão para a viagem de regresso. Isso vai ser feito no Molhe Dez, e não
aqui. Eu não estou envolvido. Ainda bem. É um serviço tramado.
- Porquê?
- É uma maneira de falar. Viu-o nos seus sonhos. Sabia que ele estava
para vir. Estava à espera dele. Agora ele veio e ela não cabe em si de
contente. Tem o coração repleto.
- Agora tenho de voltar para o trabalho, Fidel. Logo à noite vou ter
contigo e com a tua mãe.
- Ele morde?
- Pode morder.
121
- Não. Não importa onde nem que género de quarto. É suficiente para os
meus fins.
- Portanto estás a viver de pão e água. Julgava que estavas farto de pão
e água.
- O pão é o esteio da vida. Quem tem pão não passará privações; para com
o interrogatório, Elena, por favor. Eu sou perfeitamente capaz de cuidar
de mim.
- E a Inês? Não disseste que a Inês tem casa em La Residência? Porque não
podem ela e o filho ficar lá?
122
- A uma mulher sem filhos na casa dos trinta. Uma mulher que passa o
tempo a fazer desportos com homens. Uma mulher que tem cães.
- Bem, na minha opinião não estás bom da cabeça, entregando o teu miúdo a
uma estranha que, tanto quanto sabes, tem um passado duvidoso.
- Que disparate, Elena! A Inês não tem nenhum passado, nenhum que tenha
valor. Nenhum de nós tem um passado. Aqui começamos tudo de novo.
Começamos com o cadastro limpo, com o cadastro virgem. E a Inês não é uma
estranha. Reconheci-a assim que a vi, o que quer dizer que devo ter um
conhecimento prévio qualquer.
123
124
Capítulo 13
Em retrospetiva aquele dia, o dia em que Elena mandou o filho ir ter com
ele às docas, assinala o momento em que ele e ela, que ele imaginara como
dois navios num mar quase sem vento, talvez à deriva, mas à deriva afinal
em direção um ao outro, começaram a derivar cada um para seu lado. Há
muita coisa em Elena de que ele ainda gosta, especialmente a
disponibilidade que ela tem para escutar as suas queixas. Mas o
sentimento de que falta qualquer coisa que teria de haver entre eles
intensifica-se; e se Elena não partilha esse sentimento, se julga que
nada falta, se assim é, não pode ser aquilo que falta na vida dele.
Sentado num banco à entrada dos Blocos Orientais, escreve uma mensagem
para Inês.
Fiz amizade com uma mulher que mora do outro lado do pátio, no Bloco C.
Chama-se Elena. Tem um filho chamado Fidel que se tornou o melhor amigo
do David e exerce uma influência tranquilizadora sobre ele. Para um
jovem, Fidel tem bom coração, verá.
O David tem andado a ter lições de música com a Elena. Veja se consegue
convencê-lo a cantar para si. Ele canta muito bem. A minha sensação é que
ele devia continuar as lições, mas claro que a decisão é sua.
125
O David também se dá bem com o meu capataz do emprego, Álvaro, outro bom
amigo. Ter bons amigos encoraja a pessoa a ser boa também, ou pelo menos
é o que eu acho. Seguir os caminhos do bem: não é isso que ambos
desejamos para o David?
Situada na cave dos Bloco F da Aldeia Oriental, o mesmo bloco que aloja o
ginásio comunal, fica um armazém de padaria para a qual ele tem o nome
privado de Manutenção. Está aberta todas as manhãs dos dias úteis das
nove ao meio-dia. Além de pão e de artigos de pastelaria, vende a preços
irrisórios géneros alimentícios básicos como açúcar, sal, farinha e óleo
para cozinhar.
Na Manutenção compra uma provisão de sopa enlatada, que leva para o seu
esconderijo das docas. A sua refeição da noite, quando está sozinho, é
pão e sopa de feijão, fria. Habitua-se à sua monotonia.
Como a maioria dos moradores dos Blocos utiliza a Manutenção, ele imagina
que Inês a utilizará também. Entretém-se com a ideia de ficar por ali uma
manhã na esperança de a ver a ela e ao rapaz, mas depois reconsidera.
Seria demasiado humilhante se ela desse com ele à espreita entre as
prateleiras, a espiá-la.
126
Está disposto a aceitar que a melhor maneira de Inês criar confiança com
o miúdo é tê-lo unicamente para si por uns tempos. Mas há um receio
incómodo que ele não consegue dissipar: que o miúdo possa sentir-se só e
infeliz, ansiando por ele. Não consegue esquecer a expressão do olhar do
miúdo quando foi lá a casa, cheia de silenciosa dúvida. Anseia por voltar
a vê-lo como era dantes, com o seu bonezinho de pala e as botas pretas.
- Inês! - chama-a.
127
- Eu sei - volve ele. - Está mal concebido. Eu deixo a janela aberta dia
e noite para o arejar. Quero dizer, costumava deixar a janela aberta.
- Ah, ele não se constipa com facilidade. É um sujeito forte... Não és?
- No armazém familiar.
- O armazém familiar?
- Isso é estranho. Ele dormia numa cama desde que eu me lembro e nunca
caiu.
Ainda antes de terminar, percebe que não devia ter dito aquilo. Inês
aperta os lábios com força, dá a volta ao veículo e afastar-se-ia, não
fosse o facto de a trela do cão se enredar nas rodas e ter de ser
desembaraçada.
- Desculpe - diz ele -, não é minha intenção interferir. Ela não se digna
responder.
128
Será por ela lhe ser tão hostil e assim ter sido desde o princípio, ou
será que ela não é atraente simplesmente porque se recusa a sê-lo, se
recusa a abrir-se? Será ela realmente virgem, conforme Elena afirma, ou
pelo menos do género virginal? O que ele sabia de virgens perde-se nas
brumas do esquecimento. Será que a aura do virginal reprime o desejo do
homem, ou pelo contrário acicata-o? pensa em Ana, do Centro de
Realojamento, que se lhe afigura uma virgem de uma espécie bastante
feroz. Ana, achava-a ele atraente, sem dúvida. O que tem Ana que Inês não
tenha? Ou deverá a pergunta ser formulada ao contrário: o que tem Inês
que Ana não tenha?
- Vejo-a a ela aqui pelos Blocos. Nunca nos falámos. Não me parece que
ela queira grandes convivências com os moradores.
- Como achas que ela está a lidar com o facto de ser mãe?
129
- O cão também?
- O cão também. Onde quer que a Inês vá, o cão vai. Ele faz-me arrepios.
Parece uma mola sob tensão. Um dia destes ainda ataca alguém. Só rezo
para que não seja o miúdo. Não se pode convencê-la a pôr-lhe um açaime?
- Bem, eu acho que é uma loucura ter um cão violento com uma criança
pequena em casa.
- Isso não é verdade. Uma criança não pode crescer sem a mãe. Não foste
tu própria que o disseste: é à mãe que a criança deve a sua substância,
ao passo que o pai se limita a fornecer a ideia? Uma vez transmitida a
ideia, o pai é dispensável. E neste caso eu nem sequer sou o pai.
130
- E tu? Até que ponto a conhecias quando lhe passaste o teu precioso
encargo? Não era preciso investigar as suas qualificações
como mãe, disseste tu: podias confiar na intuição. Reconhecerias a mãe
dele num ápice, mal poisasses os olhos nela. Intuição: que espécie de
base é essa para decidir o futuro duma criança?
- Nós já tínhamos discutido isso, Elena. Que mal tem a intuição nata? No
fim de contas, que mais há em que possamos confiar?
- Mas a Inês não é a mãe dele! Não foi ela que o concebeu! Não o trouxe
no ventre! Não o deu à luz com sangue e dor! É apenas alguém que tu
escolheste por capricho, tanto quanto eu sei porque te fazia lembrar a
tua mãe.
131
- Podes não estar apaixonado por ela mas estás insensatamente fixado
nela, o que é pior. Estás convencido de que ela é o destino do teu miúdo.
Ao passo que a verdade é que a Inês não tem qualquer parentesco, místico
ou não, contigo ou com o teu rapaz. É apenas uma mulher ao acaso na qual
projetaste uma obsessão privada qualquer. Se o miúdo estava predestinado,
como dizes, a juntar-se à mãe, porque não deixaste que fosse o destino a
juntá-los? Porque é que tinhas de te imiscuir no ato?
- Porque não basta ficar quieto à espera de que o destino atue, Elena,
tal como não basta ter uma ideia e a seguir ficar refastelado à espera de
que ela se materialize. Alguém tem de trazer a ideia ao mundo. Alguém tem
de agir por conta do destino.
- É precisamente o que eu disse. Chegas aqui com uma ideia muito tua do
que é uma mãe, que depois projetas numa mulher.
132
Elena ri-se.
133
Capítulo 14
- Acho que sim. Mas não posso deixar de perguntar a mim mesmo porque é
que a cidade precisa de tanto cereal, semana após semana.
135
A vida é boa em si; ajudar a comida a fluir para que o nosso semelhante
possa viver é duplamente bom. Como pode contestar isso? Seja como for,
que tem você contra o pão? Lembre-se do que o poeta disse: o pão é a via
pela qual o sol entra nos nossos corpos.
- Se não gosta do trabalho que fazemos, se não o acha bom - diz um deles,
no caso Eugénio -, que trabalho é que gostaria de fazer em vez deste?
Gostaria de trabalhar num escritório? Acha que o trabalho de escritório é
um tipo de trabalho melhor para um homem? Ou o trabalho numa fábrica,
porventura?
136
- Então respondeu com certeza à sua própria pergunta. Imagine não ter
trabalho. Imagine ter de passar os dias sentado num banco público sem
nada para fazer, à espera de que as horas passem, sem camaradas à sua
volta para partilhar uma piada, sem boa vontade camarada a apoiá-lo. Sem
trabalho, e a partilha do trabalho, a camaradagem não é possível. Já não
é substancial. - Vira-se e olha em redor. - Não é assim, camaradas?
Há um murmúrio de concordância.
- E o futebol? - retruca ele, tentando outra abordagem, embora sem
confiança. - Havíamos certamente de nos amar e apoiar uns aos outros se
todos pertencêssemos a uma equipa de futebol, jogando juntos, ganhando
juntos, perdendo juntos. Se o amor camarada é um bem último, para que é
que precisamos de movimentar estes pesados sacos de cereal, porque não
jogarmos apenas futebol?
137
Não percebo, palavra que não percebo, por que razão há de querer denegrir
desta maneira o nosso trabalho.
- Não serão precisas proezas de trabalho heróicas, meu amigo -diz ele. -
Nós conhecemos os seus sentimentos, não precisa de provar nada. - E
outros homens vêm também dar-lhe palmadas nas costas ou um abraço. Ele
sorri para toda a gente; vêm-lhe lágrimas aos olhos; não consegue parar
de sorrir.
- Ainda não viu o nosso armazém, pois não? - pergunta Álvaro, ainda a
apertar-lhe a mão.
-Não.
O armazém fica mais longe dos molhes do que ele esperava, na margem
esquerda, na curva onde o rio começa a apertar-se. A furta-passo - o
condutor tem um chicote, mas não se serve dele, limitando-se a estalar a
língua para os cavalos de vez em quando a fim de os animar -, levam quase
uma hora a chegar lá, período durante o qual não trocam uma palavra.
138
Ouvem-se uns estalidos secos debaixo dos seus pés: cereal derramado. Uma
coisa mole choca contra o seu calcanhar e ele prega-lhe involuntariamente
um pontapé. Um guincho; de repente apercebe-se de um sussurro abafado a
toda a sua volta, semelhante ao ruído de água a correr. Solta um grito. O
chão à sua volta fervilha de vida. Ratazanas! Há ratazanas por toda a
parte!
139
- Você gaba o armazém, mas alguma vez lá foi? Está cheio de ratazanas.
O que é que temos para nos orgulharmos, a trabalhar para alimentar uma
porção de animais daninhos? Não é só absurdo, é de loucos.
- O facto de as perdas fazerem parte da vida não quer dizer que não as
combatamos! Para quê armazenar cereal às toneladas, aos milhares de
toneladas, em celeiros infestados de ratazanas? Porque não importar
apenas o suficiente para as nossas necessidades, mês a mês? E porque é
que todo o processo de transbordo não há de ser organizado de maneira
mais eficiente? Porque havemos de usar cavalos e carroças quando podíamos
usar camiões? Porque é que o cereal há de vir em sacos e ser carregado às
costas? Porque é que não pode ser simplesmente despejado no porão no
porto de partida e bombeado aqui através de uma canalização?
140
- O que acha que seria de todos nós, Simón, se o cereal fosse bombeado a
granel como propõe? Que seria dos cavalos? Que seria de El Rey?
- Deixaria de haver trabalho para nós aqui nas docas - responde ele. -
Admito isso. Mas em lugar disso arranjaríamos emprego a montar bombas ou
a guiar camiões. Todos teríamos trabalho, como antes, só que seria um
tipo de trabalho diferente, que exigiria inteligência e não apenas força
bruta.
«Por que razão tem tanta certeza de que precisamos de ser salvos, Simón?
Acha que nós vivemos a vida de estivadores porque nos acharam demasiado
estúpidos para fazer outra coisa, demasiado estúpidos para montar uma
bomba ou conduzir um camião? Claro que não. Por esta altura já nos
conhece. É nosso amigo, nosso camarada. Não somos estúpidos. Se
precisássemos de ser salvos, já nos teríamos salvado por nós. Não, não
somos nós que somos estúpidos, o esperto raciocínio em que você faz fé é
que é estúpido, é que lhe dá as respostas erradas. Isto é a nossa doca, o
nosso molhe, está bem? - Volve os olhos à esquerda e à direita; os homens
emitem murmúrios de aprovação. - Aqui não há lugar para a esperteza, mas
apenas para a coisa em si.
Ele não acredita nos seus ouvidos. Não consegue acreditar que a pessoa
que está a arengar este disparate obscurantista seja o seu amigo Álvaro.
Quanto ao resto do pessoal, parece estar solidamente alinhado com ele:
jovens inteligentes com os quais todos os dias ele discute a verdade e as
aparências, o bem e o mal.
141
- Repare bem no que diz, Álvaro - contrapõe ele. - A coisa em si. Acha
que a coisa se mantém sempre igual a si mesma, imutável? Não. Tudo flui.
Esqueceu-se disso quando atravessou o oceano para aqui chegar? As águas
do oceano fluem e ao fluir mudam. Não se pode sulcar duas vezes a mesma
água. Tal como os peixes vivem no mar, também nós vivemos no tempo e
temos de mudar com o tempo. Por mais firmemente que nos comprometamos a
seguir as veneráveis tradições dos estivadores, acabaremos por ser
ultrapassados pela mudança. A mudança é como a maré enchente. Podem
construir-se barreiras, mas ela há de sempre infiltrar-se pelas fendas.
142
O que aqui fazemos não vem a ser mais que um cortejo de trabalho heróico.
E esse cortejo depende de um exército de ratazanas para se manter,
ratazanas que trabalharão noite e dia a devorar essas toneladas de cereal
que nós descarregamos de forma a arranjar mais espaço no celeiro para
mais cereal. Sem as ratazanas a inutilidade do nosso trabalho ficaria a
descoberto. - Interrompe-se. - Vocês não vêem isso? São cegos? Álvaro
olha em redor.
- Para ser mais rigoroso - o orador é Eugénio, que ontem queria saber se
ele preferiria trabalhar num escritório -, porque a história não tem
manifestações no presente.
143
A história é meramente um padrão que vemos naquilo que passou. Não tem o
poder de alcançar o presente.
«O nosso amigo Simón diz que devíamos arranjar máquinas para fazerem o
trabalho por nós, porque a história assim ordena. Mas não é a história
que nos manda desistir do trabalho honesto, é a preguiça e a sedução da
preguiça. A preguiça é real de uma maneira diversa da história. Podemos
percecioná-la nos nossos sentidos. Sentimos as suas manifestações sempre
que nos deitamos na relva e fechamos os olhos e juramos que nunca mais
nos levantaremos, nem sequer quando soar a sirene, tão doce é o nosso
prazer. Qual de nós, estendido na relva num dia de sol, dirá: Sinto a
história no corpo a dizer-me para não me levantar? Não: o que sentimos no
corpo é preguiça. É por isso que temos a frase idiomática: Ele não tem um
grama de preguiça no corpo.
