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PRESIDENTA DA REPÚBLICA
Dilma Rousseff

MINISTRO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA


Aloizio Mercadante Oliva

GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAZONAS


Omar José Abdel Aziz

SECRETÁRIO DE ESTADO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA


Odenildo Teixeira Sena

PRESIDENTA DA FUNDAÇÃO DE AMPARO


À PESQUISA DO ESTADO DO AMAZONAS
Maria Olívia de Albuquerque Ribeiro Simão

Esta obra foi publicada com o apoio do Governo do Amazonas,


por meio da Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado do Amazonas - Fapeam.
Travessa do Dera, s/n, Flores, CEP: 69058-793, Manaus-AM
Fone: (92) 3878-4000
www.fapeam.am.gov.br

2 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


E SPELHOS PARTIDOS
Etnia, legislação e desigualdade na Colônia

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

CONSELHO EDITORIAL
Presidente
Henrique dos Santos Pereira

Membros
Antônio Carlos Witkoski
Domingos Sávio Nunes de Lima
Edleno Silva de Moura
Elizabeth Ferreira Cartaxo
Spartaco Astolfi Filho
Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel

COMITÊ EDITORIAL DA EDUA


Louis Marmoz (Université de Versailles)
Antônio Cattani (UFRGS)
Alfredo Bosi (USP)
Arminda Mourão Botelho (Ufam)
Spartacus Astolfi (Ufam)
Boaventura Sousa Santos (Universidade de Coimbra)
Bernard Emery (Université Stendhal-Grenoble 3)
Cesar Barreira (UFC)
Conceição Almeira (UFRN)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP)
Gabriel Conh (USP)
Gerusa Ferreira (PUC/SP)
José Vicente Tavares (UFRGS)
José Paulo Netto (UFRJ)
Paulo Emílio (FGV/RJ)
Élide Rugai Bastos (Unicamp)
Renan Freitas Pinto (Ufam)
Renato Ortiz (Unicamp)
Rosa Ester Rossini (USP)
Renato Tribuzi (Ufam)

4 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Patrícia Maria Melo Sampaio

E SPELHOS PARTIDOS
Etnia, legislação e desigualdade na Colônia

Manaus - 2011

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Copyright © 2011 Universidade Federal do Amazonas

REITORA
Márcia Perales Mendes Silva

EDITORA
Iraildes Caldas Torres

REVISÃO
José Enos Rodrigues
Gabriel Arcanjo Santos Albuquerque

EDITORAÇÃO GRÁFICA (MIOLO)


Danielle de Oliveira Reis

Revisão editorial
Cinara Cardoso

CAPA
Otoni Mesquita
Luciana Freire Braga do Nascimento (FINALIZAÇÃO)

Ficha Catalográfica

S192e
Sampaio, Patrícia Maria Melo
Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na Colônia/Patrícia Maria
Melo Sampaio.  Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2011.
352 p., il. 21 cm.
ISBN 978-85-7401-488-3
1. História Colonial – Amazônia – século XVIII 2. Colônia – História – Amazônia
I. Título.
CDU 93/99 (1-52) (811) “17”

Editora da Universidade Federal do Amazonas


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69.077-000, Manaus  AM
Telefax: (0xx) 92 3305-5410
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6 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Somos nosso passado
Somos este quimérico museu de formas inconstantes;
este amontoado de espelhos partidos.

Jorge Luís Borges

Quantas vozes ao nosso redor.


E quantas mãos se estendem para escrever a história.
As vozes querem, humanas, nos dizer coisas:
no vento, e há também as vozes da água, no fogo da terra. Ouvem?
Nós não estamos sós, e no entanto estamos.
Todas essas vozes, e todas essas histórias de homens, e animais, e floresta.
Esta é mais uma e ela toca o ouvido
talvez trêmulo, talvez impassível daquele que abre o livro,
mas isso que fala não é exatamente a vida.
E não a voz exata.
Há outras, melhores, para dizer que estamos empilhados,
esquecendo o tecido fino de que é feita a nossa humanidade.

Vicente Cecim. Viagem a Andara

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8 Patrí cia Maria Mel o Sampaio
AGRADECIMENTOS

Este livro nasceu como uma tese de doutorado, defendida em 2001, junto ao
Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal Fluminense (UFF/
RJ). Em certa medida, ainda o é porque não fui capaz de transformar o texto
original em algo mais agradável. De toda sorte, devo, mais uma vez, agradecer à
Universidade Federal do Amazonas (Ufam), ao PICD/CAPES pelas condições
necessárias à tese e ao empenho da Edua para esta edição.
Agradeço, imensamente, aos funcionários da Biblioteca Nacional, Arquivo
Nacional, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Arquivo do Itamaraty, Arquivo
Público do Estado do Pará e aos colegas do Museu Amazônico. Pelas traduções (e
versões) do inglês, alemão e nheengatu, agradeço aos professores Paulo Renan,
Giancarlo Stefani e Auxiliomar Ugarte. Sem a ajuda de Sérgio Chahom (RJ),
Rosevaner Nogueira e Patrícia Cavalcante (PA) na coleta de dados teria sido
complicado ficar tanto tempo longe de casa.
Ao Prof. John Monteiro, a disponibilidade com que sempre atendeu às
minhas solicitações e a leitura atenta de todas as versões deste trabalho. Sheila de
Castro Faria, João Fragoso e Flávio dos Santos Gomes, pelas observações valiosas
por ocasião da defesa. À minha orientadora, Hebe Maria Mattos, difícil agradecer
o interesse com que acompanhou esta tese, sua crítica cuidadosa, intervenções cruciais
e uma impressionante capacidade de enxergar para além do texto.
Pouco se pode fazer sem a ajuda de grandes amigos. Aos meus, devo o
apoio incondicional, solidariedade sem fronteiras e inestimável interlocução intelectual:
Nora e Vânia Magalhães, João Fragoso, Keila Grinberg, Barbara Sommer, Maria
Eugênia Mattos, Bernadette Grossi, Francisco Jorge dos Santos, Hideraldo Costa,
Mauro Coelho, Sofia Costa, Pedro Campos, Márcia Mello e James Roberto Silva.
José Enos Rodrigues fez a primeira revisão e Gabriel Albuquerque, a segunda, mas,
se algo ficou, mea culpa.

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Nossa familia ocupa os últimos parágrafos em textos como este. Talvez porque
seja o lugar do afeto para onde sempre se pode voltar: Ledinha e Sidarta, sempre
presentes, meu pai Santoris, que foi embora sem ver esta tese virar livro, e Beto,
Gabriel e Uriel. Sem eles, nem eu, nem este texto chegaríamos até aqui... Acabou!
Finalmente, posso “tirar o nariz dos livros e olhar para vocês”. Mas, eu confesso (e
nem precisava), esse finalmente é, na verdade, por enquanto porque o que sinto pelo
meu trabalho - de certa maneira – se parece muito com o que sinto por vocês:
também não cabe nas palavras.

10 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


PREFÁCIO

Foi com grande prazer que recebi a notícia de que Espelhos Partidos finalmente
virava livro. Não era sem tempo. Originalmente tese de doutorado defendida na
Universidade Federal Fluminense, a análise inteligente de Patrícia Melo Sampaio
reclamava publicação. Com base em pesquisa original e inovadora, o livro ilumina a
reiterada produção da situação de conquista nos Sertões do Grão Pará, no repetido
desafio de interação (e tentativa de subordinação) dos diferentes povos indígenas
presentes na região. Ali, na segunda metade do século XVIII, a coroa portuguesa se
confrontava com uma imensa variedade de povos e línguas indígenas a serem
incorporados ao projeto colonial, com uma população de colonos que se comunicava
preferencialmente em língua geral (o nheengatu), e com fronteiras tênues e movediças
entre uns e outros.
Os sertões do Grão-Pará foram laboratório privilegiado da experiência
colonial portuguesa e de seus projetos de modernização no século das Luzes. Na
segunda metade do século XVIII, a Amazônia ocupava papel central nos projetos
reformistas da coroa portuguesa. A política pombalina para o Estado do Grão
Pará e Maranhão procurou se substituir ao papel antes desempenhado pelas Ordens
Religiosas, aliando-se às lideranças indígenas para trazer seus grupos da vida
“selvagem” às povoações. O objetivo era transformá-los em vassalos da coroa
portuguesa nas Américas, capazes de defender o domínio português na região e de
fornecer mão-de-obra aos colonos que ali se fixassem. A legislação conhecida como
Diretório dos Índios passou desde então a regular a situação de transição entre a
condição de “gentio” ou “selvagem” e a de vassalo da coroa portuguesa. Ela atuava,
porém, face um fluxo constante de descimentos de novos grupos indígenas, que
mantinha intensamente freqüentadas as zonas de fronteira entre a vida dita selvagem
e a incorporação nos aldeamentos.
As intervenções modernizadoras do projeto colonial pombalino
aumentaram também o fornecimento de mão-de-obra escrava africana à praça
mercantil de Belém, estabelecendo um fluxo de “negros novos” de diferentes
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procedências no continente africano à paisagem humana da região. Parte desse fluxo
chegaria à Capitania do Rio Negro, na condição de trabalhadores cativos,
especialmente à cidade de Manaus.
Os processos de trocas culturais e de construção de hierarquias resultantes
do encontro de tão díspares atores constituem a principal estrutura dramática
revelada por Espelhos Partidos. Na busca de formar vassalos leais que defendessem
aqueles sertões e de fornecer a eles os trabalhadores de que necessitavam, o processo
colonial nos Sertões do Grão-Pará se desenrolava distante dos projetos oficiais,
produzindo tensões, alianças surpreendentes e também novas hierarquias não previstas
ou desejadas.
Tratava-se ainda de conquista. A chamada “guerra justa” continuava no
horizonte. Para evitá-la, lideranças indígenas eram convidadas a se reunir aos
aldeamentos, a se tornarem vassalos do Rei de Portugal, a casar suas filhas com
colonos portugueses com a promessa de que seus filhos não mais guardariam
qualquer “mancha de sangue” por sua origem (por lei não poderiam sequer ser
chamados de caboclos) e a fornecerem trabalhadores indígenas temporários e
disciplinados àqueles mesmos colonos com os quais se aliavam. O projeto não
transcorreu como planejado. Muitos grupos retornaram aos sertões, por vezes
aliando-se a cativos de origem africana que ali se aquilombavam. Outros, talvez a
maioria, buscaram se apropriar de formas diferenciadas da nova legislação e das
posições que lhes eram atribuídas, incorporando novas formas de gerir o destino
coletivo.
O Diretório foi extinto em 1798, tendo dado origem a uma hierarquia
indígena diferenciada dentro dos aldeamentos. Não era este o objetivo desejado.
Não por acaso, a Carta Régia de 1798, legislação que substituiu o Diretório dos
Índios na região, buscaria eliminar tais hierarquias e as identidades a elas referenciadas.
Na vigência da nova legislação, só adotada na Amazônia, não haveria mais índios
vassalos com seus Principais reconhecidos como intermediários oficias entre os
aldeamentos e as autoridades coloniais. Haveria apenas súditos (sem qualificação de
origem) e índios “selvagens”, passíveis de serem capturados e colocados sob trabalho
compulsório pelos que fossem considerados súditos coloniais, que se tornavam
individualmente responsáveis por fazê-los transitar da “barbárie” à “civilização”,
reproduzindo, no processo, formas análogas à escravidão.
Além dos colonos, quais redes de relação faziam alguém índio ou súdito da
coroa? Como se colocavam “caboclos” (mestiços de índios) e “tapuios” (vassalos
índios destribalizados) neste processo? Qual o destino das hierarquias indígenas que
se haviam fortalecido no período anterior? A análise apresentada faz surgir com
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força as tensões e ambigüidades decorrentes da adoção da Carta Régia de 1798 e
de sua longa vigência na região. A partir de fragmentos de histórias de vida, o texto
faz emergir pequenas histórias de humilhação e sucesso, como a vivida pelo sargento
tapuio Felipe Muniz, que nos fazem entender as confrontações e acomodações
específicas daquele contexto de reiteração de hierarquias baseada no trabalho
compulsório de cativos africanos ou de “administrados” indígenas, e de criação e
expansão de populações liminares de tapuios, caboclos ou pretos forros, com trânsito
entre os dois mundos e direitos formalmente iguais aos demais colonos da região.
É neste quadro que a independência política e o discurso liberal de igualdade
perante a lei (para os homens livres) chegaria à região. A tensão étnica subjacente ao
processo explodiria na Cabanagem, bem como nas formas adotadas pela repressão
que se seguiu, com o desenvolvimento de legislação específica para não brancos,
como nos Corpos de Trabalhadores e na longa permanência da legalidade do trabalho
compulsório dos índios na região.
Espelhos Partidos é contribuição definitiva seja à história indígena, à
historiografia da escravidão ou simplesmente à história do Brasil Colonial, em sentido
amplo. Mas não trata de um passado que passou, como podemos acompanhar na
introdução do trabalho. Na Amazônia de hoje, além dos diversos povos indígenas,
são muitos os atores sociais “negociando e confrontando projetos diferenciados”.
Oxalá nenhum deles possa contemplar, ainda que de forma velada, a utilização de
formas análogas à escravidão. Que o aspecto mais doloroso do passado fique apenas
no passado.

Hebe Mattos
Professora Titular de História do Brasil
Universidade Federal Fluminense

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ABREVIATURAS

ABAPP Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará


AEP Amazônia na Era Pombalina
AHU Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa)
ANRJ Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
APAM Arquivo Público do Amazonas
APP Arquivo Público do Pará
BI Biblioteca do Itamaraty (Rio de Janeiro)
BNRJ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
CEDEAM Comissão de Estudos e Documentação da Amazônia (Manaus)
DFB Dicionário de Famílias Brasileiras
IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
MA Museu Amazônico – Universidade do Amazonas
MPEG Museu Paraense Emílio Goeldi
RN Rio Negro
RIHGB Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

UNIDADES DE PESO, MEDIDAS E MOEDAS

Alqueire 36, 3 kg
Alqueire do Pará 2 paneiros (cerca de 30 kg)
Arratel 0,429 kg
Arroba 14, 7 kg
Braça 2,2 m
Canada 2, 64 litros
Côvado 66 cm (3 palmos)
Frasco 3, 3 litros (5 quartilhos)
Frasqueira 39,8 litros (12 frascos)
Palmo 22 cm
Paneiro Cerca de 15 kg
Quartilho 0, 66 litros
Quintal 4 arrobas (cerca de 58 kg)
Vara 1, 10 m
Légua Entre 5 555 e 6 000 metros
Cruzado $ 400 (400 réis)
Oitava 1$200 (1200 réis)
Pataca Moeda de prata ($300 e $320)
Tostão Moeda de níquel ($100)

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S UMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 13

PARTE I
Quando o fim é o começo: os mundos da fronteira na Amazônia do século
XVIII .............................................................................................................................. 29

CAPÍTULO 1
Onde ficam os “sertões”? ............................................................................................... 35

CAPÍTULO 2
Fortificações e aldeamentos: as estratégias coloniais .................................................. 43

CAPÍTULO 3
Os índios .............................................................................................................................. 53

CAPÍTULO 4
Os escravos africanos ...................................................................................................... 73

CAPÍTULO 5
Enriquecidos e inventariados: alguns colonos ........................................................... 97

CAPÍTULO 6
Passagens e encruzilhadas: transitando entre os mundos ......................................... 115

PARTE II
Códigos da fronteira: consolidando diferenças .........................................................

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CAPÍTULO 7
Trabalho, poder e liberdade I: o Diretório Pombalino ..............................................

CAPÍTULO 8
Remédios para a pobreza: roteiros do Diretório ...................................................

CAPÍTULO 9
Políticas e poderes nas povoações do Grão-Pará .......................................................

CAPÍTULO 10
Refazendo o Diretório ..................................................................................................
.
CAPÍTULO 11
Trabalho, poder e liberdade II: a Carta Régia de 1798 ............................................

CAPÍTULO 12
Caminhos possíveis: as armas e a República ...................................................................

CAPÍTULO 13
Fronteiras da diferença .....................................................................................................

Capítulo 14
Liberdades e desigualdades: projetos e processo colonial ...................................

CONCLUSÃO ........................................................................................................................

FONTES E BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................

A NEXOS ............................................................................................................................

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INTRODUÇÃO

Os estudos de história indígena no Brasil são recentes se comparados aos


de outros países, especialmente os da América Hispânica que produziram, entre as
décadas de 1960-1970, um importante corpo de trabalhos acerca das populações
ameríndias.
Entre as temáticas mais significativas dessa produção deve-se incluir o violento
contato com os conquistadores europeus, o dramático extermínio das populações
indígenas, sua cruel exploração em regimes de trabalho compulsório e, como não
poderia deixar de ser, sua heróica (porém infrutífera) resistência. Da destruição da
magnífica capital de Montezuma aos horrores das minas de Potosi, a historiografia
dos povos indígenas da América foi marcada pela denúncia das dores, da violência
e do sangue derramado, buscando escrever uma “história dos vencidos”.1
No caso do Brasil, a presença de historiadores nesse campo foi mais modesta
como John Monteiro já deixou patente em 1989 em um artigo que recuperava a
importância da escravidão indígena como elemento fundamental para compreender
a formação da sociedade colonial. Confrontando-se com uma historiografia que a
considerava como uma “instituição fracassada”, o autor contra argumentava que
era necessário recuperar as dinâmicas internas do mundo colonial e a lógica das
ações, reações e ajustamentos que vincularam esses diferentes personagens. “Na
articulação destes processos históricos – da expansão européia e das mudanças
sociais indígenas – reside a gênese da sociedade colonial.”2

1
A “história dos vencidos” não deixava de guardar vinculações com a “história vista de baixo”, de
inspiração marxista presente na historiografia européia. Suas implicações políticas são evidentes,
alimentando e também sendo alimentada pelas lutas contemporâneas. Apenas para mencionar alguns dos
clássicos, ver Nathan Watchel. La vision des vaincuns. Les indiens du Pérou devant la Conquête espagnole, 1530-1570.
Paris: Gallimard, 1971; ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da Conquista Colonial: os conquistadores. São
Paulo: Perspectiva, 1973; LÉON-PORTILLA, Miguel. A conquista da América vista pelos índios. Petrópolis:
Vozes, 1984 (A edição da Visión del los Vencidos, do mesmo autor, é de 1959).
2
Cf. MONTEIRO, John Manuel. De índio a escravo. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, v. 30/31/32, p.
170, 1989.

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Destacando a importância de revisão crítica da historiografia, Monteiro a
dividiu, grosso modo, em duas vertentes no que diz respeito à questão do trabalho
indígena: de um lado, trabalhos que partiam de uma ótica institucional enfatizando a
trajetória de formação de uma política indigenista. A despeito de suas contribuições,
sublinha o autor que as abordagens construídas nesse perfil mantiveram o índio na
condição de objeto ou, no máximo, de vítima passiva de processos exteriores. A
outra vertente de trabalhos, considerada mais rica, procurou registrar o índio como
ator histórico no drama colonial. Mesmo notando o crescimento de trabalhos na
área, Monteiro não deixou de pontuar a necessidade de ampliação dessas investigações.3
Seis anos depois (1995), Monteiro fez novo balanço da produção acerca da
história indígena, mas ainda estava presente a constatação das limitações da
historiografia. Parecia que a sentença de Francisco Adolfo Varnhagen de que, para
os índios, “não existia história, apenas etnografia” tinha penetrado mais fundo do
que se poderia imaginar. Porém já existiam sinais importantes de mudança.4
Falar em história indígena significa, necessariamente, recorrer aos trabalhos
que se realizam na fronteira entre a história e a antropologia. Monteiro assegura que
esses trabalhos buscam não só preencher vazios deixados por décadas de silêncio,
mas também e, principalmente, discutir criticamente as diferentes formas de
abordagem do passado dos povos indígenas. No desdobrar dessa discussão, foi
colocada em xeque uma postura pessimista que marcou profundamente as leituras
quanto ao futuro possível para os índios: o seu fatal desaparecimento (físico e/ou
cultural).

3
Na primeira vertente, Monteiro enumera os trabalhos de Mathias Kieman. The Indian Policy of Portugal in the
Amazon Region, 1614-1693; BELLOTO, Heloísa L. Trabalho indígena, regalismo e colonização no Estado
do Maranhão nos séculos XVII e XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, 4, p. 177-192, 1982.
THOMAS, George. Política indigenista dos portugueses no Brasil. São Paulo: Loyola, 1982. Na segunda, são
mencionados os de THOMAS, John. Red Gold. The Conquest of the Brazilian Indians. Cambridge: Harvard
University Press, 1978; RIBEIRO, Berta. O Indio na História do Brasil. São Paulo: Global, 1983; SCHWARTZ,
Stuart. Indian Labor and New World Plantations: European Demands and Indian Responses in the
Northeastern Brazil. American Historical Review. Washington, p. 43-79, 83. SWEET, David. A Rich Realm of
Nature Destroyed: the Middle Amazon Valley, 1640-1750. PhD Thesis, University of Winsconsin, Madison,
1974, Dauril Alden. Indian versus Black Slavery in the State of Maranhão during Seventeenth and
Eighteenth Centuries, Biblioteca Americana, 1, n. 3, p. 91-142; MOTT, Luís. Os índios e a pecuária nas
fazendas de gado do Piauí Colonial. Revista de Antropologia, 22, p. 61-78, São Paulo. FARAGE, Nádia. As
muralhas dos sertões: os povos indígenas do rio Branco e a colonização. Unicamp, Dissertação de Mestrado,
1986. Rio de Janeiro: Paz e Terra/ ANPOCS, 1991.
4
Cf. MONTEIRO, John Manuel. O desafio da história indígena no Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da;
GRUPIONI, Luís Donisete (Org.). A temática indígena na escola. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, p. 221-228,
1995.

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Essa era uma tese sustentada por diferentes correntes do pensamento social
brasileiro que foi reforçada pelas teorias que orientavam a antropologia no país e
marcou significativamente as políticas indigenistas: na melhor das perspectivas, a
“integração” era algo de inexorável e seu impacto poderia ser, no máximo, amenizado
pelas agências de proteção.5
Nessa mesma direção, Manuela Carneiro da Cunha já tinha apontado –
“por má consciência e boas intenções” – a durabilidade da noção de que os índios
foram apenas vítimas do sistema mundial, de políticas e práticas externas que os
levaram à destruição. Se o sentido da história deveria vir obrigatoriamente de seu
epicentro – a metrópole –, a periferia era uma mera resultante. Dizia Carneiro da
Cunha que “o resultado paradoxal dessa postura ‘politicamente correta’ foi somar à
eliminação física e étnica dos índios sua eliminação como sujeitos históricos.”6
John Monteiro identifica que o principal movimento de reversão desse
pressuposto veio dos próprios índios expresso através de novas formas de expressão
política quando suas organizações reinventaram o próprio significado da noção de
autonomia na luta pela reivindicação e retomada de direitos históricos. Sem contar
a tendência de estabilidade e até de crescimento demográfico de populações o que,
na prática, sinalizou a revitalização física e até mesmo cultural de populações até
então fadadas à “extinção”.
Ao encontro desse processo, o que Monteiro chama de “um novo
indigenismo” pode então pautar-se em uma bibliografia renovada, preocupada não
apenas com questões acadêmicas mas também interessada em instrumentalizar as
reivindicações contemporâneas dessas populações. O resultado foi o aumento da
“visibilidade dos povos indígenas numa história que sempre os omitiu, como também
revela as perspectivas destes mesmos povos sobre seu próprio passado, incluindo
visões alternativas do contato e da conquista.”7
Entre historiadores, trabalhos mais recentes sinalizaram leituras renovadas.
Importante destacar, inicialmente, o trabalho do próprio John Monteiro, Negros da
Terra, que recuperou a presença e a importância do uso da mão-de-obra indígena
em São Paulo colonial. Também A Heresia dos Índios de Ronaldo Vainfas, que analisa

5
MONTEIRO, J. M. Idem, p. 222, 1995.
6
CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). Introdução à uma história indígena. In: História dos indios no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 17-18.
7
MONTEIRO, J. M. Idem, p. 223, 1995.

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a Santidade do Jaguaribe concebendo a idolatria como uma manifestação de
resistência ao colonialismo e, assim, trata-a como um fenômeno historicamente novo,
ao mesmo tempo, produto do confronto colonial e também da reestruturação das
relações de poder e de novas estratégias de sobrevivência das populações indígenas.
As considerações de Edgard Ferreira Neto acerca do papel de ruptura
desempenhado pela pesquisa em etnohistória também remetem para uma revisão
importante, questionando a validade de juízos universalizantes e de base etnocêntrica,
permitindo evidenciar a historicidade e as dinâmicas internas das diferentes sociedades
humanas. 8
Para a Amazônia, também recentemente, Francisco Jorge dos Santos relendo
um tema tão clássico quanto é a resistência dos índios na Amazônia pombalina, não
deixou de enfatizar o peso das políticas indígenas na elaboração desses confrontos.
A mais inovadora é, sem dúvida, a proposta de Barbara Sommer que, analisando o
processo colonial no Grão-Pará, vai na contramão da historiografia que enfatiza
apenas a destruição sistemática das populações indígenas, colocando em relevo seu
ativo papel histórico nas negociações e na demarcação dos limites que deram o tom
dos estabelecimentos coloniais na região.9
Se, por um lado, ainda é inquestionável o vigor da produção dos
antropólogos, como bem demonstra História dos Índios no Brasil organizada por
Manuela Carneiro da Cunha, por outro, lendo atentamente, a maior tarefa ainda
parece ser atribuída aos historiadores expressa no que Monteiro definiu como um
duplo desafio. É preciso recuperar o papel histórico de atores índios na formação
das sociedades e culturas do continente. Porém não se trata apenas de resgatar outra
leva de “esquecidos” da história; é preciso antes “redimir a própria historiografia de
seu papel conivente na tentativa – fracassada – de erradicar os índios.” 10 Sinceramente,
um desafio desses não é algo que possa passar despercebido...

8
MONTEIRO, John Manuel. Os negros da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. VAINFAS,
Ronaldo. A heresia dos índios. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. FERREIRA NETO, Edgard.
História e etnia. In: VAINFAS, Ronaldo; CARDOSO, Ciro F. S. (Org.). Domínios da história. Rio de Janeiro:
Campus, p. 313-328, 1997.
9
SANTOS, Francisco Jorge dos. Guerras e rebeliões indígenas na Amazônia na época do Diretório Pombalino (1757-
1798). Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, 1995. Além da conquista: guerras e rebeliões indígenas na
Amazônia. Manaus: EDUA, 1999. SOMMER, Barbara. Negociated Settlements: Native Amazonian and
Portuguese Policy in Pará, Brazil, 1758-1798. New Mexico: University of New Mexico, PhD Thesis, 2000.
10
MONTEIRO, J. M. Idem, p. 227, 1995.

22 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


A proposta que se apresenta aqui traduz um esforço de incorporar essas
novas perspectivas de análise, tendo como objeto a sociedade colonial estabelecida
no Grão-Pará e seus sertões. Esse trabalho busca, em particular, refletir sobre a
produção e reiteração de diferenças e desigualdades a partir da segunda metade do
século XVIII e sobre o papel jogado pelo conjunto de atores nelas envolvidos nas
formas historicamente específicas assumidas por esta reiteração. A idéia central é
que as políticas indigenistas da Coroa (Diretório – 1757 e Carta Régia de 1798)
fundaram a possibilidade de uma igualdade (antes inexistente), mas que, ao mesmo
tempo, viabilizava a utilização compulsória do trabalho indígena, essencial para
reprodução da sociedade amazônica.
Tratando as políticas indigenistas como a expressão legal de um projeto de
dominação colonial, na sua análise, entretanto, buscaram-se enfatizar as ações dos
próprios atores índios que, a princípio, seriam objetos imediatos de sua aplicação. A
ênfase na interação entre políticas indígenas e indigenistas teve, como vetor de
investigação, a hipótese de que os atores índios não foram meros objetos desses
projetos de dominação, mas, no decorrer da sua aplicação, interferiram – na medida
de suas possibilidades – na sua implementação. No limite, foi essa intervenção que
transformou um projeto colonial em processo colonial.



No decorrer desses anos, essa pesquisa sofreu revisões profundas que a


transformaram em uma proposta distinta daquela inicialmente esboçada. É certo
que, nessa conjuntura, este não é um comentário original, nem se tratando dos
diversos (des)caminhos da pesquisa histórica e menos ainda quando se refere a uma
que tenha a Amazônia como objeto de reflexão. As afinidades da proposta atualmente
desenvolvida com o projeto original são poucas; resguardei a preocupação com as
questões relativas à desigualdade étnica e social e ao lugar dos índios no contexto
das hierarquias locais.
A revisão começou ainda quando eu iniciava o levantamento documental
no Rio de Janeiro. Em uma das primeiras reuniões com minha orientadora (Prof.a
Dra Hebe Maria Mattos), enquanto eu tentava explicar as categorias de um censo do
XIX, ela me fez algumas perguntas aparentemente simples: “Afinal, qual é a diferença
entre pardo, mestiço e caboclo? Quando é que essas categorias são formuladas?

E spelhos P art i dos 23


Como é que se pode distinguir cidadãos do Império dessa forma?” Eu não tinha
condições de responder a nenhuma delas. Partira de um recorte sobre o qual essas
categorias já estavam estabelecidas, mas não tinha refletido sobre suas variações ou
mesmo sobre o lugar dessas fórmulas prontas.
Buscando as respostas, concentrei minhas leituras na historiografia da
Amazônia colonial e fiz muitas incursões na antropologia. Na verdade, à proporção
que o levantamento documental apresentava seus primeiros resultados, novas questões
iam se delineando e aquelas perguntas se ampliando. Foi aí que ficou claro que o
“início” dessa história estava relacionado com a aplicação da política pombalina na
região, quando os vassalos do Rei deveriam ser tratados como iguais; mas uns eram
mais iguais do que os outros...
Foi grande a surpresa (e não menor o meu entusiasmo) com a riqueza da
documentação existente no Arquivo Público do Pará; mesmo a documentação do
Museu Amazônico em Manaus – já conhecida minha de outros tempos – aparecia
agora com nuances insuspeitas. A disponibilidade documental assegurou a
possibilidade de reelaborar minha proposta de pesquisa que, necessariamente, deveria
iniciar-se no século XVIII. Agora, quem sabe posso tentar começar a responder
àquelas perguntas...
Antes de apresentar o trabalho, talvez fosse importante, se não for cansativo,
recuperar minha própria trajetória com relação ao tema e seus personagens. Sempre
vivi na Amazônia, portanto a minha opção pela região não é apenas acadêmica, mas
guarda profundas ligações com tudo que experimentei nesses anos.
Meus contatos com a história indígena remontam à graduação, sendo parte
de uma geração de historiadores que foi ‘apresentada’ ao tema guiada pelo entusiasmo
do Prof. José Ribamar Bessa Freire. Esta temática – pela importância e densidade
da questão indígena na Amazônia contemporânea – costuma emergir e vincular-se
(às vezes, insistentemente) às nossas pesquisas.
É certo que meu contato com essas populações era sempre acadêmico.
Costumava dizer aos amigos que trabalham em organizações indígenas que “meus
índios” já não existiam mais. Ledo engano do qual me dei conta em 1997, quando
assessorei a comissão organizadora da exposição Memórias da Amazônia, um fantástico
evento realizado pelas universidades do Amazonas, Coimbra e Porto expondo,
pela primeira vez no Brasil, o material etnográfico coletado durante a viagem do
naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira à Amazônia em finais do século XVIII.

24 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Paralelamente aos eventos acadêmicos que já nos são familiares, representantes
das diferentes etnias que habitam a Amazônia hoje participavam ativamente da
exposição. Dança, música, artesanato, histórias, pinturas, rituais e manifestações de
caráter político em defesa de identidades e territórios foram a tônica dos meses em
que a mostra se desenrolou. Não posso esquecer o trabalho coletivo dos índios do
rio Negro (Desâna e Tukano) construindo a maloca Tuyuka, a precisão das amarras
de cipó, a organização silenciosa sobre a qual eu mesma tinha preparado um folheto
explicativo, sem nunca tê-la visto de perto. Muito menos da luminosidade da maloca
dos Kinja (Waimiri-Atroari) depois que ficou pronta e ambientada pelos técnicos
do nosso museu sob a atenta orientação dos Kinja.
Impossível descrever a sensação de ver meu filho dançando com outras
crianças em meio aos Sateré-Mawé ou envolvido pela fumaça dos rituais de cura
do Pajé Leôncio Apurinã, ao mesmo tempo em que lembrava que sua bisavó Rosa
era uma índia Mura do rio Solimões. Também não consegui entender a minha
emoção desarmada pela delicadeza da dança de despedida dos Yanomami. Pensar
em Haximu era como um pesadelo.
Assisti ainda a inúmeras negociações com os índios citadinos fechando
contratos e a diferentes situações, impossíveis de recuperar agora, que definíamos
como “reedições coloniais”; estávamos – de novo – todos lá: índios, portugueses,
brasileiros, tapuios, cientistas, militares, autoridades públicas disputando, negociando
e confrontando projetos diferenciados. Posso lembrar também a densidade dos
discursos das lideranças indígenas e seus dilemas contemporâneos, divididas entre
as pressões internas de suas comunidades, das ONG’s e outras forças externas.
Em se tratando dos índios, não cabia sequer revisitar o “bom selvagem” ou
mesmo pensar exclusivamente em “vencidos”, vítimas indefesas diante da voracidade
dos brancos. Estava diante de sujeitos históricos concretos. Isso era o que mais me
impressionava. Enquanto eu pensava estar construindo um tema de pesquisa situado
no século XVIII, ele se desenhava diante dos meus olhos, nos comentários dos
visitantes diante das peças e das oficinas indígenas, nos olhos atentos e na fala pausada
dos índios, nas alianças e concessões mútuas necessárias ao funcionamento da
exposição, nas recordações gradativas, nos inúmeros choques de um cotidiano
subitamente tornado colonial.
Recuperei memórias antigas como as criadas índias das casas dos fazendeiros
de Roraima, acordadas durante a madrugada para atender solicitações descabidas
de suas patroas. Ou a história da Margarida, que veio do interior ainda pequena para

E spelhos P art i dos 25


ser criada em Manaus pela família de um delegado de quem apanhava tanto que,
aos quase 70 anos, ainda podia mostrar cicatrizes. Sem contar a surpresa do reencontro
inesperado e a forte emoção com que revivi as dolorosas lembranças de exclusão e
preconceito da minha amiga Juvita, filha de uma índia Wapixana, com quem dividi
os bancos escolares ainda na infância.
Violência e resistência, alianças estratégicas e omissões, desigualdade e
preconceito. Risos, dores e silêncios. Sobrevivência. Cenas e histórias corriqueiras do
mundo amazônico. Era quase inevitável que essas impressões aparecessem nas minhas
perguntas e inquietações. A complexidade dos sujeitos históricos terminou por tornar-
se demasiado evidente para caber em reducionismos apressados e reclamava muito
mais para entender o intrincado processo de construção das desigualdades e das
diferenças que ajudasse a explicar essas e tantas outras histórias. Foi assim, feito de
memórias e inquietudes, que comecei a completar o desenho desse trabalho.



Depois de 5 séculos, um dos traços mais visíveis do país é a desigualdade.


O peso da escravidão africana, do trabalho compulsório dos índios e da acumulação
desigual da riqueza corporificou-se em dramáticas realidades de exclusão,
discriminação e intolerância. Este é um legado colonial, mas não é o único. Refletir
sobre a sociedade colonial que se formou no Brasil significa debruçar-se sobre
realidades mais complexas do que aquela produzida por leituras generalizantes e
apressadas que a dividiram em dois blocos; de um lado, os dominantes – senhores
de todas as prerrogativas de poder, vorazes exploradores de índios, negros e outros
desclassificados sociais. Do outro lado, os dominados – massa informe, sem
identidade e sem outra perspectiva histórica senão a subordinação ou o extermínio.
Indicar as limitações dessa abordagem não significa afirmar a inexistência
da exploração e expropriação violentas e suas cruéis resultantes sociais. Ao contrário,
destacar a complexidade do mundo colonial significa, antes de tudo, recuperar a
historicidade de personagens que, através de processos múltiplos, transformaram projeto
colonial em processo colonial e isso não é pouco.
No limite, o que se está buscando colocar no horizonte da reflexão é a
busca de variáveis que iluminem os mecanismos de mudança social e o
desvendamento das formas pelas quais seus atores – ainda que em posição
subordinada – tomaram nas mãos seus próprios destinos. Esse é o limite de tais

26 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


leituras dicotômicas; não permitem que se abram caminhos para a explicação de
fenômenos aparentemente impossíveis de ocorrer. Se é possível recuperar aqui as
rebeliões indígenas e escravas, os quilombos e mocambos, as revoltas populares de
enorme densidade social e política, também é imperioso resgatar as inúmeras táticas
de sobrevivência e o emprego de estratégias políticas de resultados possíveis.
Se vistos apenas como meros espasmos de reação à dominação e não como
embates entre projetos diferenciados, esses processos – e outros aqui não referidos
– perdem em riqueza de possibilidades porque esvaziados das ações dos que ousaram
conduzir-se pelos seus sonhos. Sem dúvida, a sociedade que resultou desses embates
é profundamente desigual, mas é preciso não esquecer que as possibilidades de
gestação e articulação de projetos alternativos estão presentes no seio dessa estrutura,
indicando e refazendo seus limites.
Observando a produção sobre a história dos índios no Brasil e,
especialmente aquela relativa à Amazônia, não pude deixar de relacionar a construção
dicotômica dos índios –“heróis da resistência”, de um lado, e de outro, “pacíficos e
colaboradores” – com uma trajetória similar à que se verificava na historiografia
acerca da escravidão negra no Brasil, acompanhando o mesmo viés empregado
por Eduardo Silva, quando categorizava Zumbi e Pai João. Foi durante uma
conferência de John Monteiro (Manaus,1997) que apresentei, de forma ainda muito
incipiente, essa avaliação chamando-os de ajuricabas e canicurus, respectivamente.11
Não se tratava de uma proposição tão nova assim. De fato, como já se
disse, na antropologia, a discussão acerca dos índios enquanto atores históricos reais
era bastante presente e alimentava vários trabalhos de referência como o organizado
por Manuela Carneiro da Cunha (História dos Índios no Brasil) e também o de John
Monteiro (Os Negros da Terra). O postulado básico vinculava-se à antropologia
histórica que, ao contrário da tendência de minimizar (ou mesmo eliminar) a
participação dos índios, buscava qualificar a ação consciente desses povos enquanto
sujeitos concretos, articulando estratégias políticas e desenhando destinos possíveis,
ainda que em condições de subordinação e dominação.12

11
Canicuru: “Traidor. Nome que no rio Negro davam aos índios que se tinham submetido e aceito o jugo
português.” Cf. STRADELLI, Ermano. Vocabularios da lingua geral. 1929: 11-768. Ajuricaba foi o líder da
famosa guerra dos índios Manaó (Rio Negro - 1727-1738), paradigma da resistência indígena. Em artigo
recente, Monteiro comentou essa intervenção, posteriormente apresentada em um paper na XXI LASA/
1998. Cf. John Monteiro. “Armas e Armadilhas”. In: NOVAES, Adauto (Org.). A outra margem do Ocidente,
p. 223-236.
12
MONTEIRO, John. Idem, p. 227, 1995 ; CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução à uma história indígena.
In: História dos índios no Brasil, p. 18-19. MONTEIRO, John. Os negros da terra. São Paulo: Cia das Letras, 1992.

E spelhos P art i dos 27


Depois de algum tempo (e muitas outras leituras), passei a acreditar que, na
consolidação da história indígena como linha de pesquisa, seria possível valer-se das
experiências de reflexão advindas das releituras feitas para a escravidão e, de certa
forma, poupar caminhos nesse processo de construção.
As considerações de Flávio Gomes ajudaram a avançar essa compreensão.
Afirma o historiador que novas pesquisas e abordagens da história da escravidão
vêm permitindo a crítica da idéia modelo de um tipo de rebeldia escrava que se
esgotava em si mesmo, expressando apenas uma “reação” contra a violência senhorial
e do próprio cativeiro. Foi o esforço de ampliar a compreensão das lutas dos escravos
que a ênfase na “reação” cedeu a vez para as reflexões sobre as ações e seus significados.

Não se pretendeu negar ou obscurecer a violência e a ‘coisificação’


física dos escravos, porém, novos estudos tentaram mais que
atravessar sob a superfície, o mar das denúncias e da constatação,
e sim mergulhar nas profundidades do cotidiano das experiências
e visões escravas. Sob a escravidão, é certo, milhares de homens e
mulheres não só viveram. Procuraram, na medida do possível,
organizar suas vidas, recriando-as.13

Em outros trabalhos mais contemporâneos sobre escravidão, busquei (e


encontrei) inspiração para rever determinadas informações e tentar refinar algumas
proposições; foi assim com o clássico de Claude Meillassoux, Antropologia da
Escravidão, para pensar a questão da produção de “estrangeiros”, o de Manolo
Florentino & Roberto Góes, A paz das senzalas, para revisitar estratégias de acordos
cotidianos e o acesso a determinados privilégios e prerrogativas no contexto do
cativeiro, o de Robert W. Slenes, Na senzala, uma flor, o de Sidney Chalhoub, Visões da
Liberdade, e também o de Hebe Mattos, Das Cores do Silêncio. 14

13
GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: quilombos e mocambos no Brasil (sécs. XVIII e XIX).
Tese de Doutorado. Campinas: Unicamp, p. 4-5, 1997.
14
MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Zahar,
1995; FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico,
Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. SLENES, Robert W. Na
senzala, uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990. MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no
Sudeste escravista. Brasil - século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

28 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Ampliando a questão, o que está em jogo, como bem definiu Hebe Mattos
é a influência das ações e motivações humanas na história, seus condicionamentos e
limites. Mas não se trata apenas de optar por uma abordagem que privilegia o
reconhecimento de agentes históricos ou por outra que enfatiza os fenômenos
coletivos e as tendências de longo prazo que limitam, informam e condicionam a
história humana. O que Mattos propôs, informada pelas experiências da microhistória
italiana (e, na medida das possibilidades, tentei eu acompanhar), foi a construção de
uma leitura que integrasse ambas as questões, tentando articular o tempo longo das
estruturas culturais e sócio-econômicas ao tempo do vivido, dando ênfase ao papel
da experiência humana para o entendimento da dinâmica histórica e social.15
Partindo da conjuntura de implementação da política pombalina na região,
através do Diretório e suas leis complementares, a idéia é demonstrar que índios,
tapuios e portugueses defrontaram-se com projetos diferenciados e esses confrontos
nem sempre foram belicosos ou necessariamente desfavoráveis aos índios. Mais do
que isso, esse projeto colonial sofreu reveses e “adaptações” como resultado tanto
da configuração das povoações e aldeamentos já existentes como das diferentes
ações e reações que índios aldeados empregaram no seu cotidiano para fazer frente
àquelas empreendidas no contexto do colonialismo luso.
O corpo documental que dá base a esse trabalho é extremamente variado.
Utilizei as correspondências oficiais existentes no Arquivo Público do Pará mantidas
entre os diferentes níveis da administração colonial, relatos coloniais de diferentes
matrizes (viajantes, cientistas, eclesiásticos, funcionários da Coroa, militares), inventários
post-mortem, mapas de população e mapas de comércio das povoações. Porém a
base documental que dá sentido ao texto é a própria política indigenista: o Diretório
(1757) e a Carta Régia (1798). Esses são projetos diferenciados; enquanto o Diretório
se constitui em uma política global que se aplica ao conjunto da colônia portuguesa
na América, a Carta de 1798 é produzida em estreita consonância com as questões
locais e não é aplicada fora dos limites do Estado do Grão-Pará e Rio Negro.
Assim, a própria legislação serviu como baliza cronológica inicial para delimitação
do trabalho que se inicia com o Diretório, passa pela sua extinção em 1798 e alcança
o final do período colonial na região em 1823, quando o Grão-Pará adere à
independência do Brasil, indicando o fim do período colonial.

15
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Op. cit., p. 16-17

E spelhos P art i dos 29


A opção pelo recorte em 1823, entretanto, não se justifica apenas pelo “fim
da colônia”, ainda que esse seja aqui seu motivo mais relevante; nesse mesmo
momento, José Bonifácio de Andrada elabora e apresenta uma nova proposta de
intervenção geral com relação às populações indígenas do novo império. O novo
projeto deveria fazer parte da carta constitucional, àquela altura, em elaboração. Tal
não aconteceu e o império brasileiro só legislaria para o conjunto da população
indígena apenas em 1845, com a publicação do Regimento das Missões.16
Se vista como um conjunto, a política indigenista, entre 1798 e 1845,
permanece estreitamente informada pelas demandas locais, na mesma medida em
que a autonomia provincial, garantida pela nova estrutura administrativa, permitirá
a emergência de propostas pontuais que são (naturalmente) muito variadas entre si:
poderiam ir desde a reativação do Diretório, como ocorreu no Ceará, até a criação
de leis novas, como o Corpo de Trabalhadores criado no Pará pós-Cabanagem.
Desse modo, acredita-se que 1823 representa a acentuação de um processo,
já em curso no final do século XVIII, que desloca as preocupações com a civilização
dos índios, afastando-se progressivamente da variável mão-de-obra para a variável
ocupação das suas terras. É nesse sentido que os projetos locais refletem, com maior
ou menor intensidade, esse distanciamento. No caso da Amazônia, a preocupação
com a incorporação dos índios, sobretudo enquanto força de trabalho, persiste na
pauta das administrações locais, durante o decorrer do século XIX. É muito provável
que a abertura de espaço para que os poderes locais pudessem ingerir diretamente
nessa questão, definindo os rumos que julgava adequados, tenha contribuído para a
não-efetivação do projeto de Bonifácio.17
De todo modo, quando se trata da política indigenista, é fácil perceber o
quanto os recortes cronológicos de matrizes políticas não dão conta de sua diversidade.
Como demonstram os livros de câmaras aqui utilizados, a Carta de 1798 permanece
em vigor na região até a eclosão da Cabanagem (1835). Mesmo no pós-Cabanagem,
quando a Carta já não mais era referência, a Assembléia Provincial do Pará produz o
seu próprio “corpo de trabalhadores” – figura central criada pela legislação de 1798 – que

16
SILVA, José Bonifácio de Andrada e.; DOLHNIKOFF, Miriam (Org.). Projetos para o Brasil. São Paulo: Cia
das Letras, 1998. Ver também CUNHA, Manuela Carneiro da. Pensar os índios: apontamentos sobre José
Bonifácio. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense/EDUSP, p. 165-173,
1986.
17
As idéias quanto às transformações sofridas no trato da questão indígena no século XIX são de Manuela
C. da Cunha. Ver Legislação indigenista no século XIX. São Paulo: EDUSP/Comissão Pró-Índio de São Paulo,
p. 4, 1992.

30 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


vigora no Pará até bem entrada a segunda metade do século XIX e aplicado em
concomitância à legislação imperial de 1845, tanto no Pará quanto no Amazonas.
A continuidade da política, assim, deixa (entre outras) a sensação não só de
reiteração da situação colonial – que é fato –, mas também um incômodo sentimento
de que o trabalho jamais chegará ao fim. Como disse (providencialmente) Manuela
Carneiro da Cunha,

a escolha que se coloca é entre terminar o trabalho e dá-lo por


terminado. Em um caso, tenta-se atingir assintoticamente uma
inalcançável exaustividade, no outro, para-se. Optamos por parar
quando sua densidade nos pareceu suficiente.18

Acompanhar a aplicação do corpo legal que conformava a política


indigenista da Coroa portuguesa a partir da segunda metade do século XVIII teve
como inspiração fundamental, a obra Senhores e Caçadores, de E. P. Thompson. Ainda
que não possa considerar o que aqui se faz como um “experimento historiográfico”,
foi a partir daí que se processaram as operações de “ler” a lei e buscar, na
documentação, seus desdobramentos efetivos tanto com o Diretório Pombalino de
1757 quanto com a Carta Régia de 1798.19
Esse procedimento, como bem explicitou Beatriz Perrone-Moisés, partiu
do pressuposto de que a política indigenista não é mera aplicação de um projeto a
uma massa indiferenciada de índios. Ao contrário, é “um processo vivo formado
por uma interação entre vários atores, inclusive indígenas, várias situações criadas
por essa interação e um constante diálogo com valores culturais”.20
Os fragmentos das histórias de vida que emergiram do contato com essa
documentação e com toda uma historiografia serviam como sinais e pistas para
tentar penetrar além da superfície do discurso legal, da fala oficial e, a partir deles,
tentar captar outros movimentos. Nesse particular, os procedimentos de pesquisa
inspirados na microhistória foram de enorme valia, na operação de coletar fragmentos,
rejuntar peças, perseguir rastros, pistas e sinais.21

18
CUNHA, Manuela C. da (Org.). Legislação indigenista no século XIX, op. cit., p. 3
19
THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
20
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos. In: CUNHA, Manuela C. da. História dos
índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, p. 129, 1992.
21
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. LEVI, Giovanni. La
herencia inmaterial. Madrid: Editorial NEREA, 1990. REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escala. Rio de Janeiro:
Ed. da FGV, 1998.

E spelhos P art i dos 31


O trato da documentação permitiu apontar a criação e consolidação de
uma hierarquia indígena que se diferenciava do conjunto das populações aldeadas e
dos gentios como resultante das ações de catequese missionária e das próprias
estratégias de sobrevivência (individuais ou coletivas) que emergiram do contato, da
convivência e do confronto. Reconhecidos pelo aparato legal que surgiu com a
administração pombalina, Principais, Oficiais e Abalizados serão os membros
preferenciais dessa elite que estabelece relações de mediação com agentes do mundo
colonial, ingerindo em diferentes espaços de poder
Na trama das relações de poder que se consolidam no decorrer do século
XVIII, a hierarquização dos vassalos, potencializada pelo Diretório, abriu espaço
para que certos indivíduos, ao ocuparem postos administrativos e militares, se
valessem das prerrogativas dos seus cargos públicos para acessarem – de forma
mais livre – o trabalho compulsório das populações aldeadas e, até mesmo, o crédito.
Desta forma, criou-se uma relação indissociável entre hierarquização social e poder
político e econômico. É aqui que as pontas se unem porque as hierarquias se fundam
sobre um discurso informado por bases étnicas em função do suposto estado de
barbárie dos índios.
O trabalho está fundado no argumento de que existe uma hierarquia social
excludente que se fundamenta, em última análise, sobre um discurso que reforça a
desigualdade existente entre barbárie e civilização. Contudo sua manutenção só parece
ser possível com o envolvimento dos agentes que dela participam incluindo-se aí, os
índios, os tapuias e mestiços, ou seja, o ponto nevrálgico é o fato de que as populações
aldeadas participam da reificação da desigualdade porque, em certa medida, são
algumas de suas próprias estratégias que colaboram na reiteração dessa estrutura
desigual.
A questão central dessas políticas de tutela sobre a passagem do índio da
barbárie à civilização (de fato, um processo de destribalização) reside no fato de ela
fundar uma possibilidade de igualdade formal, “lenta e gradual”, antes inexistente,
que viabilizava regularmente, entretanto, formas de utilização compulsória da mão
de obra indígena, chave importante do processo de produção e reprodução da
sociedade colonial amazônica. Nesse contexto, compreender esse processo de
produção e reiteração de desigualdades passa pela compreensão dos caminhos
disponíveis para que essas hierarquias se consolidassem estruturalmente. Como se
tratava de observar políticas e seus desdobramentos efetivos, destacar o peso das

32 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


câmaras e também das tropas coloniais no cotidiano das povoações coloniais serviu
para lançar mais luz sobre essas relações.
A sociedade colonial de finais do século XVIII e meados do XIX é complexa.
O fluxo de novas populações indígenas permanecia constante reiterando a chegada
de novos “estrangeiros” nas povoações e obrigando a constantes rearranjos. É dentro
dessa lógica mais ampliada que devem ser situados os limites da aplicabilidade das
políticas de igualdade preconizadas na legislação pós-Pombal. Na mesma medida
em que os padrões coloniais de uso compulsório da mão-de-obra permanecem,
persiste a oposição entre barbárie e civilização funcionando como elemento de
diferenciação das populações já incorporadas daquelas ainda em vias de incorporação.
Uma observação importante: participar dessa reificação, contudo, não deve
significar a desqualificação desses agentes, tratando-os, de maneira maniqueísta, como
“traidores” ou indivíduos “fracos” e “incapazes” de articular qualquer atitude contra
a dominação colonial. Não é tão simples assim. Entrar nessa lógica representava
apenas uma parte em um jogo de possibilidades e, mesmo inseridos nas hierarquias
coloniais, esses indivíduos não seguiram apenas o que se poderia considerar como o
caminho da “submissão”. Ao contrário, é possível perceber que, exatamente utilizando
de suas prerrogativas, conseguiram, inclusive, forjar novas regras em seu benefício e
também de suas comunidades. Evidentemente, não se trata aqui de enfatizar o papel
do indivíduo isolado na construção do processo histórico. Ao contrário, fala-se aqui
de ações, sobretudo, coletivas, fundadas em identidades construídas e reconstruídas
no contexto da colonização.



No esforço de procurar combinar o micro e o macro, o trabalho está


dividido em duas partes. A primeira Quando o fim é o começo: os mundos da fronteira
amazônica no século XVIII apresenta e demarca os espaços, os personagens e suas
relações. Busca recuperar também esboços do “sertão” tal como aparecem no século
XVIII para, posteriormente, dialogar com as estratégias coloniais para ocupação e
com a sociedade de fronteira daí resultante na tentativa de aproximar-se da
complexidade que caracteriza os sertões do Grão-Pará nesse período.
A segunda parte Códigos da Fronteira: consolidando diferenças abre com a história
do sargento tapuio Felipe Muniz. Vivendo em um momento favorável à afirmação
da igualdade entre os vassalos, Felipe é preterido em sua promoção, entre outras

E spelhos P art i dos 33


razões, porque era índio. Tendo o Diretório (1757) e a Carta de 1798 como eixos
condutores para falar da desigualdade, apresentam-se os textos legais e seu
funcionamento, buscando acompanhar o processo que emergiu ainda durante o
Diretório pombalino e se consolidou no final do século XVIII com a nova legislação:
a progressiva diferenciação e hierarquização dos vassalos reais nos sertões do Grão-
Pará.
Também se recuperam, nessa parte, as linhas gerais dos fluxos da produção
de riquezas do Grão-Pará colonial, entendendo que é fundamental destacar e
compreender a forma e os mecanismos de inserção dos diferentes atores que
compõem nosso quadro. As populações indígenas são incorporadas ao mundo
colonial, inicialmente, como mão-de-obra e este é um aspecto importante para
compreender estratégias e mecanismos não só da criação, mas também da própria
reiteração das diferenças. Ainda é no decorrer do XVIII que novos personagens
entram em cena com mais vigor: Belém entra no fluxo do tráfico atlântico de almas
e os escravos africanos passam a fazer parte desse tecido social carregando-o de
novas contradições.
Da lei à sua aplicação, dos dados aos processos, a ênfase dada às histórias
de vida tem por finalidade iluminar as estratégias de sobrevivência no mundo
amazônico colonial e a própria possibilidade de construção de um “novo mundo”.
Partindo do pressuposto de que não existe um caminho único para demarcar esse
campo de possibilidades, a proposta é apresentar a multiplicidade daquilo que foi
identificado como estratégia de sobrevivência e recriação de espaços no mundo
colonial.

34 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


PARTE I

QUANDO O FIM É O COMEÇO:


OS MUNDOS DA FRONTEIRA NA AMAZÔNIA DO SÉCULO XVIII

E spelhos P art i dos 35


36 Patrí cia Maria Mel o Sampaio
Os moradores da colônia viviam em um e entre três mundos: a vila, o reino
e o sertão. Mundos diversos entre si mas que afetavam profundamente a vida das
pessoas a tal ponto que “o modo como as famílias interagiam em cada uma dessas
áreas determinou em grande parte sua riqueza e posição social”.1
Porém, ainda que considerando as estreitas relações entre esses mundos,
nada mais poderia estar afastado do conhecido do que as zonas genericamente
denominadas de sertões. Na América colonial portuguesa elas pareciam mesmo ser
onipresentes. A rarefação do povoamento fora do circuito restrito do litoral fazia
com que, de certa maneira, todo o interior do território que veio a denominar-se
Brasil fosse um vasto sertão.
Poderia estar ao alcance da vista, imediatamente próximo aos imprecisos
limites das vilas e povoados espalhados nas solidões das Capitanias ou mesmo a
léguas de distância desses mesmos núcleos; o que definia o sertão não era apenas sua
maior ou menor proximidade, mas algo mais fluido que poderia incluir variáveis
diversas ou, por empréstimo de Le Goff, fronteiras mais permeáveis. Claro que a
distância era o critério mais visível e talvez o primeiro para defini-lo enquanto tal.
Mas distante da vila significava também afastado da civilização; esta é a segunda
imagem mais freqüente do sertão: selvagem, inóspito, bravio. Contudo não
necessariamente vazio ou despovoado. Poderia ser habitado sim, mas por uma
casta de gente diversa que, estranhamente, veria agregar e incorporar a si as
características e imagens da região onde viviam. Assim é que os primeiros habitadores
dos sertões serão os índios definidos como “feras”, “selvagens” e “bárbaros”.
A capacidade mutante e mutável do sertão é bem explorada no trabalho de
Hal Langfur tratando das chamadas “terras proibidas” nos sertões das Minas Gerais.
Retomando a questão da guerra aos índios Botocudo iniciada formalmente no

1
METCALF, Alida. Vila, Reino e Sertão no São Paulo Colonial. In: AZEVEDO, Francisca; MONTEIRO, John (Org.). Raízes da
América Latina. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1996, p. 419.

E spelhos P art i dos 37


século XIX, o autor propõe uma releitura da questão da fronteira e das “terras
proibidas” partindo do reconhecimento de que a guerra aos Botucudo, na verdade,
se iniciou ainda no século XVIII quando as definições de fronteira foram
reconceitualizadas diante das novas variáveis e ajustes que transformaram as terras
indígenas de Édens promissores em obstáculos a serem removidos e transpostos.2
É a partir dessa leitura que o autor percebe um contexto conceitual fluido e
o espaço de uma competição ideológica e cultural na qual posições irreconciliáveis
relativas ao significado do sertão oriental das Gerais competiram pela predominância
fazendo, em última análise, com que o espaço geográfico fosse reconstituído
culturalmente: de um deserto selvagem para uma fronteira plena de possibilidades
de enriquecimento, de uma barreira geográfica para uma cornucópia fértil de riquezas
a serem conquistadas. Langfur recupera noções e definições diferenciadas de sertão
sendo progressivamente construídas e apropriadas pelos diferentes agentes coloniais,
inclusive pelos próprios índios que, de uma certa maneira, utilizaram-se destas
redefinições (e, às vezes, indefinições) para traçar suas próprias estratégias políticas.
A conjunção de todas estas imagens pode formar um desenho peculiar do
sertão, genérico o suficiente para tornar-se comum nos relatos e, em certa medida,
nas próprias representações do mundo colonial, tal como descrito pelos seus
habitantes – os das vilas, não os dos sertões. Até mesmo porque é mais do que
provável que, para estes, as fronteiras fossem outras bem diversas. Assim é que a
imagem da fronteira a ser desbravada, ocupada, “desinfestada” é quase um sinônimo
de sertão, se é possível traduzir esse desenho para uma linguagem mais afeita aos
ouvidos contemporâneos.
Ainda que apresentando preocupações diferentes das que se tratam aqui,
não parece ser anacrônico considerar para as imagens do sertão algumas das
conclusões de Le Goff quanto ao deserto-floresta no ocidente medieval,
especialmente quando afirma que sua história foi sempre feita de “realidades espirituais
e materiais misturadas entre si, de um vaivém constante entre o geográfico e o
simbólico, o imaginário e o econômico, o social e o ideológico.”3

2
LANGFUR, Hal. The Prohibited Lands: Conquest, Contraband, and Indian Resistence in Minas Gerais, Brazil, 1760 - 1808.
Comunicação apresentada na XXI Reunião Internacional da Latin American Studies Association - LASA, Chicago, setembro/
1998.
3
LE GOFF, Jacques. O deserto-floresta no ocidente medieva. In: LE GOFF, J. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval,
Lisboa: Edições 70, p. 46, [s.d.]

38 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


No fundo, as imagens parecem encontrar-se referindo-se a um não-lugar
definido apenas em contraponto ou em oposição a outro mas, ao mesmo tempo,
com certa autonomia para existir de forma independente. Referindo-se à floresta, Le
Goff a recupera definida e utilizada como fronteira, refúgio para vencidos e
marginalizados e também fonte de materiais preciosos à sobrevivência cotidiana, reserva
de caça e outros alimentos. Lugar a um só tempo, repulsivo e desejável. Sem contar
que a floresta também poderia aparecer como um deserto de instituições e de leis.
Estas também são considerações possíveis para o sertão. V. Leonardi, no seu
ensaio Entre Árvores e Esquecimentos, define sertão destacando precisamente esta última
categoria: espaços fora do alcance e dos limites das instituições formais, o lugar onde
“as leis são, muitas vezes, letra morta.” No caso de São Paulo, Metcalf registra que “as
grandes distâncias tornavam virtualmente impossível aos corregedores do conselho
da vila fazer cumprir os decretos do reino, especialmente quando eram impopulares”.4
Todas estas características são visíveis no desenho que se traçou no século
XVIII para os sertões das Amazonas. O governador e Capitão-General do Grão-
Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, ao destacar a importância da criação da
Capitania do Rio Negro, reforça exatamente a incapacidade da Coroa em agir naqueles
sertões, seja na distribuição das justiças seja controlando e limitando o espaço de asilo
e refúgio de “celerados”, em particular porque, sem contar com as proteções e
apadrinhamentos, “a larguíssima extensão deste imenso país não permitia que se dessem
as eficazes providências que eram precisas para as evitar”.5
O sertão como reserva também é recorrente. É fonte de produtos e matérias-
primas “úteis”, necessárias à subsistência e ao comércio. O rio Madeira é definido
como “paiol dos pobres e remédio para pobreza” devido à sua enorme abundância
de cacau. Os sertões do Tocantins e do Xingu abundam de pau cravo assim como
os sertões do Negro eram “fertilíssimos” em salsa, piaçava e outros produtos. Entre
inúmeros exemplos a citar (de resto, tão abundantes quanto são os rios e seus sertões),
foi o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira quem sintetizou a importância do
sertão como reserva: “Neste Estado, digo eu, a riqueza ou pobreza das povoações
pende da riqueza ou pobreza do mato.”6

4
LEONARDI, Victor. Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil. Brasília: Paralelo 15, p. 127, 1996.
METCALF, Alida. Vila, Reino e Sertão no São Paulo Colonial. Op. cit., p. 421.
5
Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao Marquês de Pombal. Arraial de Mariuá, 6 de julho de 1755. In: MENDONÇA,
Marcos C. de. A Amazônia na era pombalina - AEP. Rio de Janeiro: IHGB, 2º tomo, 1963, p. 707, 1963.
6
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica ao Rio Negro. MPEG/CNPq/Fundação Roberto Marinho, 1983, p. 119.

E spelhos P art i dos 39


Mas as enormes utilidades do sertão não se restringiam apenas às suas
produções. Ao se descrever o sertão de um rio aparece logo, junto aos seus produtos,
a menção à sua abundância de índios; os sertões dos rios Içá, Japurá, Ixié, Uaupés e
Içana são “viveiros de índios”. Nas terras do rio Arinos, existiam “tanto o pau
cravo e a salsa como o gentio.” Da mesma maneira, os sertões do Tapajós
abundavam em cravo, óleo de copaíba e “muitas nações de índios infiéis”. Existiam
rios descritos como tão densamente habitados que bastaria apenas um deles, “e não
dos maiores, para povoar Portugal”.7
Logo no início de sua gestão no Estado, Mendonça Furtado já se havia
apercebido dos verdadeiros laços que ligavam os sertões aos moradores:

Toda esta gente é ignorante em ínfimo grau, imagina que toda a sua
fortuna lhe há de vir dos sertões, não extraindo drogas, mas
aprisionando índios com os quais se propõem a fazer grandes
progressos nas suas fábricas e lavouras.8

Um espaço tão caleidoscópico só permite reforçar sua historicidade e


também suas possibilidades de reapropriação e reconstrução culturais. José de Souza
Martins afirmou que o desencontro na fronteira é um desencontro de temporalidades
históricas. Recuperá-los em conjunto aqui faz parte de uma certa estratégia narrativa
para apresentá-los em sua multiplicidade e possibilidades. Sem contar também que,
como já se disse no início, as formas de relacionamento com este espaço em muito
contribuem para compreender os mecanismos de apropriação da riqueza. Se a
riqueza e o poder podem vir do sertão, nem todos terão acesso igual a esses recursos.
A Fortuna traz os olhos vendados, mas leva uma roda nas mãos.9

7
SAMPAIO, F. X. Ribeiro de. Notas ao papel que tem por título, Memória sobre o governo do Rio Negro. p. 46; JOSÉ, Fr. João
de S. Viagem e visita do sertão em o Bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763. p. 68; 91. NORONHA, José Monteiro de. Roteiro
da viagem da cidade do Pará até as últimas colônias dos domínios portugueses em os rios Amazonas e Negro. p. 22-24.
8
Francisco X. Mendonça Furtado a Diogo de Mendonça Corte Real. 30.11. 1751. In: MENDONÇA, Marcos C. de. Amazônia na
era pombalina - AEP, Tomo 1, p. 84.
9
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Hucitec, 1997. p. 151.

40 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


CAPÍTULO 1

ONDE FICAM OS “SERTÕES”?

Aqui viram-se índias com arcos e flechas


que faziam tanta guerra quanto os índios ou mais
e comandavam e animavam os índios para que pelejassem;

Fr. Gaspar de Carvajal


Rio Nhamundá, 1542.

Recuperar notícias do rio das Amazonas poderia significar retomar relatos


quinhentistas ou antes, quando “o mundo não existia”. Sinceramente, acreditei
desnecessário iniciar nossas incursões por águas tão dilatadas. O interesse maior é
conduzir o olhar para o momento no qual a ocupação lusa já é fato na Feliz Lusitânia.
Certamente, há controvérsias quanto a esse recorte e restrições a essa última
afirmação porque, de certo modo, é possível dizer que os portugueses “vieram,
viram, mas não venceram”1. Mas este é um assunto que fatalmente será discutido
em outro momento dessa viagem pelos sertões. Precisando um pouco mais, gostaria
de começar com a fundação de um forte, responsabilidade de uma expedição que
partiu do Maranhão em pleno Natal de 1615.
Não causa surpresa, nessas condições, que a primeira fortaleza lusa na
Amazônia recebesse o significativo nome de Forte do Presépio, fundado na baía do
Guajará, no início do século XVII. A despeito de um início quase bucólico, as coisas

1
A frase em destaque é de Joaquim Nabuco. Freire a utiliza para destacar o fato de que, após a independência, o Amazonas
constituía-se como a única unidade política que não havia sido portugalizada, permanecendo majoritariamente indígena.
Cf. FREIRE, José Ribamar Bessa. (Coord.) Amazônia Colonial (1616 - 1798). Manaus: Metro Cúbico, 4. ed. 1991, p. 62.
Quanto à expressão “antes o mundo não existia”, refiro-me ao mito de criação do mundo dos Desâna - Alto Rio Negro.

E spelhos P art i dos 41


não correriam tão pacífica ou heroicamente como já depreenderam observadores
(não tão) incautos. O leitor já sabe que está-se buscando refazer aqui a história de
uma ocupação colonial, com toda a carga de tensão e embate que essa conjuntura
histórica carrega.2
Os incidentes que se verificaram no núcleo recém-fundado anunciam, em
certa medida, toda uma trajetória para “re-fazer” a história da conquista do vale
amazônico. A sensação provocada pela retomada da fundação do Presépio é a de
que os diferentes atores coloniais estavam apenas testando seus papéis históricos.
Disputas entre os colonos ainda mal estabelecidos na nova terra, revolta das
guarnições, disputas territoriais com “estrangeiros” (ingleses, franceses e holandeses)
e, em particular, nas relações com as populações indígenas, o uso de estratégias não
necessariamente excludentes: o aldeamento e o confronto armado.3
O Estado do Maranhão foi instituído em 1621 como unidade administrativa
separada do Estado do Brasil, diretamente ligada a Lisboa, em plena vigência da
União Ibérica. Instalado em 1626, compreendia as capitanias reais do Ceará,
Maranhão, Grão-Pará, Gurupá e as capitanias hereditárias de Caeté, Cametá, Marajó,
Tapuitapera, Cabo Norte e Xingu. Extinto por um curto espaço de tempo em
1652, foi restabelecido em 1654 com a denominação de Estado do Maranhão e Grão-
Pará. Sua extensão e limites permaneceram os mesmos, pelo menos, até 1656, quando
a capitania do Ceará passou à subordinação do Estado do Brasil.4
Durante a administração pombalina, a região sofreu outros reordenamentos.
Em 1751, foi extinto o Estado do Maranhão e Grão-Pará e criado o Estado do Grão-
Pará e Maranhão, com sede administrativa em Belém. Entre 1772-1774, uma nova
divisão criou o Estado do Maranhão e Piauí e o Estado do Grão-Pará e Rio Negro. A sede
deste último manteve-se em Belém e sua subordinação direta à Lisboa. Essa situação
persistiu até o início do XIX.

2
Uma leitura clássica para a ocupação do Vale está em REIS, Arthur. A ocupação portuguesa do Vale Amazônico. In:
HOLANDA, Sérgio B. de. (Dir.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 7. ed. Tomo I, p. 257- 272, 1985.
3
STUDART FILHO, Carlos. Fundamentos Geográficos e Históricos do Estado do Maranhão e Grão-Pará. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 1959, p. 211.
4
As especificidades do Estado do Maranhão e Grão-Pará com relação ao Estado do Brasil foram indicadas, pioneiramente, por
Capistrano de Abreu e aparecem também sugeridas na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Nádia Farage, em trabalho mais
recente, também sublinhou que a separação da imensa região do Estado do Brasil, de início, justificou-se por conveniências
geográficas e administrativas. Contudo, como afirmou Farage, no decorrer do processo colonial, “essa divisão veio
configurar uma real e profunda diferença de cunho político-econômico entre as duas regiões”. Cf. FARAGE, Nádia. As
Muralhas dos Sertões: os povos indígenas no rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra; ANPOCS, 1991. p. 23.

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Até meados da segunda metade do Seiscentos, as guarnições portuguesas
vão se dividir entre conflitos com várias nações indígenas - entre estas, Tupinambás
e Nhengaíbas – e confrontos com outros europeus como ingleses e holandeses.
Porém, mesmo “arranhando a costa”, a ação colonial não se dirigia apenas para o
Cabo Norte, mas também na direção do Baixo Amazonas. A atuação das ordens
missionárias já dava seus primeiros resultados com o início do processo de catequese
dos índios, acompanhada das indefectíveis “tropas de resgate” e “tropas de guerra”
que alcançaram o rio Tapajós em 1626 e o Amazonas, dois anos depois. Após a
viagem de Pedro Teixeira (1637-1639), têm início as incursões sertão a dentro, até
chegar ao vale do rio Negro.5
A segunda metade do Seiscentos já registra a presença de tropas de resgate
na região do Negro. Em 1657, a tropa comandada por Vital Maciel Parente,
acompanhada pelos missionários jesuítas Francisco Velloso e Manuel Pires, chegaram
ao rio e estabeleceram um aldeamento à boca do rio Tarumã. Nessa que foi registrada
pelo Pe. Antônio Vieira como a primeira incursão portuguesa, foram descidas 600
peças para proveito dos particulares. Também não seria a última a descer tão grande
número de peças do sertão para abastecer um mercado carente de mão-de-obra. É
a partir desse momento que o rio Negro passa então a ser mais freqüentado por
missionários acompanhados de tropas para garantir os descimentos dos índios e
também para atestar a legalidade de seus resgates e cativeiro.6
A ação das epidemias de varíola e a violência dos descimentos tinha
contribuído para uma redução na disponibilidade de índios no Baixo Amazonas.
Entre 1640 e 1720 é difícil não destacar a voracidade das expedições de apresamento
de índios no médio e alto Amazonas, incluindo o baixo curso de seus principais
afluentes. Como já havia destacado A. Porro, “a história completa dessas entradas e
do destino específico de cada população indígena ainda está para ser escrita.” 7
A forte contração na oferta de mão-de-obra no Baixo Amazonas no início
do XVIII é paralela à expansão do comércio de cacau. É para suprir essa necessidade

5
A expedição de Teixeira foi a resposta lusa imediata à viagem dos franciscanos espanhóis Brieva e Toledo que chegaram à
Belém, descidos do rio Napo. A expedição durou cerca de dois anos, chegando até Quito e é reputada pela historiografia
como sendo a grande responsável pela dilatação das possessões portuguesas. No retorno, foram acompanhados pelo
jesuíta Cristóbal de Acuña, autor do Novo descobrimento do grande rio das Amazonas, texto que Porro classifica como a
“mais importante descrição até então feita do rio e de seus habitantes”. PORRO, Antônio. As crônicas do rio das Amazonas.
Petrópolis: Vozes, 1993.
6
Este mesmo aldeamento recebeu nova visita no ano seguinte. Dessa feita, os jesuítas Pedro Pires e Francisco Gonçalves
retornaram à Belém com 700 peças. Cf. REIS, Arthur. História do Amazonas. 2. ed. Minas Gerais: Itatiaia; Manaus: SCA, 1989.
p. 67.
7
PORRO, Antônio. O povo das águas. Op. cit., p. 61-62.

E spelhos P art i dos 43


que colonos e missionários de Belém e São Luís penetram cada vez mais longe nos
sertões, em busca de índios, com tropas de resgate, tropas de guerra e expedições
clandestinas de apresamento. Para compreender a expansão portuguesa para o rio
Negro, é preciso considerar o esgotamento das zonas de fornecimento de escravos
índios nas áreas que se estendem de Belém ao Tapajós. Este processo se completa
em finais do século XVII e, já no início do XVIII, as áreas de reserva de mão-de-
obra seriam prioritariamente os vales dos rios Solimões e Japurá e, ao norte, os rios
Negro e Branco, intensamente freqüentadas por tropas de resgate.8
Porém um esboço das primeiras décadas do XVIII nos sertões do Rio
Negro estaria incompleto sem mencionar as guerras, revoltas e rebeliões. A resistência
armada dos índios da Amazônia ao avanço colonial português, parafraseando
Florestan Fernandes, foi “dura e terrível”. Quanto a esse aspecto, F. Santos chega a
assegurar que, cruzando todas as informações de guerras e levantes indígenas na
Amazônia colonial, “é possível concluir que em nenhum momento de sua historicidade
a região esteve vivendo em plena situação de paz.”9
Do ponto de vista das ações coloniais metropolitanas, o vale do Amazonas
e suas populações viviam um processo de compressão espacial entre dois
movimentos expansionistas: de um lado, as ações da Coroa portuguesa no sentido
leste-oeste e, em sentido contrário, as de Espanha, em especial através da atuação
das missões jesuítas no Alto Solimões.10
Contemporâneas ao processo de intensificação das ações de apresamento
no médio Amazonas e Solimões, as missões estabelecidas pelo Pe. Samuel Fritz
entre as populações indígenas do Solimões datam de finais do século XVII. A atuação
dos jesuítas espanhóis alcançaria até o curso do médio Solimões. Esses extensos
aldeamentos incorporaram diversas etnias, entre elas, Omagua, Jurimagua, Mayoruna,
Aisuari e Ibanoma.11

8
SWEET, David. A rich realm of nature destroyed: the Middle Amazon Valley, 1640-1750. PhD Thesis. Madison: University of
Winsconsin, 1974. Porro recupera cerca de 18 tropas de resgate, entre 1651 e 1721, atuando em diferentes regiões. Cf.
PORRO, A. O povo das águas. Op. cit., 1995, p. 62-63.
9
SANTOS, Francisco J. dos. Guerras e rebeliões indígenas na Amazônia na época do Diretório Pombalino (1757-1798).
Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP, p. 145, 1995.
10
Não se trata de considerar as missões jesuítas espanholas como “maquiavélicos” agentes do expansionismo de Espanha,
agindo perigosamente nas fronteiras lusas. Quero apenas destacar o fato de que, observando do ponto de vista das
populações indígenas do Vale, elas estavam literalmente entre a cruz e a espada.
11
“Eram populações numerosíssimas [...] organizadas em cacicados ou senhorios teocráticos com princípios de estratificação
social. Durante o século XVIII foram virtualmente extintas pelas epidemias, guerras e deportações promovidas pelos
portugueses para abastecer de mão-de-obra as fazendas do baixo Amazonas.” PORRO, A. O povo das águas. Op. cit., p.
136.

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Com a redistribuição das áreas de atuação missionária produzida pela
Repartição das Missões e a definição das fronteiras luso-espanholas no Alto Solimões
na passagem do XVII-XVIII, os aldeamentos espanhóis que se estendiam de Santa
Teresa de Tefé até São Paulo dos Cambebas serão ocupados pelos carmelitas a
partir de 1710, após uma série de ações militares para garantir as possessões
portuguesas na área.12
Na primeira metade do século XVIII, a região que vai da Fortaleza da
Barra do Rio Negro até a povoação de Nossa Senhora do Loreto no alto curso
desse rio estava sob a influência dos missionários carmelitas e no Solimões, seus
aldeamentos se estendiam até Tabatinga. Os missionários do Carmelo adentravam
os sertões, semeando aldeias, colhendo drogas e apresando índios.13
Para traçar um mapa dos sertões das Amazonas nesses meados do Seiscentos,
não bastam tinta, pena e papel. Sua ocupação é produto direto das demandas de
um crescente e voraz mercado de mão-de-obra, incapaz de adquirir escravos
africanos, no qual a riqueza se mede pelo número de índios em serviço. É empreendida
pela ação, combinada ou não, de missionários e caçadores de cativos. Seu traçado
foi feito com pólvora, missões, sangue e morte – física e cultural – especialmente
para as populações que habitavam a várzea do Amazonas. Sem recuperar esses
múltiplos deslocamentos, é impossível refazer o mapa da conquista.
Nesse momento, essa é a abrangência dos nossos “dilatados sertões”. Tidos
e havidos como verdadeiros “viveiros de índios”, essa imensa área – objeto e palco
das disputas coloniais – entra no século XVIII marcada pela tensão resultante dos
conflitos provocados pelo assédio das tropas de resgate que conduziam enormes
contingentes de cativos para o mercado de Belém e São Luís.
O processo de ocupação colonial dos sertões do Rio Negro revestiu-se de
grande importância estratégica e econômica para a Metrópole portuguesa.
Contemporâneo ao processo de implementação do Tratado de Limites de 1750, o

12
De acordo com a Nova Repartição das Missões de 19.03.1693 e também de uma série de outras leis que tratavam das zonas
de atuação das diferentes Ordens, os Carmelitas receberam, como área de atuação, as regiões dos rios Negro e Solimões.
Os Jesuítas ficaram com a margem direita e sertões sul do rio Amazonas; os Mercedários, com o rio Urubu e parte do baixo
rio Negro; os Capuchos da Piedade, com as terras das redondezas do Gurupá, distritos do rio Amazonas até Nhamundá,
incluindo o Xingu e o Trombetas e os Capuchos de S. Antônio, com a boca do rio Amazonas e Nhamundá.
13
A expressão foi tomada por empréstimo de Marta Amoroso quando se referiu à ação dos jesuítas no Madeira. Cf. AMOROSO,
Marta Rosa. Guerra Mura no século XVIII: versos e versões, representações dos Mura no imaginário colonial. Dissertação
de Mestrado. Campinas: Unicamp, 1991. Márcio Meira lembra ainda que não foi à toa que “as buscas por mão-de-obra se
intensificaram nos rios Japurá, Negro e Branco, regiões controladas pela Ordem Carmelita, cujos frades muitas vezes
participavam direta ou indiretamente dos ‘negócios’ de escravos.” Cf. MEIRA, Márcio. Livro das canoas: documentos para
a história indígena da Amazônia. São Paulo: USP/NHII/Fapesp, 1993, p. 10.

E spelhos P art i dos 45


estabelecimento da nova capitania, mais a oeste do governo de Belém, articulava-se com
essa questão. Tratava-se de um momento importante da organização da colônia
portuguesa na América, especialmente, nas áreas de fronteira – as chamadas “zonas de
soberania duvidosa”.14
No decorrer do século XVIII, a ocupação colonial se consolida seja pela
transformação das antigas aldeias em povoações, seja pela criação de novos
estabelecimentos. A calha do rio Negro, onde se localizava a capital (Mariuá/Barcelos), é
que recebe, de imediato, um maior fluxo de pessoas – tropas e funcionários encarregados
das demarcações e, depois, de estabelecer o governo no Rio Negro. Não estarão sós,
como logo se verá.
Para melhor visualizar a distribuição e a própria dinâmica das povoações
coloniais, resolveu-se adotar aqui a mesma divisão adotada por Regina Almeida ao
considerar a capitania em duas sub-regiões, estabelecidas com relação à distância de seu
porto de escoamento (Belém): a região leste, “o núcleo da capitania”, era a que concentrava
o maior número de povoações – as mais produtivas e mais populosas – incluiu 15
povoações nos rios Madeira, Amazonas, Negro e Solimões: Borba, Silves, Serpa, Barra,
Airão, Moura, Carvoeiro, Poiares, Barcelos, Moreira, Thomar, Alvelos, Ega, Nogueira e
Alvarães.
A região oeste, área da fronteira com Espanha, foi subdividida em Alto Rio Negro
e Alto Solimões, compreendendo as povoações de Fonte Boa, Castro de Avelãs, S.
Fernando, S. Paulo de Olivença, Tabatinga e São José do Javari (Solimões); S. Antônio
do Maripi e S. Mathias (Japurá); Lamalonga, Santa Isabel, São Gabriel da Cachoeira e
Marabitanas (Negro). Existiam ainda 9 povoações anexas a S. Gabriel da Cachoeira e 5
subordinadas à comandância de S. José de Marabitanas.15
Mas, e a despeito mesmo do caráter estratégico-militar da ocupação do Negro,
as questões específicas desse trabalho implicam retomá-lo sob uma perspectiva um
tanto diferente. Recuperar esse processo pode significar também acompanhar a aplicação

14
Ver ALMEIDA, Maria Regina C. de. Os Vassalos del’Rey nos confins da Amazônia: a colonização da Amazônia Ocidental -
1750-1798. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFF, 1990.
15
Cf. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Idem, p. 141-143. Os números das povoações subordinadas às Fortalezas de S.
Gabriel e S. José de Marabitanas variam no tempo devido à instabilidade dos assentamentos. Em 1786, são 11 povoações
subordinadas a S. Gabriel (S. Antônio do Castanheiro Novo, N. S. do Loreto, N. S. das Caldas, N. S. de Nazaré, S. Pedro,
S. José, S. Gabriel, S. Bernardo, São João Nepomuceno, S. Miguel e S. Joaquim de Coané) e 6 a Marabitanas (Santa Ana,
S. Felipe, N. S da Guia, São Marcelino, S. João Batista, S. José de Marabitanas). A metodologia e os problemas enfrentados
na aplicação desta distribuição estão mencionados pela autora às p. 14-17.

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de estratégias coloniais já tentadas e testadas em outras regiões e seus contrapontos: as
ações e táticas que se produziram internamente no confronto entre diferentes agentes
coloniais, referenciados no contexto de particularidades da própria região e de suas
populações.
Destacar especificidades regionais não é um exercício diletante. Uma simples
aproximação da produção historiográfica acerca do que se poderia considerar como
“colônia brasileira” nos remete a um imenso quadro de diversidade e pluralidade.
Esse traço foi sublinhado por Laura de Mello e Souza quando afirma que no século
XVIII, “não havia uma colônia, mas várias delas, distintas entre si e, as mais das
vezes, pouco conectadas”16. Essa afirmação é perfeitamente cabível para a Amazônia
portuguesa dos séculos XVII e XVIII como esperamos poder demonstrar no
decorrer desse trabalho. Assim, vamos voltar aos sertões e seus personagens...

16
SOUZA, Laura de Mello e. Prefácio. In: ALMEIDA, Marco A. de. O universo do indistinto: Estado e Sociedade nas Minas
Setecentistas (1735-1808). São Paulo: Hucitec, 1997. p. 14.

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CAPÍTULO 2

FORTIFICAÇÕES E ALDEAMENTOS:
AS ESTRATÉGIAS COLONIAIS

No rio Negro,
tudo é tão excessivamente grande
que excede a toda a imaginação.

Francisco X. Mendonça Furtado, Mariuá, 1755.

Sob qualquer ponto de vista, pode-se perceber que a vida na fronteira não era
nada simples. E isso vale para todos os atores coloniais. Do ponto de vista da ação
colonial portuguesa, o confronto com uma imensa população indígena aldeada, com
uma grande diversidade lingüística e que ainda guardava fortes relações tribais, dispondo
de poucos missionários e uma reduzidíssima população “branca”, suas estratégias de
intervenção no Pará e Rio Negro teriam que, necessariamente, sofrer restrições como
resultante deste quadro.
Na segunda metade do XVIII, as aldeias das ordens religiosas que compunham
todo o bispado do Pará somavam 63, sendo que 19 eram jesuítas; 15, carmelitas; 9 da
Província de S. Antônio, 7 da província da Conceição, 10 da Província da Piedade e 3
pertencentes aos religiosos de N. S. das Mercês. A rarefação da presença colonial até esse
momento no Grão-Pará era evidente, como se deduz da avaliação recuperada por João
Lúcio de Azevedo, para o ano de 1749: “Desde os limites últimos do Ceará até ao rio de
Vicente Pinzón, e, pelo rio Amazonas acima, até as fronteiras de Castela, não mais que
nove povoações de brancos, dignas desse nome, se podiam contar [...]”.1

1
Cf. AZEVEDO, João Lúcio de. Os Jesuítas no Grão-Pará. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930. p. 227-229.

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À época da chegada do Capitão-General Francisco Xavier de Mendonça
Furtado em 1758, o Rio Negro era uma área de aldeamentos predominantemente
Manaó, identificados pelos administradores coloniais pelo seu espírito rebelde e altamente
belicoso. Também era uma área com cerca de 20 anos de ação missionária carmelita, o
que nos sugere que as populações indígenas que habitavam o curso do rio Negro já
tinham experimentado todas as faces do processo da conquista: da espada à cruz, com
todas as feridas ainda abertas.2
Só para dar a medida do clima latente de enorme tensão na região, se retomamos
as revoltas e rebeliões no Rio Negro na segunda metade do século XVIII, vale o registro
de que as mais freqüentes nas fontes dizem respeito a aldeamentos Manaó. Esse dado
não é desprezível. Afinal, tratamos de uma população que sofreu intensamente os efeitos
de uma “guerra justa” na primeira metade do XVIII e também passou pelos processos
de descimento para vários dos aldeamentos existentes no Rio Negro.3
Os aldeamentos formados pelos Carmelitas também se constituíam em
realidades problemáticas porque esses missionários pouca experiência tinham no trato
das missões, se comparados aos jesuítas. Além de tudo, estavam muito envolvidos em
vários negócios do sertão e até mesmo no próprio tráfico ilícito dos índios. É certo que
este não era um comportamento exclusivo dos missionários do Carmelo. Oscar Beozzo
afirma que as diversas ordens religiosas que atuavam na Amazônia envolveram-se, em
maior ou menor grau, com o lucrativo comércio do sertão, chegando a tornarem-se
“[...] as principais organizações econômicas do Maranhão e Grão-Pará.”4
Nas diversas missões religiosas que predominaram na região até a segunda
metade do XVIII, os caminhos da catequese e da utilização do trabalho dos índios
seguiam trajetórias convergentes. O descimento e a posterior redução dos índios marcavam
o princípio da empresa religiosa. Como definiu Jacques Soustelle, reduzir significava
reconduzir, devolver os índios à fé e à vida regrada. Na ação dos missionários, os
descimentos estavam ligados às reduções, i. é, ao seu estabelecimento em aldeamentos
exclusivamente organizados para este fim.5
Grosso modo, as operações de descimento seguiam um certo roteiro de
procedimentos. As comunicações iniciais com a tribo eram feitas em língua-geral, ou

2
MOREIRA NETO, Carlos. Os Principais Grupos Missionários que atuaram na Amazônia Brasileira entre 1607 e 1759. In:
HOORNAERT, E. (Org.). História da igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 74.
3
A guerra justa contra os índios Manaó (1722-1728) foi estudada por D. Sweet, reputado como sendo o melhor estudo
produzido sobre essa guerra colonial.
4
BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das Missões: política indigenista no Brasil. São Paulo: Loyola, p. 47, 1983.
5
Apud HAUBERT, Maxime. Índios e Jesuítas no tempo das missões. São Paulo: Cia das Letras, 1990. p. 15.

50 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


com auxílio de um membro já catequizado da tribo a ser descida. O manejo adequado
da língua-geral poderia ser decisivo para o sucesso de um descimento – e até mesmo de
um aldeamento –, considerando que as relações iniciais se fundavam no convencimento,
i. é, na aceitação voluntária dos índios das práticas missionárias e na reciprocidade das
trocas. O batismo era o passo seguinte e marcava o início da conversão, através da
doutrina. Nos seus intervalos, era necessário providenciar a confecção das canoas e
preparar os estoques de alimentos para sustento da viagem – trabalho realizado pelos
recém-convertidos.
David Sweet assegura que um descimento, assim concebido, poderia acontecer
em duas circunstâncias: 1) quando a população alvo ainda não tivesse sido atacada pelos
europeus e, desta forma, pudesse confiar neles aceitando a proteção e acordos oferecidos;
2) quando as populações envolvidas fossem remanescentes de um grupo que já
tivesse sido vitimado pela doença, guerras, expedições de apresamento e, por
justificado temor aos europeus, preferissem submeter-se aos missionários.
O contato com o Principal era primordial para garantia do descimento e
para onde, inicialmente, se dirigiam as atenções e cuidados dos responsáveis pela
execução da operação. É importante lembrar que a chave do sucesso do descimento
missionário, tal como descrito, baseava-se em permutas sistemáticas. Os presentes e
as trocas eram o ponto de sustentação dos contatos. Para que os índios se deslocassem
de seus locais de origem, o missionário acenava com objetos variados, entre eles,
ferramentas para a construção de canoas e prometia-lhes amparo durante o trajeto.6
Em meados do século XVIII, o jesuíta João Daniel relata que o responsável
pelo descimento garantia aos índios que, nos novos estabelecimentos, estariam a
salvo dos ataques de seus inimigos, que teriam tecidos e alimentos em abundância,
além das foices, machados e facões para trabalhar em suas roças. No planejamento
do descimento, estava prevista a abertura dos roçados no local de destino para os
descidos e a construção das casas para os recém-chegados pelos índios já aldeados.

Cuidam pois em prevenir-lhes e preparar-lhes a hospedagem


com dilatados roçados de maniva, searas de milho e frutas por
outros índios mansos já batizados, de que sempre se valem
nestes descimentos: fazem casas, preparam-se com grandes
provimentos de ferragens, panos, águas ardentes, velórios e
muitas outras miudezas.7

6
Pe. João Daniel. Tesouro descoberto no rio das Amazonas. Rio de Janeiro: Anais da Biblioteca Nacional, 1976. T. II, p. 44.
v. 95.
7
Idem Ibdem

E spelhos P art i dos 51


Até a instalação definitiva na aldeia do novo contingente, era necessária ainda
uma boa dose de paciência porque não era incomum o recebimento dos presentes, a
aceitação das práticas e o não cumprimento das promessas de descimento pelos índios.
No caso de novos estabelecimentos, a opção por locais distantes das aldeias
de origem era comum e, no período do Diretório, será vivamente recomendado para
evitar o temido retorno aos matos, sem contar a questão da segurança dos missionários.
No período missionário, os informantes que estamos utilizando indicam cerca de 15
a 30 dias de viagem até o novo aldeamento.
Momentos relevantes em uma nova missão eram a construção da igreja e das
novas habitações, a definição dos locais dos roçados, a distribuição das tarefas e
fundamentalmente, a crescente importância dos missionários na regulamentação dos
tempos e das formas de trabalho, considerando que o cotidiano da missão imbricava
o tempo das obrigações religiosas com o tempo da produção. Esse último aspecto
da missão é ressaltado por diversos autores quando analisam os resultados da ação
missionária, na medida em que esta buscava mesmo sobrepor-se às relações de poder
tradicionais como lideranças internas e redes de parentesco, e a conseqüente
reorganização de tribos inteiras em novos padrões culturais e econômicos.8
O processo de depopulação da várzea levou à intensificação das incursões e
descimentos nas áreas de terra firme. Índios trazidos de cada vez mais longe pelos
afluentes do norte e do sul engrossavam os contingentes de mão-de-obra estabelecidos
nos aldeamentos missionários, fundados sobre o trabalho indígena. Porro, considera a
primeira metade do século XVIII como a “idade do ouro” da economia missionária na
região. É o momento da realização de seus projetos material e espiritual, sem sofrer a
concorrência da Coroa e dos colonos.
É importante destacar ainda o papel desempenhado pelas missões enquanto
instituições de fronteira, características da colonização ibérica em muitas regiões, onde as
estreitas relações entre Coroa e Igreja foram, no limite, a chave para a definição e expansão
das fronteiras dos respectivos impérios coloniais.9

8
Esta é uma leitura que está presente nos trabalhos de CARDOSO, Ciro F. S. Economia e sociedade em áreas coloniais
periféricas: Guiana Francesa e Pará (1750-1817). Rio de Janeiro: Graal, 1984. O trabalho indígena na Amazônia portuguesa
(1750-1820). História em Cadernos. UFRJ, IFCS, v. III, n. 2, 1985, p. 4-27. Na avaliação de Luís Felipe Baeta Neves, o cotidiano
das missões na Amazônia ainda é um tema em aberto. Ver NEVES, L. F. Baeta. Vieira e a imaginação social jesuítica: Maranhão
e Grão-Pará no século XVII. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. Sobre os resultados da ação missionária nas populações
indígenas, ver do mesmo autor. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1984. GAMBINI, Roberto. O espelho índio. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.
9
Cf. BOXER, Charles. A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770). Lisboa: Ed. 70, 1981. p. 94.

52 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


A chegada das tropas das Demarcações relativas ao Tratado de Madri de 1750,
com suas inúmeras tarefas e exigências de abastecimento de víveres e mão-de-obra,
também não contribuía muito para melhorar esse quadro. Apenas para dar a dimensão
do impacto causado pela chegada das demarcações, lembro que a comitiva de Mendonça
Furtado era composta por 1025 pessoas embarcadas em 23 canoas, sem contar as
canoas de pescarias.10
Reiterando um conjunto de estratégias coloniais, as fronteiras do rio Negro
passam a conviver, de forma mais sistemática a partir da segunda metade do Setecentos,
com a instalação de fortificações e a criação/revitalização de novos estabelecimentos
coloniais. A Capitania de São José do Rio Negro, subordinada ao Estado do Grão-
Pará e Maranhão, foi criada exatamente nesta conjuntura. A sede escolhida foi Mariuá,
elevada a Vila de Barcelos em 1758. Saudando a criação da Capitania em carta a
Pombal, Mendonça Furtado sublinha importância do novo estabelecimento para
reforçar os reais domínios reais naqueles sertões:

[que] nunca serviu de outra coisa mais do que asilo de celerados


que aqui faziam quantas atrocidades se pode imaginar, dando-se
sempre um dificuldade grande para se evitarem aquelas desordens;
porque, além de em muitas delas, serem seus autores bem
apadrinhados, a larguíssima extensão deste imenso país não
permitia que se dessem as eficazes providências que eram precisas
para as evitar.11

Até o final do Gabinete Pombalino serão construídos, na região, vários


fortes que cobrem as áreas de fronteira. Na zona de disputa com franceses e ingleses,
o forte de Macapá (1765); na fronteira norte com ingleses e holandeses, o Forte de
São Joaquim (1777) e na fronteira com as possessões de Espanha, as fortalezas de
São José dos Marabitanas (1762), S. Gabriel da Cachoeira (1762), São Francisco

10
Nesse número estão incluídos 511 índios. Contudo, durante a expedição fugiram 165 de tal modo que a comitiva que
chega a Mariuá é de 860 pessoas. Cf. SILVA, J. A P. da. Diário escrito e anotado pelo secretário... In: MENDONÇA, Marcos
C. de. AEP, II tomo, p. 631. O reabastecimento dessas pessoas era responsabilidade das aldeias e povoações de índios
estabelecidas ao longo do rio. Não existem estimativas populacionais para esse mesmo período no rio Negro; como
parâmetro de comparação, dados de 1775, que indicam uma população de 1.129 almas para o rio Negro, além de 1.019
índios aldeados. De qualquer modo, a expedição portuguesa teria que esperar muito; as duas partidas não se encontraram
e o Tratado de Madri foi revogado em 1761. Essa fronteira só foi demarcada a partir do Tratado de S. Ildefonso de 1777
com novas partidas de demarcação.
11
Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao Conde de Oeiras (Marquês de Pombal). Mariuá, 6 de julho de 1755. In:
MENDONÇA, Marcos C. de. AEP. II tomo, p. 707. A Capitania do Rio Negro foi criada pela Carta Régia de 03.03.1755, mas
só será instalada em 1757.

E spelhos P art i dos 53


Xavier de Tabatinga (1770) e, um pouco mais abaixo, as fortalezas de Bragança e do
Príncipe da Beira.12
A implantação de um governo na região, subordinado a Belém, fazia parte de
um conjunto de ações administrativas, com forte caráter estratégico-militar. Porém, em
que pesem as disposições do novo Tratado de Limites e a necessidade de assegurar a
soberania portuguesa na região, é impossível descartar a importância do Negro como
área prioritária de abastecimento de mão-de-obra – situação essa que remonta às décadas
anteriores como já vimos em outro momento. Também é possível incorporar a esse
argumento a questão referente às próprias características de reprodução interna da
economia regional, estreita (mas não exclusivamente) vinculada à extração de produtos
florestais que compunham a maior parte das exportações regionais do período. O Rio
Negro era uma área de expansão prioritária para essa atividade, unindo-se à sua
característica anterior de “viveiro de índios”. O novo governo ali instalado teve várias
ordens de conflitos para gerenciar e acomodar, quando isso foi possível.
A criação do novo governo coincide também com os reordenamentos políticos
metropolitanos. Inicia-se o processo de implantação da política reformista do Marquês
de Pombal, dirigida na região pelo seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
nomeado Governador e Capitão-General do Estado do Grão-Pará e Maranhão em
1751.
Política polêmica, as reformas pombalinas são, sem sombra de dúvida um dos
temas mais frequentados pela historiografia colonial13. Contudo seus desdobramentos
na Amazônia ainda se constituem um rico espaço de reflexão historiográfica.
A política colonial pombalina da segunda metade do século XVIII baseava-se,
grosso modo, nos princípios da Ilustração. Assim, de suas linhas mais gerais, podemos
destacar o fortalecimento do poder da Coroa, o incentivo às práticas agrícolas e mercantis
e a redução do poder da Igreja. Na Amazônia Portuguesa, as linhas desse programa de
trabalho apresentaram algumas especificidades: a penetração mercantilista do Estado

12
De acordo com REIS, A. o conjunto das fortificações compreende: Forte do Presépio - 1616; Gurupá - 1623; Desterro -
1638; Araguari - 1660; S. Pedro Nolasco - 1665; Santo Antônio de Macapá - 1688; S. José do Rio Negro - 1669; N.
Senhora das Mercês da Barra - 1685; Santarém - 1697; Parú - 1693; Pauxis - 1698; Casa Forte de Guamá - 1726; Reduto
do Macapá - 1738; Fortim - 1738; Bateria de Barcelos - 1755; Curiaú - 1761; S. Gabriel da Cachoeira e Marabitanas - 1762;
Macapá - 1765; S. Francisco de Xavier de Tabatinga - 1770; Reduto de São José - 1771; Bateria de S. Antônio -1773; S.
Joaquim do Rio Branco - 1777; N. Senhora de Nazaré de Alcobaça - 1780; Bateria da Ilha dos Periquitos - 1792; Bateria
da Ilha de Bragança - 1802. Cf. REIS, Arthur C. F. Limites de demarcações na Amazônia brasileira. Belém: Secult,1993, v. 1,
p. 57-58, 2. ed.
13
Um trabalho já clássico é FALCON, Francisco. A Época Pombalina. São Paulo: Ática, 1982. Além deste, ver. D’AZEVEDO, J.
Lúcio. O Marquês de Pombal e sua época. Lisboa: Clássica Editora, 1990. Também MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal:
paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

54 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


nas atividades econômicas – com a criação da Companhia de Comércio do Grão-
Pará e Maranhão –; o estímulo à miscigenação visando ao crescimento demográfico,
como indicado no Alvará de 04.04.1755; e, por fim, a questão indigenista, expressa
através da lei da “Liberdade dos Índios” (1755) e, posteriormente, do Diretório que
se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará e Maranhão (1757).14
O Estado do Grão-Pará e Maranhão possuía sua economia apoiada no
uso do trabalho compulsório dos índios garantido pelos instrumentos legais de
escravização e, até aquele momento, sob controle missionário. Na aplicação das
disposições da política, de importância estratégica era a expulsão dos religiosos da
Companhia de Jesus. Essa medida vem completar as outras que compreendem o
processo de secularização das missões e a declaração da lei de liberdade dos índios
em 1755.15
A questão da mão-de-obra sempre se constituiu em grave problema para a
administração portuguesa na região, e a ambigüidade da legislação quanto à liberdade
ou escravidão dos índios marcou todo o período anterior à implementação da
política pombalina. A possibilidade de substituição da mão-de-obra indígena por
escravos africanos, que deveriam ser introduzidos pela Companhia Geral de
Comércio, configurava-se como alternativa para a definitiva consideração dos índios
como vassalos del’rei, garantindo a paz colonial entre as populações definidas como
as verdadeiras “muralhas dos sertões”.
Neste novo marco, o esforço de portugalizar a região passaria agora não só
pela garantia da liberdade dos vassalos de Sua Majestade, mas também pela aplicação
de um instrumento tutelar das populações indígenas aldeadas, projetado por
Mendonça Furtado: o Diretório. Implementado em 1758, ingeriu nos mais diferentes
níveis da vida sócio-econômica, cultural e política das populações amazônicas e é
considerado como um dos mais ambiciosos instrumentos da política pombalina no
esforço de portugalizar a região.16

14
Para elaborar essas considerações, além daqueles mencionados na nota anterior, utilizei especificamente o de BELLOTO,
Heloísa L. Pombal: Marquês de. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Dicionário da história da colonização portuguesa no
Brasil. Lisboa: Verbo, p. 645-648, 1994. Quanto à relação entre miscigenação e crescimento populacional, lembro que
esse é o argumento formal da Coroa. Na verdade, não havia a menor necessidade de “estimular” a miscigenação que corria
solta. A diferença é que se institucionaliza uma política de premiação para os casamentos mistos e isso, de certo modo,
demarca uma fronteira específica para as ações que já vinham ocorrendo.
15
A Lei de Liberdade dos Índios é de 06.06.1755, mas só foi tornada pública na região dois anos depois, por decisão de
Mendonça Furtado, quando da publicação do Diretório em 1757.
16
Criado pelo Alvará Régio de 03.05.1757 e confirmado pelo Alvará de 17 de agosto de 1758. Moreira Neto assegura que
o Diretório é uma das “chaves essenciais para a compreensão das mudanças operadas na Amazônia entre 1750-1850.” Ver
MOREIRA NETO, Carlos A. Índios da Amazônia: de maioria a minoria (1750-1850). Petrópolis: Vozes, 1988. p. 20.

E spelhos P art i dos 55


Entre 1757 e 1798, os esforços da administração portuguesa na região para
executar, minimamente, as disposições do projeto pombalino, passam pelo reforço
militar às áreas de fronteira com a criação de fortificações e pelas inúmeras tentativas
de consolidar a produção de alimentos e a coleta de drogas do sertão, com o
estabelecimento das populações indígenas através dos descimentos, buscando criar
ao mesmo tempo “vassalos” e “muralhas” nos sertões das Amazonas.
Para tanto, recorrerão a um conjunto de práticas já suficientemente testadas
em outras áreas coloniais: o recurso à catequese, o emprego da força e das justiças,
o estímulo à hierarquização interna das populações através de uma política de
distinções e privilégios às lideranças indígenas. Esses e outros recursos mais pontuais
sofreram modificações significativas. Projetos diferenciados colocados em confronto,
necessariamente, ambos saem modificados. Ainda que esta seja uma situação de
condição colonial, ela não é inevitavelmente assimétrica. Pelo menos, não o tempo
inteiro.17
Nos confrontos e embates do cotidiano no Rio Negro colonial,
experimentou-se da força à aliança, da dissimulação à deserção, da sabotagem à
traição, da submissão à guerra. Não poderia ser diferente. Novamente, Bosi nos
esclarece assegurando que a colonização deve ser vista como uma “dialética de
rupturas, diferenças e contrastes” porque a condição colonial é reflexa e contraditória.
Como recuperou Márcio Meira, “essas populações, ao transformarem a própria
colonização, mesmo em condição de subordinação militar, religiosa e econômica,
transformaram-se a si mesmas e, deste modo, resistiram.”18

17
Ao estabelecer a diferença entre sistema e condição colonial, o autor afirma que “condição toca em modos ou estilos de
viver e sobreviver. [...] Condição traz em si as múltiplas formas concretas da existência interpessoal e subjetiva, a memória
e o sonho, as marcas do cotidiano no coração e na mente, o modo de nascer, de comer, de morar, de dormir, de amar, de
rezar, de cantar, de morrer e ser sepultado.” BOSI, Alfredo. A dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras,
1992. p. 26-27.
18
MEIRA, Márcio. Índios e brancos nas águas pretas: histórias do rio Negro. Belém, 1997, [inédito].

56 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


ESTRUTURA DA ADMINISTRAÇÃO COLONIAL PORTUGUESA:
1751-177419

COROA

Secretaria de Estado e Desembargo do Paço


Negócios, Marinha e
Domínios Ultramarinos

Real Conselho da Fazenda* Conselho Mesa de Casa de


Erário Ultramarino Consciência e Suplicação
Ordens

Junta do Comércio

Estado do Brasil Estado do Grão-Pará e Maranhão

Vice-rei Governador e capitão-general

Fazenda Tropa de Linha Justiça

 Provedor-mor  Ouvidor-geral
 Escrivão  Tabelião
 Tesoureiro  Escrivães
 Contador  Meirinhos

Capitania do Maranhão Capitania do Pará Capitania do Rio Negro

Governador e coronel de infantaria

Fazenda Milícias Câmara Justiça

Ordenanças  Ouvidor
 Provedor  Escrivão
 Escrivão
 Contador
 Almoxarife

 Vereadores  Juiz Ordinário


 Procuradores  Alcaide
 Tesoureiro  Meirinho
 Escrivão  Tabelião
Diretoria dos índios**  Almotacé  Juiz de Órfãos
 Porteiro

19
Elaborado pela autora.
* Criado em 1772.
** Extinto em 1798.

E spelhos P art i dos 57


ESTRUTURA DA ADMINISTRAÇÃO COLONIAL PORTUGUESA:
1774-180820
COROA

Desembargo do Paço
Secretaria de Estado dos
Negócios da Fazenda

Secretaria de Estado de
Negócio da Marinha e
Domínios Ultramarinos

Direção Geral Real Junta do Conselho Mesa de Casa de


dos Comércio, Ultramarino Consciência e Suplicação
Diamantes Agricultura, Ordens
Fábricas e
Navegação

Estado do Brasil Estado do Maranhão e Piauí* Estado do Grão-Pará e Rio Negro

Vice-rei Governador e capitão-general Governador e capitão-general

Junta de Fazenda Tropa de Linha Justiça

Capitania do Pará Capitania do Rio Negro

Governador e coronel de infantaria

Junta da Milícias Câmara Justiça


Fazenda

Ordenanças

 Vereadores  Juiz Ordinário


 Procuradores  Alcaide
 Tesoureiro  Meirinho
Diretoria dos índios**  Escrivão  Tabelião
 Almotacé  Juiz de Órfãos
 Porteiro
 Contratador

20
Elaborado pela autora.
* Criado em 1772.
** Extinto em 1798.

58 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


CAPÍTULO 3

OS ÍNDIOS

Bastaria um sertão
de qualquer rio, e não dos maiores,
para se povoar Portugal...

Frei João de São José, 1762.

Sabem todos os europeus


moradores do Amazonas
e o dizem publicamente
que os nervos daqueles estados
são as missões de índios.

Pe. João Daniel,1758.

O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira descreveu os habitantes do Rio


Negro do final do século XVIII, dividindo-os entre Brancos, Pretos e Índios. Os
primeiros eram europeus, militares chegados ainda durante as primeiras demarcações
que se estabeleceram casando com índias; a categoria inclui aqueles já nascidos na
América, filhos dos militares ou oriundos de outras capitanias, especialmente do
Maranhão.
Os Pretos, africanos vindos da costa e, particularmente das ilhas de Cabo
Verde e Angola, “ou crioulos seus filhos, nascidos e educados no Pará”. Também
vieram da capitania da Bahia, especialmente, depois da extinção da Companhia de
Comércio, e outros “degredados daquela e das outras capitanias do Brasil”.

E spelhos P art i dos 59


Quanto aos Índios, “ou são descendentes dos gentios [...], os quais foram
praticados, descidos e aldeados pelos brancos, ou são ainda gentios modernamente
descidos para as povoações.”1
Mas afinal, de quem estamos falando? Quem eram os habitadores desses
vastos sertões que davam tantas dores de cabeça aos nossos (não tão) intrépidos
colonos e tiravam o sono dos missionários?
Antes de retornar ao século XVIII, é importante que se tenha uma dimensão
aproximada da complexidade da questão indígena hoje e, para tanto, podemos
tentar observá-la hoje através do discurso de suas próprias organizações. Se diversidade
é uma palavra-chave para tratar das populações indígenas, desconhecimento também o
é. Ainda hoje não sabemos exatamente quantos e quem são os povos indígenas no
Brasil. Em alguns casos, não sabemos sequer como chamá-los.2
Também não é tarefa simples fazer um esboço etnográfico das populações
indígenas que habitavam (e das que ainda habitam) toda a extensão territorial que
delineamos como os “sertões das Amazonas”. Entre os inúmeros problemas
metodológicos, talvez o mais difícil deles refira-se ao fato de que o conhecimento
etnográfico disponível para a região do extinto Estado do Grão-Pará e Maranhão
é precioso, mas limitado para os fins desse trabalho. Afinal, ele é também um retrato
contemporâneo dessas populações indígenas, uma face mediada por 500 anos de
contato e de transformações próprias da condição colonial e das situações históricas
com as quais esses povos se defrontaram.3
João Pacheco de Oliveira Filho, em texto recente, destaca que a primeira
preocupação quando se trata de descrever a população indígena da Amazônia Legal
deve ser a de como lidar com sua enorme diversidade sociocultural. Ainda que não
seja o único caminho disponível, o recorte lingüístico ajuda a dimensionar sua
heterogeneidade. A estratégia procede. No contexto da América do Sul, o Brasil é
o país que apresenta a maior diversidade lingüística e também uma das mais baixas
concentrações de população por língua.4

1
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica ao rio Negro. Op. cit., p. 633-639.
2
RICARDO, Carlos Alberto. A sociodiversidade nativa contemporânea do Brasil. In: RICARDO, Carlos A. (ed.) Povos indígenas
no Brasil: 1991-1995. São Paulo: Instituto Socioambiental - ISA, p. I-XII, 1996.
3
A área do antigo estado colonial corresponde hoje aos Estados do Amazonas, Acre, Amapá, Pará, Maranhão, Roraima e
Rondônia, além de partes de Mato Grosso e Tocantins.
4
A Amazônia Legal compreende os Estados do Amazonas, Roraima, Rondônia, Acre, Amapá e Tocantins, além da região oeste
do Maranhão e Mato Grosso. Cf. OLIVEIRA FILHO, J. P. A população ameríndia: terra, meio ambiente e perspectivas de
transformação. Rio de Janeiro, [s.d.] [mimeo.]. Quanto à diversidade lingüística do Brasil, ver FRANCHETTO, Bruna. O que
se sabe sobre as línguas indígenas no Brasil. In: RICARDO, Carlos Alberto (ed.) Povos indígenas no Brasil: 1996/2000. São
Paulo: ISA, 2000. p. 84-88.

60 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Na Amazônia Legal, identificam-se cerca de 150 línguas indígenas específicas
que podem ser agrupadas em 12 famílias lingüísticas distintas: Karib, Aruák, Arawá,
Guaikuru, Nambikwara, Txapakura, Pano, Mura, Katukina, Tukano, Maku. Além
dessas, existem mais 9 famílias lingüísticas representadas por uma única língua, entre
essas a Ticuna, falada pelo maior contingente indígena do Brasil.5
Das 206 sociedades indígenas existentes no Brasil, 162 delas estão na
Amazônia, o que significa dizer que cerca de 60 % dos índios habitam a região e isso
representa uma população estimada em 160 mil indivíduos. Habitam o rio Negro,
os representantes de 18 grupos étnicos diferentes das famílias lingüísticas Tukano,
Maku e Aruák. No Solimões, existem quatro famílias lingüísticas (Ticuna, Bora,
Witoto e Tupi-Guarani) referentes a 6 grupos étnicos (Ticuna, Miranha, Witoto,
Kocama, Kambeba). Dentre esses, a população Ticuna está estimada em 32.000
indivíduos apenas em território brasileiro.6
Nos rios Juruá, Jutaí e Purus, são 5 famílias lingüísticas (Aruák, Katukina,
Pano, Arawá e Tupi-Guarani) referentes a 14 grupos. No Vale do rio Javari, estão os
povos Marubo, Matis e Matsé, pertencentes à família Pano, além dos Tsohom-
Djapá, família Katukina. Na região que se localiza entre o baixo rio Negro, o Branco
e fronteira com a Guiana, estão os povos Karib (Wai Wai, Waimiri-Atroari,
Hixkaryana, Katuena) e os Yanomami. Na área do Tapajós – Madeira, apenas nas
fronteiras do Estado do Amazonas, encontramos 6 grupos étnicos de 4 famílias
lingüísticas (Tupi-Guarani, Txapakura, Mura e Mawé).
Mesmo utilizando a questão da língua como uma aproximação possível
dessas populações no período colonial, o quadro não é menos complexo. Aryon
Rodrigues estima que, às vésperas da conquista, eram faladas no Brasil cerca de

5
OLIVEIRA FILHO, J. P. A população ameríndia: terra, meio ambiente e perspectivas de transformação. Rio de Janeiro, p. 2,
[s.d.] [mimeo.].
6
Toda essa diversidade refere-se, grosso modo, às populações que habitam o território correspondente ao Estado do
Amazonas. Os dados relativos aos outros estados não foram incluídos aqui, a não ser parcialmente, quando se tratam de
populações que se distribuem para além dos limites territoriais estaduais. Os dados são da Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro - FOIRN, referentes ao ano de 1992 e estão nos Anais do I Simpósio dos Povos Indígenas do Rio
Negro: Terra e Cultura. Manaus: UFAM, 1996. Ver também RICARDO, Carlos A. Povos indígenas no Brasil: 1991-1995. Op.
cit.; OLIVEIRA FILHO, J. P. Op. cit., 2-3 [s.d.]. Em trabalho mais recente (dezembro/2000), o ISA - Instituto Socioambiental
apresentou dados novos quanto à população. Atualmente são estimadas 216 povos indígenas contemporâneos no Brasil
somando uma população estimada em 350 mil pessoas. Como nossos dados são anteriores, os números do texto devem,
necessariamente, ser contextualizados no tempo. Ver RICARDO, Carlos A. Povos indígenas no Brasil: 1996/2000. São
Paulo: ISA, 2000.

E spelhos P art i dos 61


1.273 línguas. Os estudos lingüísticos da década de 1970 classificaram cerca de 1.492
línguas indígenas faladas na América do Sul e dessas, 718 localizavam-se na Amazônia,
podendo ser agrupadas em 6 grandes troncos linguísticos. Povos falantes de línguas
do tronco Tupi dominavam a costa atlântica do Pará, Maranhão e bacia do baixo
Amazonas, particularmente ao longo de sua margem direita e chegaram, inclusive a
penetrar a bacia do alto Amazonas.7
Os Aruák predominavam nessa última área e também na região do baixo
rio Negro e dos rios Uatumã, Jatapu e Urubu. Povos do tronco Karib concentravam-
se ao norte, na área próxima às Guianas. Povos Tukano estavam a noroeste, os Pano
nas cabeceiras dos rios Purus, Juruá e Ucayali e os Jê na região sul do atual Estado
do Pará e norte do Mato Grosso.
Reportando-se ao rio Negro, José Ribamar Bessa Freire assegura que os
povos que habitavam a região pertenciam, em sua maioria, ao tronco lingüístico
Aruák. Desses, três se destacaram historicamente no confronto com os portugueses:
os Tarumã, os Baré e os Manáo, sendo esses últimos considerados como

o grupo étnico mais importante da área, habitando as duas


margens do baixo rio Negro, desde a foz do rio Branco até a ilha
de Timoni. No momento da invasão colonial, pareciam estar em
pleno processo de expansão territorial em direção ao Oeste,
espalhando-se pela região do rio Japurá.8

A grande importância dos Manaó, como bem apontou D. Sweet, reside no


seu papel de “sociedade tampão” que fechava o acesso aos portugueses para o
médio e alto curso do Negro. Vinculados a uma extensa rede de comércio interétnico
que alcançava os holandeses no Caribe, aparentemente não estavam muito interessados
em estabelecer relações com os portugueses. Um ataque Manaó a uma tropa
portuguesa detonou a motivação para a realização da “guerra justa” contra essa
nação.9
Vencidos após violentos embates, foram distribuídos em diferentes
aldeamentos carmelitas estabelecidos abaixo das cachoeiras em Santo Elias do Jaú

7
Cf. J. FREIRE, Ribamar Bessa (Coord.). Amazônia Colonial (1616-1798). Op. cit., p. 11. A menção ao estudo de Aryon
Rodrigues foi retirada de FRANCHETTO, Bruna, op. cit., p. 85.
8
FREIRE, Ribamar Bessa. Manáos, Barés e Tarumãs. Amazônia em cadernos. Manaus: UFAM/MA, v. 2-3, p. 159-178, 1994.
9
Cf. SWEET, D. Op. cit., p. 578, 1974,

62 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


(Airão), Aracari (Carvoeiro), Cumaru (Poiares), Caboquena (Moreira), Bararoá
(Tomar) e Dari (Lama Longa).10
Os Baré dominavam a parte superior do rio e, no momento da conquista,
ocupavam um território estimado em 165 mil km2 que incluía o curso médio e
superior do rio Negro e a região do canal do Cassiquiare. Após a violência dos
contatos iniciais e da política de descimentos e escravização a que foram submetidos
outros povos do Negro, os Baré foram aldeados em Mariuá (Barcelos) com os
Baníwa e em Poiares, junto com Passés. No lugar da Barra (Manaus), também essas
etnias aparecem mencionadas na composição populacional do aldeamento.11
Os Tarumã possuíam estabelecimentos nos rios Tarumã e Ajurim, afluentes
da margem esquerda do baixo rio Negro. As suas experiências de aldeamento são
as mais antigas da região e datam do século XVII, inicialmente por jesuítas e, depois,
por mercedários. Após três tentativas em locais distintos, o aldeamento foi
estabelecido definitivamente em 1694, próximo à boca do rio Jaú. Junto com os
Tarumãs, também foram aldeados Manáo, Aruák, Tucum e Baré. No início do
XVIII, a missão passou ao controle carmelita.12
O painel de diversidade étnica nos rios Amazonas, Madeira e Solimões não
é diferente. Especialmente na várzea, planície aluvional sujeita a inundações periódicas,
de grande fertilidade e com alta concentração de recursos naturais explorados pela
tecnologia indígena, que concentrava as maiores taxas de densidade demográfica.
Em meados do século XVI, a várzea amazônica surpreendeu os cronistas
com uma população numerosa, internamente estratificada, estabelecida em extensos
povoados, produzindo excedentes que abasteciam um significativo comércio
intertribal de produtos manufaturados e primários. Porro assegura que nada disso
pode resistir ao avanço dos missionários espanhóis e, principalmente dos coletores
de drogas do sertão, cabos de tropa e missionários portugueses. O avanço desses
agentes coloniais representou a dispersão e o apresamento da maioria das populações

10
É muito difícil precisar exatamente quais as populações que foram estabelecidas em cada aldeia. As indicações são
problemáticas do ponto de vista dos etnônimos, variam no tempo e no espaço considerando a movimentação das
operações de descimento e também a diversidade daqueles que registraram a composição étnica dos aldeamentos. Vários
autores já registraram o problema metodológico da etnonímia para a história indígena que utiliza fontes escritas: um único
etnônimo pode encobrir vários grupos, ao mesmo tempo em que vários etnônimos podem referir um mesmo grupo étnico.
11
Sobre os Baré, ver BARROS, Maria Cândida; BORGES, Luiz; MEIRA, Márcio. A língua geral como identidade construída.
Revista de Antropologia. São Paulo: USP, v. 39, n. 1, p. 191-219, 1996.
12
Quanto aos aldeamentos Tarumãs, ver LEONARDI, Victor. Os historiadores e os rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira.
Brasília: Paralelo 15, 1997.

E spelhos P art i dos 63


ribeirinhas e, nos últimos anos do século XVII, a várzea amazônica estava praticamente
despovoada e infestada de epidemias trazidas pela conquista.13
A extensão desse processo de despovoamento pode ser melhor
dimensionada se considerarmos os resultados das pesquisas mais recentes acerca da
demografia da região no momento da conquista. Em que pesem as disputas e, às
vezes, conclusões díspares, considera-se que o quantitativo populacional da região
em meados do século XVI alcançava a impressionante cifra de 5.000.000 de
indivíduos, de acordo com as estimativas de William Denevan.14
Os aldeamentos carmelitas, espalhados nessa imensa área em meados do
século XVIII, incluíam Saracá, Abacaxis, Trocano, Sant’Ana de Coari, Santa Teresa
de Tefé, São Paulo dos Cambebas e Tabatinga. Alguns desses eram antigas missões
jesuítas espanholas que passaram ao controle dos missionários portugueses em finais
do XVII e início do XVIII.
Sem sombra de dúvida, o mapa etnográfico da região que dispomos hoje
não é o dos séculos XVII e XVIII. Porro resume as dificuldades inerentes a essa
questão ao afirmar que

[...] pouco sabemos das migrações, pressões demográficas e


reacomodações que resultaram da progressiva ocupação da terra,
e menos ainda das migrações espontâneas, dos contatos e
aculturação intertribal que certamente modificaram o mapa
etnográfico da Amazônia nos últimos séculos. [...] É tarefa da
antropologia e da etnohistória preencher as lacunas e estabelecer
as ligações que se perderam no mosaico dos povos que habitavam
a Amazônia.15

Deslocamentos populacionais e o desaparecimento físico e cultural de várias


etnias são os elementos mais evidentes dessa transformação. Assim, o mapa que
podemos tentar traçar aqui é um esforço de combinar informações para reconstituir,
minimamente, a diversidade étnica e lingüística dos povos que habitavam os sertões
das Amazonas no século XVIII.


13
PORRO, A. O povo das águas. Op. cit., p. 37, passim.
14
Cf. CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos índios no Brasil. Op. cit., p. 14, 1992. PORRO, A. O povo das águas.
Op. cit., p. 20-23.
15
PORRO, A. O povo das águas. Op. cit., p. 11.

64 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Em 1778, a administração colonial estava realizando um grande censo no
Estado do Grão-Pará. Tratava-se de um levantamento minucioso sobre as condições
das capitanias que só foi concluído em 1782-1783. Foram produzidos mapas
separados para todas as povoações, vilas e lugares do Estado, identificando cada
cabeça de família, seus empregos e ofícios, escravos, agregados e condições de
manutenção. Em mapas separados, também foram registrados os índios aldeados,
mas sem o mesmo nível de detalhamento.16
De acordo com esses dados, a Capitania do Rio Negro contava com uma
população de 11.723 almas. No mesmo momento, Belém possuía uma população
de 10.074 habitantes, o que significa que todo o “sertão” do Negro poderia caber
na capital colonial.17
Se acompanhamos a lógica da administração colonial, o número de índios
aldeados configura-se como um bom indicador da eficácia do projeto de transformar
gentios em vassalos úteis (bem entendido, trabalhadores aplicados e pagantes de
dízimos, a bem da felicidade geral do Estado). Também é preciso considerar que o
levantamento geral foi produzido na conjuntura da demarcação de limites de 1777
e, certamente, deveria servir para fundamentar argumentações portuguesas para
justificar a posse de territórios em contestação. Assim, as populações indígenas
aldeadas devem ser vistas como vassalos e também como verdadeiras “muralhas
do sertão”.18
No Grão-Pará, funcionava um velho truísmo da colônia adaptado às “cores”
locais: são os índios os “pés e as mãos” dos moradores brancos, como afirmou o

16
Ver MA - AHU - E049 - 1778. Recenseamento da Capitania de São José do Rio Negro no ano de 1778 mandado fazer por
ordem de João Pereira Caldas - Mapa das famílias que, à exceção das dos Índios Aldeados, se achavam, existindo em cada
uma da maior parte das Freguesias de ambas as Capitanias do Estado do Grão-Pará, e de sua possibilidade e aplicação no
ano de 1778. Quanto aos Índios Aldeados, o Mapa correspondente está em ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos
índios: um projeto de civilização no Brasil do século XVIII. Rio de Janeiro: Museu Nacional, Tese de Doutorado, Anexos -
Fig. 25: Mapa em que separadamente demais se manifesta o numero de Pessoas, que dos dois diferentes Sexos de Índios
Aldeados também nas suas respectivas Povoações persistindo estavam; e do que pelo Comum delas de Rendimento tiveram
em o mesmo ano de 1778, 1995. Arlene-Kelly Normand considera que esse é o mais antigo dos recenseamentos gerais do
século XVIII. Cf. NORMAND, Arlene-Kelly. Fontes primárias para a história de índios destribalizados na região Amazônica. In:
Boletim de Pesquisa da CEDEAM. Manaus: UFAM, v. 5, n. 8, p. 92-119, jan-jun/1986.
17
A população da Capitania inclui apenas os moradores livres, escravos e índios aldeados. Não incluiu os números da
população indígena não-aldeada que habitava os “matos”. Os números de Belém estão em VELOSO, Euda Cristina A.
Estruturas de apropriação de riqueza em Belém do Grão-Pará, através do recenseamento de 1778. In: MARIN, Rosa
Acevedo. A escrita da história paraense. Belém: UFPA/NAEA, p. 12, 1997.
18
O controle da população era uma diretriz para as colônias ultramarinas, o que não chega a descartar a vinculação com o
processo de demarcações. A Coroa tinha incumbido a todos os governadores e capitães-generais que enviassem relações
anuais dos habitantes de seus domínios. Essa diretiva está em plena execução em 1776. Ver APP - Códice 163 - Doc. 21
e Anexo - Carta de Martinho de Mello e Castro a João Pereira Caldas, Lisboa, 21.05.1776.

E spelhos P art i dos 65


Pe. João Daniel. Isso é absolutamente correto, ainda mesmo após a segunda metade
do século XVIII, quando a população escrava africana começa a adquirir maior
densidade na região com a intensificação do tráfico através da Companhia Geral de
Comércio.19
Até a segunda metade do século XVIII, as modalidades empregadas para a
incorporação de mão-de-obra indígena eram os descimentos, resgates e guerras
justas. Inseridos na lógica do mundo do trabalho colonial, os índios podiam ser
divididos, a priori, entre livres e escravos. Entre 1616 e 1755, foram implementados
diferentes modelos de organização para controlar e distribuir os índios recrutados.
O primeiro, estabelecido pela Carta Régia de 10.09.1611, assegurava aos colonos
leigos o controle sobre o processo de captura dos índios “livres” e escravos, categorias
classificatórias determinadas em função da forma de recrutamento: descimentos
geravam índios livres ou de “repartição”; resgates e guerras justas, produziam cativos.20
Entre 1655 e 1663, o controle leigo foi substituído, temporariamente, pelo
dos jesuítas, mas é retomado através da lei de 12.09.1663, situação que perdura até
1680. Entre 1680 e 1686, foi abolida a escravidão indígena por guerra justa e instaurado
o Regimento das Missões, pelo qual os missionários reassumiram o controle sobre a
distribuição dos índios. Considerada a “volta triunfal dos direitos jesuíticos”, esta foi a
legislação que vigorou até 1755 -1757, quando foi implantado o Diretório.21
Para visualizar melhor as estruturas produtivas que demandavam o recurso a
essa força de trabalho, observa-se que, até 1750, as principais articulações perceptíveis
no sistema econômico regional caracterizavam-se pela presença de dois setores: o
primeiro, dominante na economia, fundado sobre as atividades de coleta florestal
destinada à exportação e sobre as expedições militares responsáveis pelo recrutamento
da mão-de-obra. O outro, subsidiário, era o setor agrícola que compreendia as
propriedades que utilizavam o trabalho compulsório dos índios; um setor camponês
heterogêneo de pequenos proprietários ou posseiros livres; a “brecha camponesa”
dos escravos índios e, por fim, a economia missionária.22

19
Pe. João Daniel. Tesouro descoberto no rio Amazonas, p. 171, v. 1.
20
O controle das aldeias de repartição cabia a um colono “capitão de aldeia”, responsável pelo comando dos resgates e
descimentos e também pela distribuição dos índios que seriam “repartidos” entre particulares, missionários e o serviço
real. Ver FREIRE, J. Ribamar Bessa. (Coord.). Amazônia colonial, p. 29-44, passim. BELLOTO, Heloísa L. Trabalho indígena,
regalismo e colonização do Estado do Maranhão nos séculos XVII e XVIII. p. 177-192.
21
Além do Regimento das Missões, existiam uma série de leis complementares e, entre as mais importantes estava o Alvará
de 1688, conhecido como Alvará dos Resgates, que restabelecia o cativeiro para os “índios de corda” e determinava que
os regastes fossem realizados todos os anos, às custas da Fazenda Real. Ver BELLOTO, Heloísa. Trabalho indígena... Op. cit.,
p. 184.
22
Essa tipologia está em CARDOSO, Ciro. O Trabalho indígena na Amazônia portuguesa (1750-1820), p. 5-6.

66 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Assim, a tarefa de arregimentar, disciplinar e distribuir a força de trabalho
indígena foi responsabilidade do regime de missões, combinada com a atuação das
tropas de guerra e de resgates, gerando “um campesinato indígena sedentário numa
região que não conhecera tal tipo social em tempos pré-colombianos.”23
As mudanças introduzidas pela política pombalina na Amazônia, a partir de
1750, refletiram-se na configuração de seu sistema econômico, fazendo emergir no
setor dominante, dois subsetores: um, constituído pelas grandes propriedades que
empregavam escravos negros e trabalhadores índios; o segundo relativo à economia
de coleta de produtos da floresta com mão-de-obra oriunda das povoações
pombalinas.24
O suceder das leis informa, mas não consegue dar a dimensão da intensa e
acirrada disputa em que estavam envolvidos colonos e missionários pela prerrogativa
da distribuição dos índios. Não é necessário, para os objetivos deste texto, entrar em
maiores detalhes acerca dessa longa batalha. Atravessam-se aqui vários embates,
expulsões temporárias de missionários, revoltas de colonos entre outros a mencionar.
De certo modo, as pressões de colonos e missionários informam o caráter
oscilante e, no mais das vezes, contraditório da legislação colonial. Aparentemente,
o Regimento das Missões e uma série de leis complementares objetivava acomodar
as diferentes ordens de um conflito que envolvia, inclusive, disputas entre as próprias
ordens religiosas. Até a publicação da Lei das Liberdades (1755) e a posterior expulsão
dos jesuítas, o clima da região é sempre tenso por conta das disputas e debates que
envolveram esses agentes. Entretanto a revisão efetuada na política indigenista na
nova conjuntura do Setecentos, ainda que significativa, não foi suficiente para superar
os antagonismos provocados pelo controle dos índios e dos negócios do sertão.
Faces da mesma moeda, o verdadeiro “remédio para a pobreza”, também durante
a segunda metade do XVIII, índios disponíveis eram a chave segura para o acesso
aos sertões do cacau, do cravo, da salsa e de mais índios.
Os números da população do Estado sempre foram preocupantes para a
administração colonial. Afinal, boa parte do sucesso do projeto pombalino dependia
da crescente agregação de população às povoações do Estado. Sem elas, não haveria
roçados, drogas e, menos ainda, novos descimentos.

23
Cf. CARDOSO, Ciro. Idem, ibdem.
24
Para Cardoso, a diferença básica entre os dois momentos é a forma de reprodução de sua mão-de-obra; enquanto no
primeiro, essa reprodução se dava de maneira endógena, através das missões e das tropas de apresamento, no segundo
momento, esse mesmo processo de reprodução passaria a depender de outros fatores que não exclusivamente internos à
sua própria dinâmica. Cf. CARDOSO, Ciro. O trabalho indígena... p. 6.

E spelhos P art i dos 67


Fazendo um balanço dos resultados da colonização da Capitania do Rio
Negro, Regina Almeida aponta para o que definiu como “falácia do povoamento”:
em função da política de descimentos, o crescimento populacional das povoações
pombalinas era inversamente proporcional ao despovoamento das aldeias, isto é, o
crescimento fundava-se sobre a transferência sistemática de populações de uma
região para outra.25
Nessa linha de argumentação, Almeida assegura que o projeto pombalino
fracassou na Amazônia Ocidental na medida em que, no conjunto, seu principal
objetivo de garantir a soberania da Coroa sobre o território, através do povoamento
e desenvolvimento agrícola e comercial, entrava em franca contradição com a
realidade econômica e cultural da região.

A agricultura e o povoamento da Capitania do Rio Negro, além


de não darem lucro, só interessavam à Coroa, pois as próprias
autoridades e moradores dedicavam-se preferencialmente às
expedições do sertão. Quanto aos índios, os principais
personagens dessa história, não tinham nenhum interesse em
participar dela e sabotaram-na o quanto puderam.26

Como resultado desse processo, as povoações criadas sobre os aldeamentos


missionários sobreviviam artificialmente e sua produção era incapaz de cobrir as
despesas, mantendo-se através da injeção de recursos externos e das constantes
migrações internas. O objetivo estratégico que teria movido a ocupação dos sertões
do Negro se sobrepunha um outro mais duradouro e efetivo.27
Analisando os dados de população disponíveis, o quadro dos sertões é
realmente desolador e não deixa de confirmar algumas das conclusões de Almeida
quanto ao imenso esforço empreendido pela administração colonial para criar e
manter as povoações nos sertões do Negro e também quanto à intensidade das
flutuações populacionais das povoações da Amazônia Ocidental. Os sertões pareciam
sobreviver no limite de seus recursos.

25
Cf. ALMEIDA, Maria Regina C. Os vassalos del’Rey nos confins da Amazônia Ocidental, p. 162.
26
Idem, p. 134.
27
Idem, p. 262.

68 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


POPULAÇÃO DA CAPITANIA DO RIO NEGRO – 1773 – 1797

Fonte: Elaborado pela autora. Cf. M. R. Almeida. Op. Cit., 1990 e Mapas de População. MA/ANRJ/BNRJ.

Nas últimas décadas do século XVIII, o estado de decadência da Capitania do


Rio Negro já havia sido atestado pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, que o
atribuiu, em primeiro lugar, à indolência dos naturais e à falta de trabalhadores provocada
pelo reduzido número de escravos negros, pela grande quantidade de expedições de
índios, pela interrupção dos descimentos e, por fim, pelo impacto das epidemias. Além
destas, acrescentava a recusa dos europeus em dedicar-se ao trabalho, aos movimentos
das demarcações, à hostilidade dos índios, às prioridades para os negócios do sertão, à
multiplicidade dos gêneros e à inutilidade dos administradores.28
O diagnóstico de Ferreira foi produzido um pouco depois do levantamento
populacional de 1778. Cotejando as informações do censo com as do diário do naturalista,
verifica-se que, dos 155 cabeças de família estabelecidos na calha do rio Negro, Ferreira
cita 70 deles (45%).29

28
FERREIRA, Alexandre R. Viagem Filosófica... p. 656. Talvez o naturalista tenda a tratar suas opiniões de homem ilustrado
como dados da realidade como sobressai na questão (recorrente) da indolência dos índios, diretamente relacionada a um
conceito – implícito – de superioridade da civilização européia, característico no pensamento europeu do século XVIII do
qual a obra de Ferreira não escapa. A esse respeito ver DOMINGUES, Ângela. Os índios da Amazônia para um naturalista
do século XVIII. p. 5.
29
O total de cabeças de família da Capitania é de 254; ao longo do rio Negro, estavam 155 deles. Para essa comparação,
utilizou-se apenas o diário do rio Negro de Ferreira e não o conjunto dos seus escritos que permanecem ainda inéditos
em sua maioria.

E spelhos P art i dos 69


Os dados de 1778 indicam que, na Capitania do Rio Negro, existiam 23
estabelecimentos: 10 vilas, 12 lugares e 1 freguesia na Fortaleza de São Gabriel da Cachoeira.
A população era composta por 10.247 índios aldeados, 326 escravos e 1.150 pessoas
livres.30
Os moradores “cabeças de família” são divididos em Brancos, Índios,
Mamelucos, Mulatos e Pretos. Dos moradores assim qualificados, os Brancos
respondem pelo maior número com 66,2%, em segundo, Índios e Mamelucos
representam 31,1%, Mulatos, 2,3 % e Pretos, 0,4%.31

EMPREGOS E OFÍCIOS DOS CABEÇAS DE FAMÍLIA DA CAPITANIA DO NEGRO

Qualidade Militares Ofícios Diretores e Cabos de Empregos Públicos


Mecânicos Canoa
Brancos 117 11 13 05
Mamelucos 24 08 01 -
Índios 05 09 - 01
Mulatos 04 01 - 01
Total 150 29 14 07

Fonte: Censo de 1778.32

Os dados de Empregos/Ofícios confirmam as descrições de Ferreira e de


outros observadores quanto à composição das gentes da Capitania. Dos 200
moradores que possuem registro nesse item, 75% são militares. Entretanto a maioria
dos militares não vivia apenas de seu soldo. Dos 150 declarados, mais da metade
possui um outro ofício que era também fonte de sua manutenção.

30
Os dados foram agregados a partir de: MA - AHU - E049 - 1778. Recenseamento da Capitania de São José do Rio Negro
no ano de 1778 mandado fazer por ordem de João Pereira Caldas – Mapa das famílias que, à exceção das dos Índios
Aldeados, se achavam, existindo em cada uma da maior parte das Freguesias de ambas as Capitanias do Estado do Grão-
Pará, e de sua possibilidade e aplicação no ano de 1778. Quanto aos Índios Aldeados, o mapa correspondente está em
ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de civilização no Brasil do século XVIII. Tese de Doutorado.
Rio de Janeiro: Museu Nacional, Anexos - Fig. 25: Mapa em que separadamente demais se manifesta o numero de Pessoas,
que dos dois diferentes Sexos de Índios Aldeados também nas suas respectivas Povoações persistindo estavam; e do que
pelo Comum delas de Rendimento tiveram em o mesmo ano de 1778. 1995.
31
São 168 Brancos, 50 Mamelucos, 29 Índios, 6 Mulatos e 1 Preto.
32
Os Ofícios Mecânicos incluem Carpinteiros, Sapateiros, Alfaiates, Calafates, Ourives, Pedreiros, Ferreiros, Tecelões, Pintora de
Cuias. Em Empregos Públicos foram incluídos Escrivães da Fazenda e da Câmara, Mestre-Escola, Cirurgião, Juízes, Almoxarifes,
Vigários e Alcaide. Diretores e Cabos de Canoa foram reunidos por referirem-se à estrutura criada pelo Diretório.

70 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


MILITARES COM OFÍCIO DECLARADO

Ofícios Ofício Mecânico Empregos Diretores e Cabos Negociantes


Lavradores
Qualidade Públicos de Canoa
Brancos 23 23 06 15 03
Mamelucos 8 05 - 01 -
Índios - 03 - - -
Mulatos - 03 - - -
Total 31 34 06 16 03

Fonte: Censo de 1778.

Quanto às “possibilidades”, os moradores foram classificados como ricos,


remediados, vive medianamente, passa ordinariamente, vive pobremente, pobres, pobríssimos. A absoluta
maioria enquadra-se nas três últimas categorias representando 75,4% dos cabeças de
família. Aqueles que possuem rendas medianas estimam-se em 22,9% e os ricos, 1,7%.
Apenas estes números já dão o tom da qualidade da vida na Capitania do Rio Negro.
Existiam somente 4 ricos na Capitania: 3 eram brancos, proprietários de
escravos, com famílias numerosas. Desses, dois possuem patentes militares e o terceiro
é vigário. Mas o quarto homem rico é um mameluco chamado João Batista de Oliveira,
um sargento auxiliar que vivia na vila de Silves, solteiro, possuía 14 escravos e 24
pessoas de soldada. Sob sua cabeça, agregavam-se 49 pessoas. Vivia de suas plantações
de tabaco e de suas roças.
Ainda que a esmagadora maioria dos mamelucos seja classificada como pobre,
existe um outro mameluco a destacar, o remediado João Estevão de Brito vive no
Lugar de Moreira, com sua mulher e filhos, possui 6 escravos e vive de suas roças de
farinha, café e cacau. Por último, Apolinário, um cabo de canoa de Fonte Boa que vive
medianamente, possui 2 escravos e vivem sob sua cabeça, 8 pessoas.
Todos os índios cabeças de família são classificados como pobres, com duas
exceções: Joaquina, viúva moradora de Borba, proprietária de uma escrava, que é
remediada, e Margarida, uma outra viúva moradora de Barcelos, que é classificada
como pobre, mas vive do café e das roças de seu sítio às margens do Negro, com 14
escravos, sendo parte de sua família, três crianças e outra mulher adulta.33

33
Como ponto extremo de uma hierarquia complexa, ao lado dessas mulheres, está a pobre Eva, que (sugestivamente) vive
sozinha em Alvarães, e Inês, uma mameluca solteira que divide sua pobreza extrema com uma única escrava em Silves.

E spelhos P art i dos 71


Dos 254 cabeças de família da Capitania, apenas 28 % possuíam escravos.
Desses proprietários, 91% eram moradores Brancos e, conseqüentemente, controlavam
o maior número de cativos. Os Mamelucos proprietários correspondem a 6% e os
Índios, 3%. Mulatos e Pretos não possuíam escravos.

PROPRIETÁRIOS DE ESCRAVOS POR QUALIDADE

Qualidade Proprietários Número de escravos

Brancos 63 (91%) 288 (88%)


Mamelucos 04 (6%) 23 (7%)
Índios 02 (3%) 15 (5%)
Total 69 (100%) 326 (100%)

Se consideramos o número total de cabeças de família Mamelucos e Índios,


os proprietários de cativos enquadrados nessas categorias representam apenas 7,5%.
Mesmo vendo percentuais modestos no conjunto, o dado não deixa de ser significativo.
Mamelucos que conseguiram diferenciar-se da maior parte dos moradores que possuem
as suas mesmas características somáticas, registrados – insista-se – em mapas separados,
são exatamente aqueles que possuem escravos, como demonstra o caso do rico João
Batista e dos remediados Estevão e Apolinário. Isso indica que há uma forte possibilidade
da propriedade escrava assumir um papel de indicador diferencial importante no
conjunto dos moradores.
Entre os mulatos, por exemplo, nenhum possui escravos nem é classificado
acima da linha da pobreza e, neste caso, o que pode diferenciá-los dos índios aldeados
é sua exclusão dos números da população que pode ser compelida ao trabalho pela
estrutura do Diretório.34
O Mapa que registra a população indígena aldeada é muito menos rico. Consta
a distribuição por sexo e faixa etária, acrescentando os rendimentos das povoações em
suas diversas atividades produtivas. Os Principais e outros Oficiais Índios foram incluídos
nas somas, sem distinção. A população indígena aldeada do Estado Grão-Pará era de
29.835 almas. Dessas, 10. 247 estavam distribuídas nas povoações dos sertões do Rio

34
Os Mulatos, no censo, formam um grupo muito interessante considerando suas especialidades; 3 são militares: um pertence
à tropa paga e os outros são auxiliares; o soldado pago é sapateiro e o outro é alfaiate. Existe um que é Mestre Escola,
outro é Capitão do Mato e ferreiro e mais um que é alfaiate. Todos “vivem pobremente”.

72 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Negro. São divididos em 5.149 homens e 5.098 mulheres, distribuídos em 45
estabelecimentos entre vilas e lugares.35
Observados em seu conjunto, os dados podem render um pouco mais do que
foi dito até aqui. Em uma leitura preliminar, salta aos olhos a tendência de estabilidade
apresentada pelos números disponíveis, com oscilações marcadas no final do século
XVIII, como já se pôde perceber no quadro geral da população da Capitania (1773-
1797)36. Observando os números específicos, apresentam-se novas indagações. O quadro
a seguir apresenta a flutuação da população indígena aldeada entre 1764 - 1795.

ÍNDIOS ALDEADOS NA CAPITANIA DO RIO NEGRO: 1764 – 1797

Fonte: Elaborado pela autora. Cf. M. R. Almeida. Op. Cit.,1990 e Mapas de População. MA/ANRJ/BNRJ.

O crescimento da população, verificado entre 1764-1774, está relacionado


com o período de expansão da colonização em direção ao oeste quando foi fundado
um grande número de povoações. A partir daí, como afirmou Almeida, “até 1797,
embora tenha havido sempre uma flutuação nos índices de população, com uma
tendência para o crescimento, ele jamais voltou a ser tão acentuado.”37

35
Nas povoações do Pará, há uma ligeira predominância do número de Mulheres sobre o de Homens. São 10. 316 índias e
9.072 índios, distribuídos em 55 estabelecimentos. Essa diferença se reflete no número total de índios aldeados no Estado:
Dos 29.835, 15.614 são mulheres e 14.221 são homens.
36
Ver Gráfico da página 74.
37
Idem, p. 164. [grifo meu]

E spelhos P art i dos 73


A manutenção relativamente estável de uma população indígena aldeada durante
todo o período de 1773-1797 revela um Diretório – e sua política de crescimento
populacional – em pleno funcionamento. É certo que não era bem essa a idéia de
crescimento que existia na base do projeto, mas os dados apontam para o estabelecimento
de populações de maneira mais ou menos duradoura. Longe querer negar a importância
das fugas, das ausências, das deserções para as oscilações dos números da população, mas
é importante pensar no reverso da política de descimento, i. é., refiro-me às populações
que foram sendo aldeadas e ficaram nas suas respectivas povoações.
Difícil saber o quantum isso representava do conjunto da população indígena da
região devido à notória ausência de dados que permitam essa comparação. Contudo,
para os objetivos desse trabalho, tão importante quanto saber por que muitos se foram,
é fundamental tentar entender por que outros tantos ficaram. Ao permanecer no interior
das estruturas do mundo colonial, também puderam dar o tom e o ritmo do processo
de formação e consolidação dessa sociedade e interferir, de maneira importante, na
formulação de suas regras e mecanismos de reprodução.
Fica evidente, nas fortes oscilações aí visualizadas, o impacto das estratégias de
retirada desse mundo, mas a perturbadora tendência de crescimento não encontra
explicação fácil se se recorre apenas ao quadro explicativo da superexploração dessa
mão-de-obra e na insistência em afirmar – exclusivamente – sua vitimação pelo “cruel
explorador branco.” Se insisto na importância da estabilidade é porque quero reforçar a
hipótese de que essas populações estavam – cada vez mais – se estabelecendo de forma
sólida no mundo colonial.
Analisando, separadamente, os dados relativos aos moradores livres e escravos,
constata-se um tendência bastante acentuada de crescimento destes dois grupos, ao
mesmo tempo em que decrescem os números da população aldeada.

POPULAÇÃO ESCRAVA NA CAPITANIA DO RIO NEGRO: 1773–1797.

74 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Ainda que esta tendência de crescimento, no conjunto, referencie números
globais bastante modestos, é importante destacá-los do conjunto já, por si só, bastante
rarefeito da população contada no mundo colonial da fronteira que, evidentemente,
excluía os índios não-aldeados. Entre as possibilidades de explicação deste
movimento, em primeiro, pode-se destacar a própria conjuntura das demarcações
que, como já se viu, deslocava grandes contingentes para a região, entre militares e
outros funcionários que vinham acompanhados de suas famílias e escravos,
estabelecendo-se na região até o fim das tarefas demarcatórias que se estendiam por
muitos anos.
Também é preciso considerar que a própria consolidação do processo de
ocupação colonial da região no final do século, atraiu pessoas para o estabelecimento
na Capitania. Para isso, é importante notar que a tendência mais acentuada de
crescimento se dá na região leste, reconhecidamente sua área mais dinâmica e que
concentrava as povoações mais produtivas.

POPULAÇÃO LIVRE NA CAPITANIA DO RIO NEGRO: 1773–1797

Também é possível entender o crescimento da população escrava, em um


primeiro momento, levando-se em consideração a ação da Companhia Geral de
Comércio introduzindo e financiando a aquisição de escravos africanos; alguns dos
mais reputados moradores do Negro constam das contas de fechamento da
Companhia como seus devedores, entre eles, o maior proprietário de escravos da
região, José Antônio Freire Évora, um dos 3 brancos ricos. Atente-se também para o
fato de que a tendência de crescimento da população escrava acompanha, grosso

E spelhos P art i dos 75


modo, o crescimento da população livre na região leste, sugerindo que os recém-
chegados poderiam estar acompanhados de seus escravos, especialmente no final
do século XVIII.
Considerando a natureza da formação e consolidação dos aldeamentos
coloniais, fundada prioritariamente na incorporação sistemática de populações, é
possível perceber que o cotidiano das povoações era pontuado pela chegada constante
de novos “estrangeiros”, isto é, populações que ainda necessitavam de um tempo
de acomodação nas novas estruturas, o suficiente para reconhecê-las e dominar seus
códigos. Aqueles já estabelecidos, ainda que “iguais”, eram muito diferentes dos
recém-chegados, principalmente porque já estavam inseridos nas redes de poder e
mando locais.
Por outro lado, a despeito de uma legislação que assegurava aos índios a
igualdade dos vassalos, o retrato da sociedade que emergiu dos dados do Censo de
1778 mostra que essa não era uma estrada reta. É difícil não deixar de notar que
havia uma diferença de status entre aqueles índios qualificados no mapa como
“cabeças de família” em relação aos outros 10.247, registrados no mapa de índios
aldeados. Talvez as razões e as nuances dessa diferença não nos sejam imediatamente
perceptíveis, mas a verdade é que ela efetivamente existia no mundo colonial do
Negro e era parte da visão administrativa da Capitania que os mapas permitem
revelar.
Sempre é possível argumentar que o registro separado se justificaria pela
necessidade de acompanhar os avanços das ações coloniais na incorporação das
populações indígenas aos núcleos. Nada contra esse argumento, bastante plausível
por sinal. Mas, e mesmo assim, comparar os mapas de população revela um pouco
mais do que a preocupação com a eficácia dos métodos de “civilização”. Entre os
livres, estão considerados vários índios, assim detalhados no item qualidade e classificados
como moradores e cabeças de família com seus respectivos empregos, ofícios, escravos,
agregados e pessoas de soldada. Assim, dizer apenas índio não esclarecia muito sobre
quem se falava, sem que se agregassem os distintivos moradores e aldeados.
Desta forma, a questão parece envolver não apenas uma caracterização
fenotípica, mas sobretudo hierárquica; é possível ser índio, portanto igual aos descidos
e aldeados, mas, ao mesmo tempo, ser diferente. Um traço distintivo, como revelou
o censo, é o fato de poder viver fora do alcance da jurisdição dos eventuais tutores.
Viver sobre si – para usar uma expressão do XVIII – é uma condição para ocupar

76 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


um outro lugar nas hierarquias coloniais que permite separar quem pode e quem
não pode ser compelido ao trabalho compulsório, e acima de tudo, quem está ou
não está pronto para ser desobrigado da tutela, apartando-se da classificação sob o
estado da rusticidade.
Ainda assim, o reduzido número de Índios qualificados como moradores
revela que se movimentar por entre as categorias do mundo colonial era tarefa
difícil. Mas quem diz difícil, não diz impossível. Os mundos que a fronteira cria são
instáveis o suficiente para permitir a emergência de equilíbrios momentâneos que
permitem a homens e mulheres utilizarem-se dessas pontes transitórias entre categorias
sociais mesmo que, no conjunto, os resultados sejam limitados. Não se pretende
afirmar que as possibilidades de ascensão social na Capitania eram ilimitadas, mas
chamar a atenção para a existência de pequenos espaços para uma mobilidade restrita
e, pelo que se pode perceber, não foi uma “concessão” do mundo colonial, mas
espaços construídos, elaborados e, até mesmo, arrancados dentro de um cotidiano
restritivo.

E spelhos P art i dos 77


78 Patrí cia Maria Mel o Sampaio
CAPÍTULO 4

OS ESCRAVOS AFRICANOS

Era madrugada alta e, em breve, o dia iria amanhecer. Duas silhuetas deslizavam
rapidamente pelas ruas. Passo nervoso, respiração entrecortada, voz em sussurro. João
se preocupava em esconder o rosto e Alexandrina, com seus olhos grandes, prestava
atenção às sombras.
O caminho que seguiriam era longo, mas, aparentemente, seguro. Afinal, eles
não se atreveriam a atravessar floresta e rios sem nenhuma direção, sem destino certo.
Por outro lado, é quase impossível não pensar na sensação que sentiam ao imaginar a
fúria de seu senhor Pereira Carneiro quando o dia amanhecesse. Fugidos. Livres.
Alexandrina e João Mulato eram jovens. João havia sido escravo no Rio
Negro, propriedade do tenente-coronel Cordeiro e tinha gravada no rosto a palavra
miaçua. De altura mediana, olhos pardos, dentes falhos e pouco falante, segundo seu
dono só soltava a língua quando estava ébrio. Alexandrina, por sua vez, era alta, de fala
e passos descansados e andava jogando o corpo para os lados. Talvez não naquela
noite.1

1
Miaçua significa escravo em língua-geral. Informação prestada pelo Prof. Auxiliomar Ugarte.

E spelhos P art i dos 79


Afinal, o dia 26 de março de 1856 amanheceu em Belém, e o comerciante
Pereira Carneiro, dez dias depois de tentativas frustradas, foi aos jornais tentar
recuperar seus escravos. Fez publicar seu anúncio também no jornal que circulava em
Manaus e nele, além de descrevê-los, o proprietário assegurou que João Mulato tinha
fugido para o Rio Negro onde era muito conhecido porque tinha sido criado lá.2
Não foi possível descobrir o que aconteceu com João e Alexandrina. Prefiro
acreditar que eles não foram capturados, que encontraram uma rota segura e um
outro lugar para viver. De qualquer maneira, o anúncio chamou a atenção, colocando
várias questões e, algumas delas, tentei trabalhar nesse texto.
Além das características físicas de João Mulato, descrito como “quase tapuio”,
do uso da marca em língua geral no rosto de um escravo, a longa rota sugerida talvez
seja a mais inquietante. É difícil não se perguntar porque ele voltou para onde se sabia
e se podia ver em seu rosto que ele era escravo. Por outro lado, talvez seu dono
estivesse errado e João tenha tomado o caminho de um dos muitos quilombos que
existiam no Pará.
De qualquer modo, os dados poucos para acompanhar a trajetória do casal e
foi assim que resolvi tentar compreender algumas questões relativas à escravidão na
Amazônia, em certa medida, respeitando as possíveis rotas de fuga de João e
Alexandrina.

FALANDO DE ESCRAVIDÃO

Quando se trata de escravidão na Amazônia, o mais comum é iniciar com


uma ressalva. A maioria dos trabalhos assegura que o uso da escravidão negra foi
pouco significativo na economia amazônica do século XVII e primeira metade do
século XVIII. Regina Almeida pontua que, para compreender essa limitação, é preciso
considerar a própria configuração do sistema econômico da região onde
predominava a ocupação através de uma população branca reduzida e uma
importante carência de capitais, agregando-se ainda a existência de uma abundante
população indígena passível de engajamento na produção através de formas de
trabalho compulsório.3

2
Anúncio publicado no jornal Estrella do Amazonas, n. 140, 16 de abril de 1856, p. 4 - BNRJ - Obras Raras (Microfilmado).
3
ALMEIDA, Maria Regina C. de. Trabalho Compulsório na Amazônia, séculos XVII - XVIII. Arrabaldes, Ano I, n. 2, p. 101-115,
set/dez, 1988.

80 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


De acordo com a mesma autora, esse quadro coloca os limites da extensão
da política escravista da Coroa Portuguesa na região que recorreu à aplicação de
medidas que não chegaram a alcançar os resultados significativos. Somente a partir
da segunda metade do século XVIII, é que se verifica um aumento importante do
número de escravos negros introduzidos na Amazônia, já dentro do contexto das
medidas pombalinas, através da mediação da Companhia Geral de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão.
O número reduzido de escravos africanos e seu impacto modesto nos
quadros da produção econômica regional configuram algumas das ressalvas que
cercam a presença negra na região amazônica que assim será tratada pela historiografia
local, inclusive, durante o século XIX. Apesar de a região estar inserida em um
império escravista, o tratamento dado aos escravos negros continuou a ser acessório,
limitando-se a registrar essa presença reduzida e importância limitada, especialmente
no Rio Negro.
Em artigo recente sobre a presença negra na Amazônia de meados do
XIX, Luís Balkar Pinheiro aponta para as limitações de abordagem encontradas na
produção historiográfica da Amazônia e conclui que um de seus principais
desdobramentos é o fato de que “o ocultamento da presença negra na Amazônia
continua efetivo, mantendo incólume uma das mais graves distorções na escrita da
história da região.” 4
Certamente, exceções importantes a esse conjunto marcado pelo silêncio e
pelo caráter fragmentário são os trabalhos de Manuel Nunes Pereira, Vicente Salles,
Anaíza Vergolino-Henry, Arthur Napoleão Figueiredo e Colin MacLachlan. Mais
recentes, é fundamental não esquecer as alentadas pesquisas de Rosa Acevedo,
Eurípedes Funes e Flávio Gomes.5

4
PINHEIRO, Luís Balkar Sá Peixoto. De mocambeiro a cabano: Notas sobre a presença negra na Amazônia na primeira metade
do século XIX. Terra das águas. UnB, Núcleo de Estudos Amazônicos. Brasília: Paralelo 15, p. 149, 1999.
5
PEREIRA, Manuel Nunes. A introdução do Negro na Amazônia. Boletim Geográfico, n. 77, p. 509-515, 1949. SALLES,
Vicente. O negro no Pará. Rio de Janeiro: FGV/UFPA, 1971. VERGOLINO-HENRY, Anaíza; FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A
presença africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica. Belém: APP/SECULT, 1990; MACLACHLAN, Colin M. African
Slave Trade and Economic Development in Amazonia, 1700-1800. In: TOPLIN, Robert B. Slavery and Race Relations in Latin
America. Westport, Connecticut/London, England: Grenwood Press, 19, p. 112-145; MARIN, Rosa Acevedo. Du Travail
Esclave au Travail Libre: Le Para sous le regime colonial et sous l’empire (XVIIe – XIXe siècles) Doctorat de Troisième Cycle
- Paris, 1985. FUNES, Eurípedes. Nasci nas matas, nunca tive senhor: história e memória dos mocambos do Baixo
Amazonas. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 1995. GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: quilombos e
mocambos no Brasil (sécs. XVIII e XIX). Op. cit.

E spelhos P art i dos 81


Não restam dúvidas de que o número de escravos disponíveis na região só irá
sofrer aumento significativo quando a Companhia de Comércio do Grão-Pará inicia
suas atividades no tráfico atlântico e, da mesma forma, não há o que questionar quanto
à predominância do uso da mão-de-obra dos índios no decorrer do século XVIII.
Contudo, como afirmou Luís Pinheiro, o que se coloca em questão é o fato de que,
“desde meados do século XVIII, a introdução de negros no Grão-Pará tornou-se uma
realidade importante para a sociedade e para a economia da província.” 6
A presença de africanos no Grão-Pará ativa e coloca em movimento questões
muito mais amplas que não podem ter suas dimensões avaliadas apenas em função
do número de escravos disponíveis porque, o que está em jogo, é a própria montagem
e reiteração de uma sociedade escravista cuja lógica de reprodução não se limita ao
número de homens disponíveis nos plantéis, mas antes se traduz na reiteração de
relações de subordinação e poder que dão vida ao próprio sistema. Isso, sem dúvida,
é uma realidade importante que deve ser adequadamente considerada.
Para além dessa questão, os trabalhos que recuperam as práticas de insurgência
adotadas pelos escravos no Grão-Pará, trazem à luz uma outra face dessa sociedade
carregada de tensões, e, no limite, vêm demonstrar mais uma vez que as avaliações
sobre a escravidão não podem ser balizadas apenas pela leitura de números modestos.
Considerá-los neste trabalho tem por objetivo situar, ainda que
preliminarmente, as questões carreadas pela escravidão tendo como referência o
fato de que novos sujeitos sociais estão emergindo na sociedade colonial paraense e
sua própria presença, pela força das contradições que carrega, contribui para torná-
la mais complexa na medida em que escravos negros e os índios inseridos em
diferentes modulações do trabalho compulsório irão compor, ainda que de maneira
juridicamente diferenciada, as bases da mão-de-obra disponível no Grão-Pará. Não
menos importante ao considerar esse novo segmento é o destaque à questão da
propriedade de homens pelo peso que esta assume na configuração das hierarquias
sociais na colônia. Por estas razões, a proposta deste capítulo é, de um lado, procurar
reconstituir, em linhas bastante gerais, a emergência desses novos sujeitos e, de outro,
buscar apontar - na medida das possibilidades – as relações entre a propriedade
escrava e os mecanismos de mobilidade social no Grão-Pará colonial.

6
PINHEIRO, Luís Balkar S. P. Idem, ibidem. O Grão-Pará não se constituía em “província” no decorrer do século XVIII; nesse
período, era uma capitania, parte da estrutura administrativa do Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751) e, depois, Estado
do Grão-Pará e Rio Negro (1774); trata-se de um pequeno equívoco do autor.

82 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


ESTENDENDO O TRÁFICO DE ALMAS

As primeiras referências quanto à presença de escravos africanos na


Amazônia, recuperadas por Manuel Nunes Pereira, dão conta de sua introdução em
1692 por iniciativa holandesa na região do Oiapoque. Arthur Reis, em trabalho
posterior, a considera como resultante da ação de ingleses buscando estabelecer-se
na região, mais precisamente na costa do Macapá, para dar início ao plantio de
cana-de-açúcar em finais do século XVI e início do XVII7. Se flamengo ou bretão,
a verdade é que tal pioneirismo não foi seguido de maiores desdobramentos na
região no que diz respeito à disseminação do uso de escravos. Seguramente, apenas
a partir da segunda metade do século XVIII, é que as reiteradas investidas da Coroa
nesse campo começam a apresentar resultados mais significativos.
No esforço de compreender melhor o processo de transferência de cativos
de África para o Pará, Vicente Salles identificou preliminarmente as modalidades
do tráfico efetuado dentro de uma periodização bastante dilatada que se inicia,
grosso modo, na segunda metade do século XVII e se estende até início do século XIX.
Essas modalidades são o assento; monopólio; iniciativa particular (contrabando e comércio
interno).8
A modalidade do assento, i. é., os carregamentos realizados sob a
responsabilidade da Fazenda Real através de contratos particulares, aparece colocada
em movimento em finais do XVII, quando a Provisão Régia de 01.04.1680 veio
estabelecer a condução anual, às expensas da Fazenda Real, de escravos da Costa da
Guiné para o Maranhão e Pará. Experiência de curta duração, logo seria substituída
pelo monopólio da empresa criada dois anos depois: a Companhia de Comércio
do Maranhão.
Na avaliação de Salles, ressalvados os dois momentos de criação das
companhias monopolistas de comércio – Companhia de Comércio do Maranhão
(1682-1684) e Companhia Geral do Comércio do Grão Pará e Maranhão (1755-
1778) – o assento foi a modalidade mais comum, na medida em que a iniciativa
particular não podia imiscuir-se nessa grande aventura que era o tráfico internacional
em função de suas restrições de cabedais.

7
REIS, Arthur C. Ferreira. Tempo e vida na Amazônia, p. 146.
8
Diga-se que essa tipologia não pressupõe uma sucessão necessária de “fases” ou algo similar. Ao contrário, como se verá
a seguir, diferentes modalidades podem conviver simultaneamente e até mesmo podem ser retomadas, após um período de
desuso temporário. Cf. SALLES, Vicente. O negro no Pará, p. 28.

E spelhos P art i dos 83


Após a extinção da Companhia do Maranhão(1684), são firmados ajustes
com a Companhia de Cacheu e Cabo Verde (1690). Esse novo contrato de assento
ajustava a introdução anual de 145 escravos trazidos da África, a 155 mil réis a peça,
para isso, empregando-se recursos que se destinavam ao negócio de drogas do
sertão9. O contrato de Cacheu será objeto de uma série de reclamações e protestos
dos moradores com dois argumentos persistentes ao longo de todo o século XVIII:
o alto preço dos cativos e a baixa qualidade das peças remanescentes na medida em
que os melhores escravos eram comercializados no Maranhão, de acordo com os
reclamos dos colonos do Pará. A partir de 1778, com a extinção da Companhia
Geral de Comércio, novos assentos são acordados com Cacheu e Cabo Verde.
Salles considera este como sendo o período dos mais importantes contratos.10
Uma característica importante desse último momento é o claro incentivo da
Coroa na expansão do tráfico na direção do Pará concedendo várias isenções de
impostos para estimular a introdução de africanos na Capitania. Dito corretamente, é
preciso salientar que a presença da Coroa nos negócios do tráfico – ainda que sujeita
a oscilações conjunturais – é uma persistência importante estejam em funcionamento
os contratos de assento ou as Companhias de Comércio. Um sem-número de
concessões e prerrogativas são concedidas prodigamente aos negreiros que se dirigiam
ao Pará.
Um rápido olhar nesse final de século XVIII corrobora essa avaliação. Em
1794, já está em vigor o Indulto do Perdão dos Direitos Concedidos por S. M. aos que levarem
escravatura direto dos portos de Angola à Capitania do Grão-Pará, i. é. isenção de impostos
aos que importassem escravos direto para o Pará. Nesse ano, as isenções foram
estendidas aos portos de Cabinda e Mulembo como parte de novas medidas de
incentivo11. Poucos anos depois, medidas semelhantes ampliam os raios de ação dos
negreiros e, possivelmente, permitem a inclusão de novos atores nesse processo geral:
em 1797, as isenções alcançam os navios saídos dos portos de Cacheu, Bissau e
Moçambique em direção ao Pará e, em 1798, o Aviso de 16 de abril enviado ao
Conde de Resende, Vice-rei do Brasil, liberava, dos direitos de entrada, os navios nos

9
SALLES, Vicente. Op. cit., p. 28. MACLACHLAN, C. African Slave Trade... Op. cit., p. 116.
10
Reis afirma que a Câmara de Belém solicitou a intervenção real para que se realizasse uma repartição justa. Foram atendidos,
mas a Corte apontava como solução definitiva para a questão a criação de um transporte de escravos que reunisse os
moradores de ambas as capitanias. REIS, A. C. F. Tempo e vida... p. 149-150. MACLACHLAN, C. African Slave Trade... Op. cit.,
p. 116-117. Salles reporta mais dois contratos de assento (1702 e 1708) contudo permanecem os problemas, em especial,
a persistência das reclamações quanto à desigualdade da distribuição dos escravos. Cf. SALLES, V. Op. cit., p. 28-29.
11
VERGOLINO-HENRY, Anaíza; FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A presença africana na Amazônia colonial, p. 41 e 43

84 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


portos do Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco que se dirigissem para o Pará com
carregamentos de escravos12. No caso dos navios que saíssem diretamente dos portos
africanos para o Pará, a facilidade era ainda maior: estavam liberados dos direitos de
entrada e também de saída.13
O resultado dessa política de incentivo viabilizada pela isenção fiscal parece
ter sido interessante se se acompanha a leitura de Manuel Barata ao informar que
entre 1778 e 1792 foram introduzidos 7.606 escravos (média anual de 545) enquanto
que, durante o período de atuação da Companhia pombalina, a média era de 629.
Semelhante é a avaliação de Salles que, incorporando os dados de Antônio Baena,
reitera o significativo crescimento do número de escravos entrados no Pará entre
1778 e 1820. Os números falam de 38.323 indivíduos, ou seja, uma média de 1.137/
ano.14
Mas, na outra ponta do tráfico, a situação não parece ser tão alvissareira.
Em 1800, uma correspondência entre os governadores de Luanda e do Pará indica
restrições importantes. Apesar do incentivo da Coroa, não era interessante para os
comerciantes que faziam a articulação entre as duas praças manter um tráfico regular
para o Pará. Os argumentos do governo em Angola apontam para os altos riscos
da navegação, a impossibilidade de enviar grandes carregamentos pelas restrições
de capital dos paraenses, a baixa cotação em Lisboa de produtos do Pará (algodão)
e a disponibilidade de outros (salsa, cacau e farinha) que não apresentavam interesse
para os comerciantes da praça angolana.15
Observando agora a ação da Coroa sobre outro prisma, inserida na
conjuntura particular propiciada pela ação das companhias monopolistas, verifica-
se que a preocupação real com a introdução de africanos passava pelo incentivo à
agricultura, em especial ao cultivo da cana-de-açúcar no primeiro momento do
monopólio. Em trabalho mais recente, Luís Felipe de Alencastro faz uma leitura
ainda mais abrangente desse interesse real aglutinando incremento da agricultura de
exportação com o tráfico negreiro. Assim, “para enlaçar a economia amazônica à
Metrópole, as autoridades deviam primeiro atá-la ao mercado africano.”16

12
Idem, Ibdem, 45
13
SALLES, V. Op. cit., p. 30; BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Compêndio das eras da Província do Pará. Belém:
Universidade Federal do Pará, p. 237, 1969.
14
SALLES, V. Op. cit., p. 30.
15
Correspondência de Governadores com o Governador do Pará (1800-1803) Códice 764, doc. 55 Apud MARIN, Rosa
Acevedo, Du Travail Esclave au Travail Libre. Op. cit., p. 58. MACLACHAN, C. African Slave Trade... Op. cit., p.130.
16
ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato dos viventes. São Paulo: Companhia das Letras, p. 141, 2000.

E spelhos P art i dos 85


Esse mesmo autor considera que as tentativas de inserção da Amazônia
devem ser lidas no contexto mais ampliado de recentragem da economia ultramarina
no Atlântico de final do século XVII. Daí a preocupação de transferir plantas orientais
e escravos africanos com o objetivo de capitalizar e aumentar a produtividade da
economia da região, restringir o acesso ao trabalho compulsório dos índios com a
colaboração dos missionários e, por fim, com a implementação da companhia
monopolista, a Coroa controlaria as duas pontas do mercado: em África com o
fornecimento regular de cativos e no Estado do Maranhão assegurando o monopólio
das exportações dos produtos amazônicos.17
O compromisso da Companhia de Comércio do Maranhão era introduzir,
no espaço de 20 anos, 10 mil escravos, à razão de 500 ao ano, os quais deveriam ser
comercializados no Estado ao preço de 100$000. Os resultados tumultuados da
experiência levaram à sua rápida extinção sem que se alcançassem os objetivos que
nortearam a sua constituição.18
Alencastro aponta a difícil conjuntura em que a nova empresa é criada,
marcada por uma recessão na economia européia na qual se vê mergulhado o
comércio atlântico português e, por essa razão, não consegue atender às demandas
locais por escravos africanos. O monopólio, ao vedar o acesso aos índios e sem
fornecer os cativos prometidos, torna-se inaceitável e explode em rebelião.19
Os incentivos ao estabelecimento da cana são visíveis no final do século XVII
quando se recomendava expressamente que os escravos introduzidos fossem
preferencialmente destinados aos senhores de engenho. Essa diretiva da Coroa ignorava,
na prática, as dificuldades de cultivo em larga escala de cana-de-açúcar no Pará seja
devido às condições inadequadas do solo, seja em função das dificuldades de transporte
que acabavam por fazer com a produção local fosse destinada à fabricação de aguardente
e não de açúcar para a exportação.20
Outros fatores internos que devem ser agregados para que se possa avaliar
corretamente essa conjuntura que vai do final do XVII ao meados do XVIII são de duas
ordens. um deles é o crescimento da produção de cacau, atividade extrativa em cuja
realização se empregava mão-de-obra local, mais adequada e mais acessível que a africana.
O segundo diz respeito à expansão das tropas de resgates na região do rio Negro, na

17
Idem, p. 141-142.
18
Cf. Capítulo 8. Remédios para a pobreza para um breve balanço dessas experiências monopolistas.
19
ALENCASTRO, L. F. Op. cit., p. 142.
20
MACLACHAN, C. African Slave Trade... Op. cit., p. 117.

86 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


verdade, a contraface da expansão da produção de cacau. Isso significa que os colonos
do Pará e também do Maranhão não sofriam brutais carências de mão-de-obra na
medida em que estavam suficientemente abastecidos por essas tropas.
Entre 1755 - 1778, é a vez de um novo experimento monopolista: a Companhia
Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Tentando refazer determinadas conexões
aparentemente perdidas pela historiografia, lembro que a criação da companhia coincide
– e não se trata de acaso – com um reordenamento na política de acesso à mão-de-obra
indígena com a implantação do Diretório, o fim das tropas de resgate e a publicação da
lei de liberdade dos índios. Ainda uma vez a Coroa reitera um procedimento similar ao
que precedeu à criação da Companhia do Maranhão, alterando as disposições com
relação aos índios e criando novos impedimentos ao seu acesso indiscriminado por um
lado, e, de outro, acenando com a perspectiva da disponibilidade de africanos a tempo
e preço razoáveis.
Considerando que as ações da companhia pombalina são analisadas em
outro capítulo, limito-me aqui a agregar alguns dados exclusivos do tráfico. A
importância crucial do negócio de almas executado pela companhia pombalina
residia, como diz MacLachlan, no fato de que a Coroa o considerava como um
primeiro passo – absolutamente necessário – para transformar o Estado do Grão-
Pará em uma parcela economicamente viável do Império português. Isso justificaria
a concessão de exclusividade no comércio com Cacheu, Bissau (Guiné) e Benguela
(Angola). Evidentemente, a essa altura dos acontecimentos em África, o privilégio
de Guiné era ilusório considerando a forte concorrência estrangeira e, em particular,
a presença inglesa. Foi com o objetivo de reduzir essas pressões que a Coroa autorizou
a edificação de fortalezas para facilitar o trato. Com essa finalidade, a fortaleza de
Bissau ficou pronta em 1773.21
Resolvida a primeira parte do problema – o fornecimento da escravaria –,
a segunda parte dizia respeito à sua aplicação no Estado de maneira tal que permitisse
um aproveitamento efetivo dessa mão-de-obra. Os levantamentos realizados pela
Coroa indicavam que a maior parte das produções do Pará eram compostas por
produtos extrativos, ainda que já estivessem presentes entre elas um bom número
de produtos cultivados como o arroz, algodão, cana, café e cacau. Sem contar o

21
MACLACHLAN, C. African Slave Trade... Op. cit., p. 120. Não só a fortaleza de Bissau foi construída com recursos da
Companhia, mas também as folhas de pagamento (eclesiástica, civil e militar) de Cacheu, Bissau e Cabo Verde eram atendidas
pela empresa. Cf. DIAS, Manuel Nunes. Fomento e Mercantilismo. Op. cit., v. 2, p. 202-203.

E spelhos P art i dos 87


fato de que as experiências de cultivo em larga escala na região, pressupondo uso
mais intensivo da terra, não apresentava os resultados esperados em função das
próprias características de alguns dos solos amazônicos.
No limite, isso significava que a capacidade de solvência dos colonos
estabelecidos no Pará era muito mais sujeita às instabilidades da coleta dos produtos
extrativos, à sua disponibilidade sazonal e às oscilações de preço do que a de outras
áreas estabelecidas com cultivos regulares. Se isso está correto, então é um tanto
compreensível as cautelas dos administradores da companhia pombalina em disseminar
o crédito aos colonos paraenses em maior escala como se chegou a reclamar.
Situação diferente encontra-se no Maranhão, especialmente no delta dos rios
Itapicuru e Mearim, onde as culturas de algodão e arroz introduzidas pela companhia
encontram condições mais adequadas para sua rápida expansão. É novamente
MacLachlan que afirma que o grau de sucesso da empresa em cada uma dessas áreas
pode ser avaliado pelos resultados apresentados nas estatísticas de exportação: entre
1773-1777, enquanto o Maranhão exportou cerca de 153 mil arrobas de algodão, o
Pará embarcou cerca de 3 mil.22
Em função desses resultados, é possível situar melhor a permanência das
reclamações dos moradores do Pará, reiterando as dos momentos anteriores: altos
preços e desigualdade no trato das praças de Belém e São Luís. Sem descartar
inteiramente o dado de que os preços dos cativos eram efetivamente altos, não é
possível deixar de notar que uma eventual preferência pelos negócios de cativos na
praça de São Luís se justificaria pela sua solvência mais imediata devido ao desempenho
de suas produções, daí a sua prioridade na escolha de melhores cativos. Essa situação
torna-se mais evidente com o fim da Companhia, na mesma conjuntura da guerra de
independência dos EUA (1776-1783), quando os colonos do Maranhão tinham
disponibilidade suficiente para financiar o tráfico, estimulados pelo desempenho de
seus produtos. Na outra ponta, os colonos do Pará não podiam contar com a mesma
possibilidade e, para eles, a solução deveria ser diferente: sem o crédito da Coroa e
não mais da Companhia, a solução para o problema da mão-de-obra ainda deveria
ser endógena.
O projeto pombalino de ampliar o emprego da mão-de-obra escrava em
substituição à mão-de-obra indígena não surtiu os efeitos desejados. Em primeiro
lugar, é preciso considerar que as restrições de capital permaneceram, dificultando

22
MACLACHLAN, C. African Slave Trade... Op. cit., p. 122.

88 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


o acesso generalizado aos escravos introduzidos pela Companhia devido a seu alto
preço, em contraposição ao baixo valor de aquisição da mão-de-obra indígena.
A permanência dessas limitações, em certa medida, reitera a relativa
incapacidade da região em gerar uma demanda própria para absorver os escravos
negros introduzidos pela Companhia, basicamente porque as estruturas internas de
organização do sistema econômico da região não sofreram alterações significativas
no decorrer do período em questão, como assegurou Ciro Cardoso. Um indicador
importante a este respeito é a estimativa de que cerca de 1/3 dos escravos entrados
no mercado de Belém era comercializado com o Mato Grosso, mercado que realizava
suas operações em ouro e não em gêneros exportáveis, como o Pará e o Maranhão.
Apesar dos esforços da Coroa, a mão-de-obra negra não se generalizou na região.23
Ainda um último dado deve ser agregado aqui para compreender as razões
dessa demanda mais acentuada: as informações que dão conta do funcionamento
da rota de comércio do rio Madeira – responsável pela articulação mercantil das
capitanias do Pará e Mato Grosso – são unânimes em assegurar a preferência pela
equipação das canoas dos comboios por escravos e não índios.24
Tentando não perder de vista as modalidades do tráfico propostas por
Salles, a última delas é a chamada iniciativa particular. Essa parece ter sido esporádica
e não respondeu (não teve interesse ou condições para tanto) aos sucessivos acenos
e estímulos da Coroa para assumir localmente o controle do comércio de almas. E
isso, relembre-se, remonta à Provisão de 18.03. 1662.
Porém, se não tinha cacife para envolver-se na grossa aventura do tráfico,
assumiu algumas posições no comércio interno e no contrabando. No caso do
comércio interno, as rotas preferenciais dos traficantes internos eram em direção à

23
CARDOSO, Ciro F. S. Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas. Op. cit. Apenas uma observação pontual quanto
às demandas do Mato Grosso; alguns autores, como Ciro Cardoso e C. MacLachlan, consideram que o Mato Grosso funciona
como “dreno” da mão-de-obra escrava entrada no Pará. Não parece ser bem assim. A correspondência entre governadores
do Pará e administradores da Companhia deixam claro que a demanda do Mato Grosso, efetivamente estimada em 1/3 dos
escravos que deveriam entrar no Pará, já estava prevista na definição dos números necessários; as propostas falam em
1.500 escravos/ano dos quais, 500 deveriam ser reencaminhados para aquela capitania. É certo que Mato Grosso fazia
melhores negócios com os negreiros porque podia saldar suas dívidas em metal precioso mas o que se pode inferir,
preliminarmente, é que o número de cativos entrados no mercado é bem inferior ao demandado localmente – ou, pelo
menos, estimado como ideal. Daí que os negócios com a capitania vizinha funcionem como pólo de drenagem da mão-de-
obra recém chegada nos portos do Pará.
24
Justificam essa preferência devido à alta mortandade dos índios na longa viagem, às constantes fugas e à incapacidade de
reabastecimento de remeiros no decorrer da parte mais difícil do trajeto: as 70 léguas que se estendiam da vila de Borba
até que se alcançasse a primeira cachoeira do Madeira. Escravos eram reputados como mais adequados porque resistiam
melhor à insalubridade da região e fugiam em menor proporção por desconhecerem a região e temerem o ataque dos índios.
Cf. o capítulo 8. Remédios para a pobreza.

E spelhos P art i dos 89


Bahia e ao Maranhão No final do século XVIII, o mercado de fornecimento interno
se ampliou incluindo o Rio de Janeiro. Após a independência, a entrada de negros
no Pará foi facilitada com a isenção de impostos e pequenos grupos chegaram do
Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Ceará e Maranhão.25
As disposições no sentido de isentar a praça paraense de impostos para
receber escravos apresentaram resultados inusitados: no início do século XIX, o
Pará passou a ser um destino preferencial de escravos rejeitados nos portos do
Brasil. Em cada ano, chegavam pequenos carregamentos da Bahia, Pernambuco e
São Luís com escravos rejeitados por doenças ou comportamento recalcitrante nos
seletivos mercados do Brasil26. É Gilberto Freyre quem recupera um dito comum
entre os senhores do Pernambuco quando o escravo dava para ruim ou malandro:
“Mando-te para o Pará!”27
O contrabando foi particularmente intenso. Se os particulares não podiam
assumir o tráfico, funcionavam como receptadores e intermediários pelos caminhos
do sertão. Salles assegura que o contrabando organizou-se de forma sistemática e
aparece com maior intensidade após a extinção da companhia pombalina,
especialmente a partir de 1784, chegando a confundir-se, compreensivelmente, com
as redes legais de comércio interno. As redes mais concorridas ligavam o Maranhão
ao Pará. A povoação de Turiassu (Maranhão) chegou a ser estabelecida como porto
de contrabando onde os navios vindos de África e outros portos do Brasil
descarregavam diretamente os cativos. O contrabando permanece visível até final
dos anos de 1830 na região.28
Informações esparsas e pouco trabalhadas sugerem que a praça paraense
poderia render um pouco mais nesse aspecto do tráfico. Em ocasiões distintas
(1792 e 1797), o governador Francisco de Souza Coutinho propôs um projeto de
importação com a participação do comércio local no empreendimento, ao invés da
Capitania ficar restrita aos influxos do capital metropolitano29. Os dados sobre o
contrabando também são sugestivos no sentido de apontar caminhos alternativos
para os cabedais paraenses que não necessariamente passassem por sua vinculação

25
SALLES, Vicente. Op. cit., p. 42-43.
26
MACLACHLAN, C. African Slave Trade... Op. cit., p. 131.
27
FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX apud SALLES, Vicente. Op. cit., p. 43.
28
Idem, p. 41.
29
Reis afirma que o projeto foi colocado em prática em 1797, mas com resultados limitados. Cf. REIS, Arthur C. F. Tempo e vida
na Amazônia. Op. cit., 154; Rosa Marin informa que chegaram apenas dois carregamentos em 1797 como resultado das
investidas de Souza Coutinho nessa direção. Cf. MARIN, Rosa Acevedo. Du Travail Esclave au Travail Libre. Op. cit., p. 56.