A medida que falava Eugénio ia-se entusiasmando cada vez mais. Talvez por
recear que ele nunca mais se cale, os seus camaradas interrompem-no com
uma salva de palmas. Ele para e Álvaro aproveita a oportunidade.
- Não sei se o nosso amigo Simón quer responder - diz. - O nosso amigo
depreciou a nossa labuta aqui como um cortejo, observação que alguns de
nós podem ter achado ofensiva.
144
Reunamo-nos de novo neste molhe daqui a dez anos, ou mesmo daqui a cinco
anos, e vejamos se o cereal ainda é descarregado manualmente e guardado
em sacos num celeiro aberto para sustento das nossas inimigas, as
ratazanas. A minha suposição é que não o será.
Capítulo 15
147
Assim, para manter a ficção de que mora nos Blocos, ele tem de acompanhar
Eugénio até à paragem do autocarro.
Eugénio ruboriza-se.
- Fale-me disso. Já ouvi falar num Instituto, mas não tenho ideia do que
lá se passa.
- O Instituto tem aulas. Tem palestras, filmes e grupos de discussão.
Você devia inscrever-se. Havia de gostar. Não é só para gente nova, há
também uma porção de gente mais velha, e é gratuito. Sabe o caminho para
lá?
-Não.
- Está bem.
148
Acontece que o curso em que Eugénio está inscrito, juntamente com outros
três estivadores, é de Filosofia. Ele ocupa um lugar na última fila,
afastado dos camaradas, para poder escapulir-se caso se aborreça.
- Boa noite - diz ela. - Vamos continuar do ponto onde ficámos na semana
passada e continuemos a nossa exploração da mesa: da mesa e da sua
parente próxima, a cadeira. Como devem estar lembrados, estávamos a
analisar os diversos tipos de mesa que existem no mundo, bem como os
diversos tipos de cadeira. Interrogávamo-nos sobre a unidade que existe
por detrás de toda essa diversidade, o que é que faz de todas as mesas,
mesas, e de todas as cadeiras, cadeiras.
O corredor está vazio, à exceção de uma figura com uma comprida túnica
branca que caminha apressadamente na sua direção. Quando a figura se
aproxima ele vê que se trata de Ana, do Centro.
- Ana! - exclama.
- Olá - responde Ana -, desculpe mas não posso parar, estou atrasada. -
Mas depois para mesmo. - Eu conheço-o, não conheço? Esqueci-me do seu
nome.
Não há mais cursos de línguas. Não há Português. Nem Catalão. Nem Galego.
Nem Basco.
150
- Gosto.
151
Ele tenta fazer coro com eles, para mostrar que tem bom perder.
- Não - responde Eugénio. - Mas não é assim que se aprende que uma
cadeira é uma cadeira. Isso é como se aprende o que é um objeto. O objeto
dum pontapé.
- Ainda não decidi. Dei uma olhadela à lista. Há uma vasta gama de
oferta. Tinha pensado em Desenho de Modelo Vivo, mas já vi que está
completo.
- Então não vem para a nossa aula. É pena. Depois de você sair a
discussão tornou-se mais interessante.
152
Ele procura a ironia, mas não há tal coisa, como não há sal.
O rapaz discorda.
- Boa noite.
Não fazem um esforço para o deterem. E com razão. Que acharão dele, estes
esplêndidos jovens, trabalhadores, idealistas, inocentes? Que podem eles
alguma vez aprender com o amargo miasma que ele liberta?
153
- Como vai o seu miúdo? - pergunta Álvaro. - Temos saudades dele. Já lhe
arranjou uma escola?
- Ele ainda não tem idade para frequentar a escola. Está com a mãe. Ela
não quer que ele passe muito tempo comigo. Os seus afetos ficarão
divididos, diz ela, enquanto houver dois adultos a reivindicarem-no.
- Pode ser. Mas em qualquer caso eu não sou o pai do David. A mãe é a mãe
mas eu não sou o pai. É essa a diferença. Para mim é um assunto doloroso,
Álvaro. Podemos deixá-lo?
- Entreguei-o à mãe. Está ao cuidado dela. Porque é que diz que ele não é
um rapaz vulgar?
- Você diz que o entregou, mas ele quer realmente ser entregue? Porque é
que a mãe o abandonou, para começar?
154
- Natural, abstrata... Isso para mim não tem sentido. Como é que pensa
que um pai e uma mãe se juntam, para começar, o pai e a mãe da futura
criança? Porque ambos têm uma obrigação natural para com o outro? Claro
que não. Os seus caminhos cruzam-se por acaso e apaixonam-se. O que pode
ser menos natural, mais arbitrário, do que isso? Da sua conjunção
fortuita vem ao mundo um novo ser, uma nova alma. Quem é que, nesta
história, deve o quê a quem? Não sei, e tenho a certeza de que você
também não sabe.
- Diga-me onde posso encontrar essa mulher - diz por fim. - Gostaria de
lhe dar uma palavrinha.
- Tenha cuidado. Ela tem um irmão que não é flor que se cheire. Não se
meta com ele. Aliás tem dois irmãos, tão antipático um como o outro.
155
No dia seguinte, durante a pausa a meio do dia, Álvaro faz-lhe sinal para
ele se aproximar.
- Falei com a sua Inês - diz ele, sem qualquer preâmbulo. - Ela aceita
que você veja o miúdo, só que não por enquanto. No fim do mês.
- Isso é uma esplêndida notícia! Como foi que a convenceu? Álvaro faz um
gesto desdenhoso.
- Não importa como foi. Ela diz que pode levá-lo a passear. Informá-lo-á
de quando. Pediu o seu número de telefone. Eu não o sabia, de modo que
lhe dei o meu. Disse que lhe transmitiria os recados.
- Não sei dizer-lhe como estou agradecido. Faça o favor de lhe garantir
que eu não perturbarei o rapaz... Quero dizer, que não perturbarei a
relação dele com ela.
156
Capítulo 16
O apelo de Inês vem mais cedo do que se esperava. Logo na manhã seguinte
Álvaro chama-o.
Inês recebe-o à porta, envergando (porquê? O dia não está frio) um grosso
casaco comprido. Está efetivamente bastante transtornada, bastante
furiosa. A retrete está entupida. O supervisor do edifício veio
inspecionar, mas recusou-se a fazer o que quer que fosse porque (disse
ele) ela não era a inquilina legal, nunca a vira mais gorda (disse ele).
Ela telefonara aos irmãos para La Residência, mas eles tinham-na
despachado com desculpas, porque eram demasiado niquentos (diz ela
amargamente) para sujar as mãos. Por isso, esta manhã, como último
recurso, contactara o seu colega Álvaro, que, como trabalhador, devia
perceber de canalizações. E agora não aparece Álvaro, mas sim ele.
157
Emagreceu desde a última vez que a viu. Tem rugas cavadas aos cantos da
boca. Ele escuta-a em silêncio; mas os seus olhos estão presos no rapaz,
que, sentado na cama - terá acabado de acordar? -, o fita incredulamente,
como se ele tivesse regressado do mundo dos mortos.
Ele dirige um sorriso fugaz ao miúdo. Olá, diz mudamente com os lábios.
O rapaz tira o dedo da boca mas não fala. Deixaram-lhe crescer muito o
cabelo, naturalmente encaracolado. Veste um pijama azul-claro com um
padrão a vermelho de elefantes e hipopótamos às cabriolas.
- Aquela retrete tem dado problemas desde que nos mudámos para cá - está
ela a dizer. - Não me admiraria que a culpa fosse das pessoas do
apartamento de baixo. Pedi ao supervisor para ver no andar de baixo, mas
ele nem sequer me deu ouvidos. Nunca vi um homem tão malcriado. Não lhe
importa que o cheiro se sinta desde o corredor.
Inês fala dos esgotos sem acanhamento. Aquilo parece-lhe estranho: se não
é íntima, a questão é pelo menos delicada. Encará-lo-á ela como um
simples operário que veio fazer-lhe um trabalho, alguém que nunca mais
precisa de tornar a ver; ou estará a tagarelar para esconder a
atrapalhação?
158
- Anda cá! - diz. - Ainda não és tão crescido que não me possas dar um
beijo, pois não?
159
Acompanhado pelo rapaz, bate à porta do apartamento 102. Após uma longa
espera destranca-se um ferrolho e abre-se uma frincha da porta. À média
luz ele consegue distinguir uma figura sombria, que não sabe se é de
homem ou de mulher.
A porta abre-se mais. E uma mulher, velha e curvada, cujos olhos têm um
cinzento vítreo que dá entender que não vê.
- Bom dia - repete ele. - A sua retrete. Tem algum problema na retrete?
Algum entupimento, atascos?.
- Abuela - diz.
- No andar de cima.
- E vamos ao andar de cima porque a água corre em que direção, para cima
ou para baixo?
160
- Para baixo.
- Sempre?
- Não. Para cima nunca. É sempre para baixo. É assim a natureza da água.
A questão é esta: como é que a água chega ao nosso apartamento sem
contradizer a sua natureza? Como é que, quando abrimos a torneira ou
puxamos o autoclismo, a água corre para nós?
- Não. Essa resposta não está certa. Deixa-me fazer a pergunta doutra
maneira. Como é que a água chega ao nosso apartamento sem correr para
cima?
- Mas - diz ele, e ergue um dedo admonitório - como é que a água vai
parar ao céu?
- É porque o céu mete ar para dentro - diz o rapaz. - O céu mete ar para
dentro - faz uma inspiração profunda e retém o fôlego, com um sorriso no
rosto, um sorriso de puro deleite intelectual, após o que expira
teatralmente - e deita o ar fora.
- Não sabes?
161
- Não me lembro.
- Porque é que vocês os dois não vão passear? - sugere ele a Inês. - O
que eu vou fazer não é particularmente apetitoso. Não vejo porque é que o
nosso jovem amigo há de ser exposto a isso.
- Obrigado, meu rapaz, fica-te muito bem. Mas isto não é o género de
trabalho em que se precise de ajuda.
Ele troca um olhar com Inês. Há qualquer coisa tácita trocada entre eles.
O meu filho é tão esperto!, diz o olhar dela.
- As retretes são apenas retretes, mas o cocó não é só cocó - diz ele. -
Há certas coisas que não são apenas elas próprias, nem sempre. O cocó é
uma delas.
162
Inês. É assim que ele lhe chama; nem Mamã, nem Mãe?
- Porquê?
- Porquê o quê?
- Cadáveres são corpos que foram atingidos pela morte, que já não nos
servem para nada.
163
Mas não temos de nos preocupar com a morte. Depois da morte há sempre
outra vida. Já viste isso. Nós os seres humanos, nesse aspeto temos
sorte. Não somos como o cocó, que tem de cá ficar e misturar-se novamente
com a terra
- Somos como quê se não somos como o cocó? Somos como as ideias. As
ideias nunca morrem. Hás de aprender isso na escola.
- Vai dar uma volta com a tua mãe - diz ele. - Vai lá.
- Posso vê-lo?
- Para já, não. Para já temos outras coisas a fazer. Da próxima vez que
formos à cidade hei de ver se descobrimos uma agência funerária. Nessa
altura podes dar uma olhadela.
164
Ele dobra o garfo para formar um gancho e mete-o pela curva em S até não
conseguir avançar mais. Quando tenta tirar o garfo, sente resistência.
Primeiro devagar e a seguir mais depressa, a obstrução vem à superfície:
um maço de tecido forrado de plástico. A água da bacia baixa. Ele puxa o
autoclismo. A água limpa brota com um rugido. Espera e puxa novamente o
autoclismo. O cano está desentupido. Está tudo bem.
Ela cora, postada diante dele como uma culpada, sem saber para onde
olhar.
165
Inês está sentada na cama com o rapaz agarrado ao peito como um bebé, a
embalá-lo. O rapaz está a dormitar, com um fio de baba a escorrer-lhe da
boca.
- Vou-me embora - sussurra ele. - Telefone-me outra vez se precisar de
mim.
166
Capítulo 17
- Desculpa - volve ele com frieza -, não sabia que o encaravas essa
maneira.
- Chama-lhes bordéis se quiseres, mas pelo que ouço não têm nada de
sórdido, são bastante limpos e agradáveis.
167
- E é uma profissão aceite, trabalhar num bordel? - Ele sabe que está a
irritá-la com as suas perguntas, mas está outra vez com aquela
disposição, a disposição irrefletida e amarga que o atormenta desde que
entregou o miúdo. - É uma coisa que as raparigas possam fazer e continuar
a andar de cabeça erguida em público?
Estava de facto a mentir quando disse a Elena que nada sabia de sítios
onde os homens podiam ir. Álvaro falou-lhe recentemente de um clube para
homens relativamente perto das docas chamado Salón Confort.
Daí a muito tempo aparece alguém vindo de uma sala das traseiras, uma
mulher de meia-idade.
168
- Não, trabalho nas docas mas não sou marinheiro. Falei dos marinheiros
porque só estão uma ou duas noites em terra. Também têm de ser sócios
para cá virem?
- Ser aceite, pouco tempo. Mas depois disso é preciso arranjar uma vaga
para uma terapeuta.
- Eu é que tenho de arranjar vaga?
- Tem de ser aceite na lista duma das nossas terapeutas. Isso pode
demorar. Muitas vezes as nossas listas estão cheias.
- Palavra?
169
Que mais?
«O que não quer dizer que eu não seja um homem, com as necessidades de um
homem», conclui resolutamente.
170
- Não assinalou uma caixa - diz ela. - Duração das sessões: 30 minutos,
45 minutos, 60 minutos, 90 minutos. Que duração prefere?
- Pode ter de esperar um certo tempo para conseguir uma sessão de noventa
minutos. Por motivos de agenda. Apesar disso, vou registá-lo para uma
primeira sessão demorada. Pode alterá-lo mais tarde, se assim decidir. É
tudo, obrigada. Depois contactamo-lo. Escrevemos-lhe, a informá-lo de
quando será a sua primeira sessão.
- Sim, o Salón não está concebido para transitórios. Mas ser transitório
é já de si um estado transitório. Alguém que é transitório sentir-se-á em
casa no lugar de onde vem, tal como alguém cuja residência é aqui seria
um transitório noutro sítio qualquer.
- Deixe-me ver - diz ela. - O seu nome é...? - Abre um armário de arquivo
e tira de lá uma ficha. - Tanto quanto vejo, não há nenhum problema com a
inscrição em si. O atraso parece ser em casá-lo com a terapeuta certa.
- Curar-me? Talvez eu não me tenha feito entender. Ignore o que eu
escrevi no impresso sobre a beleza e tudo o mais. Eu não estou à procura
de nenhum par ideal, procuro simplesmente companhia, companhia feminina.
171
- Compreendo. Vou ver o que se passa. Dê-me uns dias. Passam-se dias. Não
vem carta nenhuma. Não devia ter usado a palavra admiração. Que rapariga
a tentar ganhar uns reais por fora quereria ver-se a braços com
semelhante responsabilidade? A verdade pode ser uma coisa boa, mas por
vezes é melhor ficar aquém da verdade. Assim: Por que razão pede a sua
inscrição no Salón Confort? Resposta: Porque sou novo na cidade e tenho
falta de contactos. Pergunta: Que tipo de terapeuta procura? Resposta:
Jovem e bonita. Pergunta: Que duração pretende para as suas sessões?
Resposta: Trinta minutos chegam.
- Acho que ultimamente não tenho pensado muito no Instituto. Tenho andado
a tentar inscrever-me num centro de diversão.
- Você e os seus amigos não o usam? Como resolvem vocês... como é que
lhes hei de chamar... os vossos impulsos físicos?
- Se faz favor.
172
Eugénio cala-se.
173
- Desistir?
- Ainda não, Elena. Mais uma aventura, mais um falhanço, e depois talvez
pense em reformar-me. Não respondeste à minha pergunta. Há alguma coisa
em mim que aliene as pessoas? A maneira como falo, por exemplo: afasta as
pessoas? O meu espanhol é completamente errado?