90 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


estrita com as redes internacionais. Isso não permite afirmar que a praça paraense
estava sub-utilizada nesse particular, mas sugere antes de tudo a ausência de pesquisas
mais apuradas sobre a questão da participação de capitais coloniais no tráfico.
Trazidas dos portos africanos, as populações que desembarcaram no Pará
seguramente faziam parte de etnias distintas, capturadas na rede comum dos mercadores
de almas. Os inventários fornecem algumas pistas sobre sua procedência, ou pelo
menos, as denominações correntes no Grão-Pará do início do XIX.

Denominação Número de Registros


Angola 44
Benguela 26
Mandinga 14
Congo 13
Cabinda 9
Caçange 8
Manicongo 7
Mina, Rebolo e Moçambique (cada) 5
Fulupo 4
Bijagó 2
Nagô 2
“De nação” 12
Fonte: Elaborada pela autora a partir dos inventários post-mortem.

Essas não podem ser consideradas denominações étnicas; na verdade, elas


indicam mais os portos de embarque de africanos do que suas etnias de origem: Esses
registros representam 25% dos escravos presentes nos inventários post-mortem do Pará
entre 1809-1845. A presença de embarcados em Angola é significativa e representa
mais de 30 % dos registros, mas estender essa leitura a cada um dos registros significaria
chegar a um recorte muito parcial e fragmentário. Preferiu-se considerar as grandes
zonas de tráfico, tal como propôs Manolo Florentino, para rever essas informações
(em si mesmas, já fragmentárias) e, a partir daí, esboçar um novo quadro.30

30
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 78-100.

E spelhos P art i dos 91


GRÁFICO: PROCEDÊNCIA DOS AFRICANOS NO GRÃO-PARÁ: GRANDES ZONAS DE
TRÁFICO

Ainda que não tenham valor conclusivo, as informações dos inventários


permitem o esboço (impreciso, é certo) do perfil dos plantéis africanos do Grão-
Pará nas primeiras décadas do XIX. A incontestável predominância de populações
deslocadas da África Central Atlântica, nesse período, vincula o Grão-Pará ao mesmo
fluxo que alimentava o tráfico nos portos do Rio de Janeiro.
Na verdade, desde meados dos anos 1770, a chegada de navios negreiros
com carregamentos de Benguela eram bem reputados no mercado local porque as
peças eram mais resistentes e poucas eram refugadas. Os carregamentos de Guiné
eram considerados inferiores e de pior qualidade. Pelo menos, essa é a leitura que
emerge da correspondência trocada entre o governador do Pará e os administradores
da Companhia de Comércio.31
Antônio Carreira indica que, durante a atuação da companhia, mais da metade
de seus carregamentos (59,3%) vinham da África Ocidental e o restante (40,7%) da
África Central Atlântica. As leituras de Anaíza Vergolino & Napoleão Figueiredo
para períodos posteriores confirmam a reorientação das rotas em direção à África
Central Atlântica incorporando, em menor escala, os portos da África Oriental.
Entre 1775-1795, o progressivo abandono dos portos da África Ocidental e
crescimento da participação da África Central e, a partir de 1795 até início do XIX,
o abandono dos portos da Guiné, a manutenção das zonas centrais atlânticas e a
expansão em direção ao Índico.32

31
Cf. FERREIRA, Alexandre Rodrigues.
32
CARREIRA, Antônio. Op. cit., p. 100. VERGOLINO-HENRY, Aniza; FIGUEIREDO, Napoleão. Op. cit., p. 50.

92 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Esse reordenamento não é exclusividade do tráfico em direção ao Pará.
Florentino o identifica de maneira mais ampliada, demarcando o mesmo período
para redefinição das zonas de abastecimento de homens em direção ao Rio de
Janeiro. Entre outros elementos, considera que a expansão das rotas em direção à
África Oriental guarda relação com as restrições dos mecanismos sociais de produção
de escravos da África Central para atender à rápida expansão de demanda de braços
do Sudeste do Estado do Brasil.33
Uma leitura panorâmica do tráfico de escravos no Pará não pode escapar
de um terreno inseguro: seus números. As disputas pelas cifras, de um lado,
combinam-se com sua completa ausência em determinados períodos. Para o período
anterior a 1755, não existem números precisos.
À primeira vista, fica claro que certas diferenças ligam-se, fundamentalmente,
à natureza das fontes selecionadas para sua construção. Problemas como o uso do
termo peça, o emprego ora dos dados de embarque em África, que se combinam
(ou não) com os de desembarque no Pará e Maranhão, a concentração das estimativas
nos registros contábeis da companhia pombalina, só para mencionar algumas das
variáveis possíveis. Apesar disso, não é possível desprezá-los imediatamente. A opção
por apresentá-los aqui, ainda que incompletos, foi com a finalidade precípua de
recuperá-los e apontar (ainda uma vez) a necessidade urgente de pesquisas
complementares nessa direção.
De acordo com os dados de Nunes Dias, entre 1755 -1778, a Companhia
de Comércio do Grão-Pará e Maranhão introduziu 14.749 escravos negros no Pará
e 10. 616 no Maranhão. Antônio Carreira, no entanto, coloca os números de Nunes
Dias em questão ao incorporar os registros até 1788 e chega ao total de 24.649
escravos chegados vivos ao Pará e Maranhão.
Seu argumento para revisão dos números de Dias se baseia no fato de que,
até 1788, a companhia continuou em operação mesmo em processo de liquidação
de contas. Assim, o fluxo de escravos permaneceu presente mesmo depois do
recorte dado por Dias que emprega o ano de sua extinção como referencial. Colin
MacLachlan agrega dados de variadas procedências e estende sua periodização até
o ano de 1800.34

33
FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 80-81.
34
Existem outros argumentos de Carreira para a crítica dos números de Nunes Dias. Vale conferir diretamente em CARREIRA,
A. Op. cit., p. 48-49.

E spelhos P art i dos 93


Mesmo sendo objeto de contestação, os números não deixam de apontar
tendências. As proximidades de Dias e Carreira, ainda que 10 anos os separem,
apontam para a predominância relativa da praça paraense sobre a do Maranhão no
primeiro momento (entre 27 e 38 %). Essa diferença talvez possa ser explicada
tanto pelas demandas internas do Mato Grosso quando pela incipiência dos
experimentos agrícolas da companhia no Maranhão, mas, por outro lado, não
encontra eco nas reclamações dos colonos do Pará no mesmo período.

ESTIMATIVAS DO TRÁFICO

Nunes Dias Carreira MacLachlan


Anos? 1755-1777 1756-1788 1757-1788 1788-1800
Pará 14.749 13.834 17.696 4.614
Maranhão 10.616 10.815 24.750 16.185
Totais 25.365 24.649 42.446 39.657

Fonte: Nunes Dias, op. cit., v.1, pp.468-9;Carreira,op. cit., p. 91 e MacLachlan, p. 137-8.35

Os números de MacLachlan, situados no mesmo período de Carreira, são


muito diferentes. Neles, os desembarques maranhenses superam os do Pará em
39%. As discrepâncias aqui podem ter sido causadas pela consideração de fontes
diversas (e portanto, desembarques diferenciados); é possível que Carreira tenha
privilegiado apenas os remanescentes da companhia pombalina e MacLachlan
empregado números da Alfândega como indica nas suas notas. Contudo, o último
conjunto de números referente ao período pós-88 indica uma preponderância
inquestionável do Maranhão sobre o Pará superando-o em 250%. Se os dados são
seguros ou não, fica registrada a tendência de declínio das entradas de negros no
Pará, já sugeridas pela historiografia nesse momento, bem como o comportamento
diferenciado da praça maranhense nessa mesma direção.

35
Os números de Antônio Carreira distinguem escravos embarcados (27.497) e escravos chegados vivos (24.649). Para essa
tabela comparativa, empreguei esse último dado porque os números de Dias são construídos sobre os resultados das
negociações realizadas, i. é., a resultante entre chegados vivos e sobreviventes no momento da venda já que não era
incomum a morte nos depósitos. Da mesma forma, os números de C. MacLachlan são relativos aos escravos desembarcados
em Belém. Quanto a esse último autor é preciso destacar que existe um problema na tabela por ele apresentada para os
escravos desembarcados em Belém, possivelmente causado por erro de impressão: revisando os números chega-se à soma
real de 22.310 e não 23.884, número ali publicado.

94 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


REVENDO ALGUNS LIMITES

São [os índios] mui compassivos do seu semelhante;


excepto ao preto, natural da Ethiopia, que lhe tem huma natural aversão,
como o nojo que qualquer tem ao sápo,
ou outro animal imundo;
porém já aos Crioulos não he tanto.

Pe. André Fernandes de Souza, c. 1820.

Entender a presença de escravos no Grão-Pará colonial significa não só


avaliar seus números, mas, principalmente, buscar visualizar as formas de sua inserção
nessa sociedade. De novo, a operação de rejuntar os fragmentos.
Se João e Alexandrina, nossos fugitivos, dirigiram-se para o rio Negro onde
João parecia ir em busca de solidariedades ou, pelo menos de espaços conhecidos,
deixaram para trás uma cidade que já convivia há longo tempo com a presença de
escravos negros no seu cotidiano.36
Circular pela cidade significava encontrar com os carregadores africanos, as
vendedoras de açaí, os criados responsáveis pelo transporte de suas senhoras
acomodadas em requintadas redes trabalhadas, mucamas e lacaios, escravos e negros
livres negociando suas produções de tabaco, artigos de latão e cobre, chapéus de
palha, oferecendo seus serviços de sapateiro, carpinteiro e ourives. Talvez Alexandrina
também se vestisse de branco para aproveitar das festas do Espírito Santo como
costumavam fazer “negras, índias e mamelucas”, ou mesmo se postasse ao lado de
outras mulheres (escravas ou não) nas inúmeras barracas de guloseimas e bebidas
que cercavam a igreja durante as comemorações. João certamente conhecia a floresta;
afinal, já tinha vivido no rio Negro como escravo do Tenente Cordeiro. Calças
brancas, descalço, deve ter se habituado às trilhas da floresta, reconhecendo as árvores
e seus usos. Talvez tenham colaborado, com seu trabalho e pecúlio, na construção
da igreja de Nossa Senhora do Rosário que ficou pronta em 1849. 37

36
Para José Ciríaco, fugido em 1852 da vila de Oeiras, voltar para a Barra do Rio Negro significava a possibilidade de
reencontrar a irmã. Fazia pouco mais de um ano que tinha sido comprado pelo novo senhor e nunca escondeu as saudades
que sentia da Barra; isso fez com que se pudesse indicar com precisão sua rota de fuga no anúncio publicado no jornal
de Belém. Cf. SALLES, V. O negro no Pará. Op. cit., p. 320-1
37
Registra-se a existência da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos já em 1727. As informações sobre
as atividades de escravos e negros livres foram recolhidas nos viajantes. Cf. BATES, Henry. Um naturalista no rio Amazonas,
p.12, 25, 45-46. WALLACE, Alfred R. Viagem pelos rios Amazonas e Negro, p. 20, 27, 33, 67-68, 82. SPIX; MARTIUS, Viagem
ao Brasil (1817-1820. Op. cit., p. 26 e 29.

E spelhos P art i dos 95


Corrobora a força dessa presença seu próprio peso populacional no espaço
da cidade nos anos de 1787 (51%), 1792 (36%) e 1822 (46%). Confrontados com
os outros percentuais, percebe-se com nitidez o caráter multiétnico da Belém colonial,
onde a maioria de sua população era não-branca.

POPULAÇÃO DE BELÉM: QUADRO % COMPARATIVO

Livres
Ano/
condição Preto, Índio e Mestiços Escravos
Brancos

1787 38% 11% 51%


1792 51% 13% 36%
1822 45% 9% 46%
1849 75% 25%
Fonte: Elaborada pela autora. Cf. V. Salles, op. cit., pp. 69-71 e C. Cardoso, op. cit., p. 141. Os dados para o
ano de 1849 consideram apenas população livre e escrava, não distinguindo brancos, escravos e índios. Cf.
Resumo do mappa da população da Província do Pará – 1849.

Na Capitania do Rio Negro, os dados indicam que a presença de escravos


no espaço urbano era mais modesta se confrontada com Belém. Apenas para
comparar as duas capitais coloniais do período, vejamos os números de Barcelos
em 1786. Os habitantes contados na categoria Livres correspondiam a 20,7%, os
Índios a 68.9% e os Escravos a 10,4%.38
Observando os números globais da Capitania do Rio Negro para os anos
de 1775 a 1795, a preponderância dos Índios é incontestável deixando claro que,
nos sertões, a presença dos escravos poderia carregar significados múltiplos.
Evidentemente, não se constituíam a base da força de trabalho dos sertões, composta
pelos índios, mas estavam presentes demarcando fronteiras diferenciadas em um
mundo onde era possível ser propriedade de outrem.

38
Cf. FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Mapa Geral da População da Capitania do Rio Negro, 1786. Em Barcelos contavam-se
1.097 almas sendo 227 livres, 756 índios e 114 escravos.

96 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


POPULAÇÃO DO RIO NEGRO: QUADRO % COMPARATIVO

Ano Livres Escravos Índio


1775 8% 2% 90%
1785 9% 3% 88%
1795 11% 4% 85%
1814 20% 5% 75%

Fonte: Para os anos de 1775-1795, ver Gráficos do capítulo 03; os dados de 1814 estão em Spix e Martius, op.
cit., p. 41.

Em que pese o fato de se lidar aqui com fragmentos, não deixa de ser
interessante a possibilidade de pontuar inserções diferenciadas em se tratando de
comparar os sertões com a exuberante capital do Estado do Grão-Pará. Apenas
retomando aspectos já abordados em outros momentos desse trabalho lembro
que, na configuração das estruturas locais de produção, a tipologia proposta por
Ciro Cardoso já identificava para a segunda metade do século, o crescimento de
um setor produtivo baseado no uso da mão-de-obra escrava e também índia,
conformado em grandes propriedades agrícolas. A ascensão desse setor é bem
mais visível nas áreas de ocupação mais antigas como os arredores de Belém (Acará,
Moju e Capim) – zona tradicional de lavoura canavieira com a predominância de
engenhos reais – e também produtora de produtos para exportação, especialmente,
o arroz, fumo e cacau. Esse perfil estendeu-se ainda a parte da Ilha de Marajó,
alcançando a calha do rio Tocantins sendo a Vila de Cametá, localizada nesse rio,
um bom exemplo desse processo de expansão.
No caso da Capitania do Rio Negro, esse quadro é diferente; suas produções
mais rentáveis estão vinculadas aos produtos extrativos do sertão, ganhando relevo
as extrações de salsa, urucu, cacau, piaçava, óleos vegetais e outros. A produção de
gêneros alimentícios para abastecimento interno da capitania era realizada nas
pequenas propriedades, marcadas pela presença heterogênea de camponeses
(brancos, índios e mestiços) e também nas vilas pombalinas nas roças do Comum.
Se a introdução de escravos negros era a chave para o crescimento do
Estado, são compreensíveis as reclamações quanto ao seu uso “improdutivo”.
Alexandre Rodrigues Ferreira, indignado com o que parecia ser um enorme e
despropositado desperdício, fez questão de registrar que os proprietários de homens
da Belém dos anos de 1780 não os utilizavam corretamente

E spelhos P art i dos 97


[...] ou porque não sabem, ou porque não querem, e que
importam que saibam ou queiram aqueles, que os não têm para
os aplicarem? [...] Concorre a má distribuição dos poucos que
chegam pelos lavradores mais indolentes, para os quais todos
quantos chegam, são poucos para os serviços domésticos, para
acompanhamentos pomposos, para ostentações vãs de riqueza, e
de senhorio [...]39

Essa não era, contudo, uma prerrogativa dos senhores de Belém já que juízo
semelhante estendeu o naturalista para a Capitania do Rio Negro. Tamanho
“desperdício” deveria ser contido, retirando-se os escravos dos “lavradores indolentes”
para serem redistribuídos de maneira mais adequada, executando imediatamente suas
dívidas. Um caso claro era o do rico Capitão de Auxiliares José Antônio Freire Évora
que possuía 52 escravos,

e podendo ter os rendimentos, que não podem os outros


moradores, por nenhum deles ter tantos braços como ele [...] nem
sequer tira o sustento preciso para os ditos escravos; de modo, que
nem há roça circunvizinha em que eles não exercitem várias
pilhagens, nem canoas nos portos das roças que eles não retirem”.40

Essa, contudo, não é uma observação que se possa aplicar exclusivamente às


capitanias do Norte. Protestos quanto ao que se considerava como uso indevido de
escravos são recorrentes em outras áreas, especialmente, as imprecações quanto ao seu
emprego na ostentação pura e simples; assim reporta Emanuel Araújo a Bahia dos
séculos XVIII e XIX.41
Escravos também foram utilizados em outras tarefas como a construção de
fortalezas, condução de embarcações para o Mato Grosso, no cultivo da cana, arroz,
tabaco, mandioca, milho, nas fazendas de criação de gado e cavalos. Também eram
artesãos, tecelões de chapéus de palha, redes de algodão e maqueiras. Sua presença nos
espaços urbanos, sugere a leitura dos viajantes, reitera um padrão de atividade comum
a outras áreas exercendo suas atividades como negros de ganho, comercializando
produtos ou sendo alugados em função de suas habilidades específicas.

39
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Op. cit., p. 386.
40
A idéia da punição não é original. O naturalista apenas reforçava o que já era uma medida efetiva, articulada pelo
governador do Estado e a Junta de Administração da Companhia, publicada através de Edital de 23.12.1775. É certo que
não surtiu grandes conseqüências, como reconheceu o próprio Ferreira porque, pouco depois, a Companhia estava
lutando por sua própria sobrevivência, envolvida nas questões da extinção do monopólio.
41
ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios. p. 97-98.

98 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Alguns dos anúncios reproduzidos por Salles apontam um conjunto de
atividades e especializações nesse sentido: apanhadores de açaí, pescadores, padeiros,
trabalhadores do porto, serventes de obras públicas, calafates, carpinteiros, pedreiros,
ferreiros, vendedores de açaí, tabaco, garapa, lavadeiras, vendeiras, cozinheiras, que
sabem “coser, lavar, engomar, cozinhar e também ganhar na rua.”42
Mas a saída para o Rio Negro revela rotas que, percorridas com maior ou
menor intensidade, constituíram em possibilidades bastante concretas para os escravos
do Pará. As fugas e a formação de quilombos e mocambos foram muito mais
freqüentes do que poderia fazer crer uma historiografia em silêncio. O trabalho de
Flávio Gomes recupera vários que se estenderam, como “hidras”, também pelos
sertões do Negro.

MOCAMBOS NA AMAZÔNIA COLONIAL

Localização por Mocambos de Mocambos de Mocambos de


Afric anos Africanos e índios Índios Total
capitania
(1734-1816) (1762-1801) (1752-1809)
Grão Pará 72 16 29 117 (90,7%)
Rio Negro 6 - 6 12 (9,3%)
Total 78 (60,5%) 16 (12,4%) 35 (27,1%) 129 (100%)

Fonte: Adaptado a partir de Flávio Gomes. A hidra e Pântanos, op. cit., pp. 63-64; 80 e101. Não estão incluídos
os dados referentes ao Maranhão.

Gomes assegura que o problema dos mocambos havia-se tornado crônico


no Grão-Pará colonial; os quilombos e/ou mocambos de negros estavam
disseminados em quase todas as áreas da Amazônia. Algumas delas, como é o caso
do Amapá e Mazagão, configuravam-se como rotas de fugitivos nas fronteiras com
a Guiana Francesa.43
A diversidade das experiências dos quilombolas no Grão-Pará revela ainda
a formação de redes de solidariedades com as populações indígenas, forjando
mesmo novas identidades nesse mundo colonial. É certo que nem sempre essas
experiências foram pacíficas: “alianças e hostilidades podiam ser mais circunstanciais
que duráveis. Assim como em outras áreas no Brasil e no restante das Américas, as

42
SALLES, Vicente. O negro no Pará. Op. cit., p. 317-327.
43
Cf. GOMES, Flávio. A hidra e os pântanos, op. cit., p. 53 e 67. Para uma leitura mais aprofundada sobre a questão, vale
conferir diretamente o texto de Gomes.

E spelhos P art i dos 99


relações entre índios e negros foram marcadas também por conflitos. No Grão-Pará
não podia ser diferente.”44
Não há o que negar acerca da importância da presença da escravidão africana
no Pará colonial, possibilitando inclusive uma certa “redistribuição” das hierarquias e
das próprias fronteiras para delimitação das desigualdades sociais. A propriedade
escrava constituía-se, sem dúvida, em um indicador poderoso nessa direção.
Seguramente uma parcela da população indígena aldeada, portanto incorporada ao
mundo colonial, exercitando as prerrogativas de seus cargos, empregos e postos,
pôde ter acesso esse importante diferencial: o ser proprietário de almas.
Daí decorre mais que uma nuance: a questão da liberdade. Se os índios podiam
ser engajados em formas de trabalho compulsório, no limite, eram legalmente livres
ao contrário dos negros. A propriedade escrava demarcava ainda mais um limite
crucial no final do século XVIII: a própria legislação que acompanhava a execução da
Carta Régia de 1798 estabelecia expressamente que, entre aqueles que poderiam isentar-
se do serviço obrigatório nos corpos de serviço, estavam os que fossem proprietários
de escravos. Diz a instrução de 1799 dirigida aos oficiais responsáveis pela organização
das novas milícias ligeiras e que foi registrada no livro das Câmaras:

A cada oficial encarregado d’esta diligencia vai declarado na ordem


particular que esta acompanha, o distrito em que a deve executar,
e as povoações e companhias que deve compreender, advertindo
que todo índio ou mestiço que estiver alistado nos corpos de milícias sem ter
escravos nem estabelecimentos de lavoura de considerável importância, que
lhe dê meios para se conservar sempre armado e fardado, deverá ser incluído
nas companhias acima determinadas. (grifo meu)45

A possibilidade de escapar do recrutamento e do trabalho forçado por seis


meses a cada ano era viabilizada pela propriedade: de homens e de estabelecimentos
minimamente rentáveis. Excluídos do recrutamento, a propriedade ainda podia
garantir o acesso (ou a permanência) nas milícias, tropas semiregulares, forças móveis
que podiam ser deslocadas para reforçar as tropas permanentes.46

44
Idem, p. 100.
45
Cf. BNRJ - I, 32, 16, 41 - Instrução Circular sobre a formatura de novos corpos de mílicias; BNRJ - II - 32, 16, 41 - Diversas
cópias de documentos do livro pertencente ao Antigo Senado da antiga Vila de Ega, hoje cidade de Tefé - Pará. 1774-
1814.
46
Sobre o funcionamento das mílicias, ver Capítulo 12 - Caminhos possíveis: as armas e a República.

100 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Ser proprietário significava garantir sua própria liberdade, assegurar sua
mobilidade espacial com menores restrições e ainda poder acessar postos militares
que lhe garantiam honras e privilégios. Sobreviver não era um milagre; era política.
O uso das impressões do Padre André Fernandes de Souza na abertura
desse texto, se não fornece uma base segura para conclusões, ao menos, permite
sugerir a existência de tensões entre esses atores, mas, evidentemente, não podem
ser tomadas ao pé da letra. Da mesma forma que índios participaram de expedições
de captura de escravos fugitivos, também construíram mocambos comuns e
manifestaram outras muitas formas de solidariedades e alianças. Não há razão que
justifique a construção de um pensamento unívoco a esse respeito.
Mas não há como negar que se está tratando aqui de uma hierarquia social
que possui traços de Antigo Regime, mas que é ao mesmo tempo escravista. E isso
faz diferença. Os dados até aqui disponíveis ainda não permitem assegurar, por
exemplo, a disseminação da propriedade escrava entre as populações aldeadas do
Grão-Pará, mas não é preciso ir muito longe para supor que esse não era um estado
tão freqüente assim.
Na contramão de uma historiografia que, tradicionalmente, minimiza o peso
e a importância da presença negra no Pará, insiste-se aqui no esforço de apontar a
existência de outras possibilidades que ultrapassam em muito a simples contagem
dos presentes. Os escravos do Grão-Pará, negros forros, mulatos fizeram valer sua
presença de maneira significativa a despeito de um número considerado insignificante
e também do fato de se encontrarem no último patamar da escala hierárquica de
uma sociedade excludente. Também eles ajudaram a demarcar as fronteiras desse
mundo colonial com suas experiências históricas.

E spelhos P art i dos 101


102 Patrí cia Maria Mel o Sampaio
C APÍTULO 5

ENRIQUECIDOS E INVENTARIADOS: ALGUNS COLONOS

Sofre a fortuna adversa,


com paciência e constância.
Do contrário se origina
ser talvez triste a mudança.

Os inventários post-mortem são sempre reveladores. Sua utilização já permitiu


revisões significativas na historiografia brasileira, em especial acerca dos mecanismos
de acumulação endógena no mundo colonial1. Contudo seu emprego na historiografia
relativa ao norte do que se convencionou chamar de colônia brasileira ainda é modesto
e bastante limitado. Difícil precisar as razões para tal situação considerando que, no
Arquivo Público do Pará, eles existem em número considerável, especialmente para a
segunda metade do século XIX.
Considerações de método e historiografia à parte, registre-se que foram
incorporados a esse trabalho 66 inventários que vão de 1810 a 1845 relativos às freguesias
de Belém, Manaus, Silves, Serpa, Borba e Barcelos assim distribuídos:2

1
Cf. FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio Janeiro ( 1790 -
1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 3. ed. 1998.
2
Durante a elaboração da dissertação de mestrado “Os Fios de Ariadne: tipologia de fortunas e hierarquias sociais em
Manaus, século XIX”, recorri a essa documentação seriada atualmente depositada no Arquivo Público do Amazonas
(APAM).

E spelhos P art i dos 103


DISTRIBUIÇÃO % DOS INVENTÁRIOS POR FREGUESIAS E MONTE-MOR: 1810-1845

Freguesia % dos Inventários Monte-Mor £ %


Belém 68,3 89,2
Manaus 21,2 7,0
Silves 4,5 1,8
Serpa 3,0 0,9
Barcelos 1,5 0,7
Borba 1,5 0,4
Fonte: Inventários post-mortem: APAM e APP

No que diz respeito à sua distribuição por sexo, os inventários disponíveis


são, na maior parte, do sexo masculino, conforme se verifica na tabela a seguir:

DISTRIBUIÇÃO DOS INVENTÁRIOS POR SEXO E MONTE-MOR: 1810-1845

Sexo Quantidade % Morte-Mor %


Feminino 20 30,3 8.675,28 15,8
Masculino 46 69,7 46.149,63 84,2
Total 66 100,0 54.824,91 100,0

Fonte: Inventários post-mortem: APAM e APP

Incorporar os inventários referentes às localidades da Comarca do Amazonas


faz parte da estratégia de estender o olhar sobre os sertões do Grão-Pará,
especialmente no aspecto qualitativo que essa fonte seriada possibilita. Em termos
estatísticos, ainda que representem cerca de 1/3 dos inventários analisados, sua
modesta participação sobre o volume das fortunas inventariadas (pouco mais de
10%) não chega a operar distorções quando se apresentam considerações mais
ampliadas acerca de Belém, freguesia que responde por mais de 80% do volume
das fortunas computadas.
É certo que um número global tão restrito de inventários não possibilita a
elaboração de conclusões abrangentes e, outro ponto importante, é o fato de (a
rigor) escaparem da periodização estabelecida neste trabalho. Desta maneira, a decisão
de incorporá-los orientou-se, fundamentalmente, pelo fato de que as fortunas
inventariadas em meados do século XIX pertenciam a indivíduos que as construíram
em finais do século XVIII o que, a princípio, permitiria diversificar o leque
documental, comparar fontes diferenciadas e amplificar o olhar sobre a região no
tempo.

104 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Com esta preocupação no horizonte, o objetivo deste capítulo é poder
observar, ainda que em seus traços mais gerais, a trajetória da formação das fortunas
dos inventários disponíveis. Para sua construção, recorri a um leque documental
variado que tentasse preencher as lacunas de informação quanto à trajetória pessoal
dos inventariados. Assim, a base documental aqui utilizada incorporou, além do
inventários, as correspondências oficiais, os relatos de viagem, o recurso a fontes
como o Dicionário de Famílias Brasileiras, Grande Enciclopédia Amazônica e
Dicionário Amazonense de Biografias, e por fim, pequenos esboços de genealogia
disponíveis na historiografia paraense. Sem a menor pretensão de ter conseguido
aproximar-me de uma prosopografia, tenho a sensação de ter conseguido recuperar
não biografias no sentido estrito (e nem era isso que buscava), mas, lembrando Walt
Whitman, antes “alguns poucos traços apagados, uns dados espalhados” sobre a
vida de grupos familiares e alguns de seus membros, procurando observar, como
já disse, traços que informassem os processos de formação de suas fortunas, pedindo
ao leitor que tenha no horizonte todas as limitações documentais e metodológicas já
indicadas. O resultado desta tentativa é o que se apresenta aqui.3

LENDO ALGUNS INVENTÁRIOS

O Coronel Amândio José de Oliveira Pantoja, certamente, era um cidadão de


respeito. No seu funeral na Igreja das Mercês compareceram autoridades e pessoas
gradas da terra para prestar-lhe as últimas homenagens.4
Além de respeitável, era homem de muitas posses. Várias sortes de terras
compunham um vasto patrimônio com destaque para o engenho N. S. do Rosário no
rio Acará que conformava uma propriedade bastante interessante; lá estavam seus canaviais,
plantações de urucu, café, arroz, mandioca e algodão. Com casa de vivenda, ranchos,
senzalas e olaria, fabricava-se farinha, além do açúcar e da aguardente e ainda teciam-se
panos grossos de algodão.5

3
WHITMAN, Walt. Folhas das folhas da relva. São Paulo: Brasiliense, 6. ed. 1993.
4
“Não se lhe nomeou orador que desempenhasse com um eloqüente discurso o grande conceito e reputação que [...] lhe
aquistaram os seus esforços, tino ingênito e prudência..., mas teve a mais verídica oração fúnebre que se podia tecer: e foi
o gesto desalegre, o pesadume estampado na face dos indivíduos que se amontoava para pôr olhos no ataúde e que avultou
sobremaneira o luctuoso cortejo formado pelos Deputados do Governo Provisional, pelo Cabido, pelos Ministros do Culto,
pelos Senadores da Cidade e pelo concurso espontâneo de Cidadãos distintos”. Cf. BAENA, Antônio Ladislau Monteiro.
Compêndio das eras da Província do Pará, op. cit., p. 285-286.
5
Autos de inventário do Coronel Amândio de Oliveira Pantoja - 1826 - APP.

E spelhos P art i dos 105


O transporte era suprido por um grande batelão, uma igarité e 4 botes de porte
variado. O imenso rebanho (um total de mais de 3000 cabeças) incluía uma criação de
ovelhas, cavalos e gado bovino.
Mas isso não era tudo. Na cidade, o coronel ainda possuía um grande sobrado,
sem contar com alguns “chãos” ainda sem construção. Móveis em madeiras de lei
incluindo marquesas, carteiras, escrivaninhas, canapés, muitos quadros, louças inglesas,
talheres e faqueiros de prata dão uma certa noção do cotidiano da família numerosa que
atenuava as horas de ociosidade com jogos de gamão. Entre os bens, ainda se contava
um rico oratório com muitas imagens, entre elas, N. S. do Rosário ricamente ornada
com manto bordado, coroa de ouro com pedrarias, de S. Benedito, S. Francisco, do
Menino Jesus e Sant’Ana. Muitas jóias faziam parte dos bens e também uma razoável
quantia de dinheiro amoedado, coisa pouca comum na praça paraense.
O levantamento de seus bens ultrapassou 14 mil libras esterlinas. Inventário de
poucas dívidas (não ultrapassa os 10% do total do inventário), concentra por outro lado
a maior parte dos ativos em dívidas ativas (quase 40%) indicando que o respeitável
coronel costumava conceder créditos com alguma freqüência.
Em segundo lugar, a maior parte de sua fortuna estava investida nos seus 125
escravos (19, 1%), entre eles um mestre de açúcar, um oficial de barbeiro e um oleiro,
todos estes bem avaliados, indicando que seu grau de especialização nas lides produtivas
fazia com que seus preços fossem diferenciados do conjunto do plantel.
As propriedades de Pantoja informam um padrão específico de propriedade
que se conformaria nas cercanias de Belém, fundadas sobre o trabalho escravo e vinculadas
à produção de bens para atender às novas demandas do mercado. Daí o engenho
fabricando açúcar e aguardente, as roças de cultivares alimentícios e de produtos como
urucu e algodão, de destino certo nas pautas de exportação do Grão-Pará. Sem dúvida,
conformam adequadamente as características apontadas por Ciro Cardoso, detalhadas
em capítulo anterior, quanto à existência de um subsetor, em ascensão pós-1750,
constituído pelas grandes fazendas agrícolas que empregavam escravos negros e
trabalhadores índios ao lado de um outro vinculado à economia de coleta de produtos
da floresta com mão-de-obra oriunda das antigas missões transformadas em vilas e
lugares.
Não existem referências à presença de índios nas propriedades do Coronel
Pantoja. Levando em conta o momento de formação e também o perfil de suas
propriedades, é lícito supor que, a essa altura, tapuios e até mesmo índios aldeados já não
mereciam tanto destaque que permitissem sua visualização nesse modelo de organização
o que, de resto, não chega a excluir sua presença de maneira conclusiva. Sua relativa

106 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


invisibilidade pode estar mais relacionada às regulamentações vigentes quanto ao uso de
seu trabalho do que ao seu efetivo desaparecimento do universo produtivo; nunca é
demais lembrar que os índios não são passíveis de escravidão em finais do XVIII e
inicio do XIX.
Índios invisíveis também não permitem que se descartem os vínculos entre
sertão e riqueza e que fornecem o corolário das fortunas locais. Com algum esforço,
é possível recuperar a genealogia dos Oliveira Pantoja e nela encontrar coisas tão
interessantes quanto úteis para tentar compreender a trajetória da formação e
consolidação das fortunas na colônia setecentista. Se o respeitabilíssimo coronel não
precisava mais ir ao sertão em busca de índios, outros já tinham feito isso: em 1722,
Manoel de Oliveira Pantoja, avó do dito, é mencionado repetidas vezes como contumaz
na prática de resgatar índios ilicitamente nos sertões e, em 1747, na chegada de uma
tropa de resgates do rio Negro, reencontramos nosso Manoel Pantoja apresentando-
se à Junta das Missões para regularizar seus cativos.6
Tamanho patrimônio não era produto do cometimento de uma única geração.
O respeitável coronel era a quarta geração da família que se estabeleceu no Pará,
formando o seleto grupo denominado “povoadores de Belém” 7. Chegado ao Pará
em finais do século XVII, José de Oliveira Pantoja casou-se com Luiza Maria de
Bittencourt, neta do ex-capitão general do Estado do Maranhão, Feliciano Correa
(1644 - 1646).
Os descendentes desta união atuaram na administração, nos meios eclesiásticos
(o avô do coronel Pantoja foi juiz ordinário, e seu pai foi familiar do Santo Ofício) e,
no final do século XVIII, recebem foros de nobreza com direito ao uso de brasão
de armas. A vinculação dos membros da linhagem dos Pantoja à administração
pública alcança, inclusive, o nosso coronel que exerceu funções de vereador na Câmara
de Belém (1808) e de Capitão-Mor das Ordenanças da Capital (1816). Seus filhos e
netos serão oficiais graduados das milícias reais, procuradores e religiosos.
As alianças familiares através dos casamentos contribuem também para a
conformação do patrimônio. A família dos Bittencourt, à qual pertencia Luiza Maria,
também conformava um grupo familiar de peso que chegou ao Pará por volta de
1619 e do qual desdobrou-se o ramo dos Moraes Bittencourt.

6
Cf. 1722 (19 - junho) Auto de Devassa Geral dos Cativeiros injustos dos índios e mais excessos contra as ordens de Sua
Majestade no Estado do Maranhão. In: Boletim de Pesquisa da CEDEAM, Manaus, v. 6, n. 10, jan-jun/1987, especialmente as
p. 23-25-31e 33. A tropa de resgates mencionada para 1747 está em MEIRA, Márcio (Org.). Livro das canoas: documentos
para a história indígena da Amazônia. Op. cit., p. 162.
7
Cf. Dicionário de Famílias Brasileiras - DFB: verbetes Oliveira Pantoja, Lameira França, Ferreira Ribeiro, Bittencourt.

E spelhos P art i dos 107


Um inventário contemporâneo ao do Coronel Pantoja é o do não menos
respeitável Hilário de Moraes Bittencourt datado de 1834. A trajetória do grupo
familiar não é muito diversa da que se traçou para os Pantoja. Vinculados às milícias
e à administração, os Moraes Bittencourt aparecem sempre ligados à propriedade
de grandes engenhos. O primeiro, Manuel de Moraes, estabeleceu-se também na
região do rio Acará, na segunda metade do século XVII, fundando dois engenhos.
Uma dessas propriedades, o engenho de Itapicuru, permanece integrada ao
patrimônio familiar até sua terceira geração. Entre o patrimônio dos Moraes
Bittencourt, destaca-se o engenho do Carmelo, no Tocantins.
Registre-se que essa região que engloba os rios Acará, Moju e Capim, nas
cercanias de Belém, foi zona tradicional de lavoura canavieira com a predominância
de engenhos reais e também forte produtora de produtos para exportação,
especialmente, o arroz, fumo e cacau. Esse perfil estendeu-se ainda a parte da ilha
de Marajó e alcançaria a calha do Tocantins, sendo a vila de Cametá, localizada nesse
rio, um bom exemplo da vitalidade dessa expansão.
Vínculos de ascendentes com o apresamento de índios também podem ser
identificados na família Moraes Bittencourt, ainda que não tenha sido possível
estabelecer o grau de parentesco que os ligava diretamente. Em David Sweet, existem
referências às ações de apresamento de João de Moraes Bittencourt no rio Japurá, por
volta de 1728.8
Apesar de todas estas considerações, que se desfaça o engano de que os bens
inventariados do Capitão Hilário façam sombra aos encontrados entre os Pantoja.
Desta feita, trata-se de uma fortuna que não alcança a casa das 900 libras.9
Aparentemente, o capitão Hilário passou por certas dificuldades, após a morte
do pai, para gerenciar seu patrimônio porque, em 1790, queixa-se de sua decadência
por conta da falta de trabalhadores, solicitando-os ao juiz oridinário. Entretanto na
década de 1760, quando o Bispo João de S. José passou pela propriedade do Carmelo
não a descreveu como “decadente”. Muito ao contrário, falava o Bispo de uma
propriedade opulenta, com extensos canaviais, capela e casas “adornadas ao estilo de

8
O pai de Hilário chamava-se João de Moraes de Bittencourt e, na segunda metade do XVIII, era oficial graduado, sendo
reformado no posto de coronel em 1790. Apesar do nome, não se trata do mesmo indivíduo. Contudo acredito que, mesmo
não determinando precisamente o laço de parentesco, fica claro que trata-se do mesmo grupo familiar que se utiliza de um
recurso corrente para obtenção de mão-de-obra. Cf. SWEET, David, op cit., p. 767 e DFB, verbete Moraes Bittencourt e
Bittencourt. Outras informações foram recolhidas em BARATA, Manuel. Op. cit., p. 117. FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Op.
cit., p. 192 e AN, códice 99, v. 1, doc. 193, 1767.
9
Autos de inventário do Capitão Hilário de Moraes Bittencourt - 1834 - APP. Seria inevitável perguntar o que ocorreu com
tão “abastados senhores de engenhos” como foram definidos no DFB.

108 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


corte, com cadeiras de veludo, cortinas de damasco, papeleiras, cômodas e cantoneiras
com serviço de baixela e porcelana”, que abrigava uma extensa família; diz o Bispo
que “só de mulheres brancas, excede de quarenta e entre índias, negras, escravos e
meninos, nos persuadimos excede de duzentas pessoas.”10
O inventário não registrou dívidas, ativas ou passivas, e comparado ao de
Pantoja, é inventário modesto. O que acaba despertando o interesse é a trajetória
particular da família no âmbito da carreira militar. João de Moraes passou a Mestre de
Campo da Infantaria Auxiliar do Rio Negro (Classe de Índios) em 1767, quando
deixou o posto de Capitão-mor de Cametá, indicando que sua carreira militar já
possuía uma certa densidade e duração, levando em conta a natureza da alta
graduação das novas patentes adquiridas. Em Cametá, Hilário ocupou o posto de
Coronel do Corpo de Auxiliares e, seu irmão, João Maria, era alferes em 1767 e
depois seria promovido para nova patente, em finais do XVIII. A prioridade de
ocupação dos postos em Cametá não é fortuita, lembrando a localização das
propriedades familiares.
Por um instante, vamos deixar os Moraes Bittencourt e os Pantoja, no Grão-
Pará. Subindo o Amazonas, no sertão do Rio Negro, vamos encontrar Francisco
Ricardo Zany. Este não pertence ao seleto círculo dos “povoadores” e suas linhagens
familiares não podem ser recuperadas até bem recuado o século XVIII.
O Coronel de Milícias Francisco Zany faleceu em Lisboa, em 1834,
provavelmente acometido de cólera. Italiano do Livorno, sua chegada à região data
do início do século XIX. Foi cicerone oficial dos naturalistas alemães Spix e Martius
quando visitaram o Negro entre 1819-1820 e era casado com Josefa Perpétua, filha
do governador do Rio Negro Joaquim José Vitório da Costa (1806 - 1818). Militar
pertencente às forças imperiais, ocupou o posto de Comandante Militar do Rio
Negro. Suas tropas tinham por tarefas, além da manutenção da polícia nas vilas e
nas fronteiras, fazer a patrulha contra os índios hostis, acompanhar viajantes às feitorias
e fazer descimentos, trazendo índios livres para as povoações.11
Seu engenho estava localizado no Manaquiri, nas proximidades da Barra do
Rio Negro (Manaus), às margens do rio Solimões. Possuía casa de vivenda, engenho,
senzalas para escravos e índios, armazéns, salas de fiação, olaria e forja. Fabricavam-

10
Fr. João de S. José. Viagem e visita do sertão em o Bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763. p. 508-511. I
11
As declarações do Coronel Zany a respeito de suas atribuições como Comandante Militar estão em SPIX; MARTIUS, v. 3, p.
143. Os dados da sua propriedade foram retirados dos Autos de Inventário dos bens que ficarão pelo falecimento de
Francisco Ricardo Zany - 1839 - APAM.

E spelhos P art i dos 109


se aguardente, açúcar, farinha, telhas, tecidos grossos de algodão e redes. Entre suas
plantações, contavam-se também café, cacau, tabaco, milho e arroz. A propriedade
ainda possuía um rebanho de 141 animais entre cabras, carneiros, porcos e gado bovino.
Produzia também carne seca e peixe seco nas suas feitorias. Para essa última atividade,
utilizava-se do trabalho dos índios Mura como outros proprietários da região. Esses
índios estabeleciam os pesqueiros, capturavam e preparavam as salgas de peixe.
Embora não apareçam no inventário, Zany também empregava em sua
propriedade índios Passés, Juris e Macunás conforme mencionaram Spix e Martius. A
informação dos naturalistas adquire maior densidade quando se verifica que, no inventário,
Zany possui apenas 10 escravos negros, sendo que 8 são mulheres (destas, 4 são menores
de 10 anos) e apenas dois homens adultos. Confrontando números tão modestos de
trabalhadores com a diversidade das produções do Manaquiri, evidencia-se que a
esmagadora maioria de trabalhadores de Zany era composta pelos índios.12
Mas ainda não terminou. O Coronel Zany era homem de múltiplas facetas.
Comerciante de produtos do sertão, mantinha contatos com as praças do Pará e do Rio
de Janeiro, nas quais possuía várias partidas de salsaparrilha que aguardavam a expedição
para Lisboa. Na pequena Vila da Barra do Rio Negro, possuía uma grande casa de
sobrado e vários terrenos sem construção. Nas propriedades de Lisboa, que sequer
chegaram a ser avaliadas, guardavam-se vários objetos de sua coleção particular de
História Natural amealhada durante suas viagens pela Comarca do Alto Amazonas.
Os bens domésticos informam um padrão de vida confortável: móveis variados
em madeira de lei, requintadas cadeiras de palhinha descritas minuciosamente no inventário,
talheres e salvas de prata, grandes espelhos de cristal, sem contar a louça de boa qualidade.
Entre os bens pessoais, jóias, roupas finas e, para os reclamos da devoção, uma rica
imagem de N. S. da Conceição ornada com manto de seda e coroa de pedrarias.
O que mais chama a atenção no inventário do italiano, além da velocidade com
que monta patrimônio tão adensado, é o fato de possuir uma quantidade bastante
ponderável de dinheiro amoedado; este ativo responde por 52,6% de seus bens.
Infelizmente, para os leitores do presente, não é possível dimensionar suas dívidas ativas
porque Zany as perdoou em testamento e é certo que a lástima não foi o sentimento
reinante entre aqueles que viram suas dívidas esquecidas. Seu passivo é bastante modesto
e seu único credor é um negociante da praça de Belém, João de Araújo Rozo. Um índice
tão elevado de moeda indica que o coronel também funcionava como agente de crédito
local.

12
SPIX; MARTIUS, op. cit., v. 3, p. 149 -151.

110 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Ainda uma informação quanto à trajetória de formação da fortuna do italiano
polêmico. Existem denúncias quanto à participação de Zany nas freqüentes agarrações
ilegais de índios feitas nos sertões do Negro, nas primeiras décadas do XIX. Realizadas
pelas tropas da Capitania com certa regularidade e violência, combinam-se com seu
alto posto de comandante militar da Capitania e até mesmo com sua descrição quanto
às funções de seus comandados feita ao naturalistas alemães. O apresamento ilegal de
índios seria realizado também a mando do governador da Capitania Joaquim Vitório
da Costa (seu sogro!) e o “produto” negociado entre os colonos interessados. Pela
venda, Zany receberia vários gêneros, especialmente “drogas do sertão” (salsaparrilha
e amarras de piaçava) valiosas e facilmente negociáveis na praça do Pará.13
As considerações acerca do inventário de Zany poderiam terminar aqui. Porém
acrescento que, após sua morte, sua propriedade foi invadida pelos cabanos quando
Henrique Antony – outro italiano e negociante estabelecido na vila – era curador dos
bens em avaliação. A guerra provocou algumas perdas patrimoniais: animais foram
retirados da propriedade tanto pelos cabanos quanto pelas forças da repressão, um
batelão foi requisitado por um dos comandantes das forças legais e jamais retornou à
propriedade e uma possante igarité foi vendida para atender às necessidades de
manutenção dos herdeiros e dos trabalhadores da propriedade14. Por fim, ao contrário
do que ocorreu com os bens dos Pantoja e Moraes Bittencourt, os bens de Zany,
aparentemente, não atravessaram gerações com a mesma densidade.

COMPOSIÇÃO % DOS ATIVOS DOS INVENTÁRIOS: QUADRO COMPARATIVO

Bens Oliveira Pantoja Moraes Bittencourt Ricardo Zany


Bens rurais 16.23 16.23 10.33
Bens Urbanos 7.82 7.82 15,11
Escravos 19.09 19.09 13.64
Padrão de vida 2.70 2.70 5.31
Jóias 2.62 2.62 1.33
Estoque 2.21 2.21 1.68
Dinheiro 9.68 9.68 52.60
Dívidas Ativas 39.67 39.67 0.00
Dívidas Passiva 9.09 9.09 1.02

Fonte: Inventários post-mortem: APP e APAM

13
Cf. MA - AHU E056: 1820 (23.12). Relatório do Ouvidor da Capitania do Rio Negro, Antônio Feliciano d’Albuquerque
Betencourt, dirigindo-se ao Ministro e Secretário de Estado e Negócios do Reino, Senhor Thomaz Antônio de Vila Nova
Portugal.
14
Essas informações constam do processo de inventário que, além do testamento, agrega os autos de conta do curador para
manutenção dos herdeiros.

E spelhos P art i dos 111


Vendo os inventários de Hilário, Pantoja e Zany, no conjunto das faixas de
fortunas existentes, as leituras podem ser ampliadas. De saída, evidencia-se que Amândio
Pantoja constituiu uma exceção: a ele pertence a única fortuna que rompe a barreira das
10.000 libras e, desta forma, qualquer outra que seja a ela comparada será – inevitavelmente
– considerada modesta. Sem contar o fato de que, em termos estatísticos, o grupo
arrolado no decênio 1820 ao qual pertence o inventário de Pantoja possui apenas 4
processos e isso faz com que a distribuição percentual seja eqüitativa. Um número
maior de processos para o mesmo período poderia indicar resultados com tendência
diversa da que se configurou.
O inventário de Hilário Moraes Bittencourt está no grupo 1830. A faixa
onde Hilário se localiza é intermediária, mas nem por isso pouco representativa. Seu
grupo responde por 29,19 % do monte-mor do decênio. Observando o quadro
completo, isso representa que menos de 1/4 dos inventários detém praticamente
1/3 da fortuna inventariada registrada na década. Zany faz parte do último patamar
do mesmo grupo a qual Hilário pertence; seus bens ultrapassaram as 1.600 libras e,
nesta faixa, apenas 11,7 % dos inventariados controlam mais de 45% do monte
mor do decênio.

DRISTRIBUIÇÃO % INVENTÁRIOS POR FAIXAS DE FORTUNA: 1810-1840


Ano  1810 1820 1830 1840
Faixas de Fortuna A B A B A B A B
0-200 3,07 26,66 0,32 25,00 7,72 35,29 13,59 70,26
201-500 11,63 33,34 2,33 25,00 17,34 29,41 10,82 16,66
501-1000 15,32 20,00 5,21 25,00 29,19 23,53 15,26 10,00
1001-5000 23,85 13,34 - - 45,75 11,77 60,33 16,67
5001-10.000 46,13 6,66 - - - - - -
+ de 10.000 - - 92,14 25,00 - - - -
100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00 100,00

Total 15 4 17 30

Fonte: Inventários post-mortem - APP-APAM


A: Participação % no monte-mor do decênio
B: Participação % no número de inventários do docêncio

Caso tivesse sido possível reconstituir com o mesmo detalhe o processo de


constituição das fortunas de outros inventariados, não tenho dúvidas de que se
multiplicariam as referências tanto em relação à presença de trabalhadores índios
nas propriedades quanto à vinculação entre a formação das fortunas e as incursões
de apresamento nos sertões. O que se vislumbra nos outros processos são apenas

112 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


alguns traços difusos que não permitiram a sua apresentação nos mesmos moldes
que esta realizada com os bens de nossos respeitáveis inventariados, desnudados até
aqui, na medida em que as fontes permitiram.
Ainda assim, acredito que os três processos apresentados são representativos
na sua potencialidade de análise. Ao tempo em que as fortunas dos Pantoja e
Bittencourt informam uma longa trajetória familiar, indicando suas alianças de
casamento, seus vínculos com o apresamento de índios já bastante consolidados em
gerações anteriores e também uma certa realocação de ativos em escravos negros, o
trajeto percorrido por Zany no Negro ilumina a utilização, em início do XIX, de
práticas similares àquelas colocadas em ação, ainda no século XVIII, nas áreas coloniais
consolidadas nas cercanias de Belém. Aqui, temos uma fortuna “nova”, surpreendida
em plena construção, recorrendo ao trabalho indígena, às alianças de casamento e
ao usufruto dos cargos para sua constituição. Ainda que a incorporação de
trabalhadores índios no século XIX não mais possuísse o aspecto da escravidão
formal e juridicamente reconhecida como na primeira metade do XVIII, é certo
que está-se tratando aqui de trabalho compulsório, tal como foi definido por Ciro
Cardoso para o Grão-Pará setecentista e pós-diretório pombalino. De certa forma,
a fronteira do sertão vivencia temporalidades diferenciadas.

BUSCANDO TRAJETÓRIAS

As fortunas paraenses, analisadas a partir dos 66 inventários levantados,


indicam perfis interessantes. De saída, verifica-se que 83,3 % dos inventários possuem
escravos. Esses constituem os ativos mais elevados, superando comércio e dívidas
ativas e formam o seu maior patrimônio. Em média, mais de 1/3 dos ativos estão
concentrados em cativos.
Entre os escravos, existe uma predominância do número de homens (54%)
sobre o de mulheres (46%), com uma relação de masculinidade da ordem de 118,3.
Dados com esse perfil sugerem uma população que se reproduz, prioritariamente,
pelo fluxo externo, ou seja, via tráfico. Acentua essa característica o fato da pirâmide
etária, indicar a predominância da faixa etária entre 13 e 45 anos que representa 59
% da população escrava nos inventários, enquanto que a faixa etária de 0 a 12 anos
corresponde a 29 % e a população com mais de 45 anos, 12%.

E spelhos P art i dos 113


ESCRAVOS: DISTRIBUIÇÃO POR SEXO E FAIXA ETÁRIA

Faixa
Sexo Quantidade % Valor £ % Valor Médio £
Etária?
Até 12 anos Feminino 84 13,59 1.096,82 7,49 13,06
Masculino 93 15,05 1.221,21 8,34 13,13
13 a 45 Feminino 167 27,02 4.837,77 33,05 28,97
anos Masculino 199 32,20 6.308,80 43,10 31,70
2,46 11,24
Mais de 45 Feminino 32 5,18 359,63
5,56 18,92
anos Masculino 43 6,96 813,43

Total de escravos: 618 - Valor total: £ 15.487,53 - Inventários computados: 55.

Lidos no contexto mais ampliado dos dados populacionais disponíveis para


Belém, estamos diante de uma freguesia que, em 1792, possuía 36% da sua população
classificada como escrava e que, em 1822, esse percentual chega a 46%. Observe-se
que, mesmo sendo esse percentual inferior ao de 1787 (51%), estamos falando de
um aumento global da população escrava em torno de 109% no espaço de 35 anos.

POPULAÇÃO DE BELÉM: QUADRO COMPARATIVO


Pretos, Índios e
Ano Brancos Escravos Mestiços Totais

1787 1.987 2.733 556 5.276


1792 4.423 3.051 1.099 8.573
1822 5.643 5.719 1.109 12.471

Fonte: Elaborada pela autora. Cf. V Salles, op., cit., p. 69-71 e C. Cardoso, op. cit., p. 141.

A baixa liquidez e a presença de elevados percentuais registrados nas Dívidas


Ativas e Comércio sugerem que se trata de uma sociedade marcada pelo predomínio
do capital mercantil, com uma incipiente divisão do trabalho, indicando uma
economia não-capitalista. Em média, Dívidas Ativas e Comércio respondem por
cerca de 29 % dos ativos registrados.
O relevo adquirido pelos investimentos em Bens Urbanos que respondem,
em média, por 19,8% dos ativos, permite reforçar o peso do capital mercantil,
residente e estabelecido no espaço urbano. Se comparados aos Bens Rurais, esses
últimos correspondem a apenas 9, 3%.

114 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


PARTICIPAÇÃO % DE ATIVIDADES ECONÔMICAS NOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM DO
GRÃO-PARÁ

Anos % de Bens Comércio Dí vidas Bens Padrão Jóias Escravos Dinheiro Monte- Monte- Dívidas
Inventários urbanos Ativas Rurais de vida Mor Mor Passivas
Bruto £ Bruto £
1810 24 5,41 9,72 39,93 4,41 3,61 0,37 35,19 1,32 13479,24 24,6 15,9
1820 6 7,49 2,24 36,80 16,25 2,62 2,47 23,11 9,00 15552,76 28,3 8,5
1830 25 44,43 4,90 3,73 7,00 3,40 0,88 26,76 8,90 11403,88 20,8 2,9
1840 45 22,21 5,95 13,40 9,88 1,93 1,13 41,19 4,31 14389,03 26,3 17,8

Fonte: Inventários post-mortem - APP e APAM


Bens Urbanos: Casas de morada, sobrados, chãos e terrenos
Comércio: Estoque e Embarcações
Bens rurais: Terras, Culturas, Edificações, Equipamentos, Animais e Instrumentos de trabalho
Padrão de Vida: Vestuário, Utensílios, Mobiliário e Outros Bens

Embora todos os indicadores até aqui levantados sinalizem para uma baixa
liquidez, os inventários registram uma presença de dinheiro em moeda significativa
de 5, 8% e aproximam-se da média encontrada para os Bens Rurais que é 9,3%.15
Cerca de 25 % dos inventários possuem culturas com avaliação incluídas no
processo. Sua diversificação sugere a presença de uma agricultura de gêneros
alimentícios e de outros ligados à exportação que precisa ser melhor estudada.
No que diz respeito ao endividamento, 72 % dos inventários apresentam
baixos índices de comprometimento de seus ativos, possuindo no máximo 20 % de
passivo registrado. As maiores faixas de comprometimento (acima de 40% e as
fortunas negativas), representam cerca de 12% do universo dos inventariados.

INVENTÁRIO DO GRÃO-PARÁ: FAIXAS DE COMPROMETIMENTO DAS FORTUNAS

Fonte: Inventários post-mortem - APP e APAM

15
É evidente que dados restritos não permitem que se revejam as considerações feitas até o momento com relação a esse
indicador.

E spelhos P art i dos 115


A composição das fortunas do Grão-Pará aponta, assim, para o perfil de
uma sociedade que prioriza o investimento em cativos (31, 5%), possui uma forte
presença do capital mercantil onde as Dívidas Ativas e o Comércio correspondem
à segunda prioridade de investimentos com cerca de 29 % e, em terceiro lugar, aos
investimentos no espaço da cidade com 19%.
Estas são observações preliminares e não pretendem dar conta do perfil ou
das características das fortunas do Grão-Pará em meados do XIX. Como já se
destacou, o recurso aos inventários não vem sendo empregado na historiografia
paraense o que dificulta a elaboração de leituras mais adensadas. Como parâmetro
de comparação, para esboçar uma leitura desses números em seu conjunto, procurei
recorrer aos trabalhos de João Luís Ribeiro Fragoso para o Rio de Janeiro e, em
menor escala, às considerações elaboradas para as fortunas da cidade de Manaus no
século XIX, desenvolvidas em trabalho anterior. Em que pese o fato de lidar com
períodos diferenciados, o que se pode reter nesse processo de comparação, são
algumas linhas possíveis de leitura do conjunto destes números, tendo como referência
as considerações acerca da economia colonial e seus mecanismos de acumulação
endógena.16
Em artigo recente, João Fragoso discutiu a natureza e o próprio processo
de constituição de uma hierarquia social bastante excludente que está-se formando
na colônia no século XVII. Aparentemente trazida pelas naus, esta hierarquia foi
sendo aqui redefinida pelas guerras, pelo trabalho compulsório e pelo mercado,
sedimentada em alianças matrimoniais que garantiam não só a estabilidade necessária
para a estrutura social hierarquizada que se esboçava, mas também o monopólio –
através da sua presença na política e da hereditariedade dos postos e cargos coloniais
– dos mecanismos disponíveis de acesso à terra, ao gentio e ao crédito, em detrimento
de outros grupos sociais.17
Analisando o Rio de Janeiro do Seiscentos, Fragoso analisou as possibilidades
de reprodução desta economia colonial à margem do mercado, caminho viável na
medida em que se tratava de uma economia debilitada, marcada por uma frágil
capacidade de liquidez. Para traçar os mecanismos de reprodução desta economia,
recupera as “matrizes” que possibilitam a apreensão dos fatores da produção: terra,
trabalho e crédito.

16
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio Janeiro (1790-
1830), op. cit. SAMPAIO, Patrícia. Os fios de Ariadne. Manaus: EDUA, 1997.
17
FRAGOSO, João Luís Ribeiro. À espera das frotas: hierarquia social e formas de acumulação no Rio de Janeiro, século XVII.
LIPHIS, Cadernos n. 1, Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. p. 53-62.

116 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Um primeiro indicador que emergiu do cruzamento das genealogias,
inventários e escrituras públicas foi o fato de que a formação do patrimônio fundiário
não passava pela aquisição via compra. As sesmarias representavam uma estratégia
fundamental para essa formação. Quanto ao trabalho, existia uma forte presença de
trabalho cativo do gentio da terra e também uma estreita vinculação entre acesso ao
trabalho dos índios e a ocupação de postos de comando na colônia, possibilitando
a constituição de plantéis de cativos à margem do mercado atlântico de escravos,
possivelmente com menor custo.
No que diz respeito ao crédito, revela-se neste ponto, segundo Fragoso,
toda a fragilidade da economia colonial. Não possuindo liquidez, os negócios em
geral, ou mais precisamente o processo de acumulação era mediado pelo
endividamento. A elite senhorial que aí se formava, era a principal devedora, mas
não era a maior emprestadora.18
Uma das chaves do crédito colonial era o acesso aos cargos da República e
estes eram controlados por essa elite através de suas alianças matrimoniais e da
própria natureza hereditária que certos postos e cargos carregavam. Dessa forma, a
elite senhorial possuía um acesso privilegiado aos elementos que davam vida ao
processo produtivo, indicando-se a possibilidade, via política, de constituição de
mecanismos diferenciados de acumulação em meio a uma economia em formação
e de constituição de uma hierarquia econômica e social – para além das diferenças
jurídicas impostas pelo trabalho compulsório – assentada em privilégios.19
Um limite estrutural para a consolidação desse perfil de acumulação em
curso que, no limite, apontaria para o surgimento de uma sociedade aristocrática,
era a própria utilização do trabalho cativo e, consequentemente, a lógica interna de
reprodução da economia escravista. A imobilização inicial de capital efetuada na
aquisição dos cativos reapareceria nas mãos dos comerciantes o que implicaria uma
redução da taxa de acumulação senhorial na medida em que se perdia parte do
sobretrabalho. A desdobrar-se no tempo, essa transferência podia conduzir a um
endividamento crônico daquela aristocracia frente ao capital mercantil, abrindo a
possibilidade de falências e quebras de monopólios e, no limite, permitindo a

18
O Juizado de Órfãos aparecia como a maior fonte de crédito, o que significa dizer que uma instituição da República era
responsável pelo financiamento dessa economia, agindo à margem do mercado e fora do controle dos comerciantes e
recorrendo a recursos internos da própria sociedade colonial que, desta maneira, reiterava-se parcialmente através de uma
acumulação endógena.
19
FRAGOSO, J. À espera das frotas... p. 57-59, passim.

E spelhos P art i dos 117


ampliação das chances de mobilidade de outros grupos sociais. Porém, como assegura
Fragoso, essas são contradições vivenciadas pela sociedade senhorial desde o seu
“berço esplêndido” e é ainda nele que o projeto “aristocrático” se desvanece.20
Do desenho apresentado por João Fragoso para indicar as estratégias iniciais
de acumulação na colônia, é possível traçar alguns paralelos quanto à formação das
fortunas do Grão-Pará. Nas suas linhas mais gerais, há uma afinidade de trajetórias
no que diz respeito a traços que podem ser considerados como estruturais à formação
dessa economia colonial.
O pano de fundo é, certamente, o fato de que sua reprodução pode-se dar
à margem do mercado na medida em que é fora dele que se obtêm as terras, o
crédito e o trabalho necessário para montagem das empresas. Na medida das
possibilidades, foi um trajeto similar que se tentou pontuar até aqui na avaliação do
processo de formação das fortunas dos nossos grados inventariados Oliveira Pantoja,
Moraes Bittencourt e Francisco Zany.
Recuperando preliminarmente a formação dos seus respectivos patrimônios
fundiários, foi possível identificar no Catálogo dos Posseiros de Sesmarias do Grão-
Pará a presença de Manoel de Oliveira Pantoja, com sesmaria concedida em 21 de
outubro de 1718, e a de João de Moraes Bittencourt, concedida em 10 de julho de
1752. Lembro que o primeiro é avó do Coronel Amândio Pantoja e o segundo é
pai de Hilário Moraes Bittencourt.21
A questão do uso do trabalho dos índios já foi pontuada em momento
anterior onde se procurou ressaltar as vinculações existentes entre a formação das
fortunas e o uso do trabalho dos índios. Ainda quanto ao uso dessa mão-de-obra
ficou evidenciada a importância que a ocupação de postos e cargos da república
possuía na garantia de um acesso privilegiado aos elementos que dão o tom e a
dinâmica do sistema. Aqui, refiro-me não só aos inventariados, mas também a toda
uma série de sujeitos que se valia de suas prerrogativas para acessar, de forma mais
livre, o trabalho dos índios.22
Quanto ao crédito, existem pequenas evidências para o Grão-Pará, indicando
que o juizado de órfãos desempenhou um papel semelhante como agente de crédito

20
Idem, p. 60.
21
ABAPP - Catálogo Nominal dos Posseiros de Sesmarias. Pará: Typographia do Instituto Lauro Sodré, tomo III, p. 78 e 120,
1904.
22
Cf. especialmente o capítulo 7, Trabalho, poder e liberdade I: o diretório pombalino.

118 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


local, mas, nesse aspecto, a precariedade da historiografia é ainda maior e não permite
maiores comentários a respeito.23
Em certa medida, a própria configuração de suas estruturas econômicas
aponta para as possibilidades de formação de excedentes passíveis de apropriação
pelo capital mercantil, via circulação, e também pelo reinvestimento de parcelas
desses excedentes na reiteração do próprio sistema. Se temos como norte o perfil
que se traçou dessa economia até aqui, o que se percebe é a articulação de uma
sociedade, em meados do XIX, vinculada à dinâmica do capital mercantil e que
teve, não só na sua formação, mas também no seu próprio processo de consolidação,
a possibilidade de reproduzir – no mínimo – um de seus elementos fundamentais,
à margem do mercado que é o recurso à mão-de-obra indígena agregada ao mundo
colonial através dos descimentos pós-1755 e estabelecida nas povoações de
administração laica.
O uso do trabalho compulsório dos índios é uma permanência estrutural
na região, e é possível afirmar que seu baixo custo de aquisição e de reprodução,
aliado a um baixo nível tecnológico, às formas e sistemas tradicionais de uso da
terra (agricultura extensiva e de coivara) conformam alguns dos elementos que
possibilitam a manutenção das empresas com pequenas inversões de capital.
Visto de maneira mais ampliada, está-se tratando aqui da existência de um
mosaico de formas não-capitalistas de produção, tal como definido por João
Fragoso. Em certa medida, as características da economia do Grão-Pará permitem
que se aponte para essa configuração quando sugere a existência de um escravismo
não-alocado na agroexportação e a presença de formas de produção não-capitalistas
e simultaneamente não-escravistas no interior da mesma estrutura.24
Fragoso afirma que o escravismo colonial teria criado no espaço colonial
outras “formas de produção” não-capitalistas. Em certos casos, esse segmentos
criados e voltados para o abastecimento da agroexportação podem ser considerados
elementos subordinados em uma formação econômico social cujo eixo seria aquele

23
O ouvidor Sampaio, em correição, registra nos livros das Câmaras a recomendação expressa para que não se emprestasse
dinheiro dos órfãos a juros, porque contrariava uma legislação extravagante. Cf. SAMPAIO, F. X. Ribeiro de. As viagens do
ouvidor Sampaio, op. cit., p. 151. Para a segunda metade do XVIII, é possível perceber uma sociedade problemática com
relação ao endividamento. É certo que a Companhia de Comércio ampliou as formas disponíveis de crédito local, mas ao
mesmo tempo, não é possível descartar as possibilidades, mesmo limitadas, de acumulação interna e, portanto, de
financiamento endógeno dessa economia colonial. Os modestos indicadores fornecidos a partir da leitura dos inventários
informam um padrão de endividamento médio da ordem de 11, 3% e não chega a ultrapassar os 18 % de comprometimento
dos ativos declarados.
24
Cf. FRAGOSO, J. L. Homens de grossa aventura, op. cit., p. 144-147.

E spelhos P art i dos 119


escravismo ligado ao mercado internacional. Ainda assim, após sua montagem,
essas estruturas visariam, em primeiro lugar, a sua própria reprodução e isso explica,
em certa medida, sua estabilidade, no tempo.25
Importante considerar também o fato de que, na montagem das empresas,
existia – de um modo geral – uma estreita vinculação entre as atividades agrícolas e
as de extração de produtos da floresta. Esta combinação, se apreendida como
estrutural, acaba por iluminar uma das formas possíveis de transferência de capital,
considerando o fato de que os produtos advindos da extração se realizam melhor
no mercado gerando, assim, um maior fluxo de renda. Neste quadro, a acumulação
pode passar a se processar via extrativismo, na medida em que essas rendas são
apropriadas pelo capital mercantil, através das cadeias de endividamento sistemático
e progressivo, tendo como fundo, a reiteração de uma hierarquia econômica e social
profundamente desigual.26
Características estruturais como as que se delinearam aqui para definir a
economia colonial devem ser tomadas com prudência porque produzidas
observando uma estrutura vinculada à agroexportação o que, sem dúvida, não é o
caso do Grão-Pará. Insisto, contudo, na idéia que presidiu à elaboração dessas
considerações: na medida das possibilidades, buscar apreender traços, na verdade,
indícios que permitissem uma aproximação dos percentuais que a leitura dos
processos de inventários permitiu gerar.

25
Idem, p. 146.
26
Para maiores detalhes, ver SAMPAIO, Patrícia. Os fios de Ariadne, op. cit.

120 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


CAPÍTULO 6

PASSAGENS E ENCRUZILHADAS: TRANSITANDO ENTRE


OS MUNDOS

Desenvolvendo-se com mais liberdade e abandono do que em outras capitanias, a ação


colonizadora realiza-se, aqui, por uma contínua adaptação a condições específicas do meio
americano.
Por isso mesmo não se enrija logo em formas inflexíveis.

Sérgio Buarque de Holanda

Liberdade e abandono, instabilidade e imaturidade são alguns dos adjetivos


usados por Sérgio Buarque de Holanda para capturar conceitualmente a fluidez do
mundo colonial no planalto paulista. Porém, observando com algum detalhe os
mundos amazônicos, é possível perceber que essa mesma fluidez também lhes é
característica.
A idéia primeira era tratar a fronteira como uma realidade concreta para os
homens do Setecentos onde se confrontavam e, por isso mesmo, interagiam diferentes
percepções de espaço, tempo e projetos. Nessa direção, aproximo-me de José de
Souza Martins que, em texto recente, destacou a singularidade da fronteira como o
lugar da alteridade, ressaltando ainda que “o desencontro na fronteira é o desencontro
de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado diversamente
no tempo da História.”1

1
MARTINS, José de Souza. Fronteira. Op. cit., p. 151.

E spelhos P art i dos 121


Em certa medida, é possível considerar o processo de ocupação colonial
como parte da história da expansão da fronteira como fez esse mesmo autor em
trabalhos anteriores. Embora os conceitos de frente de expansão e frente pioneira tenham
se revelado extremamente eficazes para análises de peso, não pareceram adequados
para caracterizar a fronteira tal como emergia com seus contornos na documentação
colonial. Lugar e não-lugar, espaços difusos, mas prenhes de possibilidades onde se
destacavam a instabilidade, o isolamento, a solidão, a violência do confronto e a sutileza
das alianças.
Do que já se viu até aqui, é possível notar que a noção de fronteira que se quer
utilizar não é exatamente aquela noção clássica, construída a partir das variáveis
estabelecidas por F. J. Turner. Também não se refere àquela consolidada em obras de
referência que orientaram, fecundamente, toda uma série de trabalhos na década de
1980 dedicados à reflexão do avanço do sistema capitalista. Para tentar uma
aproximação dessa outra fronteira, a inspiração foi anterior e veio de Sérgio Buarque
de Holanda.
Se liberdade, instabilidade e movimento caracterizam a fronteira de Holanda,
importância capital assume o “intercurso dos adventícios com a população nativa”,
potencializado mesmo pela fluidez da fronteira. Foi por esse viés que se tentou enveredar
para entender melhor os múltiplos significados e também as alternativas que emergiram
quando se defrontaram “populações, hábitos, instituições, técnicas, até idiomas
heterogêneos”.2
Seria praticamente desnecessário fazer com que o leitor relembre a grande
diversidade populacional e lingüística com a qual os novos moradores terão que conviver
e a multiplicidade de códigos culturais distintos que, obrigatoriamente, deveriam ser
decodificados e re-significados.
A ação missionária, em certa medida, facilitaria esse processo, mas a chegada
de novos indivíduos era constante. A demografia das povoações está relacionada, de
maneira intrínseca, às movimentações das populações indígenas vindas do sertão,
reconfigurando continuamente a heterogeneidade dos aldeamentos. Mas a freqüência
de tais descimentos teria seu preço, como posteriormente diagnosticou A. Reis:

O despovoamento do interior, com a destruição de seu melhor


contigente, política inábil, criminosa mesmo, aos poucos foi criando

2
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 11-12.

122 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


o problema do deserto, que todos sentiam mas ninguém sabia
resolver.3

Esse movimento continuado, que se acentuaria no correr do século XVIII,


com as freqüentes retiradas das populações estabelecidas nos aldeamentos, seja pela
fuga, seja pelo que a documentação chama de ausência, faz com que a mobilidade seja
um traço ponderável para pensar essa sociedade que se forma na fronteira. Como
chamou a atenção Sheila Faria, um dos poucos recursos disponíveis para os andarilhos
da sobrevivência nas terras de fronteira era a mobilidade espacial.4
Os mundos da floresta e da povoação tinham limites imprecisos. Se a missão
podia ser considerada como a linha divisória entre o mundo “policiado” e o mundo
“selvagem”; para as populações aldeadas, a povoação freqüentemente foi apenas um
ponto de contato para reabastecimento de produtos cobiçados. Assim se comportavam
os Juruna, em meados do XVIII que, após terem recebido as ferramentas, tecidos e
outros apetrechos costumeiros fornecidos por ocasião dos descimentos, pouco tempo
permaneciam na povoação, retirando-se novamente para a floresta, para retornar
em outra ocasião para novos presentes empenhando-se em novos descimentos.
Comportamento similar foi anotado pelo Bispo Caetano Brandão quanto ao
relacionamento dos Mura com a povoação de Alvellos (Coari), no rio Solimões; os
índios traziam tartarugas, salsa e flechas e, em troca, recebiam dos moradores, facas,
machados e outras ferramentas.5
A floresta – e seus habitantes – cercavam a povoação. Não me refiro aqui
à possibilidade de ataques de índios não-aldeados, embora esse fosse um receio
constante, mas sim ao fato de que, mesmo aldeados, os grupos não cortavam
totalmente os laços com sua parentela que permanecia na aldeia de origem.
Em muitos casos, quando um grupo se deslocava para uma povoação via
descimento, não o fazia inteiramente. Essa era uma estratégia bastante usual entre os
Principais descidos que a administração colonial tentava contrabalançar, sem grandes

3
REIS, Arthur C. F. O processo histórico da economia amazonense, p. 12.
4
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
p. 158, 1998. É certo que a autora referia-se a uma população diferente; os homens livres pobres de Campos dos Goitacazes,
especialmente aos forros e seus descendentes e não a índios aldeados, mas penso que a questão da mobilidade espacial
também pode ser aqui utilizada para caracterizar essa fronteira como já tinha sublinhado também Sérgio Buarque de
Holanda.
5
Cf. AMARAL, Antônio Caetano do. Memórias para a história da vida do venerável Arcebispo de Braga, Frei Caetano Brandão.
Braga: tipografia dos órfãos, v. 1, 1868, p. 341-342.

E spelhos P art i dos 123


sucessos, situando os recém-descidos em locais distantes de suas aldeias como
mecanismo de inibição das fugas. Quando isso não acontecia, as visitas entre parentes
não eram incomuns e, de certa forma, eram vistas pela administração colonial como
interessantes e até mesmo promissoras já que poderiam convencer novos contigentes
a descer.
Ainda assim, estar longe da aldeia não parecia ser motivo suficiente para
não se retirar da povoação; sempre se podia estabelecer-se em outro local formando
um mocambo. E estes foram muito mais comuns nos sertões do que até agora tem
indicado a historiografia.
A diversidade das línguas fazia parte desse caleidoscópio que constitui o
espaço da fronteira. Já se apresentou ao leitor um quadro da variedade das línguas
faladas na região que constitui os nossos sertões. O que ainda não se disse é como se
pôde equacionar a verdadeira Babel que envolvia os personagens dessa história.
A solução foi o emprego de uma língua de trânsito: a língua-geral e, mais
especificamente, uma de suas ramificações, o Nheengatu (fala boa). Utilizada pelos
jesuítas, a “língua geral brasílica” falada pelos Tupinambá, vinha sendo empregada
em outras regiões da colônia, no âmbito dos aldeamentos e como língua de
comunicação entre índios aldeados e colonos. Sérgio Buarque afirma que o uso da
língua-geral foi comum na São Paulo colonial e, apenas no século XVIII, foi
suplantada pelo português. Na Amazônia, a longevidade do nheengatu foi muito
mais além.
De acordo com Bessa Freire, a implantação do Nheengatu corresponde,
grosso modo, ao período que vai de 1616 a 1686. Nesse momento, a estratégia
missionária de catequese terá um papel importante no processo de decodificação
da linguagem entre índios aldeados e os recém-chegados. Vencidas a diversidade e
adversidade da instalação no litoral, as “artes do demônio” tinham estabelecido a
confusão generalizada na região amazônica. Era humanamente impossível para um
missionário aprender as diferentes línguas faladas na região. Rememore-se apenas
que, de acordo com o lingüista Cestmir Louktka, das 1.492 línguas faladas na América
do Sul, 718 estavam no território que corresponde à atual Amazônia brasileira.6
Foi nas aldeias de repartição que o Nheengatu passou então a ser ensinado e,
provavelmente, conviveu por certo tempo com as outras línguas maternas. Esta

6
FREIRE, José Ribamar Bessa. Da fala boa ao português na Amazônia Brasileira, Amerindia, n. 8, p. 41-45, passim, 1983.

124 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


situação não parece ter persistido por um tempo mais largo porque, de acordo
com Freire, era comum castigar-se quem usava sua língua de origem. Assim a “fala
boa” passaria a ser o idioma oficial das aldeias missionárias e, em 1689, a Coroa
oficializou o ensino da língua ao determinar que os missionários deveriam ensiná-la
não só aos índios, mas também aos filhos dos colonos. É nesta fase, situada entre
1686 e 1757, que o Nheengatu passa por uma fase de expansão.7
Entretanto, a sua expansão foi muito além do que se esperava e começaria
a afetar as próprias funções da língua portuguesa na região. Se o Nheengatu era a
língua de comunicação no mundo do trabalho, o português era a língua da ordem,
a própria linguagem da administração colonial. Em primeiro lugar, destaca Freire,
os missionários com a autonomia adquirida a partir do final do Seiscentos, começam
a subtrair-se ao trabalho de intérpretes dos interesses da Coroa, abrindo espaço
para uma série de choques com a administração colonial.
Acrescente-se ainda que, os próprios funcionários coloniais recém-chegados
que desconheciam o Nheengatu, tinham grandes dificuldades de comunicação não
apenas com os índios, mas com os moradores de uma maneira geral. Singular, neste
aspecto, é o espanto de Mendonça Furtado, governador recém-chegado em 1751:

Vendo-se estes moradores na consternação de não se poderem


comunicar com os índios, se viram na precisão de aprender
também a gíria que lhes inventaram para se poderem servir deles,
e isto que então foi necessidade passou a hábito, e ao excesso de
serem hoje mui poucas as pessoas que nesta cidade falam
português, principalmente mulheres, que até não é possível,
conforme me tem dito os mesmos padres, que se confessem
senão na língua geral, como eles lhe chamam.8

O espanto de Mendonça já estava situado em outro momento da história


da língua geral na região, quando seu uso passou a ser reprimido pela Coroa. O
período que Freire denominou de “tentativas de portugalização” se inicia em 1757,
já no âmbito das medidas pombalinas e, nas quais, o uso do Geral era proibido
formalmente pela nova legislação. Associado às “perversas” práticas dos jesuítas, o
Geral deveria ser substituído pela língua portuguesa. Assim, as vilas e lugares tiveram

7
Carta Régia de 30.11.1689. Idem, p. 51.
8
Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Sebastião de Carvalho e Mello (Pombal). Carta de 21 de novembro de 1751. In:
Marcos Carneiro de Mendonça. AEP, op. cit., Tomo 1, p. 67.

E spelhos P art i dos 125


seus nomes portugalizados, os índios aldeados passaram a adotar sobrenomes portugueses
e as escolas a serem implantadas seriam encarregadas do ensino e da difusão da língua.
O que parecia ser um grande esforço, apresentou resultados modestos e o Nheengatu
permaneceria por mais um século como língua franca, especialmente na Capitania do
Rio Negro.
Em 1770, a hegemonia da língua geral ainda é suficientemente forte para a sua
manutenção nos trabalhos de catequese. Embora proibida oficialmente, os missionários
continuavam a empregá-la nas pregações e no ensino da doutrina. Mesmo os oficiais
régios (diretores, ouvidores e governadores) eram obrigados a ela recorrer – pessoalmente
ou através de intérpretes – porque era “fato público” o completo desconhecimento da
língua portuguesa entre as populações indígenas aldeadas no Pará.9
O responsável por essas constatações é o Pe. Manoel da Penha do Rosário,
autor das Questões Apologéticas (1770-1773), ele próprio um usuário contumaz na “língua
vulgar dos índios” em suas pregações e nas outras tarefas próprias do seu ofício. O seu
longo texto destinava-se a provar que não havia nem pecado e muito menos crime no
uso do Nheengatu no período pombalino porque, entre outras razões, o Diretório não
proibia expressamente seu uso na esfera dos trabalhos espirituais, apenas no temporal
no que se refere à civilidade dos índios.10
Freire assegura que, após a Cabanagem (1835 - 1840), o português só havia
adquirido uma relativa hegemonia na foz do Amazonas, e o Nheengatu ainda era a língua
franca no restante da região. Na década de 1840, o relato de Lourenço Amazonas
reforça essa leitura ao registrar que a língua geral era falada em toda a Província do Pará
por todas as nações indígenas que se relacionavam com as povoações e, nas cidades, da
“porta da sala para dentro”. De modo geral, a maior parte da população (índios e
mamelucos) respondia em Nheengatu, ainda que se lhes falassem em português.11

9
Em Moura, como em outras povoações, o Bispo Brandão viu-se diante de uma grande assistência que não falava o
português. Sua prédica era feita com a intermediação de um intérprete.[Antônio Caetano do Amaral] Memórias para a
história da vida do venerável Arcebispo de Braga, Frei Caetano Brandão. Op. cit., p. 350.
10
ROSÁRIO, Manoel da Penha do. Questões apologéticas enuncliadas e dirigidas a mostrar que em nada peca o pároco que
na língua vulgar dos índios os instrui espiritualmente, não sabendo eles nem entendendo a portuguesa que, por ordem
real, se-lhes deve introduzir. BNRJ - Manuscritos - 7, 1, 9. Ver também SILVA, José Pereira da. Língua vulgar versus língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, Anais, 113, 7- 62, 1993.
11
FREIRE, J R. B. Idem, p. 65; AMAZONAS, Lourenço Araújo e. Dicionário topográfico, histórico, descritivo da Comarca do Alto
Amazonas. 1852. Manaus: Grafima/Associação Comercial do Amazonas, p. 104, 1984. Ainda hoje é possível encontrar
falantes de língua geral, especialmente na região do rio Negro. Mais do que falantes, os Baré utilizam o Nheengatu como
mecanismo de afirmação de identidade étnica. Cf. ver BARROS, Maria Cândida; BORGES, Luiz; MEIRA, Márcio. A língua geral
como identidade construída. Op. cit.

126 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


A instabilidade da fronteira ainda podia abrir mais frentes. Um rápido olhar
sobre os hábitos dessa colônia falante de Geral, na qual até mesmo os sermões não
eram feitos em português, revela novas facetas de um cotidiano que, a cada passo,
se complexifica. Colonos “brancos” tiveram que empregar não só a língua, mas
também incorporar técnicas de trabalho, modificar hábitos alimentares, refazer o
cotidiano, enfim.
As finas louças trazidas pela Companhia de Comércio continham açaí, farinha
e peixe, os talheres eram dispensados nas refeições domésticas, as mulheres brancas
fiavam algodão sentadas no chão sobre esteiras, em alguns casos, ao lado de suas
fiandeiras índias, dormia-se em redes – sem dúvida, finamente trabalhadas nas casas
mais abastadas –, recorria-se à farmacopéia e práticas mágico-curativas de origem
indígena com mais freqüência do que os (raros) cirurgiões e sangradores do Reino
podiam esperar.
Quanto a esse último aspecto, durante a Visitação do Santo Ofício (1763 –
1769) o maior número de denúncias foi exatamente de práticas de curandeirismo
(25% delas). Se esse dado já não fosse suficiente para dimensionar a importância
social da prática, Pedro Campos afirma que outro indício era a grande quantidade
de pessoas mencionadas como pacientes ou testemunhas nas denúncias/ confissões
de curandeirismo. Para Campos, isso evidencia “o trânsito e conhecimento dos
curandeiros, principalmente os “profissionais” na sociedade paraense.”12
Mas isso não era tudo. Saindo de Belém, os liames da civilização tornavam-
se mais frágeis, e muitos viajantes registram, não sem espanto, a difusão e a forte
penetração dos hábitos e práticas dos índios, mesmo nas “melhores famílias”.
A política de casamentos interétnicos foi prevista no Alvará Régio de 4 de
abril de 1755 e, posteriormente, reforçada pelo Diretório. Em princípio, estas uniões
traziam uma série de benefícios para aqueles soldados e moradores brancos que se
casassem com as índias. Esses benefícios eram, além da supressão da “infâmia” da
mistura do sangue, a preferência na ocupação dos cargos da República, bem como
das terras nos lugares e povoações que se estabelecessem, ferramentas, tecidos e,
durante a vigência do Diretório, a possibilidade de requisitar índios para a formação

12
CAMPOS, Pedro Marcelo Pasche de. Inquisição, magia e sociedade: Belém do Pará, 1763-1769. Dissertação de Mestrado.
Niterói: UFF, 1995, p. 16. A curandeira de maior clientela era a índia Sabina, ex-escrava denunciada aos 40 anos de idade,
que atendia a várias autoridades locais (governador, ouvidores e tesoureiro dos índios), proprietários de engenhos e
escravos mas também a pequenos lavradores, sapateiros, militares e outros que requisitassem seus serviços.

E spelhos P art i dos 127


e funcionamento de suas roças. Com esses novos colonos, viria a implantação dos
“bons costumes” nas povoações. Essa seria a tarefa dos moradores brancos que se
casassem com as índias, mas, na prática, era bem diferente.
Os resultados dos casamentos interétnicos são reportados como frustrantes.
Se a proposta era “civilizar” os índios, os brancos se “barbarizaram” muito mais
facilmente. Em 1762, Pereira da Costa faz notar que os diretores costumavam
desestimar tais uniões por conta das muitas “desordens” que faziam os casados. Em
1773, Ribeiro de Sampaio vai na mesma direção, assegurando que os casamentos
assim contratados “tem sido pela maior parte pouco afortunados; porque em lugar
das Índias tomarem os costumes dos Brancos, estes tem adotado os daquelas.”
Ócio, bebedeiras, lassidão de costumes, recusa ao trabalho e outros “enredos com
o gentio” são as observações mais comuns entre ouvidores e religiosos que comentam
a questão.
Em 1772, na administração de Joaquim Tinoco Valente, os benefícios
concedidos aos casados foram reduzidos e só eram concedidos àqueles que se
casassem pela primeira vez. Em 1775, as benesses foram revogadas pelo Governador
do Grão-Pará. Atendendo a várias solicitações, retomou-se a mesma política em
1785, mas não com tantos privilégios como antes.
Em primeiro lugar, é preciso entender que a restrição aos casamentos de
soldados vinha ao encontro das preocupações dos governos militares quanto ao
crescente número de baixas solicitadas pelos soldados da tropa paga. A outra restrição
de concessão dos “prêmios” a quem se casasse pela primeira vez sugere que os
casamentos eram muito freqüentes; a figura dos cunhamena na década de 1750 já era
tão comum que obrigou a Coroa a estabelecer medidas punitivas e/ou coercitivas à
ação dos recém-casados.13
Apesar de comentários recorrentes quanto à inadequação dos casamentos,
uma descrição dos habitantes do Rio Negro feita por Ribeiro de Sampaio revela
uma nuance importante; esclarece o ouvidor que os moradores da Capitania podem
ser divididos em três classes: a primeira é composta por ex-traficantes de escravos

13
Em língua geral, significa marido da mulher. A expressão, além de designar os casados com índias, era utilizada também
para referir os homens que possuíam mais de uma esposa índia, bem como aqueles que, pelas alianças de casamento,
estavam envolvidos no tráfico de índios. O Bando que estabelece penas para as práticas do cunhamena no Rio Negro é
de 21.04.1753. o castigo previsto era o açoite e as galés, no caso de Mecânico e o degredo em Angola, se Nobre. A ação
dos cunhamena, porém, era muito mais ampla do que a legislação podia conter; se estavam consignadas as punições para
os do Rio Negro, já era preciso estabelecer as mesmas restrições para os que estavam atuando nos rios Solimões e Japurá.
Cf. ABAPP, Tomo III, 1968, p. 198-200.

128 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


índios que se estabeleceram na região após o fim da escravidão em 1750; a segunda
e a “mais bem estabelecida” é composta por membros das demarcações do Tratado
de Madri que, casando-se com índias, permaneceram na Capitania após o final das
diligências e, por fim, a 3ª classe é composta por soldados da tropa paga que deram
baixa para casar com índias, estabelecendo-se aí definitivamente.14
De acordo com a percepção dos ouvidores mencionados, uma das
distinções que separam a 2ª classe da última é a honra. Aos membros da 2ª classe é
facultada a concessão dos privilégios reais, inclusive com a ocupação de cargos na
República em reconhecimento a um bom serviço prestado; essa é a justificativa para
nomeação de João Nobre da Silva, chegado ao Negro por volta de 1745, para o
posto de capitão-mor responsável pelo comando da tropa de ordenanças da vila de
Barcelos. João possuía 2 escravos, plantações de café e cacau, “passando
moderadamente”. Para esse posto obteve precedência na escolha sobre um ex-traficante
de escravos e morador estabelecido, Francisco Xavier de Andrade. A razão era não só
seu honrado procedimento, mas também “por ter casado com a índia D. Teresa de
Mendonça Melo, filha do Principal Manoel Gama.15
Muito distinta era a vida dos homens da 3ª classe, soldados que se casavam
com índias. Os moradores brancos de Moura eram, na maior parte, soldados reinóis
que se casaram com índias, “por isso comumente não excedem uma medíocre fortuna
e conservam assaz relíquias da antiga rusticidade”.16
Frei João de São José (1762-1763) já havia feito observação semelhante quanto
aos soldados casados. Salvo raras exceções, considerou-os indignos, de maus
procedimentos, sem probidade e honra, vivendo na ociosidade, ocupando-se em
tocar viola, fumar e balançar-se na rede, “trazem a terra em contínuo enredo e intrigas
a que chamam marandubas, e nenhuma honra fazem ao catolicismo”.17

14
SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. As viagens do Ouvidor Sampaio. Manaus: Associação Comercial do Amazonas/Fundo
Editorial, p. 131, 1985, Ressalte-se que, entre as três classes de Sampaio, os índios estão ausentes da classificação.
15
Em Barcelos, Nobre da Silva também exerceu o cargo de juiz. Cf. FERREIRA, Alexandre R. Viagem filosófica ao rio Negro. Op.
cit., p. 287. Francisco Xavier de Andrade era sobrinho de Francisco Xavier e Belchior Mendes de Moraes, conhecidos cabos
de tropa de resgate no rio Negro. Em 1740, aos 23 anos, participou da tropa de resgate no vale do Uraricoera, junto com
Lourenço Belfort de onde trouxeram “mais de um milheiro de índios” para a fazenda deste no Mearim (Maranhão).
Estabeleceu-se em Barcelos onde chegou a ocupar o cargo de Almoxarife em 1778. Cf. REIS, Arthur C. Ferreira. Limites e
demarcações da Amazônia Brasileira, op. cit., v. 1, p. 55. SWEET, David. A Rich Realm... Op. cit., p. 766 e o Mapa das Famílias
que à exceção dos índios aldeados, se achavam existindo em cada uma da maior parte das Freguesias de ambas as
Capitanias do estado do Grão-Pará e de sua possibilidade e aplicação no ano de 1778.
16
Cf. AMARAL, Antônio Caetano do. Memórias para a história da vida do venerável Arcebispo de Braga, Frei Caetano Brandão.
Op. cit., p. 371-372.
17
Frei João de S. José. Viagem e visita do Sertão no Bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763. p. 190.

E spelhos P art i dos 129


Em determinadas povoações, como é o caso da Vila Franca, a inexistência
de moradores brancos era vista pelo Bispo Brandão como uma bênção porque
sem brancos não há escandalosos procedimentos: “esta é a desgraça mais deplorável,
que os que têm todas as razões para edificarem os índios com sua cristandade, são,
de ordinário, os que os escandalizam e acabam de corromper com seu infame
procedimento”. Aliás, dito corretamente, para o Bispo, onde existia tropa aquartelada
era inevitável a devassidão dos costumes. A honra dos moradores (ou sua ausência)
ligava-se à sua capacidade de trabalho; quanto mais assentado e entretido com suas
lavouras, mais se isenta de atitudes e comportamentos inadequados.
Em 1798, as uniões interétnicas ainda serão estimuladas na Carta Régia de
12 de maio, acenando-se com ”honra e distinção” para as famílias assim constituídas,
contudo a existência de várias recomendações e instruções reais ameaçando de prisão
àqueles que desprezassem ou maltratassem seus cônjuges índios aponta para a
dificuldade concreta de superação da “infâmia” do sangue.
Alguns dos resultados desse processo de casamentos interétnicos aparecem
em outras descrições das gentes do Rio Negro, já nas primeiras décadas do século
XIX. Um lugar onde os Brancos, “pela maior parte são de côr morena” e onde é
possível, até mesmo diferenciar esses Brancos “morenos” de outros “Brancos
provindos de Indígenas”18. A mestiçagem era um fenômeno concreto com o qual
os sertões deveriam conviver e, de alguma forma, todos os seus habitantes terão
traços de um “indianismo” visível no século XIX, nos seus hábitos e suas formas de
viver, captado pelo perscrutador olhar dos homens de ciência, viajantes daquele
século.19

18
AMAZONAS, Lourenço Araújo e. Dicionário Topográfico, Histórico, Descritivo... Op. cit., p. 23.
19
Para uma análise do discurso dos viajantes, ver COSTA, Hideraldo L. Cultura, trabalho e luta social na Amazônia: discurso
dos viajantes, século XIX. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC, 1995.

130 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


PARTE II

CÓDIGOS DA FRONTEIRA: CONSOLIDANDO DIFERENÇAS

E spelhos P art i dos 131


132 Patrí cia Maria Mel o Sampaio
Foi nos espaços abertos e nas zonas distantes
que se passou boa parte da história
da colonização lusitana na América.

Laura de Mello e Souza

Em fins do ano de 1798, Felipe tinha 18 anos quando sentou praça no 2º


Regimento de Infantaria de Linha do Pará. Talvez movido por um “espírito
patriótico” ou simples questão de sobrevivência, ofereceu-se voluntariamente para
servir no Corpo de Artilharia em 1804. Nascido no rio Acará, Felipe Muniz era
jovem, solteiro e pronto para dedicar-se inteiramente à vida militar.
Seis anos depois, passou a Cabo e, em 1812, a Furriel. Acompanhou as
tropas destacadas em Caiena onde serviu por quase três anos; foi durante sua
permanência em Caiena que saiu sua promoção para Sargento em 1816. Aos 38
anos, Felipe voltou a Belém e passou a servir embarcado no “Correio do Pará”,
depois na Escuna Ligeira de S. Majestade e, por fim, no brigue de guerra “Prontidão”.
Era o momento de tentar uma nova promoção e, junto com outros
companheiros de farda, nosso sargento vai acompanhar as aulas militares. Sempre
muito elogiado pelos seus superiores e disponível para tarefas “aflitivas”, parecia
que sua promoção para 2º tenente só dependeria de tempo. A aprovação nos exames
era item obrigatório para a promoção – última etapa de uma vida dedicada ao
serviço de Sua Majestade. Entretanto Felipe não obtém bom desempenho nas aulas
e muito menos nos exames. Seus avaliadores são rigorosos: falta-lhe esforço,
dedicação e capacidade para justificar a aprovação.
Em 1821, aos 41 anos de idade, Felipe defronta-se com um resultado cruel:
é preterido na promoção. Inconformado, recorre da decisão e o parecer do
Comandante não é menos duro: apesar de sua folha de 23 anos de serviço, o
suplicante não preenchia condições básicas: tinha ultrapassado a idade recomendada
para a promoção; tinha-se revelado incapaz de atender às exigências dos exames;
não dava esperanças para o futuro e, finalmente, era um tapuio. No Pará do início do
século XIX, parecia não haver mercê possível para o sargento Felipe.1

1
Em 1878, Veríssimo definiu tapuio como “o filho das raças indígenas semicivilizadas” e que não devia ser confundido com
o mameluco. Porém, registra que a confusão entre ambos é comum devido à cor escura dos descendentes de índios e
brancos, em especial, os de primeira geração. Cf. VERÍSSIMO, José. Estudos Amazônicos. Belém: Universidade Federal do
Pará, p. 13-14, 1970. Moreira Neto define tapuio de uma maneira diferenciada: é o “membro de um grupo indígena que
perdeu socialmente o domínio instrumental e normativo de sua cultura aborígene, substituindo-a por elementos de uma ou
várias tradições culturais que se misturam aos traços residuais da língua e da cultura originais”. São os “índios genéricos”.
Cf. MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia: de maioria a minoria (1750-1850). Petrópolis: Vozes, especialmente
capítulos V e VI. A citação está na p. 79, 1988.

E spelhos P art i dos 133


A história do sargento pode ser um excelente fio condutor para entender
tanto a sua trajetória como indivíduo em uma sociedade extremamente desigual,
quanto iluminar alguns aspectos estruturais dessa mesma sociedade que tornaram
possível a emergência de uma hierarquia social que limitava a mobilidade de indivíduos
(e, por extensão, de grupos sociais) recorrendo a uma argumentação que destaca
um fenotipo e o vincula a um determinado lugar social. Esse parece ser o caso do
Comandante de nosso sargento que utiliza esse viés como argumento conclusivo
para desqualificar a promoção do “tapuio escuro”.
A partir desse fragmento da vida de Felipe, podem ser demarcados
momentos importantes do processo histórico da região e, neles, nosso homem não
é apenas um dos milhares de rostos anônimos na multidão tapuia; é um personagem
vivendo uma situação particular que possibilita recuperar um longo processo de
exclusão social a qual todo um conjunto de atores sociais – semelhantes a Felipe –
estavam sujeitos: a população índia, tapuia e mestiça do Pará.
A partir da segunda metade do século XVIII, a legislação indicava que as
populações indígenas aldeadas do Grão-Pará deveriam passar por um processo de
verdadeira transmutação que os transformaria em vassalos sem quaisquer distinções
de outros do Reino. Mais de meio século depois, o parecer do Comandante das
Tropas indica que, apesar de Felipe poder ser considerado um igual perante a lei, na
prática, não é; na fala peremptória de seu superior, ele “ nunca, jamais será um
medíocre oficial [...] por que é um tapuio escuro.”2
Este ponto de partida pode parecer paradoxal. Afinal de contas, como
uma política que visava, de forma explícita, à supressão da infâmia do sangue e à
progressiva transformação dos índios em verdadeiros vassalos do Rei, “sem distinção
alguma dos outros”, poderia resultar em um processo de exclusão social desses
mesmos súditos índios que se propunha a construir e valorizar?
A história do processo de conquista e colonização da região amazônica – e
do próprio Brasil – deixou claro o recurso a diversos mecanismos de compulsão
das populações indígenas ao trabalho. Este processo, marcado pela tensão e pela
violência, terminou por reservar um lugar de subordinação e inferioridade aos índios,
expresso tanto no discurso dos agentes coloniais quanto nas relações sociais e
hierárquicas que envolveram esses múltiplos personagens. Essa é uma história que
não começa no século XVIII e esta é apenas uma das leituras possíveis.

2
APP - Códice 720 - Correspondência do Comando das Armas com o Governo (1821). Doc. 39, 40 e 41.

134 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Contudo selecioná-lo como lugar privilegiado para essa discussão significa,
antes de tudo, reconhecer como fundamental para sua compreensão as relações
existentes entre as diretrizes da política indigenista lançadas durante a administração
pombalina e o quadro de referências mais amplo sobre o qual estas políticas
encontravam suas bases e sua fundamentação.
Para além disto, é preciso considerar questões mais específicas que serão
forjadas no próprio mundo colonial como resultado dos arranjos, das articulações
e dos confrontos entre os atores sociais que conviveram nestes instáveis mundos da
fronteira. Dito corretamente, é necessário demarcar o próprio locus onde essas políticas
serão efetivamente aplicadas e, assim, “re-significadas” refletindo essas relações que,
no limite, referenciaram as próprias fronteiras que terminaram por estabelecer as
diferenças entre projeto colonial e processo colonial.

E spelhos P art i dos 135


136 Patrí cia Maria Mel o Sampaio
CAPÍTULO 7

TRABALHO, PODER E LIBERDADE I: O DIRETÓRIO


POMBALINO

E sendo evidente que


as paternais providências de Nosso Augusto Soberano,
se dirigem unicamente a cristianizar e civilizar
estes até agora infelizes, e miseráveis Povos,
para que saindo da ignorância, e rusticidade,
a que se acham reduzidos, possam ser úteis
a si, aos moradores e ao Estado.

Diretório Pombalino, 1757.

Não bastava garantir a liberdade dos novos vassalos, sem apresentar


garantias mínimas de continuidade de acesso à mão-de-obra dos índios. Foi a reduzida
oferta de mão-de-obra escrava africana e a grande dependência dos moradores do
Pará do trabalho compulsório dos índios que levou a uma certa demora na publicação
da chamada “Lei de Liberdades” de 1755. Na verdade, foram quase dois anos,
durante os quais foram sendo preparadas as medidas de suporte para a sua efetivação.
O Diretório de 1757 é a primeira e mais importante delas. Na avaliação dos
administradores coloniais, sua implantação configurava-se como um instrumento
tutelar necessário de transição para a liberdade considerando o estado incipiente da
civilização dos índios recém-aldeados. É sobre esse duplo prisma que o Diretório
deve ser avaliado: além de configurar-se como instrumento legal de organização da
força de trabalho, pretende também viabilizar a civilização dos índios. Trabalho e
civilização são conceitos complementares neste século XVIII, e o ócio, a vadiagem são
tratados com o rigor de uma falta criminosa.

E spelhos P art i dos 137


A dilatação da fé e a extinção do gentilismo, a civilidade dos índios e o bem
comum dos vassalos, o aumento da agricultura e a introdução do comércio, a
opulência e a felicidade geral do Estado são as finalidades do Diretório apresentadas
quando de sua publicação.
Vários autores são unânimes em considerar os 95 parágrafos do Diretório
como uma ambiciosa e abrangente política indigenista, pois envolve aspectos religiosos,
culturais, administrativos e, principalmente, econômicos1. Extenso e detalhado, para
entender o Diretório, Oscar Beozzo propôs uma eficaz distribuição das matérias ali
tratadas que permite ter uma idéia completa das intervenções pensadas pela Coroa.2

I - Quanto ao governo dos índios ( §§ 1 - 4)


1. Direção do temporal (§§ 1-4)
2. Direção do espiritual – catequese indígena ( §4)

II. Quanto à civilização dos índios ( §§ 5-15)


1. Proibição das línguas indígenas e obrigatoriedade do uso da língua
portuguesa (§6)
2. Criação de escolas separadas por sexo, seleção e pagamento de professores
(§§7-8)
3. Aportuguesamento obrigatório dos sobrenomes, da construção das
casas, dos costumes e do vestuário; proibição de chamar de “negros” aos
índios (§§ 9-15)

III. Quanto à agricultura, dízimos, comércio e mão-de-obra (§§ 16-59)


1. Política agrícola (§§ 16-34)
a. Cultivo da terra (§§ 16-20)
b. Plantio de subsistência: mandioca, feijão, milho e arroz (§§ 21- 23)
c. Plantio comercial : algodão e tabaco (§§ 24- 26)
2. Política fiscal (dízimos) e despesas administrativas (§§ 27-35)
a. Recolhimento e contabilidade dos dízimos (§§ 27 – 33)
b. Pagamento dos Diretores de Índios (§§ 34-35)

1
BEOZZO, Oscar. Leis e regimentos das missões: política indigenista no Brasil. Op. cit. BELLOTO, Heloísa. Trabalho indígena,
regalismo e colonização... Op. cit. FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões. Op. cit. MOREIRA NETO, Carlos de Araújo.
Índios da Amazônia: de maioria a minoria (1750-1850). Op. cit. ALMEIDA, Rita Heloísa de. O diretório dos índios: um projeto
de “civilização” no Brasil do século XVIII. Op. cit.
2
Cf. BEOZZO, Oscar. Leis e regimentos das missões. Op. cit., p. 127-128.

138 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


3. Política comercial (§§ 36-58)
a. Regras para o comércio em geral (§§ 36-45)
b. Regras para o comércio do sertão: drogas do sertão (cacau e salsa), feitorias
de manteiga de tartaruga, salgas de peixe e extração de óleo de copaíba e
andiroba (§§ 46-58)
4. Política de mão-de-obra (§§ 59-73)
a. Repartição da mão-de-obra indígena (§§ 59-67)
b. Pagamento dos índios (§§ 68—73)

IV. Quanto à administração das povoações indígenas (§§ 74-95)


1. Organização das aldeias: construções, número e localização dos moradores
(§§ 74-77)
2. Povoamento das aldeias através dos descimentos (§§ 78-79)
3. Introdução de brancos nas povoações e critérios para sua admissão (§§
80-86)
4. Regulamentação das relações e casamentos entre brancos e índios (§§ 87-
91)
5. Responsabilidades dos Diretores como tutores dos índios e funcionários
da Coroa (§§ 92-95)

Como se pode perceber, o espectro de abrangência da nova legislação era


imenso. Proibiu o uso da língua materna e também do nheengatu, tornou obrigatório
o uso de sobrenomes portugueses, obrigou a construção de moradias no estilo
europeu. Do ponto de vista econômico, deu ênfase à agricultura de exportação,
mas também aos cultivos alimentares para sustento próprio e das povoações.
Estimulava o “interessantíssimo comércio dos sertões”, liberando-o em todas as
povoações e padronizando pesos e medidas. As localidades próximas ao mar ou
rios deveriam dedicar-se às feitorias de salgas de peixe destinadas ao comércio;
naquelas onde havia disponibilidade de cacau, salsa ou cravo, os índios deveriam ser
conduzidos para esse negócio.
Quanto à administração dos aldeamentos, as ações seriam mais incisivas e a
figura dos Diretores – executores imediatos dessa política – teria um papel chave
para mediar as relações entre os Principais, índios aldeados, colonos e a própria
Coroa. Eram nomeados pelo governador e deveriam ser “dotados de bons costumes,
zelo, prudência, verdade e ciência da língua [...]”

E spelhos P art i dos 139


Além de intermediários nas transações mercantis entre índios e moradores,
seriam eles os responsáveis pelo controle dos aldeamentos, da coleta dos dízimos,
pelo fluxo de trabalhadores para os particulares, para o serviço do Comum, para o
Serviço Real e para as expedições de coleta de drogas do sertão, recebendo por este
trabalho cerca de 16 % do que fosse coletado e produzido, excluída a produção de
subsistência.

DIRETÓRIO POMBALINO (1757-1798)

Índios
Índiosnas
nassuas
suas aldeias deorigem
aldeias de origem

Descimentos
Descimentos

Povoações
Povoações indígenas
indígenas
(vilas
( vilas ee lugares)

Índios
Índios retidos
retidos
Índios
Índios alugados
alugados
(1/2)
(1/2)
(1/2)
(1/2)

Particulares
Particulares

Serviço
Serviço Roçasdo
Roças Drogas do
Drogas do
Real
Real doComum
Comum Sertão
Sertão

Agricultura
Agricultura Drogasdo
Drogas
comercial
Comercial doSertão
Sertão

Fonte: Elaborado pela autora, adaptado de Francisco Jorge dos Santos e José Ribamar
Bessa Freire.

140 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


A repartição dos índios deveria ser feita em duas partes iguais: a primeira
seria conservada nas suas povoações para a defesa do Estado e para atender às
necessidades do serviço real; a outra seria repartida entre os moradores, não só para
equipação das canoas de extração de “drogas do sertão”, mas também para as
plantações.
Os índios só seriam fornecidos aos moradores mediante portaria assinada
pelo governador. A idade dos índios a serem distribuídos ia dos 13 aos 60 anos. A
responsabilidade dos salários cabia aos Diretores que o recebiam, em nome dos
índios; do valor depositado, cabia aos trabalhadores apenas 1/3, os 2/3 restantes
eram depositados como garantia dos moradores em caso de fuga ou deserção.
A prerrogativa da concessão dos trabalhadores era, sem dúvida, o ponto
mais nevrálgico do Diretório. A lei determinava que todos os índios aldeados, aptos
e em idade de repartição, deveriam constar de listas regulares, anualmente atualizadas
pelos diretores de povoação e Principais, encaminhadas ao governador do Estado.
A ele cabia concedê-los aos moradores, através de portarias específicas; aos diretores,
cabia o acompanhamento da portaria a ser executada e, aos Principais, o
cumprimento da distribuição ordenada.
É possível perceber que a estrutura interna do aldeamento sob o Diretório
manteve alguma semelhança com aquela estabelecida no antigo Regimento das
Missões (1686) quando a população mínima a ser aldeada em cada povoação era
algo em torno de 150 habitantes. Contudo, diferente do período das missões, quando
a repartição era feita em três partes, no Diretório a mão-de-obra aldeada seria
dividida em duas partes iguais como já se mencionou. Os recém-aldeados não
seriam incluídos na repartição de mão-de-obra, sendo-lhes concedido um prazo de
dois anos para adaptação. (§ 94). A fonte básica do aumento das povoações eram
os descimentos, estimulados pelos Diretores e articulados pelos Principais.
Analisar, em detalhe, o funcionamento interno do Diretório Pombalino
escapa aos limites deste texto. Meu interesse se situa nos seus desdobramentos no
que se refere ao processo de “criação” de novos vassalos e seus reflexos na questão
da liberdade e da (des)igualdade.
É preciso esclarecer que a “liberdade” não era reconhecida indistintamente
a todos os índios. Nesse período, persiste uma diferença substancial que remonta ao
complexo legal da política indigenista implementado desde o início da colonização
no território brasileiro. Distinguem-se duas linhas fundamentais: uma que diz respeito

E spelhos P art i dos 141


à política no trato com os índios aldeados e aliados (“amigos”) dos portugueses e
outra, referente aos índios tribais (“bárbaros” ou “gentios”).3
Aos primeiros, é garantida a liberdade desde o início da colonização. Poderiam
ser descidos para os aldeamentos, ser contratados mediante um salário e considerados
senhores de suas terras. Se porventura não desejassem aldear-se, era possível
permanecer em seus territórios como “povos aliados”, especialmente se ocupassem
áreas de fronteira de interesse da Coroa. Por outro lado, a escravidão (ou o
extermínio) era o destino dos índios inimigos, executado pelos “resgates” e “guerras
justas”.
Ainda que essa liberdade seja carregada de nuances e limitada por
mecanismos diversos que permitem a compulsão ao trabalho, permanece o estatuto
jurídico de definição dos índios como homens livres. Quanto aos índios não-aldeados,
apesar da declaração de suas liberdades em 1755, o que se percebe é a persistência
da leitura anterior à segunda metade do século XVIII que implicava o uso da força
contra os bárbaros (e inimigos); são significativos, neste sentido, os processos de
“pacificação” dos Mundurucu e Mura.4
A lei de 17555 restituiu aos índios a liberdade dos “seus bens, pessoas e
comércio”. As populações já aldeadas ficariam incorporadas [...] sem distinção ou
exceção alguma, para gozarem de todas as honras, privilégios, e liberdades de que
meus vassalos gozam atualmente [...]. As medidas do Alvará de 7.6.1755 são
complementares: retirou-se a jurisdição temporal dos Regulares sobre os índios do
Grão-Pará e Maranhão; ordenou que [...] preferencialmente, fossem designados nas
Vilas, para Juízes ordinários, Vereadores e Oficiais de Justiça, os índios naturais
delas”; e, por fim, dispôs sobre a administração das aldeias, estabelecendo que
seriam geridas pelos seus Principais, “[...] tendo estes como subalternos os Sargentos-
Mores, Capitães, Alferes e Meirinhos das próprias nações”. Pelas novas determinações,

3
Sobre essa questão, verifique-se os trabalhos de PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios
da legislação indigenista do período colonial (séculos XVII e XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos
índios no Brasil. Op. cit., p. 115-132, 1992. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. (Coord.). Legislação Indigenista. Op. cit., p.
467-478.
4
Cf. SANTOS, Francisco Jorge dos. Além da conquista. Op. cit., especialmente, os capítulos III e V.
5
A lei de 6.6.1755 faz parte do que Beatriz Perrone-Moisés (1992: 115-132) chamou de “grandes leis de liberdade”, que
abrange não só essa, mas também as de 1609 e 1680. A autora considera que a publicação dessas leis representava um
esforço da Coroa em apagar as diferenças existentes na política com relação às populações indígenas, tentando minimizar
os abusos contra as nações “amigas” que terminavam sendo atacadas como “inimigas”.

142 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


não haveria desigualdades entre os vassalos do rei; todos poderiam ser alvos das
mesmas distinções e subordinados às mesmas justiças.
Apesar da garantia da liberdade dos índios, a preocupação com o controle
dessa população permanecia entre as prioridades da administração pombalina. Entre
outras razões, pelo receio (nada injustificado) de que as populações aldeadas, de
posse de suas liberdades, abandonassem os núcleos coloniais, colocando em risco o
acesso dos colonos aos trabalhadores. É assim que Mendonça Furtado diagnostica
a situação da concessão da liberdade, em 1755:

Porque tenho infalível que estes índios como são, não só bárbaros
e rústicos, mas, além de preguiçosos [...] logo que se capacitarem
que estão em plena liberdade e que os não podem obrigar a
residir nas fazendas em que se acham, no mesmo instante me
persuado a que desamparem absolutamente aos lavradores e se
metam pelos mocambos, deixando tudo em confusão e
desordem [...].6

Informadas por essas preocupações, podem ser entendidas as medidas


complementares que restringiam a mobilidade de índios e brancos no Estado e
também a outra que estabelece a vinculação dos índios libertos ao Regimento dos
Órfãos. Esta última ação referia-se aos “rústicos”, os “ignorantes” e os “vadios que
de nenhuma sorte quiserem trabalhar”. Essa medida referia-se claramente aos índios
já residentes nas povoações coloniais, mas excluía os artesãos e outros que já vivessem
“sobre si.”7
A existência dessa população flutuante nos núcleos coloniais, composta por
índios alforriados e livres, é apontada como problemática pelo governador Mendonça
Furtado, já em 1754, antes, portanto, da publicação da Lei das Liberdades. Esses
índios, livres e forros, “andavam sendo vadios, sem que o público tirasse utilidade
alguma de seu trabalho”. Ainda que existissem ordens para que fossem dados em
soldada aos moradores, “com facilidade lhes fugiam de casa e andavam fazendo
neste povoado, e no sertão perturbações”.8

6
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. AEP. 2º Tomo, Carta 132ª. Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Sebastião de Carvalho
de Mello. Arraial de Mariuá, p. 824, 12 de novembro de 1755.
7
FARAGE, Nádia; CUNHA, Manuela C. Caráter da tutela dos índios: origens e metamorfoses. In: CUNHA, Manuela Carneiro da.
Os direitos dos índios. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 107-108.
8
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. AEP, 2º tomo, p. 494-495, Carta de 14 de fevereiro de 1754 - Francisco Xavier de
Mendonça Furtado ao rei.

E spelhos P art i dos 143


O governador diz que as fugas constantes dos índios, em certa medida,
eram estimuladas pelos próprios moradores que, na tentativa de conseguir mais
mão-de-obra, “seduziam” os trabalhadores de outros colonos e davam guarida aos
fugitivos. A desordem que se seguia a reiteração dessas práticas era inevitável; nenhum
morador sabia ao certo o quantum de trabalhadores que poderia contar efetivamente,
além de promover “uma tal confusão, que passa de ódios mortais, quase a uma
guerra civil entre estas gentes”.9
É para minimizar os problemas decorrentes desse quadro que o governador
publica um bando regulamentando o uso desses índios, no mesmo dia em que
publica a lei de liberdades.
Assim, com relação à política indigenista de reordenamento da mão-de-
obra, fica claro que a Coroa estabelece, nesse momento, um conjunto legal articulado
e sistemático que se abre com a Lei de Liberdades (6.6.1755), complementa-se com
a retirada do poder temporal das religiões sobre as populações indígenas (7.6.1755)
e com as novas regulamentações referentes à mobilidade de índios e à tutela do
Regimento de Órfãos sobre os índios recém - libertos, amplifica-se com o Diretório
(1757) e, finalmente, aponta novas alternativas de suprimento de trabalhadores, com
a criação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (7.6.1755),
responsável pela introdução regular de africanos no Estado.
Mas mão-de-obra não era o único problema: as articulações em torno das
demarcações de limites com a Espanha também estariam em xeque sem uma política
de ocupação efetiva dos territórios em litígio. Dito corretamente, a preocupação da
Coroa com a vassalagem dos índios estava ligada, de forma profunda, a um projeto
político mais amplo que envolvia seus interesses na segurança territorial da colônia e
isso é válido para o conjunto das áreas de fronteira da colônia portuguesa na América.
As demarcações potencializadas pelo Tratado de Madri envolviam duas
grandes zonas de disputa: uma, situada ao sul, na Colônia de Sacramento e a outra,
ao norte, na fronteira amazônica. Nas duas áreas, as instruções de Pombal se
assemelhavam no que se refere à questão dos índios. Em carta a Gomes Freire de
Andrade, responsável pelas demarcações do sul, o Marquês recomendava a
incorporação dos índios da região ao número de vassalos de Sua Majestade,
eliminando-se todas as diferenças existentes entre esses e os portugueses e estimulando
os casamentos mistos, como uma maneira eficaz de garantir a posse portuguesa das

9
Idem, p. 495.

144 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


fronteiras. Em se tratando da questão das fronteiras, o princípio do uti possidetis era o
norte comum que orientava o trato dos índios enquanto “muralhas dos sertões.”10
Garantir fronteiras com vassalos recém-criados não se mostrou uma solução
de fácil execução. A documentação deixa claro que a transformação de gentios em
vassalos sem distinção era extremamente complexa. Como afirmou Kenneth Maxwell:
“nas fronteiras remotas, vastas e mal compreendidas do Amazonas, as esperanças
otimistas de que os índios seriam pacificamente assimilados e europeizados revelavam-
se fora de propósito.”11
A participação dos índios na administração das vilas, devidamente
acompanhada do olhar vigilante do diretor, estava prevista no Diretório, tal como
indicada na lei de liberdade de 1755: nas vilas, a administração caberia aos juízes
ordinários, vereadores e oficiais de justiça; nas aldeias independentes, caberia diretamente
aos Principais. A função do diretor seria acompanhar, orientar e advertir esses
administradores nos meandros da gestão, evitando negligência e descuidos, especialmente
na questão das justiças.
Os índios que exercitassem esses novos empregos deveriam ser tratados com
o privilégio e as prerrogativas inerentes às suas funções. “Recomendo aos diretores,
que assim em público, como em particular, honrem, e estimem a todos aqueles Índios
que forem Juízes Ordinários, Vereadores, Principais, ou ocuparem qualquer outro
posto honorífico, e também as suas famílias, [...] para que, vendo-se os ditos Índios
estimados pública, e particularmente, cuidem em merecer com seu bom procedimento
as distintas honras, com que são tratados;”12
Na mesma direção, proíbe terminantemente que se continuem a chamar os
índios de “negros”, pretendendo extirpar a “escandalosa introdução de lhes
chamarem de Negros; querendo talvez, com a infâmia e a vileza deste nome, persuadir-
lhes, que a natureza os tinha destinado para escravos dos Brancos, como regularmente
se imagina a respeito dos Pretos da Costa de África. E porque, além de ser
prejudicialíssimo à civilidade dos mesmos Índios este abominável abuso, seria
indecoroso às Reais Leis de Sua Majestade chamar Negros a uns homens, que o
mesmo Senhor foi servido nobilitar e declarar por isentos de toda, e qualquer infâmia,
habilitando-os para todo emprego honorífico.”13

10
Cf. Carta Secretíssima de Sebastião J. Carvalho e Mello a Gomes Freire de Andrade. Lisboa, 21.09.1751. In: MENDONÇA,
Marcos Carneiro de. Século XVIII: século pombalino do Brasil. p. 297-8.
11
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo, p. 57-58.
12
Diretório, § 9.
13
Diretório, § 10. O grifo é do original.

E spelhos P art i dos 145


A nobilitação não pára nos empregos públicos. Aquele que se aplicasse com
zelo ao trato de suas terras e “o que render mais serviço ao público neste frutuoso
trabalho, terá preferência a todos nas honras, nos privilégios, e nos empregos, na
forma que Sua Majestade ordena”14. No comércio do sertão, exatamente por conta
de suas honras, não era adequado que os Principais, Capitães-Mores, Sargentos e
mais Oficiais fossem pessoalmente ao sertão participar da extração. Assim ficava
garantida a possibilidade de os Principais enviarem entre 4 e 6 índios para extrair as
drogas para si; os capitães e sargentos, 4, e os outros oficiais, 2, sendo que os salários
destes índios deveriam ser pagos pelos próprios oficiais agraciados.15
Importante prerrogativa dos Principais e das Câmaras é a indicação dos
cabos de canoa para o negócio do sertão. A indicação dos referidos cabos deveria
ser acatada pelo governador, sendo vigilantemente acompanhada pelos diretores.
Da mesma forma, cabe, aos Principais, a execução das portarias de distribuição dos
índios, a partir das listas elaboradas anualmente nas povoações.
Valorizar os novos vassalos significa também não desprezar seu parentesco.
Daí a reiteração da política de estímulo aos casamentos mistos como forma de
facilitar o povoamento e acelerar o processo de “civilização” dos índios. O Diretório
diz, claramente, que a estratégia do matrimônio misto vem para reforçar a política
de “igualdade” que se projetava construir “persuadindo as Pessoas Brancas que os
Índios tanto não são de inferior qualidade a respeito delas, que dignando-se Sua
Majestade de os habilitar para todas aquelas honras competentes às graduações de
seus postos, conseqüentemente ficam logrando os mesmos privilégios às Pessoas
que casarem com os ditos Índios.”16
A concessão de privilégios tem suas contrapartidas. Os Principais e mais
Oficiais das povoações deverão ser os principais responsáveis pela articulação dos
descimentos, estratégia indispensável para ampliação demográfica das povoações.17
A ênfase que se busca dar nessa leitura do Diretório pretende destacar as
possibilidades que se abriram, a partir da sua implementação para a formação e
progressiva consolidação de hierarquias internas nas povoações pombalinas. Os índios
recém-chegados, a partir dos descimentos, encontram no espaço da povoação,

14
Diretório, §18. No caso específico do tabaco, a Coroa criou um estímulo especial àqueles que se aplicassem à sua cultura;
à proporção das arrobas de tabaco que entrassem na Casa de Inspeção, se lhes seriam distribuídos os empregos e os
privilégios. Cf. Diretório, §25.
15
Diretório, § 49 e § 71.
16
Diretório, §§ 88 - 91.
17
Diretório, §§ 78 - 79.

146 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


fronteiras bem demarcadas que estabelecem diferenças visíveis entre quem chega e
quem já está aldeado.
Para tentar explicitar melhor essa questão, acredito que é preciso reter alguns
pontos. A princípio, delineia-se a idéia de que os índios são “estrangeiros”, isto é,
não fazem parte do império colonial e nem podem ser considerados como
verdadeiros vassalos até que se completem certas etapas de transformação. Esta
condição de estrangeiro pode bem ser percebida na persistência da distinção entre
índios aliados e não-aliados (“gentios”, “inimigos”, “bravios”).
A distinção fundamental entre um e outro é a fronteira que separa a
“civilização” da “barbárie”. Aceitar a fé cristã, aldear-se, vestir-se, trabalhar, comerciar,
obedecer às leis de S. Majestade, falar a língua portuguesa, em suma, o abandono dos
costumes “bárbaros” é a condição da transformação do “estrangeiro” em vassalo do
Rei.
A superação da barbárie poderia se dar por caminhos diversos. A catequese,
o trabalho, a convivência com o mundo colonial, a adoção da língua portuguesa, os
casamentos mistos são algumas das alternativas apontadas pela legislação e pelos
administradores coloniais. Claro que a força das armas não está descartada. Nesta
“pedagogia” colonial, o temor e a coação também são instrumentos eficientes na
condução para o caminho da civilização.
Via de mão única na visão dos agentes coloniais é compreensível seu espanto
e indignação quando descobrem que os “brancos” podem adotar os “costumes
gentios” com mais freqüência do que o contrário.
Essas considerações, no limite, conduzem à percepção de que, considerando
a natureza da formação e consolidação dos aldeamentos coloniais, novos “estrangeiros”
continuamente chegavam. Aqueles que já estavam estabelecidos, ainda que supostamente
“iguais”, eram muito diferentes.
São muitos os indicadores da preocupação colonial em aldear índios que não
pertencessem à mesma nação e também para que não se aldeassem juntas nações
inimigas. A despeito disso, a configuração dos aldeamentos demonstrou na prática
que elas não foram cabalmente seguidas.18
A chegada de novas populações, certamente, obrigou a rearranjos internos
o que permitiria compreender o clima de tensão permanente em vários deles, como

18
Diretório, § 78-79.

E spelhos P art i dos 147


é o caso dos existentes no rio Branco, como demonstrou o estudo de Nádia Farage.
Por outro lado, as populações aldeadas pertencentes à mesma nação, ou a grupos
lingüísticos aparentados, criaram situações não menos tensas. Solidamente estabelecidas
sobre suas redes de parentesco e hierarquia tribal, obstaculizaram o quanto puderam
a ação de Diretores e outros agentes coloniais.

148 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


CAPÍTULO 8

REMÉDIOS PARA A POBREZA: ROTEIROS DO DIRETÓRIO

Olhei para esta Cidade,


e vi o dilúvio de misérias e pobreza
em que flutuava uma grande parte
de seus habitantes...

Frei Caetano Brandão, Bispo do Pará

Sendo pois o remédio dos moradores


as missões nos provimentos de víveres,
quanto menos forem os índios,
e mais descaírem as missões,
tanto mais pobres se verão os brancos;

Pe. João Daniel, século XVIII

Não há estudo sistemático sobre a economia colonial do Estado do Grão-


Pará e Maranhão que corresponda em volume e intensidade de pesquisa à que
encontramos referente ao Estado do Brasil no mesmo período. A afirmação pode
soar com certa estranheza já que, aparentemente, estamos tratando da colônia brasileira.
Mas esta é uma unidade falsa e irreal e só é assim vista pelos que a enxergam com
olhos do presente. Certamente, não era essa a visão dos moradores do Grão-Pará e
nem mesmo das autoridades coloniais. Uma análise mais detida acerca das estruturas
administrativas coloniais reforça o caráter singular e diferenciado do Estado do Grão-
Pará e Maranhão.
Em se tratando de economia no Grão-Pará, é preciso começar por algumas
referências já clássicas; a primeira é, sem dúvida, é Ciro F. Santana Cardoso. Economia
e Sociedade em áreas coloniais periféricas é um trabalho de história comparada, inspirada

E spelhos P art i dos 149


no modelo francês, que busca relacionar as regiões da Guiana de colonização francesa
e o Grão-Pará português, realizando uma leitura cuidadosa das estruturas econômicas
e sociais das regiões em observação.1
Outros autores que, necessariamente, fazem parte do quadro são o
economista Roberto Santos e Dauril Alden. Ainda que o primeiro se concentre na
análise da economia amazônica do século XIX e meados do XX, suas considerações
preliminares ajudam a compor nosso quadro. O trabalho de Alden verticaliza suas
investigações no campo da história econômica, em especial, no trabalho que trata
da economia cacaueira na região amazônica.2
Por fim, Manoel Barata e Arthur Reis, historiadores tradicionais com obra
ampla sobre a vida colonial na região; não é preciso dizer que são trabalhos datados,
marcados por uma intervenção com grande peso à narrativa e à informação.3
A proposta aqui é buscar refazer as linhas gerais da organização da produção
de riquezas no Grão- Pará pombalino, considerando-a como pano de fundo essencial
para uma correta apreensão dos múltiplos personagens que se tenta tratar aqui.
Índios, mestiços, escravos e livres viveram e sobreviveram inseridos em diferentes
atividades produtivas, trabalhando para seu sustento e também o de seus senhores.
No que se refere em particular às populações indígenas, é importante recuperar
esses processos na medida em que um dos argumentos centrais para a incorporação
dessas populações ao mundo colonial era a sua função de fornecer a mão-de-obra
necessária ao funcionamento da economia colonial. Disputas intermináveis marcaram
as relações entre diferentes agentes coloniais pelo seu controle e, sem dúvida, os
resultados da economia dependeram do sucesso e da eficácia dessa incorporação.
Eram os verdadeiros “remédios para a pobreza” no Grão-Pará.
A presença de uma significativa mão-de-obra indígena não foi uma
exclusividade da Amazônia portuguesa no período colonial. Demonstra-o, de forma
suficiente, os importantes estudos de Stuart Schwartz sobre a economia açucareira na
Bahia e o de John Monteiro sobre São Paulo do Seiscentos. Longe de se constituir em
um episódio de curta duração ou, para usar a expressão de Schwartz, apenas um
“início malogrado” antes da introdução de escravos africanos, estes trabalhos - e toda
uma historiografia que vem sendo gestada nessa linha de pesquisa - apontam para o
caráter duradouro e para o papel-chave que o uso da força de trabalho dos índios

1
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas. Op. cit.
2
SANTOS, Roberto. História econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T. A. Queiróz, 1982.
3
BARATA, Manoel. Formação histórica do Pará. A obra de Arthur Reis sobre o período colonial é por demais extensa para
uma nota de rodapé. Assim sendo, remeto o leitor interessado à bibliografia.

150 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


desempenhou nos processos de acumulação interna e, de modo mais amplo, destacando
o fato de que o contato entre europeus e índios possibilitou “a criação de categorias e
definições sociais e raciais que caracterizariam continuamente a experiência colonial”.4
Não resta dúvida de que a Amazônia foi a região do país onde o emprego
do trabalho indígena foi mais longevo, alcançando mesmo o segundo quartel do
século XIX. Desta maneira, é mais do que lícito supor que seus processos de
diferenciação e hierarquização internos e, de resto, toda a dinâmica da sociedade que aí
se construiu, estejam profundamente informados por essa característica estrutural.5
Por outro lado, a economia colonial paraense se desdobrava em setores
bem diferenciados: a extração de produtos florestais destinados à exportação
responde por vinculações mercantis de maior rentabilidade no mercado internacional
e, a despeito mesmo da política pombalina de incentivo à agricultura, é o comércio
de “drogas do sertão” que dominará as pautas paraenses e garantirá as ações da
companhia monopolista de comércio. A extração florestal movimentará as vilas
pombalinas, deslocará trabalhadores para equipação de inúmeras canoas em direção
ao sertão, reduzirá a produção de alimentos, enriquecerá (em diferentes gradações)
diretores, cabos, tesoureiros e muitos negociantes de maior calibre.
A produção de alimentos (o “sustento ordinário”) é recorrentemente
apontado como modesta e deficitária. O cultivo de gêneros exportáveis como café,
algodão, cana-de-açúcar pode não superar os números das drogas, mas está presente
de maneira significativa, embora as lacunas historiográficas deixem muito a desejar
para permitir uma avaliação precisa do setor.
Mercadejar era uma constante no Pará. A rota de comércio interno que
ligava o Pará ao Mato Grosso através do rio Madeira também é importante e tem
a capacidade de estabelecer vínculos, ainda que precários, em áreas no mais das
vezes muito desconectadas entre si. A conjunção dessas atividades responderá pela
presença de uma elite mercantil importante que, progressivamente, estenderia também
suas ações pelos vastos sertões do Rio Negro aviando, acumulando e adquirindo
cabedais suficientes para possuir escravos e vastas propriedades.

4
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, p. 57,
1988. MONTEIRO, John M. Os negros da terra. Op. cit.
5
Sobre o uso do trabalho indígena na Amazônia do século XIX, ver HEMMING, John. Amazon Frontier. The defeat of the
Brazilian Indians. London: MacMillan, 1987. MOREIRA NETO, Carlos. Política indigenista brasileira durante o século XIX.
Tese de Doutorado. São Paulo: Rio Claro, 1971. COSTA, Hideraldo. Cultura, trabalho e luta social... Op. cit. SAMPAIO,
Patrícia. Os fios de Ariadne. Op. cit.

E spelhos P art i dos 151


A despeito mesmo da presença de imensos vazios, o quadro que emergiu
da operação de explorar a historiografia local ainda pouco conhecida, juntar
fragmentos, rever análises, incorporar dados novos, mais ainda insuficientes para
dar conta das possibilidades de pesquisa no Pará colonial, foi o de uma sociedade
muito mais complexa do que se poderia supor a partir de um enquadramento
limitativo que a define como região meramente extrativa.

DROGAS E CANOAS DO SERTÃO

– Padre, posso eu tomar


uma xícara de chocolate
todos os dias?
– Sim, filho.
– Tomaria duas?
– Sim, meu filho.
– Três talvez?
– Uma pipa, filho.

Dr. Reynaud e um jesuíta, século XVIII.

As drogas do sertão referenciam um conjunto bastante heterogêneo de produtos


extraídos da floresta e destinados à exportação. Incluíam frutos, folhas, raízes, resinas
e óleos de origem vegetal, empregados na alimentação, medicina, tinturaria,
construção naval, cordoaria, entre outras aplicações. Sob esta categoria, incluem-se
baunilha, breu, cacau bravo, canela-do-mato, castanha-do-Pará, cravo, madeiras,
óleos vegetais (andiroba, copaíba, cumaru, umeri), piaçaba, puxuri, salsaparrilha e
urucum, entre outros de menor freqüência.6
A partir do Seiscentos, a intensificação da atividade de coleta das drogas está
articulada a dois fatores importantes do ponto de vista metropolitano; de um lado,
as pressões sofridas no Oriente que levaram a Coroa a implementar esforços para
aclimatar espécies ou a identificar substitutos para especiarias orientais em outros
pontos de seus domínios, na tentativa de recuperar posições no mercado europeu

6
As expressões cacau bravo (Theobroma sp.) e cacau manso (Theobroma cacao) referem-se, respectivamente, ao cacau nativo
e ao cacau cultivado. Costuma-se incluir o cacau entre as drogas porque, pelo menos até 1784, a maior parte do produto
é oriundo da coleta e não do cultivo. Quanto aos usos medicinais dos produtos do sertão, a salsa era reputada como
eficiente para as doenças do “gálico”, o cravo usado nas odontalgias, o urucum como corante e também como medicamento
para as defluxões com tosse. Ver FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica, p. 125.

152 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


de especiarias. De outro, esse mesmo interesse permitiu incrementar o processo de
ocupação na Amazônia, na medida em que se concederam privilégios e isenções
fiscais variadas, transformando as drogas em um dos principais motivos que
justificavam a fixação de colonos no Grão-Pará, animados pelo apelo de riquezas
facilmente adquiridas com reduzido investimento de capital. No XVIII, a intervenção
promovida pela política pombalina, através da companhia de comércio, acentuaria
o caráter oficial dos incentivos fazendo com que as drogas apresentassem um peso
ainda mais significativo no comércio de exportação.7
A trajetória da expansão do comércio do cacau permite observar alguns
dos elementos desse processo. Dauril Alden, em seu estudo sobre a produção e o
comércio de cacau na Amazônia, divide-as em três momentos distintos: a que
denomina de “primeira era do livre comércio” (1730-1755); o “período do
monopólio” da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1756-1777)
e, por fim, a “nova era do livre comércio”(1778-1822).8
O primeiro período é marcado por intermináveis conflitos entre colonos e
missionários – concorrentes ferozes na disputa do lucrativo comércio cacaueiro. De
um lado, os missionários dispunham das isenções de direitos de exportação e também
de uma relativa facilidade na obtenção da mão-de-obra necessária para enfrentar a
colheita de cacau bravo nos sertões. De outro, colonos e moradores também entravam
na disputa por índios e créditos para aparelhar suas próprias expedições de coleta.9
Entre 1730 e 1744, o cacau representava 90,6 % do total das exportações
registradas em Belém e entre 1745 e 1753, respondia por 61 % da pauta. Nesse
disputado e rentável comércio, o próprio governador João da Maia Gama (1724 -
1728) tinha seus vencimentos vinculados à quantidade de cacau que exportasse para
o Reino e, possivelmente, essa relação tão estreita aliada às ordens reais de estímulo
à produção e comércio do produto fez com que esse e outros facilitassem a concessão
de licenças para canoas do sertão.

7
Cf. DOMINGUES, Ângela. Drogas do Sertão. In: SILVA, M. Beatriz Nizza da. Dicionário da história da colonização portuguesa.
Op. cit., p. 270.
8
ALDEN, Dauril. O significado da produção de cacau na região amazônica no fim do período colonial: um ensaio de história
econômica comparada. Belém: NAEA/UFPA, 1974. p. 31-32.
9
A intensa rivalidade comercial se materializa nas campanhas promovidas pelos colonos contra a atuação das ordens
religiosas. Em 1734, as câmaras de Belém e São Luís, em petições separadas, reiteraram ao Rei o ponto nevrálgico do
conflito: o controle dos índios pelas ordens religiosas deveria restringir-se aos assuntos espirituais porque, além de privar
os colonos de índios, os empregavam na colheita do cacau extraindo assim “mais drogas do que todos os leigos reunidos”
Cf. ALDEN, D. Op. cit., p. 35.

E spelhos P art i dos 153


Tamanha concorrência só poderia resultar em um agravamento das condições
de recrutamento das populações aldeadas. O efeito era imediato: aldeias sendo
sangradas de suas gentes e, no que se refere ao Rio Negro, uma crescente expansão
das tropas de resgate em busca de novos braços e corpos para os aldeamentos.
Esse é um dos elementos que Alden utiliza para explicar a prioridade da coleta do
cacau bravo em detrimento do cacau manso na região amazônica durante o séculos
XVIII: as expedições de coleta eram uma extensão das expedições de resgate que
tinham como objetivo primeiro o apresamento de índios.10
O “período do monopólio” (1756-1777) se iniciou com a criação da
Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. A empresa deveria atuar em
dois setores chaves para permitir a ampliação da produção de cacau manso e a
exportação global do produto resolvendo dois problemas cruciais: o do transporte,
através do estabelecimento de frotas regulares e o da mão-de-obra, introduzindo

DROGAS DO SERTÃO EXPORTADAS PELA COMPANHIA DE COMÉRCIO DO GRÃO-PARÁ

Fonte: Elaborada pela autora a partir de Manuel N. Dias. Op. cit., p. 317-362.

10
Dizem os contemporâneos que não havia “um só cidadão, agricultor ou homem do interior que não utilize esta liberdade
para mandar uma canoa colher as drogas e outros produtos que o sertão produz”. Cf. ALDEN, D. Op. cit., p. 31.

154 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


escravos africanos a preços acessíveis. Contudo sua real participação no incremento
do comércio cacaueiro é contestada.11
De qualquer modo, durante o período de atuação da Companhia, é inconteste
a liderança do cacau em sua pauta de produtos exportados. Entre 1756 e 1777, ele
constituía, em média, 61% de toda a pauta de produtos exportados pelos navios da
frota.12
Na fase que se abre com a extinção da Companhia em 1777 e vai até a
independência, chamada a “nova era do livre comércio”, o cultivo do cacau se ampliou
para outras regiões do país. Nesse período, o nível das exportações permaneceu
relativamente estável até meados de 1780. A partir daí, com o início do conflito entre
Inglaterra e Espanha (1796-1802) e o conseqüente declínio das exportações de cacau
da Venezuela, a comercialização do produto amazônico passou por um período de
expansão durante as primeiras décadas do século XIX. Porém, no final dos anos de
1820, os preços, que vinha sofrendo alta desde os anos de 1790, começam a declinar.13



As áreas de coleta das drogas eram variadas e se estenderam gradativamente,


consolidando-se com o estabelecimento de povoações que funcionassem como pontos
de abastecimento de víveres e índios. De amplíssima circulação, as canoas transitavam
pelos rios Madeira, Solimões, Javari e Negro. As ilhas do Delta do Amazonas também
eram freqüentadas, ainda que em menor intensidade. Como dizia J. Daniel, “parece
que as riquezas do longe são mais apetecidas”.
Rotineiramente, a montagem de uma canoa de negócio seguia os seguintes
procedimentos: os responsáveis pela canoa iniciam a preparar o provimento de fazendas
e mais apetrechos necessários com a chegada das frotas; adquirem bretanhas, chapéus,

11
O papel da Companhia na ampliação da produção e exportação do cacau gerou avaliações opostas. Manuel N. Dias
assegura que a presença do monopólio acelerou a produção de cacau entre 1755 e 1777, fundando seu argumento na
avaliação de que a economia amazônica pré-pombalina (ou pré-Companhia) era inteiramente de subsistência e foi o
monopólio que permitiu incentivar a produção e, ao mesmo tempo, estabelecer as vinculações entre a Amazônia e os
mercados europeus. Dauril Alden contra argumenta que, apesar de certas flutuações substanciais, estas se mantêm
semelhantes àquelas verificadas entre as décadas de 1745-1755 e por isso não é possível ratificar a posição de Dias, já que
a Companhia não contribuiu, significativamente, para o crescimento da produção de cacau na região. V ale conferir
diretamente os argumentos em DIAS, Manuel N. Fomento e mercantilismo: a Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará.
ALDEN, D. O significado da produção de cacau....
12
Os dados estão em ALDEN, D. Op. cit., Tabela IV, p. 54.
13
Cf. ALDEN, D. Op. cit., p. 41.

E spelhos P art i dos 155


panos de algodão, ferramentas, aguardente e outros artigos miúdos. Terminadas as
provisões, solicitavam a concessão da portaria que lhe autorizava a viagem e estabelecia
o número de índios necessários para a equipação.14
Se a saída fosse de Belém, o período mais comum era novembro; caso
houvesse interesse em estabelecer feitorias para fabricação de manteigas de tartarugas,
a saída era antecipada para o mês de setembro. Uma viagem aos sertões durava,
aproximadamente, de 6 a 8 meses.
Preparadas as canoas, partia-se para recolha dos índios concedidos nas aldeias
e povoações; esta é uma das etapas mais demoradas porque, de modo geral, é
necessário buscar índios em mais de um aldeamento para alcançar o número
concedido. Via de regra, eram cerca de 40 a 50 índios. Buscando reduzir a demora,
era comum enviar canoas menores a aldeamentos diferentes ou então armar as
canoas com seus próprios escravos parte da viagem até que se completasse o número
de índios nas diversas missões, enviando-os de volta enquanto seguiam a viagem.
Até aqui, as despesas estão estimadas em mais de 300$000, incluindo o aluguel ou a
compra de uma canoa suficiente para a expedição, “razão porque nem todos podem
ir por não poderem com tantos gastos”.
O proprietário da canoa não costumava acompanhar a expedição. Estas
eram normalmente comandadas por um cabo de canoa, “homens expeditos e já
experimentados por cabos de suas canoas aos quais chamam de sertanejos e vivem
alguns anos neste ofício até engrossarem em cabedais, com que possam menear
outro modo de vida”15. O cabo de canoa podia ser branco, mas o piloto, via de
regra, era um índio ou um mestiço denominado de jacomaúba.16
Nas missões, apresentavam-se as portarias aos missionários e, através do
Principal ou de outro oficial da povoação, se lhes mandava chamar os índios. A
preferência recaía sobre os maiores de 20 anos, ainda que a partir dos 13 anos os
homens já poderiam ser incluídos na distribuição. Enquanto se aguardava a chegada
dos trabalhadores, adquiriam farinhas para provimento (cerca de 200 a 300 alqueires).
Identificados os índios, procedia-se ao pagamento. Por toda a viagem,
recebiam os índios 12 varas de pano grosso, 2 a 3 varas de bretanha, calções, um

14
A descrição aqui feita segue a do Pe. João Daniel. Tesouro Descoberto... p. 56-63.
15
Idem, p. 65.
16
Esta última informação está em Fr. João de S. José. Viagem e visita do sertão em o Bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763.
p. 52.

156 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


barrete ou chapéu, uma porção de sal, 6 agulhas e “nada mais, antes às vezes de
menos”. Os índios levavam consigo algumas varas de pano, o chapéu e o restante
entregavam às mulheres. Levam ainda o remo, arco, flechas, maqueira, balaio com
camisas e calções, linhas e agulha e uma “cabacinha de jiquitaia”.
A partir daí, a rotina é extenuante. Longas horas de canoa em que vão
variando os modos de remar segundo o compasso dos proeiros:

Ainda que sejam muitos [...] ao sinal do compasso todos os


metem, puxam, e tiram da água ao mesmo tempo como se fosse
um só remo, e juntamente ao golpe dos remos vão dando urros,
e fazendo gritarias tais que por elas se sentem muito ao longe
estas canoas.17

Em pouco tempo, por conta do esforço, os índios estão remando nus, sob
o sol ou sob a chuva. Se falta alimento, usam da tiquara e, para disfarçar a fome,
costumavam apertar a cintura com um cipó ou, no caso das canoas do rio Negro,
recorrer às folhas de ipadu.18
Além da coleta das drogas – principalmente cacau, salsa e cravo –, o trabalho
ainda pode incluir o estabelecimento de feitorias para fabricação de manteigas de
tartaruga, de salga de peixe, serrar madeira e preparar óleos vegetais. A feitoria
requeria um estabelecimento temporário com a construção de palhoças, jiraus e
tupés de acordo com a finalidade a que se destina e a preparação de terreno para
roças de subsistência.
Se a expedição foi bem sucedida, prepara-se para retornar entre os meses
de junho e agosto para alcançar o tempo da chegada das frotas que devem levar os
produtos para Europa e providenciar o reabastecimento de apetrechos para as
próximas expedições.
Os cabos recebem 1/5 de toda carga da canoa. A crer no relato de J. Daniel,
eles são os primeiros e maiores beneficiários da viagem porque não fazem inversões
para equipação das canoas sendo os quintos a paga de seus trabalhos, “lucro puro e
limpo”. Além dos quintos, os cabos recorriam a outras estratégias para aumentar
seus lucros: costumavam empregar o trabalho dos índios nas horas de descanso ou

17
Pe. João Daniel. Tesouro descoberto no rio das Amazonas, p. 59.
18
Tiquara é uma mistura de farinha com água, eventualmente, acrescida de sal. Ipadu (Erythroxylum coca) é a designação em
nheengatu de um arbusto cultivado para uso ritual entre os índios do alto rio Negro. Cf. RIBEIRO, Berta. p. 241, 1995.

E spelhos P art i dos 157


dias santificados na recolha de produtos para si; aproveitavam-se das paradas nos
sítios e missões para vender seus próprios produtos embarcados nas canoas, ou,
ainda preparavam uma canoa sua para acompanhar a expedição, usavam dos índios
concedidos e, ao final, recebiam os quintos da expedição e os lucros da sua própria
canoa.19
Lembrando que o informante jesuíta trata do período anterior à
implementação do Diretório, é importante recuperar quais as rotinas que foram
mantidas sob a égide da nova legislação. O Diretório considera que o comércio dos
sertões é o mais importante e o mais útil ramo do comércio do Estado e cabe aos
Diretores “empregar a mais exata vigilância e incessante cuidado em introduzir e
aumentar o referido comércio nas suas respectivas povoações.” Para tanto, devem
observar a “vocação” das suas povoações para este ou aquele gênero, com o objetivo
de reduzir os custos e também diversificar a produção do Estado como um todo.20
Os índios da povoação seriam persuadidos a se engajarem nos negócios do
sertão porque, a partir desta nova legislação, os resultados desse negócio seriam
distribuídos proporcionalmente ao trabalho de cada um dos envolvidos. Uma
proporção que logo se revela diferenciada; os Principais e outros Oficiais da povoação
estariam isentos de ir ao sertão, dispondo de 2 a 6 índios por canoa para realizarem
a coleta para si, sendo obrigados a satisfazerem o salário dos mesmos índios na
forma da lei.
As despesas com a equipação das canoas cabia às Câmaras no caso das vilas
e dos Principais, em se tratando de lugares, recebendo ambos a prerrogativa de
enviarem de 10 a 12 índios para fazer o negócio para seu proveito.21
Considerando os inúmeros problemas com os cabos de canoa (alguns aqui
mencionados), a sua nomeação deveria ser acompanhada pelos Diretores para que
a escolha das Câmaras ou Principais recaísse sobre indivíduos de “conhecida
fidelidade, inteireza, honra e verdade.” Identificados e nomeados, obrigariam as
suas pessoas e fazendas pelo que recebessem para a canoa e pelos prejuízos que seu
descuido ou negligência provocassem.
No retorno da canoa, os Diretores fariam uma devassa para verificar se os
cabos cumpriram as determinações do negócio, se não distraíram os índios em seus

19
Pe. João Daniel, Idem, p. 65-68, passim.
20
Diretório § 46.
21
Diretório, §52.

158 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


serviços particulares, se não os trataram com violência, se não negociaram os produtos
das canoas com moradores no retorno à povoação, entre outros “desvios” possíveis.
Cumprido esse rito, os diretores fariam o levantamento do que foi apurado
e, com as guias respectivas, o cabo se encaminharia para Belém para apresentar-se à
Tesouraria do Comércio dos Índios que, por seu turno, negociaria os gêneros e, do
arrecadado, procederia aos pagamentos: os dízimos da fazenda, as despesas da
expedição, os 20 % do cabo, os 16 % dos diretores, os 3% do Tesoureiro e, o que
restasse, entre os índios envolvidos no negócio.22
Uma última ressalva acerca dos “lucros” dos índios: considerando sua
“rusticidade e ignorância”, seus dinheiros não lhes deveriam ser entregues diretamente
por conta de sua incapacidade em administrá-los; cabia ao tesoureiro adquirir as
fazendas de que os índios necessitassem. Como dizia o Diretório,

Desse modo acabando de compreender com evidência estes


miseráveis índios a fidelidade com que cuidamos de seus interesses,
e as utilidades, que correspondem ao seu tráfico, se reporão
naquela boa fé de que depende a subsistência, e aumento do
Comércio.23

Opinião diferente expressava o ouvidor Pestana com relação a essas partilhas


e compras efetuadas em nome dos índios estando já o Diretório em franca aplicação.
Assegura o ouvidor que os contratos, presumivelmente celebrados com base na
liberdade dos contratantes, eram um engodo porque os índios nada escolhiam e
nem lhes adquiriam os gêneros de que necessitavam. Assim, a partilha produzia
situações em que se davam

um espadim a quem não tem, nem casaca, nem vestidos; umas


meias, a quem não traz sapatos, e nunca usou desse abrigo;
várias fitas, que só pelas cores enganam; partidas de cetim a quem
em suas palhoças, apenas terá uma corda, onde pendurem e
guardem semelhantes alfaias;24

22
Idem, §§ 55-56. A remuneração do Tesoureiro não está prevista no Diretório, porém ela consta dos Mapas da Tesouraria
do Comércio dos Índios aqui utilizados e também da informação prestada pelo ouvidor Antônio Pestana da Silva.
23
Diretório, § 58
24
SILVA, Antônio José Pestana da. Meios de dirigir o governo temporal dos Indios. In: MORAES, A. J. Mello. Corographia
Historica, Chronographica, Genealogica, Nobiliaria e Politica do Imperio do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Americana,
v. 6, p. 21. , 1858-1860, (BNRJ - Mic. 74, 5, 21).

E spelhos P art i dos 159


É preciso lembrar que as determinações aqui expostas referem-se apenas às
canoas das povoações e não às canoas armadas por particulares. Não tenho notícias
de devassas de cabos particulares e outros procedimentos aqui explicitados com
relação às canoas dos moradores. Ao contrário, com relação a estes, a documentação
aponta antes para a continuidade dos procedimentos praticados durante a
administração missionária; persistia a distribuição dos índios através das portarias do
governador, a concessão dos quintos das canoas aos cabos, as faixas etárias dos
trabalhadores a serem distribuídos e o valor dos salários pagos.25
Em caso de portarias, cabia aos Diretores receber o salário em nome dos
índios; do valor depositado, recebiam os trabalhadores apenas 1/3; os 2/3 restantes
eram depositados como garantia dos moradores em caso de fuga ou deserção.
Se alguma diferença havia, era na forma da repartição dos índios aldeados;
durante o Regimento das Missões, apenas 1/3 dos índios das missões poderia ser
distribuído aos moradores, enquanto o Diretório garante a metade dos aldeados como
passível de distribuição. Diferença, convenhamos, substantiva se agregarmos ainda o
fato de que os alegados impedimentos causados pelos missionários estavam
definitivamente removidos.26
Tudo parecia previsto no extenso Diretório e o crescimento do Estado era
questão de tempo. Não era bem assim, para o desencanto dos entusiastas da administração
pombalina. MacLachlan afirma que a maior disponibilidade de trabalhadores índios
para os colonos era apenas teórica, especialmente após o aumento de salários de 1773.
Durante o regime das missões, apenas a metade dos salários deveria ser paga adiantada
e, no Diretório, o valor total dos salários ficava sob a custódia dos Diretores.
Apesar da garantia de ter parte do depósito ressarcido em caso de fuga, o
aumento salarial contribuiu para minimizar essa vantagem e, no conjunto, representava
uma alta inversão inicial na montagem das canoas ou outros serviços, o que restringia o

25
Os salários permaneceram com os valores fixados em 1751 e apenas em 1773 foram aumentados através de um bando de
João Pereira Caldas. MacLachlan considera que os baixos salários arbitrados e também a progressiva competição por
trabalho livre pressionaram a administração a aumentar os salários. Como exemplo, lembra que um piloto poderia chegar
a receber o dobro dos salários oficiais, se contratado por particulares. Cf. MACLACHLAN, Colin. Indian Labor Structure in
the Portuguese Amazon, 1700-1800. In: ALDEN, Dauril. Colonial Roots of Modern Brazil. University of California Press,
1973. p. 210.
26
Uma das estratégias usadas pelos missionários era a permuta de índios entre aldeias da mesma ordem. Como a legislação
limitava a retirada de índios que tivessem acabado de recolher às povoações, os missionários removiam as populações de
um aldeamento para outro, dificultando o acesso dos colonos aos índios. Cf. AMOROSO, Marta. Guerra Mura no século
XVIII,op. cit.

160 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


acesso da maior parte dos colonos aos índios das povoações. Desta maneira, aqueles
que possuíam maiores fazendas eram os maiores consumidores do trabalho dos índios e,
por seu turno, apenas o acesso ao trabalho dos índios permitia uma maior acumulação
de capital. Fundado sobre estas bases, o sistema ajudou a reforçar a concentração de
riqueza das famílias estabelecidas.27
A saída para colonos que não dispunham de capital suficiente para obter
índios legalmente era, evidentemente, a ilegalidade; isto significava manter os índios
além do tempo que foram concedidos, solicitar índios com a justificativa falsa de
que seriam empregados no serviço real e, ainda, aplicar diferentes métodos de
persuasão junto aos diretores para obter índios ao arrepio da legislação.28
Desde 1754, já aparece a preocupação das autoridades do Grão-Pará em
coibir as estratégias pouco ortodoxas dos moradores em manter os índios em suas
propriedades, entre elas estão não só os “acordos” com Diretores que terminavam
relaxando no controle dos tempos de concessão, facilitando a concessão de
trabalhadores sem portarias adequadas, mas também as chamadas práticas de
“aliciamento” e “sedução” que os próprios moradores empregavam para convencer
os índios a saírem de uma povoação ou mesmo abandonar o senhor temporário
para o qual estivesse cedido. Em 1764, o aliciamento de índios, tal como definido
aqui a partir da documentação, é considerado um “crime abominável” e, como tal,
sujeito aos rigores das multas e recolhimento à prisão.
Em 1780, um longo documento do Governador José Nápoles Tello de
Menezes dirigido aos Diretores dá conta das dimensões assustadoras dos descaminhos
dos índios das povoações pelos colonos com a aquiescência culposa dos mesmos
Diretores. Nessas ordens, o governador estabeleceu punições rigorosas para aqueles
Diretores que permitissem a permanência dos índios além do tempo prescrito nas
portarias de concessão e também pela cessão de índios sem a vista da referida
portaria. Apuradas tais infrações, as penas atingiam em cheio os Diretores com a
suspensão do sexto acrescida de 2 meses de cadeia; no segundo caso, os
“receptadores” também eram punidos com a multa de 5$000 (cinco mil-réis) por

27
Cf. MACLACHLAN, C. The Indian Labor Structure... p. 210-211.
28
Em representação à Rainha, o Bispo Brandão menciona algumas dessas táticas. Cf. AMARAL, Antônio Caetano do. Memórias
para a história da vida do venerável Arcebispo de Braga, Frei Caetano Brandão. Op. cit., p. 396-397.

E spelhos P art i dos 161


cada índio assim identificado e mais 1 mês de cadeia para aqueles que estivessem
retendo os índios ilegalmente.29
A produção das drogas apresentava ainda dois problemas recorrentes: a
manutenção da qualidade dos produtos por conta da sua freqüente adulteração e
também sua coleta indiscriminada como é o caso do cacau colhido ainda verde,
não só para apressar a montagem da carga das canoas, mas também devido ao fato
de que as sementes verdes eram mais pesadas. Na colheita do cravo, a árvore era
totalmente derrubada para retirada da casca, e a salsa era arrancada até as raízes
comprometendo sua reprodução. A. R. Ferreira afirma que os índios ainda usavam
da “malícia” de deixar as raízes arrancadas penduradas nas árvores “porque tomaram
eles, que tal salsa se extinguisse já por uma vez, para assim verem, se também se
extingue a perseguição, que por esta parte experimenta a sua preguiça, e o seu amor
à ociosidade”.30
Uma boa explicação para esse artifício aparece em João Daniel que reputa
a colheita da salsa como uma das mais difíceis e trabalhosas para os índios porque
sendo gênero de terra firme, sua coleta implicava a internação nas matas onde
dispunham de menor quantidade de alimentos e, para retirá-la, ainda deveriam
desviar-se dos seus espinhos para alcançar as raízes. Como se pode perceber, pouco
tempo restava à ociosidade na colheita da salsa.31

CONSTRUINDO REDES DE COMÉRCIO

As ações dos comerciantes estabelecidos no Grão-Pará não se limitavam


ao comércio com a metrópole. Pelo contrário, a expansão portuguesa no vale
amazônico entranhava-se na intricada rede hidrográfica e atingia tanto os sertões do

29
O termo “receptadores” consta do referido documento. Cf. 1780: Carta Circular e Recordatoria do Capm General do Estado
do Grão-Pará e Rio Negro ordenando aos Comtes e Diretores das Villas do Estado que dentro de suas atribuições sejam
zelosos na administração dos Índios evitando que se cometam abusos e excessos contra os mesmos. In: Arquivo do
Amazonas. Manaus: Imprensa Oficial, v. 1, n. 2, p. 45-51, 1906.
30
Levar frutos verdes de cacau significava também comprometer a concorrência “visto que quanto mais rara for a colheita dos
segundos, tanto melhor se reputará a dos primeiros”. FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica. Op. cit., p. 126.
31
"Todo trabalho aborrecido é desviarem-se das hastes e seus terríveis espinhos; e não terem nada, que neste trabalho
comam: vão levando em feixes estas raízes delgadas, e compridas para a feitoria onde as secam, e atam em manípulos”. Pe.
João Daniel. Tesouro Descoberto... p. 62, v. 2.

162 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Rio Negro quanto descia pelos rios Madeira e Guaporé, vinculando o Grão-Pará
ao Mato Grosso em uma impressionante rede de comércio monçoeiro.32
Mas, no final do século XVII, o conhecimento do turbulento rio da Madeira
estava limitado a uma missão jesuíta estabelecida na aldeia de Tupinambaranas. Poderia
bem ser, como definiu J. Lúcio d’Azevedo, “a divisória do mundo policiado com o
selvagem”, mas não era o único laço das populações indígenas que o habitavam com o
mundo colonial.33
Na primeira década do século XVIII, a ação da Coroa na região do Madeira
será dirigida em duas frentes: o incentivo ao estabelecimento da missão jesuíta e a presença
de tropas de guerra para combater os índios que estavam impedindo tanto o trabalho
de catequese, quanto a coleta de drogas do sertão. Nesse período, os jesuítas reportavam
uma intensa movimentação de colonos de Belém na área colhendo cacau, cravo e cativos.34
A segunda parte da ação real não se fez esperar muito. Os Torá agiam
intensamente na região, tomando de assalto as canoas de coleta de cacau e cravo e,
contra eles é enviada uma tropa de guerra que, em 1716, praticamente extinguiu a grande
população dos Torá.35
Vencidos os Torá, reduzia-se a pressão sobre o rio. Seis anos depois, é a vez da
expedição de Francisco de Melo Palheta, que transpôs 23 cachoeiras do Madeira e
chegou até a missão espanhola de Santa Cruz de Los Cajuabas. Ainda assim, a navegação
pelo rio Madeira foi proibida entre 1733-1737. O desconhecimento das rotas fluviais e
as questões de fronteira contribuíam para essa interdição assim como a preocupação em
impedir o despovoamento do Pará em função das minas descobertas no Mato Grosso
em 1734, evitar o contrabando de ouro e o comércio com espanhóis.36

32
A importância dessas redes de circuito interno estão discutidas em Sérgio B. de Holanda que analisou o sistema de
monções que ligava o Mato Grosso a São Paulo. Ver HOLANDA, S. B. Monções. São Paulo: Brasiliense, 3. ed. ampliada,
1990. Com relação às monções do Pará, o mesmo autor menciona a tese de DAVIDSON, David. Rivers & Empires: the Madeira
Route and Incorporation of the Brazilian Far West, 1737-1808. Infelizmente não me foi possível localizar esse trabalho.
33
Em 1683, o jesuíta J. Peres vai ao Madeira até os Iruri e, no retorno a Belém, reporta a presença de ferramentas holandesas
na região que chegavam ao Madeira pelo Negro, em uma extensa rede de comércio intertribal que vinculava as populações
de ambas as regiões. Cf. AMOROSO, Marta R. Guerra Mura... Op. cit., p. 28-35.
34
A missão dos “Irurises” é formada em 1688, mas, em 1691, foi abandonada por conta de sucessivas doenças de seus
missionários. Em seguida, são fundadas novas missões em Abacaxis e Canumã, situadas nos rios de mesmo nome, sendo
que a primeira foi desdobrada e mais tarde, passou à margem esquerda do Madeira. Em 1712, nova missão é fundada entre
os rios Jaruary e a primeira cachoeira do Madeira. Era Santo Antônio, mais tarde, Trocano e, em 1756, Vila de Borba.
35
Os sobreviventes da violenta ação comandada por João de Barros da Guerra foram aldeados em Abacaxis. Ver D’AZEVEDO,
João L. Os jesuítas no Grão-Pará. Op. cit., p. 269.
36
A narrativa da viagem de Palheta está em ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial. Op. cit., p. 305-316, 1982.
Sobre a proibição da navegação, ver LAPA, J. R. Amaral. Op. cit.

E spelhos P art i dos 163


Não há outra notícia de tentativas lusas de retomar a difícil navegação do Madeira
até 1742 quando Manuel Félix de Lima, estabelecido na região das minas, acompanhado
de cerca de 50 pessoas, alcança o Guaporé e depois o Madeira, chegando às missões
jesuítas e daí até Belém.37
1749. Novos sucessos e derrotas pelo Madeira. José Leme do Prado sai do
Mato Grosso retomando a rota de Manuel Lima e gasta 52 dias de viagem até
Belém. Nesse mesmo ano, utilizando as informações dos irmãos Leme, o sargento-
mor João de Souza e Azevedo, depois de uma viagem do Mato Grosso até o rio
Tapajós, realiza a mesma viagem pelo Madeira.38
O dito Azevedo era natural do reino e passou à Capitania do Mato Grosso
como contratador do sal. Estabelecido em Itu, onde manteve residência e negócios,
também fixou-se no Mato Grosso com fazendas e também nas minas. Com a
queda da produção, saiu em busca de novas jazidas, estabelecendo-se
temporariamente no rio Arinos, onde encontrou novas jazidas em um de seus braços,
assentando-as com o nome de Santa Isabel. Não podendo voltar contra a corrente
do Arinos, “depois de várias aventuras e sucessos veio a dar nas cabeceiras do
Tapajós.” Além do Madeira, fez outras explorações em São Paulo, Mato Grosso e
Pará, principalmente nos rios Paraguai e Amazonas.39
Segundo o sargento, sua viagem até o Pará em 1749 era uma missão oficial:
deveria entregar correspondências ao governador do Pará. Porém, ao tentar retornar
com sua comitiva de mais de 36 pessoas, entre “escravos e brancos pagos a sua
custa”, não lhe foi concedida a licença de saída porque o governador do Pará o teria
requisitado para o serviço das Demarcações. Nos anos seguintes, novos encargos

38
João de Souza Azevedo é um personagem particularmente festejado pela historiografia. João Lúcio o define como “o mais
arrojado sertanejo de que rezam os anais paraenses”. Arthur Reis não lhe economiza elogios; um espírito aventureiro
incontido e um “grande conhecedor da hinterlândia naquelas alturas e seus serviços não poderiam ser mais dispensados.”
Manoel Barata vai mais longe, atribuindo-lhe o pioneirismo na descoberta da rota do Madeira.
39
Lapa afirma que Azevedo nasceu em Porto Feliz (SP). Arthur Reis assegura que ele é natural de Itu. O Bispo João de S.
José, por seu turno, afirma que o sargento é natural de Vayrão, região do Minho. Esta última informação parece ser a mais
precisa, considerando que o Bispo a obtém do próprio Azevedo com quem se encontrou em sua viagem pelo bispado.
Neste mesmo relato, estão as informações prestadas por Azevedo ao Bispo acerca da sua “descoberta” do Tapajós. Cf. João
de S. José. Viagem e visita do Sertão no Bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763. p. 81-82 e p. 92-3.
40
Depois de tantas despesas e serviços, recorreu ao Rei solicitando soldo e patente de Sargento-mor em 1752 e lhe é
concedida uma provisória. Em 1762, novamente dirige-se ao rei e solicita ampliação de seus benefícios: pede que o soldo
lhe seja pago a partir de 1750, que a patente lhe seja concedida por toda a vida, além de um hábito da Ordem de Cristo
para seu filho Antônio e uma pensão para sua viúva como paga de todos os seus serviços. Ver REIS, Arthur. Paulistas na
Amazônia e outros ensaios. Doc. IX, p. 327-329

164 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


oficiais. Em 1753, acompanha o novo ouvidor até o Mato Grosso, novamente com
“considerável despesa com 40 escravos e brancos a quem pagou de sua fazenda”.
Em 1760, retorna duas vezes em missão oficial até a região das minas “em canoas
próprias”.40
Aparentemente, uma ilibada folha de serviços possuía o sargento. Mas essa
não tinha sido a conclusão do Provedor da Fazenda do Pará, responsável pela
averiguação de seus pedidos de ressarcimento quanto a seus trabalhos na demarcação
em 1750. Fazendo a averiguação dos gastos que teria tido o dedicado sargento e
ouvindo várias testemunhas, a conclusão era um tanto diferente do que argumentava
o reclamante: Azevedo tinha aproveitado os índios recebidos para abrir as roças na
colheita de drogas e madeira para si e suas canoas voltaram carregadas de cravo,
salsa e madeira serrada. O resultado da averiguação faz o provedor argumentar,
com indignação, que “de nenhuma sorte lhe era lícito misturar o serviço de S. Mag.
com o seu.” Mendonça Furtado, governador do Estado, relativiza as constantes
reclamações do sargento-mor: “diz que experimenta gravíssimos prejuízos mas não
diz os lucros que tem feito com as drogas do sertão.”41
João dava constantes provas de sua independência. Embora preso a um
termo de compromisso de que não retornaria ao Mato Grosso pelo Madeira sem
autorização, deixou Belém indo a Cuiabá e, ao retornar não foi punido. Furtado
apresenta quatro razões para sua decisão: a primeira era a publicação da ordem de
liberação do caminho do Madeira para o Mato Grosso quando do retorno do
sargento à cidade; em segundo lugar, a multa a ser paga o “arruinaria totalmente e o
colocaria de má-fé comigo quando necessitávamos dele para a demarcação dos
rios Madeira e Guaporé”; em terceiro, o novo ouvidor deveria ser conduzido ao
Mato Grosso e ele era “a única pessoa que aqui havia para o poder conduzir” e, por
fim, da desobediência do sargento “ tiramos o bem de sabermos que em seis meses
de tempo se pode ir e vir das minas de Mato Grosso.”42
A navegação do rio Madeira só foi permitida em 1752 ainda que, desde
1749, autoridades coloniais do Mato Grosso solicitassem sua liberação. Liberado o

41
Cópia de Informação do Provedor da Fazenda Real em um requerimento de João de Souza Azevedo. In: REIS, Arthur. Idem,
Doc. V, p. 318-325.
42
Idem Ibdem, p. 240-241. Azevedo não era apenas necessário, mas revelava-se um empreendedor! Em 1753, apresentou
projeto para uma fábrica de anil onde solicitava índios, terras e a exclusividade de 10 anos. Em 1778, seu nome volta
aparecer entre os acionistas e devedores da Companhia de Comércio do Grão-Pará. Cf. Correspondência de 31.01.1754.
ABAPP. Belém: Typographia Lauro Sodré, Tomo 3, 1904. LAPA, J. R. Amaral. Op. cit., p. 27.
43
Cf. LAPA, J. R. Amaral. Do comércio em área de mineração. p. 28-29.

E spelhos P art i dos 165


Madeira-Guaporé, proibiu-se qualquer outra rota de ligação entre as duas capitanias
que não esta; interdição que persistiu até 1790 quando se facultou a navegação do
Pará com Goiás, através do Tocantins, e com o Mato Grosso através dos rios
Xingu e Tapajós43
Se os caminhos para o Mato Grosso estavam estabelecidos, as questões que
preocupavam os administradores coloniais diziam respeito à questão das fronteiras
com Espanha, em especial, a complexa área do Madeira-Mamoré-Guaporé que
não estava plenamente definida no Tratado de 1750 e, também, ao comércio com
a região das minas. Com relação a este último ponto, é importante lembrar a
coexistência dos sistemas de monções Tietê -Paraná e Madeira - Guaporé: o primeiro
atendia a Cuiabá e povoações do sul do Mato Grosso e as monções do norte
tinham Vila Bela como pólo, atendendo às povoações mais a oeste da Capitania.
Das idas e vindas de nosso sargento, é possível vislumbrar um pouco mais
do que sua inegável capacidade de fazer fortuna com a ajuda da fazenda real. Homem
da fronteira e hábil no manejo de “muitos instrumentos” é o que se pode concluir
de suas atividades na coleta de drogas do sertão, do uso do trabalho dos índios, de
sua constante movimentação pelos rios amazônicos, de sua crescente importância
para demarcação das fronteiras e, como não deixar de notar, de sua independência
crescente com relação às autoridades coloniais. Cada vez mais necessário, por mais
de 50 anos ele transita entre rios, sertões e minas, negociando e administrando seus
extensos negócios que atravessavam o país indo de Belém a Itu.
Sua trajetória ajuda a compreender melhor a natureza e a complexidade das
variáveis em jogo na abertura e consolidação de uma rota fluvial, mas não apenas
isso. Em certa medida, nela também aparece a fluidez aberta na fronteira e que
possibilita a hipertrofia do poder privado em contraponto à autoridade real nos
sertões.44

“COSTAS À CHUVA, PROAS À CORRENTE”: MONÇÕES DO GRÃO-PARÁ

44
Sobre essa questão, ver MONTEIRO, John M. Sal, justiça social e autoridade colonial. Comunicação apresentada na XXI
Reunião da Latin American Studies Association - LASA, Chicago, setembro/1998.
45
Os barcos eram descarregados e puxados de onde fosse possível: das margens, sobre as rochas ou do meio das águas,
enquanto os volumes eram carregados por terra. Era possível também acomodar a embarcação sobre toros de madeira para
facilitar o seu deslocamento. Algumas cachoeiras permitiam a travessia a remo, mas com as canoas vazias. Esse tipo de
travessia obrigava a uma equipagem de trabalhadores em muito superior ao usual.

166 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


E spelhos P art i dos
MAPA DO COMÉRCIO DO MADEIRA

Fonte: Adaptada de John Hemming. “Os Índios e a Fronteira no Brasil Colonial” In L Bethell (Org.) América Latina Colonial. SP: Edusp., 1999, Vol. II, p.445.

167
As frotas que se dirigiam ao Mato Grosso não tinham uma tarefa fácil
diante de si. Uma distância estimada em 770 léguas, acentuada pela corrente oposta
e pela grande quantidade de cachoeiras a transpor, sendo que parte delas deveria ser
atravessada à sirga.45
Quando se observa o fluxo do comércio monçoeiro para Mato Grosso,
não é difícil perceber que apenas pessoas de “grosso cabedal e crédito” poderiam
assumir os riscos da empresa. Os obstáculos do caminho limitavam o tamanho das
canoas que poderiam vencê-lo a, no máximo, 1200 arrobas enquanto que as canoas
de negócio que viajavam pelos sertões poderiam chegar até a 3000 arrobas. Assim,
se formavam frotas compostas por embarcações que variavam entre 400 a 1200
arrobas, dividindo-se a carga, os suprimentos e os trabalhadores que representavam,
em média, um homem para cada 10 arrobas.46
A aquisição de mercadorias era feita adiantada no Pará; parte dos porões
das embarcações estava comprometido com os apetrechos necessários para vencer
as cachoeiras, incluindo-se ferramentas para reparos. Ainda era necessário adquirir
escravos ou requisitar índios para remeiros; responsabilizar-se pelos salários dos
pilotos e práticos do rio, providenciar os suprimentos suficientes já que, depois de
Borba e especialmente no trecho encachoeirado, não existiam mais povoações que
pudessem fornecer os víveres e índios para reposição de eventuais perdas.
Esta era a parte mais complexa da jornada porque, nesse ponto, reduzia-se
muito o número de remeiros índios que tinham sido recrutados; não só costumavam
desertar, mas também morriam em razão das sezões, semelhantes “as de longo
curso do alto mar e dos fluxos de sangue”. Em certas ocasiões, a falta de alimentos
e de trabalhadores era tão grave que obrigava os comboieiros a retornarem a Borba
para reabastecimento “com despesas, incômodos e perigos duplicados”.47
O recrutamento dos trabalhadores parecia ser mais insuperável que a
passagem das cachoeiras. Na medida de suas possibilidades, os índios se recusavam
a realizar a rota, ou escapando do recrutamento na sua própria povoação ou
desertando no meio do caminho. Mesmo assim, era possível acontecer diferente,

46
O número elevado de pessoas está diretamente relacionado aos trabalhos de travessia das cachoeiras quando um barco
pequeno de passageiros de 400 arrobas necessitava de cerca de 40 a 60 homens para trazê-lo à sirga. Ver LAPA, J. R.
Amaral. Do Comércio em área de mineração. p. 109.
47
COUTINHO, Francisco de Souza. Informação sobre o modo porque se efetua presentemente a Navegação do Pará para Mato
Grosso e o que se pode estabelecer para maior vantagem do Comércio e do Estado. ANRJ, Códice 101, v. 2.
48
Idem, § 9º

168 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


em especial quanto transformavam em guias e pilotos altamente qualificados para a
jornada.48
É bem certo que o recurso a esses trabalhadores colaborava para reduzir
custos já que seus salários eram menores permitindo que um maior número de
pessoas se habilitasse a um comboio. Contudo, na prática, representavam grandes perdas
por conta de suas repetidas fugas. A saída mais segura era a equipação das canoas com
escravos negros, reduzindo-se o número de índios apenas ao necessário de pilotos e
práticos experientes na navegação das cachoeiras. Mas esta era saída para poucos. O alto
preço dos escravos limitava a formação de frotas àqueles que efetivamente possuíssem
cabedais suficientes para fazer frente a mais essa inversão inicial. De qualquer maneira, o
investimento alto terminava sendo compensado porque os escravos não fugiam dos
comboios com a mesma regularidade dos índios, contidos que eram “pelo medo do
gentio e pelo País que desconhecem”. Além disso, não se pode esquecer que eram uma
mercadoria a mais – e bem valiosa – para o mercado do Mato Grosso.49
Com tantas dificuldades e restrições, é impossível deixar de notar que uma rota
tão complexa só poderia ser igualmente rentável, e certamente os preços dos gêneros
negociados no Mato Grosso compensavam os enormes avanços de cabedal dos
comerciantes do Pará.
Uma viagem completa das monções podia estender-se por mais de um ano,
sendo que apenas a navegação em si consumia entre 6 e 7 meses; apenas para vencer as
cachoeiras se gastava de 3 a 4 meses. Sem contar com o tempo despendido para a
montagem da expedição no porto de origem, considere-se ainda o tempo de permanência
no destino, necessário não só para dar vazão às mercadorias embarcadas mas também
para reiniciar os preparativos do retorno e aguardar o regime próprio das águas e dos
ventos.
Na viagem de subida, a carga era composta por manufaturas importadas, em
especial, durante o período de atuação da Companhia Geral de Comércio: tecidos,
utilidades domésticas, ferramentas e instrumentos de trabalho, adornos, armas, munições
e outros provimentos como enxofre, pólvora e metais. Além desses, incluíam gêneros

49
No final do século XVIII, o preço de um escravo estava entre 130$000 e 150$000 réis enquanto que o jornal de um
carpinteiro ou calafate índio recrutado nas povoações variava entre 120 e 80 réis, respectivamente. Durante o funcionamento
da Companhia Geral de Comércio, ainda existia o recurso ao adiantamento em provimentos e escravos para a formação dos
comboios, através de financiamentos que eram pagos no retorno de Vila Bela ao Pará.
50
Entre 1769 e 1771, foram adquiridos 960 escravos dos portos do Sul e 242 do Pará. LAPA, J. R. Amaral. Do comércio em
área de mineração. p. 77- 85.

E spelhos P art i dos 169


produzidos localmente como produtos alimentícios regionais, drogas do sertão e
manufaturados. Os escravos também faziam parte da carga. No retorno da monção, a
carga era menos variada, e predominava o transporte de ouro e diamantes das minas.
Levavam também cereais, açúcar, tecidos grossos, drogas do Mato Grosso e sal.50
Vencer as cachoeiras era a primeira necessidade dos comboieiros do Madeira.
Assim, emergiram várias propostas para reduzir-lhes a dificuldade, entre elas, a
retificação e a abertura de canais de navegação para seu contorno; proposta esta que
se mostrou inexeqüível devido às correntes que variavam muito em função das
enchentes dos rios.
Outra reiterada reclamação no caminho do Mato Grosso, durante o século
XVIII, era a inexistência de povoações precisamente no seu trecho mais difícil. Uma
proposta era que fosse estabelecida, ao menos uma na altura da primeira cachoeira,
para atender às necessidades elementares das frotas. Uma outra era defendida pelo
Governador Souza Coutinho no final do século XVIII e previa a implantação não
de um, mas uma série de estabelecimentos que possibilitassem a formação de uma
verdadeira rede de comércio na região com a presença de prepostos dos
comerciantes das duas capitanias, responsáveis pela sua aquisição e envio aos
respectivos destinos. Mas ele próprio reconhecia que esta, ainda que adequada para
desenvolvimento do comércio, era de difícil execução.

Ainda havendo, como não considero que haja no comércio do


Pará cabedal proporcionado para empreender e empatar nos
estabelecimentos que exige a referida subdivisão, a conveniência
própria, não será bastante para arrastar e conservar os Operários
que necessita sem intervir a Autoridade.51

Foi assim que Coutinho concluiu que, ou o comércio do Mato Grosso


continuaria a ser realizado dentro do “monstruoso sistema” usado até então, ou que
“Sua Majestade se digne tomar este objeto debaixo de sua real proteção”, o que
significava adotar as disposições necessárias às custas dos cofres reais.
A proposta de Coutinho transformou-se em lei (12.05.1798) e estabeleceu um
plano conjunto de intervenção das administrações das duas Capitanias. O sistema de

51
COUTINHO, Francisco de Souza. Informação sobre o modo por que se efetua... § 15º.

170 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


transporte de mercadorias retomava a proposta de subdivisão de tarefas que Coutinho
havia esboçado um tempo anterior. No Pará, duas canoas de 2000 arrobas deveriam
estar prontas para levar as carregações até a nova povoação de 6 em 6 meses. Do Mato
Grosso, seria destacado um Corpo de 60 a 80 pedestres para postar-se nas cachoeiras
empregando canoas de igual porte para realizar o transporte das cargas nos trechos
encachoeirados, levando as mercadorias até Vila Bela.52
A localização da nova povoação, na Cachoeira de Santo Antônio, marcava o
fim das responsabilidades do Pará e início das do Mato Grosso, mas esta não deveria
ser apenas mais uma povoação de índios. Nela, Coutinho procuraria experimentar suas
idéias quanto aos cuidados que deveriam cercar a fundação de uma povoação duradoura
e não se esvaísse pela incúria dos Diretores e “infidelidades” dos índios recém-aldeados
como se tinham ido outras da Capitania do Rio Negro. A nova povoação do Crato era,
a seu modo, uma povoação-laboratório.53
Para atender-se às necessidades dos comboios era necessário pessoal especializado
destinado exclusivamente a este fim. É assim que propõe a formação de um Corpo de
gente do Mato Grosso, mais habituada às intempéries locais e também índios devidamente
“aclimatados”. Para prover o sustento deste Corpo, entram em cena os novos habitadores
da colônia: homens brancos e escravos, “os únicos lavradores atendíveis nestes países e
com estes é que se devem fundar, com estes é que se pode contar sobre as vantagens de
uma povoação”.
Os índios também poderiam vir a fazer parte deste novo perfil de moradores,
mas apenas aqueles que a ela se agregassem livremente. Os índios que Coutinho requeria
eram aqueles que já estivessem vivendo nas povoações, aqueles que já estavam estabelecidos
no mundo colonial e não os recém-descidos dos matos. Mas, ressalta a Carta, os escravos
deveriam ser preferidos ao trabalho que os índios e para isso, a importação de negros
de Angola, Benguela e outras Capitanias do Brasil deveria ser estimulada e facilitada.54

52
COUTINHO, Francisco de Souza. Informação sobre o modo porque se efetua... § 18º.
53
No século XVIII, as 17 cachoeiras do Madeira-Guaporé eram conhecidas pelas seguintes denominações na direção Pará -
Mato Grosso: 1ª. S. Antônio; 2ª. Salto; 3ª. Morrinhos; 4ª.Caldeirão; 5ª. Jirau; 6ª.Três Irmãos; 7ª. Paredão; 8ª. Pederneira; 9ª.
Araras; 10ª. Ribeirão; 11ª. Misericórdia; 12ª. Madeira; 13ª.Lajes; 14ª. Pau-Grande, 15ª. Bananeira; 16ª. Guajará Açu e 17ª.
Guajará Mirim.
54
Os moradores, através de um financiamento de 5 anos, receberiam seis escravos, gêneros, ferramentas e mais instrumentos
necessários para formar seus próprios estabelecimentos. Com direito a dois anos de carência, o pagamento só se iniciaria
no 3º ano de estabelecimento.
55
APP - Códice 554, Doc. 713. As prioridades de Coutinho não pareciam surtir o efeito desejado. Doente, o ouvidor Cerqueira
deixou o posto em 1801 e foi substituído pelo Capitão Marcelino José Cordeiro. A região onde estava localizada a
povoação, na foz do rio Jamari, era insalubre e, por esta razão, foi removida em 1802 para a outra situação entre os rios
Baeta e Arraias.