- O teu espanhol não é perfeito, mas melhora de dia para dia. Ouço uma
data de recém-chegados cujo espanhol não é tão bom como o teu.
- É muito simpático da tua parte dizer isso, mas o facto é que eu não
tenho bom ouvido. Não percebo o que as pessoas dizem e tenho de recorrer
à suposição. A mulher do clube, por exemplo: julguei que ela estava a
dizer que me queria casar com uma das raparigas que lá trabalham; mas
talvez tivesse ouvido mal. Disse-lhe que não andava à procura de noiva e
ela olhou para mim como se eu fosse doido.
- Esquecer leva tempo - diz Elena. - Quando tiveres esquecido como deve
ser, o teu sentimento de insegurança diminuirá e tudo se tornará muito
mais fácil.
174
- Por favor, Elena, não me interpretes mal. Eu não dou valor às minhas
estafadas recordações de antigamente. Concordo contigo: não passam dum
fardo. Não, é uma coisa diferente que eu sinto relutância em abandonar:
não são as recordações em si, mas sim a sensação de residência num corpo
com passado, um corpo embebido no seu passado. Percebes isso?
- Uma vida nova é uma vida nova - responde Elena -, e não outra vez uma
vida antiga num ambiente novo. Olha para o Fidel...
- Mas o que tem de bom uma vida nova - interrompe-a ele - se não somos
transformados por ela, transfigurados, como indubitavelmente acontece
comigo?
Ela não lhe dá tempo para dizer mais nada, mas ele já terminou.
- Olha para o Fidel - diz ela. - Olha para o David. Não são criaturas da
recordação. As crianças vivem no presente, não no passado. Porque não
seguirmos-lhes o exemplo? Em lugar de esperarmos por ser transfigurados,
porque não tentarmos ser de novo como as crianças?
175
Capítulo 18
- O Bolívar fugiu.
- Tu és filho da Inês, mas não amas só a Inês. Também me amas a mim. Amas
o Diego e o Stefano. Amas o Álvaro.
- Lamento ouvir isso. Portanto o Bolívar foi-se embora. Para onde pensas
que foi?
- Voltou. A Inês pôs comida lá fora e ele voltou. Agora já não o deixa
sair.
- A Inês diz que é porque lhe cheira a cães senhoras. Quer acasalar com
um cão senhora.
177
- Qual barco?
- Estás a ver aquelas duas estrelas além, para onde eu estou a apontar?
Aquelas duas brilhante? São os Gémeos, assim chamadas porque estão sempre
juntas. E aquela estrela além, logo acima do horizonte, com a coloração
vermelha, é a Estrela da Tarde, a primeira estrela a aparecer quando o
Sol se põe.
- São. Esqueci-me do nome deles, mas em tempos foram famosos, tão famosos
que se transformaram em estrelas. Talvez a Inês se lembre da história. A
Inês conta-te histórias alguma vez?
178
- Eu sei ler, só que não quero. Gosto que a Inês me conte histórias.
O rapaz para, aperta as mãos diante do corpo, olha para longe e começa a
falar.
- Era uma vez três irmãos e era de inverno e nevava e a mãe disse: «Três
Irmãos, Três Irmãos, sinto uma grande dor nas minhas entranhas e receio
morrer a menos que um de vocês vá procurar a Feiticeira que guarda a
preciosa erva da cura.»
«Então a Mãe disse: "Dois Irmãos, Dois Irmãos, sinto uma grande dor nas
minhas entranhas e receio morrer a menos que um de vocês vá procurar a
Feiticeira que guarda a preciosa erva da cura."
«Então o Segundo Irmão disse: "Mãe, Mãe, eu vou", e pôs a capa e saiu
para a neve e encontrou um lobo e o lobo disse: "Dá -me comida e eu
indico-te o caminho para a Feiticeira", e o Irmão disse: "Sai-me da
frente, Lobo", e deu-lhe um pontapé e foi para a floresta e nunca mais se
soube dele.
179
«Então a mãe disse: "Terceiro Irmão, Terceiro Irmão, sinto uma grande dor
nas minhas entranhas e receio morrer a menos que me tragas a preciosa
erva da cura."
«Então a Feiticeira disse: "Olha, aqui tens a preciosa erva da cura cujo
nome é Escamel, e como tiveste fé e deste o teu coração para ser
devorado, a tua mãe ficará boa. Segue as gotas de sangue na floresta e
encontrarás a tua casa."
-E...?
- Não gosto dessa história. O fim é muito triste. Seja como for, tu não
podes ser o terceiro irmão e ser levado para o céu como uma estrela
porque és o único irmão e portanto o primeiro irmão.
- Ah, diz? E donde é que virão esses irmãos? Espera ela que eu lhos leve
como te levei a ti?
- Bom, nenhuma mulher pode fazer filhos sozinha, há de precisar dum pai
para a ajudar, ela tinha obrigação de o saber. É uma lei da natureza, a
mesma lei para nós que para os cães e lobos e ursos. Mas mesmo que ela
tenha mais filhos, continuarás a ser o primeiro filho, não o segundo ou
terceiro.
- Disse.
- Eu não quero ser o mais amado, quero ser o terceiro filho! Ela
prometeu-me!
181
- Isso não é muito inteligente. Além disso, um dia destes vais fazer seis
anos e quando tiveres seis anos terás de ir para a escola.
- A Inês diz que eu não preciso de ir para a escola. Diz que eu sou o
tesouro dela. Diz que posso aprender sozinho em casa.
- A Inês diz que eu tenho de ter atenção individual porque sou esperto.
Diz que na escola as crianças espertas não têm atenção individual e
depois aborrecem-se.
- Sei os números todos. Queres ouvi-los? Sei 134 e sei 7 e sei - respira
fundo - 4623551 e sei 888 e sei 92 e sei...
182
- O que é que não é verdade? Que os números não têm fim? Que ninguém é
capaz de dizer o nome de todos?
- Muito bem. Tu dizes que sabes 888. Qual é o número a seguir a 888?
- 92.
- Errado. O número a seguir é 889. Qual dos dois é maior, 888 ou 889?
- 888.
- Errado. 889 é maior porque vem a seguir a 888.
- O que é que queres dizer com isso de ter estado lá? Claro que não
estive no 888. Não preciso de ter estado lá para saber que 888 é menor
que 889. Porquê? Porque aprendi como são construídos os números. Aprendi
as regras da aritmética. Quando fores para a escola aprenderás também as
regras e nessa altura os números deixarão de ser tamanha - procura a
palavra -, tamanha complicação na tua vida.
O rapaz não responde, mas fita-o diretamente. Nem por um momento ele
pensa que as suas palavras lhe passem despercebidas. Não, estão a ser
absorvidas, todas elas: absorvidas e rejeitadas. Por que razão é que este
miúdo, tão ansioso por abrir o seu caminho no mundo, se recusa a
perceber?
- O que é o Ómega?
- Não faças caso. Não digas é Ómega. Diz-me o último número, o último de
todos.
183
Pela primeira vez ocorre-lhe que este miúdo pode não ser esperto - há
muitos miúdos espertos no mundo - mas outra coisa uma coisa para a qual
neste momento lhe falta a palavra. Estende a mão e abana ligeiramente o
rapaz.
- Se não quer que ele vá para a escola - diz ele a Inês -, pelo menos
deixe-me ensiná-lo a ler. Ele está pronto para isso, há de aprender num
instante.
Há uma pequena biblioteca no centro comunitário dos Blocos Orientais, com
um par de estantes de livros: Aprenda Carpintaria por Si, A Arte do
Croché, Cento e Uma Receitas de Verão, e assim por diante. Mas poisado
sobre a capa, debaixo de outros livros, com a lombada rasgada, está o Dom
Quixote Ilustrado para Crianças.
184
- Tu e eu vamos ler este livro juntos, uma página por dia, às vezes duas.
Primeiro eu leio a história alto e depois seguimo-la ambos palavra por
palavra, vendo como as palavras se juntam. Combinado?
«Ora, Dom Quixote e o seu amigo Sancho (estás a ver, Dom Quixote com o Q
de cauda e Sancho outra vez?) ainda não tinham andado muito quando viram,
na berma da estrada, um gigante altíssimo que tinha nem mais nem menos
que quatro braços, que agitava ameaçadoramente para os viajantes.
185
Quando as velas rodam com o vento, fazem girar a roda, e a roda faz
girar uma grande pedra dentro do moinho, chamada mó, e a mó tritura o
trigo em farinha a fim de que o padeiro possa cozer pão para nós
comermos.
- Pode ser que seja um moinho de vento que vejas, Sancho, disse Dom
Quixote, mas isso é apenas porque não foste encantado pela feiticeira
- Porque é que o Sancho não luta também com o gigante? -pergunta o rapaz.
A única coisa que pode fazer (como veremos amanhã) é montar Dom Quixote
no seu burro e levá-lo até à estalagem mais próxima para descansar e
restabelecer-se.
187
- Vamos parar por aqui e continuamos amanhã com a próxima aventura de Dom
Quixote e Sancho. Amanhã espero que já sejas capaz de identificar Sancho
com S grande e Dom Quixote com Q de cauda.
189
- O que é que não saberão do Marciano? Que foi que lhe aconteceu? -
pergunta o rapaz, entrando na conversa.
- E depois?
- Morre?
- Morre, sim.
- Se ele morreu irá para a próxima vida - diz Inês. - Portanto não vale a
pena preocuparmo-nos com ele. Está na hora do teu banho. Vamos.
Há muito tempo que ele não vê o rapaz nu. Nota com prazer que o corpo
dele está a ficar mais cheio.
190
- Ele quer que seja você a limpá-lo - transmite ele a Inês. - Eu não sou
suficientemente bom.
Deitado na cama, o rapaz deixa que seja Inês a tratar dele, limpando-o
entre os dedos dos pés e na racha entre as pernas. Tem o dedo na boca; os
seus olhos, entorpecidos de prazer omnipotente, seguem-na
preguiçosamente.
- Talvez não esteja morto - diz. - Não podemos ir ver, a Inês, tu e eu?
Eu não respiro fumo nenhum, prometo. Podemos?
- Isso não serve de nada, David. E tarde de mais para salvar o Marciano.
E seja como for o porão do navio está cheio de água.
- Não é tarde de mais! Eu posso nadar debaixo de água e salvá-lo, como
uma foca. Posso nadar seja onde for. Já te disse, sou um artista da
evasão.
- Não, meu rapaz, nadar debaixo de água num porão alagado é demasiado
perigoso, mesmo para um artista da evasão. Podias ficar preso e nunca
mais voltar. Além disso, os artistas da evasão não salvam outras pessoas.
E tu não és nenhuma foca. Ainda nem sequer aprendeste a nadar. Já é tempo
de perceberes que uma pessoa não passa a nadar ou a ser um artista da
evasão só por querer. São precisos anos de treino. Seja como for, o
Marciano encontrou a paz. Provavelmente está neste preciso momento a
atravessar os mares, ansiando pela próxima vida. Vai ser uma grande
aventura para ele, começar de novo, completamente limpo. Nunca mais terá
de ser estivador e carregar com sacos pesados aos ombros. Pode ser um
pássaro. Pode ser o que quiser.
191
- Ou uma foca.
- Um pássaro ou uma foca. Ou até uma enorme baleia. Não há limites para o
que se pode ser na próxima vida.
- Claro que não. Por outro lado, podemos ter de aprender chinês.
- Ela é que tem de decidir. Mas tenho a certeza de que se tu fores para a
próxima vida a Inês há de querer ir atrás. Ela ama-te muito.
- Veremos o Marciano?
- Eu posso vê-lo?
- O verdadeiro Marciano, não. O verdadeiro Marciano é invisível para nós.
Quanto ao corpo, o corpo de que o Marciano fugiu, quando chegarmos às
docas já terá sido levado. Os homens hão de fazê-lo ao raiar do dia,
enquanto tu ainda dormes.
192
- Não, não estás a perceber! E se a barriga estiver cheia de fumo mas ele
não estiver realmente morto?
- Agora, às escuras? Não, claro que não. Porque é que estás tão ansioso
por ver o Marciano, meu rapaz? Um corpo sem vida não é importante. O
importante é a alma. A alma do Marciano é o verdadeiro Marciano; e a alma
vai a caminho da próxima vida.
- Eu quero ver o Marciano! Quero chupar-lhe o fumo! Não quero que ele
seja enterrado!
193
- Tu não me podes dizer o que fazer! Não és meu pai! Vou pedir à Inês!
- Posso garantir-te que a Inês não vai palmilhar o caminho contigo até às
docas em plena escuridão. Tem juízo. Eu sei que queres salvar as pessoas,
e isso é louvável, mas às vezes as pessoas não querem ser salvas. Deixa o
Marciano em paz. O Marciano foi-se. Lembremos o que ele tinha de bom e
deixemos partir o seu invólucro. Agora anda: a Inês está à tua espera
para te contar a tua história antes de dormires.
194
É um trabalho desconsolado, executado em silêncio num lugar de morte.
Quando nessa noite vai ao apartamento de Inês está exausto e maldisposto.
- Olá - saúda-o ele. - Como está hoje Dom Quixote? O que tem ele na
ideia?
- E esta palavra?
- Fantástico.
195
- Não importa como lês, com os olhos ou com os dedos como os cegos,
contanto que leias. Mostra-me Quixote, com um Q.
- Aqui.
- Não. - Desloca o dedo do rapaz para o sítio certo. - Aqui é que está
Quixote, com o Q grande.
- Pode não ser o seu nome mundano, o nome pelo qual os vizinhos o
conhecem, mas é o nome que ele escolhe para si e o nome pelo qual o
conhecemos.
- Muito bem, vou-me embora. Quando caíres em ti, quando resolveres que
queres aprender a ler como deve ser, chama-me. Chama-me e diz-me o
verdadeiro nome do Dom Quixote.
196
- O que é um letrado?
- Sim, claro que é bom. Mas porque é que pensavas que ele estava morto?
Ele é Dom Quixote. É o herói.
197
- Ah, julgavas que Sancho e o letrado tinham amarrado Dom Quixote? Não,
se lesses o livro em lugar de ver só as figuras e adivinhar a história,
saberias que eles usaram a corda para o içarem da cova, e não para o
amarrar. Continuo?
«Mas, disse Sancho, vossa mercê está certamente enganado, porque não
esteve debaixo de terra três dias e três noites, mas apenas uma hora, no
máximo.
«Não, Sancho, replicou Dom Quixote gravemente, três dias e três noites
estive ausente; se te pareceu uma hora apenas, foi porque adormeceste
enquanto esperavas e não deste pela passagem do tempo.
Sim, vossa mercê deve ter razão, disse, olhando para o douto letrado e
piscando o olho: durante três dias e três noites inteiros estivemos ambos
a dormir, até vós regressardes. Mas peço-vos que me conteis mais da
Senhora Dulcineia e do que aconteceu entre ela e vós.
198
«Sancho coçou a cabeça. Não negarei a vossa mercê que é difícil acreditar
que passastes três dias e três noites na Cova de Montesinos quando nos
pareceu uma hora apenas; e portanto não negarei que é difícil acreditar
que haja neste preciso momento exércitos de princesas debaixo dos vossos
pés, e donzelas às cabriolas em corcéis alvos de neve. Ora, se a Senhora
Dulcineia tivesse ofertado a vossa mercê algum penhor da sua verdade,
como um rubi ou uma safira da rédea da sua montada, que pudésseis mostrar
a miseráveis incrédulos como nós, a coisa seria diferente.
«Um rubi ou uma safira, meditou Dom Quixote. Deveria mostrar-te um rubi
ou uma safira como prova de que não minto.
pedir-vos-ia perdão de alguma vez ter duvidado de vós. E seria vosso fiel
seguidor até ao fim dos tempos.
Fecha o livro.
- Mostro-te o quê?
- Não sei. O señor Benengeli não diz. Talvez tenha mostrado e talvez não.
199
- Mas ele tinha realmente um rubi? Esteve realmente três dias e três
noites debaixo de terra?
- Não sei. Talvez para Dom Quixote o tempo não seja o mesmo que para nós.