E spelhos P art i dos 171


O novo estabelecimento avançaria muito lentamente. Em setembro de 1799, o
ouvidor interino Pinto de Cerqueira informava que dele constavam apenas três ranchos
de palha e dedicava-se a relatar, miudamente, suas disputas com os juízes ordinários de
Silves, Serpa e Moura por índios requisitados para trabalhar nos novos estabelecimentos.55
O Crato teve destino bem diferente do que se projetava para uma povoação-
modelo: os novos colonos eram ciganos, degredados e “malfeitores”, pouco habituados
à agricultura, ficaram “sem pão, sem sustento e sem vestuário, morriam aos pares ao
desamparo e o resto se dispersou por toda a província”56. A experiência de Coutinho,
afinal, passou a constituir-se em destino de exílio político. Em 1828, restava apenas
um destacamento que, ao retirar-se, ateou fogo ao quartel-presídio da povoação.57
No final do século XVIII, já existem sinais de que a rota para o Mato
Grosso está tendo sua importância e frequência bastante diminuídas; o fim da
Companhia e de seus empréstimos, as altas taxações dos gêneros que se faziam no
Pará e o crescimento do comércio nos portos do sul apontavam para uma progressiva
mudança de direção. Finalmente, a instalação da Corte no Rio de Janeiro parece
consolidar essa tendência fazendo com que boa parte dos comerciantes se desviassem
para essa rota, levando inclusive cabedais a crédito do Pará. As prioridades haviam
também mudado de rota.58

NEGOCIANDO E ENDIVIDANDO: A COMPANHIA GERAL DE COMÉRCIO

Para fazer este estabelecimento


trabalhei quanto pude na minha possibilidade
para fazer conhecer a estes povos
que nele estava toda a sua fortuna.

Francisco Xavier de Mendonça Furtado, 1754.

56
SOUZA, André F. de. Notícias geográficas da Capitania do rio Negro, p. 428.
57
AMAZONAS, Lourenço. Op. cit., p. 59. A história da povoação não termina no incêndio. Em 1859 o lugar do Crato passou
a freguesia que foi transferida para a povoação de Baetas no ano seguinte. Em 1868, nova transferência para a povoação
de Manicoré que foi elevada à categoria de vila em 1877. As populações inicialmente estabelecidas no Crato – em particular,
os ciganos – fugiram para territórios vizinhos ou para povoações menos insalubres e ainda hoje observam-se traços da
presença cigana nas festas populares de Manicoré.
58
COUTINHO, Francisco de Souza. Informação sobre o modo por que se efetua... § 12º Ver também o ofício dirigido ao Conde
de Linhares por João Carlos D’Oeynhausen em 30.05.1811. In: HOLANDA, Sérgio B. de. Monções, Anexo C, p. 124. Desde
que Sua Alteza Real transferiu sua Corte para o Rio de Janeiro, o comércio dos portos do Sul deve ter crescido tanto
quanto deve ter decaído o do Pará; logo parece até que o interesse, essa alma do comércio, chama os negociantes desta
Capitania mais depressa a estes que àquele Porto.

172 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


No início do século XIX, os naturalistas Spix e Martius registram em Belém
do Pará, a sazonalidade do comércio naquela praça, estreitamente vinculada à chegada
das canoas dos sertões carregadas com os múltiplos gêneros do comércio da região.
Apenas com a chegada dessas embarcações é que se via alguma animação nas ruas
da cidade, quando se assistia às movimentações dos carregadores índios
transportando as cargas para a alfândega e para os numerosos armazéns por ela
espalhados. Fora desse período, era uma praça morta. “Essa dependência em que o
comércio do Pará está na produção do interior, não dá opinião muito favorável do
espírito de iniciativa dos negociantes daqui.”59
Tentando estabelecer as razões para esse tímido “espírito de iniciativa”, os
naturalistas destacam o “gênio pacato do paraense que se satisfaz com menor lucro”
e a inexistência de grandes capitais na praça do Pará. Quanto ao gênio pouco
especulativo dos paraenses, fica a critério do leitor que atravessou essas páginas até
aqui. Já quanto à inexistência de capitais, essa não seria a primeira e nem a última vez
que a ela se recorreria para explicar a relativa debilidade (ou melhor dizendo, as
especificidades) da praça comercial do Pará.
Na segunda metade do século XVIII, essa mesma debilidade aparece com
cores mais fortes entre as principais preocupações do governador Francisco Xavier
de Mendonça Furtado.

Vim parar a uma terra aonde não só se não conhece o comércio,


mas nem nunca ouviram estas gentes falar na mais leve máxima
dele; vindo os comissários de Lisboa roubar a estes moradores,
eles despicam-se não lhes pagando, ou fazendo-o com gêneros
falsificados e por preços exorbitantes, e com estes estabelecimentos
não é muito que tenha chegado ao ponto de ser quase impossível
o restabelecer-se.60

Rigorosamente, a atuação dos comissários não era a causa primeira das


limitações da praça de Belém. De modo mais amplo, na avaliação de Furtado, a
ruína do Estado estava estreitamente ligada à “perniciosa” ação dos missionários

59
SPIX; MARTIUS. Viagem pelo Brasil. v. 3. p. 32-33.
60
Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Francisco Luís da Cunha de Ataíde. Pará, 6.10.1751. In: MENDONÇA, Marcos C.
de. AEP, v. 1. p. 44.

E spelhos P art i dos 173


que, assenhorando-se dos índios, levaram o comércio à decadência monopolizando
os trabalhadores necessários para a extração dos gêneros do sertão, restringindo o
acesso dos particulares a esses trabalhadores, concentraram a produção de gêneros
alimentícios e debilitaram a fazenda real devido à suas isenções fiscais. Foram também
os missionários que geraram um certo grau de autonomia da produção local,
limitando o desenvolvimento mercantil.61
A saída pombalina para conter as ações dos regulares, libertar os índios e
desenvolver o comércio passaria, também, pela implementação do monopólio
mercantil. A instalação da Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão
se deu ainda em 1755, logo no início do gabinete pombalino. Não se tratava de
uma experiência isolada na política ilustrada portuguesa e também não era a primeira
vez que o Estado português tentava acompanhar as tendências de implementação
de um sistema de monopólio no comércio colonial do Grão-Pará já que, em 1682,
tinha sido criada a Companhia de Comércio do Maranhão de resultados desastrosos
e que culminaram com a eclosão da Revolta de Beckman entre 1684 e 1685, entre
os colonos do Maranhão.62
Falar da companhia pombalina requer uma certa cautela inicial. Que me
perdoem os conhecedores da métrica, mas Pombal rima com polêmica. A política
pombalina, de um modo geral, tem gerado avaliações bastante apaixonadas e isso
vale tanto para sua exaltação quanto para sua detratação. De todos, a avaliação da
Companhia é um dos seus temas mais polêmicos.63
Depois da experiência tumultuada de finais do Seiscentos, na segunda metade
do século XVIII, esboçou-se na região a montagem de uma nova companhia de
comércio com capital colonial. A intervenção do Governador Mendonça Furtado
aparece como essencial na articulação do empreendimento. Convencido de que a
forma de desenvolver o comércio na praça paraense passava pela organização de
uma companhia de comércio, busca o apoio dos principais cabedais da terra. Mas, os

61
Francisco Xavier de Mendonça Furtado aos Diretores Gerais da Companhia. 15.11.1757. In: MENDONÇA, Marcos C. de. AEP,
v. 3. p. 1157.
62
Além da Companhia do Grão-Pará, foram criadas a Companhia da Pesca da Baleia nas costas do Brasil (1755); a de
Pernambuco e Paraíba (1759); a dos Vinhos do Alto Douro (1765) e a das Pescarias do Algarve (1773).
63
Autores como Manuel Nunes Dias e João Lúcio d’Azevedo são exemplares na apresentação de um quadro polarizado de
discussões. De resto, diga-se que para os objetivos deste trabalho a adoção de uma ou outra postura não interfere no seu
resultado. O essencial para nossa discussão é acompanhar a atuação da Companhia na região nas suas linhas mais
genéricas tentando-a situar no quadro da produção e reprodução da riqueza no Grão-Pará. Ao leitor interessado nos
argumentos mais candentes acerca da Companhia, remeto à bibliografia relativa ao assunto.

174 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


“homens de negócio” convocados por Furtado, ainda que reconhecessem a utilidade
da proposta, na prática a rejeitaram porque recusaram-se a participar da empresa
usando de “frívolos pretextos”, como afirmava desalentado a seu irmão. Uma nova
tentativa (um tanto inusitada) de Furtado é dirigida aos oficiais militares que não só
prestaram apoio à idéia, mas também, para sua surpresa, com suas contribuições
deram início à organização dos fundos da empresa. Com este apoio, Furtado continuaria
a campanha pela formação da companhia e conseguiu, afinal, arrecadar o capital de
32.000 cruzados.64
Sintomática é a recusa inicial dos principais “homens de negócio” do Grão-
Pará em participar da empresa proposta por Furtado. Infelizmente, ele não menciona
quais os “frívolos pretextos” que os negociantes do Pará apresentaram para sua
recusa, mas sua correspondência sugere algo mais que isso. Ao tentar identificar os
quadros administrativos da nova empresa, Furtado sondou um importante negociante
irlandês estabelecido no Maranhão, Lourenço Belfort.65
Sua reação inicial foi a recusa; nem quis participar da empreitada em seu
momento inicial e, posteriormente, (e talvez por essa mesma razão) não foi mais
considerado para sua administração. Depois de estabelecida a Companhia, muda
de atitude e propõe sua entrada na empresa adquirindo cinco ações. Furtado parece,
finalmente, descobrir as razões de sua “repulsa” inicial: de acordo com as informações
obtidas, os projetos de Belfort eram muito mais audaciosos do que algumas ações
de uma companhia real; pretendia ele próprio estabelecer um negócio de
abastecimento de carnes salgadas para os armazéns e o tráfico de escravos em

64
BNRJ - Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Sebastião José de Carvalho e Mello. Pará, 24. 01.1754. (Mic.). Esta
mesma correspondência foi publicada por MENDONÇA, M. C. de. AEP. p. 460-464, 2º tomo. Os narradores da Companhia –
em especial, Nunes Dias – ignoram a frustração da primeira demanda de Furtado junto aos homens “menos desafortunados
da terra”. Dias funde ambas tentativas do governador e constrói uma narrativa única afirmando que foram precisamente
estes os homens que conseguiram arrecadar aquela módica quantia. Deste modo, sua conclusão não poderia ser diferente:
esse valor ínfimo seria um indicador seguro da extrema pobreza da praça paraense e da urgente necessidade de proteção
real à proposta da Companhia. Cf. DIAS, M. Nunes. Fomento e mercantillismo. v. 1. p. 200. Na mesma direção, ver AZEVEDO,
J. L. Estudos de história paraense, p. 45-46.
65
Na sua trajetória na região, Lourenço já tinha freqüentado muitas paragens até estabelecer-se como negociante e
proprietário na região do Mearim, inclusive participado de tropas de resgate no Rio Branco, trazendo os cativos para
abastecer suas propriedades em 1740. Cf. SANTOS, F. J. dos. Além da conquista, op. cit., p. 238. A figura de Lourenço
Belfort ainda pode surpreender. Salvo engano, tratava-se de Lancelot de Belfort (Dublin, 1708 - S. Luís, 1775). A família
Belfort possuía origem real descendendo de Robert, o Piedoso – Rei de França, de Afonso VI, Rei de Leão e Castela, e de
Guilherme, duque da Normandia, posteriormente, rei da Inglaterra. Registra-se a presença do último irlandês conde e
príncipe de Belfort no Maranhão, onde exerceu diversos cargos públicos entre 1742 e 1759. Possuía uma grande fazenda
na margem esquerda do rio Itapicuru que levava o mesmo nome da propriedade de seus antepassados. Em 1758, Lancelot
de Belfort recebeu o Hábito da Ordem de Cristo de D. José I e depois, em 1761, foi armado Cavaleiro da mesma Ordem.
Deixou testamento em S. Luís datado de 15.03.1775. Cf. DFB, verbete Belfort.
66
Carta de Francisco X. M. Furtado a Pombal. Mariuá, 14.10.1756. In: MENDONÇA, Marcos C. de. AEP, v. 3. p. 994-995.
Lourenço ainda reaparece em outros momentos já negociando diretamente com e através da Companhia.

E spelhos P art i dos 175


sociedade com outro negociante maranhense. Definitivamente essa não parece ser
ação de um homem de poucos cabedais.66
É mais do que evidente que a praça paraense não era das mais dadivosas
em termos de recursos como já sublinharam, suficientemente, outros autores
importantes. Um dos indicadores mais utilizados é a tardia introdução da moeda
entre 1749 - 1750 e a manutenção de produtos como cacau e algodão funcionando
como moeda corrente na praça durante longo período. Contudo, pelo que se
percebe, a praça podia levantar muito mais recursos do que os parcos 32.000 cruzados
que Furtado amealhou com seus esforços. É bem possível que os homens de negócio
do Pará estivessem muito mais vinculados aos comissários volantes e suas “grandes
extorsões” do que a experiência de Furtado pode perceber ou avaliar nos momentos
iniciais de sua administração.
Evidentemente, eram fundos insuficientes para dar início ao empreendimento
e então entra em cena a Companhia Geral de Comércio com pesada intervenção da
administração metropolitana. Os objetivos da Companhia eram ambiciosos:
estabelecer com regularidade as ligações das praças de Belém e S. Luís com a
metrópole através de um sistema de frotas e, também, abastecer o mercado local
com escravos de Angola, Benguela e Guiné, incluindo o Mato Grosso.67
A empresa criada por Pombal em muito se distanciava, em vulto e
abrangência, da proposta inicial que encaminhou Furtado. Requereu-se para a nova
empresa três privilégios reais: a isenção dos direitos das madeiras levadas na torna-
viagem dos navios que trouxessem escravos da África; a proteção ao capital dos
acionistas contra a execução de dívidas contraídas a posteriori e contra o seu confisco
inclusive nos casos de lesa-majestade. A nova empresa, além destes, possuirá muitos
outros.
Com a entrada dos comerciantes da praça de Lisboa se constitui uma
empresa de amplos poderes e prerrogativas desfrutando de privilégios que serão
progressivamente ampliados mesmo depois de sua criação. À Companhia ficou
assegurada a exclusividade: do comércio do Estado do Grão-Pará e Maranhão

67
A companhia nasceu sob o signo do protesto. Em Lisboa, da Mesa do Bem Comum, rapidamente silenciada pelo Marquês
de Pombal com sua dissolução. Na colônia, os administradores não registram sinais iniciais de rejeição das gentes da terra,
com exceção dos religiosos. Quanto à oposição dos religiosos, identificada em Lisboa e na colônia, pode ser (em parte)
debitada à própria campanha movida pelo gabinete pombalino contra as ordens religiosas, com particular atenção à
Companhia de Jesus. Aliás, é de João Lúcio a tese de que é a oposição dos inacianos à Companhia de Comércio que faz
desencadear toda a virulência da perseguição de Pombal contra esses regulares, culminando com sua expulsão do reino
em 1759. Cf. BOXER, Charles. O império colonial português: 1415 - 1825. Lisboa: Edições 70, 1981. p. 183-184.
D’AZEVEDO, João Lúcio. Estudos de história paraense. p. 20 - 70.

176 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


com lucros fixados entre 15 % (fazendas molhadas) e 50 % (fazendas secas); da
importação de escravos africanos; do comércio das ilhas de Cabo Verde e da costa
da Guiné por vinte anos arcando a Companhia, em contrapartida, com a despesa
das folhas de pagamento reais (secular e eclesiástica) e com o fortalecimento da
defesa militar para maior segurança de seu comércio.68
Quanto ao transporte e comercialização dos gêneros dos particulares, a
princípio, estes poderiam consignar seus produtos à Companhia ou a seus
representantes em Lisboa, ainda que o transporte fosse realizado pela frota da
empresa. Esta possibilidade de escolha foi revogada em 1760, a pedido da direção
da junta administrativa sob a alegação de fraude dos particulares e, a partir daí,
apenas a Companhia estava autorizada a receber os gêneros em consignação.
Em 1761, os escravos por ela introduzidos nos portos de Belém e S. Luís
estavam isentos dos pagamentos dos direitos à Fazenda Real bem como dos
emolumentos aos oficiais das respectivas alfândegas. Entre 1764-1771, foi desobrigada
do pagamento dos direitos de entrada e saída do anil e do gengibre exportado do
Pará e Maranhão, acrescentando-se estas à isenção que já desfrutava com relação ao
café. Seu ouro era isento de impostos, estava liberada dos “meios direitos” de todos
os gêneros que transportasse do Grão-Pará e Maranhão para Lisboa e, da mesma
forma, também os gêneros e artigos destinados ao consumo da Companhia. Ainda
em 1766, uma nova legislação arbitraria que os títulos da Companhia teriam no
comércio o valor de dinheiro líquido.
Em 1770, a Companhia recebeu mais 25 % sobre os carregamentos que
saíssem do Pará para as fronteiras hispano-portuguesas, 10% sobre os direitos de
saída nesta mesma rota a título de fundo para responder pela parte ou todo da folha
de pagamentos daquela provedoria e 32% para manutenção das fortalezas e tropas.
Sem contar os 8% destinados a “ganhar as vontades” dos governantes castelhanos
para incremento desta nova rota mercantil. “Com semelhantes benefícios, a Companhia
teria, portanto, 75% sobre as transações com as fronteiras espanholas, sem se incluir o
que dispunha os §§ 23 e 24 da sua instituição.”69
A administração local era realizada por dois prepostos da Companhia
estabelecidos em Belém, S. Luís, Cacheu, Bissau e Cabo Verde, além de comissários

68
Essas considerações baseiam-se, principalmente em DIAS, M. Nunes. Fomento e mercantilismo. passim. v. 1/2. Quanto ao
número de ações, o mesmo autor assegura que o número nunca foi completado já que nos balanços da Companhia
aparecem apenas 1.164 ações. Cf. p. 240-241. O valor nominal de cada ação era de 400$000.
69
DIAS, Manuel N. Fomento e mercantilismo, v. 1. p. 218.

E spelhos P art i dos 177


nas principais praças européias (Gênova, Cádiz, Marselha, Bristol, Londres, Antuérpia,
Ruão, Hamburgo e Amsterdã). Na rota de Belém chegaram a operar 33 embarcações
e na de S. Luís, 52. As frotas operavam na rota África – S. Luís – Belém - Lisboa
realizando o transporte de escravos, recebendo os gêneros coloniais e embarcando
para a Lisboa e Porto de onde eram comercializados com as outras praças européias
com uma regularidade, em regra, de uma frota/ano.70
Os produtos introduzidos pela Companhia constituíam-se em gêneros
alimentícios de origem portuguesa e produtos manufaturados ingleses ou das fábricas
metropolitanas (ferramentas , tecidos, louças, chapéus). A venda de fazendas e escravos
a crédito nas praças de Belém e S. Luís fazia parte importante dos negócios locais da
Companhia que aplicava prazos para pagamento que variavam de 6 meses a um
ano para liquidação do débito, com a cobrança de juros de 5% ao ano em caso de
dilatação do prazo estabelecido.
Diante de tantas prerrogativas, seria o caso de colocar em questão os
desdobramentos de uma criação dessa envergadura diante das diferentes alianças
comerciais e políticas que Portugal possuía com outras nações européias e,
particularmente, com a Inglaterra. Na verdade, ainda que cercada de benesses reais,
a Companhia atuava nas fronteiras dos principais canais de comércio e não chegava
a fazer sombra ao equilíbrio do comércio anglo-português. Como assegurou
Maxwell, é certo que a criação da companhia serviu, ainda que indiretamente, para
debilitar os interesses das casas inglesas estabelecidas em Portugal, porém a campanha
anti-jesuíta que lhe acompanhava terminou por limitar a ação protetora do governo
britânico que estava longe de assumir o papel de aliado dos jesuítas. Contudo, em
termos mais objetivos,

A companhia e a abolição dos comissários volantes não eram, na


superfície, de modo algum prejudiciais às casas britânicas
envolvidas no fornecimento de mercadorias para o tráfego regular
das frotas, e somente um ataque aos seus interesses justificaria
uma ação vinda de Londres.71

70
Analisando a composição dos carregamentos, Carreira afirma que, das 64 naus, apenas 19 não estavam envolvidas no
tráfico de escravos e duas outras eram naus de guerra, portanto de proteção aos comboios, i.é., 67 % dos navios da
empresa estavam destinados ao tráfico de almas. Cf. CARREIRA, Antônio. As Companhias Pombalinas de Navegação,
Comércio e Tráfico de Escravos entre a Costa Africana e o Nordeste Brasileiro. Lisboa, 1969. p. 50- 51.
71
MAXWELL, Kenneth. Pombal: o paradoxo do iluminismo. Op. cit., p. 66.

178 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Um balanço completo dos resultados práticos da atuação da Companhia
no Grão-Pará está, como já se disse, minado pelas posições polares. Contudo e a
despeito da inexistência de um juízo pacífico, é preciso buscar antes sob qual ponto
de vista a análise está se processando. Se considerar a posição da Coroa portuguesa,
a Companhia possibilitou uma certa transferência de responsabilidades e a liberação
de determinados ônus de manutenção que, originariamente, estavam entre os encargos
da Fazenda Real incluindo-se aí as folhas de pagamento, a manutenção de fortalezas
e o repasse de recursos financeiros para a colônia.72
No caso da colônia, a própria presença dos negociantes locais entre os
acionistas já aponta para resultados, senão vultosos, no mínimo adequados para
atender às suas necessidades. Se considerar apenas os investimentos no cultivo e
beneficiamento do arroz, já é possível notar alguns resultados interessantes.73
As ordens religiosas, de modo geral e os jesuítas, em particular, perderam
bastante espaço com a implantação do monopólio. Da mesma maneira (mas não
pelas mesmas razões), os comissários volantes. Nunes Dias menciona ainda os
negociantes afazendados e os pequenos comerciantes estabelecidos na colônia.
Estes últimos, envolvendo-se no crescente das dívidas provocadas pelos
adiantamentos para aquisição de mercadorias e escravos, viram-se diante da premência
de entregar suas produções agrícolas e de coleta do sertão de acordo com os preços
fixados pela Companhia. Ainda que considerando o fim da prerrogativa dos
moradores de enviar seus produtos em outras embarcações que não as da Companhia
(1760), é inegável o crescimento vertiginoso do volume exportado pela Companhia
indicando que, de maneira rápida, a empresa foi capaz de fazer valer suas prerrogativas
de monopólio e também sua penetração nos mecanismos de endividamento dos
moradores da colônia. Em números globais, as exportações dos particulares

72
De acordo com Nunes Dias, apenas em 1760, 1769, 1773-1776 e 1778, Belém recebeu moeda enviada de Lisboa através
da Fazenda Real. “A Companhia, no entanto, jamais deixou de receber letras do Tesouro.” Cf. DIAS, M. Nunes. Fomento e
mercantilismo, p. 66-67.
73
Mais esta vez, o refratário Lourenço Belfort ajuda a entender certos desdobramentos específicos. Utilizando parte dos
estímulos da empresa, sua propriedade alcançou a marca de 10.500 alqueires de arroz em 1770 sendo toda a produção
adquirida pela Companhia. A partir de 1771-1772, com o crescimento da produção de arroz, a Companhia passa a investir
na construção de moinhos de pedra em substituição aos moinhos de madeira empregados no Maranhão. Belfort reaparece,
na linha de frente, firmando com a Companhia um contrato de fornecimento de 250 arrobas de arroz por ano. Cf. DIAS, M.
Nunes. Fomento e mercantilismo, p. 438; 442-443, v. 1.

E spelhos P art i dos 179


VALOR DOS GÊNEROS EXPORTADOS PELA COMPANHIA DE COMÉRCIO : QUADRO
COMPARATIVO

representam 20 % do total exportado pela empresa durante todo seu período de


atuação.
As críticas e reclamações com relação às ações da Companhia não serão
apenas explicitadas quando da débacle de Pombal. Antes mesmo já se registram
protestos no Grão-Pará e um destes é o do Bispo João de S. José que registra no
seu diário de viagem pela Capitania uma série de considerações acerca da atuação
da empresa. A sua principal ponderação diz respeito aos altos preços cobrados
pelas fazendas introduzidas no Estado e aos juros tão elevados que o Bispo não
hesita em qualificá-los como usuras.74
Outras reclamações diziam respeito à reduzida quantidade de gêneros e
também de escravos que aportavam em Belém. Quanto a estes últimos, uma fala
constante entre os moradores do Pará é a de que as melhores “peças” ficavam no
Maranhão e os que chegavam ao Pará eram, além de insuficientes, fracos e doentes.

74
Fr. João de S. José. Viagem e visita do sertão. p. 73-75. Além do “interesse comum”, o Bispo tinha lá suas razões pessoais
para reclamar dos administradores da Companhia: sua carga de chá vinda de Lisboa tinha sido considerada por demais
elevada para constituir-se apenas em abastecimento doméstico e foi drasticamente reduzida a um volume considerado mais
aceitável. O Bispo ficou indignado com essa intervenção da mesa administradora na sua casa e nos “negócios de Jesus
Cristo”.

180 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Manuel Bernardo de Melo e Castro, sucessor de Furtado na administração
do Estado do Grão-Pará, apresenta, em várias de suas correspondências, um
conjunto de problemas criados pelas más gestões e mau funcionamento da empresa.
Um deles é o estado de animosidade e tensão com os trabalhadores índios provocado
pela falta constante de fazendas, em especial as de uso da terra.
Ao entregarem suas produções do sertão na Tesouraria do Comércio dos
Índios, deveriam receber em troca sua parcela de pagamento para aquisição dos bens
de que necessitassem. Porém, como os armazéns da Companhia estão “limpos sem
cousa alguma”, deixam seus pagamentos depositados na Tesouraria e são obrigados
a contentar-se com algumas poucas varas de algodão. Persistindo tal carência, assegurava
Melo e Castro, as dificuldades de recrutamento e mesmo a manutenção dos índios nas
canoas do sertão seriam amplificadas, considerando que as deserções já estavam cada
vez mais freqüentes por conta da insatisfação crescente.

E vão todos uniformemente dizendo que as Drogas que extraem


não são suas como nós lhes queremos persuadir, mas que são
todas para os brancos, que os enganam como duas varas de
algodão grosso, o que não lhes sucedia no tempo dos Padres,
por que eles lhes faziam mais avultados pagamentos...75

A importância do Grão-Pará na contabilidade da Companhia pode ser


visualizada, com algum detalhe, no momento da liquidação da empresa quando os
estoques são identificados e avaliados pela junta liquidante. No Grão-Pará, estava
concentrada a maior parte dos valores de suas mercadorias como se vê no quadro
anexo.
Pelas análises disponíveis, o que se verifica é que a implementação da empresa
monopolista foi capaz de atender a uma série de necessidades e superar certas
limitações importantes às quais a administração colonial se via impossibilitada de
atender. Do ponto de vista do incremento à produção e ao comércio local, é preciso
um pouco mais de poeira dos arquivos para definir as relações entre comerciantes
e produtores locais com a empresa monopolista. Se, por um lado, emergem indícios

75
Correspondência de Manuel Bernardo de Melo e Castro a Sebastião José de Carvalho e Melo, Pará, 5.08.1759. Apud REIS,
Arthur C. Ferreira. Aspectos da experiência portuguesa na Amazônia. Manaus: Ed. Governo do Estado, 1966. p. 146.
76
Outras evidências apontam ainda para a continuidade – e até mesmo crescimento – do fluxo das exportações paraenses
no período pós-companhia, sugerindo que a praça poderia continuar a funcionar com regularidade (desejada ou possível)
mesmo sem os beneplácitos régios. Antônio Carreira acrescenta que, para se aquilatar a importância política, econômica e
financeira da empresa, recorde-se que apesar de ter sido extinta em 1778, ainda comerciou, “com maior ou menor amplitude
até 1788 e sua liquidação definitiva só se deu 136 anos depois.” Cf. CARREIRA, Antônio. Op. cit., p. 45.

E spelhos P art i dos 181


de que para alguns a empresa representou a possibilidade de crédito, embarcações
e outras vantagens, por outro, o endividamento parece ter sido a tônica das relações
mercantis.76
O “SUSTENTO ORDINÁRIO”

Nada mais dramático no mundo colonial que a falta de víveres e, no Grão


Pará, a produção de gêneros para subsistência foi também um dilema; se por um lado,
era evidente a necessidade de abastecimento dos gêneros para a população, de outro,
estava colocada a prioridade dos negócios do sertão. Para ambas as tarefas, acesso aos
índios era a chave segura, mas também a mais complexa.77
Teoricamente, o Diretório tudo tinha previsto para “desterrar das Repúblicas o
pernicioso vício da ociosidade”. Diretores deveriam estimular os índios de suas povoações
a cultivarem a terra, as terras das povoações aptas para a cultura seriam identificadas e, se
necessário, redistribuídas para atender às “leis da eqüidade e da justiça”, todos os índios
da povoação deveriam ter roças de mandioca, milho, arroz e feijão, suficientes para seu
sustento e para atender ao mercado de Belém, às tropas e ao comércio dos sertões.
Além disso, estimulava a cultura do algodão e do tabaco com fins comerciais. Enfim, a
idéia mais geral é a de que cada República fosse capaz de se manter e ainda gerar excedentes
para atender às necessidades do Estado.78
Agricultura e comércio deveriam ser as faces de uma mesma moeda, e a mesma
legislação que apontava para a montagem de uma estrutura econômica fundada sobre
as sólidas bases da agricultura, também destacava a enorme importância dos “negócios
do sertão” para o crescimento das rendas do Estado. Entretanto o que se percebe na
documentação e também nas falas contemporâneas é que o “sertão” sobejava em
vantagens ao trato da terra.

77
M. Yêdda Linhares acredita que a questão no “Grande Norte” está relacionada aos interesses e necessidades comerciais
metropolitanos que teriam provocado um deslocamento de recursos e mão-de-obra para as atividades de coleta de drogas
do sertão, mais rentáveis que aquelas vinculadas ao trato da terra, levando as culturas ao abandono. Esse argumento
reitera, como a própria autora assinala, formulações clássicas de Celso Furtado, Fernando Novais e Caio Prado Júnior. Cf.
LINHARES, M. Y. Leite. História do abastecimento: uma problemática em questão. p. 53-54.
78
Diretório, §§ 16-25.
79
Que este quadro não leve à dedução (equivocada) de que a dieta dos moradores do Grão-Pará era limitada à farinha e peixe.
Estudos contemporâneos de Janet Chernela na área do rio Uaupés (alto rio Negro), identificaram 137 cultivares de
mandioca distinguidos por nomes indígenas. Destes tubérculos, domesticados a partir de uma agricultura indígena de
milênios de adaptação, é possível extrair um número muito diversificado de subprodutos que multiplicam as formas de
preparação dos alimentos. Apenas a título de exemplo, registrem-se os diferentes tipos de farinha seca (branca e amarela)
e d’água, beijus, carimã, manicuera, arubé, gomas, polvilhos, pós de tapioca e o tucupi. Quanto ao gado, o rebanho da
Capitania do Rio Negro era minúsculo: na década de 1780, existiam 172 animais, entre vacas, touros, novilhos e garrotes.
Cf. FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica, op.cit.

182 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Ainda assim, predominavam as roças de mandioca para fabricação de farinha,
além das de café, cacau, milho, arroz, feijão, e tabaco. As principais fontes de proteínas
eram o pescado e a caça, na medida em que a criação de animais de corte era reduzida
e, consequentemente, a carência de carnes-verdes era frequente.79
A tartaruga e o peixe-boi eram gêneros de múltiplas utilidades; dos quais se
fabricavam manteigas para alimentação e óleo de iluminação da primeira e mixiras do
segundo, sendo que sua gordura também era aproveitada na culinária. Esses alimentos,
acompanhados das farinhas, vinhos de frutas oleaginosas e das indefectíveis variedades
de pimentas, compunham a dieta alimentar da imensa maioria da população do Grão-
Pará.80
Os dados disponíveis tratam de uma agricultura de resultados geralmente
limitados, voltada prioritariamente para o abastecimento das unidades produtivas, com
poucos excedentes para comercialização.
A forma de cultivo da terra era a agricultura de coivara, utilizando-se do sistema
de pousio longo. As roças, em geral, eram estabelecidas em locais afastados das povoações.
Esta prática também colaborava para a instabilidade dos assentamentos populacionais
como revela a correspondência do governador do Negro em 1764:

não é possível fazer habitar os índios na povoação, nem conseguir


deles o fazerem casas para poderem viver, por não terem terras que
possam lavrar, vindo pernoitar nas suas casas depois do fim do
seu trabalho das suas lavouras e valendo-se do indulto de fazerem
roças da outra banda para se poderem sustentar e como estas ficam
em grande longitude passam-se muitos meses que se não alcançam
com a vista e por este modo vivem fora do grêmio da Igreja, da
verdadeira disciplina e da obediência de vassalos.81

É certo que as carências do Negro eram inúmeras. Faltavam desde as farinhas


até as gentes. A produção das vilas e lugares era limitada e os rendimentos muito
modestos. Viviam sob um déficit crônico.
Os índios aldeados tinham que dar conta de múltiplas obrigações que possuíam
dentro da estrutura da povoação pombalina. De acordo com Regina Almeida, esse
conjunto de tarefas (canoas do sertão, serviço dos moradores, roças do comum e

80
A diversidade da cozinha amazônica aparece, em ricas cores e sabores, na obra de Pe. João Daniel. Tesouro descoberto no
rio das Amazonas.
81
Carta de Joaquim Tinoco Valente a Fernando da Costa Ataíde Teive. Barcelos, 24.07.1764 apud ALMEIDA, Maria Regina. Os
vassalos del’Rei... p. 223-224.
82
Idem, p. 226.

E spelhos P art i dos 183


serviço real) comprometia o tempo necessário para que os índios se dedicassem às
suas próprias roças de subsistência. “Acrescente-se a isso seu desinteresse em produzir
excedentes e o dos próprios diretores, muito mais interessados em enviá-los ao serviço
das canoas.”82
Quanto às roças dos moradores, a mesma autora assegura que não existiam
grandes diferenças considerando que as técnicas de cultivo eram as mesmas e também
os moradores possuíam roças situadas em locais distantes das povoações. A distinção
fundamental dizia respeito ao volume da produção que superava, largamente, a dos
índios.83

Entretanto a carência não era exclusividade da distante Capitania do Rio Negro.


As povoações do Pará apresentam um déficit ainda maior; enquanto no Rio Negro a
despesa superava a receita em cerca de 3,7% em números globais, nas povoações
paraenses este mesmo indicador se eleva para cerca de 13,8%.
O quadro comparativo dos rendimentos das duas capitanias permite
visualizar melhor essas afirmações. Para sua montagem, utilizei os dados da Tesouraria

83
Ver. ALMEIDA, Maria Regina. Os vassalos del’Rey, p. 228.

184 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Geral do Comércio dos Índios o que o faz representar apenas o rendimento das
povoações sob a tutela dos diretores e não da produção do Estado como um todo.
O quadro mais amplo do Estado do Grão-Pará aponta para uma rede de
abastecimento precária com uma agricultura de alimentos de resultados pouco eficazes
para atender às necessidades de comercialização. Porém observar os números da
exportação do Estado deixa entrever outras possibilidades de avaliação quanto à produção
de gêneros destinados à exportação. Apesar da predominância do comércio do cacau,
o café aparece como o segundo maior produto da exportação paraense até 1810.84
O café era cultivo de exportação importante em todo o estado do Grão-Pará,
cultivado prioritariamente pelos moradores em suas propriedades e, em menor escala,
pelos índios. Porém não nas roças do comum das povoações, apesar de algumas tentativas
isoladas e pouco duradouras nas povoações do Negro.85
O quadro de exportação dos produtos paraenses demonstra que a cultura do
café possuía vigor suficiente para freqüentar as pautas de exportação com certa regularidade.
No Rio Negro, a produção de café dos Brancos era superior à dos Índios e, apenas no
caso deste produto, a produção dos primeiros supera em 967% aquela registrada para
os índios.86
Os inventários registram a presença de cafezais no interior das propriedades,
com dimensões variadas, totalizando para o período de 1810 a 1845 cerca de 2.350 pés
de café. Ao mesmo tempo, apontam para uma produção bastante diversificada.

PRODUÇÃO AGRÍCOLA REGISTRADA NOS INVENTÁRIOS POST-MORTEM: 1810-1845

Produto Unidade Quantidade Valor total £


Cacau Pés 20842 274,17
Arroz Alqueire 3790 410,90
Café Pés 3550 17,90
Roça de mandioca Braças 1200 90,00
Urucu Pés 1050 8,00
Canavial Braças 430 24,95

Fonte: Inventários post mortem - App.

84
Ver gráfico Produtos Agrícolas do Grão-Pará (1756-1810). A presença do algodão e do arroz não inclui os números da
sua produção no Maranhão, onde estes cultivos encontram uma maior penetração e desenvolvimento no decorrer do
século. Os dados até 1778 registram a produção destes gêneros no Grão-Pará.
85
A experiência do diretor do lugar de Poiares não foi muito além dos primeiros tempos do Diretório. Em 1786, do café do
comum, só restam notícias. Cf. SAMPAIO, Patrícia. Povoações desaparecidas: Poiares no século XVIII.
86
ALMEIDA, Regina. Os vassalos del’rey... p. 228-229. Mapa Estatístico 2: Produtos Cultivados na Capitania do Rio Negro -
1775.
88
SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. As viagens do Ouvidor Sampaio. p. 127.

E spelhos P art i dos 185


Lamentavelmente, seu número reduzido não possibilita grandes avanços conclusivos:
dos 66 inventários computados, 25 % registram a presença de cultivos com avaliação
inclusa. Apenas para dar uma noção da produção agrícola tal como aparece nos
inventários, veja-se o quadro a seguir.
A questão da mão-de-obra era (mais uma vez) o ponto nevrálgico na questão
do desabastecimento crônico e, neste particular, os Diretores serão amplamente
responsabilizados pela decadência da agricultura por conta de seus interesses diretos
no trato das canoas. Dos índios existentes nas povoações, excetuada a parcela
distribuída aos moradores, o restante deveria ser aplicado tanto no negócio quanto
no cuidado das roças do comum – responsáveis pela produção dos gêneros
indispensáveis para abastecimento das vilas e povoações. E é exatamente neste ponto
que incidem as denúncias do descaso dos Diretores.
Fundamentais para manter as povoações e também garantir o sustento das
populações indígenas recém-descidas, o cultivo da terra e das roças do comum
adquiriam importância estratégica. Várias autoridades coloniais são unânimes em
afirmar que os diretores priorizavam os sertões em detrimento das roças reduzindo
assim o número de trabalhadores nas povoações que deveriam encarregar-se das
roças. Dentre esses funcionários, merecem destaque as intervenções dos ouvidores
em função de sua responsabilidade enquanto intendentes da agricultura e do
comércio. Estes, em seu contínuo esforço de aplicação do Diretório recomendam,
sugerem, denunciam, desesperam-se. Tudo parece inócuo. Pelo que se depreende
das suas falas, as populações viviam à beira da inanição. Talvez algo próximo a isso.
O estado de penúria da maioria dos habitantes do Grão-Pará, como se viu, está
presente em muitos indicadores de época.
No Rio Negro, o ouvidor Pereira da Costa foi o primeiro destacar a relação
existente entre a negligência dos diretores e o desabastecimento da Capitania e foi
ainda mais longe ao sugerir que, se continuasse em vigor a distribuição do tempo de
trabalho daqueles índios nos sertões, era praticamente impossível manter os cultivos
nas roças de subsistência.

Estas expedições se fazem no mês de fevereiro; recolhem-se nos


fins de junho, dá-se aos Índios o mês de julho para roçarem, no
fim dele, ou princípio de agosto vêm para a cidade com negócio,

87
Lourenço Pereira da Costa. Memória sobre o Governo do Rio Negro (escrita logo depois de 1762). Boletim de Pesquisa da
CEDEAM, n. 2, p. 45-46, Manaus, jan-jun/1983.

186 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


donde se recolhem às suas respectivas Povoações já em fins de
Dezembro, e princípios de janeiro, tempo já impróprio para os
roçados em razão das chuvas.87

Cerca de duas décadas depois, o ouvidor Ribeiro de Sampaio também é


contundente nas suas observações a respeito dos diretores e não os poupa de
responsabilidades no estado decadente das povoações.88
Existem dezenas de informações prestadas por governadores e/ ou diretores
de aldeias, tratando da carência de farinhas em suas áreas e de sua incapacidade de
atender às demandas das novas populações descidas. Os aldeamentos do rio Branco
estudados por Nádia Farage são emblemáticos dessa carência, a tal ponto que João
Pereira Caldas, depois de três anos consecutivos enviando farinhas para o rio Branco,
protesta: “se daí não nos ajudam esses inúteis Comedores, ao menos não nos tirem
o Mantimento que tanto aqui precisamos”. Em 1787, Lobo d’Almada sugeria que
parte da solução do problema estava na prevenção: era necessário que os índios
recém-descidos encontrassem nos novos aldeamentos roças já maduras que
garantissem o abastecimento necessário até que suas próprias roças estivessem
produzindo.89
Porém não eram os diretores ambiciosos os únicos a provocar a falta de
farinhas nas povoações. Um “perniciosíssimo abuso” tornava-se cada vez mais visível:
o uso das mandiocas para fabricação de aguardente, “com tanto excesso, que rara é
a casa, aonde não se destila aguardente, fazendo-se esta culpa transcendente aos
mesmos Brancos, o que é também em grande prejuízo da pretendida abundância
das Farinhas.”90
Existia toda uma legislação restritiva à fabricação e venda de aguardente de
cana. Em 1755, Francisco Xavier de Mendonça Furtado proibiu sua venda no Arraial
do Rio Negro sob penas de multas e prisão, e o Diretório também proibia sua

89
A citação de Pereira Caldas está em FARAGE, Nádia. As Muralhas dos Sertões. Op. cit., p. 139.
90
Lourenço Pereira da Costa. Memória sobre o Governo do Rio Negro (escrita logo depois de 1762). Op. cit., p. 47. Pe. João
Daniel diz que havia tanta aguardente no Amazonas como existiam vinhos na Europa, mas ele próprio afirma que três
espécies eram as preferidas: a de cana de açúcar que é muito “feiticeira”; a de beiju ou de farinha que é “tão espirituosa
que deveria chamar-se cáustico em vez de aguardente” e a de caju, menos considerada. A lista completa seria imensa:
pajuarú, caxiri, mocororó, caiçuma, destilados de cacau, café, laranja da terra, ananás, taperebá e os “vinhos” de bacaba,
patauá, açaí, umari, buriti, etc. Cf. Pe. João Daniel. Tesouro descoberto no rio Amazonas, v. 1. p. 385-386. FERREIRA,
Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica, p. 700-701; 724-725.
91
A proibição não é exclusiva do Grão-Pará. As restrições são mais abrangentes e parecem remontar ao início do século XVIII
quando, através de uma provisão do Conselho Ultramarino de 1706, ficou estabelecido que todo senhor de engenho que
convertesse sua cana em aguardente perderia a safra e, reincidente, seria preso e perderia o engenho.
92
SILVA, Antônio José Pestana da. Meios de dirigir o governo temporal dos índios. p. 55.

E spelhos P art i dos 187


introdução nas povoações. Pareciam ser providências inócuas já que, em 1786, o
governador do Rio Negro, Tinoco Valente, reiterou a proibição e recrudesceu as
penas.91
As restrições permanecem até 1774, quando, aparentemente, a administração
colonial se rende diante das dificuldades de conter o uso da aguardente e também
diante da impossibilidade de controlar a fabricação da bebida a partir de outras
matérias-primas que a cana-de-açúcar como é o caso da fabricada com beiju ou
farinha. Assim, neste mesmo ano, se estabeleceu um contrato para venda da
aguardente que ficaria sob a responsabilidade das Câmaras que receberiam seus
rendimentos. A aguardente então passa a ser tolerada em alguns casos, como por
exemplo, quando se tratava de realizar descimentos, como medicamento e também
como parte dos mantimentos das canoas que andavam no sertão, como diz o ouvidor
Pestana da Silva, em 1775:

Tem havido licenças dos governadores para se introduzir o dito


gênero, já para os Índios quando enfermam, já pelas frialdades
que participam, nadando e puxando canoas pelos rios à sirga, em
cujo trabalho não tem abrigo algum de vestidos, e para se evitar
que eles usem de bebidas espirituosas, extraídas das manivas que
arruinam a saúde.92

O consumo de bebidas “espirituosas” é reportado durante todo o século


XVIII como um traço inseparável do comportamento desordenado da população,
mas o uso das manivas para a fabricação de aguardente era ilegal por razões que
certamente não diziam respeito à saúde dos índios. Entre 1774-1775, o ouvidor
Ribeiro de Sampaio comentaria de forma bem mais pragmática essa questão: proibir
aguardente na América é como proibir o vinho em Portugal e o máximo que se
poderia conseguir com esse tipo de restrição é

dar motivo a contrabandos, e acrescentar em excesso


desproporcionalíssimo o valor aos gêneros proibidos, porque
os gêneros sempre se hão de vender, como sucede com a
aguardente. Os Índios [...] se não tem aguardente de cana, fazem-
93
Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio. Notas ao papel que tem por título, Memória sobre o Governo do rio Negro, Boletim
de Pesquisa da CEDEAM. Manaus, v. 2, n. 3, jul/dez/1983 (1) e v. 2, n. 4, jan-dez/1984.
94
Cf. RAVENA, Nírvia. O abastecimento no Grão-Pará do século XVIII, p. 30. Quanto à questão das vilas pombalinas, ainda
que elaborada de formas diferenciadas, essa constatação está em FARAGE, Nádia. MOREIRA NETO, Carlos. CHAIM, Marivone.
ALMEIDA, Maria Regina. Sobre Goiás, cf. CHAIM, Marivone. Aldeamentos indígenas em Goiás. KARASH, Mary. Catequese e
cativeiro: política indigenista em Goiás.

188 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


na de milho, de ananás, de beijú (que é o pão de mandioca), e de
outras frutas.93

O hábito de se “beberem as roças” apresenta uma faceta interessante da


escassez de alimentos que não deixa de revelar, no fragmento que permitiu iluminar,
determinadas estratégias de intervenção dos próprios índios sobre o projeto colonial
de implementar a agricultura.
Também no Amapá, a escassez de alimentos é uma constante no período
pombalino. N. Ravena considera que o quadro crônico de desabastecimento é resultado
da pressão por força de trabalho e excedentes adicionais que acabou por criar uma
tensão crescente nos limites de reprodução dessa nova estrutura econômica. Mas esta
situação não é exclusividade do Grão-Pará; na Capitania de Goiás e do Ceará, a
carência de alimentos também deu o tom das povoações formadas sob a égide do
Diretório. Este é um traço comum aos aldeamentos criados nesse contexto: sua
incapacidade de criar, no âmbito da produção, uma infra- estrutura que lhes garantisse
a reprodução interna.94
Com o quadro disponível, parece lícito afirmar que a pressão sobre os
trabalhadores para ampliar a busca de drogas, comprometeu o tempo, os recursos e a
força de trabalho necessária para os trabalhos da agricultura. No limite, foi essa pressão
que provocou as crises de abastecimento. A continuar esse raciocínio, os ouvidores
não deixavam de ter uma certa razão ao atribuir aos diretores a responsabilidade das
faltas de farinhas por conta das prioridades dos sertões sobre as culturas.
Porém certas dúvidas permanecem e, em certa medida, limitam conclusões
mais abrangentes: se foi a pressão das drogas que levou ao desabastecimento, e
considerando que sua extração está presente como atividade econômica principal
praticamente desde o início dos estabelecimentos portugueses na região, deve-se concluir
que todo o período colonial foi marcado por essa característica e, desta forma, não há
nenhum momento sem que se viva sob essa conjuntura de escassez.
Se a escassez é tão permanente, não seria mais correto acreditá-la estrutural?
Ou seja, não seria mais correto apreendê-la como um elemento da própria dinâmica
interna regional, uma variável a mais para entender o processo de acumulação interna
que se fez visível na segunda metade do século XVIII quando se realiza uma transição
(parcial) da mão-de-obra indígena para a mão-de-obra escrava de origem africana?

E spelhos P art i dos 189


A escassez de alimentos poderia ser apenas uma face – visível e dolorosa
para a maioria – dos mecanismos de controle da mão-de-obra e, no limite, do
próprio processo de acumulação. Nessa direção, penso especificamente na questão
apontada por John Monteiro e C. MacLachlan, qual seja a de que o acesso seguro
aos índios era a garantia da formação e da consolidação das fortunas e hierarquias
locais, ao mesmo tempo em que ampliava a distância entre uns poucos afortunados
e a maioria da população imersa em uma grande pobreza.
É assim que aqueles que estavam a salvo do “dilúvio de misérias em que
flutuava a maioria”, tinham garantidos seu acesso aos sertões das drogas e dos
índios, aos trabalhadores necessários à faina agrícola, aos remeiros, pescadores,
caçadores, carpinteiros, oleiros, aos serviçais domésticos, amas de leite, lavadeiras,
criadas, cozinheiras, fiandeiras, com custos reduzidos que, em última análise, lhes

PRODUTOS AGRÍCOLAS DO GRÃO-PARÁ: 1756-1810

190 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


VALORES DOS ESTOQUES DA COMPANHIA DE COMÉRCIO ( 1760-1774)

Fonte: Adaptado pela autora a partir de M. Nunes Dias, op. cit. pp.536

E spelhos P art i dos 191


PRODUTOS EXPORTADOS PELA COMPANHIA DE COMÉRCIO DO GRÃO-PARÁ

192 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


permitiram acumular o suficiente para adquirir “peças d’África” a partir da instalação
da Companhia de Comércio e, até mesmo, gozar de certas facilidades de crédito
concedidas àqueles que se apresentassem para compra de escravos. Ainda uma vez,
o verdadeiro remédio da pobreza são os índios.

E spelhos P art i dos 193


C APÍTULO 9

POLÍTICAS E PODERES NAS POVOAÇÕES DO


GRÃO-PARÁ

Quanto ganhe o interesse público na união das opiniões


das autoridades constituídas é impossível exagerar.
É preciso identificar certos princípios gerais
com tal intimidade que não suceda jamais
– uma ainda mínima – divergência de opiniões
que será sempre de funestíssimas conseqüências
contra o bem dos vassalos de S. A. R.

Conde dos Arcos ao governador do Rio Negro - 1805.

Antes de abordar esse ponto, gostaria de destacar, para fins de análise, três
níveis de relações entre políticas e poderes. Um que diz respeito às relações
propriamente administrativas que se estabelecem entre governadores militares das
capitanias, capitães-generais e o governo metropolitano.
Um segundo nível referencia as relações internas nas capitanias, o cotidiano
do exercício do poder nos sertões, fora do alcance das mãos régias, ligando os

1
LEONARDI, Victor. Entre árvores e esquecimentos: história social nos sertões do Brasil. Brasília: Paralelo 15, 1996. p. 127.
2
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil Colonial: a Suprema Corte da Bahia e seus juízes - 1609-1751. São
Paulo: Perspectiva, 1979.
3
APP - Códice 265, doc. 17. Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio foi o 3º ouvidor do Rio Negro. Formado pela Universidade
de Coimbra, foi nomeado Juiz de Fora e Provedor da Fazenda Real do Pará em 1767. Em 1772, passa a Ouvidor e Provedor
da Fazenda e Intendente da Agricultura da Capitania do Rio Negro. Tomou posse em 27.10.1773. Ao regressar a Portugal
em 1779, após participar de uma junta provisória, foi nomeado provedor da comarca de Miranda Douro. Em 1800, recebeu
a nomeação de desembargador da Casa de Suplicação em Lisboa.

194 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


governadores e seus subordinados diretos, outros representantes do poder real,
sacerdotes e as lideranças locais.
Por fim, mas não por último, as relações políticas das lideranças indígenas
com os funcionários coloniais, colonos e com as populações aldeadas. Poderíamos
ainda acrescentar um outro, mais difuso e de difícil apreensão, envolvendo as
populações ainda não reduzidas e que continuam nos sertões, estabelecendo laços e
contatos sistemáticos ou não com esse mundo propriamente colonial.
Claro está que essa divisão serve apenas para tornar nossa intervenção um
pouco mais precisa e não significa, em nenhum momento, que esses níveis sejam
rigorosamente hierarquizados ou que não tenham-se entrelaçado, complexificando
as relações de poder nos sertões.
Aliás, é bom recuperar também que a noção de sertão que venho utilizando
é aquela definida por V. Leonardi, i.e., “espaços do território brasileiro nos quais os
aparelhos de Estado não estão tão presentes ou presentes de fato. Espaços de sertão
nos quais as leis são, muitas vezes, letra morta.”1
Estas não são questões novas na historiografia. No Brasil colonial, o
entrelaçamento constante das instituições jurídicas e administrativas representou, na
prática, um espaço de tensão e disputas. Um bom exemplo vem do trabalho de
Stuart Schwartz sobre o Tribunal da Relação da Bahia, que recupera, não só a trajetória
de formação do próprio Tribunal, mas também a inserção de seus membros no
contexto colonial, isto é, no interior de seus conflitos e contradições internas, que
terminaram por estabelecer novos limites e também novos padrões de atuação
para seus agentes.2
Nos sertões do Rio Negro, não parece ser muito diferente e isso é reconhecido
pelos contemporâneos. O ouvidor Sampaio, em 1777, definiu o Rio Negro como
“a Pátria das sublevações, das conjurações e das insolências...”3. Tanta indignação e
virulência parecem indicar um bom começo de conversa...

4
Mello e Póvoas foi nomeado a 16.07.1761, substituindo a Gonçalo Pereira Lobato e Sousa no governo do Maranhão. Após
a separação do Maranhão do Estado do Grão-Pará, em 1772-1774, Póvoas continuou a frente do governo do novo Estado.
5
O capitão Miguel de Siqueira Chaves tinha uma extensa folha de envolvimento com o “contrabando de tapuias” na região
do Negro. Sua habilidade para transitar nos sertões era notória. Aparentemente, o envolvimento com o tráfico de índios
não chegou a criar maiores embaraços a sua carreira militar; em 1754, era Capitão Ligeiro do Regimento de Macapá. Porém,
recomendava-se que não o enviassem ao sertão sem que estivesse subordinado a oficial de respeito para que não sofresse
uma recaída, “lembrando-se da antiga vida”. Cf. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. AEP, Tomo 2, p. 519.

E spelhos P art i dos 195


Para não tornar esse texto um verdadeiro cipoal de citações e referências,
escolhi o governo de Joaquim de Mello e Póvoas (1758-1761), primeiro governador
do Rio Negro, para tentar ilustrar nossa “pátria de sublevações”. Por outro lado,
trabalhar o período de sua gestão não me compromete com uma cronologia rigorosa.
Isso significa que, quando necessário, podemos visitar outros momentos e até mesmo
outros espaços da administração colonial no Grão-Pará.
Para começar, vamos conhecer um pouco mais sobre o nosso coronel
governador. Era sobrinho de Francisco Xavier de Mendonça Furtado (Capitão-General
do Grão-Pará e Maranhão) e de Sebastião de Carvalho e Mello (Marquês de Pombal).
Não é surpreendente um parentesco tão gabaritado. Para além do peso das relações
pessoais e familiares em sociedades de Antigo Regime, é possível acrescentar também o
peso político da região no projeto pombalino ou, em menor escala, o fato de que o
governo de uma capitania recém-criada era uma boa “área de testes” para gabaritar
vôos mais altos na carreira administrativa e militar.
Seguindo essa trajetória, assim que deixa o governo do Rio Negro, Mello e
Póvoas é nomeado governador do Maranhão e recebe a sua tão desejada (e solicitada)
patente de coronel de cavalaria de seu estimado tio Furtado que, a essa altura, já é
Ministro de Negócios Ultramarinos4. Só que conseguí-la não foi tão fácil como parece
à primeira vista. Póvoas lastima-se até a última consternação da sua difícil vida no Rio
Negro. Suas cartas são um retrato do complexo cotidiano colonial, do ponto de vista
do mais alto cargo real disponível na região. Porém, seu relato abre a perspectiva de
reconhecer as estratégias e articulações dos diferentes poderes e políticas que estavam em
jogo nesse momento.
Em várias passagens, Póvoas parece um desterrado. Lamenta sua solidão, o
peso das suas responsabilidades, as dificuldades e carências administrativas e financeiras,
as “insolências” e “soberanias” de seus subalternos e dos sacerdotes, as “infidelidades”
dos índios e, até mesmo, a mudança de seus hábitos alimentares. Não é difícil perceber
a delicadeza do momento e a enorme tensão administrativa e política de seu governo. Se
Póvoas tivesse tomado conhecimento do que Sampaio diria do Rio Negro 20 anos
depois, concordaria com o Ouvidor plenamente.
Em 1758, ao chegar ao Arraial de Mariuá, futura Vila de Barcelos, na companhia
de Mendonça Furtado já encontra uma guerra em curso. Uma rebelião indígena iniciada
no aldeamento de Dari (Lama-Longa) em 1757 tinha-se estendido para outros lugares,

6
Joaquim de Mello e Póvoas a Thomé Joaquim da Corte Real. 21.12.1758.

196 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


alcançando Bararoá (Thomar) e Caboquena (Moreira). Quando a comitiva do Capitão-
General chega ao rio Negro para instalar a nova Capitania, as tropas de guerra de Miguel
de Siqueira já estão no encalço dos Principais Manacaçari, Mabé, Domingos, João
Damasceno, Ambrósio, Manoel e João Tagemary.5
A rebelião foi vencida e Manacaçari, morto. Outros Principais se internaram
na floresta, escapando à repressão. Alguns índios foram presos e enforcados como
exemplos da justiça real, mas as próprias autoridades reconheceram que os “cabeças”
não foram capturados. Essa ação de guerra é extensa e impede, durante um certo
tempo, que Póvoas visite todas as povoações da Capitania e cumpra os ritos de
elevação dos antigos aldeamentos em vilas e lugares. Isso só pôde ocorrer em finais
de 1759.
O clima tenso provocado pela rebelião era amplificado por conta dos
distúrbios ocorridos no ano anterior (maio/1757) provocados pelo levante da tropa
aquartelada por falta de pagamentos, ainda antes da chegada do novo governador.
A tropa desertara com 10 canoas reais em direção às fronteiras espanholas. Essa
deserção desguarneceu o Arraial de Mariuá, e seu comandante, receoso de um ataque
dos índios rebelados, havia solicitado do Pará a tropa de 180 homens comandada
por Miguel de Siqueira.
A rebelião indígena não só provocava temor, mas principalmente, falta de
alimentos e de trabalhadores. Os índios aldeados disponíveis estavam engajados nas
tropas e, posteriormente, quando a rebelião foi derrotada, faziam parte dos comboios
que conduziam os prisioneiros para Belém.
A falta de gêneros, por sua vez, comprometia a estratégia de aumento das
povoações através dos descimentos, já que elas não dispunham de alimentos em
quantidade suficiente para abastecer novos contingentes populacionais. Esse é o
diagnóstico – em certa medida, angustiado – que Mello e Póvoas faz em sua
correspondência quando assegura que;

A sublevação dos soldados foi o princípio de todas as desordens


desta Capitania e ao depois chegou a maior consternação pelo

7
MA - RN - Caixa 1 Doc. 37. Lourenço Pereira da Costa a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Barcelos, 2 de setembro
de 1762. Lourenço Pereira da Costa exerceu suas funções entre os anos de 1760 a 1767.
8
Antônio Landi, que registrou o encontro, assegura que o Capitão-General nada mais disse e deixou-os ir. Cf. FERREIRA, A.
R. Op. cit., p. 220-230.

E spelhos P art i dos 197


levante de índios. [...] Os excessos referidos ocasionaram nesse
Rio tanta falta de farinhas que certamente não será fácil o achar-se
nele doze alqueires dela, por não poderem os índios fazer as
roças o ano passado [...]6

Para estabelecer a paz e iniciar os descimentos era preciso negociar com os


Principais mais próximos o que, na verdade, não era garantia segura de que os
acordos seriam necessariamente cumpridos por ambas as partes. Eram relações de
grande complexidade porque as lideranças tinham suas próprias leituras quanto às
ações portuguesas, e determinadas promessas não eram (e nem podiam) ser levadas
a sério. Alguns episódios podem ilustrar bem essa questão.
A este respeito, um dos diagnósticos do ouvidor Lourenço Costa é objetivo.
Escrevendo a Mendonça Furtado em 1760, lastima os excessos dos descimentos e
acredita que são estes procedimentos que impedem o crescimento das povoações
do Negro porque os índios “nos reputam muito faltos de palavras, e os queremos
cativar, pois os amarram.”7
Se os descimentos, que deveriam expressar a estratégia do convencimento e
da brandura – ao menos como diretiva – acabavam desdobrando-se em ações
violentas, era compreensível que, experimentados pessoalmente ou apenas informados
da possibilidade do exercício dessas práticas mais violentas, os índios buscassem
evitar comprometer-se com os descimentos. E se acaso o faziam, prometendo, mas
não cumprindo o acordo para descer, essa aparentemente era apenas uma forma
possível, ou se se quiser, mais sutil, de dizer não à estratégia colonial.
Em outra direção, um dos casos de recusa mais explícitos na documentação é
o dos Principais Mabé e Cacuí que, em 1755, quando praticados para descer ao Arraial
de Mariuá respondem a Mendonça Furtado que “eles e sua gente não eram sujeitos a
pessoa alguma”8
Os índios rebelados de 1757, aparentemente, também tinham leituras precisas
acompanhadas de ações bem mais enérgicas. A revolta iniciada na povoação de Dari
foi, progressivamente, se estendendo até alcançar Bararoá. O ataque a essa povoação
encontra outra movimentação em curso: o novo Principal de Bararoá está em pleno
processo de ajuntamento de sua gente para que deixem a povoação. Juntam-se aos
rebeldes e destroem a localidade. Entre eles, um grupo de índios Coyana, fugitivos da

9
Carta do Capitão-General do Estado do Grão-Pará ao Ministro dos Negócios do Reino. 04.07.1758 In: Boletim da CEDEAM.
Manaus: v. 1, n. 1, jul/dez, p. 51-54, 1982.
10
APP - Códice 169, doc. 43. 22.07.1766.

198 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Vila de Alenquer no Pará. De acordo com as fontes, esses índios vinham subindo o rio
por quilômetros e praticando em várias povoações pela rebelião porque seu missionário
teria estimulado sua fuga para as matas, argumentando que agora eles iriam experimentar
“infinitas injustiças e violências e que ultimamente ficariam escravos dos Brancos”.
Pode haver exagero na visão do administrador colonial no papel do missionário,
estimulando a fuga dos índios já que esse tipo de comportamento com traços de
sabotagem foi argumento freqüente empregado, em vários momentos, para corroborar
uma política mais ampla de supressão do poder temporal dos missionários. De qualquer
modo, as informações de Mendonça Furtado eram baseadas na devassa promovida
pelo Ouvidor Geral e as testemunhas registraram que os Coyana vinham participando
essa notícia a todas as povoações, “e se foram unir com os levantados, acabando-os de
radicar nas péssimas idéias que tinham concebido, e unido com eles em um corpo,
passaram a fazer os execrandos delitos...”9
Quaisquer que tenham sido os móveis das ações dos Coyana, parece que sua
presença nos levantes do Negro é uma evidência das possibilidades de construção de
novas alianças, forjadas a partir da fuga dos aldeamentos.
Existiam muitas dificuldades “técnicas” que afloravam na construção das
alianças e compromissos mútuos; um momento que pode bem representá-las aparece
em 1766 quando o Ajudante Francisco Rodrigues foi encarregado de descer o Principal
Mabiú do rio Cauaburis.
A finalidade do descimento era estratégica. A entrada do Cauaburis era
considerada como a principal rota de fuga dos índios em direção às possessões de
Espanha. Um aldeamento naquele porto poderia frear essa movimentação. Apesar de
ter concordado com o descimento, Mabiú “cavilosamente se revoltou” e matou
Francisco Rodrigues. O que mais impressiona nesse episódio é o fato de que não foi
uma emboscada que vitimou o Ajudante. Não se estava lidando com índios tidos
como “inimigos”; ao contrário, todas as movimentações de Mabiú apontavam para a
concordância com o descimento, depois de uma série de contatos com o Ajudante
Francisco. O Principal retornou ao ponto de encontro onde Francisco o esperava
conforme combinado cumprindo, assim, os termos do acordo inicial.
Difícil precisar quais os acordos quebrados por Francisco que podem ter
levado à sua morte. Fica evidente, nos relatos, que o Ajudante estava absolutamente
confiante nos bons resultados de suas práticas a tal ponto que recebeu o Principal sem

11
Cf. AMOROSO, Marta R. Guerra Mura no século XVIII. FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões. SANTOS, Francisco J. dos.
Além da conquista.

E spelhos P art i dos 199


receio algum, deitado que estava em sua rede e distante de suas armas, quando levou
uma paulada na cabeça. Os poucos que se salvaram asseguraram ao governador que
o excesso de confiança de Rodrigues no respeito que os índios lhe tinham fora a causa
de sua morte.10
Falar em paz no Rio Negro, nesse período, é uma abstração. As
administrações coloniais viveram um estado de cerco constante até finais do século
XVIII. Além dos levantes no Negro, pelos rios Madeira e Solimões, desde meados
dos anos de 1725, estavam em pleno movimento de expansão territorial os Mura
que, numa rota centrífuga, se movimentam do Madeira em direção ao Amazonas,
Solimões e alcançaram o Negro. Adversários temíveis, “índios de corso”, os
confrontos com essa etnia só refluiriam com a celebração da paz em 1784.
Mal iniciado o aldeamento dos Mura, é a vez do confronto com os
Mundurucu, população estabelecida no baixo Tapajós e baixo Madeira, que aparece
em expansão territorial no início do século XVIII, primeiro em direção ao Pará,
chegando às proximidades de Belém, perturbando não só os incipientes núcleos
coloniais, mas também os seus vizinhos Parintintin, Arara, Mawé e Mura. Entre
1770 - 1790, o movimento expansionista Mundurucu muda de direção e assume a
rota oeste na direção do Madeira e chegam até Autazes, literalmente “empurrando”
os Mura para os aldeamentos portugueses. A paz com os Mundurucu só é celebrada
em 1795. Do norte, no rio Branco, uma onda de rebeliões e levantes indígenas nos
aldeamentos ocorre entre 1780 - 1784. Após uma série de intervenções retoma-se a
política de aldeamentos na área, mas não foi suficiente. Em 1790, o Branco assiste a
uma nova onda de rebeliões nos aldeamentos.11
Lutando com os índios não-aldeados, com os rebelados das povoações e
com as constantes “infidelidades” e “traições” dos Principais é assim que os
administradores do Rio Negro sobrevivem até finais do XVIII.
Mas isso não é tudo. A política interna das povoações já estabelecidas também
não é nada simples. Muito pelo contrário. Índios aldeados, Principais, Diretores,

12
Cf. SPALDING, Karen. De índio a campesino: cambios en la estructura social del Perú colonial. Lima: Instituto de Estudios
Peruanos, 1974.
13
CARDOSO, Ciro F. S. Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas. Op. cit.
14
A figura dos Ausentes nada mais é do que uma estratégia de recusa na medida em que grupos inteiros podem,
simplesmente, retirar-se dos aldeamentos, escapando do controle dos Diretores e das portarias de distribuição de
trabalhadores.

200 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


colonos, soldados, párocos, cabos de canoa, tesoureiros e oficiais de menor patente
compõem uma intrincada tapeçaria refeita no cotidiano.
Em se tratando dos índios aldeados e seus Principais, é preciso lembrar que
essa interface entre política indígena e política indigenista é muito mais dinâmica. O
Diretório, ao enfatizar a diferenciação social com indicador da civilização, criou um
mecanismo que podia funcionar como um significativo fator de cooptação, mas
que, no limite, resultava na diferenciação econômica e social desses indivíduos do
conjunto da população aldeada. Não seria um caso único: a figura dos curacas no
Peru é um bom exemplo de que é possível pensar nessa estratégia de articulação. A
diferença básica que separa as populações indígenas da Amazônia Portuguesa daquelas
estabelecidas no Peru colonial é o fato de que, no Peru, os curacas eram autoridades
já reconhecidas no mundo andino pré-conquista com uma série de funções e
prerrogativas características que a estrutura colonial vem, em um primeiro momento,
reconhecer e reforçar estabelecendo a “administração indireta”.12
Por outro lado, a inexistência de comunidades estruturadas nos padrões
hierárquicos encontrados nas áreas coloniais espanholas, indicou um caminho diverso
para a Amazônia Portuguesa. Nessa região, o papel das missões religiosas criando e
estabelecendo comunidades agrícolas estáveis, favoreceu a formação de um proto-
campesinato indígena. Existem indicações de que a emergência desse proto-
campesinato permitiu um redimensionamento substantivo das relações entre povos
aldeados e não-aldeados.13
As “hierarquias indígenas” reforçadas pelo Diretório e a existência de
populações que já tinham mantido um longo contato com os mecanismos coloniais
conduzem a algumas ponderações. Em primeiro lugar, considerando que cabia às
lideranças tribais a preparação e negociação dos descimentos, isso requeria dos
administradores coloniais uma vasta rede de negociação política para garantir a
continuidade do afluxo de pessoas para as povoações. Quanto aos Principais, a
manutenção de suas prerrogativas de mando dependia, também, de sua capacidade
de fazer valer o atendimento das necessidades de seus “vassalos”: o fornecimento
de ferramentas, tecidos, acesso aos bens do Comum, concessão de patentes e/ou

15
APP, Códice 169, doc. 23. 1766.
16
FARAGE, N. Op. cit., p. 161, 1991.
17
Ver SPALDING, Karen. Op. cit., p. 85. FARAGE, N. Op. cit., p. 162 ss.
18
O mesmo conflito ainda persiste no século XIX na Capitania do Rio Negro, como afirma o ouvidor Antônio Feliciano
Bittencourt a respeito de seu relacionamento com o governador Manoel Joaquim do Paço: “Nada pode obrar a justiça,
aonde se intromete e influi o poder da força e da Autoridade Militar”. Cf Relatório do Ouvidor da Capitania do Rio
Negro.(1820 - Dezembro, 23) MA - AHU 056 - Caixa 12 - Doc. 76, p. 11.

E spelhos P art i dos 201


cargos. Para tanto, possuíam poderosos instrumentos de negociação – a barganha e
a recusa.14
Um exemplo dessas situações é o pedido de um sobrinho do Principal
Dionizio de Alvellos (Coari). Florentino de Mendonça solicitou diretamente ao
governador do Rio Negro, a patente de Capitão de Índios de Alvellos por ter
participado de um descimento bem sucedido. Como continuava a realizar as mesmas
operações, o governador pede que lhe seja concedida a patente, pois assim “ficará
o dito Índio satisfeito, e obrigado a pôr maior eficácia no dito emprego. Seu pedido
de patente foi devidamente secundado por uma carta do próprio Principal Dionizio,
reforçando seus bons serviços ao governador.”15
Nádia Farage comenta, neste aspecto, que a investidura de patentes e títulos
honoríficos foi um instrumento valorizado pela política pombalina na “criação de
interlocutores políticos entre a população indígena aldeada; sua eficácia [...] ficava na
dependência da aceitação por parte daquelas a quem se destinavam.”16
Aparentemente, era um acordo com amplas vantagens para os envolvidos.
Se por um lado, era interessante para os agentes coloniais minimizarem as enormes
dificuldades dos descimentos e manter as populações aldeadas, para os Principais
era importante o respaldo externo de sua liderança, na medida em que o liberava
parcialmente das pressões internas do próprio grupo. Contudo essa política de
reforço da autoridade dos Principais tinha limites bem pouco elásticos. A experiência
dos curacas e as considerações de Farage para o rio Branco apontam para a mesma
direção: à medida que as lideranças são cada vez mais pressionadas a recrutar uma
quantidade de trabalhadores ou mobilizar recursos superiores às suas limitações
internas de negociação, a tendência é a redução da capacidade de mando da chefia.17
Poucas são as alternativas: para os chefes, um distanciamento definitivo da
sua comunidade pela adoção definitiva dos padrões do mundo colonial ou, pelo
contrário, um retorno às matrizes de seu poder original. Para os agentes coloniais
diretos, resta o recurso à violência ou a reinvenção de velhos mecanismos de
recrutamento. Em certa medida, foi o que aconteceu a partir da Carta de 1798.

19
Lourenço Pereira da Costa a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Barcelos, [1761-1762]. In: Boletim de Pesquisa da
CEDEAM. Manaus, v. 2, n. 3, p. 65, jul/dez, 1983.
20
APP, Códice 54, doc. 87 e Códice 123, doc. 48.

202 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Se tudo isso não for suficiente, ainda existem mais atores. As ações abusivas
dos Diretores, as interferências dos párocos, as “insolências” dos oficiais subalternos,
conflitos de autoridade com os ouvidores, sem esquecer a corrupção dos responsáveis
pelas rendas e armazéns reais e, claro, as constantes ameaças às fronteiras lusas.
Sintomáticas neste aspecto, são as relações dos ouvidores com os
governadores militares. De uma forma ampla, é possível assegurar que a disputa
entre a toga e a farda marcou esse relacionamento durante toda a segunda metade
do XVIII.18
Os primeiros sinais já aparecem na correspondência do primeiro ouvidor,
Pereira da Costa. Protesta ao Capitão-General do Pará, com seu estilo peculiar, que
não se obedece às suas ordens, e as justiças “são muito pouco atendidas e respeitadas”
porque os comandantes militares assumiram de tal forma o poder na Capitania que
nada se faz sem que sejam sob ordens do Governador.
Pede que se delimite a sua jurisdição efetiva pois “já não sou criança que
jogue as escondidas” e que advirta aos diretores “[...] para que observem as minhas
ordens enquanto ao diretivo do comércio, agricultura, manufatura e colonos, porque
as minhas ordens [...] tem negação para serem nocivas, e se por militares tem por
timbre não obedecerem a Ministro Político, prescindam de diretores.”19
Pelo grau de interferência do governo da Capitania na distribuição dos
índios, fica evidente que seu relacionamento com o governador é tenso, mas assegura
que sempre procura viver “em boa harmonia” porque “a corda quebra pelo mais
fraco que sou eu”. Boa parte de sua correspondência é um esforço de esclarecer
intrigas e desfazer mal entendidos.
Tarefa, aliás, de difícil consecução. Se não há exageros de sua parte, ele
conseguiu angariar muitas animosidades: o eclesiástico que servia na vila, os diretores,
os militares responsáveis pela execução de obras, o fiel do armazém, entre outros
que cita. Até mesmo a realização da correição dá motivo a extensas correspondências
com o Capitão-General no Pará: ele não tinha canoa para realizar a viagem de
correição, não conseguia fabricá-la na Capitania e, só em 1764 – praticamente no
final de sua gestão – é que se recebe uma ordem real para aprontar a dita canoa para
que se realize a correição!20

21
Em 1777, por motivos pouco esclarecidos “de caso pensado e rixa velha”, foi agredido fisicamente nas ruas de Barcelos
pelo Vigário Jerônimo Ferreira Barreto e pelo seu primo Capitão Felipe da Costa Teixeira. Cf. FERREIRA, A. R. Op. cit., p. 372
22
FERREIRA, A. R. Op. cit., p. 344.

E spelhos P art i dos 203


O ouvidor seguinte, Antônio José Pestana da Silva logo percebeu os limites
do relacionamento com os governadores-militares: a questão da distribuição dos
índios. Preocupado com as ações dos Diretores, reconhece que de nada adianta
denunciá-las porque, nomeados pelos governadores, são por eles resguardados e
nada acontece.
Os comentários mais específicos de Pestana a respeito dos militares e do
governador são um indicador significativo da tensão que os cercava. Embora
reconhecendo que as tropas tem uma certa utilidade, “não me desculparia de erro grande,
se me lembrasse de sua total extinção.”
Nem mesmo o altamente recomendado ouvidor Sampaio escapou dos
conflitos entre a toga e a farda. Ainda privando da amizade pessoal de João Pereira
Caldas, governador do Grão-Pará, isso não foi suficiente para reduzir suas zonas de
atrito com o governador do Negro e muito menos para livrá-lo do confronto com
outros representantes do poder local.21
Os outros ouvidores que atuaram no período das demarcações são interinos.
“Homens bons” da própria capitania, junto com as câmaras municipais, possuíam
um espaço bastante restrito de atuação pela presença do poderoso comissário das
demarcações do Tratado de S. Ildefonso, João Pereira Caldas. Mas ainda assim exercem
suas prerrogativas com demonstrações de intensas lutas internas. Alexandre Rodrigues
Ferreira faz um retrato ferino da atuação dos representantes do poder local em 1786:

Sobre o comportamento Político dos diferentes Oficiais, que


tem tido o Senado [...] informarei que tem variado muito, e que
nem sempre a circunspecção ditou os Acórdãos dos Senadores.
A polidez, e a civilidade recíproca, em atenção aos seus cargos e a
uniformidade dos sentimentos em obséquio ao Bem Público,
tem sido cada vez mais sacrificados aos seus caprichos
particulares.22

Representantes da justiça real, mas subordinados aos governadores, os ouvidores


encontraram limites ao cumprimento de suas determinações, em especial, àquelas que

23
O ouvidor Pereira da Costa considerava que o viver com o “rito dos índios” configurava-se em um dos resultados mais
complicados da política de casamentos mistos. Para resolver o problema recomendava que se facilitasse o estabelecimento
desses moradores, impedindo sua “demasiada ociosidade, em que alguns vivem nas Povoações, com excesso de Bebidas,
e enredos com o Gentio, tratando os Índios com aspereza, envergonhando-se de trabalharem...” COSTA, L. Memória sobre
o Governo do rio Negro, p. 49 e 50.
24
Joaquim de Mello e Póvoas a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Barcelos, 16 de janeiro de 1760.

204 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


interferissem nos padrões de distribuição de mão-de-obra. Responsáveis ainda pelo
desenvolvimento do comércio, da manufatura e, especialmente, pela arrecadação da
Fazenda Real, identificam abusos e desvios inclusive com a aquiescência velada das
autoridades coloniais.
Contudo estão longe de estar a salvo das acusações de enriquecimento ilícito, de
negócios escusos e abusos de poder. Também eles ajudam a tecer e a tornar ainda mais
intricadas as malhas do poder no Rio Negro porque representam, de algum modo, um
limite interno aos próprios quadros coloniais no esforço de implementar os projetos da
Coroa.
Quando nos voltamos para os índios, colonos e soldados estabelecidos nas
povoações, o comportamento que mais perturbava párocos e bispos era a manutenção
da práticas de poligamia e concubinato entre os índios e os moradores brancos. A
“lassidão” dos costumes é uma fonte de preocupação permanente nas visitas pastorais
e isso era válido para todo o Grão-Pará, mas especialmente naquelas povoações onde
existe tropa aquartelada, de acordo com a percepção dos diferentes bispos que
realizaram diagnósticos a esse respeito.
Como já se disse, a política de casamentos interétnicos, indicada em 1755 e
reiterada pelo Diretório não parecia produzir os “efeitos de civilização” esperados
que a prática se encarregou de apresentar. O resultado indesejável dos casamentos era
o fato de que os moradores brancos, em vez de civilizarem os índios, barbarizavam-se
eles próprios. Os casamentos assim realizados geraram muita polêmica. Vários membros
da administração colonial não pouparam críticas aos novos casais, denunciando maus
tratos físicos e agressões verbais que as esposas índias sofriam de seus maridos brancos,
chegando alguns ao extremo de praticarem lenocínio com suas próprias mulheres.23
A redução dos privilégios concedidos aos recém-casados em 1772 relacionava-
se não só com o elevado número de baixas na tropa, mas também com a disseminação
dos cunhamena, figura surgida ainda na década de 1750 e que, de certa forma, contribuiu
também para o estabelecimento de medidas restritivas ao casamento. A presença dos
cunhamena também complicava a convivência nas povoações. Em 1759, Póvoas é
obrigado a interferir em uma situação dessas. Um colono João Portez Arzão apresentou-
se para casar com a filha do Principal Sanidato. O governador foi o padrinho do
novo casal e, como de praxe, concedeu-lhes os prêmios: as ferramentas, as terras e
mais índios para dar início às roças.24

E spelhos P art i dos 205


O Principal aproveitou a cerimônia e garantiu a Póvoas que iria descer com
sua gente para criar uma povoação no Igarapé do Ramos e ajudar na roça do genro.
Aparentemente tudo corria bem e estavam todos trabalhando no local quando aparece
um outro Principal reclamando que aquele mesmo colono já era marido de sua filha
e a tinha repudiado. Aproveitando-se de uma distração do português, acertou-lhe
com um machado e, junto com os parentes da esposa repudiada, mataram-no. O
novo sogro ficou sentido e deixou a povoação com sua gente para preparar-se
para guerra contra o outro Principal. Póvoas é obrigado a intervir e arruma novos
maridos: um para a viúva e outra para a esposa abandonada.
A reação das famílias envolvidas no episódio da morte do cunhamena
possibilita avaliar a importância da aliança proveniente do casamento. Para além das
vantagens do “dote” recebido pelo recém-casado, quem reagiu com vigor foram

206 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


os familiares da índia abandonada. Sempre se pode argumentar que o
desconhecimento dos padrões de casamento das etnias envolvidas não nos deixa
muito espaço para grandes considerações. Isto, sem dúvida, está absolutamente
correto, mas também não é possível deixar de notar que o casamento traz consigo
um conjunto de compromissos bilaterais: o descimento das gentes, a abertura de
novas roças, o aceno com o fim da infâmia do sangue para casados e seus
descendentes e os “prêmios” concedidos aos índios descidos. O próprio ato de
descer já trazia consigo o reconhecimento da liderança daquele Principal responsável
por seus vassalos, no contexto da povoação; liderança reconhecida e reforçada pela
autoridade colonial. Todos esses compromissos parecem colocados em risco com
o repúdio da índia.
Por outro lado, a animosidade em que ficam os novos parentes do cunhamena
e a ameaça do esvaziamento do novo estabelecimento seguido da guerra acabam
sendo resolvidos, à moda de Salomão, concedendo-se um marido para cada uma
das ex-esposas. Acordos refeitos, ânimos serenados. Ao menos, temporariamente.
Afinal, como registrou o governador, esse vinha sendo o fim de muitos dos
cunhamenas.
Talvez, depois dessa longa viagem pela pátria das sublevações, seja possível
entender porque Póvoas dizia que desejar a alguém estivesse no Rio Negro era igual
a rogar-lhe uma praga. A descrição da vida na fronteira deixa entrever a
multiplicidade de atores coloniais buscando sobreviver, no contexto de um cotidiano
que surpreende a cada momento e que não se deixa apreender por categorias simples.
Um jogo que não é composto apenas de diretores “vorazes” e índios “oprimidos”.
Ao contrário, se esses são personagens presentes e, mesmo, freqüentes, não são
únicos.
As administrações coloniais foram obrigadas a refazer suas estratégias de
controle e dominação, na prática, convivendo com os diferentes contextos colocados
pela movimentação das políticas indígenas.
A “praga”, mencionada por Póvoas, podia não dizer respeito apenas às
inúmeras faltas do Rio Negro. Podia também ser estendida para a percepção de que
o jogo da dominação colonial tinha que se readequar levando em consideração
elementos antes insuspeitos: insubordinação, insolências, malícias e muitos enganos.
1
ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1808. Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. Brasília:
Editora da UnB, 1982. AZEVEDO, João Lúcio de. Os jesuítas no Grão-Pará. Op. cit. MALHEIRO, A. M. Perdigão. A escravidão
no Brasil. São Paulo: Edições Cultura, 1944.

E spelhos P art i dos 207


Não apenas dos índios, como parecem esperar de antemão, os administradores,
preparados para encontrar ‘bárbaros’. No limite, fala-se aqui da construção do
processo colonial, resultante direto das intervenções de seus agentes, modificado e
reacomodado a cada articulação. São essas reorientações que se quer buscar destacar
a seguir.

2
MOREIRA NETO, Carlos A. Índios da Amazônia. Op. cit., p. 27. BEOZZO, Oscar. Leis e Regimentos das Missões. Op. cit., p.68-
69. SANTOS, Francisco Jorge dos. Além da conquista, op. cit., p. 57. ALMEIDA, Rita Heloísa de. O diretório dos índios. Op.
cit.
3
SOMMER, Barbara. Negociated Settlements. Op. cit. p. 316-317.

208 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


CAPÍTULO 10

REFAZENDO O DIRETÓRIO

Lenha verde, mal se acende


Quem muito dorme, pouco aprende.

Luciano Breve, Fortaleza do Rio Negro, 1770.

A historiografia que trata do Diretório é vasta e diversificada. A despeito disso,


existe uma tendência consolidada no sentido de avaliar o Diretório como a legislação
mais devastadora sobre a vida das populações indígenas da Amazônia, em todos os
seus níveis.
Capistrano de Abreu o considera uma “malfadada criação de Mendonça
Furtado”, responsável pela redução demográfica das regiões onde foi implementado,
chegando mesmo a considerá-lo como uma das raízes da Cabanagem pelas “misérias
nefandas” que impôs àquelas populações. João Lúcio de Azevedo, fiel à sua crítica à
política pombalina, considerou-o como uma legislação inaplicável e que estava
antecipadamente condenada ao desaparecimento. Perdigão Malheiro, muito inspirado
na leitura do ouvidor Antônio Pestana, incorpora as considerações desse ouvidor
desenhando um Diretório fundado sobre a contradição entre a liberdade e a compulsão
ao trabalho e, por essa razão, um ambíguo e contraditório labirinto de determinações
que só fortaleceu a opressão sobre os índios.1

4
Idem, p. 309.
5
KARASH, Mary. Catequese e Cativeiro: política indigenista em Goiás, 1780-1889. In: CUNHA, Manuela C. (Org.). História dos
índios no Brasil. Op. cit., p. 398
6
SOMMER, Barbara. Negociated Setllements. Op. cit., p. 154 e p. 166-173.

E spelhos P art i dos 209


Moreira Neto definiu o Diretório como um instrumento de intervenção e
submissão das comunidades indígenas aos interesses coloniais e, por essa razão,
configura-se como a ampliação e consolidação da obra de desorganização da vida
tribal que tinha se inaugurado com as missões no momento anterior. Oscar Beozzo,
em trabalho anterior, já tinha apresentado também sua avaliação negativa a respeito da
ambiciosa política colocada em prática naquele momento. Mais recentemente, Francisco
Jorge dos Santos e Rita Heloísa de Almeida também acompanham essa avaliação,
colocando em destaque a persistência dos mecanismos de opressão, a despeito da
nova roupagem legal.2
As condenações do Diretório podem ainda se estender muito além da
historiografia. Os seus contemporâneos e executores imediatos também não pouparam
críticas, só que essas tinham como alvo a identificação de outros responsáveis para a
confluente conclusão de fracasso da política pombalina. Os alvos preferenciais, no
decorrer do século XVIII, não serão “os interesses do sistema colonial” ou mesmo
“as diretrizes da política mercantilista a que o projeto pombalino se subordinava”;
para eles, os responsáveis pelos descaminhos do Diretório serão mesmo os diretores.
Estender essa linha de discussão, contudo, pode levar ao obscurecimento da
presença e, conseqüentemente, da intervenção, dos principais alvos da política pombalina;
as populações indígenas. Nessa direção, o trabalho de Barbara Sommer ilumina a
complexidade das políticas indígenas e suas estratégias na construção desse mundo
colonial, definindo o que ela chama de “colonização negociada”. Para entender o
fracasso do projeto pombalino, esse trabalho coloca em relevo o papel decisivo que
as comunidades aldeadas representaram na redefinição do projeto colonial, empregando
com sucesso diferentes mecanismos para assegurar sua capacidade de intervenção
sobre a administração colonial e conseguindo manter (ou reconstruir) múltiplas
identidades baseadas em localização geográfica, gênero, status, etnicidade e família.3
Barbara Sommer assegura que o Diretório forneceu aos habitantes dos antigos
aldeamentos uma nova medida de controle ao nível local, acesso a terra e uma relativa
autonomia social e esses novos espaços de intervenção possibilitaram as ações em
defesa de seus interesses, apesar do poder colonial. É por essa razão que a historiadora
considera que “o obstáculo central para os projetos coloniais na região era o simples fato
de que os habitantes tinham suas próprias prioridades”.4
Essa linha de análise permite avaliar, com mais precisão, os jogos da política que
emergem da documentação e que não se enquadram – rigorosamente – em esquemas

210 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


ou rótulos que identificam apenas “brancos”, senhores absolutos e “índios”, sujeitos a
inescapáveis mecanismos de compulsão ao trabalho e, no limite, ao próprio processo
de aculturação. Para começar, escapar sempre foi uma alternativa e assim se pode
começar a “refazer” o Diretório.
O recurso às fugas, rebeliões e ausências durante o século XVIII não eram
peculiaridade exclusiva dos índios aldeados do Grão-Pará. Na Capitania de Goiás, os
Akroá, Kayapó, Xacriabá e Xavante também recorreram a essas estratégias o quanto
puderam na vigência do Diretório Pombalino. Como diz Mary Karasch, “os índios
resistiram ao trabalho forçado [...], fugiram para o mato, recomeçaram a atacar o gado,
as fazendas na fronteira e as cidades mineiras”5. Seria ir muito longe na travessia
interminável por outros sertões, se se recuperassem histórias semelhantes. Fique-se pelos
do Grão-Pará que já são extensos o suficiente.
As movimentações dos índios aldeados são muito mais freqüentes do que
poderia desejar a administração colonial na medida em que as saídas das povoações
colocavam esses indivíduos fora do alcance das autoridades e comprometiam os objetivos
do Diretório. Para se compreender melhor a natureza das fugas, Barbara Sommer
propôs a utilização de categorias empregadas na historiografia da escravidão africana –
a petit e a grand marronnage.– para tentar estabelecer uma lógica na dinâmica das freqüentes
movimentações das populações aldeadas, partindo do pressuposto que tanto a duração
da fuga quanto os seus destinos dependiam em larga medida de suas motivações iniciais
para deserção.6
O uso da categoria petit marronnage se aplica, de acordo com essa autora, àquelas
fugas temporárias provocadas por móveis diversos, mas que não implicavam
necessariamente uma saída definitiva do mundo colonial. É assim que a B. Sommer
classifica as constantes retiradas de índios das povoações que marcam o cotidiano
administrativo dos diretores e inflexionam a oferta de trabalhadores para os serviços em
geral – particulares ou reais. Nesta categoria, incluem-se as fugas individuais, de grupos
familiares, de grupos étnicos independentemente de seus destinos finais que também
podem ser variados: os arredores das vilas, os mocambos, as aldeias nos “matos” e as
propriedades de colonos estabelecidos.
A grand marronnage se diferenciava das fugas temporárias, não só com relação
à sua duração, mas também fundamentalmente com relação aos seus destinos; se no

7
Para maiores detalhes, ver Anexos: Missões e Povoações na Capitania do Rio Negro.
8
APP - Códice 54 - Doc. 73 - Barcelos, 16 de outubro de 1761.
9
APP - Códice 17 - Doc. 69. 14 de maio de 1762.

E spelhos P art i dos 211


primeiro caso, os destinos podiam ser diversos, nesse último o destino final das grandes
fugas localizava-se fora da área de influência da colônia portuguesa.
Outro traço comum identificado pela mesma autora no rastreamento dos
padrões dessas saídas é a relação existente entre estabelecimentos novos e as ocorrência
de fugas mais duradouras e de maior escala. Nos assentamentos remanescentes das
antigas missões, ao contrário, é a maior incidência de fugas temporárias. Esse é um
dos argumentos do trabalho utilizado para reforçar a hipótese da manutenção e/ou
recriação de identidades no contexto do mundo colonial.
Dito de outra forma, comunidades mais antigas tinham tido a chance de
recriar suas identidades e forjar uma noção de comunidade e, nesse sentido, as fugas
temporárias são estratégias políticas empregadas em defesa de seus direitos e
prerrogativas diante das demandas colocadas pela administração portuguesa nesses
espaços. Ao contrário, estabelecimentos “inventados” mais recentemente se
caracterizavam por uma grande instabilidade populacional em função, inclusive, da
ausência desse sentido de comunidade reinventado no novo espaço colonial.
Os padrões de análise utilizados por Barbara Sommer nas vilas do Grão-
Pará também ajudam a entender as movimentações das povoações estabelecidas na
Capitania do Rio Negro. Como se viu na primeira parte desse trabalho, o rio Negro
já era conhecido e regularmente freqüentado desde meados do século XVII, mas sua
ocupação só se consolida, efetivamente, a partir da segunda metade do século XVIII
com a criação da Capitania, por conta das questões decorrentes do Tratado de Madrid.
Para criação da Capitania, as intervenções coloniais lusas passam,
sintomaticamente, pelo reforço de seu sistema de fortificações e, em momento
posterior, pela criação de novas localidades ou mudança de categoria naquelas já
existentes. No caso das fortificações, se até esse momento existia apenas a Fortaleza da

10
APP - Códice 54 - Doc. 73 - Barcelos, 16 de outubro de 1761 e Doc. 86 de 14 de janeiro de 1762.
11
Cf. GOMES, Flávio. As Hidras e os Pântanos, op. cit., p. 63-64; 80 e 101. Gomes inventaria um universo de 129 mocambos
entre 1734 e 1809 e, do total de mocambos do Estado, os do Rio Negro representam menos de 10 %. Ver Quadro da
página 113, Mocambos na Amazônia Colonial.
12
A relutância de Joá é mensurável pelo número de parentes que deixou na aldeia, antes de descer com uma parte de sua
família. Joá só aceitou o descimento proposto porque Mendonça Furtado acenou com a possibilidade de devolver-lhe uma
filha que tinha sido capturada por um conhecido caçador de escravos, Pedro Braga. Joá solicita a moça de volta à aldeia,
mas Mendonça argumenta que, estando ela batizada, não poderia voltar aos matos e a única alternativa é que a família da
moça se junte a ela na povoação. O Principal aceita, mas deixa a maior parte de sua gente no mato. Sem dúvida, entre seus
planos, como bem percebeu o governador, estava previsto um breve retorno à sua comunidade. Cf. Marcos Carneiro de
Mendonça. AEP. Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Sebastião de Carvalho e Mello. 8.7.1755, 2º Tomo, pp. 732-733.
Ver também, Carta de 22.11.1755, 3º Tomo, p. 882.

212 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Barra do Rio Negro, entre 1760 e 1775 serão construídos mais 4 fortes com evidentes
objetivos estratégicos reforçando posições no Alto rio Negro, no rio Branco e no
Alto rio Solimões. Em se tratando das povoações, entre alguns dos exemplos das modestas
aldeias missionárias pré-existentes na capitania que foram elevadas às categorias de vilas
e lugares podem ser citadas Mariuá (Barcelos, sede das demarcações e da Capitania),
Tefé (Ega, no rio Solimões) Trocano (Borba, no rio Madeira), Saracá e Abacaxis (Silves
e Serpa, no rio Amazonas), entre outras.7
Já se reportou que a presença missionária, acima da confluência do Negro com
o Solimões, data das primeiras décadas do século XVIII com o estabelecimento das
missões carmelitas na área e, no caso do curso do Solimões, pela ocupação progressiva
das missões jesuítas espanholas que foram incorporadas ao domínio luso e que passaram
à jurisdição dos mesmos carmelitas.
Quando Mendonça Furtado chega para instalação da Capitania, já encontra
notícias de mocambos existentes na região desde 1737, remanescentes, portanto, das
entradas e saídas das antigas missões carmelitas ali estabelecidas. Ainda que tenham sido
sistematicamente assediados – pelas armas ou pela “sedução” – persistiram, como
estratégia incômoda, ao longo do século XVIII e início do XIX.
Fugir sempre foi possível, e algumas dessas fugas se articulam de forma tão
“cavilosa” que chegam a surpreender administradores em descuido. O mocambo atacado
nas imediações de Barcelos em 1761 foi uma dessas surpresas; os amocambados contavam
com a proteção do Principal Manoel, morador estabelecido na própria vila. Chamado
a participar das expedições de busca, Manoel tentou, por várias maneiras, manter os
soldados longe do mocambo mandando avisos para que preparassem a resistência e
dando-lhes o tempo necessário para tal desviando a tropa com falsas indicações. Em
uma dessas tentativas, a emissária foi sua própria mulher.
Certamente os esforços de Manoel não surtiram o efeito esperado porque o
mocambo foi alcançado e 22 pessoas presas. Mas o recado, com certeza, chegou a seu
destino como prova a resistência em que o Sargento João Bernardo os encontrou,
“com penachos na cabeça, sinal evidente entre esta gentilidade de clara guerra.” O Principal
Manoel acabou por ser preso porque descoberta sua ligação com os amocambados,
mas não parecia ser a única; na prisão, deu notícia de um outro, mas negava saber o local
exato.8

13
Marcos Carneiro de Mendonça. AEP, Francisco X. Mendonça Furtado a Sebastião de Carvalho. 15.11.1755, 2º Tomo, p. 845.
14
Idem, ibdem.
15
Idem, ibdem.

E spelhos P art i dos 213


No ano seguinte, o mocambo ao alcance da vila de Ega teve destino semelhante
ao do Principal Manoel. Romão, o líder do mocambo, foi preso pelo diretor da vila,
apanhado no lugar onde existiam mais 21 pessoas. Dizia o Vigário Geral do Rio
Negro, José Monteiro de Noronha, que ele era “mau homem e de muito prejuízo
nesta vila”9. Não é diferente da avaliação que o ouvidor Pereira da Costa fazia do
Principal Manoel: “é totalmente velhaco, que certamente se nós não lhe cortarmos os
seus pés, terá o atrevimento de se engrossar de nos atacar.10
Não foi possível localizar qualquer manifestação do Principal Manoel acerca de
seus envolvimentos com os mocambos existentes nas proximidades da vila-capital. Ainda
assim, fica claro que sua presença na vila era permanente bem como seus contatos e
relações com as tropas estabelecidas, sem que existissem maiores desconfianças acerca
de um comportamento ambíguo; afinal, ele é o guia das tropas que partem em busca do
mocambo e, só depois de terminada a expedição é que se descobrem as ligações de
Manoel com os amocambados. Era possível que Manoel funcionasse como um
intermediário entre a vila e os mocambos, fornecendo ferramentas e negociando suas
produções como já ocorria nas vilas do Pará.
Flávio Gomes, inventariando quilombos e mocambos no Grão-Pará, registrou
a presença de 12 mocambos no rio Negro, sendo que 6 eram de africanos e 6 de índios.
Difícil é avaliar, apenas a partir desse indicador, se o recurso à formação de mocambos
estava disseminado de maneira expressiva levando-se em consideração a incipiência de
leituras mais aprofundadas acerca dessa questão. Fato é que, as notícias de mocambos
podem ser fragmentárias, mas possuem freqüência suficiente para permitir avaliar as
preocupações da administração colonial com essa possibilidade concreta de um destino
seguro para as deserções das vilas e povoações.11
Não é outra a preocupação manifesta por Mendonça Furtado, ainda em 1755,
quando procura valer-se de sua estada no Rio Negro para contactar vários Principais e
praticar-lhes para descerem para os novos estabelecimentos reais. Compareceram à
reunião os Principais Cucuí, Emú, Braga (filho de Emú), Biturá e Manacaçari. Outro
Principal, Joá, também foi chamado, mas não no mesmo momento. Seus esforços não
são muito produtivos; dos Principais que aceitam visitá-lo em Barcelos, apenas Manacaçari

16
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filosófica. Op. cit.
17
Mello e Póvoas. Carta de 20.01.1760, p. 223-225.
18
Lourenço Pereira da Costa a Francisco Xavier de Mendonça Furtado - Barcelos, 18 de julho de 1763. MA - AHU - C 001
– Doc. 41, p. 326.

214 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


aceita sua proposta. Joá (ou João) também aceita – relutantemente, diga-se – suas práticas
de descimento.12
Desse contato com as lideranças indígenas do Rio Negro, Furtado lê um
quadro de alianças políticas que, sem dúvida, lhe é preocupante. Constata a existência
de uma forte aliança indígena no Alto rio Negro, composta por Principais que são
aparentados entre si: Cucuí e Emu eram irmãos, vindos de rios próximos ao Cassiquiari
e já tinham contatos com as tropas de resgate portuguesas, envolvidos no comércio
de cativos do sertão. Da mesma maneira, identificou as relações de parentesco existentes
entre os Principais Manacaçari, Ajamari, Caburé e Mabi (ou Mabé).
Manacaçari aceitou o descimento, mas preparou uma cilada para a escolta de
50 homens que o acompanhava e todos foram assassinados. Mendonça Furtado,
depois do insucesso sofrido com a prática a Manacaçari, requer seu castigo como
rebelde porque aceitou o contrato de descimento, para depois, revoltar-se contra o rei.
A necessidade de castigo ao aleivoso era ainda maior porque Furtado tinha notícias
seguras dos contatos desses Principais com os mocambos existentes no rio: é
indispensável castigá-lo “porque se acha ali protegendo todos estes mocambos, e
com gravíssimo dano de todas as povoações, não só deste rio, mas também das
outras que se acham fora dele, porque será rara a de que aqueles mocambos não
tenham gente.”13
Alianças importantes de Manacaçari provêm da interação com outras lideranças
que Furtado reputa como ilegítimas e perigosas como é Aduana, um principal Manau
que é cabeça de um mocambo, formado por índios desertores da aldeia de S. Ângelo
de Cumaru (Poiares). Aduana já tinha larga experiência a essa altura. Mendonça registra
que seu mocambo existe desde sua fuga de Cumaru em 1739 e, desde então, vem
funcionando como dreno das povoações recém-estabelecidas no Negro, “fazendo
roubos e todas as mais extrações que podem.”14
Além de Aduana, a aliança ainda contava com a presença de outro Principal
mocambeiro – Caburé, que aparentemente tinha vindo da Fortaleza de Pauxis (Óbidos),
tinha-se juntado à “confederação” e, da mesma forma, “está pronto a recolher quantos
fugidos vão para sua aldeia”. Por fim, Mabi (ou Mabé) também aparece no desenho
político como outra liderança que se estabeleceu junto às cachoeiras com outro mocambo
“de onde sai a insultar os que pretendem passar para cima ou para baixo dela.”15

19
ANRJ - Códice 99 - v. 01, Doc. 54 - 16 de outubro de 1766.
20
ANRJ - Códice 99 - v. 01 - Doc. 67-69 - Joaquim Tinoco Valente a Fernando da Costa de Ataíde Teive. Barcelos, 22 de julho
de 1766.

E spelhos P art i dos 215


A fixação nessas comunidades mocambeiras nem sempre era definitiva e algumas
das existentes no Negro também podiam ser refratárias a novas práticas de descimentos.
Durante sua viagem pela Capitania do Rio Negro, em 1783, o naturalista Alexandre
Rodrigues Ferreira já registra o descimento de Aduana e de sua gente para o lugar de
Poiares. O Principal Sebastião Carvalho que assistia na vila quando de sua passagem era
seu descendente. Não há registro do momento preciso em que Aduana resolveu rever
sua estratégia política, mas não deixa de ser interessante notar que, ao descer, ele passou
de “aleivoso” e “cabeça de mocambo” para um respeitado Principal que garantiu, inclusive,
o posto a um seu descendente16. Ainda nessa direção, em 1760, notícias que o governador
Mello e Póvoas considerava alvissareiras vinham das povoações de Olivença, Nogueira,
Ega e Alvellos nas quais vários desertores vindos dos mocambos existentes no Solimões
se recolhiam àqueles lugares.17
Também não tem outro sentido o sucesso experimentado pelo diretor de
Pedreira (Carvoeiro), João Pedro Marçal, que desceu 30 pessoas para o lugar em 1763,
vindos de um “célebre mocambo”, como se rejubilava o ouvidor Pereira da Costa,
comunicando o feito ao governador. Depois do complexo desenho feito por Mendonça
Furtado alguns anos antes, com tantos mocambos no Negro, fica fácil compreender o
contentamento do ouvidor.18
Contudo, se Pedro parecia ser bastante eficaz no seu trabalho como diretor,
pouco tempo depois perderia os rumos de tal maneira que seria desembarcado a ferros
em Belém. Ë certo que seus problemas vinham de longa data, quando do exercício de
seu ofício de escrivão, acompanhando o ouvidor Lourenço Pereira da Costa e revelam
uma conhecida face do cotidiano da aplicação do Diretório: os abusos de seus executores.
As reclamações contra Pedro Marçal chegam aos ouvidos do governador
da Capitania, do Estado e até do rei. Na verdade, são apenas fragmentos de uma
disputa política ainda maior que envolve o governador e o ouvidor da Capitania.
Mesmo sem entrar nos móveis da disputa, os documentos que circularam entre as
diversas instâncias da administração colonial, revelam a complexidade dos problemas
inerentes à aplicação do Diretório.
Escrevendo em 1766 a Francisco Xavier de Mendonça Furtado – a essa
altura responsável pelos negócios de ultramar – o governador do Estado do Grão-
Pará, Fernando Ataíde Teive, trataria de isentar-se de responsabilidades pelas

21
ANRJ - Códice 99 - v. 01 - Doc. 63. Pará, 30 de setembro de 1765.
22
APP - Códice 169, Doc. 10, Barcelos, 22 de julho de 1766.
23
COSTA, Lourenço Pereira da. Memória sobre o governo do rio Negro. Op. cit., p. 45.

216 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


“desordens” no Rio Negro. Assegura a seu importante tio que seus esforços têm
sido inúteis em pacificar a Capitania, porque os “distúrbios são praticados pelos
mesmos que tem obrigação de conservar a paz pública”. O problema no Negro
são conflitos de jurisdição entre a autoridade civil e a militar. O ouvidor Costa tem,
na versão do governador, se arrogado um comportamento independente do
governador e, como o dito ministro parece mesmo ter o espírito da discórdia, sem
possibilidades de reconciliação, Teive lava as mãos e entrega tudo a Mendonça Furtado
para que faça chegar aos ouvidos do rei.19
O caso dos avanços de Marçal é, como se disse, apenas um dos muitos
episódios das disputas com o governador Tinoco Valente. Marçal tinha acompanhado
o ouvidor ao Solimões e lá cometeu tantos “desaforos” que só a proteção do
Ministro poderia salvar sua pele. Nos lugares do Solimões, chegou a declarar que
“ele ia escolher povoação para governar, e que os que não o satisfizessem, ele se
vingaria”. Em Barcelos, Marçal tinha tomado “liberdades” com a índia de serviço
da casa do soldado José Nunes, e a sua senhora queixara-se de seu procedimento
indecoroso ao ouvidor e depois ao próprio governador. Por conta da queixa, Marçal
chegou a ser preso, mas logo foi solto pelo ouvidor. Marçal conseguiu ainda
desentender-se com um criado do Visitador Geral, mas nem sequer chegou a ser
castigado. Por fim, o envolvimento do escrivão com a eleição de Antônio Rebello e
a formulação das cartas contra o governador viriam a coroar sua trajetória que
terminaria a ferros.20
As notícias dos sucessos de Pedro Marçal aqui relatadas saíram da pena do
governador do Negro, comprometido com a contenda com o ouvidor. Ainda
assim, fica claro que Marçal parece avançar nas prerrogativas do seu posto, secundado
pela parcialidade do ouvidor a quem serve, mas esse não é o ponto. O
comportamento de Marçal apenas revela uma das facetas de um Diretório
problemático. Como o ouvidor também é o responsável pela fiscalização das
diretorias, o que o escrivão faz (ou diz que pode fazer) tem haver com o poder do
próprio ouvidor e também com seus limites.

24
Antônio José Pestana da Silva assumiu a Ouvidoria da Capitania do Rio Negro em 1767, substituindo a Lourenço Pereira
da Costa. Permaneceu no cargo até 1774, quando assumiu Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio.
25
PESTANA DA SILVA, Antônio José. Meios de dirigir o governo temporal dos índios. Op. cit. p. 150
26
PESTANA DA SILVA, Antônio José. Op. cit., p.151.
27
SAMPAIO, F. X. R. de. As viagens do ouvidor Sampaio. Op. cit., p. 126-127.

E spelhos P art i dos 217


O ouvidor Pereira da Costa acabaria sendo denunciado por abusar de sua
jurisdição sobre os índios, contrariando ordens do governador, a quem estaria
formalmente sujeito. Daí as advertências severas que sofre do governador do Estado
quanto a desmandos de diretores nas vilas que não eram relatados ao governador
para as providências, problemas com a arrecadação dos dízimos, cessão de índios a
particulares sem a aquiescência do governador. As advertências são crescentes a tal ponto
que o governador ameaça:

Sendo V. Mce um Ministro que S. Mag. pôs nesse lugar para evitar
desordens, e tomar conhecimento delas, ainda se faz mais reparável
que as solicite, querendo ter despótico mando nas Povoações
dos Índios como Intendente, quando por este título é em tudo
sujeito ao mesmo Governador, o que ultimamente declaro a V.
Mce, fazendo-lhe também certo, que reincidindo naquelas
absolutas, poderão chegar à presença de Sua Majestade.21

Os problemas de Pereira da Costa com Tinoco, no fundo, resumem-se ao


controle das povoações e dos seus diretores. Definir a quem cabe a prerrogativa de
conceder os índios para o serviço é o pano de fundo de toda a questão. Se os diretores
abusam de sua jurisdição e comprometem o funcionamento e a eficácia do Diretório,
nomeados que são pelos governadores, quem poderia puni-los adequadamente? Essa é
uma queixa fundamental de Pereira da Costa, em sua memória, mas este seu diagnóstico
quanto às responsabilidades dos diretores para justificar a ineficácia das disposições reais
não lhe seria exclusivo.
Nas avaliações dos diferentes ouvidores que atuaram na Capitania do Rio Negro,
entre 1760 e 1779, isso é voz corrente. Todos condenam as práticas abusivas que se
estabeleceram entre meandros e hesitações do texto legal do Diretório, além de
denunciarem várias falhas nas ações dos Diretores e Governadores. Até mesmo o
governador Tinoco Valente tinha seus motivos para queixar-se dos candidatos; ao nomear
um cabo de canoa para o Lugar de Moreira, sua escolha recaiu sobre alguém que não
era da Capitania e justifica essa decisão dizendo ao governador do Estado que não
encontrava outro que servisse, porque “esses homens querem governar a Capitania,

28
Memória Histórica da Capitania do Rio Negro (Continuação das “Notas” do Ouvidor Sampaio sobre a “Memória Histórica
da Capitania do Rio Negro”). Boletim de Pesquisa da CEDEAM, v. 3, n. 4, p. 50-51, jan-dez/ 1984.
29
SAMPAIO, F. X. R. de. As viagens do Ouvidor Sampaio. Op. cit., p.137.

218 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


querem ser Diretores, querem ser Cabos, querem todos os Índios, e principalmente os
parentes de suas mulheres e os mais que puderem arrogar pelas suas práticas.”22
Esse animoso ouvidor Costa já afirmava, na sua memória, que os diretores
eram negligentes quanto ao estabelecimento dos índios nas povoações e que costumavam
mandar nas canoas de negócio todos os índios da povoação, deixando as roças
de sustento ao desamparo.23
A esse respeito, o ouvidor que sucedeu a Pereira da Costa, Antônio José
Pestana da Silva, acreditava que o Diretório era “um labirinto ou mistura de
determinações que dá causa a muitas ilusões e desacertos que hoje se praticam no
Estado” e chegou mesmo a reconhecer que a principal causa dessa situação era a
absoluta incompatibilidade entre as leis de liberdade e a distribuição forçada dos
índios estabelecida no Diretório. 24

Que importa que o Diretório justamente cometa aos juízes


ordinários, e mais oficiais de justiça o governo temporal de suas
vilas; e que os Principais sejam nas suas povoações independentes
dos diretores se estes têm estirado a sua jurisdição até os limites
do excesso? Os diretores são os que absolutamente determinam
tudo: eles não advertem aos juízes e principais as suas obrigações,
mas se fazem superintendentes, e odiosos senhores de todo o
governo e de todos os interesses.25

Ainda que faltassem índios para os serviços do Comum e para a maior parte
dos moradores, existiam certos privilégios na distribuição dos trabalhadores. Diz o ouvidor
que aqueles que mais precisam de índios, são os que menos conseguem, mas,

O governador, os ministros, os cabos da tropa militar, os


eclesiásticos, e moradores de consideração, ou pelos seus cargos,
ou pelo seu melhor estabelecimento, todos tem índios
assiduamente para os seus serviços, além dos que se empregam
em obras reais; os salários tênues, os serviços indispensáveis.26

30
Depois de tantos insucessos no rio Negro, Marçal conseguiu recuperar seus empregos; em 1775, está exercendo o cargo
de diretor de Baião. Só não teve muita sorte; a vila de Baião era marcada por uma acentuada instabilidade populacional e
isso fez com que a gestão de Marçal fosse um tanto transtornada pelas freqüentes ausências dos índios daquela localidade.
Por outro lado, não é improvável que sua experiência na Capitania do Rio Negro tenha sido útil nessa nova situação. Cf.
SOMMER, Barbara. Negociated Settlements. Op. cit., p. 158-159 passim.

E spelhos P art i dos 219


As avaliações dos contemporâneos são todas virulentas; o ouvidor Sampaio
dizia que o diretor era portador de dois obstáculos invencíveis: a ignorância e a
ambição, reiterando considerações semelhantes ao dizer que “um homem pobre, a
quem se dá uma diretoria, cuida em se aproveitar da ocasião de remediar as suas
necessidades. A este objeto se encaminham todas as suas fadigas.”27
Crítico contundente do processo de civilização dos índios nos moldes do
Diretório, Sampaio não reconhecia qualquer utilidade no fato dos índios serem
membros da República; e isto apesar de reiterar aos Diretores a necessidade de
ouvir e privilegiar os Principais e os outros Oficiais índios nas questões relativas ao
governo econômico e político das povoações, conforme ditava a lei.

De que servem vilas de Índios, aonde é preciso fazer juiz a um


Índio ignorante, outro, Vereador, etc.? Isso de nada serve ao
Bem Comum. Causa embaraços, mil disputas, queixas, etc.28

Quando se refere aos vassalos “em potencial”, seu pessimismo é evidente:


“Os Índios, que habitam as Selvas, acham maior bem na liberdade do Homem, que
na do Cidadão: e por isso são dificultosos os Descimentos.”29
O descimento era a estratégia indicada para a ampliação demográfica das
novas vilas e lugares e isto estava expresso nas determinações do Diretório. A chegada
regular e sistemática de novos trabalhadores era a chave de sua disponibilidade para
a execução dos projetos coloniais; se falhavam os descimentos, comprometia-se o
projeto como um todo.
E por que falhavam? Aqui residia uma das maiores angústias dos
administradores coloniais. Várias eram as causas. Contudo, tanto o seu recorte, quanto
o grau de sua intensidade refletiam, em larga medida, o lugar do observador que as
selecionava. Para os ouvidores, o maior problema residia nos inúmeros abusos de
Diretores e Governadores, desrespeitando o Diretório; para os Diretores, nos
inúmeros “arranjos” que eram compelidos a aceitar e negociar com os Principais
índios e Abalizados para a obtenção dos trabalhadores.
O naturalista Alexandre R. Ferreira, em 1783, asseguraria que as vilas e
povoações eram, na verdade, “ducados e marquesados dos diretores, onde os índios

31
APP, Códice 54, doc. 51. 1761.

220 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


sofrem atados à cruel coluna dos sofrimentos.” Em 1797, interessadíssimo em abolir
o Diretório, o governador do Pará, Francisco de Souza Coutinho, não teria dúvidas
em chamá-los de tiranos senhores absolutos da povoação e dos índios.
Com tantas atribuições concentradas em um único funcionário colonial,
não é estranho que todas as críticas às falhas e descaminhos do Diretório sejam a
eles atribuídas. Evidentemente, não se trata de negar que esses funcionários, muitas
vezes, utilizaram-se das prerrogativas que as leis (e também a distância delas) lhes
assegurava e, a esse respeito, são inúmeros os exemplos, alguns dos quais já aqui
apresentados. A questão, contudo, reside no fato de que uma política desse alcance
não poderia ser considerada fracassada apenas pela falta de homens capacitados
para sua execução.
Os episódios nos quais Pedro Marçal acabou sendo um dos principais
protagonistas e os comentários contemporâneos que vimos parecem corroborar,
em larga medida, a avaliação de um Diretório implacável no controle dos índios.
Porém não é isso que as entrelinhas deixam perceber. Para começar, o próprio fato
de Marçal ter conseguido “descer” um mocambo quando era diretor de Pedreira
(rio Negro) já aponta para outra interpretação. Independentemente de seus
“desaforos” no Solimões, na condição de diretor, ele – e tantos outros diretores –
se viram obrigados a negociar com as lideranças indígenas para viabilizar os
descimentos.30
Da mesma maneira, a experiência dos mocambeiros do Rio Negro e a
extensão de suas alianças podiam resultar em confrontos com as investidas coloniais,
mas também reverter-se em novas estratégias de articulação política como parece
ter sido o caso de Aduana descendo para seu antigo lugar de fuga, Poiares.

32
APP - Códice 17, doc. 18, 1759 e APP - Códice 17 - doc.78,1762. Barbara Sommer explora mais esse episódio, utilizando
outros documentos e situa a fuga de Romualdo com melhor precisão no contexto político e étnico de Pinhel. Identifica os
fugitivos como Mawé, mencionando a colaboração recebida pelos fugitivos dos outros Principais da vila e consegue
recuperar a justificativa para a fuga: estavam os Mawé “enfadados há muito tempo de viver com brancos e querer estar com
seus parentes Magués.” Os Mawé eram considerados notórios desertores. Cf. SOMMER, B. Negociated Settlements. Op. cit.,
p. 174-175.
33
SOMMER, Barbara. Os Absolutos e os Ausentes: Indigenous Society and a State Policy on the Lower Amazon, 1750-1800.
Comunicação apresentada no XX Encontro da LASA, México, abril, 1997.
34
MA - APP R - 004 (Mic) Doc. 86 - Hyerônimo Pereira da Nóbrega para Martinho de Souza e Albuquerque em 21.02.1786.
35
MA - APP - R - 001/ AHU - R062 (Mic.) Doc. 138 - Henrique João Wilckens para Manoel da Gama Lobo d’Almada em
19.01.1795.

E spelhos P art i dos 221


A correspondência de Pereira da Costa que foi encaminhada diretamente
ao governador do Estado também possibilita apreender as intervenções dos índios
aldeados, recorrendo à justiça colonial, para apresentar suas reclamações contra
abusos dos diretores de suas povoações. O problema de Costa reside no fato de
que, em disputa com o governador do Negro, tentará encaminhar as reclamações
ultrapassando o nível de sua subordinação ao governador da Capitania. As denúncias
posteriores do Governador do Negro de que ele tinha avançado na sua jurisdição,
distribuindo os índios à sua maneira, mais uma vez tentando escapar da subordinação
a Tinoco Valente, deixa claro que Costa também foi envolvido pelas políticas indígenas
existentes no âmbito das povoações. Não é improvável que as lideranças tenham
percebido que investir na animosidade que marcava a relação entre as duas maiores
autoridades da Capitania poderia ser útil a seus próprios propósitos, apresentando
suas queixas, solicitando revisões na distribuição pré-determinada e outras demandas
semelhantes.
Foi esse novo jogo que contribuiu para limitar a extensão do que o Diretório
poderia (ou pretendia) fazer cumprir. Já em 1761, Pereira da Costa tinha-se
apercebido da existência de regras que não passavam obrigatoriamente pelo uso da
força. Ao requisitar um suprimento de “quinquilharias” para realizar os descimentos,
declara que sem esses objetos não seria possível sujeitar os índios “[...], que ciosos da
Liberdade em que nasceram, não a renunciarão sem conveniência, ou medo, e como
este cria mais inimigos que vassalos, melhor e mais fácil é introduzir-lhes a sujeição
por meio de interesses que eles consideram naquelas dádivas de quinquilharias[...]”31
Se é correta a leitura do ouvidor Ribeiro de Sampaio quanto à prioridade
da liberdade dos Homens, então é possível avançar na compreensão das diferentes
estratégias que as populações indígenas produziram na sua convivência com os
“Cidadãos”. A fronteira que demarcava uma determinada nação como “aliada” ou
“gentia” podia ser muito fluida e também podia depender muito das próprias
decisões das populações indígenas. Exemplar é o caso dos Mawé, reportado pelo
Bispo do Pará, João de São José, que, em várias ocasiões, “desciam” para os
aldeamentos, para retornarem aos “matos” depois de um certo tempo,
transformando-se em ausentes.

36
APP - Códice 17, Doc. 50 - Francisco Rodrigues para Joaquim Tinoco Valente em 27.05.1764.
37
MA - AHU - C001 - Doc. 42, p. 331. Joaquim Tinoco Valente a Fernando da Costa de Ataíde Teive em 24.07.1764.
38
SOMMER, B. Os Absolutos e os Ausentes... Op. cit., p. 19, 1997.

222 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Entendendo a ausência como petit marronnage, os ausentes podiam referir-se
a indivíduos, famílias ou, até mesmo, nações inteiras que abandonavam,
sistematicamente, os aldeamentos e povoações, colocando em xeque a política de
controle da mão-de-obra. Em alguns casos, essas saídas em massa podiam mesmo
ser lideradas por Principais, como se observa na vila de Soure, quando, em 1759, o
Vigário Correia informava ao governador mais uma (das muitas) fugas dos índios
daquela vila. Cerca de 40 indivíduos – entre homens, mulheres e crianças – tinham-
se ausentado na noite anterior. A razão mais freqüente, de acordo com o Vigário,
devia-se ao fato de “os mandarem para o serviço das Portarias sem lhes deixarem
fazer as suas roças para sustento de suas mulheres e filhos”. Barbara Sommer
considera que os grandes projetos coloniais, como parece ser o caso aqui,
proporcionaram fortes justificativas para mobilizar os índios aldeados nessas fugas
temporárias.
A experiência do indio Romualdo, de Pinhel, também é ilustrativa. Depois
de uma longa fuga, que já se estendia por dois anos, finalmente, foi apanhado em
1762. Mas, quando ele foi preso, seus parentes (a mulher e seu cunhado Principal) se
“meteram nos matos” com mais 40 pessoas e ainda deixaram na vila, insolentemente,

39
Uma observação necessária: não se tratou aqui das guerras e rebeliões ocorridas na região nessa conjuntura do Diretório.
Sem sombra de dúvida, o recurso às armas também contribui poderosamente para reorientar as articulações políticas
existentes nas povoações e tornaram ainda mais complexas as relações com as populações não-aldeadas. A despeito de
sua reconhecida importância, a decisão de não incluí-las aqui com mais detalhe deve-se à existência de um trabalho recente
exclusivamente dedicado à essa análise e, sobretudo, ao fato de que elas, a rigor, estão fora dos limites dos problemas aqui
propostos na medida em que se configuram como uma alternativa limite. Assim é que, ao leitor interessado, remeto a
SANTOS, Francisco J. dos. Além da conquista: guerras e rebeliões indígenas na Amazônia pombalina.

E spelhos P art i dos 223


224 Patrí cia Maria Mel o Sampaio
uma figura de madeira de um soldado com armas e arcabuz no ombro, “estando
crivado de flechas em segunda intenção de ameaça.”32
Se se considerar a ausência articulada a partir das lideranças residentes e não
apenas como uma estratégia individual, observa-se que no caso de Principais e Oficiais
índios, existem indicações quanto à sua longa permanência nos respectivos cargos
em comparação à rotatividade de Diretores. Em muitos casos, estabeleceram limites
concretos à ação indiscriminada desses funcionários reais, obstaculizando, no limite
de suas possibilidades, o acesso ao trabalho de seus próprios “vassalos”. Como
bem advertiu Barbara Sommer33, é preciso cautela na observação da política interna
das povoações pombalinas e também na articulação das bases de sustentação política
dos Principais e Oficiais no contexto dos aldeamentos por eles administrados.
As ausências constituíam-se em uma das mais eficazes estratégias políticas
empregadas pelas populações aldeadas na defesa de seus objetivos e propósitos e
representaram, na prática, um limite importante na convivência cotidiana no âmbito
das povoações, colocando diretores em difícil situação para atender às demandas
de mão-de-obra e até mesmo para manter sua integridade física. O diretor de
Arraiolos, em 1786, consegue prender o índio Zacarias e seus filhos por “levantados,
absolutos e de más práticas”. Contumazes em fugas da povoação para fugir ao
serviço, tinham se recolhido a um lugar fora da vila, mas foram aprisionados no
momento em que a ela retornaram para articular uma fuga de seus parentes34. Não
só as vilas sofriam os efeitos das ausências, mas também os grandes projetos coloniais.
A experiência de um dos comissários das demarcações do Tratado de Santo
Ildefonso, estabelecido em Tabatinga, revela o abandono daquele posto provocado
pelas contínuas deserções e os problemas de abastecimento daí decorrentes.35
As grandes fugas, projetadas para escapar do mundo colonial, também não
devem estar ausentes desse refazer cotidiano do Diretório. Contudo, para o Rio
Negro, no período do Diretório, não foi possível acompanhar uma movimentação
dessa envergadura com suporte documental suficiente que permitisse qualificá-la
enquanto tal, embora a retirada para fora do alcance dos domínios portugueses,
seja “aliando-se” aos castelhanos, seja formando mocambos apareça como uma
preocupação permanente dos administradores.

1
CUNHA, Manuela C. da. Legislação indigenista no século XIX. Op. cit., p. 9 e 11.

E spelhos P art i dos 225


Assim é que se expressa o responsável pelos novos aldeamentos estabelecidos
em S. José dos Marabitanas, no alto curso do rio Negro, empenhado em contactar
os Principais dos rios Uaupés, Içana e Cauaburis para que “nem ele e nem seu aliado
por lá desse entrada aos castelhanos”36. Da mesma forma, o comandante da Fortaleza
de S. Gabriel da Cachoeira se empenha em concentrar as povoações dispersas que
ali existem em torno da de S. Bernardo de Camanaó “para ficarem mais perto, e
não terem ocasião de se amocambarem.” Fundir as povoações naquela área de
fronteira significaria também dispor de mais homens capazes de pegar em armas
em caso de necessidade de defesa, reforçando o destacamento ali existente.37
Ausentes, Principais, Abalizados, Oficiais índios e (muitos) recém-chegados
dos matos... nossos personagens já não são mais tão simples e unívocos na sua
apreensão. A formação e consolidação das “hierarquias indígenas”, tal como aponta
Barbara Sommer, parece ser um dos grandes resultados da política do Diretório e,
em certa medida, “[...]os oficiais absolutos e os ausentes recalcitrantes são símbolos
da independent-minded e não-homogeneidade dos protagonistas na interface dinâmica
da política indigenista e da política indígena.”38
O que se pode perceber, claramente, é que o projeto pombalino foi
modificado por conta das condições coloniais de sua aplicação e pela intervenção
direta dos personagens desse mundo, fossem considerados como agentes de
execução, fossem vistos como objetos dessas intervenções civilizadoras.39
Acompanhado a conclusão de Barbara Sommer, ao final, o impedimento
central para os projetos coloniais na Amazônia foi o simples fato de que seus
habitantes tinham suas próprias prioridades. No limite, isso significa que a maior
modificação resultante das intervenções das populações nativas sobre a legislação
pombalina foi a sua própria extinção. Essas novas interpretações contribuem,
decisivamente, para aumentar a complexidade do quadro que se desenha no final
do século XVIII, quando o Diretório é suprimido pela Carta Régia de 1798.

2
Em 29.08.1798, foi distribuída aos governadores e capitães-gerais do Brasil, “para que a executassem em tudo a que
pudesse ser aplicável.” Cf. CUNHA, Manuela C. da. Op. cit., p. 77, 1992.
3
Idem, ibdem, p. 2

226 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


C APÍTULO 11

TRABALHO, PODER E LIBERDADE II: A CARTA RÉGIA


DE 1798

Neste [Diretório] encontro um grande esquecimento,


qual é o de não por termo
nem à Civilização dos Índios, nem à tutela,
é que parece que ou não os supôs suscetíveis
de jamais lhes ser dispensada,
ou que o Estado se não poderia manter
se não conservando-os nesta espécie de servidão.

Francisco de Souza Coutinho, 1797

Quando se analisa a produção historiográfica relativa à história indígena e do


indigenismo no Brasil, verifica-se uma lacuna intrigante: a ausência de leituras mais
específicas quanto à natureza e aos desdobramentos da Carta Régia de 1798. Isso é
um tanto surpreendente, se considerarmos que é esse o texto legal que suprime o
Diretório Pombalino na América Portuguesa.
Uma pista explicativa para essa lacuna aparece a partir da avaliação de Manuela
Carneiro da Cunha quando analisa a natureza da política indigenista brasileira de meados

4
Cf. SERRÃO, José Veríssimo. História de Portugal (1750-1807). Lisboa: Verbo, v. 7, 1982. MARQUES, A. H. de Oliveira.
História de Portugal. Lisboa: Palas Editores, 8. ed. v. 1, 1980. BOXER, C. O Império Colonial Português, 1415-1825. Lisboa:
Edições 70, p. 193-195.
5
CASTRO, Zília Osório de. Poder Régio e os Direitos da Sociedade: o Absolutismo de compromisso no reinado de D. Maria
I. Ler História, 23, p. 14, 1992.
6
FARAGE, N. As muralhas dos sertões. Op. cit., p. 53. O bispo Brandão é mais dramático: chama de “flagelo” às demarcações.
AMARAL, Antônio Caetano do. Memórias para a História da Vida do Venerável Arcebispo de Braga, Frei Caetano Brandão.
Op. cit., p. 351 passim. FERREIRA, A. R. Viagem filosófica.... Op. cit., p. 75-76; 648 passim.

E spelhos P art i dos 227


do século XIX. A autora acredita que a supressão do Diretório criou um vazio legal
que só seria preenchido em 1845 com a criação do Regulamento das Missões.1
Promulgada em 12 de maio, a Carta deveria ter uma imediata aplicação em
toda a colônia. Tal não ocorreu. À falta de diretrizes que o substituíssem, o Diretório
permaneceu como parâmetro de referência legal, vigorando extra-oficialmente em
várias regiões, chegando até mesmo a ser restabelecido em 1843 no Ceará. A
aplicabilidade da Carta de 1798, aparentemente, ficou restrita ao Pará e suas capitanias
subordinadas.
Contudo, em que pese a justeza das avaliações da autora, em se tratando de
política indigenista, acredito que uma avaliação mais precisa dos desdobramentos
da Carta de 1798 pode render um pouco mais do que foi feito até aqui. Na sua
origem, está uma longa e circunstanciada informação prestada pelo governador do
Pará, Francisco de Souza Coutinho, quanto aos males, ineficiências e muitos abusos
praticados na região por conta da aplicação indevida dos ditames do Diretório.
Talvez essa seja uma limitação da amplitude e das possibilidades de aplicação da
Carta; produzida em sintonia com questões administrativas vinculadas à política
indigenista que emergiram na Amazônia, sua extensão para o restante da colônia
parecia ser de difícil execução.2
A conjuntura de sua vigência (1798-1845) é tensa e marcada por inúmeros
conflitos sociais e políticos. Era essa a legislação que regulava as relações entre índios
e brancos na Amazônia que vive o fim do regime colonial, as lutas pela independência,
o tumultuado período regencial, explodindo com uma das maiores revoltas
populares – a Cabanagem – movimento que contou com a participação maciça de
tapuios, índios, negros e mestiços.
A Carta reitera princípios mas também opera mudanças. A instauração do
autogoverno dos índios, a reiteração da liberdade e da igualdade entre os vassalos,
a extensão do privilégio da orfandade às populações independentes (não-aldeadas),
o fim da chancela da Coroa às operações de descimentos, a liquidação dos bens do
Comum das povoações, a liberdade de comércio, o acesso livre de moradores aos
recursos naturais e às terras indígenas, o incentivo à miscigenação são alguns exemplos
que podemos enumerar aqui.

7
MACLACHLAN, C. Indian Labor Structure... É observando esse aspecto que MacLachlan reforça o papel jogado pelo fim do
Diretório na aceleração do processo de urbanização dos índios.

228 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Analisá-la não é um mero exercício retórico. Retomando Manuela Carneiro,
“se a lei não pode ser confundida com uma descrição da realidade, a realidade, por
seu lado, não pode eludir a existência da lei, que a inflete.”3

PREPARANDO MUDANÇAS

Após a queda de Pombal em 1777, as alterações políticas e administrativas


que ficaram conhecidas como Viradeira, na verdade não foram tão incisivas quanto
parecem à primeira vista. A historiografia portuguesa aponta, claramente, para as
limitações históricas das mudanças promovidas durante o reinado de D. Maria I
que não permitem qualificá-la como um corte político radical.4

Paternalismo e liberdade são afinal os dois valores utilizados


para caracterizar positiva e negativamente a política mariana.
Enquanto o primeiro tem no passado seu ponto de referência, o
segundo projeta no futuro a concretização de uma realidade até
então sem paradigma em Portugal.5

Esse momento coincide, também, com a assinatura do Tratado de Santo


Ildefonso (1777) para delimitação das zonas portuguesa e espanhola na América do
Sul. O início dos trabalhos da Comissão Demarcadora na região provoca um
aumento da pressão por força de trabalho adicional. Farage chega mesmo a afirmar
que a já frágil estrutura dos aldeamentos ficou ainda mais comprometida durante os
anos de 1780 em função do recrudescimento das demandas do Estado por mão-
de-obra adicional, necessária para atender às demarcações. O naturalista Alexandre
Rodrigues Ferreira e o Bispo do Pará, D. Caetano Brandão, corroboram essas
observações chamando a atenção para os resultados desastrosos do recrutamento
de trabalhadores nos aldeamentos e povoações já depauperadas de índios.6
Em 1792, a rainha afasta-se dos negócios do Reino e D. João assume a
regência. A situação política e econômica em Portugal não é nada favorável. O
novo regente tinha que dar conta de uma série de negócios complexos: as alianças

8
Cf. § 14. In: FRANCISCO DE SOUZA COUTINHO. Plano para a civilização dos índios do Pará - 2.8.1797. Ms: ANRJ, Cód. 101,
v. 2, fls. 54-82.
9
Idem, ibdem.
10
§ 21, idem.

E spelhos P art i dos 229


européias contra a França revolucionária, em especial, a aliança com a Espanha,
levando de contrapeso a infrutífera participação na guerra do Rossilhão (1793-1795).
Posteriormente, as preocupações com a defesa do reino e as ações da política
bonapartista, que culminam na retirada da família real em 1808.
Como se pode ver, quando o governador Francisco Maurício de Souza
Coutinho chegou ao Pará, em 1790, a conjuntura européia na qual a metrópole lusa
está inserida não poderia ser mais tensa. O governador, de imediato, se vê às voltas
com três ordens de problemas na sua administração: os descaminhos da arrecadação
da fazenda real, o clima de tensão nas fronteiras (França e Espanha) e a carência de
mão-de-obra (índia e/ou africana); e é em função delas que articulará suas intervenções
no corpo administrativo da colônia.
No que diz respeito à defesa do território e ao problema da mão-de-obra,
colocam-se em movimento na nova administração as seguintes estratégias para
encaminhar as soluções possíveis para o momento:

• incentivo ao tráfico africano;


• incentivo ao contrato particular com índios residentes nas povoações;
• incentivo à ação particular nos descimentos dos índios não-aldeados;
• recrudescimento do recrutamento militar da população livre de cor;

O estímulo ao comércio de africanos traduziu-se na reiteração de políticas


de redução de tarifas alfandegárias, como já se viu em outro momento do texto. Os
resultados foram de impacto reduzido, se estiverem corretas as informações quanto
à entrada de africanos, em finais do XVIII e início do XIX no Grão-Pará.
Uma compreensão adequada quanto aos contratos celebrados diretamente
entre colonos e índios é inseparável da ressalva de que existia efetivamente uma
população indígena residente nos núcleos pombalinos que estava fora do alcance da
tutela de diretores e isso já era uma evidência para os contemporâneos de finais do
XVIII. No caso do Belém, a presença de uma população mestiça e tapuia era notada
nos arredores da cidade desde 1783, produto das fugas e “ausências” das vilas
pombalinas.7
Coutinho descreve o perfil dessas populações, recuperando seu processo
de emergência e progressiva autonomização para além do controle de diretores

11
Correspondência a Luís Pinto de Souza, Pará, 01 de agosto de 1796. BNRJ: Ms, I-17,12,2.

230 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


pombalinos. Na verdade, trata-se da geração que emergiu a partir de 1755, em
função das alternativas abertas pela publicação da Lei de Liberdades que assegurou
aos libertos uma possibilidade de estabelecer-se fora da jurisdição dos aldeamentos
pombalinos controlados pelos diretores. Populações que permaneceram nas fazendas
onde já trabalhavam ou, progressivamente, passaram a estabelecer-se em pequenas
propriedades. Como reforça Coutinho, “ainda que passassem por vexações, e grandes
opressões nunca tiveram aquela tutela efetiva, mais livremente dispuseram de si, dos
seus trabalhos, e do que adquiriam.”8
No final do século XVIII, sua presença já é mais que visível. Formam um
contigente de população mestiça ou tapuia que vive em seus sítios, produzindo
alimentos e outros gêneros que fazem chegar ao mercado urbano, alistam-se nos
corpos de milícias coloniais e seus filhos, se não estão nas milícias, dedicam-se a
ofícios manuais.

Estes Índios, que já hoje não são muitos, e os seus descendentes


pela maior parte já nascidos de mistura de cores, parecem ter
chegado ao ponto de Civilização, de que tal Gente é suscetível,
vem a ser a mesma em que se acha toda a Gente forra, e Mestiços
pelos outros Portos do Brasil.9

São esses um dos alvos preferenciais das investidas de Coutinho para solução
da oferta de trabalhadores em um momento delicado no qual os aldeamentos
pombalinos já estão debilitados para corresponder às demandas do Estado. A
estratégia para incorporar essa população, claramente diferenciada dos outros índios
(aldeados ou “bravios”) por ter alcançado “o ponto de Civilização de que tal Gente
é suscetível”, será através do estímulo aos contratos particulares, celebrados
diretamente entre os interessados10. Além da nova modalidade de contratação de
mão-de-obra, também serão os homens em vias de alistamento para reforço das
defesas do Estado nos novos corpos de milícias que serão criados nessa mesma
conjuntura.
Mas todas essas ainda são experiências em curso, quando, em 1797, dentro
de uma conjuntura politicamente tensa e marcada pelas movimentações diplomáticas,
que Francisco de Souza Coutinho, envia a Portugal seu “Plano para a civilização dos
índios”. A inflexão na oferta de trabalhadores advindos dos aldeamentos encontra
um destino certo na atribuição de responsabilidades: a arrogância e os abusos

E spelhos P art i dos 231


administrativos dos diretores. Definidos como “tigres ferozes”, exploradores vorazes
do trabalho dos índios são os grandes responsáveis, na leitura do governador, pelo
fracasso do Diretório.
Em 1796, Coutinho avalia com base nos mapas de população que, dos
4.000 índios registrados, descontadas todas essas variáveis e mais os oficiais, seus
filhos e aqueles reservados para os arrematantes dos contratos, só poderia dispor
de 1.000.11 Pelo que se pode inferir das considerações de Coutinho, a supressão dos
diretores era mais do que necessária para o sucesso da sua administração. A
possibilidade de dispensar a mediação dos diretores para o recrutamento dos
trabalhadores, liberando a negociação direta foi uma estratégia tentada antes da
promulgação da Carta.
Porém, no fundo, a prepotência dos diretores só tinha podido estabelecer-
se porque o Diretório não tinha previsto um fim para a tutela que criara. Essa é uma
falha que Coutinho acredita ter identificado no texto que pretende abolir e que, em
certa medida, norteia as suas próprias proposições a respeito da nova legislação que
deve substituí-lo: a tutela deve chegar ao fim.

COMO FUNCIONA A CARTA RÉGIA DE 1798

A Carta proposta por Coutinho retoma os princípios da garantia da


ocupação territorial pela estabilidade dos povoados e habitantes livres regularmente
estabelecidos, usufruindo das mesmas “justiças” e “privilégios”. Esse é o ponto que
abre a lei: a restituição dos direitos aos índios aldeados – em especial, a liberdade –
para que fiquem sem diferença dos outros vassalos de S. Majestade, dirigidos e
governados pelas mesmas leis que regem a todos os súditos da Monarquia. Com
esse intuito é que se determina a abolição e extinção do Diretório, para que não só
os índios que já vivem em sociedade possam gozar das liberdades de vassalos, mas
também aqueles que ainda estão “embrenhados no interior da Capitania”.
A maior diferença da Carta em relação ao Diretório é no que diz respeito à
supressão de uma tutela exterior (nesse caso, laica) sobre as populações já estabelecidas
nas vilas e lugares. Na verdade, o Diretório não previa textualmente a existência
dessa tutela, já que aos Diretores era atribuída ação diretiva e não coativa. Na prática,
porém, em vários casos as ações dos Diretores irão se sobrepor aos interesses das

232 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


comunidades expressados através de seus Principais. Esta é, pelo menos, uma das
críticas que Coutinho faz no seu plano quando denomina os diretores de “violentas
sanguessugas, antes uma onça ou tigre feroz, e eis aqui a principal causa da prostituição
das disposições.”
A preocupação com a permanente disponibilidade de trabalhadores marca,
também, o texto da Carta. A organização dos Corpos de Milícias e, a partir dessas,
de um Corpo Efetivo de Índios que incorporasse obrigatoriamente toda a população
ativa da região, traduz esse interesse. “Encarrego-vos de cuidardes logo nos meios
mais eficazes de ordenar, e formar os Índios que já vivem em Aldeias promiscuamente
com outros, em Corpos de Milícias, conforme a População dos Distritos. [...] Tratareis
também de formar um Corpo efetivo de Índios, [...] sem prejuízo da condução das
Madeiras, e de outros serviços em que utilmente se empregam os Índios fixando-
lhes um número determinado de anos de serviço, passados os quais não ficarão
obrigados a outro algum que não seja o de Milícias ao qual todos estão, e devem
ficar sujeitos.”
Os Corpos de Milícias seriam comandados pelos Principais e outros oficiais
índios das povoações, “indistintamente com os Moradores Brancos”, e as ordens
executadas através desses oficiais comandantes e juízes dos distritos, “alternativamente
Brancos, e Índios segundo a ordem a que pertencerem.”
O Corpo de Índios – deveria trabalhar apenas uma parte do ano e a outra
lhe seria reservada para permanecer em seus distritos “para cuidar dos Negócios de
suas famílias.” Acreditava a rainha que essa disposição “insensivelmente os irá
acostumando a ocupações sérias, e por conseqüência a achar necessário para a sua
felicidade um governo que provê a todas as suas precisões e se desvela pela sua
tranqüilidade.” Além desses dois Corpos, deveria ainda ser formada uma Companhia
de Pescadores, em que os engajados seriam dispensados tanto do Corpo de Milícias
quanto do de Índios, “ficando porém sujeitos a outros trabalhos aqueles que alistados
faltarem ao Serviço da Pescaria, e impondo-lhes uma pena proporcionada, se
abandonarem as Embarcações.”

12
Dito corretamente, a proposta de Coutinho apenas vem institucionalizar, através da Carta Régia, os descimentos particulares
que já haviam sido autorizados na década de 1780. Cf. (178?) Condições em que são concedidos aos particulares os índios
silvestres dos novos descimentos. ANRJ - Códice 99 - v. 5, Doc. 282.
13
BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Representação ao Conselho Geral da Província do Pará. ABAPP. Belém: Imprensa Oficial,
Tomo II., p. 246.

E spelhos P art i dos 233


No caso dos contratos dos dízimos, garante-se aos contratadores a
possibilidade de requerer aos juízes dos distritos os índios necessários para suas
canoas e também a dispensa de outro recrutamento para os Corpos na duração do
contrato.
Formados a partir de listagens regulares de todos os homens válidos do
distrito, excetuados aqueles que tivessem propriedades e controlados pelos Juízes e
Câmaras, serão desses Corpos que se requisitarão os trabalhadores necessários para
todos serviços. Os particulares teriam a prerrogativa de buscar seus trabalhadores
diretamente nos distritos, fazendo seus ajustes de contrato, sendo-lhes recomendado
ainda que “em lugar de os violentar a isso, procure as Povoações e nela se estabeleça,
se alie com os Índios, e com eles faça seus ajustes; porquanto deste modo terá
servidores que espontaneamente o sirvam, e que enquanto não lhes faltar aos ajustes,
estarão sempre prontos para trabalhar, e continuar a servi-lo.”
Os Corpos de Milícias deveriam ser reunidos semestralmente para que se
examinassem e se verificassem aqueles que se recusavam ao trabalho; a pena para
esses recalcitrantes era o engajamento obrigatório no Corpo de Índios ou a outro
serviço determinado pela autoridade. Essa determinação, tomada a bem da “Justiça”,
excluía “todos os que fizerem estabelecimento próprio”, esses seriam
“particularmente protegidos, e isentos de todo o trabalho pessoal, logo que a
importância dos Dízimos que pagarem dos frutos que cultivarem, exceda o do
Jornal que poderiam ganhar.”
Em casos excepcionais para atender ao serviço real, o ouvidor poderia
requisitar os trabalhadores suplementares aos juízes dos distritos, seguindo as
determinações da Junta da Fazenda quanto ao número requerido e de quais distritos
deveriam ser retirados. O ouvidor também poderia atender, eventualmente, à

14
IHGB, lata 287, livro 2.
15
Além dos livros das Câmaras, a obrigatoriedade do batismo dos índios descidos pelos particulares abre uma possibilidade
documental nova para investigação que são os Livros de Registro de Batismo. Priscila Faulhaber usou, parcialmente, em seu
trabalho, o Livro de Batismo de Nogueira, freguesia localizada defronte a Ega, no rio Solimões, para tratar desse período
que denominou de “o tempo dos grandes descimentos”. Cf. FAULHABER, Priscila. O lago dos espelhos: etnografia do saber
sobre a fronteira em Tefé/Amazonas. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1998.

234 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


ÍNDIOS DA REPÚBLICA (1798-1838)

Índios “bravios” Índios “aldeados”


(aldeias e mocambos) (vias e lugares)

Descimentos
particulares

Câmaras
(juízes)

Índios do Termo de Corpo de Milícias Companhia de


educação ligeiras Pescadores
(Órfãos)

Corpo efetivo de índios

Particulares

Serviço Real contratos reais Particulares

Fonte: Elaborado pela autora

solicitação de particulares que não conseguissem contratar os índios de seus distritos,


apenas para atender a necessidades emergenciais de colheita de seus frutos.
Confiados aos Juízes e Câmaras respectivas, a medida sugere a solução do
problema que Coutinho e outros administradores se reportaram repetidas vezes: a
dificuldade de se obter mão-de-obra considerando as fugas, as doenças, as
distribuições indevidas, a prioridade dos negócios do sertão dada pelos diretores.

E spelhos P art i dos 235


Para aqueles que “vivem nos matos” as disposições são diversas. Entre os
mecanismos tradicionais de transferência das populações indígenas do sertão para
as povoações está o descimento. A Carta de 1798 proíbe sua realização expressamente,
da mesma forma que proíbe a realização de guerra ofensiva, coibindo as intervenções
em guerras intertribais e a aquisição de escravos produtos desses conflitos.
Quanto aos descimentos, aparentemente a Carta foi mal compreendida
pela historiografia nesse aspecto ao enfatizar a proibição pura e simples do descimento.
Porém uma leitura complementada com outras fontes revela que a proibição refere-
se a descimentos realizados pelo governador e militares, seja com financiamento da
Fazenda Real ou de particulares. “Sou servida, que nem vós, nem quaisquer outros
Cabos Militares empreendam expedições seja por conta da Minha Real Fazenda,
seja por conta de particulares, para os Descimentos de Índios, nem ainda para
travar com eles Comunicação [...]”.
A idéia é que a Coroa está-se afastando de uma atividade arriscada, de altos
custos financeiros e resultados duvidosos. Reforçam esse raciocínio as outras
disposições que garantem prêmios significativos àqueles que conseguissem realizar
descimentos na prática ou, como diz a lei, “aquele que reduzir qualquer Nação de
Gentio ou a receber Sacerdote ou o que a souber aliciar e conduzir a estabelecer-se
junto a qualquer Paróquia para o mesmo fim”. Os prêmios são a concessão de
sesmarias, declaração de nobreza e habilitação para ocupação de cargos e isenção
dos dízimos por seis anos, sendo que esse prazo podia ser dilatado posteriormente.12
O descumprimento da concessão desse último privilégio é objeto da
indignação de Antônio Baena:

Iludiram a franqueza dos direitos durante dez anos permitida


aos que empreendessem descimentos para as aldeias; cuja empresa
nãos sendo isenta de trabalho, risco de vida e dispêndio de fazenda,
só com o indicado privilégio é que podia excitar o interesse dos
homens mais capazes de entrar na dificuldade do desempenho
da mesma empresa.13

16
APP - Códice 554, Doc. 292, publicada em MOREIRA NETO, C. A. Op. cit., p. 237-240, 1988, e APP - Códice 554, Doc.778,
01.12.1799 e Doc. 795, 6.12.1799
17
A informação está na correspondência de Francisco de Souza Coutinho ao governador do Rio Negro. Nela Coutinho estima
que os 2.300 índios existentes nessa Capitania são suficientes para formar mais de 2 corpos de Ligeiros. APP - Códice 554
- Correspondências do Governo com Diversos (1798-1799) - Doc. 778. Instrução de Francisco de Souza Coutinho em 01
de dezembro de1799.

236 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Considerando-se as restrições de capital e as características do mercado não-
capitalista da região nesse momento, é bastante compreensível a indignação do autor
diante da impossibilidade de reduzir não só os custos com mão-de-obra, mas também
liberar-se, ainda que temporariamente, do pesado sistema fiscal.
Assim, com relação aos índios não-aldeados, era permitido aos particulares
“descê-los dos matos” e apresentá-los à Câmara requerendo-os para seu uso pessoal,
através dos Termos de Educação e Instrução. Seu compromisso inicial era batizá-los e
educá-los, usufruindo de seu trabalho por um período de tempo determinado e, ao
final, pagar-lhes os salários devidos. A esses, é que ficou concedido o privilégio de
“órfãos”, figura tutelar analisada por Farage e Cunha.14
O uso exclusivo desses índios assim recrutados pelos particulares era garantido:
“E todo aquele que durante o mesmo espaço de tempo inquietar, ou seduzir os índios
para abandonarem o Serviço em que estão, incorrerá em graves penas.”. O termo de
educação não deveria transformar-se em escravidão: “bem entendido que são os
Índios livres de qualquer Nação que esteja em paz, e não Escravos; o que na
conformidade do que acima vos Ordeno deveis sobretudo fazer examinar para serem
Castigados os que infringirem as Ordens que para execução e Cumprimento do que
deixo determinado havereis de passar.” Na prática, contudo, os termos podiam garantir
índios aos moradores perpetuamente como indicam as concessões registradas no
Livro da Câmara de Ega.15
Nos contatos com os índios dos sertões, a recomendação legal era para que
todos os comboieiros que transitassem no interior da Capitania fossem obrigados a
levar “presentes” para distribuir aos gentios. Para se acompanhar o cumprimento
dessa determinação, caberia aos juízes devassar todos os comboios que transitassem
em seus respectivos distritos para averiguar o seu efetivo cumprimento.
A Carta recomendava ainda muito cuidado na promoção de casamentos
mistos, para “facilitar-lhes Alianças com os Brancos, como um meio muito eficaz
para sua perfeita Civilização:” Tal como o Diretório (abolido e extinto), acenava

18
BAENA, Antônio L. M. Compêndio das eras... Op. cit., p. 237.
19
Cf. APP - Códice 554, Doc. 292 e também em MOREIRA NETO, C. A. Op. cit., p. 238, 1988.
20
APP - Códice 554, Doc. 795, 6 de dezembro de 1799. Para essa medida, o governador concedeu uma espécie de “carência”:
seria executada apenas depois da mostra de S. João, quando seria divulgada mais amplamente e estabelecia o Natal como
prazo fatal, dando tempo para que os indivíduos assim enquadrados tratassem de formar seus estabelecimentos ou buscar
“meios de subsistir por honesto trabalho”.
21
Cf. APP - Códice 554, Doc. 292 e também em MOREIRA NETO, C. A. Op. cit., p. 238, 1988.
22
APP - Códice 554, Doc. 778, 01 de dezembro de 1799.

E spelhos P art i dos 237


com concessões aos casados como a “prerrogativa de ficarem isentos de todos os
Serviços Públicos os seus Parentes mais próximos por um número de anos
proporcionado aos que julgardes bastantes para formarem seus Estabelecimentos
e, se os Brancos que quiserem casar com Índias forem Soldados pagos, Autorizo-
vos a dar-lhes Baixa [...]”
Quanto às terras indígenas e seus recursos naturais, ficou liberado o acesso
dos moradores que podiam, também negociar livremente com os índios. “A todos
será livre o fazer o Comércio com os Gentios, e deveis permitir a introdução de
todos os gêneros que carecerem à exceção de Armas Brancas, e de fogo Pólvora,
Bala, Chumbo, e ferro, e tudo o mais, que possa dar-lhes ocasião de intentarem
empregar contra os seus benfeitores: E outrossim vos ordeno que permitais a livre
extração, e venda de todos os gêneros que do seu País trouxerem os que lhes levarem
os da Capitania [...].
O estabelecimento nas terras dos índios estava garantido a todos os
indivíduos livres, dando parte ao governo de sua intenção. Também deveriam ser
enviados eclesiásticos para as Paróquias, com côngrua paga pela Real Fazenda, para
“gravar nos Corações dos Gentios as verdades inefáveis do Evangelho.”
A liberação do acesso às terras dos índios se combina com a liquidação dos
bens do Comum das extintas povoações pombalinas. Tudo quanto pertencia ao
Comum deveria ser vendido e seu resultado, recolhido aos cofres reais.
A Carta não termina aqui. Existem disposições que ampliam e esclarecem
melhor seus dispositivos porque vários deles ficaram para implementação pelo
governador do Estado. O primeiro deles dizia respeito à formação dos Corpos de
Milícias que, no Grão-Pará, acabariam sendo chamados de Corpos de Ligeiros. São
vários os documentos que compõe o conjunto das instruções para a formação dos
novos corpos, mas a base é a Instrução Circular sobre a formatura de novos corpos de
milícias, de 6 de janeiro de 1799. São complementares, a de 01 de dezembro de 1799
e uma outra, datada de 6 de dezembro do mesmo ano.16
Ao todo, são criados nove corpos, e essa criação ocorre paralelamente à
extinção das Ordenanças, realizada pela Metrópole. Essa que seria uma coincidência,

23
Idem, Ibdem, APP - Códice 554, Doc. 778.
24
A citação está em MOREIRA NETO, C. A. Op. cit., p. 233, 1988 - Carta de Francisco de Souza Coutinho a Rodrigo de Souza
Coutinho, Pará, 30 de abril de 1799. As recomendações para a liquidação dos bens do Comum aparecem na correspondência
enviada pelo governador Coutinho ao governador do Rio Negro, em 13 de fevereiro de 1799 (APP - Códice 554, Doc. 333)
e nas ordens expedidas em 22 de janeiro de 1799 (APP - Códice 554, Doc. 145) que estabelecem, em detalhe, os
procedimentos para sua arrematação e devidas prestações de contas.

238 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


acabaria por confundir posteriormente os administradores no Pará que passariam a
referir-se os Ligeiros como as extintas Ordenanças. Tal confusão logo se revestiria de
maior complexidade que a simples questão da nomenclatura dos novos Corpos. A
princípio, os Corpos do Pará são formados à base de 10 Companhias cada um,
sendo que cada Companhia é composta por 100 praças, comandadas por Mestres
de Campo.17
Os novos Corpos foram assim distribuídos: o 1º na cidade de Belém, o 2º
na Vila de Vigia, o 3º na Vila de Cametá, o 4º na Ilha de Joannes, o 5º nas Vilas de
Portel e Melgaço: o 6º na Vila de Gurupá, o 7º na Vila de Santarém. No rio Negro,
estavam estabelecidos os dois últimos.18
A formação das novas tropas, nas instruções complementares, ganha
contornos mais precisos, especialmente na determinação expressa sobre quem recairia
o ônus do recrutamento. A Instrução de 06 de janeiro de 1799 deixa claro aos oficiais
encarregados das diligências para formação dos Corpos que “todo índio ou mestiço
que estiver alistado nos corpos de milícias sem ter escravos nem estabelecimento de
lavoura de considerável importância, que lhe dê meios para se conservar sempre
armado e fardado, deverá ser incluído nas companhias acima determinadas.”19
A instrução de 6 de dezembro de 1799 amplia esse raio de ação: todos os
indivíduos que estivessem alistados nas milícias e na infantaria sem que possuíam os
requisitos do estabelecimento próprio ou ofício para sua mantença, deveriam assentar
praça nos Ligeiros e utilizados “em todo o serviço público a que os Ligeiros sejam
chamados, sejam eles Brancos Índios Mestiços ou Pretos livres, não tendo privilégio
que se deva guardar.”20
Quanto ao comando dos Corpos, as Câmaras deveriam propor os oficiais
das Companhias, escolhendo entre os moradores brancos, Principais e oficiais índios
das povoações, remetendo a relação dos escolhidos ao governo para mandar passar
as respectivas patentes21. Isso, contudo, não deveria significar a perda de prestígio
das graduações de Principais: “antes são distinções que devem continuar nas famílias
a que pertencerem assim como sucede entre os Brancos [...]”22
A importância do rigoroso respeito aos distritos e à jurisdição das Câmaras
é constantemente reforçada nas instruções para que não haja sobreposições ou

25
COELHO, Geraldo M. Anarquistas, demagogos e dissidentes. PINHEIRO, Luís Balkar. Nos subterrâneos da revolta. GOMES,
Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos.

E spelhos P art i dos 239


problemas na jurisdição dos Corpos e, mais do que isso: a determinação precisa
dos distritos redundaria no maior controle da população, “de modo que qualquer
indivíduo ainda que se mude não consiga mais do que mudar de cabos e oficiais”,
daí a importância dada ao domicílio de cabos e anspeçadas no próprio distrito de
suas esquadras e dos oficiais nos de suas respectivas companhias, facilitando o
ajuntamento dos Ligeiros, e, sobretudo, dificultando a entrada ou saída furtiva dos
distritos.23
Outra disposição importante que acompanha a Carta diz respeito ao destino
dos bens do Comum das povoações. Esses deveriam ser inventariados, os resultados
dos negócios ainda pendentes seriam recolhidos aos cofres e, os bens que não fossem
arrematados, recolhidos aos armazéns reais. As olarias e as outras fábricas (amarras,
algodão) passariam para as Câmaras. Todos os produtos de lavoura e do sertão
ainda existentes se destinariam à liquidação das contas dos interessados, fossem
índios, cabos ou diretores.
O saldo deveria ser recolhido aos cofres, até a resolução de S. Majestade.
Nesse ínterim, nenhum pagamento deveria ser feito ao tesoureiro responsável pelas
povoações (Tesouraria Geral do Comércio dos Índios), “em razão das muitas queixas
de diretores, cabos e índios, aos quais até então o dito tesoureiro impunha silêncio,
inculcando-se por meu valido para fazer o que queria.”24

O QUE JÁ FOI DITO SOBRE A CARTA E O QUE AINDA SE PODE DIZER

Essas considerações não têm a pretensão de esgotar o tema. Esta é uma


classificação provisória e que tem muito de operacional, procurando apresentar
diversos autores que trataram desta legislação, tentando identificar semelhanças e
diferenças nas suas abordagens.

1. Clássicos

26
CUNHA, Manuela C. da. Política Indigenista no século XIX. In: CUNHA, Manuela C. da. (Org.). História dos índios no Brasil.
p. 133-154, 1992. Legislação Indigenista no século XIX. 1992.
27
Essa consideração restringe-se a dois trabalhos: Índios livres e índios escravos. In: CUNHA, Manuela C. (Org.). Op. cit., p.
115-132, 1992. Legislação Indigenista. In: SILVA, Maria Beatriz N. (Coord.). Dicionário da história da colonização
portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, p. 467-478, 1994. Não tive acesso ao original da dissertação da autora.
28
Aqui cabe uma pequena ressalva: a leitura básica foi feita por ocasião de sua tese de doutorado e as publicações
posteriores reproduzem-na integralmente, com pequenas alterações de forma.

240 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Descrições relativamente detalhadas da Carta de 1798 que, também, buscam
estabelecer nexos com a política indigenista posterior e seus efeitos deletérios sobre
as populações indígenas do Brasil estão em João Lúcio d’Azevedo e Perdigão
Malheiro. Se considerarmos aqui, os comentários de Capistrano de Abreu, temos o
quadro de referência básico de todos os outros autores aqui enumerados; por essa
razão, chamei-os de “clássicos”. Serão essas as bases de apoio de comentaristas
mais recentes como é o caso de Expedito Arnaud, Mércio Gomes, José Ribamar
Freire, José Vicente César e Carlos Moreira Neto. Não é possível deixar de mencionar
neste grupo os trabalhos produzidos por Arthur Reis, na década de 1940. Autor de
obra vasta sobre a região, incorpora uma análise modesta da Carta, ainda que muito
informada pela conjuntura em que seus textos foram produzidos.

2. Memorialistas contemporâneos à vigência da Carta

Destacamos aqui as interpretações de Antônio Baena e Lourenço Amazonas,


considerando suas experiências pessoais na região e o peso que isso pode carregar
suas avaliações. Homens do XIX, ambos eram militares, exerceram cargos
administrativos na região por certo período e mantiveram contato estreito com os
vários agentes envolvidos na questão relativa à civilização dos índios. Suas leituras
carregam, assim, o “clima” das discussões locais acerca do problema da
disponibilidade de mão-de-obra indígena.

3. Antropólogos e historiadores

As análises disponíveis quanto aos efeitos da Carta Régia são restritas. Trata-
se de um tema mais freqüentado pelos antropólogos que pelos historiadores. Na
verdade, dito de forma mais precisa e tratando da historiografia de modo mais
amplo, todo o período que se estende entre a queda de Pombal (1777) até a
Cabanagem (1835) é marcado por um silêncio com relação à região - excetuando

29
Francisco de Souza Coutinho, Pará , 2.8.1797. Ms: ANRJ, Cód. 101, v. 2, fls. 54-82
30
Cf. MOREIRA NETO, C. A. Índios da Amazônia: de maioria a minoria. p. 110 e 119, 1988.

E spelhos P art i dos 241


apenas a produção de certos historiadores locais, como é o caso de Arthur Reis,
Inácio Aciolli, Palma Muniz e Manuel Barata. Trabalhos mais recentes, como o de
Geraldo Mártires Coelho, Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro e Flávio dos Santos Gomes
vêm respondendo por novas interpretações para o período e também demarcando
importantes revisões em uma historiografia ainda marcada pelo viés tradicional.25
Vale registrar a discussão quanto à questão da tutela dos índios realizada por
Nádia Farage e Manuela Carneiro da Cunha em um artigo que recupera as
ambigüidades e ampliações dessa figura jurídica. Nesse contexto, analisam as
recomendações da Carta, particularmente, a extensão do estatuto da orfandade aos
índios não-aldeados que fossem contratados, educados e batizados por particulares.
Estreitamente vinculada a essa área de reflexão, Manuela Carneiro também
aparece com comentários mais gerais em outros dois artigos que, se não analisam a
Carta em questão, fornecem um pano de fundo para compreender as alterações,
ambigüidades e oscilações da política indigenista no Brasil do século XIX.26
Ao realizar uma leitura comparativa da questão indígena no XIX, abre um
fecundo caminho de discussão quando indica que, nesse século, a questão indígena
deixa de ser um problema de mão-de-obra para tornar-se uma questão de terras,
mas com importantes variações regionais como a Amazônia, o Mato Grosso e o
Paraná. Vinculada ao mesmo grupo, é preciso registrar que o importante trabalho
de Beatriz Perrone-Moisés não faz considerações sobre essa lei, apesar do período
e da temática por ela analisados.27
Em outra vertente, está Colin MacLachlan que lê a conjuntura de 1798
como o fecho de um processo de transição para o trabalho livre no Pará. É o único
dos autores a realizar essa operação e também a trabalhar com fontes primárias
mais abrangentes que o texto da Carta.
Neste levantamento preliminar, Moreira Neto aparece como um dos que
mais publicou sobre o tema. Cabe a ele o pioneirismo na indicação de semelhança
de princípios entre a Carta e os Corpos de Trabalhadores criados no Pará em 1838,
nas análises referentes à liquidação do patrimônio coletivo dos aldeamentos e também
na avaliação de que essa lei marca o início de uma política muito mais agressiva e

31
Cf. REIS, Arthur C. F. A conquista espiritual da Amazônia. p. 68-69.
32
Cf. ALMEIDA, Rita Heloísa de. Op. cit., p. 46.
33
CUNHA, Manuela C. da. Legislação indigenista no século XIX. p. 9, 1992.

242 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


dura – adjetivos recorrentes no início do século XIX para qualificar a política
indigenista do período que pode ser estendido até 1831.28
Por fim, é oportuno esclarecer que não é por diletantismo acadêmico que
vários antropólogos aqui mencionados vêm se dedicando a essas leituras. Na verdade,
a análise da política indigenista implementada no Brasil, desde a colônia, até os dias
atuais se vincula a uma ordem de preocupações muito mais ampliada relacionada à
discussão das políticas em vias de implementação pelo Estado Brasileiro com relação
às populações indígenas e também à instrumentalização das organizações que lidam
diretamente com essa problemática. Assim é que boa parte dessa produção emerge
como um produto dos trabalhos realizados no decorrer da elaboração da
Constituição Brasileira de 1988.
Um ponto comum no confronto entre esses autores e memorialistas é a
indagação das razões que levaram à extinção do Diretório Pombalino. De maneira
geral, indicam que os abusos e malversações exercidos pelos Diretores foram as
razões fundamentais para sua extinção. De todos, apenas Antônio Baena contesta a
eficácia da supressão do Diretório, legislação que considerava acertada, mas sem
deixar de apontar a incapacidade dos Diretores (“um enxame de vampiros”) como
a grande causa de seu fracasso; é aqui que concentra sua maior crítica – deviam ser
suprimidos os abusos da praxe e não a lei como um todo.
Um destaque todo especial é dado à atuação do Governador do Estado
do Pará, Francisco de Souza Coutinho. Crítico ferrenho do Diretório e autor do
“Plano para Civilização dos Índios do Pará” enviado a Lisboa que deu origem ao
texto da Carta, o peso da sua intervenção na alteração da política indigenista na
região é sempre ressaltado.29
Contudo Moreira Neto, Lourenço Amazonas e Antônio Baena sugerem,
com diferentes gradações, que a promulgação da Carta de 1798 foi produto de
uma política sistemática de desqualificação impetrada por Coutinho contra Manuel
da Gama Lobo d’Almada, então governador do Rio Negro. Moreira Neto vai um
pouco além ao considerar que as disputas políticas entre ambos, provavelmente,
tenham marcado de forma decisiva as alterações na política implementada na região
até aquele momento.30
Reis, por seu turno, ainda que dê grande destaque às perseguições políticas
sofridas pelo governador da Capitania e seus desdobramentos no processo de
decadência do Rio Negro, não vincula a promulgação da Carta a esse processo.

E spelhos P art i dos 243


Avalia seus efeitos desestruturadores na ação administrativa de Almada, mas vê a
Carta como um sinal do espírito liberal do final do século XVIII e parte da política
“humanitária” dos portugueses com relação aos índios.31
Apesar dessas afinidades, as avaliações quanto à eficácia da Carta no processo
de civilização dos índios geram divergências. Capistrano de Abreu considera-a uma
medida salvadora, mas que chega tardiamente. João Lúcio d’Azevedo e Perdigão
Malheiro são incisivos em apontá-la como ineficaz. Baena é ainda mais contundente
ao assegurar que nenhuma outra lei foi tão inadequada e tão descumprida quanto a
Carta de 1798.
Rita Heloísa de Almeida, em trabalho mais recente, considera a Carta como
a expressão de uma crise na definição da administração tutelar, na medida em que
essa autora vê a supressão da figura central da tutela estatal como um sinal de
enfraquecimento dessa mesma tutela. Sustenta seu argumento uma leitura específica,
diferente da que foi feita até aqui, que atribui maior relevo aos procedimentos de
contato com os índios não-aldeados que poderiam ser realizados por diferentes
agentes (comboieiros e particulares) e não mais exclusivamente pela Coroa32. É
certo que a Coroa, como se viu, buscou afastar-se do comando dos descimentos,
mas não me parece que isso reflita, necessariamente, uma crise de definição tutelar.
Nesse sentido, a Carta é bastante explícita ao estabelecer uma figura administrativa
para assumir a tutela dos índios recém-descidos: declarados órfãos, estão
juridicamente sob a alçada do respectivo juiz e, diretamente, dos particulares
responsáveis pelo seu descimento dos matos.
Como já foi dito, Manuela Carneiro não atribui maior peso a essa Carta no
conjunto da política indigenista, lendo o período que vai de 1798 até 1845 como
“um vazio que não seria preenchido”. Na sua opinião, é nesse vazio de diretrizes
que o Diretório continuou a servir como parâmetro de referência legal.33
No primeiro grupo de autores, é comum ainda uma descrição e
detalhamento dos artigos da Carta. O que os diferencia é o peso que se atribui a
cada uma das determinações régias. João Lúcio destaca a questão da liberdade dos
índios e as contradições do texto legal que regulamenta a compulsão ao trabalho
através do alistamento obrigatório. Malheiro faz uma longa descrição, mas concentra-
se no vácuo legal posterior e no clima de terror sobre os índios, especialmente após
a publicação das Cartas Régias que autorizam a realização de guerras ofensivas e a

244 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


escravização dos prisioneiros, após a chegada da Corte. Reis, conforme já se disse,
vê a Carta como uma ampliação das preocupações humanitárias da Coroa para
com os índios, ainda que avalie que essa legislação não surtiu os efeitos civilizadores
esperados.
Seguindo esse mesmo critério, podemos agregar aqui Moreira Neto porque
é, do terceiro grupo, o único a tecer maiores comentários quanto ao texto legal. A
diferença é que seu leque de preocupações é mais ampliado: todos os argumentos
que enumera na análise da Carta dirigem-se para a comprovação do agravamento
das condições econômicas e sociais das populações indígenas da Amazônia.
Observando a legislação posterior, é possível avaliar a adequação das
considerações de Manuela Carneiro acerca do vácuo administrativo-legal criado
após a extinção do Diretório para várias regiões do Brasil. A Carta não se transformou
na nova política indigenista geral e, nesse sentido, há uma lacuna legal. A questão,
porém, parece residir, como a própria Manuela Cunha sublinhou, em uma alteração
significativa na natureza da questão indígena naquela conjuntura: a progressiva
acentuação no problema da ocupação das terras e não mais na sua incorporação
como mão-de-obra. Contudo, no caso da Amazônia, penso ter destacado alguns
elementos demonstrativos da especificidade da legislação de 1798 e que parecem
comprometer sua aplicabilidade em outras áreas do país, restringindo seu caráter
de política indigenista geral da Coroa, sendo uma legislação que ainda dá grande
ênfase à questão da disponibilidade de trabalhadores.
Talvez o principal traço da nova legislação indigenista produzida com a
extinção do Diretório pombalino tenha sido a progressiva acentuação de um
processo de individuação dos índios aldeados. O Diretório, ao percebê-los no
conjunto estabelecido pela povoação, ainda permitia a manutenção de uma certa
noção de comunidade na qual o indivíduo – descido como parte de um grupo –
podia referenciar-se às suas lideranças, usufruir em conjunto dos bens do Comum,
ser parte da mão-de-obra a ser repartida sempre referenciado à povoação e visto
no contexto do grupo descido e aldeado. A Carta extinguiu essa possibilidade,
acentuando a autonomia das câmaras locais e não mais distinguindo os índios
aldeados como grupos separados no contexto das vilas e lugares: todos seriam
sujeitos às câmaras, tal como os outros vassalos; não mais existiriam bens do Comum
dos quais se pudessem auferir rendimentos, independentemente dos rendimentos
usuais das câmaras; todos poderiam realizar os ajustes e contratos que julgassem

E spelhos P art i dos 245


convenientes para seus trabalhos; quem possuísse propriedades, rentáveis o suficiente
para fazer frente aos dízimos, estava fora do alcance do recrutamento compulsório.
Até mesmo a autoridade dos Principais ficou restrita à manutenção de
determinados privilégios, mas seu poder de mando no espaço da vila ficaria
condicionado à efetiva ocupação de cargos na República e não mais de maneira
paralela à existência dela como tinham funcionado as povoações pombalinas. Sujeitos
às mesmas leis “a respeito da gentes do serviço, e dos deveres Recíprocos do Amo,
e do Criado”, os índios já aldeados deveriam buscar seus próprios mecanismos de
proteção individual, já que as referências coletivas (lideranças, terras, bens do Comum)
tinha sido abolidas.
Paradoxalmente, em se tratando de não-aldeados, os grupos que doravante
seriam incorporados ao mundo do trabalho colonial entram pela porta da tutela
exclusiva, regulada pelos Termos de Educação. Para esses, a figura ambígua e reticente
do termo poderia configurar-se como um mecanismo perene de subordinação.
As reticências no tratamento da Carta de 1798 apontam para a carência dos
estudos locais e as dificuldades daí decorrentes, obstaculizando a formulação de
análises explicativas que dêem conta de uma conjuntura histórica que ainda permanece
nebulosa, pouco freqüentada por historiadores e outros estudiosos interessados na
questão.
A especificidade da Amazônia, no contexto do projeto colonial português
do século XVIII, já foi demonstrada em vários trabalhos que destacam, entre as
ações empreendidas durante a administração pombalina, a geração de uma política
indigenista particular que, posteriormente, seria aplicada para o conjunto da colônia
brasileira. Em 1798, esse gradiente se altera de forma substantiva, mas a especificidade
regional mantém-se. Produzida em uma conjuntura de mudanças políticas no
ultramar e na própria colônia, uma análise da natureza e dos efeitos da Carta de
1798 pode colaborar não só na ampliação das discussões quanto à política indigenista
brasileira, mas também ampliar nossa compreensão de uma região e de suas muitas
especificidades.

1
Cf. SODRÉ, Nélson Werneck. História militar do Brasil. BELLOTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito na Colônia: o governo
do Morgado de Mateus em São Paulo. PEREGALLI, Enrique. O recrutamento militar no Brasil Colonial. SOUZA FERREIRA.
História Militar do Brasil: período colonial. SALGADO, Graça (Org.). Fiscais e meirinhos.
2
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Op. cit., p. 314 e p. 324-328.
3
As Milícias foram criadas em Portugal no ano de 1641 e regulamentadas pelo Regimento de 01.04. 1650. SALGADO, Graça
(Coord.). Fiscais e meirinhos. p. 98.

246 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


C APÍTULO 12

CAMINHOS POSSÍVEIS: AS ARMAS E A REPÚBLICA

Devem-se obrigar os Principais,


e Oficiais dos Corpos de Milícias dos Índios,
a que usem de uniforme, e por meio deles introduzir-lhes o luxo, porque tratando-se
competentemente
não só se verão obrigados a trabalharem,
a fazer trabalhar os seus,
mas ainda se farão respeitar, e procurar pelos Brancos.

Francisco de Souza Coutinho, 1797.

Felipe Muniz, nosso sargento tapuio, não deve ser esquecido. Se já se avançou
esclarecendo o momento no qual ele se tornou possível, para compreender a sua
trajetória particular, é preciso, ainda, entender melhor a estrutura e o papel das
tropas e milícias na colônia.
Na segunda metade do século XVIII, os exércitos coloniais eram
compostos pelas tropas pagas e pelas tropas auxiliares sendo que estas últimas
compreendiam as Milícias e as Ordenanças. As tropas pagas ou regulares constituíam-

4
Maxwell assegura que as reformas militares efetivadas por Pombal estavam em estreita consonância com as outras medidas
de reforma administrativa e fiscal do Estado português. Cf. MAXWELL, K. Op. cit., p. 121-122.
5
SALGADO, Graça (Coord.). Fiscais e meirinhos, p. 109.

E spelhos P art i dos 247


se nos contingentes militares que eram deslocados para as áreas coloniais para guarnecer
as vilas e defender as áreas fronteiriças. Sua presença na colônia remonta aos
momentos iniciais dos estabelecimentos portugueses. Contudo logo ficou claro que
esses contingentes eram insuficientes para atender às inúmeras necessidades da defesa
da colônia e era impossível para a metrópole manter um fluxo regular de tropas
para atender as diferentes áreas de seus vastos domínios ultramarinos. Daí a diretriz
metropolitana no sentido de estimular a criação de forças auxiliares nos mesmos
moldes do que já se fazia em Portugal.1
As companhias de Ordenanças surgiram ainda no século XVI, reguladas
pelo Regimento das Ordenanças de 1570. São forças locais – estacionadas e de
mobilidade restrita – não remuneradas organizadas pelas Câmaras e constituídas
pelos homens válidos (entre 18 e 60 anos) existentes nos núcleos urbanos.
A rigor, não havia recrutamento para as Ordenanças, apenas um arrolamento
na medida em que toda a população de um distrito fixado estava a elas
automaticamente engajada. A partir desse arrolamento, definem-se os que serão
alistados nas tropas regulares e nas milícias. Os homens das Ordenanças só eram
mobilizados em casos excepcionais de defesa local ou, ainda, anualmente para mostras
e exercícios formais. Seus postos de comando eram indicados pelas Câmaras e
suas patentes deveriam ser reconhecidas pela Coroa.
Definidas como expressões do poder local dos senhores da terra e espaço
privilegiado de disputas políticas e tensões locais, para Caio Prado Júnior, as
Ordenanças possuíam um papel considerável na administração das capitanias,
afirmando mesmo que foi “graças a ela que a colônia tornou-se governável”, na
proporção em que reiterava hierarquias existentes e, no limite, possibilitava um
controle mais rigoroso das populações coloniais, incluindo-se aí as populações
indígenas, especialmente após as leis de liberdade implementadas na administração
pombalina.2
As Milícias, por sua vez, são criadas no século XVII e também não recebiam
soldo. Sua finalidade era prestar apoio às tropas de primeira linha na defesa da
colônia. Ao contrário das Ordenanças, as Milícias eram consideradas como corpos
propriamente militares e podiam ser deslocadas de sua base territorial para atender

6
BELLOTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito na colônia: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo, p. 107. PRADO
JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, p. 312.
7
As informações para esse período são fragmentárias. Cf. BAENA, A. L. Monteiro. Compêndio das eras... Op. cit.

248 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


às necessidades das tropas regulares. Milicianos eram recrutados também junto à
população civil e alistados em categorias: brancos, pardos e pretos. O comando das
Milícias era realizado por oficiais deslocados das forças regulares: o mestre-de-
campo e o sargento-mor.3

Tropas Regulares Tropas Auxiliares

Regimentos
Milícias Ordenanças

Terços Terços
Companhias

Esquadras
Brancos Índios Brancos Índios

Companhias Companhias Companhias Companhias

Esquadras Esquadras Esquadras Esquadras

As tropas regulares eram organizadas em regimentos, divididos em 10


companhias de 250 homens e, cada uma das companhias, era subdividida em 10
esquadras, cada uma com 25 homens. As tropas auxiliares eram distribuídas em
terços, também subdivididos em companhias e, por fim, em esquadras. Essa era,
pelo menos, a disposição legal o que não significa que, na prática, essa distribuição
tenha se mantido rigorosamente dentro dos moldes previamente estabelecidos.

E spelhos P art i dos 249


Na segunda metade do século XVIII, as tropas regulares e auxiliares passam
por uma série de modificações e ajustes visando torná-los mais eficientes. A primeira
delas materializa-se na Provisão de 30 de abril de 1758, que transcreve a legislação
quinhentista que regulamentou as Ordenanças (1570 e 1574), a alteração efetuada
em 1739 que regulou o número dos oficiais das ordenanças nas Capitanias e a de
1749 que determinou que os postos de Capitães-mores das Ordenanças passassem
a ser vitalícios em vez de trienais. A idéia de reunir a legislação era facilitar sua
aplicação no século XVIII. A segunda é a reorganização promovida pelo Conde de
Lippe (Wilhem Graf von Schaumburg-Lippe), também durante a administração
do Marquês de Pombal, através do regulamento de 18 de fevereiro de 1763. As
reformas introduzidas pelo Conde nos exércitos portugueses (metropolitanos e
coloniais) guardavam relação com os recentes (in)sucessos das tropas portuguesas
em confronto com os espanhóis tanto na Europa (Pacto da Família) quanto na
tensa disputa pelas áreas de fronteira do sul – a Colônia de Sacramento e as Missões
– situações incômodas e persistentes entre 1761 e 1777.4
É na esteira das reformas de Lippe que surge a Carta Régia de 22 de março
de 1766, que estabeleceu o alistamento indiscriminado de todos os moradores da
terra, sem excetuar nobres, plebeus, brancos, mestiços pretos ingênuos e libertos
para formarem os terços de auxiliares e ordenanças de cavalaria e de infantaria. A
justificativa fundava-se na necessidade de organizar as forças de defesa da colônia,
reduzindo as irregularidades e indisciplinas em que se achavam as forças auxiliares.5
Como já se disse, ainda que seguindo dispositivos legais e diretrizes
metropolitanas, fica evidente que determinadas peculiaridades da organização das
tropas auxiliares serão produzidas em estreita consonância com as especificidades
das capitanias. Na medida em que eram organizadas em função das freguesias
existentes e, sobretudo, de acordo com as categorias da população, soluções e arranjos
locais dão o tom das diferenças encontradas nas diferentes capitanias. Em São Paulo,
por exemplo, durante a administração do Morgado de Mateus, as esquadras não
eram compostas por 25 homens como determinava o regulamento de 1570, mas

8
Cf. GOMES, Flávio. Op. cit., p. 102-106. Para a questão das fortificações, ver nota 11 do Capítulo 2: Fortificações e
aldeamentos: as estratégias coloniais.
9
SALGADO, Graça (Coord.). Fiscais e meirinhos, p. 110.
10
A informação está na correspondência de Francisco de Souza Coutinho ao governador do Rio Negro. Nela Coutinho estima
que os 2.300 índios existentes nessa Capitania são suficientes para formar mais de 2 corpos de Ligeiros. APP - Códice 554
- Correspondências do Governo com Diversos (1798-1799) - Doc. 778. Instrução de Francisco de Souza Coutinho em
6.12.1799.
11
BAENA, Antônio L. M. Compêndio das eras... Op. cit., p. 237.