Talvez aquilo que para nós é um abrir e fechar de olhos seja para Dom
Quixote uma eternidade. Mas se estás convencido de que Dom Quixote saiu
da cova com rubis nos bolsos, talvez devesses escrever o teu próprio
livro a dizer isso. Nessa altura podemos devolver o livro do señor
Benengeli à biblioteca e ler antes o teu. Infelizmente, porém, antes de
poderes escrever o teu livro terás de aprender a ler.
- Eu sei ler.
- Não sabes nada. És capaz de olhar para uma página e mexer os lábios e
inventar histórias na tua cabeça, mas isso não é ler. Para ler de verdade
tens de te cingir ao que está escrito na página. Tens de abdicar das tuas
próprias fantasias. Tens de deixar de ser pateta. Tens de deixar de ser
bebé.
Nunca tinha falado tão diretamente com o miúdo, com tanta rispidez.
- Eu não quero ler à tua maneira - responde o miúdo. - Quero ler à minha
maneira. Era uma vez um gato maltês, e um e dois e dois e três, quando
falava, falava francês e quando dormia, falava dormês.
- Isso não passa duma tolice. Dormês é uma palavra que não existe.
Dom Quixote não é uma tolice. Não podes inventar tolices e fingir que
estás a ler coisas sobre ele.
- Posso, pois! Não é tolice nenhuma e eu sei ler! O livro não é teu, é
meu! - E, franzindo a testa, volta a passar sacudida e furiosamente as
páginas.
200
- Abre-se onde?
- Entre as páginas.
- Há um buraco. Está dentro da página. Tu não o vês porque não vês nada.
Por um instante ele pensa que ela se dirige ao miúdo. Por um instante
pensa que ela despertou por fim para o admoestar pela sua teimosia. Mas
não, é nele que ela assesta um olhar irado.
201
Capítulo 20
- O que é o valor?
203
- Deixe-o lá. Ele diz que tem pena das coisas velhas.
- As chávenas não têm sentimentos. Se deitares uma chávena fora, ela não
se importa. Não fica magoada.
Se vais ter pena duma chávena velha, já agora podias ter pena de... -
olha em redor, exasperado - do céu, do ar, da terra debaixo dos teus pés.
Já agora, podias ter pena de tudo.
- As coisas não são concebidas para durarem eternamente -diz ele. - Todas
as coisas têm o seu prazo natural. Essa chávena velha teve uma boa vida;
agora está na altura de se reformar e dar lugar a uma chávena nova.
- Não! - diz. - Vou guardá-la! Não vou deixar que a leves! É minha!
- Depende do tipo de dinheiro que tens em mente. As moedas vêm dum sítio
chamado Casa da Moeda.
- E da Casa da Moeda que recebes o teu dinheiro?
204
- Porque a Casa da Moeda não nos dá dinheiro sem mais nem menos. Temos de
trabalhar para o receber. Temos de o ganhar.
- Porquê?
- Porquê?
adaptarmo-nos.
O rapaz abre a boca para responder. Rapidamente, ele leva um dedo aos
lábios.
- Tem de ir? - pergunta Inês. - Não quer ficar a assistir ao jantar dele?
A mesa está posta para uma pessoa, para o pequeno príncipe. Inês
transfere duas diminutas salsichas da frigideira para o prato do rapaz.
No arco à volta delas dispõe as duas metades de uma batata cozida,
rodelas de cenoura e rebentos de couve-flor, em cima das quais verte
molho da frigideira.
205
- Há muito tempo que eu não via salsichas - observa ele para Inês. - Onde
as comprou?
- Por causa daquilo que as salsichas levam. O que as salsichas têm nem
sempre faz bem.
206
Carne.
Sim, mas que tipo de carne?
- Carne de canguru.
- Da retrete?
comem-no. Sem pensar duas vezes. São omnívoros, o que quer dizer que
comem de tudo. Até se comem uns aos outros.
- Ele está a dizer disparates, não lhe ligues, não há cocó nas tuas
salsichas.
- Eu não estou a dizer que haja cocó de verdade nas tuas salsichas - diz
ele. - Mas há carne de cocó nelas. Os porcos são animais pouco limpos. A
carne de porco é carne de cocó. Mas isso é apenas a minha opinião. Nem
toda a gente concordará. Tens de decidir por ti.
- Não quero mais - diz o rapaz, afastando o prato. - O Bolívar pode comer
o resto.
- Não.
207
- Você está doido - diz Inês. Dirige-se ao rapaz. - Não lhe ligues,
endoideceu.
- Conta-me uma fábula. Quero ouvir uma fábula. Conta-me uma fábula dos
três irmãos. Ou dos irmãos do céu.
- Nada. É tudo.
208
- Todos nós temos de ganhar a vida. Isso faz parte da condição humana.
- Porquê?
- Porquê? Porquê? Porquê? Não é assim que nos conduzimos numa conversa
como deve ser. Como é que vais comer se passares todo o tempo a salvar
pessoas, a libertar-te de correntes e recusando-te a trabalhar? Onde é
que vais arranjar a comida para ficares forte?
- À loja.
- Porquê?
- Porquê o quê?
- O que é X?
O rapaz cerra os olhos com força e faz uma careta engraçada. Depois
começa a rir. Agarra-se à saia da mãe, encosta a cara à sua coxa e ri-se
até ficar todo vermelho.
- O que é, meu querido? - pergunta Inês. Mas o rapaz não para de rir.
209
Blanco é uma ave plácida, apática até, que se deixa levar a passear
poisada no pulso estendido do rapaz ou às vezes no seu ombro. Não mostra
inclinação para se afastar muito no seu voo, nem sequer para voar pura e
simplesmente.
- Acho que talvez tenham cortado as asas ao Blanco - diz ele ao rapaz. -
Isso explicaria a razão por que não voa.
210
O rapaz levanta-se.
- Lê - diz.
- Estou a ter dificuldade. É espanhol? O rapaz diz que sim com a cabeça.
- Ah, sim? Dantes o teu melhor amigo era o Fidel, e antes dele El Rey
- O que foi que aconteceu para o Fidel já não ser teu amigo e o seu lugar
ter sido ocupado por uma ave?
- Nunca vi o Fidel ser bruto. Foi a Inês que te disse que ele era bruto?
O rapaz faz festas à ave que tem no braço. A reprimenda é aceite sem
objeção. Ou talvez ele deixe simplesmente as palavras passarem-lhe por
cima.
- Além disso, acho que devias informar a Inês de que está na altura de
ires para a escola. Devias insistir nisso.
- Eu sei lê-la.
- Sabes lê-la porque foste tu que a escreveste. Mas o que interessa nas
mensagens é que as outras pessoas têm de conseguir lê-las. Se te perderes
e mandares uma mensagem ao señor Paloma para ele te ir salvar, ele tem de
conseguir ler a tua mensagem.
211
- Mas elas não estão juntas, as estrelas gémeas, não estão realmente
juntas.
212
Mostra-me.
- As gémeas do céu são como os gémeos da terra. Também são como números.
- Será tudo isto demasiado difícil para uma criança? Talvez. Mas o rapaz
há-de absorver as suas palavras, ele tem de ter essa esperança, há de
absorvê-las e meditar sobre elas e começar talvez a ver o sentido que
têm. - É como Um e Dois. Um e Dois não são a mesma coisa, há uma
diferença entre eles que é um intervalo mas não uma racha.
É isso que torna possível que contemos, que cheguemos de Um a Dois sem
receio de cair.
- Não brilha.
213
- Muito de perto não há nada que brilhe. Ao longe, porém, tudo brilha. Tu
brilhas. Eu brilho. As estrelas brilham, com certeza.
- Não. Eu disse que as gémeas eram como os números, mas foi apenas uma
maneira de falar. Não, as estrelas não são números. Estrelas e números
são coisas muito diferentes.
- Não, palerma, o que eu disse é que cada estrela é um número. Ele abana
a cabeça.
- Podem morrer. Os números podem morrer. O que é que lhes acontece quando
morrem?
- Isso não é verdade. As estrelas não podem cair do céu. As que parecem
cair, as estrelas cadentes, não são verdadeiras estrelas. Quanto aos
números, se um número caísse das fileiras, haveria uma racha, uma quebra,
e não é assim que os números funcionam. Nunca falta nenhum número.
214
- Dom Quixote não caiu por uma racha. Desceu a uma cova, servindo-se de
uma escada feita de corda. Seja como for, Dom Quixote é irrelevante. Ele
não é verdadeiro.
- É, pois! É um herói!
- Desculpa. Eu não queria dizer o que disse. Claro que Dom Quixote é um
herói e claro que é verdadeiro. O que eu quis dizer é que aquilo que lhe
aconteceu já não acontece às pessoas. As pessoas vivem as suas vidas do
princípio ao fim sem caírem em rachas.
- Caem, pois. Caem em rachas e nunca mais as podemos ver porque elas não
conseguem sair. Tu próprio o disseste.
215
Capítulo 21
- Sabes uma coisa, Simón? - grita. - Vimos o señor Daga! Ele tem uma
caneta mágica! Mostrou-me!
- Ele não é meu amigo. Nunca troquei sequer uma palavra com ele.
- Tem uma caneta mágica - diz o rapaz. - Tem uma senhora lá dentro, e a
pessoa julga que é um boneco, mas não é, é uma senhora de verdade, uma
senhora muito pequenina, e quando se vira a caneta ao contrário cai-lhe a
roupa e ela fica nua.
217
- Disse que não tinha culpa de que o Álvaro tivesse cortado a mão. Disse
que foi o Álvaro que começou. Disse que a culpa foi do Álvaro.
-Não.
- Tu disseste que são sempre os outros que têm culpa. A culpa é do señor
Daga?
Uns dias mais tarde, ao sair do porão de um navio nas docas, fica
admirado ao ver Inês em pessoa no cais, em grande conversa com Álvaro.
Sente um baque no coração. Ela nunca tinha estado nas docas: só pode ser
uma notícia má.
218
O rapaz desapareceu, diz Inês, roubado pelo señor Daga. Ela chamou a
polícia mas ela não vai ajudar. Ninguém vai ajudar. Álvaro tem de vir;
ele, Simón, tem de vir. Têm de localizar Daga (não há de ser difícil, ele
trabalha com eles) e devolver-lhe o miúdo.
As mulheres são uma visão rara nas docas. Os homens olham com curiosidade
para a mulher enlouquecida, de cabelo desgrenhado e roupa citadina.
Aos poucos ele e Álvaro conseguem que ela lhes conte a história. Na
Asistencia havia uma comprida fila, o rapaz estava irrequieto e por acaso
estava lá o señor Daga, que se ofereceu para comprar um gelado ao rapaz e
quando ela voltou a olhar eles já lá não estavam, como se tivessem
desaparecido da face da terra.
- Um rapaz que está a crescer precisa dum homem na sua vida. Não pode
estar todo o tempo com a mãe. E eu pensava que ele era boa pessoa. Pensei
que ele era sincero. O David fica fascinado com o brinco que ele tem.
Quer também ter um.
- Disse-lhe que ele pode usar um brinco quando for mais velho, mas por
enquanto não.
- E o seu papel nisto? - pergunta ele, quando ficam sós. - Como pode ter
confiado a sua criança àquele homem? Há alguma coisa que me esteja a
omitir? E possível que você também o ache fascinante, com o seu brinco
dourado e as suas senhoras nuas nas canetas?
219
- Ele disse-me... - diz. - Ele disse que me daria uma criança. Não me
disse... não me disse que levaria a minha criança. - De repente põe-se a
soluçar desamparadamente. - Ele não me disse... Não me disse...
Ele disse que me daria uma criança. Ele sente a cabeça andar à roda.
- Venha daí - diz ele. - Vamos para um sítio onde possamos falar à
vontade. - Condu-la até à parte de trás do barracão.
- O que é que acha que ele queria dizer? - responde ela, com uma
expressão de dureza na voz.
Meia hora mais tarde ele está no Centro de Realojamento.
- Conhece um homem chamado Daga? Dos seus trinta anos, magro, com um
brinco. Trabalhou episodicamente nas docas.
220
- O nome dele é Emilio Daga. Toda a gente o conhece. Mora nos Blocos da
Cidade. Pelo menos é onde está registado.
Ela retira-se para a fiada de ficheiros e volta com uma morada num papel.
- Da próxima vez que cá vier - diz ela -, diga-me como localizou a mãe
dele. Gostava de saber, se tiver tempo.
- Estou à procura duma pessoa chamada Emilio Daga - diz ele. - Mora aqui?
- Anda ver, Simón! É o Rato Mickey! Tem um cão chamado Plato e está a
guiar um comboio e os índios estão a disparar setas contra ele. Anda
depressa!
- E o Plato?
- Que disparate! Toda a gente tem mãe. Toda a gente tem pai.
222
- Anda cá - diz Daga. O rapaz corre para ele, que o empoleira no joelho.
O rapaz aninha-se contra o seu peito, metendo o dedo na boca. - Queres
ficar comigo? - O rapaz diz que sim com a cabeça. - Queres viver comigo e
com a Frannie, só nós os três? -O rapaz volta a fazer um aceno
afirmativo. - Por ti está bem, querida?... O David vir viver connosco?
- Ele não é competente para escolher - diz ele, Simón. - Ainda é uma
criança.
- Tem razão. Ainda é uma criança. É aos pais que cabe decidir. Mas, como
ouviu, ele não tem pais. Então o que é que fazemos?
- O David tem uma mãe que o ama tanto como qualquer mãe do mundo. Quanto
a mim, posso não ser pai dele, mas preocupo-me com ele. Preocupo-me com
ele e gosto dele e tomo conta dele. Ele vem comigo.
Daga ouve este pequeno discurso em silêncio e depois, para sua surpresa,
endereça-lhe um sorriso, um sorriso bastante atraente, mostrando os
dentes perfeitos.
- Está bem - diz. - Leve-o de volta à senhora sua mãe. Diga-lhe que ele
se divertiu. Diga-lhe que comigo ele está sempre em segurança. Sentes-te
em segurança comigo, não sentes, meu jovem?
- Muito bem, então talvez esteja na altura de ires com o senhor teu
tutor. - Levanta o rapaz do colo. - Volta em breve. Prometes? Vem ver o
Mickey.
223
Capítulo 22
- Temos de falar alguma língua, meu rapaz, a menos que queiramos ladrar e
uivar como os animais. E se vamos falar alguma língua, é melhor que
falemos todos a mesma. Não achas isso razoável?
- Pode ser que sim, mas para mim não quer dizer nada. A língua tem de
querer dizer alguma coisa tanto para mim como para ti, caso contrário não
conta como língua.
Num gesto que deve ter ido buscar a Inês, o rapaz sacode a cabeça
desdenhosamente.
225
- Nem pouco mais ou menos. Não fazes ideia daquilo que eu estou a pensar.
Agora presta atenção. Vou dizer uma coisa sobre a língua, uma coisa
séria, uma coisa que quero que leves a peito.
acatá-la, mas acatá-la com convicção, e não como uma mula que teima. Com
boa intenção e boa vontade. Se recusares, se continuares a ser malcriado
em relação ao espanhol e insistires em falar a tua própria língua, hás de
dar contigo a viver num mundo privado. Não terás amigos. Serás segregado.
- O que é segregado?
226
- E o señor Daga.
- O señor Daga não é teu amigo. O señor Daga está a tentar fazer-te cair
em tentação.
- O que é tentação?
- Ardeu-me na garganta. Ele diz que é remédio para quando a pessoa está
com a neura.
- Traz.
- Por favor nunca mais voltes a beber nada da garrafinha do señor Daga,
David. Pode ser remédio para gente crescida, mas não é bom para as
crianças.
Não faço ideia de como hei de fazer com que o rapaz tenha juízo. Ela
também está enfeitiçada pelo homem.
- Que outra coisa esperas tu? Vê as coisas do ponto de vista dela. Ela
está numa idade em que uma mulher, que nunca teve filhos propriamente
seus, começa a sentir-se ansiosa. E uma questão de biologia. Está num
estado recetivo, biologicamente falando. Admira-me que não sintas isso.
- Tu pensas de mais. Isto não tem nada que ver com o pensamento.
- Não vejo porque é que a Inês havia de querer outro filho, Elena. Tem o
rapaz. Ele surgiu-lhe como um presente, caído do céu, um presente puro e
simples. Um presente assim devia ser suficiente para qualquer mulher.