250 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


de 10 homens que deveriam ser vizinhos a fim de que os cabos de esquadra pudessem
convocá-los e mobilizá-los com mais rapidez. Na Bahia, as Milícias compunham-se
dos Regimentos dos Úteis, formados pelos comerciantes e caixeiros; de Infantaria,
compostos pelos artífices, vendeiros, taberneiros; nesses regimentos estavam alistados
os brancos. No Regimento de Henrique Dias, alistavam-se os pretos forros e o 4º
Regimento de Artilharia era formado por pardos e mulatos.6
Recuperar a organização dos corpos militares do Pará colonial não é simples.
A história militar do Estado do Brasil é pouco freqüentada e a maior parte dos
trabalhos existentes concentra-se sobre a capitania de São Paulo, ou, no máximo, a
Bahia e Minas Gerais. No caso do Estado do Grão-Pará, a lacuna é ainda maior.
Como se trata de tema que escapa ao recorte estabelecido para esse trabalho, o
esforço que se intenta aqui é reunir informações dispersas em várias obras, ação
secundada pelo recurso à documentação localizada no Arquivo Público do Pará,
Museu Amazônico e Arquivo Nacional com o objetivo precípuo de compreender
melhor as mudanças que nossos personagens vêm sofrendo. Como se trata de um
esboço preliminar, ele ainda apresenta certas lacunas que só a pesquisa posterior
poderá vir a preencher.
No final do século XVII, existia no Grão-Pará uma tropa de primeira linha
composta por 4 companhias de infantaria. Entre 1711-1712, além das 4 companhias
de infantaria, as tropas regulares são reforçadas com duas companhias de artilharia.
Ao lado dessa, aparece uma tropa auxiliar de Ordenanças dividida em 6 companhias,
sendo que uma se chamava “da Nobreza”.7
Entre 1750-1752, o governo do Estado do Grão-Pará foi autorizado a
formar um regimento nos moldes metropolitanos, mas tal ordem não pode ser
cumprida porque não existiam recursos para pagamento dos soldos dos Oficiais
que deveriam ser nomeados para tais regimentos. Então, no ano de 1753, vieram de
Portugal 2 regimentos de Infantaria de Portugal para reforçar as defesas do Estado.
Data de 1752, a criação de novas tropas auxiliares no Pará: são os Terços Auxiliares

12
APP, códice 554. e BAENA, A. L. Monteiro. Compêndio das eras... p. 240.
13
Seu comandante era o coronel José Thomaz Brun, natural do Rio de Janeiro, falecido no Pará em 1805, aos 60 anos de
idade, de um ferimento à faca feito por um soldado. Cf. BARATA, Manoel. Formação histórica do Pará. Op. cit., p. 21.
14
A idéia de formar um corpo de Artilharia vinha da considerada bem sucedida experiência do Rio de Janeiro. BN. Manuscritos
- 7, 3, 26 Cópia da Ordem sobre a organização e formatura do Corpo de Milícias Artilheiras desta cidade constituídas de
Pardos e Pretos Libertos. 2 de maio de 1808.

E spelhos P art i dos 251


de Infantaria que eram, preliminarmente, divididos em duas classes: Brancos e Índios.
Em 1761, foi criada outra tropa auxiliar estabelecida em Macapá: o Terço Auxiliar
de Cavalaria.
Um dos regimentos regulares vindos da metrópole foi estabelecido na
cidade de Belém e outro foi deslocado para Macapá, com o objetivo de fortificar
a praça e fornecer os destacamentos para as áreas da fronteira nos rios Negro,
Branco e Solimões. Até o ano de 1775, o soldo e fardamento dessas tropas vieram
de Lisboa e, apenas a partir desse ano, as rendas locais passam a dar conta das
despesas com a tropa.
Entre 1769 e 1799, observa-se uma grande movimentação no sentido de
criar forças auxiliares no Estado, seja recrutando pretos, mestiços, ingênuos e libertos
como em 1769, seja formando companhias de infantaria compostas por índios e
mestiços, como a que foi formada na Ilha de Joannes em 1778. Sintomaticamente,
coincide com a expansão das fortalezas na região com a construção de oito delas,
em diferentes pontos do Estado.8
Além dessas forças, em 1774, forma-se outro corpo: a Guarda do
Governador. Dissolvida em 1791, mas imediatamente substituída por outra
composta por milicianos que, finalmente, foi extinta no final da administração do
Governador Francisco de Souza Coutinho, antes de sua passagem de governo ao
Conde dos Arcos.
Por decreto de 7 de abril de 1796, as Milícias passaram à categoria de
tropas de segunda linha, e a denominação do posto de mestre-de-campo foi
substituída pela de coronel. Nessa mesmo período, ficou estabelecido que os postos
superiores desse corpo seriam preenchidos por oficiais recrutados nas tropas pagas.9
É ainda na administração de Francisco de Souza Coutinho que são
reorganizadas, mais uma vez, as tropas auxiliares; em 1798, são criados 9 Corpos de
Ligeiros e, ao mesmo tempo, são dissolvidas as Ordenanças. A princípio, os Corpos
do Pará são formados à base de 10 Companhias cada um, sendo que cada
Companhia é composta por 100 praças, comandadas por Mestres de Campo.10
Os novos Corpos são assim distribuídos: o 1º na cidade de Belém, o 2º na
Vila de Vigia, o 3º na Vila de Cametá, o 4º na Ilha de Joannes, o 5º nas Vilas de
Portel e Melgaço: o 6º na Vila de Gurupá, o 7º na Vila de Santarém. No rio Negro,
estão estabelecidos os dois últimos.11

252 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Esses Corpos de Milícias Ligeiras são aqueles produtos da Carta Régia de

Índios
1798, analisada em capítulo anterior. É assim que vários elementos que compunham

Ordenanças

Infantaria
as Ordenanças passam a fazer parte do Corpo de Milícias. Ainda de acordo com as
prescrições da mesma legislação, é criada em 1798 a Companhia de Pedestres
destinada a atender às demandas das viagens para o Mato Grosso e para as diligências

Brancos
do Arsenal da Marinha. O modelo da Companhia foi inspirado no que foi criado
na Capitania de Mato Grosso.12

Artilharia
Em 1801, são extintos os Terços Auxiliares de Infantaria e, em seu lugar,
criados os Regimentos de Milícias que incorporaram os Terços extintos. O objetivo
dessa reformulação e ampliação das forças era permitir um reforço para a tropa
regular e também para a Legião Miliciana de Joannes. Essa última era composta
FORÇAS MILITARES DO GRÃO-PARÁ (1752 - 1796)

pela Artilharia volante, Cavalaria e Infantaria; como os Terços de Cavalaria também

Brancos
Milícias

Cavalaria
foram extintos com a Infantaria, a Legião de Joannes os incorporou. Os oficiais
dos novos Regimentos de Milícias eram escolhidos entre os habitantes “de qualquer
modo abastados”.
Em 1802, as tropas regulares do Pará recebem o reforço do Regimento de
Índios
Infantaria de Estremoz, que foi deslocado do Rio de Janeiro para Belém, já sob as
Infantaria

pressões das animosidades com a França napoleônica para fortalecer as posições


do Pará com a Guiana Francesa. O regimento chegou ao Pará em 1803, mas um
Brancos

tanto desfalcado: dos 1. 600 homens que o compunham, pouco mais de 400
chegaram a Belém13. Nesse mesmo ano, foi criado um Corpo de Artilharia, dividido
Granadeiros

em quatro companhias e composto por 300 homens.


Em 1808, foi organizado, pela primeira vez, um Corpo de Milícias Artilheiras
constituído exclusivamente por pardos, pretos e libertos. O novo corpo é claramente
inspirado em experimentos semelhantes de outras Capitanias e, até esse momento,
Tropas Regulares

não havia sido colocado em prática no Pará, fazendo com que Pretos, Pardos e
Fonte: Elaborado pela autora.

Libertos “conservassem-se uns e outros espalhados, e incluídos nas Companhias


Artilharia

de Ligeiros ou Ordenanças de seus respectivos distritos.”14


Recrutados poucos mais de 120 homens, são organizadas apenas duas
Companhias que afinal reuniram indistintamente pretos e pardos, porque esses eram
em número muito superior, o que terminou por impossibilitar a divisão das
Infantaria

companhias em partes iguais de pretos e pardos. Cada uma delas por ora composta de
1 Capitão, 1 Tenente Alferes, 2 Sargentos, 1 Furriel, 4 Cabos e 60 Soldados.
Estas Companhias eram destinadas unicamente ao Serviço Artilheiro, e eram
auxiliares do Corpo de Artilharia de Linha da Capitania. Com a denominação de

E spelhos P art i dos 253


FORÇAS MILITARES NO GRÃO-PARÁ (1796 - 1808)

254
1.ª Linha 2.ª Linha Corpos de Ligeiros
(9 Corpos)

Tropas Regulares Regimentos Militares Legião de Joannes


Corpo Efetivo Corpo de
de Índio Pedestre
Cavalaria Infantaria Cavalaria Artilharia
Infantaria Artilharia Granadeiros (5 regimentos) (Extinto em 1801) (2 Companhias)
(Criado em 1818)
Artilharia Cavalaria Infantaria
6 Regimentos 4 Compannhias Brancos Índios Pretos e Pardos

Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Companhias Francas de Artilharia de Milícias dos Homens Pretos e Pardos Libertos da
Cidade do Pará, foram divididas em Companhia da Cidade e Companhia da Campina.
Em 1818, foi criado um novo Esquadrão de Cavalaria e após a adesão à
independência do Estado do Brasil em 1823, os corpos militares do Pará foram
reorganizados seguindo as disposições do Decreto de 1.12.1824, que estabeleceu a nova
organização do exército do Brasil.
Assim, nas primeiras décadas do século XIX, a distribuição das forças militares
no Pará é a seguinte:
Capital ( Belém)
Tropas de 1.ª Linha: 3 Regimentos de Infantaria
1 Corpo de Artilharia
1 Esquadrão de Cavalaria

Tropas de 2.ª Linha: 2 Regimentos de Infantaria de Milícias


2 Companhias de Milicianos Artilheiros
1 Corpo de Ligeiros
Cametá: Tropa de 2ª Linha: 3º Regimento de Infantaria de Milícias e 1 Corpo de Ligeiros.
Macapá, Mazagão e Monte Alegre: Companhias do 4º Regimento de Infantaria de Milícias.
Gurupá e Santarém: Companhias do 4º Regimento de Infantaria de Milícias e 1 Corpo de
Ligeiros cada.
Ilha Grande de Joannes: Legião Miliciana e 1 Corpo de Ligeiros
Vigia, Portel e Melgaço: 1 Corpo de Ligeiros (cada)
Rio Negro: 1 Corpo de Milícias distribuídos em destacamentos para as fortificações dos
rios Branco, Negro, Solimões, Posto do rio Içá e os Registros da Missão de Vila Nova
da Rainha e do rio Madeira e 1 Corpo de Ligeiros.
Com a criação das Guardas Nacionais, em 1832, ficaram invalidados todos os
Regimentos de Milícias da Província. Em 1833, existem o 16º Batalhão de Caçadores, o
5º Batalhão de Artilharia de Posição, uma 1 Companhia de Guardas Municipais
Permanentes e um Batalhão de Guardas Nacionais.

15
Cf. Flávio Gomes, op. cit., p. 102 e 106.

E spelhos P art i dos 255


O emprego de índios nas tropas coloniais não se configura em uma grande
novidade. Dito corretamente, os índios constituíram-se no grosso das tropas,
especialmente das auxiliares, comumente definidas como irregulares. Só a título de
exemplo, recupere-se a composição das tropas paulistas dos séculos XVII tal como
as descrevem Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. Se esse é um traço
evidente nas tropas paraenses, de certo modo isso era freqüente em toda a colônia
portuguesa na América. Ainda que obedecendo a temporalidades diferenciadas, foi
ocorrência comum aos dois Estados.
O esforço de recuperar e tornar mais inteligível a estrutura das forças no
Grão-Pará tem como objetivo tentar situar melhor as possibilidades de mobilidade
social que se abriam para aqueles que conseguiam galgar postos na hierarquia militar.
A idéia, portanto, é tentar mapear a participação dos índios nas tropas e buscar
delinear as vantagens que a carreira militar lhes poderia proporcionar, ainda que se
esteja falando de um número muito mais restrito de indivíduos, se se leva em
consideração a numerosa “soldadesca” que compõe, efetivamente, essas forças.
Não se quer desconsiderar a violência dos recrutamentos e, menos ainda, o
impacto que a retirada forçada e de retorno incerto provocava sobre a vida cotidiana
das famílias estabelecidas nas povoações. Essa face de violência era, sem sombra de
dúvida, a mais freqüente e a mais aterrorizante da vida de muitos. Por outro lado,
fica evidente que o recurso à concessão de patentes funcionou como um mecanismo
eficaz de diferenciação interna nas povoações pombalinas e foi também eficazmente
utilizado pelos seus proprietários para garantir espaços de negociação e sobrevivência.
Mas isso não era tudo. Como destacou Flávio Gomes, o alistamento era também
uma face importante de controle sobre a população livre de índios, mestiços e
negros, “fazia parte das estratégias de dominação e era fundamental naquele caldeirão
étnico do Grão-Pará.”15
As hierarquias militares – de certo modo – trespassavam o mundo colonial.
A estrutura das Ordenanças, incluindo todos os homens válidos, multiplicava os
postos, amplificava as distâncias entre iguais, reproduzia e reiterava hierarquias já

16
Cf. Charles Boxer. O Império Colonial Português, op. cit. pp. 265-6 e A. J. R. Russel Wood. “O Governo Local na América
Portuguesa: um estudo de divergência cultural” Revista de História, Vol. LV, n º. 109, Ano XXVIII, 1977, pp. 25-79.
17
A descrição do processo de escolha dos membros das Câmaras já é bem conhecida. Cf. Caio Prado Jr. Formação do Brasil
Contemporâneo. op. cit., pp. 315-6; A. J. R. Russel Wood, op. cit., p. 37. Esses autores baseiam suas descrições nas
Ordenações Filipinas.
18
Apenas como exemplo, ver a nomeação de Principais dos rios Uaupés e Içana, entre os anos de 1848-1851, na Revista
Arquivo do Amazonas, Manaus – 23/10/1906, Ano I, V. I, n. 2, p. 29-30.

256 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


presentes. Na miríade de postos, trajetos possíveis de mobilidade passam a fazer
parte de uma lógica diversa, mas bastante inteligível àqueles que se integravam
progressivamente ao mundo das povoações, apreendendo novos códigos e também
reinventando-os em função de suas próprias leituras.
Ordenanças e Câmaras são estruturas articuladas. Estreitamente vinculadas,
ambas terminam por conter e expressar a força das contradições e tensões do
poder local. Se as Ordenanças tornaram a colônia “governável”, como sugeriu Caio
Prado, foi através das Câmaras que esse processo se materializou na medida em que
os postos superiores das Ordenanças eram produto das indicações das Câmaras.
A República era regulada por uma legislação bastante longeva que remontava
ao século XVI e só reformulada em 1822. Em linhas gerais, era composta por dois
a seis vereadores, dois juízes ordinários e o procurador; esses possuíam direito a
voto e eram conhecidos como Oficiais das Câmaras. O número de oficiais variava
de acordo com as dimensões da população: as Ordenações Filipinas previam que
vilas que possuíssem mais de 400 habitantes deveriam ter dois juízes ordinários: um
de órfãos e um ordinário. Abaixo desse número, apenas um juiz ordinário acumularia
as funções. A presidência da casa caberia a um dos juízes, conforme o caso.
Existiam ainda os funcionários subordinados e seu número variava em função
das dimensões populacionais das vilas, incluíam os almotacéis, alcaides, meirinhos e
porteiros. Escrivães e tesoureiros, que em tese não tinham direito a voto, também
podiam ser incluídos no Corpo de Oficiais.16
Além das regulamentações formais estabelecidas nas Ordenações Filipinas,
no Estado do Grão-Pará, a composição do Senado deveria incorporar as
determinações do Alvará de 7.6.1755. Estabelecia que, nas vilas, os “índios naturais
delas” deveriam ser, preferencialmente, aqueles designados para ocupar os cargos
de juízes ordinários, vereadores e outros oficiais. No caso das aldeias, a administração
caberia aos Principais, secundados pelos oficiais inferiores, os Sargentos-Mores,
Capitães, Alferes e Meirinhos, também índios.17
No século XIX, ser Principal significava possuir uma patente formalmente
concedida pelo Governador e, em vários casos, seguia o critério da hereditariedade:
filhos de Principais eram confirmados nos postos de seus pais. Mas esta não é a
realidade do século XVIII.18

19
Cf. Oscar Beozzo. Op. cit. p. 61

E spelhos P art i dos 257


Em se tratando de área recém-incluída nos domínios, o reconhecimento
das lideranças tradicionais dos sertões do Rio Negro era prática mais segura. Não
quero, com isso, afirmar que todos os Principais eram lideranças efetivas. Tal assertiva
seria, no mínimo temerária, inclusive porque se está lidando com uma diversidade
ponderável de populações e, conseqüentemente, com enormes variações na
estruturação de suas lideranças. Porém, ainda que com ressalvas, quero sublinhar o
fato de que as lideranças eram, na sua maioria, reconhecidas pela autoridade colonial,
tal como se apresentavam ou como eram apresentadas pelos índios. Assim é que
são contratados e negociados os descimentos novos, as solicitações para cessão de
turmas de índios para a colheita de drogas, os pedidos de párocos, as solicitações
de tecidos e ferramentas, as queixas e denúncias, entre as inúmeras demandas que
permeiam o relacionamento entre lideranças índias e autoridades coloniais.
O Diretório reforçava o reconhecimento e o privilégio das lideranças assim
apresentadas. O desrespeito às honras dos postos de Principais e oficiais índios era
algo que não se podia aceitar porque comprometia o processo de civilização dos
índios, tal como se projetava. Descabida era a prática de fazer com que Principais e
outros Oficiais fossem obrigados a servir nas canoas como remeiros ou pilotos.
Práticas como essas serão vivamente desqualificadas pelo Diretório como já se
apresentou em capítulo anterior.
O estabelecimento do Diretório, contudo, comprometeu a configuração
dos poderes locais ao introduzir a figura do Diretor como agente de tutela até que
os índios tivessem capacidade de superar o estado de “lastimosa rusticidade e
ignorância com que até agora foram educados”. Ainda que considerando a introdução
deste agente tutelar como um recuo legal na questão da concessão da liberdade dos
índios como entendeu Oscar Beozzo, não é possível afirmar que esse controle externo
tenha se dado sem que as lideranças indígenas refizessem (ou refinassem) suas próprias
estratégias políticas.19
As câmaras e também os Principais participavam dos processos de decisão
quanto ao funcionamento cotidiano das povoações. Durante a correição realizada
pelo ouvidor Ribeiro de Sampaio (1774-1775), suas recomendações deixam clara a
necessidade de ouvir e considerar as posições dos índios Oficiais e Principais. Assim,
para a construção de olarias e cadeias nas vilas de Ega, Thomar e Silves, o ouvidor

20
Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio. As viagens do ouvidor Sampaio, op. cit., pp.142-143 e 148.
21
APP – Códice 169, doc. 18, 22 de julho de 1766; doc. 68 de 27 de julho de 1766.
22
APP – Códice 17 – Doc. 41 – Nogueira, 20 de abril de 1764.
23
MA – RN C001 – Doc. 45, p. 346. Barcelos, 20 de junho de 1764.

258 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


determina que os respectivos diretores devem consultar os Principais e os moradores
para definir o melhor local da construção e para concorrerem com o trabalho
necessário para realização das obras porque “os mesmos Índios são membros desta
República.”20
Além de deliberar quanto às novas construções, entre as prerrogativas da
Câmara e Principais, estava a escolha de cabos de canoa para conduzir seus negócios
do sertão da povoação. Os cabos eram eleitos pela Câmara com a participação dos
Principais e secundada pelos Diretores das povoações. Como já se pôde depreender
da leitura do funcionamento das canoas de negócio, ser cabo era posto disputado.
Após a sua escolha, o novo cabo tinha sua escolha reconhecida pelo governador da
Capitania e passava a exercer suas prerrogativas.21
Porém o acesso a posto local tão significativo podia seguir trilhas alternativas,
recorrendo-se diretamente ao governador da Capitania para consegui-lo. Esta é a
trajetória que o Principal Vicente de Almeida Souza utiliza para solicitar o posto
para o soldado Bernardo José, marido de sua sobrinha, em 1764.22
Diante do pedido do Principal, o governador da Capitania o encaminha ao
Capitão-general do Estado, ratificando-o, porque o solicitante é “um dos melhores
e mais fiéis dos que tem o Solimões e pelos seus merecimentos, seja credor de ser
atendido[...]”. Na leitura e nos rogos do governador, a fidelidade do Principal de
Nogueira deve ser recompensada, mas o que estava em jogo mesmo era a
continuidade dessa fidelidade e o jogo de barganhas a ela inerente: “Devo rogar a V.
Exc.ª que o satisfaça, porque essa casta de Gente costuma desconfiar de qualquer
coisa, e em tudo querem que os sirvam.”23
Fazer valer a indicação do marido da sobrinha para Cabo de Nogueira
supõe que Vicente tinha sólidas bases de poder local. É certo que ele próprio também
fosse parte da Câmara, mas suas articulações com o governador ultrapassavam
mesmo os limites da vila. Na mesma correspondência que solicitava a benesse para

24
APP, Códice 17, docs 40-41, 1764. Uma intervenção do governador do Estado, Fernando da Costa de Ataíde Teive, não
deixa dúvidas quanto ao peso da indicação. “Nesta Capitania nomeio algumas vezes aos Cabos de Canoa, por mostrar-se
a experiência que dando-se a livre eleição aos Índios Oficiais, a fazem em sujeitos menos hábeis [...] Sempre porém que os
ditos Oficiais lembram pessoa em que concorram as circunstâncias requeridas àquele emprego, se lhe aceitam como agora
pratiquei com o cabo de canoa do lugar de Nogueira.” (grifo meu) ANRJ – Códice 99, Volume 1, 1764 – 1767, doc. 58.
2.01.1765.
25
APP – Códice 17 – Doc. 61 – Barcelos, 15 de maio de 1764.
26
Cf. F. X. Ribeiro de Sampaio. As viagens do ouvidor Sampaio.. op. cit. ,p.162.

E spelhos P art i dos 259


Bernardo, lembrava convenientemente ao governador que determinadas tarefas
acertadas entre eles estavam em vias de realização: a retirada de uma partida de
madeira e também um contato para descimentos do rio Japurá. O pedido é feito
em abril, e o Principal diz ao governador que só poderá cumprir suas tarefas dois
meses depois, no S. João: “espero de V. S. me faça esta esmola também para minha
quietação e não passo daqui por não molestar a V. S.”24
Recorrer ao poder central denunciando os avanços dos Diretores também
era parte das estratégias, valendo-se nesse caso não só de petições diretamente
encaminhadas ao governador da Capitania, mas também ao governador do Estado
e até mesmo, à Coroa. Entre muitas, essa é a tática dos índios de Moura que
denunciam seu Diretor “pelo desprezo a uns e outros, e maltratos sem razão com
palavras injuriosas e com ações menos lícitas de que se tem originado várias fugas,
por não se poderem conservar com o dito diretor.”25
Ainda assim, é preciso lembrar que, de acordo com o Diretório, caberia ao
Diretor, senão a última, mas uma palavra decisiva na administração das vilas e aldeias,
especialmente se estivessem mais adentro do sertão, longe do controle das autoridades
coloniais. Isso configura uma intervenção direta nas deliberações da própria Câmara,
inclusive no seu espaço físico de funcionamento: os diretores deveriam estimular a
construção das casas de câmara e cadeia nas vilas e povoações (§ 74). Vinte anos
depois, o ouvidor Ribeiro de Sampaio informa na sua correição que nenhuma das
vilas e povoações da Capitania do Rio Negro possui tais prédios públicos.26
Por outro lado, a inexistência do espaço formal não justifica sua debilidade
institucional. A documentação do Arquivo Público do Pará e do Museu Amazônico
demonstra que os membros da República, a despeito de seus lugares de reunião,
faziam valer suas prerrogativas administrativas e assim, encaminhavam inúmeros
pedidos e ainda mais numerosas reclamações e protestos quanto à atuação indevida
de diretores, sugerindo sua remoção ou apuração de responsabilidades aos
governadores, tanto da capitania quanto do próprio estado.

27
ANRJ – Códice 99 – Volume 1, Doc. 65 - 1766, Julho, 22 . Correspondência de Joaquim Tinoco Valente a Fernando da Costa
de Ataíde Teive.
28
Aqui Tinoco afirma que os Principais foram “subornados” por Marques Rebello.
29
A seqüência dos documentos enviados ao governador Teive mostra que o ouvidor, ou estava realmente envolvido na
campanha contra Tinoco Valente, ou então seu escrivão se valia da posição que ocupava para pressionar os moradores
a assinar o ditos papéis de denúncia. Cf. AN – Códice 99 – Volume 1, Doc. 66-69.
30
Falo aqui da média aritmética simples; são 22 localidades registradas e um total de 59 Principais. Cf. MA – AHU – RN – C.
001, doc., 43, p.334.

260 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Documentação difícil de esgotar, deixa entrever que o espaço de poder
local era minado por contradições e complexos jogos políticos vinculando Principais,
diretores e outros moradores. Um exemplo deles aparece na correspondência do
governador Joaquim Tinoco Valente (1763-1779), i. é., já na instância do governo
da Capitania, quando este informava ao Capitão-General do Estado, Fernando da
Costa de Ataíde Teive, da ebulição em que andava a vila de Thomar.27
O móvel da correspondência são as articulações de um soldado da tropa
que, ao casar-se com uma índia daquela vila, qualificava-se para ocupar o cargo de
diretor. Antônio Marques Rebello tinha ido longe nas suas pretensões ao cargo. Já
era reconhecido pela sua capacidade de envolver-se em problemas, frutos de uma
trajetória de má conduta marcada por furtos no Mato Grosso e também no Rio
Negro. No desejo de ser nomeado diretor, cargo que deveria ser indicado pelo
governador da Capitania, articula-se com os Principais em uma primeira tentativa.
A idéia parecia ser desestabilizar o diretor existente, João Pinheiro Amorim,
indispondo os Principais contra o Diretor e fazendo com que estes fossem apresentar
queixas contra os seus procedimentos ao governador.28
O diretor Amorim foi removido do cargo, mas Antônio Rebello não foi o
sucessor escolhido. Ainda inconformado, articula-se com outros moradores brancos
e trabalha com eficiência nos espaços de tensão política existentes entre as autoridades
civil (ouvidor Pereira da Costa) e militar (o governador da Capitania). Com a
colaboração do escrivão da ouvidoria, João Pedro Marçal, dá início a uma verdadeira
campanha entre os moradores, dessa vez contra os despotismos do governador
Valente, preparando abaixo-assinados de denúncia que deveriam ser entregues ao
Capitão-General do Estado.29
É nesse momento que suas alianças se fragilizam. O escrivão dá sinais de
temor com as proporções do caso e entrega as tais correspondências ao governador
Tinoco Valente. O soldado Rebello é preso e encaminhado a Belém para punição. A
estratégia do escrivão para salvar sua pele não funciona e ele também é preso junto
com Marques Rebello.
Situada na calha do rio Negro, acima da capital Barcelos, na vila de Thomar
existiam, nesse momento, 3 Principais o que, no quadro geral da Capitania, indicava
que a vila estava dentro da média30. A população da vila em 1764 foi calculada em

31
Cf. F. X. R. de Sampaio. As viagens do ouvidor Sampaio, op. cit., p. 163.
32
Cf. Alexandre Rodrigues Ferreira. Viagem Filosófica...op. cit., p. 79.

E spelhos P art i dos 261


208 índios aldeados e sem estimativas da população livre e escrava. Em 1774, os
índios aldeados somam 579 e a população livre, 77. Não existem escravos na vila.
Thomar, a “corte dos Manáos” como a nomeava Sampaio, era uma das vilas mais
populosas da Capitania; em número de aldeados, ocupava a quinta posição, atrás de
Moura, Barcelos, Olivença e Poiares.31
O histórico da vila já vinha marcado pela existência de rebeliões indígenas
como a que ocorreu em 1757, que envolveu além de Thomar, Lamalonga e Moreira.
Em 1783, Alexandre Ferreira nela identificou dois bairros de índios; o Santa Apolônia
reunia os Ujuanás e Guirinas, enquanto o outro (sem denominação) era habitado
pelos Manáos, Barés e Passés. Cultivavam a mandioca, algodão e os moradores
brancos, café, cacau, milho e feijão. No negócio do sertão, empregavam uma canoa
que colhia salsa, cravo e alguma piaçava.32
O desenho breve da vila de Thomar ajuda a entender as articulações do
sargento “diretorável’. A preponderância do número de índios aldeados sobre os
moradores brancos, a presença de três Principais e mais 4 oficiais da povoação
também índios, sinaliza os processos de interferência desses oficiais índios na
administração cotidiana. Foram suas reclamações que derrubaram o primeiro diretor
mencionado pelo governador Tinoco Valente.
É evidente que o fragmento documental que recupera os jogos da política
de Thomar não permitam completar o quadro com a fala dos Principais e mesmo
dos moradores brancos que se articularam posteriormente para derrubada do Diretor.
Porém, ainda que não-informado pelas demandas dos Principais, o desdobramento
de suas estratégias políticas, em consonância (ou não) com os interesses do soldado
Marques Rebello, são positivas no sentido de redundar na substituição do Diretor.
É provável que as prédicas de Rebello para “indispor” os Principais com o
diretor tenham ido ao encontro das suas próprias questões internas e indicassem a
possibilidade de construir novos acordos com um novo candidato ao cargo que,
pelo casamento, já estava integrado de certa maneira às redes familiares. Embora se
esteja no terreno da especulação, mais difícil é aceitar a avaliação do Governador de
que os Principais foram, simplesmente, subornados pelo soldado.

33
Meirinho:” antigo oficial de justiça que tinha direito de prender, citar, penhorar e de executar outros mandatos judiciais,
e que corresponde ao actual oficial de diligências; beleguim.” Cf. Moraes Silva, Antônio. Grande Dicionário da Língua
Portuguesa. 10 ª ed. V. VI, Ed. Confluência., p. 644.
34
MA – APP – R 004 (Mic.), doc. 45. 1784 - Correspondência de Manoel Valadão ao Tenente-Coronel João Batista Mardel.
35
Antônio José Pestana da Silva. “Meios de dirigir o governo temporal dos Indios”, Op. Cit.

262 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


A presença dos índios na administração das repúblicas remete ao um lento
processo de formação de hierarquias internas nas povoações que se desenha no
decorrer do século XVIII e consolida-se no início do século XIX. As disponibilidades
geradas pela concessão das patentes militares, pela eleição para os postos e cargos
das Câmaras, pela indicação para os empregos como meirinhos (bariquaras)33 e cabos
de canoas das vilas e povoados observadas no cotidiano das vilas pombalinas deixam
entrever a densidade das articulações políticas e negociações internas em curso que,
não necessariamente, passavam pelo uso da força e da coerção de Diretores.
Ao contrário. É possível perceber que, pari passu ao emprego da coação
simples dos Diretores, os índios, no exercício de seus cargos e postos, poderiam
rever articulações e mobilizá-los ao seu favor. Assim, pode ser considerado o
acontecido ao anoitecer do dia 25 de setembro de 1784, quando a casa do Diretor
do lugar de Maripi (rio Japurá) foi furtada. Os prováveis culpados (dois índios e
duas índias) foram imediatamente caçados pelas escoltas que o comandante, às
instâncias do diretor, fez sair em seu encalço quando a noite já ia avançada. No rio,
prenderam uma embarcação com seu carregamento, mas nela estava apenas um
índio. Os outros estavam escondidos na mata e logo foram capturados pela escolta
que fazia a patrulha por terra. Eram três: uma mulher, um rapazinho e um homem.34
Tudo estaria resolvido com a captura dos quatro se o bariquara da povoação
não tivesse suas próprias idéias; graças a ele e com seu consentimento, o índio
capturado na mata fugiu da povoação, deixando comandante e diretor sem saber o
que fazer.
O ouvidor Antônio Pestana menciona em seu relatório que os Diretores,
abusando de suas prerrogativas, escolhiam e nomeavam seus próprios meirinhos
chamados de bariquaras “para executores das suas determinações”. Impossível saber
as razões que levaram o bariquara de Maripi a sair em defesa do índio preso. Mas é
clara sua postura incisiva de desafio e confronto com as autoridades, na contramão
do que seria esperado de alguém escolhido apenas para executar as determinações
disciplinadoras do diretor. Seu ato de proteção ao pretenso réu adquire ainda maior
dimensão se considerarmos que a vítima do furto era o próprio diretor.35

36
MA – AHU – RN – C001, Doc. 73 e 74.
37
MA – APP – R001/AHU – R 062 ( Mic.) Doc. 82, 1791 – Carta de Manoel da Gama Lobo d’Almada a Francisco de Souza
Coutinho.

E spelhos P art i dos 263


Abusos de poder dos Diretores e mesmo dos Comandantes militares não
eram suportados em silêncio. As povoações os denunciavam com regularidade,
solicitando providências. Esse é um outro caminho possível. Além da revolta, da
recusa, dos furtos, das sabotagens do cotidiano, o recurso ao poder superior da
autoridade colonial também é acionado, embora nem sempre se chegue a bons
resultados. Santarém e Borba sofriam de problemas semelhantes em 1778. Os
moradores (“Índios, Brancos e Soldados“) de ambas vilas solicitaram a intervenção
da própria Rainha para devassar os desmandos de seus comandantes militares que
roubavam, saqueavam, espancavam e assassinavam impunemente, sem quaisquer
freios porque eram “criados dos Generais” 36. Infelizmente, não foi possível
acompanhar se a demanda dos moradores chegou a concretizar-se na devassa
desejada.
Em 1791, o Ajudante da vila de Silves não se embaraça com papéis. Vai
diretamente ao governador Lobo d’Almada apresentar as queixas contra o Diretor
da Vila. O governador se vê no meio de uma situação complicada. De um lado,
procura acalmar o Ajudante comprometendo-se a chamar o Diretor às falas, porque
“sempre me compadeço dos pobres índios que com efeito são a porção do Estado
mais necessária e a mais perseguida.”
Chama o Diretor e o adverte como havia prometido. Mas não vai muito
longe porque desconfia que as queixas dos índios contra o diretor estão sendo
articuladas pelo pároco da vila – André Fernandes de Souza – que, “querendo
dispor dos índios a seu arbítrio e pagar-lhes com bênçãos”, os “aliciou” contra o
diretor acusado. Termina o governador de maneira ilustrativa: “Semelhantes intrigas
são muito triviais por essas partes e se V. Exa. lhes der assento e quiser crer tudo não
lhe faltará o que ouvir.”37
O cotidiano das povoações pós-pombalinas no Rio Negro aparece marcado
por inúmeras pressões; são os membros da Câmara fazendo valer suas prerrogativas
de controle das populações existentes, são representantes do poder das milícias
coloniais que, secundados pela aquiescência dos governadores do Rio Negro
empregam a força de suas tropas para descer índios, em um processo que os
contemporâneos, como o Padre André Fernandes de Souza, chamam de agarrações.

38
MA - AHU E037 - Doc. 30 - 29 de abril de 1803 - “ Segunda Carta do Governador do Rio Negro, José Antônio Salgado,
ao Rei, tratando dos militares da Capitania do Rio Negro.”

264 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Sem contar que as próprias lideranças indígenas que já estão inseridas na lógica do
mundo colonial, reclamando para si as prerrogativas prometidas, como se pode
perceber na questão provocada pelo reconhecimento das patentes na Capitania, no
início do XIX.
No período pós-Diretório, fica claro que a presença de oficiais índios na
administração das vilas e também nas forças militares progressivamente sinalizava
desdobramentos novos. As hierarquias locais tendiam a consolidar-se por meio
desses postos e pelo acesso a eles. No caso dos postos militares, a partir de 1798,
abre-se um espaço novo de disputa de poder e pelo controle dos índios alistados
nos Corpos de Ligeiros do Rio Negro.
Em 1803, as principais patentes de comando das tropas ligeiras da Capitania
necessitam de confirmação real. Por força de uma determinação régia, aqueles oficiais
que não possuíssem patente confirmada deveriam receber suas baixas. Visivelmente
pressionado, o governador José Antônio Salgado recorre ao Rei, apresentando as
razões pelas quais não poderia cumprir essa determinação. O motivo fundamental
era que os ocupantes dos postos em questão – capitães, tenentes e alferes – eram
Principais “saídos dos centros destes sertões com seus índios”, filhos de Principais
“já moradores destas Povoações” e os restantes eram filhos dos colonos “casados
com as primeiras famílias dos mesmos Principais.”38
Na avaliação do governador Salgado, as modificações introduzidas pela
Carta Régia de 1798, ao transferir o controle dos índios para as Câmaras, deixou os
Principais e oficiais índios “desconsolados quando se lhes tirou o governo dos seus
súditos índios”, mas a nomeação para os referidos postos tinha reduzido essa
decepção inicial. Para tanto, foram as próprias Câmaras a indicaram os novos oficiais
a serem patenteados com a aquiescência do governador do Estado do Pará.
Agora, a ameaça de baixa abria a possibilidade para que, magoados e
desgostosos conforme expressão de Salgado, “se embrenhem nos matos destes
vastos sertões com seus súditos índios e suas famílias, ou passem aos domínios
espanhóis.”
A “deserção” desses oficiais não era problema novo; as demandas de mão-
de-obra para o novo estabelecimento da Colônia do Rio Madeira fazia com que
eles já fugissem com certa regularidade tentando escapar das requisições. A solução
é a clemência real mandar-lhes passar as benditas patentes para conter os vassalos
em suas fronteiras antes que eles se transformassem em espanhóis.

E spelhos P art i dos 265


Como se pode ver, a maior dificuldade do governador do Rio Negro era
se movimentar dentro das malhas de poder e dos jogos da política da Capitania.
Apesar do rigor das determinações régias, os arranjos que se tinham realizado com
os índios, já estabelecidos nas povoações e com estreitas relações com o mundo
colonial, implicavam concessões, avanços e recuos de ambas as partes. As
ponderações feitas ao Rei remetem para problemas básicos da gestão colonial que,
como se viu, atravessam todo o período: a manutenção dos índios nas povoações
e aldeamentos; a manutenção das fronteiras com a garantia da ocupação estável por
súditos portugueses e a possível animosidade das lideranças indígenas.
Mas, se a tática era patentear Principais e outras lideranças, as Câmaras agora
possuem o controle efetivo dos índios alistados nos Corpos de Ligeiros. A força
das Câmaras é amplificada pelas próprias disposições da Carta Régia. Das três
alternativas (legais) para obtenção de trabalhadores índios, duas pertenciam à alçada
da Câmara: a concessão dos índios do Corpo Efetivo do Serviço e o reconhecimento
dos Termos de Educação e Instrução.
No primeiro caso, a responsabilidade dos juízes era proceder, tal como nas
ordenanças, ao alistamento de todos os homens válidos de seu distrito. Integrados
assim ao Corpo de Milícias (Ligeiros) eram obrigados a servir – durante um período
determinado – no Corpo do Serviço Real. Findo este prazo, retornariam à sua
condição de milicianos; a este engajamento estavam obrigados todos aqueles que
não possuíssem estabelecimento regular ou ocupação fixa. As prioridades para a
distribuição dos trabalhadores eram o serviço real e os arrematantes dos contratos
reais e das Câmaras. Em segundo lugar, aquelas emanadas dos particulares e dos
outros serviços requeridos pelas povoações. Na maioria das povoações do Pará,
era esse o caso: os milicianos eram os mesmos trabalhadores, “borrando”, de forma
perigosa, a fronteira que demarcava as jurisdições das autoridades militar e civil a
que todos estavam sujeitos. E isto não era pouco para a tumultuada situação política
do Pará no início do século XIX, mas isso é um assunto para mais tarde.
No segundo caso, o reconhecimento dos Termos de Educação e Instrução
era a legalização dos descimentos realizados pelos particulares quando os índios
“novamente descidos” eram apresentados e registrados nas respectivas Câmaras
dos respectivos distritos que estabeleciam o número de anos a que teriam direito os

39
Circular de José Joaquim Vitório da Costa aos Juízes prescrevendo aos Particulares como devem agir com os Gentios que
os mesmos atraíram das Matas. Barcelos, 26.05. 1806. IHGB, Lata 195, pasta 39.
40
Ofício da Junta Provisória do Governo Civil aos Juízes. Lugar da Barra, 18 de agosto de 1822. IHGB, Lata 287, livro 02.

266 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


particulares de utilizar o trabalho dos índios assim recrutados. Nesse início de XIX,
ser membro da Câmara era algo de monta e muita valia.
Se o interesse de Francisco de Souza Coutinho era livrar-se dos obstáculos
criados pela má gestão dos Diretores, por outro lado a atuação dos juízes
responsáveis no pós-Diretório não parecia ser muito diferente. Nas disposições
complementares à Carta, já se advertia aos juízes que “se passarem a praticar os
abusos, despotismos, tiranias e insolências dos Diretores, ficam não menos que eles
expostos ao rigor das leis”.
Em vários momentos, outras autoridades coloniais queixaram-se e tentaram
conter certos abusos de poder dos juízes ordinários, mas com pouca eficácia. Pelo
que se pode avaliar, a eficiência da nova legislação podia apresentar-se limitada no
que se refere à disponibilidade de mão-de-obra para a Coroa, mas não para os
particulares. Em 1806, o governador da Capitania do Rio Negro, José Joaquim
Vitório da Costa, adverte aos Juizes e às Câmaras que não é possível usar, privativa
e gratuitamente, os serviços dos índios sem que seja lavrado o termo competente e
que o governo não tem condições de fiscalizar a aplicação da Carta Régia por que
não tem conhecimento do número real dos “descimentos” realizados. Neste documento,
o governador reitera as recomendações já estabelecidas, atribuindo-lhes a responsabilidade
da fiscalização de sua execução.39
Em 1822, a situação parece estar fora do controle administrativo: a Junta
Governativa do Rio Negro reitera que as povoações estão sendo dilapidadas de seus
trabalhadores. Mais do que a “escandalosa apatia” dos juízes denunciada pela Junta, é a
atribuição de responsabilidade a certos juízes que têm

[...] concorrido para invasão das povoações, obrigando a saírem os


índios de suas povoações em serviços daqueles particulares, que não
sendo moradores nem residentes nas suas respectivas povoações,
sabem contudo procurar, e alcançam iniquamente os motivos para
tais violências, em prejuízo não só das povoações se exaurirem de
gente, mas dos outros moradores e habitantes delas ficarem
desfraudados de terem com quem se auxiliem [...]40
A atuação desses mesmos juízes será também alvo da crítica de Baena:

41
Antônio Baena. Representação. idem, ibdem..
42
IHGB – Coleção Manoel Barata - Livro da Câmara de Ega - “Cópia nº5 - Circular às Câmaras - Lugar da Barra do Rio Negro,
01 de outubro de 1808.”

E spelhos P art i dos 267


Não cuidaram os juízes ordinários se não anojar os índios por
diferentes modos, levando a opressão ao extremo auge de os
mandarem prender por surpresa e de enviá-los com tronco portátil[...]
quando era necessário coligir esses homens para qualquer urgência
do serviço real41

A Carta, tal como o Diretório, recomendava que a administração das vilas e


lugares fosse feita “promiscuamente” por índios e brancos. Recomendação que resulta,
no decorrer da sua aplicação, na presença de juízes e vereadores índios como se
verificava no Diretório. Na composição da Câmara de Ega em 1777, já constava que
o Principal Romão de Moraes era um de seus vereadores. Em 1799, na mesma Câmara
de Ega, o seu terceiro vereador é o Principal de Alvellos João da Silva. Destaque-se a
posição chave das Câmaras nesse momento, responsáveis pela execução das disposições
da Carta de 1798, quando deveriam organizar o recrutamento e também realizar a
liquidação dos bens do Comum da vilas pombalinas.
Quanto a esse último aspecto, lembro da recomendação oficial quanto à
liquidação dos bens e o recolhimento do produto de suas vendas aos cofres reais que
foi concomitante à publicação da Carta e deveria ser imediatamente executada. Em
1808, ou seja, dez anos depois que essa liquidação foi autorizada, uma circular às
câmaras do governador do Rio Negro registra que as contas estão quase todas em
aberto, i. e, os juízes responsáveis pela cobrança e arrecadação das rendas reais ainda
não tinham prestado contas com a Fazenda Real, “com imenso prejuízo para S.
Majestade”. O governador procura estabelecer formas mais rígidas de controle e fixa,
como prazo para prestação de contas, o fim do exercício do ano civil para os juízes
comparecerem à Provedoria. Se não o fizessem, “...expedir-se-á força militar a trazê-
los carregando-se-lhe competentemente pela Provedoria em contas as despesas das
expedições respectivas, sem atenção ao intolerável abuso com que forem achados
exercer ilegalmente seus cargos além do ano civil lotado nas suas respectivas usanças,
e de cujo abuso já sobejam exemplos”42

43
Archivo do Amazonas, Manaus, Ano I, 23 de outubro de 1906, Vol. I, n º 2, p. 44 e Archivo do Amazonas, Manaus, Ano
I, 23 de outubro de 1907, Vol. II, n º 7, p. 94 e 99. Quanto à patente de Calisto, cf. MA - AHU E037 - Doc. 30 - 29 de abril
de 1803 - “ Segunda Carta do Governador do Rio Negro, José Antônio Salgado, ao Rei, tratando dos militares da Capitania
do Rio Negro.”
44
IHGB – Coleção Manoel Barata, lata 278, p. 21 – Livro da Câmara de Ega (cópia) e Lata 287, Livro 2, pp. 82-83v.
45
IHGB – Lata 356 – Doc. 24 – [...] março de 1831.

268 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


A sugestão de que os ocupantes dos cargos da República, costumeiramente,
ultrapassavam seus mandatos é preciosa. Economia e política estão juntas nesse
processo de reiteração de hierarquias. Não tenho dados que corroborem a afirmação
do governador, mas é possível perceber que os membros da república poderiam
exercer mandatos e ocupar postos alternadamente. Ainda na Câmara da Vila de
Ega, em 1802, um dos juízes ordinários eleitos era o Principal Calisto de Menezes.
No ano seguinte, o Principal Calisto é reeleito para Câmara, desta feita no cargo de
primeiro vereador. A carreira de Calisto chegaria mais longe: em 1803, ele também
é capitão da 8ª Companhia do Terço da Milícia Ligeira do Rio Solimões. Sem
grandes surpresas, já que cabia às câmaras a indicação dos moradores que considerasse
mais habilitados para ocupar os postos de comando.43
Se é significativo o poder das Câmaras no que diz respeito ao controle dos
trabalhadores, esse processo não se daria sem enfrentar colisões de autoridade e
também aquelas advindas das ações das populações sujeitas à sua adscrição. Em
1805, a Câmara de Ega é chamada às falas pelo governador Antônio Salgado porque
insiste em descumprir as novas ordens superiores que proibiam a concessão de
índios para os arrematadores dos contratos das Câmaras. Os índios só poderiam
ser concedidos para atender demandas advindas de contratos reais e não mais para
as os das Câmaras. A Câmara de Ega vinha, na fala do governador, “fazendo
pouco caso” dessas ordens. Não há nada de estranho nesse procedimento da câmara;
essa era uma prerrogativa que lhe pertencia tal como estabelecida na Carta de 1798.
A suspensão de tal privilégio seria temporária e, para os contratos de 1825, já está
novamente em vigor a concessão dos índios pela Câmara aos novos contratantes.44
As câmaras do rio Negro também são chamadas às falas pelo governador
em 1831 e a advertência para as vilas de Moura, Barcelos e Thomar é única: os
pagamentos dos dízimos das farinhas, que eram feitos em espécie, estavam sendo
fraudados pelos pagadores que, em vez de efetuarem o pagamento em alqueires,
enviavam apenas “uns paneirinhos que as mais das vezes não têm mais de meio
alqueire de farinha”. Recomenda-se – mais uma vez – às ditas câmaras que tratem
de estabelecer as medidas-padrão para evitar a continuidade das fraudes.45

46
IHGB – Lata 356, Doc. 24 – Cartas, Ofícios e outros Documentos pertencentes à Câmaras das Vilas de Barcelos, Thomar
e Moura na Província de São José do Rio Negro – 1797-1831, Ofício de Joaquim Vitório da Costa ao Juiz de Vintena do
Lugar de Santa Izabel – Barra, 9 de outubro de 1816. Abalizados, na definição de Moreira Neto, são lideranças indígenas
que têm contato ou são intermediários entre seus grupos e as autoridades coloniais. Cf. Carlos de Araújo Moreira Neto.
Índios da Amazônia; de maioria a minoria, op. cit., p. 56.

E spelhos P art i dos 269


Descumprimento de ordens, fraudes no pagamento das farinhas, fugas e
formação de mocambos e muitas insubordinações ainda serão parte do cotidiano.
É assim que Hilário da Silva e seu pai, índio Abalizado da povoação de Santa Isabel
(rio Negro) vão enfrentar o juiz local em 1816.
Na condição de Abalizado, o pai de Hilário já tinha suas próprias tarefas e
muitas articulações políticas. Tinha experiência no trato com os índios amocambados
nas matas do alto Rio Negro e, com algum sucesso, vinha conseguindo convencê-
los a retornar às povoações; essa era uma tarefa importante e o qualificava bem
diante da administração da Capitania.46
Um certo descimento, porém, foi entendido de maneira diferenciada. O
Abalizado desceu um grupo de índios, mas não o levou para a povoação, abrigando-
o na sua propriedade. Esses índios já estavam oficialmente distribuídos e o juiz não
gostou muito da atitude. Empregou a tropa para retirar os índios da propriedade,
mas enfrentou uma forte resistência dele e de seu filho Hilário.
Derrotado, mas não vencido, o juiz de Santa Isabel prendeu Hilário para
punir o pai e também para evitar maiores desordens. Se a intenção era pressionar o
Abalizado, o efeito foi contrário. Para libertar o filho, o Abalizado promoveu na
povoação “um verdadeiro motim”.
Presos os rebeldes e encaminhados ao castigo e à justiça do governador, o
resultado é inesperado para o juiz de Santa Isabel: o governador resolve apenas
repreender pai e filho, libertando-os a seguir. Os argumentos do governador para
justificar sua decisão são singelos: em primeiro lugar, tais tumultos só ocorreram
porque os dois índios estavam bêbados e tinham sido de pequena proporção. Em
segundo lugar, o maior “préstimo” do Abalizado e seu filho é fazer, “ainda que a
torto ou direito, descer índios destas mattas para essa povoação” e esse serviço não
poderia ser desprezado. Resta ao juiz uma última advertência do governador: “quem
entra em autoridade deve primeiro desfazer-se de paixões; e se isto não é possível
deve ao menos no exercício estar em continuado com elas vencendo-as.”
Um último aspecto a ser destacado para identificar as transformações nesse
novo momento de progressiva individuação dos índios, corroborado pelo acesso

47
IHGB. Coleção Manoel Barata, lata 278, Livro 01 - Livro da Câmara de Ega (cópia) - p. 125.
48
Após a sua morte, sua esposa, Luciana Maria, apresenta “seus” índios ante à Câmara para revalidação do Termo de Educação
e Instrução de Joaquim Tinoco. IHGB - Sessão de 28.02.1826.

270 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


ao poder local das câmaras, tem seu melhor exemplo na figura de Joaquim Tinoco.
Sua própria existência, tal como a de Felipe Muniz, parece estar profundamente
relacionada a uma conjuntura diferenciada que emergiu em meados do século XVIII
e se consolida a partir da extinção do Diretório, com o reforço dos mecanismos de
poder local, acompanhado que foi da criação de novas possibilidades de mobilidade
social, através das milícias e dos próprios cargos da Câmara.
Tinoco era índio, declarado e reconhecido enquanto tal. Possivelmente em
1808, apresentou-se assim, diante da Câmara de Ega, para registrar o descimento que
tinha realizado de 24 Passés e Ticuna, além do competente Termo de Educação e
Instrução desses índios.47
O registro do livro da Câmara é incompleto; não é possível sequer saber o
tempo que Tinoco recebeu da Câmara para gozar dos benefícios de seus novos
“educandos”. Ainda que essa seja uma informação importante, o fundamental desse
fragmento é que ele ilumina a não apenas a persistência de um processo, mas informa
mesmo a sua própria institucionalização: é possível declarar-se como índio e, ao mesmo
tempo, acessar os mecanismos disponíveis no mundo colonial para concessão de
mão-de-obra indígena.
Quando me refiro à persistência do procedimento, estou me reportando a
uma situação que já havia sido identificada no século XVIII. É o ouvidor Sampaio que
registra em seu diário, as ações dos índios que iam ao sertão para facilitar os descimentos
e, ao retornar, transformavam os recém-chegados em seus escravos.
A diferença, para Tinoco, é que, no âmbito da Carta de 1798, essa prerrogativa
de acessar o trabalho indígena não requer a mediação de diretores e a concessão de
portarias governamentais. Ele, enquadrado na categoria de particular que a Carta delineou,
livre do engajamento nos corpos de serviço, pode ir ao sertão, descer os índios que
seus acordos (ou a força de suas armas) permitirem e registrar o usufruto deles na
Câmara.48
É impossível saber quais as estratégias de Tinoco no sertão e o tipo de
alianças que ele realizava para descer os índios pacificamente. Entretanto, Tinoco
não era sempre tão polido; suas incursões ao sertão parecem ser tão freqüentes que
ele aparece referido nas memórias dos contemporâneos, como o Pe. André Fernandes
de Souza.

49
Cf. SOUZA, André Fernandes de. Notícias geográficas da Capitania do Rio Negro... Op. cit., p. 444.

E spelhos P art i dos 271


272 Patrí cia Maria Mel o Sampaio
Em 1813, a experiência que viveu no rio Juruá não foi das melhores. Com
seus parentes, Tinoco tinha se dirigido a esse rio para realizar uma “agarração”. Seus
alvos foram os Marauá, que, àquela altura, estavam trabalhando em feitorias de
manteiga de tartaruga. Presos dos Marauá, Tinoco e seu grupo estavam na torna-
viagem para Ega, quando foram surpreendidos em plena embarcação por um motim
dos índios apresados. Tinoco e sua comitiva foram duramente espancados com os
próprios remos aos quais os Marauá estavam amarrados. Retornaram à povoação
“cheios de cutiladas” e sem nenhum índio.49
Se as milícias poderiam configurar-se como uma possibilidade de mobilidade
social, ainda que restrita, que se materializa no limite encontrado por Felipe Muniz.
Este mesmo trajeto poderia se combinar com a ocupação dos cargos da Câmara,
como se pode perceber na presença e atuação das lideranças indígenas no interior
dos órgãos de administração. Sua força foi significativa nesse mundo colonial ao
refazer os seus papéis na administração desse mundo transformado. Sua composição
mista (índios e brancos) desses organismos não deixou de representar novos espaços
de poder no mundo colonial e esses foram ocupados, mas não exatamente pelos
vassalos que a Coroa queria.
Aquela que deveria ser a via pela qual seriam apagadas as referências étnicas
dos índios, transformando-os em compulsórios vassalos úteis, se revela como um
novo espaço de ajustes e também de embates. Entretanto, ainda que tenham sido
incorporados ao mundo colonial, é possível perceber que se utilizam da sua lógica,
movimentando-a não só em defesa de interesses coletivos, como é o caso do
Abalizado de Santa Isabel, mas também em benefício próprio, já que a ocupação
dos cargos abriu o caminho de acesso para o que constituía a chave da riqueza nesse
mundo colonial amazônico: o controle da mão-de-obra indígena.
A figura de Tinoco é ainda mais reveladora por iluminar essas outras
estratégias possíveis de enquadramento. Vivendo sobre si, (ele e outros) se vinculam
aos novos processos de recrutamento – legais ou não – que são disponibilizados

1
Não só a experiência colonial portuguesa é importante para pensar essas questões, mas também o próprio processo
histórico de formação da Península Ibérica onde cristãos conviveram com muçulmanos e judeus em um longo (e também
tenso) relacionamento que marcou a configuração dos povos da Península nos seus mais variados aspectos. Cf. BERNAND,
Carmen; GRUZINSKI, Serge. História do Novo Mundo. São Paulo: EDUSP, 1997, especialmente, o capítulo 2.
2
BOXER, Charles. O Império Colonial Português: 1415 - 1825. Lisboa: Edições 70, 198. BOXER, Sanjay. O império asiático
português: 1500-1700. Lisboa: DIFEL. SANTOS, João Marinho dos. Angola na governação dos Filipes: uma perspectiva da
história econômica e social, Revista de História Econômica e Social. Lisboa: Sá da Costa Editores, n. 3, jan/ jun/1979. É
certo que o trato das diferenças não era cousa simples. Em Goa, o decreto de 1761 que abolia as diferenças entre súditos
já que a Coroa não os distinguia “pela cor e sim pelos seus méritos”, levou 13 anos para ser divulgado pelas autoridades.
Cf. BOXER, Charles. Relações raciais no império colonial português: 1415 - 1825. Porto: Afrontamento, p. 74-75, 1988.

E spelhos P art i dos 273


nesse momento. Ainda que sejam destacados como índios ou mamelucos, sem dúvida,
não são “iguais” aos índios que eles descem, cativam ilegalmente, ou registram na
Câmara, para “instruir e educar” nos termos da Carta Régia, que insiste em assegurar
que, entre eles, não há qualquer distinção.
CAPÍTULO 13

FRONTEIRAS DA DIFERENÇA
Eu concebo na espécie humana duas espécies de desigualdades:
uma, que chamo natural ou física, porque foi
estabelecida pela Natureza [...];
outra, a que se pode chamar de desigualdade moral ou política,
pois depende de uma espécie de convenção
e foi estabelecida, ou ao menos autorizada
pelo consentimento dos homens.

Jean Jacques Rousseau, 1753.

Defrontar-se com o diferente não era exatamente uma experiência nova no


século XVIII, em especial, se se consideram os experimentos coloniais portugueses em
outras regiões do planeta. Os estabelecimentos na Ásia e África tinham, de certa forma,
instrumentalizado as ações metropolitanas no trato com as diferenças existentes entre as
“nações”, para usar uma definição própria do século XVIII.1
Entre os exemplos possíveis dessa instrumentalização, mencione-se que a política
de casamentos interétnicos, utilizada na Amazônia do século XVIII, não era um recurso

3
O termo bárbaro surgiu na Grécia denominando povos vizinhos e também os estrangeiros, destacando-se a superioridade
grega. É com Aristóteles que os bárbaros serão definidos como uma espécie humana inferior ao pensar a questão sob o
prisma da escravidão natural: teriam sido criados para desempenhar tarefas menores sob comando de um tutor. O termo
colocava em contraste de um lado, a vida e ordem da polis e, de outro, o mundo do caos e da ausência de normas. Cf.
RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização. Rio de Janeiro: Zahar, p. 53, 1996.
4
Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio. Notas ao papel que tem por título, Memória sobre o Governo do Rio Negro, p. 46-47.
5
Idem, p. 50-51. É certo que o ouvidor, talvez convenientemente, “esqueceu” as próprias experiências coloniais portuguesas
ou, então, Portugal não era (pelos seus próprios critérios) uma “sábia nação”.

274 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


novo e já havia sido aplicada em outros lugares. Da mesma forma pode ser entendida a
concessão de distinções e privilégios às lideranças locais como mecanismo de
favorecimento e de ampliação do leque de alianças políticas e econômicas.2
Mas os tempos do Império eram outros e não é possível relativizar o peso
das importantes discussões que o Iluminismo traz para os homens do Setecentos. É
certo que, a essa altura, a demarcação das diferenças entre os homens não era
nenhuma novidade na medida em que remontam aos clássicos gregos; afinal,
bárbaros sempre são os outros.3
Em 1775, avaliando os resultados do Diretório, o ouvidor Ribeiro de
Sampaio afirmava que era impossível alcançar a civilização dos índios e,
conseqüentemente a igualdade, através do ensino regular porque “os índios não têm
outra capacidade senão para os trabalhos rústicos, e corporais.” E concluiu, de uma
maneira significativa: “Os Índios se devem considerar por nós em certo modo,
como eram os Hilotas entre os Gregos”.4
A lembrança das hierarquias do mundo grego não parece ser apenas
diletantismo do ilustrado ouvidor. Recuperar os hilotas articula-se, coerentemente,
com outra de suas intervenções a respeito da política de casamentos mistos:
Distinguindo as nações bárbaras (que possuem governo e religião, que precisam de
aperfeiçoamento e, por esta razão são facilmente “civilizáveis”) das nações selvagens
(não possuem nem um, nem outro, sendo incivilizáveis), Sampaio argumenta que o
casamento misto também não era um meio adequado para civilizar os índios. Seus
resultados tinham sido improdutivos considerando que se assistia mesmo era à
“barbarização” dos brancos. Para Sampaio, a estratégia deveria ser diferente e baseada
em outras experiências coloniais e, tal como os hilotas, vassalos diferentes deveriam
ser considerados separadamente.

As nações mais sábias da Europa não têm procurado confundir-


se com as da América. Devemos povoar a América com famílias
européias em Colônias separadas dos Índios. Se se fizerem
casamentos, devem vir os Índios para as Povoações dos Brancos.5

6
Sampaio, no início de seu argumento, cita diretamente a edição de 1764 da obra de Buffon, Histoire Naturelle. Cf. SAMPAIO,
F. X. R. de. As viagens... Op. cit., p. 88.
7
GERBI, Antonello. O Novo Mundo: a história de uma polêmica, 1750-1900. São Paulo: Companhia das Letras, p. 20, 1996.
Todas as citações de Buffon e de Pauw foram retiradas do trabalho de Gerbi.
8
Idem, p. 21.
9
De maneira irônica, Gerbi define essa explicação de Buffon como “erótico-hidráulica”. Cf. GERBI, p. 23.

E spelhos P art i dos 275


Sendo um leitor de Buffon, Sampaio não teve dificuldades em encontrar
nessa obra, as explicações para determinados problemas encontrados no trato com
os índios da Capitania, especialmente quanto à sua instabilidade de estabelecimento
e dificuldades de “entrar em estado social”, seguindo as leis da sociedade civil.
Respaldado em Buffon, Sampaio assegura que a indiferença dos índios em formar
a sociedade civil reside na ausência do “fogo da natureza”, lhes falta “o ardor para
a união do sexo, e por conseqüência o amor do seu semelhante. [...] Amam
fracamente os pais, e filhos; a mais íntima de todas as sociedades que é a da mesma
família, é sustentada por débeis prisões; a sociedade de umas famílias com as outras
não tem vínculo algum: daqui se segue, que não pode haver reunião, república, e
estado social.”6
Antonello Gerbi considera que a tese da “debilidade” ou “imaturidade” da
América nasceu com a obra do Conde de Buffon – Historie Naturelle (1749) – que
tomou como ponto de partida a constatação da inexistência de animais de grande
porte e a enorme quantidade de répteis e insetos no Novo Mundo. As espécies
animais existentes ali não eram apenas diferentes, mas em muitos casos inferiores
aos similares europeus.7
A hostilidade da natureza americana quanto ao desenvolvimento de animais
só viria confirmar sua leitura quanto à debilidade dessa natureza; todas as espécies
européias introduzidas na América degeneraram na atrofia. Dos animais ao homem
não faltaria mais que um passo: também eles eram débeis e pequenos, menos fortes
de corpo que os europeus, sem ardor com suas fêmeas, menos sensíveis, mais
crédulos e também mais covardes.8
Incapazes de dominar a natureza hostil, permaneceram a ela submetidos. A
fria umidade do ambiente seria capaz de explicar a razão do crescimento das espécies
de répteis e insetos ao mesmo tempo em que justificaria a incapacidade dos homens
em dominá-la, homens de sangue frio e inertes no amor que neglicenciaram a terra,
fazendo-a com que permanecesse incapaz de desenvolver os “germes” dos animais
de porte avultado porque foi privada do calor criador do sol.9

10
Idem, p. 57-58.
11
Idem, p. 58.
12
SCHWARCZ, Lilia. As teorias raciais, uma construção histórica de finais do século XIX. In: SCHWARCZ, Lilia; QUEIROZ, Renato
da Silva. Raça e diversidade. São Paulo: EDUSP, p. 161, 1996.
13
ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In: O contrato social e outros
escritos. São Paulo: Cultrix, 16. ed. p. 206, 1998.

276 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Muito mais radical com os homens americanos que Buffon será o abade
Corneille de Pauw com sua obra Recherches philosophiques sur les Américains (1768), definido
por Gerbi como um enciclopedista típico que acreditava no progresso e na sociedade
como o lugar de aperfeiçoamento do homem. Em de Paw, o homem americano não
é apenas imaturo, é um degenerado e a natureza da América não é imatura, é mesmo
decadente. Os homens são tão débeis que “o menos vigoroso dos europeus sem
esforço os deitaria por terra”. Tudo possuem a menos: sensibilidade, humanidade,
gosto, instinto, coração e inteligência.10
Por outro lado, na sua avaliação, a superioridade européia era tão inconteste
que era inaceitável que dela se abusasse e os povos americanos fossem tão maltratados
como tinham sido até aqui: “não massacremos os papuas para conhecer, pelo
termômetro de Réamur, o clima da Nova Guiné”11. Definitivamente, o Jardim do
Éden tinha mudado de lugar.
Não foi por acaso que iniciei a discussão por esses autores e deixei por último
aquele que é o grande expoente deste debate no século XVIII: Jean Jacques Rousseau.
Como disse Lilia Schwarcz, a visão de Rousseau tornou-se tão emblemática nesse
contexto teórico que tendeu a obscurecer as outras linhas de análise que estavam se
fortalecendo no mesmo momento.12
O Discurso sobre a Origem e o Fundamento da Desigualdade do Homem, elaborado
em 1753, é que funda o modelo do Bom Selvagem. Na verdade, essa não era uma
criação exclusiva de Rousseau na medida em que outros pensadores já haviam esboçado
os traços deste homem natural como é o caso de Montaigne ainda no século XVII.
Porém, é com Rousseau que o Bom Selvagem irá adquirir densidade e grande penetração
não só nas discussões com os detratores do homem americano mas, e principalmente,
influenciando toda uma corrente literária com várias ramificações em diferentes países.
O selvagem de Rousseau era um modelo construído para falar da civilização.
Reconstituir o estado selvagem do homem implicava em chegar “às raízes” dos males
e vícios da sociedade, destacando-se assim a natureza da desigualdade entre os homens;
não a física, mas aquela que chama de moral. Esta nasceria tirando sua força dos
progressos do espírito humano, “tornando-se estável e legítima pelo estabelecimento
da propriedade e das leis”.13

14
A desigualdade é apenas sensível no estado natural e sua influência é quase nula. Cf. ROUSSEAU, J. J. Op. cit., p. 174.
15
Cf. GERBI, A. Op. cit., p. 56.
16
RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização. Op. cit., p. 42.
17
GERBI, A. Op. cit., p. 65.

E spelhos P art i dos 277


Sua preocupação, portanto, não era com o Selvagem mas sim com a sociedade
que engendra, autoriza e legitima a desigualdade entre os homens. Pelo que é possível
deduzir da leitura do Discurso é que Rousseau está dialogando não só com os outros
pensadores que menciona mas também com toda uma tradição aristotélica. Ao sublinhar
que a desigualdade no estado natural é (quase) nula e que esta só é engendrada na
medida em que a propriedade surge trazendo a sociedade civil consigo, é inevitável
que o seu leitor recupere que as hierarquias estabelecidas no pensamento aristotélico
eram parte da própria natureza: nascia-se parte de uma espécie humana naturalmente
inferior.14
A obra de Rousseau irá provocar impacto considerável. No que se refere ao
homem selvagem de maneira mais particular, autores como de Pauw irão criticá-lo
colocando-se em campo diametralmente oposto, postulando que, apenas em sociedade,
o homem poderia desenvolver-se plenamente e, em estado natural, não passaria de
um bruto incapaz de progresso.15
Movendo-se em outra direção, e ao contrário dos iluministas Buffon e de
Pauw que acreditavam na irreversibilidade do processo de degeneração dos homens
americanos, a Igreja vinha defendendo a possibilidade de reversão do declínio dos
índios através da conversão, daí a extrema importância que as luzes do Evangelho
trariam para esses povos. “A catequese não atuaria sobre a natureza dos nativos, mas
sobre a degeneração promovida por séculos de isolamento, pelos desmandos de
Satã e pela longa permanência na América”.16
Em se tratando dos índios, Gerbi recorda que, no correr do século XVIII,
já existia uma longa história de ataques aos povos da América e os missionários
tinham colaborado nesse processo, desenhando-lhes um perfil mais ou menos
favorável. De todas as ordens, cabia aos jesuítas o desenho mais simpático, “seja
porque tal era seu sincero posicionamento perante os catecúmenos, seja para estimular
a generosidade dos subvencionadores europeus e persuadi-los de que seu dinheiro
era bem empregado.”17
Iluminados pelo Evangelho, os índios estariam prontos para passarem de
gentios a cristãos, colonos-tutelados na definição de Raminelli, e aptos para exercer um
papel importante na sociedade colonial. É este o momento certo para retomar o

18
RAMINELLI, Ronald. Op. cit., p. 54-55.
19
É preciso sublinhar que apesar da força mais que evidente deste projeto colonial, as populações indígenas não terão suas
“opções” restritas à escravidão ou à tutela missionária como, no limite, sugere Raminelli. Na verdade, essas populações
gestaram e produziram respostas bem diferenciadas que escapariam em muito às restritas possibilidades colocadas a priori
pela conquista.

278 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


termo bárbaro e as metamorfoses que sofreu no mundo colonial utilizando, para
isso, a argumentação apresentada por R. Raminelli.
Os bárbaros saíram de Aristóteles e passaram pelos pensadores cristãos
medievais (Tomás de Aquino e Alberto Magnus) quando o termo era equivalente a
pagão. Na Baixa Idade Média, designavam os mais diferentes povos não-cristãos
ou ainda não-convertidos, porém que traziam consigo a luz da razão natural e,
portanto, a possibilidade da conversão e da salvação. São estes os bárbaros que
atravessaram o oceano e incorporam-se aos índios da América, canibais esfaimados
de corpos desnudos, sem fé, nem lei, nem rei.

O aristotelismo pouco se alterou durante o longo percurso,


recebendo apenas algumas adaptações. As guerras, a nudez, o
canibalismo e a falta de centralização política sempre foram
costumes próprios dos bárbaros. [...] Porém, o simbolismo
expresso pelas imagens do índio vinculava-se ao processo de
colonização que concebia o barbarismo sob uma nova tonalidade.
A imagem do índio dialogava não apenas com o legado cristão,
mas sobretudo com os embates próprios do mundo colonial.18

É com base nessas considerações que Raminelli afirma que o conceito de


bárbaro pode ter ganhado novas nuances no mundo colonial mas, na verdade,
passou mesmo foi por uma pseudometamorfose, na medida em que as falas coloniais
são unânimes em assegurar – no tempo e no espaço, diga-se – a inferioridade dos
índios e sua necessidade da intervenção salvadora dos homens (brancos, civilizados,
cristãos). É esse o argumento básico que fundamenta o projeto colonial: a conquista,
pelas armas ou pela catequese.19
É visível a existência de tratamento diferenciado para as diversas situações
em que se encontravam os índios nas suas relações com o mundo colonial. A
manutenção de distinções, como a que separa selvagens de mansos, também estava
presente na determinação da direção das próprias ações coloniais com relação às

20
ALMEIDA, Rita Heloísa de. O diretório dos índios. Op. cit., p. 241.
21
ALMEIDA, Rita Heloísa de. Op. cit., p. 161. Uma leitura mais específica sobre a ação da Igreja no período pombalino está em
Carlos de Araújo Moreira Neto. Reformulações da missão católica na Amazônia entre 1750 e 1832. In: HOORNAERT,
Eduardo (Coord.). História da Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, p. 210-262, 1992.
22
ALMEIDA, Maria Regina C. de. Um tesouro descoberto: imagens do índio na obra de Pe. João Daniel, Tempo, n. 5, junho/
1998, Departamento de História da UFF. Rio de Janeiro: Sette Letras.

E spelhos P art i dos 279


populações indígenas; a mansidão era sinônimo de aliança e amizade, enquanto a
selvageria era igual a inimizade. Assim, aos amigos, paz e liberdade; aos inimigos,
guerra e escravidão.
É fundamental situar corretamente a distinção – na verdade, a dicotomia –
existente entre barbárie x civilização. Presente nos debates do Iluminismo, também
será recorrente no discurso colonial fundando não só as visões dos agentes coloniais,
mas a própria base legal que regulamentaria as relações entre índios e brancos e que,
no limite, estabeleceu – ou pelo menos indicou – as formas de superação da barbárie
em direção à civilização. Essas considerações já aparecem assim configuradas no
próprio preâmbulo do Diretório e, posteriormente, na Carta Régia de 1798.
De acordo com Rita Heloísa de Almeida, o conceito de civilização que
vigorou no tempo do Diretório – cuja referência é (como não poderia deixar de
ser) o que a autora chama de “cultura do conquistador” – estava identificado com
uma idéia de civilização que tinha a Europa como centro, o mundo como sua
extensão e este deveria tornar-se “igualmente cristão, mercantil, pagador de tributos,
agrícola, sedentário e diferencialmente segmentado por vários níveis de poder e
obediência.”20
Além da educação regular, do estímulo ao trabalho e dos casamentos
interétnicos, a ação evangelizadora também fazia parte da estratégia de civilização.
Entretanto, ressalta Rita Almeida, no momento pombalino, a cristianização, inclusive
por conta dos esforços de secularização, passa a ser considerada como “um
refinamento da civilização e deveria vir depois desse primeiro trabalho feito por
civis e militares [os descimentos].”21
A distinção entre índios mansos e selvagens permite recuperar as possibilidades
de superação da barbárie através da catequese. Algumas delas aparecem na leitura
que Regina Almeida fez da obra do jesuíta J. Daniel, colocando em destaque suas
representações sobre os índios e a natureza da Amazônia.22

23
Cf. ALMEIDA, Maria Regina C. de. Idem, p. 158. A fala de Pombal está em citada em ALMEIDA, Rita Heloísa de. Op. cit., p. 161.
A curiosidade reside no fato de que estamos tratando de dois antagonistas: Pe. João Daniel era jesuíta e fez parte do grupo
que foi expulso da Amazônia em 1759, por conta das disposições da política de Pombal. Uma expressão, que recupera esse
sentido hierárquico, apareceu em um discurso de 1926, reproduzido por C. Boxer quando Armando Cortesão apresentava
um conferência em defesa da ausência de preconceito por parte dos portugueses. Dizia Cortesão que, “sempre tratamos
os indígenas humanamente e, quando civilizados, de igual para igual.” Cf. BOXER, C. Relações raciais no império colonial
português. Op. cit., p. 120. [grifo meu]
24
Cf Anexos: Carta Régia de 12 de maio de 1798.

280 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Os selvagens de J. Daniel eram admiráveis quando comparados aos índios
mansos, especialmente no que se refere à organização das atividades produtivas.
Contudo, se suas habilidades técnicas são dignas de nota, o jesuíta não deixa de
registrar que eles deveriam ser submetidos à ação das missões religiosas que
necessitavam “[...] primeiro fazê-los gente, e depois cristãos”. Curiosamente, a mesma
expressão encontra-se em um texto do próprio Marquês de Pombal. Dizia ele, em
1761, que “é necessário que os índios sejam homens antes que possam ser cristãos”.23
O Diretório era uma legislação que abolia as diferenças, mas ao mesmo tempo,
seria de transição. Sua aplicação continuada deveria conduzir as populações indígenas
que fossem incorporadas ao mundo colonial na direção do uso pleno de suas liberdades
de pessoas e comércio, tal como foram concedidas em 1755. Era um projeto de criação
de “novos homens”, capazes de assumir os compromissos inerentes à vida civil.
Certo é que o Diretório não estabeleceu o fim da tutela mas determinou, ao ser
implantado, sobre quais populações recairia a ação tutelar, distinguindo claramente aqueles
que estavam em processo de incorporação daqueles que já estavam estabelecidos nas
povoações e tinham capacidade de viver sobre si.
Distinção similar foi feita também na Carta de 1798: quem podia viver sobre si,
não estaria sujeito ao recrutamento compulsório, não possuiria o “privilégio” da orfandade
e nem estaria sujeito às adscrições dos Termos de Educação e Instrução. Entretanto,
mesmo a Carta não escapa da recomendação da guerra (estritamente de defesa, é certo)
para resolver as diferenças com as nações hostis que vexassem a vida dos moradores. A
despeito da rigorosas recomendações reais, a mesma lei assegurava uma possibilidade
de recurso à guerra ofensiva em casos de “exemplar Castigo, e contra os Índios infratores
da Paz.” A diferença entre selvageria e mansidão ultrapassa o longo século XVIII, da
mesma maneira que a noção – explícita ou não – de uma tutela necessária e obrigatória.24
É este o pano de fundo – ainda que simplificado – sobre o qual foram
construídas as visões e, posteriormente, as próprias categorias possíveis de classificação
dos homens do mundo colonial. Para além de uma diferença jurídica que, a priori, separava
25
SPIX; MARTIUS. Viagem pelo Brasil. v. 3, p. 46. A questão da formação das famílias, dentro das povoações sugere, não
apenas a estabilidade do estabelecimento, mas também a formação de novas alianças e de redes de compromissos. Em texto
recente, Barbara Sommer dedicou grande atenção às relações de parentesco para construção de identidades e também para
a estabilidade das comunidades estabelecidas nas povoações, durante e após o Diretório. Cf. SOMMER, Barbara. Ethnicity,
Kinship and Social Status in the Formation and Defense of Community on the Lower Amazon, 1760 - 1800 [Dredging the
River of the Forgotten]. Comunicação apresentada na XXI Reunião Internacional da Latin American Studies Association -
LASA, Chicago, setembro/1998.
26
SPIX; MARTIUS, Viagem pelo Brasil. v. 3, p. 47-48. Para uma leitura mais aprofundada sobre essa questão, ver SCHWARCZ,
Lilia M. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

E spelhos P art i dos 281


livres de escravos, os outros indivíduos e grupos sociais que compunham a sociedade e
que escapavam dessa classificação foram vistos e pensados em função de critérios
que em muito se aproximam das questões conceituais que estavam em circulação
naquele mesmo momento.
No início do século XIX, os naturalistas alemães Spix e Martius apresentaram
uma descrição das populações indígenas estabelecidas no Pará que vale a pena
recuperar aqui.

Os índios, que formaram grandes famílias, permaneceram na


maioria entre os brancos; a sua existência, no entanto, não
melhorara, quando podiam considerar-se em pé de igualdade
com eles perante a lei; faltava-lhes justamente tudo o que dá valor
à liberdade civil: juízo, desembaraço, atividade. Muitas
necessidades tornaram-os continuamente dependentes das raças
mais civilizadas, a que eles pelo menos temporariamente serviam,
de modo que, embora não tivessem mais tal nome, tem de ser
considerados, todavia, como escravos explorados dos outros.25

A avaliação dos naturalistas está profundamente influenciada por noções já


bastante marcadas no século XIX pela força de um debate que está se consolidando:
a questão das diferenças raciais. Embora o debate do XIX não seja o tema destas
considerações, não é possível dele escapar ainda que seja numa brevíssima digressão,
inclusive porque nosso sargento Muniz foi desqualificado nesse mesmo período
por ser um tapuio escuro.
Os naturalistas representam, aqui, uma tendência do debate que descrê na
possibilidade de perfectibilidade dos índios americanos. Estes não poderiam suportar
a cultura mais alta que se queria introduzir porque eram de “constituição tão fracamente
dotada de força vital” que a civilização seria para eles um veneno letal. Eram uma
espécie condenada a perecer e todos os esforços do Império seriam (como já tinham
sido até aqui) baldados para deter-lhe a decadência que a própria natureza havia
determinado.26
A despeito das considerações raciais dos visitantes, fica claro que existe uma
população índia que, para além das distinções do fenótipo, não está diretamente
subordinada à legislação que rege a vida dos índios que vivem nos matos e, em tese,
gozava dos mesmos “privilégios“ dos outros vassalos reais. Entretanto, a condição
de subordinação registrada pelos viajantes não se coadunava com as diretrizes dos

282 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


textos legais que lhes garantiam o acesso às mesmas prerrogativas dos outros,
especialmente a partir da segunda metade do século XVIII.
Aproximar-se de algumas idéias que estavam em circulação no século XVIII
e a forma pelas quais elas aparecem, seja na legislação, seja na fala dos agentes
coloniais, permite perceber que as matrizes da reiteração da desigualdade e da
diferença das populações indígenas guardam relações necessárias com todo um
debate de idéias que estava em curso, naquele momento. A afirmação legal da
liberdade estava em constante mediação com outros parâmetros de referência e,
nesse sentido, ser livre significava também ser capaz de viver sobre si, dentro da
lógica do mundo colonial. Superar a barbárie acabaria sendo uma condição para a
liberdade, mas não obrigatoriamente para a igualdade de vassalos.
A permanente incorporação de índios selvagens, homens em vias de
constituição, constituía-se na principal chave para reprodução da vida econômica
amazônica e também da reiteração de suas hierarquias econômicas e sociais. Dessa
forma, a entrada no mundo colonial implicava na sua inclusão obrigatória dentro
das hierarquias pré-existentes que, no limite, garantiam-lhe o sentido e os limites
para sua reprodução no tempo.
A persistência de mecanismos de tutela, seja missionária, seja laica (diretores),
seja das Câmaras, em se tratando de populações em vias de incorporação, dão
conta da manutenção de padrões de referência relacionados à passagem necessária
da barbárie à civilização. Mesmo que fossem cumpridas rigorosamente cumpridas
as etapas dessa passagem, mesmo que os atores índios construíssem suas pontes
para movimentar-se nas hierarquias, a diferença continuava a persistir na medida em
que boa parte das populações assim incorporadas não teriam a chance de avançar
muito nas hierarquias coloniais, porque não dispunham das condições necessárias
para acessar, em grau aceitável, ao que garantia a ascensão nesse novo jogo: a
propriedade. Nessa rede, as populações indígenas continuam a ocupar um lugar de
subordinação, em última análise.

1
APP - Códice 720, Doc. 51, 1821.

E spelhos P art i dos 283


C APÍTULO 14

LIBERDADES E DESIGUALDADES: PROJETOS E PROCESSO


COLONIAL

Acaso os Índios só podem ser admitidos aos Direitos,


que as leis concedem aos meus Vassalos,
quando forem, o que estes nem são nem foram,
isto é, infalíveis em todas as suas disposições,
e inacessíveis à fraude, à malícia e ao engano?

Francisco de Souza Coutinho - 1797.

Na madrugada de 6 de junho de 1821, os soldados Francisco Ferraz e José


Campos acreditaram ter percebido algo de errado: fazendo a ronda na cidade de
Belém, depararam com uma montaria no porto com dois índios. A situação política
era tensa e o Comando das Armas tinha dado ordens expressas proibindo quaisquer
ajuntamentos, em especial, de negros e índios na cidade.
A patrulha faz as perguntas de praxe: quem eram e de onde vinham. Um
tanto embriagados, os índios retrucaram “se isso era alguma coisa de sua conta”.
Insistem os soldados da patrulha e recebem mais respostas absolutas e insolentes. Os
índios são presos e conduzidos ao quartel; eram correios de Turiassu, estavam sem
passaportes porque tinham entregue todas as suas correspondências e, só no dia
seguinte, receberiam novas guias de trânsito. Os soldados são chamados a prestar

2
Sobre essas medidas, vale conferir a documentação recentemente divulgada por GOMES, Flávio; QUEIRÓZ, Jonas; COELHO,
Mauro. Relatos de fronteiras: fontes para a história da Amazônia, século XVIII e XIX. Quanto ao plano de defesa de Belém,
cf. APP - Códice 551, Doc. 377. 17 de julho de 1798.

284 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


esclarecimentos e se defendem afirmando que o comportamento insolente de ambos
e a falta de documentos levou-os a desconfiar dos índios.1
As duas primeiras décadas do século XIX são extremamente conturbadas.
As agitações políticas provocadas pelas repercussões do movimento vintista
português, as polêmicas e embates que ganharam corpo em decorrência da
independência do Estado do Brasil dividiram os habitantes e contribuíram em muito
para o quadro de extrema tensão que marca as primeiras décadas do século; isso
explica, em certa medida, a preocupação das patrulhas responsáveis pela ronda
naquela noite de 1821, mas não é tudo. Ainda nesse quadro generalizado de
perturbação e indefinições políticas, é preciso agregar as persistentes preocupações
com a questão fronteiriça, notadamente, a “perigosa” proximidade com Caiena.
Assim, percebe-se que, na virada do XVIII para o XIX, questões internas e
externas se combinavam agudizando contradições de ordem diferenciada, mas que
convergiam para o tensionamento do quadro político e econômico do Grão-Pará.
Em meio às intensas discussões e divergências que marcam a vinculação das elites
paraenses ao movimento vintista português, os reordenamentos administrativos daí
decorrentes com a formação das juntas civis, separadas dos governadores militares,
está a continuidade da aplicação das disposições da Carta de 1798.
Dispositivos criados pela Carta, como é caso da formação das novas
milícias, não deixam de guardar forte relação com esse quadro de preocupações
com o fortalecimento das áreas da fronteira. O temor de uma invasão, corroborado
pelos desdobramentos das movimentações na Europa das tropas napoleônicas,
aguçam as preocupações dos administradores do Grão-Pará. Preocupações essas
que são mesmo anteriores à invasão de Portugal e já são abertas no governo de
Francisco de Souza Coutinho e podem ser estendidas até a ocupação de Caiena
pelas tropas portuguesas em 1809, aparecendo em várias medidas de fortalecimento
de tropas, reforço de pontos estratégicos e da elaboração de audaciosos planos de
defesa. Um deles é o que foi proposto em julho de 1798, ao Juiz de Fora de Belém,
onde se recomendava que os moradores deveriam formar uma reserva de armas
para defesa e, inclusive, armar seus escravos para defesa das fazendas.2

3
APP - Códice 551, Doc. 377. 17 de julho de 1798.

E spelhos P art i dos 285


Parece ser alternativa temerária confiar armas aos escravos para defesa de
patrimônio de seus próprios senhores, mas o governador justificava sua confiança
nessa estratégia porque, antes mesmo que os franceses trouxessem essas “idéias” de
liberdade, os escravos dos domínios portugueses “já sabiam” e se não sabiam,
deveriam ser informados que a Coroa há muito não distinguia seus vassalos pela
cor porque

[...] já entre nós havia Pretos ocupados em postos e empregos, já


tinha sido determinado que a cor era acidente que nada influía no
caráter do indivíduo, nem o inabilitava para os empregos, e
consequentemente devem estar e ser constituídos na certeza que
ou sejam Pretos, ou Mulatos ou Mestiços, logo que as suas
ações, e a sua conduta os façam dignos da Liberdade de que os
mais Vassalos gozamos ficam como nós aptos e habilitados para
entrarem em todos os Postos, e receberem toda a consideração,
mercês, e honras que Sua Majestade liberalmente distribui por
todos os seus Vassalos quando neles reconhece merecimento e
virtudes [...].3

Independentemente da (duvidosa) flexibilidade da Coroa no aspecto


mencionado por Coutinho, é preciso ressaltar a grande importância que a questão
militar assume nesse momento, quando as tropas passam a ser cada vez mais
requisitadas seja para a defesa da região, seja assumindo prerrogativas de governo
cada vez mais acentuadas à medida em que se confrontam os grupos envolvidos
nas discussões políticas relativas à questão da independência e do posicionamento
do Grão-Pará nesse novo quadro.
As idas e vindas da política paraense nessa conjuntura são tratadas em uma
historiografia bastante significativa, mas que se concentra, fundamentalmente, no
quadro político conturbado que se apresentou naquele momento. Esses trabalhos
não tinham, entre suas preocupações, uma análise mais verticalizada de outros aspectos
da história do Grão-Pará que não passavam, obrigatoriamente, pelos caminhos da
história política local. Assim, existe um silêncio importante sobre uma infinidade de

4
IHGB, Lata 356, Doc. 24. Plano que faz o morador do Lugar de Moreira, Manoel da Costa Gama, como se lhe determinado
pelo Senado da Câmara desta Vila de Barcelos segundo a ordem que a mesma Câmara teve dos ilustres senhores do Governo
desta Província do Rio Negro. Barcelos, 11 de abril de 1822.

286 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


aspectos, entre eles, os vinte anos de aplicação de uma nova legislação indigenista
sobre as populações do Grão-Pará.
Embora se intente aqui uma aproximação desse universo, na tentativa de
iluminar esse contexto particular, esse é um trabalho que demanda um maior esforço
investigativo. De uma maneira geral, aparentemente as lutas que marcaram o Pará
nesse momento não se refletiram de maneira decisiva sobre as populações indígenas,
no que se refere à reformulação da política aprovada em 1798. Tal afirmativa se
funda no fato de que a política que regulava o trato e as relações do mundo colonial
com essas populações não sofreu modificações no decorrer desse período. Ao
contrário, a documentação deixa patente que os dispositivos da Carta de 1798
continuaram a ser aplicados nas vilas e povoações, através de suas Câmaras.
Porém é possível perceber que as contradições que emergiram no campo
da política abriram a possibilidade para o recrudescimento nas relações com os
índios, especialmente nas áreas de fronteira. O reforço da autoridade militar e o
engajamento das populações em corpos de milícias de onde se retiravam os
trabalhadores para o serviço real e particular permitiu que determinadas práticas de
recrutamento violento fossem retomadas sem que a autoridade central, de resto
sempre distante do sertão, pudesse interferir de maneira mais eficaz, na medida em
que andava a braços com um quadro interno profundamente tenso na Capital e nas
fronteiras com a Guiana.
Na Capitania do Rio Negro, a leitura dos livros das câmaras deixa entrever
as preocupações reiteradas da administração com o esvaziamento progressivo das
povoações. Certo é que, nos sertões, as saídas dos índios – chamadas de deserções
– tinham mais haver com o incremento das ações das tropas recrutando índios à
força (agarrações) em curso na Capitania, desde o final do século XVIII, mas que
recrudesceram fortemente nas administrações do início do XIX. Essa é uma
constatação comum a vários informantes como é o caso do morador de Moreira
(Rio Negro) Manuel da Costa Gama. Diz este, em 1822, que tanto a vila de Barcelos,

5
André Fernandes de Souza. Notícias Geográficas da Capitania do Rio Negro no Grande Rio das Amazonas. Revista do IHGB,
n. 12, p. 476. 4. trimestre de 1848.
6
MAW, Henry Lister. Narrativa da passagem do Pacífico ao Atlântico... p. 297.
7
MACLACHLAN, Colin. Indian Labor Structure in the Portuguese Amazon, 1700-1800. In: ALDEN, Dauril. Colonial Roots of
Modern Brazil. University of California Press, 1973.