- Sim, mas não é seu filho natural. Ela nunca se esquecerá disso. Se não
fizeres nada a esse respeito, um dia destes o jovem David vai ter o señor
Daga como padrasto, e a seguir uma ninhada de pequenos meios-irmãos Daga.
Ou, se não for o Daga, há de ser outro homem qualquer.
- Que queres dizer com isso: se eu não fizer nada a esse respeito?
- Eu? Não me passaria pela cabeça. Não sou do género pai. Fui feito para
ser tio, e não pai. Além disso, a Inês não gosta de homens; pelo menos é
a impressão que me dá. Não gosta do espalhafato, da rudeza e dos pelos
dos homens. Não me espantaria que ela tentasse evitar que o David se faça
homem.
- Ser pai não é nenhuma carreira, Simón. Nem é nenhum destino metafísico.
Não precisas de gostar da mulher, nem ela precisa de gostar de ti. Tens
relações com ela e pronto, nove meses mais tarde és pai. É bastante
simples. Qualquer homem o pode fazer.
- Não pode nada. A paternidade não é só uma questão de ter relações com
uma mulher, tal como a maternidade não é só uma questão de fornecer um
recetáculo para a semente masculina.
228
- Basta, Elena. Podemos mudar de assunto? O David disse-me que noutro dia
o Fidel lhe atirou uma pedra. O que se passa?
- Não foi uma pedra, foi um berlinde. É o que o David tem a esperar se a
mãe não o deixa confraternizar com outras crianças, se ela o encoraja a
imaginar-se um ser superior qualquer. Há de haver outras crianças a
unir-se contra ele. Eu falei com o Fidel e repreendi-o, mas isso não vai
ter nenhum efeito.
- Eles dantes eram muito amigos.
- Eram muito amigos antes de teres metido a Inês ao barulho, com as suas
ideias peculiares sobre a educação das crianças. Essa é outra razão pela
qual deves marcar a tua posição naquela casa.
Ele suspira.
- Não é nada contigo. - E para Inês: - Por favor, podemos ir até lá fora,
só por um minuto?
- Isto não tem nada que ver com o señor Daga. É uma coisa privada entre
mim e a tua mãe.
229
Ela não fala. Fica ali postada como uma coisa esculpida na madeira, de
braços caídos ao longo do corpo, aguardando que ele a largue. Ele afrouxa
o aperto e ela afasta-se aos tropeções.
- Inês! Simón! Venham! O señor Daga está aqui! O señor Daga está aqui!
230
O señor Daga não veio sozinho. Com ele está a bonita namorada, envergando
um vestido branco com folhos de um vermelho chocante e uns pesados
brincos com a forma de rodelas que oscilam quando se mexe. Inês
cumprimenta-a com gélida reserva. Quanto a Daga, parece perfeitamente
descontraído no apartamento, reclinando-se na cama e nada fazendo para
pôr a rapariga à vontade.
- Eu sei dançar! Não sou nada muito novo! Eu mostro-te. -E rodopia pelo
soalho, pisando levemente e com alguma graciosidade com os seus macios
sapatos azuis. - Olhem! Estão a ver?
- Não vamos dançar - diz Inês com firmeza. - O Diego vem buscar-nos e
vamos com ele para La Residência.
- O senor Daga já tem as suas combinações. Não podes esperar que ele
largue as suas combinações e venha connosco. - Fala como se Daga não
estivesse na sala. - Além disso, como estás farto de saber, em La
Residência não são autorizadas visitas.
Nessa altura aparece Diego, e o outro irmão também, o tal que nunca abre
a boca. Inês fala-lhes com alívio.
231
- Não! - diz o rapaz. - Não quero ir. Quero fazer uma festa. Podemos
fazer uma festa?
- Não há tempo para festas e eu não tenho nada para oferecer aos nossos
hóspedes.
- Eu! - diz Diego; e «Eu», diz o irmão silencioso. Estão a rir, ambos, da
atrapalhação da irmã. O señor Daga faz coro com eles: «E eu!»
Vai até Inês. Franzindo o sobrolho, ela faz um gesto para rejeitar o
copo.
- Tens de beber! - ordena o rapaz. - Esta noite sou o rei e ordeno que
tens de beber!
232
- Não! - torna o rapaz. - Não é nada tarde! Quero jogar um jogo. Quero
jogar ao Quem Sou Eu.
- Como nós jogávamos nos velhos tempos - diz Daga -, quando a pessoa
adivinha tem de contar um segredo, o segredo mais bem guardado.
- Eu faço uma pergunta e vocês têm de responder e não podem mentir, têm
de dizer a verdade. Se não disserem a verdade têm de ter um castigo. Está
bem? Começo eu. Diego, tens o rabo lavado?
233
- Sem perguntas grosseiras - concorda o rapaz. - É novamente a minha vez.
A minha pergunta vai - olha à volta da sala, passando de um rosto a outro
-, a minha pergunta vai para... a Inês! Inês, de quem é que gostas mais
no mundo?
- Não, eu não! De que homem é que gostas mais no mundo para fazer um bebé
na tua barriga?
- Porquê?
- Vamos - diz.
- A Inês não quer nada com homens - diz Diego. - Pronto, aí tens a tua
resposta. Ela não quer nenhum de nós. Quer ser livre. Agora vamos.
234
- Mas eu quero um irmão! Não quero ser filho único! É uma maçada!
- Se realmente queres um irmão, vai tu à procura dum. Começa pelo Fidel.
Toma o Fidel como irmão. Os irmãos não têm de vir do mesmo ventre. Funda
a tua própria irmandade.
- Basta por hoje, David, vai buscar o pijama. Já fizeste o Diego esperar
que chegasse. Pensa num bom nome para a tua irmandade. Depois, quando
voltares de La Residência, podes convidar o Fidel para ser o teu primeiro
irmão. - Volta-se para Inês. - Concorda? Aprova?
235
Capítulo 23
A carroça está parada no cais, vazia, pronta para ser carregada, mas o
lugar de El Rey foi ocupado por um cavalo que eles nunca tinham visto, um
animal castrado preto com uma marca branca na testa. Quando o rapaz se
aproxima de mais, o novo cavalo rola nervosamente os olhos nas órbitas e
dá patadas no solo.
- O nome dele é El Rey - diz o rapaz. - Não é uma égua. Podemos ir vê-lo?
- Agora não, meu rapaz. Vamos falar primeiro com a Inês. Depois, talvez
amanhã possamos os três fazer uma viagem ao estábulo.
237
- Ele não quer visitas - volve o rapaz. - Quer-me a mim. Eu sou amigo
dele.
- Podemos ir lá?
- A quinta dos cavalos fica na província, não sei bem onde. Vou-me
informar.
238
- Coitadinho do El Reyl - murmura. Repara então no sangue que coagulou na
orelha do cavalo e no escuro buraco de bala por cima e cala-se.
- Não faz mal - diz o rapaz. - Ele vai ficar bom daqui a três dias.
- Foi El Rey.
- Foi o próprio El Rey que te disse isso: três dias? O rapaz acena
afirmativamente.
- Mas não é só gripe dos cavalos, meu rapaz. Tu bem vês, com certeza. Foi
abatido a tiro, para o poupar. Devia estar a sofrer. Estava a sofrer e
decidiram ajudá-lo, aliviar-lhe a dor. Ele não vai melhorar. Está morto.
- Não está nada. - As lágrimas rolam pelas faces do rapaz. - Vai para a
quinta dos cavalos para ficar melhor. Foste tu que o disseste.
- Vai para a quinta dos cavalos, sim, mas não para a quinta dos cavalos
daqui; vai para outra quinta dos cavalos, noutro mundo. Num sítio onde
não vai ter de usar arreios nem puxar uma carroça pesada e pode andar a
passear pelos campos ao sol a comer ranúnculos.
- Não é verdade! Ele vai para a quinta dos cavalos para se pôr bom. Vão
pô-lo na carroça e levá-lo para a quinta dos cavalos.
- Vou salvá-lo! - soluça. - Quero que ele viva! Ele é meu amigo! Ele
obriga o rapaz que se debate a ficar quieto e aperta-o com
força.
- Minha querida criança, às vezes aqueles que amamos morrem e nós não
podemos fazer nada a não ser esperar pelo dia em que todos nos voltaremos
a encontrar.
239
- Isso não resulta. Não tenho o tipo de sopro certo. Não tenho o sopro da
vida. A única coisa que posso fazer é ficar triste. A única coisa que
posso fazer é chorá-lo e ajudar-te a chorá-lo. Agora depressa, antes que
escureça, porque é que não vamos até ao rio procurar umas flores para pôr
em El Rey? Ele há de gostar. Era um cavalo meigo, não era, apesar de ser
um gigante? Há de gostar de chegar à quinta dos cavalos com uma grinalda
de flores à volta do pescoço.
- Pronto - diz ele. - Agora temos de deixar El Rey. Ele tem uma longa
viagem a fazer, até à grande quinta dos cavalos. Quando chegar, os outros
cavalos olharão para ele com a sua coroa de flores e dirão uns aos
outros: «Ele deve ter sido um rei, do sítio donde veio! Deve ser o grande
El Rey de que ouvimos falar, o amigo do David!»
O rapaz dá-lhe a mão. À luz da lua cheia que se ergue no céu, percorrem
pesadamente o caminho de volta às docas.
240
Capítulo 24
Como o rapaz não tem amigos, nem sequer um amigo cavalo, não faz sentido
fazer-lhe uma festa de aniversário. Não obstante, ele e Inês combinaram
que o dia devia ser adequadamente comemorado. Assim, Inês faz um bolo,
cobre-o e enfia-lhe seis velas e ambos lhe compram presentes em segredo,
ela uma camisola (o inverno está à porta) e ele um ábaco (está preocupado
com a resistência do rapaz à ciência dos números).
A comemoração do aniversário é ofuscada por uma carta que chega pelo
correio, a recordá-lo de que, a partir dos seis anos, David deve ser
matriculado no sistema de educação pública, sendo a responsabilidade da
matrícula do(s) pai(s) ou tutor(es).
241
Até agora Inês encorajou o rapaz a crer que é demasiado esperto para
precisar de escolaridade, que pode receber em casa o pouco acompanhamento
de que possa necessitar. Mas a sua obstinação com o Dom Quixote, os seus
protestos de que sabe ler, escrever e contar, quando manifestamente não o
sabe, até no espírito dela semearam dúvidas. Talvez fosse melhor, admite
agora, ele ter a orientação de um professor diplomado. Por conseguinte
compram-lhe um terceiro presente conjunto, um estojo de couro vermelho
com a inicial D gravada a dourado a um canto, contendo dois lápis novos,
um apara-lápis e uma borracha. Oferecem-lho, juntamente com o ábaco e a
camisola, no dia dos anos. O estojo, dizem-lhe, é o seu presente
surpresa, a acompanhar a feliz e surpreendente notícia de que em breve,
talvez já na próxima semana, ele vai para a escola.
Além disso, a escola deve ter a sua própria biblioteca, com o seu próprio
exemplar do livro. Mas o rapaz não quer saber disso para nada.
Como querem que ir para a escola pareça fazer parte de uma vida normal,
eles combinam não pressionar o rapaz para lhes contar coisas das aulas; e
ele, por seu turno, mantém-se silencioso, o que é invulgar nele.
242
- O meu filho não tem pai - responde Inês. - Eu peço ao tio para ir
também. O tio interessa-se por ele.
- Temos pouco tempo - diz o senor León -, e portanto vou falar com
franqueza. Acho que o David é um rapaz inteligente, muito inteligente. É
esperto; apreende imediatamente novas ideias. Contudo, está a ter
dificuldade em adaptar-se às realidades das aulas. Está sempre à espera
de levar a sua avante. Talvez seja por ser um pouco mais velho que a
média da aula.
243
O señor León faz uma pausa, encosta os dedos de uma mão aos dedos da
outra, ponta com ponta, e aguarda a resposta deles.
- Com seis anos não é novo para andar na escola - torna o señor León. -
Pelo contrário.
- O David não fica sentado no seu lugar? Não escuta o que o senhor diz?
244
- Mas ele tem amor aos livros. O senhor deve ter visto isso. Anda com o
Dom Quixote para onde quer que vá.
- Um défice?
- Ele consegue recitar todo o tipo de números, sim, mas não pela ordem
correta. Quanto às marcas que faz com o lápis, podem chamar-lhes escrita,
e ele pode chamar-lhes escrita, mas não é escrita tal como geralmente se
entende. Se têm ou não algum significado privado, não sei avaliar. Talvez
tenham. Talvez indiciem um talento artístico. O que seria uma segunda
razão, mais positiva, para ele ser visto por um especialista. O David é
uma criança interessante. Seria uma pena perdê-lo. Um especialista talvez
seja capaz de nos dizer se há algum fator subjacente ao défice, por um
lado, e à inventividade, por outro.
245
- Fidel, querido, fala-nos do señor León. Parece que o David e ele não se
entendem e o Simón está preocupado.
- Não sei. O David diz coisas malucas. Talvez o señor León não goste
disso.
- Não sei... Diz coisas malucas no recreio. Toda a gente acha que ele é
maluco, até os rapazes crescidos.
- Vulcões?
- Não são vulcões grandes, são vulcões pequenos. Que ninguém consegue
ver.
246
- Há muito tempo que ele anda a dizer isso. Disse-me que tu e ele um dia
vão atuar no circo. Ele vai fazer truques de magia e tu vais ser palhaço.
- O Fidel vai ser músico, nem mágico nem palhaço - declara Elena. -
Disseste ao David que ias ser palhaço, Fidel?
247
- A senhora usa o termo verdadeiro - diz ele. - Diz que nós não somos a
verdadeira mãe e o verdadeiro pai. O que quer dizer ao certo com a
palavra verdadeiro? Não se trata com certeza de nenhuma sobrevalorização
do fator biológico.
- Mas ele tem uma âncora - diz Inês. - Eu sou a âncora dele. Eu amo-o.
Amo-o mais que ao mundo. E ele sabe-o.
248
- Referi a dislexia como uma possibilidade. Não fiz testes nesse sentido.
Mas se ela estiver de facto presente, a minha impressão é que se trata
apenas de um fator contributivo. Não, para responder à sua pergunta
principal, eu diria que aquilo que há de especial no David é que ele se
sente especial, anormal, até. Claro que ele não é anormal. Quanto a ser
especial, ponhamos de lado essa questão de momento. Em lugar disso,
façamos todos um esforço por ver o mundo através dos seus olhos, sem lhe
impor a nossa maneira de ver o mundo. O David quer saber quem é
verdadeiramente, mas quando o pergunta recebe respostas evasivas como: «O
que queres tu dizer com verdadeiro?», ou: «Nós não temos história, nenhum
de nós, foi toda limpa.» Podem censurá-lo se ele se sente frustrado e
rebelde e a seguir se refugia num mundo privado onde é livre de inventar
as suas próprias respostas?
- Está a dizer-nos que as páginas ilegíveis que ele escreve para o señor
León são histórias sobre o lugar de onde ele vem?
- Sim e não. São histórias para si próprio, e não para nós. É por isso
que ele as escreve numa escrita privada.
249
- Ele diz que tinha uma carta com ele quando chegou no barco.
- Insubordinação? - Ele espera que Inês junte a sua voz à dele, mas não,
ela deixa que seja ele a falar. - Em casa, señora, o David é sempre
educado e bem-comportado. Custa-me crer nesses relatórios do señor León.
O quer ele dizer exatamente com insubordinação?
250
251
- E se nós recusarmos?
- Gostaria que não o pusesse nesses termos, señor. Pode crer no que lhe
digo, Punto Arenas é a melhor opção que se coloca.
Se o señor e a señora Inês quiserem visitar previamente Punto Arenas,
posso providenciar nesse sentido, a fim de que possam ver com os vossos
próprios olhos que se trata de uma instituição de primeira classe.
- Por favor não encare as coisas dessa maneira. Não estamos a tirar-lhes
o miúdo. Os senhores vê-lo-ão regularmente, de quinze em quinze dias. A
vossa casa continuará a ser a casa dele. Em todos os aspetos práticos
continuarão a ser os pais dele, a menos que ele decida que quer ser
separado de vós. O que ele não dá a entender de modo algum. Pelo
contrário, gosta imenso de vós ambos: gosta de vós e tem-vos afeição.
- E entretanto?
- Entretanto, sugiro que o David volte para vossa casa. Não lhe está a
fazer bem nenhum estar na aula do señor León e também não está a fazer
bem nenhum aos colegas.
252
Capítulo 25
- Porque é que vamos para casa mais cedo? Estão no autocarro, os três, de
regresso aos Blocos.
- Porque foi tudo um erro - diz Inês. - Eles são crescidos de mais para
ti, aqueles rapazes da tua aula. E aquele professor, aquele señor León,
não sabe ensinar.
Inês cala-se.
- Amanhã volto para a escola?
- Não.
- Para ser explícito - intervém ele -, não vais voltar para a escola do
señor León. A tua mãe e eu vamos falar duma escola diferente para ti.
Possivelmente.
- Não vamos falar de mais escola nenhuma - afirma Inês. - A escola foi
uma ideia triste desde o princípio. Não sei porque foi que o permiti.
- É não conseguir ler as palavras pela ordem correta. Não conseguir ler
da esquerda para a direita. Qualquer coisa assim. Não sei.
- Eu não tenho dislexia - diz o rapaz. - Não tenho nada. Vão mandar-me
para Punto Arenas? Eu não quero ir.
253
- Não, claro que não. É apenas uma maneira de falar. Tu não vais para
Punto Arenas.
- E o meu estojo.
- Querem mandar-me para Punto Arenas por causa das minhas histórias?
- Tu podes ensinar-me.
254
- Porque também ele está demasiado cheio da sua importância - diz Inês.
- O señor León gosta de ti, sim senhor - intervém ele. - Só que tem uma
aula inteira para ensinar e não tem tempo para te dar atenção
individualizada. Ele espera que as crianças de vez em quando trabalhem
por si sós.
- Sim, mas não podes passar todo o tempo a brincar. A altura de brincar é
depois de terminares o trabalho diário. Quando chegas às aulas, de manhã,
o señor León espera que tenhas trabalhado. É perfeitamente razoável.
- Ele não pode não gostar das tuas histórias, visto que não as pode ler.
De que espécie de histórias é que ele gosta?
255
- E amanhã?
- Amanhã vais aprender a ler, escrever e contar como uma pessoa normal.
A señora Otxoa propôs-nos que o nosso filho David fosse transferido para
a escola especial de Punto Arenas.
Agradecemos-lhe os esforços que fez por ele. Juntamos uma cópia da carta
que enviámos ao diretor notificando-o de que o vamos tirar da escola.
256
- Sou a mãe do David e sou eu e mais ninguém quem decide como ele é
educado - replica Inês, e desliga o telefone.
- Pense bem, por favor, Inês. Se fizer isso, tornar-se-á uma fugitiva.
257
- Muito bem. Mas como é que eu sei que não aprendeste esse trecho de cor?
- Escolhe uma passagem ao acaso. - Lê.
- Imaginária. Continua.
- Isto não são coisas cuja averiguação se possa levar até ao fim. Nem eu
gerei ou dei à luz a minha senhora. O que é gerei?
- Dom Quixote está a dizer que não é pai nem mãe de Dulcineia. Gerar é o
que o pai faz para ajudar a fazer o bebé. Continua.
- Nem eu gerei ou dei à luz a minha senhora, mas venero-a como se deve
venerar uma dama que tem virtudes que a tornam famosa entre todas as do
mundo. O que é venerar?
- Sei.
- Eu não me esqueci.
258
- Eu não quero uma bicicleta. Numa bicicleta não se pode salvar pessoas.
- Bem, não vais ter nenhum cavalo, portanto não se fala mais nisso.
Escreve: «Deus sabe se existe ou não Dulcineia no mundo.» Mostra.
- Deus sabe é uma expressão. É uma maneira de dizer que ninguém sabe.
- Não mudes de assunto. Deus e ninguém não é a mesma coisa, mas Deus mora
demasiado longe de nós para que conversemos com ele ou tenhamos contactos
com ele. Agora se ele repara em nós, Dios sabe. O que é que vamos dizer à
señora Otxoa? O que é que vamos dizer ao señor León?
259
Como é que lhes vamos explicar que tu estavas a fazer-te de tolo com
eles, que sempre soubeste ler e escrever? Inês, venha cá! O David tem uma
coisa para lhe mostrar.
- Não importa. É uma mulher por quem Dom Quixote está apaixonado. Não é
uma mulher real. É um ideal. Uma ideia na cabeça dele. Veja como ele fez
bem as letras. Sempre sabia escrever.
- Claro que sabe escrever. Ele sabe fazer tudo... Não sabes, David? Sabes
fazer tudo. És o menino da tua mamã.
bem-aventurança.
- Vamos voltar à escola - anuncia ele ao rapaz -, tu, a Inês e eu. Vamos
levar o Dom Quixote connosco, para mostrar ao señor León que sabes ler.
Depois de fazermos isso, vais dizer-lhe que pedes muita desculpa por ter
causado todo este estardalhaço.
- Eu não vou voltar para a escola. Não preciso. Já sei ler e escrever.
260
- Tu não és casado.
- Sim, mas eu sou um caso especial. Sou velho de mais para me casar.
- Eu tenho uma relação especial com a tua mãe, David, que tu és novo de
mais para perceber. Não vou dizer mais nada sobre isso a não ser que não
é uma relação para casar.
- Porquê?
- Porque dentro de cada um de nós há uma voz, por vezes chamada a voz do
coração, que nos diz que género de sentimento temos por uma pessoa. E o
tipo de sentimento que eu tenho pela Inês é mais boa vontade do que amor,
o género de amor de casar.
- É isso que te preocupa? Não, duvido que o senor Daga queira casar-se
com a tua mãe. O señor Daga não é da raça de casar. Além disso, já tem
uma namorada perfeitamente satisfatória.
- O señor Daga diz que ele e a Frannie fazem fogo de artifício. Diz que
fazem fogo de artifício ao luar. Diz que eu posso lá ir ver. Posso?
- Não podes, não. Quando o señor Daga fala em fogo de artifício não quer
dizer fogo de artifício de verdade.
- Quer, pois! Ele tem uma gaveta cheia de fogo de artifício. Diz que a
Inês tem uns seios perfeitos. Diz que são os seios mais perfeitos do
mundo. Diz que se vai casar com ela por causa dos seios e que vão fazer
bebés.
- Ah, ele diz isso? Pois bem, a Inês há de ter ideias próprias sobre o
assunto.
- Porque é que não queres que o señor Daga se case com a Inês?
261
- Porque se a tua mãe quisesse realmente casar-se podia arranjar melhor
marido.
- Quem?
- Quem? Não sei. Não conheço todos os homens que a tua mãe conhece. Ela
deve conhecer uma porção de homens em La Residência.
- Ela não gosta dos homens de La Residência. Diz que são velhos de mais.
Para que é que servem os seios?
- As mulheres têm seios para poderem dar leite aos seus bebés.
- Há leite dentro dos seios da Inês? Eu também vou ter leite nos seios
quando for crescido?
- Eu também quero ter leite! Porque é que não posso ter leite?
- Não. Tens de esperar até seres mais velho, até teres mais sangue no
corpo. Agora há outra coisa que tenho andado para te perguntar. O facto
de não teres pai, como as outras crianças, de me teres só a mim,
dificulta-te as coisas na escola?
- Não.
262
- Ainda bem. Porque, sabes, os pais não são muito importantes, comparados
com as mães. Uma mãe traz-nos do seu corpo ao mundo. Dá-nos leite, como
disse. Dá-nos colo e protege-nos. Ao passo que um pai pode muitas vezes
ser mais ou menos errante, como Dom Quixote, não estar sempre presente
quando precisamos dele. Ajuda a fazer-nos, logo ao princípio, mas depois
segue o seu caminho. Quando a pessoa vem ao mundo já ele pode ter
desaparecido no horizonte em busca de novas aventuras. É por isso que
temos padrinhos, bons padrinhos, velhos e estáveis, e tios. Para que
quando o pai está fora haja alguém a ocupar o seu lugar, alguém a quem
recorrer.
- Não sei. Dios sabe. Estava provavelmente na carta que tu trazias, mas a
carta perdeu-se, comida pelos peixes, e não é por derramar lágrimas que
ela voltará. Como disse, acontece muitas vezes não sabermos quem é o
nosso pai. Nem sequer a mãe o sabe sempre com certeza. Ora bem: estás
pronto para ir falar com o señor León? Pronto para lhe mostrares como és
esperto?
263
Capítulo 26
- Leio onde?
- Lê o princípio.
- Juan e Maria vão ao mar. Hoje Juan e Maria vão ao mar. O pai diz-lhes
que os seus amigos Pablo e Ramona podem ir com eles. Juan e Maria ficam
entusiasmados. A mãe faz sanduíches para a viagem. Juan...
265
- Ele passou uma porção de tempo com o Dom Quixote - intervém ele, Simón.
- É fácil.
- Muito bem, se ler é assim tão fácil, diz-me o que é que estiveste a
ler. Conta-me uma história do Dom Quixote.
- Ele cai num buraco no chão e ninguém sabe onde ele está.
- Sim?
- E que mais?
- Não. Fazem-no porque Dom Quixote é uma pessoa que não existe. Porque
Dom Quixote é um nome inventado. Querem levá-lo para casa a fim de que
ele recupere o juízo.
- O David tem a sua própria leitura do livro - diz ele ao señor León. -
Tem uma imaginação muito fértil.
- Juan e Pablo vão à pesca - diz ele. - O Juan pesca cinco peixes.
Escreve isso no quadro: cinco. O Pablo pesca três peixes. Escreve isso
por baixo do cinco: três. Quantos peixes pescam ao todo, o Juan e o
Pablo?
266
- Conta. Conta um-dois-três-quatro-cinco. Agora conta mais três. Quanto é
que isso te dá?
- Não consegues ver o quê? Não precisas de ver peixes, só precisas de ver
os números. Olha para os números. Cinco e depois mais três. Quanto é?
- Desta vez... desta vez... - diz o rapaz com a mesma voz sumida,
inanimada - são... oito.
- Muito bem. Traça uma linha por baixo do três e escreve oito. Portanto
andaste a fingir quando dizias que não sabias contar. Agora mostra-nos
como escreves. Escreve: Conviene que yo diga la verdad, convém que eu
diga a verdade. Escreve. Conviene.
- Está a ver? - diz o señor León, voltando-se para Inês. - Era com isto
que eu tinha de lidar dia após dia quando o vosso filho estava na minha
aula. Eu digo que só pode haver uma autoridade na aula, não pode haver
duas. Discordam disto?
- Ele é uma criança excecional - diz Inês. - Que espécie de escola dirige
o senhor se não é capaz de lidar com uma única criança excecional?
- Só por cima do meu cadáver é que ele vai para Punto Arenas -diz. -
Anda, meu querido!
267
- Eu sei que o señor León às vezes é muito severo - diz - e tu e ele nem
sempre se entenderam bem. Estou a tentar perceber porquê. O señor León
alguma vez te disse qualquer coisa desagradável que tu não nos tenhas
contado?
- Não.
sente-se melindrado com isso. Mas não se faz das pessoas inimigos só
porque têm olhos de vidro.
268
- Porque é que ele diz que não há nenhum Dom Quixote? Há um Dom Quixote.
Vem no livro. Ele salva pessoas.
- O que é o caos?
- Já te disse noutro dia. O caos é quando não há ordem nem leis a que as
pessoas se agarrem. O caos é apenas as coisas a girar por aí. Não o
consigo descrever melhor.
Fala com a maior seriedade que pode e o rapaz parece ouvir aquilo.
269
- A Inês é tua mãe. É uma verdadeira mãe para ti. É a tua verdadeira mãe.
- Eu não quero ir para Punto Arenas. Promete que não deixas que me levem.
- Prometo. A tua mãe e eu não vamos permitir que ninguém te mande para
Punto Arenas. Já viste a fera que a tua mãe é quando se trata de te
defender. Ninguém lhe passa por cima.
- O pai faleceu?
- O pai é incógnito.
- Com qual dos senhores ele vive?
- O rapaz vive com a mãe. A mãe e eu não vivemos juntos. Não temos uma
relação conjugal. Não obstante, somos os três uma família. Mais ou menos.
Temos ambos afeto pelo David. Eu vejo-o todos os dias, quase.
270
- Está.
- Señor León, pode explicar por que razão pensa que é necessária essa
mudança? Parece-me uma medida muito severa, mandar uma criança de seis
anos para Punto Arenas.
Ou melhor, fingiu não apreender nada. Digo fingiu porque de facto quando
foi para escola já sabia ler e escrever.
- Tem dias bons e dias maus. No caso da aritmética está a ter algumas
dificuldades, dificuldades filosóficas, chamo-lhes eu, que lhe travam os
progressos. Ele é uma criança excecional. Excecionalmente inteligente e
excecional noutros aspetos também. Aprendeu a ler sozinho com o livro Dom
Quixote, numa versão abreviada para crianças. Só muito recentemente tomei
conhecimento disso.
- O que está em causa - diz o senor León - não é se o rapaz sabe ler e
escrever, ou quem lho ensinou, é se ele pode ter lugar numa escola
vulgar. Eu não tenho tempo para lidar com uma criança que se recusa a
aprender e que pelo seu comportamento perturba o curso normal da aula.
- Ele ainda mal fez seis anos! - explode Inês. - Que espécie de professor
é o senhor que não consegue controlar uma criança de seis anos?
- Eu não disse que não conseguia controlar o seu filho. O que eu não
consigo é cumprir as minhas obrigações para com as outras crianças
enquanto ele estiver na aula. O vosso filho precisa de um tipo de atenção
especial que nós não podemos providenciar numa escola vulgar. É por isso
que recomendo Punto Arenas.
Faz-se um silêncio.
- Señor? -Não.
272
Retiram-se para a sala de espera, os três juntos. Inês não consegue, por
mais que se esforce, olhar para o señor León. Passados uns minutos voltam
a chamá-los.
- Podem submeter a questão aos tribunais civis, claro, têm esse direito.
Mas o procedimento de recurso não pode ser usado como meio de suspender
esta decisão do tribunal. Quer isto dizer que a transferência para Punto
Arenas terá efeito quer os senhores recorram aos tribunais, quer não.
- O Diego vem buscar-nos amanhã ao fim da tarde - diz Inês. - Está tudo
combinado. Só tem de arrumar uns assuntos pendentes.
- Como hei de eu saber? Para algures fora do alcance desta gente e das
suas perseguições.
- Não sei. Como os ciganos, imagino. Porque é que não ajuda, em vez de
levantar objeções?
273
- Então quero ser cigano com a Inês e o Diego. Ele volta-se para Inês.
- Isso não tem nada que ver consigo - replica glacialmente Inês. - A si
não lhe importa que o David vá para um reformatório. A mim importa-me.
- Concordo consigo. O David não merece que o mandem para Punto Arenas.
Não por ser um vazadouro, mas porque é novo de mais para ser separado dos
pais.
- Então porque é que não resistiu àqueles juízes? Porque é que vergou a
espinha e disse Sí señor, sí señor? Não acredita no rapaz?
- Não é uma questão de bom ou mau, Inês, é uma questão de poder. Se você
fugir mandam a polícia atrás de si e a polícia apanhá-la-á. Será
declarada mãe inapta e a criança ser-lhe-á retirada. Ele será enviado
para Punto Arenas e você ver-se-á a braços com uma batalha só para
recuperar a guarda dele.
274
- Eles nunca me tirarão o meu filho. Mais depressa morrerei.
Ele estende a mão para a aplacar mas ela repele-o e afunda-se na cama.
275
Capítulo 27
«Que devemos fazer, amigos? Aceitamos a oferta? Vamos ver se, como
pretende o Simón, um guindaste vai mudar as nossas vidas? Quem quer falar
primeiro? Tu, Simón?
- Sim! - dizem os estivadores em coro, pondo a mão no ar. Até ele, Simón,
põe a mão no ar. A votação é unânime.
Eugénio aprende depressa. Daí a pouco anda a correr para trás e para a
frente ao longo do cais, fazendo girar a lança, na qual o gancho oscila
alegremente.