E spelhos P art i dos 287


quanto Moreira, estavam em grande ruína de moradores, desde a mudança da sede
da Capitania para a Barra (1808). Mais do que a mudança de moradores e suas
respectivas famílias, muito contribuía para o decaimento daqueles lugares, as constantes
mudas de índios que, semestralmente, se requisitavam dali. Muitos dos índios
requisitados acabavam desertando para a Capitania do Pará ou formando
mocambos, “refugiados em sítios”.4
Avaliação semelhante tem fez o Pe. André Fernandes de Souza, depois de
37 anos de vida na Capitania. Pelo seu balanço das últimas administrações coloniais,
o clima de apreensão das populações do Rio Negro era permanente devido aos
abusos de autoridade de todos os governadores desde 1801 até 1820, destacando-
se o recrudescimento dos apresamentos dos índios, a cobrança exacerbada das
fintas de farinhas e de outros gêneros, a sobreposição dos poderes e as indisposições
com as câmaras municipais, além do uso indevido das rendas reais. O resultado
dessas gestões, para Souza, era a extrema pobreza dos moradores do Rio Negro e,
em segundo, o estado “pisado e acabrunhado” do vassalo tapuio, apesar de todos
os “esforços que Suas Majestade Fidelíssimas tenham feito por favorecê-los”.5
O clima de intranqüilidade do Rio Negro, contudo, não era sua exclusividade.
Em Belém e outras localidades, multiplicam-se as notícias de fugas, deserções, revoltas
e desordens. Como disse o tenente inglês Henry Lister Maw, em 1823, “se os distúrbios
continuarem, o povo não tardará a destruir-se uns aos outros, e nenhuma lei ou
autoridade existirá.”6
A intuição do tenente, que estava apenas de passagem pelo Grão-Pará, logo
se revelaria acertada, mas antes disso, ainda é preciso levar em conta aspectos que a
nova legislação (e sua aplicação prática) possibilitou emergir. Apesar do otimismo

8
F. S . Coutinho. Plano para a Civilização dos Índios. § 21.
9
A gestão de Coutinho é marcada pela varíola. Entre 1793 e 1800, a incidência da doença foi violenta. Diz Arthur Viana que
o grande contágio de 1794 - 1800, dizimou uma grande percentagem de índios e mestiços e “os batalhões milicianos, em
quase sua totalidade compostos destes indivíduos, sofreram um tal ataque que a bem dizer, perderam todo o seu efetivo.”
Cf. VIANA, Arthur. As epidemias no Pará. Belém: UFPA, 2. ed. p. 44, 1975.
10
A partir da Carta de 1798, essa é uma recomendação complementar, expressamente estabelecida pelo governador. Em
instrução dirigida à vila de Santarém, esclarece inclusive que a “ignorância de saber ler e escrever” não deve ser
impedimento para ocupação dos referidos postos no caso dos Principais e, entre os Brancos, devem ser indicados
preferencialmente, “os que forem casados com índias ou filhos do matrimônio de brancos com índias”. Cf. APP - Códice 554,
Doc. 422 de 10.04.1799. Para o Rio Negro, ver MA - AHU E037, Doc. 30 de 29.04.1803.
11
Na documentação, o termo sugere um tom de desafio, muito próximo à insubordinação. Barbara Sommer, em trabalho já
citado, também identificou assim o termo absoluto. Desde a segunda metade do XVIII, na correspondência do governador
do Rio Negro, Mello e Póvoas, o termo já aparece empregado com esse sentido quanto este se referia às insolências e ao
comportamento insubordinado de párocos do Rio Negro.

288 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


inicial do seu principal mentor, o governador Coutinho, a extinção do Diretório tinha
provocado uma certa dispersão inicial das populações aldeadas. Esse aspecto já aparece,
com o devido destaque, em MacLachlan, ao reforçar o papel desempenhado pela
Carta de 1798 na aceleração do processo de urbanização dos índios.7
Mas, em meados do ano de 1799, os resultados da Carta ainda animavam
Coutinho quanto à possibilidade de ampliação do número de trabalhadores disponíveis.
Um de seus indicadores era a mudança de comportamento de índios e tapuios com
relação aos serviços contratados por particulares: Certamente, as medidas anteriores à
publicação da Carta de 1798 retomadas por Coutinho colaboraram para alterações
nessa oferta de mão-de-obra, criando alternativas antes inexistentes, como é o caso do
ajuste particular direto com os índios.
[...] os Índios, que à minha chegada a este País, nas Povoações
onde fui, só me pediam que os não mandasse para Serviços de
Particulares, hoje ao contrário fogem dos Serviços Reais, para onde
queriam vir em preferência, para irem lucrar naqueles, que aborrecia
antes, e em que hoje uns e outros acham recíproca utilidade.8

Contudo, com o quadro de disponibilidade de mão-de-obra contraído no


início do século XIX, decorrente das retiradas e também de uma maior incidência de
epidemias, os novos padrões de acesso aos trabalhadores indicados pela Carta Régia
acabaram por viabilizar a reprodução das práticas abusivas do próprio Diretório.
Negociar com os Principais ainda era importante, mas não necessariamente a única
alternativa disponível.9
Essas alternativas são variadas, como se viu em capítulo anterior, entre elas,
o uso dos cargos da República para facilitar o acesso ao crédito e aos índios necessários;
a concessão de patentes militares aos Principais nos novos Corpos de Milícias10; o
recurso aos descimentos, valendo-se da figura oblíqua dos Termos de Educação e
Instrução, o emprego das tropas para promover apresamentos sistemáticos nas
povoações mais distantes.
Por seu turno, as populações indígenas e mestiças não possuíam uma única
forma de confronto. Aqui, as estratégias individuais e coletivas de sobrevivência são
múltiplas: fugas para os mocambos da região, agitações e “desordens” nas povoações
e a recusa ao trabalho obrigatório nos Corpos Efetivos.

12
MA - AHU E056 - 1820 - Relatório do Ouvidor da Capitania do Rio Negro, Antônio Feliciano d’Albuquerque Betencourt
- Doc. 19 de 12.03.1819. Quanto a Francisco Ricardo Zany, ver Capítulo 4 - Enriquecidos e inventariados, alguns colonos.

E spelhos P art i dos 289


No cotidiano, para desespero de muitas autoridades, uma intangível insolência,
um certo tom absoluto11 no comportamento dos tapuios. Difícil de qualificar, esse
tipo de comportamento parece desencadear algum descontrole nas autoridades que
lidam com situações dessa natureza. Certamente, foi esse estranhamento que sentiram
os soldados durante a inquirição aos índios naquela que era uma ronda comum.
As ações dos índios passavam não apenas pelo esvaziamento das povoações,
na tentativa de escapar dos apresamentos indiscriminados, do recrutamento forçado
ou do contágio iminente. Os que permaneceram nas povoações, inseridos em
diferentes gradações no mundo colonial, serão os imediatos alvos de ações que, no
limite, sinalizam quebras de acordos políticos. É preciso lembrar que as fugas
provocariam uma contração cada vez mais acentuada na oferta de trabalhadores,
pressionando pelo aumento das expedições de apresamento ilegal que, sem dúvida,
comprometiam ainda mais a mobilidade política das lideranças indígenas.
A difícil situação enfrentada pelo Principal Machy dos Marauá, em 1818, é
um exemplo cabal disso. Estabelecido na foz do rio Jutaí, nas proximidades da
povoação de Fonte Boa, Machy viu-se obrigado a recorrer às autoridades coloniais
para reclamar a liberdade de sua mulher e filhos, apanhados em uma expedição de
apresamento pelas tropas comandadas por Francisco Ricardo Zany.12
As tropas, nesse que não era o primeiro assalto, não se limitaram a levar as
suas criações, farinhas e ferramentas, mas também aprisionaram 19 pessoas. Machy
estava fora e, ao tomar conhecimento do acontecido, dirigiu-se ao governador Vitório
da Costa, reclamando a liberdade de sua família. De acordo com o relatório do
ouvidor, “em lugar de despacho, fora tratado de Selvagem, e perseguido com
ameaças de castigo.” o Principal teria retornado à sua povoação disposto a fugir de
uma vez; só não o fez porque “um Branco, seu camarada” o dissuadiu e recomendou-
lhe que recorresse ao governador do Pará, “que era bom e tinha mais poder que o
Muruxaua do Rio Negro.”
Zany tinha sobre si várias denúncias de envolvimento no apresamento e
comércio ilegal de índios na Capitania; porém, sua posição privilegiada enquanto
comandante das armas, importante comerciante e ainda genro do governador do

13
Uma tradução livre da fala do Principal foi feita pelo Prof. Auxiliomar Ugarte: “Com seu comportamento, presta falsos
serviços ao rei e não está sendo camarada conosco.”

290 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Negro lhe permitia resguardar-se de medidas mais restritivas. Nessa ocasião, seus
alvos foram os Marauá já aldeados.
As demandas do Principal dos Marauá acabaram chegando ao governador
do Grão-Pará, Conde de Vila Flor, que determinou a imediata libertação de sua
família indevidamente aprisionada. Quando ele é chamado à presença do ouvidor
do Negro para tomar conhecimento do despacho, nem Vitório da Costa e nem
Zany já não estavam mais à frente do comando do Rio Negro. Informado das
mudanças e do despacho favorável, Machy aproveitou para registrar seus protestos
junto ao ouvidor: “Com semblante pesado, que indicava grande sentimento, rompeu
em exclamações gerais repetindo a miúdo a seguinte arenga = De Rey serviços noga’ra;
i puitê, intê catû.”13
Da sua família, conseguem localizar apenas a esposa e uma filha. Machy foi-
se com o que restou de sua família e alguns “donativos, em lugar dos que faltaram”.
Seu importante trabalho para o estabelecimento dos moradores de Fonte Boa não
tinha sido suficiente para mantê-lo à salvo das tropas.
No mesmo documento que registrou os protestos do Principal, o ouvidor
aproveita essa mesma fala, nela intervindo e colocando como se fosse uma
“tradução” do discurso do Principal, as suas próprias denúncias com relação à
situação dos índios submetidos à ação das expedições de apresamento. Ainda que o
ouvidor tenha transformado uma frase em quase duas laudas de “tradução”, não
chegou a subverter o sentido fundamental da reclamação do Principal dos Marauá.
A extensa intervenção do ouvidor pode ser assim resumida: De Rey serviços
noga’ra; é falso dizer que é serviço do rei. As expedições eram justificadas pela
necessidade de recrutamento de trabalhadores para o serviço real, mas o que
permitiam era a ação indiscriminada daqueles que podiam beneficiar-se dos índios
assim cativados, seja de seu trabalho, seja de sua comercialização ilícita. Injustiça era
cativar, destruir e assolar a quem pacificamente se agregou às povoações e lhes
presta todo o auxílio possível, lembrando que esses são vassalos de sua Majestade,
tratados sem diferença dos outros. É falso dizer que é serviço do rei, porque não
pode haver rei que assim mande; é abuso e procedimento arbitrário de quem manda

14
SPIX; MARTIUS. Viagem pelo Brasil, v. 3, p. 47.

E spelhos P art i dos 291


e governa em seu nome, e longe de seu trono, ao qual não se pode recorrer com
facilidade.
Perdi o rastro do destino de Machy e sua família, mas não é difícil supor
que ele tenha decidido abandonar seu estabelecimento depois do drama que viveu.
Certamente não era o único. A freqüência das agarrações era considerada, pelo ouvidor,
como a causa fundamental do esvaziamento das povoações do Negro e elas
continuariam no novo governo de Manuel Joaquim do Paço. O ouvidor já aproveita
o mesmo dossiê para denunciar que o governador recém-chegado já autorizou
expedições semelhantes entre as povoações estabelecidas no rio Uaupés. Baseado
na experiência vivida por Machy, o ouvidor afirma que “não tardará muito que se
não saiba o resultado”; é a ruína anunciada dos estabelecimentos do Uaupés.
As agarrações, militares ou particulares, não escaparam da observação dos
naturalistas Spix e Martius que registraram as estratégias utilizadas pelos moradores
para os descimentos particulares já sob a égide da nova legislação, sem deixar de
ressaltar sua ambigüidade nesse aspecto: “a lei proíbe todo ataque hostil aos índios
nas suas matas; mas a arte da persuasão é permitida e não é de estranhar que muitas
vezes se torne eficaz pelas armas, se é lícito levá-las consigo para a legítima defesa!”14
Por outro lado, a presença de indivíduos que trilham caminhos alternativos
já vem tornando nosso desenho muito mais complexo e, talvez, mais real. Não é
estranha a presença de tapuios e mestiços que se utilizam das prerrogativas disponíveis
no mundo colonial para obter trabalhadores, privilégios e outros benefícios, como
já vimos no caso do índio Joaquim Tinoco que requereu para si o privilégio de
educar e instruir 24 índios Passés e Ticuna, seguindo o procedimento da Carta de
1798. Esse é o caminho legal; lembro que Tinoco era homem experiente também
nas incursões ilegais e, ele próprio, já tinha tido um experiência frustrada em agarrar
índios Marauá.
Certamente, as táticas na fronteira tornaram-se mais violentas, contudo, as
autoridades do Grão-Pará tinham seus próprios problemas e muito mais próximos
de si. As disputas de jurisdição administrativa entre a junta do governo civil e o
governo das armas alcançariam as milícias ligeiras. Já se mencionou que os Ligeiros
eram considerados equivalentes às extintas ordenanças e, portanto, sujeitos à jurisdição

15
APP - Códice 742, Doc. 42 de 22 de junho de 1822.
16
Idem, ibdem.

292 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


do poder civil das câmaras. O problema fundamental era que todos os homens
válidos dos distritos alistados nas milícias ligeiras tinham a obrigação de servir,
temporariamente, no Corpo do Serviço Real. Cumprido o prazo (ou o serviço)
retornavam à condição de milicianos. Isto significava que os homens das milícias
também eram os trabalhadores passíveis de distribuição pelas autoridades civis e
também poderiam ser requisitados para a defesa e para as mostras semestrais quando
passariam à jurisdição da autoridade militar. Isso significava que, durante a maior
parte do ano, a não ser em casos excepcionais, os ligeiros estavam sob a jurisdição
civil. A questão é que a excepcionalidade tornou-se uma constante depois da chegada
do Governador das Armas, José Maria de Moura.
O problema que se coloca diante da Junta Provisória do Governo Civil do
Pará em 1822 é exatamente a relação conflituosa que existe entre ela própria e o
Governador das Armas. Seus conflitos com a Junta emergem nas mais diversas
situações; das mais prosaicas como a definição da casa de José Maria de Moura,
passando pela formação de patrulhas pela cidade, até aquelas de difícil deslindamento
como é o caso da jurisdição dos Corpos de Ligeiros.
O argumento da Junta, reclamando ao Congresso Nacional e ao Príncipe
em junho de 1822, é que o Governador das Armas vem tentando, de todas as
formas, ingerir-se no governo civil, “querendo constituir-se o mesmo que os antigos
capitães-generais, e dispor a seu bel-prazer de todas as repartições civis.”15
Quanto aos Ligeiros, a junta reclamava para si (e portanto, para as câmaras),
a prerrogativa de distribuição dos Ligeiros para os serviços nacionais, na medida
em que o Governador das Armas tinha decretado que o Pará era um “país militar”,
suspendendo o poder das autoridades civis sobre os Ligeiros, reforçando o poder
dos comandantes dessas milícias e impedindo que os juízes dos distritos realizassem
as distribuições previstas na Carta de 1798.
A dificuldade da Junta é evidente. São quase duas décadas de aplicação da
Carta, com todas os desdobramentos que se apresentaram até aqui. Desde o seu
princípio, como afirma a Junta, as Milícias Ligeiras eram empregadas nos serviços
nacionais e também nos particulares. Era a mão-de-obra disponível e “mal seria

17
IHGB - Coleção Manuel Barata, Lata 278, Livro 01, Doc. 19 ( cópia) - Regimento dos Comandantes dos diferentes distritos
desta Capitania - Pará, 22 de maio de 1804.
18
IHGB - Coleção Manuel Barata, Lata 278, livro 01, p. 22 - Barcelos, 5.12.1805.

E spelhos P art i dos 293


desta província, nela se não poderia jamais esperar melhoramento, e aumento, se os
índios, e os milicianos ligeiros naturalmente propensos ao ócio não fossem chamados,
e até constrangidos aos trabalhos nacionais, e aos dos particulares, pagando-se-
lhes”.16
Mesmo reconhecendo sua importância enquanto mecanismo de
disponibilidade de mão-de-obra, a Junta pede a extinção das milícias ligeiras no
Pará, para o bem e felicidade da província, tal como extinguiu as ordenanças em
Portugal. Não fica muito clara a alternativa que a Junta teria para manter a oferta de
trabalhadores, porque logo a seguir, pede que se declare que os milicianos, no período
que não estiverem a serviço da causa nacional, estejam apenas sujeitos às autoridades
civis, liberados da dependência (e dos abusos de poder) de seus comandantes.
É certo que os problemas da Junta com o Brigadeiro Moura eram muitos,
mas a questão relativa aos milicianos não se constituía em novidade. Ainda no governo
de Marcos de Noronha, Conde dos Arcos, fez-se publicar um regimento aos
comandantes dos distritos, fazendo recomendações que em muito se aproximam
das reclamações feitas pela Junta. Sem dúvida, a confluência de jurisdição civil e
militar sobre os mesmos corpos gerou conflitos entre os representantes desses
poderes, especialmente, em nível mais local, lembrando que as milícias eram formadas,
rigorosamente, de acordo com seus distritos.
O regimento do Conde dos Arcos, publicado em 1804, vem reiterar um
anterior de 1803, reforçando que os comandantes só têm jurisdição sobre suas
tropas quando elas estão reunidas por ocasião das mostras, “ficando os ditos soldados
no resto do tempo como qualquer outro cidadão sujeitos às justiças territoriais.”17
Essa mesma indefinição está presente nos sertões e as Câmaras do Rio
Negro também recebem instruções semelhantes que reiteram suas prerrogativas
legais e sua independência das autoridades militares. Em 1805, em correspondência
à Câmara de Ega, o governador Salgado reforça essa situação assegurando que
nem os comerciantes, nem os moradores, nem os índios residentes naquele termo
são obrigados a atender ao chamado dos comandantes, porque “os ditos comandantes
não tem jurisdição nenhuma nos ditos habitantes”, a não ser em caso de diligência
real comprovada – caso único em que as câmaras deveriam prestar-lhes o auxílio

19
IHGB - Lata 287, Livro 2 - p. 15-17. 16.03.1821.
20
IHGB - Lata 287, Livro 2 - p. 17 e p. 17v-18 - 24 de março de 1821.

294 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


necessário em canoas, índios e mantimentos. A inquietação da Câmara com os
comandantes parecia persistente porque o governador conclui a instrução ordenando
seu registro no livro para “fique de uma vez tudo sossegado”.18
Em 1821, é a vez da Junta provisória do Negro, sob a presidência de José
de Brito Inglês, diagnosticar como uma das causas fundamentais do incontrolável
decaimento do Rio Negro, pelo definhamento de “suas foças vitais que são a
agricultura e o comércio”, é a questão dos milicianos. Na leitura da junta, desta feita,
coloca-se em destaque um outro aspecto que não a excessiva jurisdição das
autoridades militares sobre eles, mas sim “da separação da idéia de lavradores e
comerciantes da idéia de milicianos, supondo-se outros homens”. Da extensão
abusiva do tempo dos serviços obrigatórios, decorria o decaimento da agricultura
e do comércio que esses mesmos indivíduos deveriam dedicar-se nos intervalos do
serviço real/nacional.19
A junta propõe-se a cortar o mal pela raiz: ordena o recolhimento de todos
aqueles que estivessem distribuídos para quaisquer que fossem os serviços e que
todos os comandantes seriam responsabilizados se os milicianos fossem designados
para atender outras demandas que não a do serviço nacional. “Esta Junta promete
ser inflexível, inexorável com qualquer Autoridade Militar ou Civil que abuse para
futuro da presente ordem, servindo-se de Milicianos com pretextos do Real Serviço,
sem que evidente, pública e imperiosamente se conheça que os chama ou requer
por uma necessidade absoluta”. Não parece ter conseguido muito nessa direção;
dias depois, faz circular recomendações semelhantes àquelas feitas pelo Conde dos
Arcos em 1803: enquanto não estivessem no serviço real, estavam sujeitos apenas às
autoridades civis.20
As discussões que mobilizam as autoridades em função dos milicianos estão
relacionadas com os novos reordenamentos do poder, em nível local, acentuando-
se a capacidade de ingerência das câmaras no controle dos trabalhadores, como já
se procurou destacar em capítulo anterior.
As disputas entre os diversos níveis das autoridades civis e militares dão
conta de que, permanecendo como mão-de-obra fundamental, o controle dos
índios continua sendo o principal motor da questão, ainda que no contexto de uma

21
Cf. SOMMER, Barbara. Negociated Settlements. Op. cit., p. 312-313.
22
MA - AHUE037 - Doc. 30 de 29 de abril de 1803 e Doc. 41 de 29.10.1803.

E spelhos P art i dos 295


nova legislação. Quando se tentou acompanhar as questões decorrentes da aplicação
do Diretório, a idéia era iluminar as intervenções dos índios em situação colonial.
Àquela altura foram ressaltadas as diferentes formas pelas quais as populações foram
incorporadas ao mundo colonial, ao mesmo tempo em que, por conta de suas
intervenções, refizeram o projeto colonial, mantendo (ou recriando) suas identidades.
Como se viu, as estratégias empregadas não podem ser resumidas apenas à resistência
pelas armas, materializada nas revoltas e rebeliões; essa foi apenas uma das táticas
que foram empregadas nesse contexto.
Quando a Carta é implementada e se avança na tendência de enfraquecimento
e diluição das comunidades formadas sob o Diretório, investindo-se em um processo
de individuação dos índios já incorporados ao mundo colonial, serão essas mesmas
comunidades que vão buscar reagir à perda de suas prerrogativas. As fugas, ainda
essa vez, serão alternativas disponíveis, para algumas mas, ao mesmo tempo, outras
recorrerão à própria autoridade colonial para manter a sua autonomia, colocada
em xeque pelo fim do Diretório.
Parte desse processo de intervenção, fiou visível quando se buscou
redimensionar o papel das câmaras no contexto das novas dinâmicas de controle
de mão-de-obra, as prerrogativas que possuía e seus membros tentaram fazer valer.
No caso da venda dos bens do Comum, prevista na Carta, o juiz e os membros da
Câmara de Faro apresentaram-se ao governador Coutinho para requerer que a

296 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


suspensão da venda dos bens do Comum daquela povoação, especialmente as casas
do diretor, porque tinham sido edificadas com a finalidade de servirem para os
trabalhos da Câmara; foram atendidos. Em 1799, as mulheres de Portel argüíram
que elas não poderiam permitir a venda de suas rodas de fiar e teares, porque eram
seus instrumentos de trabalho e fonte de seu sustento. O governador concordou e
permitiu que as mulheres de Portel continuassem a usar as rodas e os teares
coletivamente.21
No Rio Negro, os Principais que foram beneficiados com as patentes dos
novos corpos de milícias se apresentam para reclamar ao governador em 1803,
quando se aventou a possibilidade de serem invalidadas. O argumento do governador
para que sejam referendadas as tais patentes é simples: se isso não acontecesse, os
Principais ( “com seus súditos índios e suas famílias”) deixariam as povoações e, até,
a própria Capitania. O parecer do Conselho Ultramarino lhes é favorável, mas com
uma exceção: a dispensa da confirmação das patentes beneficiaria apenas os oficiais
índios; os não-índios deveriam ter as patentes confirmadas nos termos da lei“. Isso
significa que dos 74 reclamantes, os beneficiados foram apenas os 26 índios oficiais.22
Como se pretendeu demonstrar até aqui, evidencia-se que a liberdade
concedida, admitida e permitida aos índios era marcada por inúmeras mediações.
Tal situação tendeu a acentuar-se, após o fim do Diretório, na medida em que as
populações aldeadas e já incorporadas ao mundo colonial compunham elementos
importantes dessa estratégia de reiteração de diferenças. A liberdade e a igualdade
eram, antes de tudo, presunções, admitidas apenas na proporção em que os
indivíduos conseguiam integrar-se aos circuitos de poder pré-existentes à sua chegada
nos aldeamentos. As alterações legais viabilizadas pela Carta abriram a possibilidade
da individuação, mas as comunidades já formadas tinham suas próprias leituras
quanto à retirada ou a concessão de novos privilégios e, no limite, tentaram mantê-
las.
De outro lado, a emergência de ações mais truculentas por parte do poder
colonial, como são as agarrações, vai de encontro às ações que essas mesmas
comunidades irão colocar em prática, em sua defesa, seja usando as prerrogativas
legais, seja usando o mecanismo da fuga. Ou talvez, ambas, como o caso do Principal
Machy. Não é improvável que a Junta de 1821 tivesse certa razão quanto assegurava
que o decaimento do Rio Negro devia-se, parcialmente, à opressão dos milicianos.

E spelhos P art i dos 297


Certamente, essa deve ter sido uma conseqüência importante, mas não se deve
descartar, dessa avaliação, que o esvaziamento das povoações era, antes de tudo,
uma decisão que só cabia aos índios.
C ONCLUSÃO

Silenciar é dizer por outra via –


já que o silêncio potencia o que ali luz, presente,
pelo fulgor mesmo de sua ausência

Lourival Holanda

Durante a sua extensa viagem pelo Brasil, os naturalistas alemães Spix e


Martius formaram uma imensa e variada coleção; entre os objetos coletados, também
se incluíam “espécimes” humanos. No decorrer de sua estada no Rio Negro, os
naturalistas gozaram da hospitalidade das autoridades da terra e receberam toda a
ajuda possível para realizar suas incursões. Tamanha prodigalidade traduziu-se, não
só em infraestrutura para a expedição, mas também em presentes; é assim que são
chamadas as crianças Iuri e Isabella. Junto com eles, mais seis índios foram
dadivosamente entregues aos naturalistas: dois deles morreram ainda na viagem de
retorno, dois foram dados (também de presente) no Pará e outros dois morreram
na travessia do oceano. Iuri e Isabella são os sobreviventes dessa longa viagem.
Iuri chegou a Munique, possivelmente, em março de 1820. As anotações de
Martius revelam que o menino (de cerca de 10 anos de idade) vinha do rio Purus, da
tribo Muri-Comas. Iuri já tinha feito uma viagem relativamente longa vindo do

1
As imagens de Iuri e Isabella e as informações que aqui utilizei estão em MARTIUS, Carl F. Von. Brasilianische Reise - 1817-
1820. [Schirn - Kunsthalle Frankfurt, 16. September bis 16. Oktober 1994; Staatliches Museum für Völkerkunde München,
Dezember 1994 bis April 1995] München: Hirmer, p. 182-183, 1994. A tradução do alemão agradeço ao Prof. Giancarlo
Stefani, da Universidade do Amazonas.
2
Carta de F. X. M. Furtado a Sebastião de Carvalho e Mello. Mariuá, 17.10. 1756. Marcos C. Mendença. AEP, Tomo 3, p. 1012.

298 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Purus para a fazenda de Francisco Ricardo Zany, em Manacapuru, nas proximidades
da Barra do Rio Negro (Manaus). É nessa fazenda que a vida de Iuri se fragmentaria
por completo depois do encontro com Martius. Zany, cicerone permanente dos
naturalistas, coloca seus índios à disposição de Martius para que ele escolhesse um para
levar consigo a Munique; a escolha recaiu sobre Iuri. Não foi fácil fazê-lo embarcar; foi
mais uma viagem forçada na vida do garoto que foi empurrado para a canoa, deixando
a Capitania para sempre.
Isabella também tinha a mesma idade de Iuri. Não se conheciam, mas durante
algum tempo, suas vidas estariam estreitamente ligadas. A menina Miranha vivia na Barra,
na propriedade do governador Manuel Joaquim do Paço e, tal como Iuri, foi presenteada
aos naturalistas. Aparentemente, também ela tinha feito uma longa viagem até ser incluída
entre as propriedades de Manuel do Paço. Ela ainda não falava português e nem a língua
geral; o rio Japurá, de onde os Miranha eram descidos, ficava a muitos quilômetros da
Barra. Não há registro das reações de Isabella quanto ao seu novo destino.
Em Munique, receberam seus nomes: Iuri passaria a ser chamado de Johannes
(João) e Isabella é o nome alemão da menina que viajou na companhia de desconhecidos
que sequer registraram seu verdadeiro nome. A vida das crianças em Munique foi breve
e profundamente silenciosa. Esse é, talvez, o traço mais cruel de suas histórias; os meninos
não podiam se comunicar entre si porque falavam línguas diferentes e, naturalmente,
também não compreendiam o alemão.
Durante o tempo em que conseguiram sobreviver em Munique, foram tratados
como objetos de curiosidade do exótico, além de serem considerados como “imbecis”
porque não falavam. Iuri morreu em junho de 1821, em decorrência de uma forte
pneumonia, e Isabella morreu em outubro do ano seguinte. Deles restou o silêncio de
suas vozes e os fragmentos de vidas partidas.1
Os meninos poderiam estar vivendo, tranqüilamente, em suas respectivas
comunidades, mas foram delas retirados – junto com outros – inseridos nas novas
dinâmicas de recrutamento disponíveis na região no início do século XIX. É essa
nova dinâmica que os coloca ao alcance da mão da ciência – de trabalhadores em
potencial a objetos de curiosidade científica. Não é preciso que se faça um grande
esforço para mensurar a angústia em que viviam os meninos em Munique, mas eles
não foram os únicos a atravessar o oceano.
Em 1756, o capitão-general do Grão-Pará, Mendonça Furtado, enviou a
Portugal uma encomenda especial; tratava-se de uma menina índia, de tenra idade e
muito esperta, que deveria ser entregue à Rainha como um presente. Dizia que a
criança era filha de uma índia aldeada na Vila de Borba e lhe tinha sido entregue pela

E spelhos P art i dos 299


mãe, depois que seu casamento com um soldado, morador daquela vila, tinha lhe
dado “muitos desgostos”.2
Mendonça Furtado fez questão de sublinhar o futuro feliz reservado à menina
na corte porque a saída do Grão-Pará a libertaria do destino miserável e da
“prostituidíssima vida” para a qual “todas estas mulheres desgraçadas nasceram”. A
menina sem nome seria, na visão do governador, a “única índia ditosa entre as
infinitas destes sertões”. Sem quaisquer outras referências, senão esta brevíssima carta,
é impossível saber o que aconteceu com aquela que deveria ser a única índia feliz da
Amazônia.
O silêncio das crianças da Capitania do Rio Negro é dolorosamente revelador.
Todo o esforço que se fez até aqui foi para tentar dar voz e retirar do anonimato os
atores envolvidos na construção desse mundo colonial. Escolher o silêncio de Iuri e
Isabella para terminar pode parecer contraditório, mas não deixa de ser uma tentativa
de colocar em discussão, um outro destino que também foi comum às populações
indígenas que se viram incorporadas ao mundo colonial.
Depois de atravessar todas essas páginas, é possível compreender o contexto
em que esse silêncio foi forjado e se configurou como possibilidade para as
populações indígenas do Negro. A diferença, nesse caso, é que não estamos lidando
com o anonimato de etnias descidas e submersas nas povoações, sem rostos e sem
nome. As imagens de Iuri e Isabella são comovedoras, mas não foi (apenas) a
emoção que me levou a recuperar suas histórias ao tentar escrever a conclusão desse
trabalho; foi, sobretudo, a possibilidade de dar algum sentido ao seu silêncio, já que
“silenciar é dizer por outra via”.
Mas quando retomei a escrita, um dado inesperado vindo de uma home-page
interessante, me fez parar outra vez. Tratava-se da página do SIVAM – Sistema de
Vigilância da Amazônia e, entre seus links de “curiosidades”, um chamou a atenção.
O texto afirmava que em São Gabriel da Cachoeira tem de tudo. Até índio servindo ao
Exército. Em meio à paisagem sensacional alguns índios trocaram arco e flecha, cocar e tanga
por fardas, coturno (bota de soldado) e fuzil. São os soldados indígenas que a cada ano engrossam
as fileiras da Guarnição Militar de São Gabriel da Cachoeira.
Didaticamente, os internautas eram informados de que os índios foram
incorporados à guarnição em 1995 e representam hoje 85,3% do efetivo
incorporado. Não há nada de surpreendente neste fato porque existiram várias
milícias compostas exclusivamente de índios, não só na Amazônia, mas também em
várias regiões do país e isso não se constitui exatamente em uma novidade. O que

300 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


me chamou a atenção foi o fato de que os índios ainda podiam ser classificados
como curiosidades.
O enquadramento das populações indígenas contemporâneas de S. Gabriel
da Cachoeira, ao lado da trajetória das crianças no curso do Oitocentos deixou uma
incômoda sensação de que o tema do trabalho ainda estava em discussão. Refiro-
me ao lugar social de subordinação atribuído às populações indígenas de um modo
geral, e este vem atravessando as fronteiras do tempo, sendo reconstruído e reforçado
com diferentes argumentos, mas sempre afirmando a existência de desigualdades e
diferenças entre índios e não-índios que possuem tamanha penetração que permitem
que se trate o Outro como objeto de mera curiosidade, agora virtual.
Assim, achei por bem propor, nessa conclusão, um recomeço, usando a
imagem de José de Souza Martins que deu título à primeira parte dessa tese, o que
torna essa “conclusão” muito parecida com a introdução.
Entender as matrizes da reiteração desse longevo processo de hierarquização
tem raízes profundas no mundo colonial. Mas dizer apenas isso, seria o óbvio. Não
se trata apenas de um projeto de dominação que, ao final, se instala como vencedor.
O que se tentou demonstrar aqui é que entre os projetos e a sua transformação em
processo colonial, índios e não-índios desenvolveram estratégias que – vitoriosas ou
não – levaram à sua readequação.
A multiplicidade de respostas dadas à dominação colonial indicou, assim,
uma enorme diversidade de projetos individuais e também coletivos que estavam
em jogo. Não é possível traçar um caminho unidirecional para compreender esses
enfrentamentos. Violentas revoltas, fugas individuais e coletivas, assaltos, formação
de mocambos e outras alternativas foram empregadas tanto quanto a releitura das
próprias estratégias de dominação, abrindo espaços de negociação que possibilitaram
a emergência de personagens novos como Felipe e como Joaquim Tinoco.
Ao mesmo tempo, fica difícil não relacionar permanências. O extinto Estado
do Grão-Pará e Rio Negro concentra, atualmente, cerca de 60% das populações
indígenas no Brasil. As políticas indigenistas implementadas pela Coroa não foram
gerais e abrangentes todo o tempo, como se pode perceber na análise da Carta de

3
Analisar a emergência dos “caboclos” está fora do alcance desse texto, ainda que o tema guarde profundas interações com
esse processo. Para análises mais completas, vale conferir diretamente a tese de ANDERSON, Robin. Folowing Curupira:
Colonization and Migration in Pará, 1758 to 1930. PhD Thesis in History. Californy: University of Californy, 1976.

E spelhos P art i dos 301


1798. Intervenções específicas foram implementadas na região e produziram
resultados diferenciados de boa parte do país. Evidentemente é preciso considerar
outra ordem de variáveis para uma análise correta dessa questão, mas, por outro
lado, não é possível deixar de observar que a progressiva individuação dos índios,
acentuada pela Carta, não chegou a termo. Se, de um lado, possibilita o surgimento
de figuras como Muniz e Tinoco, também abre a possibilidade para que etnias
inteiras permaneçam fora do mundo colonial, resistindo no uso de estratégias de
afastamento sistemático, internando-se cada vez mais no alto curso dos rios. Mesmo
para as etnias que foram incorporadas de maneira subordinada, como os grandes
contingentes de Miranha e Cocama no século XIX, isso não significou
necessariamente seu desaparecimento físico e nem mesmo étnico.
A manutenção de determinados padrões culturais na região abre aqui um
caminho novo que delineia a emergência das populações caboclas da região como
demonstrou Robin Anderson.3
Insisto que, demarcar novas fronteiras para compreensão desse processo,
não significa expurgar-lhe a violência e, mesmo ainda, do que isso representou para
centenas de etnias que perderam suas referências de identidade e territórios. Acredito,
contudo, que dar destaque apenas à sua face mais violenta, faz com que se esvaziem
as intervenções de todos os personagens que acompanhamos até aqui, em um esforço
brutal para sobreviver em um mundo sempre desigual. Entender a força dessas
intervenções restitui a historicidade dos sujeitos históricos que, com boas intenções
ou não, vêm há tempos sendo tratados como vítimas inermes ou curiosidades
(virtuais ou não). Repetindo uma expressão que já utilizei, não são nem canicurus,
nem ajuricabas. São “simplesmente homens, fazendo mágica para viver.”



Chega-se ao final, com uma infinidade de questões em aberto que demandam


pesquisas novas. Destaco, inicialmente, a necessidade de aprofundamento do
quotidiano das vilas pombalinas no sertão, tentando avançar mesmo para um estudo
mais comparativo que busque relacionar não só o Rio Negro e o Grão-Pará, mas
também as outras capitanias onde o Diretório foi implementado.

4
Ver PINHEIRO, Luís Balkar S. P. Nos subterrâneos da revolta. Op. cit., p. 154.

302 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Quando indico a questão do quotidiano das povoações, na verdade. também
gostaria de incluir uma análise mais segura sobre a política de descimentos, e,
principalmente, a organização e o funcionamento da produção e dos fluxos mercantis
para tentar entender os destinos posteriores dessas povoações que podem ser
radicalmente opostos entre si: desde o arruinamento e desaparecimento total (com
diferentes tipos de situações intermediárias) até a sua permanência contemporânea.
Não se pode deixar de mencionar a importância de compreender melhor
os mecanismos de acumulação mercantil na região, como parte inseparável da
apreensão correta das correlações de força que se estabelecem entre os diferentes
setores da elite e seus desdobramentos a partir da virada do século XVIII, acentuadas
também pelas mudanças no quadro político viabilizado pelas lutas de independência.
Por fim, mas não por último, reitero a importância de dois temas que acredito
cruciais para a história do processo colonial na região: o primeiro, seria um mergulho
ainda mais profundo quanto aos efeitos da Carta de 1798 sobre as populações
indígenas do Grão-Pará, analisando o processo de individuação que a Carta indica
em contraponto à manutenção das múltiplas identidades que foram construídas no
decorrer da aplicação do Diretório pombalino.

E spelhos P art i dos 303


O segundo seria a própria Cabanagem, entendida aqui como “fruto de
manifestações endógenas, identificadas nas ações concretas de setores particulares
da sociedade regional que, num determinado momento de suas existências, sentiram
a necessidade de destruir o ventre que os havia gestado”.4
Acredito mesmo que a Cabanagem, entendida na sua multiplicidade,
configura-se como um limite do modelo analisado de reiteração das hierarquias
sócio-culturais da sociedade amazônica. A idéia da Cabanagem enquanto limite é
fundada no esgotar dessa capacidade de estabelecer compromissos e também nas
fronteiras reais que a sociedade – desigual e estratificada – colocava a esses indivíduos.
A essa altura, as populações indígenas e mestiças do Grão-Pará já estavam bastante
modificadas. Diversamente das primeiras rebeliões e guerras indígenas que buscavam
sair para fora do alcance do mundo colonial (caso dos aldeamentos durante o
Diretório), impedir-lhe o avanço e estabelecimento nas fronteiras e, até mesmo,
expulsar os invasores brancos, os movimentos de resistência do século XIX e, em
especial, a Cabanagem indicam encaminhamentos diferenciados. Já não se pretende,
explicitamente, romper com o mundo colonial, mas readequá-lo, refazê-lo em outras
bases. Para que essa sociedade não explodisse a qualquer fagulha, foi necessário um
poderoso jogo de espelhos, arranjos e negociações múltiplas (não necessariamente
violento, mas nem por isso exclusivamente amigável) que a Cabanagem expôs, mas
não rompeu. A própria persistência da desigualdade no decorrer do XIX já nos diz
que certos mecanismos estarão presentes estruturalmente. Descobri-los pode ser a
chave para novos trabalhos.

304 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Fontes e Bibliografia

I. FONTES MANUSCRITAS:
Arquivo Público do Pará
Correspondência do Governo com Diversos
Códice 103. Doc. 26, 61,73.
Códice 163. Doc. 21
Códice 223 Doc. 25
Códice 279 Doc. 41, 42,44
Códice 348 Doc. 50
Códice 387 Doc. 56, 57
Códice 428 Doc. 14
Códice 460 Doc. 31, 39
Códice 486. Doc. 14, 76, 77
Códice 492
Códice 521 Doc. 102
Códice 543 Doc. 1, 116, 129, 135, 139
Códice 551, Doc. 37, 84, 85, 100, 101, 208, 209, 362 377, 393, 432, 485,
Códice 552 Doc. 65, 75, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 103, 104, 105, 108, 130.
Códice 554 Doc.44, 59, 263, 279, 223-224, 261, 350,
Códice 557 Doc. 41, 42
Códice 558 Doc. 2
Códice 571 Doc. 22
Códice 591 Doc. 97
Códice 592 Doc. 33
Códice 607, doc. 265, 360, 364, 364a,
Códice 609

E spelhos P art i dos 305


Correspondência de Diversos com Governo
Códice 17, Doc. 18, 24, 40, 41, 50, 61, 69, 78.
Códice 54, Doc. 56, 64, 71, 73, 86, 87, 96, 100, 107,108,110.
Códice 169, Docs. 10, 18 21v, 23, 43, 45, 60, 61, 68.
Códice 265, Doc. 17.

Correspondência do Comando das Armas com o Governo (1821).


Códice 720 : Doc. 39 - 41 e 51.

Autos de Devassa
1825 - Juízo Ordinário da Vila de Thomar
Autos de Devassa que mandou fazer o Juiz Ordinário da Vila de Thomar, José
Ângelo da Silva, sobre a morte feita ao índio Joaquim de Sá.

Histórico e População das Villas do Pará - 1823.


Códice 1002 - Transcrição de Rosa Acevedo Marin.

Inventários e Partilhas
Belém - Juízo de Órfãos da Capital. Inventários post-mortem (1809 - 1841)
Manaus - Cartório de 1º Ofício. Inventários post-mortem (1838 -1845)
Ano Freguesia Inventariado
1810 Belém Manoel Lopes
Serafim dos Anjos Teixeira Alves
Jerônimo Pereira da Nóbrega
1815 Belém Joana Antônia
1816 Belém Maria Josefa de Siqueira
Francisco Batista de Carvalho
1817 Belém João de Oliveira Cardoso

306 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Joaquim Pedro Borralho
Maria da Conceição Angélica
Felix José de Aquino
Rosa Gomes Souto
Domingos José Gomes
Ana Joaquina Ferreira Góes
1818 Belém Romão Manuel dos Santos Quaresma
1819 Belém Antônio José Lopes
1824 Belém Manoel Pereira Gomes
1826 Belém Alexandre Furtado
Thomé Pinheiro Lobo
Amandio José de Oliveira Pantoja
1830 Belém Joana de Assunção
Francisca Rosa Monteiro
Ana Ferreira Gusmão
Quitéria Maria dos Anjos
Vicente José de Moura
1833 Belém Francisco Lopes Maia
Felipa Teresa das Neves
Jerônimo Antônio da Costa
Antônio José de Carvalho
Antônio da Cunha
Marcos José da Costa
1834 Belém Julião José do Carmo
Hilário de Moraes Bittencourt
José de SouzaFrancisco de Assis Pereira Nery
1838 Manaus Joaquim Manoel Palheta
1839 Manaus Francisco Ricardo Zany
1840 Barcelos João Batista dos Páos
Belém José Gomes de Oliveira

E spelhos P art i dos 307


José Matias de Vilhena
Manaus Mathias Ferreira Dourado
Lourenço José da Silva
Vicência Maria de Santana
1841 Belém Maria Floripes
Catarina Domingas Rodrigues Martins
Lourenço das Neves
Antônio Pedro Alexandrino
Manoel José dos Santos Nogueira
Júlia da Fonseca Zuzarte
Antônio José da Silva Brabo
Teodoro José de Souza
Lourença Justiniana do Amaral

Serpa Apolinária de Santo Antônio


Silves Manoel Tuscano de Vasconcelos
1842 Borba Joaquim Nunes Colares
1843 Manaus João Serafim
Antônia Joaquina Vitória dos Santos
Serpa Luís Fonseca Zuzarte
1844 Manaus Marcelina Maria Monteiro
José Fernandes
1845 Manaus José Pereira dos Reis
José Antônio de Carvalho e Silva
Rodolfo Pini
Manoel Antônio Lopes da Pastora
Jerônimo Conrado de Carvalho
Silves João Antônio Fernandes
Ângela da Cruz
Arquivo do Itamaraty

308 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Documentação Rio Branco (340-2-11) Tabelionato de Barcelos (1801-1806)

Arquivo Nacional
Códice 99: Correspondência original dos Governadores do Pará com a Corte -
Cartas e Anexos. (v. 1 a 24.)
Códice 101: Coutinho, Francisco de Souza. Plano para a civilização dos índios do
Pará - 2.8.1797. (v. 2.)
Códice 231: Junta da Real Fazenda da Capitania do Pará. (3 v.)
SDJ - Devassas 026 - Cx. 10. 541:
Proc. 38. Processo-Crime: Ouvidoria Geral do Civil e do Crime da Junta de Justiça
do Pará. (1829)
Proc. 51. Autos da Devassa sobre uns presos que foram mortos a bordo do navio
Sam Jose Deligente no Pará (1824)

Biblioteca Nacional
2, 3, 1: Declaraçoens e certas noticias do sitio do Pará, acçoens dos Moradores e
seus costumes de vida.
5, 3, 22: Memória sobre alguns produtos espontâneos e não espontâneos da Província
do Grão Pará, que fazem o seu comércio de exportação por Manoel Joaquim de
Souza Ferraz. 1795.
7, 1, 2: Pará ( Província) - Cabanagem
7, 3, 26: Cópia da Ordem sobre a organização e formatura do Corpo de Milícias
Artilheiras desta cidade constituídas de Pardos e Pretos Libertos. 2. maio de 1808
7, 3, 39: Ofícios de D. Francisco de Souza Coutinho, dirigidos a D. Rodrigo de
Souza Coutinho ( 21 de agosto a 8 de setembro de 1797)
7, 4, 14: Documentos relativos ao Pará, sob o governo de D. Francisco de Souza
Coutinho (1797, 1798, 1802 e 1803)

E spelhos P art i dos 309


7, 4, 19: Ofício de D. Francisco de Souza Coutinho . Pará, 7.4.1799.
7, 4, 54: Reflexões dirigidas em 1789 por D. Francisco de Souza Coutinho a Martinho
de Mello e Castro sobre vários objetos relativos ao Estado do Pará.
7, 4, 82: Paço, Manoel Joaquim do (1818) Reflexões Políticas sobre o Melhoramento
da Capitania de São José do Rio Negro.
21, 1, 11: Observaçõens Geraes e Particulares sobre a classe dos Mamaes observados
nos territorios dos trez Rios, das Amazonas, Negro e da Madeira. Villa Bela, 29 de
Fevereiro de 1790.
21, 2, 18 n. 2: Coisas tiradas dos Diarios do Sr. Dr. Fr. Caetano, Bispo do Pará, que
vem nas memórias para a sua vida, impressa em 1820.
I -17, 12, 2: Oficio de D. Francisco de Souza Coutinho a Luiz Pinto de Souza e
documentos relativos ao estado da população das aldeias indígenas da capitania do
Pará nos anos de 1791-1794.
I - 31, 17 - 5: Notícias Geográficas da Província do Rio Negro
I - 32, 10, 4: Mapa estatístico da população da Província do Pará (1849-1850)

II - 32, 16, 41: Diversas cópias de documentos do livro pertencente ao Antigo


Senado da antiga Vila de Ega, hoje cidade de Tefé - Pará. 1774 -1814.

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro


Lata 51, Doc. 18.: Relação de todos os habitantes índios...

Lata 195, Pastas 32, 34, 37, 39.


Lata 278, Livro 01: Ofícios, Cartas Régias e Resoluções sobre o Grão-Pará.

Lata 287, Livro 2: Livro de Registro da Câmara da Villa de Ega


Lata 343, Doc. 29: Plano para a Civilização dos Índios da Capitania do Pará.
Lata 356, Doc. 24: Cartas, Ofícios e outros Documentos pertencentes às Câmaras
das Vilas de Barcelos, Thomar e Moura na Província de São José do Rio Negro -
1797-1831

310 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


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Negro.

AHU E038. Carta Régia de 12 de Maio de 1798.


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ano de 1778 mandado fazer por ordem de João Pereira Caldas.
AHU RN, Caixa 06: 1778 - Mapa da Famílias que à exceção dos índios aldeados, se
achavam existindo em cada uma da maior parte das Freguesias de ambas as Capitanias
do estado do Grão-Pará e de sua possibilidade e aplicação no ano de 1778.
AHU - RN - C001
Arquivos Portugueses - Diversos - C001 - ANTT - Livro de Registros Contábeis
da Capitania do Rio Negro (1752 e 1760)
APP - E001 - Arrecadação das dívidas da extinta Companhia de Comércio do
Grão-Pará e maranhão, 1778.
APP - Caixa 015
BMP- R001: 1791 a 1794 - Mapa Geral da População dos índios aldeados em todas
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1992.
____. Uma história de resistência: os heróis Baníwa e suas lutas. Revista de Antropologia.
São Paulo, v. 31/32/33, p. 355-382, 1989.
____. Lucha y Supervivencia en el Noroeste de la Amazonia. America Indigena, v.
153, n. 3, p. 537-554, Julio-Septiembre/1983.

E spelhos P art i dos 333


Carta Régia 12 de maio de 1798 *

D. Francisco de Sousa Coutinho, do meu Conselho, Governador e Capitão


General do Estado do Pará: Eu a Rainha vos envio muito saudar. Sendo a Civilização
dos Índios, Habitantes dos vastos Distritos dessa Capitania, um objeto muito digno
de Minha Maternal atenção, pelo bem real que eles não menos do que o Estado,
acharão em entrarem na Sociedade e fazerem parte dela, para participarem
igualmente com outros Meus Vassalos dos efeitos do Meu constante e nunca
interrompido desvelo em os amparar à sombra de saudáveis Determinações. E
havendo-me sido presente a bem acertada Informação que vós destes a este respeito.
Sou servida Conformar-me inteiramente com as vistas indicadas na mesma
Informação, que com esta Minha baixa, assinada pelo Meu Conselheiro de Estado,
Ministro e Secretário de Estado D. Rodrigo de Sousa Coutinho: E afim não só de
convidar aqueles Índios que ainda estão embrenhados no interior da Capitania, a vir
viver entre os outros Homens, mas de conservar constantes, e permanentes aqueles
que já hoje fazem parte da Sociedade, servindo o Estado, e conhecendo uma Religião
em que vivem felizes, bem de outro modo, que os primeiros desgraçadamente
envolvidos em uma ignorância cega, e profunda até dos primeiros princípios da
Religião Santa, que abraçaram os últimos por efeito das Pias, e benéficas Disposições
dos Senhores Reis Meus Predecessores, e Minhas: E querendo igualmente, que a
condição destes Índios, assim dos que já hoje têm trato, e comunicação com os
outros Meus Vassalos, como dos que deles fogem, seja em tudo a de Homens em
Sociedade: Hei por bem abolir e extinguir de todo, o Diretório dos Índios,
estabelecido provisionalmente para o Governo Econômico das suas Povoações,
para que os mesmos Índios fiquem sem diferença dos outros Meus Vassalos, sendo
dirigidos, e governados pelas mesmas Leis, que regem todos aqueles dos diferentes

*
Até onde me foi possível inventariar, verifiquei que este texto foi publicado em quatro ocasiões: duas no Rio de Janeiro e
duas em Manaus. A primeira apareceu na Revista do IHGB em 1857 (Rio de Janeiro, Tomo XX, 1857, p. 433-445); a segunda,
cinqüenta anos depois, foi feita pela revista Archivo do Amazonas em 1907 (Ano 2, v. 2, n. 5, Manaus, 23 de julho de 1907).
Um intervalo de oitenta anos separa a terceira, que apareceu no Boletim da Cedeam (Manaus, v. 6, n. 10, jan-jun/1987),
porém não se trata de uma nova transcrição; é um fac-símile da edição do IHGB. A última, também uma reprodução da que
foi publicada no IHGB, está no trabalho de MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Índios da Amazônia: de maioria a minoria.
Petrópolis: Vozes, p. 220-232, 1988.). Cotejando as publicações e o texto localizado no acervo do MA (MA - AHU 038,
p. 23-37), verificam-se pequenas omissões, daí a decisão de transcrevê-la para constar desse trabalho. Atualizei a
ortografia, mas mantive a pontuação e o uso das maiúsculas.

334 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Estados, que compõem a Monarquia, restituindo os Índios aos Direitos, que lhes
pertencem igualmente aos Meus outros Vassalos livres. E confiando Eu que vós
procedereis para o importante fim da Civilização dos Índios com um acerto tanto
do Meu Agrado, quanto o foi o da Informação, que sobre este objeto Me destes:
Ordeno-vos que hajais respeito nesta tão justa inovação à força dos abusos
inveterados, e aos hábitos contraídos, afim que nos serviços, e Rendimentos Reais,
e na Economia pública do Estado se não experimente concussão sensível: E
encarrego-vos de cuidardes logo nos meios mais eficazes de ordenar, e formar os
Índios que já vivem em Aldeias promiscuamente com os outros, em Corpos de
Milícias, conforme a População dos Distritos, e sendo o Plano porque estão
formados, e ordenando os outros: E para Oficiais Comandantes de tais Corpos,
nomeareis os Principais, e Oficiais das Povoações indistintamente com os Moradores
Brancos, fazendo executar as Disposições, e Ordens concernentes ao Governo, e
Direção deles pelos referidos Oficiais Comandantes, e pelos seus Juízes
alternativamente Brancos, e Índios segundo a ordem a que pertencerem.
Tratareis também de formar um Corpo efetivo de Índios, bem como os
pedestres do Mato Grosso, e de Goiás, preferindo porém os pretos forros, e
Mestiços enquanto os houver como mais robustos, e capazes de suportar o trabalho,
deixando ao vosso discernimento o modo porque haveis de organizar o referido
Corpo efetivo, sem prejuízo da condução das Madeiras, e de outros serviços em
que utilmente se empregam os Índios fixando-lhes um número determinado de
anos de serviço, passados os quais não ficarão obrigados a outro algum que não
seja o de Milícias, ao qual todos estão, e devem ficar sujeitos: E para mais os atrair,
suavizando-lhes o trabalho nos anos determinados, só trabalharão um parte do ano
ficando-lhes a outra para cuidar nos Negócios de suas famílias; o que insensivelmente
os irá acostumando a ocupações sérias, e por conseqüência a achar necessário para
sua felicidade um governo que provê a todas as suas precisões e se desvela pela sua
tranqüilidade. E enquanto por serem empregados em viagens ou serviços dilatados
vejais que esta disposição não possa verificar-se devereis descontar-lhes no total do
tempo que têm de trabalhar este acréscimo de demora, e de mais efetivo serviço,
dispensando-os do trabalho por um intervalo que venha a dar com o tempo de
serviço que lhes for arbitrado. A paga deste Corpo será a mesma que a atual dos
Índios acrescentando a ração diária com uma porção de sal, e dando-lhes outra de
aguardente quando andarem em Viagem ou estiverem nos Matos. Vencerá este
Corpo cada ano dois uniformes, que constarão de umas calças, uma camisa, e uma

E spelhos P art i dos 335


véstia de algodão pintado de Preto para cada indivíduo, os seus Cabos terão na
paga aquela diferença, que julgardes mais adequada; e cada vinte Praças terão um
Cabo, cada cem um Sargento, e todo o Corpo um Capitão de Campo, e Mato. Os
Principais, e os Oficiais dos Corpos de Milícias usarão de um uniforme que vós lhe
dareis. Como a economia é um objeto inseparável de toda a boa Ordem, e sobretudo
em qualquer inovação convém, e Ordeno-vos que permitais o uso das Licenças
àqueles do referido Corpo, a quem possa dispensar do serviço além dos que devem
estar sempre prontos para qualquer ocorrência imprevista, e ocasião repentina: E
havendo casos extraordinários em que sejam precisos mais do que aqueles que
compõem o Corpo efetivo; Autorizo-vos a chamardes dos Corpos de Milícias em
que todos ficarem ordenados aqueles que forem necessários. Conformando-me
igualmente com o vosso parecer acerca dos Índios que se ocupam nas pescarias,
Ordeno-vos que façais logo alistar em número suficiente todos aqueles que houverem
de ser Pescadores, dispensando-os de entrarem assim no Corpo de Meu Real Serviço,
como nos de Milícias, e que lhes destineis as Vilas, em que devem habitar, ficando
porém sujeitos a outros trabalhos aqueles que alistados faltarem ao Serviço da Pescaria,
e impondo-lhes uma pena proporcionada, se abandonarem as Embarcações:
Encarrego-vos de Me informar do método, que mais convém estabelecer para se
fazerem as Pescarias, se deixando-se à indústria e interesses dos mesmos Índios, se
obrigando-os a concorrer unidos para elas por direção alheia; E igualmente me
informareis exata, e individualmente sobre o modo por que hão de regular-se
relativamente à Civilização dos Índios os Contratos dos Dízimos, e da Marchantaria,
afim de que nada se omita de tudo quanto pode contribuir para um fim tão pio e
justo. E porque não é Minha Real Intenção que o Contrato dos Dízimos suba de
preço à Custa dos Índios, mas sim que o Dizimeiro, e os outros Contratadores
naqueles Contratos tenham gente para remar as Canoas que a eles pertencerem, e a
quem paguem pelo preço que convierem: Ordeno-vos que façais observar o seguinte:
Todos aqueles Índios que os Contratadores, e Dizimeiros ajustarem conquanto se
ocuparem nos trabalhos dos mesmos Contratadores, e até um número arbitrado
pela Junta da Fazenda, ou pelas Câmaras respectivas proporcionalmente aos trabalhos
em que houverem de se empregar serão isentos de outro qualquer Serviço Público:
Proibindo expressamente aos Oficiais dos Corpos de Milícias a que pertencerem
que os chamem nunca para outra qualquer ocupação, e ficando os Contratadores
obrigados a manifestar aos mesmos Oficiais assim o número daqueles Índios que

336 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


lhe devem ser dispensados, como os que trouxerem efetivos, e do mesmo modo
aqueles que abandonarem os trabalhos a que foram destinados afim que em tal caso
sejam logo chamados para outros: Bem entendido porém, que sucedendo não terem
os Contratadores Índios para fazerem Navegar as suas Canoas ficarão eles
autorizados a requerer ao Juiz respectivo, e mais imediato, que apene e lhes mande
aqueles que só bastarem para as navegar ainda que os tire de outras, onde sejam
menos necessários, e os Juízes serão obrigados a dar a providência requerida, salvo
sempre a indenização de pagamento livre enquanto não chegar a um excesso tal que
a faça inútil.
O outro meio que Me propondes como tendente também para o mesmo
fim da Civilização dos Índios é a continuação do Comércio, e Navegação para
Mato Grosso, feito por Escravos, e não pelos Índios: sobre este ponto tenho
determinado o que vos será constante em outra Carta em que vos Ordeno a execução
do que informastes a cerca da Navegação do Pará para Mato Grosso.
Não é menos digno da Minha Real atenção o fazer liquidar as contas do
Tesoureiro com as diferentes Povoações antes que procedais à total extinção do
Diretório, afim que se não sinta o menor embaraço desta justa inovação, que confio
executareis com a prudência, e acerto com que a fizestes chegar à Minha Real Presença:
E portanto ordeno-vos, que assim o façais progressivamente executar, vendendo-
se, e recolhendo-se tudo o que pertence ao Comum das referidas Povoações,
inteirando do produto destas vendas aquelas somas, que o mesmo Tesoureiro possa
haver adiantado a algumas das sobreditas Povoações. E com a fiel, e bem entendida
execução que confio dareis a estas Minhas saudáveis providências, Espero ver
Realizados os desejos de aumentar o número dos Fiéis, atraindo ao grêmio da
Igreja, e à obediência das Minhas Leis, uma considerável porção dos Habitantes
desse vasto País, que involuntária, mas cega e infelizmente não conhecem outra Lei,
que não seja a da sua Vontade, sem regra nem discernimento: E quando antes puserdes
em prática estas Minhas Disposições, tanto maior Serviço fareis a Deus, e Mim, a
quem será mui agradável, que vós sejais o instrumento da total Civilização desses
Índios, ao ponto de se confundirem as duas Castas de Índios, e Brancos em uma só
de Vassalos Úteis ao Estado, e Filhos da Igreja.
Restituídos assim aos seus Direitos os Índios, convém atalhar a natural
ociosidade a que os convida o Clima, quer no Meu Real Serviço, quer no dos
Particulares. Pelo que toca ao destes, Recomendo-vos que façais observar

E spelhos P art i dos 337


inviolavelmente o que contém as Leis deste Reino a respeito da gente do serviço, e
dos deveres Recíprocos do Amo, e do Criado; E em particular Ordeno-vos
expressamente que jamais disponhais arbitrariamente desta gente em benefício de
quem quer que seja, e por mais justo que pareça o pretexto, ainda mesmo para Meu
Real Serviço; exceto nas ocasiões em que julgardes da vossa Obrigação convocar a
que for precisa como Corpo de Milícias para se unir aos pagos, e para defenderdes
a Capitania; pela qual Me sois responsável: Autorizando-vos portanto, como também
ao Ouvidor dessa Capitania, a reprimir quaisquer Violências que neste ponto se
possam intentar; e a fazer executar em tudo o que Respeita o objeto da Civilização
dos Índios, as Leis porque se governam todos os Meus outros Vassalos. Portanto,
quando se precisem, além dos efetivos, mais operários para meu Real Serviço,
determinando que seja pela Junta da Fazenda qual deva ser o número deles, e quais
os Distritos donde devam ser tirados, ao Ouvidor competirá o dirigir as convenientes
Ordens aos Juízes dos Distritos, para os mandarem para onde convier: E carecendo
algum particular de homens para fazer as suas Lavouras deverá procurá-los, e ajustá-
los; e não os achando, posto que os haja em seu Distrito: Hei por bem conceder ao
Ouvidor Autoridade para mandar apenar pelo tempo preciso, o número de
Operários, de que necessitar um tal particular, devendo este porém justificar que
tem frutos pendentes, que a falta de Braços, e a demora dos trabalhos rurais expõem
a perder-se: Bem entendido contudo, que a faculdade que ao Ouvidor concedo;
não deverá em caso algum compreender aqueles Indivíduos que tiverem
estabelecimentos próprios, e de um valor determinado, nem tão pouco será lícito
ao mesmo Ouvidor apenar Operários precisos para irem trabalhar fora de seus
Distritos respectivos; porquanto é da Minha Real Intenção não impor aos Meus
Vassalos Naturais de toda essa vasta Capitania maior ônus, do que aos Meus outros
Vassalos Naturais deste Reino; antes sim igualar em tudo à Condição destes, a
Condição dos outros: E sobre este importantíssimo ponto Recomendo-vos uma
particular atenção e vigilância; para que se execute o que tenho determinado; como
também em que o Particular que precisar de Homens, seja para remar as Canoas
com que faz a sua Navegação e Comércio, seja para fazer Roçados, ou finalmente
para outro qualquer Serviço, em lugar de os violentar a isso, procure as Povoações
e nelas se estabeleça, se alie com os Índios, e com eles faça os seus ajustes; porquanto
deste modo terá servidores que espontaneamente o sirvam, e que enquanto lhes
não faltar aos ajustes, estarão sempre prontos para trabalhar, e continuar a servi-lo:

338 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


E como entre os Índios não poderá cessar repentinamente mas sim gradual, e
sucessivamente a inclinação natural de alguns deles ao ócio, e inação: Ordeno-vos
que todos os seis meses mandeis fazer alardes aos diferentes Corpos, em que ficarem
formados, e façais examinar e indagar quais destes os que Repugnam ocupar-se em
Servir, e em trabalhar, e estes fareis vós entrar no Corpo efetivo do Meu Real
Serviço, ou os destinareis a serem apenados a outros a quem deverem apenar-se : E
para lhes mostrar que esta Determinação tem por princípio a Justiça, e não o molestá-
los, fazei saber a todos eles que os que fizerem estabelecimento próprio, além de
um Prêmio que lhes destino, serão particularmente protegidos, e isentos de todo o
trabalho pessoal, logo que a importância dos Dízimos que pagarem dos frutos que
cultivarem, exceda o do Jornal que poderiam ganhar.
Iguais os Índios em Direitos e obrigações com os Meus outros Vassalos,
ainda falta facilitar-lhes Alianças com os Brancos, como um meio muito eficaz para
sua perfeita Civilização: Portanto Ordeno-vos que cuides muito em promover os
casamentos entre Índios e Brancos: E para que estes tenham um estímulo que os
delibere a estas Alianças: Hei por bem conceder a todos os Brancos que casarem
com Índias a prerrogativa de ficarem isentos de todos os Serviços Públicos os seus
Parentes mais próximos por um número de anos proporcionado aos que julgardes
bastantes para formarem seus Estabelecimentos e se os Brancos que quiserem casar
com Índias forem Soldados pagos, Autorizo-vos a dar-lhes Baixa Recomendando-
vos toda a vigilância quanto a estes para que não abusem e iludam esta Graça.
Regulada assim a condição dos Índios que já vivem Aldeados, é Minha Real
Intenção, pelo que toca aos que andam embrenhados nos matos, e repugnam procurar
a Sociedade dos outros seus Semelhantes, pelos justos motivos que Me patenteais,
alterar o sistema até agora seguido e substitui-lo por outro que tenha por princípio
não o Conquista-los, e Sujeita-los, mas prepara-los para admitirem Comunicação, e
Trato com os outros Homens: E para este fim vos Ordeno que não façais, nem
consintais que se faça debaixo das mais severas Penas, que ficam reservadas ao Meu
Real Arbítrio, Guerra Ofensiva, ou Hostilidades quaisquer a Nação alguma de
Gentios, que habitam os vastos espaços dessa Capitania. E Recomendo-vos do
mesmo modo, que nem deis, nem consintais se dê auxílio direto ou indireto nas
Guerras que umas Nações às outras puderem fazer: Proibindo debaixo de rigorosas
penas a Compra, ou Recebimento de nenhum Escravos apreendidos nas Guerras
que entre si tiverem, ainda mesmo que se alegue o pretexto de os por em liberdade:

E spelhos P art i dos 339


E só vos será lícito adotar um sistema diferente deste, puramente defensivo, no caso
em que algumas das mesmas Nações intentem Hostilidades, e Correrias contra as
Cidades, Vilas, e outras Povoações de sorte que os mesmos Cabos encarregados de
defender o País ameaçado, ou já atacado, ficarão responsáveis e sujeitos a uma
Devassa para se averiguar se eles excederam as Ordens que vós deveis dar-lhes, de
se manter nas mais estrita defensiva, e ainda no uso dela tão moderado, que aos
Índios se faça ver que eles atacam, e acometem uns homens, que bem longe de lhes
quererem mal apenas, procuram defender as vidas, e preservar-se das suas Correrias:
E tanto vos Recomendo a execução deste utilíssimo Sistema, que ainda no Caso em
que aquelas Nações continuem, e repitam suas invasões, apesar da moderação que
os Cabos devem mostrar na defensiva, ao ponto de interromperem o Comércio, e
de vexarem alguns estabelecimentos, e os seus Habitantes, nem assim devereis adotar,
nem permitir se use de outro Sistema, que não seja o da mais severa, e perfeita
defensiva, Reservando a ofensiva só, e unicamente para os Casos de exemplar Castigo,
e contra os Índios infratores da Paz. Na conformidade do que acima vos determino:
Sou Servida, que nem vós, nem quaisquer outros Cabos Militares empreendam
expedições seja por conta da Minha Real Fazenda, seja por conta de particulares,
para os Descimentos de Índios, nem ainda para travar com eles Comunicação, mas
que observeis e façais observar a este respeito o que se segue, dando-Me parte dos
efeitos destas Minhas disposições, afim que ou as Amplie, ou modifique a Meu
Arbítrio, conforme a Informação que fizerdes chegar à Minha Real Presença sobre
o mesmo objeto. Todos e quaisquer Comboieiros que freqüentarem o interior do
Brasil, e dessa Capitania em particular, seja navegando os Rios, seja caminhando
pelas Estradas, serão obrigados a levar entre os gêneros de que compuserem as suas
Carregações aqueles de que os Gentios fazem naturalmente maior estimação afim
que encontrando-os os brindem com tais presentes, e com eles travem comunicação
e trato, ficando os referidos Comboieiros sujeitos às mais severas penas que deixo
reservadas à Minha Indefectível Justiça se inquietarem, ou molestarem de qualquer
modo que ser possa os mesmos Gentios, e se os provocarem a Hostilidade, ou se
ainda quando lhes façam estes últimos excederem eles os termos de uma natural
defesa. Isto mesmo se estenderá com todas e quaisquer outras pessoas que em
expedições próprias transitarem pelas Estradas ou navegarem pelos Rios: E para
que o Comércio, e os meus Vassalos não sofram dano desta disposição, tirando-lhe
todo o pretexto para ser iludida: Ordeno-vos que obrigueis a todos os Juízes dos

340 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Distritos por onde transitarem tais Comboios a chamar à sua presença os Indivíduos
de que constarem os mesmos Comboios, e lhes façam exibir os seus Passaportes, e
tirem dos mesmos Indivíduos ex officio todas as informações a este respeito, fazendo
autenticar com juramento as suas Respostas: E deste exame e exibição de Passaporte,
só sou Servida excetuar os Governadores e Ministros quando passarem pelos tais
Distritos para tomarem Socorros, e Refrescos: E de tudo farão os Referidos Juízes
um auto, e procederão competentemente contra todo aquele que acharem Culpado:
E aqueles que por obrigação transitarem por tais Lugares logo que cheguem ao de
seu destino, e não havendo contra eles culpa alguma imputada, ou provada, e fazendo
certa pelos meios competentes a qualidade dos gêneros com que hajam brindado
os Gentios e do mesmo modo o seu primeiro custo, e onde os compraram: Ordeno-
vos que estes só, e não aos que por conveniência vão a eles, façais pagar por conta
da Minha Real Fazenda a importância de tais gêneros. Todos aqueles moradores
que ajustarem, e trouxerem para os servir os Índios daquelas Nações que estiverem
em paz, como estão agora os Muras, Mundurucus, e Carajás: Ordeno-vos lhes
permitais estes ajustes, obrigando-os porém a manifestar logo ao Governo aqueles
que deste modo consigo trouxerem afim que mandeis imediatamente proceder o
termo pelo qual sejam obrigados os referidos moradores a educar, e instruir os
mesmos Índios de sorte que dentro de certo espaço de tempo sejam eles Batizados,
e pelo mesmo Termo ficarão obrigados a pagar-lhes o Estipêndio convencionado:
Para o que hei por bem Conceder-lhe a estes Índios o privilégio de Órfãos, no
referido Termo se fará igualmente menção do número de anos determinado, que
seja bastante para ficarem indenizados os moradores pelo trabalho dos Índios das
despesas, que houverem feito pelas quais lhes serão estes Conservados: E todo
aquele que durante o mesmo espaço de tempo inquietar, ou seduzir os Índios para
abandonarem o Serviço em que estão, incorrerá em graves penas; bem entendido
que são os Índios livres de qualquer Nação, que esteja em paz, e não Escravos; o que
na Conformidade do que acima vos Ordeno deveis sobretudo fazer examinar para
serem Castigados os que infringirem as Ordens que para a execução e Cumprimento
do que deixo determinado havereis de passar.
A todos será livre o fazer o Comércio com os Gentios, e deveis permitir a
introdução de todos os gêneros de que carecerem à exceção de Armas Brancas, e
de fogo Pólvora, Bala, Chumbo, e ferro, e tudo o mais, que possa dar-lhes ocasião
de intentarem empregar contra os seus benfeitores: E outrossim vos ordeno que

E spelhos P art i dos 341


igualmente permitais a livre extração, e venda de todos os gêneros que do seu País
trouxerem os que lhes levarem os da Capitania encarregando-vos de vigiar mui
atentamente a que não abusem desta concessão, para extrair o Ouro em pó, e os
Diamantes dando vós a este respeito as providências que julgares mais adequadas, e
dando-Me parte do que para este fim obrareis.
Todo aquele indivíduo Livre que quiser estabelecer-se nas Terras, e Povoações
doe Gentio lhe será concedida Licença para isso, mas não poderá fazê-lo sem dar
parte ao Governo: Encarrego-vos pois de promoverdes tais estabelecimentos
procurando com preferência pessoas capazes, e sossegadas, que não inspiram temor,
nem desconfiança aos Índios para entre eles irem estabelecer-se: Aos Eclesiásticos
que à conversão destas Nações de Gentios forem mandados, e aos que forem
coadjutores das Paróquias em cuja vizinhança se estabelecerem, fareis pagar uma
Competente Côngrua, por conta da Minha Real Fazenda: Para que esta Providência
por uma parte aproveite ao bem Espiritual e ainda ao Temporal dos Índios, não
grave por outra a Minha Real Fazenda: Ordeno-vos que tenhais todo o cuidado, e
circunspecção na escolha dos Eclesiásticos, que devem ir gravar nos Corações dos
Gentios as verdades inefáveis do Evangelho; e que Me informeis com a possível
brevidade dos meios que convém adotar-se para proporcionar o número das
Paróquias ao dos Habitantes que formam o total da População dessa Capitania:
porquanto consta na Minha Real Presença pela vossa Informação que há graves
inconvenientes, principalmente na nova ordem estabelecida agora, na distribuição
desproporcionada das Freguesias: E achando vós Eclesiásticos recomendáveis pelas
suas virtudes, boa vida e instrução, que empregueis no Ministério acima Referido.
Autorizo-vos a que por conta de Minha Real Fazenda, lhes presteis os auxílios de
que absolutamente precisarem além da Côngrua para prosseguirem em tão úteis
empresas: Confiando Eu que poreis neste ponto toda a circunspecção de que sois
capaz.
Aquele que reduzir qualquer Nação de Gentio ou a receber Sacerdote e a
Luz do Evangelho ou o que a souber aliciar e conduzir a estabelecer-se junto a
qualquer Paróquia para o mesmo fim, Autorizo-vos para que o declareis Nobre, e
Hábil para todos os Empregos; para lhe facultardes além desta graça a da Sesmaria
das terras devolutas que precisar e do valor dos Dízimos por seis anos, recebendo-
se eles porém em Gêneros pelo respectivo Dizimeiro, e a da Redízima e findos
estes pelos que forem proporcionados: Informando-Me de tudo para que tão
Honrado Vassalo possa obter da Minha Real Grandeza aquelas novas Graças que
Eu julgar conseqüentes à importância do Serviço, que Me Patríhouver feito.
cia Maria Mel o Sampaio
342
ANEXOS

E spelhos P art i dos 343


Quadros, tabelas e ilustrações
Estrutura da administração colonial portuguesa: 1751 - 1774 ............................... 51
Estrutura da administração colonial portuguesa: 1774 -1808 ................................ 52

População da Capitania do Rio Negro - 1773 - 1797 ........................................... 63

Índios Aldeados na Capitania do Rio Negro: 1764 - 1797 ..................................... 67

População Escrava na Capitania do Rio Negro: 1773 - 1797 ................................ 68

População Livre na Capitania do Rio Negro: 1773 - 1797 .................................... 69

Procedência dos Africanos no Grão-Pará: grandes zonas de tráfico ...................... 86

Estimativas do T ráfico ............................................................................. ...... 88


População de Belém: Quadro % comparativo .................................................... 90

População do Rio Negro: Quadro % comparativo ............................................... 91


Mocambos na Amazônia Colonial ..................................................................... 93

Distribuição % dos inventários por freguesia e monte-mor: 1810 - 1845 ................ 98

Distribuição dos Inventários por sexo e monte-mor: 1810 - 1845 .......................... 98

Composição % dos Ativos dos Inventários: quadro comparativo .......................... 105

Distribuição % dos Inventários por Faixas de Fortuna: 1810 - 1840 ...................... 106

Escravos: Distribuição por Sexo e Faixa Etária ................................................. 108

População de Belém: Quadro comparativo ........................................................ 108

Participação % de atividades econômicas nos inventários post-mortem do Grão-Pará. 109

Inventários do Grão-Pará: faixas de comprometimento das fortunas ..................... 109

Diretório Pombalino (1757 - 1798) .................................................................. .. 134

Drogas do Sertão exportadas pela Companhia de Comércio do Grão-Pará .............. 148


Rota de Comércio do Rio Madeira .................................................................... 161

Valor dos Gêneros exportados pela Companhia de Comércio: Quadro comparativo .. 174

Pará e Rio Negro: receita e despesa das povoações ....................................... 178

Produção Agrícola registrada nos Inventários post-mortem: 1810 - 1845 ................ 179

Produtos Agrícolas do Grão-Pará: 1756 - 1810 .................................................... 184

Valores dos Estoques da Companhia de Comércio (1760 - 1774) .......................... 185

Produtos Exportados pela Companhia de Comércio do Grão-Pará ......................... 186


Índios da República (1798 - 1838) ...................................................................... 229

Estrutura das Tropas no Grão-Pará ( 1752 - 1795) ................................................. 314

Forças ou Tropas no Grão-Pará ......................................................................... 243

Forças Militares no Grão Pará (1752 - 1796) ................................................... 247


Quadros, tabelas e ilustrações ..................................................................... ... 431

344 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Quadros, tabelas e ilustrações

Unidades de Peso, Medidas e Moedas ................................................................. ................

Abreviaturas ....................................................................................... ................................


Governadores do Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751 - 1772) ...................................................

Governadores do Estado do Grão-Pará e Rio Negro (1772 - 1823) ..............................................


Governadores da Capitania de São José do Rio Negro (1755 - 1823) ...............................................

Ouvidores da Capitania do Rio Negro (1759 - 1823) ...................................................................


Missões e Povoações na Capitania do Rio Negro ........................................................................

Bispos do Grão-Pará e Maranhão (1721 - 1890) ........................................................................


Capitania de São José do Rio Negro: distribuição espacial das povoações .......................................

Núcleos Coloniais da capitania de São José do Rio Negro ..........................................................

E spelhos P art i dos 345


Unidades de Peso, Medidas e Moeda

Alqueire 36, 3 kg
Alqueire do Pará 2 paneiros (cerca de 30 kg)
Arratel 0,429 kg
Arroba 14, 7 kg
Braça 2,2 m
Canada 2, 64 litros
Côvado 66 cm (3 palmos)
Frasco 3, 3 litros (5 quartilhos)
Frasqueira 39,8 litros (12 frascos)
Palmo 22 cm
Paneiro Cerca de 15 kg
Quartilho 0, 66 litros
Quintal 4 arrobas (cerca de 58 kg)
Vara 1, 10 m
Légua Entre 5 555 e 6 000 metros
Cruzado $ 400 (400 réis)
Oitava 1$200 (1200 réis)
Pataca Moeda de prata ($300 e $320)
Tostão Moeda de níquel ($100)

Abreviaturas

ABAPP Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará


AEP Amazônia na Era Pombalina
AHU Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa)
ANRJ Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
APAM Arquivo Público do Amazonas
APP Arquivo Público do Pará
BI Biblioteca do Itamaraty (Rio de Janeiro)
BNRJ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
CEDEAM Comissão de Estudos e Documentação da Amazônia (Manaus)
DFB Dicionário de Famílias Brasileiras
IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
MA Museu Amazônico – Universidade do Amazonas
MPEG Museu Paraense Emílio Goeldi
RN Rio Negro
RIHGB Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

346 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Governadores do Estado do Grão-Pará e Maranhão (1751 - 1772)

Nome Período Capital


Francisco Xavier de Mendonça Furtado 1751-1759 Belém
Manuel Bernardo de Melo e Castro 1759-1763 Belém
Fernando da Costa de Ataíde Teive 1763-1772 Belém
Fonte: Francisco Jorge do Santos. Além da Conquista. Op. cit., p. 218.

Governadores do Estado do Grão-Pará e Rio Negro ( 1772 - 1823)

Nome Período Capital


João Pereira Caldas 1772-1780 Belém
José Nápoles Telo de Menezes 1780-1783 Belém
Martinho de Souza e Albuquerque 1783-1790 Belém
Francisco de Souza Coutinho 1790-1803 Belém
Marcos de Noronha e Brito, Conde dos Arcos 1803-1806 Belém
José Narciso de Magalhães e Menezes 1806-1810 Belém
Junta de Sucessão Provisional 1810-1817 Belém
Antônio José de Souza Manuel de Menezes, Conde de Vila Flor 1817-1820 Belém
Juntas Provisionais 1820-1823 Belém
Fonte: Francisco Jorge do Santos. Além da Conquista. Op. cit., p. 218.

E spelhos P art i dos 347


Governadores da Capitania de São José do Rio Negro - (1755 - 1823)
Nome Período Capital Observação
Joaquim de Mello e Póvoas 1758-1760 Barcelos
Gabriel de Souza Filgueiras 1760-1761
Nuno da Cunha de Ataíde Verona 1761 Interino
Valério Correia Botelho de Andrade 1761-1763 Barcelos Interino
Joaquim Tinoco Valente 1763-1772 Barcelos Interino
Joaquim Tinoco Valente 1772-1779 Barcelos Titular
1ª Junta Governativa: Francisco Xavier 1779 Barcelos
Ribeiro de Sampaio, Domingos Franco
de Carvalho e Antônio Nunes
2ª Junta: Domingos Franco de Carvalho, 1780 Barcelos
Simão José Pereira de Ribeiro e Felipe
Serrão de Castro
3ª Junta : Felipe Serrão de Castro, João 1781 Barcelos
Nobre e Bento José do Rego
4ª Junta: Bento José do Rego, 1782 Barcelos
Francisco Taveira Velho e Antônio
Francisco Mendes
5ª Junta: Bento José do Rego 1783 Barcelos
(substituído por João Batista Mardel),
João Manuel Rodrigues e José Gomes
da Silva
6ª Junta: João Batista Mardel 1784 Barcelos
(substituído por Severino Eusébio de
Matos e, depois, por Domingos Franco
de Carvalho), Bento José do Rego e
Antônio Francisco Mendes.
7ª Junta: Antônio Francisco Mendes, 1785 Barcelos
João Manuel Rodrigues e José Gomes
da Silva
8ª Junta: José Gomes da Silva, João 1786 Barcelos
Manuel Rodrigues (substituído por José
Antônio Freire Évora) e Francisco Xavier
de Morais
Manuel da Gama Lobo d’Almada 1788-1799 Barcelos/ lugar da Titular
Barra/ Barcelos
9ª Junta Governativa 1799-1801 Barcelos
José Antônio Salgado 1801-1804 Barcelos
José Joaquim Vitório da Costa 1806-1818 Barcelos/ lugar da Titular
Barra
Manuel Joaquim do Paço 1818-1822 Lugar da Barra Titular
10ª Junta: José de Brito Inglês, 1822 Barra
Domingos Nunes Ramos Ferreira e
José da Silva Cavalcante
11ª Junta: Joaquim José Gusmão, 1823 Barra
Domingos Nunes Ramos Ferreira e
João da Silva Cunha
Fonte: Francisco Jorge do Santos. Além da Conquista. Op. cit., p. 219-220.

348 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Ouvidores da Capitania do Rio Negro (1759 - 1823)

Nome Período
Lourenço Pereira da Costa 1759-1767
Antônio José Pestana da Silva 1767-1773
Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio 1773-1779
Ouvidorias Interinas (Bento José do Rego, José Antônio Freire Évora) 1779-1799
Luís Pinto de Cerqueira 1799-1801
Caetano Pereira Pontes 1803?
João Antônio da Silva Bacelar Alvares das Astúrias 1807?
Antônio Feliciano d’Albuquerque Bittencourt 1817?-1821
Domingos Nunes Ramos Ferreira 1821-1823
Fonte: Cronologia provisória elaborada pela autora.

Missões e Povoações na Capitania do Rio Negro


Aldeamento Ordem Nome Luso Rio Denominação Atual
Religiosa
Abacaxis Jesuítas Vila de Serpa Amazonas Itacoatiara
S. Ana de Saracá Mercedários Vila de Silves Amazonas Silves
Trocano Jesuítas Vila de Borba Madeira Borba
Dari Carmelitas Lugar de Negro
Lamalonga
Fortaleza da Barra Carmelitas Lugar da Barra Negro Manaus
N. S. da Conceição de Mariuá Carmelitas Vila de Barcelos Negro Barcelos
N. S. do Carmo de Caboquena Carmelitas Lugar de Moreira Negro Moreira
S. Alberto do Aracari Carmelitas Lugar de Carvoeiro Negro Carvoeiro
S. Ângelo de Cumaru Carmelitas Lugar de Poiares Negro Tauapessassu
(Novo Airão)
S. Elias do Jaú Carmelitas Lugar de Airão Negro
S. Rita de Itarandaua Carmelitas Vila de Moura Negro Moura
Santa Rosa de Bararoá Carmelitas Vila de Tomar Negro
Caiçara Carmelitas Lugar de Alvarães Solimões Alvarães
Eviratéua Carmelitas Lugar de Castro de Solimões Amaturá
Avelães
N. S. Guadalupe Taracotéua Carmelitas Lugar de Fonte Boa Solimões Fonte Boa
Parauari Carmelitas Lugar de Nogueira Solimões Nogueira
S. Ana de Coari Carmelitas Lugar de Alvelos Solimões Coari
S. José do Javari Carmelitas Vila de S. José do Solimões
Javari
S. Paulo dos Cambebas Carmelitas Vila de S. Paulo de Solimões S. Paulo de Olivença
Olivença
S. Tereza de Tefé Carmelitas Vila de Ega Solimões Tefé
Fonte: Elaborado por Francisco Jorge do Santos. Além da Conquista.

E spelhos P art i dos 349


Bispos do Grão-Pará e Maranhão ( 1721 - 1890)
Nome Período Observação
Frei Bartolomeu do Pilar 1721-1733 1º Bispo; nomeado em 1717,
chegou ao Pará em 29.08.1724.
Faleceu em 9.4.1733
Frei Guilherme de São José 1739-1748 2 º Bispo; tomou posse em
10.08.1739 e faleceu em Lisboa
em 15.12.1751.
Frei Miguel de Bulhões 1749-1760 3º Bispo; dominicano, tomou
posse em 14.02.1749 e, em 1760,
foi transferido para o Bispado de
Leiria.
Frei João de São José de Queiróz 1760-1763 4º Bispo; beneditino, tomou posse
em 31.08.1760 e recolheu-se à
Portugal, por ordem real, em
25.11.1763.
Arcediago Giraldo José de Abranches 1763-1772 Vigário Capitular e Visitador do
Santo Ofício no Grão-Pará
Frei João Evangelista Pereira da Silva 1772-1782 5º Bispo; franciscano, chegou ao
Pará em 17.11.1772 e faleceu em
14.05.1782.
Arcipreste João Monteiro de Noronha 1782-1783 Vigário Capitular
Frei Caetano Brandão 1783-1789 6º Bispo; franciscano, chegou ao
Pará em 21.10.1782 e em
28.4.1789 foi nomeado para o
Arcebispado de Braga, chegando
a Lisboa em 19.10.1789.
Arcipreste João Monteiro de Noronha 1789-1794 Vigário Capitular; faleceu em
1794.
D. Manuel de Almeida Carvalho 1794-1818 7º Bispo; chegou ao Pará em
17.06.1794 e faleceu em
30.06.1818
Arciprestre Romualdo Souza Coelho 1818-1819 Vigário Capitular até janeiro de
1819.
Arciprestre Romualdo de Souza 1821-1841 8º Bispo; foi sagrado Bispo em
Coelho 22.01.1819 e tomou posse em
20.06.1821; em 1822, eleito
Deputado, deixa em seu lugar o
Vigário Geral Romualdo Antônio
de Seixas (seu sobrinho) até seu
retorno ao Pará em 1823. O bispo
ocuparia o posto até seu
falecimento em 1841.
Cônego Francisco Pinto de Moura 1841-1844 Vigário Capitular
D. José Afonso de Morais Torres 1844-1859 9º Bispo
D. Antônio de Macedo da Costa 1861-1890 10º Bispo
Fontes: Elaborada pela autora a partir de HOORNAERT, E. ( Coord.). História da Igreja na
Amazônia; REIS, A. C. Ferreira. A conquista espiritual da Amazônia; IHGB. Dicionário
Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1922, 2 v.;
VARNHAGEN, Francisco A. História Geral do Brasil, v. 3, p. 304.

350 Patrí cia Maria Mel o Sampaio


Capitania de São José do Rio Negro
Distribuição Espacial das Povoações

E spelhos P art i dos


Org. Francisco Jorge dos Santos, 1995. ESCALA 1:8.000.000 LESTE
Compilado no Laboratório de Cartografia - UFAM, 2001.
Desenho: José R. Rabelo Filho. 80 0 80 160 Km

OESTE

351
Núcleos Coloniais da Capitania de São José do Rio Negro*

Rio Madeira 61. Vila de Barcelos


40. Vila de Borba 62. Vila de Moreira
63. Vila de Tomar
Rio Amazonas 64. Lugar de Lamalonga
41. Fregues ia N. Senhora do 65. Santa Isabel do R. Negro
Carmo 66. N. Senhora de Loreto
42. Vila de Silves 67. S. Antônio do Castanheiro Velho
43. Vila de Serpa 68. S. Antônio do Castanheiro Novo
44. Pesqueiro Real Puraquequara 69. N. Senhora de Nazaré
70. Fortaleza de S. Gabriel
Rio Solimões 71. N. Senhora da Guia
45. Pesqueiro Real Manacapuru 72. S. João Batista de Mabé
46. Lugar de Alvelos 73. Fortaleza de S. Jos é dos
47. Lugar de Nogueira Marabitanas
48. Vila de Ega
49. Lugar de Alvarães Rio Uaupés
50. Lugar de Fonte Boa 74. S. Joaquim do Coané
51. Lugar de Castro de Avelãs
52. Vila de Olivença Rio Branco
53. Vila de S. José do Javari 75. Pesqueiro Real da Demarcação
54. Fortaleza de S. Fco. Xavier de 76. S. Martinho
Tabatinga 77. N. Senhora do Carmo
78. Pesqueiro da Capitania
Rio Japurá 79. Santa Maria
55. S. Antônio de Maripi 80 a. S. Felipe
80 b. S. Felipe
Rio Negro 81 a. N. Senhora da Conceição
56. Fortaleza da Barra do Rio 81 b. N. Senhora da Conceição
Negro
82. Santa Isabel
57. Lugar de Airão
83. Santa Bárbara
58. Vila de Moura
84. Fortaleza de S. Joaquim
59. Lugar de Carvoeiro
85. Santo Antônio e Almas
60. Lugar de Poiares

*
Mapa adaptado a partir de Francisco J. dos Santos. Além da Conquista. Manaus: EDUA, 1997.

352 Patrí cia Maria Mel o Sampaio

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