278
279
Mas agora Álvaro está ao seu lado, a gingar na água, com o cabelo colado
ao couro cabeludo, do óleo.
- Puxem! - grita Álvaro; e, num abraço apertado, são ambos içados para
fora da água.
Torna a acordar com um ruído surdo. O ruído parece vir de dentro dele, de
dentro da sua cabeça.
- Acorda, viejo! - diz uma voz. Ele abre um olho e vê um rosto gordo e
suado por cima. Eu estou acordado, gostaria de dizer, mas a sua voz
morreu.
- Otimo. Vou dar-lhe uma injeção para as dores e depois vamos tirá-lo
daqui.
Para as dores? Eu não tenho dores, quer ele dizer. Porque é que havia de
ter dores? Mas seja o que for que fala por ele, hoje recusa-se a falar.
Como está filiado no sindicato dos estivadores - uma filiação de que não
tinha conhecimento -, tem direito a um quarto particular no hospital.
280
O consenso parece ser que, no meio do acidente, teve sorte, partiu três
costelas. Uma esquírola de osso tinha perfurado um pulmão e houve que
proceder a uma pequena intervenção cirúrgica para a remover (queria ele
guardar o osso para recordação? -está num frasquinho à sua cabeceira).
Tem cortes e equimoses na face e na parte superior do corpo e perdeu
alguma pele, mas não há indícios de danos cerebrais. Uns dias em
observação, mais umas semanas levadas com calma, e deve voltar à
normalidade. Entretanto, a primeira prioridade será controlar a dor.
Álvaro também vai vê-lo, tal como outros camaradas das docas. Álvaro
falou com os médicos e traz a notícia de que, apesar de se esperar que
ele recupere totalmente, seria pouco avisado da sua parte, com a idade
que tem, voltar à vida de estivador.
281
- Tenho uma amiga - diz - de cujo filho gosto muito. Por razões que não
vêm ao caso, as autoridades educativas têm ameaçado tirar-lho e mandá-lo
para uma escola especial. Posso pedir-lhe um favor? Poderia telefonar-lhe
e saber se houve mais alguma evolução?
- Com certeza - diz Clara. - Mas não quererá falar pessoalmente com ela?
Posso trazer-lhe um telefone à cama.
Ele liga para os Blocos. Quem atende o telefone é um vizinho, que sai,
regressa e informa que Inês não está em casa. Ele telefona mais tarde,
novamente sem êxito.
282
- E o que era?
- Não sei bem. Talvez que ele e a mãe precisam de ajuda. Ou talvez não. A
mensagem era... como hei de dizer?... Obscura.
- Bom, lembre-se de que o analgésico que está a tomar é um opiáceo. Os
opiáceos provocam sonhos, sonhos de ópio.
Não tem nada que o distraia, nada para ler. O hospital não tem
biblioteca, facultando apenas exemplares antigos de revistas populares
(receitas, ocupações de lazer, modas femininas). Queixa-se a Eugénio, que
reage trazendo-lhe o livro do seu curso de Filosofia («Eu sei que você é
uma pessoa séria»). O livro, tal como ele receava, é sobre mesas e
cadeiras. Coloca-o de lado. «Desculpe, mas não é o meu género de
filosofia.»
- O género que nos abana. Que muda a vida da pessoa. Eugénio dirige-lhe
um olhar intrigado.
- Então há alguma coisa errada na sua vida? - pergunta. - Para além dos
seus ferimentos.
- Há qualquer coisa que falta, Eugénio. Eu sei que não devia ser assim,
mas é. A vida que tenho não me basta. Queria que alguém, um salvador,
descesse dos céus e agitasse uma varinha mágica e dissesse: Olha, lê este
livro e todas as tuas perguntas serão respondidas. Ou: Olha, eis uma vida
inteiramente nova para ti. Não percebe este género de conversa, pois não?
283
Ele devia planear as coisas para quando tiver alta, diz-lhe o médico. Tem
algum sítio onde ficar? Há alguém que cozinhe para ele, que trate dele,
que o ajude a governar-se enquanto sara? Estaria disposto a ir falar com
uma assistente social?
- Anda cá! Sim, tive um pequeno acidente. Caí à água, mas mal me molhei.
Os meus amigos tiraram-me de lá.
284
- Meu querido rapaz! Meu tesouro! Luz da minha vida! O rapaz liberta-se
do abraço.
Fugiu? Passou pelo arame farpado? Fica confundido. De que está o rapaz a
falar? E a que se deve aquela estranha indumentária nova: uma justa
camisola de gola alta, calças curtas (muito curtas) e sapatos com
pequenas peúgas brancas que mal lhe cobrem os tornozelos?
- Obrigado por virem, todos vocês - diz ele -, mas donde é que fugiste,
David? Estás a falar de Punto Arenas? Levaram-te para Punto Arenas? Inês,
deixou que o levassem para Punto Arenas?
- Nunca sonhei que as coisas chegassem a isso. Mas fugiste, David? Conta
lá. Diz-me como fugiste.
- Sim, podes empurrar a minha cadeira de rodas, desde que não andes muito
depressa. O Fidel também pode empurrar.
- A razão por que eu pergunto - diz Álvaro - é que contactei outra vez
com o lar. Disse-lhes que contava restabelecer-se completamente e não
precisava de cuidados especiais. Nesse caso, disseram eles, podem
285
Partilhar o quarto com outro idoso. Que ressona de noite e cospe para o
lenço. Que se queixa da filha que o abandonou. Que está cheio de
ressentimentos contra o recém-chegado, o invasor do seu espaço.
- Claro que não me importo - diz. - É um alívio ter um sítio certo para
onde ir. E tirar um peso dos ombros de muita gente. Obrigado, Álvaro, por
tratar disso.
- Isso é bom.
- Fugi - diz o rapaz. - Eu bem te disse que fugiria. Passei pelo arame
farpado.
- Sem roupa? Fugiste de Punto Arenas sem roupa, David? Quando foi isso?
Ninguém tentou impedir-te?
- Deixei a roupa no arame farpado. Eu não te prometi que fugiria? Posso
fugir donde quer que seja.
286
- Não tinhas roupa vestida - torna Inês. - Isso quer dizer que estavas
nu.
- Deixe lá isso - interrompe ele, Simón. - Porque é que foi a senhora que
a contactou, Inês? Porque não a escola? O óbvio era certamente isso.
O rapaz acena vigorosamente com a cabeça. Fidel fala pela primeira vez.
- Bateram-te?
- Para nos baterem temos de ter pelo menos catorze anos. Quando temos
catorze anos, se formos insubordinados podem bater-nos.
Fidel solta uma risadinha. Daí a pouco ambos os rapazes estão a rir
incontrolavelmente.
- Isso é verdade. Fui um mau padrinho. Pus-me a dormir quando devia ter
estado vigilante. Mas aprendi a lição. De futuro vou tomar melhor conta
de ti.
287
- Lutas contra eles, se eles voltarem?
- Sim, o melhor que puder. Vou pedir uma espada emprestada. Direi: Tentem
roubar o meu rapaz outra vez e terão de se haver com Dom Simón!
- O Simón tem de ir para um lar a fim de recuperar. Não pode andar. Não
pode subir escadas.
- Claro que posso. Normalmente não posso, por causa das dores. Mas por ti
posso fazer o que quer que seja: subir escadas, montar a cavalo, tudo e
mais alguma coisa. Só tens de dizer a palavra.
- Que palavra?
- Eu sei a palavra?
- Estás a ver? Sabes mesmo a palavra! Inês, pode pôr a cadeira de rodas
aqui mais perto? - Deixa-se cair na cadeira. - Agora vamos dar um
passeio. Gostava de saber como é o mundo, depois de todo este tempo
enclausurado. Quem quer empurrar?
- Mas nós vamos ser ciganos! Se ficares no hospital não podes ser cigano!
288
- Ele não pode voltar para aquela escola. Eu não deixo. Os meus irmãos
vêm connosco, ambos. Vamos no carro.
emprestou-nos dinheiro.
- Há lá rapazes que fumam e bebem e andam com navalhas. É uma escola para
criminosos. Se o David voltar para lá ficará marcado para o resto da
vida.
O rapaz fala.
- A tua mãe queria dizer outra coisa. Ela quer dizer uma ferida na tua
alma. O tipo de ferida que não sara. É verdade que os rapazes da escola
andam com navalhas? Tens a certeza de que não é só um rapaz?
- É uma data de rapazes. E têm uma mãe pata e patinhos e um dos rapazes
pisou um patinho e as entranhas saíram-lhe pelo rabo e eu quis tornar a
pô-las lá dentro mas o professor não me deixou, disse que eu devia deixar
o patinho morrer, e eu disse que queria soprar para dentro dele, mas ele
não me deixou.
289
- Uma ou duas sementes, sim. Mas se quisermos uma colheita como deve ser,
se quisermos cultivar trigo suficiente para fazer pão e alimentar
pessoas, a semente tem de ser posta na terra.
- Ele tem-me amor, sim! Quer que eu vá viver com ele! Disse isso à Inês e
a Inês disse-mo a mim.
- Estou certo de que ela nunca concordará com isso. O teu lugar é ao pé
da tua mãe. É por isso que temos andado todo este tempo a lutar. O señor
Daga pode parecer-te sedutor e emocionante, mas quando fores mais velho
compreenderás que as pessoas sedutoras e emocionantes não são
necessariamente boas pessoas.
290
- O que é sedutor?
- O señor Daga está apaixonado pela Inês. Vai fazer bebés na barriga
dela.
- É verdade! A Inês disse que eu não devia dizer-te, que tu ficavas com
ciúmes. É verdade, Simón? Tens ciúmes?
- Não, claro que não tenho ciúmes. Não tenho nada que ver com isso. O que
estou a tentar dizer-te é que o señor Daga não é boa pessoa. Pode
convidar-te para casa dele e dar-te gelados, mas no fundo não tem em
conta os teus melhores interesses.
- Não! A minha mãe é que tem de me honrar a mim! Seja como for, o señor
Daga diz que Dom Quixote está fora de moda. Diz que já ninguém anda a
cavalo.
291
Capítulo 28
Clara não responde; mas pelo olhar direto que lhe endereça ele sabe que
acertou.
293
- Isso é mau. Mas porque é que o seu rapaz não soma da forma que o
professor lhe diz?
- Porque havia de o fazer, quando há uma voz dentro dele que lhe diz que
a forma do professor não é a forma verdadeira?
- Porque dois e dois podia muito bem ser igual a três ou cinco ou noventa
e nove, se assim tivéssemos decidido.
- Sim, mas que dois e que dois é igual a quatro? Muitas vezes, Eugénio,
acho que o rapaz não compreende pura e simplesmente os números, tal como
um gato ou um cão não os compreendem. Mas de vez em quando tenho de me
interrogar: há alguém na terra para quem os números sejam mais reais?
«Enquanto estava no hospital sem mais nada para fazer, tentei, como
exercício mental, ver o mundo pelos olhos do David.
294
Põe-se-lhe uma maçã à frente e o que vê ele? Uma maçã: não uma
maçã numeral, mas apenas uma maçã artigo indefinido. Põem-se-lhe duas
maçãs à frente. O que é que ele vê? Uma maçã e uma maçã: não duas maçãs,
não a mesma maçã duas vezes, apenas uma maçã e uma maçã. Vem então o
señor León (o señ or León é o professor da aula em que ele anda) e
pergunta: Quantas maçãs, pequeno? Qual é a resposta? O que são maçãs?.
Qual é o singular cujo plural é maçãs?. Três homens num automóvel a
caminho dos Blocos Orientais: quem é o singular cujo plural é homens:
Eugénio ou Simón ou o nosso amigo motorista cujo nome não sei? Somos
três, ou somos um e um e um?
- O rapaz tem sem dúvida uma imaginação fértil - medita Eugénio. - Ilhas
flutuantes. Mas com a idade há de passar-lhe. Deve ter origem em
sentimentos de insegurança muito antigos. Uma pessoa não pode deixar de
notar como ele é nervoso, como fica agitado sem qualquer razão. Sabe se
há alguma história por detrás disso? Os pais discutiam muito?
- Os pais dele?
295
- Talvez. Talvez. Mas se formos nós que estamos enganados e ele que tem
razão? E se entre um e dois não houver nenhuma ponte, mas apenas espaço
vazio? E se nós, que tão confiantemente damos o passo, estivermos de
facto a cair no espaço, e só não o sabemos porque insistimos em ter a
venda posta? E se o rapaz é o único entre nós com olhos para ver?
Uma criança, uma criança vulgar, não acha afirmações dessas difíceis de
aceitar. Não as acha difíceis porque são verdadeiras, porque nós estamos
de nascença, por assim dizer, sintonizados para a sua veracidade. Quanto
a ter medo dos espaços vazios entre os números, já fez notar ao David que
o número de números é infinito?
296
Ou darmos connosco numa vida que é só um prelúdio para outra vida que é
só um prelúdio, etc. Mas os números não são assim. Os números constituem
um infinito bom. Porquê? Porque, sendo infinitos em número, preenchem
todo o espaço do universo, tão apertados uns contra os outros como
tijolos. Portanto estamos seguros. Não há por onde cair. Explique-o ao
rapaz. Isso tranquilizá-lo-á.
- Assim farei. Mas tenho cá a minha impressão de que ele não se vai
sentir confortado.
Embora ele sinta a maior boa vontade em relação a Eugénio, embora tenha
ficado sensibilizado com a sua disponibilidade para se tornar amigo de um
camarada mais velho e bem assim com as suas muitas amabilidades, embora
não o culpe de modo algum pelo acidente nas docas - enfiado à pressa aos
comandos dum guindaste, ele próprio não faria melhor -, nunca conseguiu
gostar realmente do homem.
297
Nos Blocos Orientais ele pede ao motorista que espere enquanto Eugénio o
ajuda a apear-se do carro. Juntos, sobem lentamente a escada. Ao chegarem
ao corredor do segundo andar, depara-se-lhes uma visão descoroçoante.
298
- Fui eu que o trouxe para Novilla. Sou o tutor dele. Sou, para todos os
efeitos que importam, pai dele. A señora Inês - aponta para Inês - é para
todos os efeitos a mãe dele. Os senhores não conhecem o nosso filho como
nós. Não há nele nada de errado que precise de ser corrigido. É um rapaz
sensível que tem certas dificuldades com o programa escolar, nada mais do
que isso. Vê armadilhas, armadilhas filosóficas, onde uma criança vulgar
não as veria. Não podem castigá-lo por uma discordância filosófica. Não
podem arrebatá-lo à casa e à família. Não o permitiremos.
A sua fala segue-se um longo silêncio. Por detrás do cão de guarda, Inês
assesta belicosamente o olhar na mulher.
299
Agora que olha mais de perto, vê que o rapaz esteve presente durante esta
altercação, meio obscurecido por detrás da mãe, a escutar solenemente,
com o dedo na boca.
- Nunca poderão provar isso - torna Inês. - Se a criança diz que há arame
farpado eu acredito nela, há arame farpado.
- E o senhor?
300
- Deixe que lhe diga, señora. Tem duas opções: ou acata a lei e nos
- Só o levam por cima do meu cadáver - responde Inês. Vira-se para ele. -
Simón! Faça qualquer coisa!
- E a criança não foi transferida para Punto Arenas por não saber somar,
mas porque precisa de cuidados especiais. Pablo - diz, dirigindo-se ao
seu silencioso companheiro -, espera aqui. Quero ter uma conversa
particular com este senhor. - E, para ele:
- Señor - diz a mulher em voz baixa -, compreenda, por favor, que eu não
sou uma qualquer funcionária que ande à caça de gazeteiros.
301
Porque, concordo consigo, ele é muito novo para estar longe de casa e
preocupava-me que ele pudesse sentir-se abandonado.
«O que vi foi uma criança amável, muito honesta, muito direta, sem medo
de falar dos seus sentimentos. Vi também outra coisa. Vi a rapidez com
que ele conquistou os outros rapazes, particularmente os mais velhos. Até
os mais violentos. Não exagero ao dizer que eles o adoravam. Queriam
fazer dele a sua mascote.
- Se ele esperasse uns dias podia vir de visita a casa. Não pode
persuadir a sua mulher a deixá-lo?
302
Que fórmula mágica acha que eu possuo capaz de fazer uma mulher assim
mudar de ideias? Não, o seu problema não é como retirar o David à mãe.
A senhora tem esse poder. O seu problema é que não pode mantê-lo lá.
Quando ele decidir voltar para casa, para junto dos pais, virá. A senhora
não tem meios para o impedir.
- Então pelo menos persuada-a a deixá-lo ir sem ameaças nem choro, sem o
transtornar. Porque, duma maneira ou doutra, ele terá de vir. A lei é a
lei.
303
Capítulo 29
- Não. Vamos seguir de carro até estarmos fora do alcance desta gente.
Nem plano de longo prazo nem engenhoso esquema de fuga, até aí é claro.
Sente genuína simpatia por ela, esta mulher impassível e sisuda cuja vida
de festas de ténis e receções ao pôr do Sol ele virou de pernas para o ar
ao dar-lhe um filho; cujo futuro se restringiu agora a conduzir sem
destino por estradas secundárias até os irmãos se aborrecerem ou se lhes
acabar o dinheiro e ela não ter outro remédio senão regressar e abrir mão
da sua preciosa carga.
305
- Peço-lhe por tudo, Inês, pense bem. Não leve este estouvado passo
avante. Há de haver uma maneira melhor.
- Tornou mais uma vez a mudar de ideias? Quer que eu ceda o meu filho a
estranhos, que ceda a luz da minha vida? Que tipo de mãe é que julga que
eu sou? - E, para o rapaz: - Vai fazer a tua mala.
- Não sei bem se consigo empurrar alguém no baloiço - diz ele, Simón. -
Já não tenho a força de antigamente, sabes?
Só consegue empurrar com uma mão; o baloiço mal se mexe. Mas o rapaz
parece feliz.
- Agora é a tua vez, Simón - diz ele. Aliviado, ele senta-se no baloiço e
deixa o rapaz empurrá-lo.
306
- Tu caías?
- Não, nem pouco mais ou menos. Cair e voar não é a mesma coisa. Só as
aves podem voar; nós, os seres humanos, somos pesados de mais.
- Porque sim.
- O Diego mudou de ideias - diz. -Já não vamos. Eu sabia que isto ia
acontecer. Diz que temos de ir de comboio.
- Ir de comboio? Para onde? Para o fim da linha? Que farão vocês quando
lá chegarem, você e o miúdo sozinhos? Não. Telefone ao Diego. Diga-lhe
para trazer o carro. Eu assumo o comando. Não imagino para onde vamos,
mas vou convosco.
307
Uma hora depois Diego aparece, mal-humorado, morto por uma discussão. Mas
Inês atalha-lhe a resmunguice. De botas e casaco comprido, ele nunca a
viu portar-se de maneira tão imperiosa. Enquanto Diego assiste, de mãos
enfiadas nos bolsos, ela põe uma pesada mala em cima do tejadilho do
carro e prende-a. Quando o rapaz aparece trazendo consigo a sua caixa de
objetos achados, ela abana firmemente a cabeça.
O rapaz escolhe uma máquina de relógio estragada, uma pedra com um veio
branco, um grilo morto num boião de vidro e o esterno ressequido de uma
gaivota. Calmamente, ela segura o osso entre dois dedos e atira-o fora.
O carro fica por fim carregado. Ele, Simón, entra cautelosamente para o
assento de trás, seguido pelo rapaz, seguido por Bolívar, que se instala
aos pés deles. Conduzindo a uma velocidade francamente excessiva, Diego
toma o caminho de La Residência, onde, sem pronunciar palavra se apeia,
fecha a porta com força e se afasta a passos largos.
- Sim, és tu o príncipe.
308
- Uma espécie de família - diz ele. - Os espanhóis não têm um termo para
aquilo que somos exatamente, portanto intitulemo-nos assim: a família do
David.
O rapaz volta a recostar-se no assento, parecendo satisfeito consigo
próprio.
Conduzindo devagar - sente uma pontada de dor cada vez que mete uma
mudança - ele deixa La Residência para trás e começa a procurar a estrada
principal para norte.
- Não, mas não quero viver numa tenda, como naquele outro sítio.
- Não! Eu não quero uma vida antiga. Quero uma vida nova!
Acontece que não há papel higiénico. Que mais, na sua pressa de partir,
se terá Inês esquecido de trazer?
309
Param; depois seguem viagem. Ele começa a gostar do carro de Diego. Pode
não ter grande aspeto e é pesadão de conduzir, mas o motor parece
bastante robusto, bastante solícito.
Dos montes descem para uma região ondulada de vegetação rasteira com
residências dispersas aqui e além, muito diferente dos ermos arenosos a
sul da cidade. Durante largos trechos o deles é o único automóvel na
estrada.
Chegam a uma cidade chamada Laguna Verde (porquê? Não há lagoa nenhuma),
onde atestam o depósito. Passa uma hora, cinquenta quilómetros ao todo,
antes de alcançarem a cidade seguinte.
- Onde é que podemos encontrar o próximo sítio para ficar? -pergunta ele
ao funcionário.
310
Não têm mapa. Ele não faz ideia do que haja mais adiante na estrada.
Prosseguem a marcha em silêncio.
Ele sabe que o cão não gosta dele. Mas talvez o cão não goste de ninguém;
talvez gostar esteja para além do alcance do seu coração. Mas afinal que
importância tem gostar, amar, em comparação com ser fiel?
É a primeira vez que ela critica um dos irmãos com ele a ouvir, a
primeira vez que alinha ao lado dele.
Será verdade? As grande dádivas surgem mesmo do nada? O que foi que o
possuiu para dizer aquilo?
311
- Acha mesmo - pergunta Inês (e ele não pode deixar de ouvir o sentimento
que há por detrás das suas palavras) -, acha mesmo que eu não ansiava por
ter um filho meu? Como é que julga que era, viver continuamente encafuada
em La Residência?
- Não faço ideia de como era. Nunca percebi La Residência nem como você
foi lá parar.
Ela não ouve a pergunta, ou não acha que valha a pena responder-lhe.
- Inês - diz ele -, deixe-me perguntar-lhe pela última vez: tem a certeza
de que é isto que quer fazer, fugir da vida que conhece, e tudo porque o
miúdo não se entende com o professor?
- Isto não é vida para si, uma vida em fuga - insiste ele. - Nem serve
para mim. Quanto ao rapaz, só pode ser um foragido durante algum tempo.
Mais tarde ou mais cedo, quando crescer, vai ter de se reconciliar com a
sociedade.
- Pense nisso - conclui ele. - Pense maduramente. Mas, seja o que for que
decida, eu - interrompe-se, resistindo às palavras que querem sair -, eu
segui-la-ei até aos confins da terra.
- Não quero que ele acabe como os meus irmãos - diz Inês, falando tão
baixo que ele tem de fazer um esforço para a ouvir. - Não quero que ele
venha a ser funcionário ou professor como o señor León. Quero que ele
seja alguém na vida.
312
Localizam o escritório; ele apeia-se e bate à porta. Vem abrir uma mulher
de roupão com uma lanterna na mão. Há três dias que falta a eletricidade,
informa-os ela. Não há eletricidade, de maneira que não há cabanas para
alugar. Inês toma a palavra.
- Já chegámos?
- Ficamos com ela - diz Inês. - Há algum sítio onde possamos comer?
- Temos um pão e fruta para a criança - diz Inês. - Não tivemos tempo
para ir às compras. Podemos comprar-lhe comida a si? Talvez umas
costeletas, ou salsichas. Peixe não. A criança não come peixe. E fruta. E
os restos que tenha para o cão.
- Fruta! - diz a mulher. - Há muito tempo que não vemos fruta. Mas venha,
vamos ver o que se arranja.
As duas mulheres afastam-se, deixando-os às escuras.
Inês regressa com uma lata de feijão, uma lata daquilo a que o letreiro
chama salsichas de cocktail em salmoura e um limão, bem como uma vela e
fósforos.
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Fazem uma refeição frugal à luz da vela, sentados na cama lado a lado.
- Que presente?
- O señor Daga deu-lhe um presente para ele trazer - diz Inês, evitando
os seus olhos.
O rapaz vai ao carro a correr e volta com uma caixa de cartão, que abre,
rasgando-a. Contém um vestido comprido de cetim preto. Tira-o da caixa e
desdobra-o. Não é um vestido comprido, mas sim uma capa.
O rapaz leva o papel para mais perto da vela e lê: Eis a capa mágica da
invisibilidade. Quem a vestir andará invisível pelo mundo.
- Toma: segura a vela com uma mão. Segura o pó mágico com a outra. Estás
preparado com a fórmula mágica?
- Abracadabra - diz o rapaz, e espalha o pó, que cai ao chão numa chuva
breve. - Já estou invisível?
315
- Não, claro que não. Nem estás invisível nem morto. - Tateia no chão,
encontra a vela e acende-a. - Mostra-me a mão. Não vejo que tenhas nada
na mão.
- Deves tê-la queimado. Vou ver se a senhora ainda está acordada. Talvez
ela nos possa dar manteiga para tratar a queimadura.
- Está escuro - diz o rapaz. - Não vejo nada. Estou dentro do espelho?
- Não, meu querido - diz Inês. - Não estás dentro do espelho, estás com a
tua mãe, e isso já passa. - Vira-se para ele, Simón.
- Deve ter sido pó de magnésio - diz ele. - Não percebo como é que o seu
amigo Daga deu um presente tão perigoso a uma criança. Mas verdade seja -
deixa-se dominar pela malícia - que há muita coisa que eu não percebo na
sua amizade por esse homem. E faça o favor de calar o cão... Estou farto
desse ladrar desvairado.
- Pare de se queixar! Faça alguma coisa! O señor Daga não lhe diz
respeito. Despache-se!
316
Capítulo 30
O miúdo dorme a sono solto, mas quando acorda é evidente que a vista
continua afetada. Descreve raios de luz verde a atravessarem o seu campo
visual, cascatas de estrelas. Longe de estar perturbado, parece encantado
com estas manifestações.
Encontram Inês ansiosa por partir. O rapaz está sentado na cama, com a
capa preta vestida, de olhos fechados e com um sorriso extasiado no
rosto.
317
- O teu pai diz que não vês, querido. É verdade? Não me consegues ver?
- Não consigo vê-la - diz por fim. - Tenho a mão demasiado magoada.
- Ontem à noite queimou os dedos - explica ele, Simón. - Estive para lhe
ir pedir manteiga para pôr na queimadura, mas era tarde e não quis
acordá-la.
- É o tipo de cegueira com que se fica olhando para o Sol. O sal não
adianta. Estamos prontos para sair, Inês? Quanto lhe devemos, senora?.
318
- Eles não são meus pais e nós não vamos regressar. Vamos para a nova
vida. Quer vir connosco para a nova vida?
- Não me parece que vão encontrar alguma coisa que se veja de nova vida
em Estrellita. Tenho amigos que se mudaram para lá e dizem que é o lugar
mais aborrecido do mundo.
Inês intervém.
Ela põe os óculos ao rapaz. Ficam-lhe muito grandes, mas ele não os tira.
- Não devias dizer às pessoas que nós não somos teus pais -observa ele. -
Em primeiro lugar, não é verdade. Em segundo lugar, podem pensar que te
raptámos.
- Não me importa. Eu não gosto da Inês. Não gosto de ti. Só gosto de
irmãos. Quero ter irmãos.
319
O rapaz não lhe dá ouvidos. Através dos óculos escuros da señora olha
para o Sol, que já subiu acima da linha de montanhas azuis ao longe.
Surge uma tabuleta à vista: Estrellita del Norte 475 km, Nueva Esperanza
50 km. Ao lado da tabuleta está um jovem a pedir boleia, envergando um
poncho verde-azeitona e com uma mochila aos pés, parecendo muito sozinho
na paisagem vazia. Ele afrouxa.
- O que é que está a fazer? - observa Inês. - Não temos tempo para
recolher estranhos.
- Era só um homem a pedir boleia - diz Inês. - Não temos espaço no carro.
E não temos tempo. Precisamos de te levar ao médico.
- Não! Se não pararem, vou saltar do carro! - E abre a porta mais próxima
de si.
- Não me importa! Quero ir para a outra vida! Não quero estar contigo e
com a Inês!
320
- Está em ferida?
- Está.
recém-chegado.
321
- Ainda não. É aqui que nos separamos do nosso amigo. Ele vai continuar a
sua viagem para norte.
- David! - censura ele, Simón, o rapaz. - O que foi que te deu esta
manhã? Não se fala assim com um estranho!
- O que é isto? E ainda por cima um cão! Que posso eu fazer por todos
vocês?
322
- Senhor doutor, não é por causa da mão que aqui estamos -diz Inês. - A
noite passada tivemos um acidente com lume e o meu filho não vê bem.
Examina-lhe os olhos?
- Posso dar uma vista de olhos? - pergunta o Dr. Garcia. - O teu guarda
deixa?
- Está bem.
- O Bolívar pode vir contigo desde que se porte bem - diz o médico.
- Afinal o que foi que aconteceu ao vosso filho? - pergunta Juan, quando
ficam sós.
323
- Ele diz muita coisa. Tem uma imaginação fértil. David foi o nome que
lhe deram em Belstar. Se ele quer assumir outro nome, que assuma.
- Então sabe como funciona o sistema. Os nomes que usamos são os nomes
que nos deram lá, mas também nos podiam ter dado números. Números,
nomes... São igualmente arbitrários, igualmente aleatórios, igualmente
pouco importantes.
- Com que então você é outro místico dos números! Você e o David deviam
criar uma escola juntos. Você pode ensinar as causas secretas por detrás
dos números e ele pode ensinar as pessoas a passar de um número a outro
sem cair por um vulcão abaixo. Claro que não há números aleatórios sob o
olhar de Deus. Mas nós não vivemos sob o olhar de Deus. No mundo em que
vivemos há números aleatórios e nomes aleatórios e acontecimentos
aleatórios, como ser recolhido por um carro aleatório em que seguem uma
mulher e um homem e uma criança chamada David. E um cão. Qual acha que
foi a causa secreta por detrás desse acontecimento?
Ele e Inês entram. Juan hesita, mas a clara voz jovem do rapaz ergue-se
do interior:
324
Dr. Garcia. - Ele explicou-me como é que acontece ser invisível para nós
e eu expliquei-lhe por que razão lhe parecemos insetos a agitar as
antenas no ar enquanto ele voa lá no alto. Disse-lhe que preferiríamos
que ele nos visse como realmente somos, não como insetos, e em
contrapartida ele disse-me que quando voltar à visibilidade gostaria que
o víssemos como realmente é. Achas isto um relato fiel da nossa conversa,
jovem?
- O nosso jovem amigo diz ainda que o senhor - olha expressivamente para
ele, Simón - não é o seu verdadeiro pai, e a senhora - vira-se para Inês
- não é a sua verdadeira mãe. Não lhes peço para se defenderem. Eu tenho
uma família minha, sei que as crianças são capazes de dizer coisas
tremendas. Não obstante, há alguma coisa que queiram dizer-me?
- Ele não tem nada nos olhos. Fiz um exame físico e analisei-lhe a visão.
Como órgãos da visão os olhos dele são perfeitamente normais. Quanto à
mão, fiz-lhe um penso. A queimadura não é grave. Dentro de um ou dois
dias apresentará melhoras. Agora deixem que lhes pergunte: devo
preocupar-me com a história que este jovem me conta?
- Deve atender devidamente ao que o rapaz diz. Se ele diz que quer ser
retirado de nós e devolvido a Novilla, devolva-o a Novilla. Ele é seu
doente, está ao seu cuidado. - Volta-se para o rapaz. - É isso que
queres, David?
O rapaz não responde, mas faz-lhe sinal para se aproximar mais. Pondo a
mão em concha, o rapaz segreda-lhe ao ouvido.
- Para onde?
- O David está a sugerir que o senhor abandone a sua clínica e venha para
norte connosco encetando uma vida nova. Seria por si, e não por ele.
326
- Porque sim.
- E depois?
- Mais nada. À procura dum sítio onde ficar, para começarmos a nossa nova
vida.
327
FIM